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David José Gonçalves Tierro Ramos
A Imagem do Cinema na Construção dos Conceitos Científicos
Reflexões a partir da Tese de Doutorado de Gaston Bachelard
“Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado”
CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS
Mestrado em Educação Tecnológica
Belo Horizonte
2008
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David José Gonçalves Tierro Ramos
A Imagem do Cinema na Construção dos Conceitos Científicos
Reflexões a partir da Tese de Doutorado de Gaston Bachelard
“Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado”
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Educação Tecnológica do Centro Federal de
Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-
MG, para obtenção do título de Mestre em Educação
Tecnológica.
Orientador: Prof. Dr. Fábio Wellington Orlando da Silva
Belo Horizonte (MG)
2008
1
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Resumo
Esta pesquisa procura compreender os mecanismos cognitivos do aprendizado através das
imagens de cinema, utilizando o modelo epistêmico desenvolvido por Gaston Bachelard em
sua tese de doutorado de 1928. Segundo esse modelo, a construção do conhecimento
científico se inicia nos atos cotidianos, em contatos com a realidade que podem ser
ampliados em um processo interminável, nunca esgotado pelas aproximações constantes
que as pesquisas científicas promovem. A cada novo movimento do conhecimento,
reconfiguramos nossos conceitos, para aplicá-los cada vez melhor às situações de nossas
vidas, para re-conhecermos. Neste trabalho foi explorada a utilização de filmes
cinematográficos na construção dos conceitos científicos. Nossa hipótese é que os filmes
são úteis, em particular quando se lida com dimensões muito amplas ou muito reduzidas de
nossas realidades e se necessita de um objeto para o processo abstrativo. O filme
cinematográfico seria então capaz de apresentar uma série de estímulos importantes, por
exemplo, em conteúdos como a Biologia e a Antropologia, que lidam com esses conceitos
científicos limites, que requerem alta capacidade de abstração. Além disso, ser capaz de
reconhecer em um filme de cinema um conceito científico aprendido é uma forma de fixar
esse conceito no espírito do estudante. A pesquisa realizada com estudantes de um curso de
Pedagogia parece corroborar essa hipótese.
Palavras chave: Bachelard, Cinema, Educação, Epistemologia
2
Abstract
This research hunt understands the apprenticeship’s cognitive mechanism that using the
cinema’s image in the development. We use to understand the mechanisms of the learning
through the cinema images, the Gaston Bachelard´s epistêmic model minded in his thesis
Ensais sur la connassance aprochée, from 1928. According to this model, the construction
of the scientific knowledge is initiates in the daily acts. The contacts with the reality that
would be extended in an interminable process, never depleted for the constant approaches
that the scientific research promotes. To each new movement of the knowledge, we
reconfigure our concepts, to apply them each better time to the situations of our lives, to
recognize them. In this work the use of cinematographic films to the construction of the
scientific concepts was explored. Our hypothesis is that they can useful in particular when
we work with ample dimensions, very large or very reduced of our realities and we need an
object for the abstractive process. The cinematographic film would be then capable to
present a series of important stimulatons, for example, in contents as the Biology and the
Anthropology, that relate with these scientific concepts limits, that require high capacity of
abstraction. Moreover, to be capable to recognize in a cinema film a learned scientific
concept is a form to fix this concept in the spirit of the student. The research carried with
students of Pedagogy seems to corroborate this hypothesis.
Key words:
Bachelard, Cinema, Education, Epistemology.
3
Para Gorete
4
Sumário
1 Introdução ............................................................................................................................... 06
2 A Epistemologia do Conhecimento Aproximado de Gaston
Bachelard....................................................................................................................................... 10
2.1. A cinemática, a biologia e a imaginação humana .................................................................. 11
2.2. O conhecimento é aproximação? .......................................................................................... 15
2.3. A distância e o movimento I ................................................................................................. 16
2.4. A distância e o movimento II ................................................................................................ 19
2.5. O movimento de Aproximação .............................................................................................. 20
2.6. A dialética da aproximação ................................................................................................... 21
2.7. A linguagem como um objeto material ................................................................................. 22
2.8. Os pontos de referência do real ............................................................................................. 24
2.9. A inesgotabilidade do real ..................................................................................................... 25
2.10. As dimensões Surracionais da realidade ............................................................................. 26
2.11. As dimensões Surracionais da realidade II .......................................................................... 27
2.12. A microepistemologia da aproximação ............................................................................... 28
2.13. A integração dos movimentos ............................................................................................. 30
2.14. A Retificação......................................................................................................................... 31
2.15. Do dado bruto à assimilação funcional ................................................................................ 32
2.16. Assimilação intencional e o problema da linguagem ........................................................... 35
2.17. O Espírito ............................................................................................................................. 37
2.18. A Abstração .......................................................................................................................... 37
2.19. O microconhecimento e o macroconhecimento ................................................................... 38
2.20. O Pensamento ...................................................................................................................... 39
2.21. O contínuo da realidade ....................................................................................................... 41
2.22. O contínuo da realidade II ................................................................................................... 42
2.23. A montagem do movimento ................................................................................................43
2.24. Geometrizações imaginéticas .............................................................................................. 44
2.25. O Conceito ........................................................................................................................... 45
2.26. O conhecimento ficcional e o conhecimento científico ....................................................... 45
2.27. Uma epistemologia necessária ............................................................................................. 51
3 Fundamentos Fisioló
g
icos dos processos ima
g
inativos ......................................................... 58
4 Peda
g
o
g
ia, Epistemolo
g
ia e Cinema ...................................................................................... 69
4.1. Metodologia do trabalho com o cinema em sala de aula........................................................ 74
4.2. O cinema como recurso didático? ..........................................................................................80
4.3. Pedagogia e cinema ............................................................................................................... 81
4.5. A abstração e os conceitos científicos ...................................................................................90
5 Conclusão.................................................................................................................................. 95
6 Referências ............................................................................................................................. 100
5
1 Introdução
A cada grande filme, cada vez mais cidadãos passam a fazer referência ao cinema
como uma realidade onde respaldar suas opiniões e juízos. Na verdade parte das intenções
da indústria cultural é gerar o mimetismo entre o filme e a vida cotidiana. É cada vez mais
freqüente se referir a um filme para abordar um assunto ou tema, na vida das crianças e
adolescentes. Filmes de grande impacto cultural como Matrix, Blade runner, Guerra nas
Estrelas são filmes que muitos jovens chamam à memória para falar de valores, ou de
imagens do futuro, ou de conflitos éticos. O cinema é cada vez mais uma referência para
falarmos da realidade. Por que não compreender mais a relação pedagógica do cinema para
nossa tarefa e compreensão objetiva dos fenômenos da realidade?
O objetivo da presente dissertação é compreender os mecanismos cognitivos do
aprendizado através das imagens de cinema, utilizando o modelo epistêmico desenvolvido
por Gaston Bachelard em sua tese de doutorado de 1928, recorrendo-se portanto à história
da ciência para entender um problema científico contemporâneo.
Buscamos utilizar a descrição e a explicação contida nesse modelo bachelardiano
para iluminar, a partir de agora, a relação das imagens cinematográficas com o aprendizado
de ciência.
Bachelard trata originalmente da teoria do conhecimento em os Ensaios sobre o
conhecimento aproximado, um texto no qual afirma que o conceito que se tinha do Real
estaria limitado. A indeterminação da realidade e as pesquisas sobre o cérebro humano,
sobre o sistema nervoso, as contribuições da psicanálise e as manifestações artísticas do
surrealismo formavam então um novo paradigma na cultura da França quando suas
pesquisas estavam em curso. Foi nesse clima ideológico que Bachelard, em suas
investigações epistemológicas, propôs um modelo de cognição que levasse em conta os
novos elementos da cultura e as novas tarefas da ciência. A pergunta inicial proposta por
ele é se conseguiríamos observar e descrever o movimento de aproximação do
conhecimento sobre si mesmo.
A tese de Bachelard parece ser um primeiro olhar conexionista na história da
ciência, um conexionismo científico. O conexionismo é uma tendência, uma linha de
pesquisa da Antropologia contemporânea e das neurociências que estabelece que o
conhecimento acontece no momento do encontro do sujeito com o objeto. A relação de
6
conexão com o objeto se aperfeiçoa a cada novo encontro e, ergonomicamente, o sujeito
aborda um objeto recorrente com maior eficiência e utilidade. Quando o objeto são as
próprias descrições científicas, podemos dizer que:
(...) o conexionismo descreve o aspecto cognitivo da representação mental do
conhecimento de uma maneira assemiótica, pois, para o conexionismo, o
conhecimento é representado mentalmente não na forma de signos icônicos
ou simbólicos, mas na forma de processos de abstração, (...)
1
Entretanto, se no plano do microconhecimento Bachelard tem uma posição
conexionista forte, ao tratar a assimilação mecânica do percepto e do índice único, na
descrição do macroconhecimento, na ação do espírito, que realiza o conceito, sua posição é
aberta:
A assimilação funcional, que é o princípio mais indiscutível da evolução, (...)
se desdobra em uma assimilação intencional, por uma escolha ativa. Ora,
essa ação desejada sobrepuja, por sua vez, a ação automática. De uma só vez
ela apresenta a idéia geral em total despojamento. Substitui os traços
múltiplos e mal associados das ações reflexas pela linha verdadeiramente
única e inteira da vontade, que parecem constituir os átomos indestrutíveis de
um mundo lógico.
2
A ciência é uma atividade do espírito. O dado científico é uma formulação do
espírito, pode ser a maneira de fixação no espírito de um tipo de abstração sobre as
representações elementares, uma abstração que pode ser registrada em conceitos; o
cognoscível é possível à razão, à atividade intelectual, passível de ser relatado através de
descrições, descrições aproximadas, uma assimilação funcional. Por isso, para a ciência a
descrição do mecanismo do conhecimento adquirido é fundamental, é a vida do mundo
lógico. Para o docente, compreender de que maneira o conceito científico passa a tornar
mais apta a vida de crianças e jovens é também fundamental.
A descrição que a ciência possibilita alavanca novas aproximações. O conhecimento
adquirido numa primeira aproximação, se fixado, leva a uma outra aproximação, que é
chamada por Bachelard de reconhecimento. O objeto reconhecido em si se torna um novo
dado para uma posterior e nova assimilação funcional. Nesse sentido, a ciência não é um
conhecimento verdadeiro, literal, mas uma construção do ser humano, construção
caracterizada pelas etapas do procedimento de investigação, pelo relato, pela descrição
minuciosa e clara das representações do espírito dos pesquisadores sobre os dados, de seus
7
sentidos ou de seus aparatos técnicos, que também fornecem o real. Esse real pode ser
verificado ou reconhecido através dos objetos tecnológicos contemporâneos:
Não-platônica e não-kantiana, a filosofia de Bachelard considera a verdade
como nosso produto, que não faz redundância com um modelo absoluto de
verdade, mas que se volta para seu animador, levando-o a perceber seus
próprios enunciados como obstáculos à compreensão. Porque os verdadeiros
obstáculos da ciência não são os conhecimentos do senso-comum, mas os
sistemas relativamente coerentes de pensamento generalizados abusivamente.
Um pensamento científico não é um sistema acabado de dogmas evidentes, mas
uma incerteza generalizada, (...)
3
Quais seriam então as distinções entre o conhecimento científico e a ficção
científica? O conhecimento científico e o conhecimento ficcional se diferenciam pelas
possíveis associações do espírito científico e filosófico. Reconhecemos a ficção,
particularmente a ficção científica do cinema nos objetos tecnológicos, nas leis da Física
que os filmes reproduzem, na estética que podemos compartilhar, nos problemas humanos
que o filme pode retratar.
Considerando a ficção como arte, podemos admiti-la como conhecimento também
(em termos teóricos talvez mais para o velho do que para o jovem Bachelard). Os escritos
sobre a ficção como conhecimento são posteriores na obra de Bachelard, inicialmente sua
preocupação eram os modelos cognitivos. A arte é a expressão do reconhecimento do
artista sobre a realidade, sobre suas próprias invenções, imaginações, objetos mentais e
fantasias. A ficção científica do cinema compartilha com o conhecimento científico as
descrições lógicas, e é considerada também como uma expressão artística pelo devaneio
que está presente nas suas expressões.
Após o Ensaio, Bachelard se voltou para o problema pedagógico do espírito
científico e do espírito artístico, em livros como A Filosofia do não (1932), O novo espírito
científico (1934). Constata que a educação pode ocorrer nos dois momentos do
conhecimento, na assimilação funcional e na intencional; educar a percepção e educar o
espírito, e que essa educação está voltada para que o sujeito seja capaz de realizar as
aproximações que lhe tragam vida, mais vida, melhor vida. Assim ele forneceu com sua
tese um argumento pedagógico: certos conceitos científicos precisariam de experiências
culturais para ser melhor elaborados.
Neste trabalho foi explorada a utilização de filmes cinematográficos na construção
dos conceitos científicos. Nossa hipótese é que eles são úteis, em particular quando se lida
8
com dimensões muito amplas ou muito reduzidas de nossas realidades, e se necessita de um
objeto para o processo abstrativo. O filme cinematográfico seria então capaz de apresentar
uma série de estímulos importantes, por exemplo, em conteúdos como a Biologia e a
Antropologia, que lidam com esses conceitos científicos limites, que requerem alta
capacidade de abstração. Além disso, reconhecer em um filme de cinema o conceito
científico aprendido é uma forma de fixá-lo no espírito do estudante.
A dissertação está dividida em duas partes. A primeira parte, teórica, apresenta o
modelo cognitivo de Bachelard, que serviu como conteúdo em minhas aulas para
fundamentar o uso da imagem na construção do conceito de ethos. A parte teórica foi
apresentada de uma maneira breve para os alunos ao longo do trabalho.
A segunda parte, empírica, retrata a busca pelo próprio Bachelard e explora a
aplicação do cinema em aulas de Antropologia da Educação, realizada com estudantes de
Pedagogia nos anos de 2006 e 2007. Os resultados obtidos parecem corroborar a hipótese
inicial.
9
2 A Epistemologia do Conhecimento Aproximado de Gaston Bachelard
Gaston Bachelard (1884 – 1962) graduou-se em Filosofia em 1920, aos 36 anos. É
considerado por ele mesmo um filósofo tardio. Mas desde sua primeira obra, o Ensaio,
seguiram-se 24 outras, de grande densidade filosófica. Bachelard tratou de diversos
assuntos em sua filosofia. Seus temas mais recorrentes foram a filosofia da ciência e da
poesia. No mesmo ano em que se graduou em filosofia, Bachelard perdeu sua esposa, após
seis anos de casamento. Ficou com uma filha da relação, Suzanne. Dedicou-se a aprimorar
sua didática, e aos 40 anos inicia suas pesquisas para o doutorado. Após a defesa de sua
tese de doutorado, Bachelard se muda para Dijon com sua pequena Suzanne e passa a
lecionar filosofia na Universidade de Dijon (de 1930 a 1940). A tese de doutorado Essai sur
la connaissance approchée (Ensaio sobre o conhecimento aproximado) foi defendida na
universidade de Sorbonne, em Paris, a 23 de maio de 1927, e publicada em 1928. Os
Orientadores de Gaston Bachelard foram o Prof. Abel Rey, professor titular da cadeira de
filosofia e história da ciência dessa universidade, cargo que doze anos mais tarde Bachelard
assumiu, de 1940 a 1955; e Leon Brunschvicg, que também era filósofo da ciência. Foi essa
tese que lhe deu o direito de lecionar para o ensino superior de Dijon.
Sua carreira de professor lhe trouxe uma série de elementos para que ele pensasse a
pedagogia científica como um dos mais importantes objetivos da ciência. Essa pedagogia
deve sempre estar relacionada com um modelo epistemológico: a compreensão por parte do
educador. Sem compreender como se dão os processos de aprendizado dos estudantes, todo
o edifício científico fica inacabado. Por esse motivo, a tese de doutorado, sua obra inicial,
começa com explicações sobre a fundação, as bases da ciência, que é o conhecimento
humano.
A tese de Bachelard surge em um momento de mudança de paradigma nas ciências.
É contemporânea do movimento Surrealista, assim como das pesquisas da Física Quântica
e da teoria da Relatividade. Uma ebulição cultural entre duas grandes guerras, como um
novo fôlego para as pesquisas na ciência: o conceito de realidade é seriamente
transformado na França.
A tese é dividida em quatro pequenos livrinhos, e uma curta conclusão. O primeiro
e o quarto livrinhos da tese são dedicados aos problemas filosóficos do conhecimento
aproximado. O segundo e o terceiro livros são dedicados ao conhecimento aproximado na
10
física e na matemática, sendo abordadas nesses dois capítulos questões e linguagens
específicas dessas áreas. Bachelard inicia com o Ensaio uma vasta obra científica e poética,
e nessa obra vamos encontrar desenvolvimento de temas, uma recorrência de assuntos,
como suas reflexões sobre a racionalidade humana. Especificamente o tema do
conhecimento aproximado retorna no livro Racionalismo aplicado, lançado vinte anos mais
tarde, em 1949.
O que é o conhecimento? O conhecimento é uma necessidade da espécie humana.
Segundo Bachelard, a finalidade do conhecimento é a sobrevivência, a garantia de
adaptação humana. O ser humano nasce sem a estrutura instintiva adequada à interação
adaptativa fundamental que precisa estabelecer com o meio ambiente. Acredita-se que, para
compensar a suposta falta de instintos adaptativos, o homem use a cognição como
mediadora em seus vínculos com a natureza. Através do que se pode saber sobre a
realidade, tornamo-nos aptos a transformar o meio em que vivemos em benefício da
sobrevivência. Portanto o conhecimento tem uma grande importância na vida humana e,
quando nossa intenção é transmitir conhecimento, ensinar mais do que saber que o
conhecimento é fundamental para a vida, devemos compreender seus mecanismos.
Pretendemos neste primeiro capítulo apresentar a descrição de Gaston Bachelard
dos mecanismos do conhecimento humano em geral e de um tipo específico de
conhecimento, que é o científico. Nessa descrição apresentada em sua tese de doutorado,
em 1928, Bachelard relaciona mecanismos cognitivos humanos com imagens. A partir da
descrição de Bachelard, desenvolveremos nossa hipótese sobre o trabalho de ensino de
ciência que utiliza o cinema como instrumento.
O conhecimento surge da possibilidade do ser humano, intencionalmente, se
transformar materialmente. A estrutura viva no organismo humano integra todos os
sistemas orgânicos do corpo: o sistema nervoso é flexível em seu formato e organização, de
maneira que uma série de novos comportamentos podem ser constantemente estabelecidos
na vida de uma pessoa. Chamamos a esses novos comportamentos de comportamentos
aprendidos, e, portanto, consideramos o aprendizado como possível justamente porque o
sistema nervoso não está pronto: ele pode se refazer de acordo com as dinâmicas de
adaptação.
O meio externo ao organismo oferece uma série de perturbações, de estímulos
físicos, segundo a expressão de Bachelard. Esses estímulos, à superfície de contato dos
11
órgãos sensoriais, são progressivamente assimilados, de forma seletiva, e retificados de
acordo com a sua utilidade ou não para a sobrevivência, de acordo com as conexões úteis
para a vida do organismo. Uma visão geral dessa primeira descrição pode ser apresentada
assim (principalmente em termos do conhecimento científico):
A – O contato com as regularidades físicas do real gera um conjunto de pontos de
referências habituais (ex. temperatura, formato, espectro luminoso, gravidade dos objetos,
medidas de uma máquina, etc.).
B – A descrição desses pontos de referência organiza o conhecimento inicial em dados.
C – A organização dos pontos de referência em dados faz com que a descrição de um
fenômeno do real possa ser incorporada em um sistema de explicação prévio (Que são as
hipóteses e os sentidos, etc.).
D – Propulsão = conhecer é descrever para reconhecer. O dado incorporado ao sistema de
explicação possibilita um movimento revigorado de retorno ao real, de natureza mais
objetiva que o primeiro movimento (A). Os dois modos do novo movimento de contato são
a assimilação (aproximação em termos da distância do contato) e a utilização
(aperfeiçoamento da descrição).
A descrição do conhecimento acima apresentada está próxima das atuais pesquisas
em neurobiologia. Há um grupo de pesquisadores que desenvolve estudos sobre a relação
entre a linguagem humana e as conexões cerebrais, chamado de Escola de Santiago e seu
principal expoente é Humberto Maturana, que descreve a aquisição e uso da linguagem
humana como uma extensão adaptativa do funcionamento cerebral, onde conhecer é se
estabelecer fisiologicamente através de laços lingüísticos. Portanto na história da filosofia e
da ciência, a pergunta sobre o que é o conhecimento foi respondida de diversas maneiras,
desde as referências à essência metafísica interior, até a anatomia das mais singelas células
neuronais.
Há diversas descrições sobre os processos cognitivos, e cada qual possui uma
relação com um conjunto de pesquisas, em cada tempo histórico, e em cada cultura. Neste
capítulo, pretende-se resgatar uma descrição do conhecimento e da cognição feita no início
do século XX, e avaliar a pertinência dessa descrição abordando um problema
contemporâneo. Isso é dificultado pela ausência de referências e estudos sobre a tese de
Bachelard no Brasil, o que motivou a necessidade de se investigar na terra de Bachelard.
A descrição no nosso caso é a que fez Gaston Bachelard em sua tese de doutorado
12
Essai sur la connaissance approchée, o Ensaio sobre o conhecimento aproximado,
defendida em 1927 e publicada no ano seguinte, na qual ele apresenta seu estudo sobre a
capacidade de conhecimento do ser humano. Bachelard justifica nesse livro a utilidade do
conhecimento científico, considerado por ele como um conhecimento do tipo aproximado.
O problema contemporâneo sobre o qual pretendemos falar baseando-nos no Ensaio é a
profusão de imagens das sociedades atuais.
Acreditamos que a idéia de uma evolução dos saberes humanos não deve
desconsiderar as teses filosóficas do passado. Na filosofia, diferentemente de outras áreas, a
palavra dos sábios ainda é objeto de reflexão. Inúmeros pensamentos do passado, alguns
milenares, ainda hoje iluminam nossas ações, são fontes de sabedoria. Por isso recorremos
a Bachelard, que foi um filósofo preocupado em compreender o conhecimento e a cognição
das imagens.
2.1 A cinemática, a biologia e a imaginação humana
Entre as ciências contemporâneas, a Biologia tem-se destacado como um domínio
de conhecimento dos mais significativos para as respostas que procuramos sobre o
fenômeno humano. O ensino da Biologia é atualmente um dos mais importantes para as
novas gerações de seres humanos, um dos conhecimentos mais úteis, mas também é um dos
mais complexos ideologicamente. Na época em que Bachelard escreveu sua tese, cabia à
Física essa grande influência. Nos ano de 2001, foi traduzido para a língua portuguesa o
recente trabalho do filósofo alemão Jürgen Habermas O futuro da natureza humana. Nesse
texto, o filósofo trata da importância da ampliação do acesso das populações humanas a
todas as informações sobre a biologia humana como uma forma de impedir que as lógicas
de mercado manipulem o material genético humano inescrupulosamente. Num trecho do
livro ele diz o seguinte:
(...), as teorias científicas que se infiltram no mundo da vida deixam
essencialmente intacto o âmbito do nosso saber quotidiano, o que
dificulta nossa autocompreensão, enquanto seres capacitados para a
linguagem e para a ação. Quando aprendemos algo novo sobre o
mundo e sobre nós enquanto seres no mundo, o conteúdo da nossa
autocompreensão se modifica.
4
13
A biologia trata de entidades vivas dos mais variados tamanhos e tipos. No ensino
de genética, por exemplo, o estudante deve se familiarizar com estruturas e processos
microscópicos, fazendo uso de sua imaginação na maioria das vezes para compreender os
fenômenos hereditários. O ser humano não tem acesso imediato a esses fenômenos: não é
possível identificá-los em condições comuns de percepção.
A biologia lida com a consciência crítica dos seres humanos, os saberes sobre a
natureza. Os conhecimentos gerados e difundidos nesse domínio da ciência são cada vez
mais eticamente necessários; são cada vez mais adaptativos para a espécie humana.
Vivemos em um contexto sócio-cultural de intervenções sistemáticas do homem na
biosfera, na existência dos organismos vivos e sistemas ecológicos; até em seu próprio
material genético. Construir um conhecimento tão adaptativo e importante quanto o
conhecimento biológico com estudantes no mundo inteiro é necessário, e pode ser um passo
para novas possibilidades de relação entre o homem e a natureza. A questão é o grau de
complexidade das pesquisas e resultados na biologia contemporânea.
A linguagem biológica necessita de níveis maiores de abstração, exigidos para a
compreensão e construção dos conceitos escolares sobre esses temas, o que é de grande
dificuldade para alunos e professores de biologia. Sabemos que os conceitos biológicos
ensinados na escola têm validade e pertinência fora dela. Mas a escola é o local da fixação
desses conceitos na experiência cognitiva dos alunos, por esse motivo distinguimos aqui
conceitos escolares.
O conhecimento também é a estrutura relacional do homem com seu ambiente. A
ignorância sobre os fatores naturais, motivada pela ganância de alguns grupos políticos têm
colocado em risco a existência da vida. Isso é uma afirmação científica? Segundo o modelo
bachelardiano o conhecimento é um tipo de relação entre um sujeito e um objeto, e o
resultado do conhecimento, o produto do conhecimento é a aproximação. O progresso do
conhecimento é a gradativa aproximação entre esse sujeito e esse objeto, e desde a
civilização grega que é defendido e incentivado culturalmente, por ser uma das formas mais
importantes do vínculo inacabado entre o homem e o universo.
14
2.2 O conhecimento como Aproximação
Na relação entre o sujeito e o objeto, acontece o fenômeno que chamamos de
conhecimento. Essa relação aparentemente pode ser estática ou dinâmica. Habituar-se com
um objeto cotidiano significa nesses termos um conhecimento estático. O objeto sempre
nos parece o mesmo. A relação entre o sujeito e o objeto pode se aprofundar, se
aperfeiçoar, e nesse caso se tornar dinâmica.
O conhecimento aproximado tem o sentido inicial de uma medição inexata,
aproximada, do objeto. Mas também tem o sentido de um movimento, de uma cinética.
Como necessidade humana, conhecer é uma atitude de nos colocarmos mais próximos da
realidade, mais presentes no fluxo dinâmico que constitui o real, nos movermos em sua
busca.
A maior familiaridade entre o sujeito e o objeto se converte em maior assimilação
desse objeto nas experiências do sujeito e a conseqüente maior utilização desse objeto.
Uma ergonomia positiva.
O conceito de conhecimento aproximado deve ser inicialmente compreendido nos
dois sentidos que a palavra aproximação possui. Ela indica dois movimentos:
I) O movimento de diminuir uma distância, de ampliar a visão e o
contato humanos com os fenômenos. Quando se diz, por exemplo; eu me
aproximo de uma célula quando a vejo através de um microscópio e a
manipulo.
II) O movimento de partir de um estágio inicial de uma descrição
científica para um estágio mais exato, mais refinado de uma nova
descrição. Por exemplo, quando se diz: eu aproximo minhas descrições do
que seja uma célula quando posso vê-la através de um microscópio.
Gaston Bachelard, quando propõe uma teoria do conhecimento utilizando a
aproximação como objetivo a ser atingido pela cognição humana, se refere a esses dois
sentidos do termo. Além de ser um objetivo, a aproximação é quase um mecanismo. O
saber científico, segundo Bachelard, vai se reforçar principalmente no segundo movimento,
o movimento por uma maior exatidão: a aproximação como busca racional humana para
reduzir as arestas na descrição dos objetos de suas investigações.
15
A exatidão pode nunca ser alcançada, pois o real, o objeto, está se constituindo em
outras dinâmicas materiais diversas, tão microscópicas quanto os fenômenos biológicos. A
exatidão do conhecimento parece estar ligada ao próprio principio de identidade do objeto.
A distância se dá pela própria constituição física da realidade. Além disso, a matéria é
fluida e inconstante
2
, rica em estágios. Outra causa dessa distância entre o sujeito e o
objeto, que impede sempre o saber absoluto, é a própria constituição biológica da cognição
humana.
2.3 A distância e o movimento I
A distância também pode ser entendida como o intervalo entre o pensamento e a
realidade, em termos do tempo. A distância deve ser reduzida pelo ato de conhecer, para
uma melhor adaptação da vida humana ao universo, no manuseio dos objetos, na
assimilação de suas qualidades:
(...), no aproximacionalismo, não se atinge o objeto, foco imaginário da
convergência das determinações, definem-se funções epistemológicas
cada vez mais exatas que, em todos os níveis, podem substituir a função
do real, desempenhar todas as funções do objeto.
5
A exatidão que Bachelard propõe como objetivo e nega como possibilidade é o alvo
da aproximação do conhecimento. Ela pode ser buscada através do aperfeiçoamento das
funções epistemológicas.
A exatidão do conhecimento é um ponto de disputa histórica na filosofia, sobre o
qual dois grupos de filósofos têm discutido ao longo do tempo. Um desses grupos defende
a possibilidade de uma exatidão do conhecimento, o outro defende a impossibilidade do
conhecimento exato e da própria busca por exatidão.
Para um dos grupos, o chamado Realista, a realidade é um fenômeno independente
do pensamento, possui uma identidade absoluta. O conhecedor deve descobrir a essência
dessa realidade e então chegará à exatidão do real, sua objetividade. O outro grupo,
chamado de Idealista, nega tanto o ideal de exatidão quanto o conhecimento aproximado.
Para esse grupo, o pensamento tem acesso apenas a ele mesmo; o pensamento só encontra a
si mesmo: a realidade em si, o objeto está fora de nossas possibilidades
6
.
Esses dois domínios filosóficos, realismo e idealismo, propõem duas maneiras
16
opostas para tratar das relações entre o sujeito conhecedor e a realidade a ser conhecida. Na
época em que Bachelard escrevia sua tese, eram dois domínios influentes na filosofia e na
ciência. Bachelard ao longo do Ensaio apresenta suas criticas às duas posições. Ele propõe
uma dialética entre os dois pontos de vista.
Para sair do problema da possibilidade ou não de exatidão do conhecimento,
Bachelard começou a estudar o papel do erro no conhecimento. O que ele significa? Que
tipo de entendimento sobre o conhecimento podemos obter analisando o erro? Seria uma
concepção de Bachelard que o que chamamos de realidade não é um estado independente
de nossas capacidades de cognição? E nesse sentido poderíamos dizer que o erro, o cálculo
equivocado, os absurdos conceituais, as ficções, também compõem legitimamente o
conjunto de “fatos” do universo humano, uma vez que são realizações perceptivas? O que
diferenciaria um conhecimento qualquer de um conhecimento científico, de acordo com
essa reflexão? Podemos dizer que o conhecimento científico busca não se fixar como
elemento constituinte de um universo de coisas e fatos a serem aceitos, mas que está
envolvido em uma dialética da “aproximação”: um fato conquistado pela percepção pode
possibilitar o aperfeiçoamento de uma nova percepção, indicar outro fato.
A realidade começa a existir no momento da aproximação entre o sujeito e o objeto,
sendo os equívocos do conhecimento uma parte da realidade. Os erros que cometemos ao
julgar os objetos são formas possíveis de relação com estes objetos, são rotas. Podemos
admitir que o conhecimento pressupõe indeterminações, mas qual o impacto disso nas
representações que fazemos do mundo? Saber que há indeterminações no conhecimento
não mais nos leva a um ceticismo. Bachelard é um filósofo que historicamente contribuiu
para que o paradigma da indeterminação tivesse lugar na ciência mundial:
(...), a obra de Bachelard é uma dupla revolução: uma visa a filosofia
da descoberta; a outra, a filosofia da criação artística. Por seu Ensaio
sobre o conhecimento aproximado (1928), ele funda a epistemologia
como ciência respeitada, através do estudo sistemático do modo como
os conceitos de verdade e de realidade deveriam receber um sentido
novo.
7
Ao especular sobre o real, o observador se move em direção a ele. Se o pensador se
equivoca na direção e no método dessa aproximação, as ações posteriores lhe demonstrarão.
Para os filósofos pragmatistas, por exemplo, nas realizações técnicas, os equívocos são
17
demonstrados e evitados tendo em vista a utilidade do objeto que materializa o
conhecimento. O funcionamento de uma mercadoria tecnológica deve ser positivo,
demonstrar que o conhecimento sobre todos os processos estava correto.
Portanto, realistas e idealistas, disputando sobre o que é a realidade, ou sobre o grau
de certeza do conhecimento sobre o real, precisam, segundo Bachelard, admitir a inexatidão
de suas próprias reflexões como sendo elas mesmas os momentos da aproximação do
sujeito com o objeto. No caso dessa disputa, o objeto é o próprio conhecimento:
É nessa perspectiva da incerteza do conhecimento que Bachelard admite o erro
também como um tipo de conhecimento. Voltaremos mais tarde a refletir sobre o papel do
erro, principalmente porque ele está sempre presente no processo de construção do
conhecimento científico.
A discordância de Bachelard com relação aos realistas e idealistas de sua época está
no papel que a inexatidão tem para o movimento do conhecimento.
(...) não faltam objeções a um estudo imediato do erro (...). Essas
objeções não têm força de evidência que lhes é atribuída. Supõem
postulados metafísicos que parecem necessários ao desenvolvimento
de uma filosofia idealista. É possível suprimi-los sem cair, a nosso ver,
no realismo. Por isso, tentamos deixar-nos levar inteiramente pelas
oscilações do pensamento, sem nunca especificar, a não ser de modo
figurado, um pólo atrativo, um termo estranho, um objeto em si que
solicita, do exterior, o conhecimento.
8
Para todo aquele que diz que o conhecimento depende do sujeito conhecedor,
Bachelard no Ensaio vai dizer que não apenas. Há uma estrutura física, material no mundo
que nos rodeia, que possui suas próprias determinações. Para o outro grupo que afirma que
o conhecimento não depende do sujeito, exatamente por que há um conjunto de outras
determinações externas, do meio material, Bachelard vai dizer que o conhecimento humano
é uma reelaboração.
Para entender o alcance desta proposta teórica, vamos admitir como consistentes as
categorias psíquicas com as quais Bachelard trabalha na sua tese:
– O Pensamento surge com a linguagem e passa a reagir na presença dos objetos da
realidade. O pensamento está sempre temporalmente no presente, mesmo que reaja
aos dados da memória. É guiado pelo Espírito.
– O Espírito é o local da vontade, faz a confrontação do dado com as estruturas
18
prévias. Realiza abstrações espaço-temporais e tem acesso à memória.
- A Memória é uma inflexão do espírito, o conjunto de esquemas oriundos de outros
conhecimentos anteriores e possui a função de ser o passado para o organismo. O
sujeito, segundo Bachelard é dotado de espírito, pensamento e memória. O espírito é
a sede do eu, a intencionalidade. O pensamento é o fluxo de impressões sobre a
realidade, e alimenta o espírito com dados constantes sobre o presente do
organismo. A memória é o conjunto de arquivos de representações celulares.
2.4 A distância e o movimento II
Bachelard propõe a atenção ao movimento do conhecimento, para entendermos o
processo de aproximação, sem que especifiquemos qual pólo é o determinante: se o pólo do
sujeito ou o pólo do objeto. Sujeito e objeto são incongruentes, seu acoplamento é um
movimento. Nem o sujeito é fixo, imóvel nem o real o é. Para os realistas, o conhecimento
pode ser do tipo exato, pois a realidade externa ao pensamento é exata, imóvel, permanente,
uma verdadeira essência, como nos disse Platão (427 – 347 a.C.)
9
. Já para os idealistas, a
exatidão é o resultado dos esforços lógicos do pensamento que, ao atingir a coerência, a
imobilidade do fim da dúvida, atinge a exatidão, como fala Kant (1724 – 1894).
A descrição do duplo movimento de aproximação que Bachelard faz no Ensaio
parece ser uma resposta individual a cada um desses domínios filosóficos em disputa. O ato
de conhecer surge para encurtar as distâncias entre o homem e a realidade:
(...) tentamos estabelecer o fracasso do pragmatismo diante do
infinitamente pequeno. É um fracasso mais de princípios do que de
fato, pois o infinitamente pequeno do ato não pode, por definição, ser
analisado pelo ato. Somos incapazes de agir tanto sobre o
microcosmo quanto sobre o sistema solar: é preciso contemplar.
10
No caso do ser humano, a bagagem celular não permite uma vida sem aprendizado,
uma vida sem o conhecimento. Nascemos muito distantes da realidade, muito incapazes de
estabelecer contatos. Conhecer é essa aproximação com os objetos que nos rodeiam, sejam
eles objetos naturais, sejam culturais.
19
Aproximação é ao mesmo tempo um ato de refinamento do próprio movimento,
para torná-lo mais preciso. A linguagem humana, por exemplo, é um dos resultados do
aprimoramento histórico dos signos e situações de aproximação humanas: (que encurtou
distâncias) pela habilidade de manuseio dos objetos; como também a classificação deles por
meio dos vários processos de descrição. Dentre as formas de registro do conhecimento, a
mais fecunda para novos movimentos, no Ensaio, parece ser a descrição científica. No
início do século XX, o Círculo de Viena, através de um de seus fundadores, Rudolf Carnap
(1891 – 1970). Carnap lançou em 1928 o texto Pseudoproblemas na filosofia, onde aborda a
questão. A solução que Carnap propõe é diferente da de Bachelard: para Carnap o problema
está na linguagem da ciência, e não na epistemologia.
O Bachelard do Ensaio se concentra no movimento do conhecimento, nos estímulos
materiais que causam na percepção as imagens celulares. Atualmente tanto o paradigma
realista quanto o idealista são questionados pelas pesquisas contemporâneas nas ciências
biológicas, principalmente pelas pesquisas da chamada Escola de Santiago, os
conexionistas, dos quais acredito ser Bachelard um dos primeiros a intuir as questões
centrais; justamente o tema da conexão entre o sujeito e o objeto.
2.5 O movimento de aproximação
Vamos fixar os dois sentidos do movimento de aproximação que Bachelard utiliza
para descrever o conhecimento. Para Bachelard, o aproximacionalismo é um dos pilares da
nova ciência. Pretendemos nesse primeiro capítulo dizer porque parece ter sido assim, e
verificar como essa linha de pesquisa tem ganhado desdobramentos contemporâneos, em
particular na Biologia.
A aproximação é o vínculo móvel entre o sujeito e o objeto de conhecimento; ela
possui dois sentidos, que mais uma vez expomos de maneira sintética:
I– O conhecimento aproximado como um saber que se move para diminuir uma distância
entre o sujeito e o objeto (figura 3)
II– O conhecimento aproximado como um saber que se move em busca da exatidão de uma
descrição.
20
2.6 A Dialética da aproximação
O movimento de aproximação do Conhecimento é em síntese a diminuição da
distância entre o sujeito e o objeto. O movimento de aproximação tem dois sentidos; o
contato com o real e a precisão do conhecimento. O primeiro contato entre o sujeito e o
objeto tem o vetor inicial partindo do objeto, que estimula a estrutura perceptiva do sujeito
através de seus atributos materiais. O segundo contato com o real, a partir da representação
inicial é um momento novo para o sujeito. O real já não é com no início, é agora
reconhecido, se a representação inicial foi satisfatória. O real se torna uma realidade para o
sujeito quando os seus atributos materiais são organizados sistematicamente num sistema
descritivo chamado de dados.
O sujeito que pretende o conhecimento científico precisa manter o contato com o
real, buscar sempre novos dados. Mas até um dado adquirido no esforço, descrito
sistematicamente, pode estar mesmo assim equivocado, ou pode ser insuficiente para uma
conduta objetiva do pesquisador na busca por outros dados. Por vários motivos não
podemos deixar, segundo Bachelard, que o dado se cristalize.
São duas as finalidades do conhecimento científico: a assimilação e a utilização.
Assimilação no sentido de maior quantidade de informações sobre o real, com o máximo
de minúcia e de clareza; Utilização no sentido que, de posse do dado, eu, um cientista,
terei sempre uma finalidade concreta. Por exemplo, os saberes referentes à eletricidade
tornaram possíveis os aparelhos elétricos; os dados sobre o funcionamento das células
possibilitaram a fabricação de medicamentos para doenças.
O grande objetivo do conhecimento em geral, a utilidade, é resultado do esforço do
sujeito quando tenta aperfeiçoar suas ferramentas, seus utensílios, suas palavras. A
assimilação e a utilidade são dois objetivos a serem alcançados pelo conhecimento
científico, são dois princípios dentro do Ensaio. Elas formam na tese de Bachelard a
dialética inicial, e cumprem uma função, que é: a própria adaptação do ser humano à sua
realidade. A minúcia não pode ofuscar a clareza; o excesso de detalhes deve ser
organizado sistematicamente, para que a informação científica seja clara. Essas duas
características, minúcia e clareza, são o segundo par dialético.
21
2.7 A linguagem como um objeto material
A linguagem como um objeto, para a criança, é um conhecimento que deve ser
assimilado, pois saber uma língua é útil para as experiências relacionais. Nesse caso, o
idioma é o dado da realidade que deve ser conectado. Assimilar as características
fundamentais de um idioma, na pronunciação, na escrita, nos sentidos, são objetivos de
quem pretende conhecer uma língua, para utilizá-la.
O excesso de detalhes do objeto é um dificultador, um obstáculo para o
conhecimento. Por essa razão, os dados devem ser organizados a cada aproximação que o
sujeito conhecedor faz. Na Etnografia antropológica, esse procedimento constitui o próprio
método:
(...), o conjunto dos costumes de um povo é sempre marcado por um
estilo; eles formam sistemas. Estou convencido de que esses sistemas
não existem em número ilimitado, e que as sociedades humanas,
assim como os indivíduos – em seus jogos, seus sonhos ou seus
delírios -, jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher
certas combinações num repertório ideal que seria possível
reconstituir. Fazendo o inventário de todos os costumes observados,
de todos os imaginados nos mitos, destes também evocados nos
jogos das crianças e dos adultos, nos sonhos dos indivíduos
saudáveis ou doentes e nos comportamentos psicopatológicos,
chegaríamos a elaborar uma espécie de quadro periódico como o dos
elementos químicos, (...).
11
O registro escrito de uma língua, a gramática possível, é por esse motivo um objeto.
Fonte de estímulos visuais para juízos do espírito, a descrição funciona como um outro
lugar do estímulo físico microscópico, um lugar cultural. Para assimilar os dados do real e
para utilizá-los, as culturas humanas têm desenvolvido uma série de procedimentos. A
ciência é um deles, tipo de registro de conhecimento. Bachelard elogia a ciência,
diferenciada em seus procedimentos de assimilação dos dados e de sua utilização. Segundo
Bachelard, a maneira que os cientistas utilizam para assimilar os dados é a descrição.
Segundo ele, na ciência, conhecer é descrever para reconhecer. Podemos dizer, além disso,
que a descrição científica é a matéria prima do aprendizado de ciências escolares.
No capítulo oitavo de sua tese, Bachelard apresenta a pesquisa científica como
conceptualização, ou seja, o descobrimento, a investigação primária, inicial, baseada nas
hipóteses dos cientistas, um verdadeiro processo de criação nas ciências. Outro processo é o
22
de conceitualização, que representa a descrição do fato em termos de um conceito, uma
explicação. Considero que busca do cientista é pela conceptualização, de acordo com a
distinção de Bachelard. Para ele há um momento que chamamos de conhecimento, e um
momento posterior, chamado de reconhecimento.o reconhecimento está ligado ao grau de
precisão do conhecimento. Se pensarmos a comunidade científica, como composta, tanto de
cientistas, como de mestres e estudantes, observamos que cada sujeito participa dessa
comunidade de maneiras diferentes.
Estudantes e professores de ciências reconhecem conceitualmente o universo de
fenômenos ao seu redor. A cada movimento de ampliação do conhecimento, a comunidade
científica como um todo têm mais possibilidade de reconhecer o mundo.
Ao professor e ao estudante de ciências, muitas vezes distantes de todos os
mecanismos de descoberta e pesquisas científicas, percebo que o processo de conceituação,
de gerar e discutir, empregar e rediscutir os conceitos científicos em sua experiência
cotidiana cabem a esses dois sujeitos
A assimilação e a utilização total dos dados do real são tarefas impossíveis para o
conhecimento humano, ainda que devam permanecer como um projeto. A perfeição de um
conhecimento não está no esgotamento do real, mas a dialética que a descrição deve ter
entre a clareza e a minúcia. Na realização técnica, por exemplo, na construção dos
aparelhos tecnológicos, a descrição científica dos mecanismos, em termos da clareza e
minúcia é fundamental para o sucesso do artefato.
A descrição será sempre parcial, pois o objeto sobre o qual ela se empenha em
representar: os pontos referenciais do real, que constituem a realidade que se investiga, são
essencialmente dinâmicos:
(...), devemos conferir todo o sentido à descrição inicial e não
esquecer que a descrição é a finalidade da ciência. É dela que se
parte. É a ela que se volta. (...), a descrição exige uma técnica que
inconscientemente conduz às vias tradicionais do progresso
científico. (...), a organização dos pontos de referência, seja qual
for o princípio que obedeça, leva fatalmente a um conhecimento
que a descrição tende a desenvolver em direção à extensão
máxima, (...). O dado acabará sendo percebido no interior de uma
teoria. Logo, ao confiar no simples impulso de descrição, estamos
fazendo com que o espírito humano aceite o sistema.
12
23
2.8. Os pontos de referência do real
A descrição das qualidades e quantidades dos pontos de referência do real forma
um dado sobre o real (estende nossa percepção sobre a realidade). No caso do ser humano,
as maneiras de registrar o real são desenvolvidas para maior adaptação e geração desses
pontos de contato, da superfície, do saber constituído na cultura; que é transmitido às novas
gerações institucionalmente, escolarmente.
Na descrição científica, o dado surge como uma organização dos pontos de
referência de outras descrições, das descrições iniciais; o dado é uma apreensão do
conjunto. A forma da apreensão (o recorte): é um sistema lógico, que dá sentido ao dado.
Por exemplo, um nome que é atribuído a um objeto. O nome constitui parte de um
sistema lógico de descrição, e permite uma relação mais próxima do sujeito que nomeia
com o objeto. Na ciência, essa forma de apreensão se dá pela descrição, e o núcleo da
descrição é o conceito.
O dado pode não apresentar utilidade ao sujeito conhecedor, pode conter erros,
irracionalidade; pode também não se adequar ao conjunto lógico de outros dados já
estabelecidos na memória do conhecedor. Se esse dado possui, entretanto, a utilidade,
poderá promover uma propulsão, um novo movimento do sujeito conhecedor para novos
pontos de referência no real. Para isso, o dado também deve representar o caráter de
mobilidade e in-completude do real:
(...), a ciência costuma postular uma realidade. A nosso ver, essa
realidade, cujo conhecimento não pode ser esgotado, suscita uma
pesquisa sem fim. A essência da realidade reside na resistência ao
conhecimento. Vamos pois adotar como postulado da epistemologia
o caráter sempre inacabado do conhecimento. (...), o traçado que
nossa ação assinala em torno das coisas só define pontos de
referências provisórios e artificiais.
13
O dado permanece sendo apenas a realidade postulada pelo conhecimento humano.
Uma realidade que deve possuir conexões com o real, que permitam uma gradativa
aproximação, quando se conseguem vencer as resistências naturais. A realidade sempre
escapa às generalizações totalitárias, completas e definitivas. Ao menos é assim que deve
proceder a ciência, tendo em vista que em outros domínios do conhecimento humano,
metafísicos, políticos, econômicos, verdadeiras realidades definitivas são comumente
estabelecidas. Para Bachelard, o conhecimento deve ser considerado em termos de uma
24
filosofia do inexato.
Essa questão da indeterminação absoluta do real se contrapõe à idéia de uma
inteligibilidade da substância das coisas. Para Platão, uma vez vencido a arbitrariedade da
aparência, conseguiríamos encontrar a verdade inteligível do fenômeno (isso deveria ter
acontecido logo após a invenção do microscópio, ou do telescópio, ...). Essa é a matéria de
discussão do livro VII da República, onde Platão enuncia a analogia da Caverna (do
cinema) para tratar do conhecimento humano.
Para Bachelard, a inteligibilidade dos fenômenos está no esforço da aproximação, e
não a priori no mundo. As descrições que a ciência organiza; esses pontos de referência
(que podem ser quantitativos e qualitativos) são elaboradas em sistemas de explicação,
realizando os objetivos que já enunciamos, a apreensão e a utilidade.
A essência da realidade reside na resistência ao conhecimento humano. A
incongruência entre o sujeito e o objeto é uma constante. A impossibilidade de se esgotar a
conclusão de uma pesquisa, na ciência, faz com que o conhecimento seja sempre inacabado
e a descrição seja sempre temporária.
Bachelard usa esses dois elementos: a incompletude da reflexão e a historicidade
das descrições para desenvolver uma filosofia da propulsão, que segundo ele está por trás
do progresso do conhecimento. Ao conquistar um conhecimento, e tendo esse
conhecimento realizado os objetivos dialéticos da minúcia e clareza, o saber fixado serve
de impulso para um novo movimento, é uma base segura para um novo conhecimento.
No Ensaio, a filosofia da propulsão é colocada ao lado da filosofia do inexato. Este
é um terceiro par dialético que Bachelard usa para falar do conhecimento.
2.9. A Inesgotabilidade do real
Há uma inesgotabilidade no real, e uma instabilidade na realidade.
A realidade é um sistema de explicações humanas. Entretanto cada descrição que
resulta do esforço de apreensão, e que apresenta uma utilidade para a existência humana
pode servir de propulsão para uma nova tentativa de aproximação. No terceiro par dialético
no texto de Bachelard, há contraposição entre as duas filosofias, que ele utilizará para
abordar o conhecimento humano no Ensaio. Essas duas filosofias estão na base do
movimento de aproximação.
25
O dado, após sua assimilação ao sistema explicativo, passa a ser um ponto de
contato habitual com a coisa, o fenômeno, que é o fato científico; torna-se um conceito,
cumprindo seu papel na utilização que dele podemos fazer. Entretanto o dado assimilado
não é um momento pleno, é um momento provisório. A sensação de certeza que um
conhecimento estabelecido conceitualmente pode dar é ilusória, principalmente nas
ciências. As pesquisas científicas mudam de caráter quando consideramos previamente a
impossibilidade de figuração absoluta do real em termos dos dados.
Na filosofia, a polêmica dessa afirmação acontece no pensamento de Ludwig
Wittgenstein (1889 – 1951), que em uma obra de 1918, chamada Tractatus logico-
philosophicus, relaciona nossas dificuldades de conhecimento com a própria lógica da
linguagem. Esse argumento é utilizado pelo Círculo de Viena nas teses sobre a linguagem
cientifica como o fator, o conhecimento objetivo.
Bachelard não utiliza esse argumento. Para ele, a questão do conhecimento parece
ser mais ontológica que lingüística. A cognição humana é limitada em sua natureza
biológica. As razões dessa limitação fisiológica da cognição não são discutidas no Ensaio,
talvez por serem de ordem metafísica (sobre o que não se pode falar, se deve calar?).
Bachelard aborda a necessidade humana de ciência para lidar com a indeterminação do real
e com a necessidade de sistematização dos dados apreendidos: a ciência como um
instrumento humano na superação das limitações ontológicas. O conhecimento é uma
necessidade humana. A retificação é o processo de fixação do dado na representação
interna do sujeito conhecedor. É um momento provisório. A propulsão é o novo
movimento de aproximação possibilitado pela retificação anterior. A realidade se altera no
conteúdo do conhecimento quando novos dados são construídos mediante os estímulos do
real. Na aproximação que o conhecimento faz, partimos de um estado de exatidão para
outro ao ampliar o sistema de descrição.
2.10. As dimensões surracionais da realidade
Os estados do real se apresentam em várias dimensões, de acordo com as
características de sua estrutura material. Podem se dar qualitativamente, percebidos pela
estrutura sensível através da estimulação dos órgãos perceptivos, ou quantitativamente, em
sua extensão, também apreendidos pela estrutura perceptiva. Inicialmente formulamos a
26
pergunta: Apesar de serem apreendidos pela percepção, e, como veremos mais tarde,
representados pelas células desses órgãos perceptivos, os fenômenos qualitativos e os
fenômenos quantitativos são passíveis de uma descrição precisa?
2.11. As dimensões surracionais da realidade II
Ao dizer que de alguma forma representamos esses fenômenos, uma vez que os
percebemos, dizemos que eles são passíveis de uma aproximação, de uma descrição na
linguagem usual. Esse é o primeiro momento da aproximação. Um segundo momento seria
tentar explorar a descrição das minúcias do dado, sempre pensando no ideal de clareza,
como nos recomenda Bachelard.
Os fenômenos com os quais estamos habituados a lidar, os macrofenômenos do
cotidiano e suas regularidades, cujo acesso temos pelas aproximações anteriores, são os
dados que nos permitem configurar a realidade imediata. Eles parecem estáveis, ou
logicamente estáveis. Bachelard nos chama a atenção no Ensaio para o fato de que
consideramos reais inicialmente apenas aqueles aspectos do real que podemos formatar
com nossa percepção: dimensões megascópicas e dimensões microscópicas não são
percebidas naturalmente.
A realidade dos objetos que possam existir nessas escalas, nesses espectros de
tamanho, para além de minhas capacidades orgânicas; é motivo de dúvidas.
(...) A matéria aparece portanto sob a forma de uma contingência
como que folheada. Essa é a contingência em que a parte do sujeito é
determinante – a necessidade em si, a contingência em si têm um
sentido? Mas, assim mesmo, é uma contingência radical. Ela tem mil
razões de diversidade. (...), nos são proibidas pelas barreiras
intransponíveis das ordens de grandeza. (...); escapam à
universalidade do controle, única maneira de provar a objetividade e
a necessidade. O infinitamente pequeno é o centro geométrico do
nosso assombro. Ele derruba todas as nossas previsões.
14
No Ensaio, Bachelard se pergunta pela legitimidade da aproximação que o
conhecimento humano pode obter com os fenômenos que não podem ser apreendidos pelos
órgãos usuais de percepção. O ser humano construiu mecanismos tecnológicos que
facilitam o contato com esses outros fenômenos, como os eventos megascópicos e
27
microscópicos.
Os elementos microscópicos do real questionam nossos instrumentos habituais de
percepção, os órgãos do sentido, e até mesmo os instrumentos técnicos de medição.
Na epistemologia do Ensaio, Bachelard descreve a cognição humana justamente
para tentar falar do conhecimento dos fenômenos limites, tendo em vista a nova cosmogonia
que a teoria da relatividade trouxe. Os fenômenos limites eram procurados e estudados
intensamente pelos físicos e químicos no início do século XX na Europa. O mundo
microscópico e irregular, o mundo macroscópico e a s enormes distâncias e ordens de
grandeza dos fenômenos cósmicos. Essa era a fronteira da ciência no início do século. O
homem e sua complexidade cognitiva também passou a ser considerado um fenômeno
limite, principalmente pela Psicanálise, ciência que Bachelard irá se aproximar nos anos
depois da publicação de sua tese. Sobre as fronteiras do conhecimento humano, sobre si e
sobre o mundo, Bachelard nos diz:
(...) a Inexatidão das determinações parece exigir apenas uma nova
aplicação, em escala apropriada, das categorias que tinham fornecido
uma primeira informação do real. Mas, numa nova tentativa de reduzir
o erro, este se divide em fatores cada vez mais numerosos e, como já
vimos no caso das medidas refinadas, longe de se generalizarem, os
fenômenos se individualizam quando sua escala diminui. (...) Que a
distribuição espacial das peculiaridades – objeto final de nosso
conhecimento do universo – tenha a marca da contingência será
sempre uma hipótese metafísica; mas é uma hipótese que
epistemologicamente somos obrigados a formular. De fato, essas
peculiaridades não podem ser conhecidas a uma distância arbitrária já
que, como tentamos demonstrar, nos são proibidas pelas barreiras
instransponíveis das ordens de grandeza.
15
2.12. A microepistemologia da aproximação
Bachelard analisa a conexão entre o sujeito e o objeto desde o primeiro movimento:
a estimulação dos órgãos perceptivos pelas quantidades e qualidades dos dados do real.
Seguem-se outros movimentos; até o momento da retificação do espírito; a descrição
científica. É dessa epistemologia que tratamos na presente pesquisa de mestrado;
apresentando a descrição de Bachelard.
Uma questão importante para a escolha da epistemologia do Ensaio para falar sobre
28
o ensino de ciências biológicas: é que duas estruturas necessárias de aprendizado são
abordadas por Bachelard: a microdimensão dos fenômenos biológicos e a importância da
abstração para o conhecimento científico.
Bachelard apresenta a abstração como uma etapa do conhecimento científico. Ou
seria para ele a abstração o próprio formato do conhecimento? As pretensões de
objetividade da ciência, que negam a subjetividade do cientista, são criticadas por
Bachelard. O ideal de objetividade, de neutralidade, não é uma característica primordial da
nova ciência, do início do século XX. Bachelard procura alargar as fronteiras do
conhecimento para o terreno da irracionalidade. A nova arte e a nova ciência podem ter em
comum a defesa do imaginário, do não-ser. No campo das artes, no mesmo período, o
Surrealismo;
(...) Na França, particularmente, as modernas ciências humanas não
perderam contato com o mundo da literatura e da arte, (...). Nas
décadas de 20 e 30, como veremos, a etnografia e o surrealismo
desenvolviam-se em intensa proximidade. Estou usando o termo
surrealismo num sentido obviamente expandido, para circunscrever
uma estética que valoriza fragmentos, coleções curiosas, inesperadas
justaposições – que funciona para provocar a manifestação de
realidades extraordinárias com base nos domínios do erótico, do
exótico e do inconsciente.
16
A inexatidão dos fenômenos elementares faz com que o conhecimento desses
fenômenos seja mais complexo. Porém é possível a tentativa da aproximação. Para tratar da
epistemologia do conhecimento aproximado, Bachelard nos diz que o conhecimento fixado
no conceito é a representação parcial de algo. E esse algo não é possível de ser conhecido
por completo pela própria dinâmica material das microscópicas partículas que formam o
fenômeno. Uma das hipóteses da filosofia do inexato: essa aproximação ocorre em um
terreno duvidoso, com o esforço da razão: o sacrifício da pesquisa.
No Primeiro capítulo do Ensaio, há mais um par dialético: o macroconhecimento e
o microconhecimento. Nesse par, temos a composição do conhecimento como um todo. São
duas dimensões que a epistemologia deve tratar didaticamente. Para que uma descrição
científica seja precisa, necessita separar as duas dimensões de análise, o macro e o micro.
29
2.13. A integração dos movimentos
Sobre o macroconhecimento, Bachelard fala dos processos de retificação dos
conceitos no espírito humano. No microconhecimento, vai ao nível celular para discutir a
retificação e representação do estímulo do dado do real no aparelho perceptivo.
A integração entre os dois momentos do conhecimento é fundamental. Enquanto no
nível do microconhecimento o organismo é alimentado pelos elementos materiais da
realidade (os impulsos físico-químicos), no macroconhecimento acontece uma reelaboração
racional, nas formulações que a capacidade abstrativa do sujeito realiza. Poderíamos dizer,
sem a autorização de Bachelard, que no momento de descrever o microconhecimento ele se
coloca como realista, e no momento da descrição do macroconhecimento ele se porta como
um idealista. É claro que isso é apenas uma provocação, mas é também uma imagem.
Até agora tratamos de um macroconhecimento, mas quando nos aproximamos de
dimensões menores do que os aparelhos perceptivos podem captar, as dificuldades
cognitivas são de caráter de extensão. E é nesse plano que uma série de fenômenos
acontecem, nas células desses aparelhos perceptivos, que fazem com que haja a conexão.
Talvez a microanálise da estrutura fisiológica do indivíduo tenha sido a origem da
linha de pesquisa que os conexionistas contemporâneos defendem como base da
epistemologia científica válida. Na época em que Bachelard escreveu o Ensaio, as análises
da biologia do conhecimento tentavam responder as seguintes questões:
(...) medir a atividade elétrica de uma fibra neurossensorial isolada. Essa
atividade continha toda a informação transmitida de um receptor no
músculo torácico de uma rã para o resto do seu sistema nervoso. (...), se
pudéssemos estimular um único receptor visual, ou encontrar um animal
em que cada receptor esteja ligado à sua própria fibra neuro-óptica,
seríamos capazes de obter um registro dessa fibra isolada e medir a reação
do receptor à luz.
17
O conhecimento sobre os microfenômenos envolvidos nos processos de
conhecimento é necessário para uma descrição satisfatória da cognição. Com o avanço das
medições da estrutura bio-química da matéria, novos entes filosóficos são gerados para o
imaginário popular, disseminados pela escolarização em massa, dos países industrializados
no início do século XX, também na França, sedimentados na cultura, como as expressões
DNA, embrião, ácidos ribonucléica etc. Ainda assim, Bachelard utiliza o termo espírito
30
para designar o órgão responsável por se apropriar do conteúdo do pensamento. Espírito
não é uma palavra que os biólogos gostavam de usar.
O Espírito reorganiza a memória, e é a sede da vontade do indivíduo. Não seria
espírito uma categoria muito metafísica para a pesquisa científica na França e nos países
influenciados culturalmente por ela, como o Brasil?
2.14. A Retificação
(...) vimos que a filosofia ficara reduzida, ou quase, à teoria do conhecimento.
Assim se intitulava a maioria dos livros filosóficos publicados entre 1860 e 1920. E
notava eu o fato demasiado surpreendente de que nesses livros assim intitulados não
se encontrasse jamais formulada a sério esta questão: ‘Que é conhecimento?’.
18
Os fenômenos elementares, que não são visíveis, são possíveis de uma descrição
precisa? Bachelard vai responder a essa pergunta descrevendo o próprio conhecimento, que
também é constituído por fatos invisíveis, ao nível das células, em seu fenômeno elementar.
A ciência na época de Bachelard avançava até os níveis invisíveis, com aparelhos
tecnológicos de medição do átomo e de visualização das células e suas estruturas, mas os
instrumentos eram limitados. A observação científica dos fenômenos microscópicos era
ainda precária se comparada aos modernos laboratórios de hoje.
A questão começa a ser esclarecida no Ensaio com a suposição de que tanto a nível
celular quanto no nível do espírito ocorrem processos de representação. No nível celular a
representação, ou retificação, acontece nas próprias células envolvidas na percepção e na
transmissão do impulso até os centros nervosos.
Nesse momento ocorre uma segunda retificação, que é a representação feita pelo
espírito, com a ação do pensamento, armazenando o dado na memória. Esse processo é
uma forma de fixação do conhecimento, na dinâmica do organismo conhecedor, iniciando-
se nas células e terminando na descrição, tarefa do espírito, e principalmente do espírito
científico, numa espécie de impressão objetiva da realidade.
No início do Ensaio, a sensação que temos é de que: a objetividade não está no
universo externo. Também não está no conhecimento elaborado e apresentado na
linguagem, no universo interno. A objetividade está na conexão do indivíduo com o objeto.
31
2.15. Do dado bruto à assimilação funcional
O ser humano é composto por diversos grupos de células diferenciadas pelo formato
e funcionalidade, como ocorre com quase todos os seres vivos. A dinâmica de
funcionamento dessas células, as reações químicas que se processam a todo instante,
geradas em seu conjunto, constitui a vida do organismo. Dentre essas células temos as
células nervosas, que são aquelas capazes de sensações perceptivas.
Essas células, localizadas também nos órgãos sensores, como os olhos, recebem o
dado bruto da realidade, o conjunto irracional de estímulos físicos, químicos ou motores.
O dado bruto assim descrito é toda coleção dos objetos possíveis de serem percebidos pelo
limite dos órgãos perceptivos. O dado bruto são es estímulos físicos, químicos e motores do
ambiente, s pontos de referência no momento iniciado conhecimento. Esses pontos ainda
não estão representados pelo sujeito, é o inominável. Ao percebe-los, não necessariamente
se conhece (para Bachelard, conhecer é reconhecer para descrever). O conjunto de células
receptoras se localiza nos vários órgãos do corpo que podem estabelecer contato com o
meio externo ao organismo. Seja pela pele, olhos, ouvidos, etc. Essas células são sensíveis
à presença do dado bruto, a idéia contemporânea que elas se alteram morfologicamente na
presença do estímulo. O impulso do estímulo se apresenta às células em um movimento, e a
depender da interatividade entre os dois pólos é gerada uma reação, que deve corresponder
a um índice único.a célula que reage positivamente ao estímulo,se altera estruturalmente e
transmite a alteração para outras, gerando um movimento que é a percepção do sujeito.
No entanto, o dado bruto não tem em si um valor representativo, segundo
Bachelard. Não tem um significado
19
. Bachelard não deixa claro em sua tese quais são os
tipos e modalidades de encontro entre as células perceptivas e os dados brutos: se o contato
do dado bruto com as células nervosas responsáveis pela percepção é do tipo de uma
fagocitose, ou se trata de uma estimulação sem contato, a distância.
Sem interação, não há estimulação. Mas de que maneira Bachelard propõe esse
contato entre o objeto estimulador e os órgãos da percepção? Vamos ver um trecho em que
ele aborda o problema:
Já se reconheceu que o conhecimento representativo implica uma
corrente exterior de intermediários físicos ou mentais que ligam o
pensamento ao objeto, mas não se reviveu a dinâmica desse
encadeamento. A dificuldade é sem dúvida insuperável porque não
32
temos a intuição do movimento intelectual, e o contato espírito-objeto
supõe uma impossibilidade idêntica ao contato de dois pontos. Se eles se
tocarem, se absorvem, ou melhor, se aniquilam na mesma unidade
20
A impossibilidade de se traçar o momento do encontro entre a percepção e o objeto
nos faz pensar que há um vínculo entre as duas partes, metafísico ou não. O que Bachelard
nos diz mais adiante no texto é que, se descermos a níveis microscópicos da percepção e do
conhecimento, encontraremos a reação da célula diante do dado bruto, que determina o
início do conhecimento, reação que penso ser do tipo físico-químicas. Segundo Bachelard,
a célula perceptiva opera com uma reação de índice único. Essa expressão é utilizada por
Bachelard para tratar a relação entre a célula e o dado bruto como um fenômeno binário:
uma reação de 0 e 1. Um índice negativo, um índice zero significa uma não-reação, o
índice único significa uma reação positiva. A célula perceptiva permanece inalterada se o
índice for negativo, ou zero. E se altera se o índice for positivo, ou um.
Ou a célula reage ou não-reage. Em caso de reação ao dado bruto, essa reação surge
como uma alteração da própria estrutura da célula. Para a percepção, o dado surge como
uma existência. O que não-existe para a percepção não pode ser representado pelas células.
Quando um dado é percebido com regularidade, a alteração do formato das células
perceptivas é recorrente. Essa recorrência modela o formato das células perceptivas, para
facilitar novos encontros com o dado. Para que haja o valor de representação na célula,
causado pelo estímulo do real, é necessário que as reações celulares provocadas pelo dado,
no momento inicial, possam se repetir diante do mesmo estímulo, o que possibilitará sua
assimilação. Dessa maneira, o conjunto das percepções dá ao organismo a impressão de
continuidade e constância do espaço. Essa impressão é chamada de realidade:
(...) esse valor representativo reside, a nosso ver, inteiramente no fato de
a reação celular ser uma reação de índice único. As barreiras que um
dado bruto deve transpor para mostrar-se ao espírito são tão diversas, os
pontos de vistas eletivos são tão heterogêneos (físico, químico, motor)
que tudo se esvai diante do último esforço do processo sensível, diante
do movimento nascente que desperta – ou que constrói – a célula
nervosa. (...), todo valor representativo do abstrato está nessa
correspondência matemática superfície-ponto.
21
A alteração da célula nervosa é a primeira representação do real, a origem sensível
do conhecimento. A primeira realidade. Essa alteração inicial é denominada por Bachelard
de “Assimilação Funcional”. A assimilação funcional envolve o conjunto de células
33
perceptoras, e é possível porque essas células podem, segundo o filósofo, acumular, de
experiências desses contatos, uma certa memória mecânica:
(...) esse abstrato elementar, por mais que sua unidade e seu papel de
sinal lhe ofereçam estabilidade, vai necessariamente transformar-se,
depurar-se pela simples força de assimilação funcional. De fato, essa
assimilação funcional nem sempre é uma assimilação rigorosa, e só tem
sentido se retificar a substância nervosa para obriga-la a receber sempre
melhor as impressões do real.
22
A cada novo contato temos uma aproximação maior, no sentido da acuidade, da
precisão, da rapidez de resposta da célula a cada novo estímulo, até o momento de uma
habituação. Bachelard chama esse registro celular de retificação. O estímulo é retificado
na célula. Os impulsos elementares seguem vias fisiológicas desde o momento da
percepção inicial até se tornar um elemento para o espírito, responsável pela abstração.
Através da ação do pensamento, o espírito incorpora o resultado das retificações celulares.
Bachelard chega a chamar de conceitos menores essas retificações celulares;
(...) na raiz do conceito há uma vida flexível, capaz de conservar e apta a
conquistar. O conhecimento considerado em sua dinâmica inferior já
implica uma aproximação em vias de aperfeiçoamento.
23
Entretanto, a assimilação funcional não é obra do espírito, não é um ato livre do
pensamento ou da vontade, ela é toda reflexa, automática. A ação do espírito sobre o dado,
a intencionalidade, que é o fator fundamental da elaboração do conhecimento é chamada
por Bachelard de assimilação intencional. Este é o quarto par dialético apresentado por
Bachelard; assimilação funcional e assimilação intencional. Uma vez incorporado o
estímulo, a impressão do real fica disponível para o estado de consciência. Ainda num grau
microscópico, ainda um abstrato elementar. Mas é uma representação, antes de qualquer
juízo ou noção do espírito. Bachelard aponta esse momento como o início de um processo,
que vai possibilitar a descrição, o conhecimento. Outra expressão utilizada pelo mestre para
esse instante é o de conceptualização passiva, fazendo referência ao automatismo e à
inconsciência do processo de representação celular.
34
2.16. Assimilação intencional e o problema da linguagem
O conjunto de células retificadas no encontro com os dados brutos passa a ser um
objeto para a ação intencional do pensamento. As retificações passam a ser pontos de
referência do pensamento; ficam disponíveis para os estados de consciência, de onde
surgirá a coordenação dos saberes e atitudes importantes sobre o real. Lembramos que
conhecer é sobreviver.
O processo celular que ocorre nas células dos olhos humanos desde o nascimento
vai se aperfeiçoando de maneira que o estímulo é cada vez melhor assimilado; até atingir
um nível da linguagem, onde os dados luminosos se tornam realidade visual.
O ser humano não nasce com os olhos aptos a ver e nem com ouvidos capazes de
distinguir e significar os sons. Os órgãos perceptivos são estruturas sensíveis que se
formam ao longo de nossas experiências.
Na segunda metade do século XX, o filósofo Wittgenstein (1889-1951), apresentou
uma pesquisa chamada Investigações filosóficas, publicada postumamente. Segundo ele, a
linguagem que cada cultura disponibiliza aos seus membros, nossos universos semióticos,
onde estamos inseridos, fornece a estimulação necessária para que os indivíduos se
aperfeiçoem nos jogos de linguagem da cultura: aperfeiçoem seus órgãos perceptivos, pela
constante estimulação que esses jogos permitem
24
. Porém a linguagem não é, nas palavras
de Bachelard, determinante no momento da assimilação funcional. A assimilação funcional
é um mecanismo biológico primário, que o ser humano partilha com os demais seres vivos,
não há cultura, o conhecimento nesse início é a simples ação mecânica dos órgãos de
percepção. A linguagem faz parte do outro momento: ela é fundamental para o processo de
assimilação intencional. Permita o leitor que apresentemos uma citação um pouco longa,
mas acreditamos ser mais clara que uma interpretação:
(...) não se tem nenhum critério para determinar as características suficientes
ao reconhecimento do objeto; nem mesmo se definiu a maior ou menor
acuidade desse reconhecimento. Se o reconhecimento é a pedra de toque que
determina o valor do conceito, será necessário considerar dois pólos para
centralizar a acuidade da percepção: as coisas com suas diferenças mais ou
menos visíveis e o espírito com seu poder de discriminação; no fim, o
vencedor será o espírito. Nosso acordo não dependerá tanto da similitude
dos objetos, e sim da maneira uniforme como lhes reagiremos quando se
apresentarem. A conceptualização será um esforço de objetividade mas, tudo
35
bem considerado, ela vai desenvolver-se em sentido inesperado, pois para a
depuração do conceito não é o objeto que chama – suas exigências seriam
sempre mínimas, já que bastaria uma característica para designá-lo -, mas é
o espírito que projeta esquemas multiplicados, uma geometria, um método
de construção e até um método de retificação.
25
Duas questões são explicitadas nesse trecho. A primeira é o re-conhecimento. Se o
objeto não for reconhecido num segundo contato significa que a representação não teve
energia psíquica; ou que a representação não foi utilitária ao estado consciente; ou mesmo
não pôde ser um elemento para um juízo sobre o objeto. Se o objeto puder ser reconhecido,
significa que a representação do estímulo foi assimilada pelo espírito. Muitas
representações celulares não são utilizadas imediatamente.
A segunda questão que o trecho apresenta é a fundamentação da assimilação
intencional; a ação do espírito. A forma como o espírito se apropriará da representação
celular do objeto. Essa representação tem um caráter de objetividade; instante da
materialidade. Diante da representação celular, o espírito surge como um juízo de
correspondência, é ele quem vai reconhecer, desejando que o dado representado represente
alguma; tateando ao redor em busca do objeto, que ele saberá quando reencontrá-lo! Nessa
busca, outras representações guardadas na memória são revisitadas.
Com a arte e com a linguagem escrita, as culturas humanas puderam fazer evoluir a
quantidade de conhecimentos da espécie, sobre o meio e sobre si mesma. As crianças
humanas a cada geração recebem das gerações anteriores o legado de pesquisas e criações.
O acúmulo do conhecimento e do reconhecimento, patamares de buscas que não precisam
ser reiniciados completamente, mas que podem ser continuados. Principalmente em termos
do conhecimento científico, que tem uma finalidade cultural mais profunda, de ampliação
das possibilidades humanas de adaptação. (...) A aproximação é a objetivação inacabada,
mas é a objetivação prudente, fecunda, verdadeiramente racional, pois é ao mesmo tempo
consciente de sua insuficiência e de seu progresso.
26
Ao espírito cabe a função de abstrair a representação inicial. O espírito deforma o
dado representado, e o projeta em esquemas multiplicados conforme a riqueza de recurso
que a memória pode fornecer.
36
2.17. O Espírito
Bachelard utiliza a categoria de Espírito como sendo o epicentro da consciência; a
energia psíquica do sujeito; uma força intelectual. A cognição possui três estruturas. São
elas o Espírito, o Pensamento e a Memória. Não há detalhes dessas fisiologias, ou lugares
no cérebro onde possam se situar. Há um trecho da tese na qual Bachelard apresenta os
argumentos para não resolver questões ontológicas. Ele diz:
Alguém vai decerto perguntar de que modo já se conhece. Mas por que
exigir mais do epistemólogo que do físico? O epistemólogo, tanto
quanto o físico, não pode eximir-se das questões de origem? Se nos for
dada uma nebulosa, já é tarefa difícil descrever sua condensação.
27
2.18. A Abstração
A abstração é uma associação livre, é o sentido inesperado. É através da abstração
que a representação inicial das células perceptivas é fixada como conteúdo no próprio
espírito. Os conceitos de abstração e de espírito trazem um conteúdo filosófico histórico
conflituoso, tratado como questão metafísica. Vamos tentar esclarecer que tipo de espírito
Bachelard está tratando em sua tese.
A nossa intuição é de que ele aborda um ente material: talvez ele admita o espírito
como uma fisiologia: um funcionamento de órgãos do sistema nervoso. Entretanto ele
atribui ao espírito a capacidade de livre associação, o que nos leva a não considerar
seriamente o determinismo biológico que vê apenas ações e reações celulares como base
do funcionamento do organismo. O espírito é responsável pela abstração.
O princípio forte desse materialismo parece ser o presente das estruturas do
pensamento. O pensamento deve resistir à louca tentação de sair de si mesmo
28
. Com essa
frase, Bachelard parece dizer que a objetividade do espírito está nesse esforço do contato
com o real. Mais uma vez, não temos uma resposta ontológica sobre o que é o espírito. É
uma fisiologia do corpo que se ocupa de conectar o indivíduo com o momento da realidade.
A abstração do espírito é o método de construção do segundo momento do conhecimento, o
macroconhecimento.
37
2.19. O Microconhecimento e o Macroconhecimento
O pensamento alimenta o espírito constantemente com novas representações
celulares, colhidas dos constantes contatos com o meio, e também com representações
fixadas, de forma que a realidade nos aparece como um contínuo: uma imagem contínua
em movimento. O pensamento busca o presente, o instante. Cada órgão perceptivo lida
com um aspecto do real, e esse real aparece como unificado no tempo pela ação do
pensamento, a energia psíquica.
O tônus psicológico possibilita que os microconhecimentos e os
microconhecimentos surjam de maneira contínua e simultânea. O início de um novo
conhecimento não interrompe outros que já estão em registro no organismo, os que estão
em andamento, e nem as abstrações que o espírito faz para ampliar sua aproximação. A
apresentação dessa impressão imediata do real à consciência é já o uso da linguagem. A
linguagem humana é um instrumento eficiente da consciência, uma forma de se apresentar
a si mesma. A linguagem científica é útil na elaboração das descrições e a linguagem
técnica é uma tentativa de representação objetal dos mecanismos cinéticos do universo.
Microconhecimento se refere ao ato perceptivo inicial. O Macronhecimento é a ação do
intelecto, do pensamento.
Tônus Psicológico (Assimilação funcional – Assimilação intencional)
A – Dado bruto, o contato com o
real
.
B transmissão do impulso através do índice único; as células sensíveis alteram-
se e suas regiões periféricas servem de estímulo a outras células, numa reação em
cadeia.
C - Abstrato elementar. O conjunto de representações das células retificadas
dos órgãos perceptivos.
D – Pensamento. “(...) O pensamento só começa com a linguagem, é
contemporâneo da junção dos conceitos”. O pensamento situa o organismo no
presente, ele possibilita um contínuo da realidade, possibilita que o mundo se
mostre em movimento para a consciência.
E – Memória. É o conjunto de representações fixado anteriormente.
F - A partir de sua capacidade de síntese, o espírito funde a nova representação
às antigas.
Segundo Bachelard nos diz que não há pensamento sem linguagem, logo
entendemos que a abstração não é um processo automático, mecânico, mas intencional. A
criança não está ainda totalmente imersa no mundo lingüístico de sua cultura; nela há o
acúmulo de assimilações funcionais sem as posteriores assimilações intencionais,
38
intermediadas pelo idioma e pelos sentido sociais dos objetos. A ação do espírito, sem a
linguagem, não se completa. O ato de reflexão sem a linguagem é infrutífero.
A identificação do objeto retificado na estrutura celular é o sucesso da assimilação
mecânica e o sucesso da assimilação intencional. Bachelard considera o momento do
reconhecimento como o de uma constatação do fenômeno. O poder de discriminação, a
capacidade de classificação, o costume com os objetos são realizações do espírito, auxiliado
pela possibilidade de nomear que a linguagem dá. A finalidade de toda linguagem humana
é: ser o elo entre a assimilação funcional e assimilação intencional.
2.20. O Pensamento
Segundo Bachelard, há um fator de ordenação na própria percepção. Fico pensando
nos seres vivos que compartilham conosco o mesmo ambiente, mas que possuem acessos
aos dados desse ambiente de maneiras diferentes, de acordo com as suas especificidades
perceptivas e assimilativas próprias:
(...) Assim, o som é o complexo da altura, do timbre e da
intensidade, mas essas qualidades são nitidamente separáveis e a
altura, por exemplo, determina uma escala sem arborescência.
(...), os dados relacionados à visão: o tom das cores, a saturação e
a clareza formam um esquema complicado (Ebbinghaus) se
quisermos preservar a unidade da impressão. Uma análise
imediata destacará multiplicidades lineares independentes.
29
O espírito é identificado como a própria consciência do indivíduo: sua
intencionalidade; onde lhe ocorrem os juízos e noções; centro da vontade. A memória está
ligada ao espírito, ela é precisa ao reconhecer um dado representado anteriormente. Já o
pensamento do sujeito é o estado de presença: é o acesso ao presente dos fenômenos.
39
Jardins de Dijon 05/01/07
Multiplicidade de dados elementares da sensação. A percepção em seu
princípio de ordenação opera como um
Prisma
para desfragmentar e captaras
qualidades das multiplicidades lineares independentes. Instante da passagem
da assimilação funcional à assimilação intencional.
A – Índice único positivo
B – Assimilação funcional. Princípio da ordenação da percepção, que isola os elementos
múltiplos das várias percepções.
C – Assimilação intencional. Desfragmentação da multiplicidade.
D – dados retificados em suas múltiplas dimensões, arquivados na memória.
O pensamento não é uma estrutura pré-existente, a priori, no sujeito. Bachelard diz
que o pensamento precisa de um registro abstrato, de objetos intermediários, também
retificados na fisiologia do sujeito, que são os objetos da linguagem. A alfabetização, por
exemplo, é um longo processo de aproximação de um tipo de objeto que são os símbolos
gráficos de uma cultura. O processo de alfabetização inicia-se com procedimentos de
estimulação, para a assimilação funcional dos símbolos. Depois temos a assimilação
intencional, utilizando livres associações que o espírito pode fazer. Essa é a vida cultural do
pensamento.
40
2.21. O contínuo da realidade
Os dados impressos nas representações celulares da percepção seriam caóticos, ou
simplesmente associações mecânicas se a linguagem não interviesse com sua categorização
típica da matemática e lógica. Um som é composto de altura, timbre e intensidade, mas
essas categorias não estão presentes no som. O som nos surge como um contínuo, uma
temporalidade. A fragmentação da unidade do real nos permite perceber outras dimensões
que compõem o contínuo. Raios ultravioletas ou infravermelhos, por exemplo, escapam de
nosso espectro de visão; não sensibilizam as células perceptivas dos olhos; não temos
células capazes de sofrer alterações perceptivas diante desses estímulos, por isso não
podemos vê-los. Se a estrutura orgânica não localiza o estímulo, não acontece a percepção.
Entretanto o ser humano construiu instrumentos tecnológicos capazes de detectá-los.
O nome de uma cor, por exemplo, é um conhecimento que é aplicado na tentativa de
reconhecer os objetos coloridos: habilidade conquistada após o letramento do indivíduo,
nos processos em que ele aprende a relacionar uma imagem gráfica a um objeto. Mesmo
que no microconhecimento o nome da cor não interfira.
No momento da assimilação intencional, os registros simbólicos, e as experiências
anteriores de reconhecimento têm sua importância para se saber a cor de um objeto e
nomeá-lo. Dessa forma a realidade é objetável progressivamente pelos esforços de
aproximação do sujeito conhecedor, tendo em vista sua adaptação ao ambiente: para
solucionar suas obrigações materiais de vida. Animais que possuem instintos
comportamentais que controlam comportamentos a priori, diante da estimulação de certos
comprimentos de onda, de cores, por exemplo, não necessitam saber ou aplicar um nome
para a cor. Mas para nós humanos, a linguagem faz com que seja possível interromper o
movimento das imagens, para dar nomes e construir conceitos.
A fixação das representações se dá pelo próprio formato das células nervosas. Em
animais instintivos o formato desses neurônios já possui uma adequação para o contato
com o estímulo. Em geral a célula formatada apresenta grau de flexibilidade menor do que
as células nervosas humanas. Essa flexibilidade do sistema nervoso humano, isso de não
surgir fixo, com comportamentos estruturados, ou representações celulares demarcadas; é
que nos auxilia na busca de adaptação a infinidades de situações e contextos ambientais e
culturais. Por isso um animal não precisa saber o nome das cores para se relacionar com
objetos coloridos; como dissemos, o ser humano depende da linguagem.
41
A aproximação é a progressiva capacitação das células perceptivas, que possuem a
função de direcionar o impulso recebido pelo meio. Também há uma evolução do espírito
em aplicar juízos: tomar decisões sobre as situações de vida, sobre as informações
necessárias para a ação. A aproximação mais uma vez, nessa argumentação, deve responder
aos critérios de utilidade. A diferença entre um estado de consciência inicial e o novo
estado de consciência é que depois da assimilação intencional o objeto retificado começa a
compor o mundo do sujeito: suas significações. A retificação é uma etapa do movimento
do conhecimento em direção ao real. É algo surpreendente, pois são as impressões objetivas
do contato, comprovando suspeitas de um realismo mitigado de que uma possível
realidade. A retificação é questionada na perspectiva dos céticos (para os quais não há um
conhecimento possível). O elemento re-conhecido nesse segundo encontro pode não
ressurgir. O elemento pode não ser distinguido da somatória de objetos que compõem o
contínuo de coisas. Nesse caso não houve a representação; podemos dizer que não
conhecíamos o objeto procurado.
2.22. O contínuo da realidade II
Distinguimos conceitualmente dois tipos de fenômenos: a velocidade do estímulo
em percorrer o sistema orgânico até atingir os órgãos sensoriais e encontrar a retificação no
espírito, e a velocidade da percepção, a velocidade com a qual o organismo percebe o
estímulo depois de ser atingido por ele. Esta última velocidade é aumentada culturalmente,
pois o sujeito desenvolve seus órgãos sensoriais ao longo da vida.
Se há o reconhecimento de um elemento no meio externo, somos levados a
concordar que sua impressão foi fixada, mesmo que com pouca precisão. Há sempre uma
imprecisão na retificação. Principalmente com relação aos objetos culturais. Entre a
coleção de objetos do real, uma série deles pertence exclusivamente ao universo cultural
humano. O exemplo que Bachelard comenta é do objeto técnico. O objeto técnico é
cultural, e é intencionalmente construído para reproduzir mecanismos que homem e
mulheres abstraíram de suas aproximações com o real. Dessa forma o objeto técnico é o
objeto que oferece o maior índice de assimilação e utilidade. No objeto estilizado, o espírito
reconhece sua marca tradicional. (...), essa graça esquemática que os objetos
42
30
manufaturados apresentam.
Já vimos nos primeiros tópicos desse capítulo que o primeiro movimento do
conhecimento é o contato do sujeito com o dado bruto. Esse dado é objetivado na
representação celular, que Bachelard chama de assimilação funcional. Após esse momento,
segue-se a ação do pensamento sobre a representação, disponibilizando-a recorrentemente
ao espírito. O espírito é responsável pelas abstrações e utilização da memória. São todos
movimentos simultâneos: O pensamento transforma em objeto da consciência as
representações das células sensoras, espalhadas por todo o corpo. As representações
celulares ficam disponíveis para os estados de consciência; o pensamento coloca-as no
presente do indivíduo, em velocidades diferenciadas, de modo que sejam conhecimentos
úteis para as ações de sobreviver.
2.23. A montagem do Movimento
A audição do som e a contemplação de uma figura têm velocidades de percepção
diferentes, pela própria natureza do som e da imagem (da luz). O sincronismo das
percepções não parece, no texto de Bachelard, uma função das células, mas do espírito
humano, que para viver gera uma realidade tempo-espacial. Os órgãos perceptivos possuem
estruturas diversas de conexão com os dados reais, mas quando vemos um filme no cinema,
o som e a imagem parecem ter uma mesma velocidade; parecem ser captados em um
mesmo contínuo, de uma maneira única; tanto o som contendo imagens, quanto às imagens
contendo sons. Ambos em movimento. Por que temos essa sensação, mesmo sabendo que a
imagem cinematográfica é uma montagem, um engodo da percepção? Como explicar a
sensação de simultaneidade que os objetos possuem?
As representações celulares possuem velocidades diferentes. Há uma diferença
pequena de tempo, que não é percebida imediatamente. Segundo Bachelard, enquanto a
experiência nos põe em contato atributos, o espírito liga um sujeito a um conjunto mais ou
menos articulado; esse conjunto é então considerado como efetivamente pensado.
31
Um processo de unificação, de geração de um contínuo, de uma constância da
realidade é tarefa do espírito, de forma que a realidade apareça como algo ininterrupto para
a consciência. Ocorre-me serem simultâneos o som e as imagens, pois essa é uma
43
necessidade adaptativa. É a modalidade humana de conhecer: a unidade tempo espacial do
presente. O espírito unifica todas as representações, de velocidades e estímulos diferentes,
flexibiliza, deforma, abstrai ao máximo, utilizando suas várias faculdades, seus vários
juízos, e também utilizando as representações celulares elementares, (que são milhares por
todo o corpo humano). Juízos são faculdades, habilidades e maneiras de agir.
2.24. Geometrizações imaginéticas
A geometrização dos dados retificados é possível por dois motivos: pelas próprias
qualidades dos dados, e pela natureza da impressão desses dados na superfície das células
perceptoras. Podemos citar como exemplo as alterações morfológicas das células dos olhos
no momento de contato destes com as imagens, com a luz em movimento. A seqüência
linear positiva de índice único organiza as alterações celulares. Essas representações
organizadas são utilizadas pelo espírito. Elas são transmitidas pelo corpo através de cadeias
de perturbações morfológicas, e de impulsos nervosos, até as centrais fisiológicas,
cerebrais principalmente: onde as associações acontecem.
As unidades da representação celular são possíveis de serem convertidas em
imagens. O espírito percorre os limites dessas representações, através dos juízos (figura 8).
Não percebemos no Ensaio uma concordância com Immanuel Kant sobre os juízos a priori.
Para Kant, haveria um conjunto estruturado de ações, disponíveis ao espírito, que
seriam anteriores a qualquer experiência. Para Bachelard, a vida do espírito tem uma
relação com o surgimento da linguagem, por isso os juízos necessitam passar por uma vida
cultural, necessariamente. Outra diferença de Bachelard para Kant é a admissão de Kant de
que há uma metafísica no espírito, o que explicaria o apriorismo de certos comportamentos.
Bachelard cita os juízos de dedução, o juízo de intercalação, o juízo sintético, o juízo
analítico, o juízo de negação e o juízo de aproximação. Esses juízos compõem a faculdade
de abstração.
44
2.25. O Conceito
O conceito pode ser considerado como uma deformação intencional do conteúdo
das representações celulares, lançando mão do nível de desenvolvimento sociolingüístico
de cada espírito.
(...) o elemento distinguido é muitas vezes fixado de um modo pouco
preciso, (...). É preciso que o espírito esteja sempre consciente dos limites
que impedem o desenvolvimento qualitativo ou quantitativo do
fenômeno.
32
A imagem entra na vida do indivíduo desde o início, logo no ato de representação
celular dos estímulos externos, que formam as primeiras imagens, a imagem do dado bruto.
Não apenas isso, mas o movimento dessa imagem. O que vemos, o que tocamos, o que
percebemos, são instantes do real; momentos do movimento. Segundo Bachelard, para se
encontrar a raiz do real, a causa, seria preciso ir até o cerne da experiência. Mas nossas
células não são capazes de ir até esse ponto. Anteriormente falamos do espectro de
comprimento de luz, a possibilidade das cores, e dissemos que nossos olhos não são
sensibilizados por todos os comprimentos. Esse centro nos é proibido: sempre veremos o
fenômeno de fora, em sua cinemática, nunca em sua dinâmica.
33
2.26. O conhecimento Ficcional e o conhecimento científico
O conhecimento descrito por Bachelard até aqui deve ser considerado em seus dois
momentos; a retificação celular e a retificação do espírito, resultados de dois processos: a
assimilação funcional e a assimilação intencional. Dito assim, acreditomos ter resumido em
grande parte um esquema de compreensão da epistemologia do Ensaio. O conhecimento é
um ato, não está em um início, a priori, está após uma etapa fisiológica de registro. O
conhecimento é o reconhecimento do que foi fixado no espírito, uma necessidade humana
de adaptação e evolução. O movimento de aproximação do conhecimento, tema central da
tese de 1928, em seus dois sentidos, ocorre nas duas retificações. Tanto no nível celular nos
aproximamos do objeto pelo aperfeiçoamento das células, a acuidade das superfícies,
quanto no nível do espírito nos aproximamos do objeto em uma espécie de desenvolvimento
45
ergonômico, onde a convivência com os dados do real possibilita novos comportamentos,
novos comportamentos inclusive de pesquisa, de estudo. Dessa forma os dois sentidos da
aproximação se realizam.
No nível celular, a distância com relação ao objeto percebido diminui, em termos da
velocidade da distinção, quando conseguimos situar tudo com o máximo de rapidez. O
outro sentido do conhecimento no nível da retificação da célula é um aperfeiçoamento
progressivo da captação do impulso, como dissemos, de maneira que o esforço de
objetividade na classificação das qualidades aumenta, aumenta a captação das nuanças e
detalhes do real. O conhecimento na representação celular, o microconhecimento é
resultado de mecanismos biológicos, reflexos, do indivíduo. Entretanto eles podem ser
educados. Para admitir que esse microconhecimento se mantenha e contitua o conhecer
total do indivíduo, sua capacidade cognitiva, devemos pressupor que há nessa tese uma
idéia de descontinuidade do real e de continuidade do espírito. A multiplicidade de
elementos que compõe o real é percebida de acordo com a peculiaridade do estímulo, seja
físico, químico, motor, os estímulos são multidimensionais, ou seja, partem de uma série de
fontes históricas ao indivíduo, descontínuas. O indívíduo possui vários órgãos distintos de
percepção, e como são fenômenos de ordem de qualidade distintos, as representações
celulares também são distintas. O fenômeno externo ao indivíduo é captado na sua
descontinuidade, portanto. O juízo sintético do espírito faz a sincronização das
representações. O reconhecimento da realidade percebida não é uma nova percepção da
descontinuidade, mas demonstra a fixação dos conceitos básicos à imagem e ao som
(representações celulares) e os conceitos elaborados (os predicados lingüísticos como nome
das cores, nome das formas, nome da música, etc).
Numa cultura, a acuidade visual, que é o progressivo aperfeiçoamento da percepção
visual é estimulada nas crianças desde o seu nascimento, de maneira que um adulto nessa
cultura distingue em uma grande soma de objetos aqueles a que o sujeito pode fazer
referências.
Com as imagens parece ocorrer o mesmo, o que pressentimos como um habituar é
na verdade um aperfeiçoamento de nossas percepções com relação aos objetos
recorrentes. Essa perspectiva surge como um argumento do Ensaio, e é retomada pela
neurobiologia, que nos diz que a habituação é na verdade uma conexão entre o sujeito e o
objeto, conexão que altera a estrutura do sujeito, estrutura neuronal, de maneira que a cada
46
aproximação, essa nova estrutura é reafirmada, retificada.
No nível do espírito, a retificação da representação também acompanha uma
progressão aproximativa, segundo Bachelard, nos dois sentidos dialéticos da aproximação,
aperfeiçoamento e velocidade. O tempo de reconhecimento é uma maneira de encarar o
conhecimento conquistado, uma vez que ele é o tempo da assimilação, e também o tempo
da emissão de um juízo sintético ou dedutivo. A aproximação acontece no espírito na
expressão do aperfeiçoamento e velocidade de julgamento de seus juízos. Após um período
de aprendizado, por exemplo, um profissional de vinhos consegue distinguir, com um
enorme poder de precisão na identificação, uma grande variedade de tipos, demonstrando a
aproximação. A estrutura perceptiva desse indivíduo, e os juízos de seu espírito, são
capazes de reconhecer muitos objetos referentes a esse recorte do real. Podemos chamar de
conhecimento o saber sobre o vinho, nos termos que Bachelard descreve o conhecimento,
portanto. A tarefa da epistemologia do Ensaio é apresentada ao leitor desde o início:
acompanhar o conhecimento em sua tarefa de refinamento, precisão e clareza.
34
A operação de assimilação funcional, primeiro estágio do conhecimento, ocorre
involuntariamente mesmo após o condicionamento cultural, mesmo após a atividade do
espírito, é uma ação bioneuromecânica. Mas a assimilação intencional tem a marca da
subjetividade do sujeito, portanto os dados representados nas células perceptivas são
material utilizado para as representações da consciência, são remodelados de acordo com a
utilidade para o ser. A assimilação funcional remodela as representações celulares, tem o
peso da história da vida do sujeito.
(...), é preciso sempre fazer uma grande diferença entre o início do
conhecimento e a vida dele. A tal ponto que não se pode atribuir um
papel de informação à sensação primeira. Ela é apenas um sinal, um
convite, o pretexto da atenção e da reflexão.
35
Parte dessa história é marcada pela cultura que fornece os dados e elementos,
formas de julgar e de agir, um ethos, comportamentos lingüísticos. A cultura se inicia com
a ação do homem junto ao arbitrário, ao real, à aproximação que o conhecimento humano
realiza, ao longo da filogênese de suas sociedades, é acumulada para que o indivíduo que
nasce possa ter acesso a esse vocabulário, e a partir dele fazer suas aproximações
cognitivas, para sua sobrevivência:
47
(...) O detalhe, ao contrário, não fere: em seu exame, encontra-se como
elemento afetivo o mero prazer da curiosidade. Esse sentimento é o
mínimo de afetividade necessário para dar impulso à energia nervosa
do conhecimento.
36
Após a descrição do modelo bachelardiano, de seu tônus psicológico, vamos tentar
responder como Bachelard a preciosa pergunta: como podemos saber se nosso
conhecimento corresponde realmente aos dados do real? Poderíamos imaginar que nossos
sistemas perceptivos agem arbitrariamente, e a coincidência de que algumas ações
realizadas a partir desse arbitrário, dissimuladas pela cultura, resolvam nossos problemas de
sobrevivência, sem a possibilidade de sabermos se estamos realmente conhecendo o real ou
fabricando realidades úteis. Na verdade esse argumento pertence ao céticos na filosofia.
Bachelard não nos deixa esperanças quanto ao conhecimento exato do real, e nem nos ajuda
a defender uma exatidão lógica do pensamento. Ele diz inclusive que o erro, o ilógico, o
inexato, são etapas necessárias de um conhecimento. Se para Bachelard o conhecimento
exato não é possível, a proposição de um conhecimento aproximado é a forma de responder
à pergunta sobre a possibilidade da correspondência do conhecimento com relação ao real.
O que nós sabemos são aproximações que podemos fazer, aproximações que são úteis na
vida humana, e, além disso, aproximações que permitem descrições eficientes da
cinemática do real, de tal forma que o ser humano foi capaz de realizar o objeto técnico,
réplica e criação.
O espírito lida com a representação dos dados reais, e também com as
representações e abstrações do próprio espírito, suas criações, seus objetos imaginários.
Portanto não podemos tratar do real apenas como algo externo ao sujeito. Uma série de
novas realidades é gerada subjetivamente, sem que por isso possam ser chamadas de menos
objetivas do que o real.
Além disso, no ato da assimilação funcional, podem ser apresentadas às estruturas
de percepção dos indivíduos estímulos materiais oriundos de mecanismos tecnológicos,
como as imagens do cinema. Como a assimilação funcional não trabalha no plano da
linguagem, tanto a distinção semântica de um estímulo material natural, como o estímulo
artificial não é possível. O devaneio de realidade que as imagens cinematográficas possuem
é ocasionado inicialmente por essa indistinção.
Mitos e lendas, transformados em imagem e sons, em impulsos, reagem como dados
reais. Essa é uma das idéias da trilogia cinematográfica Matrix, de Larry e Andy
48
Wachowski aborda essa questão; a semelhança entre os estímulos artificiais, no caso é
gerada por computadores, e os estímulos naturais, de forma que no filme eles são
indistinguíveis, aprisionando os seres humanos em uma realidade virtual.
Se os mitos e lendas high tech, imagem e som, em termos do dado bruto dessas
estimulações são assimilados e processados funcionalmente sem distinção lingüística, não
são classificados na fonte perceptiva como ficção ou verdade. É no espírito que isso pode
ocorrer, o estabelecimento do critério de realidade, ao dar predicados, emitir juízos, atentar
para nuanças, classificar, ordenar e transformar os dados imediatos. A ficção de um filme,
por exemplo, é transformada no momento do contato elementar entre o sujeito e o objeto
em representações celulares como se esses dados correspondessem a um dado real.
No nível do microconhecimento, não há distinção entre a ficção e o real. Esse é um
dos exemplos de erro que podem ocorrer em nossa aproximação. Um erro não moral, um
equívoco necessário, e até importante.
(...), seria um erro confundir o primordial com o imediato. O que é
imediato para uns não o é para outros. O dado é relativo à cultura,
está necessariamente inserido numa construção. Se não tivesse
nenhuma forma, se fosse um puro e irremediável caos, a reflexão não
teria nenhum poder sobre ele. Mas, inversamente, se o espírito não
tivesse nenhuma categoria, nenhum hábito, a função dado, na
acepção exata do termo, não teria sentido. É preciso que um dado
seja recebido.
37
As perturbações psicológicas, como os estados psicóticos ou esquizóides nos dão
uma demonstração de como um espírito, no caso um espírito atribulado rearranja os dados
das representações celulares, dados habituais em torno de manifestações psicológicas de
outro caráter.
Poderíamos dizer que no microconhecimento a ficção é um conhecimento? Sim, de
acordo com o Ensaio, sim. A ficção pode se tornar, no caso da ficção cinematográfica um
tipo de conhecimento se, e somente se, houver um reconhecimento posterior dos elementos
iniciais. Por esse motivo, pela não constância desse reencontro com os dados, a ficção
permanece conhecimento apenas no nível da assimilação funcional, não na retificação do
espírito. Posteriormente Bachelard, influenciado pela psicanálise, vai aprofundar seus
estudos sobre a ação do espírito sobre a representação celular:
49
(...) visando definir quais são as condições dessa objetividade e a
primeira condição, válida para toda e qualquer ciência, é a de não
tomar a imagem pelo objeto. No entanto, se o Bachelard-
epistemólogo aceita esse princípio, o Bachelard-poeta ultrapassa-o
graças à sua concepção da imaginação deformadora. Não atingindo a
objetividade, a imaginação, por definição, é sobretudo a faculdade de
deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a
faculdade de nos libertar das imagens primeiras, de mudar as
imagens.
38
A aproximação progressiva do conhecimento sobre o dado no nível celular é quem
vai desencadear de alguma forma a diferença entre a ficção e a realidade, mas é no
laboratório da imaginação, da ação do espírito, que essa distinção é fixada. No Ensaio,
Bachelard não apresenta uma reflexão sobre a imaginação. Sabemos que ele vai
desenvolver uma teoria densa sobre essa capacidade humana nas obras posteriores. Como
nossa intenção é explorar o ensaio, vamos utilizar o que ele nos disponibilizou em termos
de argumento. Nos limitaremos a considerar a imaginação como uma modalidade de
abstração do espírito sobre os dados representados pela assimilação funcional, a abstração
que é a característica citada por Bachelard como referente à assimilação intencional, ou seja
realizada pela força da consciência do sujeito. Tão pouco nós temos o conceito de
inconsciente no Ensaio, portanto, atribuiremos à memória seu papel, que é o de armazenar
as representações que chegam ao espírito. Como resultado do conhecimento, percebemos
em Bachelard uma preocupação ética. Pois na construção do conhecimento científico, a
sensibilização da percepção pode ser feita mediante o cinema, filmes e debates sobre a
imagem dos objetos tecnológicos e dilemas existenciais que eles provocam. No momento
da elaboração do conceito científico, na assimilação intencional, a ficção científica também
pode servir de geradora de imagens e dados, e principalmente, geradora de estruturas de
descrição. Podemos admitir também a ficção científica como uma forma de apresentação
de certos conhecimentos científicos, maneira de descrever o saber científico,
principalmente nos filmes que assumidamente buscam fazer a propaganda da ciência como
os filmes de ficção científica dura.
39
(...) o antropomorfismo é atualmente nosso único método de
expressão para o aspecto pormenorizado do real. (...). Dar vida à
Realidade inteira é fazer da representação a representação de uma
entidade. (...) a tarefa de conhecimento e a tarefa de criação seguem
um mesmo plano, e ambas estão inacabadas. Mas, enquanto o
50
inacabamento do conhecimento humano é visível e doloroso,
atravessado por perturbações, a retificação do real se efetua num
plano de refinamento que respeita todas as conquistas.
40
Voltando ao microconhecimento, a dificuldade de distinção entre o objeto ficcional
e o objeto real se dá pela quantidade de variáveis microscópicas e arbitrariedades dos
fenômenos da luz e do som, componentes da imagem e do movimento quando se
apresentam aos órgãos perceptivos:
(...) na microepistemologia, as variáveis tornam-se tão numerosas,
tão sensíveis, tão irregulares que, experimentalmente falando, sua
atuação assume o aspecto da contingência.
41
2.27. Uma epistemologia necessária
O mais importante da relação entre a tese de Bachelard e o cinema é a necessidade
de que o professor de biologia deve desenvolver uma epistemologia. Segundo a filosofia
oriental do Aikido (BULL, 2003), professores e alunos têm que entender que o “como
aprendemos” é mais importante do que o “o que aprendemos”. Semelhante a esse
ensinamento, pensava Bachelard que a relação entre as duas ações é cronológica, no caso
da ciência: primeiro desenvolvemos o como da aprendizagem, após isso realizamos o
conteúdo. Da mesma forma, é necessário ao cientista e ao estudante uma epistemologia
básica antes de passarmos ao conteúdo. Responder ao como aprendemos resulta em
vantagens quando passamos ao o que aprendemos. A questão passou a ser, durante a
investigação do mestrado, como estudar Gaston Bachelard? Um teórico que demonstrou ser
um pensador de vários momentos, não pela mudança de fundamentos, mas pela mudança
dos objetos. Do conteúdo da Física (termodinâmica) para a própria Epistemologia, e depois
dessa para a Poesia e por fim a Psicanálise.
Como parte da investigação sobre a figura de Gaston Bachelard, e também para
entender melhor a relação entre o cinema e a educação, estive em Dijon, cidade francesa
para onde Bachelard se dirigiu em 1930 para lecionar filosofia da ciência na Universidade
da Borgonha. Ele estava nesse período exercitando e observando seus estudantes a partir do
51
prisma adotado em sua tese de Doutorado sobre o conhecimento aproximado de 1927.
Minha pesquisa etnográfica, parte que considero importante para minha compreensão da
epistemologia do Ensaio se concentraram em três locais: a biblioteca municipal de Dijon, a
biblioteca da faculdade de ciências humanas da Universidade da Borgonha e o cinema
Eldorado. Minha pesquisa em Dijon ocorreu de 07/12/06 a 22/01/07.
Na Biblioteca Municipal de Dijon (Figura abaixo) encontrei a obra do filósofo e
referências históricas sobre o contexto histórico do período em que Bachelard esteve
morando em Dijon, que possui uma avenida com o nome do filósofo. Meu objeto de
pesquisa ali foi a tese de Bachelard, que tive acesso em Francês e todo comentário sobre
essa obra, sua repercussão filosófica e o comentário de estudiosos de Bachelard na França
como Georges Cangluien e André Parinaud. Também foi importante para entender que
lugar a tese ocupa dentro da obra de Bachelard, um filósofo profícuo que escreveu 25 livros
sobre filosofia. Na biblioteca municipal foi possível ver microfilmes de jornais que
registraram acontecimentos da vida de Bachelard.
A Biblioteca Municipal de Dijon – 20/12/07
52
Na biblioteca da Universidade da Borgonha encontrei ensaios fotográficos,
literatura e mais dados sobre a relação entre cinema e educação. A biblioteca tem um
eficiente sistema de busca e de cópias, o que dá ao estudante suporte para a pesquisa.
Gaston Bachelard
(1884 – 1962)
No Cine Eldorado, um cinema tradicional de Dijon, presente desde a década de 50
do século XX na cidade e que hoje enfrenta dificuldades pela postura da Prefeitura de Dijon
e dos chamados cinemas de shoppings. Uma pouco mais sobre a história do velho Cine
Eldorado podem ser encontrado no site cineldo.com.fr.
Nesse cinema tive a oportunidade de assistir a dez seções de filmes; sete produções
e três vezes voltei para ver novamente o mesmo filme. A proposta do cine Eldô é a de
apresentar filmes de várias partes do mundo, em programações que mudam quinzenalmente
ao longo do ano. Essa rotatividade permite que o cinespectador tenha acesso a uma
variedade muito grande de filmes, ao contrário do cinema de shopping, comuns a nós
belorizontinos. Os cinemas dentro de shopping tem objetivos com grandes públicos e
filmes de apenas alguns setores da produção cinematográfica. A relação com o
cinespectador é de respeito. Não está o sujeito bombardeado de consumo como é a ida ao
cinema em Belo Horizonte.
As seções começam às 12:00hs, diariamente e se prolongam até as 23:00hs,
cumprindo o papel cultural do cinema na vida da comunidade, que pode ser a proposição
constante de imagens e temas para a reflexão sobre o ethos das várias culturas do mundo.
53
No ano de 2006, ano cultural do Brasil na França, em vários cinemas como o Eldô, o
cinema brasileiro foi apresentado. Para uma cultura que lê, estuda e pensa sobre as
fronteiras culturais, a quantidade de dados para a construção de conceitos em antropologia
que o indivíduo tem à sua disposição é maior.
Durante minha estadia em Dijon, na França, pude observar uma relação interessante
entre a escola e o cinema. Crianças de uma escola vizinha vão juntas ao cinema em horário
de aulas. Abordagens que tratam da relação do cinema com a escola falam do uso didático
dos filmes em sala de aula. Mas uma ação pedagógica eu percebi na prática de levar a
criança ao cinema durante as aulas. A primeira questão é que os grupos de crianças eram
levados, guiados pelo professor, e eram grupos pequenos.
Uma das dificuldades alegadas geralmente nas escolas públicas de Minas Gerais
para essa prática são as turmas muito grandes de alunos. Em Dijon as turmas que eu vi no
cinema me pareceram pequenas, ou pequenos grupos de estudantes. Ele foram ao cinema
com seus professores. Uma das funções que a relação entre o cinema e escola pode ter é a
formação para a participação no espaço público, além dos benefícios que um filme de
cinema no cinema pode trazer em termos da concentração do estudante no enredo e nas
várias artes que compõem um filme, como a fotografia, a representação, o roteiro, etc. a
participação no espaço público é uma das funções da escola no processo de socialização do
indivíduo.
Na minha observação do cinema eldorado, foi em uma seção de cinema pela tarde,
em um dia de semana que me deparei com o grupo de estudantes. Há várias escolas
próximas ao cinema, o que favorece a ida dos grupos. A programação infantil do cinema é
constante, chamada de cine-momes. Durante minha estadia em Dijon, na França, pude
observar uma relação interessante entre a escola e o cinema. Crianças de uma escola
vizinha vão juntas ao cinema em horário de aulas.
Ao apresentar Gaston Bachelard e seu modelo epistêmico, pretendo dizer que, tanto
dentro de sala, da escola, ou fora da escola, a experiência da construção do conceito
científico pode ser estimulada, aperfeiçoada, aproximada com o uso das imagens do
cinema. A dissertação analisa o uso do cinema dentro das instituições de ensino,
necessitaríamos de uma pesquisa complementar para investigar como a ida ao cinema
interfere no conhecimento construído. Entretanto é possível perceber que o contato com a
tela grande é uma forma diferente de experiência. Segundo XXX, a questão das dimensões
54
da tela do cinema são significativas. Por esse motivo entendemos que a TV e o Cinema são
modos de exibição dos filmes, modos de estimulação diferentes. Durante minha estadia em
Dijon freqüentei o cinema Eldo. Assisti às atrações da semana de 08/01/07 a 17/01/07.
Nesse período assisti a dez filmes, de várias nacionalidades apresentados diariamente com
preços de 3,5 euros cada filme. O cinema tem uma programação quinzenal com temas e
assuntos variados.
Bachelard quando lecionava em Dijon
(1930 – 1940
)
Para a viagem a Dijon levei uma bibliografia básica para a pesquisa em Língua
Portuguesa. Fiz algumas leituras enquanto freqüentava as seções, e algumas observações.
O cinema na França é uma instituição cultural antiga e prestigiada, um hábito
praticado por todas as idades. No período da defesa da tese, Bachelard provavelmente
convivia com o cinema. A imagem cinemática era um fenômeno que a física e a
matemática, ciências em promoção no início do século XX haviam ajudado a construir. Ao
aprofundar minhas leituras sobre Gaston Bachelard e sua tese, e sobre o uso do cinema na
Educação senti necessidade de conhecer mais uma experiência diferente do sujeito com o
cinema, diferente da que temos aqui. E a quantidade de material acadêmico sobre a relação
entre cinema e educação nas bibliotecas de Dijon é grande, e eu também trouxe cópia de
alguns textos. Essa grande produção me fez entender que há uma relação histórica de uma
sociedade com as imagens que ela mesma produz. No caso da sociedade da França o
cinema é uma fonte de informação sobre as questões humanas mais importantes, que
grande parte da população freqüenta regularmente.
55
Desde o início do século XX, a quantidade de filmes produzidos anualmente dentro
e fora da França crescia Segundo Robet Sklar (SKLAR, 1975),
Os franceses tinham sido outrora a primeira nação produtora de
filmes do mundo e, quando falaram no começo de 1928,
assumiram a surpreendente posição de que a melhor defesa é um
bom ataque. A política francesa, proposta por uma comissão
especialmente aprovada depois disso pelo governo, era esta: para
cada sete filmes estrangeiros que entrassem na França, um filme
francês teria de ser comprado e exibido no exterior. A
importação dos filmes estrangeiros seria dividida, cabendo
quatro filmes norte-americanos, dois aos alemães e um aos
ingleses. Nessas condições, as companhias cinematográficas
ianques teriam de comprar um filme francês para cada quatro de
seus filmes exibidos na França. Em 1926, 444 filmes norte-
americanos tinham sido importados pela França e, em 1927,
368.
42
Na Biblioteca municipal de Dijon e na Biblioteca da Universidade da Borgonha
encontrei material abundante sobre Gaston Bachelard. Não foi possível acesso ao acervo
do Centro Gaston Bachelard de pesquisas sobre o imaginário e a ciência, que funciona na
Pós-graduação de Filosofia da Universidade. Há uma revista periódica que o centro
Bachelard imprime e divulga pela internet, e que possui como um número exclusivo
dedicado à repercussão do pensamento de Gaston Bachelard no Brasil. Recolhi cópias
xerografadas de dezenas de livros e revistas sobre Gaston Bachelard, e de trechos de obras
ainda não traduzidas para o português, entre elas uma outra tese de doutorado de Bachelard
defendida no mesmo período e que é uma pesquisa sobre a vida científica na França nos
séculos XVIII e XIX, apresentando a contribuição das pesquisas de A. Comte e do
positivismo à Física moderna.
56
Universidade da Borgonha
Dijon 18/01/07
57
3. Fundamentos fisiológicos dos processos imaginativos
Neste capítulo procuraremos aprofundar a descrição dos mecanismos perceptivos da
imagem, abordaremos a estrutura perceptiva do indivíduo e buscaremos acrescentar novos
elementos ao modelos apresentado por Bachelard, como antigas abordagens filosóficas
gregas sobre o tema e as teorias da escola conexionista, também conhecida como escola de
santiago (A. Damásio, D. Dennett, H. Maturana, F. Varela, H. Atlan)
O modelo epistemológico de Gaston Bachelard descrito no Ensaio apresenta o
conhecimento como uma cadeia de movimentos que envolvem o sujeito conhecedor e o
objeto em vários níveis de interação que se iniciam na representação celular, nas estruturas
perceptivas até chegar na elaboração do conceito, atividade do espírito. O Espírito humano
é o centro da vontade e local das abstrações. Esse papel de reelaborar as impressões
celulares básicas do fenômeno percebido, atualizar esse fenômeno e reelaborá-lo
internamente utilizando os dados da memória é a base do processo imaginativo. A
constante reelaboração da percepção é o pensamento.
No Ensaio, sua obra inicial, não há uma descrição densa dos processos
imaginativos, questão na qual Bachelard irá se especializar nas obras futuras. Mas há
algumas indicações importantes. A pretensão desse capítulo é apresentar o problema
epistemológico da caverna de Platão, a oposição que Bachelard apresenta no Ensaio e a
teoria do imaginário de ambos. Temos uma pergunta inicial; qual a importância dos
processos imaginativos para a construção do conhecimento científico?
Sabemos que a imaginação é um dos recursos mais importantes para o
conhecimento humano, e a imaginação surge exatamente da relação que o ser humano pode
traçar entre a imagem da realidade que ele percebe e as causas dos fenômenos que geram
tais imagens. Imaginação pode ser tomada como sinônimo de criatividade, e nesse sentido a
ciência é ricamente imaginativa, pois é criativa e fecunda em termos de resoluções, novos
temas, mecanismos diferentes, abordagens, linhas de pesquisa. Imaginação também pode
ser entendida como a faculdade de gerar imagens, imaginar como sintetizar impressões.
Essa tentativa de explicar os fenômenos do mundo interpelando sua imagem e
gerando internamente novas e abstratas imagens desse fenômeno é característica do ser
humano e constitui um dos elos da aproximação que os conceitos científicos, sempre
58
imaginéticos, possuem. Trata-se da mesma aposta grega de que o exercício da razão
poderia levar ao melhoramento do ethos. Mas para Bachelard os meios para isso parecem
ser mais variados do que para Platão. A técnica que gerou o avanço tecnológico da
informática de silício estava apenas começando no tempo de Bachelard, mas a idéia de
virtualidade já era discutida em idiomas como o francês e o alemão. O conceito de imagem
é diferente nas duas filosofias. Na filosofia de Platão, pelo que sabemos, a imagem é um
arbitrário estético de uma outra condição de ser, a essência, o motor. Na Filosofia de
Bachelard, a imagem é a forma como os mecanismos do mundo se apresentam, e a relação
entre o sujeito do conhecimento com os objetos móveis no universo de coisas e fenômenos
é determinante. Mas isso merece uma investigação mais apurada, se estamos falando da
história da filosofia do conhecimento, e mesmo da filosofia da ciência. Falando sobre
Platão, um filósofo diz:
(...) no curso de uma pesquisa construtiva, a Imagem pode se
desenvolver em uma progressão contínua e ascendente. Nas
outras partes, o método dialético liga as hipóteses, aqui ele se
apóia nas opiniões correntes, tradicionais, e nas imagens.
43
Por esse motivo, a reflexão filosófica deve voltar sempre às disposições naturais
dos cães de guarda. Uma metáfora para falar da concentração, do esforço do pensamento
objetivo. É como se Platão sugerisse que é necessário se fazer, antes de qualquer decisão
política, uma epistemologia. O instrutor deve saber quais são os caminhos do
conhecimento. Para que educar não seja simplesmente uma ação robótica, mas que amplie
o espírito humano:
(...) Uma imagem, a dos cães de guarda, guia a seqüência do
estudo. É preciso examinar em primeiro lugar as disposições
naturais dos guardiões, depois a sua educação. Esta educação, de
acordo com a tradição, se divide em música e ginástica, as quais,
por sua vez, comportam subdivisões tradicionais.
44
O que Platão entendia por conhecimento? Se seus ensinamentos tão antigos ainda
podem ser redescobertos, uma das coisas mais importantes é o argumento sobre o
conhecimento. Por que a epistemologia foi a grande descoberta da filosofia diante dos
políticos retóricos, dos advogados. Um filósofo deve saber alguma coisa sobre os
59
mecanismos do conhecimento para ter uma boa filosofia, essa é a recomendação. E
Bachelard parece concordar, pois sua primeira obra é um texto de epistemologia, só depois
surgem os textos poéticos. Temos então duas idéias de conhecimento, que se levadas a sério
vão gerar duas idéias sobre os fundamentos fisiológicos dos processos imaginativos.
Se um professor pretende utilizar o cinema como um veículo, ou como conteúdo de
alguma discussão, ele necessita, como obrigação de sua função, compreender e defender
alguma epistemologia para seu trabalho? É legítimo perguntarmos isso? Dotados dessa
epistemologia, podemos propor os momentos e etapas de um processo educacional, para a
compreensão de algum enunciado científico ou a aquisição de algum hábito cultural?
Duas epistemologias não se rivalizam, mas apresentam dois modelos diferentes. Ao
discutí-los, vamos nos aproximarmos de uma visão mais minuciosa da educação e da
mediação da imagem na educação.
Vamos observar a epistemologia de Platão. O trecho mais importante é a riqueza da
analogia entre a capacidade humana de conhecer e o estado de estar em uma caverna.
Estruturalmente, o corpo humano não é o local absoluto do conhecimento, da capacidade de
conhecer:
(...) a maioria dos homens modernos aceita como coisa assente
que o conhecimento empírico depende ou se deriva da
percepção. Há, no entanto, em Platão, e nos filósofos de outras
escolas, uma doutrina muito diferente, isto é, que não há nada
digno de chamar-se “conhecimento” que se derive dos sentidos,
e que o único conhecimento real diz respeito aos sentidos.
Assim, 2 + 2 = 4 é um conhecimento genuíno, mas a afirmação
de que a neve é branca é tão cheia de ambigüidade e de incerteza
que não pode encontrar lugar entre as verdades do filósofo.
45
O ser humano materialmente se compara a uma caverna. Há outras dimensões do
universo, coisas que não podemos ver, por causa da precariedade de nossa capacidade de
pensar. Temos acesso mais às sombras do que ao fenômeno em si. Isso representa a crítica
ao empirismo. O que podemos saber com os órgãos do corpo é muito pouco. Apenas saídos
da caverna é que podemos contemplar as duas coisas mais importantes: nossa própria
episteme, e a finalidade ética da sabedoria, que é a educação. Essa é a teoria conspiratória
que compõe o filme Matrix. O corpo como simulacro da caverna tecnológica
contemporânea.
60
A verdade da descoberta de Platão ignorou historicamente as descobertas sobre a
microbiologia que os cientistas da década de 90 do século XX, nos Estados Unidos e
América Latina realizaram e polemizaram. A verdade de Platão é antiga, possível de ser
redescoberta por qualquer filósofo de língua grega, ou também das línguas derivadas, por
conter raciocínios matemáticos. A matemática que era a ciência filosófica mais importante
na sua época. Ainda para Bachelard, a matemática é a ciência mais ilimitada, pelas
inúmeras possibilidades de quantificação e classificação que a matéria pode ter. Essa
questão está diretamente ligada com outra, apresentada por Bachelard no Ensaio. A
matematização da realidade não acontece apenas no espírito, na raiz do processo de
abstração. Essa matematização acontece nas células que compõem os órgãos de percepção.
Na experiência empírica. Ao menos essas operações podem ser medidas com cada vez mais
precisão. E a medição é um dos critérios de materialidade possível, de objetividade. O
cinema é a prova concreta de que o homem pode matematizar a imagem e transforma-la em
informação digital, em uma série de outros formatos eletrônicos, simulacros tecnológicos
que uma vez alimentados de energia abrem as janelas e florecem. Para um Platão digital,
podemos dizer que a imagem é matematizável, ainda que a paisagem não o seja. A
paisagem é o engano, são as sombras, a estética é instável.
Diríamos então que uma primeira diferença dessas duas epistemologias é a de que,
na de Platão os processos matemáticos tinham origem no espírito. Já para Bachelard, esses
processos são celulares também. Bachelard com uma certa vantagem de já possuir
considerável volume de conhecimento oriundo das pesquisas na biologia e no cinema.
Segundo Bachelard,
(...) depois de escolhida a unidade de medida e de serem medidos
os objetos, é possível fazer com os símbolos que substituíram os
objetos todas as operações aritméticas diretas (soma,
multiplicação, potenciação) em qualquer ordem e qualquer
número que seja; nunca as conclusões estarão erradas e a
experiência de controle sempre legitimará o cálculo.
46
O ser humano só tem acesso ao cinema dos objetos, ao cinema da vida social, uma
vez que não temos acesso direto à dinâmica constitutiva dos fenômenos, pelas limitações de
nossa capacidade cognitiva. Bachelard não parece concordar com o Platão do texto A
República, quando o mestre grego fala da distância entre a imagem e a sua causa, a
61
essência.
A distância para Platão é transponível pelo exercício da filosofia: o próprio
procedimento filosófico de investigar é o conteúdo de um saber sobre as causas. Para
Bachelard, esse encontro não é possível, pela distância que o real está de nossas
capacidades cognitivas
47
. Platão despreza a imagem, que são apenas sombras, engano dos
sentidos. Para Bachelard as imagens são a porta para os mecanismos; meio caminho para
uma impossível viagem de encontro ao real; uma aposta humana de melhoria de vida,
buscar a aproximação imperfeita.
É claro que o Cinema é uma montagem. O cinema é uma realidade falsificada,
elaborada com uma intenção particular. O real para Bachelard é um grande arbitrário
irracional, que pode ser parcialmente decodificado pelo esforço intelectual humano. Mas
tanto no cinema da cultura, quanto na cinemática das imagens da natureza, do mundo, a
compreensão de como a percepção capta esse movimento é fundamental.
A velocidade da luz é diferente da velocidade do som; dessa forma, são dois
veículos diferentes, e chegam ao organismo em tempos diferentes; o que nos leva a pensar
que o organismo, o ser humano, ao ver uma imagem de cinema, recebe em tempos
diferentes as ondas sonoras e as fractais luminosas. Mas o que realmente acontece?
A resposta a essa pergunta é dada hoje por biólogos. Em tempos passados ela era
dada pelos filósofos. A biologia tem melhores argumentos para responder às perguntas
sobre o conhecimento. Entretanto as religiões também oferecem formas de se entender as
coisas, argumentos políticos, argumentos econômicos, argumentos eclesiais. Os gregos
começaram a filosofar em língua grega sobre a necessidade de se retirar do discurso
filosófico todas as formas de totalitarismo, todas as formas de argumentos únicos. A
discórdia entre Heráclito e Lísias é característica. No livro Fedro, Platão apresenta a
disputa. Heráclito era um filósofo amargurado e solitário, dado à bebida, como discípulo de
Dionísio. Lísias era um sofista, um psicólogo do comportamento, que encantava os jovens e
era muito popular em Atenas. O Sofista Lísias defendia a estética como a ciência mais
necessária. Já Heráclito ensinava seus discípulos a observação da cultura. A diferença entre
os dois está no fato de que para Lísias havia sempre uma maneira fixa de tratar os
comportamentos humanos, como o amor. Para Heráclito as culturas humanas eram sempre
instáveis, e com elas o conhecimento;
62
(...) a doutrina do fluxo perpétuo, tal como a ensinou Heráclito, é
dolorosa, e a ciência, como vimos, nada pode fazer para refuta-
la. Uma das principais ambições dos filósofos foi reviver
esperanças que a ciência parecia haver matado. Os filósofos,
portanto, procuram, com grande persistência, algo que não esteja
sujeito ao império do tempo.
48
A biologia hoje, nos dias de hoje, teria mesmo o direito de filosofar sobre o
conhecimento? Não é possível saber. As explicações biológicas da vida não têm ajudado a
espécie humana a impedir as tragédias populacionais, como a extinção maciça de seres
vivos nas sociedades biotecnocapitalistas. Entretanto, na análise da imagem, do
conhecimento, da visão, do aprendizado, em todas essas áreas, a ciência tem oferecido boas
respostas. O que podemos dizer é que os inventores da filosofia não tinham acesso a uma
série de dados que os atuais aparelhos tecnológicos podem oferecer. A medição possível
pelos aparatos tecnológicos possibilita fragmentar em laboratórios as gamas da realidade, e
compreender seus mecanismos, elementos, e todas as estruturas que a compõem. Os gregos
tinham suas suposições, mas foi apenas em Aristóteles que a biologia funcionou como uma
estrutura de linguagem, de descrições principalmente. Segundo Aristóteles
(...) Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer:
uma prova disso é o prazer das sensações, (...) a visão é de todos
os sentidos a que melhor nos faz conhecer as coisas e mais
diferenças nos descobre, (...) os outros animais vivem de
imagens e recordações, e de experiência pouco possuem, (...) a
ciência e a arte vêm aos homens por intermédio da experiência,
(...).
49
O vocabulário biologicista de Aristóteles é semelhante ao discurso científico atual,
por causa das palavras que ele usa, por causa da sua descrição naturalística das funções das
idéias. Quando a capacidade de conhecimento do ser humano pode ser investigada pela
biologia, ela deveria ser, dizem muitos hoje. Mesmo que nenhum fundamento ético seja
discutido. Podemos citar o filósofo Habermas como um bom filósofo preocupado com a
biologia. Segundo ele, nossa ética, nossos princípios públicos, que chamamos de
democrático, devem se voltar para nossas relações com a natureza, com a ecologia.
Toda essa epistemologia inicial é necessária para que compreendamos, como
Bachelard, que as percepções que temos do mundo à nossa volta são reelaboradas por uma
entidade central, um ente que é quase metafísico. Esse ente é o responsável pela unificação
63
dos tempos da imagem e do som, para que não os percebêssemos dessincronizados, como
nas dublabens podemos perceber. No caso das dublagens, a montagem é feita sobrepondo a
imagem ao som. Podemos relacionar a epistemologia de Bachelard com a compreensão do
engodo que a montagem cinematográfica causa em nós. A caverna de Platão é na verdade a
própria ilusão que a imagem em movimento nos causa. Seria interessante associar a
descrição que Platão faz da caverna ao cinema, à estética do cinema:
(...) agora imagina a maneira como segue o estado da nossa
natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina
homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com
uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância,
de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem
mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes
os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira
acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e
os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao
longo dessa estrada está construído um pequeno muro,
semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam
diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que
transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas
de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de
matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e
outros seguem em silêncio. E se a parede do fundo da prisão
provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não
julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles, (...)?
50
O que ele fala de sombras é na verdade a ilusão. Uma ilusão que o olho humano
aceita. Sabemos que a imagem do cinema parece ser um contínuo, mas são vinte e quatro
quadros por segundo apresentados em uma seqüência. A velocidade com que os quadros
são trocados um pelo outro dá a impressão ao cinespectador de que se trata de uma
realidade, de que o movimento não poderia estar interrompido, quando na verdade está.
Ora, o que Platão fala é que os órgãos da percepção podem ser enganados, desde a
infância, como na verdade são; no filme matrix, é apresentado o extremo dessa ilusão; não
só os olhos podem ser enganados, mas todo o sistema nervoso, todo o organismo. Uma vez
que o corpo humano não funciona sem uma mente, e todos os órgãos que fazem funcionar
essa mente são possíveis de serem enganados, como são enganáveis os olhos, então a mente
pode ser uma ficção sobre o nada.
A dublagem dos filmes estrangeiros é uma forma singela dessa possibilidade de
64
ilusão a que estamos sujeitos. Vendo um filme norte-americano dublado temos a impressão
de que se trata de uma correspondência simples entre o som e a imagem. O que podemos
dizer é que no mínimo isso é ideológico. O problema ético da ideologia, do exercício do
poder de uma forma dissimulada em naturalidade. Ainda que acessemos a língua original
do filme, se Inglês ou Francês, que compreendamos originalmente, não ultrapassaremos um
certo nível de simulação. Por esse motivo estamos condenados a um simulacro. Para Platão
o simulacro é a caverna, o engodo. Por isso filosoficamente não temos como saber se o
filme matrix é uma possibilidade real ou não: como nos diz Platão, os que estão dentro da
caverna não têm consciência disso. Segundo as previsões mais otimistas, as previsões da
Ficção científica, o homem só sairá da caverna no ano 2204. De acordo com os mesmos
tipos de previsões, o grande colapso da humanidade ocorrerá no ano de 2019, quando as
máquinas de alta biotecnologia e inteligência artificial decidirem cobrar seus direitos junto
à comunidade humana
51
. Se a linguagem é uma extensão da fisiologia do indivíduo, e por
ela criamos a ficção, essa última é uma parte da realidade em que o indivíduo opera, mesmo
as ficções que apontam para distopias, como as que citamos. Utilizar a ficção no ensino de
ciência é, portanto, não uma obrigação do professor, mas um instrumental de operações
sobre realidades possíveis, um recurso simulatório de situações, de referências ligadas ao
cotidiano pelas imagens, pela linguagem. O mundo real pode não ser controlado por
máquinas inteligentes, mas muitas máquinas inteligentes estão ao nosso redor, e fantasiar
essa nova relação do homem com suas criações pode ser útil para ensinar a ciência, os
modelos científicos, as teorias importantes.
O ensino de ciência muitas vezes é uma realidade estática, conceitual, é
apresentada aos estudantes. Quando o olhar se volta para o grande dinamismo do mundo,
da sociedade, esse dinamismo permanece incompreensível. A idéia de que o conhecimento
é uma aproximação, e que é na cinética do mundo, na irregularidade, nos erros, no inexato
que ele deve se aprofundar, rejeitando a imobilidade do saber faz com que o ensino
necessite trazer ao estudante esses elementos dinâmicos. A razão da abstração do espírito
sobre a representação celular é a geração de imagens de realidade onde o organismo possa
operar. Por esse motivo, os conceitos lingüísticos, as descrições científicas, evocam
imagens. Pena que às vezes sejam imóveis estáticas de um mundo que não se comporta. O
estudo de biologia, por exemplo, que trata com uma série de entidades móveis, vivas,
microscópicas, irracionais que existem no limite de nossas capacidades perceptivas, deve
65
ser capaz de possibilitar a abstração, novas atividade do espírito dos estudantes em buscas
de ampliar sua superfície de contato, sua compreensão e aproximação:
(...) As propriedades finitas, tanto na ordem da quantidade como
na ordem da qualidade, são apenas um instantâneo tirado por
nós, arbitrariamente, do fenômeno móvel.
52
Bachelard diz que o real é descontínuo, a continuidade é uma realidade gerada pelas
representações dinâmicas que no conhecimento podemos fazer. Por esse motivo o mundo
nos surge quase sem lacunas para os níveis normais de percepção, o que não ocorre quando
tratamos entidades microscópicas, ou cósmicas, de dimensões muito inferiores ou muito
superiores. O sincronismo entre a imagem e o som, é uma construção do sujeito
conhecedor? Esse sincronismo não existe no universo?
Provavelmente as pesquisas sobre a relatividade do tempo e do espaço geraram essa
perspectiva. De alguma forma, quando fazemos como Bachelard nos pede, voltamos para a
percepção e a observamos melhor, podemos encontrar nela o princípio de objetividade. A
primeira tentativa de limitar a subjetividade consiste num retorno à percepção. A
objetivação individual ganha uma expressão cultural na linguagem do indivíduo, que tem o
poder de nomear, adjetivar, criar predicados para os objetos, dados e estímulo, fazer surgir
nossa realidade:
(...) como é pura impossibilidade cair, mesmo que por acaso, no
conhecimento exato de uma realidade, já que a coincidência
entre pensamento e realidade é um verdadeiro monstro
epistemológico, é indispensável que o espírito se mobilize para
refletir as diversas multiplicidades que qualificam o fenômeno
estudado, (...). Os limites de um fenômeno e de uma nuança são
imprecisos.
53
Se não fôssemos capazes de um sincronismo para o som e para a imagem, não
perceberíamos o movimento, a cinética da realidade. No Cinema, pela técnica, que
reproduz alguns mecanismos da realidade, temos também a dissociação e a montagem das
duas coisas, som e imagem, como um grande organismo, um grande espírito
bachelardiano, as máquinas cinematográficas representam certas realidades. Se
internamente não tivéssemos essa capacidade de assimilação de dois tipos de
representações de natureza diferente, veríamos as pessoas conversando como ventríloquos,
66
percebendo o som chegar sempre um pouco mais tarde, como nas transmissões ao vivo, via
satélite de imagens e somos em aparelhos antiquados, que sempre apresentavam certo
ventriloquismo. Para Bachelard, o real é descontínuo e caótico, passível de ser parcialmente
matematizado, geometrizado, quando muito, mas um campo aberto para inumeráveis
movimentos de aproximação do conhecimento humano. Os espíritos do homem e da
mulher têm a capacidade de objetivar certos movimentos do real, transforma-lo em
realidade, uma realidade provisória, pois os novos contatos da aproximação gerarão,
mesmo através dos erros, novas realidades.
(...) O conhecimento, em termos absolutos, é portanto marcado
por um fracasso irremediável. Mas o ritmo de seu
aprimoramento é prelúdio do real. A realidade é o pólo da
verificação aproximada, e, em essência, o limite de um processo
de conhecimento, e só podemos defini-la corretamente como o
termo de uma aproximação.
54
O homem precisa do conhecimento sobre o seu meio externo para que
posteriormente esse conhecimento seja utilizado na obtenção de informações sobre a
própria consciência. A primeira conseqüência positiva do conhecimento para a vida do
sujeito é o aperfeiçoamento de sua estrutura perceptiva. São órgãos que possuem estados
alterados quando se situam diante da fonte emissora de impulsos materiais que cada
estrutura pode decompor e registrar (retificar). Num desses momentos de registro, de
memória, surge na teoria de Bachelard a figura do espírito. O que seria Espírito? Como já
apresentamos no capítulo um, o espírito é o tônus psicológico. Não é possível um registro
mecânico do dado assimilado. O espírito utiliza a abstração, o remodelamento das
impressões do dado, a imaginação, para criar a memória e a emoção correspondente a esse
objeto. Portanto a imaginação é uma etapa da construção do conhecimento, é o momento de
representar o dado que o sujeito imagino, que ele como sujeito conhecedor constrói uma
imagem para o objeto. Uma imagem orgânica é sempre uma mudança biológica no corpo
do pesquisador. Vamos localizar a imaginação como uma etapa mais adiantada do
processo; primeiro temos que ter estruturas conectivas operando, reativas com o ambiente.
A cultura de uma comunidade humana é responsável por possibilitar formas de registro das
conexões, formando uma grande variedade de comportamentos aceitáveis e possíveis.
Em algum momento da descrição científica, a imagem esteve presente. Primeiro
67
como estímulo material que os órgãos perceptivos assimilam, e depois como uma estrutura
de reconhecimento, de re-apresentação, uma maneira em que o pensamento aponta para o
objeto. A imagem se apresenta ao conhecimento científico no próprio mecanismo, no
próprio fenômeno. Se nos portarmos como Isaac Newton, rejeitando as formas substanciais
e as qualidades ocultas, temos muito a conhecer pela observação do movimento dos
objetos, da vida em movimento. O que significa deixar as qualidades ocultas do fenômeno?
Significa não perguntar, como os primeiros acadêmicos, sobre as razões de existência dos
fenômenos, e sim nos dedicar a encontrar maneiras de descrevê-los e reproduzi-los para
finalidades culturais. Foi com essa tradição que a ciência chegou a Bachelard, que nos diz:
não abordar a fenomenologia dos eventos científicos não é a solução para melhorar nossa
compreensão do universo. Temos que filosofar sobre o inexato. Aquilo que não medimos, o
que não alcançamos com nossos instrumentos técnicos e nossos procedimentos lógico-
matemáticos, e que só conseguimos pela abstração. A imaginação é um estado de abstração,
de devaneio, necessário para a descrição científica. Um procedimento que não tem razão de
ser medido, ou avaliado sistematicamente pelas instituições educacionais da cultura. Não
tem essa necessidade por que é uma estrutura, e não algo que possa ser evitado.
Em síntese, o que Bachelard nos faz pensar é que imaginar é uma etapa necessária
materialmente para o conhecimento. A imaginação está ligado ao mecanismo de
retificação, a palavra que Bachelard usa para representação.
68
4. Pedagogia, Epistemologia e Cinema
Baseando-se na proposta teórica de Bachelard de que o conceito científico é um elo
de aproximação do sujeito com a realidade onde ele atua, e que a construção desse
conceito, a resolução desse objetivo de descrever um fato ou fenômeno real também se dá
por aproximações, descrições que se aperfeiçoam ao longo da pesquisa, buscamos
incorporar o cinema como uma realidade onde o conceito científico pudesse se aperfeiçoar
e levar o sujeito conhecedor, o estudante a reconhecer nas posteriores leituras do filme, ou
em fatos que remetessem ao filme o conceito científico. Para Bachelard quando o estudante
se familiariza com o conhecimento científico ele passa a tratar os fatos da sua realidade
utilizando as possibilidades descritivas desse conceito. Por exemplo ao vermos um arco-iris
uma série de fruições existenciais podem ser provocadas, mas após estudarmos a ótica de
Newton, ou lermos um romance de Vitor Hugo, o mesmo arco-iris se torna mais amplo de
perspectivas, de indagações, de idéias e de conclusões. Mas esse reencontro com o arco-iris
depois de estudos e literaturas é apenas um movimento de aproximação. O que Bachelard
quer nos mostrar é que esse movimento não termina nunca, pois a distância entre o que
sabemos e a realidade permanece grande. Quando o desafio é educar um grupo de
estudantes para se preparar profissionalmente, como é o caso de um curso de pedagogia,
uma série de conceitos científicos, dos campos da psicologia, da antropologia, da história
da educação e da filosofia são primordiais para o sucesso profissional e para a realização
das utopias pedagógicas. O desafio de trazer o saber da ciência para estudantes de
pedagogia tem o objetivo de tornar suas práticas mais eficientes, mais amplas de
perspectivas, uma vez que a prática educativa não pode estar hermética a poucos conjuntos
de atividades, uma vez que o publico da educação é composto de uma série de culturas e
condições político-sociais diferentes.
O desafio empírico foi o de ensinar certos conceitos científicos, na área de
antropologia a grupos de estudantes de pedagogia. Esses conceitos foram estudados e
trabalhados em aulas expositivas, e foi escolhido o cinema como a realidade onde
testaríamos a aproximação ou não desses conceitos. O objetivo era o de verificar o grau de
reconhecimento do conceito diante das imagens que o cinema proporcionava. Escolhemos
um filme futurístico (não tão futurístico assim, pois retrata uma realidade em 2019).
69
Utilizamos a tese de Bachelard para iluminar os passos e compreender qual era a malhor
estratégia para provocar a aproximação do conceito para om a realidade. Em alguns grupos
estudamos o conceito primeiro e vimos o filme depois. Em outro grupo fizemos o contrário.
Ao final buscamos observar qual grupo realizou melhor a aproximação, ou seja, qual grupo
reconheceu nas imagens e no enredo do filme os debates e questões da teoria. Partimos do
pressuposto que o cinema, o filme, com é uma realidade aberta, acolhe uma série de
interpretações, o que poderia favorecer o movimento do saber.
Em um determinado momento do filme Blade Runner (USA, 1982), um robô
inteligente se volta para um ser humano e lhe responde como Descartes: penso, logo existo.
Indagação até agora só possível de ser feita por um ser humano. O universo tecnologizado
do filme se passa em uma das megalópolis mundiais desérticas e nebulosas do ano de 2019.
O enredo nos provoca questões epistemológicas importantes, como por exemplo a relação
entre a Memória e a personalidade, a memória e o conhecimento.
A extraordinária capacidade de simular um ser humano, realizada por uma
biomáquina, faz o ser humano encontrar um novo espelho para se ver. O conflito
existencial da máquina reproduz o que acontece ao próprio homem. O filme Blade Runner
apresenta três humanidades; a humanidade humana, as máquinas humanóides e a natureza
antropomorfizada (no caso, o cimento, o aço, o asfalto e a destruição ambiental). Nas três
formas de ser humano, foi a ação da ciência que acarretou a tragédia. As três humanidades
do futuro entrarão em guerra; o ethos humano, triplicado, mesmo assim não evitará o
conflito. Na verdade a trindade será o próprio inferno. Inicialmente, temos uma visão
negativa do impacto social da ciência no futuro.
70
A mercantilização de órgãos humanos, produzidos em laboratório, pode ser a
solução contemporânea para uma série de problemas, como as intermináveis filas de
pacientes aguardando transplantes e as polêmicas sobre a doação e comercialização de
órgãos. Com a tecnologia de transplantes de órgãos, acelerada desde a década de 80 do
século XX, o paradigma futuro daquelas técnicas parece ter influenciado os produtores do
filme, de 1982.
Em 2019, para a ficção, não apenas será possível gerar órgãos em laboratório, como
também será possível comercializá-los sem impedimentos éticos ou morais. O filósofo
Habermas afirma que este já é o problema de nosso presente. A comercialização de órgãos
eugenicamente tratados desloca algumas razões. A profissão de desenhista genético, por
exemplo, apresentada no filme, também já é uma realidade.
Outra projeção da ficção é a construção de órgãos complexos como o cérebro em
laboratório, que nos leva a pensar sobre a divisão entre corpo e mente, e outras polêmicas.
A construção de um cérebro em laboratório, por técnicas de desenvolvimento de células
tronco, por exemplo, poderia evoluir a tal ponto. Atualmente os cientistas já conseguem
desenvolver tecidos e órgãos menos complexos como orelhas e epiderme. Desenvolver um
cérebro fora de um corpo pode ser a utopia, mas será que isso, associado ao
desenvolvimento da inteligência artificial e de organismos robóticos, gerará um mundo
parecido ao de Blade Runner?
Tratados como mercadoria, produto tecnológico, e empregados em tarefas de
imigrantes, como acontece nos países industrializados com relação a estrangeiros
humanos, surge uma nova forma de escravidão, os escravos robôs. A escravidão é um
hábito antigo da humanidade, e com as máquinas inteligentes acontecerá o mesmo, no
sentido de que a própria subjetividade não lhes pertencerá. Uma máquina pensante não
deve existir para si. Ou deve?.
O desenvolvimento da robótica e dos transplantes de órgãos da década de oitenta
parecem ter sido pontos de referência para as projeções de Blade Runner. Também a
acelerada destruição ambiental e o agravamento das relações do homem com seu meio.
Os Princípios éticos da humanidade podem ser partilhados com as criações
tecnológicas inteligentes? O problema da existência humana no filme começa a ser tratado
na forma de diálogos, o homem e a máquina falando sobre problemas tipicamente
71
humanos.
Veja o exemplo de diálogo em que a existência humana é abordada no filme:
Contexto: um robô entra no quarto do empresário
responsável pela sua criação, surpreendendo-o:
--- é difícil encontrar o criador. (robô)
--- em que Ele poderia ajudá-lo? (homem)
--- o criador conserta o que faz?
--- você quer ser modificado?
72
--- pensei em algo mais radical.
--- qual é o problema?
--- morte.
--- temo que esteja fora de minha jurisdição.
--- quero viver mais..., pai!
--- coisas da vida, ... alterar a evolução de um sistema orgânico é fatal. Uma seqüência
codificada não pode ser alterada.
--- por que não?
--- no segundo dia de incubação, as células que sofreram mutações atávicas originam
colônias atávicas, como ratos abandonando um navio. E o navio naufraga...
--- e recombinação ESM?
--- já tentamos. O etil-metano sulfonado é um poderoso mutagênico; gera um vírus tão letal
que a cobaia morreu na mesa...
--- e uma proteína regressora que bloqueie a célula?
--- não impede a duplicação, mas causa um erro na mesma, e a nova célula de DNA
formada contem uma mutação e novamente o vírus. Mas tudo tão acadêmico... Fizemos o
melhor com você, ...
--- mas não pra durar.
--- a luz que brilha demais, consome-se rápido! E você brilhou muito. Olhe só; o filho
pródigo. Você é uma obra e tanto. (...)
A orfandade que o indivíduo humano sente diante de sua morte pode ser
experimentada pela inteligência artificial? Ou a angústia da existência deve ser suprimida
totalmente do conjunto de códigos que compõem os softwares responsáveis pela
inteligência artificial? Se dissermos que o temor pela morte poderá ser retirado do
funcionamento do intelecto de uma máquina inteligente, então o estado de nirvana e a
suposta felicidade com a vida em sua curta existência poderão ser alcançadas por uma
consciência artificial (humana?). Entretanto, no filme a condição de escravos com que as
novas consciências se deparam levam-nas a perceber não terem vivido totalmente suas
vidas, pois exerciam trabalhos de assassinos a prostitutas, tudo para humanos filhos de
homens. O curto espaço de libertação, quando um grupo de robôs foge das colônias e volta
para a terra, é o momento das reflexões filosóficas certas para resolver o problema crucial:
73
a vida curta, a vida perdida.
Assistimos ao filme e pautamos os debates pelas questões que expusemos acima.
Adimitimos o filme como uma realidade que se abria para nós e que nos dizia algo. As
impressões imediatas que tínhamos das cenas e da história correspondiam ao primeiro
movimento de aproximação de Bachelard. Imaginamos que a teorização poderia nos
impulsionar a reconhecer nas imagens nosso conhecimento sobre o tema. O tema em
questão era a Ética, matéria do curso de antropologia ministrado aos estudantes de
pedagogia. Um estudo científico da ética e do ethos humano. Para aprofundar o tema e
relacionar o cinema com uma realidade a ser investigada com a ajuda da teoria, a pergunta
inicial foi: qual é o valor de vida de se utilizar um filme como uma aproximação para o
ensino de ciências?
4.1. A Metodologia do trabalho com o cinema
Todas as salas de aula da FAE/UEMG possuem uma televisão e conexão para VHS
e DVD. A Faculdade de Educação da UEMG também possui um acervo com cerca de 100
produções dos mais variados tipos. A faculdade incorporou o uso regular dessas mídias nos
processos de ensino-aprendizado.
O trabalho com o cinema e os conceitos científicos teve dois momentos: um é o do
discurso e o outro o da imagem. O paralelo entre a imagem e o discurso deve acontecer
para que haja um contínuo. A imagem como um prolongamento do discurso e vice versa.
Quando o aluno aprende a se apropriar das imagens com um discurso cinematográfico, ele
se aproxima de entender a ilusão que é o cinema, e entender que há um conteúdo da ilusão.
É nesse conteúdo que estão os estímulos que vão proporcionar a abstração sobre o objeto da
ciência.
O conceito de Ethos se refere às características universais, aos comportamentos e
atitudes mais difundidas entre os grupos humanos das várias sociedades históricas. Esse
princípio originou a busca da formalização desses pontos de igualdade, que chamamos de
Ética. Apresentei o filme Blade runner nas três modalidades:
74
a. Discutir o conceito antes e apresentar o filme de cinema depois
Nessa modalidade o aluno ao assistir ao filme já tem uma bagagem teórica para
reconhecer nas imagens os traços do conceito. O filme passa ser a simulação onde o
estudante pode observar o contexto do conceito. O conceito funciona como um instrumento
de leitura das imagens, e ao mesmo tempo é fixado. Foram utilizadas duas a três aulas de
2hs para desenvolver o conceito de Ethos nessas turmas, busquei argumentos
estruturalistas e fenomenologistas para descrever os comportamentos essenciais do ser
humano, aqueles comportamentos que são observados em todas as culturas e que nos levam
a dizer que há um ethos humano e que por isso uma ética é possível. Nesse sentido ética é
um conjunto de valores mais amplos, compartilhado por todos os grupos humanos. Ao final
da discussão teórica apresentei o filme e disse aos alunos que ali se apresentava uma
situação limite, ficcional, para a existência de uma ética. No filme, esses comportamentos
universais estão em declínio. As várias humanidades abandonaram os princípios comuns.
Os estudantes puderam ver o filme depois do trabalho teórico e utilizaram as cenas do filme
para observar os limites da ética humana. Esse trabalho é recomendado para grupos mais
adultos, capazes de maior abstração. Essa modalidade foi aplicada para estudantes do IV
núcleo formativo, alunos que há dois anos estão estudando já a pedagogia e a antropologia.
b. Apresentar o filme de cinema antes e discutir o conceito depois
Para estudantes de segundo grau e dos anos iniciais do curso superior, vejo
vantagens em apresentar primeiro o filme e depois discutir o conceito científico, por que
podemos usar as imagens do filme para provocar as abstrações iniciais, pelo menos propor
imagens gerais, contexto em que desenvolveremos o assunto. Antes de tratarmos dos
comportamentos mais comuns da humanidade (nosso objetivo no debate sobre a ética),
apresentei o filme Blade runner. O que não é ética está retratado ali através da ruptura e
inconciliação entre duas comunidades humanas, os homens e as máquinas inteligentes, ao
ponto de um grupo caçar o outro violentamente.
c. Desenvolver o conceito ao longo da apresentação do filme de cinema
Essa modalidade é específica para a situação-tv. Nela o filme é parado, ou se
75
apresenta apenas uma cena, ou algumas cenas. Importantes são certas imagens para a
ilustração do assunto. Certos filmes são propícios para isso, como é o caso de Dogville, que
é capitulado. Uma forma de trabalhar o conceito ao longo da apresentação dos filmes é na
forma de dinâmicas de grupo. Uma das turmas em que trabalhei cinema e conceito
desenvolveu atividades em torno dos filmes na forma de dinâmicas de grupo. Foi uma
maneira divertida e descontraída de discutir um conceito científico e utilizar o filme.
No primeiro semestre de 2007, voltei a trabalhar o conteúdo de Antropologia II no
IV núcleo formativo. Como eu já tinha sido professor de Antropologia dessa turma, o IVA
(01 sem/07), iniciamos o conteúdo de antropologia do cinema. Depois de apresentar a parte
teórica do tema, usando alguns conceitos de Massimo Canevacci (1975) e a análise que
Bachelard faz do microconhecimento e do macroconhecimento. Ao utilizar a epistemologia
de Bachelard para falar do uso dos filmes de cinema na construção do conhecimento,
pretendi descrever alguns mecanismos da cognição da imagem.
A imagem do filme funciona como uma realidade para os sentidos humanos. O
juízo sobre a ficcionalidade ou não da imagem ocorre em um outro momento, pela ação do
pensamento. Por isso o sujeito ao ver um filme usa sua capacidade de julgar as informações
que a imagem provocou.
Após a teorização, iniciamos um trabalho com filmes populares, com o objetivo de
estudar o filme e representar através do roteiro e das imagens aquelas estruturas teóricas
que tínhamos falado. Ao longo do semestre letivo, cumprimos três etapas, que descrevo a
seguir. Percebi que ao longo do trabalho com as alunas que a teoria inicial era curta, por
isso ao longo de nossas atividades, sempre que necessário busquei dar esclarecimentos
teóricos.
Apresentamos o projeto de trabalharmos com filmes e análises teóricas para o grupo
de alunas em março de 2007. Levamos o grupo de alunas ao Edifício Maleta, no centro de
Belo Horizonte. Nesse local funcionam várias lojas de vendas de fitas VHS e DVD, com
preços e gostos populares. Eram 26 alunas. Dividi o grupo em 13 duplas, e com um recurso
conseguido disponibilizei dez reais para que cada dupla escolhesse um filme de seu agrado.
Antes de chegarmos ao Edifício Maleta esclareci que se tratava de um trabalho de análise
teórica e apresentação dinâmica dessa análise para o grupo maior. Cada dupla teria 3 h/a
para apresentar o filme e suas conclusões, foi o que combinamos. Escolhemos uma aluna
como relatora para registrar as atividades de cada dupla. As alunas escolheram livremente
76
os filmes. Em anexo à minha pesquisa de dissertação apresento um texto mais aprofundado
feito por uma das alunas do curso de Pedagogia que participou das atividades com os
filmes.
Os filmes que são nitidamente divididos em episódios são mais adequados para a
exibição em sala de aula. Fora os filmes explicitamente feitos para serem exibidos nas TVs,
um filme de cinema em geral é um contínuo. DogVille é um filme norte-americano, filme
lançado em 2003 e dirigido por Lars von Trier. Apresentei o filme DogVille a alunas do
segundo semestre de 2007. O contexto novamente foi o conceito de Ethos. A pergunta
inicial para as alunas foi: Porque nos mitos de origem da civilização ocidental, o gênero
masculino aparece como centro? (os exemplos dados foram Adão, Jesus, Maomé, Buda,
etc.). Propus para as alunas que o filme retratava uma personagem feminina que era
colocada no centro de uma trama semelhante à que tinha envolvido a divindade de Jesus, ou
seja, estávamos analisando o problema do gênero humano. A sociedade ocidental fundada
no privilégio masculino apresenta seus ícones humanos na figura dos homens. Fui
coletando as impressões dos estudantes ao longo da exibição dos nove capítulos do filme.
Apresentava alguns capítulos e parava a exibição para comentários e para um complemento
teórico sobre o conceito de Ethos. Essa modalidade é a mais rica para a situação-tv em
minha opinião. A seguir observemos a evolução da reflexão das alunas. Apresentei uma
questão para respondermos em sala, e apresentei os capítulos do filme, solicitando que as
alunas escrevessem um parágrafo sobre a questão antes e após a exibição do trecho do
filme.
Os seres humanos possuem independentemente da cultura
em que vivem, elementos e identidades comuns. É isso que
nos diz a posição estruturalista na antropologia. Como
podemos descrever as experiências comuns da
humanidade?
(resposta antes do filme)
Sabe-se que embora as teorias estruturalistas assegurem a
existência de elementos comuns entre a humanidade, não se
deve entender no sentido pleno de igualdade de manifestação.
Pressupõe-se que seja ritos e rituais que se assemelham pelos
objetivos que os levam a ser manifestados. Por exemplo, a
língua como veículo de comunicação, todas detém essa
peculiaridade, entretanto cada qual com suas subjetividades.
IVA (2º/2007)
77
(resposta após o filme)
Partindo do pressuposto abordado no filme Dogville pode-se
refrescar a resposta anteriormente dita, no que tange ao ponto
comum existente entre as culturas, entretanto cada grupo social
manifesta de uma forma a partir do que é nato à sua cultura. A
vida humana é uma representação de algo já percebido? É
possível fazer escolhas? Ou se escolhe a partir de uma
influência?
Para esta aluna, o filme gerou uma indagação. Aparentemente suas certezas iniciais
começaram a ficar relativizadas. A aluna termina uma reposta com uma pergunta. Vejamos
uma outra reflexão dos estudantes:
(resposta antes do filme)
As identidades e os elementos comuns que são encontrados
entre os grupos humanos de diferentes culturas, segundo o
estruturalismo é devido a estrutura de pensamento comum a
todos os homens, ou seja, o caminho que o homem percorre na
construção de seus conhecimentos. (...), portanto a experiência
comum da humanidade é devida a tal estrutura de pensamento,
que é comum.
IVA (2º/2007)
(resposta durante exibição do filme)
A realidade é aquilo em que todos acreditam. Não existe uma
realidade em si, e por si só verdadeira, acima do bem e do mal.
Tudo que acreditamos é invenção humana. Mas é interiorizado
de tal forma, que é impossível pensar que não é concreto no
qual acreditamos.
Esse segundo exemplo também revela que o filme gera uma certa perturbação nas
concepções anteriores do estudante. A particularidade do filme DogVille é a de que há
apenas um cenário, e ele é dividido apenas imaginariamente. O diretor reconstrói numa
atmosfera de teatro as relações fundamentais humanas, que são as que o Estruturalismo
admite como universais. O estudante percebe que há sim problemas e soluções universais
da espécie humana para os dilemas individuais como amor, ódio, ciúme e dor. A variação
de comportamentos com relação a essas emoções e pensamentos humanos é que é o motor
da especificidade de cada grupo social. No instante de discutirmos a teoria, diferenciamos
78
os comportamentos universais humanos como Ethos, e s comportamentos particulares de
cada grupo como Habitus.
O curso de Pedagogia tem a finalidade de formar o profissional da pedagogia, o
Pedagogo, que tem como uma de suas atribuições profissionais a gestão de processos de
ensino e o debate sobre a Ética na educação. Para além da ética na educação, a intenção da
fixação do conceito de ethos também deve levar o estudante a reformular as análises da
própria cultura onde ele está inserido. Alguns alunos apresentaram suas conclusões após o
trabalho com os filmes. Apresento alguns comentários que para mim representam essas
análises amadurecidas pelo conceito científico discutido nas imagens do filme Blade
Runner:
(...), assim somos nós, colocamos na memória do computador
apenas o que queremos ou julgamos ser importante. A cultura
nos ensina que não precisamos do outro homem. Hoje as pessoas
se relacionam mais com a máquina do que entre si. O homem é
projetado para viver em uma sociedade capitalista. Este homem
passa a desenvolver tarefas maquinadas para suprir sua
necessidade de consumo. Começa a viver como manda a
sociedade, passa a viver manipulado pela mídia. O homem
construiu a máquina para que a mesma fizesse seu trabalho. No
novo ethos capitalista o homem tem que ter o controle. Porém a
criatura consegue superar o criador. A máquina supera o homem
e o deixa dependente da mesma. Hoje é a máquina que tem o
poder de controle sobre o homem.
IIE (2º/2006)
(...) O Ethos dessa sociedade se caracteriza pela pobreza que se
encontrava a população; pelas constantes propagandas em telões
no centro da cidade incentivando o consumismo e
consequentemente promovendo a alienação dos indivíduos, (...)
IIB (2º/2006)
(...). É mostrado três tipos de discurso no filme: a verdade
absoluta, o discurso científico e o discurso da religiosidade. Os
blade runners acreditam (a verdade absoluta) que os replicantes
não tem sentimentos, sendo uma ameaça a vida. Já o discurso
científico Afirma que os replicantes foram criados para serem
perfeitos, e os que adquiriram algum defeito (não querer mais ser
escravo) eram eliminados. E o discurso da religiosidade (tudo é
muito maior do que o homem pode imaginar) é a crença de que o
replicante pode desenvolver um sentimento a partir das imagens
que ele vai memorizando (passado).
IIB (2º/2006)
79
4.2. O cinema como recurso didático?
A situação-tv é a mais comum para a exibição de filmes na escola e na academia.
Ela tem a vantagem de que o material do filme pode ser apresentado em recortes. O
professor pode parar o filme, apresentar apenas uma cena, etc. A situação-cinema é a ideal
para se ver filmes. A simulação do olho humano que a sala de cinema cria é ideal para
provocar os estímulos perceptivos. O clima de atenção e de tensão que o escuro provoca e o
tamanho da tela são os ingredientes mais importantes do cinema. A maioria dos filmes foi
feita para a exibição em salas de cinema.
O filme feito exclusivamente para o cinema tinha de sofre uma série de adaptações,
de cortes, feitos para conter spots da propaganda. Essa adaptação do filme de cinema para
as televisões passou a transformar a própria estrutura dos filmes, no momento de sua
produção. Desde a década de 50, a indústria cinematográfica passou a dividir suas
produções entre filmes comerciais e filmes não-comerciais. Os filmes comerciais são
aqueles que se adequam às fragmentações necessárias em sua formatação. Os filmes não-
comerciais ficaram conhecidos como filmes de arte.
A situação-TV é a simbiose entre o devaneio que o princípio de realidade do filme
nos dá associado ao simulacro da caverna platônica. A situação-TV é a que os professores
mais utilizam nas escolas e universidades para utilizarem o cinema como recurso. Mesmo
quando utilizamos um filme, com a mínima luminosidade, em sala de aula há um certo
desconforto e uma formalidade. Porém, em sala de aula o filme pode ser estudado, e isso é
uma vantagem.
A produção cinematográfica mudou ao longo da história. Com as pesquisas
científicas sobre o comportamento da luz, as pesquisas industriais sobre a tecnologia e o
impacto cultural das inovações o cinema se aperfeiçoou e a Televisão, o cinema individual.
A representação da realidade desde o início da década de 50, nos países mais
industrializados tem na TV e no cinema um importante fator de registro da cultura.
Em 1946, primeiro ano inteiro de paz, o cinema norte-americano
atingiu o mais alto nível de atração popular em seu meio século
de existência. A freqüência semanal total ascendeu a quase três
quartos de expectadores potenciais – isto é, o cálculo feito pela
indústria cinematográfica de todas as pessoas no país capazes de
chegar a uma bilheteria, (...). Depois de 1946, a freqüência e as
80
receitas das bilheterias principiaram a cair, antes mesmo que a
televisão produzisse seu significativo impacto por volta de 1949
e 1950. Em 1953, quando se calculava que 46,2% das famílias
norte-americanas possuíam televisores, a assistência dos cinemas
caíra para quase exatamente a metade do nível mais alto de 1946.
Mais tarde, quando a televisão emergiu triunfante da competição
entre os dois, a venda ou o aluguel dos direitos de televisão
tornou-se uma fonte principal de renda para os produtores de
cinema.
55
4.3. Pedagogia e Cinema
Um dos assuntos mais polêmicos da educação é a Ética. A disciplina de
Antropologia do curso de Pedagogia tem a finalidade de provocar o debate sobre o
conteúdo da ética profissional e seus limites. Entre outras questões está a relação entre a
conduta ética na formação escolar. Para isso estudamos o conceito de Ethos na disciplina de
Antropologia. O filme Blade Runner apresenta um conflito humano que evidencia o limite
dos conceitos e pré-conceitos que os grupos sociais possuem sobre outros grupos culturais.
O Etnocentrismo e a Etnofobia são problemas concretos no avançar das sociedades
humanas.
Há uma série de formas de se utilizar o cinema na pedagogia. Na disciplina de
Antropologia do curso de Pedagogia da UEMG, a ementa possibilita pesquisas e atividades
sobre Antropologia da comunicação visual. A relação entre o cinema e a pedagogia foi
discutida com turmas de pedagogia entre 2006 e 2007, como uma forma de apresentar a
cinemática dos conceitos. As turmas onde o filme Blade Runner foi trabalhado são:
-- IIE, turma do segundo núcleo formativo de Pedagogia, disciplina de Antropologia da Educação I. (2º/2006)
-- IE, turma do primeiro núcleo formativo de Pedagogia, disciplina de História da Educação I. (1º/2007)
-- IIB, turma do segundo núcleo formativo de Pedagogia, disciplina Antropologia da Educação I. (2º/2006)
-- IVC, turma do quarto núcleo formativo de Pedagogia, disciplina Antropologia da Educação II. (2º/2006)
-- IVF, turma do quarto núcleo formativo de Pedagogia, disciplina Antropologia da Educação II. (2º/2006)
-- IVA, turma do quarto núcleo formativo de Pedagogia, disciplina Antropologia da Educação II. (1º/2007)
-- IVA, turma do quarto núcleo formativo de Pedagogia, disciplina Antropologia da Educação II. (2º/2007)
O objetivo do uso do filme na disciplina de Antropologia foi a retificação do
conceito de Ethos. Na disciplina de História, o objetivo era a retificação do conceito de
81
memória. Em todas as turmas, nos perguntamos sobre as possibilidades didáticas e
cognitivas do cinema, e discutimos sobre o filme Blade Runner, empregando a
fundamentação teórica para analisar o filme. Apresentamos de uma maneira geral a
importância do cinema para a pedagogia usando um trecho da epistemologia de Bachelard
para nos iluminar; a relação entre o micro e o macroconhecimento. O trabalho com o
cinema na disciplina de história teve um objetivo simples. Para tratar em brevidade o
conceito de memória, apresentei aos alunos as imagens da função da memória na
experiência da consciência, mostrada a nós no filme Blade Runner. Na Antropologia,
seguiu duas diretrizes.
I. abordagem conceitual: Ethos e Sociedade
II. abordagem literária. Aplicação dos esquemas conceituais ao filme.
Nas cinco turmas, iniciamos o trabalho com a dimensão conceitual. O objetivo do
projeto de cinema e pedagogia era também o de exercitar com os alunos o referencial
teórico da Antropologia (Estruturalismo, Fenomenologia e Conexionismo). Os grupos de
alunos da FAE/UEMG são formados em sua maioria por mulheres, entre 20 e 35 anos.
Cada turma possui em média 30 alunas. É um grupo que não tem muita freqüência ao
cinema, preferindo a situação-TV, em casa, para assistir filmes. Ao contrário do trabalho
come estudantes do Ensino Médio, na Universidade não há o problema com a censura aos
filmes.
Nas leituras das imagens do filme, temos uma verdadeira Simulação, que o cinema
gera. Uma reflexão importante no trabalho com o cinema é a afirmação de que no cinema,
tudo é cinema. Isso leva o estudante a se relacionar com o filme sem uma certa mística que
leva a crer na indubitabilidade da imagem, efeito que acontece ao telespectador quando
assiste a um jornal de notícias cotidianas. No cinema, como na TV, há processos de
montagem da imagem e do som.
Infelizmente na apresentação do filme para as alunas não contamos com a situação-
cinema, que chamamos de Simulacro. A caverna do cinema gera um estado psicológico
específico. Entre a situação-tv e a situação-cinema, esta última é mais favorável para gerar
imagens para a ciência na escola e na universidade. Por dois motivos, inicialmente: pelo
nível de atenção e de percepção que o aluno pode alcançar, e pelo hábito político-cultural
de freqüentar o cinema, que pode possibilitar uma reflexão entre o cinema e a sociedade,
nossa vida cotidiana com as imagens do cinema.
82
O simulacro possibilita ao Espírito uma situação virtual específica, onde se
reproduz materialmente a condição simulada. Um simulacro é onde podemos agir a partir
de nossas simulações. O ambiente escuro do cinema é um simulacro, que potencializa a
força das simulações do cinema. E o cinema é um reservatório das memórias da
humanidade, uma nova forma de registro que a espécie humana realiza para si. Um
reservatório de estímulos culturais para as novas gerações de seres humanos, que
incorporam o cinema e a televisão em suas vidas cotidianas, a situação de cinespectador e
telespectador como um ethos. A exibição do filme para as alunas não aconteceu na
situação-cinema, foram apresentados em sala. O laboratório realizado com o filme será
melhor detalhado adiante.
O que foi dito às turmas no início do trabalho foi que as sociedades humanas são
formadas por uma série de comunidades pedagógicas, que educam seus membros para
modos de vidas particulares e históricos. As comunidades humanas geram imagens de si
mesmas, um ethos.
O antropólogo Lévi-Strauss desevolve a linha de pesquisa denominada de
Estruturalismo, e em seus estudos sobre as culturas busca observar mas
pormenorizadamente os elementos comuns entre os vários ethos das várias sociedades
humanas que podemos visitar e conhecer.
A Fenomenologia é a linha de pesquisa antropológica que faz uma psicanálise do
momento cultural do indivíduo; o indivíduo é o resultado da resolução das demandas pela
sobrevivência. O ethos de uma comunidade surge para esse indivíduo como um complexo
de adequação-inadequação. O ethos é o acúmulo de tentativas humanas que uma cultura
registra. Conexionismo é a referência que fazemos aos vários processos educativos
necessários para que a biologia do ser humano seja realizada. Os ethos são aquelas formas
de utilizar a linguagem, que aprendemos para as trocas e intercâmbios (MATURANA,
1995
). A partir dessas três concepções de ethos, apresentei o filme Blade Runner, para
observar a hipótese de Bachelard, segundo a qual os conceitos científicos, como o conceito
de ethos, podem ser somente constituídos se certas imagens forem retificadas na percepção.
Uma das alunas que participou do projeto Cinema e Pedagogia declarou em seu
trabalho de conclusão da disciplina que:
(...) O ethos do filme pode ser identificado no desenvolvimento
acentuado da ciência, amparada nos ramos da biotecnologia e
83
genética. Dessa forma o homem atingiu um grau de
desenvolvimento tão elevado no filme que foi capaz de habitar
outros mundos e criar andróides capazes não apenas de substituir
eles em tarefas perigosas como também de substituí-los em todas
as atividades indispensáveis à sobrevivência humana.
IIB (2º/2006)
As imagens do filme Blade Runner nos apresentam uma possível e futurística forma
social humana, sustentada em suas bases por uma cultura tecnológica. A relação entre o
homem e suas máquinas leva a humanidade a se confrontar com outros padrões de
comportamento inteligentes, outros entes humanóides, resultado da própria capacidade
técnica do ser humano. Tudo isso acontece com uma progressiva destruição ambiental, a
metamorfose autofágica que as grandes linhas de produção industrial espalhadas pelo
mundo realizam: parcelas do meio ambiente em troca de objetos industrializados. Na
verdade os animais e vegetais, no filme, são mercadorias geneticamente fabricadas.
Essas imagens, e os conceitos da Antropologia foram chocados, no que, segundo
Bachelard, pode ser um momento de sobreposição dos juízos humanos, alimentados pela
constante exposição das células perceptivas aos estímulos do ambiente de aprendizado. No
caso de um filme, são estímulos visuais e sonoros, combinados em uma montagem lógica,
em si inalcançável, mas reconstituída pelo pensamento do cinespectador. Dessa forma
temos tomado o filme como uma realidade enquanto o assistimos.
Para apresentar o filme, foram necessários 2h/a, o tempo de duração da película e os
comentários. Ao final do filme, solicitamos que o aluno escrevesse um parágrafo utilizando
os instrumentos teóricos da Antropologia, de maneira a tentar explicar o filme, como
poderia ser feito ao aplicar esse referencial na descrição de algum fenômeno cultural. Para
o Pedagogo, como profissional, a interpretação dos momentos de uma cultura é tão
importante quanto a percepção dos momentos cognitivos. Os cineclubes foram realizados
como parte das atividades das disciplinas de Antropologia e História, ambas com um total
de 80h/a.
Apresento a seguir conclusões mais comuns dos alunos a respeito do conceito de
ethos no filme Blade Runner. Foram cerca de 130 comentários. Esse conceito pode ser
encontrado na definição ou na abordagem de outros dois termos: Humano e Robô. Esses
comentários, como já disse anteriormente representam a avaliação do trabalho cinema e
pedagogia na disciplina de Antropologia; o Portifólio de filmes.
84
Como forma de avaliar o resultado do trabalho utilizando os filmes para
compreender o conceito científico no curso de Antropologia, e também sensibilizar os
alunos para olharem para os filmes de cinema de uma outra maneira, com um olhar menos
passivo, foi solicitado de cada aluno um Portifólio, um álbum de anotações e recortes sobre
uma lista de filmes de cinema. Sugeri um conjunto de filmes de acordo com as três linhas
de pesquisa da antropologia. O objetivo do trabalho foi apresentado da seguinte forma
Análise de filmes de acordo com esquemas antropológicos.
Faz-se necessário a verificação de conceitos como ethos,
habitus, fantasmático, fenomenológico, ipseítico, dentre
outros da antropologia.
IIE (2º/2006)
Apresentei inicialmente aos alunos os esquemas teóricos da Antropologia e propus
para cada esquema um conjunto de quatro filmes. O objetivo foi interpretar as imagens, o
enredo, a fantasia dos filmes de acordo com cada um dos três instrumentos antropológicos.
Com isso eu pretendi verificar se aquele conhecimento virtualmente conquistado poderia
ser aplicado em uma operação tão cotidiana que é a de assistir TV, ver cinema. O portifólio
representou uma atividade avaliativa para cada estudante. Alguns alunos comentaram o
próprio portifólio, interpretando meus objetivos como professor ao usar o cinema para
discutir as questões da Antropologia
Tudo no cinema é apenas cinema. No cinema a realidade é resultado da fantasia,
são as possibilidades computacionais, a música, o roteiro, os atores. A uma fábrica de
ficções. Esse dado é importante para que Oe estudante não tome a imagem e os
acontecimentos do cinema como realidade última. Diante da ficção, são as conexões que
individualmente podemos fazer é que contam. Nosso julgamento, nossos juízos. As
impressões objetivas que as imagens e o som nos trazem realizam o que Bachelard
pressupõe: para a retificação da impressão é necessário estímulos variados, e o filme é um
estímulo multidimensional, possível de ser explorado, uma vez que é resultado de um
conjunto de atividades artísticas humanas. Além disso, os filmes de ficção científica trazem
elementos que retratam o trabalho de pesquisa dos pensadores e as realizações
sociotécnicas da civilização.
Devemos tratar a imagem como uma imagem montada no plano do juízo. Esse
desencantamento com relação ao grau de realidade de um filme é necessário. Mas essa
85
posição cética poderia invalidar qualquer utilidade de um filme, posto que todo filme é uma
farsa. Mas isso não acontece.
A cinemática é tomada como realidade, truques de câmeras e efeitos especiais são
levados a sério pelos órgãos perceptivos. É o que podemos dizer a partir de Bachelard. A
realidade externa permanece sem juízos a priori, sem análise em si mesma ou abordagem
consciente até que o pensamento se aperfeiçoe, os olhos registram as impressões do
movimento, e esse fenômeno é um elo entre o sujeito e os objetos físicos ao redor até que a
linguagem organize as representações possíveis desses objetos. As abordagens mais
comuns apresentada pelos alunos e alunas das cinco turmas observadas:
(...) em 2019, uma grande corporação desenvolveu robôs que são muito fortes,
ágeis, e sua inteligência se equipara a dos seres humanos. Conhecidos como
replicantes, esses robôs são utilizados como escravos na colonização e na
exploração de outros planetas. Em cada robô foi implantada uma memória
artificial. Eles não tinham emoções, mas poderiam desenvolver ódio, amor,
raiva e inveja com o passar dos anos. Os replicantes tinham fotos que
relembravam momentos. Em suas memórias artificiais ficaram lembranças de
momentos talvez nunca vividos por eles.
IVC (2º/2006)
(...), no início do século 21 uma grande corporação desenvolve um andróide
mais forte e mais ágil que o ser humano e que se equipara em inteligência. São
conhecidos como replicantes e utilizados como escravos na colonização e
exploração de outros planetas.
IIB (2º/2006)
Esses foram os comentários mais comuns sobre o filme. Entretanto o enfoque é
menos antropológico e mais histórico. Mostra que o conceito antropológico não foi a
ferramenta a mais uitilizada, pelo menos a princípio da aproximação, para analisar o filme.
Concluo que boa parte dos estudantes não realizou a experiência do conceito de ethos, no
grupo pesquisado, ou pelo menos não utilizando as palavras centrais da discussão teórica
realizada antes de assistirmos ao filme. Um outro grande grupo de alunos desenvolveu
comentários que para mim correspondem ao objetivo de relacionar os conceitos com as
imagens, apresentando uma intencionalidade em utilizar uma linguagem específica para
tratar as imagens. O que corresponde à tese de Bachelard é o fato de que as possibilidades
de abstração que a obra cinematográfica nos traz terem um papel de especificar uma
86
fisiologia. Uma fisiologia para um reconhecimento, uma capacidade de reconhecer, que é o
objetivo imediato do conhecimento. A descrição científica tem uma finalidade; se por meio
dela tornaram o sujeito capaz de um outro contato, mais aproximado, com o objeto da
descrição. Isso não representa um aprendizado efetivo do tema, pois a aproximação não tem
um ideal de se concluir. A capacidade de medição do infinitamente pequeno como no caso
da genética, e do infinitamente complexo, como no caso do ethos deixam as pesquisas
sempre em aberto. Mas se a finalidade da descrição científica for alcançada, ou seja, se
houver uma aproximação, e esta for fecunda ao espírito, então teremos um novo
conhecimento. Acredito que então boa parte da turma, esse outro volume de 50% de
pessoas que realizaram a tarefa de análise e comentário do filme se aproximaram do
conceito. Uma outra questão que surge paralela a essa é a de que as condições de se fazer
ciência e se estudar ciência são diferentes, e até divergentes. Não percebi na tese de
Bachelard uma diferenciação. Epistemologicamente a diferença não existe, é esse o
ensinamento, a linguagem do cientista é que difere da linguagem do estudante; a primeira é
mais específica e utiliza conceitos, favorece novos juízos do espírito, como o juízo de
negação. Em nossa pesquisa bibliográfica, encontramos o seguinte comentário de um
professor de Biologia:
Sem dúvida alguma a forma do cientista criar teorias não difere,
quanto à estrutura básica, da forma de elaboração dos
conhecimentos dos alunos (ou não cientistas), a qual é
fortemente influenciada por valores, crenças, dados observados,
fatores culturais, meio social em que está imerso, grupo político
a que pertence, etc
.
56
Classifiquei as descrições que se aproximaram das imagens através dos conceitos
que tínhamos discutido.
Abordagens Estruturalistas:
(...) a máquina e o homem, ethos – robôs querem conhecer seu criador e
prolongar seus dias. – o criador impôs um habitus – máquinas com vida
limitada. Os robôs tentam quebrar esse habitus e prolongar suas vidas,
impossível, são vencidos pela minoria majoritária.
IVC (2º/2006)
87
(...). o filme blade runner descreve habitus estabelecidos através de
relações conflituosas e/ou afetivas entre humanóides e robôs evoluídos,
contrastando duas etnias (habitus humanos e robóticos) no planeta terra.
São os conhecidos como replicantes e escravizados para colonizar outros
planetas que retornaram em busca de um tempo maior de vida. Querem
de seu criador mais do que os simplórios quatro anos de existência.
Além disso, resgatam sua memória através de fotografias, pois esta é
mais uma limitação deste grupo.
IIE (2º/2006)
(...) neste filme o homem cria robôs a sua imagem e semelhança, são tão
reais que expressam sentimentos. A tecnologia e a ciência são
avançadas, tudo é muito futurista. O ethos deste filme pode ser a forma
com que o homem usa a ciência, em especial a genética para gerar um
grau tão alto de desenvolvimento a procura de dominação e poder.
IIB (2º/2006)
(...) o homem cria a máquinas quase humanas para destina-las ao
trabalho e a à exploração. A estas máquinas o homem introduz uma
memória de passado, o que desperta neles sentimentos que para os
homens são universais. Uma vez que começam a sentir as máquinas
também passam a desejar.
IIB (2º/2006)
(...) o filme retrata claramente a humanização da máquina e a
maquinização do homem, pois o homem perde sentimento e deixa que a
máquina domine o mundo.
IVC (2º/2006)
(...), podemos relacionar as cenas do filme ao estruturalismo, por ele
também mostrar um esforço pela sobrevivência, “no caso dos robôs”,
tendo vida, também tentam se igualar à vida humana, se adaptam
inteligentemente a cada lugar, tem padrões de etnia parecidos com o
homem.
IVC (2º/2006)
(...) por volta do ano 2000, o planeta terra está em total decadência. Os
poucos habitantes vivem aglomerados em gigantescos arranha-céus. A
engenharia genética se tornou uma das maiores industrias, criando os
replicantes, criaturas dotadas de extraordinária força e inteligência,
88
praticamente indistinguíveis dos humanos.
IVF (2º/2006)
Abordagens fenomenológicas
(...) no ano de 2019, um ex-policial é obrigado a descobrir a eliminar
andróides, que retornam à terra para cobrar vida mais longa ao seu
criador.
IIE (2º/2006)
(...) a presença do diferente é proibida, no caso do filme, a presença dos
replicantes. Claro que os replicantes, pela suas vidas, se tornam
agressivos.
IIB (2º/2006)
(...) numa terra destruída, um novo ethos se estabelece. Robôs
incorporam como seus, comportamentos que até agora só faziam parte
da etnia humana. A necessidade de se conhecer a origem, a busca da
longevidade, sentimentos, emoções, e a mistura entre memória e
lembranças. Máquinas adquirindo habitus humanos e homens se
perdendo, perdendo na busca constante do controle total das máquinas.
IIB (2º/2006)
Abordagens mais conexionistas
(...) ao mostrar a fixação dos robôs por fotografia, mostra como são
humanos precisamos de nossa história para diariamente mantermos
nossas resoluções filosóficas sem que o organismo inteiro seja ameaçado
de desintegração.
IVF (2º/2006)
(...), replicantes (andróides que se assemelham aos seres humanos). Os
replicantes são robôs construídos pelos homens, sendo que esses são
escravizados pelos mesmos.
IIB (2º/2006)
Os trabalhos das turmas de antropologia foram apresentados para todo o público da
89
faculdade de educação no dia 6 de dezembro no II Seminário de Antropologia, em que
grupos formados em cada turma apresentaram suas reflexões entre cinema e educação.
Todos os quatro textos em anexo no presente trabalho foram trabalhados ao longo do
semestre e constituem parte da formação instrumental para a análise do filme Blade
Runner. Os textos foram lidos e comentados em sala antes da apresentação do filme.
4.4. A Abstração e os Conceitos científicos
A idéia de trabalhar o cinema no conteúdo de antropologia foi resultado do sucesso
de uma experiência anterior com o cinema em sala de aula que tive quando era professor de
Biologia para o ensino médio. Ao trabalhar com adolescentes descobri que a imaginação é
fundamental para que eles compreendam a importância dos conceitos científicos.
A abstração é uma atividade do espírito humano que é gerada a partir dos dados
elementares da percepção. Para Bachelard a abstração possui uma base material, que é o
dado retificado nas centenas de milhares de células perceptivas que alimentam o cérebro
com as impressões do real, do mundo exterior e interior. Portanto, a ficção científica pode
fornecer os elementos que, na imaginação do estudante gerará imagens possíveis para os
fenômenos. No esforço de descrever cientificamente, objetivamente a realidade biológica,
os alunos lançam mão da imaginação. Principalmente por que as entidades com as quais
opera a biologia são diminutas demais, como no caso das células, ou processuais demais
como os ecossistemas. Não objetos de pesquisa e estudo que estão para além das condições
normais de percepção. A ciência com seu esforço de medição, de aproximação, atingiu a
escala nanômetra. O alargamento de nossa consciência de mundo a partir disso está
materializado nas experiências eugênicas. A manipulação do DNA, através da
nanobiotecnologia, com a construção de ferramentas de registro que podiam gerar imagens,
gráficas e eletrônicas, parece demonstrar que o estudo da biologia é uma necessidade atual
das sociedades humanas, e também uma esperança.
Não apenas o microcosmo está sendo investigado, mas os processos biológicos mais
extensos, como os que envolvem as plantas e os rios. Esse alargamento vertical nas células
e temporal no espaço traz necessidades novas para o ensino e aprendizado de Biologia.
Segundo Habermas
57
em seu recente livro sobre a natureza humana, o ensino de biologia é
90
a cada dia uma necessidade política da humanidade, pela forma com que a vida cotidiana
está sendo influenciada pelas experiências dos seres humanos. Os estudantes do segundo
grau, que estudam durante três anos a disciplina de Biologia num total de 270 h/a, ao
desenvolver para si e para a comunidade escolar, os conceitos biológicos, nem sempre
possuem o estímulo material suficiente para abstrair, para se aproximar do fenômeno que
estudam. No ano de 1997, na Escola Estadual Ernesto Carneiro Santiago estabeleci uma
primeira relação entre a construção do conceito científico em biologia (ensino médio,
biologia I, II, III) e o cinema. A disciplina era Biologia II, fisiologia humana (segundo ano
do ensino Médio). O conceito era o de Hormônio, e o filme apresentado foi O óleo de
Lorenzo. A referida escola adota desde essa data uma certa freqüência do uso do cinema no
ensino, para tanto há uma sala na escola disponibilizada apenas para seções de cinema, com
banquinhos.
Para se ter uma idéia das dimensões envolvidas na escala nano basta pensar que um fio de cabelo tem entre 50
e 100 micra de diâmetro e que a escala nanométrica é mil vezes menor, ou seja, as dimensões envolvidas são
normalmente mil vezes menores que as passíveis de se observar com um microscópio ótico comum.
A dificuldade inicial de quantidade de cinespectadores pode ser resolvida com uma
dinâmica de trabalho em sala de aula. Realizei no ano de 2007, nos meses de maio e junho,
uma visita à referida Escola. A Escola Estadual Ernesto Carneiro Santiago, localizada em
Sarzedo, possui uma sala de cinema, onde os alunos são encaminhados por professores de
todas as disciplinas quando algum filme de cinema ou programa de televisão é necessário
para o desenvolvimento das disciplinas. Há uma inscrição prévia do professor para a
utilização da sala.
A escola tem o uso do cinema incorporado às atividades de ciências Biológicas, no
trabalho atual dos professores Júlio, Clever e Vinícius. Propus uma dinâmica em torno do
91
filme Blade Runner, seguindo a metodologia que empreguei no Curso de Pedagogia, na
disciplina de Antropologia. A metodologia é a apresentação de um conceito, ou de uma
problemática teórica da ciência biológica, depois a apresentação do filme, ou de imagens
recolhidas de um filme, e uma posterior conversa para observar o desenvolvimento do que
Bachelard chama de Juízos. Segundo Bachelard, esses juízos são a maneira do espírito
humano representar o conhecimento para o ato da descrição, ou seja, a formulação de um
conceito científico como Hormônio passa pelo momento de um reconhecimento do que
significa hormônio na experiência visual. O tema proposto é o conceito de Genes Atávicos,
mencionados no filme Blade Runner, no seguinte comentário:
--- coisas da vida, ... alterar a evolução de um sistema orgânico é fatal.
Uma seqüência codificada não pode ser alterada. (homem)
--- por que não? (robô)
--- no segundo dia de incubação, as células que sofreram mutações
atávicas originam colônias atávicas, como ratos abandonando um navio. E
o navio naufraga... (Homem)
Para os estudantes do ensino médio, a dificuldade epistemológica de dizer ou
entender
58
o que genes atávicos, ou mutações atávicas.
(...), as concepções dos alunos explicitam uma gama de situações com
a mesma e complexa estrutura conceitual, enquanto que as atividades
didáticas, normalmente, entram em conflito com apenas uma parte do
sistema conceitual do aluno, não sendo fortes o suficiente, naquele
momento, para mudar a representação de mundo do estudante. Essa
concepção alternativa não aceita pela ciência ou distante da explicação
científica somente será substituída por outra quando ela não foi mais
capaz de responder muitas das questões que se apresentam para
estudante.
59
A educação escolar é uma das funções da sociedade, para moldar novas populações
de seres humanos que surgem nas estruturas familiares. Lévi-Strauss dizia que o
aprendizado mais importante que as escolas ministravam era como fazer uma família. Por
trás de todo objetivo científico da educação, está a finalidade cultural da aprendizagem, ou
seja, sobreviver. Constituir relações humanas com outras pessoas para realizar as trocas
simbólicas que nos possibilitam adquirir alimento e outros determinantes. O que
92
consideramos humano, o que consideramos ecológico, todos os conhecimentos que vamos
elaborando em nossas interações com os outros e com o mundo, aquilo que nos estimula a
fazer certas representações que por fim chamamos de realidade.
Ao longo das leituras que fiz no início do curso de mestrado no CEFETMG fui
realizando vários laboratórios com meus alunos do curso de Pedagogia, utilizando os filmes
para fundamentar vários conceitos. O filme possibilita uma ilustração necessária para a
construção dos conceitos porque, de acordo com a tese de Bachelard, o
microconhecimento, ou seja, o contato com as impressões do real, sendo fundamental para
que o espírito elabore uma fixação na percepção que levará o sujeito a reconhecer o objeto
e se inteirar mais aprofundadamente com ele, ou, mais aproximado a ele.
O formato da pesquisa empírica inicialmente era o de um laboratório com turmas
diferentes em situações de apresentação de filmes de formas diferentes, ou seja, apresentar
a construção do conceito em uma turma utilizando o filme e em outra não utilizando o
filme, e ao final investigar quais foram os resultados obtidos. Esse laboratório é interessante
e pode ser experimentado. Entretanto optei por uma outra forma de investigar o filme na
elaboração do conceito. Apresentei o filme em várias modalidades; apresentei o filme antes,
durante e depois de desenvolver com os grupos o conceito. Em uma turma apresentei o
filme primeiro e depois desenvolvi o conceito. Em uma outra turma apresentei o conceito,
depois o filme e depois continuei a desenvolver o conceito. E por fim, em outras turmas
apresentei o filme ao final do conceito. Minha preocupação foi a de compreender minha
própria prática de uso do cinema na educação, em sala de aula e fora dela. Meu interesse
sincero foi o de despertar um gosto pelo cinema, um hábito nos alunos de freqüentar o
cinema como um hábito da cultura, e fazer ciência a partir desse hábito cultural, não apenas
levar o filme para a sala de aula. A situação cinema é mais rica em devaneio do que a
situação-tv. Esta última tem a vantagem de permitir a quebra do filme para análise.
Utilizei filmes de cinema em situação-tv para desenvolver o conceito de Fisiologia
no ensino médio (utilizei na época o filme o óleo de Lorenzo) e de Ethos no curso superior
(filme Blade runner). O filme pode ser usado antes, durante ou depois da construção do
conceito o primeiro momento é a vinculação do filme com o tema. Em todas as
modalidades de utilização do filme, o mais importante é tratar o filme como filme, e não
como uma realidade. Se entendi o que Bachelard disse ao afirmar que no
microconhecimento o aspecto cognitivo não é lingüístico, a maior quantidade de
93
informações e de estimulações sensoriais que o estudante tiver com relação ao que ele está
pesquisando será útil na confecção do conceito científico. No caso de Blade runner, a
relação entre os humanos retratada no filme apresenta uma simulação de um conflito que
está presente entre os próprios grupos humanos em sua busca por sobrevivência e
identidade. Essa simulação traz dados que não são experimentados no cotidiano do
estudante, ou explicita estruturas que não estão presentes. Para o antropólogo etnógrafo,
que vive o limite do conflito entre dois grupos culturais o conceito de Ethos, de
comportamentos universais humanos, pode ser observado. Para o estudante de Pedagogia
que não tem a prática da Etnografia fica difícil reconhecer o conflito que nos ajuda a
compreender o sentido da ética humana. Parece que um grupo social não aceita os valores
de outro simplesmente por questões políticas e econômicas. O filme Blade Runner mostra a
questão estrutural das diferentes humanidades. Os seres humanos e, no caso as máquinas
humanas inteligentes, se diferenciam estruturalmente, mas estão ao mesmo tempo
irmanadas pela capacidade de linguagem, pela capacidade de sentimentos e de inteligência.
Compartilham a forma humanóide. O robô e o homem participam de um mesmo Ethos, por
esse motivo, pelo fato dessas universalidades e da convivência comum, poderiam
estabelecer uma mesma ética. A ética são os códigos de conduta que não levam em conta os
comportamentos particulares das diversas sociedades humanas, mas as semelhanças
existenciais de todos os homens e mulheres. A ética tem uma raiz na biologia humana.
94
5. Conclusão
O conhecimento cotidiano é uma fonte de pontos referência com o qual construímos
nossos comportamentos sociais. Aparentemente a busca pelo conhecimento é saudável
também para a estrutura cognitiva do indivíduo. A busca em si. Ao tentar explicar o
mecanismo do conhecimento admitimos que ele ocorre em duas dimensões, uma realista,
que é a aproximação física do objeto, uma ergonomia, e outra dimensão idealista em que a
aproximação significa uma retificação. Ao falarmos de conhecimento científico na escola
estamos falando nas duas dimensões desse tipo de conhecimento?
Assuntos como ecologia, ao serem discutidos com estudantes trazem, no
planejamento do professor, a intenção de fixar alguns conceitos, que se supõem serem não
apenas conceitos, mas comportamentos empíricos, que no caso da ecologia levem inclusive
a uma certa prática. A retificação do conceito científico, ou seja, o aprendizado do
conceito, sua inclusão no vocabulário e nos pensamentos do aluno, é um momento
propulsor para novos conhecimentos. A retificação, a fixação daquilo que é formulado
como sendo um conceito científico deve ser capaz de aproximar o estudante do objeto sobre
o qual ele passou a pensar sistematicamente. O que ocorre é que num plano imperceptível
pela totalidade dos pensamentos, nos órgãos da percepção que capturam e sofrem o
estímulo externo, nessmo momento sem linguágem, a quantidade de retificações deve ser
sempre em quantidade grande para que o indivíduo possa acompanhar a cinemática da
realidade.
Que tipo de estímulos são suficiuentes para que certos problemas abordados pelas
ciências ecológicas sejam compreendidos pelo estudante? Essa pergunta pode ser inicial
quando pretendemos utilizar os filmes de cinema na educação científica. Por exemplo a
Simulação que o filme Blade Runner nos apresenta, de um futuro onde a natureza vegetal e
inumana será devastada em sua quase totalidade e controlada em bancos genéticos, tratadaa
vida como uma mercadoria como outra. Não é necessário que o aluno esteja vivendo a
situação social do filme, entretanto a teatralização do conflito entre o homem e a natureza,
na imagem do cinema, fornece uma série de estímulos para que o estudante no mínio
estabeleça sua emoção com relação ao tema,um dos passos para que uma nova aproximação
com os objetos envolvidos na representação do conceito aconteça.
Uma nova aproximação com outras dimensões do objeto partirão do
95
reconhecimento que o conhecedor fará a partir do que já está fixado nas sua estrutura
perceptiva e em seu epírito: a percepção do conteúdo do conhecimento como um fato
pertencente à história das representações do indivíduo.
O cinema com uma simulação de uma realidade, que não é uma realidade caótica,
segue uma estrutura temporal e principalmente lógica. O filme de cinema é um objeto que
contém uma densidade tão fantástica quanto a realidade cotidiana. A diferença do cotidiano
para o filme fundamentalmente é o tempo. O filme é uma realidade atemporal, ou com uma
temporalidade fluida. O estudante pode adentrar essa temporalidade, repeti-la, corta-la.
Esse caráter flexível dessa realidade permite ao estudante penetra-la, testar suas leis.
Bachelard nos ensina que a quantidade de estímulos da realidade é infinita, mas a
capacidade de percepção humana é limitada. Mas restrita é a capacidade de julgar.
Bachelard nos propõem uma evolução de nosso conhecimento da realidade através de um
processo de aproximação contínua, ou seja, quanto mais direcionarmos nossa percepção
para os objetos da realidade mais nos aperfeiçoamos no reconhecimento desses objetos e
melhor será nossa adaptação e nossa intervenção diante dele. Esse processo de aproximação
ele chama de conhecimento. Portanto o conhecimento para Bachelard é sempre um estado
transitório, depende do grau de aproximação que um indivíduo pode fazer com a realidade.
Essa aproximação é representada através da construção do conceito científico ferramentas
para o avanço do conhecimento, pontos transitórios de onde novas pesquisas podem partir.
No caso do estudante o conceito científico tem outra finalidade, não a de projetar novas
pesquisas, mas de ser útil para sua interação social. Aprende-se ciência nas escolas por que
temos ainda a aposta de Platão de que a verdade, o conhecimento, nos torna mais humanos,
amplia nosso Ethos, nossa ética. Os objetos tradicionais da ciência, desde o início do século
XX foram sendo diversificados, também os instrumentos de medição e investigação se
aperfeiçoaram. A natureza ampliada pelos fenômenos sócio-culturais se torna mais
complexa, e por isso, para uma visão de maior profundidade, e no caso do estudante de
ciência, para uma maior capacitação para compreender e intervir temos que buscar todas as
fontes de esclarecimento, inclusive a arte. A relação entre a arte e a ciência é próxima,
íntima, e a ficção científica é uma materialização dessa relação. Muitos filmes de ficção
científica projetam as relações futuras do homem com o conhecimento científico, que nesse
filmes são cada vez mais avançados. Ensinar ciência é também construir os conceitos
científicos, auxiliar o estudante a construir representações e hipóteses sobre a vida e a
96
sociedade.
O Simulacro de uma sala de cinema, onde a caverna platônica é reproduzida é um
fenômeno social possibilitado pelos aperfeiçoamentos tecnológicos, e o trabalho com o
cinema na formação científica não é apenas de utilizar o cinema, mas de discutir a
montagem da imagem na sociedade atual. O que é filme e o que é ficção? As tramas sociais
nas quais o estudante está envolvido são inicialmente obscuras para o entendimento. Os
fenômenos não se apresentam desnudos. A realidade não se oferece gratuitamente para o
conhecimento, como diz Bachelard. Cada indivíduo humano passa por um processo
cognitivo onde aprende e organiza sua capacidade de apreender e julgar a realidade, e
conseqüentemente agir para sua adaptação e sobrevivência. Esse esforço ativo de conhecer
a realidade, de se aproximar, de elaborar o olhar é um objetivo da ciência em seu caráter
humanista. A ciência é uma ferramenta para a humanização do ser humano. A caverna
cinemática, a sala de cinema é freqüentada por grandes grupos humanos desde há 100 anos,
transformando a maneira de representar a vida. As novas gerações recebem o cinema em
suas vidas e aprendem a conviver com as ondas contínuas de assuntos, polêmicas,
estímulos. Isso pode ser aproveitado para a construção do saber viver. Para o Professor e o
Pedagogo essa iniciação ao cinema precisa ser pensada em três termos. O primeiro é a
necessidade de um modelo epistemológico que relacione o conhecimento gerado pela
percepção das imagens. Em que nível está a relação fundamental entre ver uma imagem e
elaborar uma hipótese, um conceito? Bachelard nos apresenta esse modelo e coloca a
cognição das imagens em dois momentos, o momento da percepção do estímulo que a
imagem produz (estímulo sonoro e visual), e o segundo momento é o julgamento da
objetividade dessa imagem.
O segundo termo dessa relação pedagógico-didática do cinema na educação é a
desmontagem da imagem em seu sentido político. O cinema é uma fábrica de fantasias e a
partir de sua análise podemos chegar a uma crítica da cultura. O filme Blade runner
apresentado no curso de Antropologia auxiliou na construção do conceito de Ethos e na
polêmica que nossa sociedade atualmente possui com relação à ética. Como os
comportamentos humanos são característicos, e as criações humanas carregam esses
comportamentos. A natureza antropomorfizada também carrega traços das sociedades
humanas. O filme projeta uma situação limite, de guerra e caos, provocada por conflitos
entre as humanidades, e essa simulação é muito rica em situações onde podemos evidenciar
97
o ethos humano, entre outros momentos está o da busca pelo sentido da vida. Pelo filme
podemos notar que as criações humanas, no caso os robôs inteligentes, também possuem a
busca do ser humano pela razão da sua existência. Definimos com os alunos que a busca do
sentido da vida é uma busca ética, pois nos remete ao núcleo comum das aspirações
humanas. O filme Blede runner foi precioso para gerar uma simulação de realidade onde o
conflito ético se expressa de maneira absurdamente forte, ao ponto de percebermos que se
não o resolvermos, a natureza, as criações humanas e o próprio homem estarão ameaçados.
O terceiro termo é a variação das modalidades do uso do cinema na sala de aula e o
incentivo à situação-cinema. O filme pode ser utilizado de várias maneiras, sempre
associado a um procedimento pedagógico que paralelamente seja o de construir uma visão
objetiva e mensurável da realidade. Podendo ser utilizado nas várias etapas da construção
do conceito científico, seja como um estímulo inicial ou final para a abstração do estudante.
Aliado a isso há também o incentivo à freqüência nos cinemas, como uma forma do
estudante estar diante das polêmicas do seu tempo, que são apresentadas constantemente
nos cinemas. O cinema é um instrumento de compreensão da sociedade, mas não pode ser
assistido ingenuamente, principalmente por que ele é uma grande fonte de estímulos e de
abstração para os estudantes de ciências.
A utilização do cinema na educação é uma ação constante, como foi relatado
anteriormente, e a hipótese desta dissertação é de que essa utilização será melhor
aproveitada se puder ser problematizada pelo professor através de uma base teórica
filosófica. A escolha por Bachelard tem uma razão em seu trabalho como docente. Ele foi
um brilhante cientista, filósofo e também um professor. Não obtive muitas referências sobre
sua excelência como docente, entretanto seus textos trazem uma preocupação didática, de
construção elaborada dos conceitos, a demonstração. Sua tese sobre a aproximação faz
pensar no lento trabalho do ensino conceitual, na preocupação de que o conhecimento
construído possa ser reconhecido nas experiências cotidianas, e também na gradual
melhoria da condição perceptiva do sujeito. O uso do cinema na situação de ensino tem a
finalidade de povoar o imaginário dos alunos com elementos para incitar sua abstração, e
ao mesmo tempo possibilitar de tratar o próprio cinema como uma construção humana,
possibilitando a formação de um olhar crítico. Uma terceira importância do uso do cinema
é a de que ele enquanto filme é um objeto flexível a uma série de possibilidades
metodológicas. Citamos três possibilidades que se diferenciam pelo momento em que o
98
filme é utilizado e o momento em que a construção do conceito é utilizada. Apresentar o
filme primeiro e depois construir o conceito leva a um tipo de reconhecimento, e a cada
forma em que a construção do conceito se relaciona com o tempo do filme novas
possibilidades de conhecimento são geradas. Portanto o uso do cinema pode se dar de
forma diferente de acordo com a finalidade e utilidade da elaboração do conceito. O método
é sempre a situação de apresentação do filme, que exige concentração e atenção dos
estudantes, levando a escola ou a universidade a reproduzir sempre que possível a situação-
cinema.
A cultura cinematográfica é importante na sociedade da informação, onde uma série
de conteúdos é emitida através da iconografia. O próprio filme Blade Runner gerou uma
série de arquétipos, incorporados, copiados, remodelados na própria história do cinema.
Portanto, essa utilização lúdica do cinema, intuitiva, pode ser direcionada para efeitos mais
amplos, geração do conhecimento, na tomada ficcional e também na tomada crítica das
imagens em construção. O momento de teorizar, de conceituar, de fixar os argumentos
lógicos, de se fazer ciência, seja realizado anterior ou posteriormente às apresentações
cinematográficas tem um sentido de ser o momento da aproximação, da reunião dos
estímulos, das sobras estéticas, das impressões que as imagens podem causar, em favor de
uma sistematização para a finalidade maior do conhecimento científico, que segundo o
Bachelard do Ensaio é o reconhecimento, a contemplação consciente da realidade, a cada
vez mais nítida e mais familiar, a um olhar cada vez mais crítico e cirúrgico, quando se
exige argumentar, justificar ou explicar os fenômenos sociais, naturais e artísticos. A partir
dessa reflexão quero propor o acoplamento do uso do cinema nas práticas de ensino da
ciência.
99
6. Referências
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Notas
Introdução
1
SANTAELLA, Lucia e WINFRIED, Noth. Imagem. São Paulo: Editora Iluminuras, 1997. p. 33-47.
2
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto,
2004. p. 23.
3
JAPIASSU, Hilton Ferreira, 1934. Introdução ao pensamento Epistemológico. Rio de Janeiro:
Francisco Alvez Editores, 1991. p.69.
Epistemologia do conhecimento aproximado de Gaston Bachelard
4
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.140-141.
5
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto,
2004. p. 247.
6
Apresentei um histórico do debate filosófico entre as duas correntes no terreno da epistemologia
em minha pesquisa de mestrado anterior (linha da filosofia da ciência, UFMG); A superação da
oposição entre idealismo e realismo no pensamento de Humberto Maturana.
7
JAPIASSU, Hilton. Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro. F. Alves, 1991.
p.70.
8
BACHELARD,Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. p.246.
9
RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Livro Primeiro. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1969. capítulos sobre Platão e Kant.
103
10
BACHELARD,Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. p.282.
11
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.167
12
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto,
2004. p.14-15.
13
Idem. p.17.
14
Idem. p.286.
15
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto,
2004. p. 254-284.
16
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p.133. Zahar Editores
17
TEITELBAUM, Philip. Psicologia fisiológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. Citando E. D.
Adrian e Ymgve Zotterman, de 1926. p. 16-17
18
ORTEGA Y GASSET, José. Que é Filosofia?. Rio de Janeiro, Livro Ibero-americano, 1971. 37-
57.
19
O dado científico já é resultado de uma antropomorfização pelos cientistas e pesquisadores que
conseguiram formulá-lo. O dado descrito cientificamente pode fazer sentido ou não de acordo
com a teoria, o sistema racional de explicação em que se insere, o dado científico faz sentido
por estar logicamente localizado no sistema explicativo. O dado bruto é o ponto de referência no
real.
20
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto,
2004. p. 259.
21
Idem.p.23.
22
Idem. p.22
23
Idem.p.23.
24
Quando Bachelard trata da representação cultural de um conhecimento, ele fala da linguagem
científica, que parece ser uma forma de registro mais precisa. Como comentamos
anteriormente, esse problema foi melhor investigado pelos membros do Circulo de Viena.
ARAUJO, Inês Lacerda. Introdução à Filosofia da ciência. Curitiba: Ed. Da UFPR, 1998.
25
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto,
2004. p. 27.
26
Idem. p.300.
27
Idem. p.19.
28
Idem. p.247.
29
Idem. p.38.
30
Idem. p.159.
31
Idem. p.29.
32
Idem. p.46.
33
Idem. p.130.
34
Idem. p.8.
35
Idem. p.250.
36
Idem. p.249.
37
Idem. p.18.
38
FELÍCIO, Vera Lúcia. A imaginação simbólica nos quatro elementos bachelardianos. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1994. p.43.
39
Ficção científica 'hard', ou FC hard, é um sub-gênero da ficção científica caracterizado por seu
interesse no detalhe ou na precisão científica
. Todavia, há muita discordância entre leitores e
escritores sobre o que exatamente constitui este interesse no detalhe científico. Muitas histórias
de FC 'hard' se concentram no desenvolvimento tecnológico e biológico, mas muitas outros
deixam a tecnologia em segundo plano. Outros argumentam que se a tecnologia é colocada em
segundo plano, isto seria um exemplo de ficção científica 'soft'
. 28/02/07. http://pt.wikipedia.org.
40
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto,
2004. p.293-294.
41
Idem. p.281.
104
Fundamentos fisiológicos dos processos imaginativos
42
SKLAR, Robert. História social do Cinema Americano. São Paulo: Editora Cultrix, 1975.
p.259
43
GOLDSCHMIDT, Vitor. Os diálogos de Platão, estrutura e método dialético. São Paulo: Edições
Loyola. 2002. p.260-261.
44
Ibdem.
45
RUSSELL, Bertrand. História da filosofia Ocidental. Livro primeiro. Cap. XVIII – conhecimento e
percepção em Platão. p. 173.
46
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. p. 51.
47
(...) como nosso conhecimento aproximado do real pára após um pequeno número de tentativas com
respeito a uma única propriedade, não é possível apoiar-se nas determinações insuficientemente numerosas
para ultrapassar seu movimento. Estamos condenados a uma transcendência maciça, obscura, constituída
inteiramente por nossa ignorância. (...), no entanto, por mais imperfeita que seja nossa tarefa de
aprofundamento experimental, convém reconhecer que ai está uma direção com certa fecundidade filosófica.
Mesmo que nessa via de pensamento não chegue à objetividade, é inegável que a primeira tentativa de limitar
a subjetividade consiste num retorno à percepção, numa retificação. BACHELARD, 2004.
48
RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Vol. I. 1969.
49
Atistóteles, livro I da metafísica. Editora Abril, coleção Os pensadores.
50
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi, São Paulo, Martins Fontes,
2000. também em PLATÃO. A República. Tradução Enrico Corvisieri, Coleção Os Pensadores,
Nova Cultural, 1987. formulação de Claudia Bavagnoli, USP/SP.
51
Filme Blade Runner. Ridley Scott. 1982.
52
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. p. 31.
53
Idem. p.45-46.
54
Idem. p.278.
Pedagogia, epistemologia e cinema
55
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. p.313.
56
JUNIOR, José Trivelato. Um obstáculo à aprendizagem de conceitos em Biologia. In: NARDI,
Roberto. Questões atuais no ensino de ciência. São Paulo: Escrituras, 1998. p.77
57
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p15.
58
Sobre o problema do conceito de Entendimento, apêndice 2.
59
JUNIOR, José Trivelato. Um obstáculo à aprendizagem de conceitos em Biologia. In: NARDI,
Roberto. Questões atuais no ensino de ciência. São Paulo: Escrituras, 1998. p.77.
105
Mesmo assim,
Estavam todos contentes
Por se verem livres
Do perigo que haviam corrido
O caso da borboleta Atíria
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