motivo de angústia para esses índios, parece não ser alvo de descrições mais elaboradas
97
. A
aflição concernente à punição eterna surge com a lembrança dos antepassados que não
tiveram a oportunidade de ouvir falar sobre Jesus (Howard, 2001:356-357). Howard sustenta
que os Waiwai sentem-se inconformados com a atitude de Deus punir pessoas que se
comportaram eticamente ao longo de suas vidas. Talvez seja justamente pelo fato da doutrina
da salvação pela fé ferir o seu senso de justiça, que os Waiwai procuram agir de forma a
merecer a salvação, sustentando que a vida eterna será concedida a eles por Deus em troca,
em recompensa ou como um “pagamento” pelas viagens missionárias realizadas em direção a
outros grupos indígenas (Idem, :284,353)
98
. Desse modo, a conversão é descrita pelos Waiwai
como uma troca com Deus, de almas pela imortalidade. Essa idéia manifesta-se, por exemplo,
na seguinte fala de um proeminente pastor Waiwai, transcrita na tese de Howard:
97
O mesmo não acontece entre os Wari’ evangélicos estudados por Vilaça (2008:174-175,191-192). Falantes de
uma língua txapakura e habitantes do estado de Rondônia, os Wari’ têm sido evangelizados por missionários
fundamentalistas da New Tribes Mission desde de 1956. Após passarem por sucessivos movimentos de
conversão e de abandono do cristianismo, experimentam hoje um reavivamento iniciado no ano de 2001. Seu
discurso escatológico enfatiza o inferno em detrimento do céu. O inferno é alvo de um grande interesse, e
ricamente descrito como um lugar de sofrimento no qual as almas das pessoas passarão a eternidade sendo
assadas no fogo. O céu, por sua vez, é pouco mencionado, e considerado um lugar estéril, onde as pessoas são
jovens e belas mas não se relacionam, e ocupam todo o seu tempo escrevendo a Palavra de Deus. Além disso, no
discurso wari’, o medo do inferno aparece como motivador da conversão e também do esforço de evangelizar
outros (ao contrário do discurso Waiwai sobre a conversão e sobre a evangelização, que enfatiza o interesse pela
vida eterna). Vilaça nota que a esterilidade do céu wari’ deriva do fato de lá não existir afinidade, e todos
viverem num estado de consangüinidade previamente dado, que não precisa ser construído nem mantido através
dos relacionamentos entre as pessoas. Desse modo, o céu wari’ é povoado por indivíduos que existem a priori e
independentes das relações que possam estabelecer uns com os outros: eles não manifestam cuidados mútuos,
não trocam alimentos, não dormem juntos, não conversam. Essa abolição da relação atualiza de uma maneira
radical a própria idéia cristã/ocidental de indivíduo (Idem, :192).
98
Aqui, mais uma vez, há uma demonstração da singularidade do cristianismo waiwai, onde por vezes as idéias
transmitidas pelos missionários assumiram significados próprios, diversos dos que tinham em sua origem. A
afirmação de que a salvação é obtida “em troca”, como “recompensa” ou “pagamento” pelas viagens
missionárias é uma heresia do ponto de vista da teologia cristã reformada, segundo a qual ninguém pode merecer
a salvação, sendo a fé em Jesus o único pré-requisito para a vida eterna. Contudo, tal idéia dos Waiwai
aproxima-se de uma doutrina originalmente defendida por Wesley, segundo a qual nem todo aquele que passa
pela experiência da conversão tem a garantia de ser salvo, sendo necessário “conservar a graça” continuamente,
por meio da santificação pessoal (cf. Thompson, 2002:241-242). Desse modo, a evangelização de outros seria a
principal maneira dos Waiwai “conservarem a graça”. Embora não seja possível afirmar que tal doutrina fosse
ensinada pelos missionários da UFM, a idéia segundo a qual os Waiwai consideram a evangelização de outros
como um meio de santificação faz sentido do ponto de vista nativo, e será melhor desenvolvida no próximo
capítulo.
Ainda a respeito desse tema, cabe destacar aqui que a metáfora da recompensa divina aos salvos ser
como um “pagamento” vem da Bíblia, onde aparece na chamada “parábola dos talentos” ensinada por Jesus em
Mateus 25.14-30 (“talento” é o nome de uma moeda corrente na época). A parábola tem um sentido claramente
escatológico e compara Deus a um senhor que, ao voltar de viagem, recompensa seus servos por administrarem
bem uma quantia de dinheiro a eles confiada. Um dos servos não soube administrar o dinheiro durante a ausência
do senhor e por isso foi destituído de tudo e “lançado nas trevas, onde haverá choro e ranger dos dentes”. Muitas
vertentes fundamentalistas interpretam essa punição como o envio para o inferno. O pagamento pelas boas obras,
por sua vez, não costuma ser interpretado como a salvação ou a vida eterna (já que esta depende da fé) e sim
como uma recompensa oferecida aos que já são salvos, um gozo de maiores bênçãos celestiais, por exemplo.
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