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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO
EM CIÊNCIAS SOCIAIS - MESTRADO
DE BOTA E BOMBACHA: UM ESTUDO
ANTROPOLÓGICO SOBRE AS IDENTIDADES
GAÚCHAS E O TRADICIONALISMO.
TEXTO DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
GUILHERME HOWES NETO
SANTA MARIA 2009.
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DE BOTA E BOMBACHA: UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO
SOBRE AS IDENTIDADES GAÚCHAS E O
TRADICIONALISMO.
Por
Guilherme Howes Neto
Texto de dissertação apresentado ao Curso de Mestrado do Programa de Pós
Graduação em Ciências Sociais. Área de Concentração Identidades Sociais e
Etnicidade da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM RS) como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Ciências Sociais.
Ceres Karan Brum
SANTA MARIA RS BRASIL
2009
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Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Programa de pós Graduação em Ciências Sociais
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova o Texto de Dissertação de Mestrado
DE BOTA E BOMBACHA: UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE AS
IDENTIDADES GAÚCHAS E O TRADICIONALISMO.
elaborada por
Guilherme Howes Neto
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Ciências Sociais
COMISSÃO EXAMINADORA:
_____________________
Ceres Karan Brum, Drª (UFSM)
(Presidente/Orientadora)
____________________
Maria Eunice de Souza Maciel, Drª (UFRGS)
_____________________
Clarissa Sanfelice Rahmeier, Drª (UNICRUZ)
Santa Maria, 18 de dezembro de 2009.
Dedico este trabalho à memória de meu Pai e da minha Madrinha.
Agradeço à Flávia, Maria Fernanda e João Gabriel,
por quem tudo faz sentido.
À Professora Ceres:
a quem inocento pelos meus erros,
e agradeço pelos meus acertos.
Ao Professor João Vicente,
pela nobreza de propósitos.
“Parar não é descansar.
Porque ficar parado cansa...”
Payada do Negro Lúcio
(Jayme Guilherme Caetano Braun)
RESUMO
“De bota e bombacha: Um estudo antropológico sobre as identidades gaúchas e o
tradicionalismo” é o título do texto dissertativo apresentado ao programa de Pós Graduação
em Ciências Sociais, da Universidade Federal de Santa Maria, Área de Concentração
Identidades Sociais e Etnicidade, sob orientação da Profª Drª Ceres Karan Brum.
O tema central desta pesquisa se refere às representações e as significações das
identidades do gaúcho no Rio Grande do Sul. Nesse contexto, busco entender a circularidade
dos fluxos interpretativos dados ao longo da história do Rio Grande do Sul e ainda hoje, sobre
a figura emblemática do gaúcho, entre as representações tradicionalistas
1
e as práticas dos
peões de estância, as projeções e interfaces entre o peão simbólico e o peão real, suas
aproximações e seus distanciamentos, seus universos simbólicos compartilhados, disputados
ou dissociados. Proponho entender este processo como uma circularidade, formando fluxos
interpretativos entre o rural e o urbano, entre o campo e a cidade, entendendo esta relação
como um diálogo, no sentido de trocas e interfaces entre peões tradicionalistas e peões de
estância, que fazem circular estas identidades de maneira constante e intermitente, não
constituindo uma via única de modelo e cópia, verdadeiro e falso, real e imaginário. Procuro
demonstrar que essa identidade “gauchesca” urbana, criada ao modelo do homem rural sulino,
reinventa-se na cidade e devolve ao campo novas práticas e representações, que por sua vez,
são também apropriadas e re-significadas nas estâncias. Desta forma, os peões de estância re-
significam as práticas tradicionalistas e devolvem para a cidade novas práticas e
representações sobre o gauchismo. É dessa maneira que busco entender o contexto campo e
cidade. Um constante fluxo de interpretações e re-interpretações acerca de um mesmo
universo simbólico, que são, as interfaces entre os peões tradicionalistas e peões de estância.
Palavras-chave: identidade gaúcha; tradicionalismo; história regional.
1 Representações que remetem a um movimento organizado, de cunho social e cultural, coordenado pelo
Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG).
ABSTRACT
Dissertation
Postgraduate Course in Social Sciences
Universidade Federal de Santa Maria
WITH BOOTS AND BOMBACHAS: AN ANTHROPOLOGICAL STUDY ON
GAÚCHAS IDENTITIES AND TRADITIONALISM
AUTHOR: GUILHERME HOWES
ADVISOR: CERES KARAN BRUM
Presentation’s Date and Location: Santa Maria, December 18, 2009.
With boots and bombachas (a typical pair of pants worn by people called gaúchos
in Rio Grande do Sul/Brasil): an anthropological study on Gaúchas (the so called culture
from the gaúchos) identities and Traditionalism is the title of the dissertation submitted to the
Graduation Program in Social Sciences of the Universidade Federal de Santa Maria Rio
Grande do Sul/Brazil, in the Social Identities’ and Ethnic Groups’ Area, under the supervision
of Prof. Dr. Ceres Karan Brum. The aim of the present research is referring to gaucho’s
staging and identities’ meanings in Rio Grande do Sul, Brazil. Within this context the paper
investigates the circularity of the interpretive flows throughout the history of Rio Grande do
Sul and, still nowadays, on the emblematic character of the gaúcho, including the
representations and practices of countryman, projections and interfaces between the symbolic
farm laborer and the real farm laborer, their approaches and their distances, their symbolic
universes being them: shared, disputed or separated. It is proposed to understand this process
as a circularity, forming interpretative flows between the rural and urban, between the
countryside and the city, understanding this relationship as a dialogue, with exchanges and
interfaces between traditionalist men from the city and those who are from the farms, who
distribute these identities in a constant and intermittent way, not building a single track that
could be modeled and copied, true and false, real and imaginary. It is also tried to demonstrate
that the identity of the urban gaúcho, created from the model of rural south-Brazilian men, is
reinvented in the city and it is developed in the country with new practices and
representations, which are also appropriate and re-signified in the farms. By doing so, the
country men give a new meaning to the traditional practices and return to the city with new
practices and a representations about what is to be a gaúcho. Throughout this process it is
tried to understand the context between country and city, with a constant flux of
interpretations and re-interpretations of the same symbolic universe, which are the interfaces
between the traditionalists from the city and those from the farms.
Keywords: Gaúcha identity, traditionalism, regional history.
SUMÁRIO
De bota e bombacha: Um estudo antropológico sobre as identidades gaúchas
e o tradicionalismo.
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES..........................................................12
CAPÍTULO I O campo, o peão e a estância................................................24
1 Caracterização do mundo rural. A estância, os peões, as manifestações, os cenários e
o trabalho.
Marcação & castração...............................................................................................................30
A tropa.......................................................................................................................................35
Mansa de baixo”......................................................................................................................37
Pro meu consumo”..................................................................................................................41
2 O peão de estância.............................................................................................................45
Laurindo....................................................................................................................................48
Daca..........................................................................................................................................56
Lencina......................................................................................................................................60
CAPÍTULO II Rio Grande do Sul da narrativa histórica ao
Tradicionalismo.................................................................................................66
1 Breve história do Rio Grande do Sul.............................................................................66
2 Tradicionalismo, MTG e Identidade Gaúcha acionada...............................................79
CAPÍTULO III A circularidade das identidades........................................90
1 Acampamento Farroupilha..............................................................................................95
2 Freio de ouro................................................................................................................... 100
3 Semana Farroupilha Santa Maria 2008..................................................................104
O desfile de 20 de setembro....................................................................................................106
4 - Vira a Chapa e segue a mesma!- Os rodeios de tiro-de-laço....................................109
5 História, memória e identidades....................................................................................112
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................121
FONTES VIRTUAIS.......................................................................................130
FONTES DISCOGRÁFICAS...........................................................................131
FONTES ETNOGRÁFICAS............................................................................134
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.
O tema central desta pesquisa se refere às representações e as significações das
identidades do gaúcho no Rio Grande do Sul. Nesse contexto, busco entender a circularidade
dos fluxos interpretativos dados ao longo da história do Rio Grande do Sul e ainda hoje, sobre
a figura emblemática do gaúcho, entre as representações tradicionalistas
2
e as práticas dos
peões de estância, as projeções e interfaces entre o peão simbólico e o peão real, suas
aproximações e seus distanciamentos, seus universos simbólicos compartilhados, disputados
ou dissociados.
Cabe aqui definir, antes de mais nada, de que identidades e de que gaúcho estou
tratando. Entendo a identidade como algo dinâmico. É impossível entender identidade como
algo estático. Identidade é sempre a ação de alguma maneira de ser. De se comportar.
Portanto não se pode falar de identidades gaúchas, por exemplo, mas dessas identidades
acionadas. Esse é o caráter multi-dimensional, flexível e dinâmico das identidades. Elas são
sempre um meio para se atingir a um objetivo. Toda identidade é pragmática, fluida,
situacional (Okamura, 1981), polissêmica e se constrói através das estratégias das ações dos
atores sociais (Cuche, 1999). Dessa forma, as identidades gaúchas, às quais me refiro, se
restringem às manifestações ou eventos, individuais ou coletivos, onde é acionada a cultura
tradicional regional gaúcha. A cultura tradicional regional gaúcha, a qual me reporto, está
recortada àquela que remete ao homem vestido de bota e bombacha, aos usos, costumes e
tradições, do trabalhador rural do Rio Grande do Sul, da região pastoril, o homem do campo,
o peão de estância e as suas representações.
É certo que uma pluralidade de entendimentos sobre a questão das identidades na
antropologia. Cardoso de Oliveira afirma que uma pessoa ou grupo afirma suas identidades
como meio de diferenciação em relação a alguma outra pessoa ou grupo com que se
defrontam. O autor entende que a identidade, cria-se no contraste com outras identidades,
surge sempre por oposição implicando a afirmação do nós diante do outros, jamais se
afirmando isoladamente” (1976. p. 36).
O mundo dito pós-moderno
3
trouxe junto com suas transformações, novas negociações
2 Representações que remetem a um movimento organizado, de cunho social e cultural, coordenado pelo
Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG).
3 s-modernidade entendida como um movimento cultural do mundo contemporâneo, que rompe com os
paradigmas da Modernidade (Renascimento ao século XX), estabelecendo novas relações de uma sociedade
pós-industrial estabelecendo um novo conjunto de valores que privilegiam a informação à produção material
(Costa, 2005. p. 232 233).
13
e novas perspectivas para as construções das identidades culturais. As identidades tornam-se
híbridas (Hall, 2005), construídas socialmente desenhando escolhas políticas dos grupos
humanos. Tornam-se líquidas (Bauman, 2001), opondo-se à idéia de solidez das identidades
de uma modernidade anterior. Bauman usa a metáfora para demonstrar como as
transformações sociais, políticas e econômicas alteraram as construções das identidades nos
tempos atuais: a economia des-territorializou-se, o trabalho tornou-se flexível, independente
da localidade, não vinculando-se apenas à produção de bens materiais. As relações de
produção e consumo se tornaram mais fluidas na medida em que os indivíduos tornam-se
mais aptos a realizar escolhas livremente, dentro das opções que possuem. Neste sentido,
Manuel Castells entende que esta pluralidade é fonte de tensão e contradição, tanto na auto
representação quanto na ação social (1999. p. 22 e 23). Isto se pelo fato de que as
identidades constituem fontes de significado para os autores que a geraram, pois foram auto-
construídas, internalizadas, por meio da individuação. Para este autor, as identidades
organizam significados, e são construídas a partir de uma matéria-prima fornecida pela
história, pela geografia, pela biologia, pela religião, pelas memórias coletiva e individual (p.
23).
A cultura gaúcha, recortada àquela que remete ao meio rural e pastoril do Rio Grande
do Sul, e que tem como elemento central o gaúcho
4
, compreendido como um “tipo social”
humano, vinculado neste estudo à figura do peão de estância, ao homem do campo, aparece
com o povoamento do sul da América. Do ponto de vista da composição étnica, além dos
índios, segundo Gutfreind participaram da formação da sociedade colonial sul rio-
grandense brancos, negros e mestiços(2006. p. 241). A figura mítica do gaúcho, ao qual me
refiro, e que produz representações do passado, no presente, existiu dentro de um tempo
determinado. Sua constituição se deu desde meados do século XVII, com a colonização, até
metade do século XX com a modernização agrária sul-brasileira, promovida pela
industrialização e pela urbanização, com todos os seus desdobramentos. Este intervalo de
tempo que compreende pouco mais de três séculos sedimentou e ancorou as representações,
bem como a história e a cultura do gaúcho campeiro, do peão. Sobre esse passado se produziu
uma identidade e sobre essa identidade se produz hoje, e desde então, representações sobre
um passado mitificado, heroicizado, e idealizado num mito de origem. Entendo aqui “mito”
do ponto de vista antropológico. Sobre a história do gaúcho campeiro, do homem do campo,
4 Segundo Maciel (2000. p. 79), o gaúcho pode designar o gentílico de todos os nascidos no Rio Grande do
Sul”, ou o homem do campo ligado ao pastoreio”, ou ainda pensado como uma figura emblemática
elaborada a partir de uma busca pelo que seria denominador comum representativa de uma identidade
regional”.
14
criou-se uma narrativa mítica que dá conta de uma realidade atual, o “gaúcho herói”. Segundo
Rocha (1988), embora o mito possa não ser a verdade, isto não quer dizer que seja sem
valor(p.14), o autor entende que o que realmente é relevante é a eficácia do mito. Ou seja,
aquilo que se conta sobre o mito, sua narrativa, é o que realmente interessa, pois serve de
estímulo capaz de conduzir e mobilizar tanto o comportamento quanto o pensamento dos
seres humanos no lidar com suas realidades existenciais.
No entanto, o gaúcho campeiro, o peão de estância, não desapareceu do seu território.
Não é um ser extinto. Ele possui uma atualidade, um presente. E é sobre este tempo presente
que fundo minha investigação. Procuro pesquisar que relações se dão, quais universos
simbólicos são construídos a partir das práticas e representações desses gaúchos de hoje,
peões tradicionalistas e peões de estância, quando reportam-se àquele passado e acionam
aquelas identidades.
Não busco fazer uma arqueologia dessa identidade. Embora não possa prescindir de
uma retomada histórica desta construção no sentido de melhor compreender os
desdobramentos de sua formação. Não proponho instituir originalidades, essencialidades ou
fundamentalismos. Apenas apresentar subsídios históricos para, isto sim, abrir possibilidades
de suscitar o debate acerca deste tema tão relevante em nosso meio social, tão vivo em nosso
cotidiano, nas escolas, nos meios de comunicação, nas instituições públicas e privadas, e na
nossa vida de uma maneira geral. Tampouco tento fazer uma genealogia da tradição gaúcha,
vinculada ao universo rural, nem tento entender manifestações tradicionalistas a partir de suas
origens históricas, procurando verdades ou autenticidades. Procuro entender estas
manifestações a partir do presente. Compreender as interações sociais, conflitos e
sociabilidades geradas a partir destas manifestações.
De uma forma geral, os meios de comunicação e de informação, bem como o senso
comum, ao abordarem a temática do gaúcho costumam vincular tradicionalismo e a
identidade gaúcha, como se ambos fossem a mesma coisa, ou até mesmo usando os termos
como sinônimos. Não são sinônimos. Nem congêneres. Tampouco excludentes. Entretanto,
por vezes, são percebidos como indissociáveis. Mas é preciso distinguí-los. Entendo o
tradicionalismo como apenas uma das múltiplas possibilidades de manifestação da cultura
regional gaúcha, sobretudo aquela que remete ao homem rural, ao peão de estância. Como
mencionei anteriormente, compreendo identidade não como algo estático, mas como algo
dinâmico. Portanto a identidade nunca “é isto ou aquilo”, mas sim o “movimento disto ou
daquilo”. Por essa razão compreendo a identidade gaúcha como o movimento, as interações e
as manifestações desta forma particular de cultura gaúcha acionada. E o tradicionalismo como
15
uma de suas manifestações. Com isto quero afirmar que, ao instituir duas categorias analíticas
para o estudo do meu objeto, as identidades gaúchas e os fluxos decorrentes das práticas e
representações dessas identidades, distingo o tradicionalista urbano do peão de estância, e a
partir dessa hipótese, verificada em minhas pré inserções em campo, procuro demonstrar
como circulam essas identidades, como produzem representações, e como podemos
interpretá-las a partir de categorias como rural e urbano, na estância e na cidade. E quais os
universos simbólicos compartilhados entre esses dois cenários. É importante mencionar que
entendo representação como aquilo que se diz, se pensa e se faz no mundo ou a respeito dele.
Aqui entendo as representações sociais como constituintes do mundo real, não importando se
remetem a o que há de verdadeiro ou falso na figura do gaúcho mas o que é capaz de produzir
no mundo vivido. Essas representações sociais, como pude notar no trabalho de campo,
estão incluídas no real” (Maciel, 2000. p. 77) e constituem um imaginário social que “é
parte constitutiva da realidade agindo sobre esta (Ibidem). Ainda, como define Denise
Jodelet, as representações são construídas socialmente, partilhadas a partir das experiências
dos indivíduos em sociedade, nas trocas de informações, no compartilhamento de modelos de
formas de pensar recebidos e transmitidos pelas tradições e pela educação, estabelecendo uma
linguagem comum que será compartilhada pelo grupo ou pela cultura. (Jodelet, 1993. p. 22).
O todo utilizado nesta pesquisa é a etnografia. Segundo Eckert (2008), o método
etnográfico é um método específico da pesquisa antropológica(p. 01). Para essa autora a
pesquisa de campo etnográfica é composta
de técnicas e de precedimentos de coletas de dados associados a uma
prática do trabalho de campo a partir de uma convivência mais ou menos
prolongada do(a) pesquisador(a) junto ao grupo social a ser estudado. (p.
01).
O método etnográfico é um método qualitativo de pesquisa de campo. A observação
direta do grupo estudado, é sem dúvida a técnica que melhor possibilita investigar as
representações e práticas sociais de determinado grupo ou grupos, além de perceber ações e
intenções do comportamento humano. Convivendo entre os tradicionalistas e peões de
estância pude perceber algumas maneiras de como pensam e agem, bem como algumas
interfaces entre ambos. Para Eckert, a interação do pesquisador com o grupo pesquisado é
condição primordial para o bom andamento e resultado da pesquisa. O convívio veicula essa
interação, que se dá a partir da atitude de estar presente com regularidade, (...) participar
das rotinas do grupo social estudado, e sua técnica consiste na observação participante.(p.
16
03).
O etnógrafo emprega-se na tentativa de comprovar cientificamente a hipótese, ou as
hipóteses, que orientam sua pesquisa. Lidamos com seres humanos, seus sentimentos. Nosso
objeto, por vezes não são exatamente objetos, mas sujeitos. E portanto possuem o dom da
expressão e da fala. Em certas ocasiões, temos certezas quanto a um fato, no entanto, se nosso
informante declarar o contrário a respeito deste fato, isto é um dado, se torna uma nova
informação, uma variável relevante, algo que requer atenção. Por isso, a importância de saber
olhar, saber ouvir, para poder relatar e escrever. O texto de Roberto Cardoso de Oliveira O
Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever (1996), mostra como se deve apreender um
fenômeno social. É na percepção sensitiva do observador preparado, à luz da metodologia e
da teoria previamente elaboradas que se deve ir a campo. E será a partir desse campo, dessa
observação, atenta e meticulosa, que se desenvolverá o ato cognitivo de escrever. A escrita é
um ato reflexivo. Deverá se dar em separado. Distante dos eventos tradicionalistas ou do
galpão das estâncias é que pude repensar sobre as ações e as falas, os gestos e hesitações, e só
então ponderar, em que medida, tornavam-se significantes para a pesquisa.
Em Sociedade de esquina, Willian Foote Whyte relata como deve-se realizar a
observação participante: “sentado e ouvindo, soube as respostas às perguntas que nem mesmo
teria tido a idéia de fazer” (2005. p. 304). Este é o limite de imersão do etnógrafo e deve ser
percebido na própria entrada em campo. Na interação com o objeto, com os sujeitos da
pesquisa. Assim o Professor Gilberto Velho define a observação participante referindo-se a
Foote Whyte no prefácio de Sociedade de esquina:
Sua valorização da observação participante não é apenas retórica,
mas sim a expressão de uma posição ético-científica voltada para a melhor e
mais rica compreensão dos fenômenos sociais, tendo como base o respeito
aos indivíduos e grupos investigados. (VELHO: In FOOTE WHITE, 2005.
p. 12).
Assim é o trabalho de campo, suscetível a variações de todo o tipo, aberto a
provocações, mas sempre baseado nos fatos, é um pressuposto deste trabalho ser autêntico e
honesto com suas fontes. O etnógrafo, assim como todo cientista, deve ser probo na
investigação, relatar o que vê, o que sente, as reações, as hesitações, as exacerbações e os
silêncios. Conforme Geertz “a etnografia é uma descrição densa” (1989. p. 07). Devemos
primeiro observar para depois tentar interpretar. Não devemos esconder as dúvidas, mas sim
compartilhá-las, para melhor compreendermos e sermos compreendidos. Ao descrever o
outro, muitas vezes descrevemos a nós mesmos. Ao tentar entender os tradicionalistas e peões
17
de estância tentava responder às minhas próprias indagações. Retomando Eckert, A
observação é então esta aprendizagem de olhar o outro para conhecê-lo, e ao fazermos isto,
também buscamos nos conhecer melhor.” (p. 03 – 04).
A própria dinâmica do conceito de identidade, que permeia diferentes “escolas” das
Ciências Sociais, concede dinâmica ao processo de construção e delimitação do objeto. O
tema é dinâmico, pois o seu (meu) objeto é dinâmico. E não só isso. É difícil de ser
delimitado, compartimentalizado. Por esse motivo, difícil de ser descrito e interpretado.
Saindo de uma de uma visão culturalista para uma visão pós moderna do trabalho de campo
5
,
recorro a uma adaptação metodológica que George Marcus define em Ethnography through
thick and thin (1998. p. 5), o paradigma multi-situado da etnografia. Desta forma consigo dar
conta de toda multiplicidade do meu objeto, bem como da polissemia e da multi-vocalidade
dos meus informantes. Relacionando, pondo em diálogo todos os lugares onde realizei
etnografia. A partir do paradigma multi-sited strategies, é possível fragmentar as unidades de
observação, contemplando diferentes pontos, diferentes lugares, tanto no meio rural quanto no
meio urbano. Ambos são tão difíceis de delimitar quanto são de definir. As culturas e as
identidades gaúchas acionadas se dão em diferentes locais, produzindo o que chamei de
circularidade de fluxos interpretativos. Por esse motivo realizei etnografia em vários
municípios diferentes e dentro de cada um, em diferentes lugares. Embora, a multi-sited
strategies, possibilite uma fragmentação espacial, jamais se deve perder o enfoque do
problema e da observação, das interfaces entre os peões tradicionalistas e os peões de
estância. Desta forma, se mantém o lugar, como referência da etnografia, mas se ampliam e se
multiplicam as localizações, flexibilizando as linhas de investigação. Dissolve-se, portanto, o
foco, mas mantem-se o limite (stake). A etnografia multi-sited é multi-focada, dinâmica como
são as “culturas em circulação” e as construções das identidades.
Tenho a pretensão de compor um texto antropológico, e por esta razão me é tão cara a
etnografia. Em Italianidade no Brasil Meridional (2006), Zanini afirma que...
A etnografia é, pois, uma construção sobre o outro, por intermédio
de nós mesmos e que o outro nos permite conhecer. É um exercício
5 Adam Kuper (2002. Capítulo 6 p. 259 286) fala da transição pela qual passou a antropologia, pós anos 70
com Geertz, e anos 80, com teóricos literários e antropólogos liderados por James Clifford e George Marcus
que escreveram o manifesto Writing Culture e o periódico Cultural Anthropology (1986 1991)
denominando o novo paradigma, de “antropologia pós-modernista”, que consistia na introdução de uma
consciência literária na prática etnográfica, criando novos modelos para escrever e interpretar etnografias.
Kuper afirma que os novos antropólogos propunham não apenas uma renovação metodológica, mas o próprio
objeto da etnografia estava sendo transformado, cultura e, portanto, identidade estão em fluxo constante;
não são estáveis e concedidas, mas fluidas e mais ou menos construídas de forma consciente” (p.270).
18
reflexivo, acima de tudo. Nunca é um retrato definitivo, é, antes, uma
possibilidade. (Zanini, 2006. p. 27).
De acordo com a autora a etnografia é um exercício do possível, requer reflexão e
interpretação, acima de tudo. É um um ponto de vista científico de construção e desconstrução
sobre a alteridade. Outro pesquisador, submetido a outros informantes e outras redes de
relações, mas acerca dos mesmos sujeitos, pode, de acordo com sua interpretação,
desenvolver um olhar distinto sobre o mesmo grupo.
Assim, ao pesquisar por meio da etnografia, como se a circularidade dos fluxos
interpretativos das práticas e representações dos peões de estância e peões tradicionalistas, no
contexto das interfaces das identidades gaúchas vinculadas ao universo rural, gostaria de dizer
algumas palavras sobre a forma de como se deu minha inserção nesse cenário das identidades
gaúchas e também do gauchismo de maneira geral. Eu fui um guri criado entre as ruas Frei
Caneca e Euclides Aranha no município de Itaqui, fronteira oeste do Rio Grande do Sul,
dividida pelo Rio Uruguai da cidade de Alvear, na Argentina. Antes de começar os estudos na
Escola Estadual Aureliano Barbosa, pelos cinco anos, vivia entre a cidade e a estância,
junto com meu pai. Íamos “prá fora” quase todos os dias. Quando comecei a frequentar a
escola as idas à “Estância Don Henrique” ficaram restritas às férias e aos finais de semana. A
estância, uma pequena propriedade rural pertencente a meu pai e mais cinco irmãos, ficava
localizada no “Passo das Ovelhas”, distrito de Tuparaí, e distava 25 quilômetros da casa da
cidade, percurso que se cumpria em pouco mais de meia hora. Eram dezoito quilômetros de
asfalto (rodovia pavimentada) e sete quilômetros de “chão” (estrada de cascalho e chão
batido). Percurso rápido e fácil que percorríamos em uma Ford Belina, da qual me lembro
da cor (marrom) e do forte cheiro de azedo (de leite derramado) e de sangue (de carne de
ovelha) que meu pai levava da estância para consumirmos uma parte e vender o excedente na
cidade.
Na rua Frei Caneca éramos vizinhos de porta de uma pensão para moças administrada
por Dona França, esposa do Sr. Ariosto Lins, autor dos versos que seguem:
Foi em quarenta e nove / do ano mil novecentos, / quando houve
movimentos / de um tradicionalismo, / iniciado com civismo / na capital do
estado / e, mesmo, foi criado / um centro de tradições; / Itaqui foi um dos
primeiros / que uniu-se aos pioneiros, / conclamando os rincões. / Em
cinquenta e um, Itaquienses, / tendo à frente o “Seu Lauri”, / formaram em
Itaqui / sua primeira tropilha; / no batismo da coxilha, / “Bento Gonçalves”
foi o nome; / um louvor às suas glórias / consagradas na história, / que o
tempo não consome. / em cinquenta e oito, / ascendeu uma nova luz, /
19
surgiu o “Rincão da Cruz” / num estilo regional, / sendo o “Assis Amaral” /
quem guiou esta entidade. / Foi o primeiro galpão / que cultuou a tradição /
nesta abençoada cidade. / Lá por volta de setenta, / ressoou em Maçambará, /
nesse tempo também / outra sede foi prevista / mais um centro nativista /
recebeu o batistério, / e ali o Adão Gavião / orientou nesse rincão / o
“Recreio dos Gaudérios”. / Por fim em setenta e um, / mais o “Pereira de
Abreu”, / que com muito ardor nasceu / sobre o chão desta querência, / fruto
de uma dissidência / que Telêmaco Lima abriu, / depois de uma convenção /
foi ele mesmo o “Patrão” / que as rédeas assumiu.
Esses versos estão publicados no livro Itaqui, 120 anos (MARENCO, C. E
MARTINS, N. 1979) publicado em comemoração aos cento e vinte anos da cidade,
completados em 1978
6
. Os versos do Tio Ariosto
7
relatam de forma sucinta a formação das
entidades tradicionalistas no município de Itaqui. Telêmaco, a quem se refere nos versos, era
seu cunhado (irmão de Dona França) e também tradicionalista. Tempos depois, tornei-me
frequentador destas entidades, do “Rincão”, do “Cristóvão” e do “Recreio”, era dessa forma
que chamávamos os CTGs no cotidiano. Eu mesmo me tornei um tradicionalista, aos quatorze
anos, era peão das invernadas artísticas do CTG Cristóvão Pereira de Abreu, do qual o Sr.
Telêmaco Lima foi o Primeiro Patrão” e do qual meu pai era associado.
Outra referência que tive dentro do tradicionalismo foi a do Dr Orlando Jorge
Degrazia, itaquiense, advogado, pecuarista e amigo pessoal de meu pai e de meu tio
8
. Dr.
Jorge, além de pertencer ao “Grupo dos Oito
9
”, era o presidente do Movimento
Tradicionalista Gaúcho no ano de 1984, quando foi realizado em Itaqui o 29º Congresso
Tradicionalista, e eu então, com treze anos, lembro do movimento de tradicionalistas de todo
o estado do Rio Grande do Sul, dentro dos CTGs da cidade, naquela quente semana de
janeiro.
Mais uma referência que tive dentro do cenário cultural tradicional gaúcho, vinculado
ao regionalismo rural, e que é bastante peculiar, é acerca do poeta, jornalista e escritor
Manoelito de Ornellas. Nascido em Itaqui, em 1903, era o presidente do Movimento
Tradicionalista Gaúcho em julho de 1954 quando foi realizado o Congresso Tradicionalista
Gaúcho no CTG Ponche Verde na cidade de Santa Maria. Cresci familiarizado com a obra de
6 Aliás, tanto Itaqui quanto Santa Maria completaram seu sesquicentenário no ano de 2008. Santa Maria
comemora em 17 de maio e Itaqui em 06 de dezembro.
7 Era assim que eu o chamava e ele me deu o apelido de “Cabritinho”, diminutivo de “Chibo”, numa
referência ao apelido de meu pai.
8 O “Pepito”, José Henrique Fábrega Howes, irmão mais velho de meu pai.
9 Também chamado de “Piquete da Tradição”, que no dia 5 de setembro de 1947 receberam pilchados e à
cavalo o jipe do exército que transportava os restos mortais de Davi Canabarro, transladados de Livramento
para a capital. Estes oito jovens, então alunos do Colégio Júlio de Castilhos, constituem parte do grupo que
um ano depois criou o “35 CTG” e fundou o Tradicionalismo. (Ver Capítulo II, item 2).
20
Manoelito de Ornellas, sobretudo com a preferida de meu pai: Terra Xucra”, um livro de
memórias de sua vida em sua cidade do interior. É pertinente relatar um episódio que marcou,
particularmente, a minha vida em relação ao nome do escritor. Em 1987 fui estudar em Porto
Alegre no Colégio Farroupilha no bairro Três Figueiras. Como era um guri do interior, minha
cidade servia de chacota entre os colegas, por ser uma cidade muito pequena e desconhecida.
A mais distante da capital
10
e ninguém ouvira um dia, ao menos, o seu nome. Na primeira
semana de aula visitamos a biblioteca do Colégio e para minha surpresa, o nome era
“Biblioteca Manoelito de Ornellas”. Comentei com a professora e com alguns colegas que
não o nome da minha cidade constava nos livros como também o nome das minha avó,
Valdíria, e de minha bisavó, Júlia, estavam lá. E os mostrei:
Valdíria, que fez a vida dos teus cachos de ouro, de tua infância
ilustrada pelo riso mais aberto, que enchia de covinhas travessas as rosadas
maçãs do teu rosto?
Permanece na memória a ousadia que me levou a repetir a Dona
Júlia, um verso corrente, de uma “zarzuela” espanhola: “Me gustan todas,
me gustan todas, en general, pero la rubia, me gusta más...” (O menino pobre
de Itaqui. In: Terra xucra. Manoelito de Ornellas, 1969, para 22-23).
O escritor, como se vê, foi um admirador da beleza de minha avó, que no entanto não
casou-se com ele, mas sim com meu avô, Guilherme. O que nunca diminuiu, antes pelo
contrário, só aumentou, a admiração da nossa família pelas obras do escritor.
Ornellas era um hispanista convicto, pertencente àquela que se convencionou chamar
de corrente historiográfica hispânica (Gutfreind, 1992. p. 130). Profundo admirador do mundo
ibero-americano. Defendia a tese, em Gaúchos e Beduínos, de fronteiras político
administrativas indivisas na área platina. Pensava o pampa gaúcho rio-grandense da fronteira,
o Uruguai e a Argentina como uma unidade social e cultural, que apresentavam semelhanças
profundas quanto às tradições, hábitos, costumes, música e língua.
Assim como o autor, como tive a oportunidade de mencionar, passei minha infância
e a minha juventude numa cidade de fronteira. À tarde cruzava o rio de balça, junto com
alguns amigos, para a cidade vizinha de Alvear, na Argentina para visitar parentes, ou íamos,
até La Cruz (17 quilômetros mais adentro do país vizinho), para mirar las colegiales
cruzenhas ou ainda, como dizíamos: tomar un refrigerio no bolicho do Don Mocho Cabrera!
A Infância e a juventude de Ornellas foram vividas numa cidade do
10 Itaqui localiza-se há 745 quilômetros, por via rodoviária, da Capital Porto Alegre.
21
interior do Rio Grande do Sul, Itaqui, às margens do rio Uruguai, fronteira
com a Argentina. (...) do centro e do litoral do estado nada ou quase nada
chegava à faixa da fronteira, vindo da Argentina as roupas e tudo o mais, no
que se referia à cultura, teatro, música, moda e livros, sendo tudo em Itaqui
reflexo de Buenos Aires. (Gutfreind, 1992, p. 136).
Por essa razão e por esse conjunto de circunstâncias de vida, de experiências, possuo,
assim como Ornellas, um forte sentimento de hispanidade e americanidade, que de forma
consciente e inconsciente transponho para o texto dissertativo
11
, como pano de fundo da
minha argumentação.
Todos esses relatos demonstram a proximidade que tive, desde a infância, com o
gauchismo. E todo esse cenário, dentro do qual cresci, proporcionou-me aquilo a que
Bourdieu denomina background cultural. Este é um capital cultural que nos envolve e
concorre para determinar nossas identidades. Para Bourdieu, o capital cultural é um bem
durável, assim como um bem econômico, requerendo tempo e condições para ser adquirido
(Bourdieu e Passeron, 1970). Para que possamos nos apropriar simbolicamente destes bens é
necessário possuir os instrumentos desta apropriação e os códigos necessários para decifrá-
los, ou seja, é necessário possuir capital cultural no estado incorporado. No intuito de explicar
como esse capital cultural é transmitido e herdado, Bourdieu utiliza o conceito de campo
(nesse caso, o campo cultural) e de habitus (Bourdieu 2007, Cap. III). O habitus diz respeito
aos esquemas mentais de percepção, pensamento e ação que caracterizam o comportamento
do indivíduo. Ou seja, é como o sujeito percebe, pensa e age no mundo real. São disposições
internas herdadas da família e estruturadas pela experiência individual bem como pela
educação, constituindo-se no seu habitus primário. Os sujeitos, embora pré-dispostos pelo
habitus primário, são submetidos às contingências e múltiplas possibilidades de ação da vida
adulta, que constitui seu habitus secundário. Sendo assim, o habitus é a interiorização do
mundo exterior. É uma “marca” que a sociedade impõem e imprime sobre o indivíduo. o
campo é constituído pelas esferas autônomas da vida social, construídas historicamente,
envolvendo relações sociais, sistemas hierárquicos que pressupõem dominação. Com esta
noção de campo, Bourdieu propõe um conceito de sociedade formado por instâncias ao
mesmo tempo interdependentes e autônomas que instituem entre os indivíduos e os grupos
relações de concorrência e poder. Portanto, para se adquirir o capital cultural, valorizado
socialmente, depende-se de certo habitus, ou seja, de uma exposição duradoura a um ambiente
determinado que cultive esses mesmos aspectos culturais. O espaço propício para tal processo
11 Ver Capítulo II, item 1.
22
é a família. E de um campo, de uma esfera cultural que nos coloque em certo destaque, de
distinção, dentro do jogo dinâmico das relações de poder. Esse background cultural, esse
ambiente cultural no qual cresci, influenciou-me decisivamente, da mesma forma que
influenciou os que me cercavam. Cresci envolto nesse ethos cultural, nesse sistema de valores
que influenciou decisivamente a constituição das minhas identidades, determinada por esse
habitus cultural gaúcho. Dentro desse quadro, a materialidade desempenha papel
determinante. A pesquisadora Clarissa Rahmeier (2008) estuda a influência que as formas
materiais desempenham na formação identitária dos indivíduos e dos grupos. No dia-a-dia, na
interação quotidiana entre nós e as coisasque nos cercam, construímos modos de pensar e
agir. Respondemos objetivamente a estas influências subjetivas inconscientes. Manifestamos
de forma concreta e material nossa identidade gaúcha. Nos pilchamos, usamos termos
vinculados ao universo rural, ouvimos músicas regionais, manifestamos “certas atitudes,
vocabulário, tom de voz para cada situação”, e isso nos caracteriza como pessoas que
convivem dentro de um mesmo contexto”. Esse habitus tradicionalista e gaúcho, esse
conjunto de características é reproduzido no dia-a-dia, configurando o habitus de um grupo
social.” (p. 34).
Entendo que seja por tudo isso, por essa trajetória de vida, cultural, intelectual, afetiva
que me proponho a dissertar sobre o que entendo sobre o tradicionalismo e sobre as
identidades gaúchas. Bem como sobre as múltiplas formas de manifestações da cultura
tradicional gaúcha recortada ao cenário rural do homem do campo e suas representações. Ao
Compreender o modo como o habitus é formado e manifestado em meio a uma sociedade
possibilita uma melhor compreensão das identidades geradas na e pela mesma.(Ibidem. p.
35). Embora entenda estar aquém de um nível de abstração e de erudição necessários para tal
feito, arrisco dizer que sinto-me confortável ao tratar do assunto.
O texto dividir-seem três capítulos. No Capítulo I O campo, o peão e a estância
apresentarei o cenário rural, o trabalho, a vida no campo, o cotidiano dos peões, procurando
refletir sobre as práticas e representações desses peões acerca das identidades gaúchas,
vinculadas ao gauchismo rural, como se dá a relação entre o peão simbólico e o peão real, de
que forma manifestam-se, nesse cenário, os fluxos interpretativos e as circularidades das
identidades dos peões.
No Capítulo II Rio Grande do Sul História e Tradicionalismo apresento uma breve
história do Rio Grande do Sul, no intuito de compreender como se a constituição da
identidade dos peões de estância ao longo da história, desde o século XVII até o final do
século XIX, quando se dão as primeiras manifestações literárias, urbanas, culturais acerca
23
daquele gaúcho peão de estância constituindo-se como um mito, uma narrativa, que passa a
ser representada e vivida por esses movimentos, sobre a figura emblemática do gaúcho.
No Capítulo III A circularidade das identidades apresento o cenário urbano, as
manifestações e práticas tradicionalistas e as representações acerca do gauchismo na cidade.
As identidades gaúchas sendo re-significadas na cidade e devolvendo ao campo novas
práticas e representações. Proponho entender este processo como uma circularidade,
formando fluxos interpretativos entre o rural e o urbano, entre o campo e a cidade, entendendo
esta relação como um diálogo, no sentido de trocas e interfaces entre peões tradicionalistas e
peões de estância, que fazem circular estas identidades de maneira constante e intermitente,
não constituindo uma via única de modelo e cópia, verdadeiro e falso, real e imaginário.
Procuro demonstrar que essa identidade “gauchesca” urbana, criada ao modelo do homem
rural sulino, reinventa-se na cidade e devolve ao campo novas práticas e representações, que
por sua vez, são também apropriadas e re-significadas nas estâncias. Desta forma, os peões de
estância re-significam as práticas tradicionalistas e devolvem para a cidade novas práticas e
representações sobre o gauchismo. É dessa maneira que busco entender o contexto campo e
cidade. Um constante fluxo de interpretações e re-interpretações acerca de um mesmo
universo simbólico, qual seja, as interfaces entre os peões tradicionalistas e peões de estância.
CAPÍTULO I
O Campo, o Peão e a Estância.
Quando iniciei essa pesquisa, uma das coisas a que me propunha, era de realizar
etnografia no cenário rural, na estância. A literatura e os relatos etnográficos acerca desse
tema, a identidade gaúcha dos peões de estância, e os momentos que acionam essas
identidades e essas culturas, são na sua maioria, baseados em manifestações realizadas e
percebidas na cidade e em cenários que “apenas representam” a vida rural. Desde o início
pretendi realizar trabalho de campo em estâncias de fato, com peões, retratar e refletir sobre
seu trabalho, o cenário e as manifestações, desse meio, referentes a ação dessas identidades.
Sempre acreditei que essas manifestações, se davam de diferentes formas das encontradas na
cidade, que são mais vinculadas ao tradicionalismo urbano.
No entanto, eu sabia que era preciso provocar o que Bourdieu denomina como
“ruptura epistemológica”, ou seja, a ação de
pôr-em-suspenso as pré construções vulgares e os princípios
geralmente aplicados na realização dessas construções, implica uma ruptura
com modos de pensamento, conceitos, métodos que tem a seu favor todas as
aparências do senso comum (...) a primeira tarefa da ciência social (...) é a de
instaurar em norma fundamental da prática científica a conversão do
pensamento, a revolução do olhar, a ruptura com o pré construído...
(Bourdieu, 2007. p. 49).
A partir desse exercício, pensava em pesquisar como se dava a circularidade dessas
identidades. Ou seja, a interface entre gaúchos peões de campanha
12
e os gaúchos peões da
cidade, gerando fluxos interpretativos e cíclicos entre o homem do campo e o homem urbano,
o peão de estância e o peão tradicionalista. Tento entender a maneira pela qual cada um
produz práticas e representações acerca dessas identidades vinculadas à figura emblemática
do gaúcho campeiro, re-interpretando-as, re-significando-as, em seus meios, e fazendo
circular essas identidades, produzindo essa interface, essa troca, essa interação entre campo e
cidade. Acreditando ser possível encontrar respostas a estes questionamentos, me lancei ao
trabalho de campo tanto na etnografia urbana, quanto na etnografia do cenário rural. Então,
12 Região de campo apropriada a criação de gado. Interior” (Bossle, 2003. p. 112). Adotarei o termo
campanha como termo êmico que denomina o cenário rural: estar “prá campanha”, estar “prá fora”, estar “na
estância”.
25
busquei objetivar minhas observações. Isto é, realizar o que Bourdieu denomina de
objetivação participante”, um exercício tanto mais difícil, quanto mais necessário para a
apreensão do objeto estudado.
Aquilo a que chamei de a objetivação participante (e que é preciso
não confundir com a observação participante, a análise de uma falsa
participação num grupo estranho) é sem dúvida o exercício mais difícil que
existe, porque requer a ruptura das aderências e das adesões mais profundas
e mais inconscientes, justamente aquelas que, muitas vezes, constituem o
interesse do próprio objeto estudado para aquele que o estuda, tudo aquilo
que ele menos pretende conhecer na sua relação com o objeto que ele
procura conhecer. (Bourdieu, 2007. p. 51).
Como mencionei antes, a estância não constituía um cenário totalmente
desconhecido para mim. Por esse motivo, acredito que não possuía uma visão romântica ou
idílica da vida no campo. Entretanto, agora voltava ao cenário rural com a atenção e o
compromisso de pesquisador, buscando justamente, objetivar as observações e romper com
aquelas aderências e adesões a que Bourdieu se refere. Era preciso dessacralizar,
desmistificar a imagem que eu possuía a respeito do tema, e é possível que tenha sido,
justamente por essa imagem, que eu tenha me interessado pelo meu objeto de estudo e pelos
sujeitos da minha pesquisa.
Todas as pré noções precisavam ser afastadas. Era preciso provocar o estranhamento, e
eu sabia que era possível que eu não conseguisse. E isso comprometeria o trabalho.
Inicialmente, levada por uma imagem idílica construída pela
literatura do Rio Grande do Sul e dos países do prata, acreditei poder
encontrar homens e mulheres, quase ritualísticos, reuniam-se nos galpões de
estância, à volta de uma fogueira, para contar histórias. Realmente encontrei-
os, não sem algumas dificuldades, mas pouco a pouco fui percebendo que o
fato de contar história era muito mais cotidiano e menos ritualizado do eu
imaginava. (Hartmann, 2006. p. 168).
A pesquisadora procurava por contadores de causos
13
, eu, procurava por todo tipo
de manifestações que acionassem a circularidade das identidades, das interfaces entre o
campo e a cidade, dos fluxos interpretativos entre o gauchismo rural e o gauchismo urbano.
Ou seja, eu procurava por “tudo”, e ao mesmo tempo por “nada”. Afinal, era eu mesmo quem
podia definir, (até que conseguisse delinear e delimitar com mais prescisão meu objeto), quais
eram essas manifestações. A própria performance de um contador de causo, que Hartmann
13 “Caso, conto, acontecimento, história, narrativa. Os causos geralmente são de: tropeadas, caçadas,
pescarias, carreiras, lidas de campo, amores aventuras, entreveros, etc. o contados nos galpões das
estâncias gaúchas, à beira do fogo de chão.” (Bossle, 2003. p. 133).
26
procurava, poderia ser definida como um desses momentos.
A música regional gaúcha, tão presente nos meios de comunicação, como rádio e
televisão, constrói no imaginário da população, um cenário rural que remete a um passado
cada vez mais distante no tempo. As tropeadas, as esquilas
14
, os galpões, os fogos de chão, a
luz do candeeiro, os bailes de campanha (fandangos), enfim, uma série de imagens que
percorrem nosso imaginário, são verossímeis, mas que, em boa medida, não condizem com a
realidade rural contemporânea. Seria quase impossível achar um tropeiro, por exemplo,
daqueles que conduzem uma tropa pé, atravessando várias cidades. Primeiro porque meios
de transporte mais rápidos, baratos e seguros de realizar o transporte dos animais. Segundo,
porque a própria profissão, por essas mesmas razões, extinguiu-se algum tempo. Por
esse motivo, eu não esperava encontrar na campanha, aquele cenário romântico das músicas
regionais, dos livros de literatura gaúcha, das minisséries da Rede Globo
15
e das cartilhas
tradicionalistas
16
.
Logo que comecei a pesquisa, me defrontei com as primeiras dificuldades de
delimitação do meu campo etnográfico. Definir a linha divisória entre rural e urbano.
A opção pela pesquisa no mundo rural me havia sido imediata,
afinal, a maior parte das histórias transmitidas tinham relação com esta
realidade. O que eu desconhecia, no entanto, é que o vínculo entre campo e
cidade é muito estreito na região e que, em geral, mesmo as pessoas que
habitam a zona urbana possuem elos familiares, de trabalho ou lazer com a
zona rural. (...) contribuiu para me fazer permanecer muito mais tempo do
que o previsto no meio urbano. (Hartmann, 2006. p. 172)
Encontrei no meu trabalho de campo uma realidade semelhante. Todas as
manifestações da cultura gaúcha, recortadas ao tradicionalismo e ao gauchismo de maneira
geral, possuem estreita ligação com o mundo rural. E a Região Central do Estado, onde
realizei a pesquisa, apresenta uma ligação semelhante com relação ao vínculo campo e cidade.
O meio urbano, que fazia parte de um outro recorte etnográfico, acabou sendo utilizado como
complementar e subsidiário à etnografia rural.
Sendo assim, este capítulo é o resultado de uma série de trabalhos de campo realizados
14 Tosquia, tosa. (Bossle, 2003. p. 227). A esquila se refere ao gado ovino. Os animais são esquilados
(tosquiados), uma vez ao ano, ao final do inverno. A finalidade da tosquia é preparar os animais para suportar
o calor dos meses de verão, bem como o comércio da lã.
15 “O tempo e o vento” (Abril Maio. 1985) Baseado no Romance de Érico Veríssimo e dirigido por Paulo
José. A casa das sete mulheres” (Janeiro Abril. 2003). Baseado no romance escrito por Letícia
Wierzchowski e dirigida por Jayme Monjardim. Eventos como esses, pelo seu alcance e dramaticidade,
contribuem no sentido de construir um imaginário nacional sobre um gaúcho histórico.
16 Livros de folclore, usos e costumes do Rio Grande do Sul, editados pelo MTG, bem como publicações da
Martins Livreiro Editor que desempenham um papel de forte influência no universo tradicionalista.
27
naqueles locais que denominei de meio rural. Optei por esta nomenclatura na intenção de
distinguir estas observações, daquelas realizadas no cenário urbano, na cidade. Os limites
rural e urbano são delimitados geograficamente pelo poder público a fim de organizar as
atividades econômicas, instituir políticas públicas e tributar a população, além de outras
finalidades. As ações do poder público, assim como os impostos (IPTU e ITR)
17
, são distintos
nas zonas rural e urbana: eletricidade, saneamento, transportes, comunicação, etc, possuem
taxas, alíquotas e impostos diferentes em cada região. No entanto aqui, não tenho a pretensão
de apresentar um laudo sociopolítico ou econômico do meio rural. Pretendo apresentar, isto
sim, uma reflexão sobre o modo de viver e de se relacionar dessas pessoas, o modo de
representar e conceber o mundo em que vivem. Portanto, o termo “rural” é bem mais
complexo do que um simples adjetivo geográfico. É um termo ético, mas que facilita, ao ser
usado de forma genérica, englobando estes sujeitos. Os termos êmicos, usados, sim, pelos
sujeitos, não são genéricos, mas apenas distintivos de tudo que não é “cidade”. Os peões e as
pessoas no campo se referem ao seu espaço apenas como “aqui”, “aqui fora”, “prá fora”, “na
estância”, criando apenas uma distinção de tudo que não está na cidade. Ao chegar nesses
locais, sempre procurei perceber, em primeiro lugar, como os sujeitos o denominavam, de que
forma eles concebiam aquele local, para então, depois, nomeá-lo no diário de campo.
Portanto, é possível que haja observações de campo, às quais eu tenha dado o nome de
“rurais”, mas que ao contrário disso, tenham sido realizadas no perímetro urbano do
município. Embora eu sempre tente deixar isso bem claro.
Tomei duas estâncias como ambientes rurais referenciais: Estância Tarumã, em
Tupanciretã
18
e Fazenda dos Meios, em Restinga Seca
19
. Entretanto uma série de outros
ambientes que também classifiquei como observações realizadas em cenários rurais.
A escolha desses locais se deu devido a algumas limitações, bem como algumas
especificações. Em primeiro lugar a minha pesquisa não foi subsidiada por nenhuma bolsa de
estudos ou apoio financeiro institucional. Sendo assim, foi totalmente realizada com recursos
próprios. Por essa razão, precisei fazer algumas opções e concessões ao trabalho de campo.
Restringi a etnografia realizada no cenário rural a apenas duas estâncias. Além disso, foi
necessário escolher estâncias que preenchessem requisitos que eu julgava imprescindíveis à
pesquisa, mas que ao mesmo tempo, localizassem-se perto de Santa Maria. Dessa forma, não
17 IPTU imposto territorial urbano. ITR imposto territorial rural.
18 O nome da estância e do município são fictícios. A propriedade encontra-se em litígio e o proprietário,
embora permitisse a realização da pesquisa, exigiu o anonimato.
19 O nome da estância e do município são verdadeiros, bem como o nome todas as pessoas que se se referem ao
lugar.
28
optei por estâncias localizadas na Região da Campanha e na Região das Missões, que
seguramente seriam influentes ao trabalho. Escolhi, então, a Estância Tarumã, no município
de Tupanciretã, distante 110 quilômetros de Santa Maia e a Fazenda Dos Meios, distante 54
quilômetros de Santa Maria. Acreditei que essas estâncias conteriam algumas características
que possibilitariam a percepção de um cenário rural que pressupunha tradicional: elevado
número de peões, elevada extensão territorial, pecuária extensiva
20
e uma sede
21
. Embora
tenha visitado algumas outras propriedades próximas ou em volta desses locais, onde pude
realizar observações e entrevistas relevantes à pesquisa.
A cada local que visitava, recebia convite para ir a algum outro. Uma frase recorrente
dos proprietários, capatazes e gerentes das estâncias vizinhas era passa lá em casa prá tomar
um mate”. Então, recorri os locais fazendo observações, conversando com os peões,
registrando os cenários, o trabalho e as relações dessas pessoas.
A minha inserção ao cenário rural se deu por etapas. A primeira delas foi a de buscar
uma maneira de me inserir nesse cenário rural, na estância. Não conhecia nenhum estancieiro
ou fazendeiro em Santa Maria, sequer um peão de estância. Os contatos que tinha eram todos
vinculados ao cenário urbano, tradicionalistas que na sua maioria tinham atividades
econômicas vinculadas à cidade, e em que nada se referiam à pecuária ou ao universo das
estâncias.
Sempre tive a convicção de que havia elementos comuns ao campo e à cidade e que
por sua vez promoviam a interface entre o simbólico e o real, entre as práticas e
representações dos peões tradicionalistas e os peões de estância gerando a circularidade dos
fluxos interpretativos entre esses peões, entre essas identidades que eu pesquisava.
Um desses elementos eram os cavalos. O cavalo é um dos elementos (material e
simbólico) que proporciona essa interface entre esses dois mundos. O urbano e o rural. Esse
elemento é fundamental na constituição do peão de estância, na vida do homem do campo,
como seu instrumento de trabalho, de grande utilidade e eficiência para atividade econômica
que desempenha, muito embora ainda conserve, nesse ambiente, um caráter lúdico, pois
muitas vezes, é suplantado pela mecanização. O cavalo é também muito importante para a
constituição da identidade do tradicionalista urbano, como ornamento, complemento e
instrumento. Nesse caso, é utilizado para desfiles, cavalgadas, rodeios de tiro-de-laço entre
outras atividades. Convém lembrar que a imagem emblemática do gaúcho é a própria figura
20
Pecuária extensiva refere-se à criação de animais soltos a campo, o que requer elevada extensão territorial (em
torno de mil hectares) e um número de peões em torno de cinco ou mais.
21 Instalações: casas, galpões, mangueiras.
29
do Centauro. Isso remete à imagem lúdica criada pela letra da música restoude José
Hilário Retamozzo e interpretada por Leopoldo Rassier na Califórnia da Canção Nativa
22
, o
centauro no altar das coxilhas é o clichê que ainda causa emoção”. O centauro, a lenda grega
do homem cavalo é um clichê, mas que ainda mexe profundamente com esse universo
simbólico da identidade do gaúcho campeiro.
Dessa forma, procurei por lugares que potencialmente pudessem ser freqüentados
tanto por pessoas ligadas ao ambiente rural, quanto pertencentes ao mundo urbano. Um desses
lugares são os “centros de doma”, que são centros de treinamento, condicionamento e
hospedagem de eqüinos. , se podem encontrar estancieiros, filhos de estancieiros,
estudantes de cursos da área agrária, assim como pessoas vinculadas ao mundo rural, mas que
de alguma forma procuram estes Centros a fim de manter seus eqüinos mais próximos de suas
atividades na cidade, que a propriedade rural, muitas vezes, é distante (quando não, em
outro município). Essas pessoas vêem nesses locais a oportunidade de manter-se perto dos
cavalos. Por outro lado, pessoas vinculadas ao tradicionalismo, que desempenham atividades
econômicas na cidade, uma ocupação urbana (e que não possuem propriedades rurais), ou
ainda que moram na cidade, em apartamentos ou casas, mas que usam os eqüinos para
participar de cavalgadas, rodeios de tiro-de-laço, desfiles, etc, e encontram nestes Centros de
eqüinos a maneira de manter um animal em um local acessível.
Nos finais de tarde, após o expediente de trabalho, ou no começo das manhãs, antes
dele, essas pessoas reúnem-se nesses locais para interagir, tomar chimarrão, mexer nos
cavalos, abastecê-los com alimentos e suprimentos, encilhá-los, enfim, matar a vontade de
ficar perto dos bichos”, como me relatou Luciano Kruel, médico veterinário e proprietário do
Centro de Doma onde realizei trabalhos de campo.
Através de Luciano fiz contato com Mariana Borges, filha do Sr. Caio Borges,
proprietário da Fazenda dos Meios, que consegui a primeira inserção no universo rural, em
sua fazenda. Após quinze dias de visitas intermitentes, realizando observações no CT de
Luciano, observando o trabalho, o tratamento, o treinamento de rédeas, a doma, realizadas por
ele e por seu funcionário Laurindo (a quem dedico um item nesse capítulo), local este que eu
chegava no início da manhã e permanecia até perto do meio dia, foi nesse instante que
Luciano me disse: Me convidaram prá um rodeio grande numa fazenda aqui perto. No pai
duma colega da minha filha. Eu não vou poder ir. Se tu quer ir, te dou o telefone dela.E de
22 Festival de música, de cunho nativista, realizado pelo CTG Sinuelo do Pago da cidade de Uruguaiana, RS,
desde 1971. A Califórnia da Canção Nativa, além de ser pioneira nesse tipo de iniciativa, fundou toda uma
identidade musical gaúcha que tinha como ponto forte reafirmar a imagem de um gaúcho histórico, herói e
emblemático.
30
fato foi o que aconteceu. Luciano ainda intermediou a entrega do mapa. Luciano recebeu um
mapa do caminho para chegar até a estância e me entregou. Realmente foi muito necessário.
O caminho para chegar até a Fazenda dos Meios, no município vizinho de Restinga Seca,
possui mais da metade do percurso por estrada não pavimentada, sem sinalização ou placas
indicativas. Naquela madrugada gelada de junho, eu percorria um caminho totalmente
desconhecido, onde enxergava somente a imensidão do campo, entrecortado por mato
serrado, onde só ouvia o silêncio, e mais nada.
O percurso do caminho foi como viver um rito de passagem (Van Gannep, 1978. p.
191). Na entrada da fazenda percorre-se um longo caminho dentro da propriedade. Eu
sentia um misto de apreensão e euforia. Vi coisas que nunca havia visto. Era da noite de 15
para manhã de 16 de agosto, primeiro dia de lua cheia, numa madrugada clara, se viam os
búfalos da fazenda, corujas nas tramas das cercas, avestruzes à solta. A sensação que tive e
anotei no meu diário de campo foi: a sensação que tenho é de estar no lugar mais remoto da
terra. O silêncio é total. A palavra que define este lugar é sossego.Desliguei o carro e desci
para andar um pouco antes de chegar até a sede da fazenda. Nós, seres urbanos, totalmente
absortos em nossas “urbanidades”, somos arrebatados pela ausência de som. O cheiro é de
terra úmida. Olha-se em toda volta, e só se vê pontos de luz.
1 Caracterização do mundo rural.
A estância, os peões, as manifestações, os cenários e o trabalho.
Marcação & castração.
A Fazenda dos Meios foi um ambiente determinante para minha pesquisa, não
porque me proporcionou observar uma série de manifestações do cenário da vida rural, como
também uma importante lição sobre a observação participante e o fazer etnográfico.
O Sr. Caio Borges é veterinário e proprietário da Fazenda dos Meios. Desde que
passou a administrar a propriedade, que herdara de sua mãe, há trinta anos, costumava realizar
o rodeio
23
de marcação e castração da estância no dia vinte de setembro de todo o ano. Havia
23 O termo “rodeio”, nesse item, será utilizado em seu sentido original: Lugar no campo ou de uma estância
(...) onde usualmente se reúne o gado com a finalidade de marcar, assinalar, vacinar, dar sal, contar,
apartar, curar, castrar, examinar, etc.(Bossle, 2003. p. 449). O termo “rodeio” é ambíguo no cenário do
gauchismo. Atualmente o termo refere-se a um evento específico, de caráter competitivo e socializador entre
praticantes do tiro de laço e outras lides que referendam a vida e o trabalho dos homens do campo (tratarei
desse assunto no Capítulo III). Convém ressaltar que não no Rio Grande do Sul, mas também os cowboys
americanos, australianos, os sertanejos e pantaneiros do centro do país, os caipiras e os nordestinos utilizam-
31
razões para isso. Primeiro, porque coincide com a data do início da primavera, época propícia,
segundo ele, para marcar e castrar os terneiros (os níveis de calor e umidade do ar colaboram
para uma melhor cicatrização dos ferimentos)
24
. Em segundo lugar, por ser feriado, toda a
comunidade da “Colônia Borges
25
”, vilarejo pertencente ao município de Restinga Seca,
sente-se convidada a participar do rodeio de marcação e castração
26
. Entretanto, como me
relatou o Sr. Caio
A gente fazia a marcação e a castração, desde a época da Mãe, no
dia 20 de setembro, que é entrada da primavera. Acontece que os guri
ficaram “mocinho”, e inventaram de querer desfilar. sabe como é... Os
guris tem que tá. O pessoal também tava amolando com esse negócio de
desfile. Então, se todo mundo quer, a gente troca. Adiantamos um mês,
porque depois que entra a primavera não dá... aí todo mundo vem!
O Sr. Caio descreve os motivos que o levaram a adiantar em um mês o rodeio. No
relato, refere-se aos filhos
27
e a sua mãe, uma senhora idosa sentada à sombra, Dona Belmira
Borges, que assistia a tudo.
Marcelo, o segundo filho, me deu informações importantes sobre o trabalho no campo,
pois é quem mais permanece na Fazenda. Todos os quatro filhos, aliás, foram muito solícitos
ao me receber. No entanto, foi Mariana a pessoa com quem contactei primeiro, que me abriu
caminho
28
para chegar até a fazenda. Mariana é colega de faculdade da filha de Luciano
Kruel, proprietário do Centro de Treinamento e Doma. E foi ela minha principal informante,
na primeira inserção a campo na Fazenda dos Meios.
Ao longo da observação, notei que as pessoas sabiam que eu era de “fora”. Não era da
comunidade. Não era parente. Não parecia um estudante colega dos meninos (já não aparento
vinte anos há vinte anos), nem era peão da estância. Mas registrava tudo. Fotografava,
perguntava, anotava, e ainda me chamavam (Zeca, Marcelo, Mariana e Solano) para ver e
registrar o que eles acreditavam que podia me interessar. Então, aos olhos da peonada e da
comunidade presente no rodeio, virei o jornalista”. Na época senti um certo desconforto,
se do termo com o mesmo sentido e significado.
24 Último prazo para castrar e marcar” (Barros, 1996. p. 39).
25 Uma parte da propriedade da família Borges foi doada ao município para a implantação do vilarejo. Com
isso, restaram elos de vinculações recíprocas entre a família e a comunidade. Esta participa dos “eventos” da
Fazenda, bem como, a Fazenda subsidia com carne e dinheiro as festividades da comunidade, além de
contribuir com a escola e com a paróquia.
26 Em torno de 40 a 50 famílias migram do vilarejo até a sede da Fazenda para ajudar e participar da
festividade. As mulheres e as meninas permanecem “em volta das casas” ajudando no preparo da comida
(arroz, salada, mesas, bebidas), enquanto que os homens e os meninos maiores (10 ou 12 anos) permanecem
em volta das mangueiras ajudando na lida campeira (derrubando, maneando, descornando, embretando,
manejando o gado).
27 Zeca, filho mais velho. Marcelo, 2º filho, administrador da lavoura. Mariana, psicóloga, e Solano, o caçula.
28 Mariana desenhou um mapa detalhado para que eu chegasse até a fazenda.
32
mas logo descobri que essas pessoas desenvolviam sua própria explicação a meu respeito
(Foote Whyte, 2005. p.301). Nas primeiras incursões que fiz a campo, tentava dar uma
explicação bem elaborada e completa a respeito do que eu fazia ali. Na época estava
bastante satisfeito com minha fala, mas ninguém parecia se importar com ela. dei essa
explicação duas vezes, e quando terminei ficou aquele silêncio incômodo. Ninguém, inclusive
eu mesmo, sabia o que dizer.(Ibidem) Aprendi que um dos fatores determinantes para uma
boa inserção e aceitação do pesquisador no campo é a figura de um informante. O sucesso
dependia muito mais das relações pessoais que eu conseguisse desenvolver, do que de
qualquer explicação que eu pudesse dar. Mariana foi a minha informante, no meu trabalho de
campo na Fazenda dos Meios. Ela, conhecendo seu pai, seus familiares, a comunidade, enfim,
conhecendo a todos, evidentemente, muito melhor do que eu, deu-lhes uma explicação a meu
respeito e sobre os motivos da minha presença, à sua maneira, e muito melhor do que eu
poderia dar. Esse é o Guilherme. Ele aqui fazendo uma pesquisa para a Universidade.
Essa, na verdade, era uma explicação legítima e que fazia sentido para todos. Mariana
legitimou a minha presença entre eles através da sua aceitação. Era uma explicação simplória
e incompleta, mas que todos entenderam. Dessa forma reafirmo que Mariana foi uma figura
chave na minha incursão à Fazenda dos Meios.
Sempre tentava transmitir a todos a impressão de que estava disposto
e ansioso para falar sobre meu estudo para qualquer um, mas com os
líderes dos grupos eu fazia um esforço especial para realmente passar a
informação completa. (Foote Whyte, 2005. p. 301 302).
Deixei claro todos os motivos e razões da minha pesquisa, ao Marcelo e a Mariana,
pois percebi que era a eles que eu deveria me dirigir toda vez que voltasse à fazenda.
Naquele sábado, 16 de agosto, foram marcados a ferro quente, aproximadamente 1500
terneiros, sendo que mais ou menos a metade eram machos, e também foram castrados. O
gado é trazido do campo, aos lotes de cem ou duzentos, colocados na mangueira e depois
embretados. No brete, que é um corredor estreito, são amarrados pelas patas, que são puxadas
para trás, e pelo pescoço, que é puxado para a frente. Dessa forma o animal é derrubado ao
chão e arrastado para fora do brete. são necessários três homens para puxar cada corda, mais
um que ajoelha-se sobre o pescoço, imobilizando a cabeça e outro sobre o quadril da rês,
imobilizando-lhe o tronco. Isso é feito simultaneamente, ao longo do brete, com quatro ou
cinco rezes. Depois do animal imobilizado, Solano dirigia-se com a marca incandescente e
marcava o animal. Ao fazê-lo, o animal berra devido a dor. Exala um cheiro forte de pêlo e
33
carne queimados. Quando é fêmea, marca-se também no rosto (cara) do animal, na chamada
ganacha (bochecha), também a ferro quente, um pequeno círculo que indica que foi imunizada
contra brucelose
29
. Se é macho, além da marca, é castrado. Revesavam-se para castrar,
Mariana, sua amiga Caroline, Marcelo, entre vários colegas de Mariana e de Solano,
estudantes do curso de veterinária. Com o animal deitado, os testículos são pressionados para
baixo, quando a bolsa escrotal é cortada
30
, expelindo os testículos para fora, então o cordão é
rompido
31
. O animal é ainda assinalado. Em uma das orelhas é feito um furo e na outra é
cortado um pedaço em formato de “V”. Cada estância possui uma marca e um sinal próprios e
registrado junto ao Órgão Público competente. Depois de extirpados do animal, os testículos
menores, portanto dos animais mais novos, são jogados à brasa (a mesma onde é aquecida a
marca), onde cozinham (assam) por alguns minutos, formando uma espessa camada torrada
conservando seu interior cozido mas sem queimar. Depois é retirado das brasas colocados de
molho em uma solução de sal e água (salmoura), espera-se um instante para que esfrie. Então
descasca-se a camada torrada e come-se. Quase todos apreciam a iguaria. Alguns até relatam
suas propriedades afrodisíacas. Come-se desde manhã cedo, quando são castrados os
primeiros terneiros. O sabor é semelhante ao de vísceras como coração, gado ou até mesmo
rins.
A Colônia Borges, localiza-se dentro do município de Restinga Seca, que por seu
turno, é um dos municípios que compõe a Quarta Colônia
32
, região de imigração italiana, e
portanto, com forte influência dessa cultura. Dessa forma, observei que dentre as pessoas
advindas da comunidade para ajudar no rodeio, muitas não usavam bombachas ou sequer
qualquer indumentária que acionasse uma identidade gaúcha vinculada aos peões de estância,
sobre a qual eu pesquisava. Esse fato contrastava com a indumentária dos peões da própria
estância, bem como dos proprietários. O Sr. Caio, assim como os peões, vestia bombacha (a
maioria, mas não todos), boinas, bonés, chinelos. Roupas simples, mas que de certa forma os
vinculava a uma identidade definida. A pilcha
33
, realmente, quem a vestia, eram Zeca,
29 Essa é uma determinação da Inspetoria Veterinária do município, conforme me informou Marcelo.
30 Mariana usava um bisturi. Outros usavam pequenas facas bem afiadas. Perguntei se não inflamava o
ferimento, ao que me responderam “A faca tem que tá limpa. (...) Só não pode descascar laranja antes...
31 O corte na parte inferior da bolsa escrotal é amarrado com “barbante ursa”, encontrado em casas
agropecuárias, e vendido para essa finalidade. Conforme me informou Mariana.
32 Os municípios que compõe a IV Colônia o: Agudo, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Ivorá, Nova
Palma, Pinhal Grande, Restinga Seca, São João do Polêsine e Silveira Martins.” (Zanini, 2006. p. 31).
33 “Vestimenta típica do gaúcho. (Bossle, 2003. p. 398). Segundo o dicionário Aurélio, pilcha quer dizer:
dinheiro, adorno, adereço, jóia, qualquer objeto de algum valor. Maciel (2001), descreve o momento histórico
da vinculação do termo pilcha à nomenclatura da indumentária típica do gaúcho pilcha como algo de valor
tradicional, pilcha como vestuário é tradicionalista. (p. 257). Em 8 de maio de 1948, Antônio ndido,
então secretário do do novo Centro de Tradições Gaúchas, sugere em uma reunião entre os tradicionalistas,
34
Marcelo, Mariana e Solano, bem como seus amigos/as, namorados/as, esposas e seus amigos
e convidados vindos de Santa Maria para o evento. A maioria composta de jovens, na maioria
universitários, e provavelmente de acessível poder aquisitivo. Hoje para vestir uma pilcha
campeira (a mais simples e para andar a pé), gasta-se em torno de quinhentos reais. Refiro-me
a “andar a ”, uma vez que para andar à cavalo é necessário além da indumentária (roupa),
os arreios e os aperos
34
para os cavalos, um laço, um tirador, um arriador (ou relho), uma faca,
entre alguns outros utensílios úteis e necessários para a lida campeira.
É importante notar, a partir dessas observações, que aquela representação do peão de
estância, encontradas na cidade e construídas pelos meios de comunicação, bem como pelas
cartilhas tradicionalistas, nem sempre encontram referência no mundo real da estância. Posso
concluir que o que realmente caracteriza o peão de estância não é exatamente sua
indumentária ou sua aparência, mas todo um conjunto de práticas e representações sobre seu
trabalho. É o seu “fazer” profissional que o caracteriza como peão. Michel de Certeau, em A
invenção do cotidiano (1994), denomina essas práticas comuns, de as “artes de fazer”. O autor
examina a maneira como as pessoas comuns individualizam as práticas e a cultura dominante.
O “homem ordinário”, o homem comum, o cidadão médio inventa seu cotidiano através das
“artes de fazer”, as “astúcias sutis”, “táticas de resistência”. Tudo isso relaciona e alterna
objetos e códigos estabelecendo novas apropriações e re-elaborando os usos e os espaços ao
modo de cada um. Essas 'maneiras de fazer' constituem as mil práticas pelas quais usuários
se re-apropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural.(Certeau,
1994. p. 41). Num mundo pré determinado pelas políticas culturais, uma margem de ação
do homem comum, imerso numa multidão anônima, de inventar seu próprio cotidiano, através
de suas práticas peculiares e próprias.
Nos rodeios de tiro-de-laço, de que tratarei no Capítulo III, é obrigatório, por exemplo, laçar
de bombacha, chapéu, bota, e camisa de gola
35
. O argumento dos organizadores é que devem-
se cumprir as regras do MTG, que estipula a indumentária do peão, do “gaúcho autêntico”,
que deve refletir a imagem do peão de estância. Nesse instante, pode-se notar um visível fluxo
interpretativo entre o peão simbólico e o peão real. Fica quase impossível diferenciá-los. É
difícil determinar qual dos dois refere-se a uma representação. Entendendo que as
representações sociais estão incluídas no real e de que o imaginário social é parte
entre eles Barbosa Lessa, o uso do termo pilcha para designar a indumentária gaúcha. (Lessa, 1985. p. 65).
34 Arreios e aperos podem ser usados como sinônimos. No entanto, os arreios remetem muito mais às peças
usadas sobre o lombo do animal, e os aperos, aos utensílios utilizados na cabeça, para o comando do animal.
o as cordas. (Bossle, 2003. ps. 41 e 49).
35 Em alguns casos a bombacha deve ser larga e não a “tipo correntina”, que é mais estreita. O Chapéu deve ser
de feltro, e não pode ter a aba dobrada dos lados, remetendo ao cawboy.
35
constitutiva da realidade, agindo sobre esta, procura-se não realizar uma oposição
mecânica, real de um lado, imaginário de outro(Maciel, 2000. p. 77), ou seja, não procuro
separar entre verdadeiro ou falso, mas sim, como uma constante circularidade de re-
significações sobre uma mesma identidade. O imaginário construído acerca das lides
campeiras” orienta as práticas não na cidade, mas também no campo. A representação do
gaúcho campeiro, elaborada na cidade, configura-se também como um modelo e é, de certa
forma, “devolvido” ao campo, orientando as relações e práticas entre os homens do campo.
Baczko, ao tratar do imaginário social, mostra que é através deste, que uma coletividade
designa sua identidade; elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos
papéis e das posições sociais (Baczko, 1985. p. 309). Sendo assim, quando me refiro a
identidade do peão de estância, do homem de bota e bombacha, posso estar tão somente
referendando um modelo, apontando assim uma certa circularidade dessas identidades, que
podem inserir-se no mundo real a partir, apenas, de um fluxo constante de construção de um
imaginário.
A tropa.
Durante a minha primeira estada na Estância Tarumã, no terceiro dia, no final da tarde,
observei um movimento estranho no galpão. Um rapazote de uns vinte anos, chegou até a
estância e dirigiu-se ao Capataz, solicitando “pouso” para uma tropa. Achei o fato curioso, e
passei a observar como tudo aconteceu. Sérgio, o capataz da Tarumã, concedeu-lhe o pouso,
não sem antes perguntar qual o tamanho da “tropa”. - Duzentas e trinta cabeças”, respondeu
o rapaz. “E de quem é?” perguntou Sérgio. Depois deu orientações ao rapaz:
O gado tu bota ali naquele potreiro da frente, o de anoni
36
, que tem o
bebedor em baixo. Os cavalo tu desencilha ali no bebedor do lado do
galpão e depois pode soltar no potreirinho
37
da frente. Se quiserem, podem
pousar no caramanchão. Tá quente!
O fato me surpreendeu, já que pensava que não houvesse mais tropas. Por essa razão,
fui conversar com os “tropeiros”, logo que se estabeleceram sob o caramanchão para preparar
uma comida. Gonçalo, o capataz da tropa, me relatou que o gado se tratava de terneiros de
36 Tipo de vegetação, pastagem.
37 Potreiro é uma pequena parcela de campo cercado, piquete. O nome origina-se por ser um local destinado à
parição das éguas, onde nascem os potros, ou são confinados na época da doma.
36
sobreano
38
, que estavam sendo transportados de uma estância para a outra pertencentes ao
mesmo dono. As duas propriedades distavam, uma da outra, uns quarenta quilômetros”,
percurso que percorriam entre dois e quatro dias, dependendo do tipo de gado. Os quatro
homens que conduziam a tropa eram todos peões da própria propriedade que receberia o gado.
Pois esta tinha sede e instalações. Na outra propriedade, de onde vinha o gado, havia somente
o campo de recria”, que é um local onde não há casa, galpões e nenhum tipo de instalações.
Dessa forma eles não eram exatamente “tropeiros” (como mão-de-obra independente que
conduz tropas), mas peões da própria estância, empregados formalmente, conduzindo uma
tropa por terra, com a finalidade de baratear os custos de transporte. O tipo de transporte mais
comum nesses casos, o os caminhões Truck, com capacidade para 25 rezes. O custo do
transporte gira em torno do valor de um litro de óleo diesel (em torno de dois reais o litro) por
quilômetro rodado. Seriam nove viagens de oitenta quilômetros, contando o percurso de ida e
de volta, geraria um custo em torno de mil a mil e quinhentos reais. Gonçalo contou-me que a
tropa estava à venda, por cento sessenta e um mil reais, e se o proprietário comercializasse o
gado com alguém de perto, uma propriedade próxima, ele seria avisado para entregar o gado
já ao novo e eventual proprietário.
Sérgio ofereceu aos tropeiros um quarto de ovelha
39
, para que preparassem a janta.
Gonçalo agradeceu a carne, cortou-a em alguns pedaços graúdos, e fritou-a em uma panela
também fornecida por Sérgio. Preferi, naquela noite, jantar com Gonçalo e seus peões, ao que
Sérgio não objetou.
Sérgio é um alemão gordo, alto, de voz tranquila. Via de regra é um homem alegre e
sempre muito cordial. É casado, tem dois filhos que estudam no ensino médio. Ele mora na
estância e sua família mora em Tupanciretã. Ele os visita duas vezes por semana,
regularmente. Pousa na cidade nas noites de quarta para quinta-feira e de sábado para
domingo. Salvo quando alguma atividade extraordinária na estância. Quase sempre, às
segundas pela manhã, há carregamento de gado. Pois a maioria dos frigoríficos mata
40
nas
segundas e nas terças-feiras.
Sérgio ajustou-se na estância em 1981 como peão.
Dei baixa na segunda-feira e terça tava aqui. Tu a sorte! Fui
colega de quartel do Trajano
41
. Saí de e vim trabalhar com o pai dele.
38 Idade compreendida entre 1 e 2 anos. (Bossle, 2003. p. 472).
39 Peça de carne. Pernil.
40 Abate.
41 Pai de Viriato, filho do Sr. Turíbio.
37
Naquele tempo era brabo. Não tinha moleza. Uma folga por mês. (...) Depois
que eu casei, passei a sota (promovido a sota Capataz) e Seu Turíbio me deu
folga todo sábado. Quando nasceu o Eurico, o hôme foi morar em Porto
Alegre e a coisa ficou pior. Aí, quando morreu o Dico, fiquei eu de capataz.
peguei me organizar. Juntei um gadinho e fiz a casa. (...) Depois que o
hôme vendeu a lavoura, comecei ir pra cidade quarta e sábado.
Sérgio parece estar confortado com a vida que leva na estância. É responsável por três
mil cabeças de gado. É o “homem de confiança”, o “braço direito” do patrão, que mora em
outra cidade. Raramente usa bombachas. Somente quando monta a cavalo. No restante das
vezes usa calças jeans ou bermudas. Não é tradicionalista e não ouve sica gaúcha. Sérgio
atribui isso, ao fato de não descender de uma família de proprietários de terra. Veio a ligar-se
ao mundo rural “(...) por força do destino. O pai queria que eu fosse Contador, mas eu vim
pra antes e deu certo.Contou-me Sérgio, no final da tarde do dia 31 de julho, enquanto
tomávamos mate juntos. Costume aliás, que Sérgio diz ter aprendido com sua esposa, Elza.
“Mansa de baixo
42
.
No mês de janeiro de 2009 voltei à Tarumã. Quase meio ano depois da minha primeira
estada, que ocorreu na segunda quinzena do mês de julho de 2008. Essas primeiras
observações, de início, me levaram a programar uma nova inserção àquele campo. Fiz
planos, programei uma nova estratégia de observação, e novamente recebi autorização dos
proprietários da fazenda. Depois de trocar alguns e-mails com Viriato
43
, neto do dono da
estância, este demonstrou satisfação com a minha presença, novamente, na fazenda. Dessa
vez, o próprio Viriato passava uma temporada na fazenda, sendo assim, foi ele próprio, além
de cicerone, meu informante.
Viriato e eu fomos colegas de colégio no final dos anos 80. E voltamos a nos encontrar
em Santa Maria, em 2001. Dessa forma, não éramos propriamente estranhos um ao outro.
Embora tenhamos seguido caminhos profissionais totalmente distintos, desde o princípio
conjugamos o gosto pela música e pela literatura do Rio Grande do Sul.
Logo que cheguei à Tarumã, deixei claro a Viriato que gostaria de pernoitar e fazer as
refeições no galpão, junto dos peões. Para intensificar o convívio. Somente no último final de
semana, no domingo 1º de fevereiro, que seu avô Turíbio, dono da estância, veio almoçar com
42 Se diz do cavalo amanunciado. Amansar de baixo. “Amansar um animal sem montá-lo. Domesticar um
animal por meios brandos, com carícias e palavras suaves; tirar-lhes as manhas sem molestá-lo.” (Bossle,
2003. p. 32)
43 Como já tive oportunidade de mencionar antes, todos os nomes que se referem à Tarumã, são fictícios.
38
a família, alterei a rotina. O menino Panque (corruptela de seu sobrenome: Pankeviske), filho
da cozinheira da Fazenda, veio até o galpão no fim da manhã, me comunicar que me
aguardavam para o almoço. Imediatamente agradeci. Daca, o peão mais antigo na fazenda,
olhou-me com olhar de reprovação e exclamou: Se é o homem que convidando, acho que
o senhor deveria ir. Não fica bem... Entendi a mensagem que Daca me passava através
daquela fala sucinta. Que eu não deveria recusar a um convite daquela importância.
Compreendi que seria uma desfeita e uma indelicadeza de minha parte recusar o convite. Qual
fosse a minha justificativa. Nada poderia ser mais importante do que aquele convite, nem a
minha pesquisa. Seu Turíbio fazia questão da minha presença. Afinal de contas, eu era o
“amigo de seu neto”, e não pode comer no galpão. Tem que comer aqui na mesa grande
com a gente. Então esta foi a única vez que comi na mesa da casa da sede da Tarumã.
Reconheço que ao fazer as refeições no galpão, eu me sentia à vontade, ao passo que na mesa,
com Seu Turíbio permaneci bastante recatado. No galpão, parecia não haver hierarquia ou
formalidades, ao passo que “na casa” fazia-se muita cerimônia. A mesa grande, todos
ordenadamente sentados, a sala ampla, móveis de madeira sólida, direito alto, pintura com
detalhes e decoração sofisticada. Eu não entendia o que tudo aquilo significava. Mas com
certeza, a construção “tentava” ser o mais diferente possível do galpão.
As construções, nesse sentido, atuam como formas de perpetuação
de códigos culturais e de regras sociais, fazendo com que os ambientes que
se formam a partir da inserção de elementos construtivos em dada paisagem
se constituam em espaços cheios de significados. (...) é inegável que um
dado conjunto arquitetônico constitui-se em um meio de preservação da
hierarquia social. Isso porque a hierarquia manifestada na arquitetura acaba
por influenciar as formas de interação entre as pessoas e a materialidade.
(Rahmeier, 2008. p. 36).
É possível ainda afirmar que a hierarquia manifestada na arquitetura influencia não as
relações entre as pessoas e a materialidade como também as interações entre as próprias
pessoas. Aquelas mesmas pessoas expostas em outra materialidade, outro cenário,
interagiriam possivelmente de forma distinta. É de acordo com a leitura que fazemos da
materialidade, que escrevemos sobre esta mesma. Isto é, fazemos uma leitura à nossa volta, e
muitas vezes dessa leitura não conseguimos captar a totalidade de seus símbolos e
significados. Ou seja, não a entendemos. Não trato aqui de uma leitura de caracteres gráficos,
de um texto no sentido literal. Mas de uma leitura do cenário que nos cerca, da materialidade
à nossa volta, de uma leitura no sentido antropológico. Uma vez feita esta leitura, passamos a
39
escrever sobre ela. Também aqui, não apenas escrever no sentido textual gráfico, mas fazer
uma descrição densa (Geertz, 1989). O constrangimento que eu sentia naquela situação de
estar à mesa da casa da Fazenda Tarumã dava conta de uma impossibilidade minha de me
inscrever naquele cenário, eu não sabia exatamente como agir ou me comportar. A hierarquia
contida naquela arquitetura, posições à mesa, objetos, talheres, gestos, enfim uma série de
materialidades eram de certa forma incógnitos para mim, enquanto que no galpão, eu me
sentia cognitivamente inserido, apto a me inscrever ou escrever sobre ele.
Viriato, sabendo do meu interesse em observar o cenário do trabalho dos peões, as
manifestações do cenário rural que acionam as identidades dos peões de estância,
providenciou que eu pudesse assistir toda série de atividades vinculadas ao cotidiano da vida
campeira, da estância e dos peões. E mais que isso, que eu pudesse participar dessas
atividades, na medida do possível.
no segundo dia, pela manhã, Daca e Lencina (de quem tratarei nos próximos Itens,
desse capítulo), trouxeram para a mangueira, doze éguas com cria ao
44
. Foram
selecionadas somente éguas que houvessem parido fêmeas (as éguas que parem machos são
apartadas e vendidas junto com a cria). Viriato me informou que as potrancas seriam todas
amanunciadas e depois, selecionadas as melhores, para serem posteriormente domadas para o
trabalho na estância. Olhávamos os animais sentados no último listão da cerca (uma cerca de
madeira de aproximadamente dois metros de altura), enquanto eu anotava as informações de
Viriato sobre os animais e o seu manejo, quando ele exclamou: Escolhe uma pra ti
amanunciar! Em quatro ou cinco dias tu deixa sem cócegas. Depois, tu vai ajeitando até ir
embora. Aí, depois alguém continua. Fiquei tanto surpreso e apreensivo, quanto
entusiasmado. Era uma oportunidade única de profunda imersão ao objeto de estudo. Ir
camperear junto com os peões era uma experiência de convívio intenso. Mas amanunciar
um animal, parecia ser mais ainda.
O dia ainda não acabara de clarear, embora houvesse bastante luz. Eu enxergava
pouco. Além do mais, as potrancas se movimentavam rapidamente entre as éguas maiores.
Viriato sugeriu que eu escolhesse a mais nova, que por ser menor, teria menos força,
facilitando meu trabalho e compensando a minha falta de experiência. Todas as éguas da
fazenda são mestiças, filhas de cavalos crioulos puros com éguas comuns, de serviço, ou seja,
que se usa no trabalho diário. Isso, segundo Viriato, gera animais rústicos, resistentes, mas
funcionais e dóceis. Escolhi, então uma tobiana gateada, de nome Tertúlia, com
44 Égua já parida e acompanhada da cria.
40
aproximadamente sessenta dias de idade. O pêlo tobiano não é aceito no livro de registros
genealógicos (pedigree) da Raça Crioula. Os motivos são técnicos, ou zootécnicos que não
cabem aqui serem explicados. Tobiano é o pêlo em que o animal possui manchas de uma certa
cor ao longo do corpo. Gateado é o pêlo de cor amarelado. O fato é que Viriato concluiu que a
escolha fora acertada. Visto que se eu comprometesse, de qualquer forma, a futura doma do
animal, isto é, se eu cometesse algum erro grave no manusseio, comprometeria apenas um
animal de menor qualidade e importância.
Dentro de uma mangueira, de uns vinte metros por vinte metros, estavam as doze
éguas com suas doze crias. Lencina e Daca foram colocando buçais em cada uma das éguas
adultas e separando-as para uma mangueira ao lado, com o mesmo tamanho. Dessa forma, em
uma das mangueiras ficaram as potrancas e na outra, as éguas adultas. Então cada um dos dois
peões muniu-se de um laço e Daca, na primeira tentativa, laçou a potranca Tertúlia. O ato de
separá-las das éguas adultas, diminui a chance de ocorrer um acidente, como quedas e
pisotões. Depois de laçada, Tertúlia continuou correndo junto das outras. Então Daca
começou a puxá-la para perto de si, ao que a potranca resistia, balançava a cabeça e recuava.
Quando estava uns três metros de distância, Daca mandou que me aproximasse do animal,
lentamente, tentando tocar-lhe o pescoço. Laçada por trás de suas orelhas e por baixo da
garganta, bem junto da cabeça, o animal esticava o laço com muita força, jogando o corpo
para trás. Com os olhos abertos e arregalados, um tremor muscular visível, ventas (narinas)
abertas pela respiração ofegante, o animal parecia muito assustado. Para mim a cena era de
extrema tensão mas para Lencina era justamente o contrário:
Tu viu ó! tranquilona, nem se jogou. (...) Agora tu vai chegando
com jeito e passando a mão na crina. Morder, ela não vai; porque laçada.
cuidado com os manotaços e com as patas. (...) Vai passando a mão pelo
lombo. Mostra que tu não quer judiar dela (...).
consegui transcrever essa fala porque trazia pendurado ao meu pescoço o
equipamento de mp3, que carregava comigo, para gravar as informações sobre manejo e
cuidado dos eqüinos. Eu estava bastante tenso, pois o que parecia ser uma cena brutal para
mim, era apenas uma atividade corriqueira do cotidiano da estância.
A cena se repetiu nos dias que se seguiram. No terceiro dia, foi possível colocar o
buçal em Tertúlia. Na quinta pega (quinto dia) ela não mais se jogava para trás. No oitavo dia
se deixava tocar, embora esquivando-se. No décimo dia passou a andar puxada pelo cabresto.
Na cima quinta “pega”, no vigésimo dia, se deixava tocar sem se esquivar, mexer na
41
cola, tocar-lhe as virilhas e retirar-lhe uma das patas do chão. No vigésimo primeiro dia,
Tertúlia era uma das mais adiantadas no manunsseio. Viriato e Daca atribuíram o meu
sucesso com Tertúlia, à sua índole dócil inata e a um certo jeitoque eu possuía com os
bichos.
Pro meu consumo”.
Camperear é a rotina do peão de estância. Todos os dias se campereia. Em
determinadas épocas do ano, até mesmo em dias chuvosos se campereia. Por exemplo, na
época de parição das éguas, das ovelhas e das vacas. Na fala dos peões, camperear é o ato de
recorrer o campo”. Em cada dia ou turno campereia-se uma determinada invernada (setor)
da estância. Encilha-se o cavalo se vai pro campo. Primeiro se faz uma volta pela margem
externa da propriedade, revisando a cerca (aramado), se não algum animal preso a ela, ou
até mesmo se algum animal a transpôs, e está por perto tentando voltar. Na volta, vêm-se pelo
centro da invernada, passando por locais estratégicos, em que sabidamente podem ocorrer
problemas. Beiras de sanga, matos, encostas etc. Lencina, referindo às ovelhas, me relatou
que
(...) no inverno quando os bichos tão lanudos, deitam e não
conseguem se levantar. Ou vem beber água, se molham e encarangam. (...)
No verão é pior, abicham
45
dum dia pro outro. Uma mordida (de cachorro),
um raspão, a mosca senta e bota o bicho. Se é muito, a gente leva prás casa.
Mas se é pouco, a gente cura e deixa no campo e revisa no outro dia.
Campereia-se sozinho ou aos pares. Em determinadas ocasiões, cada um ou um par,
recorre uma invernada diferente. Saímos ao campo em cinco. Os “peões campeiros” da
Tarumã são Daca e Lencina. Dessa forma, saímos eu e Lencina, Sérgio e Viriato, e Daca ía
sozinho. Nunca me foi dito, mas pareceu-me que Daca, por ser peão da estância algum
tempo, goza de privilégios. É uma espécie de sota-capataz. Na ausência de Sérgio, todos
reportam-se a ele para resolver assuntos do campo.
No final da tarde de quinta-feira, 15 de janeiro, chegávamos de uma campereada na
invernada do fundo
46
. Havíamos saído por volta de 15:00 hs e estávamos retornando por volta
45 Ferida proveniente de larvas, miíase.
46 Cada invernada recebe um nome de referência: a invernada do fundoé a mais distante das casas(sede).
A da taperafica ao lado da do fundo”. O nome faz referência a uma tapera (casa em ruínas desabitada).
Esta parte do campo foi comprada alguns anos pelo Sr. Turíbio. também a da sanga”, o nome faz
referência a um pequeno córrego de água, a invernada do mato”, que é o setor mais baixo da propriedade e
42
de 19:30 hs
47
. Enquanto desencilhávamos os cavalos no galpão, Daca lembrou a Sérgio que
precisava que se carneasse. Toda carne, leite e ovos consumidos na estância são produzidos
na própria estância. Sérgio então, mandou que Lencina fosse a pé mesmo recolher os
borregos e as ovelhas de consumo, no potreiro atrás do galpão. Potreiro é uma pequena região
do campo cercada, e perto “das casas”. Ali, se colocam os animais de consumo (ovinos), e
alguns “animais de serviço”, que são os cavalos que se encilha diariamente e por isso recebem
alimentação suplementada. Lencina então trouxe por volta de vinte cinco animais entre capões
e ovelhas velhas
48
. Sérgio mandou que eu escolhesse uma para matar, pois seria consumida
dentro dos próximos quatro a seis dias. Sérgio disse-me para andar entre os animais
apertando-lhes a cola. Aperta-se a raiz da cauda do animal, onde termina a coluna vertebral e
começa a inserção da cauda. Se ali se notar um depósito de gordura cobrindo a ossatura é
sinal de que o animal está em bom estado para ser abatido. É bastante subjetivo,
principalmente para mim que não possuía nenhuma prática. Sérgio disse-me que depois que
se pega prática, se enxerga a graxa debaixo do couro. Ele mandou que escolhesse uma
ovelha, em vez de um capão, pois estavam mais gordas. Diferenciá-los é tarefa fácil: os
capões possuem meia colae as ovelhas são amputadas mais perto do tronco. Isso, segundo
Sérgio, além de ajudar a diferenciá-los à distância, no caso das ovelhas, facilita na
reprodução, desde o coito até a parição.
Depois de escolhido o animal, Lencina puxou-a pela pata traseira até retirá-la do lote.
Então ele e Sérgio, a penduraram no carneador para que fosse sangrada, coureada e carneada.
Com o animal pendurado por uma das patas, Lencina pega-o pelo focinho, arqueando-lhe a
cabeça para trás. Dessa forma, tanto a jugular, quanto o coração ficam mais acessíveis de
serem atingidos com a ponta da faca. Lencina então, sangra o animal. Olha ó! Bem na
chúria. Depois o senhor me diz se não vai picado... A cena é chocante. No entanto,
Lencina parece demonstrar satisfação e tranquilidade. E ainda procura demonstrar suas
qualidades de bom carneador. “bem na chúria”, quer dizer que o animal foi atingido bem no
que contém uma mata fechada e nativa onde também um rrego de água, e a invernada da frente”, que
também é bastante distante da sede e fica localizada na outra margem da Rodovia Estadual que corta a
estrada.
47 De uma forma geral as estâncias não adotam a Hora Brasileira de Verão. Entre elas a Tarumã. Quando
precisam tomar ônibus ou marcar compromissos, conferem sempre se estão falando do horário novoou
horário velho”, hora da cidadeou hora do sol”. O horário que adotei foi o da estância, ou seja, a hora
do sol”.
48 Os animais destinados ao consumo da estância são as ovelhas que tem idade avançada e não reproduzem e
os capões, que são machos novos e castrados. A idade dos ovinos se mede em dentes: borrego, o mais novo
tem “dois dentes”, capões de quatro e seis dentes o os ideais para consumo. Nessa idade, são
comercializados para abate. As ovelhas velhas m oito dentes. Aos dois anos, os ovinos tem a dentição
completa, oito dentes.
43
coração com a ponta da faca, o que levará a uma morte mais rápida e nas palavras de Lencina,
mais indolor”. Quando me desafia a verificar se vai estar picado”, significa que é para eu
verificar, depois de carneada a rês, se o coração conterá um corte. Foi, de fato, o que
aconteceu. Depois de carnear, a carne foi pendurada para “orear”, ou seja, para resfriar e
pingar todo sangue. Depois foi levada à geladeira
49
. Na madrugada seguinte, antes de sair para
camperear, foram assados os rins, o coração e o sangrador
50
. Comeu-se sem mesa ou prato. O
espeto foi colocado em pé, de fronte à lareira. Cortamos com a faca, segurando a carne com
os dedos, com a ponta da faca ou com um pedaço de pão.
As cenas que assisti durante todo meu trabalho de campo, dos animais sendo marcados
e castrados são recorrentes nas estâncias. Outras atividades que se pode nominar de profunda
crueldade ou brutalidade são recorrentes no cenário rural. Após a carneação, comentei com
Daca e Lencina sobre a violência que se praticava ao se sacrificar um animal, ao que Daca
exclamou: (na cidade) eles matam gente. A gente, aqui (na estância), mata bicho. (...) E
mata prá comer a carne. A doma, o trato com o gado em geral é marcado por profunda
relação de truculência e dominação do peão em relação aos animais. No entanto o ato de
matar o animal, sacrificá-lo para em seguida devorá-lo, é um sentimento indescritível.
Faço aqui uma relação entre a sensação que tive de consumir a carne de um animal
recém sacrificado e a declaração de Daca em relação à sua representação sobre a morte. Uma
representação do urbano pelo rural. Para Daca a morte no cenário urbano é marcada por uma
violência dos homens em relação a outros homens, pela maldade, por um ato covarde. Na
estância, no mundo rural a morte é representada por uma necessidade de sobrevivência dos
indivíduos, numa relação necessária entre os homens e os animais.
Para Leal (1992. p. 148), a vida na estância tem uma intimidade com a morte”.
Acredito que o principal motivo que leva as pessoas desse meio a possuir tamanha
familiaridade com a morte, seja o que toda produção econômica pastoril, organizada em torno
da produção do gado de corte, tenha como objetivo e destino final o matadouro. O sacrifício é
realizado muitas vezes na própria estância, e via de regra, para própria subsistência das
pessoas. Ao estudar na Campanha Gaúcha, as relações dos peões de estância com a morte,
Ondina Fachel Leal afirma que Na vida da estância um processo de internalização da
morte como um fato da vida.” (p. 148).
49 Viriato contou-me que a luz elétrica chegou à Turumã em 1984. Antes disso, após o abate de um ovino,
comia-se carne fresca nos dois primeiros dias, e depois disso, fazia-se charque com o restante da carne. Carne
bovina não era consumida na estância pelo fato de não ter como conservá-la.
50 Carne retirada do peito da ovelha ou borrego. Recebe este nome por localizar-se exatamente onde a faca é
enfiada para matar o animal. Sangrá-lo.
44
Nessa mesma questão, só que trabalhando com o significado simbólico da morte
animal entre os “pantaneiros”, peões rurais do pantanal mato-grossense, Álvaro Banducci
mostra que
No Pantanal, como de resto nas comunidades rurais, agrícolas ou
pastoris, onde o convívio do homem com os animais é mais direto e intenso
que nos centros urbanos, a morte de um animal, em sua forma mais evidente
e crua, está presente no cotidiano das pessoas. (Banducci Júnior, 2007. p.
148).
O autor ainda mostra que a morte e o sacrifício de animais para o consumo da carne,
tanto doméstico, quanto selvagens, ou até mesmo o sacrifício de um animal doente, causam
no homem pantaneiro uma necessidade de eximir-se da culpa, e isso é demonstrado através
de suas atitudes cotidianas mais evidentes, seja no âmbito sutil da linguagem”, seja
imputando ao animal características que o desqualifiquem e o incriminem, encobrindo com
isso a ambigüidade que invariavelmente subjaz ao abate.” (Banducci, 2007. p. 151)
ainda um sem número de relatos que descrevem ações de crueldade e brutalidade
dos peões em relação ao gado. Ornellas, em seu Gaúchos e Beduínos (1999. p. 84) transcreve
passagens vistas e anotadas por viajantes que passaram pelo Rio Grande do Sul no século
XIX. diferente da ociosidade tropical sensual e sedentária a opulência e a liberdade
criaram aqui hábitos viris, rudes e sóbrios. Apanhava-se, nas boleadeiras ou nos laços, o
cavalo chimarrão e a rês alçada.Atribui tais ações aos gaudérios, tipo social do qual se
originou o gaúcho campeiro. A violência, a maldade e o desprezo no tratamento com o gado é
descrita:
Surgem, então, os cortadores que usavam lanças de taquara
encimadas por uma lâmina na forma de meia lua, com que, em plena corrida,
no pampa, desgarronavam as rezes ou cavalos, vibrando-lhes um golpe na
perna traseira, com tal destreza diz o Padre Cattaneo que lhe cortan el
nervio sobre la juntura; la pierna se encoje al instante, hasta despues de
haber cojeado alguns pasos, cae la bestia, sin poder enderezarse mas.
(...) Em seguida, sangravam o animal, tirando-lhe apenas o couro, o
sebo e a língua, e abandonavam o resto aos urubus e aos cachorros
chimarrões. (Ornellas, 1999. p. 84).
Faço este diálogo, com diferentes observações acerca das práticas e das representações
do peões e homens do campo, acerca dos sacrifícios de animais, no sentido de refletir sobre
como essas práticas, comuns na vida do campo, o representadas quando se remete à vida na
campanha. Toda essa descrição, demonstra em que contexto e quais motivações entre elas
45
a subsistência, o costume e a tradição, legitimam e justificam a ação dessas pessoas, a ação de
abater o animal para o consumo. Para o próprio consumo, pro meu consumo.
2 O peão de estância.
... um agregado de homens irmanados pela mesma profissão, a mesma
esperança, os mesmos sofrimentos e alegrias. Ganhando pouco, arriscando-
se muito, expostos aos azares de um labor que esmaga o corpo e o espírito,
se as leis e a literatura deles se compadecem, a sociedade, como um todo,
continua a explorá-los. (Guilhermino Cesar, 2005. p. 114).
Quando pensamos na figura do peão de estância, imaginamos um homem em frente a
um galpão, vestindo bota e bombacha, via de regra, montado a cavalo. Essa imagem, de certa
forma, não é diferente da realidade. Há elementos dos quais não podemos, hoje, desvincular o
arquétipo dessa identidade gaúcha. A pilcha, o cavalo e o galpão de estância são elementos
“essenciais” no construto da imagem do gaúcho construído pelo tradicionalismo. Isso devido
a todo um imaginário engendrado pela literatura, pela música e pelos meios de comunicação
de forma geral ao representar essa identidade.
Gaúchos são necessariamente homens, e virilidade é condição de ser
gaúcho. O gaúcho tem o domínio sobre o selvagem, identificando a si
próprio com o selvagem, com a força, com poder e natureza. (...) O gaúcho,
em seu cavalo, sozinho no campo aberto tem o sentimento de domínio sobre
o mundo ao seu redor.” (Leal, 1992. p. 148 – 149).
No entanto, nos dias de hoje, podemos encontrar esses gaúchos de bota e bombacha
tanto na cidade quanto no campo. Tanto nos centros de tradições quanto nas estâncias. E sobre
isso é importante fazer algumas considerações
Muito mais contundente que possuir uma identidade, é ser pertencido por ela, é fazer
parte dela, é imaginar-se parte dela (Anderson, 2008). Benedict Anderson desenvolve o
conceito de Comunidades Imaginadas. São grupos de pessoas comungando um mesmo
sistema simbólico seguindo a lógica comunitária de uma identidade comum. Essas pessoas
constituem-se como uma comunidade ao compartilhar símbolos e significados, o que lhes
confere coesão e profunda legitimidade emocional reunidas em torno de uma identidade
comum. Tanto o tradicionalista urbano quanto o peão de estância se vêem como “gaúchos”,
esta é uma fusão dos dois elementos tanto do ponto de vista psicológico quanto do ponto de
46
vista antropológico.
Dentro de um enquadramento êmico e da observação do trabalho de campo é correto
afirmar que ambos são gaúchos. E mais do que isso, ambos são “peões”. Para construir a
análise do peão de estância será necessário constituí-lo não só em relação a si mesmo. Mas em
uma diferenciação entre ele e o peão tradicionalista. Em um ponto, pelo menos, se
distinguem. Para ser um peão tradicionalista basta que se passe a vestir a pilcha, que cultue a
cultura tradicionalista ou a cultura gaúcha, que frequente um centro de tradições, que laçe
num rodeio tradicionalista. Mas para realizar essas ações, mais engajadas ao tradicionalismo é
necessário possuir a carteirinha do MTG. Para tanto, é necessário afiliar-se a uma entidade
tradicionalista. E reside a questão: é necessário querer e ser aceito. Não é necessário nem
ser gaúcho (no sentido gentílico, de nascido no Estado do Rio Grande do Sul) ou brasileiro. É
portanto, um ato voluntário. As pessoas tornam-se tradicionalistas por um ato de vontade.
Adquirem essa identidade. Aderem a ela. E passam a desencadear uma série de ações e
iniciativas que as tornam tradicionalistas em menor ou maior grau. Ao contrário disso, o peão
de estância, com carteira de trabalho assinada ou não, desconta do seu salário, além da
contribuição ao INSS, a contribuição ao Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural
(FUNRURAL). Torna-se peão, portanto, por força de sua profissão, de sua atividade
econômica, de seu meio de vida e do ambiente de seu trabalho. A identidade gaúcha, portanto,
pertence ao peão tradicionalista, ao tradicionalista urbano. Ao passo que, o peão de estância, o
homem do campo, é pertencido por ela. Nesta, a relação é intrínseca, indelével. Naquela, a
relação é voluntária e volitiva.
Na obra A Estância Gaúcha, Dante de Laytano, assim descreve e define algumas
atribuições referentes à profissão de “peão”:
O peão, como o operário do campo, tem todo o trabalho do
tratamento e cuidado do gado. (...) O peão caseiro, chamado simplesmente
de caseiro, cuida da sede. Estão a seu cargo atividades de tirar leite, encerrar
a terneirada à tarde, varrer os pátios, enterrar o cisco, (...) tratar da carne de
consumo da estância, auxiliando a matança, cortar e carregar lenha, podar o
arvoredo, etc. O galponeiro, também chamado de cabanheiro, tem a seu
cargo os animais de galpão (...). O posteiro é o empregado que mora no
campo, em rancho, com a família, tomando conta do posto ou rancho que
fica colocado em ponto estratégico na estância. Cabe-lhe cuidar das ovelhas,
inspecionar os aramados, policiar o campo e o gado, etc. (...) (Laytano, 1952.
p. 40).
As denominações que encontrei em meu campo
51
coincidem com as referidas pelo
51 Segue nomenclatura nos anexos.
47
autor. No entanto, em nenhuma das estâncias que observei, encontrei a figura do posteiro. O
autor refere-se a denominações colhidas até a década de quarenta, e foram justamente as
décadas seguintes, que ocorreram mais intensamente a mecanização e a industrialização do
setor agrário, diminuição das propriedades (subdivisão), implantação de meios de transporte
mais rápidos, bem como a instauração de leis trabalhistas que modificaram sensivelmente as
relações as relações de trabalho. A Lei 5.889/73 estatui as normas reguladoras do trabalho
rural. Portanto, foi somente em meados da década de setenta que a atividade profissional e
econômica do peões de estância foi regulada pelo poder público. No artigo segundo da
referida lei, consta que Empregado rural é toda pessoa física que, em propriedade rural ou
prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural, sob a
dependência deste e mediante salário.
O Sr. Cláudio Silveira, Contador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santa
Maria, em entrevista realizada no dia 30 de janeiro de 2009, me informou que o
enquadramento profissional de “peão de estância”, na verdade não existe. O enquadramento
funcional legal tem o nome de “trabalhador rural polivalente”, ou ainda “serviços gerais
agropecuários”. O salário base da categoria, em Santa Maria é de R$ 477,40. Cláudio também
me informou que cada município tem o seu salário determinado por dissídio, e quando não
houver, nunca poderá ser menor que o salário mínimo nacional. A jornada semanal de
trabalho é de 44 horas semanais, respeitados os finais de semana, tendo o trabalhador rural,
ainda direito a uma folga em dia útil por mês. No entanto há uma dessintonia total da
legislação em relação à realidade. O homem do campo muitas vezes não tem e não parece ter
noção da sua condição social. Em uma propriedade vizinha da Tarumã, ouvi de um senhor a
quem chamavam de Seu Mimo: essas lei da cidade, serve pras pessoa da cidade.os peões,
de maneira geral, parecem não ver nexo entre o sistema legal e a realidade da vida rural. Os
direitos são parcamente cumpridos. Quem os exige, via de regra, fica mal visto entre o grupo.
Como me relatou Seu Mimo, quando alguém sente-se descontente com o trabalho em alguma
estância larga e vai procurá outro serviço. Mas faiz isso quem não gosta de trabaiá”. De
acordo com o relato é possível notar uma subordinação e até mesmo a ausência de uma noção
de coletividade (pelo menos organizada), entre a categoria de peão de estância.
Da perspectiva do etnógrafo, ou de quem vive fora daquele mundo, é
difícil pensar no gaúcho como uma figura prepotente e poderosa.
Considerando a estrutura da classe da sociedade onde ele está inserido, ele
está numa posição extremamente subordinada. Ele é um trabalhador rural
assalariado, desorganizado, raramente vinculado a um sindicato. Sindicatos e
partidos políticos esperam dele as reivindicações de um camponês, isto é,
48
“terra”; ou a reivindicação de um trabalhador rural urbano, “melhores
salários”. Nem a terra nem dinheiro interessam-lhe, nenhum deles tem
relação com sua existência como gaúcho. (Leal, 1992. p. 149).
De acordo com o Código Brasileiro de Ocupações, constante no Site do Ministério do
Trabalho e Emprego (<www.mte.cbo.gov.br>), não está contemplada a profissão de peão de
estância, apenas denominações correlatas: código 6230 trabalhador polivalente de animais;
6230 05 domador; 6230 15 trabalhador de pecuária polivalente; 6231 10 trabalhador de
pecuária, peão de pecuária; 6231 25 trabalhador de pecuária (eqüinos) (campeiro, ferrador);
7828 10 tropeiro.
O peão de estância, ou peão de campanha, existe de fato. É uma das identidades
representativas do regional gaúcho, do homem da campanha. O termo é corrente na música,
na literatura e nos meios de comunicações, bem como para o tradicionalismo. No entanto, não
é uma profissão reconhecida juridicamente, apenas aceita tacitamente.
Por tudo isso, compreendo que tratar dessas identidades, sem ou com pouca
representatividade social ou política, pareça um tanto insólito. Mas é justamente por esse
motivo, por transitar muito mais no imaginário das pessoas, nos livros de literatura, na
historiografia e na mídia, e muito menos nos dispositivos jurídicos e mecanismos
governamentais, que me proponho a ouvir os homens do campo. Eles são a mão-de-obra, a
peça motriz do setor primário, responsável por uma importante parcela da economia do Rio
Grande do Sul.
A seguir, passo a tratar da história da vida e do trabalho de três homens que tem em
comum o ofício de “peão de estância”. De forma episódica, a fim de iluminar situações
pontuais e concretas, mostro suas vivências e percepções tentando dar conta deste universo
entendido como mundo rural, da estância, “de fora”. Esta é uma categoria nativa recorrente
entre os peões e demais habitantes das estâncias. Tudo o que não é “do povo” ou “no povo”,
ou seja, referente a cidade, é “de fora”. Ir “pra fora” é ir para a estância. A perspectiva de
olhar para o campo, para o mundo rural, como algo que está “de fora” de alguma coisa,
remete à noção etnocêntrica do mundo urbano. Ir à estância, ir para o mundo rural, é ir “pra
fora”. É deixar de estar inserido. É excluir-se de algo. É, sem dúvida, uma negativação
linguística da denominação do mundo rural. Tratarei disso a seguir, através da vida e do
trabalho de Laurindo, Daca e Lencina, três homens “de fora”, peões de estância, que fazem do
seu fazer profissional, a sua própria identidade.
Laurindo.
49
O Centro de Treinamento do Sr. Luciano Kruel é um centro de treinamento de cavalos
para exposições, concursos ou apenas para uso pessoal. O local fica afastado da cidade uns
trinta minutos (de carro). Cheguei depois de percorrer alguns quilômetros de uma estrada
de chão batido. Falei com Luciano por telefone, um dia antes, e combinamos que eu poderia
visitá-lo no dia seguinte, uma terça feira. Disse-me ele: “cedinho tamo lidando com os
bichos”. Me dirigi ao local não tão cedo, por volta de oito horas. Tive certa dificuldade de
encontrar o local, pois não placas. Na estrada, resolvi perguntar a um homem que
caminhava. Perguntei a ele se conhecia o centro de treinamento e então o homem disse que
sim e que trabalhava lá. Era um homem negro, bastante novo, vestindo boné, casaco,
bombachas e alpargatas. Pensei em não ser seguro oferecer carona a um desconhecido, numa
estrada vazia. Então o homem falou: estou indo prá lá. Quer eu lhe levo. Respondi-lhe que
sim. Enquanto ele dava a volta por trás do carro peguei minha carteira e a câmera fotográfica
que estavam sobre o painel do carro e as coloquei sob o banco, numa ingênua intenção de
proteger o menos importante, os objetos materiais. No caminho, perguntei seu nome...
Laurindo!”. E me apresentei. Puxei assunto sobre o trabalho no campo, sobre o frio,
amenidades... Ao chegarmos no local havia um caminhão descarregando alfafa
52
e estava
indo embora. Luciano chegou alguns minutos depois pois tinha ido prestar atendimento
veterinário a um animal numa estância próxima dali. Nos apresentamos, falei sobre meu
trabalho e sobre meus objetivos nas visitas que se seguiriam e ele me colocou à vontade para
observar, fotografar e perguntar.
O ambiente era bastante simples. Duas construções. Uma casa e um galpão afastados
por uns vinte ou trinta metros. O galpão foi o ambiente ao qual me dirigi, por ser o que me
interessava. Uma construção de alvenaria em sua parte externa e subdividida em sua parte
interna por paredes de madeira formando cocheiras (baias) para abrigar os cavalos. Com a
porta voltada para dentro do galpão eram quinze cocheiras, e com a porta voltada para fora do
galpão mais oito cocheiras. Logo que chegamos, Laurindo foi direto aos seus afazeres. Tirar
um por um, os animais da cocheira, escová-los à rasqueadeira (escova) para remover os restos
da cama (casca de arroz). No centro do galpão, que possui um vão central que liga a frente aos
fundos, pendurados pelo buçal em um gancho de ferro com um destorcedor, atrelado ao
madeiramento do telhado. O segundo animal a ser tirado, uma égua tostada (castanha) que
indaguei de quem era, possuía uma verruga no alto da pata esquerda que vinha sendo
52 Alimento para cavalos, composto de folhas verdes secas.
50
cauterizada com uma pomada. Os animais foram tirados um a um, revisados e pendurados do
lado de fora do galpão, junto às árvores da volta, num total de quinze animais. Durante este
tempo conversei com Luciano enquanto tomávamos mate. Ele me explicou demoradamente o
trabalho com os animais, sobre seus donos. um era propriamente seu. Perguntei o que
levava as pessoas a mantê-los ali, qual era o custo, como era a manutenção etc... Em seguida
Luciano pegou uma potranca gua com pouca idade) preta de aproximadamente um ano e
meio e fomos para o redondel (uma mangueira alta, de madeira, redonda, onde o animal trota
em círculos preso ao cabresto com a finalidade de condicionamento físico e reforço
muscular). Luciano me explicou que mesmo os animais domados fazem tal trabalho pois este
exercício se diferencia do trabalho de arreio, ou seja, com os animais encilhados e montados,
por alcançar a musculatura da parte superior do animal. Além de deixar os animais mais
descontraídos evitando os “vícios de cocheira” (roer, debater-se, engolir ar). Em seqüência
trabalhou outros animais e cada animal que era exercitado era depois lavado para remover
restos de barro ou sujeiras do seu corpo. Todo este procedimento era o normal de um dia de
sol (tempo bom) como naquela terça feira.
Enquanto Luciano trabalhava com os animais no redondel observei também a limpeza
feita por Laurindo nas cocheiras. Enquanto era feita a limpeza pude conversar longamente
com ele por toda manhã. Depois da retirada de todos os animais começou a limpeza das
camas. A casca de arroz que forma o chão das cocheiras chama-se cama. Esta fica suja de
urina e de fezes depois de um certo tempo (pode ser limpa duas vezes ao dia). Então ela é
remexida com um rastel (garfo) e são retiradas as porções úmidas (urina) ou embolada (fezes).
Enquanto Laurindo realizava seu trabalho contou-me um tanto de sua vida. Chama-se
Laurindo Faria da Silva, estudou até os quinze anos, depois começou a trabalhar como peão
“pra fora”. Olhando, aprendeu a domar e laçar, atividades que presta “fora” do serviço de
peão empregado. Doma fora do horário do expediente e laça por lazer em concursos e rodeios.
Tem vinte e cinco anos, estudou até a oitava série, e desde os quinze trabalha “pra fora” e diz
ter pavor de trabalhar na cidade”. É sócio do CPF Piá do Sul
53
para poder ter vínculo com
uma entidade tradicionalista e poder laçar nos rodeios. Laurindo, segundo ele próprio, retira
seu sustento no meio rural e do mundo rural, Laurindo se denomina peão, embora não
trabalhe em uma estância propriamente dita, mas num centro de treinamento de cavalos, vive
no mundo rural, no limite entre o campo e a cidade. Muito próximo, geograficamente, do
meio urbano, mas muito mais próximo, segundo ele próprio afirma sentir-se, do cenário rural.
53 Entidade Tradicionalista. Centro de Pesquisas Folclóricas Piá do Sul, fundado a 18 de abril de 1959,
localizada no bairro Patronato, em Santa Maria.
51
Laurindo apresenta uma certa liminaridade
54
(Van Gannep, 1978) em sua maneira de viver.
Está muito próximo da cidade mas afirma viver no campo. Dessa forma, insere-se muito bem
no tema da minha pesquisa. Torna-se, por isso, um informante importante. Exerce a profissão
de peão, e é também um tradicionalista.
Na manhã do dia 7 de agosto cheguei de manhã cedo ao centro de treinamento,
sabendo que atividade observaria. A Doma. Aliás, esta atividade, raramente ainda é realizada
nas estâncias. Com a especialização das técnicas, e sua consequente profissionalização, raras
são as estâncias que possuem entre seus peões, um que dome a manada. Por esse motivo os
centros de doma são, atualmente a alternativa mais barata e eficiente. Assim sendo, uma
prática absolutamente vinculada ao universo rural, a doma de cavalos, transferiu-se, em
grande parte, das estâncias para ambientes próximos dos meios urbanos. A circularidade dessa
técnica pode ser percebida quando é re-apropriada e re-significada pelas novas maneiras de
fazê-las. A atividade da doma, bem como as demais técnicas de trato e criação de eqüinos,
influenciadas pela “apuração” de novas raças e suas novidades, foi re-elaborada na cidade e
devolvida ao cenário rural, bastante modificada, alterando as maneiras de fazer
55
(do
domador), e relacionando de forma diferente o homem e seu instrumento de trabalho, o peão e
o cavalo.
Laurindo, que é domador, foi até a propriedade vizinha solicitar ajuda do Sr. Manoel
para que este auxiliasse como amadrinhador
56
. O animal, que seria montado pela primeira
vez, era uma fêmea, 22 meses, da raça Crioula, da propriedade do Sr. Luis Carlos, cliente do
CT. O animal era manso de baixo
57
e desde nova morava em cocheira, acostumada a
cabresto e buçal, ao toque, a escova, ao redondel. Porém nunca havia sido encilhada e
montada ou enfrenada
58
. Por essa razão não poderia ser chamada de xucra. Luciano me
relatou a experiência que tinha quando criança na estância de seu pai, quando os animais eram
trazidos, aos dois anos, para a mangueira pela primeira vez, laçados, amarrados ao palanque e
encilhados, tudo com muita violência.
Quando eu era criança, me lembro que levavam lá pro Pai, uns
54 Van Gannep afirma que esta fase liminar ocorre entre as fases de separação e incorporação dos ritos de
passagem. É uma fase fronteiriça, ambígua. Uma transição.
55 Esse conceito já foi desenvolvido no Item 1, desse capítulo.
56 Amadrinhador é o indivíduo que, montado em um cavalo domado e manso, auxilia o domador. Geralmente
são dois. Um para cada lado. (Bossle, 2003. p. 32). Os amadrinhadores auxiliam o trabalho da doma.
Posicionam-se ao lado do animal a ser domado para que este não atire-se à cerca ou venha a jogar-se para
traz.
57 Ver Item “Mansa de baixo”, nesse capítulo.
58 Enfrenar é passar a utilizar o freio. Passa da categoria de redomão para domado. Passa do bocal para o freio.
É uma etapa da doma. (Bossle, 2003. p. 214).
52
bichos muito selvagem. Nunca tinham visto corda. Aquilo que era doma. Os
bichos eram xucros de tudo. Uns não conheciam nem gente. Nunca tinham
tirado do fundo do campo.
O Pai derrubava, maneava e puxava de baixo. Uns bichos mui xucro.
Primeiro quebrava o queixo. E depois já encilhava. O lombo ficava um arco.
E já saía dando-lhe pau.
Hoje não se faz mais isso. Os bichos já chegam quase mansos. Às
vezes ainda chegam uns bem xucros. Mas aí a gente vai ajeitando aos
poucos. Não se dá mais pau como antes. Tem mais técnica, doma racional ...
Neste caso que observei, a égua foi encilhada com muita calma, apenas estranhou
quando lhe apertaram os arreios à barriga (cincha). O primeiro instrumento que se põe a boca
de um bagual (animal não domado) é o bocal. É uma tira de couro enrolada que comprime a
mandíbula do animal passando por dentro da boca, debaixo da língua, e onde se afixarão as
rédeas para que se puxe. Luciano contou que o animal xucro é necessário “puxar de baixo”,
que é o ato de puxar o queixo do animal em direção ao pescoço; chamado “quebrar o queixo”.
Com o animal deitado (pialado), puxa-se a rédea até que o animal encoste a parte inferior do
queixo na parte inferior do pescoço.
Depois de posto o bocal e de encilhar a égua, Luciano fez com que esta troteasse no
redondel para que se adaptasse com a novidade de possuir os arreios apertados sobre seu
lombo e o bocal comprimindo sua boca. Logo, levaram o animal para campo aberto para que
fosse montado pela primeira vez. Luciano ficou no galpão, eu fui ao campo para observar,
fotografar e filmar. Laurindo era o domador. Os amadrinhadores eram o Sr. Manoel, que
também é domador, Sr. Luis Carlos, que era o proprietário da égua. Havia grande expectativa
entre eles se a égua iria “veaquear”, “sentar”, ou “correr”. Este último é o ideal. Veaquear é o
ato de pular, arqueando-se e abaixando a cabeça como nas gineteadas, sentar é o ato de não
andar o até mesmo jogar-se para trás ou para os lados. O ideal é que o animal corra para que
possa ser puxado pelas rédeas e parar. Os amadrinhadores ajudam nesta tarefa, puxando o
animal nesta atividade. Ao final, a égua correu, demonstrando muita docilidade de
temperamento, deixando a expectativa de uma doma tranquila e de ser um animal muito dócil.
Depois foi trazida novamente ao redondel para ser desencilhada. Logo depois foi lavada com
água fresca.
Domar, significa ter domínio sobre é a condição de existência do
gaúcho e a sua condição para ser homem. Quando ele perde sua força, não é
mais capaz de domar a natureza ao seu redor, ele perde sua masculinidade e
sua identidade como gaúcho. (Leal, 1992. p. 147).
Durante o “galope”, que é o nome que recebe o ato de montar o animal xucro,
53
Laurindo demonstrou perícia e agilidade. E pareceu orgulhar-se disso. Antes de montar,
Laurindo trocou algumas peças de sua roupa. Trocou o boné por um chapéu, vestiu guaiaca
(cinto), tirador (peça quadrada, de couro amarrada à cintura, envolvendo a perna esquerda.
Serve como proteção. Trocou as alpargatas pelas botas de couro, e amarrada a elas, as
esporas. Laurindo relatou que é muito importante vestir a roupa adequada. “(...) o cara tem
que mostrar pro animal que não tá com medo”. Laurindo aciona a sua identidade de domador,
através de sua performance em relação ao animal. Montado no animal, nem se compara ao
trabalhador, ao peão limpador de cocheiras, de voz baixa e gestos contidos. No campo, entre
os amadrinhadores, Laurindo vestido de forma que, através de sua roupa, sua identidade
ficasse mais explícita, parecia ter comando da situação. Naquele instante era o centro de todas
as atenções. Laurindo fazia gestos amplos, falava alto, e comandava o que os outros deviam
fazer. Ao montar o animal para a doma, Laurindo não era apenas o Laurindo peão”, de boné
e chinelos ou botas de borracha. Pilchou-se, pois esse era o comporamento esperado por todos
e por ele próprio. A cultura tradicionalista, assentada nos modelos de práticas tradicionais do
trabalho pastoril, pode ser notada nesses momentos. O fluxo interpretativo entre as práticas e
representações sobre o peão, o homem do campo, fica bastante claro na atitude de Laurindo.
Em sua prática, sua lide diária, seu trabalho, Laurindo, também, produz a representação de um
tradicionalista. Entendo, com isso, que assim como as práticas, as representações também
circulam. O homem do campo, modelo do tradicionalista, devolve a ele as representações que
construiu na cidade. Laurindo é um peão, mas é também um tradicionalista, como pude
observar em seu trabalho.
A atividade seria repetida por oito dias seguidos, depois os dias seriam espaçados. No
passo seguinte, o animal é enfrenado, e ao final de aproximadamente sessenta dias a doma
está completa. Observarei todo processo. A doma é uma atividade que guarda tanto o caráter
lúdico das técnicas tradicionais, quanto as técnicas modernas das “domas racionais” trazidas
pelos americanos e suas raças funcionais
59
. A doma significa bem mais do que o ato de
preparar o animal para o trabalho. Todo o ritual que envolve a doma é um ato de celebração
da masculinidade, da valentia e do domínio do homem sobre o animal. Por ser uma atividade
perigosa, requer perícia e experiência de quem a executa. Demonstra coragem, destemor em
relação à vida e a morte. Era visível nas atitudes de Laurindo, o orgulho por desempenhar
aquela tarefa, comum a todo homem do campo, personificado pela figura do gaúcho
campeiro,
59 Appaloosa, Mangalarga, Paint Horse, Quarto de Milha, entre outras.
54
Domar cavalo chucro (o cavalo selvagem), por exemplo, é um duelo no
qual ele pode sempre se ferir seriamente. Para ele, viver significa a não temer a
morte, e cada dia de sua vida como peão campeiro ele tem que reafirmar que não
teme nada. (Leal, 1992. p. 145).
No dia 12 de agosto, fui até o CT bem cedo de manhã. Chovia muito e eu sabia que
muitos trabalhos previstos não seriam realizados, e consequentemente teria pouco que
observar. Em compensação, num dia de chuva, todos ficam no galpão, o que pode propiciar
uma conversa mais longa.
Depois que cheguei, fiquei tomando mate com Luciano. Estavam sem luz, pois na
noite anterior ocorrera um temporal com muita chuva e ventos, o que proporcionou a queda
de luz. Logo chegou Laurindo e seguimos tomando mate. Laurindo contou dos seus tempos
de galista (criador de galos de rinha, os chamados galos combatentes), suas peripécias, e sua
“prisão”. Laurindo possuía criação de animais para rinha, muitas galinhas e muitos galos (em
torno de sessenta ao todo). Possuía também o rinhedeiro (tambor) e nos sábados, domingos e
feriados organizava rinhas. Num certo dia, cerca de um ano antes, fora denunciado e a polícia
foi até sua casa (PATRAM Patrulha Ambiental). Era uma segunda feira, feriado, e estavam
em plena atividade. Foram presos em flagrante por crime ambiental. Laurindo contou que, por
ter endereço fixo, ser réu primário e arrimo familiar, foi liberado de imediato. Teve de pagar
multa de mil reais e ainda saiu sua foto no jornal, na página policial segurando um galo. A
história de Laurindo rendeu boas risadas e descontraiu muito a nós três. É muito comum,
neste cinturão rural, em volta da cidade, numa região que se localiza no limite entre o urbano
e o rural, essa criações de galos de rinha. Laurindo, mais uma vez, confirma seu perfil de
homem no limite entre estes dois cenários.
A exemplo de Laurindo, numa pequena propriedade, perto do Centro de Treinamento
do Luciano, vive o Sr. Manoel. Gabrielense, domador, aramador (alambrador), fazedor de
cordas e aperos (guasqueiro) e esquilador (“a martelo”). Sempre trabalhou em estâncias
realizando estes trabalhos conforme a ocasião. Adoeceu e como estava “imprestável” resolveu
vir para a cidade. Tempos depois sentiu-se melhor e montou um centro de doma nos arredores
da Estância do Minuano. Hoje cuida de cavalos numa pequena propriedade na mesma região.
Manoel é sócio de uma entidade tradicionalista, para poder laçar em rodeios. Possui
carteirinha social e cartão tradicionalista do MTG. Paga por mês, trinta e cinco reais, por este
vínculo e diz que isto é invenção do Bertolinireferindo-se a Erival Bertolini, coordenador
da 13ª Região Tradicionalista.
55
No dia 14 de agosto, cheguei ao centro de treinamento logo cedo, por volta de oito
horas e o Sr. Mauro estava trabalhando nos ferros. O Luciano agendou de ferrar e casquear
quatro animais num dia que eu pudesse fazer observação. Achei esta atividade muito
importante de ser observada na medida em que pesquiso sobre os fluxos interpretativos
decorrentes de práticas e representações que circulam entre a cidade e o campo, entre os
peões, trabalhadores do campo e os peões tradicionalistas.
Mauro ferrador chama-se na verdade Mauro Carvalho. É ferrador conceituado em
Santa Maria, ferra cavalos desde os dezoito anos, dezoito anos. Mauro não é peão, nem
tradicionalista. Ferra cavalos em estâncias da região, bem como cavalos mantidos em
pequenas cocheiras, em casas nas cidades. Cobra entre R$ 55,00 e R$ 70,00 para ferrar e R$
25,00 para casquear. Vestia um modelo cangol branco
60
, camisa quadriculada, calças jeans,
sapato de couro. Cobrindo a parte frontal da calça um tirador de ferreiro (diferente do tirador
gaúcho, por ser aberto entre as pernas e cobrí-las pela parte da frente). Trabalha com uma
série de instrumentos. É necessário ferrar os animais que andarão em terreno pedregoso,
viagens ou ruas pavimentadas do meio urbano (cavalos de carroça por exemplo, são todos
ferrados). Para ferrar o animal é necessário, antes, casquear. Casquear é o ato de aparar os
cascos do animal moldando-os para receber os ferros. Raspando-os por baixo, por cima e
pelos lados. Depois de casqueado o animal está pronto para receber os ferros. Dependendo do
tamanho da pata, é o tamanho do ferro (varia de 22 centímetros até 30 centímetros, mais ou
menos). O ferro é colocado sob medida sob o casco e pregado com grampos. Mauro
arquitetou um pedestal para descansar a pata do animal enquanto executa o trabalho. Usa um
martelo comum pequeno, um “jacaré” (uma espécie de alicate com ponta especial para puxar
e apertar os grampos), uma grosa, uma escova de aço e os cravos (que são os pregos). Um
jogo de ferros (que são 4), custa nas agropecuárias em média R$ 10,00. Para retirar o “miolo”
do casco (parte interna, de baixo, chamada Ranilha), Mauro usa o Rinete (uma faca curta, com
ponta quadrada). Observei que as duas cadelas do Luciano, Medonha (uma Australian Cattle
Dog) e Preta (uma Border Collie) ficaram o tempo todo em volta, comendo as ranilhas e
pedaços de casco que caíam ao chão. Mauro Ferreiro me disse que quando um animal fica
“cascudo”, se diz que está “achinelado”, ou com “bastante sola”. Os cavalos são ferrados, via
de regra, por estrita necessidade, mas no caso dos cavalos do centro de treinamento, crioulos
puros e de pedigree, o trabalho é feito por razão estética e de auxílio de correção dos aprumos,
conforme Luciano. Um cavalo pode ser casqueado para corrigir aprumos que se voltam para
60 Estilo de boné típico para o uso de equitação, da marca inglesa Kangol.
56
dentro ou para fora por exemplo.
Tanto Laurindo, no serviço de campo, quanto Manoel ou Luciano, nos rodeios
tradicionalistas, necessitam dos serviços de Mauro. Essa prática, que circula entre o campo e a
cidade compartilhada igualmente entre ambos, pode ser um bom exemplo dos fluxos que
analiso em minha pesquisa. O ferrador é um profissional muito requisitado por todos que
mexem com cavalos. Desde os que andam pelas ruas pavimentadas das cidades, até os cavalos
das estâncias utilizados para serviço que se deslocam pelo “corredor” de chão batido e de
cascalho. Desde o cavalo de desfile, passando pelo carroceiro, até o cavalo de campo usado
para camperear.
Daca.
Daca é um homem de estatura média, forte, grisalho, com idade em torno de cinqüenta
anos. Natural de Santana do Livramento. Trabalha como peão, desde muito novo. Ainda em
sua cidade natal, empregou-se como peão de estância.
Quando eu fiquei guri taludo, meu pai me levou para trabalhar com
ele numa estância em Livramento. Mas ele mandava de mais em mim,
achava que era meu patrão, queria mandar mais que o capataz. Fiquei mais
ou menos um ano na Descuido. peguei uma tropiada e fui pra Bagé.
Fiquei na Bom Retiro uns quantos anos. Lá, sim, foi bom. Aprendi todo
serviço. Estância grande, serviço bruto. Mas eu era novo, eu gostava.
Daca é um homem alegre, gosta de fazer piadas, e brinca com todos. É descontraído.
Fala pouco de si. Mas quando fala, parece muito sincero. Depois de Bagé, me contou ele,
trabalhou em Uruguaiana, morou na cidade, em Alegrete, foi cabanheiro
61
em Dom Pedrito, e
por fim, Tupanciretã.
Daca é peão da Tarumã, pelo menos, uns dez anos. Veste pilcha sempre. Não
gosto dessas roupas de cidade... Afirma. Por ser peão antigo na estância, goza de alguns
privilégios. Possui algumas cabeças de gado (suas), que moram na Invernada do Fundo
62
.
Nunca me precisou quantas eram, parece que o moço querendo comprar...”, me
respondeu nas duas vezes em que perguntei. Possui também alguns cavalos (eqüinos machos
e fêmeas), de sua propriedade, na estância. Depois de algum tempo pesquisando na Tarumã,
percebi que os cavalos que Daca encilhava, eram os seus. Ele os alimentava diariamente com
61 Cabanheiro é o peão de uma cabanha. A Cabanha tem a finalidade da criação e da seleção de animais de raça
(eqüino, bovino e ovino).
62 Setor da estância mais afastada da Sede.
57
ração e alfafa depois do “serviço”. Seus cavalos dormiam em cocheiras (três deles), e outros
dois dormiam no potreiro (com capas
63
). As cocheiras, localizadas na parte dos fundos do
galpão, eram limpas pelo próprio Daca diariamente. A ração e a alfafa eram trazidas da
cidade, por Sérgio, e pagas por Daca.
Gosto de ter minhas coisas. O patrão não se importa. Desde que não
atrapalhe o serviço... Gosto de encilhar os bichos bem amilhados
64
. Quando
não na lida da estância, lidando com meus bichos. É o jeito que o cara
tem de correr o laço. Treinar o braço.
Daca não é sócio de nenhuma entidade tradicionalista (MTG). Desta forma, não pode
laçar em rodeios formais organizados por uma dessas entidades
65
. No entanto, nas pistas
66
do
interior dos municípios, Daca participa dos rodeios, sempre que pode. No domingo, dia três
de agosto de 2008, um domingo, se sabia desde sábado, que não haveria serviço, nem de
mangueira, nem de campo
67
na estância. Assim, cedo, pela manhã, Daca me convidou para
que buscássemos algumas novilhas (das de sua propriedade), para treinar o tiro-de-laço, de
tarde. Como na ocasião, não faríamos uma atividade referente ao trabalho específico da
fazenda, Daca me ofereceu, para encilhar, uma das suas éguas. São três. encilha a Baia, as
vermelhas são muito ligeiras. exclamou Daca, sugerindo que eu encilhasse a égua de
pelagem baia por ser a mais “mansa”. A categoria ligeiro, referindo-se a eqüinos, remete a um
animal de iniciativas rápidas. Ou melhor, o animal age, praticamente sem que se precise
comandar, tamanha sua habilidade com em relação às ações, tanto do ginete, quanto do
gado
68
. Isso faz com que essa categoria de animais, deva ser montado, preferivelmente, por
pessoas experientes na montaria. O que não era o meu caso. chegando, depois de quase
63 A capa é uma espécie de proteção contra o frio. É vendida em agropecuárias para essa finalidade.
64 Referência à suplementação alimentar à base de milho moído.
65 Pala laçar nesses eventos é necessário possuir uma carteirinha com foto, emitida por uma entidade, mediante
filiação e pagamento de uma mensalidade. É o Cartão Tradicionalista.
66 As Pistas são o local onde se pratica o tiro-de-laço. Existem pistas menores (grandes mangueiras, com 200
ou 300 metros de comprimento), organizadas por pequenas entidades tradicionalistas (em geral Piquetes de
Laçadores), localizadas longe do centro das cidades, ou até mesmo em pequenas propriedades rurais, com a
finalidade de praticar o tiro-de-laço, exatamente nas mesmas regras e normas exigidas pelo MTG, porém, de
caráter não oficial.
67 Os serviços de campo se referem a todo trabalho realizado fora da sede da fazenda. Campereada, contagem e
busca do rebanho. o serviço de mangueira, se refere a todo serviço realizado nas mangueiras da sede da
fazenda, com o gado trazido do campo. (marcação, castração, cura, medicação, embarque, banho, etc...)
68 Um bom exemplo disso, já se pode notar no ato de montar. Somente ao se r o no estrivo, o animal
começa andar, obrigando o ginete a completar o ato de subir no animal, rapidamente. Outro exemplo é a
atitude do animal em relação ao gado. Ao ser conduzido um rebanho, vai-se descontraindo o corpo, até pela
própria monotonia do silêncio e do passo dos animais. Quando um animal destaca-se do grupo, a égua ligeira
-se conta do ocorrido antes mesmo do ginete, e se este estiver muito distraído ou for pouco experiente,
pode cair do animal.
58
uma hora, ao trote
69
, Daca escolheu um lote de dez novilhas para conduzir até a sede a
fazenda.
Vamo apartar só as aspadas. Pro laço tem que ter aspas. Vamos
pegar as mais boleadas
70
, deixar as mais secas pastando. Amanhã de manhã,
quando a gente vier camperear, a gente traz elas de volta. Aproveito e já
peso.
vendo lá, aquelas duas brazininhas, a malacara e a preta. Aquelas
duas nelore são corredeiras...
Na ida, a gente vai ali por baixo, pelo mato, campeia
71
as mais
graúdas e rebanha
72
junto. Dá umas dez ou doze. Dá pra correr uma tarde.
A condução dos animais até as casas se deu de forma mais vagarosa, para não cansar
os bovinos. Chegamos na sede por volta de onze horas da manhã. Daca colocou os animais na
mangueira, e desencilhamos os cavalos. Lencina trouxe alguns lies e preparou uma
caipirinha. Logo após o almoço, um matambre assado, acompanhado de pão e tomates.
praticamente não houve pausa para descanso. Chegaram Osvaldo e Vicente, vindos de uma
estância vizinha. Somando-se com Daca e Lencina, tínhamos quatro laçadores, para a
atividade da tarde de domingo. Eu, como sei montar muito pouco e tampouco sei manejar o
laço, auxiliei na porta
73
. Em um dos cantos da mangueira, existe uma saída para o tronco, que
é um corredor estreito onde os animais passam enfileirados. Forma-se uma espécie de funil,
onde os animais vão apertando-se até que, na entrada o tronco, passa somente um de cada vez.
O portão de saída do troncopara o potreiro, que é onde os peões atiram o laço. O caminho
de volta dos bovinos é feito por um potreiro lateral, retornando à mangueira, para uma nova
corrida. Daca alertou, no começo da atividade, que a armada deve ser de oito metros. “Vamos
seguir as regras do MTG.Exclamou. Os animais correram à exaustão. Cada laçador atirou
dez armadas na primeira rodada e cinco armadas na segunda rodada. Isso significa que foram
quinze tiros-de-laço para cada peão. Todos usaram, para laçar, os cavalos de Daca. A
atividade terminou quando o sol se punha. Os peões vieram a sentar-se junto ao fogo, no
galpão. Tomamos alguns mates antes de desencilhar os cavalos e alimetá-los, nas cocheiras.
Vicente e Osvaldo tornaram a encilhar os cavalos, em que vieram até a Tarumã, para retornar
até a Descanso (nome da Fazenda onde trabalham). Perguntei se era longe, ao que Osvaldo
69 Como se estava montado as éguas de sua propriedade, e estas recebem alimentação suplementada, anda-se
com mais rapidez. Quando se encilha os cavalos da fazenda, os animais devem ser conduzidos ao passo.
70 Gordas.
71 Procura.
72 Leva.
73 Porta é o portão da mangueira que libera os animais para os laçadores. Quando o laçador estava à posto,
gritavam “Porta”, ao que eu devia soltar os animais, um a um. Também fiquei incumbido de fazer a
contagem das corridas de cada laçador. Já que eu estava mesmo sempre com uma prancheta e um lápis.
59
respondeu: “não dá meia hora ao passo...
Os peões da Tarumã, ao encilhar os cavalos para o trabalho no campo, incluem o laço
como item indispensável. Inclusive os proprietários da fazenda também o levam em suas
campereadas. No entanto expressa recomendação de que não se utilize o laço a menos que
haja extrema necessidade. Do contrário, os animais que precisarem de alguma verificação,
devem ser conduzidos até a sede da fazenda. O caso de extrema necessidade se refere a um
animal impossibilitado de ser conduzido. então deve ser laçado e realizados os
procedimentos no mesmo local. Um outro caso em que é recomendado o uso do laço no
serviço de campo, me informou Daca, é em animais que se encontram atolados em locais
alagados (sangas e banhados), presos ou atados nas cercas (fios arames rebentados podem
causar acidentes). Alguns animais localizados com problemas no campo, são buscados com
trator e reboque. Laçar um animal, correndo no campo, é uma cena altamente repudiada na
Tarumã, e em outras estâncias em que Daca trabalhou. O procedimento, segundo todos
afirmam, é considerado perigoso e arriscado para os cavalos, os bovinos e para os próprios
peões. O tiro-de-laço, da forma que observei naquela tarde de domingo na Tarumã, em nada
representa o trabalho do peão. Ao usarem o laço, no campo, os peões o fazem de maneira
mais segura possível. A armada, que é o tamanho da laçada, da volta que se no laço para
enlaçar o pescoço do animal, é bem pequeno. Em torno de um metro e meio ou dois. É
arremessado do mais perto possível, e com o propósito de prender o animal. Imobilizá-lo. A
atividade organizada por Daca, naquela tarde, na verdade, representava os rodeios de tiro-de-
laço
74
dos rodeios tradicionalistas. É praticado como um esporte. Os laços usados pelos peões,
no domingo, não são os mesmos que eles utilizam para o trabalho diário. Para a atividade que
observei, eles utilizaram laços chumbados. Como descreverei no Capítulo III, o laço é sempre
trançado com quatro tentos (quatro fios de couro, cada fio é chamado tento), para que adquira
o formato redondo (tranças com número de tentos ímpares adquirem forma achatada e tranças
com número de tentos pares adquirem formato arredondado). Por ser arredondado, ao ser
trançado são colocadas, no interior da trança, pequenas chumbadas, que são esferas de ferro
ou chumbo, muito pequenas (compradas entre utensílios de pesca), para que o laço fique mais
pesado, não cedendo ao vento, e facilitando a “pontaria” do laçador. Dessa forma, ao
correrem o laço, naquela tarde de domingo, Daca, Lencina, Osvaldo e Vicente, produziram
muito mais uma representação do universo tradicionalista, do que de sua própria vivência
como peão. A atividade realizada, “dentro das regras do MTG”, como afirmou Daca, me
74 Tratarei pontualmente desse assunto, no Item 4, do Capítulo III.
60
permite compreender que ao fazê-lo, os peões da Tarumã e da Descanso, agiram dentro da
lógica de uma representação dos peões tradicionalistas, de uma prática do cenário urbano.
A prática do atirar o laço, que parte de um modelo rural, dos peões, e é representada
no mundo urbano nos rodeios de tiro-de-laço. Re-inventou-se, re-elaborou-se como uma nova
prática e não mais somente como uma representação daquele modelo. Essa nova prática re-
elaborada e re-significada foi devolvida ao campo, ao universo estancieiro, produzindo nele
novas representações. Esse fluxo de re-interpretações, me permite identificar que o conjunto
de práticas e representações acerca do tiro-de-laço, produziu-se como uma circularidade entre
o cenário rural e o mundo urbano, entre o campo e a cidade, entre os peões de estância e os
peões tradicionalistas.
Lencina.
Via de regra, nas estâncias, é função do peão mais novo recolher os cavalos para
montaria. Lencina, com apenas 19 anos, é o responsável por este trabalho na estância Tarumã.
Convivi com Lencina entre os meses de julho e agosto de 2008 e novamente entre os meses
de janeiro e fevereiro de 2009, quando pude observar de que maneira ele afirmava sua
identidade como “peão de estância”. Por ser o mais novo todos dão ordens a Lencina.
Enquanto tomávamos mate, de manhã, pouco antes das seis horas, Daca, o peão mais velho,
pede a Lencina que “reúna os cavalos”. Lencina toma apenas o freio e um baixeiro e caminha
em direção ao potreiro para montar no sogueiro. Sogueiro é um animal manso (eqüino), que
mora em um potreiro perto dos galpões, com a função de ser usado para buscar os outros
animais para montaria ou os animais para consumo. O freio é uma das peças que se coloca na
cabeça do eqüino, onde são presas as rédeas. O baixeiro, também conhecido como xerga, ou
xergão é uma peça de lã, uma manta, sendo a primeira parte dos arreios que se coloca sobre o
lombo do animal. Lencina, às vezes monta o sogueiro em pêlo (ou seja, sem nada sobre o
lombo do animal), mas desta vez prefere levar o baixeiro pois no inverno os bichos ficam
com o lombo gelado”. Em poucos minutos entram na mangueira, um grupo de uns dez
animais entre cavalos e éguas. O som das patas dos animais sobre o piso empedrado da
mangueira, faz com que os peões do galpão dirijam-se até para escolher seu cavalo.
Geralmente o peões encilham um cavalo pela manhã e outro diferente a tarde, para não
sobrecarregar os animais. A mangueira é um espaço quadrado com laterais de uns dez ou doze
metros. Lencina prende o laço um dos cantos da mangueira na altura do peito dos animais e
puxa até o outro canto de forma que os animais sejam envolvidos. Os peões gritam “forma”,
61
“forma cavalo” e os animais vão-se postando de frente para seja colocado o buçal (composto
de cabeçada, que envolve a cabeça, e cabresto, corda por onde se puxa o cavalo, presa à
cabeçada, sob o queixo). Daca me diz que os animais são postos “em forma” desde muito
cedo (quando amanunciados ou domados), e vão aprendendo com os outros”. Depois de
embuçalados, os animais são conduzidos até o galpão, onde são encilhados. Detenho-me neste
ponto pois a forma dos gaúchos peões de estância encilhar o cavalo é tanto peculiar quanto
uniforme. Com pequenas variações, como pude perceber em meus trabalhos de campo, em
estâncias da Fronteira Oeste, Missões, Região Central e em eventos urbanos tradicionalistas
nos Campos de Cima da Serra, Porto Alegre e também Fronteira. No galpão, cada peão tem
seu cavalete
75
. Alguns peões possuem seus próprios arreios, outros utilizam arreios cedidos
pelas fazendas. De toda forma, o cavalete é a maneira mais comum de guardar os arreios de
serviço
76
, ali os utensílios ficam estendidos, secando o suor do animal e acessíveis, na ordem
em que serão utilizados.
O cavalo é trazido para perto do seu respectivo cavalete, rasqueado (escovado) e
encilhado. Sobre o buçal, ainda na cabeça do animal, é colocado o freio. O freio é preso à
cabeçada. É onde são presas as rédeas. Depois, pela ordem, é colocado o baixeiro, um ou dois,
alguns são de lã, outros, mais modernos, são de espuma. Logo é colocado sobre o lombo do
animal o basto (também chamado de sela, lombilho, serigote, marreca), e para prendê-lo, a
cincha (composta de travessão, barrigueira, látego e sobre látego). Depois, é colocado o
pelego (um ou dois) e sobre este a sobre-cincha com a finalidade de segurá lo. Ainda o
usados, por vezes, outros utensílios, menos comum no trabalho das estâncias e mais usual
para passeios, ou em eventos urbanos tradicionalistas, que são a badana, o coxinilho
77
, a
peiteira, o rabicho, entre outros.
Depois de encilhados os cavalos os peões vão para o café. O café é servido na cozinha
do galpão. Toma-se leite, café, pão, e eventualmente, quando se carneia (abate de um ovino),
come-se as chúrias (já referida anteriormente). Ou ainda o sangrador
78
assado. Por volta de
7:00 hs, quando o dia começou a clarear, Lencina iniciou propriamente o seu dia de trabalho.
Naquela manhã de domingo, 27 de julho de 2008, uma madrugada escura de lua minguante,
75 “Peça de madeira utilizada para colocar os arreios.” (Bossle, 2003. p. 133).
76 Daca, por exemplo, possui algumas peças dos arreios que as usa quando vai a algum evento. Em geral as
peças são as barrigueiras, que por ficar sob o animal, sujam muito facilmente. Outra peça é o pelego, que
Daca possui um exclusivamente para ir a passeios.
77 Utensílios que se usa sobre os pelegos, presos pela sobre-cincha. A badana é de couro macio e é usada no
calor, para refrescar e o coxinilho é uma manta de grossa e macia e tem a função de melhorar o cômodo.
(Bossle, 2003. ps. 60 e 173)
78 Carne retirada do peito da ovelha ou borrego. Recebe este nome por localizar-se exatamente onde a faca é
enfiada para matar o animal. Sangrá-lo.
62
fomos designados para camperear
79
numa determinada região da fazenda.
Lencina é o quinto filho de uma família de seis. Tem apenas uma irmã mais nova, com
quinze anos. Alistou-se na Base
80
dois anos mas foi dispensado por Excesso de
Contingente. Contou que um oficial disse-lhe na entrevista que possuía baixa escolaridade.
Parou de estudar na quarta série do ensino fundamental. Dos seus outros dois irmãos homens,
o mais velho saiu da Base com carteira de motorista categoria “E
81
”, e empregou-se como
motorista em uma transportadora. Seu irmão do meio, cursou no SENAC (Serviço Nacional
de Aprendizagem Comercial), o curso de Técnico em Segurança no Trabalho e hoje trabalha
em uma empreiteira de Santa Cruz do Sul. Lencina conta que logo que parou de estudar
pelos doze anos”, ficou sobrevivendo na casa dos pais por alguns anos e realizando pequenos
serviços nas redondezas de onde morava. Seu pai é pedreiro, sua mãe, dona de casa. Depois
de ser dispensado do serviço militar seus pais o obrigaram a arrumar um trabalho fixo. Então,
por indicação de vizinhos, que diziam que na cidade era muito difícil conseguir trabalho,
Lencina foi procurar ocupação no meio rural.
Tinha um vizinho meu que trabalhava de peão numa estância perto
de Santaninha
82
. Eu tinha alguma prática com cavalo e carroça e tal. (...)
Sabia mexer com vaca de leite e tinha cuidado dumas éguas dum cara que
trabalhava na Universidade. Ele tinha prá desfile, laço, essas coisas. Então
ele me disse que tinha uma pegada prá mim aqui em Tupã. Mas tinha que ser
um cara de confiança. Pra campanha é assim, um consegue emprego pro
outro. E se um faz cagada o outro paga também. Daí não pode indicar quem
bebe, fuma, não cigarro, essas outras coisas... sabe? Nem roubar. Bah,
ladrão, prá fora, é o que mais tem. O cara fica sozinho e limpa tudo, quando
os patrão chegam, nem rastro... então tem que ser de confiança, conhecido.
(...) O serviço até a gente aprende, aprende com os outros. E tem a bóia. E
aqui fora a gente não gasta, pra juntá. Tem uns que não tem cabeça, não
sabem aproveitá. Eu bem aqui, os hôme me tratam bem, e eu quero eles
bem também. O senhor conhece eles né?
Lencina “ajustou-se” de peão dois anos na Estância Tarumã. Em sua carteira de
trabalho consta o cargo de Auxiliar de Serviços Gerais
83
. Como se vê, Lencina é mais um
peão de estância, marcadamente pertencido por essa identidade, que decorre muito mais de
79 Percorrer campo, à cavalo, revisando o gado e as instalações, cercas e vizinhanças. (Bossle, 2003. p. 113).
80 Aeronáutica, Base Aérea de Santa Maria.
81 Estão incluídos: veículos das categorias "B", "C" ou "D" que tenham uma parte articulada ou estejam
acoplados a reboque ou semi-reboque, com peso bruto total igual ou superior a 6 mil quilogramas ou espaço
para mais de oito lugares. Para rebocar trailer, o motorista também precisa de habilitação nesta categoria.
Site do DETRAN RS.
82 Município de Santana da Boa Vista, distante 172 quilômetros de Santa Maria.
83 De acordo com o Código Brasileiro de Ocupações, constante no Site do Ministério do Trabalho e Emprego
(<www.mte.cbo.gov.br>), já mencionado anteriormente.
63
um processo imaginário do que constituído formalmente pelos mecanismos legais
84
. Lencina
sabe que é um peão assim como os outros peões. Tornou-se tal por força do seu trabalho.
Executa seu mister da mesma forma que todos os outros peões o fazem. Sente-se” um peão
de estância em decorrência do seu trabalho.
Camperear é a tarefa mais comum e freqüente no trabalho dos peões. Todos os dias se
campereia. duas categorias de peões, recorrentes, nas estâncias em que visitei. A de peão
caseiro e de peão campeiro. O peão caseiro é o responsável pelos serviços domésticos do
galpão
85
. Cortar lenha, tirar leite (ordenhar as vacas), varrer os galpões, capinar, recolher os
ovos e alimentar as galinhas, alimentar os porcos, fazer o fogo, cuidar da horta, carnear,
cuidar da despensa, cozinhar para os peões, etc. Já os peões campeiros são responsáveis pelo
serviço do campo. Cuidar e manter o rebanho, gado bovino, ovino e eqüino. Camperear
diariamente. Quando não um trabalho específico, como curar
86
, vacinar, dosar
87
, apartar
88
,
carregar
89
, conduzir
90
, o peão campeiro realiza campereadas. Por esse motivo é freqüente
ouvir que não nada para se fazer, apenas camperear. Quando conversei com meu
informante sobre meu trabalho de campo, no mês de julho na Tarumã, ele me disse:
agora no inverno não tem muito que tu ver lá. A gente mexe pouco
com o gado. Quase não tem trabalho essa época. camperear. (Viriato,
principal informante, neto do dono da fazenda)
É muito interessante que não só os patrões da estância referem-se dessa forma à
campereada. Lencina também refere-se à campereada como uma espécie de “não trabalho”.
No verão a gente se judia mais, tem mais serviço. A gente mexe com
o gado quase todos os dias. O dia também é mais comprido. Com frio, os
bicho descai. Os hôme querem que mexa o menos que puder. Passa dias que
não tem nada pra fazer, só camperear...
84 Retomo essa questão no Capítulo III.
85 Via de regra a “casa” possui uma “empregada”, e é importante relacionar a figura do feminino à casa e a
figura do masculino ao galpão. Em muitos casos ela é a esposa do “peão caseiro”. Em chamada veiculada na
Rádio Tupã AM, de Tupanciretã, de 28 de julho de 2008, ouvi o seguinte anúncio: contrata-se casal, com
ou sem filhos, para trabalhar na Estância Timbaúva, em Julho (cidade de Julho de Castilhos). Assina-se a
carteira (Carteira de Trabalho). Interessados, entrar em contato com a Rádio. Programa Amanhecer na
Querência.
86 Animais machucados são trazidos do campo, das invernadas maiores e afastadas da sede da fazenda, para os
potreiros ao redor “das casas”. Assim ficam mais acessíveis à manutenção dos ferimentos. Esses ferimentos,
nos meses mais quentes, em menos de doze horas, infeccionam, devido à exposição às moscas e outros
agentes, formando as chamadas “bicheiras”.
87 Dosa-se os animais contra ectoparasitas (moscas, carrapatos, etc), e endoparasitas (verminoses).
88 Separação de animais feridos, ou para serem vendidos ou abatidos.
89 Vendidos ou para o abate.
90 Trocar de invernada, ou trazer até a sede da fazenda para serem tratados e retornar à invernada de origem.
64
A fala de Lencina dá conta de uma percepção relevante em relação à noção de trabalho
para o peão de estância. Lencina relaciona o ato de camperear a uma “não ação”. Ou seja, não
“mexer” no rebanho significa que não se está trabalhando. Camperear, dessa forma, por ser
um ato contemplativo, olhar sem interferir, apenas “cuidar”, causa a impressão de que não se
esteja trabalhando. Ao passo que nos meses em que o trabalho com o rebanho se intensifica,
na visão de Lencina, o trabalho aumenta.
A campereada termina perto do meio-dia. Ao chegar de volta ao galpão,
desencilhamos os cavalos, colocando os arreios de volta sobre o cavalete, e depois lava-se o
lombo dos animais (para evitar ferimentos, as chamadas “pisaduras”). Antes mesmo do
almoço, tivemos tempo de tomar uns mates”. Neste momento, os peões trocam informações
sobre suas campereadas. Uns informam aos outros sobre o que viram. Ségio indaga a Lencina
sobre uma determinada rês: e a brazina? Será que perto? Fica de olho... quando “mojá”, a
gente rebanha pro potreiro.Referindo-se a uma vaca de pelo brasino (com listras, “tigrado”),
que está no tempo de aproximar-se do parto. “Mojar”, é quando incha o úbere, o que indica
que o animal deve parir em poucos dias.
Almoçamos naquele dia arroz, tomates, carne de ovelha frita na panela, com
mandiocas. Depois de almoçar, fiquei ouvindo rádio com Lencina, enquanto Daca assistia
televisão. Por volta das duas horas da tarde, todos aguardavam as ordens de Sérgio sobre o
que seria o serviço da tarde. A ordem foi de que se fosse até a Invernada de Baixo, revisar se
não havia rezes no mato e que curássemos “bicheiras”. Embora nos meses de frio, diminuam
as miíases (bicheiras), havia no potreiro próximo das casas, cerca de duas dezenas de animais
com ferimentos.
Novamente encilhamos os cavalos. Outros, que não tivessem sido encilhados pela
manhã. Cada peão, via de regra possui um par de animais designados para si. Daca pediu a
Lencina que fosse indo na frente”, comigo, enquanto ele tinha alguns afazeres no galpão.
Depois, todos nos reuniríamos para curar os animais. Reúne-se todo o lote de animais
machucados, e cura-se um a um. Usa-se um spray cicatrizante e repelente às moscas.
Ao final do dia, novamente reúne-se todos os peões ao redor da lareira quando se tem
mais tempo para conversar, tomar mate até as oito horas, quando é servida a janta. Depois de
jantar, alguns ainda assistem televisão, outros vão se recolher. No galpão da Tarumã, há dois
beliches, e três catres
91
. Cada peão tem a sua cama determinada. As cobertas usadas são
pessoais. Usa-se cobertores, palas e mantas de lã. Logo que cheguei, me emprestaram um
91 Cama de galpão, rústica, trançada, de arame ou tento. (Bossle, 2003. p. 132).
65
cobertor de baixeiro. Antes de dormir, nas noites mais frias, alguns optam por dormir na sala
do fogo, arrastando os catres para lá. Então, antes de deitar, aviva-se o fogo, ou seja,
acende-se o fogo com mais lenha, para que queime por mais tempo, indo-se apagar no
decorrer da madrugada. Mantendo-se acesa, só a brasa do pai de fogo
92
, no qual será aceso, na
manhã seguinte, novamente o fogo, reavivando-se as brasas.
92 Guarda-fogo. Tição grande, que conserva sempre aceso o fogo do galpão. (Bossle, 2003. p. 277 e 366).
CAPÍTULO II
Rio Grande do Sul da narrativa histórica ao Tradicionalismo.
Neste capítulo tenho o propósito de apresentar uma breve retomada da história do Rio
Grande do Sul e do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Busco com isso compreender de que
forma a historiografia e a literatura produziram narrativas que contribuíram para esse processo
de circularidade que identifico na formação das práticas e representações sobre as identidades
gaúchas. Em um primeiro momento tento compreender como se a constituição da
identidade dos peões de estância ao longo da história, desde o século XVII até o final do
século XIX, e a seguir apresentar o momento em que se dão as primeiras manifestações
literárias, urbanas, culturais acerca daquele gaúcho peão de estância, culminando na década de
sessenta com a criação do MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho).
A figura emblemática do gaúcho herói, assentada na representação do peão campeiro,
do peão de estância dos “primeiros tempos”, cria uma narrativa mítica acerca desse elemento
humano.
Portanto, nessa perspectiva, gaúcho é aquele guasca dos primeiros
tempos, mistura de índio, espanhol e português, que percorria a região em
busca de couro e sebo. É aquele gaudério que realizava incursões em
território inimigo roubando gado. É o tropeiro que abriu os caminhos e
integrou o que viria a ser o Rio Grande do Sul ao Brasil. Gaúcho, também, é
o guerreiro que, arregimentado pelo patrão, lutou (e serviu de bucha de
canhão) em todos os conflitos que envolvera a região e o peão que ainda
hoje, em seu trabalho diário, doma a natureza. (Maciel, 2000. p. 82).
Sobre esse gaúcho, re-significado e re-elaborado desde as primeiras narrativas
históricas forja-se a figura emblemática a que me refiro. O principal propósito deste capítulo é
o de melhor compreender essas narrativas, esse mito substantivado pelo gaúcho histórico.
Ancorado no passado pastoril, das primeiras estâncias, da pecuária, das guerras e disputas de
fronteiras, o elemento humano chamado “gaúcho” funda-se num “mito de origem”, ganhando
contornos de antigüidade, ancestralidade e originalidade.
1 Breve história do Rio Grande do Sul.
O Rio Grande do Sul é o estado mais meridional do Brasil. Por situar-se numa região
67
limítrofe entre os dois Impérios, o Espanhol, que tinha como centro administrativo a sede em
Buenos Aires e o Português, com sede no Rio de Janeiro. O Rio Grande do Sul possui sua
história marcada pelas guerras de fronteira, entre as duas coroas ibéricas, desde o século XVII
(Pesavento, 1992). Essa trajetória desencadeou uma construção identitária, cultural, social,
política e econômica muito peculiar. Ao narrar um pouco dessa trajetória procuro dar conta de
explicar os diacríticos dos muitos processos culturais que podem ser encontrados no tempo
presente, da mesma forma que pode oferecer subsídios para entender as narrativas vinculadas
às identidades tradicionais gaúchas, sobretudo as que remetem ao homem campeiro, o
tropeiro, o guerreiro valente, que veio a constituir-se como arquétipo gentílico habitante do
sul do Brasil. Isto é, a partir da análise da narrativa histórica sobre o gaúcho e da compreensão
do momento histórico em que este gaúcho passa a ser representado pela historiografia e pela
literatura posso identificar os primeiros fluxos circulares de interpretações e re-significações
das práticas e representações dos homens do campo e os seus reflexos no cenário urbano.
Não a historiografia, como também a literatura e a poesia contribuíram para a
consolidação desse arquétipo. O poeta Jayme Caetano Braun, considerado pelo historiador
José Hildebrando Dacanal como o “Homero brasileiro”, narra em seu poema épico os
primeiros tempos de ocupação do território ameríndio:
Primeiro era o campo aberto, descampado, sem divisas... Com
fronteiras imprecisas, mundo sem longe nem perto. Eu era o índio liberto,
barbaresco e peleador. Rei de mim mesmo, senhor da natureza selvagem. A
religião da coragem e o sol de bronze na cor. Um dia veio o jesuíta a este
rincão do planeta, vestindo a sotaina preta da catequese bendita. Foi mais do
que uma visita à minha pampa morena. Bombeei por trás da melena, olhos
nos olhos do irmão e gravei no coração a Santa Cruz de Lorena. (Braun,
2000).
Este é um trecho do poema “Payada”, onde o autor coloca-se no ponto de vista do
nativo, como espectador e protagonista dos acontecimentos, um índio libertoque vive em
um “campo aberto” até a chegada dos jesuítas, e com eles, a dominação e a colonização.
O Rio Grande do Sul demorou para despertar o interesse dos europeus. Segundo
Pesavento (1992. p. 7 11), embora essa região tenha sido explorada pelos colonizadores no
início do século XVI em expedições litorâneas de exploração e comércio de pau-brasil
restaram somente registros e generalizações referentes ao lugar que denominaram “Rio
Grande de São Pedro”. Essa região não continha os atrativos que a integrassem aos interesses
68
do mercado internacional
93
, restando livre desta primeira carga de espoliação e pilhagem
característicos do Antigo Sistema Colonial.
O interesse externo pelas terras gaúchas teve como fundamento econômico básico a
caça de gado xucro (muar, eqüino e principalmente o bovino), e se deu no seguinte contexto:
Entre os anos de 1580 1640 se deu a anexação do Reino de Portugal ao Reino da
Espanha, conhecida como União Ibérica
94
. Durante esse período, os Holandeses ocuparam o
nordeste brasileiro e dominaram regiões africanas de onde os portugueses abasteciam-se de
mão-de-obra escrava negra. Devido a isso, o Paulo lançou-se ao interior brasileiro,
chegando ao território sulista, no intento de apresar índios a fim de vendê-los nas zonas
açucareiras. Essas “Bandeiras Paulistas” avançaram contra as reduções indígenas
estabelecidas pelos missionários da Companhia de Jesus, em território pertencente à bandeira
espanhola. Dentro dessas reduções, os índios se achavam aldeados pelos padres e
adestrados para o trabalho e a obediência” (Pesavento, 1992. p. 08).
Com o ataque dos paulistas às reduções do Paraguai, elas ingressam em território rio
grandense em 1626 no que ficou denominado zona do “Tape”.
A partir de 1626, na região do Tape, começam a ser criadas as novas
reduções que tiveram duração efêmera, também sendo alvo dos paulistas.
Estes são expulsos da região em 1640 na batalha de Mbororé, às margens do
rio Urugauai, pelos índios. Na trama da disputa pela ocupação do território,
os portugueses fundam em 1680 a Colônia do Santíssimo Sacramento às
margens do rio da Prata, quase em frente à cidade de Buenos Aires e os
jesuítas empreendem uma nova investida no noroeste do território, entre
Laguna (1626) e a colônia do Sacramento, fundando entre 1682 e 1706 os
Sete Povos das Missões. (Brum, 2006. p. 43).
Após o combate de 1640 houve abandono da área pelos jesuítas que carregaram
consigo os índios para a margem ocidental do rio Uruguai, deixando o gado que criavam nas
reduções. Esse rebanho deixado para trás, reproduziu-se à solta, sobre as férteis pastagens do
pampa gaúcho, tornando-se bravio e alçado, formando uma reserva de gado, conhecida como
Vacaria del Mar (Pesavento, 1992. p. 09). Ao retornarem ao território rio grandense, os
jesuítas fundam os Sete Povos das Missões
95
, fracionando o território em “estâncias
96
”, tendo
como atividade a caça ao gado xucro. Parte desse rebanho era levado para o nordeste do Rio
93 A exploração colonial assentava-se em minério (metais preciosos como ouro e prata), e agricultura (cana-de-
açúcar e pau-brasil)(Pesavento, 1992).
94 Período conhecido como Filipino (em que ambos os reinos foram governados pelos monarcas Habsburgos
Felipe II, III e IV). (Brum, 2006. p. 43).
95 São Borja, São Nicolau, São Miguel, São Luis Gonzaga, São Lourenço, São João Batista, Santo Ângelo)
96 É nesse período que aparece a palavra Estância, como relativo a lugar de afazendamento com a finalidade
agrícola e pecuária.
69
Grande do Sul, constituindo essas vacarias. Nas reduções o couro também era explorado e
exportado para Buenos Aires. A erva mate também fez parte da produção agrícola das
reduções.
Nas reduções, os índios viviam em regime de comunidade primitiva e produziam mais
do que consumiam (Ornellas, 1999. p. 55), ao que consta, na visão deste autor, devido à
sabedoria do Padre Antônio Sepp, que administrava o uso e o corte da madeira, o manuseio e
pisoteio do barro (fabricação de telhas), e irrigação da agricultura. As terras, dentro dos
limites das reduções, eram organizadas em duas partes principais e recebiam designação
indígena: Amambaé era a parte que se reservava aos chefes de família, o terreno que se
destinava a cada um, (...) e a outra, Tupambaé, o campo comum”(Ornellas, 1999. p. 55). Os
índios, além de rezar, trabalhavam em dias diferentes da semana em cada terra, produziam
para a redução e para o excedente. Havia horas determinadas de trabalho e descanso.
Assegurava-se direitos aos velhos e inválidos, bem como protegia-se a infância e os enfermos.
Ornellas destaca que estabelecia-se uma constituição democrática, social e cristã, de
profunda sabedoria para a época e o meio” (1999, p. 55).
Foi durante este período histórico, final do século XVII, com as reduções jesuíticas, e
no decorrer do século XVIII que surge a figura do “gaudério”, o vaqueiro campeador,
rastreador e vaqueano, tropeiro e changueador, o tipo social primitivo que originou o gaúcho.
Esse mestiço, filho de espanhol e de índia, dono do espírito ousado
do conquistador e da agilidade e perspicácia do aborígene, deu o primeiro
rastreador, o primeiro desgarrador, o primeiro changador, e por vezes,
egresso dos redutos subordinados à lei, foi também o quatrero, vagabundo
dos campos e ladrão de gados. Está na figura lendária deste matreiro, dono
de todos os segredos da equitação, o precursor do gaúcho, o próprio gaúcho
primitivo, com todas as vantagens e prejuízos de sua condição de mestiço e
de suas influências perniciosas do meio bárbaro. (Ornellas, 1999. p. 13).
Este elemento humano foi a peça motriz da economia sulina por quase dois séculos
97
.
O gaudério trabalhava para os padres jesuítas transportando o gado e/ou trabalhavam por
conta própria preando gado xucro e alçado, para tirar-lhe o couro e vendê-lo aos espanhóis e
portugueses. Serviu a toda sorte de comerciantes e carreteiros que se interessavam em
comprar desses vaqueiros errantes, os eqüinos, muares, gado vacum, seu couro, sebo, graxa,
crinas e demais derivados que pudessem ser vendidos nos aglomerados urbanos que se
formavam ao redor dos Fortes e Capelas, vilas e povoados.
97 Desde a fixação das reduções espanholas até a chegada da mecanização ao campo, bem como a chegada dos
frigoríficos Rio-grandense, Swift, Wilson e Armour ao Rio Grande do Sul em meados do século XX.
(Pesavento, 1992. p. 97)
70
Cabe aqui, fazer uma diferenciação entre três termos que são usados pela
historiografia e pela literartura de forma um pouco confusa. A demarcação territorial, o
cercamento e o aramado. Cada um refere-se, não só, a um momento histórico diferente, como
também ocasionaram, em seu tempo, a novas dinâmicas nas relações entre os sujeitos e seu
tempo e seu espaço, e entre eles e a sua história.
O primeiro e o último representam situações bem nítidas e datadas no tempo. Como
descreverei a seguir, é no cercamento que ocorrem alguns problemas de interpretação. A
demarcação territorial, refere-se especificamente à distribuição de Sesmarias, pela Coroa
Portuguesa, por volta da terceira década do século XVIII. Devido a essa demarcação
territorial, ocorre a possessão da terra e do rebanho. Isso proporcionou o estabelecimento das
Estâncias, caracterizado pelo afazendamento, principalmente dos militares, e a sedentarização
dos tropeiros (Pesavento, 1992. p. 15). A distribuição das sesmarias levou à demarcação
territorial das Estâncias. Essas estâncias se desenvolveram sobre a criação extensiva de gado
vacum utilizando a mão de obra dos peões. Essa mão-de-obra era formada pelos mesmos
gaudérios, mercenários subalternos e malditos, que tropeavam gado e derivados para os
jesuítas, espanhóis e portugueses. Embora haja divergências a este argumento, Pesavento
(1992. p. 15) afirma que a de mão-de-obra escrava pouco foi usada nas Estâncias, devido ao
fato de sua atividade econômica não proporcionar acumulação de capital suficiente para
requerer este expediente.
Uma vez demarcada a propriedade, para efeito de proteção e preservação, era
necessário cercá-la. “As primeiras referências que encontramos, em papéis oficiais, a cercas e
tapumes, datam do terceiro decênio do início da colonização portuguesa, começada, como se
sabe, em 1737, com a fundação do 'presídio' de Rio Grande de São Pedro(Cesar, 2005. p.
128). Guilhermino Cesar também mostra pontualmente o momento em que começaram as
utilizações de fios de arame para delimitações da propriedade. O historiador afirma que foi no
fim do Segundo Reinado que os fios de arame começaram a riscar os campos. ... , os fios de
arame começaram a desembarcar em nossos portos (...) foram descarregados, a contar de
1874, algumas quantidades, (...) números ainda modestos, mas em ascenção.(Cesar, 2005.
p. 136). Como se vê, de acordo com este historiador, o tempo decorrido entre os anos de 1737
e 1874 podem ser denominados como o período de cercamento. Esse intervalo de tempo, de
137 anos foi determinante na constituição do tipo humano habitante da campanha. A
influência do aramado foi sensível na conformação do conceito de propriedade nos campos
sulinos. Com ele, acentua-se a formação dos latifúndios, a melhoria dos rebanhos, a seleção
racial, a comercialização regular de tropas, a sedentarização dos grandes proprietários e dos
71
homens trabalhadores dos rebanhos e dos antigos peões denominados gaudérios.
O caudilho não tem o espaço físico indemarcado o meio ambiente
propício à eclosão do mandonismo; e o “vago”, o celebrado “monarca”,
enreda-se nos fios de arame. Perdem, ambos; um, o seu penacho, e o outro a
sua propriedade. (Cesar, 2005. p. 137)
É este o momento histórico, em que aparece a figura do gaúcho. Um tipo regional
humano, que segundo Ornellas, surge em condições sociais onde havia pouca ou quase
ausência da propriedade privada.
Dessa forma, a medida que as cercas começaram a riscar o território sulino, bem
como apreender o rebanho alçado, diminuía a propriedade comum dos gaúchos
98
. Esses,
tornavam-se mão-de-obra empregada, peões e posteiros, sujeitos à imposição dos novos
proprietários da terra. À medida em que os campos vão se privatizando e os grandes novos
proprietários das terras e do gado, os estancieiros, avançam em direção a todas as regiões do
Rio Grande do Sul. Os gaúchos vagos, tendem a ser absorvidos, transformando-se em peões
ocasionais ou permanentes, de acordo com as novas necessidades de mão-de-obra das
estâncias. A partir do que já foi descrito aqui, é possível compreender de que forma a
paisagem transforma-se com a delimitação dos campos. O antigo gaudério, acostumado a um
território ainda sem dono, vivendo da caça ao gado chimarrão, torna-se por essa razão um
homem doméstico e sedentário.
Segundo o historiador Manoelito de Ornellas
A abundância do gado e a ausência de toda propriedade permitiam
ao habitante do pampa no século XVIII viver sem esforços. O cavalo lhe
assegurou a rápida mobilidade, o couro proporcionou-lhe os arreios, o laço,
as botas, as rédeas e deu-lhe a cama e parte da habitação. Laçada ou boleada
a rês, em pleno campo, dela se retiram o couro e o melhor pedaço de carne
para o churrasco e o resto fica na coxilha a atrair os milhares de corvos que
negrejavam em bandos saltitantes ou em revoadas turbulentas. (Ornellas,
1999. p. 82).
Para o historiador Teófilo Torronteguy (1994), a utilização do aramado culminou o
cercamento dos campos na década de setenta do século XIX, e isso reformou os costumes
dos rio-grandenses(p. 56), dividiu os campos em invernadas e fechou atalhos. Ao cercar as
suas propriedades, o estancieiro criou barreiras às campereadas livres quando gaudérios e
animais cruzavam as campinas e os currais.” (p.56). Ao fazê-lo, os animais, sobretudo o gado
98 Cercas de arame começaram a difundir-se pelos campos da Campanha e da Serra a partir de 1870 e o
arame farpado veio em seguida, nos anos de 1880.(Love, 1975. p. 17).
72
que era xucro, amansou-se gradativamente, ocasionando o fim das cavalhadas, da caça e da
preia desses animais. O alambrado, dessa forma, representou o fim de uma situação social
entendida como liberdade do tipo social humano habitante do Rio Grande do Sul. Com o
tempo o gado passou a ter dono.(p. 72). No entanto, aquele elemento humano, marginal,
continuou a cruzar as invernadas e os campos e a servir-se do gado para alimentação e
comércio. Os gaudérios crusavam o pampa, varavam rios sem saber exatamente se estavam
no Brasil, Cisplatina ou Argentina.” (p. 72).
A sociedade sul-rio-grandense estava se modificando e não
aceitava mais esse tipo humano. Aos poucos, os gaúchos caíram na
marginalidade. (...) Os estancieiros insistiram em transformar os gaúchos em
peões obedientes; o interesse estava em aproveitarem-se de suas habilidades
guerreiras e do seu conhecimento do pampa. (...) Com o tempo os gaúchos
passaram a ceder, pela sobrevivência, aos estancieiros. (Torronteguy, 1994.
p. 72).
Como lobos selvagens que aos poucos acomodam-se a viver sob o teto, às sobras e a
proteção dos humanos, os gaudérios transformam-se em gaúchos, uma mão-de-obra útil,
barata e servil. Para Torronteguy, a única recompensa recebida por esse serviço foi o discurso
ideológico que apontou o gaúcho como herói. Criou-se uma categoria diferente no
imaginário e no discurso corrente. A categoria do guerreiro vitorioso cujo galardões de
valentia o aproximavam de um semideus.” (p. 73).
No final do século XVIII e meados do século XIX, o comércio internacional de
produtos agrícolas atinge o auge de sua especialização. A Revolução Industrial alcança
regiões até antes remotas, como o sul da América do Sul. Tentando acompanhar a demanda
dessa produção ou até mesmo, antecipar-se a ela. A pecuária sulista moderniza-se com as
charqueadas, implantando mão-de-obra escrava
99
, bem como a utilização dos peões livres e
assalariados.
Isto era mais evidente nas planícies selvagens do sudoeste americano
e em vários lugares da América do Sul onde o gado multiplicava-se
virtualmente sem esforço humano, acompanhado por gaúchos, llaneros,
vaqueiros e cowboys e atraía a atenção de todos os fazedores de dinheiro,
99 A respeito da mão-de-obra escrava no Rio Grande do Sul convém ressaltar que seu uso na pecuária foi
diminuto, pois a criação de gado o exige muitos trabalhadores, os escravos foram largamente utilizados
nas plantações de trigo, nas charqueadas e nos serviços domésticos, principalmente.” (Torronteguy, 1994. p.
58). Ainda Dreys (1990) destaca que nas estâncias, pouco tem que fazer o negro, exceto na ocasião rara
dos rodeios.(p.128). A respeito da utilização da mão-de-obra do escravo negro na agricultura do trigo no
Rio Grande do Sul convém destacar que os trigais gaúchos foram, pois, foram trabalhados pela mão-de-
obra escrava.(Cardoso, 1977. p. 60). Cardoso também destaca o escravo negro sendo usado em toda sorte
de serviços domésticos e ofícios urbanos,” além de sua utilização para “a estância e o charque.” (p. 60).
73
que viam nisso um meio de enriquecer. (...) Entretanto, um outro método de
utilizar a pecuária já estava sendo explorado: a preservação da carne, através
dos métodos tradicionais de salgar e secar, ... (Hobsbawm, 1977. p. 191
192).
Por cento e cinqüenta anos, entre a segunda metade do século XVIII até o final do
século XIX o território sul riograndense foi um campo de batalhas, de disputas e guerras.
Entre os anos de 1754 1756, ocorre a Guerra Guaranítica, decorrente das determinações do
Tratado de Madri (1750), que cedia as missões jesuíticas ao domínio português, ocasionando
a resistência dos índios, liderados por Sepé Tiarajú.. Em 1822 ocorre o movimento de
independência do Brasil. Entre 1835 1845 ocorre a Revolução Farroupilha decorrente de
uma rebelião, por parte dos charqueadores rio grandenses, contra o Império brasileiro, na
busca de melhores preços para seu charque no mercado interno brasileiro. Entre os anos de
1865 1870, ocorre a Guerra do Paraguai, onde Brasil, Argentina e Uruguai formam a
Tríplice Aliança no conflito contra o Paraguai. Entre 1893 1895 ocorre a Gesta Federalista,
uma rebelião armada contra o governo Júlio de Castilhos, que insere-se na história como a
guerra civil brasileira mais sangrenta, durando trinta e um meses e matando cerca de dez mil
pessoas.
Todo este cenário, observado desde meados do século XVII até meados do século XX,
marcado por guerras, conflitos e disputas por demarcações fronteiriças, contribuiu à sua
maneira e à sua herança para a constituição da identidade do tipo social regional humano
denominado “gaúcho”. Não são os fatos em si que são importantes, também a maneira
como eles são tratados no presente, o modo como são revisitados e re-significados constituem
todo um mercado de bens simbólicos em torno das identidades gaúchas ancoradas na figura
do homem do campo.
A cultura gaúcha, recortada àquela que remete às representações e práticas dos peões
de estância, afirma-se como um nacionalismo, um sentimento de pertença do indivíduo à
terra, que no entanto, legitima-se através de um discurso sobre uma identidade regionalista.
Bourdieu afirma em O Poder Simbólico que o regionalismo e o nacionalismo
constituem, ambos, “apenas um caso particular das lutas propriamente simbólicas em que os
agentes estão envolvidos” (2007. p. 124 125). Bourdieu afirma que esses agentes se
envolvem nesse processo, individualmente em estado de dispersão e coletivamente em estado
de organização, e o que está em jogo é a conservação ou a transformação das relações das
forças simbólicas, assim como, a conservação e a transformação das leis que constituem o
valor simbólico ligado às manifestações simbólicas construtoras da identidade social. Quando
74
o indivíduo, dominado pelas relações de força simbólica, entra em disputa com essas forças
simbólicas, no quotidiano, tem duas opções: a aceitação ou a assimilação. A aceitação é o ato
de resignar-se à definição dominante da sua identidade, enquanto que a assimilação é um
processo em que o indivíduo, de certa forma “se conta” de sua condição e reage fazendo
“desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o estigma (no estilo de vida, no vestuário,
na pronúncia, etc.)”, propondo “por meio de estratégias de dissimulação ou de embuste, a
imagem de si o menos afastada possível da identidade legítima.” (Bourdieu, 2007. p. 124).
Toda essa luta é para Bourdieu, um um esforço pela autonomia “entendida como poder de
definir os princípios de definição do mundo social” (Bourdieu, 2007. p. 125). O que está em
jogo, nessa luta pela autonomia, é o poder de se apropriar de todas as vantagens simbólicas
associadas à posse de uma identidade suscetível de ser publicamente e oficialmente afirmada
e reconhecida.
A conotação simbólica da identidade gaúcha pensada dentro dos conceitos de
nacionalismo e regionalismo, adquiriu, no Rio Grande do Sul uma forma peculiar: “Na
Argentina e no Uruguai, o gaúcho passa a ser considerado símbolo nacional, ao passo que
no Rio Grande do Sul é erigido como emblema de regionalismo.” (Brum, 2006. p. 42). Essa
autora mostra como a figura do gaúcho passa para a história re-configurado como fundador e
herói, e de forma emblemática, na saga do processo de domesticação do território, tendo como
características principais a bravura do guerreiro e o denodo do homem do campo.
A disputa, portanto, referente a identidade gaúcha insere-se na dinâmica do mercado
de bens simbólicos. Esses bens adquirem valor social que se validam pelas tradições
(legitimadas na repetição), na historiografia (tomando a “história como disciplina detentora
do monopólio de interpretar o passado” (Brum, 2006. p. 19) e na aceitação, por parte dos
sujeitos, de uma identidade que lhes seja comum.
Em resumo, o mercado dos bem simbólicos tem as suas leis, que não
são as de comunicação universal entre sujeitos universais: a tendência para a
partilha indefinida das nações que impressionou todos os observadores
compreende-se se se vir que, na lógica propriamente simbólica da distinção
em que existir não é somente ser diferente mas também ser reconhecido
legitimamente como diferente e em que, por outras palavras, a existência real
da identidade supõe a possibilidade real, juridicamente e politicamente
garantida, de afirmar oficialmente a diferença qualquer unificação, que
assimile aquilo que é diferente, encerra o princípio da dominação de uma
identidade sobre a outra, da negação de uma identidade por outra. (Bourdieu,
2007. p. 129).
75
Outro autor que contribui para que se faça uma leitura da história, no entanto a partir
do ponto de vista da antropologia, é Marshall Sahlins. Em Ilhas de História (1987), o autor
traz contribuições importantes para compreender em que medida o conceito antropológico de
cultura é importante para o estudo da história e vice-versa, ou seja, qual a importância da
história para o estudo da cultura.
Sahlins discute a relação entre estrutura e evento. Não se analisa apenas o fato
acontecido, mas a maneira como ele aconteceu. Sendo assim, a cultura se sobreporia à
história, e a cultura, seria então, a chave metodológica para interpretar a história. Um evento
não é apenas um acontecimento. Ele transforma-se em tal, pela interpretação que recebe
dentro de um sistema simbólico.“Um evento transforma-se naquilo que lhe é dado como
interpretação. Somente quando apropriado por, e através do esquema cultural, é que adquire
uma significância histórica.(Sahlins, 1987. p. 15). Para o o autor, a cultura é justamente a
organização da situação atual em termos do passado” (Sahlins, 1987. p. 192), em outras
palavras, cultura é o uso do passado histórico como meio de produzir um presente,
exatamente como se dá com a cultura gaúcha acionada. É um gaúcho histórico, engendrado
pela historiografia e pela literatura fazendo-se representar e reviver através dos sujeitos no
presente.
O acontecimento histórico passa a ser narrado pela historiografia e transforma-se em
evento histórico quando filtrado pelos esquemas culturais. “...a cultura funciona como uma
síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia.” (Sahlins,
1987. p. 180). E este adapta as mudanças em seu próprio benefício.
As narrativas a respeito do gaúcho são repletas de heróis e guerras. São vultos e fatos
revisitados na história e revistos no presente pela dita cultura tradicional gaúcha. Significa
dizer que em um primeiro momento, o evento é apreendido pelos “olhos da tradição”, já que é
o esquema cultural enquanto referencial simbólico compartilhado que lhe inteligibilidade.
A tradição é como uma lente a olhar para estes fatos históricos. Contudo, no desenrolar dos
acontecimentos, ao interpretar o passado, os homens repensam suas categorias, submetendo-
as a riscos empíricos, do cotidiano, a fim de dar conta da contingência do evento. “O evento é
a interpretação do acontecimento, e interpretações variam.” (Sahlins, 1987. p. 191). Desse
modo, o sentido original das categorias culturais é remodelado pela introdução de novos
significados, de novos mbolos, acarretando alterações na maneira de pensar e agir de toda a
sociedade.
Entendo que quando olhamos para trás, através da narrativa histórica, o fazemos
dentro de uma lógica cultural na qual estamos inseridos. Em contrapartida, a cultura vivida,
76
revivida e re-significada por nós e pelos grupos que estudamos está impregnada de história.
Aos acontecimentos que iluminamos no tempo passado damos o nome de evento. Esse
evento, através do tempo, é re-semantizado pelas trocas culturais, inerentes à própria dinâmica
da cultura e pelas relações sociais das interações humanas, alterando as estruturas de
percepções de tempo e espaço do tempo presente. A Guerra Guaranítica (1754 1756) é um
fato histórico, Sepé Tiarajú, líder indígena nessa guerra, ao morrer, era apenas um soldado
guerreiro. O “Mito de Sepé”, um mito gaúcho(Brum, 2006), nasceu de uma sequência de
eventos históricos que concorreram para sua elaboração. E as representações criadas no
presente, a partir deste personagem histórico (heroicizado e mitificado), dão conta de
estruturar, num tempo e espaço atuais as relações das pessoas com esse fato histórico.
Esse passado histórico é constantemente re-vivido e re-significado pela tradição.
Como já tive a oportunidade de mencionar antes, a tradição assenta-se na repetição. A
tradição é capaz de reatualizar um passado imemorial através dessa repetição. O culto ao
regional gaúcho presentifica os cenários primitivos, os acontecimentos históricos, os usos e
costumes daquilo que entende ser o seu passado. No entanto esse passado é compreendido de
uma forma descontextualizada, atemporal e acrítica. Ou seja, tudo que é do “tempo antigo”, é
tradicional. Esse “tempo antigo”, esse “antigamente”, é atribuído a uma massa única de
acontecimentos em que não se definem tempos nem espaços. Uma narrativa recorrente entre
aqueles que cultivam o regional gaúcho e que me foi dita pelo Tradicionalista Milton
Hoppe
100
, é: “o gaúcho antigo fazia assim, então assim que é o certo. Isso não tinha naquele
tempo, antigamente não se fazia assim, então errado”. Maciel (2001), afirma que dessa
forma, o passado se configura como um legitimador, uma garantia da veracidade de um
costume ou de uma manifestação cultural. A autora afirma que o critério antiguidade é
confundido assim com autenticidade, ou seja, quanto mais remoto, mais legítimo se torna.
(p. 247).
Eric Hobsbawm, em A Invenção das Tradições (1997), define o conceito de tradição,
bem como este culto ao “desde sempre” recorrente em tradições inventadas ou recriadas, que
usam esse dispositivo de reinventar o passado e repetir no presente, para ganhar credibilidade
e legitimidade.
O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas
nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas,
construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de
100 Sr. Milton Hoppe foi Patrão do CTG Sentinela da Querência, de Santa Maria, entre os anos de 1995 e
1999. A entrevista foi realizada na Sede Campeira do CTG, na noite do dia 28 de janeiro de 2009.
77
maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de
tempo às vezes coisa de poucos anos apenas e se estabeleceram com
enorme rapidez. (...) Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de
práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas;
tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores
e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. (Hobsbawm,
1997, p. 9).
A tradição é um padrão de comportamento ao qual os indivíduos estão pré dispostos a
agir. A tradição se mantém através da repetição, da continuidade, do costume, da crença de
um “desde sempre”, por vezes imemorial e atemporal, porém lógico e verossímil, que age
sobre os indivíduos, dando-lhes sentido e significado à sua história, seu passado e seu lugar
no mundo, ou seja, situando-o em tempo e espaço.
A tradição é um paradigma, pressupõe continuidade, estabelece algo a ser seguido. É
como acreditar que algo “sempre foi assim, então deve continuar sendo assim”. Para Anthony
Giddens (2002), muitas das coisas que consideramos tradicionais, alicerçadas na neblina
dos tempos, não passam, na verdade, de produtos do último par de séculos, e por vezes são
ainda mais recentes. (p. 46). Para o autor, a palavra tradição origina-se no latim, do verbo
"tradere" (traditio, traditionis) que significa trazer, entregar, transmitir e ensinar, “... ou dar
qualquer coisa a guardar a outra pessoa.” (p. 47). Assim, pode-se entender o conceito de
tradição como típico do mundo moderno, sendo produto de elaborações conscientes e
inconscientes forjadas por sujeitos e por grupos, pressupondo sempre relações de poder.
Dessa forma, transmite usos, costumes, crenças, maneiras, traços culturais, símbolos, idéias,
histórias e memórias, que são transmitidas pelas pessoas por gerações através das interações
sociais, das manifestações artísticas, e introjectadas por estes indivíduos e suas culturas como
padrões ideais de ação e comportamento.
Um texto caricato que circula pela WEB, descreve de forma ilustrativa, um exemplo
de como se pode notar a formação de um padrão de comportamento, que através da
reprodução de um costume, se pode pensar em tradição:
Um grupo de cientistas colocou cinco macacos numa jaula, em cujo
centro puseram uma escada e sobre ela, um cacho de bananas. Quando um
macaco subia a escada para apanhar as bananas, os cientistas lançavam um
jato de água fria nos que estavam no chão. Depois de certo tempo, quando
um macaco ia subir a escada, os outros enchiam-no de pancada. Passado
mais algum tempo, mais nenhum macaco subia a escada, apesar da tentação
das bananas.
Então, os cientistas substituíram um dos cinco macacos. A primeira
78
coisa que ele fez foi subir a escada, dela sendo rapidamente retirado pelos
outros, que lhe bateram. Depois de algumas surras, o novo integrante do
grupo não subia mais a escada. Um segundo foi substituído e o mesmo
ocorreu, tendo primeiro substituto participado, com entusiasmo, na surra ao
novato.
Um terceiro foi trocado, e repetiu-se o fato. Um quarto e, finalmente,
o último dos veteranos foi substituído. Os cientistas ficaram então, com um
grupo de cinco macacos que, mesmo nunca tendo tomado um banho frio,
continuavam a bater naquele que tentasse chegar às bananas. Se fosse
possível perguntar a algum deles por que batiam em quem tentasse subir a
escada, com certeza a resposta seria:
“Não sei, as coisas sempre foram assim por aqui...”
Giddens responde à pergunta feita ao final da fábula: O que torna qualquer tradição
diferente é o facto de que ela define uma espécie de verdade”. Todos os indivíduos da fábula
tinham aquele comportamento como uma verdade estabelecida, irrefutável. Agiam de forma
tradicional. E para alguém que age de acordo com uma prática tradicional, as perguntas
sobre a existência de alternativas não fazem sentido.” (2002, p. 49).
E é justamente buscando essa continuidade em relação ao passado, que surge o culto
ao gauchismo, ao tipo social humano tradicional regional gaúcho
101
. Maria Eunice Maciel,
diferencia gauchismo e tradicionalismo. Gauchismo como algo maior, do qual o
tradicionalismo é uma de suas manifestações. O gauchismo como tudo que se refere ao
gaúcho”, e não necessariamente ligado ao tradicionalismo. A pesquisadora define, em grandes
linhas o gaúcho como sul-rio-grandense (e é um gentílico), ao homem ligado às atividades
pastoris (portanto das estâncias), e uma figura emblemática, que implica em todos os nascidos
no Rio Grande do Sul, mas criado a partir do mito do homem campeiro.
O gauchismo é algo difuso, contendo também aqueles que se
intitulam nativistas, que não aceitam o tradicionalismo e tentam manter uma
independência em relação a este. Dentro do gauchismo há, portanto, não
apenas o tradicionalismo de maneira geral, como o MTG, sua parte
organizada e a que consegue impor sua perspectiva em relação ao gaúcho e
às tradições como legítima e oficial, mas todas as manifestações,
estruturadas ou não, que operam com um processo identitário relacionado
ao Rio Grande do Sul e ao gaúcho. (Maciel, 2001, p. 245).
Estudar essas tradições, suas manifestações, contribui para entender as interações
101 Ao denominá-lo como um tipo social, está-se referindo a um modelo, uma imagem cristalizada, fruto
de um processo redutor que, ao generalizar determinados atributos (sejam eles imaginários ou não),
simplifica a complexidade cultural do grupo ao qual esse tipo concerne, reduzindo a expressão identitária
desse grupo a uma figura a quem atribuídas determinadas característica tidas como definidoras ou
identificadoras do grupo e condensando, assim, idéias relativas a ele.(Maciel, 2001, p. 246).
79
humanas, e as relações dos indivíduos com o seu passado. Entendo que não se pode
desvincular tradição e história. Mesmo as tradições inventadas, utilizam a história para se
legitimar, justificar sua verossimilhança, validar suas ações, dar solidez às suas identidades,
dar sentido à vida, nenhum de nós terá uma razão digna para viver se o tiver uma causa
por que valha a pena morrer.” (Giddens, 2002. p. 56).
2 Tradicionalismo, MTG e Identidade Gaúcha Acionada.
O tradicionalismo é, sem dúvida, uma das mais contundentes manifestações da cultura
gaúcha. Até ganhar os contornos que tem hoje, organizar-se como movimento, criar toda série
de representações e práticas acerca do ícone gaúcho, ancorado no homem do campo, e
concentrar sob sua nomenclatura todo o universo simbólico que envolve essa identidade, um
longo e peculiar caminho foi percorrido.
Uma história do culto às tradições gaúchas no Rio Grande do Sul
remete a dois momentos específicos: o final do século XIX quando surgem
as primeiras entidades tradicionalistas e a organização do tradicionalismo
como movimento no Rio Grande do Sul a partir da metade do século XX,
com a criação do 35 CTG em Porto Alegre em 1948. (Brum, 2006. p. 45 n.).
Para entender a história e a trajetória do Movimento Tradicionalista Gaúcho, fundado
em 1966, é necessário voltar quase cem anos na história.
Para Oliven (1992), quando acionamos identidades que remetem a tradições gaúchas,
nunca fugimos ao modelo do campo, da Campanha Gaúcha, localizada na região sudoeste do
Rio Grande do Sul e que faz fronteira com o nordeste argentino e com o norte uruguaio; e do
gaúcho, tipo social humano, habitante típico desta região.
vários momentos no culto dessas tradições. Ele começa em
meados do século passado quando a figura marginal do gaúcho, assim como
se imagina que este teria sido no passado, não existia mais dadas as
transformações pelas quais passou e que significaram sua gradativa
incorporação como peão de estância. Por volta de 1870, o estado
experimentou modificações, econômicas, caracterizadas pelos cercamentos
dos campos, o surgimento de novas raças de gado, e a disseminação de uma
rede de transporte. Essas mudanças significaram uma grande modernização
da área da Campanha, acarretando a simplificação das atividades da pecuária
e a eliminação de certas atividades servis como as dos posteiros e dos
agregados, que acabaram em grande parte sendo expulsos do campo.
(Oliven, 1992. p.70).
80
Esse quadro mostra a transformação pela qual passou a figura do gaúcho, e por
conseguinte, as suas expressões diacríticas, o homem vinculado ao campo, errante e bravio. É
dentro desse contexto que aparece pela primeira vez, por iniciativa de intelectuais e literatos,
uma sociedade que tem por finalidade cultuar uma identidade forjada a partir da temática
regional gaúcha. É a Sociedade Partenon Literário, fundada em 18 de junho de 1868, na sede
da Sociedade Firmeza e Esperança, localizada na rua Bragança, na capital Porto Alegre (br.
geocities. com/ partenon literario/ acesso em 22/01/09).
A partir de uma literatura rica na valorização da linguagem, dos
valores, dos costumes, da paisagem local, do gaúcho e de uma harmonia
homem-animal, o Partenon desenvolveu um modelo literário e um
regionalismo, diferente dos padrões lusitanos (...) estes regionalismo formal
e híbrido, que valorizando o gaúcho e suas atividades de pastoreio, guerra e
momentos de lazer, permitiu a confecção de um herói representativo de toda
uma raça. (Dullius, 2000. p.30).
Essa literatura, eminentemente de cunho artístico, produziu reflexos sociais,
econômicos e políticos, que de certa forma, serviram aos interesses republicanos e
abolicionistas por forjar a imagem de um gaúcho resignado, pacato e servil aos interesses do
governo central. Por essa razão, a associação teve duração efêmera. Foi palco, desde 1880, de
disputas políticas e divergências internas, desvirtuando-se de suas funções primárias. Às
vésperas da revolução de 1893 deixou de funcionar, extinguindo-se, em definitivo, em 1895.
No entanto, é somente anos depois que surge a primeira iniciativa de um movimento
em direção a uma agremiação com fins tradicionalistas, aos moldes que se hoje,
promovendo festas, desfiles à cavalo, palestras, entre outras atividades que acionam a cultura
tradicional gaúcha. O iniciador desse Movimento foi um escritor santa-mariense chamado
João Cezimbra Jacques. Nascido na então Freguesia de Santa Maria
102
, a 13 de novembro de
1849, ficou órfão de pai e mãe muito cedo, aos 5 anos, tendo sido criado por sua avó, D.
Feliciana. Seu avô materno, Antônio Cezimbra, homem de recursos, mandou-o estudar em
Porto Alegre, quando Jacques estava com 15 anos. Herdara de seus antepassados a vocação
militar. Foi instrutor da Escola Militar do Rio Grande do Sul e na Escola Preparatória e Tática
de Rio Pardo. Republicano e positivista, foi voluntário na Guerra do Paraguai (1865 1870).
No Posto de Major do Exército Nacional, foi compulsoriamente reformado, devido a sua
saúde precária. No âmbito cultural, João Cezimbra Jacques revelou grande talento. Sua estréia
102 Santa Maria somente tornou-se município independente nove anos após, em 1958.
81
na literatura foi com a obra Ensaio Sobre os Costumes do Rio Grande do Sul (1883). Até
1917, escreveu outros nove livros sobre política e cultura gaúcha. Movido pelo sentimento de
manter o passado ativo como alicerce permanente do presente e do futuro, fundou, em 25 de
maio de 1898, o Grêmio Gaúcho de Porto Alegre
103
, marcando assim, o início de um
movimento que se expandiu por outras regiões do Estado
104
. Este movimento é considerado e
denominado hoje como primeira fase do tradicionalismo. (Diário de Santa Maria, Caderno
Mix 29/30 de Abril de 2006).
... uma associação destinada a manter o cunho de nosso glorioso
Estado e consequentemente nossas gloriosas tradições integralmente por
meio de comemorações regulares por meio dos acontecimentos que tornaram
o sul-rio-grandense um povo lebre diante, não de nossa nacionalidade,
como do estrangeiro; por meio de solenidades ou festas que não excluem os
usos e costumes, os jogos ou diversões do tempo presente; porém, figurando
nelas, tanto quanto possível, os bons usos e costumes, os jogos e diversões
do passado, por meio de solenidades que não relembrem e elogiem o
acontecimento notável a comemorar, pelo verbo ou pelo discurso, como por
meio de representações de atos, tais como canções populares, danças,
exercícios e mais práticas dignas, em que os executadores se apresentem
com o traje e utensílios portáteis, tais como os de usos gauchescos.
(Jacques,1979. p. 56 58).
Barbosa Lessa refere-se ao Grêmio Gaúcho, bem como à iniciativa de Cezimbra
Jacques como gauchismo cívico (Lessa, 1985. p. 40). Isto se deve ao fato de esses
movimentos tomarem a nítida postura de defesa das tradições nacionais e estaduais numa
época em que a palavra gaúcho qualificava tão somente o rude campeiro, personagem
recente das degolas da guerra civil” (Lessa, 1995. p. 40).
É importante notar o momento histórico pelo qual passa o Estado do Rio Grande do
Sul no momento em que se dão estas iniciativas, literárias e recreativas, de resgate e culto às
tradições e aos costumes regionalistas.
O Rio Grande do Sul, durante esse intervalo de tempo, passava por um momento histórico
peculiar. Atravessava a Guerra do Paraguai (1865 1870); os movimentos abolicionistas
(culminando com a abolição da escravatura em 1888); o princípio da imigração Italiana
105
ao
103 Segundo Golin, Jacques inspira-se na herança cultural do Partenon Literário. Além disso, o militar
tinha conhecimento de outro movimento, de mesmo cunho, no Uruguai (a Sociedade Crioula”). (Golin,
1983. p. 30).
104 “União Gaúcha”, em Pelotas no ano de 1899, liderada pelo escritor João Simões Lopes Neto. Bagé cria
o “Centro Gaúcho” no mesmo ano, o “Centro Gaúcho Encruzilhadense” em 1902, a “Sociedade Gaúcha
Lomba-grandense” (na época pertencente a Novo Hamburgo) em 1938. Em 1943 cria-se o último dessa fase,
o “Clube Farroupilha”, na cidade de Ijuí. Santa Maria inaugura o seu “Grêmio Gaúcho” em 22 de dezembro
de 1901, e seu primeiro presidente foi o estancieiro e militar João Rodrigues Menna Barreto. (Golin, 1983. p.
31 33).
105 Colônias de Conde D'Eu e Princesa Isabel.
82
Estado; a derrubada de Gaspar Silveira Martins e dos Liberais do Poder (1889); aprovação da
Constituição positivista e a eleição de Júlio de Castilhos como Presidente do Estado (1891);
Revolução Federalista contra o governo de Castilhos e crise da pecuária gaúcha (1893);
eleição do Republicano Borges de Medeiros, sucedendo Castilhos na presidência do Estado
(1898); eleição de Carlos Barbosa, do Partido Republicano, derrotando Fernando Abbott à
sucessão de Borges de Medeiros. (Pesavento, 1992. p. 90 92).
Como se pode notar, em ambos os casos, tanto no cenário da criação do Partenon
Literário quanto no do Grêmio Gaúcho, encontramos no Estado um cenário convulso
politicamente e socialmente, onde as disputas políticas que se dão em tempo presente, passam
por um domínio estratégico de um passado reificado e legitimado pela maneira que essas
iniciativas precursoras do movimento tradicionalista usam as tradições e a história.
Segundo Oliven (1992. p. 75), o marco histórico inicial, do hoje conhecido,
movimento tradicionalista gaúcho se deu no dia 5 de setembro de 1947, quando Barbosa
Lessa juntou-se aos oito cavaleiros
106
, pilchados, na Praça da Alfândega em Porto Alegre,
onde esperavam o jipe do exército que transladava os restos mortais do General Davi
Canabarro desde a cidade de Santana do Livramento, na Fronteira com o Uruguai, até o
Panteão do Cemitério da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Tal
iniciativa se dava dentro dos festejos da Semana da Pátria daquele ano e os oito jovens
intentavam organizar uma “guarda de honra” aos restos mortais do “herói farroupilha”. Esse
grupo, no mesmo ano de 1947, organizou o “Departamento de Tradições Gaúchas do Grêmio
Estudantil do Colégio Júlio de Castilhos” e organizaram a primeira “Ronda Gaúcha” ou
“Ronda Crioula”, que se estendeu desde o dia 7 até o dia 20 de setembro. Nessa ocasião,
procuraram a Liga de Defesa Nacional, na pessoa do Major Darcy Vignolli (responsável pela
organização das festividades da Semana da Pátria), de quem receberam autorização para
tomar uma centelha do Fogo Simbólico da Pira da Pátria, antes que essa fosse extinta, ao fim
dos festejos, e a levaram para o saguão do Colégio Júlio de Castilhos onde ascenderam, pela
primeira vez a “Chama Crioula
107
” em um candeeiro de galpão. (Oliven, 1992. p. 74).
106 Dentro do MTG o grupo é denominado como “Grupo dos Oito”, ou ainda “Piquete da Tradição”. São
eles: Antônio João de Siqueira, natural de Bagé, Cilço Araújo Campos, natural de Alegrete, Ciro Dias da
Costa, natural de Pelotas, Cyro Dutra Ferreira, natural de Porto Alegre, Fernando Machado Vieira, natural de
Porto Alegre, João Carlos D’Ávila Paixão Cortes, natural de Santana do Livramento, João Machado Vieira,
natural de Porto Alegre, Orlando Jorge Degrazia, natural de Itaqui, todos nascidos entre 1924 e 1929, todos
eles secundaristas e estudantes do Colégio Júlio de Castilhos de Porto Alegre. Com tal nobreza de propósitos
e tamanho ineditismo da iniciativa, é compreensível que os tradicionalistas tenham tanta adoração por esse
grupo de precursores.
107 O encerramento da Ronda Crioula e a extinção da Chama Crioula se deram à meia noite do dia 20 de
setembro, no primeiro Baile Gaúcho, organizado no Teresópolis Tênis Clube. A repercussão desses eventos
foi garantida, na época, por intervenções na Rádio Farroupilha, e pelo escritor Manoelito de Ornellas que
83
O próprio Barbosa Lessa, assim descreve as razões e motivações que os levaram a
reunir-se no entorno de um fogo de chão, num “galpão de estância” improvisado no centro de
Porto alegre:
Ao contrário do movimento literário de trinta anos antes, não
pretendíamos escrever sobre o gaúcho ou escrever sobre o galpão: desde o
primeiro momento encarnamos em nós mesmo a figura do gaúcho, vestindo
e falando à moda galponeira, e nos sentíamos donos do mundo quando nos
reuníamos, sábados à tarde, em torno do fogo de chão. (Lessa, 1995. p. 58).
Segundo Jakzam Kaizer (1999. p. 68)
108
, em 24 de abril de 1948, na Rua Duque de
Caxias
109
, no centro de Porto Alegre, foi criado o primeiro CTG (Centro de Tradições
Gaúchas) do Rio Grande do Sul. O 35 CTG
110
. Embora a primeira reunião formal tenha
acontecido em três de janeiro do mesmo ano, foi só em abril que o grupo chegou a um acordo.
Paixão Cortes foi denominado “Patrão de Honra” e Glaucus Saraiva foi denominado “Patrão”.
Barbosa Lessa foi denominado “Capataz” e encarregou-se da divulgação. Observa-se que os
nomes remetem às denominações da campanha gaúcha (Anexo 01). Determinação que segue
até hoje dentro dos CTGs com as denominações “peão”, “prenda”, “posteiro” (diretor),
“invernada” (departamentos), “piquete”, galpão” (sede), “xirú das falas” (orador), “agregado
das pilchas” (tesoureiro), “conselho de vaqueanos”, “patrão” (presidente), capataz” (vice-
presidente), “sota-capataz” (secretário), “charla” (reunião de diretoria), e um sem número de
denominações que designam cargos, ações e distinções dentro das entidades tradicionalistas.
O nome, 35 CTG faz uma dupla alusão à história do movimento tradicionalista. O dia
20 de setembro de 1835 é o marco fundamental do levante Farroupilha
111
(1835 1845). Da
mesma forma, faz alusão ao grupo de trinta e cinco jovens que juntos compõem o grupo que
fundou o primeiro centro de tradições gaúchas da história.
noticiou os acontecimentos no Jornal Correio do Povo. (Silva, 1998. p. 02). Lessa (1995, p. 62) também
chama a atenção para a proximidade, do historiador Manoelito de Ornellas, com o Movimento
Tradicionalista lembrando que dessa forma se estabelecia um inesperado ponto de ligação com a geração
literária dos anos vinte.
108 O principal informante de sua dissertação de mestrado (UFSC) denominada “Ordem e Progresso: O
Brasil dos gaúchos”, foi o folclorista e escritor Barbosa Lessa.
109 José Laerte Vieira Simch cedeu o porão da casa, na Rua Duque de Caxias 704. Como o movimento
aumentava, Ciro Dutra Ferreira (através de seu pai que era diretor geral da FARSUL), tranferiu as reuniões
para a sede da entidade, na esquina das ruas Borges de Medeiros com a Riachuelo, a partir de maio de 1948.
(Silva, 1998. p. 02).
110 Tanto Kaizer quanto Golin destacam disputas internas do movimento antes da criação do 35 CTG. Os
autores demonstram a divisão entre duas correntes: uma, mais aberta, defendida pelos estudantes do Colégio
Júlio de Castilhos, de proselitismo e expansão popular, e outra, mais fechada, liderada por um grupo de
escoteiros com destaque para Glaucus Saraiva e Hélio Moro Mariante, que propunham uma associação
limitada aos trinta e cinco sócios iniciais e seus futuros e eventuais substitutos. (Kaizer, 1999. p. 67) (Golin,
1983. p. 53).
111 A 20 de setembro de 1835, Onofre Pires e Gomes Jardim, chefes farroupilhas, atacaram Porto Alegre e
venceram os imperiais no combata da ponte da Azenha. (Torronteguy, 1994. p. 63).
84
Depois da criação deste pioneiro centro de tradições o movimento cresceu e espalhou
por quase todo território sul riograndense. De acordo com Oliven (1999. p. 81), entre os anos
de 1948 e 1954, foram criados trinta e cinco novos centros de tradição. A maioria nas regiões
pastoris do Estado. O movimento que havia começado com pequenas reuniões aos sábados a
tarde, junto a um fogo de chão, em um galpão improvisado no centro de Porto Alegre, com o
intuito de reviver aquilo que acreditavam ser o modo de ser e de viver, falar e vestir, do
homem do campo, transforma-se num movimento bem maior e começa ganhar contornos
inimagináveis para seus precursores.
... não estávamos vivendo num galpão autêntico de estância: nosso
galpão porto-alegrense, teria que ser simbólico! O âmago da questão era o
seguinte: com base na cultura tradicional que respeitaríamos em todos
aqueles elementos que pudessem se mantidos em Porto Alegre e alhures
teríamos de criar uma cultura tradicionalista, adaptável às mais diversas
situações de tempo e espaço. (Lessa, 1985. p. 63).
Cabe aqui fazer uma distinção entre cultura tradicional e cultura tradicionalista. De
forma geral, aquilo que está estagnado no passado é a cultura tradicional. A cultura
tradicionalista evolui, se reinventa, se renova, sempre que possível, com base em elementos
tradicionais. Para Lessa, com base na cultura tradicional (...) teríamos de criar uma
cultura tradicionalista, adaptável às mais diversas situações de tempo e espaço. Assim,
conforme o autor, o tradicinalismo criou uma cultura tradicionalista que faz sentido no tempo
e no espaço da atualidade: os galpões crioulos, os rodeios, os festivais de canção, as poesias,
as churrascarias, os concursos de prendas entre outros elementos.
Retomando o raciocínio, no ano de 1954, numa tentativa de uniformização e
congregação do movimento, os tradicionalistas reúnem-se no primeiro Congresso
Tradicionalista, na cidade de Santa Maria. Nessa ocasião, segundo Kaizer (1999. p. 68), os
congressistas referendam a decisão tomada na fundação do 35 CTG em favor do caráter
proselitista e doutrinário do movimento e aprovam a tese “O Sentido e o Valor do
Tradicionalismo”, de autoria de Barbosa Lessa, que até hoje vige, como filosofia-matriz e lei
fundamental para os tradicionalistas.
Na vida humana, a sociedade - mais que o indivíduo - constitui a
principal força na luta pela existência. Mas, para que o grupo social funcione
como unidade, é necessário que os indivíduos que o compõem possuam
modos de agir e de pensar coletivamente. Isto é conseguido através da
"herança social" ou da "cultura". Graças à cultura comum, os membros de
85
uma sociedade possuem a unidade psicológica que lhes permite viverem em
conjunto, com um mínimo de confusão. A cultura, assim, tem por finalidade
adaptar o indivíduo não ao seu ambiente natural, mas também ao seu
lugar na sociedade. Toda a cultura inclui uma série de técnicas que ensinam
ao indivíduo, desde a infância, a maneira como comportar-se na vida grupal.
E graças à Tradição, essa cultura se transmite de uma geração a outra,
capacitando sempre os novos indivíduos a uma pronta integração na vida em
sociedade. (Lessa, 1979).
Seguem-se os anos e realizam-se congressos anuais em diferentes cidades, de
diferentes regiões do Estado: Rio Grande (1955), Ijuí (1956 ), Alegrete (1957), Caxias do Sul
(1958), Cachoeira do Sul (1959), Santo Ângelo (1960), até que em julho de 1961, na cidade
de Taquara, no CTG O Fogo de Chão”, o VIII Congresso Tradicionalista aprova a “Carta de
Princípios do Movimento Tradicionalista” (disponível no Site do MTG) de autoria de Glaucus
Saraiva , que havia sido um dos fundadores do 35 CTG. Esse documento fixa os objetivos do
Movimento Tradicionalista Gaúcho. Destaco aqui, alguns pontos mais relevantes a esta
pesquisa:
Cultuar e difundir nossa História, nossa formação social, nosso
folclore, nossa tradição, como substância basilar da nacionalidade.
Facilitar e cooperar com a evolução e o progresso, buscando a
harmonia social e criando a consciência do valor coletivo, combatendo o
enfraquecimento da cultura comum e a desagregação que daí resulta.
Fazer de cada CTG um núcleo transmissor da herança social e,
através da prática e divulgação dos hábitos locais, noção de valores,
princípios morais, reações emocionais, etc.; criar em nossos grupos sociais
uma unidade psicológica, com maneira de agir e pensar coletivamente,
valorizando e ajustando o homem ao meio, para a reação em conjunto frente
aos problemas.
Prestigiar e estimular quaisquer iniciativas que, sincera e
honestamente, queiram perseguir objetivos correlatos com os do
tradicionalismo.
Influir na literatura, artes clássicas e populares e outras formas de
expressão espiritual de nossa gente, no sentido de que se voltem para os
temas nativistas.
Zelar pela pureza e fidelidade dos nossos costumes autênticos,
combatendo todas as manifestações individuais ou coletivas, que
artificializem ou descaracterizem nossas coisas tradicionais.
Procurar penetrar e atuar nas instituições públicas e privadas,
principalmente nos colégios e no seio do povo buscando conquistar para o
Movimento Tradicionalista Gaúcho a boa vontade e a participação dos
representantes de todas as classes e profissões dignas.
Revalidar e reafirmar os valores fundamentais da nossa formação,
apontando às novas gerações rumos definidos de cultura, civismo e
nacionalidade.
Buscar, finalmente, a conquista de um estágio de força social que lhe
dê ressonância nos Poderes Públicos e nas Classes Rio-Grandenses para
atuar poderosa e eficientemente, no levantamento dos padrões de moral e de
vida do nosso Estado, rumando, fortalecido, para o campo e para o homem
86
rural, suas raízes primordiais, cumprindo, assim, sua alta distinção histórica
em nossa Pátria.
(Excertos da Carta de Princípios do Tradicionalismo, site MTG).
Foi no XII Congresso Tradicionalista, realizado na cidade de Tramandaí, no CTG
“Porteira Grande”, entre os dias 27 a 30 de outubro de 1966, foi aprovado o Estatuto do MTG.
Portanto, data de 28 de outubro de 1966 o marco formal de criação do MTG, Movimento
Tradicionalista Gaúcho, uma associação civil, constituindo-se numa pessoa jurídica de direito
privado.
Em seu artigo consta que tem por objetivo congregar os Centros de Tradições
Gaúchas e entidades afins assim como preservar o núcleo da formação gaúcha e a filosofia do
movimeto tradicionalista. Esse artigo fixa como cláusula pétrea do seu estatuto, a “Carta de
Princípios”, de Glaucus Saraiva. Em seu artigo 7º, ocorre a definitiva apropriação, por parte
do MTG, do domínio e do controle sobre as tradições gaúchas e suas manifestações formais:
Compete, ainda, ao MTG, preservar as expressões “Movimento
Tradicionalista Gaúcho” e “Centro de Tradições Gaúchas”, bem como as
siglas “MTG” e “CTG”, evitando o uso inadequado das mesmas e a sua
utilização na denominação de entidades não identificadas com os objetivos
do Movimento Tradicionalista Gaúcho. (Estatuto do MTG. Site do MTG).
Segundo Oliven (1992. p. 87), o MTG não consegue controlar todas as manifestações
culturais, referentes ao gauchismo, do Estado. Embora através das entrevistas, líderes ligados
ao movimento informam ao autor que o movimento tradicionalista é o maior movimento de
cultura popular do mundo ocidental.
Entendo a ação do movimento tradicionalista como absolutamente eficaz, no que diz
respeito às manifestações formais do gauchismo e das tradições gaúchas. Isso se através da
criação de símbolos e regras, estatutos e leis, formais e tácitas que legitimam e validam a ação
do movimento na direção do controle e domínio sobre o complexo universo de bens
simbólicos que permeia a cultura gaúcha. O próprio MTG se auto define o órgão
catalisador, o disciplinador e o orientador das atividades dos seus filiados(Estatuto. Site
MTG). Propõe, que uma de suas principais funções seja a de defender, preservar e cultuar o
tradicionalismo. Elabora este processo por meio de sua estrutura organizacional, que
subdivide o Estado do Rio Grande do Sul em Regiões Tradicionalistas, que por sua vez são
compostas de entidades filiadas que são os Centros de Tradições Gaúchas, os CTGs e
87
entidades afins. São trinta RTs
112
englobando os 496 municípios do Rio Grande do Sul. Estas
regiões congregam mais de 1400 entidades divididas em CTG ( Centro de Tradições
Gaúchas), DTG
113
(Departamento de Tradições Gaúchas), GN (Grupos Nativistas), Grupo de
Arte Nativa, Piquete de Laçadores, CPF ou GPF (Centros ou Grupos de Arte Nativas), PTG
(Piquete de Tradições Gaúchas). O movimento se intitula cívico, cultural e associativo, sem
fins lucrativos e divulga ter por fim o resgate e desenvolvimento da cultura gaúcha”. Se
constitui como um organismo social, de natureza nativista, cultural, cívica, literária e
folclórica.
Isto posto, nos remete a pensar que o movimento tradicionalista, de cunho social,
cultural ou o que o valha, em nada possa interferir nos mecanismos sociais mais amplos. No
entanto, o tradicionalismo é um fato social (Durkheim, 1978). Esses fenômenos, os fatos
sociais, compreendem
toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o
indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extenção de
uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das
manifestações individuais que possa ter. (Durkheim, 1978. p. 11).
...maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo,
dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impões.
(Durkheim, 1978. p. 31).
...maneiras de fazer ou de pensar, reconhecíveis pela particularidade
de serem suscetíveis de exercer influência coercitiva sobre as consciências
particulares. (Durkheim, 1978. p. XXIX).
A identidade gaúcha acionada pelo tradicionalismo se constitui num um fato social
evidente. No momento em que os tradicionalistas organizam-se e se constituem como pessoa
jurídica, adquirindo caráter social, interferindo na esfera legal, na educação, nas instituições
públicas e privadas, exercem força coercitiva tanto de forma legal como espontânea. Através
dos meios de comunicação de massa, rádio e televisão, através da música e da literatura, a
identidade gaúcha é inculcada nos indivíduos, na sociedade, exercendo seu caráter de
exterioridade. É, por fim, social todo fato que é geral e coletivo, que se repete em todos os
indivíduos ou, na maioria deles; em distintos níveis da sociedade, em determinadas épocas.
Por essa generalidade a identidade gaúcha manifesta sua natureza coletiva, apoiando-se na
tradição, nos costumes, nos sentimentos comuns ao grupo, em suas crenças e valores.
112 A 13ª Região Tradicionalista tem sua sede em Santa Maria/RS. Os municípios que compõe a 13ª RT
são: Agudo, Dilermando de Aguiar, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Formigueiro, Itaára, Ivorá, Nova
Palma, Restinga Seca, Santa Maria, São João do Polêsine, São Martinho da Serra, São Pedro do Sul, São
Sepé, Silveira Martins e Vila Nova do Sul. Toda a 13ª RT possui 86 entidades filiadas.
113 Os DTGs são, geralmente, vinculdos a um clube social, não tradicionalista, mas que possuem um
Departamento afiliado ao MTG.
88
Enquanto as maneiras de ser ou de agir de certos homens forem
problemas para outros homens, haverá lugar para uma reflexão sobre estas
diferenças, que, de forma sempre renovada, continuará a ser o domínio da
antropologia. (Lévi-Strauss, 1962).
Por essa razão entendo a importância de estudar o movimento tradicionalista.
implicações sociais nas estratégias políticas de ação do movimento. Uma delas é a
solidificação de uma identidade autêntica, primitiva e representativa de um gaúcho original.
No entanto a própria história do Rio Grande do Sul nos mostra uma formação multi-cultural e
multi-étnica. Por esse motivo, uma cultura gaúcha poderá ser legítima se representar esta
diversidade. De certa forma o MTG tenta abarcar esta diversidade, no entanto dentro das
regras fixas do seu estatuto. Instituindo-se como representante único da cultura regional. Por
esse motivo pode-se notar o caráter coercitivo do movimento tradicionalista. Esta coerção se
pode notar através de mecanismos estatais que interferem na cultura, na mídia, na economia e
na educação.
Exemplos de símbolos criados pelos órgãos oficiais do Estado e adotados pelo
Movimento Tradicionalista Gaúcho como símbolos da cultura gaúcha são a Bandeira, o Hino
e as Armas, Lei 5.213/66, a Erva Mate, Lei 7.439/80, o Quero-Quero como animal símbolo
pela Lei 7.418/80, a planta símbolo Brinco-de-princesa pelo Decreto 38.400/98, o Cavalo
Crioulo, Lei 11.826/02, a planta medicinal Macela 11.858/02, o Chimarrão como bebida
símbolo pela Lei 11.929/03, o Churrasco como prato típico pela Lei 11.929/03, a
indumentária denominada Pilcha Gaúcha pela Lei 8.813/89 entre outras. Dessa forma se pode
notar que um dos mecanismos utilizados pelo movimento tradicionalista para legitimar e
oficializar tradições e costumes é através de instituições legais, criação de leis, estatutos e
regras que regem não somente integrantes do movimento mas também a maneira de ser e agir
de toda a sociedade.
Um dos maiores críticos a essa ação do movimento tradicionalista é o Professor Tau
Golin, da Universidade de Passo Fundo. Ele lidera um contra-movimento que em 2007 lançou
um Manifesto contra o Tradicionalismo”, onde critica e responde à filosofia e aos
documentos matrizes do movimento tradicionalista. Considera o movimento repressor,
doutrinador, dogmático e considera o MTG “como o principal instrumento de negação e
destruição desses traços culturais e direitos fundamentais do povo rio-grandense”. O autor
analisa as idéias e expressões culturais que compõe o universo tradicionalista a partir do
Partenon Literário até a consolidação do movimento tradicionalista. Para Golin (1983. p.11),
89
o tradicionalismo assenta-se como uma cultura popular, entretanto produzida
hegemonicamente pela elite. Esta elite é agropastoril e latifundiária, possuindo assim,
domínio e influência, social e econômica, sobre a sociedade gaúcha, e por conseguinte, sobre
as manifestações culturais e artísticas que a representam. Portanto, segundo o autor, tudo que
a cultura tradicionalista pode representar é um universo latifundiário, que nada mais faz, do
que representar e reproduzir a cultura e as representações de uma oligarquia rural.
Outro autor que critica o movimento tradicionalista, porém de uma posição mais
conservadora, é José Hildebrando Dacanal. Em seu texto Origem e função dos CTGs (1992),
descreve os militantes tradicionalistas como “defensores da mumificada ideologia do passado
oligárquico do Rio Grande do Sul” (p. 01), descreve que o tradicionalistas buscam, através do
movimento, uma imagem em que possam se reconhecer e recriam nas cidades, espaços
culturais que ao mesmo tempo que os diferencie do restante dos brasileiros, os congregue em
torno de uma origem e interesses comuns.
O autor faz uma leitura bastante acertada quando descreve em seu texto a maneira
como se constitui, se mantêm e se reproduz o movimento tradicionalista. No entanto parece
errar quando vaticina: “Quanto ao futuro dos CTGs, quer me parecer que eles se
encaminham para o estiolamento. (...) insumidos na geléia geral da cultura urbano/
industrial/ multinacional/ planetária.” (Dacanal, 1992. p. 7). O autor erra em seu prognóstico,
justamente por razões que ele mesmo aponta em seu texto. As tradições não sub-sumem no
turbilhão de efemeridades que constituem a geléia mundo moderno. Ao contrário, elas se
reafirmam dentro de um mundo globalizado. O “local” se afirma diante doglobal”. E não ao
contrário, como sugere o autor.
Por fim, entendo essa série de movimentos e iniciativas, de consolidar uma identidade
tradicional regional, à luz do homem rude habitante da campanha gaúcha, que se iniciaram
com a criação do Partenon Literário por intelectuais; passando pelo Grêmio Gaúcho;
(movimento popular e recreativo engendrado por Cezimbra Jacques); demais iniciativas de
cunho similar no interior do Estado; o Grêmio Gaúcho do Colégio Júlio de Castilhos; e a
consequente criação do 35 CTG, culminando com a criação do Movimento Tradicionalista
Gaúcho (MTG), como uma seqüência de fatos até certo ponto interligados, assim como uma
“corrida de bastões”, onde cada movimento ou iniciativa cumpre uma tarefa, planta uma
semente que servirá para a seguinte, conservando, via de regra, sempre os mesmos propósitos
e mesmo cunho ideológico, de criar um sentimento de pertença, num homem urbano
vinculado a uma imagem idealizada de uma identidade rural que pode ser apenas resultado de
um processo imaginário.
90
No capítulo seguinte passarei a tratar justamente deste processo circular de fluxos
interpretativos que identifico a partir do momento em que o homem do campo passou a ser
narrado pelas iniciativas do cenário urbano. Aqui destaquei o contexto histórico em que este
homem rural, o peão, se constituiu socialmente, e a partir de suas primeiras representações
produzidas no mundo urbano se iniciou o processo circular e dinâmico dessas identidades.
CAPÍTULO III
A circularidade das identidades.
Neste capítulo apresento o cenário urbano, as manifestações e práticas tradicionalistas
e as representações acerca do gauchismo na cidade. Procuro demonstrar as identidades
gaúchas sendo re-significadas na cidade e devolvendo ao campo novas práticas e
representações. Procedendo dessa forma, busco entender esse processo como uma
circularidade, formando fluxos interpretativos entre o rural e o urbano, entre o campo e a
cidade. Entendo esta relação também como um diálogo, no sentido de trocas e interfaces entre
peões tradicionalistas e peões de estância, que fazem circular estas identidades de maneira
constante e intermitente, não constituindo uma via única de modelo e cópia, verdadeiro e
falso, real e imaginário.
Procuro demonstrar que essa identidade “gauchesca” urbana, criada ao modelo do
homem rural sulino, ancorado na figura do peão de estância, reinventa-se na cidade e devolve
ao campo novas práticas e representações, criando assim, uma espécie de feedback
114
, que por
sua vez, são também apropriadas e re-significadas nas estâncias. Dessa forma, os peões de
estância re-significam as práticas tradicionalistas e devolvem para a cidade novas práticas e
representações sobre aqueloe mesmo gauchismo. É dessa maneira que busco entender o
contexto campo e cidade. Um constante fluxo de interpretações e re-interpretações acerca de
um mesmo universo simbólico, qual seja, as interfaces entre os peões tradicionalistas e peões
de estância.
Dumont, no texto O individualismo. Uma perspectiva antropológica da Ideologia
Moderna (1985), trabalha com o conceito do individualismo. Esse conceito auxilia na
reflexão acerca das aproximações e dos distanciamentos da identidade gaúcha na tensa
relação entre o campo e a cidade.
Ainda na introdução o autor chama a atenção para o fato de que vai trabalhar com o
individualismo enquanto ideologia, diferenciando-o do individualismo metodológico. No
individualismo metodológico é necessário que se comece pela parte, analisa-se a parte para
entender o todo. O individualismo a que Dumont se refere (o individualismo enquanto
ideologia), mostra que para se entender o indivíduo é necessário entender a sociedade.
Enquanto ideologia, o individualismo é o predomínio do todo sobre a parte. Por mais que eu
114 Do inglês: regeneração, realimentação, resposta.
91
compreenda nossa sociedade como individualista, se eu possuo uma noção de mim enquanto
indivíduo, a tenho porque me é dada pela sociedade. É a sociedade que inculca em mim a
noção de “me perceber” como valor. Zanini faz uma leitura de Dumont, afirmando que a
“ideologia moderna, que tem o indivíduo como valor e a liberdade como atributo” (2006. p.
62). Me permito entender, a partir dessa leitura, que o individualismo proposto por Dumont é
distinto, pois é um individualismo do todo sobre a parte.
Os conceitos de identidade e pertencimento
115
mostram uma eterna disputa entre o
todo e a parte. O individualismo versus o holismo. Brum afirma que o autor “discute a
questão dos valores holistas e individualistas em relação às sociedades e sua apropriação”
(2006. p. 61). Dumont afirma que existem sociedades em que o indivíduo nasce com seu
lugar demarcado, o todo determina a parte ao nascer, o indivíduo, antes de pensar ou de fazer
escolhas, já estará marcado pelo todo. No holismo, a individualidade é subssumida, englobada
pelo coletivo. “A ideologia moderna é individualista sendo o individualismo definido
sociologicamente do ponto de vista dos valores globais.” (Dumont, 1985. p. 21). Numa
sociedade ocidental, individualista, o indivíduo entende que faz escolhas de acordo com seu
livre arbítrio, de acordo com o que ele acredita que sejam seus desejos particulares e pessoais,
desprendidos da vontade coletiva. O indivíduo se imagina num encontro íntimo, com sua
psicologia individual. Dumont explica que somente quando o indivíduo constitui valor
supremo, trata-se de individualismo. Nesse caso, o indivíduo não pode ser submetido a
ninguém, sendo as suas regras pessoais que movem a sua existência. Quando o indivíduo se
encontra na sociedade como um todo, trata-se de holismo.
Dentro das manifestações da cultura tradicional gaúcha referentes ao gauchismo,
assim como acontece, via de regra, em sociedades tradicionais ou camponesas, as relações se
dão dentro de uma perspectiva holista de percepção da realidade. Os sujeitos buscam na
fixidez do sentimento de pertença, assegurado pela dinâmica do ato volitivo de optar por uma
identidade, garantir a coesão do grupo e a reprodução dos vínculos que ligam estes sujeitos
entre si, e entre eles e o próprio grupo.
O homem do campo vive uma realidade inexorável. Nem a industrialização, nem a
modernização dos meios de transporte, comunicação, informação, e o processo de
aproximação entre campo e cidade provocado por essas transformações foram, ou são,
capazes de mudar suas relações sujeito/sujeito e sujeito/meio. O homem do campo se
representa como inseparável do seu meio. É como se “se percebesse” como parte da
115 “pertencer significa sentir-se ligado a e desejar mostrar-se como identificado com.” (Brum, 2006. p.
36).
92
paisagem. O todo é o próprio meio, e ele não se percebe fora daquele meio, daquelas relações.
Entre os “peões de estância” que entrevistei, em diferentes lugares em que fiz observações de
campo, pude perceber através de suas narrativas, um mesmo ethos. São pessoas que nasceram
na estância e durante uma vida inteira foram uma ou duas vezes à cidade. Ao “povo” para
usar um termo êmico. o sujeitos totalmente envoltos pela cultura e pelo meio. Percebem-se
como peças de uma engrenagem, a engrenagem do meio. Não parecem imaginar ser possível
construir outras vivências fora daquela realidade, fora do seu meio, fora daquele tempo e
daquele espaço.
Nesse processo dialético de interação entre pessoas e coisas, (...), o
mundo exterior e o universo interior se tornam tão intrinsecamente ligados e
interdependentes que não é mais possível falar em sujeito e objeto de
modo isolado. O pensamento humano ocupa lugares no mundo físico da
mesma forma que as formas concretas têm lugar na mente. (Rahmeier, 2008.
p. 37).
A autora conclui afirmando que todo o universo de um ser humano pode-se restringir à
sua própria existência individual. Tudo aquilo que estiver fora do alcance físico ou do
imaginário de um indivíduo, ou seja, tudo o que ele ignora, não possui para ele significado
algum, e por essa razão, “não pode ser considerado parte do seu mundo” (Ibidem)
Novamente utilizando o conceito de individualismo proposto por Louis Dumont, que
utilizei para entender a relação parte/todo que vive o homem do campo, utilizarei para tentar
entender a tensão em que vive o movimento tradicionalista nos dias de hoje com relação ao
indivíduo/movimento, sujeito versus coletivo.
Críticos como Tau Golin, implementam uma verdadeira cruzada contra o movimento
tradicionalista qualificando-o como conservador inspirado no mundo oligárquico(2008, p.
99), oficializam e inventam o modelo gentílico do gaúcho. Que se reproduz espontaneamente,
incentivado pela mídia que se transformou no sistema capacitador de sustentação de
impressionante conteúdo imagético conservador.” O autor afirma que o tradicionalismo opera
de forma totalitária ao estabelecer uma identidade imaginária do gaúcho. É certo que o
Movimento Tradicionalista Gaúcho consegue se colocar socialmente como o mediador
legítimo
116
no processo de construção da identidade gentílica do gaúcho, apreendendo sob seu
domínio, os fenômenos da tradição gaúcha e do gauchismo.
116 “ocuparam instâncias que iam desde mestres-de-cerimônias a secretários do Estado. Criaram
departamentos na estrutura do poder, influenciaram os currículos escolares, canalizaram patrocínios aos seus
eventos (...), ocuparam a mídia, organizaram sistemas de culto vico,multiplicaram os galpões de vivência
pilchada nos quartéis da Brigada Militar e das Forças Armadas etc.” (Golin, 2008. p. 95).
93
É possível pensar a atuação do movimento tradicionalista dentro da perspectiva de
Dumont. Se aceitarmos que nas “ditas sociedades tradicionais”, os indivíduos, ao nascer,
encontram um mundo pronto, estabelecido, de difícil mutabilidade. Com a identidade gaúcha
acionada pelo movimento tradicionalista, ocorre o contrário. O indivíduo inserido no mundo
da modernidade capitalista tem a possibilidade de se inventar e de escolher sua identidade
(Golin, 2008. p. 89). Nesse caso a identidade torna-se uma escolha pessoal e de múltiplas
possibilidades. No entanto, o autor ressalta que nas sociedades tradicionais, a identidade não
representava uma situação existencial crítica, que não havia escolha. na modernidade
ela está intrinsecamente no espaço social e, mutuamente, dependerá do reconhecimento do
outro(Golin, 2008. p. 89). Pode-se ver, então, no reconhecimento do outro, o social, agindo
sobre a escolha do indivíduo. Por tudo isso, Golin entende o tradicionalismo como uma
extensão da cultura de massa, típica da sociedade moderna e de seu individualismo
ideológico, e não o prolongamento de uma sociedade tradicional.
O que preciso deixar claro, antes de mais nada, é que mesmo concordando com parte
das críticas, me filio também ao rol dos críticos dos críticos, procurando perceber a
pluralidade da questão. De acordo com minhas observações em campo, pude perceber tantas
confluências, quantas divergências entre os universos rural e urbano. Como demonstrei,
entendi o mundo rural, da estância, do peão, numa perspectiva muito mais holista, e portanto
do predomínio do coletivo sobre o indivíduo. Ao contrário, percebi o cenário urbano, do peão
tradicionalista, das manifestações da cultura gaúcha acionada nas cidades, muito mais dentro
da perspectiva da ideologia individualista. Entretanto, em boa medida, o tradicionalismo é um
movimento bem menos ideológico do que apregoam os seus críticos.
Críticos do tradicionalismo vêem o gauchismo como uma ideologia
destinada a manter o conformismo de trabalhadores rurais e das camadas
populares que migram para as cidades. Os principais alvos da crítica são o
caráter passadista de sua visão de mundo; a proximidade com o poder
constituído, e o conservadorismo da organização e simbologia dos Centros
de Tradições Gaúchas, que reproduz a estrutura das estâncias e no qual
explorados e exploradores tem os mesmos princípios de compreensão de
mundo. (Kaizer, 1999. p.100).
O movimento tradicionalista está inserido muito menos na representação de uma
sociedade tradicional e muito mais na dinâmica da sociedade moderna atual e globalizada. As
relações que observei entre os patrões e os peões nas sociedades tradicionalistas, bem como
nas demais manifestações urbanas da identidade gaúcha acionada, não vão além, de apenas, a
nomenclatura estabelecida pelo MTG e adotada pelos CTGs. São relações sociais verdadeiras
94
e atuais, típicas do mundo moderno.
O sistema de valores gaúcho refere-se a uma realidade muito
específica, a da vida pastoril, e não tem muito a ver com as soluções que lhe
são apresentadas pelas organizações urbanas. Tais organizações, ou mesmo a
possibilidade de sua integração como força de trabalho urbana,
necessariamente requerem que ele deixe para trás sua identidade como
gaúcho. O que estas instituições exigem dele é sua morte figurada, sua
extinção cultural. Os Centros de Tradições Gaúchas CTGs pelo menos ao
nível ideológico, oferecem em sua celebração do gaúcho um espaço (dentro
do meio urbano) para ele cultivar seu orgulho, seus valores e algumas de
suas práticas culturais. Os CTGs oferecem auto-estima. (Leal, 1992. p. 149).
As relações sociais do mundo moderno mudaram as hierarquias patrão/empregado.
Também no mundo moderno, mudaram nas relações de trabalho no universo rural, das
estâncias, inseridas na dinâmica das leis trabalhistas, que modificaram o panorama das
últimas décadas. A relação orgânica, de tempos atrás, entre patrão/peão, transformou-se, com
o adventos dessas leis, muito mais em uma relação dinâmica e pragmática entre
patrão/empregado.
Entendo que essas mudanças se deram devido às mudanças da própria sociedade, que
se alterou. Um peão tradicionalista, por exemplo, rompe seu vínculo com o “patrão” e com a
sua “estância”, representada pelo CTG, quando lhe convém. Rompendo seu vínculo com o
tradicionalismo. Da mesma forma, o peão de estância, empregado, contratado, rompe seu
vínculo empregatício com seu chefe, seu patrão, mediante um pedido formal e voluntário de
demissão. Ele busca seus direitos pela via legal, através dos seus sindicatos, pelas vias
judiciais viáveis e possíveis do mundo contemporâneo. Não o “uns escravos”, “uns
dominados”, “uns oprimidos”, como querem os críticos. Não se inserem na mecânica do
mundo oligárquico, mumificado, anacrônico e patriarcal de um passado recente. Tanto os
homens do campo quanto os peões tradicionalistas urbanos podem ser sujeitos inteligentes,
sabedores de sua condição social, inseridos na cultura da era informacional, sujeitos de suas
decisões, e que optam, dentro das condições econômicas possíveis, através de vontade
própria, pela melhor forma de realizar seu trabalho (nas estâncias), de realizar seu lazer (nos
CTGs e rodeios do cenário urbano), evocando conscientemente e voluntariamente essa
relação simbólica, esse vínculo de pertencimento, que mantêm com a identidade e a cultura
regional gaúcha.
A seguir apresento algumas observações de campo que realizei nos meios urbanos,
referentes a manifestações que evocam o gauchismo, e que dão conta dessa re-significação de
práticas e representações que remetem àquele gaúcho peão de estância, mas que em boa
95
medida, são apropriadas pelo próprio meio urbano, criando novos padrões de comportamento,
novas práticas e representações que, por fim, são “devolvidas” ao meio rural, proporcionado
dessa forma, uma espécie de circularidade de interpretações e reinterpretações, que prefiro
chamar de fluxos interpretativos que são a própria dinâmica dos eventos que acionam a
identidade gaúcha ancorada no gauchismo.
Acampamento Farroupilha.
A cidade, no intuito de reverenciar e reviver o cenário rural, dentro do seu espaço
urbano, recria ali locais e elementos que remetem à vida dos primitivos gaúchos, ao seu
trabalho e à sua vida. Os CTGs, por exemplo, são o próprio resultado dessa iniciativa.
Representam o galpão de uma estância (através da sua sede), invernadas artísticas, invernadas
campeiras, jantares e confraternizações com comidas típicas. Enfim, criam com isso,
momentos de sociabilidade, usando como mote, aquilo que se determinou e se estabeleceu
como “típico”, “tradicional” e característico do regional gaúcho.
O Acampamento Farroupilha é a representação, por excelência, no cenário urbano, de
um ícone do mundo estancieiro do Rio Grande do Sul. O galpão de estância. É a maior
manifestação urbana de culto e reverência à figura dos galpões
117
. O acampamento é alusivo
às comemorações da Semana Farroupilha que acontecem em todo o estado do Rio Grande do
Sul de 14 a 20 de setembro. Nesse dia é feriado estadual em comemoração ao dia do gaúcho.
O lugar ocupado chama-se Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, também chamado Parque da
Harmonia, ou ainda Estância da Harmonia, e localiza-se às margens do Rio Guaíba, na cidade
de Porto Alegre.
Os tradicionalistas da capital procuravam um lugar para reunir-se na Semana
Farroupilha, quando então, no fim da década de 80 a Secretaria de Cultura do Município
acordou com a APERGS
118
, entre outras entidades, que o lugar onde atualmente é realizado o
acampamento, era o mais apropriado. Já no decorrer dessa década, os tradicionalista vindos de
vários lugares do interior do estado rumavam para o Parque da Harmonia buscando um locar
para descansar o cavalos. O Sr. Pedro Moreira, o Seu Pedrinho, conta que acampa no local
desde 1975. Hoje é o patrão do Piquete Negrinho do Pastoreio.
117 A cidade de Caxias do Sul realiza um evento com as mesmas característica, no entanto, em menor
proporção.
118 Associação do Piquetes do Rio Grande do Sul. Piquete é, para o meio tradicionalista, uma subdivisão de
um centro de tradição. Na linguagem campeira, do meio rural, piquete é uma porção de campo, cercada, junto
ao galpão para deixar animais exclusivos, machucados, com cria, de montaria, por exemplo.
96
Visitei o Parque pela primeira vez, no dia 31 de agosto, num domingo de sol. O
movimento já estava intenso, o que mostra que as festividades começam bem antes das
comemorações da Semana Farroupilha. Homens montando os galpões e galpões montados.
A estrutura de luz elétrica e água encanada, cedidas à APERGS pela prefeitura, estava
pronta desde o dia 18 de agosto, segundo informações da Sra Rosane, chefe da Comunicação
da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre. Explorei o local ao longo do dia. Num
dos lados, fazendo limite com o Guaíba, localiza-se a pista de rodeios. A entrada principal é
pela Avenida Beira Rio, onde um grande restaurante (a Churrascaria Central). Existem
mais duas entradas. O espaço total aproxima-se de 65 hectares, todo dividido em ruelas, onde
circulam carros, carroças, cavalos e pessoas. No centro uma enorme feira. Feira do livro,
feira de artesanato, restaurantes, churrascarias, comércios de lanches rápidos e de bebidas.
Todo o parque é loteado em espaços modulares, mais ou menos do mesmo tamanho, onde, em
cada lote, é montado um galpão. “galpões” de grandes marcas. Telefonia, grupos de
comunicação, e empresas patrocinadoras. Uma reclamação constante dos Patrões de Piquetes
é a priorização e crescente apropriação de espaços destinados às marcas e empresas em
detrimento dos Piquetes Tradicionalistas. Entrevistei e conversei com várias pessoas para
saber o motivo pelo qual estavam ali, o que faziam, quais eram suas profissões, e o motivo
pelo qual participavam daquele evento. Os relatos foram de pessoas e famílias que se
integravam ao local sob a justificativa de “cultuar as tradições”, mas em suas falas, são
recorrentes as manifestações de buscam ali interagir socialmente com outras pessoas,
sociabilizar-se sob o mote do tradicionalismo.
O Jornal Zero Hora do dia 17 de setembro de 2008 trouxe dados
119
sobre o
acampamento: 386 lotes
120
, três mil e quinhentas pessoas acampadas, 300 banheiros químicos,
mil e quinhentos quilos de carne vendidos no comércio dentro do Acampamento que conta
com 38 pontos de venda. cinquenta estandes comerciais. Pelas ruas do Acampamento
pode-se encontrar supermercados, açougues, caixas bancários e mercearias. Entre elas o de
Dona Marilene Centenaro Ingroff, de 43 anos, que comercializa dentro do Parque, em seu
comércio de secos e molhados, alfafa, milho, quirera, ração para cavalo, cigarros de palha (os
populares “palheiros”), cachaça colonial e lingüiça por metro.
Voltei ao local, dias 17 e 18 de setembro, quando pernoitei, e observei o evento
durante a noite, pois havia sido informado em minha primeira visita, que o acampamento
possuía vida noturna intensa”, conforme Paulo, Patrão do Piquete Gaudérios da Harmonia.
119 Dados colhidos junto à Prefeitura de Porto Alegre e a coordenação do Acampamento.
120 Os lotes são distribuídos por leilão aos patrões do Piquetes e outras entidades tradicionalistas.
97
Paulo exerce a profissão de eletricista, e durante o mês que antecede a Semana Farroupilha,
procura reduzir a jornada de trabalho, conforme me disse: no meio da tarde, me pilcho, pego
a família, passo no mercado, depois viemos pra Harmonia abrir o Piquete e receber os
amigos”. José Carlos, funcionário público, Patrão do Piquete Herdeiros da Tradição, disse-
me durante a entrevista: “a gente nem faz carnaval, tira as férias nesta época pra
aproveitar bem o mês farroupilha”. José Carlos concedeu-me a entrevista no galpão do seu
piquete, no fim da manhã de quinta-feira, enquanto tomávamos mate, junto com sua esposa e
filha e mais dois amigos que cortavam temperos para preparar um carreteiro de charque de
ovelha.
O acampamento é visitado, segundo sua organização, por cerca de 500 mil pessoas. A
entrada, para circular dentro da área do acampamento é franca. O público visitante é diverso,
como constata a pesquisadora:
Galpões rústicos, construídos em lotes dispostos em todo o parque,
separados em pequenos quarteirões por onde transita o público visitante. (...)
o movimento maior ocorria à noite, quando os integrantes desses grupos se
reuniam para confraternizar e receber visitantes em festas com comida típica
e música. (...) o parque é um espaço popular frequentado por uma
diversidade de pessoas como muitos idosos vestidos à gaúcha, dançando nos
bailes dos acampamentos ou nos dos lonões, casais homossexuais de mãos
dadas tomando cerveja, meninos de rua e jovens assistindo a shows
tradicionalistas, e concursos campeiros nos rodeios. (Brum, 2006. p. 65).
São centenas de galpões onde cada um reproduz a estrutura de um galpão de estância.
Cada Piquete Tradicionalista possui o seu espaço, como se fossem pequenas estâncias. Alguns
levam cavalos para participar dos rodeios, montam cocheiras, levam cachorro, ovinos, galos
para que cantem ao entardecer e ao amanhecer, tentando reproduzir o ambiente rural de uma
estância. As pessoas visitam-se e constroem sociabilidades que possuem validade
espaço/temporal determinadas. São regras e condutas válidas naquele local, e durante o tempo
que vige o evento. Ali, cada Piquete, cada galpão de estância possui um patrão, e a regra
máxima é o tradicionalismo. Quanto mais genuína for a reprodução do mundo rural, da vida
no campo, mais autêntico, melhor simbolizará e melhor representará a vida de uma estância.
A revista National Geographic
121
, publicou uma reportagem sobre o evento afirmando
que o Acampamento Farroupilha é o Woodstock gaúcho (p. 37). Em seis páginas, a
reportagem mistura informações oficiais e senso comum. Ela é importante na medida em que
apresenta a maneira como o evento é visto “de fora”, bem como, mostra a imagem que é
121 Edição de novembro de 2008. Reportagem de Marcelo Ferla e fotos de Rodrigo Baleia.
98
passada pelos acampados” (gaúchos, tradicionalistas e simpatizantes), aos que frequentam e
visitam o parque. O repórter afirma que alguma coisa parece estar fora da ordem quando o
caos urbano é provocado por uma tropa de cavalos, montados por homens e mulheres
vestidos como se estivessem na lida do campo (p. 36). O imaginário criado pelo
Acampamento, sobre o gaúcho, pela maneira como encenam e representam a vida pastoril,
criam no público (e pelo visto, no repórter), uma imagem idílica e romântica de como deva
ser a vida no campo. Como procurei demonstrar através da etnografia no cenário rural,
profundas diferenças entre o mundo rural real, de ser e de vestir, e a sua representação urbana
feita pelo gauchismo e pelos tradicionalistas. A reportagem ainda afirma que o evento
Farroupilha é uma grande contradição”, à medida em que celebra uma guerra perdida
(Guerra dos Farrapos 1835 1845), liderada por heróis de duvidosa reputação”, entrando
para a história, paradoxalmente, a versão dos perdedores(p. 36), remetendo-se ao fato de
os “farrapos” terem sido derrotados na Revolução Farroupilha. A matéria menciona ainda
uma espécie de “culto ao primitivismo” dos gaúchos, na medida em que “ensaia um retorno à
terra prometida”, (p. 38), referindo-se à região do pampa sul americano. Por fim, a
reportagem ainda informações sobre a disputa entre a associação dos piquetes APERGS e
o Movimento Tradicionalista
122
. O teor jornalístico da matéria reside no fato de que esse
impressionante acontecimento, o Acampamento Farroupilha, aconteça dentro de uma
metrópole urbana, em um evento de culto a um passado tradicional, vinculado ao universo
rural. Emblemática, a Semana Farroupilha reflete a adoção crescente de símbolos e de um
ideário regionalista em ambientes urbanos.”(p. 38).
Durante a noite que pernoitei no Acampamento Farroupilha, pude observar que tanto a
freqüência, quanto a movimentação são diferentes. Cada galpão organiza um evento festivo.
Conforme a noite vai avançando, e o teor etílico dos frequentadores vai aumentando
modificam-se algumas dinâmicas do público em relação aos Piquetes e deles em ralação ao
re-significar de um “gauchismo”.
Passa-se ouvir outras referências musicais. Muitos jovens, que não frequentam o
acampamento de dia, chegam ao local. Ouve-se música Sertaneja, músicas eletrônicas, entre
outros ritmos mais ecléticos. Formam-se grupos de jovens de fronte aos Piquetes, consome-se
muita bebida alcoólica e energéticos, e não mais o chimarrão predominate entre o público
mais “familiar” da freqüência diurna. Alguns Piquetes ficam fechados logo após a meia noite.
Mas um grande número promove festas que duram até o amanhecer do novo dia.
122 Esse tema será abordado neste Capítulo, no item 4, subtítulo “Vira a chapa e segue a mesma” Os
rodeios de tiro de laço.
99
Observei intenso movimento da Brigada Militar desde o início da noite. Policiais
Militares à cavalo, à pé, e também movimento de viaturas. Conversei com o Sargento Paulo e
este me informou que são destinados 50 “brigadianos” por noite, para o evento. O contingente
é de cinco soldados mulheres e quinze soldados homens para dentro do Parque e de trinta
soldados para o entorno do Acampamento, vigiando o estacionamento e a entrada do público.
Como se pode notar, embora o Acampamento Farroupilha seja uma manifestação
evidentemente ancorada no gauchismo, ele não é visto com bons olhos pelo próprio
Movimento Tradicionalista. Na opinião do coordenador da 13ª Região Tradicionalista, o Sr
Erival Bertolini, os Piquetes de Laçadores configuram-se como um mal desnecessáriopara
Movimento. Eles colocam-se contra os princípios do Tradicionalismo, a exemplo da
coletividade, cooperação, cultura e lazer. Os laçadores, bem como a Associação de Piquetes
do Rio Grande do Sul (APERGS, que organiza o Acampamento Farroupilha, referido, em
Porto Alegre) segundo Bertolini, são aproveitadores, competitivos, e devem ser
exterminados do tradicionalismo. Bertolini é a voz oficial do MTG em Santa Maria. O
coordenador declarou em entrevista realizada por mim, dias antes do evento que se pudesse
colocaria fogo naquilo ”. Como se nota, o Coordenador da 13ª Região Tradicionalista se
declara crítico tanto do evento, quanto de sua organização: a APERGS. Bertolini afirma que
eventos como este estão fora do “tradicionalismo autêntico”. Não possuem o espírito coletivo,
corporativo, autêntico e ético, além de não reafirmar nem o Estatuto nem a Carta de Princípios
do Movimento Tradicionalista.
Esse fato é notável. O grande público recebe através dos meios de comunicação a
informação de que o Acampamento Farroupilha é um evento Tradicionalista. De fato, tanto o
MTG quanto outros órgãos oficiais do governo como IGTF
123
e Secretaria da Cultura
promovem durante as festividades do evento, atividades de caráter oficial, com a presença do
Prefeito da cidade, da Governadora do estado, Secretários de governo, políticos, entre outros.
Concluo contudo, a partir dos dados que coletei em minha pesquisa de campo no
Acampamento Farroupilha, que esse evento insere-se naquilo que denominei de fluxo
interpretativo de circularidade das identidade gaúchas. Esse evento é, hoje, muito mais do que
um evento popular e urbano de identidades re-significadas e representadas. Não mais é
somente uma representação, mas uma nova prática, ancorada sim numa representação do
gauchismo. O Acampamento Farroupilha, através de suas “estanciolas”, de seus Piquetes, de
seus peões urbanos e não vinculados formalmente ao tradicionalismo, produzem, eles
123 Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore.
100
próprios, práticas. Estas desenvolvidas nos dias que dura o evento. Essas práticas construídas
por um “gauchismo urbano” são levadas até as chácaras, sítios, estâncias, pistas de rodeios,
CTGs, da Grande Porto Alegre e do interior, de onde vieram esses peões acampados no
Parque da Harmonia. Reinventam maneiras de fazer, de falar e de agir de forma geral. Há hoje
um gauchismo urbano que serve de modelo e passa a ser “copiado”, representado no cenário
rural. Novas roupas, músicas, alimentos, entre outros itens, fazem parte hoje dessa rural.
Aquele modelo de que serviu o campo para as primeiras representações do Tradicionalismo e
do gauchismo de maneira geral, hoje re-significado na cidade, reproduz um gauchismo
urbano, diferente do modelo tradicional, com novas maneiras de ser e agir e de representar o
mundo.
Freio de Ouro.
Visitei o Parque Assis Brasil, na cidade de Esteio, Grande Porto Alegre, entre os dias
28, 29 e 30 de agosto de 2008. A EXPOINTER é uma exposição internacional que ocorre
anualmente no Rio Grande do Sul, configurando-se como um dos maiores eventos do
agronegócio brasileiro. Dentro da exposição ocorre o Freio de Ouro, uma das mais
tradicionais provas da eqüinocultura brasileira. Estas provas são organizadas pela Associação
Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos, (ABCCC). O Freio de Ouro surgiu em 1977
124
como uma competição entre criadores que queriam demonstrar as habilidades de seus
animais. A raça crioula não é um símbolo
125
para os tradicionalistas, como também é um
sucesso para o agronegócio gaúcho. Para se ter uma idéia da dimensão do evento, mais de
1500 animais iniciam a disputa todo ano. Destes, 14 machos e 14 fêmeas, chegam a grande
final da EXPOINTER, em Esteio. Trinta mil expectadores assistem à disputa das
arquibancadas nas diversas provas
126
.
É notável a vinculação da identidade gaúcha com o evento do Freio de Ouro. Não o
público, mas também os competidores acionam esta identidade através das pilchas e da
maneira como encilham os cavalos. A história do Cavalo Crioulo confunde-se com a própria
formação histórica do Rio Grande do Sul. Henrique Teixeira, presidente da ABCCC declara
124 Os crioulistas que se reuniram no outono de 1977, no parque do Sindicato Rural de Jaguarão, para
participar da Exposição Funcional da raça, jamais imaginariam que ali começava um movimento que
teria intenso sucesso e um crescimento vertiginoso, que levaria a marca da ABCCC a todos os recantos do
Rio Grande do Sul, a boa parte do Brasil e ao Cone Sul da América.” (Affonso, 2002. p. 17).
125 Ver item 2 deste Capítulo ( Cavalo Crioulo, Lei 11.826/02).
126 Prova de Figura, Prova de Mangueira, Prova de Campo ou Paleteada e Prova Bayard/Sarmento. Cada
uma das provas compõe-se como uma etapa do julgamento final, e tenta aferir o bom desempenho
morfológico e funcional dos animais.
101
que o Crioulo é uma raça que demorou 400 anos para se desenvolver. No início, eram
usados para o trabalho no campo e até em guerras, sempre foram muito exigidos, por isso só
os mais fortes sobreviveram”. De acordo com Teixeira, existem hoje, cerca de 220 mil
cavalos crioulos registrados no Brasil, sendo que 85% deste plantel encontra-se no Estado.
Daniel Teixeira, escolhido “Ginete de Ouro”, em 2008 pela ABCCC, é dono de um Centro de
Treinamento
127
e vive da profissão de domador. Sempre pilchado, me concedeu entrevista
logo depois de receber o prêmio das mãos da Governadora Ieda Crusius, e declarou monto
desde os quatro anos de idade”.
A identidade do gaúcho, ao contrário do cowboy
128
por exemplo, onde o próprio nome
faz menção ao gado vacum, ou ao caipira, sertanejo ou pantaneiro, cujas grandes referências
são as vaquejadas”, o gaúcho celebra acima de tudo o cavalo. O cavalo não é apenas um
meio para atingir a sobrevivência, mas a sua própria extensão. O mito do gaúcho celebra o
cavalo e remete à figura mitológica do Centauro. Cyro Martins, escritor rio-grandense,
quando quis descrever a crise de uma identidade gaúcha tradicional, a nominou de Trilogia
do Gaúcho a ”. Destituído do seu cavalo, destituía-se de sua identidade. esta trilogia que
não nasceu trilogia, mas que, embora sem intenção premeditada, ao longo do seu e do meu
caminho foi adquirindo essas características...(Martins, 2008. p. 20). A trilogia é composta
pelos romances Sem Rumo(1937), Porteira Fechada(1944), e Estrada Nova(1954),
que descrevem o processo de êxodo rural devido aos problemas sócio econômicos da
campanha gaúcha a partir de 1910, expulsando os peões das estâncias em direção dos
cinturões pobres das cidades. O gaúcho é visto como um trabalhador descapitalizado, pobre,
desempregado, que substitui o trabalho no campo por um subemprego na cidade. O modelo de
“peão de estância” vigente até então, de gaúcho à cavalo”, é substituído pelo “gaúcho à pé”,
um marginalizado, depauperado e despido de sua identidade. Usando de uma metáfora, o
autor conclui que a porteira está fechada para este novo gaúcho, que encontra-se sem rumo,
percorrendo uma nova estrada em direção de uma vida autônoma, urbana e altamente
profissionalizada.
A seleção genética que deu origem à raça crioula foi feita ao acaso. No continente
americano, ao ser ocupado pelos europeus, não existiam cavalos,
o cavalo não existia aqui e os primeiros a pisarem este solo foram
trazidos por Cristóvão Colombo, no ano de 1493, em sua segunda viagem,
quando chegou à ilha La Española, hoje Santo Domingo. (Affonso, 2002. p.
127 Ver item 4 do Capítulo II. O Centro de doma de Daniel é semelhante ao de Luciano, de quem tratei no
capítulo anterior,no item já referido.
128 Vaqueiro, boiadeiro” (Dicionário Michaelis, p. 72).
102
41).
O próprio autor ressalta que não havia nenhum vocábulo em quaisquer dos idiomas
indígenas americanos para designar o cavalo. Em 1535, Don Pedro de Mendoza chegava ao
Rio da Prata com 72 cavalos e éguas. Depois disso, Alvar Nuñez (Cabeza de Vaca), e Pedro
Mendoza aportaram em 1541, com 26 eqüinos, onde hoje se localiza o Estado de Santa
Catarina.
Desses cavalos, muitos fugiram, pois nas colônias que se
estabeleciam, com longas extensões e sem limites de cerca, era difícil mantê-
los sempre sob controle. Pouco a pouco, eles foram formando os plantéis
iniciais das numerosas tropilhas que, mais tarde, iriam se espalhar por todo
continente americano. (Affonso, 2002. p. 42).
O produto resultante desta seleção natural desenvolvida pelo acaso ao longo de mais
de quatro séculos foi um eqüino forte e resistente, muito rústico e adaptado ao sul do
continente. Por sua vez, a origem destes cavalos que primitivamente adentraram o continente
americano, era de sangue oriental que havia sido levado à Espanha e a Portugal, desde o norte
da África pelos Mouros. Os eqüinos berberes mestiçaram-se com os andaluzes ibéricos
durante os oito séculos de dominação moura.
As Cruzadas, posteriores, é claro, ao domínio árabe e conseqüentes
do próprio domínio encontraram nos cavaleiros orientais, os mestres da
equitação. Ademais o homem do deserto, que faz da tenda e do cavalo seus
únicos elementos de vida, teve sempre pelo companheiro com quem vence
as distâncias e os perigos maior amor e mais perfeita identificação do que
todos os outros homens da terra. Daí, naturalmente a semelhança do
complexo beduíno que é o homem do deserto árido ao complexo do gaúcho
que é o homem do deserto verde, ambos apegados ao cavalo, com que
formam um corpo só. (Ornellas, 1999. p. 158).
Ornellas, em sua teoria de encontrar no gaúcho a origem beduína, utiliza o uso do
cavalo em seu argumento. A própria etimologia da palavra ginete é encontrada entre a
cavalaria maometana, composta de zenetes, xenetes ou linetas, que são berberes, cavaleiros
exímios, que brigavam de lança, a cavalo, nas terras de Portugal e Espanha (ibidem p. 157).
A extrema resistência somada ao fato de os índios das Reduções Jesuíticas, ao serem
atacados pelos Bandeirantes entre 1635 e 1634, terem se retirado do território levando consigo
eqüinos pampeanos domesticados, fez com que, um século depois, uma raça eqüina crioula da
terra se constituísse de uma grande manada xucra e chimarrona habitando livre pelos campos
do que é hoje o território do Rio Grande do Sul. Com o fim da Guerra do Paraguai em 1870, a
103
cavalaria do exército brasileiro foi reunida no Saican (ou Saicã), no município de Rosário do
Sul, quando então em 1903 foi criada a Coudelaria Nacional, mantida pelos estancieiros, e
abastecida pelos melhores reprodutores da nova raça Crioula.
Por esse motivo, percebo a importância da raça crioula para a formação da identidade
gaúcha. O vínculo encontrado na identidade tradicional gaúcha, do tipo social humano com o
tipo animal racial, é extremamente relevante para ambos, bem como a história de um não
pode ser escrita prescindindo da história do outro.
Dessa forma, entendo que um evento como o Freio de Ouro, implica decisivamente
em um estudo sobre a identidade do gaúcho. Embora entenda que o evento seja coordenado e
ensejado pela elite econômica agrária, e não um fenômeno de prática popular como pode
parecer, o Cavalo Crioulo configura-se como um ícone gaúcho. Uma griffe, um símbolo de
referência e de forte significado para a cultura e a identidade dos gaúchos.
Se entendido como um processo econômico do mundo moderno e capitalista, o Cavalo
Crioulo não mais pertence à elite econômica. É um fenômeno de mercado. A economia que
gira em torno de si, movimenta pessoas das mais diferentes classes econômicas. Desde o
estancieiro dono do cavalo, passando pela equipe que prepara os animais, pelos comerciantes
que montam suas tendas para vender produtos da griffe do Cavalo Crioulo (tanto originais
quanto imitações), e chegando até o consumidor que adquire desde estes produtos, como
também consome os signos e significados vinculados ao universo da marca Crioulo.
Como procurei demonstrar, as provas realizadas pelos cavalos e seus ginetes,
remontam as lides campeiras e o trabalho do peão de estância como um todo. Vencem as
provas, o cavalo e o ginete que melhor desempenharem as tarefas campeiras. O padrão de
julgamento está de acordo com aquilo que se convencionou e se narrou que fosse e
desempenhado na campanha primitiva.
As regras para as competições estão asseguradas de buscam na “origem” do gaúcho,
no trabalho campeiro, o seu sentido. As provas, dessa forma, são inicialmente a representação
de uma vida pastoril primitiva. Entendo, no entanto, que através da profissionalização da raça,
de seus criadores, de todo grupo de pessoas envolvidas na preparação do evento, do mercado
criado em torno desse evento, do status criado em decorrência desse fenômeno, as provas da
Raça Crioula, a própria raça, não mais apenas representam o universo e o trabalho rural. O
Freio de Ouro constitui-se hoje e desde algum tempo como uma nova prática de um
gauchismo essencialmente urbano. O cenário rural, como demonstrei no Capítulo I,
reproduz essas práticas, através de novas representações deste cenário urbano. O campo, que
na década de setenta serviu de modelo, para a emergente Raça Crioula, nos dias de hoje copia
104
e representa essa identidade urbana. Compreendo assim, a partir das minhas observações de
campo que tanto o evento Freio de Ouro quanto a Raça Crioula como um todo, reafirmam a
minha hipótese de circularidade dessas identidades ancoradas no gauchismo. Rompe com o
paradigma de modelo/cópia, campo/cidade, proporcionado o que denominei de fluxo
intermitente de uma circularidade dessas identidades.
Semana Farroupilha 2008.
Neste item da pesquisa me proponho a analisar o evento da Semana Farroupilha (de 14
a 20 de setembro de 2008), observada na cidade de Santa Maria, quando visitei Piquetes
Tradicionalistas, CTGs e DTGs, bem como mencionei, fui ao Acampamento Farroupilha,
nos dias 17 e 18 de setembro, na cidade de Porto Alegre. Tento refletir sobre o significado
desse evento para a identidade gaúcha acionada e o quanto esse evento proporciona na
produção de práticas e representações dessa identidade.
O evento da Semana Farroupilha, na verdade, pode ser entendido como um intervalo
de tempo bem maior do que a semana do evento propriamente dita. O desfile de 20 de
Setembro é o evento máximo de reverência à memória farroupilha. Foi oficializado pela Lei
Nº 4.850, de onze de setembro de 1964. O desfile nasce, na verdade, alguns dias antes. Reza a
tradição que, findada a Semana da Pátria, no dia sete de setembro, um grupo de
tradicionalistas, em cada cidade ou região tradicionalista, coleta uma centelha da pira
simbólica acesa na semana da pátria129, à qual dão o nome de “Chama Crioula”,
conservando-a acesa até a semana seguinte em alguma estância ou entidade tradicionalista.
Uma semana depois, a chama crioula é conduzida por cavalarianos130 para uma praça, por
exemplo, ficando acesa e vigiada por tradicionalistas, escoteiros, brigada militar, estudantes e
voluntários de toda a espécie. Dessa chama são acesas todas as centelhas, de cada entidade
tradicionalista, abrindo, assim, a Semana Farroupilha, que ocorre oficialmente de quatorze a
vinte de setembro de cada ano.
Desde o ano de 2003 o MTG uniformizou o tema da Semana Farroupilha em todos os
desfiles do Estado. A Primeira iniciativa nesse sentido se deu em 1985 quando da
comemoração de sesquicentenário da Revolução Farroupilha, e este foi justamente o tema. No
ano de 2008, ano em que fiz as observações, o tema escolhido pela Comissão Estadual de
Festejos Farroupilhas foi “Nossos Símbolos: Nosso Orgulho”. Segundo o MTG, os festejos
129 De 1º a 7 de setembro.
130 Grupo de tradicionalistas a cavalo.
105
“tematizados” cumprem função didática. A partir da escolha do tema, que se no início de
cada ano, portanto nove meses antes do evento, o assunto passa a ser tratado nas escolas,
centros de tradições e sociedades literárias regionais. Os símbolos oficiais do Rio Grande do
Sul, escolhidos como tema da Semana Farroupilha 2008 são: a Bandeira, o Hino, as Armas, a
Erva- mate, a ave Quero-quero, a Flor Brinco-de-princesa, o Cavalo Crioulo, a Flor Medicinal
Macela, o Chimarrão e o Churrasco. Para a organização e logística do evento o MTG repassa
verbas de seus financiadores e patrocinadores
131
às Regiões Tradicionalistas.
Se em Porto Alegre os Piquetes e outras entidades tradicionalistas concentram-se no
Acampamento Farroupilha, em Santa Maria a dinâmica é um pouco diferente. Cada entidade
organiza seus eventos em diferentes locais da cidade. Acompanhei durante quatorze dias o
cotidiano do Piquete Macanudos do Rio Grande, localizado no bairro de Camobi, próximo à
Universidade Federal de Santa Maria.
No início do mês de setembro a principal movimentação do Piquete se deu em torno
da construção do galpão. O Galpão Crioulo. Rafael, o patrão do Piquete providenciou
costaneiras
132
para as paredes do galpão. Além do madeiramento, Rafael providenciou pregos,
parafusos, cobertura de amianto e ainda utensílios para montar uma cozinha “campeira” no
interior do galpão. Fogão à lenha, fogo de chão, lenha, mesas, cadeiras, geladeira e uma série
de outros itens necessários para os almoços e jantares até o dia do desfile.
O galpão do Piquete foi erguido nos dias seis e sete de setembro. No domingo, dia
sete, houve um churrasco de inauguração e festejos até a noite. Nos dias treze e quatorze,
houve festejos no dia todo. No dia quatorze, domingo, foi organizado um grande churrasco
como celebração da chegada da chama crioula ao Piquete. Ela foi posta à frente do galpão, do
lado de uma bandeira do Rio Grande do Sul.
De dia o Piquete permanecia fechado, pois a maioria dos participantes trabalhava. À
noite eram preparadas comidas onde participavam vizinhos, amigos e participantes de outros
piquetes. No final da tarde, os participantes chagavam com suas famílias para as rodas de
mate e iniciar os preparativos dos jantares. A freqüência das famílias se estendia até as dez
ou onze horas da noite. Após esse horário o Piquete passava a ser freqüentado por um público
mais jovem. Bebida e música estendiam-se até o início da madrugada.
Mano, um dos “peões” do Piquete, fazia constar em seu currículo ter trabalhado
131 Fundação Cultural Gaúcha, Brigada Militar, Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), Governo
do Estado, (LIC) Lei de Incentivo à Cultura, e as marcas Colombo, Nestlé, Oi, Nova Schim, Petrobras,
Banrisul, CEEE e Corsan.
132 Lascas de madeira com uma face achatada e outra arredondada conservando a casca do tronco da
madeira.
106
“pra fora”. Isso o tornava uma das referências quando se preparavam os alimentos. Todos
reportavam-se a ele quando precisavam definir uma comida estava sendo sendo preparada de
forma “campeira”.
... é que eu trabalhei pra fora né tchê! Lá a gente faz a s coisas como
dá... não tinha gás, nem luz. Tinha que preparar a bóia no fogão à lenha. Lá
era que nem esse galpãozinho aqui... aqui até tem mais coisa. Pra fora a
gente não tem luxo. Mas eu não saí de lá por isso. A mãe vendeu os
terreninho que era do Pai e comprou uma casinha. Daí me chamou pra
morar com ela. Tá velhinha. O dia que ela faltar, eu volto pra campanha.
Mano tem pouco mais de uns quarenta anos. Participa do Piquete porque mora ali
perto. Participa intensamente da vida do Piquete, mas não desfila. A justificativa é a de que
não tem cavalo. Os outros peões do Piquete afirmam ter-lhe oferecido um. Mas Mano
recusa: “se não é meu, eu não uso” afirma.
O Desfile de 20 de Setembro.
O desfile propriamente dito é o evento máximo da Semana Farroupilha e ocorre na
manhã do dia 20 desetembro, na quase totalidade dos municípios do Rio Grande do Sul.
Desfilaram, em Santa Maria, no ano de 2008, em torno de 60 entidades. O desfile aconteceu
na Avenida Medianeira começando na esquina com a Rua Duque de Caxias e dispersando na
esquina com a Avenida Fernando Ferrari. Entretanto, muitas quadras abaixo, o público se
aglomera nas calçadas para assistir ao desfile. Ocorre que é entre o espaço demarcado para o
evento que se dão os julgamentos por parte da organização. As entidade são julgadas por
categorias. CTGs, DTGs de Clubes e Empresas privadas, Piquetes de Laçadores, de colégios,
entre outros. Esse julgamento é promovido pelos coordenadores da 13ª Região
Tradicionalista, e depois publicado pela imprensa local.
Passavam-se poucos minutos das nove horas da manhã quando teve início o desfile.
Havia grande expectativa, tanto junto ao público, quanto junto aos tradicionalistas, devido às
condições do tempo. Estava um dia nublado e uma chuva nãoespantaria os que assistiriam
ao desfile como também tiraria um pouco do brilho da festa. As pessoas se moviam
rapidamente pelas ruas laterais à Avenida Medianeira, carregando cadeiras portáteis (daquelas
de abrir), bolsas com chimarrão, etc, tentando encontrar uma boa posição para assistir ao
desfile. Eram famílias inteiras, em sua maioria pilchados, crianças, idosos, todos tentavam
ocupar um lugar onde pudessem avistar mais de perto os gaúchos, prendas, carros alegóricos e
seus cavalos.
107
A parte de organização e logística do desfile é feita pela Prefeitura Municipal,
auxiliada pela Divisão do Exército, Base Aérea de Santa Maria, Brigada Militar,
Universidade Federal de Santa Maria, Coordenadoria Regional de Educação, Câmara de
Comércio e Indústria de Santa Maria, União dos Escoteiros do Brasil - Região Sul, Diocese
de Santa Maria e, naturalmente, pela 13ª Região Tradicionalista. A 13ª RT determina não a
ordem do desfile como também o que pode e o que não pode entrar na avenida. Para tanto, há
fiscais da entidade identificados com crachás e pranchetas no ponto onde começa o desfile e
também na dispersão do mesmo.
De acordo com o que verifiquei em campo, o desfile que mais impactou o público, foi
o da Associação Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos (ABCCC). Além do cavalo
crioulo ser considerado oficialmente símbolo riograndense é, sem dúvida nenhuma, o ponto
alto do desfile. Ouvi de todas as pessoas com quem conversei, principalmente daquelas que
assistem aos desfiles todos os anos, que o desfile da ABCCC é o mais “pomposo”. ...esses
bichos são muito lindos!afirmou Márcia, uma funcionária pública acompanhada do marido
Renato e seu filho Pedro, sentados em frente a Agência do Banrisul da Avenida Medianeira,
no início do desfile.
Foi o que conferi. A qualidade superior dos animais era nítida. Mesmo para um leigo
em genética e nutrição animal, os cavalos puros da raça crioula tinham o pêlo mais brilhoso,
eram mais fortes, principalmente os machos. E não isso, os indivíduos que montavam
também possuíam nitidamente uma distinção, como indumentárias mais bem colocadas, e
animais mais bem encilhados. Também apresentavam materiais melhores, mais acertados
sobre o lombo dos animais e roupas que pareciam fazer realmente parte da sua vida cotidiana.
A ABCCC parece ditar um padrão. Embora isso não ocorra nos CTGs, nos desfiles isto fica
muito claro. A reação do público é de reverência, de total atenção quando passam os
cavalarianos da ABCCC. O mais interessante é que essa associação não possui nenhuma
ligação institucional com o MTG. São apenas subsidiárias uma da outra. A ABCCC ao
MTG a materialização dessa ferramenta indispensável ao gaúcho, que é o cavalo, e o MTG
fornece àqueles meio fértil para que reproduzam de maneira social a lide campeira e o caráter
simbólico que o homem a cavalo representa ao tradicionalismo e ao gauchismo de maneira
geral.
O Presidente da 13ª Região Tradicionalista, Erival Bertolini, declara que para
participar do desfile basta seguir algumas indispensáveis regras: ...não é que a gente seja
rigoroso, mas é que temos de preservar a tradição afirma. Nem todos desfilam em um
cavalo bem encilhado. Muitos peões e um grande número de mulheres e crianças desfilam em
108
carros alegóricos. O traje deve estar de acordo com as normas. De acordo com os dados que
coletei em campo, junto aos fiscais da 13ª Região Tradicionalista, bem como outros
tradicionalistas identificados com crachás, o chapéu para os homens é obrigatório,
principalmente se for a cavalo. Para as mulheres, a flor no cabelo deve ser usada apenas pela
prendas adultas. Ela deve ser colocada no lado esquerdo da cabeça. Além de enfeitar, a flor é
usada para afastar o peão do rosto da prenda na hora da dança. As prendas mirins e juvenis
devem usar uma fita no cabelo, em vez de flor. Os lenços vermelhos e brancos, que no
passado eram usados pelos peões para simbolizar sua preferência política. O vermelho pelos
Maragatos (Federalistas) e o branco pelos Chimangos (Republicanos). Hoje se perdeu esta
conotação política de uma maneira geral (embora eu jamais tenha usado um lenço vermelho
justamente por isso). No lenço, são permitidas pequenas estampas com motivos tradicionais:
cores da bandeira riograndense, um cavalo, e assim por diante.
Para os peões, colete ou casaco são obrigatórios nos bailes, para o desfile,
apenas camisa. Na cintura, faixa ou guaiaca (cinto de couro) são obrigatórios. A faca faz parte
da lide campeira, mas pode ser portada na cintura, se o peão estiver a cavalo
133
. O mesmo
ocorre com o tirador134(Nunes, 1997, p.489), a espora135(Nunes, 1997, p.172) os relhos, os
rebenques, os arriadores que também são usados apenas nas lides de campo, são usados para
quem desfila a cavalo. As bombachas símbolo dos gaúchos devem ser usadas apenas por
homens. Sempre largas, muita restrição às mais estreitas trazidas do Prata136. Essas mais
estreitas não são consideradas indumentária pelo MTG. A entidade, por exemplo, cujos
indivíduos desfilarem com a vestimenta em desacordo, poderá ser duramente penalizada.
Para as prendas, o vestido é indispensável. Para prendas adultas a preferência é por vestidos
bordados ou pintados à mão e sem babados. O Chiripá137, entre os expectadores, era muito
usado pelas mulheres, mas não é considerada indumentária pelo MTG. E o é permitido no
desfile. Por fim, nos pés, os homens vestem botas e as mulheres sapatilhas ou sapatos com
taco bem baixo.
A Semana Farroupilha teve início oficialmente às 16:15 horas do dia quatorze de
133 É interessante notar que em um dia “comum” no restante do ano, portar uma faca em via pública pode
ser considerado delito. No entanto, durante a Semana Farroupilha e nos Desfile, esse fato é considerado
“normal”. A Brigada Militar considera o fato como uma situação normal. Os cavalarianos transitam portando
faca normalmente.
134 Tira de couro em volta da cintura, caindo rente à perna esquerda até abaixo do joelho. Por ser de couro
é resistente, protege a roupa. É usado para trabalhar no campo.
135 Roseta de metal usada rente ao calcanhar com a utilidade de despertar o cavalo.
136 Região no sul da América Latina, com forte influência da colonização espanhola.
137 Tecido enrolado pela cintura e por entre as pernas (indumentária masculina).
109
setembro com a distribuição da centelha crioula138 para 70 entidades, junto ao Altar-
Monumento da Basílica Nossa Senhora da Medianeira. E findou com a extinção da chama, às
11:45 horas do dia vinte de setembro, logo após o desfile temático.
Considero o desfile mais um daqueles elementos circulares entre os cenários rural e
urbano. Originalmente é um ritual de celebração e representação dos homens do campo. O
Desfile é um modelo urbano. Uma prática do tradicionalismo. Nas estâncias, observei toda
espécie de preparativos e expectativas por parte de muitos peões para participar dos desfiles.
Meses antes, são preparados os animais, os arreios, os aperos, as pilchas para participar
desses eventos. A ocasião é vivenciada pelo público e pelos participantes com muito
entusiamo. Não uma razão ou motivação específica que leve os participantes a participar
do desfile. Não é exatamente um evento competitivo. O ritual parece ser o sentido máximo de
motivação a todos.
4 Vira a chapa e segue a mesma”, Os rodeios de tiro-de-laço.
Uma das mais visíveis manifestações do gauchismo, dentro do cenário urbano são os
rodeios
139
de tiro-de-laço. Laçadores reúnem-se quase todos os finais de semana, em
praticamente todas as cidades do Rio Grande do Sul para treinar e disputar o tiro-de-laço.
Esses eventos, em geral realizados dentro dos rodeios, configura-se como uma verdadeira
febre dentro do movimento tradicionalista. “Pistas de rodeio” são construídas ao redor das
cidades, e também na zona rural, e nos finais de semana reúnem centenas de laçadores para
treinar ou para disputar os torneios e concursos de tiro-de-laço. Como pano de fundo desse
cenário, percebe-se uma imbricada rede de ligações de compromissos e reciprocidades
mediadas pelas entidades tradicionalistas promotoras desses eventos, como também um rico
mercado econômico que gira em torno da atividade. Tudo isso gera um intenso mercado de
bens simbólicos que se insere na multiplicidade de manifestações da identidade tradicional
gaúcha acionada.
Inicialmente, ao iniciar a pesquisa, eu não mensurava a dimensão desses eventos. Foi
no decorrer dos trabalhos de campo que o cenário foi se desvelando diante de mim. Demorei
para perceber a importância deles, e até hesitei em -los tamanha importância. No entanto,
138 Trazida de Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre, por 16 cavalarianos. O grupo cavalgou
até Santa Maria por quinze dias.
139 O termo “rodeio”, nesse item, não será utilizado no seu sentido original (vide Cap. II, item 2), mas sim,
de acordo com o seu significado urbano: “Festa campeira com competição entre grupos de campeiros,
pertencentes aos CTGs, representadas por gineteadas, pealos e tiro-de-laço, além de concursos de
declamação, danças, trovas, etc.” (Bossle, 2003. p. 449).
110
eles eram visíveis desde o primeiro dia de trabalho de campo.
Uma figura constante dos rodeios tradicionalistas é o narrador. São profissionais, de
um mercado concorrido, que não só narra, mas também anima e dá dinâmica aos eventos. Um
dos primeiros rodeios que obervei, cidade de Santa Maria, o narrador, depois de cada dupla
laçar (modalidade de laço em duplas), o homem exclamava: vira a chapa e segue a
mesma... Eu não tinha a mínima idéia do que a expressão significava. Logo depois fui
informado que “virar a chapa” era inverter a ordem da dupla (esquerda e direita), e fazer mais
uma corrida (atirar o laço novamente), entretanto invertendo-se o lado. Cada narrador cria
uma série de expressões particulares, mas que são compartilhadas sem mal entendidos, pelo
grupo. Todos entendem perfeitamente o que é dito pelo narrador, no entanto, quem observa de
fora, não tem como saber o significado da maioria das expressões.
O significado simbólico do “laço”, é sui generis em relação à identidade do gaúcho.
Chega a ser irônico e contraditório o fato da sua identidade tão vinculada ao masculino, ao
astuto, ao independente, sem pontos fracos pelos quais possa ser aprisionado, o gaúcho,
manifesta hoje, justamente através do “laço”, sua mais contundente manifestação.
“O laço é o instrumento de trabalho do gaúcho e um instrumento de
controle. Por toda sua vida o gaúcho evita laços, para ele casamento ou filhos
significa estar amarrado, enrolado. Mulher é um laço que sufoca. Ter ou cultivar a
terra significa criar laços ou vínculos. Quer porque não lhe é permitido ter estes
laços, ou porque ele não quer estas amarras (e cria todo um universo simbólico
justificando sua impossibilidade de ter vínculos e posses), o fato é que o gaúcho não
possui estes laços: ele não possui nada que o prenda, mantendo-o vinculado ao
solo.” (Leal, 1992. p. 145).
A pesquisadora usa a metáfora do laço para argumentar sobre a relação entre o gênero
masculino e o suicídio por enforcamento verificado entre os habitantes da campanha gaúcha.
Ela constata que este tipo de morte confere ao homem um importante significado de
desprendimento e independência em relação à vida, quando ele próprio escolhe a hora que
deve morrer: em pé, sozinho, no campo e sem derramar sangue.
Os rodeios de tiro-de-laço, são encontrados em todos os municípios do Rio Grande do
Sul (dados do MTG). Eu verifiquei esta atividade inserida dentro da programação oficial de
vários eventos dentro do estado. Dentro da EXPOINTER, o rodeio organizado pela
Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha (ABQM). Entrevistei o Sr. Rui
Godinho, coordenador do evento e ele me relatou que rodeios de tiro-de-laço organizados
dentro de feiras com a repercussão da Exposição Internacional, costumam reunir mais de
quinhentos laçadores. A pista de rodeios do Parque Assis Brasil, onde acontece a
EXPOINTER, recebe ao longo da feira, vários rodeios organizados por diferentes entidades. E
111
segundo Godinho, todos dentro do calendário oficial do MTG. Dias depois, no Acampamento
Farroupilha, observei também uma pista de rodeios. Lá, segundo os peões que conversei na
pista, nos dias 17 e 18 de setembro, os tradicionalistas atiram o laço durante os vinte
primeiros dias do mês. Desde o início de setembro, quando começa o movimento no parque,
até o final da Semana Farroupilha. Segundo os laçadores, durante os dias de semana,
acontecem os treinos e nos finais de semana, os rodeios oficiais.
Tencionando entender mais sobre o assunto, sobre a dinâmica do evento, as
motivações das pessoas, os custos, as regras e também conhecer um pouco mais
aprofundadamente o perfil dos indivíduos que praticam o tiro-de-laço, procurei fixar minha
atenção sobre um grupo determinado. O lugar que me pareceu mais apropriado, por conhecer
alguns frequentadores, foi a Sede Campeira do CTG Sentinela da Querência. O lugar fica
localizado no Distrito de Pains, no município de Santa Maria. Lá, realizam-se “treinos” todos
os sábados pela tarde, quando não há rodeios oficiais nesse dia. A “pista” que é onde os
animais “correm” é considerada, pelos laçadores, como muito boa. Por esse motivo, o CTG
Sentinela aluga sua sede para a realização de rodeios de outras entidades que não possuem
sede para realizar suas provas campeiras.
Passei a frequentar o local, aos sábados pela tarde, no mês de dezembro. A partir dali,
passei a tomar noção da magnitude que representam esses eventos dentro da compreensão das
manifestações que acionam a cultura regional gaúcha. O homem do campo, o gaúcho
campeiro, é reconstruído naqueles locais. Ali não a manifestação artística, que é produzida
e reproduzida à imagem do gaúcho campeiro. Ali a imagem encontrada é a do próprio gaúcho
campeiro. A cena é quase completa. O homem, o cavalo, o gado e o laço, que é seu
instrumento de trabalho, apresenta-se em ação. Constroem com isso, um cenário
absolutamente verossímil. Saber atirar o laço é instrumentalizar-se naquele ofício. É fazer
parte daquele meio. É estar conectado àquele mundo. É pertencer àquela identidade. O cavalo,
a roupa, a habilidade com o laço aumentam o vínculo dos indivíduos com aquele grupo. São
os meios pelos quais constroem-se as relações sociais, que levam os indivíduos a interagir e a
construir determinadas sociabilidades.
“Bicudo”, o apelido de um dos meus informantes no grupo, ao ser perguntado por mim
sobre o que o levava a estar ali, relatou-me numa tarde de sábado de sol entre um tiro-de-laço
e outro: num domingo a gente sozinho. No outro, conhece um monte de gente.Bicudo é
caminhoneiro, mora na cidade, há seis anos comprou um cavalo, e começou a laçar.
Rosana Campanhola é uma jovem tradicionalista que acompanha seu tio Jair
Campanhola, aos sábados, nos treinos de tiro-de-laço. Jair é coordenador da Invernada
112
Campeira do CTG Sentinela da Querência. Rosana é uma das integrantes do grupo “Herdeiras
de Anita”, que é o Departamento Feminino da Invernada Campeira do CTG. O grupo existe
aproximadamente cinco anos, mesma idade de fundação da Sede Campeira. Rosana é neta
de um dos vinte casais que fundou, em 1984, o CTG Sentinela da Querência. Em uma das
conversas, Rosana disse-me em sua entrevista: eu dançava na juvenil da (invernada)
artística, mas prefiro essa parte mais rústica, da campeira, dos cavalos, das cavalgadas...
Rosana ainda me informou que as mulheres dos Departamento Feminino são em geral,
esposas, irmãs, namoradas, ou tem algum parentesco com quem laça: algumas até laçam,
afirmou ela.
5 História, memória e identidades
A partir dessa leitura etnográfica posso afirmar que as identidades gaúchas são
construídas e revividas sobre uma forte ligação com a história e com a memória. Sempre que
se fala em identidade gaúcha, tanto entre os homens do campo com quem convivi, quanto
entre os tradicionalistas, percebe-se nas falas e nas ações desses sujeitos, termos preferenciais
e recorrentes: tradição, herança, passado, referências à “terra”, ao “chão”, às “raízes” e aos
antepassados. No momento em que examina seu passado, o grupo nota que continua o
mesmo e toma consciência de sua identidade através do tempo.(Halbwachs, 2006. p. 108).
Dessa forma, acredito que para entender as falas e as referências desses sujeitos de que tratei
até aqui, bem como analisar os fluxos interpretativos circulares e intermitentes na interface
entre a cidade e o campo, é importante refletir acerca de dois conceitos: história e memória.
É importante definir de que tipo de memória estou tratando aqui. Entendo memória
como uma construção social e coletiva (Halbwachs, 2006). Entretanto, esse autor não nega a
existência do indivíduo. Embora entenda a memória como uma construção social, como no
caso dos tradicionalistas, partindo do todo para a parte. Para Halbwachs, quem lembra é o
indivíduo. Ao fazê-lo, entra no domínio das sensações, e se utiliza dos sentidos e percepções
que dizem respeito a ele. Dessa forma, cada indivíduo pode ter uma memória distinta de
outro. Todo evento que guardamos na memória tem a marca social, por mais que o tenhamos
vivido individualmente. Se vivenciamos um evento publicamente, mais marcante ele será,
pois será partilhado, reforçando de sobremaneira sua marca social. Essa é uma característica
marcante dos eventos que observei. São eventos coletivos, compartilhados. Os desfiles, os
rodeios, os tiros de laço. Embora tire do indivíduo o foco central da questão da memória,
Halbwachs reconhece a importância deste para a memória coletiva. Quem vai sentir, quem vai
113
guardar, quem vai lembrar, é o indivíduo. Por essa razão esses sujeitos atribuem tamanha
importância a esses eventos. No entanto, o indivíduo apreende isso socialmente. A ele é
ensinado a “maneira de como lembrar”, de como guardar, de como selecionar aquilo que deve
ser registrado. O indivíduo não escolhe apenas aquilo que “quer” lembrar, mas aquilo que
“lhe é permitido” e/ou lhe é “imposto” socialmente. É claro que sempre haverá distinções
entre uns indivíduos e outros, mas até mesmo essas diferenças são dadas socialmente. Os
indivíduos se distinguirão dentro de um padrão determinado, dentro de um limite, que é
também construído socialmente.
Para Halbwachs, mesmo quando estamos falando de nós mesmos, como no caso dos
relatos dos peões de estância com quem trabalhei, estamos criando e fazendo coisas de
profunda subjetividade, estamos “amarrados às objetividades”. Quando pensamos, mesmo
que realizemos isso sozinhos, o fazemos coletivamente, pois utilizamos, para isso, uma
língua, que é coletiva. Essa linguagem nos é imposta pela sociedade. “É difícil conceber como
despertaria em uma consciência isolada o sentimento de identidade pessoal, talvez porque
nos parece que um homem inteiramente não poderia se lembrar de modo algum
(Halbwachs, 2006. p. 110). Nesse caso nota-se o coletivo sobre o indivíduo.
Também é necessário entender como se a relação espaço/tempo, a tensão, segundo
Halbwachs, entre história e memória. Essa relação entre a história e a memória pode ajudar na
compreensão dos mecanismos que acionam a circularidade das identidades gaúchas que
pesquisei em meu trabalho de campo:
Em geral a história começa no ponto em que termina a tradição,
momento em que se decompõe ou se apaga a memória social. Enquanto
subsiste uma lembrança, é inútil fixá-la por escrito ou pura e simplesmente
fixá-la. (Halbwachs, 2006. p. 100 101).
Essa é a principal diferença entre a história e a memória. Enquanto a memória
pressupõe continuidade, pois é viva e dinâmica, fluida e constantemente produzida pelos
indivíduos e pelos grupos nas interações sociais da vida cotidiana, a história é uma narrativa
fixa, diacrônica, documental, mas que objetiva fazer uma ponte entre o passado e o presente e
restabelecer a continuidade interrompida.
Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem
mais por suporte um grupo, o próprio evento que nele esteve envolvido ou
que nele teve consequências, que a ele assistiu ou dele recebeu uma
descrição ao vivo de atores ou espectadores de primeira mão quando ela se
dispersa por alguns espíritos individuais, perdidos em novas sociedades que
não se interessam mais por esses fatos que lhes são decididamente
114
exteriores, então o único meio de preservar estas lembranças é fixá-los por
escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras
e o pensamento morrem. Se a condição necessária para que exista a memória
é que o sujeito que lembra, indivíduo ou grupo, tenha a sensação de que ela
remonta a lembranças de um movimento contínuo, como poderia a história
ser uma memória, se há uma interrupção entre a sociedade que lê esta
história e os grupos de testemunhas ou autores, outrora, de acontecimentos
que nela são relatados? (...) Um dos objetivos da história talvez seja
justamente lançar uma ponte entre passado e o presente, e restabelecer essa
continuidade interrompida. (Halbwachs, 2006).
Quando o antropólogo estuda memória ele não busca estudar, necessariamente, a
historiografia do local, mas sim as estruturas e significados ao longo de um percurso de
tempo, dentro de um grupo determinado. O historiador trabalha mais no sentido de
documentar, transpondo do oral para o escrito no sentido de preservar. No entendimento de
Halbwachs a memória reconstrói os fatos no sentido do presente para o passado. É com a
bagagem que se tem no presente que se vai perceber o passado. É dessa forma que a memória
é social, pois é construída a partir do coletivo.
Os peões tradicionalistas e os peões de estância, inseridos no contexto da cultura
regional gaúcha, afirmam suas identidades, bem como seu pertencimento a essa cultura, sobre
um sentimento de pertença ao “lugar”. É necessário “observar o lugar da produção do
sentimento” (Brum, 2006. p. 36). Segundo essa autora
140
, pertencer significa sentir-se ligado a
alguma coisa e ao mesmo tempo mostrar-se identificado com essa mesma coisa. Para entender
a importância desses lugares de reverência, é importante entender o conceito de Lieux de
Mémoire (Nora, 1989). A expressão lugares de memória é usada por Pierre Nora para dar
nome à história que ainda possui restos de memória. Convencido de que no tempo em que
vivemos os países e os grupos sociais sofreram uma profunda mudança na relação que
mantinham tradicionalmente com o passado, o autor acredita que uma das questões
significativas da cultura contemporânea situa-se no entrecruzamento entre o respeito ao
passado seja ele real ou imaginário e o sentimento de pertencimento a um dado grupo;
entre a consciência coletiva e a preocupação com a individualidade. Ou seja, entre a memória
e a identidade. Para Pierre Nora, os lugares de memória, podem ser definidos de três
maneiras: são lugares materiais onde a memória social se ancora e pode ser apreendida pelos
sentidos; são lugares funcionais porque tem ou adquiriram a função de alicerçar memórias
coletivas e são lugares simbólicos onde essa memória coletiva vale dizer, essa identidade
se expressa e se revela. São portanto, lugares, carregados de uma vontade de memória. Longe
140 A autora trabalha com as noções de identidade, tradição e memória de Gilles Laferté, na afirmação das
identidades regionais a partir do uso de suas tradições.
115
de ser um produto espontâneo e natural, os lugares de memória são uma construção histórica
e o interesse em seu estudo vem, exatamente, de seu valor como documentos e monumentos
reveladores dos processos sociais, dos conflitos, das paixões e dos interesses que,
conscientemente ou não, os revestem de uma função icônica.
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, manter aniversários,
organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque
estas operações não são naturais (Nora, 1989. p. 13).
A cultura gaúcha, sobretudo a cultura tradicionalista gaúcha que estudei, é repleta
disso, desses lugares de memória. Ícones e símbolos são constantemente criados para
reverenciar e referendar o passado. A própria a narrativa histórica fornece dados para serem
comemorados e reverenciados. A historiografia ensina quem são os heróis, os mártires, e os
espaços sagrados. O tradicionalismo é a história revivida. É a história carregada de memória.
Na leitura de Nora a memória é sentimento, enquanto a história é conhecimento. Pois
ela é crítica, observa o passado e analisa o tempo vivido. Este tempo passado é seu objeto de
questionamento. Entretanto, o autor observa que um fato novo surge, quando seu objeto (da
história) passa ser a própria história. Nesse instante, não é somente o passado, o vivido, que é
dessacralizado. Mas sim, o conhecimento histórico, ele mesmo, que é visto como tradição. O
historiador é aquele que impede a história de ser somente história” (Nora, 1989. p.18).
É exatamente essa, uma das estratégias do tradicionalismo regional gaúcho, a história
é revivida no cenário urbano, revisitada e re-significada através de ações que atualizam o
passado. É um fluxo interpretativo e circular na interface entre a cidade e o campo. É o
passado historicamente vivido que é reconstruído no tempo presente. É a história
transformada em memória. O tradicionalismo transforma a história em memória. Ela é
revivida como se estivesse acontecendo de novo. E isso é conseguido através dos lugares de
memória: matear junto a um fogo de chão dentro de um galpão forrado de picumãs; desfilar
garbosamente no desfile de 20 de setembro, revivendo o ato dos farrapos de 1835; atirar o
laço nos rodeios das cidades como se estivessem em uma imensidão de campo e de gado;
encilhar um cavalo da mesma forma que trezentos anos; reviver, de fato, a vida como ela
poderia ter sido vivenciada no passado. É como ter memória de algo que não se tem memória.
E mais do que isso, pode talvez, nunca ter sido, sequer, história. Nora conclui dizendo que
estes lugares de memória são o ponto onde se ancora, se condensa e se exprime o capital
esgotado de nossa memória coletiva these lieux de mémoire that anchor, condence, end
116
express the exhausted capita of our collective memory” (Nora, 1989. p. 24).
Numa sociedade onde a amplitude das mudanças é cada vez maior, mais obcecados se
tornam os indivíduos por se compreender historicamente. No intuito de proporcionar essa
auto compreensão histórica, os indivíduos e os grupos acionam suas identidades e estratégias
de pertencimento, em uma dinâmica circular de interpretações e re-interpretações dessas
próprias identidades. E os lugares de memória, são acionados e configuram-se como fluxos
interpretativos, dessas identidades, pois auxiliam em dar conta dessa compreensão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
De bota e bombachaé o resultado de um exercício etnográfico onde os sujeitos que
constituem o objeto central desta investigação são os peões. Pesquisei entre os peões
tradicionalistas e entre os peões de estância; atentando sobre todo o imaginário e as
sociabilidades construídas e compartilhadas em torno da figura emblemática que simboliza o
tipo social regional tradicional humano do sul do Brasil: o gaúcho. Acerca disso procurei
apontar as circularidades e as dinâmicas dos fluxos interpretativos que se dão na interface das
interações dessas identidades no presente, ancorados e legitimados por um discurso histórico
peculiar.
Chamei de circularidade a dinâmica dialógica gerada no contexto campo e cidade,
rural e urbano, re-significando essas identidades num fluxo intermitente de trocas de práticas
e representações. Os fluxos interpretativos se referem à hipótese de romper com o modelo de
via única de real e imaginário, verdadeiro e cópia, referentes aos estudos que verifiquei até
então, sobre as identidades gaúchas, o tradicionalismo e o gauchismo de maneira geral.
Para tanto, o ponto de partida da minha pesquisa foi elaborar um panorama da vida no
cenário rural. Descrever os peões de estância, seu trabalho, as manifestações destes a respeito
da cultura tradicionalista e as suas práticas compreendidas no contexto do gauchismo. No
primeiro item do Capítulo I tratei de forma episódica alguns eventos que escolhi como
representativos da vida e do trabalho dos peões. Na Fazenda dos Meios observei o evento do
rodeio de marcação e de castração de bovinos, onde pude perceber como na maioria das vezes
pode ser muito tênue a linha que divide os limites entre o rural e o urbano. Os peões da
fazenda misturaram-se aos “moços da cidade” no fazer do rodeio. Pelas pilchas que vestiam,
os moços da cidade faziam-se parecer “gaúchos pela indumentária, enquanto os peões da
fazenda faziam-se parecer peões pelo fazer” do seu trabalho. Se eu tentasse apontar um
“modelo” ali, seria impossível determinar que este modelo se referia a apenas um deles. Pude
perceber que assim como o rural produz representações no urbano, os “moços tradicionalistas
da cidade” produzem representações no cenário rural. Servem de modelo àqueles peões que
passam a representar-se como tal. Os três episódios seguintes se referem à Fazenda Tarumã.
No primeiro procurei apontar que o mundo estancieiro transita numa lógica de aproximação e
distanciamento da lógica urbana de mecanização e modernização ao passo que conserva
costumes ditos tradicionais como confiança e reciprocidade visível no pouso da tropa de
Gonçalo e a hospedagem concedida por Sérgio na Tarumã. Nos dois episódios seguintes
118
reflito acerca das concepções sobre a violência e a morte e como esses assuntos podem
significar pontos de confluência e distanciamento entre a cidade e o campo. No segundo item
deste primeiro capítulo trato da vivência de três homens do campo que tem em comum o
ofício de peão de estância. Analiso a invisibilidade dessa categoria para o poder institucional,
sua formação informal e a sua inexistência dentro da legislação. Os peões de estância existem
“de fato” mas não “de direito”, são uma categoria verificável de acordo com meu trabalho de
campo, mas não provável diante do texto legal. Todo esse contexto me possibilita refletir
sobre os fluxos interpretativos acerca da figura icônica dos peões de estância, uma figura
invisível institucionalmente mas de profunda relevância e representatividade no cenário do
gauchismo.
A seguir, no Capítulo II, passo a tratar da narrativa histórica a respeito do gaúcho
histórico, sua formação e consolidação, até o momento no qual passa a ser narrado como mito
heróico e representado através da literatura, da música, da historiografia entre tantas outras
manifestações culturais. Meu interesse particular é sobre o momento histórico em que a figura
emblemática do gaúcho é personificada pelo bravo peão guerreiro e passa a ser narrado pelas
primeiras manifestações culturais e posteriormente re-vivido e re-significado pelas iniciativas
dos movimentos tradicionalistas. A partir desse instante essa identidade ganha seu caráter
icônico e passa a produzir não representações, mas também práticas que vão sendo re-
vividas e re-significadas em um fluxo intermitente entre o campo e a cidade, entre o rural e o
urbano. Dois pontos são fundamentais nesse capítulo: a consolidação da identidade do gaúcho
no final do século XIX e a criação do MTG, em 1964. A circularidade dessa identidade
gaúcha específica adquire esse contorno nesses pontos. O Movimento Tradicionalista não cria
apenas uma representação, mas sim um novo modelo. A partir deste passa a se produzir um
fluxo interpretativo intermitente dessas identidades acionadas pelas práticas e representações
tanto no campo quanto na cidade.
Por fim, no Capítulo III adentro no cenário urbano das minhas observações de campo.
Na cidade de Porto Alegre observei dois eventos específicos: o Acampamento Farroupilha e o
Freio de Ouro, dentro da EXPOINTER, na cidade de Esteio. O Acampamento Farroupilha me
propiciou entender de que forma as identidades gaúchas transcendem o universo do
tradicionalismo formal. As identidades ali representadas e as pessoas ali presentes cultivam,
representam e acionam algo de que o o tradicionalismo não mais conta. O culto ao
mundo estancieiro, à figura do peão de estância é vivenciada por um gauchismo inovador que
se reinventou na cidade, no cenário urbano, constituindo-se como um novo modelo. O Freio
de Ouro é outro exemplo disso. Por outras razões e por outra trajetória, os criadores e
119
admiradores do Cavalo Crioulo construíram um novo modelo urbano de cultuar o cenário
rural. Re-vivenciam através das competições o modelo rural campeiro, produzem práticas e
representações não na cidade mas também no campo. As provas do Freio de Ouro, e o
próprio Cavalo Crioulo são um claro exemplo de um novo modelo urbano de referência ao
modelo rural.
Ao todo foram em torno de vinte eventos observados, em cinco cidades diferentes,
totalizando perto de cem dias de convívio intenso com o objeto de estudo, com os sujeitos da
minha pesquisa. O item três do terceiro Capítulo se refere às observações de campo da
Semana Farroupilha de 2008. Essas observações, no entanto, iniciaram muito tempo antes do
evento propriamente dito e se encerraram algum tempo depois. Isto porque o evento da
Semana Farroupilha é um acontecimento compartilhado pelos tradicionalistas do campo e da
cidade bem como por todos que vivenciam o gauchismo de maneira geral.
Considero os eventos do tiro de laço como o ponto decisivo no meu argumento de
apontar as circularidades de fluxos interpretativos entre o muno rural e o mundo urbano. Essas
práticas estão presentes desde os eventos promovidos pelas entidades tradicionalistas até
eventos de caráter informal, como observei nos arredores da cidade de Santa Maria, Restinga
Seca, dentro do Acampamento Farroupilha, no Parque Assis Brasil durante a EXPOINTER e
até mesmo na Fazenda Tarumã.
Todo exercício etnográfico é um exercício de memória. As identidades gaúchas que
pesquisei assentam-se e legitimam-se através da história (enquanto representação do passado)
e da memória dos sujeitos e dos grupos. Assim sendo, interpretei que esse fluxo circular que
realimenta essa dinâmica das identidades gaúchas, proporcionando esse feedback contínuo e
intermitente entre o rural e o urbano é subsidiado por um sentimento de pertença que se
assenta, entre outros elementos, pela narrativa de uma história comum e mediado por uma
memória comum e coletiva que é percebida pelo grupo mas re-vivida e re-significada
individualmente por cada um dos sujeitos.
Com esse texto não tenho a pretensão de elaborar um argumento conclusivo sobre o
tema da minha pesquisa. Ao contrário disso, estabelece o contexto de onde vislumbro uma
nova possibilidade de pesquisa. Reflito sobre a possibilidade de um novo exercício
etnográfico: não a etnografia dos sujeitos ou do lugar (apenas), mas a etnografia do evento,
“da coisa”. O rodeio de tiro de laço observado dentro de um perspectiva multi situada de
trabalho de campo, configurando-se como objeto específico de uma nova análise. Investigar
qual o seu significado no contexto das identidades gaúchas? Qual a sua relevância nesse
cenário do gauchismo? Suas motivações, seus sujeitos? Essa pesquisa, na mesma medida em
120
que me fez compreender um pouco mais sobre os sujeitos que eu analisava, suscitou novas
possibilidades de investigação, novas indagações, novas redes de informações, ampliou meu
fascínio pelo objeto de estudo, pelas diversas formas de manifestação e ação dessas
identidades.
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Passagem Material. In Os Ritos de Passagem. Petrópolis, Vozes, 1978, pp.11 40
ZANINI, Maria Catarina Chitolina. Italianidade no Brasil Meridional. A construção da
identidade étnica na região de Santa Maria RS. Editora UFSM. Santa Maria: 2006.
FONTES VIRTUAIS
GOLIN, Tau. Manifesto Contra o Tradicionalismo. 2007. Disponível em <http : // zurdo
zurdo. Blogspot. Com/ 2007/ 09/ manifesto-contra-o-tradicionalismo. html> (acesso em
23/01/09).
MTG. Site do Movimento Tradicionalista Gaúcho. (Disponível em <www.mtg.org.br>).
SOCIEDADE PARTENON LITERÁRIO. (Disponível em <br.geocities.com/
partenonliterario/> acesso em 22/01/09).
SILVA, Gleicimary Borges da. 35 CTG. Projeto Memória. Revisão Ivo Benfatto Patrão do
35 CTG. 1998. (Disponível em <www.paginadogaucho.com.br/ctg/ctg35.htm>).
FONTES DISCOGRÁFICAS.
Álbuns “Companheira Liberdade” e “Meu Canto” de Cenair Maicá.
Álbum “Legendas Missioneiras” de Noel Guarany e Jayme Caetano Braun.
Álbum “Troncos Missioneiros” de Pedro Ortaça, Cenair Maicá, Noel Guarany e Jayme
Caetano Braun.
Álbum “De Pulperias” de Noel Guarany.
Álbum “Noel Guarany canta Aureliano de Figueiredo Pinto” de Noel Guarany
Álbum “De Bota e Bombacha” de Luiz Marenco e José Cláudio Machado.
Álbum “Querência, Tempo e Ausência” de Luiz Marenco.
Álbum “Identidade” de Luiz Marenco.
Álbum “O campo” de César Oliveira & Rogério Melo.
FONTES ETNOGRÁFICAS.
CT/Centro de Treinamento e doma.
Eventos 13ª Região Tradicionalista.
CTG Sentinela da Querência.
Sede Campeira CTG Sentinela da Querência.
13ª Região Tradicionalista.
DTG Querência das Dores.
Rodeio Arroio do Só.
Rodeio ABQM (EXPOINTER).
Rodeio do Acampamento Farroupilha.
Rodeio Estância do Minuano.
Rodeio Internacional do Cone Sul (2009).
Estância Tarumã.
Fazenda dos Meios.
Acampamento Farroupilha. Parque da Harmonia.
EXPOINTER 2008/ Freio de Ouro.
Semana Farroupilha 2008. Desfile de 20 de Setembro.
133
EXPOFEIRA 2008/ Shows Luiz Marenco e César Oliveira & Rogério Melo.
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