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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
O CRISTIANISMO EVANGÉLICO ENTRE OS WAIWAI:
ALTERIDADE E TRANSFORMAÇÕES ENTRE AS DÉCADAS
DE 1950 E 1980
Leonor Valentino de Oliveira
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Leonor Valentino de Oliveira
O CRISTIANISMO EVANGÉLICO ENTRE OS WAIWAI:
ALTERIDADE E TRANSFORMAÇÕES ENTRE DÉCADAS DE
1950 E 1980
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social.
Orientadora: Aparecida Neiva Vilaça
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2010
ii
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OLIVEIRA, Leonor Valentino de
O cristianismo evangélico entre os Waiwai: alteridade e transformações entre as
décadas de 1950 e 1980/ Leonor Valentino de Oliveira. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu
Nacional/PPGAS, 2010.
xi, 129 f. il.
Orientadora: Aparecida Neiva Vilaça.
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, 2010.
Referências Bibliográficas: f. 124-129.
1. Waiwai 2. Missões Protestantes 3. Conversão 4. Individualismo 5.
Xamanismo 6. Amazônia. I. Vilaça, Aparecida Neiva (Orient.).
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social. III. Título.
iii
O CRISTIANISMO EVANGÉLICO ENTRE OS WAIWAI:
ALTERIDADE E TRANSFORMAÇÕES ENTRE DÉCADAS DE 1950 E 1980
Leonor Valentino de Oliveira
Dissertação de Mestrado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre. Aprovada por:
___________________________________________________
Profª. Drª. Aparecida Neiva Vilaça (Orientadora)
PPGAS/ Museu Nacional/ UFRJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto
PPGAS/ Museu Nacional/ UFRJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Ruben Caixeta de Queiroz
PPGA/UFMG
___________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
PPGAS/ Museu Nacional / UFRJ (Suplente)
___________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio Teixeira Gonçalves
IFCS/ UFRJ (Suplente)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2010
iv
RESUMO
O CRISTIANISMO EVANGÉLICO ENTRE OS WAIWAI:
ALTERIDADE E TRANSFORMAÇÕES ENTRE DÉCADAS DE 1950 E 1980
Leonor Valentino de Oliveira
Orientadora: Profª. Drª. Aparecida Neiva Vilaça
Este trabalho analisa o cristianismo dos Waiwai, grupo indígena da amazônia setentrional, na
região de fronteira entre o Brasil e a Guiana, levando em conta a importância que os próprios
Waiwai atribuem ao processo de transformação de seu modo de vida a partir da convivência
permanente com missionários evangélicos da Unevangelized Fields Mission (UFM), iniciada
nos anos 1950. Inspirado na etnografia amazônica recente, este trabalho procura mostrar que o
cristianismo waiwai não é apenas um efeito da expansão colonial, mas constitui, do ponto de
vista nativo, resultado de transformações operadas pelos Waiwai a partir de seus princípios
cosmológicos tradicionais. Trata-se de um trabalho bibliográfico, no qual lanço mão da rica
etnografia disponível sobre esse grupo, e também de relatos dos missionários sobre a
conversão dos Waiwai. A partir do cotejamento dessas duas fontes, observo que do ponto de
vista missionário, o movimento dos Waiwai em direção ao cristianismo segue um padrão
convencional comum às narrativas evangélicas, onde a ênfase é a redenção do indivíduo
enquanto ser moral autônomo e intrinsecamente mau. Sugiro, ao contrário, que a conversão
desses índios não se dá a partir da idéia de indivíduo, e sim como um processo de
reconfiguração das relações de consubstancialidade ou parentesco que constituem a pessoa
entre os Waiwai.
Palavras-chave: Waiwai, Missões Protestantes, Conversão, Individualismo, Xamanismo,
Amazonia
v
ABSTRACT
O CRISTIANISMO EVANGÉLICO ENTRE OS WAIWAI:
ALTERIDADE E TRANSFORMAÇÕES ENTRE DÉCADAS DE 1950 E 1980
Leonor Valentino de Oliveira
Orientadora: Profª. Drª. Aparecida Neiva Vilaça
This dissertation explores the Christianity of the Waiwai, an indigenous group from a region
in the Northern Amazon at Brazil's frontier with Guiana. It deals with the importance that the
Waiwai themselves attribute to the transformation of their way of life due to their permanent
cohabitation with the Evangelical missionaries of the Unevangelized Fields Mission (UFM),
initiated in the 1950s. Inspired by recent ethnographic work, this dissertation argues that
Waiwai Christianity is not only an effect of the colonial expansion, but constitutes, from the
native point of view, an effect of transformations performed by the Waiwai in accordance
with their traditional cosmological principles. The dissertation is bibliographic, drawing on
the rich ethnographic literature of this group, and also on the reports of missionaries
concerning the the conversion of the Waiwai. Comparing these two sources, it can be seen
that from the point of view of the missionaries the movement of the Waiwai towards
Christianity follows a conventional pattern common to evangelical narratives, where the
emphasis is on the redemption of the individual as an autonomous, and intrinsically evil,
moral being. However, the present work suggests that the conversion of these indians does not
reside in an idea of the individual, but rather in a process of reconfiguration of the relations of
consubstantiality or kinship that, for the Waiwai, are what constitute persons.
Key-Words: Waiwai, Protestant Missions, Conversion, Individualism, Shamanism,
Amazonia
vi
Para Eunice
minha querida mãe
vii
AGRADECIMENTOS
À professora Aparecida Vilaça, orientadora desta dissertação. Seus estudos sobre
o cristianismo entre os Wari’ são uma grande inspiração para o meu trabalho. Não teria
conseguido terminá-lo sem suas sugestões valiosas, e sem o seu incentivo e paciência nos
períodos mais difíceis de escrita.
Ao corpo docente do PPGAS/Museu Nacional, em especial aos professores
Márcio Goldman, Eduardo Viveiros de Castro, Carlos Fausto e Luiz Fernando Dias Duarte.
Às funcionárias da biblioteca, Carla e Alessandra, pela prestatividade.
Ao professor Ruben Caixeta de Queiroz, que me apresentou ao universo da
etnologia, e me deu a oportunidade de estar com os Waiwai e de participar do processo de
demarcação da Terra Indígena Trombetas-Mapuera. Agradeço-lhe também pelo apoio sempre
manifestado, e por disponibilizar parte das referências utilizadas nesta dissertação.
Aos meus tios Marta e José Carlos Egg, por terem facilitado meu contato com a
Missão Evangélica da Amazônia (MEVA). À tia Marta agradeço ainda por ter realizado uma
entrevista com a missionária Ruth Langar, com a qual não pude encontrar-me pessoalmente.
Ao sr. Robert Hawkins, missionário pioneiro entre os Waiwai, que muito
gentilmente enviou-me um exemplar do livro Christ’s Witchdoctor, referência essencial neste
trabalho, e um exemplar do livro Christ’s Jungle. A Edson César da Silva, da MEVA, pela
gentileza de enviar-me um exemplar da versão brasileira do Pajé de Cristo, na época já
esgotada na editora e em todas as livrarias. Ao setor de comunicação da MEVA, na pessoa de
Timóteo Camargo, pelo envio de material de divulgação da missão entre os Waiwai.
Sem a atenção dispensada a mim por esses missionários, este trabalho não seria
possível. Embora minha análise da teologia missionária e dos impactos da missão entre os
Waiwai seja crítica em alguns momentos, isso não diminui minha consideração por suas
qualidades pessoais, e por suas contribuições à saúde e à educação dos Waiwai.
À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –,
pela concessão de bolsa de estudos, que tornou possível minha permanência na cidade do Rio
de Janeiro durante dois anos, período no qual dediquei-me exclusivamente às atividades do
mestrado.
À Comunidade Cristã da Zona Sul de Belo Horizonte, pelo incentivo à minha
jornada acadêmica e pelo apoio financeiro, especialmente nos meses em que permaneci no
Rio sem a bolsa de estudos da CAPES.
viii
À Luciana e ao Felipe, que me acolheram no apartamento da Glória e me
apresentaram à Cidade Maravilhosa.
Aos demais companheiros de estudos e diversões no Rio, pelos ótimos momentos
juntos. Especialmente Bia Matos, Edgar, Kleyton, Ruth, Rogério, Márcia, Felipe, Luana,
César, Paulinho Maia e Rachel Starling.
Aos queridos amigos de Beagá e do mundo: Rebeca, Cesinha, Thiago Profeta,
Elizangela, Luciney, Lílian Almeida, Raicle, Michelle, Cau, Pat, Dany, e Nina Torres, pelo
amor e pela força. À Maria Júlia agradeço de forma especial, pelo companheirismo e apoio na
reta final de escrita.
Ao Martiniano, por me alegrar com seu carinho e amor constantes, e pelo
incentivo nos momentos mais difíceis. À dona Edith Afonseca e ao seu Anísio de Alcântara,
que me hospedaram com carinho em sua chácara durante várias fases de escrita desta
dissertação.
Por fim, sou profundamente grata à minha família por todo apoio, cuidado e
compreensão, essenciais na conclusão do mestrado e na minha vida: aos meus pais, Eunice e
Antonio, às minhas lindas avós Leonor e Lourdes, aos meus irmãos, Gabriel e Ludmila, e
também aos meus primos André, Ricardo e Lílian, e Abigail.
ix
SUMÁRIO
Lista de Figuras .........................................................................................................................xi
INTRODUÇÃO...................................................................................................1
CAPÍTULO 1: Os primeiros contatos e as razões dos missionários............14
Histórico dos primeiros contatos..........................................................................................14
O cristianismo dos missionários da Unevangelized Fields Mission.....................................31
A conduta santificada ...........................................................................................................32
O fundamentalismo...............................................................................................................38
A ênfase escatológica ...........................................................................................................47
CAPÍTULO 2: O cristianismo dos Waiwai....................................................60
O personagem-chave: Ewká.................................................................................................60
Pecado, individualismo e parentesco....................................................................................69
Epidemias e conversão .........................................................................................................80
Criação e perspectiva............................................................................................................95
A igreja waiwai...................................................................................................................109
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................124
x
LISTA DE FIGURAS
Figura 01
Mapa das Terras Indígenas habitadas pelos Waiwai no Brasil...................................................2
Figura 02
Mapa da região administrativa habitada pelos Waiwai na Guiana.............................................3
xi
INTRODUÇÃO
Os Waiwai vivem na amazônia setentrional, na região onde a Serra Acaraí delimita a
fronteira entre o Brasil e a Guiana, e são falantes de uma língua da família caribe. No Brasil,
as comunidades waiwai estão em três Terras Indígenas: Wai-Wai, no sudoeste de Roraima;
Nhamundá-Mapuera, no noroeste do Pará e norte do Amazonas; e Trombetas-Mapuera; que
abrange uma grande área entre o extremo sul de Roraima, o extremo norte do Amazonas e o
noroeste do Pará (cf. Queiroz, 2008 – ver mapa na página seguinte). Na Guiana, os Waiwai
são encontrados no extremo sul do país, na região administrativa Upper Takutu-Upper
Essequibo (cf. ISA, 2006 – ver mapa na página 3).
O nome Waiwai tem sido usado como uma identificação genérica por índios de vários
grupos – Parukoto, Taruma, Mawayana, Xerew, Katuena, Tunayana, Karapawyana,
Yukwaryana, Tikyana, Kaxuyana e Xowyana – que até o início dos anos 2000 encontravam-
se aglomerados em quatro grandes aldeias onde a língua waiwai predomina (Howard, 2002;
Queiroz, 2008). Essas aldeias eram Anauá, Jatapuzinho, Mapuera e Akotopono. As duas
primeiras ficam no estado de Roraima, às margens dos rios Anauá e Jatapuzinho (um é
afluente oriental do rio Branco, e o outro é tributário do rio Jatapu, que por sua vez deságua
no rio Amazonas). A aldeia Mapuera fica no Pará, às margens do rio Mapuera, tributário do
Trombetas. Akotopono ficava na Guiana, nas cabeceiras do rio Essequibo, e foi abandonada
no início dos anos 2000, quando seus moradores distribuíram-se por duas novas aldeias
fundadas naquele mesmo país. Juntas, essas quatro aldeias waiwai somavam
aproximadamente 1900 pessoas.
Na última década, o contexto regional tem sofrido alterações significativas. Muitas das
famílias aglomeradas nessas comunidades waiwai do Brasil têm levado a cabo um processo
de dispersão, em direção aos lugares habitados por seus antepassados. Aproximadamente 20
novas aldeias ao longo dos rios Mapuera, Jatapu e Nhamundá foram fundadas nos últimos
oito anos (cf. Queiroz, 2008)
1
. As novas aldeias possuem, em média, 30 moradores cada. As
aldeias Mapuera, Anauá e Jatapuzinho ainda concentram centenas de habitantes e continuam a
se identificar como comunidades waiwai, mas há uma dificuldade de saber o número atual de
seus moradores, devido ao fluxo populacional recente. A dispersão está relacionada a vários
fatores, entre eles: a dificuldade de prover alimento (produtos da roça, caça e pesca) para a
1
Outras aldeias tem sido fundadas na mesma região graças a um movimento de dispersão da comunidade
Hixkaryana, que passou por um processo de aglomeração semelhante ao dos Waiwai, abordado a seguir.
1
população aglomerada nessas grandes aldeias, cujas regiões circundantes vêm sendo
sistematicamente exploradas há muitas décadas; e disputas políticas internas até então
deixadas em segundo plano em favor da construção dos coletivos abrangentes waiwai
(Queiroz, 2008:221).
Fonte: Queiroz, 2008.
Figura 01. Mapa das Terras Indígenas habitadas pelos Waiwai no Brasil: Wai-Wai,
Nhamundá-Mapuera e Trombetas-Mapuera
2
Os dados mais recentes sobre a população waiwai na Guiana são de 2006 (ISA, 2006).
Naquele ano, existiam no país duas aldeias que se identificavam como waiwai: Masakinyari e
2
O mapa reflete a situação das Terras Indígenas no ano de 2008. Em Janeiro de 2010 Trombetas-Mapuera foi
homologada pelo presidente Lula.
2
Erepoimo
3
. Seus moradores possuíam parentes em aldeias waiwai no Brasil, e os
intercâmbios entre os dois lados da fronteira eram freqüentes. Essas aldeias waiwai também
abrigavam, além dos grupos citados anteriormente, índios wapixana provenientes das savanas
da Guiana. Metade dos 70 moradores de Erepoimo era wapixana e a população de
Masakinyari variava entre 130 e 170 pessoas, conforme a presença de famílias wapixana, que
oscilava constantemente, e também conforme a estação do ano e do fluxo de visitas entre
aldeias. Masakinyari ficava mais ao sul, no alto curso do rio Essequibo, enquanto Erepoimo
ficava no rio Kuyuwini, um afluente ocidental do Essequibo. A localização dessa última
aldeia era estratégica, por permitir um maior acesso às cidades guianenses de Lethem e
Bonfim (esta localizada exatamente na fronteira com o Brasil), às aldeias wapixana e makuxi
nas savanas, e também à cidade brasileira de Boa Vista.
Fonte: Silva, 2005.
Figura 2: Mapa da região administrativa habitada pelos Waiwai na Guiana: Upper Takutu-
Upper Essequibo
Os grupos que vivem nas comunidades waiwai e se identificam como waiwai são, em
sua maioria, falantes de línguas da família caribe: os Parukoto, Taruma, Xerew, Katuena,
Tunayana, Karapawyana, Yukwaryana, Tikyana, Kaxuyana e Xowyana. A única exceção são
3
Erepoimo é também o nome de uma antiga aldeia waiwai no Essequibo, que existiu entre o fim dos anos 1940 e
início da década de 1950 (Fock, 1963:32).
3
os Mawayana, falantes de uma língua aruak. Sua aglomeração em poucas aldeias foi fruto de
um longo processo desencadeado pelo contato indireto e direto com não-índios, iniciado a
partir do século XVIII com as ocupações holandesa da Guiana e portuguesa do Brasil. As
fontes históricas sobre os primeiros contatos desses índios com segmentos das sociedades
nacionais (registros de cronistas, documentos administrativos oficiais e registros missionários)
apontam para a existência de uma ampla rede nativa de intercâmbios, por onde circulavam
objetos, técnicas, rituais e pessoas; e também para um constante movimento de fusão e
dispersão como característica estrutural desses grupos, que compartilhavam diversos traços
sociocosmologicos (Dias Junior, 2005; Queiroz, 2008). Esses intercâmbios se intensificaram
com o grande decréscimo populacional indígena decorrente da ampliação das atividades
coloniais na região. Graças aos intercasamentos, fusões e assimilações, os grupos que hoje se
identificam como Waiwai continuam existindo (Queiroz, 1999).
A sedentarização aconteceu dois séculos depois, do final da década de 1940 em diante,
com o estabelecimento de missionários evangélicos norte-americanos da Unevangelized
Fields Mission (UFM) na região. Sua estratégia de evangelização envolveu a atração de um
grande contingente indígena para as imediações da sua base de trabalho na Guiana. Os índios
atraídos eram provenientes também do território Brasileiro, e foram alfabetizados em waiwai,
para que assim pudessem ler a Bíblia, traduzida pelos missionários. De acordo com Robert
Hawkins, missionário pioneiro e responsável pelo trabalho de grafia da língua e tradução da
Bíblia, a língua waiwai conhecida hoje era na verdade uma língua franca utilizada pelos
grupos da região na época em que a missão ali se estabeleceu, uma mistura de outra língua
caribe, falada pelos Parukoto, com a língua dos Waiwai originários. Os comerciantes,
pesquisadores e, principalmente, os próprios missionários passaram a chamar de waiwai todos
aqueles que utilizavam essa língua franca:
“Realmente, não existe em nossos dias um grupo chamado ‘Uaiuai’, pois o
último membro do grupo desse nome morreu há mais de 20 anos. Os
indígenas chamados de Uaiuai pela civilização majoritária são
remanescentes dos povos Mauayana, Hixkaryana, Katuena, Xereu, Karapó
Yana, Cikyana, Tuuna Yana e Parukoto. Havia, até recentemente, um par de
homens que falava essa língua, mas ambos morreram; há também um
homem Atroari que vive entre os Uaiuai e duas mulheres Tirió casadas com
homens Uaiuai. Todos esses elementos remanescentes possuem suas
próprias línguas ou dialetos, alguns deles bastante semelhantes ao Uaiuai e
outros bem diferentes. A língua da autêntica etnia Uaiuai se assemelhava
muito à do povo Parukoto. Estas duas línguas combinavam para formar a
língua franca de todos os grupos remanescentes, e quase todos os que
convivem com falantes dos Uaiuai também falam a língua fluentemente,
embora alguns deles prefiram falar sua própria língua em casa. Foram
4
visitantes da civilização majoritária que batizaram de Uaiuai o grupo inteiro
que utiliza essa língua.” (Hawkins, s.d.:1 apud Queiroz, 2008:207).
Um nativo informante de Howard, antropóloga norte-americana que estudou os
Waiwai na década de 1980, afirmou não saber que era um waiwai até os missionários
chegarem à região e lhe informarem sobre isso:
We hardly ever heard the name “Waiwai” until the missionaries came
saying, “Yes! That is what your neighbors call you, ‘Waiwai, Waiwai, those
are the Waiwai’ is what they keep saying”. “Is that so?” We said. “Well, you
can call us that if you like”. So that’s what they continued to call us. Now
when a visitor like you asks what our name is, we say, “We’re called
‘Waiwai’, that’s apparently what our name is”. But we didn’t used to call
ourselves anything; we felt too shy to use our names (Kwarunma,
20/10/1986 apud Howard, 2001:47).
Os documentos mais antigos sobre a existência de índios chamados Waiwai datam da
primeira metade do século XVIII (cf. Bos, 1985 apud Howard, 2001:49). Nos séculos XIX e
XX, antes da chegada dos missionários, pesquisadores que percorreram a região também
encontraram índios que se consideravam Waiwai (cf. Schomburgk, 1843,1845; Fock, 1963:5-
6). O termo “waiwai” tem origem wapixana, e significa “tapioca” nessa língua. Há duas
explicações fornecidas pelos Wapixana para a atribuição desse nome aos Waiwai: uma
referência à cor mais clara da pele desses últimos, em comparação à cor da pele wapixana; e a
grande quantidade de bebida de mandioca servida pelos Waiwai aos visitantes durante as
festas em suas aldeias (Fock, 1963:9; Howard, 2001:46)
4
. Além dos Waiwai terem adotado
esse nome para si, é significativo o fato dos Wapixana terem atuado como guias de todos os
não-índios que registraram suas visitas à região até meados do século XX – o que contribuiu
para que os Waiwai ficassem conhecidos com esse nome nos documentos e na literatura da
época.
Quando os primeiros antropólogos realizaram pesquisas no alto Essequibo havia
quatro anos que os missionários haviam se estabelecido ali. Nessa época foi observado que
apesar do grande número de indivíduos provenientes de grupos diversos e do pequeno número
de Waiwai “originais”, o grupo formado pela fusão destes continuava se considerando
waiwai. Um desses antropólogos, Niels Fock, define o grupo waiwai encontrado em 1954
como sendo
4
Para Howard a diferença de cor entre os Waiwai e os Wapixana deve-se à maior exposição dos últimos ao sol,
já que eles vivem numa região de savanas, onde a vegetação é baixa, e os Waiwai vivem no meio de uma floresta
densa que os protege dos raios solares (2001:46).
5
thus of mixed origin, racially dominated by the Parukoto, though
linguistically the Waiwai seem to have held their own. Culturally they must
be considered as a mixture of – at all events – original Waiwai, Parukoto,
Taruma and Mouyenna (1963: 9).
O principal informante de Fock, o xamã Ewká, teria afirmado que na verdade ele e os
demais waiwai eram parukoto, só existindo dois indivíduos waiwai “originais” (Fock,
1963:235). Ao longo dos anos, essa afirmação da existência de apenas dois ou três indivíduos
“verdadeiramente waiwai” foi freqüentemente ouvida pelos antropólogos (Howard,
2001:405). Frikel, um missionário franciscano que realizou estudos lingüísticos e
antropológicos na região setentrional do Pará a partir dos anos 1950, sugere que o nome
Parukoto identifica não apenas um grupo específico, mas é também uma denominação
genérica utilizada pelos grupos das proximidades do rio Mapuera (Frikel, 1958 apud Queiroz,
2008:205). Essa hipótese parece correta para Queiroz, um antropólogo que tem estudado os
Waiwai desde o início dos anos 1990. Pois nos dias de hoje, tanto os Waiwai como os
Hixkaryana, Xerew, Katuena e outros grupos afirmam que “na verdade” são Parukoto
(Queiroz, 2008:205). Um dos principais informantes nativos de Howard chamava-se Yewira,
e fazia parte do grupo inicialmente contatado pelos missionários no alto Essequibo no final
dos anos 1940. Na década de 1980, Yewira costumava identificar-se e ser identificado pelos
seus co-residentes como um dos únicos waiwai “verdadeiros”. Contudo, para surpresa da
antropóloga, certo dia fez a seguinte confissão:
There’s something I think you ought to understand. Everyone says “We’re
Waiwai”, “We’re Waiwai”. Well, they’re just talking. But you should know
that no one here is really Waiwai (Waiwai xa). None of us is Waiwai! The
last few original Waiwai (Waiwainhîrî komo) were Kîmîywa, Porîxa, and
Tupuna, but they already died, oh dear. All the rest of us are something else.
Even those of us who claim to be true Waiwai are actually Parukwotho. We
just call ourselves “Waiwai”, but we’re not really. That’s how it is with us.
(Yewira, 17/07/1986 apud Howard, 2001:404)
Diante desse contexto etnográfico, os antropólogos que realizaram suas pesquisas
entre os Waiwai nas últimas décadas realçaram a necessidade de considerá-los e os outros
grupos da região num quadro amplo, que dê conta dos deslocamentos e intercâmbios
historicamente estabelecidos entre eles. A definição do que é ser Waiwai tem a ver com essas
múltiplas relações entre os grupos nativos da região e desses grupos com os não-índios – e
6
não com a busca da reconstituição de uma “origem” ou de uma “pureza” étnica perdida no
passado (Queiroz, 2008; Dias Junior, 2005; Howard, 2001).
Hoje em dia o nome Waiwai é utilizado pelos nativos de duas maneiras: para referir-se
aos membros “originais” das aldeias “waiwai” inicialmente contatadas pelos missionários da
UFM, e que formaram o núcleo ao redor do qual outros grupos se agregaram ao longo do
tempo; e para identificar os membros desses novos agregados de forma mais ampla, unidos
por laços de solidariedade, cuidados mútuos e pelo compartilhamento de um código de
conduta que os grupos “de fora”, por definição, não seguem (Howard, 2001:83,86).
Esse código de conduta waiwai é marcado pela moral cristã, em sua versão evangélica
fundamentalista – introduzida pelos missionários norte-americanos da Unevangelized Fields
Mission. Esses missionários são fundadores, no Brasil, da Missão Evangélica da Amazônia
(MEVA). Ao contrário de grupos ameríndios que ao longo dos anos mostraram uma relação
inconstante com a religião cristã, alternando períodos de empenho religioso com períodos de
apostasia, os Waiwai apresentam uma estabilidade em sua trajetória há quase sessenta anos
5
.
Além de permanecerem evangélicos desde meados dos anos 1950, e de terem assumido a
liderança de sua própria igreja nos anos 1960, os Waiwai empreenderam uma série de viagens
missionárias em direção a outros grupos indígenas. Alguns desses grupos foram atraídos para
morar em suas aldeias, e gradualmente evangelizados e socializados segundo o ideal waiwai
de pessoa tawake, pacífica (Howard, 2001). Esse ideal repousa sobre uma noção nativa de
pessoa, onde a reciprocidade e a generosidade são aspetos centrais, mas também remete ao
universo cristão, especialmente aos temas do amor ao próximo, da confissão dos pecados, e da
vida eterna concedida por Deus (Idem). Apesar da importância conferida pelos Waiwai à sua
própria conversão, à sua experiência com Deus e com a Bíblia, e da centralidade dos pastores
na sua organização política, somente na última década trabalhos antropológicos sobre esse
grupo tomaram o cristianismo como uma questão
6
.
A falta de interesse dos antropólogos pelo cristianismo entre grupos nativos não é um
fenômeno isolado, e tem sido analisada por diversos autores (Harding, 2001; Robbins,
2004,2007; Fienup-Riordan, 1991). No contexto melanésio, apesar da grande maioria da
população nativa ter se tornado cristã nos últimos 150 anos, e do cristianismo exercer uma
influência poderosa em todos os níveis da vida local, os trabalhos antropológicos publicados
até os anos 1990 sequer mencionavam o assunto, ou apenas tangenciavam-no, apresentando
5
Exemplos dessa inconstância em Viveiros de Castro, 2002 e Vilaça, 2008.
6
“Conversão” é uma categoria utilizada pelos próprios Waiwai para definir sua transformação em direção ao
cristianismo (Howard, 2001:342).
7
uma imagem cada vez mais distante da situação encontrada em campo pelos pesquisadores
(Barker, 1992:145-147). Uma ausência semelhante do cristianismo na etnografia amazônica
tem sido apontada em trabalhos recentes (Vilaça, 2008; Vilaça & Wright, 2009; Montero
2006). Algumas razões possíveis desse silêncio dos antropólogos, mencionadas pelos
estudiosos do assunto, envolvem o fato do cristianismo ser uma expressão da ideologia
ocidental que aparentemente dissolve a diferença radical representada pelos grupos estudados,
diferença que é a própria matéria da reflexão antropológica. Além disso, o fato do
cristianismo como explicação do mundo ter sido rejeitado, de maneira geral, pela tradição
intelectual que fundou a antropologia faz dos nativos cristianizados uma imagem repugnante
que poucos pesquisadores desejam estudar.
Nos últimos anos, trabalhos que buscam examinar o cristianismo a partir do contexto
cosmológico dos grupos ameríndios convertidos têm sido publicados por alguns antropólogos
(Viveiros de Castro, 1992; Vilaça, 1996, 2007, 2008; Fausto, 2005; Vilaça & Wright, 2009).
A presente dissertação pretende ser uma contribuição para esse campo nascente de estudos,
que parte de questões levantadas pela etnografia amazônica recente para examinar as
interações dos índios com a religião cristã. Trata-se de um trabalho bibliográfico sobre o
cristianismo dos Waiwai em seus primeiros anos, no qual lanço mão da rica etnografia
disponível sobre esse grupo – muito estudado em comparação a outros grupos amazônicos.
Esses trabalhos etnográficos servem como contraponto aos relatos dos missionários sobre a
conversão dos Waiwai, dos quais também lanço mão. Minha intenção, através do cotejamento
das informações trazidas por essas duas fontes, é captar qual seria o ponto de vista dos nativos
sobre a sua própria transformação em “índios evangélicos”. Nesse sentido, observo que o
cristianismo waiwai assumiu feições próprias, que o distinguem do cristianismo inicialmente
introduzido pelos missionários, e que essa originalidade decorre da operação de princípios
cosmológicos nativos, relacionados principalmente à noção de pessoa.
Os trabalhos antropológicos já publicados sobre os Waiwai têm tratado o cristianismo
nativo de maneiras distintas. A primeira monografia publicada sobre esse grupo foi escrita
pelo antropólogo dinamarquês Niels Fock, do Museu Nacional da Dinamarca, a partir de uma
pesquisa de campo realizada nos anos de 1954-1955 (Fock, 1963). Esse trabalho é uma
etnografia clássica que contém informações valiosas sobre a cosmologia e a organização
social waiwai, e ainda hoje é referência para os estudos sobre a região. Como mencionei
anteriormente, na época da pesquisa de Fock havia quatro anos que os missionários da UFM
viviam entre os Waiwai no alto Essequibo. A conversão generalizada dos índios só viria a
acontecer no ano de 1956 (cf. Dowdy, 1997). Contudo, Fock publicou seu trabalho apenas em
8
1963, e no prefácio fez a seguinte observação sobre os impactos da presença missionária após
sua saída do campo:
The expedition remained with the Waiwai only from October 1954 to
January 1955; shortly after, missionary zeal brought about such profound
acculturation that any further adequate field studies were made possible.
(1963:I).
Nos dois últimos parágrafos de seu trabalho ele volta ao tema, e enumera uma série de
mudanças ocorridas entre os Waiwai após a convivência permanente com os missionários,
especialmente após a conversão da maioria do grupo em 1956: a valorização dos objetos
industrializados, acompanhada por um esforço cada vez maior para obtê-los; a proibição da
poligamia, do uso de bebidas fermentadas e do tabaco; o abandono da casa comunal em favor
de casas menores; o surgimento de uma consciência sobre o pecado, entre outras. Sua
conclusão sobre o assunto, que é também a conclusão da monografia, é a seguinte sentença:
“The Waiwai culture, which in 1955 was vigorous and in the main unaffected by civilization,
has already ceased to exist” (1963:242). Pessimismo semelhante, relativo à visão dos Waiwai
como vítimas passivas de um processo de ocidentalização encabeçado pelos missionários,
perpassa o trabalho da arqueóloga dinamarquesa Jens Yde, integrante da mesma expedição
que levou Fock ao alto Essequibo. Em 1965 a pesquisadora publicou uma monografia sobre a
cultura material waiwai. No prefácio, ela justifica a importância da pesquisa de Fock com a
seguinte afirmação:
He [Fock] proceeded to the work with great enthusiasm, and took notes for a
treatise on Waiwái religion and society, which was published already in
1963, a fine work which will stand in the future when everything reminding
of this tribe has disappeared (1965:I).
A idéia de que as mudanças decorrentes do contato sinalizavam o fim da alteridade
representada pelos Waiwai justificava o esforço desses dois pesquisadores para registrar o
modo de vida dos índios.
Duas décadas depois, trabalhos publicados pelo antropólogo inglês George Mentore
demonstraram uma atitude quase oposta em relação ao cristianismo waiwai. Mentore realizou
sua pesquisa em uma aldeia na Guiana, no final dos anos 1970, e defendeu sua tese de
doutorado em 1984, na Universidade de Sussex. Infelizmente não consegui uma cópia desse
trabalho, cujo tema é a economia política de Shepariymo, aldeia waiwai onde ele realizou a
pesquisa. Mas outros escritos do mesmo autor, publicados naquela mesma década e também
9
nos anos 1990 e 2000, são marcados pela negação de qualquer grande transformação
experimentada pelos nativos após a conversão. Por exemplo, em um livro recente o autor
menciona que o líder de Shepariymo era também um pastor evangélico, pastor principal entre
outros pastores da igreja waiwai naquela aldeia (2005:149). Mas essa revelação não é
acompanhada por uma reflexão sobre o lugar das práticas e idéias cristãs entre os mesmos
Waiwai. A revelação chega de fato a causar um choque no leitor, pois em todos os outros
momentos da narrativa tudo se passa como se os Waiwai não tivessem sido influenciados pelo
cristianismo trazido pelos missionários. A mudança mais significativa após o contato
permanente com a missão apontada por esse autor diz respeito ao aprendizado da escrita:
One feature of Protestant missionary evangelizing among the Waiwai has
been their development of a written form of the Wawai language through the
translation of the Bible and a number of hymns. An undeniable effect of this
achievement has been the group pride displayed by the Waiwai in the
knowledge that they have Kavita (writing) just like the Brazilians and
Guyanese, and are, therefore, like them culturally one step in front of those
many Amerindian groups who don't have a written language. (1987:526)
Após Mentore, foi a vez de Catherine Howard realizar pesquisas entre os Waiwai. Ela
esteve em aldeias do Brasil entre 1984 e 1986. Em seus trabalhos – uma série de artigos e uma
tese de doutorado defendida em 2001, na Universidade de Chicago – o cristianismo é tratado
pela primeira vez como uma questão relevante do ponto de vista nativo. Howard afirma que o
contato permanente com os missionários da UFM e, posteriormente, com agentes
governamentais, foi acompanhado por transformações profundas entre os Waiwai. Mas ao
contrário de Fock e Yde, ela sugere que essas transformações são ativamente produzidas pelos
nativos:
Fock’s blanket assertion that Waiwai culture had “ceased to exist”
(1963:242) was a facile dismissal of the strength and resilience it continues
to reveal. Their culture has demonstrated a surprising capacity to transform
outside influences into distinctive Waiwai traits with a persistence that that
remained unsuspected at the time of Fock’s requiem (Howard, 2001:5).
Uma dessas influências externas transformadas em traços distintivos waiwai é justamente o
cristianismo. O engajamento em relações com os missionários e com o Deus cristão aparece,
na obra de Howard, como uma maneira pela qual os Waiwai buscam domesticar poderes
ameaçadores da sociedade ocidental, e canalizá-los em seu benefício. Ao contrário de outros
10
grupos nativos que buscam afirmar sua autonomia ao negar ou desfazer alianças com os
ocidentais, os Waiwai
pursue external contacts with vigor, submit them to control, assimilate their
potencies, and funnel them towards ends that enhance the continued vitality
of society. In short, their aim is mastery, not renunciation of relations with
the outside; they seek to convert external powers in something “Waiwai-
ized” and thereby expand their control over their surroundings, even when
Western society attempts to constrain it. (Idem, :409-410).
A abertura ao cristianismo enquanto influência externa é vista, portanto, como uma forma de
resistência dos Waiwai, certamente mais sutil do que a recusa aberta à religião ocidental
demonstrada por outros grupos indígenas que nunca se converteram, mas igualmente efetiva.
A partir dos anos 1990, antropólogos brasileiros também se dedicaram a estudar os
Waiwai. Em 1991 e 1994, Ruben Caixeta de Queiroz realizou pesquisa de campo e filmagens
na aldeia Mapuera. Sua tese de doutorado, defendida em 1998 na Universidade de Paris X,
não é um trabalho de antropologia stricto sensu, e dialoga com conceitos da disciplina em
uma discussão mais ampla sobre a linguagem cinematográfica
7
. No ano seguinte, o mesmo
autor publicou um artigo sobre a conversão do xamã e líder Ewká, primeiro waiwai a aceitar a
mensagem dos missionários e a se tornar pastor (Queiroz, 1999). O foco desse artigo, a ser
melhor examinado nos capítulos seguintes desta dissertação, é o papel dos remédios
alopáticos trazidos pelos missionários no processo de conversão dos nativos, que na época
enfrentavam uma série de epidemias decorrentes do contato. O autor também relaciona a
conversão à possibilidade de realizar um anseio já manifestado por eles antes da conversão: o
de atingir a imortalidade.
O antropólogo Carlos Machado Dias Junior realizou pesquisas entre os Waiwai de
diversas aldeias no Brasil entre os anos de 1997 e 1999, e em 2003 e 2004. Sua dissertação de
mestrado foi defendida em 2000, e sua tese de doutorado em 2005, ambas na Universidade de
São Paulo. Nesses trabalhos, a conversão dos Waiwai ao cristianismo aparece como uma
estratégia nativa para a construção de um novo tipo de coletivo (as “comunidades waiwai”),
que já se configurava pela aglomeração de diversos grupos ao redor da base da missão
evangélica na Guiana. O autor sugere que a evangelização atendia ao mesmo tempo aos
interesses dos índios e dos missionários, selando um “acordo” entre essas duas partes:
enquanto os missionários desejavam convencer os índios da soberania do Deus cristão, os
7
O título dessa tese é Les Waïwaï du Nord de L'Amazonie (Brésil) et La Rencontre Interculturelle: Un Essai
d'Anthropologie Filmique.
11
Waiwai viam na alfabetização em uma só língua e na adoção de um código de conduta
pacífico um meio de compor um novo contexto de casas aglomeradas. As idéias desse autor
serão discutidas no segundo capítulo.
Além dos autores acima mencionados, outros antropólogos realizaram pesquisas
entre os Waiwai. Jorge Manuel Costa e Souza pesquisou na aldeia Jatapuzinho em 1997,
durante seu mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina. Infelizmente não consegui
uma cópia de sua dissertação, defendida em 1998. Stephanie Weparu Aleman pesquisou os
Waiwai da Guiana entre 1997 e 2002, período no qual era ligada à Universidade de
Wisconsin. Essa autora apresentou trabalhos sobre os Waiwai em alguns encontros de
etnologia fora do Brasil, mas não consegui obter cópias desses escritos. Finalmente, em 2001,
2002 e 2003, Evelyn Schuler Zea, então da Universidade de Bern, na Suíça, e pesquisadora da
Universidade de São Paulo, pesquisou na aldeia Jatapuzinho. A maioria dos seus trabalhos foi
escrita em alemão. Em um único artigo em inglês enviado a mim pela autora, o foco é uma
teoria nativa do conhecimento, analisada a partir das relações dos waiwai com a alteridade e
de um debate transdisciplinar sobre metáfora e tradução (Schuler Zea, 2007).
Apesar desta dissertação ser essencialmente bibliográfica, tive a oportunidade de estar
em duas aldeias waiwai entre janeiro e fevereiro de 2007. Na ocasião, trabalhei como
assistente em uma oficina de capacitação em registros audiovisuais (fotografia e vídeo) que
integrava as atividades de demarcação e vigilância da Terra Indígena Trombetas-Mapuera. O
professor Ruben Caixeta de Queiroz, meu orientador na época da graduação na UFMG, foi o
antropólogo coordenador dos estudos para regularização dessa TI, e também das atividades de
demarcação. As oficinas aconteceram em Mapuera, Jatapuzinho e Cassauá, esta última uma
aldeia hixkaryana, e duraram cerca de um mês ao todo. A curta duração dessa viagem, e a
intensidade das atividades programadas, me impediram de circular livremente e acompanhar
os índios em todas as suas atividades cotidianas, mas a experiência de estar com os Waiwai e
com os Hixkaryana foi muito importante para este trabalho, já que eu pude formar uma
imagem mais rica dessas pessoas, e de como elas vivem. Também pude participar de um culto
evangélico na igreja waiwai em Mapuera, quando fui apresentada à comunidade junto com o
restante da equipe da FUNAI. Embora minhas experiências nas aldeias não sejam discutidas
neste trabalho, pretendo estar novamente em campo em pesquisas futuras, quando poderei
aprofundar as reflexões desenvolvidas aqui.
A presente dissertação contém dois capítulos e conclusão. O primeiro possui cinco
seções. Inicio com um histórico dos contatos documentados de não-índios com os Waiwai. Os
efeitos desses contatos para os nativos serão discutidos a partir do lugar ocupado pelos
12
estrangeiros em sua cosmologia, tema abordado em trabalhos de Howard (2001, 2002). Uma
ênfase especial é dada à convivência permanente com os missionários da UFM, iniciada a
partir de 1950. Nas outras quatro seções do primeiro capítulo, busco traçar um perfil desses
missionários e do cristianismo introduzido por eles. Os pressupostos que guiaram sua atuação
ente os Waiwai são contextualizados num quadro histórico e teológico mais amplo, que
também elucida alguns dos aspectos mais gerais do cristianismo que se desenvolveu entre os
índios.
O segundo capítulo também possui cinco seções, e seu foco é o cristianismo dos
Waiwai. A partir da etnografia produzida sobre esse grupo, procuro discutir como o
cristianismo apresentado pelos missionários foi pensado e experimentado pelos índios,
assumindo características próprias que remetem a temas da sua cosmologia. Na primeira
seção, apresento a personagem-chave do processo de conversão dos Waiwai, o xamã e líder
Ewká. Ele foi o primeiro a aceitar os ensinamentos dos missionários, e influenciou o restante
dos Waiwai a acompanhar sua decisão. Também examino, nessa seção, como os papéis de
liderança são definidos tradicionalmente entre os Waiwai. Na segunda seção, examino como a
transformação de Ewká em cristão é descrita pelos missionários. Discuto a aplicabilidade da
idéia da conversão como um processo individual e sugiro que entre os Waiwai ela aparece, ao
contrário, submetida a uma lógica nativa de fabricação do parentesco. Na terceira e quarta
seções do segundo capítulo, continuo analisando a conversão de Ewká, mas focalizo as idéias
waiwai sobre as doenças e sobre a natureza da relação do xamã com seus animais
preferidos/espíritos auxiliares. Minha intenção nessas seções é discutir como a conversão de
Ewká e dos demais Waiwai deu-se pela transformação da relação com a alteridade
representada pelos animais/espíritos. Na última seção do segundo capítulo, busco examinar
melhor as relações entre as pessoas que compõem as aldeias waiwai.
Na conclusão, retomo o problema do individualismo e do cristianismo como
reconfiguração das relações dos Waiwai com diversos “outros” – animais, espíritos,
missionários, grupos indígenas – para discutir sobre a transformação dos xamãs em pastores
após a conversão.
13
CAPÍTULO 1
Os primeiros contatos e as razões dos missionários
Histórico dos primeiros contatos
A convivência freqüente dos Waiwai com não-índios deu-se a partir dos anos 1950,
quando missionários evangélicos norte-americanos estabeleceram-se às margens do alto rio
Essequibo, na Guiana (Fock, 1963:9; Howard, 2001:57). A densidade da floresta e a
quantidade de corredeiras nos rios da região, bem como no lado brasileiro da Serra Acaraí,
tornavam o acesso às aldeias extremamente difícil, até mesmo para exploradores experientes
(Schomburgk, 1840:168; Guppy, 1958:7; Yde, 1965:2). Contudo, apesar do relativo
isolamento, os grupos que ali se encontravam já experimentavam os efeitos do contato
indireto com as frentes de colonização, por vezes desastrosos, há pelo menos dois séculos.
A colonização holandesa do baixo Essequibo, impulsionada a partir da segunda
metade do século XVII pela produção açucareira, impeliu comerciantes para o interior da
Guiana, em busca de produtos e escravos indígenas. Canoas, redes, madeiras, gomas, tinturas
(notadamente o urucum, valorizado na indústria têxtil) e índios aprisionados eram trocados
por armas de fogo, roupas de algodão, machados, facas, anzóis, sal, açúcar, bebidas
alcoólicas, pentes, espelhinhos e miçangas de vidro e coral (Farage, 1991:86,88-89). Esse
comércio desenvolveu-se sobre as redes já existentes de trocas intertribais, e utilizando
intermediários nativos, propagou-se por territórios muito distantes da costa guianense,
chegando a domínios coloniais portugueses e espanhóis
8
. Em 1719, por exemplo, colonos
portugueses encontraram diversas facas, espelhos e miçangas de fabricação holandesa em
uma aldeia na região do rio Branco, provavelmente adquiridos por meio de trocas com outros
índios da região do Essequibo (Idem, :76-77,85).
Data dessa mesma época o relato mais antigo sobre a existência de índios “waiwai”.
Entre 1718 e 1721, um comerciante judeu-holandês chamado Gerritt Jacobs, que era também
escravizador de índios, cruzou a Serra Acaraí duas vezes. Em sua segunda viagem, foi
acompanhado por Salomon Sanders, um mineralogista enviado pelo governo do Suriname
para investigar sobre a existência de metais preciosos na região. Os relatórios de Sanders,
traduzidos recentemente do holandês para o inglês, comentam rapidamente sobre grupos Weij
8
Documentos coloniais mencionam índios caribe que capturavam outros índios como escravos em regiões
remotas da floresta amazônica, atuando como mediadores nessa rede comercial com os holandeses (Farage,
1991:98).
14
weij, Itoniaanen, Drijanen e Atoujaline, hoje conhecidos como Waiwai, Tunayana, Tiriyó e
Atorai (Bos, 1985 apud Howard, 2001:49; Mentore, 2005:70). Nos relatórios transparecem a
curiosidade e a cobiça despertadas nos europeus por esses índios. Em sua primeira viagem,
Jacobs teria visto um adorno nasal de ouro em um dos nativos, e ao voltar para o Suriname
espalhou a notícia sobre uma montanha de ouro e prata escondida na floresta. A esperança de
encontrar a montanha – que nunca foi realizada – motivou sua segunda viagem à região
(Mentore, 2005: 71).
Incursões de apresamento de índios no alto curso do Essequibo aconteceram na
segunda metade do século XVIII, acompanhadas por violências notórias – os documentos da
administração colonial holandesa mencionam maus tratos, abuso sexual de mulheres e
incitamento de guerras intertribais (Farage, 1991:98-99). Essas incursões ao sul da Guiana
perderam o fôlego a partir de 1790, com a alternância de posse dos estabelecimentos coloniais
entre ingleses, franceses e holandeses, e com a proibição do tráfico de escravos índios em
1793. Todavia, as mercadorias holandesas continuavam circulando pelas redes intertribais nas
primeiras décadas do século seguinte, quando o geógrafo prussiano Robert Schomburgk,
encarregado pelo governo britânico de explorar o interior da Guiana entre 1835 e 1844,
encontrou grande quantidade de terçados, machados novos, facas e tesouras de fabricação
holandesa, além de miçangas, em aldeias pianokoto em um afluente do Trombetas (Howard,
2002:32)
9
. Esses manufaturados eram obtidos em trocas com outros índios e com quilombolas
do Suriname
10
. Schomburgk também observou instrumentos de ferro e adornos de miçangas
em aldeias dos Mawayana, parceiros de troca dos Taruma, que por sua vez eram afamados na
região por suas tangas de miçangas
11
.
Também o aprisionamento de escravos indígenas por portugueses atingiu a região dos
antepassados dos Waiwai. No final do século XVII, a atividade já era realizada por colonos ao
longo dos rios Branco e Amazonas (Frikel, 1970:38; Farage 1991:55). Nas duas primeiras
décadas do século XVIII, o padre carmelita Jerônimo Coelho foi acusado de escravizar
centenas de Taruma na aldeia Santo Elias dos Tarumazes, no rio Negro. A missão utilizava o
9
Os relatórios das viagens de Shomburgk à Guiana foram integralmente publicados pela primeira vez em 2006,
com o título The Guiana Travels of Robert Schomburgk 1835-1844. A obra tem dois volumes, editados por Peter
Rivière. Volume I: Explorations on behalf of the Royal Geographical Society 1835-1839. Volume II: The
Boundary Survey 1840-1844. London: Ashgate for The Hakluyt Society, Series III, Volumes 16 e 17.
10
Segundo Frikel e Howard, os Pianokoto seriam um grupo Tiriyó (Frikel, 1971:12; Howard, 2002:31). Para
Mentore, os Pianoko eram o mesmo grupo, senão um grupo relacionado aos Parukoto (Mentore, 2005: 73).
11
Os Parukoto, após fugirem de expedições de caça a escravos e serem praticamente dizimados por doenças
ocidentais, foram assimilados em aldeias waiwai (Fock, 1963:234-235; Queiroz, 2004:19). Os Mawayana, por
sua vez, foram um dos primeiros grupos a se unir aos Waiwai, logo após o estabelecimento dos missionários na
região do Essequibo (Dowdy, 1963:227; Howard, 2001:287).
15
trabalho dos índios para coletar cacau, fabricar canoas, panos e manteiga de tartarugas.
Documentos atestam que os negócios do missionário chegavam até a bacia do rio Branco, e
de lá, através de um sócio português que comerciava clandestinamente com os holandeses, até
o Essequibo (Farage, 1991:56,60). Nesse período, um grande número de índios aprisionados
como escravos nos rios Negro e Branco foi transferido para os holandeses, em troca de
produtos manufaturados cujo fornecimento pela colônia portuguesa era minguado.
Possivelmente esses Taruma negociados com os holandeses são antepassados dos Taruma que
no século seguinte apareceram no alto Essequibo e mais tarde se uniram aos Waiwai (Colson
& Morton, 1982 apud Howard, 2002:31).
12
Outra grande quantidade de índios proveniente dos rios Negro e Branco foi utilizada
como mão-de-obra na própria colônia portuguesa. No Orinoco, aldeamentos Jesuítas serviam
ao mesmo fim de apresamento (Farage, 1991:73). Índios Hixkaryana e Xerew “descidos” do
Trombetas eram escravizados na Fortaleza dos Pauixís, na garganta do Amazonas, e também
aldeados numa missão católica no baixo Nhamundá, entre 1925 e 1750 (Frikel, 1958:181
apud Howard, 2002:31; Frikel 1970:38). A escravização em massa seguiu de vento em popa
até uma epidemia de sarampo assolar toda a região, entre 1740 e 1750. Disseminado por
expedições de captura, o vírus causou incontáveis mortes entre a população indígena aldeada
nas missões e escravizada nas fazendas e fortes, agravando o desastre social e demográfico
que já se configurava com a escravização. Os índios que não morreram nos aldeamentos
revoltaram-se e fugiram, levando a doença para regiões distantes no interior da floresta.
Aldeias inteiras desapareceram nessa época, espalhando um verdadeiro pavor entre a
população indígena, que repercutiu até nas colônias vizinhas, holandesa e espanhola (Frikel,
1970:39; Farage, 1991:72). Basta considerar a amplitude da rede de intercâmbios que
promoveu a distribuição de objetos manufaturados entre os nativos amazônicos na época para
imaginar a proporção do défict populacional indígena provocado por essa epidemia. Sabe-se
que uma das conseqüências desses desastres coloniais foi a fuga em massa de indígenas para
territórios mais afastados, e a migração dos antepassados dos Waiwai para o alto Mapuera e
Trombetas (Howard, 2002:31).
O século XIX não começou melhor. No final da década de 1820 uma epidemia de
gripe assolou os Wapixana nas savanas da Guiana (Farage, 1992:270). A gripe pode ter
atingido os Waiwai, visto que fontes posteriores mencionam relações freqüentes entre os dois
12
Não encontrei em bibliotecas do Brasil o referido artigo de Colson e Morton no qual, segundo Howard, há um
resumo sobre essa conexão entre os Taruma do rio Negro e os do Essequibo. A pesquisa documental de Farage
aponta no mesmo sentido dessa hipótese. Guppy menciona que os Taruma eram considerados extintos até serem
encontrados por Schomburgk no Essequibo em 1837 (1958:32).
16
grupos. Os Wapixana eram fornecedores de manufaturados – que obtinham diretamente dos
brancos – para os Waiwai e grupos vizinhos no interior da floresta, e serviram como guias em
muitas das expedições realizadas para a região no século XIX e começo do século XX
(Schomburgk, 1843, 1845 e 1848; Guppy, 1958; Dowdy, 1963; Howard, 2002:33). Dowdy
relata que na época da chegada dos missionários norte-americanos ao Essequibo os Waiwai
evitavam encontrar-se com os Wapixana pelo medo da morte por doenças que estes
periodicamente transmitiam, especialmente gripes e disenterias (Dowdy, 1963:46-47,51).
Em dezembro de 1837, Robert Schomburgk encontrou três aldeias waiwai: uma ao
norte da Serra Acaraí, no Essequibo, e duas ao sul da mesma Serra, no Mapuera. As aldeias
tinham aproximadamente 50 habitantes cada, e separavam-se por dois dias de jornada (Fock,
1963:5). Os relatos do geógrafo eram tomados como as menções mais antigas sobre os
Waiwai, até a publicação recente das traduções dos relatórios de Sanders. Schomburgk
menciona ainda uma aldeia barokoto ao sul, e uma aldeia taruma ao norte dos Waiwai
13
. Sua
expedição pretendia legitimar a fronteira do governo britânico na América do Sul, pela
“descoberta” e documentação das espécies naturais e dos grupos humanos da região (Mentore,
2005:75). Como demonstra a pesquisa de Farage, os indígenas foram o pivô da disputa
territorial entre o Brasil e a Inglaterra. Este último país argumentava que sua fronteira ia até os
limites da rede de trocas regulares que o governo holandês tinha estabelecido com os índios
dois séculos antes
14
.
Em 1844, Schomburgk visitou novamente a região dos Waiwai. Nessa segunda
viagem, constatou que a população dos Taruma estava em declínio – uma parte havia
intercasado com os Barokoto, e outra parte estava morando numa aldeia dos Mawayana
(Schomburgk, 1848:468-472 apud Fock, 1963:5). As menções sobre os Waiwai nessa
segunda viagem não são sistemáticas e enfatizam sua fama como caçadores e adestradores de
cães de caça. Há também alusões à sua cobiça pelas penas de harpia, e à sua aparência
13
Os nomes Barokoto e Parukoto referem-se ao mesmo grupo.
14
Em 1838, ano seguinte a essa primeira visita de Schomburgk aos Waiwai, começou oficialmente a disputa de
território entre o Império do Brasil e a Guiana Inglesa. Na ocasião, a Guarda Nacional brasileira desalojou um
missionário anglicano inglês de entre os Makuxi das savanas. O missionário foi acusado pelo governo brasileiro
de alienar 500 índios, instruindo-os na religião e língua inglesas (Farage, 1991:15). Em 1842 Schomburgk
desceu o rio Tacutu (um dos formadores do rio Branco), até a sua confluência com o rio Ireng (que nasce na
Serra Paracaíma, região de fronteira com a Venezuela, e deságua no Amazonas), proclamando que a região
(localizada a nordeste daquela habitada pelos Waiwai) pertencia ao governo britânico. Mediante protestos
brasileiros, a questão foi submetida ao arbítrio do r
ei da Itália, Victor Emanuel. Em 1904, o monarca divulgou
seu laudo arbitral, dividindo o território disputado em duas partes - 3/5 para a Grã-Bretanha e 2/5 para a
República dos Estados Unidos do Brasil (
Ministério das Relações Exteriores. Guiana – Cronologia Bilateral.
Disponível em
http://www.mre.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2082 acessado em
21/09/2009)
. Uma pequena modificação em 1926 deu ao traço a forma atual, e em 1936 foi regulamentada a
fronteira entre o Brasil e a Guiana, através do Acordo do Ponto de Trijunção entre Brasil, Países Baixos e
Inglaterra, que regulamentou também a fronteira com o Suriname.
17
“imunda” – referência aos seus corpos sempre pintados de preto e vermelho (Fock, 1963:5;
Mentore, 2005:72).
Em 1870 o geógrafo britânico Barrington Brown viajou até o alto Essequibo, onde
encontrou uma expedição de troca composta por índios wapixana e taruma que acabavam de
voltar de um encontro com os Waiwai. Carregando cães de caça e raladores de mandioca
obtidos na troca, os índios informaram ao pesquisador que o território habitado pelos Waiwai
localizava-se apenas ao sul da Serra Acaraí (Brown, 1876:249 apud Fock, 1963:5-6).
Quatorze anos depois, em 1884, o geógrafo francês Henri Coudreau visitou o alto Mapuera e
seus afluentes, onde registrou a existência de aproximadamente sete aldeias ouayeoué
(waiwai), sem apontar sua localização exata. A população waiwai estimada por ele na
ocasião, entre três e quatro mil pessoas, parece exagerada (Coudreau, 1887:348 apud Fock,
1963:6). O francês menciona relações amistosas dos Waiwai com os Mawayana, Xerew,
Japii, Tukano, Tarim, Pianokoto, Wapixana, Atorai e Taruma, e relações belicosas com os
Karafawyana, Cikiana, Waimiri e outros grupos não identificados. Os Waiwai são descritos
por ele como “aristocráticos” e “conquistadores pacíficos” que exerciam influência sobre
vários outros grupos indígenas da região. Coudreau observou ainda que os Japii e outros
índios envolvidos em relações de troca com os Waiwai passavam a se auto-denominar
waiwai, o que aponta, segundo Howard, para uma transmissão de influência política e
assimilação social a partir dos intercâmbios rituais, de trocas e casamentos – projeto que se
intensificou posteriormente com a cristianização (Howard, 2002:33)
15
.
Nos primeiros anos do século XX, Olga Coudreau continuou as expedições na
Amazônia após a morte do marido. No baixo Mapuera foi acolhida por índios que usavam
muitos adornos de miçangas, e que insistiam em oferecer comida em troca de miçangas,
espelhos, terçados, anzóis, facas, pentes, tesouras e machados (Coudreau, 1903:48,92 apud
Howard, 2002:34). Para Howard tratavam-se de waiwai ou parukoto, cuja demanda por
mercadorias sugere que as trocas com seringueiros, castanheiros e quilombolas da região eram
uma prática ocasional.
Cabe esclarecer que esse desejo intenso despertado nos Waiwai pelos objetos
ocidentais e a energia investida na sua aquisição indireta ou direta não são tomados aqui como
“efeitos desastrosos” do avanço das frentes de colonização – ao contrário das epidemias e da
escravização. Acompanho as críticas de Farage e de Howard a uma abordagem econômica
formalista que vê a demanda indígena por manufaturados como conseqüência da incapacidade
15
Voltarei ao assunto da assimilação de outros grupos pelos Waiwai ao longo desta dissertação.
18
de sua fabricação – incapacidade justificada pela escassez tecnológica e de matéria-prima. Ao
pressupor que os índios valorizavam os objetos europeus pelo seu valor mercadológico,
tornando-se vítimas passivas de uma relação econômica espoliativa e degenerativa do seu
sistema de relações sociais “original” ou “puro”, tal abordagem apenas corrobora a
perspectiva dominante (Farage, 1991:86; Howard, 2002:26)
16
. O que tanto Farage como
Howard colocam em jogo é a necessidade de inverter o foco de análise, atentando para os
sentidos atribuídos a esses bens pelos índios que os adquiriam – sentidos que dizem respeito à
relação mais abrangente com os brancos. Howard sustenta que em qualquer sociedade o valor
dos objetos não lhes é inerente ou predeterminado, mas sim fabricado à medida que são
socializados – os objetos tornam-se artefatos culturais significativos das densas redes pelas
quais circulam. No contexto do contato interétnico, os manufaturados surgem inicialmente
como símbolos ameaçadores do avanço colonial, potencialmente marginalizador e destruidor
dos Waiwai (Howard, 2002:50). Essa potência é controlada e domesticada através da
socialização dos manufaturados – isto é, da sua inserção na rede de trocas entre aldeias – e da
conseqüente socialização simbólica dos brancos que os produziram. Howard nota que para os
Waiwai a relação de troca está fundamentada no sentimento de amor, afeição (pinin yaw),
assim como a existência humana em sua plenitude pacífica. Por isso, a troca tipifica a
harmonia e a sociabilidade que caracterizam a vida comunitária ideal, condição almejada por
eles em oposição aos estados sociais “zangados” (tirwonem), que caracterizam tanto os índios
“selvagens” como os brancos
17
. Esses estrangeiros precisam ser pacificados e socializados nas
normas e valores da conduta ideal, através do seu engajamento em prestações recíprocas com
os Waiwai. A circulação dos manufaturados pela rede nativa é tomada, portanto, como um
mecanismo de controle da situação de contato. Através dela, os brancos são conquistados
como uma fonte de poder e saberes canalizados para o benefício da sociedade waiwai (Idem,
:26,50).
O exame da mitologia waiwai reforça essa tese de Howard, pois ali, a origem dos
objetos é atribuída aos animais selvagens. A origem naturalizada dos objetos é a razão da
forma imperfeita e “crua” apresentada por eles inicialmente. Num momento posterior, ao
serem manejados pelos índios, esses objetos adquirem sua forma cultural plena. O principal
mito desse gênero sequer menciona os brancos:
16
A crítica à idéia da assimilação histórica passiva da economia de mercado por parte das economias nativas
havia sido realizada anteriormente por Sahlins (1985).
17
Ainda segundo Howard, o termo waiwai para o comportamento pacífico ideal é tawake (2002:48).
19
[U]m papagaio coowi (espécie não identificada) adotou um homem waiwai
que vivia sozinho numa choça empoleirada numa árvore como um ninho. O
papagaio convidou-o a subir em suas costas e levou-o para a aldeia dos
papagaios. Lá cuidaram dele, incorporaram-no à sua sociedade e
presentearam-no com facas e outras ferramentas, além de miçangas
brilhantes e irisadas como as penas multicolores do coowi. Depois de algum
tempo, o papagaio levou o homem de volta à sua árvore carregado de
presentes. Então ele recebeu a visita de outros homens waiwai e distribuiu os
bens entre eles. (Howard, 2002:35-36)
No mito, a generosidade é o principal momento da socialização do homem waiwai e
também dos seus companheiros que recebem os presentes:
Essa generosidade representou o ponto culminante de sua socialização,
iniciada pelos papagaios e depois consumada por sua habilidade em
socializar seus companheiros por meio desses presentes (Idem).
Howard argumenta que se analisarmos a situação do contato interétnico tendo esse
mito como pano de fundo, podemos dizer que os Waiwai consideram os brancos e os
manufaturados que eles distribuem como semi-selvagens, assim como o papagaio que
presenteia os Waiwai no mito
18
. A socialização dos manufaturados aperfeiçoa os objetos,
conferindo-lhes qualidades vitais. No discurso e na prática dos Waiwai, os manufaturados
aparecem relacionados à beleza e ao imperecível. As miçangas, itens mais cobiçados pelos
índios, remetem também à juventude e à fertilidade, reprodução e renovação da sociedade
waiwai.
Um episódio relatado por Schomburgk exemplifica essa vitalidade associada aos
manufaturados (1845:46-47 apud Howard, 2002:32-33). Os membros da expedição do
geógrafo instaram um parukoto na região do Essequibo a abrir as sepulturas onde estavam
enterradas sua filha, suas duas esposas e sua sogra. Junto aos corpos foram encontradas uma
garrafa com água, uma caneca, miçangas de vidro, um espelho e um terçado. Perguntado
sobre a utilidade da caneca e da garrafa, o índio respondeu que eram pedidos da esposa mais
velha, para evitar a sede a caminho do outro mundo. Os objetos manufaturados pareciam,
portanto, estar associados à imperecibilidade e à transferência das pessoas para uma vida pós-
morte
19
. Se o contato direto com os brancos era percebido como mortífero, o contato indireto
18
Voltarei a essa questão da percepção que os Waiwai têm dos brancos mais adiante.
19
Esse episódio remete àquele analisado por Fausto (2008:202-203,216) num artigo sobre os primeiros contatos
dos Parakanã – um grupo tupi-guarani da região do rio Tocantins, no Pará – com os brancos. Esses índios
pediram a sertanistas da FUNAI que abrissem algumas sepulturas e ressuscitassem os índios que nelas estavam
enterrados. Os Parakanã creditavam poderes xamânicos vitais aos brancos. O principal indicador desse poder
eram os manufaturados criados e distribuídos por eles. Embora haja uma congruência entre os atributos de
20
e controlado com os seus poderes, através das mercadorias que circulavam pela rede de
trocas, era considerado vital.
Em 1910, John Ogilvie, um escocês que morava na Guiana desde 1890, coletou
material sobre os Waiwai para o Peabody Museum of Harvard University (Yde, 1965:4;
Howard, 2002:34). Ogilvie tinha grande familiaridade com os grupos indígenas locais,
adquirida enquanto realizava todo tipo de trabalho – foi comerciante, seringueiro, peão de
fazenda e garimpeiro, além de pesquisador amador. Ogilvie afirma que a maioria dos
manufaturados obtidos pelos Waiwai provinha de outros grupos indígenas mais a norte,
notadamente os Wapixana e Taruma. Estes, por sua vez, negociavam diretamente com os
brancos ou com os Macuxi. Os itens obtidos pelos Waiwai eram trocados com grupos mais
remotos, como os Mawayana, Parukoto e Xerew.
De 1913 a 1916, Ogilvie participou da expedição de William Curtis Farabee ao sul da
Guiana e norte do Brasil. Farabee era um antropólogo-geneticista da Universidade de
Harvard. Nessa expedição os Waiwai foram encontrados em duas aldeias, uma de cada lado
da Serra Acaraí. A aldeia do norte tinha apenas oito habitantes, dos quais a maioria se dizia
mista com os Taruma, exceto dois que se consideravam waiwai “verdadeiros”. A aldeia do sul
tinha 34 habitantes, dos quais a maioria se dizia parukoto, havendo apenas cinco indivíduos
considerados verdadeiramente waiwai. Todas as mulheres dessa aldeia seriam parukoto. Para
Fock, apesar da maioria parukoto e taruma, as aldeias consideravam-se waiwai por ocuparem
o território tradicional desse grupo (Fock, 1963:7).
Nos anos 1919, 1922 e 1923, o missionário jesuíta francês Cuthbert Cary-Elwes fez
visitas curtas aos Waiwai.
20
Os relatórios do padre mencionam a proeminência das atividades
comerciais desses índios com os Taruma e os Wapixana (Colson e Morton, 1982 apud
Howard, 2002:34). Segundo informações dos próprios Waiwai, na década de 1940 um outro
missionário católico “americano” visitou a aldeia Erepoimo, na Guiana (Sabatini,
vitalidade e imperecibilidade dos objetos dos brancos entre os Waiwai e os Parakanã, há diferenças significativas
nas idéias relacionadas à origem desses objetos. Para os Parakanã a superioridade técnica dos brancos seria fruto
da falta de discernimento do antepassado mítico Parakanã, que ao precisar escolher entre dois bens oferecidos
por um herói cultural fez a má escolha (tema muito difundido na Amazônia). Desse modo, o objeto superior foi
destinado ao antepassado dos brancos, e essa condição técnica desigual se perpetuou até os dias de hoje. Tal
escolha errada condiz com a própria origem do antepassado dos Parakanã, narrada em outro mito. Os brancos e
os Parakanã descendem de dois gêmeos, filhos da mesma mãe e com pais diferentes. Enquanto os brancos
descendem do grande xamã primordial Maíra, os Parakanã são filhos de Mucura, signo da morte e da
decadência.
20
A trajetória de Cary-Elwes foi publicada em 1985 pelas Missões Jesuítas de Londres, sob o título Rupununi
Mission: the story of Cuthbert Cary-Elwes among the indians of Guiana, 1909-1923.
21
1998:196)
21
. Essa visita aconteceu poucos anos antes da chegada dos missionários
evangélicos. O padre veio de barco de uma aldeia wapixana, e pregou sermões numa língua
que um dos Waiwai compreendia um pouco e pôde traduzir para o restante da aldeia
(provavelmente wapixana). O padre também ensinou algumas músicas nessa outra língua, e
deixou alguns documentos escritos com os Waiwai, que anos depois os entregaram aos
missionários evangélicos.
Em 1925, os Waiwai do Essequibo receberam a visita de Walter Edmund Roth,
antropólogo inglês a serviço do governo da Guiana. O pesquisador observou que os Taruma
tinham sido virtualmente exterminados da região por uma epidemia de gripe
22
. Restavam
aproximadamente oito sobreviventes, dos quais seis haviam se casado com mulheres waiwai
(Roth, 1929:IX apud Fock, 1963:7; Yde, 1965:4). O antropólogo também menciona um
aumento da população waiwai no Essequibo: de oito pessoas em 1903, o número passou para
mais de cem em 1925. Esse aumento deveu-se ao movimento migratório do Mapuera em
direção ao Essequibo, que substituiu o movimento no sentido contrário, ocorrido na virada do
século. Depois de fugirem para o Brasil de epidemias disseminadas na Guiana, os Waiwai
agora voltavam para ocupar as terras dos Taruma, cujos sobreviventes agregavam-se às suas
aldeias (Guppy, 1965:117)
23
. Contudo, a epidemia gravara imagens terríveis na memória dos
Waiwai, que passaram a evitar ao máximo o contato com os brancos e com os Wapixana, por
temerem morrer como os Taruma. Estes, após contagiados pela gripe, tiveram febre e feridas
pustulentas na pele, chegando a pular na água fria do rio para esfriar o corpo – o que só
piorara a situação, fazendo-lhes expelir sangue pela tosse. Como se não bastasse, os Taruma
também ficaram cegos, andando em círculos, incapazes de encontrar suas próprias redes, até
se deitarem no chão para morrer (Dowdy, 1997:71, 241).
Por volta de 1934-1936, a Comissão de Fronteira Anglo-Brasileira esteve dos dois
lados da Serra Acaraí. No alto Essequibo encontrou uma aldeia waiwai chamada Mawiká,
onde havia mais homens que mulheres – inclusive os três últimos remanescentes taruma,
casados com mulheres waiwai. No alto Mapuera e seus afluentes, encontrou aldeias parukoto
na situação oposta: uma com três vezes mais mulheres do que homens, e outras compostas
quase inteiramente por mulheres. Essa expedição também encontrou os Mawayana num
21
Os Waiwai identificam como amerikan todo estrangeiro europeu ou norte-americano (Howard, 2001:96).
Desse modo, não se sabe a nacionalidade do padre, embora provavelmente ele seja um dos missionários jesuítas
que sucederam Cary-Elwes no trabalho de catequese dos índios da Guiana, cuja sede é a Missão St. Ignatius
entre os Wapixana.
22
Yde afirma que os Taruma foram vítimas da Gripe Espanhola, disseminada em todo o mundo entre 1918 e
meados da década de 1920 (1965:20).
23
Em 2002, durante os estudos para delimitação da Terra Indígena Trombetas-Mapuera, Queiroz encontrou na
aldeia Jatapuzinho pelo menos três famílias que se consideravam Taruma (2009:209,212).
22
afluente do Mapuera e os Pianokoto no alto Trombetas (Guppy, 1958:7,37; Fock, 1963:8;
Yde, 1965:4).
Em 1937-1938 a expedição Terry-Holden, do American Museum of Natural History of
New York, cruzou a Serra Acaraí partindo da Guiana e chegou até o rio Mapuera, em território
brasileiro (Guppy, 1958:7; Fock 1963:8). Essa expedição coletou amostras botânicas e
artesanato indígena na região, além de ter realizado um levantamento médico entre os
Waiwai. Na época, verificou-se que eles migravam novamente para o sul, deixando o
Essequibo para ocupar as cabeceiras do Mapuera. Foram encontradas duas aldeias Waiwai na
Guiana e quatro no Brasil. Cada aldeia possuía entre 25 e 30 habitantes. O movimento
migratório em direção ao sul continuou na década seguinte. Em 1946-1947, P. S. Peberdy,
representante do Governo da Guiana, visitou a região do Essequibo, onde encontrou apenas
quatro famílias waiwai, contendo 27 pessoas ao todo (Fock, 1963:8).
Em 1949, os irmãos Rader, Neill e Robert Hawkins, missionários evangélicos norte-
americanos da Unevangelized Fields Mission (UFM), subiram o Essequibo com ajuda de
guias wapixana, até uma aldeia waiwai chamada Erepoimo
24
. Neill permaneceu na Guiana,
enquanto Rader e Robert continuaram a viagem com a ajuda de guias waiwai, até as aldeias
no Mapuera, do lado brasileiro da Serra Acaraí. A equipe dos Hawkins disseminou uma
doença infecciosa entre os índios, que foram tratados com suprimentos de comprimidos e
injeções. Os detalhes sobre essa epidemia e as conseqüências que teve para o trabalho dos
missionários serão melhor abordados no próximo capítulo. Essa visita dos Hawkins à região
dos Waiwai durou três meses, e foi uma sondagem para o estabelecimento de uma base
missionária na Guiana, que ocorreu no ano seguinte
25
. Também foi tempo suficiente para os
24
No livro de Dowdy, a aldeia na qual os missionários chegaram em 1949 aparece com o nome traduzido para
Forno Velho (Dowdy 1963:39). O nome Erepoimo aparece em outros trabalhos antropológicos (Fock, 1963:32;
Yde, 1965:4; Dias Junior., 2005:38). Fock esclarece que Erepoimo, além de significar “forno velho”, também
identifica uma espécie de sucuri, considerada pai dos peixes (1963:32). Schuler Zea traduz Erepoimo como
“grande assador de potes” (ISA, 2006).
25
Neill Hawkins e sua esposa Mary já moravam no Brasil pelo menos desde 1941, no território do Rio Branco
(hoje estado de Roraima). Filiados à Missão Cristã Evangélica do Brasil (MICEB), trabalharam na evangelização
dos Macuxi do rio Cotingo até 1946, quando abriram um internato na região do rio Surumu (cf. site da MEVA
http://www.meva.org.br/historia.html/ acesso em 29/09/2008). Rader Hawkins também trabalhava no Rio
Branco, porém não consegui saber o ano de sua chegada ao Brasil. Após adquirirem experiência entre os
Macuxi, os irmãos decidiram alcançar os Waiwai. Poucas eram as informações que circulavam sobre esse grupo
na época, a não ser que suas aldeias se espalhavam pela floresta impenetrável na fronteira do Brasil com a
Guiana (Dowdy, 1997:50). O objetivo inicial era estabelecer uma base missionária no alto Mapuera, onde se
concentrava a maior parte da população waiwai, mas o governo brasileiro não concedeu autorização. A restrição
do Brasil visava prevenir a morte dos missionários pelos índios, fato que já havia ocorrido anteriormente em
território nacional (Guppy, 1958:21). Em 1935, por exemplo, três missionários também da UFM (curiosamente
os três tinham o nome Fred: Fred Dawson, Fred Roberts e Fred Wright) teriam sido mortos enquanto tentavam
evangelizar os Kayapó (cf. Great Conversions disponível em
http://www.orange-
order.co.uk/chronicle/forum/viewtopic.php?pid=12761 acesso em 29/09/2009). Diante da recusa do governo
brasileiro, os Hawkins mudaram de estratégia. Em 1948, Neill, então com 30 anos, e Robert, recém-chegado dos
23
missionários aprenderem um pouco da língua waiwai, e começarem a pregar sobre um Deus
amoroso criador de todas as coisas, e sobre a existência de dois caminhos no mundo – um que
leva a Deus e outro para longe dele (Dowdy, 1997:89-90)
26
. Esses ensinamentos eram
transmitidos com a ajuda de intérpretes wapixana que acompanhavam os missionários. Os
índios ficaram muito interessados nessas histórias, queriam saber se Deus tinha esposa e
família. Os missionários responderam que ele tinha apenas um filho, Jesus, que havia morrido
pensando nos Waiwai.
Logo após a partida dos norte-americanos, uma grave doença se espalhou por
Erepoimo e causou inúmeras mortes (Dowdy, 1963:63,66). Trazida das Savanas pelos
Waiwai que haviam atuado como guias dos missionários em seu retorno para Georgetown,
continuou matando índios ao longo de todo o ano seguinte. Em 1950, Neill e Robert voltaram
ao alto Essequibo, dessa vez para construir a base e uma pista de pouso para aviões. Eles
traziam consigo remédios eficazes contra a epidemia que assolava os índios. Até então, a
viagem saindo das savanas e subindo o rio de canoa até a primeira aldeia waiwai exigia muito
esforço e demorava pelo menos três semanas. Saindo de Georgetown de avião, a distância
seria percorrida em apenas duas horas e meia. A pista, batizada de Gunn’s Strip, foi
construída com mão-de-obra waiwai próxima a Erepoimo, na margem esquerda do Essequibo.
O fim do isolamento da área facilitou e incentivou os acessos posteriores de outros
missionários, pesquisadores e agentes governamentais. A estrutura mantida pelos irmãos
Hawkins – dormitórios, galpões, cozinha, canoas etc. – foi utilizada por esses visitantes que se
tornaram freqüentes a partir de então (Guppy, 1958:24; Dowdy, 1963:33,91; Yde, 1965:3,4).
Ainda em 1950, o médico britânico Cennyd Jones realizou uma visita de duas semanas
às aldeias waiwai na Guiana, como parte de um levantamento do governo sobre o estado de
saúde dos grupos indígenas do interior do país. Na ocasião, contou 52 waiwai, dos quais 33
eram adultos. O médico realizou testes de imunidade, cujos resultados mostraram ausência de
resistência à tuberculose, varíola e doenças venéreas. Sua conclusão foi que os Waiwai
escaparam da disseminação dessas doenças graças ao seu relativo isolamento. Os índios
também não tinham resistência aos resfriados comuns. Por isso os visitantes recém-chegados
Estados Unidos e com 26 anos, foram para Georgetown tentar obter autorização do governo para entrar em
contato com os Waiwai na Guiana, enquanto Rader permaneceu no Brasil tentando obter autorização do governo
brasileiro. Em Georgetown, os missionários foram impedidos por um comissário inglês que era contra a sua
entrada em território indígena. Apenas em 1949, com a substituição do funcionário, os irmãos conseguiram
chegar às aldeias Waiwai no alto Essequibo.
26
Os irmãos Hawkins possuíam treinamento em lingüística, e desde os primeiros contatos com os Waiwai
empunhavam caderninhos onde anotavam o máximo de palavras nativas que conseguiam (Dowdy, 1997).
24
à região deveriam ser observados, se possível submetidos a uma quarentena (Guppy,
1958:4,20; Yde 1965:15,21).
Em 1951, Erepoimo foi abandonada. Os Waiwai fundaram uma nova aldeia à margem
do Essequibo, Yakayaka
27
. A trinta minutos de caminhada de Yakayaka os missionários
fundaram a nova sede da missão, que batizaram de Kanashen, segundo eles “Deus ama você”
em waiwai (Howard, 2001:57). Nesse mesmo ano chegaram ao Essequibo Mary e Florine
Hawkins, esposas de Neill e Robert Hawkins –– bem como os três filhos pequenos do
primeiro casal. Alguns meses depois, a família de Neill deixou o local, e a missão com os
Waiwai ficou a cargo de Robert e Florine Hawkins
28
.
Em 1953, Kanashen recebeu o reforço dos missionários norte-americanos Claude e
Bárbara Leavitt, e da enfermeira Florence Riedle (Dowdy, 1963:95-96)
29
. Junto com Riedle,
desembarcou no Essequibo a expedição do botânico inglês Nicholas Guppy. Funcionário do
governo guianense e financiado pelo New York Botanical Garden, Guppy levou consigo dois
guias wapixana que já haviam trabalhado na região anteriormente, nas expedições Terry-
Holden e na Comissão de Fronteira Anglo-Brasileira. O grupo do pesquisador também
disseminou uma gripe que matou alguns Waiwai (Guppy, 1958:323-324,327)
30
. Ainda em
1953, realizaram pesquisas na região os arqueólogos norte-americanos Charles Evans e Betty
Meggers (Yde, 1965:4).
Em 1954-1955 os antropólogos dinamarqueses Jens Yde e Niels Fock integraram uma
expedição do Danish National Museum para estudo da cultura waiwai na Guiana e no Brasil.
Um dos integrantes dessa expedição trouxe de Georgetown ou das Savanas um resfriado que
se espalhou rapidamente entre as aldeias do Essequibo (Yde; 1965:21). Todos os índios que
trabalharam como guias dos antropólogos ficaram doentes, alguns bem gravemente. Para
evitar um desastre, a equipe que já havia se deslocado até o lado brasileiro da Serra Acaraí
preferiu não descer o Mapuera além de uma aldeia chamada Kashimo. A pesquisa
dinamarquesa coincidiu com uma segunda visita do dr. Cennyde Jones. Na ocasião, foram
27
Yakayaka é o nome de um tipo de banana, o preferido de Ewká, fundador dessa aldeia (Dowdy, 1997:103).
28
Após sua saída de Kanashen, Neill e Mary Hawkins continuaram trabalhando como missionários. Em 1956
estabeleceram-se no território do Rio Branco (hoje estado de Roraima), na cidade de Bonfim. Essa cidade tem
uma localização estratégica, às margens do rio Tacutu, bem na fronteira do Brasil com a Guiana. Ali fundaram o
Centro de Treinamento e Orientação de missionários, por onde passaram dezenas de estrangeiros que
trabalharam com a evangelização de grupos indígenas no Brasil e na Guiana, inclusive com os próprios Waiwai.
Com o crescimento do trabalho em Bonfim, Neill e Mary fundaram uma missão independente da MICEB, a
Cruzada de Evangelização. Em 1960, a sede da Cruzada foi transferida para Boa Vista, e em 1970 seu nome foi
mudado para Missão Evangélica da Amazônia (MEVA), o qual permanece até hoje (cf. site da MEVA.
http://www.meva.org.br/historia.html/ Acesso em: 29/09/2008).
29
Florence Riedle viveu 43 anos entre os Waiwai, tendo se aposentado em 1986 (Dowdy, 1995:8).
30
Guppy relatou suas aventuras num livro publicado em 1958 que ficou popular na época: Wai-wai, through the
forests north of the amazon.
25
registradas três aldeias no Essequibo, com uma população total de 77 habitantes, dos quais 48
eram adultos (Yde, 1965:18). Com base no censo anterior realizado pelo médico, em três anos
a população waiwai na Guiana cresceu pouco mais de 50%, e uma nova aldeia surgiu. A
população waiwai no Brasil foi estimada como próxima a 100 pessoas, quantidade similar
àquela registrada pela expedição Terry-Holden 15 anos antes (Fock, 1963:8; Yde, 1965:17-
18). Esse aumento populacional na Guiana continuou nos anos seguintes, e deveu-se à
aglomeração de indivíduos e grupos vizinhos aos Waiwai nas imediações de Kanashen. A
presença dos estrangeiros brancos com suas mercadorias, escrita e histórias sobre Deus
despertava a curiosidade dos índios, que vinham espontaneamente em busca de objetos para
trocar e de remédios alopáticos. Por outro lado, houve a intenção deliberada por parte da
missão de agregar o maior número possível de nativos para melhor evangelizá-los. Em 1954,
mesmo ano de chegada da expedição dinamarquesa, Hawkins e Leavitt haviam realizado sua
primeira viagem missionária a um grupo parceiro de troca dos Waiwai no Brasil, os Xerew do
baixo Mapuera (Howard, 2001:64). A viagem contou com a participação de vários waiwai,
que serviram como guias e intérpretes dos norte-americanos. Por causa da ênfase escatológica
da pregação dos missionários, que anunciavam o fim iminente do mundo, os Xerew ficaram
temerosos e se mudaram para perto da missão na Guiana, onde passaram a morar junto com
os Waiwai, acreditando que ali estariam protegidos
31
. O movimento dos Xerew para o norte
foi acompanhado por muitos mawayana do alto Mapuera, também parceiros de trocas e afins
dos Waiwai (Howard, 2001:64).
Como a maior parte da população waiwai estava no Brasil e os missionários só tinham
autorização para trabalhar na Guiana, a solução encontrada foi atrair os índios que habitavam
em aldeias do lado brasileiro da Serra Acaraí para Kanashen. As principais estratégias para
convencer os índios a se estabelecerem nas imediações da missão foram a realização de
viagens missionárias às aldeias vizinhas e a distribuição de remédios e presentes, tais como
armas de fogo, miçangas, facas, espelhos etc. (Frikel, 1971:20,31). Guppy reproduz uma fala
de Claude Leavitt sobre tal estratégia de evangelização:
Once a few articles such as guns for the men, or clothing for the women,
have become necessary for them, we can really get down to catechizing, for
they will have to earn money and in consequence will have to live round the
station where we can control and guide them into better ways. […] There are
probably another two hundred Indians across the border in Brazil, and it is
they in whom we are really interested. The Guiana Wai-Wais will act as
seeds, spreading the Word to them – that is why we must make concentrated
efforts to convert them first of all. In the meantime we are trying to get the
31
A ênfase escatológica da pregação dos missionários será abordada na próxima seção deste capítulo.
26
Brazilian Indians to leave their villages and come and settle over here. We
are offering them beads, knives, mirrors – everything they love. We have
sent messengers across telling them that they will be much better off here.
And some have come (1958:19-20).
O aumento populacional no alto Essequibo ficou gritante nos anos seguintes: em 1958
a segunda expedição do Danish National Museum encontrou ali 250 habitantes
32
. Todos os
waiwai que até 1955 moravam no Brasil haviam migrado para as aldeias da Guiana, que
passaram a abrigar também índios xerew, mawayana, tiriyó, hixkaryana, wayana e yaú,
tornando-se verdadeiros conglomerados de grupos (Yde, 1965:3; Howard, 2001:287)
33
. A
movimentação característica dos grupos da região – que até 1951 viviam em aldeias com até
trinta habitantes, dispersas nos dois lados da Serra Acaraí – foi substituída pela concentração e
sedentarização em aldeias maiores, onde os intercâmbios de pessoas e objetos se
intensificaram. Esse processo deveu-se, sobretudo, à atuação dos missionários da UFM, e foi
acompanhado pela conversão generalizada dos Waiwai ao cristianismo evangélico.
No mesmo ano dessa segunda expedição do Danish National Museum, 1958, os
missionários batizaram os primeiros waiwai, e também comemoraram a construção de uma
casa grande em Kanashen, destinada à realização de cultos religiosos (Dowdy, 1997:237). As
notícias sobre esse sucesso missionário logo se espalharam pela América do Norte, e por volta
de 1960, o jornalista Homer Dowdy visitou as aldeias na Guiana, onde realizou uma pesquisa
para escrever um romance sobre a conversão dos Waiwai. O livro foi publicado em 1963 e
seu fio condutor é a trajetória de Ewká, influente xamã e líder, primeiro nativo a aceitar os
ensinamentos dos missionários e o primeiro a se tornar pastor. A conversão de Ewká, em
1954, influenciou a maioria dos waiwai, que também se converteu nos anos seguintes – daí o
título significativo da obra, Christ’s Witchdoctor: from savage sorcerer to jungle
missionary
34
. Para escrever o romance, Dowdy recolheu as histórias de vida de
aproximadamente trinta índios, especialmente de Ewká, cujas memórias basearam grande
parte dos acontecimentos narrados. Além disso, teve acesso à quase mil cartas e diários
enviados pelos missionários às suas famílias ao longo de mais de dez anos. O livro é uma
propaganda missionária que apresenta a decisão de Ewká, e posteriormente da grande maioria
32
Os integrantes dessa segunda expedição foram Jens Yde e Gottfried Polykrates. No ano anterior, 1957, os
Waiwai foram atingidos pela epidemia de Gripe Asiática. Oito índios morreram, e com o envio de remédios pelo
governo da Guiana e o trabalho da enfermeira da missão, uma tragédia maior foi evitada (Yde, 1965:20).
33
Apesar de alguns tiriyó e hixkaryana terem se mudado para as aldeias waiwai, os índios desses grupos
mantiveram suas próprias aldeias. Em 1963 o casal Claude e Barbara Leavitt deixou o trabalho com os Waiwai e
estabeleceu uma base missionária entre os Tiriyó (Frikel, 1971:19). Os Hixkaryana também receberam sua
própria base, fundada por Desmond Derbyshire, um missionário inglês do Summer Institute of Linguistics (SIL)
(Howard, 2001:288-289).
34
O ano da publicação do livro de Dowdy, 1963, é o mesmo da publicação da etnografia de Fock.
27
dos Waiwai, como uma história maravilhosa da vitória da fé sobre o medo, e da passagem de
um passado de degradação e decadência a um presente de redenção e felicidade (Dowdy,
1963:iii-vi). No entanto, o acesso privilegiado do autor às narrativas dos missionários e às
narrativas dos próprios Waiwai garantiu que o livro fosse também uma versão bastante rica do
processo de cristianização. Nesse sentido, cabe observar que os Waiwai também falam sobre
sua própria conversão como a superação de um passado de medo e degradação (Howard,
2001:260,320). Diante do sucesso alcançado por essa publicação, Dowdy escreveu a
continuação da história, publicada nos Estados Unidos em 1994 com o título Christ’s Jungle.
A ênfase do segundo livro são as expedições realizadas pelos próprios Waiwai para
evangelizar outros grupos nativos, entre 1964 e 1992.
Em 1966 a Guiana deixou de ser colônia inglesa e tornou-se uma nação independente,
com um governo de fortes tendências socialistas. Os missionários da UFM passaram a sofrer
muitas pressões e impedimentos governamentais, até abandonarem Kanashen e virem para o
Brasil em 1971 (Howard, 2001:50; Dias Junior, 2005:13). Aqui fundaram, junto com Neill e
Mary Hawkins, a Missão Evangélica da Amazônia (MEVA). Nessa mesma época, a maioria
dos Waiwai também migrou de volta para o Brasil, aproveitando acordos com o governo
brasileiro. A maior parte dos índios estabeleceu-se no Rio Mapuera, no Pará, onde fundaram a
aldeia com o mesmo nome do rio. Os habitantes de Mapuera auxiliaram a Força Aérea
Brasileira a abrir uma pista de pouso naquela região. Uma parte menor se estabeleceu em
Roraima, às margens do rio Novo. Essa nova aldeia, Kaxmi, ficava estrategicamente próxima
aos Waimiri-Atroari. O governo brasileiro pretendia utilizar as expedições de evangelização
realizadas pelos Waiwai para resolver o grande conflito que a construção da BR-174 havia
gerado com aqueles índios, e para viabilizar a exploração mineral da região. A rodovia
ligando Boa Vista e Manaus cortava o território de ocupação tradicional dos Waimiri-Atroari,
fazendo com que resistissem bravamente às incursões da equipe da construtora responsável
pela obra, da FUNAI e até do Exército Brasileiro. Os Waiwai poderiam atrair os Waimiri-
Atroari para suas aldeias, como haviam feito com outros grupos evangelizados, liberando a
região para a construção da estrada e para a instalação de uma empresa mineradora (Sabatini,
1998:87-116; Dias Junior, 2005:52,54-55)
35
.
35
Na época, tanto católicos como protestantes desejavam assumir a pacificação dos Waimiri-Atroari. Em 1968
uma equipe com esse objetivo, liderada pelo padre italiano João Calleri, sofreu um ataque mortal dos índios.
Após tal acontecimento, a pacificação acabou acontecendo com a ajuda de índios waiwai que já haviam sido
evangelizados pelos missionários da UFM/MEVA. Insatisfeito com a investigação oficial sobre a morte dos
membros da equipe de Calleri, que apontou a resistência dos Waimiri-Atroari como único motivo do
acontecimento, o padre Silvano Sabatini empreendeu uma investigação própria no final da década de 1990. As
conclusões de Sabatini estão no livro Massacre, publicado em 1998 pela editora do Conselho Indigenista
28
A partir dos anos 1970, diversos pesquisadores passaram pelas aldeias waiwai no
Brasil. Em 1976 o cineasta François Corbineau produziu um documentário denunciando a
invasão da reserva Waiwai no Rio Novo por coletores de castanha do Pará (cf. Howard,
2001:51,72). Em 1976, 1981 e 1983 Grupos de Trabalho da FUNAI/RADAMBRASIL
estiveram na região da aldeia Mapuera para estudo e delimitação da Terra Indígena
Nhamundá-Mapuera, localizada nos estados do Amazonas e do Pará
36
. A maior parte desses
estudos foi coordenada pela antropóloga Maria da Penha Cunha de Almeida. A TI
Nhamundá-Mapuera foi demarcada e homologada como posse permanente dos Waiwai,
Hixkaryana, Kaxuyana, Katuena, Mawayana e Xereu, com uma área total de 1.022.400
hectares (Queiroz, 2008:27-28).
Em 1982 um Grupo de Trabalho coordenado pela antropóloga Maria Helena de
Amorim esteve na região da aldeia Kaxmi para estudos de identificação e delimitação da TI
Wai-Wai, localizada no estado de Roraima. Nesse mesmo ano a TI foi declarada como posse
permanente dos Waiwai, Mawayana, Xereu e outros. Contudo, a demarcação só ocorreu após
novos estudos realizados em 1999, e a homologação em 2003, abrangendo o total de 405.000
hectares (Idem, :28-29).
Em 1985 a aldeia Shepariymo recebeu uma equipe que incluiu os antropólogos norte-
americanos Peter Roe e Peter Siegel. Este último realizou pesquisas arqueológicas na região.
Ainda em 1985 um grupo waiwai abandonou a aldeia Mapuera, na época com cerca de 750
habitantes, e estabeleceu a aldeia Jatapuzinho, no rio com o mesmo nome. Essa nova aldeia,
Missionário (CIMI). O livro acusa os primeiros missionários evangélicos que se estabeleceram entre os Waiwai
de realizar atividades mineralógicas com mão de obra indígena, e de participar do planejamento e da execução
do assassinato de Calleri e sua equipe. O interesse do governo brasileiro na exploração mineral da região
habitada pelos Waimiri-Atroari e a sua associação com os missionários norte-americanos explicariam a falta de
uma investigação oficial mais profunda sobre os fatos ocorridos na época. As graves acusações do padre contra
os missionários evangélicos valem-se de relatos de índios waiwai que teriam participado dos acontecimentos em
questão. Esses relatos dos Waiwai foram registrados em vídeo, documentos aos quais não tive acesso. Porém, o
livro deixa claro que existem lacunas nos relatos dos índios, preenchidas por uma teoria conspirativa de Sabatini
que em muitos momentos parece-me alimentada também pela disputa política e religiosa com os protestantes, e
não apenas pelo propósito de denunciar o interesse prevalescente do governo brasileiro na exploração mineral da
região, e a sua negligência para com os Waimiri-Atroari e para com a equipe do padre Calleri. Desse modo,
Sabatini contrapõe os métodos católicos de catequese aos métodos protestantes, proclamando a superioridade
dos primeiros sobre os segundos. A virtude moral dos missionários evangélicos é sempre questionada, enquanto
a moral dos católicos é louvada. Há, ainda, alusão à anterioridade da presença católica na região dos Waiwai, e
informações imprecisas sobre a missão evangélica. Contudo, é muito significativo o fato de alguns waiwai terem
prestado depoimentos ao padre, revelando publicamente seu descontentamento com a conduta dos missionários
norte-americanos em situações passadas. A meu ver, essas denúncias feitas pelos waiwai fazem parte de uma
estratégia política nativa para contornar a influência exercida entre eles pela missão. Voltarei mais adiante à
questão das estratégias políticas dos Waiwai frente à missão, tema já abordado por Howard (2001).
36
O projeto RADAM (Radar da Amazônia), a partir de 1976 RADAMBRASIL, realizou entre 1970 e 1985 o
levantamento dos recursos naturais de todo o território brasileiro, através de imagens obtidas por radares
transportados em aviões. A equipe que realizou o levantamento e o acervo técnico utilizado foram incorporados
posteriormente ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Cf. Sítio Eletrônico dos Antigos Funcionários
do Projeto Radam Brasil http://www.projeto.radam.nom.br/apresentacao.html Acesso em: 06/10/2009).
29
também no estado de Roraima, ficava estrategicamente localizada a caminho dos
Karafawyana e outros grupos ainda não contatados, que os Waiwai desejavam evangelizar
(Howard, 2001:66).
Em 1987 uma expedição da FUNAI liderada pelo sertanista Sebastião Amâncio
visitou o rio Jatapu e os afluentes da margem direita do Mapuera, encontrando evidências da
presença de grupos isolados na região – que já era tradicionalmente utilizada como rota dos
Waiwai. No mesmo ano a TI Trombetas-Mapuera foi interditada para não-índios. Estudos
posteriores para regularização dessa TI, ocorridos entre 2000 e 2002 sob a coordenação do
antropólogo Ruben Caixeta de Queiroz, definiram a área a ser demarcada com quase quatro
milhões de hectares, abrangendo partes dos estados do Pará, Roraima e Amazonas. A
demarcação foi concluída em dezembro de 2007, e a homologação ocorreu em janeiro de
2010 (Queiroz, 2008:29).
Ao longo dos anos, os Waiwai de fato atuaram como “sementes”, levando primeiro
aos grupos vizinhos, depois a grupos com os quais mantinham trocas diretas e finalmente a
grupos socialmente mais afastados, potencialmente hostis e com os quais relacionavam-se
apenas através de uma cadeia de intermediários, a mensagem evangélica. Esse movimento,
embora incentivado pelos missionários, foi muito beneficiado pela prática nativa já existente
de visitação intertribal (Howard, 2001:286). Num primeiro momento, as viagens de
evangelização eram planejadas e executadas pelos missionários com grande contribuição dos
Waiwai, que os acompanhavam, serviam como guias e traduziam os sermões. Num segundo
momento, os Waiwai já evangelizados passaram a planejar e realizar suas próprias viagens
missionárias, utilizando o apoio logístico dos missionários, mas afastando-os do planejamento
e da execução direta das empreitadas (Dowdy, 1995; Howard, 2001:293). Howard argumenta
que esse processo também foi motivado pelo desejo dos Waiwai de manterem-se
politicamente influentes entre os grupos vizinhos, através do controle da distribuição dos
recursos trazidos pelos missionários e, posteriormente, por agentes governamentais.
Por fim, o padrão de aglomeração populacional em poucas aldeias foi
progressivamente substituído por um novo movimento de dispersão. Inicialmente surgiram
novas lideranças Waiwai que, justificadas pela busca de grupos que ainda não haviam sido
evangelizados, abandonaram as aldeias maiores e fundaram suas próprias aldeias em meados
nos anos 1980 (Dias Junior, 2005:32). Já a partir do ano 2000, os grupos “waiwaizados”
começaram a voltar aos lugares de habitação dos seus antepassados, formando várias aldeias
com 20 a 50 moradores cada uma (Queiroz, 2008:217-218). Esses intensos processos de
transformações – dos Waiwai em cristãos, dos grupos vizinhos em Waiwai, e do cristianismo
30
dos missionários norte-americanos em cristianismo waiwai – serão melhor abordados ao
longo desta dissertação.
O cristianismo dos missionários da Unevangelized Fields Mission
Os missionários que em 1949 fizeram contato com os Waiwai na região do alto
Essequibo – Neill, Rader e Robert Hawkins – eram de uma família protestante em Dallas, no
Texas. Seu pai, o reverendo William E. Hawkins, era considerado um “exemplo vivo dos
padrões bíblicos tradicionais” que valorizava as doutrinas do pecado e da salvação, e sua mãe
uma mulher piedosa que treinara os filhos desde pequenos para a obra missionária fora do
país (Dowdy, 1997:49). O Texas faz parte do chamado Bible Belt, uma região conservadora
no Sul dos Estados Unidos onde predominam igrejas teologicamente orientadas a partir dos
grandes reavivamentos do final do século XVIII e século XX, e em sua maioria, pelo
fundamentalismo do início do século XX. Considerada a “direita” protestante norte-
americana, essa vertente é usualmente identificada como evangelical, e se distingue da Main
Line Protestant Church, adepta de uma teologia modernista ou liberal
37
. As informações
disponíveis sobre a atuação dos Hawkins e dos missionários que os sucederam entre os
Waiwai – dispersas em publicações dos próprios missionários, em teses de antropólogos e em
relatos de outros pesquisadores – revelam sua adesão a essa vertente religiosa, cujos
principais traços distintivos apresento a seguir.
A Unevangelized Fields Mission é uma organização paraeclesiástica ou
interdenominacional. Esse tipo de organização trabalha em parceria com as igrejas e
denominações protestantes, mas estrutura-se independentemente delas, através de
contribuições individuais de fiéis comprometidos com o sustento de missionários. Por não
estarem ligadas às igrejas, mas a compromissos individuais teoricamente menos estáveis, as
missões paraeclesiásticas são chamadas também de “missões de fé” (cf. Mendonça &
Velasques Filho, 1990:56-57). A filiação a esse tipo de organização caracterizou os
missionários norte-americanos recrutados no meio reavivalista e fundamentalista que se
espalharam pelo mundo a partir de 1940
38
.
37
Mafra nota que no contexto religioso brasileiro o termo “evangélico” tem sido empregado com uma
abrangência maior, da mesma maneira que o termo protestant nos Estados Unidos: para identificar todos os
ramos que se desenvolveram a partir dos reformadores do século XVI (2001:8). Já o termo “protestante” muitas
vezes é empregado no Brasil com sentido equivalente ao de Main Line Protestant ou para identificar as vertentes
principais originadas da Reforma.
38
A primeira grande leva de missionários norte-americanos espalhou-se pelo mundo entre o final do século
XVIII e o final do século XIX, e foi enviada diretamente por suas igrejas – e não por agências
31
A conduta santificada
Os chamados “reavivamentos” foram grandes movimentos de despertar religioso
surgidos na Inglaterra durante a segunda metade do século XVIII. Na época, as igrejas
protestantes do país – a oficial Anglicana e a dissidência puritana – encontravam-se em
declínio, em parte pelo seu excesso de formalismo e dificuldade de ajustar a pregação ao
contexto da nova sociedade industrial e competitiva que surgia, e também pela influência das
idéias racionalistas e liberais entre o clero, cuja conseqüência foi a saída de vários ministros
das igrejas (cf. Thompson, 2004:26-28,34; Hurlbut, 2003:164; Mendonça & Velasques Filho,
1990:173-174)
39
. Nas cidades, massas de trabalhadores pobres permaneciam desempregadas
ou empregadas em situações precárias, e eram pouco afetadas pelas igrejas. Nesse contexto
surgiu John Wesley, um jovem clérigo anglicano muito dedicado ao estudo da Bíblia que,
após ser influenciado por pietistas moravianos, começou a pregar sermões ao ar livre, nas
praças e portas de fábricas, convocando a população ao arrependimento dos pecados e à
reconsagração a Deus
40
. As pregações de Wesley e de seu colaborador George Whitefield
eram longas e informais, acompanhadas por músicas que freqüentemente utilizavam melodias
populares. A mensagem era acentuadamente individualista: o pecado individual era
apresentado como o grande responsável pelos males do mundo, e a solução para os problemas
sociais ingleses só podia ser a conversão generalizada (Mendonça & Velasques Filho,
1990:207). Essa conversão, além de uma experiência mística individual, consistia também na
santificação do fiel pela adoção de um novo padrão de conduta, oposto àquele vigente no seu
meio cultural, considerado decadente
41
. O comportamento transformado era o sinal visível de
que uma pessoa havia sido salva, ou seja, havia experimentado a graça de Deus “em seu
coração”. A graça era concedida a cada um através do Espírito Santo, que levava a pessoa a
aceitar a mensagem do perdão dos pecados – perdão obtido através do sacrifício vicário de
Jesus Cristo e sua ressureição (Tillich, 2004:46).
interdenominacionais (Mendonça & Velasques Filho, 1990:23). A primeira leva missionária também foi
impulsionada pelo reavivalismo e é identificada como “protestantismo histórico de missões”.
39
O movimento dissidente compreendia “muitas seitas e tendências intelectuais e teológicas conflitantes”, e
encontrava “muitas formas diferentes em diferentes meios sociais” (Thompson, 2004:25). Do movimento
dissidente surgiram as igrejas Presbiteriana, Congregacional e Batista, por exemplo (Hurlbut, 1995:164).
40
Os moravianos eram protestantes não-formalistas dissidentes da igreja Luterana que consideravam a
experiência mística como eixo central da vida cristã e empreendiam muitas viagens missionárias.
41
A experiência da conversão como um momento crucial na vida do fiel será abordada mais detidamente no
próximo capítulo.
32
Os apelos de Wesley e Whitefield foram atendidos por milhares de pessoas. Eles
também fundaram classes de oração e estudoblico lideradas por leigos, prática totalmente
inovadora no meio protestante da época, para onde os novos convertidos eram encaminhados.
Essas classes espalharam-se pelas colônias norte-americanas, especialmente através de
viagens missionárias realizadas por Whitefield, que liderou o primeiro reavivamento do outro
lado do Oceano Atlântico em 1734, junto com o pastor congregacional Jonathan Edwards
42
.
A partir de então, até meados do século XIX, os movimentos reavivalistas tornaram-se
freqüentes tanto na Inglaterra como em suas colônias americanas – posteriormente Estados
Unidos da América. As pessoas envolvidas nesses movimentos manifestavam um intenso zelo
missionário, um desejo de compartilhar com o mundo inteiro o poder de sua experiência
(Tillich, 1999:168). Daí surgiu, na década de 1830, uma nova teologia da missão. Com o
mesmo caráter individualista da experiência da conversão, sua idéia principal era salvar o
maior número de pessoas possível ao redor do mundo, para livrá-las da condenação eterna.
John Wesley e seus seguidores reavivalistas pregavam enfaticamente contra o uso de
qualquer bebida considerada alcoólica, inclusive o vinho e a cerveja, até então consumidos
“sem culpa” pelos protestantes. Nas colônias norte-americanas surgiram comunidades de
abstinência total, culminando na substituição do vinho pelo suco de uva nos rituais da ceia,
prática logo adotada por quase todas as denominações e sociedades missionárias protestantes
da época (e mantida ainda hoje). A conduta estipulada por Wesley e adotada pela maioria das
igrejas protestantes também incluiu a proibição de músicas, livros e filmes que “não tendiam
ao conhecimento nem ao amor de Deus”, bem como o envolvimento em apostas e jogos de
azar. Realizar qualquer atividade secular aos domingos – trabalhar, vender, comprar ou
mesmo divertir-se – era “profanar o Dia do Senhor” (Mendonça & Velasques Filho,
1990:223). Havia ainda uma forte preocupação com o controle da sexualidade, mesmo após o
matrimônio. Os órgãos sexuais eram considerados “fonte de perpétuas tentações e de
impulsos inesgotáveis” (Thompson, 2002:249-250). Para conservar a graça salvadora de Deus
era necessário dominar as próprias vontades, manter uma disciplina metódica em todas as
áreas da vida
43
. Esse esforço deveria começar desde a infância, já que as crianças não estavam
isentas da pecaminosidade inata do ser humano. Nas escolas dominicais infantis fundadas por
Wesley, jogos e brincadeiras eram considerados inadequados, e substituídos por
42
Nesse reavivamento quase a população inteira da cidade de Northampton, em Massachussets, converteu-se
através das pregações de Edwards (Mendonça & Velasques Filho, 1990:83).
43
Essa atitude metódica era uma característica tão marcante dos seguidores de Wesley que o movimento liderado
por eles originou a chamada igreja Metodista. Mais adiante teço alguns comentários sobre a idéia da necessidade
de “conservar a graça”.
33
entretenimentos como partir lenha e cavar. Na época, chegou a ser publicada uma história
moralizadora sobre crianças que profanaram o domingo, faltando à escola dominical para
jogar futebol. Tal atitude era comparada, no livro, àquela dos 42 meninos mencionados na
Bíblia que, por zombarem do profeta Eliseu, foram amaldiçoados e despedaçados por ursas
(Thompson, :243,256-258)
44
.
As diferenças doutrinárias entre as igrejas protestantes tornaram-se uma questão
secundária diante da uniformidade de crenças e costumes que elas apresentaram após
participarem dos reavivamentos (Hurlbut, 2003:176). Foi essa vertente protestante que
alcançou diversas partes do mundo nos séculos XIX e XX, sobretudo através do esforço
missionário norte-americano. No Brasil é conhecida a história de um missionário norte-
americano, diretor do colégio Mackenzie em São Paulo, que por volta de 1890 foi punido pela
igreja presbiteriana por não freqüentar as atividades da comunidade aos domingos, utilizar
transporte público e freqüentar cafés (Mendonça & Velasques Filho, 1990:225). O domingo
não podia ser utilizado nem mesmo para o descanso, mas apenas para a realização de
atividades relacionadas à igreja: cultos, reuniões de oração, ensaios de coral, evangelização
em hospitais e presídios etc. Além de proporcionar a separação do mundo pecaminoso e
decadente, tal ensinamento está relacionado à influência calvinista, que condena fortemente o
ócio e tem uma tendência muito pragmatista.
Esse mesmo costume de guardar o domingo era praticado pela família dos irmãos
Hawkins. Em minha pesquisa para redação desta dissertação, conversei com pessoas que
conviveram pessoalmente com o sr. Neill Hawkins no Brasil. Uma delas me informou que o
missionário costumava contar histórias sobre sua infância e juventude nos Estados Unidos,
passada entre as décadas de 1920 e 1940. Neill e seus irmãos eram proibidos de jogar bola aos
domingos, e para substituir a atividade e entretê-los, sua mãe se desdobrava incentivando
jogos e brincadeiras envolvendo conhecimentos bíblicos. Esse mesmo princípio de substituir
“divertimentos mundanos” por “divertimentos cristãos” foi aplicado posteriormente na
educação religiosa dos Waiwai, assim como o restante do “pacote” conversionista
45
. Após a
44
A história bíblica dos meninos mortos pela ursa encontra-se no livro de II Reis 2.23-24. Thompson observa,
com sua ironia característica, que “somos tentados a perdoar alguns dos pecados do Metodismo, quando
verificamos que, ao menos, proporcionou uma educação rudimentar a crianças e adultos nas escolas dominicais”
(2002:230). No final do século XVIII, os pobres eram ensinados a ler e a escrever nessas escolas. Contudo, em
1808, uma nova geração de ministros metodistas baniu o ensino da escrita, alegando que a prática era “um
terrível desrespeito ao Sabbath” e que poderia resultar em “vantagens profanas” (Idem). A leitura, por outro lado,
continuou sendo considerada um “bem espiritual”, já que as crianças precisavam ler a Bíblia. Posteriormente, o
ensino da escrita aos domingos também foi proibido por outras igrejas.
45
Esse paralelo entre a educação de crianças e a educação dos Waiwai era realizado pelos próprios missionários,
conforme uma fala de Claude Leavitt transcrita por Guppy (1965:18). O botânico contratou alguns Waiwai como
guias e carregadores em sua expedição, mas foi advertido pelo missionário sobre a dificuldade de trabalhar com
34
conversão, os rituais festivos nativos passaram a se concentrar em duas grandes
comemorações anuais, na Páscoa e no Natal. Nas novas festas, a cauinagem e as trocas
sexuais foram substituídas pelo consumo de bebidas não-fermentadas e por jogos e
brincadeiras (Dowdy, 1997:157-158)
46
. Os nativos aprenderam que a conversão era um
processo simultâneo à ruptura com seu meio cultural, especialmente com a sua mitologia e o
xamanismo, sempre identificados, no discurso missionário, com a degradação do pecado, do
engano e do erro (cf. Dowdy, 1997:10). Os Waiwai convertidos sustentam que para uma
pessoa ser salva e ganhar a vida eterna precisa “aceitar Jesus em sua barriga”, considerada por
eles como o centro das emoções humanas, de modo que o sentido do ato equivale ao “aceitar
Jesus no coração” pregado pelos evangélicos (Dowdy, 1997:17; Howard, 2001:185,343)
47
.
Em um trecho de seu diário, publicado em 1954, Robert Hawkins esclarece qual era, no seu
entender, a tarefa dos missionários:
We not only have to be preachers but teachers of all good things and judges
of what is right and wrong. For instance, shall we tell Waiwai men to cut
their [hair] queues or not? How many people are enough to have in one
village? What about taking fermented drinks? ... [W]e can and will warn
against gluttony and drunkenness (Hawkins, 1953-54:9 apud Howard
2001:58).
A ética protestante era considerada superior à ética nativa pelos missionários, por
conduzir ao progresso e à riqueza através do trabalho. A ética nativa era aliada à indolência,
ao atraso e à pobreza
48
. Portanto, uma das primeiras estratégias civilizadoras de Robert
Hawkins e Claude Leavitt visou a produção de uma ética do trabalho entre os Waiwai. Estes
poderiam ganhar seu próprio dinheiro prestando serviços diversos aos missionários – por
os índios. Estes não eram empregados confiáveis, já que não trabalhavam por dinheiro e mercadorias, mas
apenas quando tinham vontade e por afeição pessoal: “They’re very difficult, completely untrustworthy, like
children”, disse Leavitt. Howard nota que os Waiwai realizavam um esforço semelhante em sentido inverso,
tomando para si a tarefa de educar e socializar corretamente os missionários, bem como os grupos indígenas
vizinhos, ambos comparados a crianças e a seres humanos imaturos (2001). A fala de Guppy também é
significativa da dificuldade dos missionários produzirem uma ética de trabalho entre os Waiwai, tema examinado
mais a seguir.
46
Contudo, cabe observar que os missionários da UFM exibiam uma versão atenuada do rigor que inicialmente
caracterizou o movimento reavivalista. Embora a bebedeira e as trocas sexuais que caracterizavam os momentos
festivos waiwai fossem alvo de sua crítica, a realização de jogos e brincadeiras era incentivada. Desse modo, a
alegria deliberadamente produzida pelos Waiwai nas festas da Páscoa e do Natal difere do clima de seriedade
dos encontros reavivalistas descritos por Thompson. Segundo o historiador, os metodistas eram desencorajados a
participar das festas familiares em companhia de parentes não-convertidos (Thompson, 2004:38).
47
Enquanto Howard utiliza o termo “belly” para localizar o centro das emoções waiwai, os missionários utilizam
“stomach” no Christ’s Witchdoctor, e “estômago” na versão brasileira do livro. Um pastor Waiwai explicou a
Howard que a conversão acontece num momento determinado, quando o Espírito Santo entra na barriga da
pessoa que aceitou a Jesus e ata-se, literalmente, à sua alma ou espírito humano (Howard, 2001:342).
48
Um trecho do diário de Robert Hawkins, publicado em 1954, faz a seguinte observação: “The Shedeus, though
friendly, are just as lazy and sordid in their lives as the Waiwais” (Hawkins, 1953-54:10 apud Howard, 2001:58).
35
exemplo, a derrubada de árvores para construção da pista de pouso, o fornecimento de
alimentos, a ajuda como guias pela floresta, serviços domésticos etc. (Guppy, 1965:19). Com
esse dinheiro os índios teriam condições de adquirir (isto é, comprar) os manufaturados que
tanto desejavam, já que seu hábito de queixar-se a fim de conseguir ferramentas dos brancos
era considerado “mendicância” pelos missionários. O correto seria que trabalhassem para
obter os bens que cobiçavam (Dowdy, 1997:111). A nova estratégia de distribuição das
mercadorias causou muito descontentamento nos Waiwai, que consideravam os norte-
americanos avaros por manterem um estoque de bens ao invés de presenteá-los. Muitas vezes
os Waiwai apropriavam-se desses estoques e redistribuíam-nos forçosamente, prática tida
como “roubo” pelos missionários (Idem; Howard, 2001:347). Os índios também não
consideravam correta a lógica do pagamento individual por um serviço prestado, e insistiam
em inserir os missionários na rede de prestações recíprocas da aldeia, que incluía um espectro
bem mais amplo de relações além da troca de objetos. A estratégia Waiwai visava não apenas
a distribuição correta dos pagamentos, mas também a domesticação dos estrangeiros (Howard
2001:63, 2002). Howard relata que após a conversão os Waiwai deixaram de tomar para si as
mercadorias dos missionários e passaram a apropriar-se da sua retórica, formulando críticas à
riqueza que estes possuíam. Em um culto assistido pela antropóloga, um pastor nativo utilizou
passagens bíblicas para acusar os missionários (presentes entre a congregação) de avareza, e
de violarem o mandamento dado por Jesus de distribuir as riquezas aos mais pobres. Para o
pastor, o comportamento mesquinho dos missionários seria desaprovado por Deus no dia do
julgamento final, acarretando a condenação ao “grande fogo”, enquanto o comportamento
generoso cultivado pelos Waiwai, apesar de sua pobreza relativa, seria recompensado por
Deus com a vida eterna (Howard, 2001:348).
Hawkins e Leavitt também estimularam o cultivo de uma maior variedade e
quantidade de alimentos pelos Waiwai, de modo que o excedente da produção pudesse ser
vendido aos próprios missionários. Para servir de exemplo, plantaram pequenas hortas com
pés de alface, cenouras e outros vegetais. Essa idéia não deu certo, primeiro pela resistência
dos índios, que consideravam tais plantas impróprias para o consumo humano, e em segundo
lugar porque as plantas foram devoradas pelos insetos (Howard, 2002:37). Os missionários
também introduziram galinhas e porcos, que os Waiwai recusavam-se a comer e tratavam
como animais de estimação. Howard observa que os animais incluídos nessa categoria –
papagaios, cães de caça, animais da floresta amansados e, posteriormente, as galinhas e os
porcos – eram cuidados como crianças metafóricas: “A idéia de matá-los era explicitamente
comparada ao infanticídio e a de comê-los ao canibalismo” (Idem). Para completar o
36
desalento dos missionários, os índios mantinham esses animais soltos pela aldeia, e não
confinados em galinheiros e chiqueiros.
Os Waiwai também foram instruídos sobre o comportamento sexual considerado
correto. Num trecho do seu diário, Robert Hawkins registrou:
I told them one day about God’s standard for the relation between men and
women and that we carefully observed it. They oh’d and ah’d and said that
the other civilized people that they had heard of were certainly not that way.
I said, ‘That’s because they’re not Jesus’ companions’. (Hawkins 1953-
54:11 apud Howard 2001:62)
Embora o diário não deixe claro qual era esse padrão divino das relações entre homens
e mulheres, um dos Waiwai ouvidos por Howard, Yakuta, comentou sobre quão estranho
pareceu aos índios o hábito dos casais missionários absterem-se sexualmente, apesar do
desejo mútuo de manter relações. Yakuta foi o segundo Waiwai a ser batizado pelos
missionários, e tornou-se um pastor proeminente. Contudo, afirmou nunca ter seguido aqueles
conselhos sobre a conduta sexual apropriada:
They told us, “The longer we wait, the happier God is. No matter how
impatient our wives get, we tell them, ‘No, Wife, wait: we must please God.
We must wait until the end of the week’. So we wait: Monday, Tuesday,
Wednesday, Thursday, Friday, and then, ahhhh, it’s Saturday, and we say,
‘Well, Wife, shall we have sex?’ And she says, ‘Yes, let’s’. And when we
do, it’s really delicious!” All of us just laughed hysterically. “That’s
certainly no how we practice sex!”, we said. And we still don’t. That’s a
custom we never imitated! (Yakuta, 09-09-1984 apud Howard, 2001:61).
Ainda no campo da sexualidade, Guppy relata o incômodo causado em Leavitt pela
visão dos corpos das mulheres waiwai (1965:19). Em uma conversa com o botânico, o
missionário teria dito que o esforço inicial da missão era implementar o uso de roupas, com o
objetivo de evitar o pecado causado pela exposição feminina. Na opinião de Leavitt, a
exibição dos seios seria a causa de todo o pecado sexual dos Waiwai, já que a visão dessa
parte do corpo despertaria nos homens um desejo que levaria à prática de relações sexuais
ilícitas. Cobrir o corpo com roupas, ocultando os órgãos sexuais, seria um bom preventivo
para o problema. As esposas dos missionários, morando nas aldeias, serviriam como exemplo
para as índias, pela sua maneira de se vestir e também pela sua modéstia
49
.
49
O substantivo “modéstia” foi utilizado pelo próprio missionário para explicar a Guppy como as esposas
poderiam servir de exemplo para as índias. Entendo que ele se referia ao pudor das missionárias em relação ao
sexo oposto.
37
A convicção da superioridade espiritual e cultural protestante e, conseqüentemente, da
necessidade de converter e civilizar os grupos nativos em todo o mundo, não era exclusiva
dos missionários da UFM, e caracterizou a expansão do trabalho evangelizador reavivalista
como um todo, especialmente o norte-americano (Mendonça & Velasques Filho, 1990:164)
50
.
Em campo, o recurso utilizado pelos missionários para convencer os nativos das “verdades”
da mensagem protestante era a demonstração da “falsidade” da sua cultura tradicional
51
. Na
evangelização dos Waiwai, um verdadeiro teste envolvendo a quebra de tabus xamânicos foi
estimulado pelos missionários, e será abordado no próximo capítulo. Tal estratégia não foi
empregada apenas para evangelização dos indígenas e outros grupos não-cristãos, mas
também das populações dos assim chamados países cristãos na Europa (onde surgiram
missões locais) e no resto do mundo. Diversos missionários protestantes vieram ao Brasil
evangelizar a maioria da população católica que, para os reavivalistas, deveria converter-se ao
verdadeiro cristianismo (Tillich, 1999:168; Mendonça & Velasques Filho, 1990:164).
O fundamentalismo
As idéias fundamentalistas também faziam parte do arcabouço teológico dos Hawkins.
O fundamentalismo surgiu no final do século XIX como reação ao liberalismo teológico, que
incorporou pressupostos filosóficos e métodos científicos à hermenêutica bíblica
52
. Muitos
protestantes tomaram tais desenvolvimentos como um triunfo do racionalismo e do
humanismo sobre a fé e a moral cristã, e em contrapartida agarraram-se a uma religiosidade
severa, baseada numa interpretação radicalmente conservadora da Bíblia. O adjetivo
“fundamentalista” vem, pois, da defesa de elementos considerados “fundamentais” na
50
Cabe fazer uma ressalva: a convicção de uma superioridade cultural não era traço exclusivo dos protestantes
norte-americanos, e sim uma idéia compartilhada pelos agentes coloniais desde o início do expansionismo
europeu no século XVI. Os desenvolvimentos iluministas dos séculos XVIII e XIX eram avessos às teologias
ortodoxas (católica e protestante) que até então justificavam as empreitadas coloniais, mas acabaram por
consolidar a idéia de uma superioridade ocidental através da ênfase no “progresso”, manifesto no racionalismo e
no humanismo científico (versus as “crenças” e “superstições”
nativas), na economia capitalista de mercado
(versus as economias de “subsistência” nativas) e na organização política em Estados-nação (versus as
sociedades primitivas sem Estado). Embora, como veremos adiante, a teologia fundamentalista rejeitasse a
aplicação dos princípios e métodos iluministas ao campo religioso, absorveu o otimismo moderno que via no
futuro as infinitas possibilidades de progresso proporcionadas pela ciência e pela tecnologia.
51
Mais adiante faço uma observação sobre a idéia da “verdade” na teologia protestante fundamentalista.
52
As principais contribuições liberais rejeitadas pelos fundamentalistas foram: a aceitação das idéias de Charles
Darwin sobre a existência e origem do universo e da vida, que colocou em cheque o conceito bíblico da criação;
o estudo histórico-comparativo das religiões, que levou à negação da historicidade de narrativas bíblicas como
Adão e Eva, o jardim do Éden e a travessia a seco pelo meio do mar Vermelho; a aceitação do naturalismo como
explicação filosófica do mundo e a conseqüente negação do nascimento virginal de Cristo, seus milagres e sua
ressurreição – isto é, o questionamento sobre a divindade de Cristo; e o emprego de métodos históricos ao estudo
dos manuscritos bíblicos (Mendonça & Velasques Filho, 1990:112-114; Morais, 1999:53,62).
38
doutrina e na moral protestante, que haviam sido negados pela hermenêutica liberal. O
alicerce do movimento é a doutrina da “inerrância” das Escrituras, segundo a qual o Espírito
Santo inspirou cada palavra da Bíblia, que por isso é desprovida de erros, contradições e
inconsistências – refletindo a natureza do próprio Deus e da verdade
53
. Como as palavras
bíblicas são as palavras de Deus, a autoridade do livro é a própria autoridade de Deus, o que
torna a alta crítica textual impraticável
54
. A inerrância aplica-se integralmente apenas aos
manuscritos originais, admitindo-se a persistência de pequenos erros de transcrição nas
versões da Bíblia existentes atualmente. No entanto, essa distinção acaba sendo dissolvida,
visto que os manuscritos originais nunca foram localizados (Mendonça & Velasques Filho,
1990:127).
A interpretação fundamentalista do texto bíblico varia entre o literal e o alegórico
apenas. Os milagres são entendidos como situações que não obedecem às leis naturais, isto é,
como intervenções sobrenaturais de Deus nos eventos da natureza
55
. A divindade de Cristo é
enfatizada, assim como o seu nascimento virginal. As narrativas bíblicas como Adão e Eva,
Noé e a arca, e a travessia do mar Vermelho a seco são tomadas como eventos históricos.
Conforme observam Mendonça e Velasques Filho na obra supracitada, apesar do
movimento fundamentalista condenar o uso de qualquer referencial filosófico na
hermenêutica bíblica, sua doutrina apóia-se no realismo do senso comum, que considera a
verdade como algo objetivo, universal e independente de interpretação, podendo ser
conhecido e válido para todos, em qualquer tempo e lugar
56
. Outro pressuposto realista
incorporado pelos fundamentalistas é o da linguagem como capaz de captar e transmitir
objetivamente a universalidade da verdade. Atribui-se às narrativas bíblicas uma verdade
objetiva que pode – e deve – ser transmitida a todas gerações de pessoas, em todos os lugares
do mundo. Daí a importância conferida à tradução da Bíblia para as línguas nativas pelos
missionários fundamentalistas.
53
O termo “inerrância” foi escolhido cuidadosamente por teólogos da escola de Princeton, uma corrente
conservadora norte-americana, por satisfazer a uma definição racionalista da verdade (Mendonça & Velasques
Filho, 1990:126). A doutrina da inerrância sugere que a Bíblia está livre de qualquer erro, mesmo em suas
afirmações geográficas, históricas ou que poderiam ser refutadas pela ciência. Há uma outra corrente que
defende a “infalibilidade” da Bíblia, sugerindo que devem ser tomadas como totalmente verdadeiras apenas as
afirmações bíblicas sobre a fé e a prática cristãs, admitindo possíveis erros relacionados às informações
geográficas, históricas e científicas. Para a doutrina da infalibilidade, tais erros são irrelevantes para a fé cristã.
54
A “alta crítica” ou “crítica histórica” é um método de exegese bíblica que utiliza o aparato crítico normalmente
aplicado a textos literários. Seu foco é o estudo da fonte de texto: determinar sua autoria, data, circunstâncias de
produção e confiabilidade histórica. Difere da “crítica textual” ou “baixa crítica”, que também pode ser aplicada
ao estudo de obras literárias, mas cujo foco é reconstituir o texto original pelo estudo filológico.
55
Para os liberais, ao contrário, Deus atua na história sempre de maneira coerente com as leis naturais que ele
mesmo implantou no mundo (Mendonça & Velasques Filho, 1990:140).
56
A filosofia realista teria se originado de uma corrente escocesa do pensamento indutivista, com grande
expressão no século XVIII (Idem, :148).
39
Os esforços de tradução da Bíblia para o Waiwai duraram 46 anos, e foram liderados
por Robert Hawkins. Em 1983 foi publicado o Novo Testamento e em 2001 foi concluída e
publicada a tradução da Bíblia completa, chamada Kaan Karitan. Tal expressão é traduzida
por Howard como “Livro de Deus”, e por Dowdy como “Papel de Deus” (Howard, 2001:323;
Dowdy, 1997:105). Já a missionária Ruth Langar afirmou que karitan vem da palavra
portuguesa “carta”
57
. Segundo ela, os Waiwai não pronunciam o r seguido do t, motivo pelo
qual a palavra “carta” vira “carita”. A Bíblia apresentada como sendo a “Carta de Deus” para
a humanidade reforça a idéia de cada palavra do livro ter sido divinamente inspirada. A Bíblia
Waiwai foi a primeira versão completa do livro em uma língua indígena brasileira
58
.
A convicção da posse da verdade contida na Bíblia conduz a uma atitude inflexível por
parte dos fundamentalistas, que não vêem sentido no diálogo com os que não afirmam a
mesma verdade. Daí a rejeição que os missionários de maneira geral apresentam em relação
às cosmologias e práticas nativas
59
. Por outro lado, o estudo minucioso dos conceitos nativos
é essencial para a evangelização dos índios em sua própria língua, bem como para a
gigantesca tarefa de traduzir a Bíblia – por esse motivo, geralmente os missionários mais
experientes são também profundos conhecedores das línguas dos grupos que buscam
evangelizar. Este é o caso dos missionários pioneiros entre os Waiwai. Robert Hawkins serviu
como intérprete para vários pesquisadores que estiveram na região, especialmente Fock, que
apesar de ter realizado uma pesquisa de campo curta, entre outubro de 1954 e janeiro de 1955,
conseguiu reunir uma grande quantidade de informações valiosas sobre a mitologia e a
cosmologia waiwai, graças à assessoria lingüística do missionário. Um outro trecho do diário
de Robert Hawkins deixa claro o tipo de relacionamento dos missionários com as idéias e
práticas dos índios, consideradas essencialmente falsas:
In getting information for the anthropological paper, we had to ask about all
their miserable customs and superstitions and stories, but we explained that
God’s Book spoke differently and that His book is true (Hawkins, 1953-
54:11 apud Howard, 2001:59).
57
Não pude encontrar-me pessoalmente com a missionária Ruth Langar, que trabalhou com os Waiwai na
década de 1980 e atualmente reside na cidade de Curitiba, no Paraná. Essa informação foi obtida durante uma
conversa entre a missionária e uma tia minha que reside naquela mesma cidade, a partir de um roteiro de
perguntas formulado por mim.
58
De acordo com a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), existem hoje no país outras cinco línguas indígenas com
Bíblias integralmente traduzidas (cf. Site da SBB
: http://www.sbb.org.br/anobiblia2008/interna.asp?areaID=5/ ,
acesso em: 05/06/2009). O Velho Testamento vem sendo traduzido para o Hixcaryana a partir da Bíblia Waiwai,
e o Novo Testamento já havia sido traduzido anteriormente para aquela língua.
59
E daí vem também a ênfase apologética da teologia fundamentalista.
40
Um exemplo de tradução realizada pelos missionários ilustra bem esse ponto. Os
Waiwai não possuíam uma divindade suprema, tampouco a idéia de um ser transcendente
criador de todas as coisas que pudesse ser identificado com Deus. Também não concebiam
uma personificação do mal que pudesse ser identificada com o Diabo. Para evangelizá-los foi
preciso introduzir tais idéias, bem como escolher palavras que as identificassem. O termo
escolhido para “Deus” pelos missionários, Kaan, aparentemente foi cunhado por eles mesmos
ou emprestado de uma outra língua indígena, pois não aparece em nenhum relato mítico
Waiwai e em nenhuma descrição etnográfica fora do contexto estritamente relacionado ao
cristianismo. O termo escolhido para identificar o Diabo, Foleeto ou Folito, também parece
ser de cunho dos missionários ou um empréstimo lingüístico; contudo, diferentemente de
Kaan, citado a torto e a direito ao longo do Christ’s Witchdoctor e menos freqüentemente em
teses de antropólogos, Foleeto é mencionado uma única vez no livro de Dowdy, e nenhuma
nas teses antropológicas. O termo utilizado freqüentemente pelos missionários e pelos índios
para referirem-se à personificação do mal é kworokjam, emprestado da cosmologia nativa,
onde desempenhava um papel proeminente. Além de uma simplificação das idéias
cosmológicas dos Waiwai, a utilização do termo refletia a demonização daquela cultura pelos
missionários. Vejamos.
O termo kworokjam identifica, na cosmologia Waiwai, uma classe de seres
sobrenaturais com os quais os índios relacionam-se, e pode ser traduzido como “espírito”,
embora a palavra conserve certa ambigüidade do ponto de vista ocidental, já que kworo é o
termo para a arara vermelha e o sufixo -yam é um coletivizador (Fock, 1963:20). Essa classe
subdivide-se em dois grupos: os ekatinho-kworokjam e os kakenau-kworokjam. Os primeiros
são espíritos terrestres associados a alguns animais, especialmente a anta, o veado e o gambá,
mas também a peixes maiores; e podem provocar doenças e mortes ao ocupar os corpos das
pessoas, bem como seqüestrá-las ou causar azar. Sua origem é o ekatï, o espírito ou alma
humana. Quando alguém morre, seu ekatï abandona o corpo (a saída do corpo é justamente a
causa da morte) e passa a se chamar ekatïnho (o sufixo -nho significa antigo, anterior)
60
. O
ekatïnho pode permanecer junto aos restos mortais, vaguear livremente, ou dar origem a
certos animais. No último caso é chamado de kworojam, e torna-se o espírito ou princípio
vital que habita dentro do corpo do animal, do qual possui a mesma forma e aparência,
60
Quando a pessoa morre, o ekatïnho retorna imediatamente ao seu lugar de origem, que é o mesmo lugar de
nascimento do corpo, sugerindo que o espírito também nasce, ou é criado junto com o corpo (Fock, 1963:18).
Posteriormente o ekatïnho seguirá um dos três destinos mencionados no texto.
41
embora seja invisível a maior parte do tempo
61
. Apesar da transformação em espírito animal,
o kworokjam possui a capacidade de assumir a forma humana.
O outro subgrupo é o dos kakenau-kworokjam, seres muito poderosos, cuja origem é
anterior ao tempo mítico e muito anterior aos seres humanos – os kakenau provavelmente
sempre existiram (Fock, 1963:22). Eles podem ser espíritos incorpóreos ou com corpo, alguns
possuem a forma humana, outros a forma animal. Na terra são encontrados como espíritos da
floresta e como princípios vitais de todas as aves e de outros animais como a lontra, o
tamanduá, o morcego, a borboleta, a libélula e o queixada; e de algumas árvores como o ingá
e a bacaba. O sol, a lua e a água também são seres vivos que possuem kakenau-kworokjam
(Idem, :22-23). Seu domínio, entretanto, são os níveis celestes mais elevados; por isso,
identificam-se especialmente com as aves (com destaque para a harpia), por serem
mediadoras entre a terra e o céu (Howard, 2001:92). Os kakenau-kworokjam são ao mesmo
tempo muito temidos e muito desejados pelos Waiwai. Seus poderes são vitais e
transformativos, mas quando entram em contato direto com os seres humanos tornam-se
fatais. Por isso a comunicação com esses seres é mediada pelos xamãs, dos quais alguns
kakenau-kworokjam atuam como auxiliares para obter a cura de doenças, sucesso nas caçadas
e garantir o bom tempo para o plantio.
São ainda classificados como kakenau-kworokjam os yenna, grupos ou espécies que
vivem nas florestas e costumam matar pessoas desavisadas que se aventuram a andar sozinhas
à noite. Alguns exemplos são os kurum-yenna (povo-urubu), os kamara-yenna (povo-onça) e
os okoimo-yenna (povo-sucuri) – estes últimos vivem no fundo do rio
62
. Fock cita ainda um
kakenau-kworokjam essencialmente bom, Makama, que cura doenças e tem aparência
humana. Finalmente, há os yin, pais de algumas espécies de animais e de alguns fenômenos
naturais. Alguns exemplos são o poinko-yin (pai dos queixadas), o yaku-yin (pai das aves) e o
kamo-yin (pai do sol). Apenas os xamãs são capazes de estabelecer contatos com os yin, de
61
Fock destaca que essa idéia da transformação do espírito humano em espírito animal não é uma espécie de
reencarnação, pois para os Waiwai a morte se apresenta como uma situação definitiva. O destino do ekatïnho de
um xamã é diferente dos demais – ele vai para o céu, onde encontra seus espíritos especiais, com os quais vive
para sempre (Fock, 1963:17-21).
62
Yenna é um coletivizador que Fock (1963:24) traduz como people, também usado pelos Waiwai para nomear
os grupos indígenas vizinhos, como os Mouyenna (Mawayana) e Piskaryenna (Hixcaryana). O mesmo autor
observa que para os waiwai, todos os animais e plantas possuem, além de sua existência terrena, uma existência
no céu, visível aos humanos apenas em sonhos ou transes. Esse equivalente sobrenatural é indicado pelo sufixo -
imo, que significa “grande”, uma itensificação das qualidades terrenas. Antigamente, nos tempos míticos, esses
seres também eram encontrados na terra, onde compunham a classe dos “animais verdadeiros” (real animal-
people). Por exemplo: em ratakimoyenna, rataki é “gafanhoto”, imo é “grande”; e yenna, “povo”. O nome
identifica assim o coletivo dos gafanhotos sobrenaturais, ancestrais do personagem mítico Mawari, do qual, por
sua vez, originaram-se os primeiros seres humanos. Atualmente, apenas alguns yenna são encontrados na terra,
como os okoymo-yenna (povo-sucuri), que aparentemente conservam as qualidades intensificadas daqueles seres
ancestrais (Idem, :23).
42
modo a garantir o sucesso das caçadas aos animais pertencentes às mesmas espécies de seus
donos.
Ocorre que no livro de Dowdy, o termo kworokjam não identifica a categoria
“espírito”, e sim “todos os espíritos do mundo contidos num só ser sobrenatural e todo-
poderoso”, “essencialmente mau” e que era “o centro da vida espiritual dos Waiwai” (Dowdy,
1997:39-40). A idéia de kworokjam como “síntese de todos os espíritos em um só” pouco se
assemelha à cosmologia nativa, onde, de acordo com a descrição de Fock, o termo abrange
uma multiplicidade que não se funde num todo coerente e sui generis
63
. Na fala dos
missionários (tais como descritas no livro), a diferença entre os ekatïnho-kworokjam e os
kakenau-kworokjam também não é mencionada, e há apenas referências genéricas aos
“espíritos dos animais”, “espíritos sob o comando de cuoroquiam” ou “demônios de
cuoroquiam” (Idem, :24, 94)
64
. Os missionários sustentavam que esses espíritos enganavam
os humanos ao curar os doentes, fazendo com que o Diabo fosse adorado ao invés de Deus.
Desse modo, a conversão era descrita como a “decisão de abandonar cuoroquiam e servir a
Cristo” (Idem, :8). Segundo Dowdy, essa oposição entre Deus e Jesus de um lado e
kworokjam de outro era continuamente enfatizada no discurso missionário: os Waiwai
precisavam escolher entre dois caminhos opostos, “o de Deus” ou “o dos espíritos sobre o
comando de cuoroquiam”. Ensinamento que alude a uma metáfora utilizada por Jesus sobre a
existência de dois caminhos: um espaçoso, fácil de seguir, que conduz à perdição, e outro
estreito, difícil de encontrar, que conduz à vida
65
. Os missionários também enfatizavam a
impossibilidade de “adorar a dois senhores”, a Deus e a kworokjam, e a conseqüente
necessidade dos índios escolherem seguir um dos dois (Dowdy, 1997:144)
66
. Percebe-se,
portanto, que o discurso sobre o mal e sobre o pecado gravita em torno de kworokjam,
enquanto o nome para o Diabo, Foleeto, aparece uma única vez no Christ’s Witchdoctor. Essa
menção única identifica Foleeto como “chefe” de kworokjam, junto a quem as pessoas que
não aceitarem a Jesus como salvador serão queimadas, após ressuscitarem e serem julgadas
63
No livro recentemente publicado por Mentore, o termo kworokjam aparece com um sentido que se aproxima
mais da tradução dos missionários (2005). Enquanto Fock apresenta kworokjam como uma classe de seres
espirituais, Mentore traduz o termo como “Grande Espírito” ou “Pai das Araras”, e o descreve como uma força
divina onipresente, transformativa e invisível, cuja principal habitação são as camadas cósmicas superiores
(celestes), de onde propaga sua energia para o restante do universo (Idem, :84-85). Para Mentore, a mutabilidade
característica dos corpos das personagens míticas deve-se ao fato do seu ekatï ser dotado de poderes divinos;
esses poderes, por sua vez, seriam efeito da atuação do kworokjam enquanto força divina superior e durável. O
tema da mutabilidade corporal será abordado no próximo capítulo.
64
A grafia adotada pelos missionários é kworokyam na edição em inglês e cuoroquiam na versão em português
do Christ’s Witchdoctor.
65
Essa fala de Jesus está registrada no evangelho de Mateus 7.13-14.
66
Há aqui a alusão a uma outra passagem bíblica. Em Mateus 6.24, Jesus utiliza a metáfora dos dois senhores
para falar sobre a impossibilidade de servir a Deus e às riquezas ao mesmo tempo.
43
no fim dos tempos, ao invés de viverem uma vida eternamente agradável com Deus (Idem,
1963:183)
67
. Em apenas um outro trecho do livro kworokjam é novamente identificado como
“servo do Diabo” (Idem, 1997:139). Essa constatação da proeminência de kworokjam no
discurso sobre o mal é confirmada por uma informação obtida através da missionária Ruth
Langar. Quando perguntada sobre o termo Waiwai para “Diabo” ela não conseguiu se
lembrar
68
. Kworokjam foi traduzido por ela como sendo “espírito mau”. Outro dado
interessante fornecido tanto por Howard como por Langar é sobre a tradução para “Espírito
Santo”. De acordo com elas, os Waiwai identificam-no com a expressão Kiriwan Ekatï, ou
“Espírito Bom” (Howard, 2001:342). A expressão waiwai reafirma a separação entre o poder
espiritual divino e os poderes dos seres classificados como kworokjam, já que ekatï é a
palavra nativa para a alma ou o espírito humano
69
.
Essa identificação da cosmologia Waiwai com o mal e o engano não foi aceita
passivamente pelos índios. Em meados dos anos 1980, não raro havia choques entre as
decisões da igreja Waiwai, dirigida por pastores indígenas desde meados dos anos 1960, e a
doutrina e as opiniões da missão (Howard, 1993:234). Os pastores nativos já dominavam a
linguagem protestante, sendo capazes de realizar exegeses bíblicas que contornavam a
demonização das narrativas míticas tradicionais. Em um exemplo impressionante registrado
por Howard, um pastor Katuena defende que os mitos de origem tradicionais e as narrativas
bíblicas são variações do mesmo tema e que, portanto, carregam o mesmo valor de verdade
(2001:356-358). Outra informação, fornecida por Langar, também exemplifica como os
ensinamentos dos missionários não foram apreendidos passivamente pelos Waiwai. De acordo
com Langar, na época de seu trabalho em campo os índios convertidos evitavam até mesmo
mencionar o nome kworokjam. Os missionários, por sua vez, não possuem a mesma restrição
ao uso do termo. A evitação dos índios sugere que os seres identificados como kworokjam
permaneciam dotados de poderes perigosos capazes de atingir os Waiwai a qualquer
momento, bastando para tanto apenas uma menção. No passado, antes da conversão, a
interação direta com os kworokjam já oferecia riscos, especialmente com os kworokjam do
67
Há um erro de tradução na versão em português do livro. A frase que identifica o diabo em inglês “[T]he Devil
- Foleeto, old bossy master of their kworokjam” é traduzida como “Folito (Diabo) – o velho mestre mandão a
serviço de cuoroquiam”. Em inglês o diabo é o mestre mandão de kworokjam, e no texto traduzido para o
português a relação entre os dois seres aparece como sendo a inversa (Dowdy, 1997: 212).
68
Langar está a muitos anos longe das aldeias Waiwai, sem praticar a língua. Nada mais normal do que esquecer
uma palavra nativa nessas circunstâncias. Mas considero significativo o fato dela se lembrar dos termos para
Deus, Espírito Santo, espírito mau e ter se esquecido justamente da palavra que identifica o Diabo.
69
Voltarei a examinar as conseqüências dessa caracterização do Espírito de Deus como ekatï no próximo
capítulo. A partir de um rico debate transdisciplinar sobre tradução e metáfora, Schuler Zea traça algumas
distinções muito interessantes entre o entendimento dos missionários e o entendimento dos Waiwai do conceito
de “Kiriwan Yekatî” (2007:18-19).
44
tipo kakenau, que provocavam a morte imediata de alguém até mesmo por contato visual – a
única exceção era o xamã (Fock, 1963:22, Dowdy, 1997:43). Após a conversão, não existem
mais pessoas que assumem a função mediadora anteriormente exercida pelos xamãs
Waiwai
70
. Parece-me, desse modo, que o poder dos kworokjam deixou de ser canalizado para
benefício dos índios, e passou a figurar apenas como uma ameaça, a ponto dos nativos
evitarem até mesmo pronunciar o nome que identifica esses seres. Howard afirma que “the
Waiwai have not stopped believing in the power of traditional spirits and shamans (or
sorceres); they have simply bracketed them for the time being and turned their attention
toward the Holy Trinity and pastors” (2001:197). Voltarei ao tema do xamanismo e dos
pastores no próximo capítulo. Por ora, cabe concluir a descrição dos principais traços
característicos do fundamentalismo protestante. O exemplo lingüístico sobre a oposição entre
Deus e kworokjam remete a outras duas grandes áreas de preocupação dessa vertente
religiosa: o maniqueísmo da luta cósmica entre o bem e o mal e a escatologia, ambas
interligadas no discurso dos missionários da UFM.
O Christ’s Witchdoctor apresenta a empreitada dos irmãos Hawkins como uma
“violenta batalha”, travada com o objetivo de “invadir um grande território ainda totalmente
dominado por Satanás, usando a Palavra de Deus como arma” (Dowdy, 1997:49). A metáfora
da palavra de Deus como arma contra os poderes espirituais malignos é bíblica: foi utilizada
por Paulo ao referir-se ao esforço cotidiano de todo cristão no mundo
71
. Esse esforço visa a
santificação pessoal por meio de atitudes piedosas, sacrificiais e perseverantes, imitando o
exemplo de Cristo – isto é, a luta a que Paulo se refere tem um caráter essencialmente
espiritual, e não corresponde a um comportamento belicoso
72
. O discurso de Dowdy, típico da
teologia missionária protestante, transfere para o contexto do encontro intercultural a luta
contra a autoridade do mal, identificando os missionários com o exército do bem que salvará
da perdição eterna aqueles grupos que ainda são escravos do pecado, súditos do reino das
trevas. É como se a condição espiritual precária que caracteriza individualmente todo aquele
70
Todavia, cabe frisar que embora os últimos xamãs tenham morrido ou tenham se tornado pastores, persistem
as acusações de feitiçaria entre os Waiwai e, portanto, continua presente o “sistema de pensamento e de ação”
que dava sustentação à prática do xamanismo por certos indivíduos (Sztutman, 2005:218). Voltarei a esse tema
no próximo capítulo e na conclusão.
71
Paulo fala da “palavra de Deus” como sendo a “espada do Espírito” em Efésios 6.17. Na época de Paulo, a
Bíblia não existia com a mesma estabilidade canônica atual, mas eram considerados revelados o Pentateuco, os
Profetas e os Escritos, muito provavelmente a mesma composição do Velho Testamento de hoje. São esses os
textos referidos por Paulo como sendo a palavra de Deus. No ano 90 d.C., já após a morte do apóstolo, o cânon
do Antigo Testamento foi estabelecido pelo Yavneh, uma espécie de concílio judaico (agradeço ao amigo André
Tavares por estes esclarecimentos sobre o cânon judaico).
72
Em outra passagem bíblica de tradição Paulina, o versículo 12 do capítulo 4 do livro de Hebreus, a palavra de
Deus é novamente comparada a uma espada, mas com a ênfase na palavra como instrumento de discernimento.
45
que ainda não passou pela experiência da conversão se tornasse especialmente tangível nos
regimes sociocósmicos de grupos sem conhecimento do evangelho ou sem representatividade
cristã – que por isso são considerados “territórios totalmente dominados por Satanás”
73
. A
pregação contra idéias e costumes dos Waiwai foi conduzida com afinco, numa verdadeira
“batalha” espiritual. Esse esforço proselitista em prol do aumento das hostes do bem,
utilizando a Bíblia como arma, conferia aos missionários um papel de destaque nas igrejas,
como soldados de linha de frente contra a autoridade do maligno no mundo (cf. Mendonça &
Velasques Filho, 1991:183, 187).
A atitude combativa dos missionários era animada não apenas por uma obrigação
doutrinária ou moral, mas acima de tudo, pelo sentimento de “amor aos perdidos”. Na Bíblia,
o amor surge como a causa da ação redentora de Deus para com a humanidade, através do
envio de Jesus Cristo ao mundo
74
. Aqueles que experimentaram esse amor – através de uma
experiência mística individual de arrependimento dos pecados e de comunhão com Deus
através da fé em Jesus (a conversão) – engajam-se no movimento missionário por sentirem
compaixão das pessoas que ainda não passaram pela mesma experiência de salvação,
consideradas “perdidas”
75
. No Christ’s Witchdoctor, a empreitada evangelizadora dos
missionários da UFM é apresentada como fruto do amor de Deus pelos Waiwai, sentimento
experimentado também pelos missionários (Dowdy, 1997:12). A capa da versão brasileira do
livro é bastante significativa nesse sentido. Logo abaixo do título da obra, aparece em
destaque a seguinte frase: “Uma história do amor de Deus operando milagres nas selvas da
Amazônia”.
O amor de Deus e dos missionários pelos nativos era também uma ênfase da pregação
dos missionários em campo (Guppy, 1965:22; Dowdy, 1997:112, 117). O nome escolhido
para a base da missão na Guiana – Kanashen, ou “Deus ama você” – reforçava tal mensagem.
Para os missionários, esse amor manifestava-se através da renúncia e do sacrifício implicados
em sua escolha de dedicarem a maior parte de suas vidas à evangelização dos Waiwai.
Vivendo nas aldeias por anos, e até mesmo por décadas, permaneciam isolados de amigos e
73
Os grupos que ainda não ouviram falar de Jesus ou que não possuem representatividade cristã nativa são
chamados pelos evangélicos de “povos não-alcançados” ou “não-evangelizados”. Existem organizações
especializadas na evangelização desses grupos, e os missionários que em 1949 fizeram contato com os Waiwai
na região do alto Essequibo eram filiados uma delas – daí o nome da missão, Unevangelized Fields Mission.
74
Conforme João 3.16 e I João 4.10-11,16, por exemplo. Thompson faz um debate interessante sobre a retórica
do amor no culto protestante metodista (2004:40,55).
75
Jesus disse que veio ao mundo “buscar e salvar o perdido”, conforme relata o Evangelho de Lucas 19.10. Em
outras ocasiões Jesus utiliza parábolas para explicar a salvação dessa mesma maneira – como Deus buscando
reencontrar-se com o ser humano que, desde o pecado de Adão, encontrava-se perdido. Por exemplo em Lucas
15.6,19,24.
46
parentes, e desprovidos de aparatos que proporcionassem um conforto material semelhante ao
que possuíam em seu país de origem. Além disso, havia a dificuldade de aprendizado da
língua nativa, seguido de um esforço ainda maior para grafá-la, alfabetizar os índios e depois
traduzir a Bíblia. O amor era demonstrado também através da prestação de serviços de saúde,
especialmente através da enfermeira Florence Riedle. Mais adiante examinaremos como a
mensagem cristã sobre o amor foi apropriada pelos Waiwai convertidos.
A ênfase escatológica
A salvação anunciada pelos missionários assegurava a libertação dos poderes malignos
no mundo presente, mas também o escape da ira de Deus no fim dos tempos, e a vida eterna.
Essa ênfase escatológica é característica do fundamentalismo, especialmente a expectação da
volta iminente de Cristo à terra, que inaugurará o juízo divino sobre as obras humanas e sobre
Satanás
76
. A doutrina escatológica fundamentalista é complexa e, por basear-se na
interpretação de trechos bíblicos enigmáticos e difíceis de entender, subdivide-se em vertentes
diversas. Tentarei resumir aqui seus principais traços
77
. Em geral, é enfatizada a necessidade
dos cristãos permanecerem em prontidão, procurando santificar-se para não serem pegos
despreparados no dia da volta de Jesus. Tal dia chegará subitamente, sem aviso prévio, e será
precedido – segundo uma fala de Jesus registrada em Mateus 24.14 – da anunciação do
evangelho a todas as nações da terra. Por causa dessa afirmação de Jesus, algumas vertentes
sustentam que o retorno do messias pode ser apressado se os crentes dedicarem-se à
divulgação da mensagem evangélica a todos os seres humanos – convicção que é mais um dos
motores da empreitada missionária. Os missionários da UFM compartilhavam essa idéia, que
foi transmitida aos Waiwai. Por esse motivo, Howard observou que as viagens realizadas
pelos próprios nativos para evangelizar os grupos vizinhos estavam imbuídas de um poderoso
sentido de influência cósmica:
By rounding up the last of the ‘unseen peoples’ wandering in the wilderness
and corralling them to the gates of heaven, the waiwai say they are
influencing Jesus’ decision about the timing of his Second Coming. While
76
A Bíblia menciona que três dias após sua crucificação, Jesus Cristo ressuscitou e ascendeu ao céu. Os
fundamentalistas aguardam o dia em que ele descerá do céu de volta à terra. Esse retorno é chamado de “segunda
vinda” – a primeira vinda foi quando Cristo nasceu na terra, do ventre de Maria. Essa expectativa da volta de
Jesus baseia-se na interpretação de textos bíblicos que mencionam o “Dia de Cristo”, por exemplo: Filipenses
1.9-10; Filipenses 2.16 e I Coríntios 1.8; 15.51-52.
77
Agradeço imensamente ao pr. Naiêf de Almeida e ao Leonardo Paulino pelos esclarecimentos escatológicos
que me ajudaram a escrever este trecho da dissertação.
47
there still exist remote peoples who never had the chance to decide whether
to accept Jesus into their bellies, the Waiwai ask Jesus in their prayers to
wait just a little longer while they mount yet another expedition in search of
these imperiled innocents. Throgh this imagery, the Waiwai are, in essence,
making a claim that they can affect the movement of cosmological time,
slowing it down or hastening it toward its final end – a powerful mode of
influence indeed (2001:355).
O retorno de Cristo coincidirá com a ressurreição dos mortos
78
. Num primeiro
momento, ressuscitarão apenas aqueles que em vida foram perdoados de seus pecados através
da fé em Jesus. Esses reaparecerão em corpos transformados ou “glorificados”, com
habilidades extraordinárias e não mais sujeitos à corrupção, portanto, imortais – corpos
semelhantes ao corpo atual de Jesus, que ressuscitou após ser crucificado e antes de subir aos
céus. Os cristãos que estiverem vivos no dia da volta de Jesus também serão beneficiados por
tal transformação corporal. Esse grupo dos ressuscitados e dos vivos que tiveram os corpos
transformados constitui a comunidade daqueles que crêem em Jesus, a igreja, que será
imediatamente “arrebatada”, isto é, será retirada da terra num piscar de olhos, e se encontrará
com Jesus nos ares, para permanecer com ele para sempre.
A vertente identificada como “pré-tribulacionista” sustenta que as pessoas não-
arrebatadas permanecerão na terra experimentando um período de terrível tribulação ou
aflição sob o domínio do Anticristo, que é a própria Besta do livro de Apocalipse
79
. O
Anticristo ou Besta é um ser humano que governará o mundo com mão de ferro e exigirá
adoração para si, tentando usurpar o culto devido somente a Deus. Portanto, para os pré-
tribulacionistas, o arrebatamento da igreja ocorrerá antes do início do período da grande
tribulação, livrando os crentes dos sofrimentos causados pela mesma. Enquanto os incrédulos
sofrem angústias terríveis na terra, os arrebatados participarão de um grande banquete nos
céus, as “bodas do cordeiro”, celebrando a união entre Jesus, o “cordeiro de Deus”, e a
igreja
80
. Ao final do banquete, Jesus voltará com os seus para vencer o anticristo e reinar na
terra durante um período de mil anos, chamado de “milênio”
81
. Assim sendo, o milênio
começará após a vitória do exército de Cristo contra o exército do anticristo. Este último
reunirá todas as nações da terra contra o exército de Jesus, na sangrenta “guerra do
Armagedom”
82
. No fim da guerra, Jesus destruirá o anticristo com “um sopro”, e o lançará
78
Sobre a ressurreição dos mortos ver I Coríntios 15.51-52 e I Tessalonicenses 4.16.
79
Os textos bíblicos sobre o período da grande tribulação e sobre o Anticristo e a Besta estão em Daniel 24.27,
Mateus 24.21, Marcos 13.19 e Apocalipse, nos capítulos 6, 8 a 11 e 16 a 19.
80
As bodas da união entre Cristo e a Igreja são mencionadas em Apocalipse 19.7-9.
81
Sobre o período do milênio, ver Apocalipse 20.4; 2 Timóteo 2.17; e Romanos 8.17.
82
Sobre a guerra do Armagedom, ver Apocalipse 16.12-16, 19.11-21.
48
num lago de fogo e enxofre. Satanás será aprisionado e a partir de então Jesus e seus
seguidores governarão por mil anos, estabelecendo paz e justiça na terra
83
.
Uma outra vertente pré-tribulacionista expressiva entre os fundamentalistas, diferente
das já citadas, defende que a volta de Jesus será acompanhada por um arrebatamento parcial,
que não beneficiará toda a igreja, mas apenas os “vencedores” – tanto aqueles vencedores já
mortos, que na ocasião serão ressuscitados em corpos glorificados, como os vivos, que
também terão seus corpos transformados em incorruptíveis. Os vencedores encontrarão Jesus
nos ares e seguirão para as bodas do cordeiro, enquanto os demais seres humanos que
estiverem vivos no dia da volta de Jesus permanecerão na terra, sofrendo as terríveis agonias
da grande tribulação sob o domínio do Anticristo. Portanto, para essa vertente, nem todos os
que crêem em Jesus serão salvos da grande tribulação. Para garantir o escape, o cristão deve
esforçar-se para obedecer à Palavra de Deus e manter uma conduta exemplar. A parte da
igreja que não for arrebatada para as bodas do cordeiro participará de um segundo
arrebatamento, que ocorrerá quando Jesus voltar à terra para vencer o Anticristo e reinar por
mil anos.
A doutrina pré-tribulacionista tem origem relativamente tardia (surgiu no século XIX),
e é combatida pela vertente pós-tribulacionista, que também se subdivide em várias, mas
sustenta, de maneira geral, que a volta de Cristo não acontecerá em duas etapas (antes da
grande tribulação e depois), mas sim como um evento único no final do governo do
Anticristo, inaugurando o milênio. Ou seja, de acordo com tal vertente, não apenas os
incrédulos, mas também todos aqueles que crêem em Jesus e estiverem vivos na época do
Anticristo experimentarão os sofrimentos da grande tribulação. Ao contrário das versões pré-
tribulacionistas, que eximem a igreja, ou parte dela, da terrível angústia do fim dos tempos,
para os pós-tribulacionistas o sofrimento dos cristãos será ainda pior do que aquele
experimentado pelos incrédulos, visto que, por recusarem prestar culto ao Anticristo, serão
especialmente perseguidos e até mesmo mortos. O retorno de Jesus acontecerá após a
tribulação, com o objetivo de vencer o Anticristo e exercer sobre ele, sobre Satanás e sobre
seus seguidores, o julgamento da ira de Deus. Desse modo, de acordo com os pós-
tribulacionistas, o advento da grande tribulação na terra, sob o governo do Anticristo, será
encerrado com o retorno de Jesus, que aparecerá no céu, à vista de todos. Imediatamente após
esse aparecimento, os mortos que creram em Jesus ressuscitarão em corpos glorificados e
serão arrebatados, juntamente com os cristãos sobreviventes da grande tribulação, que
83
Sobre a destruição do Anticristo e a prisão de Satanás ver II Tessalonicenses 2.8 e Apocalipse 20.2.
49
também terão seus corpos transformados. Os arrebatados celebrarão as “bodas do Cordeiro” e,
em seguida, vencerão, juntamente com Jesus, o exército do Anticristo na terra. Satanás será
aprisionado. Jesus e a igreja reinarão por mil anos.
Todas as vertentes, pré e pós-tribulacionistas, concordam que após o período do
milênio, Satanás será solto da prisão onde foi colocado por Jesus. Furioso pelo triunfo de
Cristo e da igreja, tentará sua última investida, enganando milhões de pessoas de todas as
nações da terra, e reunindo-as para uma guerra contra os santos. Contudo, seus planos serão
frustrados por um fogo que descerá do céu e o consumirá, juntamente com seu exército
84
.
Satanás será então lançado no lago de fogo e enxofre, onde já estavam a Besta e também o
falso profeta (o falso profeta é um líder espiritual mundial que promoverá a adoração ao
Anticristo durante o seu governo. Ele foi lançado no lago de fogo juntamente com a Besta,
quando Jesus venceu a guerra do Armagedom). No lago de fogo, Satanás, a Besta e o falso
profeta serão atormentados dia e noite, por toda a eternidade.
Após esses acontecimentos, virá o “Grande Julgamento” ou “Juízo Final”, quando
todas as pessoas que já viveram na terra, em todas as épocas, adultos e crianças, ressuscitarão,
e serão individualmente julgadas por Deus, assentado num trono branco
85
. Esse julgamento
será baseado em informações contidas em livros, que registram o que cada pessoa realizou ao
longo da sua vida no mundo. As pessoas que creram em Jesus poderão receber recompensas,
dependendo do seu esforço de santificação pessoal. Ou seja, aqueles que não apenas creram,
mas ao longo de suas vidas na terra foram “servos bons e fiéis”, obedecendo à Palavra de
Deus, serão devidamente galardoados. Os demais crentes receberão apenas reprovações,
pouco ou nenhum galardão
86
. Haverá ainda um outro livro, o mais importante, chamado
“Livro da Vida”, onde estarão registrados os nomes daquelas pessoas a serem salvas
87
. As
pessoas cujos nomes não forem encontrados no Livro da Vida sofrerão a “segunda morte”, ao
serem condenadas e lançadas no lago de fogo, onde sofrerão eternamente
88
. Em geral, os
fundamentalistas sustentam que o Livro da Vida contém apenas os nomes daquelas pessoas
que creram em Jesus, e também daquelas pessoas que viveram antes da época de Cristo, mas
obedeceram à Palavra de Deus (os hebreus).
84
Sobre a última investida de Satanás, ver Apocalipse 20.7-10.
85
O juízo final é mencionado em Apocalipse 20.11-15.
86
As referências bíblicas sobre o julgamento e a recompensa da igreja são: Mateus 5.11-12; 25; João 5.22;
Romanos 14.12; I Coríntios 3.12-15; 9.25-27; 2 Coríntios 5.10; Gálatas 6.8-10; Colossensses 3.23-25; Hebreus
6.10; e Apocalipse 2.11,26-28.
87
O Livro da Vida é mencionado diversas vezes na Bíblia: Filipenses 4.3; Apocalipse 3.5; 13.8; 17.8; 20.12,15;
21.27.
88
Sobre a segunda morte, ver Apocalipse 20.15 e 21.8.
50
Existem diferentes interpretações sobre o tipo de recompensa a ser oferecida por Deus
à igreja. Algumas sustentam que os crentes que se destacarem por uma conduta santificada
serão considerados “vencedores”, enquanto para outras vertentes tal termo bíblico aplica-se a
todos os salvos. Entre a primeira linha, algumas vertentes relacionam o galardão a um acesso
privilegiado dos vencedores à pessoa de Cristo durante a eternidade, e a um gozo de maiores
prazeres eternos. Outras vertentes pré-tribulacionistas sustentam que na ocasião do Juízo Final
a igreja já terá sido julgada, num tribunal especial que acontecerá logo após o arrebatamento,
chamado “Tribunal de Cristo”. O Juízo Final servirá, então, apenas para julgar as ações
daqueles que em vida não creram em Jesus, enquanto o julgamento da igreja será especial por
ter a finalidade de recompensá-la, e não de condená-la ou absolvê-la. Para tais intérpretes, a
recompensa dos “vencedores” será a participação no milênio, ou seja, o fato da pessoa ter sido
arrebatada e salva não garantirá o seu retorno à terra para governar com Cristo durante mil
anos. Outras vertentes sustentam que o galardão está relacionado à proeminência política
concedida a certas pessoas durante os mil anos do governo de Cristo.
Após o Grande Julgamento e a condenação daqueles que foram lançados no lago de
fogo, chegará o chamado “Dia do Senhor”, anunciado na Bíblia em II Pedro 3.10: “Virá,
entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo,
e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão
atingidas”. Ou seja, o mundo será destruído, e será substituído por uma nova criação, novos
céus e nova terra, onde Deus viverá eternamente com os salvos
89
. Em seguida, descerá dos
céus uma cidade maravilhosa, a Nova Jerusalém, construída com materiais valiosos como
ouro e pedras preciosas, onde estará localizado o trono de Deus e do Cordeiro
90
. A nova
ordem mundial terá como sede a Nova Jerusalém, e se caracterizará pela paz e pela justiça,
além da ausência da morte, da tristeza, do choro e da dor. Para os pós-tribulacionistas e para
algumas vertentes pré-tribulacionistas, a mais importante recompensa dos vencedores será a
habitação, durante toda a eternidade, dentro da Nova Jerusalém.
Como já citado, os fundamentalistas esperam ansiosamente por tais acontecimentos
extraordinários. A prontidão para o fim é uma preocupação central em sua vida presente, e
movimenta também a sua ação evangelizadora. Por isso Frikel, um frade franciscano que
realizou diversos estudos antropológicos na região das Guianas, especialmente entre os Tyrió,
acusou os missionários da UFM/MEVA de provocarem um “terrorismo espiritual” entre os
nativos com o objetivo de atraí-los para as suas missões e salvar-lhes as almas (Frikel,
89
Sobre o novo céu e a nova terra, ver Isaías 65.17 e Apocalipse 21.1.
90
Sobre a Nova Jerusalém ver Isaías 65.18-25, e também os capítulos 21 e 22 de Apocalipse.
51
1971:20). A pregação escatológica dos norte-americanos certamente instituiu um pavor entre
os nativos, o fato foi abordado também por Howard. Segundo ela,
Robert Hawkins, the first missionary among the Waiwai in the 1950’s,
preached a hellfire-and-brimstone version of Christianity, featuring
harrowing descriptions of the final apocalypse from de biblical chapter of
Revelations. Like many other fundamentalist protestant missionaries, he was
adamant in telling the Waiwai that those who never heard of Jesus, like those
who learned about him but refused to accept him, are condemned to be cast
into the fires of hell at the Last Judgment. Salvation, he insisted, is not
dependent on “good works”, but on the voluntary acceptance of Jesus as
one’s personal savior (Howard, 2001:355).
A terrível versão do fim dos tempos anunciada por Robert Hawkins e Claude Leavitt
incluía a destruição do mundo por um “grande fogo”, provavelmente uma alusão ao Dia do
Senhor, do já mencionado trecho bíblico de II Pedro 3.10. Na passagem abaixo Howard
reproduz o relato de um índio Xerew que ouviu a pregação apocalíptica dos norte-americanos
no início do ano de 1954. A autora também faz observações sobre o fluxo populacional
indígena causado pelo medo do fim do mundo:
[T]he strangers then told a terrifying story of a Big Fire about to come that
would destroy the earth and heavens. Kaan, who created humans and lived
up in the sky, would be angry because humans were acting so badly. […]
Frightened, young Warapuru said he would go hide in an old animal burrow
as a safe haven when the Big Fire came. “That won’t do any good”, the
Waiwai interpreters said, “They say everything, even rocks, water, stars, and
sun, everything is going to burn up!”. […] Meanwile, Word was spreading
through the villages about the Big Fire that was about to consume the world.
As Hawkins and Leavitt made their way back to the mission at Kanaxen,
they encountered hastly abandoned houses and panicked families who were
fleeing from the rumored flames and heading for the mission, wich they
though would be spared. This sudden influx of people seeking the Lord’s
Word delighted the missionaries and exceeded the fondest hopes (Idem,
:62,64).
Vemos, portanto, que a pregação sobre o fim dos tempos despertou o temor nos
nativos, e foi uma estratégia evangelizadora de fato eficiente. Contudo, pela já descrita
proeminência da preocupação escatológica entre os fundamentalistas, estes não estavam
falsificando a realidade ou manipulando os índios com o objetivo de contabilizar mais adeptos
para a missão – como o texto de Frikel pode sugerir a alguns. Tratava-se, do ponto de vista
missionário, justamente do contrário: descortinar a verdade sobre o futuro, oferecendo aos
Waiwai e aos grupos vizinhos a oportunidade da salvação. Os índios, por sua vez, tinham
motivos para dar crédito à mensagem trazida pelos norte-americanos: até aquele momento, a
52
presença física dos brancos estava invariavelmente relacionada à ocorrência de tragédias na
região, como a escravização e os surtos epidêmicos que dizimaram aldeias inteiras. O anúncio
da iminência de uma catástrofe de proporções cósmicas, embora aterrador, não deve ter
parecido infundado. Mesmo após trinta anos da chegada da UFM no alto Essequibo, época em
que Howard realizou sua pesquisa de campo, o temor dos brancos continuava a ser um
assunto comentado pelos índios. Os Waiwai consideravam que a existência de grupos isolados
na região devia-se à escolha deliberada de índios que temiam sofrer violências coloniais
semelhantes às experimentadas no passado, ou que evitavam os brancos por tomá-los por
espíritos ou seres ancestrais, em razão da aparência pálida e da grande quantidade de pêlo no
corpo que estes possuíam (Howard 2001:319)
91
.
O discurso dos Waiwai convertidos também tem uma ênfase escatológica, tanto em
pregações realizadas pelos pastores nativos em suas igrejas locais, como em viagens
missionárias a outros grupos indígenas. As viagens missionárias planejadas e executadas
pelos Waiwai têm o propósito especial de alcançar “povos não-vistos” (enîhnî komo) que
vivem “muito longe” ou “escondidos” na floresta, e que nunca ouviram falar sobre Jesus
(Howard, 2001:315).
92
Assim como os missionários da UFM, os índios também alegam que
seu esforço para evangelizar esses grupos é movido pelo “amor”:
One biblical theme the Waiwai stressed was God’s abiding love for his
children and his invocation to “love one another”. Another was the Last
Judgment, when the earth will be destroyed and Jesus will separate the good
and the peaceful (those who have adopted him as their savior) from the bad
and the angry (those who have refused him). The Waiwai promised the
people they “discovered” that, if they “grabbed onto Jesus” (Ciisusu
ahsîche), they would be reborn after death and live forever. Through a
combination of these alternately soothing and frightening images – the same
ones introduced by the fundamentalist missionaries years ago – the Waiwai
wielded their best oratorical skills to persuade newly contacted peoples to
follow them back to their village, where they could expound further on the
“true words” (yaaro tîmtapotaxmu) in the Bible. […] The Waiwai were
anxious to persuade the “angry peoples” to abandon their hostility against
91
Segundo Mentore, os cabelos figuravam, para os Waiwai, como uma força natural a ser controlada pela cultura
(1993:28-29). Índios de ambos os sexos deixavam os cabelos da cabeça crescerem até ficarem bem longos, mas
controlando-os pelo uso de artefatos e arranjando-os da maneira correta. Já os cabelos da face e do corpo eram
sistematicamente removidos; especialmente os da face – cílios e sobrancelhas inclusive. A face e os olhos em
particular deveriam estar sempre limpos e brilhantes por serem a “porta de entrada” para as visões da mente,
cujas imagens constituem o conhecimento para os Waiwai. A importância dos atributos corporais na definição
waiwai do que é um ser humano será abordada no próximo capítulo.
92
Traduzi como “povos não-vistos” a tradução unseen people, feita por Howard. A expressão é parecida com as
utilizadas pelos missionários para classificar os Waiwai e os demais grupos ao redor do mundo sem
conhecimento do evangelho ou sem representatividade cristã nativa: unreached people ou unevangelized people.
No próximo capítulo examinarei melhor a categoria utilizada pelos waiwai.
53
them and to begin to “love” the Waiwai as much as the latter “loved” them.
(Howard, 2001:324)
Se o medo da destruição do mundo foi o motor inicial do interesse dos Waiwai pela
mensagem cristã, a desejabilidade da vida eterna foi o tema mais desenvolvido pelo seu
discurso escatológico. O julgamento por Deus é enfatizado por eles como momento no qual
todas as pessoas que aceitaram a Jesus receberão a vida eterna como recompensa, tornando-se
belas e imperecíveis. Howard nota que esses atributos alcançados através do cristianismo –
beleza e durabilidade – são os mesmos que tornam as miçangas objetos vitais, tão admirados e
cobiçados pelos Waiwai. Também são atributos sociais muito valorizados, cultivados por
pessoas maduras ou sábias: a firmeza e a estabilidade são características admiradas nos
líderes; os espíritos ou almas das pessoas maduras encontram-se firmemente presos aos seus
corpos. Essas imagens contrastam com as de entidades imaturas, perecíveis, de pouco valor.
Desse modo, a vida eterna concedida por Deus permitirá a plena transformação dos Waiwai
em seres permanentes, e mais, projetará essas qualidades num futuro infinito (Howard,
2001:353-355).
O céu cristão é descrito pelos Waiwai como um lugar muito iluminado e
extremamente agradável, “uma grande aldeia onde todos são alegres, bonitos e imortais”
(Idem, :353 tradução minha). Entre os Waiwai, a pessoa com alegria adorna e embeleza seu
corpo; ela só pode ser encontrada no meio de outras, divertindo-se, e nunca retraída, isolada
em casa. O termo nativo para a alegria, tahwore, é uma intensificação de tawake,
equanimidade ou paz que idealmente permeia as relações entre pessoas adultas e socialmente
maduras. A alegria é valorizada, portanto, como a forma mais elevada de existência social, e
se faz presente através da beleza, do riso e da jocosidade, elementos característicos dos rituais
festivos Waiwai (Howard, 1993:253). Nesses momentos intensos da vida coletiva,
especialmente nas festas anuais da Páscoa e do Natal, a alegria é deliberadamente produzida
com o incentivo dos pastores e demais líderes, que estimulam a realização de muitas
brincadeiras envolvendo todas as pessoas presentes nas aldeias (Idem, :254-255)
93
. Após a
ressurreição e o julgamento final, aqueles que aceitaram a Jesus viverão permanentemente
nesse estado exuberante de harmonia coletiva, hoje restrito a ocasiões especiais.
Howard observa ainda que essa descrição do céu cristão é semelhante àquela que os
Waiwai antigos faziam de uma das camadas celestes, na qual habitam os Maraki-yenna e
93
Howard nota que uma dessas brincadeiras estimulada pelos pastores nativos subverte o ethos puritano
ensinado pelos missionários, numa verdadeira “waiwaização” do cristianismo. No “jogo da banana” os homens
perseguem as mulheres, tentando convencê-las a comer bananas que eles seguram à altura da virilha (1993:254).
54
também as “almas-olho” (ewrï ekatï) das pessoas que já morreram
94
. A alma-olho é um
segundo componente espiritual da pessoa, além do já mencionado ekatï
95
. Após a morte da
pessoa, o ewrï ekatï ascende para a primeira camada do céu, onde viverá eternamente (Fock,
1963:20; Mentore, 1993:31). Localizada logo acima dos humanos, essa camada celeste era
descrita como um lugar iluminado e amistoso onde todos eram alegres.
Todavia, a certeza da vida eterna da alma-olho não eliminava a angústia relacionada
ao destino póstumo do ekatï. Queiroz observa que antes do cristianismo, apenas os xamãs
waiwai aguardavam a morte com tranqüilidade, por saberem que o seu ekatïnho iria
encontrar-se com seus espíritos especiais – no céu, nas montanhas ou no fundo do rio – junto
aos quais viveria para sempre (1999:278,279)
96
. Os Waiwai comuns, ao contrário, não sabiam
o que aconteceria com o seu ekatïnho: ele poderia ir para a primeira camada celeste ou
permanecer na terra, incorporando-se em algum animal ou planta, ou ainda conservando-se
junto aos restos mortais de onde partiria para amedrontar, provocar doenças e até mortes entre
os humanos. Desse modo, o cristianismo trouxe a certeza da imortalidade de uma forma muito
mais abrangente, estendendo a promessa da vida eterna a todos os nativos, e não só aos xamãs
(Idem, :279).
O discurso evangelizador dos Waiwai também apresentava imortalidade como a
dádiva final e mais importante de Deus para todas as pessoas que aceitassem Jesus:
The purpose of evangelizing formerly “unseen tribes” who had never heard
of Jesus, is to tell them the stories about his life and sacrifice, in order that
these peoples may exercise the choice of asking Jesus (or the Holy Spirit)
into their bellies. The Waiwai say they cannot force anyone to convert, but
they can give others the opportunity to do so, and thus gain access to
immortality (Howard, 2001:342-343).
É interessante notar que a salvação do sofrimento no inferno não é uma ênfase do
discurso missionário dos Waiwai, e sim o desejo pela vida eterna. O inferno, embora seja um
94
No próximo capítulo há uma descrição mais detalhada das camadas cósmicas waiwai, conforme estas são
apresentadas na etnografia de Fock (1963:20,101-103). Maraki é o nome de um grande pássaro não traduzido
pelo autor. Os Maraki-yenna são seres do tamanho de uma criança de seis anos, mas com a aparência semelhante
à dos Waiwai.
95
Mentore esclarece que para os Waiwai a alma, ekatï, é responsável pela vitalidade do corpo humano como um
todo (1993:31). A única parte do corpo ao qual se atribui uma alma distinta é o olho, que possui o ewrï ekatï.
Embora a alma do olho não seja essencial para a manutenção da vida do corpo, é ela que confirma essa vida, ao
conferir brilho e radiância ao olhar da pessoa. A importância da alma-olho está relacionada ao fato, notado por
Mentore, da visão ser um atributo essencial na definição da humanidade para os Waiwai, por ser a principal
porta de entrada do conhecimento para a cabeça.
96
As observações de Queiroz sobre o destino pós-morte do ekatï baseiam-se no já citado trabalho de Fock
(1963).
55
motivo de angústia para esses índios, parece não ser alvo de descrições mais elaboradas
97
. A
aflição concernente à punição eterna surge com a lembrança dos antepassados que não
tiveram a oportunidade de ouvir falar sobre Jesus (Howard, 2001:356-357). Howard sustenta
que os Waiwai sentem-se inconformados com a atitude de Deus punir pessoas que se
comportaram eticamente ao longo de suas vidas. Talvez seja justamente pelo fato da doutrina
da salvação pela fé ferir o seu senso de justiça, que os Waiwai procuram agir de forma a
merecer a salvação, sustentando que a vida eterna será concedida a eles por Deus em troca,
em recompensa ou como um “pagamento” pelas viagens missionárias realizadas em direção a
outros grupos indígenas (Idem, :284,353)
98
. Desse modo, a conversão é descrita pelos Waiwai
como uma troca com Deus, de almas pela imortalidade. Essa idéia manifesta-se, por exemplo,
na seguinte fala de um proeminente pastor Waiwai, transcrita na tese de Howard:
97
O mesmo não acontece entre os Wari’ evangélicos estudados por Vilaça (2008:174-175,191-192). Falantes de
uma língua txapakura e habitantes do estado de Rondônia, os Wari’ têm sido evangelizados por missionários
fundamentalistas da New Tribes Mission desde de 1956. Após passarem por sucessivos movimentos de
conversão e de abandono do cristianismo, experimentam hoje um reavivamento iniciado no ano de 2001. Seu
discurso escatológico enfatiza o inferno em detrimento do céu. O inferno é alvo de um grande interesse, e
ricamente descrito como um lugar de sofrimento no qual as almas das pessoas passarão a eternidade sendo
assadas no fogo. O céu, por sua vez, é pouco mencionado, e considerado um lugar estéril, onde as pessoas são
jovens e belas mas não se relacionam, e ocupam todo o seu tempo escrevendo a Palavra de Deus. Além disso, no
discurso wari’, o medo do inferno aparece como motivador da conversão e também do esforço de evangelizar
outros (ao contrário do discurso Waiwai sobre a conversão e sobre a evangelização, que enfatiza o interesse pela
vida eterna). Vilaça nota que a esterilidade do céu wari’ deriva do fato de lá não existir afinidade, e todos
viverem num estado de consangüinidade previamente dado, que não precisa ser construído nem mantido através
dos relacionamentos entre as pessoas. Desse modo, o céu wari’ é povoado por indivíduos que existem a priori e
independentes das relações que possam estabelecer uns com os outros: eles não manifestam cuidados mútuos,
não trocam alimentos, não dormem juntos, não conversam. Essa abolição da relação atualiza de uma maneira
radical a própria idéia cristã/ocidental de indivíduo (Idem, :192).
98
Aqui, mais uma vez, há uma demonstração da singularidade do cristianismo waiwai, onde por vezes as idéias
transmitidas pelos missionários assumiram significados próprios, diversos dos que tinham em sua origem. A
afirmação de que a salvação é obtida “em troca”, como “recompensa” ou “pagamento” pelas viagens
missionárias é uma heresia do ponto de vista da teologia cristã reformada, segundo a qual ninguém pode merecer
a salvação, sendo a fé em Jesus o único pré-requisito para a vida eterna. Contudo, tal idéia dos Waiwai
aproxima-se de uma doutrina originalmente defendida por Wesley, segundo a qual nem todo aquele que passa
pela experiência da conversão tem a garantia de ser salvo, sendo necessário “conservar a graça” continuamente,
por meio da santificação pessoal (cf. Thompson, 2002:241-242). Desse modo, a evangelização de outros seria a
principal maneira dos Waiwai “conservarem a graça”. Embora não seja possível afirmar que tal doutrina fosse
ensinada pelos missionários da UFM, a idéia segundo a qual os Waiwai consideram a evangelização de outros
como um meio de santificação faz sentido do ponto de vista nativo, e será melhor desenvolvida no próximo
capítulo.
Ainda a respeito desse tema, cabe destacar aqui que a metáfora da recompensa divina aos salvos ser
como um “pagamento” vem da Bíblia, onde aparece na chamada “parábola dos talentos” ensinada por Jesus em
Mateus 25.14-30 (“talento” é o nome de uma moeda corrente na época). A parábola tem um sentido claramente
escatológico e compara Deus a um senhor que, ao voltar de viagem, recompensa seus servos por administrarem
bem uma quantia de dinheiro a eles confiada. Um dos servos não soube administrar o dinheiro durante a ausência
do senhor e por isso foi destituído de tudo e “lançado nas trevas, onde haverá choro e ranger dos dentes”. Muitas
vertentes fundamentalistas interpretam essa punição como o envio para o inferno. O pagamento pelas boas obras,
por sua vez, não costuma ser interpretado como a salvação ou a vida eterna (já que esta depende da fé) e sim
como uma recompensa oferecida aos que já são salvos, um gozo de maiores bênçãos celestiais, por exemplo.
56
When I die and go to heaven, Jesus will give me with immortality for having
spent my life traveling in search of other peoples. When I get there, he will
say: “Yakuta, you were extremely good while you were on earth. Because of
that, here is your money for having done so much work on people”. That’s
what he’ll say when he repays me with immortality. Sometimes we call it
“money” (apurantan); other times we call it “being immortal” (waypîn me
kehtopo), “becoming everlasting” (eroromerono me), “not disappearing”
(ehcamnopura kehtopo) – those are good terms. But some people
misunderstand it: “Oh, great, I’ll get money up there!” they say. They don’t
understand that it’s only like money: it’s really immortality, living forever.
However, if we don’t teach other people about Jesus, then we won’t receive
anything when the time comes, oh dear. (Yakuta, 08/01/1986 apud Howard,
2001:354).
Além dessa ênfase na vida eterna do espírito, os Waiwai também relacionam a
imortalidade à ressurreição do corpo transformado, de modo semelhante ao que aconteceu na
ressurreição de Jesus. Nas comemorações da Páscoa esse discurso é conduzido de maneira
mais enfática, por ser a ocasião anual na qual os pastores batizam por imersão os nativos que
atingiram a adolescência e os adultos novos-convertidos, especialmente aqueles alcançados
pelas viagens missionárias dos Waiwai. Howard nota que o ritual do batismo cristão
substituiu os rituais de passagem para a idade adulta praticados antes da chegada dos
missionários, o que é condizente com a relevância que os Waiwai dão à evangelização como o
processo de educação e socialização por excelência (2001:342)
99
. O batismo por imersão na
idade adulta, ou na “idade do discernimento”, realizado como drama público e como um ato
espetacular e marcante na vida dos adeptos é uma característica da liturgia da igreja Batista –
e, portanto, dos missionários norte-americanos batistas que chegaram ao Brasil (cf. Mendonça
e Velasques Filho, 2002:44). Embora eu não tenha conseguido informações precisas sobre as
denominações das igrejas de origem dos missionários da UFM, é grande a possibilidade deles
realmente serem batistas, não só pelas características assumidas pelo ritual do batismo entre
os Waiwai, mas também porque é justamente na região norte-americana da qual procederam
os Hawkins, conhecida como Bible Belt, que a The Southern Baptist Convention – uma
associação de igrejas batistas fundamentalistas com milhões de membros – é mais forte nos
Estados Unidos. Vanessa Grotti, antropóloga que recentemente estudou o cristianismo dos
Tiriyó – índios que foram evangelizados por Claude Leavitt com a ajuda de alguns Waiwai –
afirma que os missionários da UFM eram sim batistas (Grotti, 2007). Howard menciona que
Irene Benson era menos conservadora que os Hawkins e os Leavitt, por ser de origem
congregacionalista. De todo modo, a igreja estabelecida entre os Waiwai não assumiu
99
A relevância da evangelização como um processo de educação e socialização será analisada no próximo
capítulo.
57
qualquer denominação. O batismo é definido pelos índios como um momento de
“representação” (yukuknon) ou “recordação” (tîhtînotopo) da ressurreição vindoura (Howard,
2001:342). Reproduzo abaixo um trecho da tese de Howard, no qual ela observa as analogias
traçadas entre o batismo e a ressurreição dos mortos nas pregações realizadas por pastores
Waiwai na Páscoa de 1985:
Baptisms (involving full immersion) are conducted at easter, when Waiwai
pastors draw elaborate parallels between the descent into the water and
reemergence into the air, on the one hand, and, on the other, the rhythms of
Christ’s life, who was killed and buried, then raised up and resurrected.
Illustrating these movements with dramatic gestures, the pastors make
further analogies with the earthly death and spiritual resurrection of “God’s
Children” (Kann xîkrîn) at the Last Judgment. Accept Chris is necessary, the
Waiwai say, in order to earn immortality in the afterlife. […] At the second
coming, when Jesus will return to evaluate the conduct of all the souls who
ever lived, the holy spirit will accompany the souls of true converts through
the ordeal of judgment and, at last, through the Gates of heaven (Howard,
2001:342)
Howard fala em “morte terrena” e “ressurreição espiritual” no julgamento final, e não
em “ressurreição corporal”. Todavia, na escatologia fundamentalista os espíritos ressuscitarão
em seus respectivos corpos, que sairão das sepulturas assim como o corpo de Jesus saiu do
túmulo após três dias de sua morte
100
. A classificação realizada por Howard da ressurreição
como um evento espiritual provavelmente deve-se ao fato da vida eterna ser descrita pelos
Waiwai como um fenômeno celestial, e os seres que no tempo presente habitam as camadas
celestes serem descritos como espíritos (kworokjam). Contudo, cabe lembrar a já mencionada
observação de Fock, sobre a definição de kworokjam ser ambígua do ponto de vista ocidental,
não correspondendo exatamente ao que nós consideramos como entes espirituais/impalpáveis.
A categoria kworokjam inclui seres que possuem corpos (por exemplo, os já citados yenna, ou
os yin), embora esses corpos tenham propriedades diferentes dos corpos dos Waiwai, com
qualidades intensificadas ou sobrenaturais. Do mesmo modo, os corpos ressuscitados estarão
transformados, e possuirão capacidades extraordinárias que no tempo presente são atribuídas
apenas aos seres espirituais, incluindo a alma ou espírito humano, especialmente dos xamãs –
por exemplo, a capacidade de movimentar-se entre o céu e a terra, a capacidade de aparecer
ou desaparecer subitamente, ou atravessar obstáculos materiais como portas ou paredes. Tais
100
A passagem bíblica de Mateus 27.51-54 descreve um momento assombroso após a ressurreição de Jesus no
qual alguns corpos deixaram as covas e entraram na cidade de Jerusalém, encontrando-se com aquelas pessoas
que ainda não haviam morrido. Esse trecho é interpretado por muitos fundamentalistas como um fato já
acontecido como sinal da ressurreição dos mortos que acontecerá no fim dos tempos.
58
habilidades foram exercitadas por Jesus após ter seu corpo ressuscitado, conforme
mencionado na Bíblia
101
. Por fim, parece-me fundamental o fato da ressurreição garantir a
permanência da pessoa. A imortalidade enquanto noção tradicional waiwai refere-se à
continuidade da vitalidade espiritual após a morte do corpo – através da alma-olho e do ekatï,
este último sob a forma de ekatïnho – o que não indica uma continuidade da pessoa ou de sua
personalidade individual (Fock, 1963:14,162-164; Mentore, 2005:137-138). O abandono
definitivo do corpo pelo ekatï era considerado o fim completo e permanente da existência de
alguém, e por esse motivo os Waiwai temiam a morte antes de se tornarem cristãos (Fock,
1963:162). Parece-me que a vida eterna torna-se possível no cristianismo waiwai justamente
porque os corpos dos mortos que “aceitaram Jesus” serão ressuscitados, e novamente unidos
aos seus ekatï.
Antes do cristianismo também era possível, em alguns casos bem raros, contornar a
morte, pois os Waiwai afirmavam que seus xamãs eram capazes de ressuscitar pessoas
(Dowdy, 1997). O tema da ressurreição pelos poderes xamânicos, empregados através da
técnica do sopro sobre o corpo morto, também está presente nos mitos Waiwai (Fock,
1963:114). Fock observa que os xamãs poderiam ser uma exceção à regra de que as pessoas
deixam de existir após a morte do corpo (Idem, :166-167). Ao contrário dos nativos comuns,
os xamãs aguardavam a morte com tranqüilidade, e ao invés de terem seus corpos cremados,
procedimento padrão entre os Waiwai, eram enterrados
102
. Ao lado da cova, um outro xamã
deveria fincar verticalmente uma tábua de madeira plana com a altura aproximada de 5
metros. Os dois terços de baixo da tábua eram pintados horizontalmente com anéis de
urucum, e o último terço de cima era pintado com anéis negros. Essa tábua era chamada de
“escada” ou “ponte” do xamã, através da qual os seus espíritos auxiliares (hyasïrï) poderiam
ascender ao céu após deixar o corpo. Os Waiwai afirmavam que após a saída dos hyasïrï, o
ekatïnho do xamã também deixava a cova, mas “como corpo” e ia para o céu, para o fundo do
rio ou para as montanhas (dependendo do lugar de habitação do seu principal espírito
auxiliar), e ali vivia eternamente
103
. Para Fock, o uso da expressão “como corpo” para
caracterizar a saída do ekatïnho indica a provável sobrevivência da pessoa do xamã, e não
apenas do seu princípio vital.
101
Em Mateus 28.9-10; Lucas 24.31,36-47; João 20.19-21,26-30.
102
Fausto observa que o tratamento diferenciado dos corpos dos xamãs mortos era e continua sendo costume
entre alguns grupos tupi-guarani, onde aparece relacionado à idéia do xamã ser capaz de recobrar a vida
(2008:209-210). Em outro artigo, o mesmo autor examina a idéia da imortalidade corpórea atingida pelos xamâs
Guarani (2005:398).
103
A expressão utilizada por Fock para traduzir a fala nativa a respeito do ekatïnho do xamã sair da cova “como
corpo” é “as body”.
59
CAPÍTULO 2
O Cristianismo dos Waiwai
Desde meados dos anos 1950 a maioria dos Waiwai se considera cristã. Nos dias de
hoje, quase todas as famílias possuem a Bíblia traduzida, e as maiores aldeias possuem igrejas
que realizam diversas atividades por semana, lideradas por pastores nativos – como pude
observar em rápida viagem à região, no início de 2007, quando participei dos trabalhos de
demarcação e vigilância da TI Trombetas-Mapuera. A presença dos missionários da MEVA é
reduzida em comparação às primeiras décadas de sua atuação: em janeiro de 2007, encontrei
apenas dois missionários morando nas aldeias, a norte-americana Irene Benson – uma senhora
com mais de 50 anos de idade e mais de 30 anos de trabalho entre os Waiwai – e o lingüista
Charles Chaplin, também norte-americano. O acompanhamento da igreja nativa tem sido
realizado principalmente através de viagens regulares de curto prazo, por missionários
brasileiros sediados em Boa Vista. Contudo, não existem trabalhos antropológicos que
tematizem a experiência cristã recente dos Waiwai. Os dados e as análises antropológicas
mais significativos sobre o cristianismo nativo encontram-se na tese de Catherine Howard,
que realizou sua pesquisa de campo entre 1984 e 1986. Além do importante trabalho de
Howard, os já mencionados livros escritos por Homer Dowdy são uma fonte de informações
sobre as primeiras conversões indígenas, e sobre as primeiras viagens de evangelização
realizadas pelos próprios waiwai a outros grupos nativos, nas décadas de 1960 e 1970.
Ao longo deste capítulo, procuro reconstruir o processo de transformação dos Waiwai
em cristãos narrado no Christ’s Witchdoctor, demonstrando que a versão dos missionários
segue um padrão convencional comum às narrativas evangélicas sobre conversões.
Importantes trabalhos antropológicos existentes sobre esses índios – produzidos, sobretudo,
por Fock, Howard, Mentore, Dias Junior e Queiroz – permitem esboçar um panorama
sociocosmologico nativo que serve de contexto e também de contraponto aos eventos
narrados pelos missionários. Também busco, através desses trabalhos, esboçar uma imagem
do Cristianismo waiwai em seus primeiros anos de convertidos.
O personagem-chave: Ewká
No Christ’s Witchdoctor a conversão dos Waiwai é apresentada como um processo
iniciado em 1926, quando um missionário inglês no Brasil ouviu falar sobre a existência
60
desses índios e começou a interceder a Deus pela salvação deles (Dowdy, 1997:10,238)
104
.
Nos anos seguintes, muitos cristãos na Europa e nos Estados Unidos uniram-se ao seu
esforço, providenciando sustento financeiro e espiritual para que os três irmãos Hawkins – e
posteriormente os outros missionários da UFM – pudessem evangelizar os Waiwai
105
. A
conversão desses índios aparece, no livro, como conseqüência do esforço de tais homens e
mulheres piedosos, e principalmente, como resultado de uma série de intervenções
maravilhosas do próprio Deus entre os nativos. Na visão dos missionários, a ação de Deus
tornou-se evidente por meio de várias situações inexplicáveis que ao longo dos anos
contribuíram decisivamente para a conversão dos Waiwai (Dowdy, 1997:09). Entre esses
eventos maravilhosos, estão alguns sonhos de Ewká, nos quais o xamã e líder interage
diretamente com o Espírito de Deus. Outras circunstâncias dramáticas experimentadas por
Ewká nos anos anteriores à sua conversão mostram como Deus estava preparando seu coração
para receber o evangelho. Ewká é apresentado como personagem central do processo de
conversão dos Waiwai.
Quando em 1949 os missionários da UFM chegaram pela primeira vez em Erepoimo,
o homem mais influente da aldeia chamava-se Feuê, e o mais influente entre todos os Waiwai
do Essequibo era o xamã Mïya, que morava em Mawicá, outra aldeia rio acima (Idem,
:57,96). Ewká era um jovem de aproximadamente 18 anos, solteiro e recém-iniciado no
xamanismo. Ele foi um dos que se ofereceu como guia para levar Rader e Robert Hawkins até
as aldeias do rio Mapuera. Ali, do lado brasileiro da Serra Acaraí, os homens mais influentes
eram os xamãs Mafoliô e Xiriminau. A partir dessa época, o potencial de liderança de Ewká
evoluiu junto com a relação dos Waiwai com os missionários. Em meados dos anos 1960,
Ewká havia se tornado o maior líder que os Waiwai já conheceram, como atestam os
trabalhos de antropólogos que pesquisaram esses índios:
If a position of “Paramount Chief” could be seriously determined for the
Waiwai (and it cannot), than Ewka would have been its individual occupant.
For many years he had been the leader of Yakayaka (Banana Village)
community. During the 1960s, possibly at the peak of missionary activity in
the area, Ewka endured as many as five settlements – with approximately
104
Esse missionário era londrino, e chamava-se Leonard Harris. O livro não traz maiores detalhes sobre ele, nem
sobre seu trabalho no Brasil, mencionando apenas que na época os Waiwai não passavam de um nome listado
em diários de exploradores do século XIX. Posteriormente, por volta de 1958, Harris foi convidado pelos
missionários da UFM para participar do ritual de batismo dos primeiros Waiwai.
105
Por “sustento espiritual” refiro-me a diversas práticas religiosas de apoio aos missionários, por exemplo, a
realização de orações em seu favor e em favor dos Waiwai, a manutenção de correspondência, a divulgação do
seu trabalho, e a benção recebida de igrejas favoráveis à causa missionária.
61
528 people – located in very close proximity to Yakayaka (Mentore,
2005:46).
Ewka seguiu sendo o grande líder e Yakayaka é lembrado como um dos
maiores (e melhores, para alguns) momentos da história Waiwai. [...] Ewka
continua sendo visto como o grande líder Waiwai, reconhecido por todas as
Comunidades pelas quais passei, inclusive entre os Hixkaryana, no Rio
Nhamundá (Dias Junior, 2005:33,37).
Ele [Ewká] foi o maior de todos tuxawa mesmo, foi para o Mapuera,
Nhamundá, Jatapu, foi para Belém, Brasília, São Paulo, muitos lugares
(Yakuta, irmão de Ewká e líder da aldeia Jatapuzinho, 1999 apud Dias
Junior, 2005:47).
A consolidação da grande influência de Ewká esteve, desde o início, associada à
capacidade de mediar a relação dos nativos com a alteridade representada pelos norte-
americanos e pelo Deus cristão
106
. Vejamos.
Tradicionalmente, os homens mais influentes entre os Waiwai são aqueles que
agregam uma ampla rede de parentes em sua órbita residencial (Howard, 2001:110,152-163,
194)
107
. No início, filhos solteiros e filhas casadas, cujos maridos devem prestar serviços aos
sogros. Ao longo dos anos, a quantidade de co-residentes é expandida, pela atração dos filhos
homens casados com suas respectivas esposas e, futuramente, parentes e afins destas. Com o
envelhecimento do casal sênior, núcleo em torno do qual os outros casais se estabeleceram, os
laços mais importantes que unem os co-residentes passam a ser aqueles entre irmãos e
106
O processo pelo qual Ewká se tornou líder dos Waiwai, descrito pelos missionários e abordado por mim neste
capítulo, também foi analisado por Dias Junior em sua tese de doutorado (2005:37-48). Para construir seu
argumento, o autor utiliza importante material coletado durante sua pesquisa de campo (realizada no final da
década de 1990 e início dos anos 2000), especialmente entrevistas com parentes de Ewka que participaram dos
acontecimentos narrados no Christ’s Witchdoctor. O argumento de Dias Junior será examinado numa próxima
seção deste capítulo.
107
Howard observa que o homem é considerado líder, embora os encargos da função sejam compartilhados com
sua esposa: “although men are the titular leaders in Waiwai society, it is actually a married couple that meets
leadership responsibilities as a unit. A single male cannot fulfill the entire range of obligations expected of a
household, especially an influential one. When both oh the Kaxmi leaders lost their wives, each had to find a
new wife if he were to continue to be regarded as a village leader” (2001:129).
A complementaridade entre o líder de uma aldeia e sua esposa, e a importância desse relacionamento
para a comunidade também foi observada por Mentore em Shepariymo, onde realizou seu trabalho de campo no
final da década de 1970: “In Waiwai society no man can hold the office of Kayavitomo (village leader),
Kaanmii'nyeni'kiiekomo (religious leader), or Antomaniie (work leader) unless he is married and resident in the
same village as his wife. Without a wife a man would find it difficult to maintain the constant and necessary
offerings of cooked food. It is true his mother and/or sister could, and in some cases do, substitute for a wife in
this capacity, but they are considered merely as an inferior replacement and thus, invariably, a temporary one”
(1987:519).
“Shamawa and Awam were a devoted couple; their very devotion to each other appeared like an
emotional adhesive keeping the community togheter. They did what all Waiwai husbands and wives do publicly
to state their relation of marriage. They bathed together. They ate together. They went to the farm together. They
complemented each other’s social existence. […] It was, as it appeared, a constant and binding relationship that
allowed the other marital units to coalesce as a village community” (Mentore, 2005:22).
62
cunhados maduros, cujos filhos jovens começam a casar entre si. Nesse contexto, um desses
homens maduros exercerá uma influência maior sobre o grupo de co-residentes. Em todos os
estágios de desenvolvimento de uma aldeia, a influência do líder se baseia na capacidade de
aplicar novas estratégias para controlar a reprodução social do grupo – isto é, da família
108
.
Tal reprodução se dá pela ampliação das relações de parentesco, intimidade ou “cuidados
mútuos” (nurture), que Howard define como “vínculos obrigatórios e de longo prazo, de
reciprocidade e compartilhamento de substâncias, que emergem da troca contínua, densa e
sobreposta de uma variedade de alimentos, bens, trabalhos e pessoas” (2001:102, tradução
minha). O líder deve induzir um estado coletivo pacífico e alegre, propício ao
desenvolvimento desses relacionamentos, através, por exemplo, da boa convivência com seus
afins, da mediação de conflitos, e do patrocínio de festas com participação de outras aldeias
(Idem, :195-198). Portanto, a liderança não se baseia num controle rígido de pessoas, e as
qualidades que o homem mais influente da aldeia – o kayaritomo – precisa demonstrar são:
generosidade, capacidade de persuasão, eloqüência, e competência nas tarefas habituais
(Howard, 2001:193). Quando um kayaritomo morre, é comum ocorrer a dispersão do grupo,
com os casais se reorganizando em torno de outros núcleos residenciais
109
.
Na época da chegada dos missionários da UFM ao alto Essequibo, o xamanismo era
freqüentemente uma qualificação para a liderança mais geral do kayaritomo, como sugere o
fato dos homens então mais influentes entre os waiwai serem yaskomo – palavra waiwai para
xamã
110
. Em 1954, Fock observou a mesma associação entre os dois papéis:
The intentions of the yayalitomo and the yaskomo may clash, particularly in
the sphere of occupation, so that complete harmony can only be expected
when the same persons fills both offices. Generally, this is the case: in four
of five cases known the yayalitomo was at the same time yaskomo, for
108
Howard ainda identifica um estágio posterior de desenvolvimento comunitário, correspondente à situação
vivida pelos Waiwai após sua conversão e sedentarização. Nesse caso, o líder é o mediador das relações entre
grupos de parentes agregados em vizinhanças distintas de uma mesma aldeia, e também das relações com outros
grupos étnicos que passaram a morar junto com os Waiwai. A influência do líder nesse contexto será examinada
mais cuidadosamente na última seção deste capítulo, e está igualmente relacionada à capacidade de expandir o
grupo social de parentes, mas em níveis cada vez mais complexos, a ponto de incluir outros blocos sócio-
lingüísticos (Howard, 2001:159-161).
109
Esta é uma síntese muito rápida do modelo de organização política e desenvolvimento dos grupos co-
residentes proposto por Howard, a partir do estudo minucioso da composição e dispersão da aldeia Kaxmi, onde
a antropóloga realizou a maior parte de seu trabalho de campo, e da comparação com dados sobre outras aldeias,
colhidos por ela mesma ou por outros pesquisadores no passado (2001). O argumento de Howard inclui uma rica
discussão dos modelos de dominação política formulados anteriormente por Rivière (2000) e Meggers (1971).
110
Já nas épocas das pesquisas de campo realizadas por Mentore, Howard, Queiroz e Dias Junior, os pastores da
igreja eram os que ocupavam uma posição política proeminente pela sua habilidade de lidar com o mundo
espiritual, e não mais os xamãs – pois como mencionei anteriormente, no lugar das relações com os kworokjam,
os Waiwai passaram a privilegiar as relações com o Deus cristão (Howard, 2001:193,197; ver também Queiroz,
1999:274). Voltarei ao tema da proeminência política dos pastores no final do capítulo.
63
exemple, Ewka in Yakayaka, Mïywa in Mauika, Shapaulïtu in Kashimo, and
Maanata in the now deserted Kahri. Only in Aakonioto were the offices held
by two persons, Churuma as yayalitomo and Kapienna as yaskomo. [...] It
therefore can be Said that to be a yaskomo is an important – though not
absolutely necessary – qualification for later becoming a yayalitomo.
(1963:232).
O relacionamento privilegiado dos xamãs com a alteridade era considerado um recurso
essencial para a vida do grupo, ao integrar diferentes domínios espaço-temporais que
compõem o universo social waiwai (Howard, 2001:93). No modelo cartográfico proposto por
Howard, esses domínios espaço-temporais distribuem-se verticalmente e horizontalmente em
relação à posição social ocupada pelos Waiwai. O eixo vertical corresponde a cinco camadas
cosmológicas habitadas pelos kworokjam – classe que inclui, como mencionei no capítulo
anterior, os seres espirituais de maneira geral, com exceção da alma de uma pessoa, ekatï. Por
sua vez, o eixo espaço-temporal horizontal tem como centro os próprios waiwai, considerados
seres humanos plenos, e em posições periféricas, diversos tipos de pessoas consideradas sub-
socializadas: outros ameríndios, quilombolas do Suriname, karaiwa (nome que identifica os
guianenses e brasileiros de maneira geral), e os amerikan (norte-americanos e europeus de
maneira geral) (Idem, :96).
A primeira camada do eixo vertical é a habitação do povo-cigarra, cujos representantes
têm a aparência semelhante à dos Waiwai, com exceção da cor da pele, que é vermelha-clara.
Imediatamente acima, na segunda camada, encontram-se os humanos, e também os animais e
plantas. Como mencionei no capítulo anterior, alguns animais e plantas originam-se dos
ekatïnho, e os demais se originam dos kakenau
111
. Exemplos de animais originados dos
kakenau são os queixadas, que vivem dentro de uma montanha de um afluente do rio
Mapuera; as sucuris, que vivem no fundo dos rios; as onças-pintadas e todas as aves. Também
são encontrados na mesma camada dos humanos ekatïnho errantes que não se transformaram
em animais ou plantas.
As três camadas cósmicas superiores são chamadas coletivamente de “céu”. A
primeira camada celeste, mencionada no capítulo anterior, é um lugar resplandecente onde
todos vivem alegres. Ali encontram-se os equivalentes sobrenaturais de todos os animais
originados a partir dos ekatïnho, e também os maraki-yenna, as ewrï-ekatï, e ekatïnho
incorpóreos. A segunda camada celeste é o domínio dos kakenau. São encontrados nessa
camada o sol, que tem a aparência semelhante à dos humanos, kakenau incorpóreos e os
equivalentes sobrenaturais das plantas e animais originados a partir dos próprios kakenau. A
111
Ou seja, os humanos possuem ekatï, enquanto os animais e plantas possuem kworokjam.
64
terceira e última camada celeste é a habitação do povo-urubu, cuja aparência é semelhante à
dos Waiwai
112
.
Howard sugere que cada um desses seres encarna certos poderes, relacionados ao
domínio espaço-temporal do qual provém. De maneira geral, esses poderes referem-se à
vitalidade e à permanência, em oposição à decadência gradual que caracteriza a temporalidade
humana em seu ciclo de nascimento, crescimento, amadurecimento, morte a apodrecimento
(2001:92-93). Essas potências vitais são canalizadas em benefício dos waiwai pelo yaskomo,
capaz de transitar pelas camadas verticais e comunicar-se com seus respectivos habitantes.
Esse trânsito é realizado por meio de caminhos e passagens desconhecidos dos outros waiwai
(Mentore, 1993:30)
113
. O conhecimento adquirido durante esses deslocamentos e na relação
com a alteridade representada pelos kworokjam é utilizado em benefício dos Waiwai quando,
por exemplo, o yaskomo cura um doente, entoa um novo canto durante uma festa, nomeia um
recém-nascido ou convence o sol a brilhar após um longo período de chuvas (Fock, 1963:34,
125-131,140; Mentore, 1993:29-30). Essa capacidade acentuada de comunicação é a origem
do status proeminente do yaskomo.
Os diferentes domínios horizontais, distribuídos no nível terrestre, partem do centro da
aldeia em direção a espaços cada vez mais exteriores: primeiro as roças, cultivadas
principalmente pelas mulheres; depois a floresta, lugar onde os homens caçam e onde habitam
diversos outros indígenas. Para além da floresta encontram-se as savanas, habitadas pelos
Wapixana e grupos vizinhos. Outros domínios considerados mais selvagens são as regiões
onde vivem os quilombolas do Suriname, as cidades da Guiana e do Brasil e, por fim, a terra
de origem dos amerikan, concebida como um lugar rico onde todos são missionários
(Howard, 2001:95). Cada um desses domínios também possui poderes cobiçados pelos
waiwai: poderes sociais reprodutivos, mercadorias, poderes espirituais relacionados à Bíblia e
aos remédios. Estes poderes são adquiridos pela incorporação de objetos e outros elementos,
tais como estilos arquitetônicos, vestimentas, cortes de cabelo, músicas, rituais (Howard,
2001:96-97). A integração dos domínios horizontais ocorre também pela expansão do
universo de parentes, incluindo pessoas cada vez mais distantes socialmente – isto é,
112
Segundo Howard, após a conversão houve uma acentuada simplificação do complexo cosmológico vertical
relacionado aos kworokjam, que se tornou muito vago (2001:94-95). Além disso, como mencionei no capítulo
anterior, Deus, Jesus Cristo, o Espírito Santo, e os espíritos das pessoas que morreram salvas também passaram a
habitar o céu. O inferno também está nesse plano vertical, embora sua descrição pormenorizada e localização
exata não pareça ser uma preocupação dos Waiwai. Nesse sentido, é interessante mencionar que os índios
convertidos entrevistados por Howard recusavam veementemente as sugestões da antropóloga do inferno se
situar num plano espiritual geograficamente inferior ao habitado pelos humanos (Idem).
113
Uma dessas passagens é descrita na etnografia de Fock, aquela entre a camada habitada pelos humanos e o
céu, separados por um rio. Para atravessá-lo existe uma ponte, que é uma enorme sucuri (1963:83,85).
65
transformando pessoas “de longe” em seres humanos plenos através da aliança (Idem, 2001:2-
3,109). Interessante notar que enquanto essa integração horizontal se dá pela fabricação de
parentes humanos, a integração vertical se dá num movimento inverso, a des-humanização do
yaskomo, que estabelece uma relação de “cuidados mútuos” ou parentesco com os seus
animais favoritos/espíritos auxiliares. A atuação do yaskomo será melhor examinada mais
adiante.
Após esse esclarecimento sobre a atuação do yaskomo e do kayaritomo, voltemos ao
processo pelo qual o jovem Ewká tornou-se influente entre os Waiwai. Como mencionei no
capítulo anterior, a primeira visita dos irmãos Hawkins ao alto Essequibo durou três meses.
Em seguida, os missionários voltaram para as savanas com a ajuda de remadores nativos.
Durante a viagem, esses remadores waiwai ficaram gravemente enfermos, com febre, dores
no estômago e tossindo sangue (Dowdy, 1997:94). Quando retornaram às suas aldeias os
remadores logo morreram, e a doença que trouxeram espalhou-se rapidamente por Erepoimo e
região. Os yaskomo waiwai passaram dias e noites tratando os doentes; contudo, a maioria
destes não resistiu e morreu. Entre os mortos estavam Feuê e outros homens maduros de
Erepoimo, além de mulheres e crianças. Sem líder e temendo os espíritos de tantos mortos que
deveriam estar pairando no ar, os remanescentes decidiram abandonar essa aldeia. Durante
alguns meses, eles vagaram sem rumo pelo alto Essequibo, acampando em diferentes lugares
sugeridos por um ou por outro, e voltando eventualmente para colher da antiga roça que ainda
produzia.
Mïya pretendia que os sobreviventes de Erepoimo se estabelecessem em sua aldeia,
sob sua influência direta. Ele convidou o grupo para uma dança, através de um oho – um
diálogo cerimonial masculino, comumente usado para realizar negociações diversas, como
arranjos matrimoniais, trocas, organização de trabalhos coletivos, convites para festas, e
também em demonstrações de luto (Fock, 1958; Mentore, 2005:189-190). Dependendo da
complexidade da negociação envolvida, um oho poderia prolongar-se por muitas horas e até
mesmo dias; por isso era conduzido por homens maduros, com habilidades persuasivas e
domínio da língua
114
. O mensageiro de Mïya dirigiu o oho a Iwkuma, um jovem que era filho
do irmão da mãe de Ewká. Iwkuma era um hábil caçador, e tinha uma esposa e um filho. Seu
pai, Mapale, fora o xamã responsável pela iniciação de Ewká, e um dos remadores que
trouxera a doença das savanas para Erepoimo.
114
Embora nos dias de hoje o oho não seja mais desenvolvido em sua forma mais estruturada, registrada por
Fock, suas características e objetivos centrais ainda podem ser observados em diferentes contextos rituais entre
os Waiwai (Mentore, 2005:338).
66
De acordo com os missionários, Iwkuma e Ewká haviam rivalizado pela viúva de
Mapale, chamada Ahmuri. Ela era irmã mais nova da primeira esposa de Iwkuma, e este
desejava tomá-la como segunda esposa. Contudo, o pai da jovem desejava que ela se casasse
com Ewká – o que acabou de fato acontecendo. Mas a maior concorrência entre Iwkuma e
Ewká era pela influência no grupo remanescente de Erepoimo. Ewká, ao contrário de seu
primo, ainda não tinha filhos, e não demonstrava talento especial para a caça. Suas maiores
habilidades eram dirigir cantos e dançar durante as festas, além do fato de ser xamã (Dowdy,
1997:67). Por causa da epidemia provinda das savanas, sua atuação era cada vez mais
requisitada em Erepoimo e nas aldeias vizinhas. E sua influência com os kworokjam era cada
vez mais notória: Ewká sonhava muito, e nessas ocasiões comunicava-se com poinko-yin, o
pai dos queixadas, e via bandos desses animais. No dia seguinte a um sonho desse tipo,
mandava caçadores para o lugar onde tinha visto os queixadas, e nunca falhava (Fock,
1963:123; Dowdy, 1997:96). Para os Waiwai, os sonhos são acontecimentos vividos pelas
pessoas através dos seus ekatï: quando alguém dorme, seu ekatï sai do corpo e vive as
situações sonhadas. Embora todos possam sonhar, os yaskomo são aqueles que melhor
desenvolvem essa habilidade, sendo capazes de enviar seus ekatï a longas jornadas cósmicas,
nas quais comunicam-se com diversos kakenau-kworokjam (Fock, 1963:125; Mentore,
1993:29,30). Ewká também soprava sobre os anzóis e armadilhas de pesca, para atrair peixes.
Sua fama como yaskomo crescia, e chegava a concorrer com a fama de Mïya. Na versão dos
missionários, este provavelmente foi um dos motivos para o velho xamã enviar o mensageiro
do oho a Iwkuma. Não era seu interesse reforçar o potencial de liderança de Ewká. Contudo,
muitos Waiwai relutavam em viver junto a Mïya, pois ele também tinha a fama de
feiticeiro
115
.
Iwkuma não deu seqüência ao oho como era esperado. Ele respondeu rapidamente que
iria, junto com os demais, para a dança em Mawicá. De acordo com o Christ’s Witchdoctor,
Iwkuma era considerado imaturo e impulsivo pelos outros Waiwai, o que sua incapacidade de
desenvolver adequadamente o oho apenas confirmara. Ele não conseguiu reunir os
remanescentes de Erepoimo para a dança, e partiu acompanhado de poucos (Dowdy,
1997:101). Insatisfeito, Mïya enviou seu filho – que era marido da irmã de Ewká – para
conduzir o restante das pessoas até a festa. Ainda de acordo com o livro, o filho de Mïya
conseguiu levar o grupo até Mawicá, mas não demonstrava as qualificações necessárias para
115
No Christ’s Witchdoctor, a agressão realizada pelos xamãs é descrita como uma forma de devoração: um
xamã provoca a morte da vítima ao “comer” o seu espírito. No caso específico de Mïya, os Waiwai temiam que
ele enviasse o espírito da onça, com quem ele tinha uma relação especial, para ferir a vítima (Dowdy, 1997:226).
67
ser um líder. Seu discurso não tinha muito entusiasmo, e ele não propunha trabalhos
comunitários – como abrir uma roça ou fazer uma canoa. Além disso, sempre que podia
esquivava-se de um trabalho.
Sem estabelecer-se definitivamente no Essequibo, os Waiwai que haviam abandonado
Erepoimo decidiram atravessar a Serra Acaraí e viver em uma das aldeias do rio Mapuera.
Mas na noite anterior ao dia marcado para a partida, Ewká teve um sonho. Nesse sonho, um
homem branco como Robert Hawkins estava em pé diante dele e disse: “Não cruzem as altas
montanhas, fiquem aqui” (Dowdy, 1997:101). Antes de amanhecer, Ewká acordou o restante
do grupo e lhes contou sobre o que tinha acontecido. O grupo decidiu obedecer ao homem que
havia aparecido a Ewká e não realizou a viagem, permanecendo acampado no Essequibo.
O fato de Ewká ter visto um ser semelhante aos norte-americanos em seu sonho,
diferente dos kworokjam com os quais os yaskomo waiwai comunicavam-se habitualmente,
implicava a aquisição de um novo conhecimento e de um certo controle sobre a alteridade e o
poder representados pelos brancos. Para os Waiwai, esse episódio foi uma demonstração
decisiva da influência possuída por Ewká. Para os missionários, o sonho de Ewká também foi
a manifestação de um poder extraordinário: o poder de Deus, que desejava revelar-se àqueles
índios. Pois graças ao sonho e à mensagem transmitida ao yaskomo, o grupo remanescente de
Erepoimo permaneceu em território guianense, o que possibilitou o seu reencontro com os
irmãos Hawkins alguns meses depois. E graças a esse reencontro, o potencial de liderança de
Ewká chegou a ser liderança de fato – possibilitando que, anos mais tarde, sua conversão
influenciasse a maioria dos waiwai, que acompanhou a decisão do seu maior líder
116
.
Após a concordância do povo em seguir a instrução do yaskomo e permanecer no
Essequibo, Miwiá enviou um novo convite de dança ao grupo. Dessa vez o mensageiro
iniciou o oho dirigindo-se a Ewká. Durante a festa, Mïya entregou bebida primeiro ao jovem
xamã, e depois aos outros, demonstrando que finalmente reconhecia a liderança do primeiro.
Ao fim da festa, Ewká conduziu o grupo a um lugar que pensava ser bom para estabelecerem
116
Mentore relata que décadas depois, outro sonho de Ewká foi decisivo para o deslocamento da maioria dos
Waiwai do Essequibo para o Mapuera (2005:46). Esse sonho teria ocorrido em 1973, época em que os
missionários da UFM já haviam deixado a Guiana devido a impedimentos causados pelo governo de tendências
socialistas que se instalara no país, e Ewká ainda liderava um aglomerado de aldeias vizinhas a Yakayaka. Logo
após o sonho, que se tornou tradicionalmente famoso entre os Waiwai, Ewká estimulou a abertura de novas roças
na região do Mapuera. Dois anos depois, em 1975, mudou-se com aproximadamente 500 waiwai para o território
brasileiro. Outro grupo, liderado por seu irmão Yakuta, também migrou para o Brasil nessa mesma época. Os
detalhes desse sonho não são descritos por Mentore. Contudo, sabe-se que essa mudança também possibilitou o
reencontro com os missionários da UFM, então MEVA.
68
uma nova aldeia. O lugar foi aprovado por todos
117
. Mas antes de instalar-se definitivamente
no novo local, onde algum tempo depois surgiu Yakayaka, o grupo voltou a acampar em
Erepoimo para consumir o restante da produção da antiga roça.
Como mencionei anteriormente, após um ano da sua primeira visita os irmãos
Hawkins retornaram a Erepoimo, e ali encontraram o grupo liderado por Ewká (Dowdy,
1997:105). Os missionários continuaram seus esforços para aprender a língua waiwai, e
iniciaram a tradução da Bíblia. Aos domingos, ensinavam músicas e contavam histórias
bíblicas aos índios com ajuda de figuras. Posteriormente, quando a base da missão foi
construída em Kanashen, começaram a dar aulas de alfabetização todas as manhãs. Os
homens waiwai freqüentavam assiduamente essas aulas, com o desejo de aprender a “fazer o
papel responder” (aprender a ler). Ewká era quem estava em contato mais estreito com os
norte-americanos, pois além dos cultos dominicais e das aulas diárias de alfabetização,
gastava muitas outras horas trabalhando como intérprete na tradução da Bíblia. Ele foi o
primeiro a ser alfabetizado. A essa altura os missionários já tinham notado que o modo mais
eficiente de alcançar os Waiwai era através do seu líder (Idem, :10,11).
Pecado, individualismo e parentesco
A relação entre os missionários e os Waiwai muitas vezes era tensa. De acordo com
o Christ’s Witchdoctor, a insistência dos missionários em repreender os índios acerca de
costumes considerados pecaminosos, bem como em restringir a distribuição de mercadorias a
pagamentos de serviços prestados individualmente pelos nativos, provocava insatisfações e
revoltas. A oposição dos Waiwai chegou a resultar num plano para tirar a vida de Robert
Hawkins. Na ocasião, o missionário e vários homens waiwai trabalhavam na abertura de uma
clareira que serviria como pista de pouso para aviões. Para derrubar a mata, os índios
cortavam os troncos de várias árvores até o meio. Uma única árvore grande era deitada
abaixo, e na queda ela levava as outras, cujos troncos haviam sido parcialmente cortados.
Tudo foi feito de modo que, durante o trabalho, o missionário ficasse num local de difícil
fuga, onde seria atingido pela madeira. Mas o plano falhou. Uma árvore caiu de um lado de
Robert Hawkins e outra do outro lado, e ele escapou ileso, no meio. O missionário não soube
que se tratava de um plano para tirar a sua vida, a não ser muitos anos depois, quando os
117
Uma das maneiras pela qual os Waiwai descrevem o kayaritomo é como “aquele que chegou primeiro”, que
escolheu o local para o estabelecimento de uma aldeia e iniciou o movimento de ocupação desse local,
agregando ao redor de si outros moradores (Howard, 2001:195-196).
69
Waiwai confessaram publicamente o fato. Ele havia pensado que a situação era acidental
(Dowdy, :110-114). No livro, o escape da morte é considerado um livramento providenciado
por Deus.
Dias Junior esclarece que essa tentativa de matar Robert Hawkins insere-se no
contexto mais amplo da disputa política entre os Waiwai, acirrada após Ewká ter se tornado o
principal mediador entre os missionários e os nativos (2005:43). Ewká era quem mais
ganhava presentes dos missionários, era a pessoa com quem estes demonstravam maior
interesse em se relacionar. Além disso, como líder do grupo de trabalho na pista de pouso, ele
deveria distribuir a cada um dos nativos as mercadorias que serviriam de pagamento, cuja
quantidade era escassa. Esse papel proeminente de Ewká reacendeu a disputa com Mïya, até
então considerado o líder mais influente do Essequibo, e também com seu primo Ywkuma –
que relatou tais acontecimentos ao referido antropólogo. O plano para matar Robert Hawkins
foi arquitetado por Mïya e Ywkuma (Idem).
Essa explicação de Dias Junior e a versão dos missionários para o ocorrido se
complementam. Como observou Howard durante sua pesquisa de campo, os efeitos
individualizantes de certas práticas dos missionários, especialmente o pagamento diferenciado
a cada nativo conforme a quantidade de serviços prestados, é visto pelos Waiwai como a fonte
de sentimentos anti-sociais perigosos como a inveja e a raiva – que por sua vez, desencadeiam
conflitos na comunidade (Howard, 2001:264). Em sua entrevista a Dias Junior, Ywkma
confessa ter se sentido preterido pelos missionários, interessados apenas em Ewká, e relata
que Mïya estava com raiva dos missionários e também com raiva de Ewká quando decidiu
matar Robert Hawkins (Dias Junior, 2005:43). Ywkma relata ainda que Ewká se relacionava
com os missionários como se “tivesse se esquecido” das doenças que estes haviam deixado
após sua primeira visita à região:
Eu fiquei triste quando americano voltou, ele não me procurava mais, só
queriam falar com Ewka. Só dava os presentes para Ewka. Eu não estava
mais gostando porque ele tinha deixado doenças na primeira vez. Ewka já
tinha esquecido disso, eu não. [...] quando eu cheguei lá (em Maiuka, aldeia
de Mïya) ele estava me esperando, queria matar mesmo americano, tinha
raiva de Ewka também. Era isso mesmo, assim que falou (Ywkuma, 2003,
trad. Yapoxi apud Dias Junior, 2005:43).
Portanto, penso que o conflito de Mïya e Ywkma com Robert Hawkins e a raiva
direcionada a Ewká não se deviam apenas à disputa pela influência em si, como sugere Dias
Junior, mas principalmente ao fato da proeminência do jovem líder ser como um benefício
70
individual obtido num contexto de desarmonia coletiva decorrente da presença dos norte-
americanos.
Como mencionei anteriormente, o descontentamento dos Waiwai com as censuras dos
missionários aos seus comportamentos considerados pecaminosos também teria motivado a
decisão de eliminar Robert Hawkins. Dias antes da tentativa de matar o missionário, Neill
Hawkins havia repreendido duramente os Waiwai pelas bebedeiras e pelo medo dos espíritos,
suscitando uma revolta muito grande entre os nativos (Dowdy, 1997:110). Na visão dos
missionários, essas censuras tiveram um outro efeito, além de provocar raiva nos índios. Teria
sido durante uma advertência de Robert Hawkins que pela primeira vez um Waiwai assumiu
sua culpa ou maldade individual (Idem, :112). Esse ponto é importante na argumentação do
Christ’s Witchdoctor, pois o reconhecimento da própria maldade é uma condição necessária
para a salvação na teologia cristã de maneira geral. Entre os protestantes reavivalistas e
fundamentalistas, a tomada de consciência sobre a culpa individual acontece na experiência
da “convicção dos pecados”. Essa experiência ocorre pela atuação do Espírito Santo e no
contato com a mensagem evangélica. Susan Harding observa como a convicção dos pecados
era experimentada entre batistas fundamentalistas de uma igreja na periferia de Nova Iorque
na década de 1980, e acredito que a descrição da autora ajuda a compreender a descrição da
experiência waiwai feita pelos missionários. Vejamos.
[…] evangelistic preaching “is intended to create a spiritual crisis by calling
to the fore one's desperate and lost condition, which one may have been
totally unaware of” (Hill 1985:26). This crisis is the onset of the conversion
process, what fundamentalists call “coming under conviction”, and is based
on a direct experience of the divine. You know when the Holy Spirit
convicts you of, or “makes you see”, your sins. Conviction effects a deep
sensation of one's own impurity and separation from God, or one's
“sinfulness”, one's “sin nature”, and a sense that ‘something has to be done
about it. […] It is a kind of inner rite of passage that is completed when
sinners are “saved”, or “born-again”, “regenerated”, “washed in the blood of
Christ”. Salvation is experienced as a release from the bondage of sin and a
personal reconciliation with God. (Harding, 1987:170)
A experiência dos Waiwai descrita no Christ’s Witchdoctor é semelhante ao
processo descrito acima: o contato contínuo com a pregação evangélica teria feito surgir, ao
longo dos anos, a percepção dos pecados individuais na maioria dos nativos, a consciência da
sua impureza diante de Deus e da necessidade de sanar essa situação, entregado sua vidas a
Jesus. Entretanto, devemos observar que um Waiwai em tal processo de conversão,
diferentemente de um nova-iorquino, necessitaria experimentar uma dupla transformação: a
71
percepção de si como pecador necessitado de salvação seria acompanhada pelo surgimento da
consciência de si como um indivíduo, no sentido moral identificado por Dumont (2000). Ou
seja, um nova-iorquino antes da conversão já se identifica como portador de um universo
moral interior, autônomo em relação ao mundo social exterior no qual vive – e essa
interioridade moral será transformada pela atuação do Espírito Santo. No caso Waiwai, a
unidade moral autônoma precisaria ser construída
118
.
Talvez seja justamente pela ausência dessa idéia de indivíduo entre os Waiwai que o
processo de conversão de Ewká narrado no Christ’s Witchdoctor envolva um tipo de relação
consciente com o Espírito Santo aparentemente diversa da relação experimentada pelos nova-
iorquinos entrevistados por Harding. O Espírito Santo aparece a Ewká duas vezes, sempre
como uma outra pessoa: em forma de um homem, com a aparência semelhante à de Robert
Hawkins, visível durante o sonho, quando transmite, pela fala, as mensagens que deseja
(Dowdy, 1997:101,147)
119
. Nas narrativas de conversão batistas, a relação com o Espírito
Santo é experimentada como um processo interno aos indivíduos: “the Holy Spirit penetrates
the conscious mind and becomes ‘another voice’, ‘a real person’, who begins to recast their
inner speech” (Harding, 1987:174). Ou seja, nesse caso o Espírito Santo fala de forma
internalizada, parece se fundir à consciência da própria pessoa, enquanto no caso de Ewká, o
Espírito Santo fala “de fora”, como uma pessoa independente da consciência do xamã.
Para os missionários, o primeiro waiwai a experimentar a convicção dos pecados
teria sido o próprio Ewká, ao presenciar uma discussão entre Robert Hawkins e Iwkuma. Na
ocasião, este último foi encontrado com algumas ferramentas (machados e facas) que haviam
sumido de entre as coisas do missionário. Robert Hawkins não hesitou em pegar as
ferramentas de volta, e em censurar duramente Iwkuma pelo “roubo”. Essa afronta foi
considerada uma ofensa grave pelo nativo, pois os Waiwai costumavam demonstrar
reprovação por meio de insinuações e acusações indiretas, em diálogos no estilo oho. Iwkuma
respondeu acusando Robert Hawkins de intrometido e de considerar os waiwai como crianças
118
Para Dumont, nas sociedades tradicionais o individualismo se origina em oposição complementar à idéia de
sociedade, sob a forma de um “indivíduo-fora-do-mundo” (2000:38-39). A aplicação desse modelo ao caso
Waiwai é limitada, pois ali, como nos grupos ameríndios de maneira geral, não parece existir uma valorização da
idéia de sociedade como um todo englobante, contra a qual surge a idéia de indivíduo como ser moral autônomo.
Portanto, os grupos ameríndios parecem não corresponder a nenhum dos dois grandes tipos de sociedade
definidos por Dumont (tradicional-holista e moderna-individualista). Essa limitação já havia sido observada pelo
próprio autor para o contexto melanésio, onde pesquisas de antropólogos apontam a valorização das relações, e
não de formas como o indivíduo ou a sociedade (Dumont, 1983:231). A aplicabilidade do modelo de Dumont
aos estudos sobre o cristianismo entre grupos nativos tem sido discutida por antropólogos como Robbins – em
seu livro sobre o cristianismo dos Urapmin, habitantes das terras altas do Oeste da Papua Nova Guiné – e Vilaça,
em artigos recentes sobre o cristianismo dos Wari’ (Robbins, 2004; Vilaça, 2007 e 2008:193-196).
119
O homem semelhante a Robert Hawkins que aparece no primeiro sonho já descrito de Ewká é o Espírito de
Deus, como fica claro após o segundo sonho do xamã com o mesmo homem, que descreverei mais adiante.
72
que precisavam ser ensinadas sobre a maneira certa de agir (Dowdy, 1997:112). Ao
repreender o índio, o missionário disse que os Waiwai estavam virando as costas para Deus, e
que este os amava e desejava livrá-los da maldade que tinham dentro de si. Iwkuma ficou tão
ressentido que a partir daquele dia parou de assistir às aulas ministradas pelos missionários.
Ele não queria mais ouvir tantas coisas negativas que o “Papel de Deus” dizia sobre os
Waiwai (Idem, :113). Ewká havia testemunhado a discussão, e ao contrário de seu primo,
mostrava-se cada vez mais interessado em saber o que a Bíblia dizia sobre os Waiwai. Na
opinião dos missionários, ele estava começando a entender os ensinamentos sobre os pecados,
e teria concordado com os argumentos de Robert Hawkins. E mais: ao refletir sobre a
maldade de Iwkuma, Ewká teria percebido que dentro de si também havia maldade, e que ele
próprio já realizara muitos atos tão maldosos quanto os de seu primo. Para os missionários,
este foi o primeiro sinal da transformação do xamã, que ainda não se considerava tão errado
quanto a Bíblia dizia, mas já via uma “pequena maldade” em si mesmo (Idem, :111).
Parece-me significativo o fato do livro descrever a tomada de consciência de Ewká
sobre os pecados individuais a partir de uma situação onde o que está em jogo é justamente a
legitimidade de reivindicações de Robert Hawkins sobre a propriedade privada de uma
quantidade de objetos. Ewká não poderia ter concordado com o argumento do missionário, ou
seja, com a idéia da apropriação daquelas ferramentas ser ilícita e por isso revelar a maldade
dentro de Iwkma (e no limite dentro do próprio Ewká), se não tivesse preferido uma
concepção individualista de pessoa, no lugar das idéias waiwai
120
. A descrição do livro sobre
o estágio final da sua conversão também aponta nesse sentido. Vejamos.
Ewká teria se convertido em 1954. Numa noite, ele sonhou que estava lendo a Bíblia
para o povo em sua aldeia. Ao acordar, ele contou o sonho à sua esposa. Ahmuri repreendeu-
o, dizendo que um yaskomo não deveria preocupar-se com essas coisas, e sim se dedicar a
entoar eremu e a agradar aos kworokjam (Dowdy, 1997:147)
121
. Na próxima noite Ewká
sonhou novamente. Dessa vez, alguém parecido com Robert Hawkins apareceu diante dele e
disse: “Deixe seus pecados. Fale com Jesus. Abra seu coração para ele. Se você o fizer, ele
entrará” (Idem). Ewká acordou e contou o novo sonho à sua esposa. Dessa vez, Ahmuri
discerniu que a pessoa no sonho era o Espírito de Deus. Ewká não teve dúvidas que deveria
obedecer ao Espírito do sonho. O momento final de sua conversão é descrito no livro da
seguinte maneira:
120
As noções waiwai sobre a pessoa serão melhor examinadas ao longo deste capítulo.
121
Eremu são cânticos destinados aos kworokjam. Sua utilização pelo yaskomo será examinada mais adiante.
73
Antes que outros começassem a se mexer em suas redes, Ewká levantou-se
da sua e deixou a casa grande. Caminhou pela clareira e entrou numa roça
abandonada que estava sendo rapidamente tomada pelo crescimento da
selva.
– Pai do Céu – disse em voz alta ao alcançar o meio da roça e olhando
para cima como se visse Deus sentado no céu. – Pai, quero conhecê-Lo.
Revele-se pois a mim para sempre. O que o Senhor acha disto? O Eucá quer
que o Senhor entre no fundo de seu estômago, Pai, e fortaleça seu espírito.
Eucá sentou-se num tronco de árvore queimado, ainda intacto depois
de muitas queimadas anteriores. Não olhou mais para o alto. Mas falou como
se o seu convidado estivesse perto dele no tronco.
– Eis-me aqui, Pai. Sou um pajé. É isto que eu sou. Também sou uma
pessoa má. Sinto ódio. Grito com minha esposa. E eu me entristeço por isto.
Mas não é assim que eu quero ser. Por isso, Pai, livra-me da minha velha
natureza. O Senhor pode fazê-lo porque Seu Filho morreu pela minha
maldade, para expulsá-la de mim. Faça eu me tornar uma nova pessoa.
Quero ser como o Senhor.
O jovem uai-uai contrito, curvou sua cabeça negra e coroada, que até
essa hora adiantada estava enfeitada com as penas brancas e macias de uma
águia. Um por um, Eucá deu nome aos seus pecados: o ódio, a luxúria, a
inveja, a insensatez e orgulho tolo.
– É assim que tem sido, Pai – orou calmo e sincero. – Faça-me ser
como Jesus. Isto é tudo que tenho para lhe dizer agora, Pai. (Dowdy,
1997:147-148)
A descrição de Ewká reconhecendo sua maldade intrínseca e dirigindo-se sozinho à
roça para orar confessando seus pecados a Deus é paradigmática do possível surgimento da
noção de indivíduo moral entre os Waiwai. Para Dumont, esse individualismo é inerente ao
cristianismo. Baseado no trabalho do historiador-sociólogo da Igreja Ernst Troeltsch, aquele
autor observa que o individualismo decorre dos ensinamentos de Jesus Cristo e também de
Paulo, onde o cristão é concebido como um “indivíduo-em-relação-com-Deus” (2000:39,42).
De acordo com esses ensinamentos, cada convertido se torna filho de Deus, e herdeiro da vida
eterna. E cada filho é responsável, diante do Pai, pelo auto-exame, pela confissão dos pecados
individuais e pela manutenção de uma conduta santificada. Essas idéias conferem ao
indivíduo um valor moral e religioso absoluto.
Outras atitudes tomadas por Ewká nos anos seguintes à conversão e descritas no
Christ’s Witchdoctor apontam para o possível surgimento dessa noção entre os Waiwai. Por
exemplo, ele decidiu ter uma única esposa e abandonou a casa comunal, onde até então
morava junto com as demais famílias da aldeia (Dowdy, 1997:216). De acordo com o livro, a
mudança de Ewká para uma casa pequena, construída especialmente para sua família nuclear
ao lado da casa grande, visava o afastamento das conversas obscenas e da troca de mulheres,
práticas comuns entre os Waiwai. Ou seja, para os missionários Ewká isolava-se em busca da
santificação individual. A nova casa seguia o mesmo padrão das casas construídas pelos
74
missionários: tinha paredes e porta de ripas de palmeiras e não de folhas de sapé, e era
dividida internamente em dois cômodos: um reservado à privacidade da família e o outro
usado para receber visitas. O cômodo das visitas abrigava uma escrivaninha e um quadro-
negro, usado por Ewká para dar aulas de alfabetização a quem quisesse. Todos os outros
índios continuaram morando na casa comunal, até um incêndio acidental destruí-la
totalmente. A casa de Ewká permaneceu intacta mesmo após ter sofrido contato com as
chamas do incêndio, o que foi considerado um sinal do poder de Deus pelos Waiwai. Após
esse episódio, a casa grande foi reconstruída, mas outras famílias já convertidas seguiram o
exemplo do líder e optaram por morar em casas pequenas.
Mentore observa que a arquitetura encontrada na aldeia Shepariymo em 1979, época
em que iniciou sua pesquisa, também refletia de maneira evidente o estilo trazido pelos
missionários (2005:30). A casa comunal havia sido substituída por casas menores destinadas
às famílias nucleares, e embora alguns waiwai conservassem o modo antigo de construí-las,
os mais jovens preferiam as edificações retangulares, com pisos e paredes feitos de ripas de
madeira. Essas casas ficavam em um nível superior ao do solo, de modo que para entrar nelas
era preciso subir alguns degraus – exatamente como nas casas construídas pelos missionários
da UFM quando foram morar no alto Essequibo. Mas diferentemente destas, e também da
casa construída por Ewká, as casas de Shepariymo possuíam apenas um cômodo. Assim como
em Yakayaka, a maioria dos waiwai de Shepariymo se considerava cristã. Uma parte deles
havia freqüentado escolas construídas pelo governo da Guiana após a saída dos missionários
norte-americanos do país. Porém, ao contrário do que sugerem os missionários, Mentore
sustenta que a vida em casas pequenas não visava a criação de um espaço de intimidade ou de
isolamento do indivíduo:
In direct relevance to the form and guiding logic of Shepariymo residential
space, secular and religious literacy had not yet molded or privileged in the
Waiwai conscience any collective cultural statements on individualism
leading to ideas about an essential, unique, and autonomous subjectivity. No
legitimating link between the divine identity of the Christian God and the
secular authority of the modern state had been established by any promotion
of an individual subjectivity in literacy. The “text” and the “author” – the
divine biblical word and God, the law and the state – had not crystallized as
autonomous entities pointing to each other, reinforcing each other, and thus
legitimating the projection of an authentic self. A world satured with text,
preceding authors, and textually obedient subjects was not yet the world of
Waiwai. Schooling had begun to lay the groundwork to the development of
such a world but as yet had not seen any substantial results for it efforts. […]
Waiwai houses did not, for example, reflect spaces determined by concerns
for the modern rationalization of the individual. There were no rooms for
specific individual uses: no bedroom, no dining room, no utility room, no
75
bathroom, and while the introduction of a separate kitchen was as aspect of
some Wapishana-influenced households, there were no separate rooms for
cooking in any of the Waiwai homes. A few houses had doors, but none of
these had names or numbers at them. There were no streets to be named.
There were no geometrically determined spaces that could become the object
of a meticulous legal document, nor any written law that could uphold the
right to individual property. […] There is no place in Waiwai village
membership for the category of the autonomous individual. (Mentore,
2005:34-36)
Para o antropólogo, a busca de inspiração nas casas construídas pelos missionários
deveria ser considerada no contexto mais amplo da atração intensa dos Waiwai pelos modos
de viver das pessoas não-waiwai, sejam outros índios ou pessoas de fora da floresta
(2005:48). As considerações de Howard seguem nessa mesma direção. Ela observou que as
casas em Kaxmi e Jatapuzinho em meados dos anos 1980 exibiam uma variedade de estilos e
inovações adquiridas de diversos estrangeiros: havia casas circulares, retangulares, casas de
pau-a-pique como as dos brasileiros e de índios das savanas, casas retangulares com
extremidades arredondadas semelhantes às de outros grupos da região da Guiana, casas sobre
palafitas como as dos missionários e outros tipos ainda (2001:97). Sua conclusão é a de que
esses estilos são assimilados como ícones dos lugares distantes dos quais provêm, capazes de
importar para o novo contexto onde são situados – isto é, para as aldeias waiwai – poderes
relacionados a diferentes domínios exteriores. Segundo ela, “The Waiwai display a passion
for adopting and assimilating outside icons and the power-laden meanings they convey”
(Idem). Além do estilo das casas, as inovações implementadas incluem diferentes espécies de
mandioca cultivadas nas roças, melodias e cânticos de grupos vizinhos, padrões de cestaria,
receitas e uma variedade de outros elementos adquiridos durante viagens a lugares a
distâncias (sociais, temporais e geográficas) variáveis dos Waiwai. As próprias atitudes em
relação ao cristianismo estariam incluídas nessa busca pela inovação: a Bíblia e os hinos
evangélicos são apropriados como condutores das potências de Deus, Jesus e do Espírito
Santo; e o aprendizado da escrita é uma maneira de adquirir habilidades para manipular essas
potências (Idem, :267). Desse modo,
Waiwai behavior, discourse, and attitudes revealed an incessant
preoccupation with things and peoples form afar and an almost phagic desire
to consume and digest them into something ‘Waiwai’. This was evident in
mundane subsistence pursuits as well as in ritual events, in styles of dress
and hairdress, in marriage patterns and exchange practices, in attitudes
toward western technology and Christianity, in political stratagems of
influential leaders, and even in forms of humor (Howard, 2001:3).
76
Howard observa que “ser waiwai” tem a ver, portanto, com o engajamento em um
movimento de alteração contínuo, onde a “waiwaização” de elementos não-waiwai é
simultânea à alteração do que é waiwai, justamente pela assimilação do que não é waiwai:
“Paradoxically, it is through this reciprocal adulteration that the Waiwai reaffirm their
authenticity” (2001:27).
Mentore sugere que entre os Waiwai o processo de individualização é
contrabalançado pelo conhecimento e pelo poder das relações de parentesco, constituindo não
subjetividades autônomas – como fomentado no processo de cristianização – e sim “uma
presença evocativa de uma subjetividade humana fracionada, interativa, e mais dependente”
(2005:325, tradução minha). Por isso, apesar da maioria dos Waiwai ser cristã na época da
pesquisa de campo do antropólogo, o isolamento social – para reflexão, confissão dos pecados
ou qualquer outra atividade religiosa – não era uma prática comum:
No space exists for individual solitude. Contemplation occurs in the care for
others and in the depths of action applied to sustained manual tasks like
weaving a basket in front of one’s house or parching manioc granules over a
large baking pan. People live close to each other. By doing this they, in fact,
emulate how they once used to live not too long ago in a single, large conical
house.[…] Detachment from the main group, no matter for how long, puts an
uncomfortable distance between members and sets in motion an immediate
sense of longing. Then return sits imminently on the mind of those separated
from the settlement. The time between the departure and the return has its
hazards because only in the comfort of dense familial relations do the Waiwai
understand the condition of certain security. (Mentore, 2007:194)
Desse modo, as tentativas dos missionários de instituir uma ética cristã baseada na
responsabilidade do indivíduo autônomo não tiveram, até aquela época, resultados evidentes
entre os Waiwai. Mentore desenvolve essas reflexões a partir de um exemplo sobre o modo
como os habitantes de Shepariymo lidavam com um homem que havia praticado atos de
violência.
Nos primeiros anos de atuação dos missionários da UFM no alto Essequibo, um
homem waiwai chamado Erimink matou três mulheres em Yakayaka: sua madrasta e duas
meninas. Erimink é mencionado nos livros de Dowdy com o nome fictício “Rikaru”. Na
versão dos missionários, as mortes foram conseqüência da disputa por miçangas, mas de
acordo com os depoimentos recolhidos por Mentore, a madrasta havia resistido às investidas
sexuais de Erimink, e por isso foi morta junto com suas filhas (Mentore, 2005:48). Quando
esse episódio aconteceu, os homens da missão estavam viajando. As mulheres norte-
americanas, com medo da violência do índio, instruíram alguns homens waiwai a prendê-lo
77
num galpão, e chamaram a polícia da Guiana pelo rádio. O índio foi levado para Georgetown
e permaneceu preso durante algum tempo, mas depois foi solto e voltou para o alto Essequibo.
Na época da pesquisa de Mentore, Eremink vivia normalmente em Shepariymo. O
ato violento cometido por ele no passado era considerado errado pelos índios, e apesar disso,
Erimink continuou sendo aceito no grupo. Essa tolerância estaria relacionada ao fato dos
Waiwai não associarem o homicídio unicamente à maldade interior a um indivíduo (Mentore,
2005:48). Do contrário, Eirimink continuaria sendo uma ameaça, e teriam construído um
lugar especial para prendê-lo, ou aplicado meios para recuperá-lo moralmente. A ausência
desses mecanismos “draws our attention to the similar absence of any collective notion about
a naturally unique autonomous subjectivity” (Idem, :48). Embora Eirimink tenha sido a fonte
da violência, seu ato não foi considerado pelos Waiwai como a causa final da morte das três
mulheres. Para alguém ser morto não bastava que outro tivesse a intenção de matá-lo. Era
preciso que forças espirituais estivessem ativas nessa mesma direção:
Important factors such as the circumstances leading up to the “scene of the
wrongdoing” and the “time of death” require certain opportunistic
alignments to take place for there to be a killer, a victim, and a homicide. No
one dies accidentally in Waiwai society. Death always implicates human
intent, but it also immediately identifies spiritual causality. […] The
community of Shepariymo tolerated Erimink, the murderer, because the
ability to succeed in killing does no depend upon human violence inside an
individual but rather upon whim of outside spiritual forces (Idem, :48)
122
.
O mecanismo utilizado pelos Waiwai para controlar o potencial de violência física e
espiritual é a própria convivialidade. A esse respeito, Howard observa que no discurso
waiwai, a vida tranqüila e pacífica entre os parentes é contraposta à prática da violência
através da guerra e da feitiçaria. A conduta social apropriada é guiada por sentimentos sociais
essencialmente pacíficos (tawake), que caracterizam as pessoas adultas e maduras (2001:322).
Dessa maneira os waiwai se diferenciam dos outros indígenas que eles buscam evangelizar,
considerados “irmãos atrasados”, “ferozes” ou “irados” (tîrwoñem), que necessitam ser
pacificados, socializados e transformados em seres humanos decentes (Howard, 2001:322).
Os Waiwai consideravam essa transformação dos grupos não-vistos como uma reprodução da
transformação que eles próprios experimentaram no passado, quando foram encontrados e
evangelizados pelos missionários da UFM. A narrativa de um dos Waiwai entrevistados por
Howard é significativa nesse sentido:
122
O mecanismo espiritual da violência será abordado detalhadamente na próxima seção deste capítulo.
78
There are lots of unseen people out there in the forest, a great many! I
wonder where they are…They get into club fights with people from different
tribes, it’s terrible! They get angry so they club each other, they just don’t
know any better. I think it must be because they practice magical taboos,
that’s certainly the reason why. They only practice magic, oh dear. They use
tobacco too. They don’t know anything about Jesus. That’s how we used to
be, we didn’t know anything about Jesus either. But now we know about
him. We don’t have clubs anymore; now we have books, God’s Book
(Warapuru, 28/07/1986 apud Howard, 2001:320-321).
A feitiçaria era condenada por ser um envolvimento com os poderes espirituais do
mal (assim como o xamanismo, ao qual Warapuru refere-se como “uso de tabaco”), e também
por promover ciclos de acusação e vingança que impossibilitavam a vida comunitária,
especialmente em aldeias populosas e permanentes como as que passaram a abrigar os
Waiwai e diversos grupos vizinhos após seu contato com os missionários da UFM. Logo, o
mandamento bíblico de “amar uns aos outros” não apenas movia a busca e a evangelização de
grupos não-vistos, mas era considerado como uma conduta essencial para a supressão de
sentimentos anti-sociais perigosos e causadores de conflitos no interior da comunidade –
como a raiva e a inveja, já mencionadas anteriormente, no exemplo do plano arquitetado por
Mïya e Ywkuma para matar Robert Hawkins. Aqueles que não sabem amar uns aos outros
vivem em um constante estado de guerra:
The Waiwai claimed that the tîrwoñem komo were constantly at war with
each other, much like they were themselves before allowing themselves to
be “pacified”. Because these groups lacked self-control, they were quick to
take offense, locking them in cycles of revenging. Being unevangelized, they
did not yet know that “Jesus loves them”, so they did not love each other
(Howard, 2001:318-319).
Portanto, ao contrário do que apresenta a narrativa do Christ’s Witchdoctor, parece-me
que para os Waiwai a santificação cristã é atingida pela intensificação das relações sociais
pacíficas que caracterizam a vida entre parentes, e não pela ênfase no indivíduo. Essa
intensificação se dá pela busca e incorporação de pessoas cada vez mais distantes
socialmente, e que precisam ser humanizadas e pacificadas pela inclusão numa coletividade
extensa, que é o próprio grupo de parentes waiwai. Como observou Howard, ao engajar-se
nesse processo de socialização e evangelização, os waiwai pacificam (eu acrescento,
santificam) continuamente a si mesmos pela prática da generosidade e das trocas –
consideradas, como mencionei no capítulo anterior, o meio humanizador por excelência
79
(Idem, :315-326,341-342)
123
. O isolamento e o individualismo, por sua vez, sempre remetem a
potências anti-sociais destrutivas. Dois exemplos nesse sentido são a feitiçaria e a fofoca –
realizadas em particular, em segredo, e desencadeadoras de conflitos, mortes e cisões no
grupo (Howard, 2001:316). A idéia de um waiwai isolando-se para orar e confessar
secretamente seus pecados a Deus parece estranha nesse contexto. Como veremos na última
seção deste capítulo, é uma prática dos Waiwai convertidos confessar publicamente seus
pecados, principalmente aqueles cometidos em secreto. Continuarei desenvolvendo esse tema
mais adiante. Por ora, cabe voltar ao processo de conversão de Ewká para abordar um tema
central na narrativa dos missionários e também em trabalhos de antropólogos, que é o
abandono das práticas tradicionais de cura pelos Waiwai.
Epidemias e conversão
A conversão de Ewká é apresentada no Christ’s Witchdoctor como um processo
simultâneo ao fracasso recorrente das práticas xamânicas frente às epidemias de doenças
ocidentais. Para os missionários, a incapacidade de impedir as mortes provocadas por essas
doenças foi um fator decisivo para Ewká entregar sua vida a Jesus e abandonar os rituais de
cura realizados através da comunicação com os kworokjam. Uma entrevista concedida pela
missionária Irene Benson a Queiroz em meados dos anos 1990 apresenta esse mesmo
argumento. Vejamos.
Durante os primeiros anos de presença missionária no Alto Essequibo, os surtos de
doenças perderam sua força inicial, mas continuaram atacando os índios e provocando mortes
regulares (Queiroz, 1999:271). Os missionários notavam que os Waiwai não tinham esperança
na vida futura, e que consideravam a própria extinção como um acontecimento próximo. Em
1951, quando Claude e Bárbara Leavitt e a enfermeira Florence Riedle estabeleceram-se em
Kanashen, os waiwai pareciam ter certeza de que em breve morreriam (Dowdy, 1997:122).
Os remédios alopáticos mostravam-se eficientes contra o problema das doenças, e eram
administrados pela enfermeira a todos os índios que assim permitissem. Contudo, o discurso
missionário associava diretamente os medicamentos ao cristianismo, que por sua vez era
apresentado como um caminho antagônico e inconciliável ao xamanismo (Dowdy, 1997:170;
Howard, 2001:265-266). O procedimento adotado pelos missionários ao tratar os doentes era:
123
Uma rica discussão sobre o rendimento do motivo do “amor” no cristianismo dos Guarani Kaiowá encontra-
se num artigo de Fausto (2005). O autor observa que ali a ética do amor “provavelmente se ergueu sobre
conceitos nativos como a generosidade e a reciprocidade, e se nutriu do ‘amai-vos uns aos outros’ da mensagem
cristã” – o que também pode ser afirmado a respeito do cristianismo waiwai (Idem, :404).
80
primeiro oravam a Deus pela cura, em seguida ministravam os medicamentos (Dowdy,
1997:221). Ou seja, os Waiwai aprenderam com os missionários que deveriam escolher uma
entre duas opções: continuar praticando os rituais de cura através dos kworokjam, ou confiar
em Deus e esperar que ele, através das orações e dos remédios alopáticos, efetuasse a cura.
Entre os waiwai, a doença é conseqüência da ausência do ekatï no corpo. Uma
pessoa fica doente quando sofre a agressão de um ekatïnho-kworokjam ou de um kakenau-
kworokjam. Em alguns casos o espírito maldoso seqüestra o ekatï e o leva para longe, em
outros casos o ekatï é expulso e o agressor ocupa seu lugar no corpo (Fock, 1963:16-18,104-
107). O seqüestro sempre é realizado por um kakenau-kworokjam. Nesse caso o espírito
humano é levado para viver junto ao agressor, geralmente em uma outra camada cósmica. Por
sua vez, a expulsão seguida pela ocupação do corpo pode ser realizada tanto por um kakenau-
kworokjam quanto por um ekatïnho-kworokjam. Quando isso ocorre, o espírito humano
desalojado fica vagando perdido. Em todos os casos, a ausência prolongada do ekatï resulta na
morte da pessoa, tragédia que pode ser evitada pela intervenção do yaskomo. Com a ajuda dos
seus espíritos auxiliares, ele é capaz de identificar o tipo de agressão, encontrar o espírito
humano desalojado, retirar o espírito agressor do corpo da pessoa (se for o caso), e recolocar o
ekatï em seu devido lugar. Os espíritos auxilares do yaskomo são kakenau-kworokjam,
identificados pelo termo hyasïrï.
Os ekatïnho-kworokjam atacam os humanos por inveja de seus corpos, os quais
desejam possuir. Como mencionei no capítulo anterior, eles são espíritos incorpóreos
originados dos ekatï dos mortos, e atacam os parentes vivos quando estes passam perto do
lugar de cremação ou do enterro
124
. Porém, a maneira mais comum de expulsão do ekatï é a
visão de um kakenau-kworokjam. Esses seres são tão perigosos que provocam a saída do ekatï
do corpo de uma pessoa só de a verem. Por exemplo, quando a pessoa vê uma espécie de
pássaro negro fica com febre, quando vê uma libélula tem epilepsia (Fock, 1963:22). Ver um
kakenau-kworokjam é o mesmo que ser visto por ele. O kakenau também poderá provocar a
doença ao ver a pessoa no momento da concepção. Fock menciona o exemplo de uma mulher
grávida que precisou ser atendida várias vezes por um yaskomo, porque estava sempre doente.
Ao final da gestação, o bebê nasceu com a cara parecida com a de um macaco. Assim foi
descoberto o motivo da doença da mãe: durante a relação sexual que iniciou a gravidez, um
124
Como também mencionei no capítulo anterior, os ekatïnho que não se transformam em espíritos incorpóreos
invisíveis dão origem a animais e plantas. Nesse caso, passam a ser chamados pelo nome do animal ou planta
seguido pelo sufixo -kworokjam. Outra possibilidade é o ekatïnho do morto originar um pequeno pássaro
noturno, o caribó, que ao perceber a presença de um parente do morto desaparece e se transforma num ekatïnho-
kworokjam invisível, para em seguida atacá-lo e ocupar seu corpo.
81
velho poroto (macaco-aranha) de estimação olhou para a mulher e o homem. Por causa disso,
ao invés de receber o ekatï do pai, a criança recebeu o ekatï do macaco, que entrou na mulher.
O nome dado pelo yaskomo a essa criança foi Poroto, o mesmo nome da espécie do macaco
(Idem, :17,141). Mentore cita um caso parecido. Uma criança tinha problemas epiléticos. A
explicação dada pela mãe à doença do filho era o fato da gravidez ter ocorrido logo após ela
ter visto uma lagarta, de modo que o bebê recebeu o ekatï do animal (Mentore, 2005:89)
125
.
As crianças pequenas também podem ficar doentes sem sofrer agressão de um espírito
maldoso. Durante os três primeiros anos de vida de uma pessoa, o ekatï ainda não está bem
firmado ao seu corpo. Por isso costuma sair e acompanhar ora a mãe, ora o pai em suas
atividades cotidianas. Numa dessas saídas, o ekatï poderá se perder e não encontrar o caminho
de volta, acarretando a doença e depois a morte da criança. Além disso, as crianças pequenas
são mais vulneráveis às agressões sofridas pelos kakenau-kworokjam e pelos ekatïnho-
kworokjam, e essas agressões podem ser sofridas através dos corpos de seus pais. Para evitar
que isso aconteça, a mãe e o pai devem tomar uma série de medidas. Por exemplo, o espírito
de um animal morto ou ferido durante uma caçada ocupa o corpo do caçador sem lhe
provocar nenhum mal. Quando este volta para a aldeia e participa de uma refeição coletiva, o
kworokjam do animal pode pressionar o ekatï de uma criança a sair do corpo, e em seguida
tomar seu lugar. Isso é evitado se os pais da criança não comerem a carne da caça, ou por uma
técnica de expulsar o kworokjam do corpo do caçador, passando uma tocha de fogo ao seu
redor quando este entra na aldeia voltando da floresta (Fock, 1963:21).
As agressões dos kworokjam sempre são motivadas por feitiços. Desse modo, com
exceção das crianças pequenas e dos idosos, que podem adoecer e morrer por outros motivos
(o caso dos idosos será tratado mais adiante), sempre que um Waiwai adoece ou morre existe
uma pessoa culpada. Se a vítima morrer, um dos seus parentes mais próximos deverá realizar
125
Para os Waiwai, o ekatï é essencial para a existência da pessoa, assim como o corpo. Ambos passam a existir
no momento em que se inicia a gravidez (Fock, 1963:17; Mentore, 2005:88-89). Fock sustenta que durante a
relação sexual, uma substância espiritual que será o ekatï do novo ser humano entra no ventre feminino e
desencadeia o processo de formação do bebê. Os relatos sobre a origem dessa substância espiritual variavam. O
principal informante do antropólogo, que era o próprio Ewká, pensava que o ekatï de uma menina vinha da mãe,
e o ekatï de um menino vinha do pai; mas em alguns casos, como o mencionado no texto, era possível que o
ekatï de um animal entrasse no corpo da mulher e iniciasse a gestação. Para Mentore, a relação sexual seria um
dos impulsos possíveis para o início da gravidez, mas não um fator essencial, já que a vitalidade do ekatï poderia
entrar no corpo da mulher por qualquer orifício – no exemplo citado no texto, o impulso foi a visão da lagarta, e
o orifício de entrada foram os olhos da mulher. Mentore nem mesmo menciona se a visão da lagarta foi
acompanhada de relação sexual da mulher com um homem. Segundo ele, a atuação do homem não seria
necessária para iniciar a gravidez, embora provavelmente fosse necessária para o desenvolvimento posterior da
criança. Os exemplos fornecidos por Fock e por Mentore são significativos não apenas do fato de doenças serem
causadas pela penetração de kakenau-kworokjam nos corpos das pessoas, como também do fato dos bebês não
serem considerados plenamente humanos quando nascem. A condição humana é fabricada pelos pais no
processo de desenvolvimento e de fixação do ekatï no corpo dos filhos.
82
a vingança, que é um contra-feitiço, com o objetivo de atingir o matador. As técnicas para
matar através de feitiço parecem ser amplamente conhecidas pelos Waiwai. Contudo, há um
certo segredo e mistério em torno do tema, já que admitir o conhecimento delas implica ser
tomado como suspeito da morte de alguém. Por causa do conhecimento generalizado sobre os
feitiços mortais e por causa da obrigação de realizar a vingança os Waiwai se envolvem num
ciclo infindável de acusações e agressões.
O feitiço primário para matar alguém, tono, consiste no ritual de soprar com a boca e
entoar certos eremu (Fock, 1963:14-15,104-105). Eremu são cânticos que expressam um
desejo ou uma ordem. O objetivo do sopro é projetar o eremu na direção da vítima. O sopro
pode ser realizado diretamente sobre ela, sobre algum resquício de sua pessoa, ou sobre algum
objeto de uso pessoal. Por exemplo, sobre a rede na qual ela dorme, em fios de cabelo, unhas,
restos de comida, pegadas ou marcas de mordida em algum alimento. O feitiço pode falhar se
o matador não souber o suficiente dos eremu necessários. Se uma corrente de ar fizer o sopro
voltar em direção ao matador, o efeito do feitiço também se voltará contra ele, e causará sua
morte. O feitiço de vingança realizado por um parente da vítima é chamado parawa (Fock,
1963:107). As técnicas para sua realização são mais complexas e envolvem a utilização de
partes do corpo do morto, como ossos ou cinzas, além dos eremu e dos sopros. Após a
realização de uma parawa o ekatï da vítima será seqüestrado por um kakenau-kworokjam, e
sua morte deverá ocorrer em até dois meses (Idem, :108). Se o yaskomo for acionado
rapidamente, poderá reverter os efeitos do feitiço primário e também da vingança.
Para realizar a cura, o yaskomo entra em contato com seus espíritos auxiliares e busca
conselho sobre como agir. Esse contato se dá pela invocação dos hyasïrï à terra ou pela
viagem do xamã ao céu. Ao chegar ao céu, o yaskomo poderá convencer um kakenau muito
poderoso a voltar com ele para a terra e expulsar o intruso – um ekatïnho-kworokjam ou um
kakenau-kworokjam menos poderoso – de dentro do corpo de um doente. Ele também poderá
pedir que o hyasïrï encontre o ekatï perdido, ou que libere o ekatï seqüestrado por outro
kakenau. A cura da doença acontece quando o xamã sopra o ekatï recuperado de volta dentro
do corpo humano.
Os espíritos auxiliares são invocados e persuadidos por meio de tabaco e de eremu.
Cada eremu entoado pelo yaskomo destina-se a um kakenau e tem finalidades específicas, de
modo que um bom yaskomo possui um grande repertório desses cânticos, do qual poderá
selecionar o mais adequado para cada ocasião – já que o sucesso da cura depende, em grande
83
medida, do conhecimento do eremu apropriado para o problema que causou a doença
126
. O
repertório de eremu do xamã é construído na interação com outros xamãs. Fock cita
rapidamente o exemplo de um homem que durante o sonho viajou muito, até chegar a um
lugar onde recebeu boa comida. Depois do sonho, o homem ficou doente. Para curá-lo o
yaskomo cantou o eremu do povo-sucuri, para forçar seu ekatï a voltar das profundezas, onde
estava preso (Fock, 1963:115). Ou seja, durante o sonho o ekatï do homem foi seqüestrado
pelo povo-sucuri e passou a viver no meio deles. O homem ficou doente justamente porque
seu ekatï não voltou para o seu corpo após o sonho. O cântico do yaskomo se destinava ao
povo-sucuri e tinha o objetivo de fazê-los liberar o ekatï seqüestrado.
O tabaco é uma substância muito apreciada pelos kakenau-kworokjam. Para chamar
um hyasïrï o yaskomo entoa eremu específicos para este fim e sopra tabaco sobre uma
pedrinha lisa que pertence ao kakenau-kworokjam em questão, chamada ñukwa (Fock,
1963:113,126-127). Todas as ñukwa vistas por Fock eram de quartzo. Um yaskomo pode ter
diversas dessas pedrinhas, recebidas como herança de outros yaskomo ou diretamente dos
kakenau-kworokjam. Mïya relatou a Fock que uma de suas ñuwka, pertencente a poinko-yin
(pai dos queixadas), caiu do céu durante um sonho. Outro xamã encontrou a sua num rio.
Quando o yaskomo sopra tabaco sobre a pedra, o hyasïrï que é o dono dela sabe que está
sendo chamado. O kakenau-kworokjam entrará na pedra, e durante os rituais de cura, o xamã
entoará eremu com a pedra na boca. Em alguns casos, o espírito intruso retirado de dentro do
doente entrará na ñuwka.
Na época da pesquisa realizada por Fock, em 1954, os waiwai diziam que as pessoas
muito velhas nem sempre adoeciam e morriam por causa de feitiços. Às vezes elas morriam
por já estarem muito fracas e serem vítimas da eperia, palavra waiwai para febre. A eperia é
um kakenau-kworokjam que usa roupas e tem a aparência como a de um brasileiro (Fock,
1063:127,161). Se alguém visse os ossos de uma pessoa que morreu em idade avançada
poderia ser capturada pela mesma eperia que a matou. Quando um waiwai tinha uma doença
que atacava o nariz, a garganta ou os pulmões, a causa também era atribuída à invasão do seu
corpo pela eperia.
Fock é explícito ao diferenciar os ataques da eperia sofridos pelos idosos dos ataques
de outros kworokjam motivados por feitiços, mas não esclarece se a diferença também se
126
O repertório de eremu entoado pelos yaskomo destina-se especialmente aos yin, pais dos animais, e aos
kakenau-kworokjam (Fock, 1963:109-110). Os eremu entoados pelos demais Waiwai geralmente têm uma
atuação negativa, ao visar a morte de alguém, ou destinam-se aos ekatïnho-kworokjam. A técnica do xamã
também se diferencia da dos leigos pelo uso do tabaco e diversos outros aparatos que serão mencionados ao
longo deste capítulo (Idem,:104,113).
84
aplicava aos ataques da eperia aos Waiwai mais jovens. De todo modo, fica claro que a
atuação desse kakenau-kworokjam poderia ocorrer de maneira independente das rivalidades e
ciclos de vingança existentes no grupo, e relacionado de alguma maneira ao contato com os
colonos brasileiros. Na época da pesquisa de Howard, já na década de 1980, os Waiwai
continuavam relacionando a figura dos karaiwa às doenças (2001:265-266). As noções
waiwai sobre as moléstias estrangeiras eram então marcadas por uma dicotomia entre os
karaiwa e os amerikan. Enquanto os primeiros eram considerados a fonte das doenças, os
últimos eram a fonte de poderes curativos. A capacidade dos amerikan controlarem poderes
cosmológicos era comprovada pela eficácia dos tratamentos ministrados pelos missionários ao
longo das décadas, e pela estabilidade de seu estoque de remédios e vacinas
127
. Entre os
missionários, Howard destaca o papel da enfermeira Florence Riedle, que com sua dedicação
conseguiu manter as taxas de doenças infecciosas e de mortalidade excepcionalmente baixas à
medida que o contato dos waiwai com não-índios evoluiu (2001:265-266). A autora também
lembra que Robert Hawkins promoveu a idéia da eficácia dos remédios alopáticos dever-se à
aprovação divina, o que aproximou as idéias dos missionários sobre a cura das explicações
waiwai, que sempre atribuíam as curas a causas espirituais. Essa dicotomia entre os karaiwa e
os amerikan resolvia um problema conceitual enfrentado por outros grupos indígenas:
While many indigenous groups struggle with a contradictory paradigm of
Westerns as wielders of life-giving and death-dealing powers, medicines,
and diseases, the Waiwai have resolved the conceptual problem by neatly
dividing up these attributes between these opposing categories of
Westerners. (2001:265-266)
No princípio da evangelização, Ewká tentou conciliar os tratamentos que conhecia
como yaskomo com os tratamentos trazidos pelos norte-americanos: para curar um doente ele
cantava eremu, soprava, orava a Deus e ministrava remédios alopáticos conseguidos com os
missionários. Na opinião destes, com o passar do tempo Ewká começou a ter discernimento
sobre a incompatibilidade entre o xamanismo e o cristianismo. Esse discernimento só teria
começado a surgir após uma série de incidentes dramáticos que colocaram sua habilidade
xamânica em xeque, ao mesmo tempo em que os missionários esforçavam-se constantemente
para convencê-lo que a relação com os kworokjam era algo essencialmente ruim (Dowdy,
127
O contraste entre as duas categorias de estrangeiros incluía outros atributos: a imagem dos brasileiros sempre
evocava a desordem, com suas comunidades comparadas a aldeias sem líder. Evocavam também a ignorância,
com suas atitudes comparadas às de crianças, incapazes de controlar os próprios desejos e prover seu próprio
sustento (Howard, 2001:266-267). O lugar de origem dos norte-americanos, por sua vez, era concebido como
uma terra muito rica e urbana, onde todos são missionários.
85
1997:123). No livro, tais episódios dramáticos começaram quando Ewká conduziu um grande
grupo do rio Essequibo para uma dança na aldeia do xamã Xiriminau, no rio Mapuera.
Durante a viagem o grupo sofreu uma série de infortúnios. Logo nos primeiros dias,
uma mulher e uma criança adoeceram gravemente. Ewká curou a mulher, mas não conseguiu
salvar a criança, mesmo tendo passado uma noite inteira com ela numa shutepana, cantando
os eremu de cura que conhecia
128
. Ao perceber que seu tratamento não estava surtindo o
efeito necessário, sugeriu ao pai da menina que a levasse à enfermeira da missão. Porém, a
criança morreu antes que seu pai pudesse começar a viagem rumo a Kanashen. Logo depois,
outra criança do grupo ficou doente, e dessa vez os pais não pediram socorro a Ewká – ao
invés disso, procuraram diretamente Florence Riedle. O grupo parecia confiar cada vez mais
nos poderes curativos da enfermeira norte-americana. Não bastassem as doenças, um rapaz do
grupo ficou gravemente ferido quando tentou atirar num pássaro e a arma explodiu em seu
braço. Para tratar o ferimento, o grupo resolveu chamar um xamã mawayana, que morava
numa aldeia perto do local onde estavam acampados. O tratamento realizado pelo outro xamã
foi um sucesso; ele sabia alguns eremu desconhecidos por Ewká, adequados para estancar o
sangramento do braço do rapaz. Ainda na viagem de ida, um homem mais velho adoeceu.
Dessa vez Ewká realizou um tratamento bem-sucedido.
Quando o grupo finalmente chegou ao Mapuera para a festa, o próprio Ewká
adoeceu. Em seguida outro homem ficou enfermo, e morreu de maneira iminente. Ewká já
havia sido tratado por si mesmo e por outro yaskomo, mas teve medo de morrer também, e
resolveu orar a Deus pedindo a cura. Após a oração ele começou a melhorar, mas como havia
apelado tanto aos kworokjam como a Deus, não poderia atribuir sua melhora unicamente a
Deus, como os missionários pretendiam que fizesse (Dowdy, 1997:129). Logo a doença
atingiu a maioria dos Waiwai que estavam na festa. Ewká e Mafoliô esforçaram-se muito para
curar a todos, e conseguiram evitar mais mortes. Porém, na viagem de volta para o Essequibo
a filhinha de Ewká, então com dois anos de idade, adoeceu gravemente.
De acordo com o Christ’s Witchdoctor, Ewká estava inseguro sobre sua capacidade
de curar sua filha, pois não podia deixar de comparar o caso ao da criança que havia morrido
no princípio da viagem. Ele tinha dúvidas sobre o motivo dos tratamentos tradicionais
falharem tantas vezes. A princípio, ele teria pensado que estava perdendo sua influência com
os kakenau-kworokjam. Porém, depois de conseguir curar tantas pessoas na aldeia do rio
128
Shutepana é uma cabana bem pequena, sem porta ou janelas, construída exclusivamente para o xamã e o
doente, onde aquele realiza os rituais de cura necessários, assim como as viagens cósmicas para comunicar-se
com os kakenau-kworokjam (Fock, 1963:23-24). A shutepana é utilizada somente durante a noite, e depois é
destruída. A cada novo ritual o xamã constrói uma nova shutepana.
86
Mapuera, pensou que o problema era a limitação de seu repertório de eremu. Por fim, ele teria
decidido não tratar sua filha através dos kworokjam, e ao invés disso pediu a Deus que a
curasse (Dowdy, 1997:131). A menina logo recobrou a saúde. Mas pouco tempo depois, o
pior aconteceu: enquanto brincava ao redor de uma fogueira abandonada, a criança tropeçou
numa pedra e caiu no meio do fogo. Ao ser encontrada, estava gravemente ferida. Durante o
restante da viagem de volta ao Essequibo, Ewká comunicou-se com seus espíritos auxiliares e
orou a Deus, alternadamente, pela salvação dela.
Em Kanashen as missionárias socorreram a criança, e tentaram convencer Ewká que
a sobrevivência dela após cair na fogueira havia sido obra de Deus. As missionárias também
disseram que Deus talvez tivesse permitido que a menina caísse na fogueira para ensinar a
Ewká sobre a necessidade de escolher apenas um caminho: orar pela cura das pessoas ou
soprar sobre elas. O yaskomo, por sua vez, questionava-se sobre o motivo dessa permissão de
Deus, pois segundo os ensinamentos dos próprios missionários, ele deveria ser um espírito
totalmente bom (Dowdy, 1997:132). Ao longo do livro, é recorrente a menção dessa
dificuldade de fazer os Waiwai aceitarem a idéia do bem e o mal como princípios absolutos e
totalmente opostos, representados respectivamente por Deus/Jesus e pelo Diabo/kworokjam.
Como mencionei no capítulo anterior, os waiwai não percebiam Deus como totalmente bom, e
nem os kworokjam como totalmente maus. Na lógica dos missionários, Deus poderia
empregar para o bem o sofrimento trazido por um acontecimento ruim, provocado pela
maldade do Diabo ou dos próprios homens. O mal sempre aparece no discurso missionário
como submetido aos desígnios superiores de Deus, como um meio utilizado por ele para
aproximar os waiwai de sua bondade e da verdade
129
.
Algum tempo depois desse episódio trágico da fogueira, um bebê tratado por Ewká
morreu. O menino era neto de Xiriminau, que não fora capaz de curá-lo. Por isso seus pais o
levaram do Mapuera para o Essequibo em busca de tratamento. Ewká soprou sobre o bebê
durante uma noite inteira e um dia inteiro. Foi ao céu, comunicou-se com kworokjam
poderosos, e mesmo assim a criança não resistiu. Depois desse episódio, Ewká conversou
com Robert Hawkins sobre as dúvidas que tinha a respeito da dificuldade de curar os doentes.
O missionário explicou-lhe que os kworokjam não curavam por serem bons, e sim para
129
Ao longo do livro não fica muito claro se para os missionários os acontecimentos ruins poderiam ser também
provocados pelo próprio Deus. Se sim, os acontecimentos apenas pareceriam ruins aos olhos humanos, por causa
da limitação do seu entendimento – já que Deus, como fonte de todo o Bem, não poderia agir contra a sua
própria natureza. De todo modo, a questão pode ser bem mais complexa, pois existe um debate teológico sobre o
mal sobre o qual não estou bem informada. Mais adiante voltarei a examinar o papel das adversidades no
processo individual de conversão.
87
enganar os Waiwai, pois desejavam receber adoração no lugar de Deus
130
. Em outro trecho do
livro, os missionários sugerem que os doentes curados pelos yaskomo melhoravam apenas
pela misericórdia de Deus, e não pelo poder dos kakenau-kworokjam (Dowdy, 1997:166).
Desse modo, o fracasso dos rituais de cura era visto pelos missionários como uma
oportunidade para os Waiwai descobrirem a verdade sobre a bondade e o poder de Deus, e
sobre a maldade dos kworokjam.
O último fracasso de Ewká antes de sua conversão aconteceu quando um menino
desapareceu da aldeia (Dowdy, 1997:142-143). O yaskomo fez uma shutepana para subir ao
céu e procurar o ekatï da criança. Porém o beija-flor, que sempre o conduzia em suas viagens
cósmicas, não apareceu, tampouco outros espíritos auxiliares. No dia seguinte, indagado pelo
pai da criança sobre o que os kworokjam teriam dito durante a noite passada na shutepana,
Ewká respondeu que não conseguiu vê-los claramente. Algum tempo depois a criança
desaparecida foi encontrada afogada em um rio.
Após essa situação aflitiva de não conseguir comunicar-se com seus espíritos
auxiliares, Ewká teria concluído que os kakenau-kworokjam o rejeitavam por ele estar cada
dia mais ligado a Deus (Dowdy, 1997:142-143). Para os missionários, essa conclusão é
verdadeira pelo fato de Deus ser infinitamente mais poderoso do que qualquer outro espírito, e
sua presença inibir a atuação do mal representado pelos kworokjam. Talvez os missionários
achassem que Ewká estivesse finalmente entendendo que Deus e os kworokjam são princípios
opostos. Mas aquela formulação também faz sentido a partir das idéias waiwai sobre a
comunicação do yaskomo com seus espíritos auxiliares. Como mencionei anteriormente, tal
comunicação dependia da manutenção de cuidados mútuos, implicados, por exemplo, no fato
de Ewká ser considerado um parente pelo pai dos queixadas, com quem tinha uma
identificação especial. Essa relação de parentesco do yaskomo com os queixadas é
mencionada em diversos sonhos de Ewká, descritos principalmente no Christ’s Witchdoctor,
mas também na etnografia de Fock
131
. A aproximação de Ewká dos missionários, sua
dedicação aos estudos lingüísticos, à leitura dos trechos já traduzidos da Bíblia e suas
reflexões sobre Deus manifestavam seu crescente cuidado em nutrir a relação com a
divindade cristã, em detrimento da dedicação aos kakenau-kworokjam. A conseqüência dessa
130
A esse respeito, Mentore esclarece que as dádivas dos kakenaw-kworokjam deveriam ser retribuídas em forma
de tributo ou respeito por parte dos Waiwai. Durante uma caçada a queixadas, por exemplo, nenhum homem
deveria acertar o animal à frente do bando, por ser a personificação do Pai dos Queixadas. Matá-lo faria com que
a dádiva de carne aos humanos fosse negada. Os queixadas oferecem seu corpo aos humanos em troca do tributo
oferecido ao seu líder (Mentore, 2005:150).
131
Esses sonhos serão analisados mais adiante.
88
negligência não poderia ser menor que uma negligência recíproca. Voltarei a abordar a
transformação da relação de Ewká com seus espíritos auxiliares mais adiante.
O livro apresenta a persistência da incapacidade de Ewká salvar uma grande parcela
dos doentes através dos rituais tradicionais de cura como o fator que, ao longo dos anos, mais
constrangeu o xamã a dar ouvidos aos ensinamentos dos missionários. O estudo de Harding
sobre o processo de conversão entre os batistas fundamentalistas lança luz sobre esse aspecto
da argumentação missionária. Segundo essa autora, os protestantes fundamentalistas
consideram as adversidades como um dos meios pelos quais a pessoa não-convertida torna-se
mais “aberta” para ouvir a Palavra de Deus. O contato com o poder da Palavra é o que
provoca a conversão, mas as adversidades experimentadas pela pessoa são o meio pelo qual
Deus trabalha individualmente em seu coração, fazendo-a dar crédito à mensagem do
evangelho:
Among orthodox Protestants, and especially among fundamentalists, it is
the Word, the gospel of Jesus Christ, written, spoken, heard, and read, that
converts the unbeliever. The stresses, transitions, influences, conditioning,
and techniques which social scientists scrutinize do not in themselves
“explain” do not “cause”, conversion to Christ. All they do is increase the
likelihood that a person might listen to the gospel; they may “open” or
“prepare a person's heart”. It is the Word of God, the gospel, and, believers
would add, the Holy Spirit, God himself, that converts, that “changes the
heart”. We cannot understand fundamental Baptist conversion by looking
only at what causes a person to listen to the gospel; the causes are
innumerable. We must listen too, and we must explore the consequences of
listening. (1989:168)
O papel das adversidades é quebrar o orgulho humano, é substituir a sensação de
independência de Deus pela necessidade de ouvir à mensagem do evangelho, arrepender-se
dos pecados e submeter-se à vontade divina – como observa Thompson, ao analisar a
propaganda metodista do século XVIII (2003b:244-246). Segundo o historiador, no discurso
reavivalista sobre a conversão o pecador inicialmente é descrito como alguém que leva uma
vida afastada de Deus, e tem o coração cheio de vaidade e confiança em si mesmo. Nesse
estágio, a pessoa se considera responsável pelo sucesso de suas próprias realizações. Sua vida
é desregrada, e pautada pela cobiça e por todo tipo de aspirações carnais. Num segundo
momento, o pecador passa por uma ou várias adversidades, através das quais percebe ser
incapaz de controlar sua própria vida ou destino. Ele ouve sobre Deus, mas seu orgulho
humano ainda não foi totalmente substituído pelo sentimento de dependência irrestrita,
89
necessário para a salvação. O exemplo paradigmático citado por Thompson é a narrativa da
conversão de um marinheiro, publicada na década de 1790 em forma de um folhetim:
Primeiramente, encontramos a descrição de uma juventude pecaminosa:
blasfêmias, jogos, embriaguez, ociosidade, licenciosidade sexual ou,
simplesmente o “desejo da carne”. Segue-se a isso uma experiência
dramática que leva o pecador a considerar a idéia da morte (a cura
miraculosa de uma enfermidade mortal, o naufrágio ou falecimento da
esposa ou filhos), ou então o encontro casual com a palavra de Deus, da qual
o pecador escarnece, embora esta continue a lhe indicar o caminho da
salvação. Nosso marinheiro passou por todas essas experiências [...]
(2003b:244-245).
O Christ’s Witchdoctor também descreve a juventude de Ewká como dominada pelo
pecado do ócio, das danças orgíacas e da feitiçaria (Dowdy, 19997:250). Não apenas o jovem
Ewká, mas a cultura waiwai de modo geral é apresentada dessa maneira, em contraste com a
maturidade e o desenvolvimento espiritual adquiridos por cada nativo e pelo grupo após a
conversão. As experiências dramáticas relacionadas ao fracasso em lidar com as epidemias de
doenças ocidentais são descritas como um fator essencial no processo de transformação de
Ewká em cristão, por conduzi-lo a um estado de vulnerabilidade que o fez questionar suas
verdades culturais e dar ouvidos aos ensinamentos dos missionários. Como já mencionei no
capítulo anterior, os protestantes consideram a salvação como uma obra graciosa do próprio
Deus, realizada através do sacrifício vicário de Jesus e sua ressurreição. Mas a atualização
dessa graça na vida de uma pessoa só acontece através da atuação do Espírito Santo, que a
leva a se humilhar completamente diante de Deus. A conversão é quando a pessoa reconhece
a precariedade de sua condição espiritual e moral – isto é, sua condição de pecadora – e a sua
dependência integral de Deus. Exatamente o que teria acontecido com Ewká após os fracassos
sucessivos em curar vários pacientes.
Deus... antes que possa bondosamente perdoar-nos... precisa secar nosso
fruto, murchar a flor de nosso orgulho, arrancar os esteios de nossa fé
pessoal, conter a jactância de nossa farisaica presunção, rasgar a veste de
nossa pomposa e ímpia virtude, e levar o pecador culpado, humilhado,
envergonhado e desesperado aos pés da cruz. (Mardsen, Joshua. s.d.
Sketches of the Early Life of a Sailor. Hull, passim. apud Thompson,
2003b:246)
A narrativa do Christ’s Witchdoctor também se aproxima da descrição sobre o
processo de conversão entre os batistas de Nova Iorque, onde a experiência que leva o
pecador a cogitar a morte é igualmente apresentada como uma maneira de Deus fazê-lo
90
perceber a limitação e a impotência humanas, e mover o seu coração em direção ao
evangelho:
Halfway across town, I pulled my car up to a stop sign, stopped, started into
the intersection, and was very nearly smashed by a car that seemed to come
upon me from nowhere very fast. I slammed on the brakes, sat stunned for a
split second, and asked myself “What is God trying to tell me?” […] As
Reverend Cantrell would have put it, the Holy Spirit was “dealing with me”,
“speaking to my heart”, “bringing me under conviction”. He was showing
me that “life is a passing thing”, that death could take me in an instant, no
matter how much control I fancied I had over my life, and that I should put
my life in the Lord's hands before it was too late. (Harding, 1989:169)
Após a conversão, Ewká começou a se recusar a realizar os rituais de cura através dos
kworokjam. Quando solicitado pelos doentes, ele explicava que apenas oraria a Deus, e se
houvesse insistência, recomendava que procurassem a Mïya (Dowdy, 1997:151). Ewká
também passou a fazer orações antes de todas as refeições, nas quais agradecia a Deus pela
provisão do alimento. O Christ’s Witchdoctor repete várias vezes que o novo convertido
conduzia essas orações públicas apesar da recusa dos outros Waiwai em fechar os olhos e
curvar a cabeça para falar com Deus, como ele fazia (Dowdy, 1997:149,175,196). O
agradecimento a Deus pelo alimento também expressava uma certa negação da reciprocidade
devida aos kakenau-kworokjam, pois como mencionei anteriormente, eles eram considerados
doadores da carne aos Waiwai, e deveriam receber gratidão e admiração por isso. Do mesmo
modo, a recusa em comunicar-se com os hyasïrï para realizar os rituais de cura tinha como
conseqüência a suspensão de uma parte do fluxo de poderes vitais desses seres para os
Waiwai. Por conseguinte, a comunidade não apoiava os gestos de Ewká. Sua esposa, Ahmuri,
temia que seus filhos adoecessem e morressem sem que o marido convertido pudesse curá-los
(Idem,:166). Durante mais de um ano, Ewká permaneceu sozinho em sua decisão de seguir os
ensinamentos dos missionários. Estes notavam que os índios continuavam freqüentando as
reuniões dominicais em Kanashen, mas essa assiduidade não era acompanhada pela
disposição de colocar em prática o padrão evangélico de conduta: os Waiwai continuavam
realizando feitiços, bebendo e tendo relações sexuais fora do casamento. A única exceção era
Ewká
132
. Além disso, os missionários ficavam frustrados quando percebiam que Jesus era
mencionado pelos nativos como se fosse mais um kworokjam, dentre os muitos outros que já
habitavam o cosmos waiwai, ou quando alguns índios usavam as músicas de louvor a Deus
132
Os missionários relatam que nessa época também já tinham conseguido fazer com que os Waiwai parassem
de matar bebês recém-nascidos. No discurso missionário, o esforço de banir o infanticídio é uma das principais
justificativas para a evangelização dos Waiwai (Dowdy, 1997:169; Queiroz, 1999:269).
91
que aprendiam nas reuniões com finalidades mágicas, no lugar dos eremu (Dowdy,
1997:169).
Mïya adotou a estratégia oposta à de Ewká em relação aos kakenau-kworokjam. Ele
começou um movimento de resistência aberta às práticas médicas ocidentais, incitando os
Waiwai a evitar as injeções e os comprimidos ministrados pela enfermeira Florence Riedle, e
proibindo os doentes de sua aldeia de buscar tratamento em Kanashen (Idem, :170,176). Ele
ainda era o kayaritomo mais influente do Essequibo. Contudo, a estratégia falhou após sua
esposa e cunhada adoecerem gravemente e morrerem sem receber os remédios alopáticos.
Sem esposa, Mïya não conseguiu conservar sua proeminência política como kayaritomo,
tampouco suas atribuições espirituais como yaskomo, como relata Fock:
It should, however, be observed that amongst the Guiana Waiwai group
there was a tendency to regard one of the villages headman as possessing
greater prestige than the others. Miywa, head of Mawika, was incontestably
the greatest authority in 1954, but when his wife died and the leadership
passed to his adopted son, this informal position as head of the group passed
to Ewka, the headman of Yakayaka. (1963:231)
When his wife died and he was in consequence unable to exercise his
functions anymore, his ñukwa vanished without trace. He himself though
that this happened because it was frightened. At all events he thus lost the
possibility of summoning poinko-yin and the peccaries. (Idem, :127)
Portanto, após a morte da esposa de Mïya, a disputa política pendeu definitivamente
para o lado de Ewká. Este nem sempre conseguia manter-se firme em sua decisão de
abandonar totalmente os kakenau-kworokjam. De acordo com o Christ’s Witchdoctor, nessa
mesma época o neto de Mïya ficou gravemente enfermo. O velho líder não queria levar o
menino para ser tratado pelos missionários, mas como não conseguiria salvar o neto, resolveu
pedir ajuda a Ewká, convencido de que este saberia os eremu necessários para curar a criança.
Ewká cedeu à pressão de Mïya, e também de seus próprios parentes, para tentar curar o
menino através dos kakenau-kworokjam. Ele viajou escondido dos missionários para Mawicá,
onde passou uma noite inteira soprando tabaco e cantando eremu sobre o doente
133
. Ao voltar
para Kanashen teve vergonha de confessar aos missionários que havia passado a noite atuando
como yaskomo, e mentiu dizendo que vinha de sua própria aldeia, Yakayaka (Dowdy,
1997:184).
133
Apesar de ter cedido às pressões e passado a noite cantando Eremu e soprando sobre o doente, Ewká recusou-
se a construir uma shutepana e a utilizar uma pedra ñukha (Dowdy, 1997:184).
92
A relevância dos surtos de doenças infecciosas no processo de conversão de Ewká e
dos demais Waiwai é tema do já mencionado artigo de Queiroz, publicado em 1999
134
.
Partindo de trabalhos de Schomburgk, Guppy, Yde, Fock, Meggers, Mentore e Howard já
citados aqui, e de relatos de índios waiwai e de uma missionária da MEVA recolhidos durante
sua própria pesquisa de campo, esse antropólogo sugere que a conversão de Ewká tenha sido
parte do esforço histórico dos Waiwai para superar o risco de desaparecimento pelas
epidemias decorrentes do contato indireto e direto com não-índios.
Queiroz observa que o grande número de mortes durante as epidemias era tomado
pelos Waiwai como conseqüência da interrupção da comunicação entre os xamãs e os seus
espíritos auxiliares:
As mortes que aconteciam em grande quantidade eram um sinal de que o
diálogo entre os Yaskomo e os seus espíritos tinha sido de certa forma
interrompido; o xamã já não mais conseguia desempenhar o seu fundamental
na sociedade waiwai: dialogar com os seres sobrenaturais, prever os
fenômenos físicos, garantir a ordem e o bom funcionamento do mundo
social e, acima de tudo, garantir a continuidade da vida. As epidemias
estavam provocando uma profunda confusão na ordem social e simbólica
waiwai. Neste momento, os missionários apresentaram uma nova “ordem
espiritual” – o cristianismo (Queiroz, 1999:275).
O fator mais importante para o estabelecimento dessa nova ordem teria sido a eficácia
dos remédios alopáticos, aliada à insistente pregação dos missionários da UFM. Tal eficácia
dos medicamentos evidenciava a superioridade do poder espiritual dos missionários em
relação ao poder agenciado pelos yaskomo – já que, entre os Waiwai, as doenças e mortes
sempre tinham causas espirituais, assim como a cura (Idem, :275). Portanto, apesar de
considerar a luta pela sobrevivência como fator determinante na conversão de Ewká e dos
demais Waiwai, Queiroz busca escapar de um dualismo analítico no qual as epidemias seriam
tomadas como coerções materiais (ou de ordem prática) que explicariam as transformações
ocorridas num nível simbólico ou cultural:
Ao analisar o papel que a doença teve no processo de “evangelização” dos
Waiwai, procuramos chamar atenção para o fato de que não existia um nível
(material ou cultural) que fosse determinante para a eficácia da atuação
missionária, pois a doença representava e trazia para os índios, ao mesmo
tempo, uma coerção de ordem simbólica e material (Idem, :277).
134
Esse artigo foi publicado no primeiro volume de uma coletânea organizada por Robin Wright, que reúne
artigos sobre os sentidos da conversão entre povos indígenas no Brasil. A referência bibliográfica completa está
no final desta dissertação.
93
A discussão que venho tentando desenvolver nesta dissertação complementa, em certo
sentido, a análise de Queiroz – que levanta aspectos centrais no processo de conversão de
Ewká. Assim, reforço que a relação entre os Waiwai e os kakenau-kworokjam era de
reciprocidade, e que o fracasso na cura das doenças indicava uma interrupção dessa
reciprocidade. Nesse contexto, o cristianismo tornou-se uma via de controle das potências
destrutivas dos kworokjam. Esse controle era exercido pelo uso dos remédios (indissociados
do poder divino) e também, como mencionei na seção anterior deste capítulo, por um esforço
de santificação que envolvia uma empresa de parentalização ampla, onde a ênfase nas
relações pacíficas inibia o agenciamento de potências espirituais destrutivas pela fofoca,
violência e feitiçaria.
Contudo, Queiroz afirma que a conversão de Ewká e dos demais Waiwai significou o
abandono das crenças e das práticas relacionadas aos kworokjam, após os xamãs terem sido
vencidos pelos remédios e se tornado pastores evangélicos (1999:272,274). A minha sugestão
é que a conversão não se deu pelo abandono das idéias e práticas referentes aos kworokjam, e
sim pela transformação na relação com esses seres, que continuaram existindo para os
Waiwai, mesmo após Ewká ter se tornado pastor
135
. Em um artigo sobre o xamanismo entre
os grupos das Guianas publicado em 2005, Sztutman argumenta que Queiroz recairia na
explicação dos missionários para a conversão dos Waiwai, ao sugerir que o abandono das
práticas tradicionais de cura em favor da medicina ocidental e do cristianismo apontaria para
o desaparecimento dos xamãs e também da causalidade xamânica (2005:202). Sztutman
observa que o desaparecimento da figura formal dos xamãs não exprime, necessariamente, o
desaparecimento do xamanismo enquanto um “sistema de pensamento e ação” ou enquanto
plano de comunicação dos humanos com o mundo não-humano ou sobrenatural. A partir da
dissertação de mestrado de Dias Junior, onde o campo político das comunidades Waiwai
aparece incessantemente movimentado por acusações de feitiçaria, ele infere que o plano
espiritual no qual essas agressões acontecem persiste, que é também o campo no qual atuavam
135
Como mencionei em uma nota anterior, a conversão da maioria dos Waiwai levou a uma simplificação das
idéias sobre os kworokjam, especialmente das descrições das camadas cósmicas, que na época da pesquisa de
Howard, nos anos 1980, haviam se tornado muito vagas (Howard, 2001:94-95). As observações de Queiroz
sobre o abandono das idéias e práticas relativas aos kworokjam indicam que na época da sua pesquisa de campo,
nos anos 1990, a ênfase do discurso e das práticas dos waiwai continuava sendo o universo espiritual cristão, em
detrimento do complexo conceitual relacionado aos kworokjam. Não estou contradizendo esses dados, e sim
sugerindo que o movimento de Ewká em direção ao cristianismo se deu a partir da própria lógica xamânica, e
não pelo seu abandono. Contudo, os efeitos a longo prazo dessa conversão dos Waiwai necessitam ser melhor
estudados, e minhas observações se restringem aos primeiros anos de convertidos. Meu argumento da conversão
se dar a partir da lógica xamânica será melhor desenvolvido na seção seguinte deste capítulo.
94
os xamãs (Dias Junior, 2000; Sztutman, 2005:203). Nesse sentido, a feitiçaria e o xamanismo
são posições hierárquicas que
constituem um sistema integrado de agressão e domesticação de forças,
potencialidades e qualidades contidas no cosmo. [...] o xamanismo consiste
no lugar de onde provém a fonte de conhecimento em seu sentido forte,
lembrando que este deve advir, ser conquistado de domínios sobrenaturais,
distribuídos no espaço cosmológico ou no tempo mítico [...]. Em suma, as
práticas ditas leigas têm sua condição de existência nos mecanismos de
comunicação e mediação propiciados pela ação xamânica (Sztutman,
2005::212).
O mesmo autor sugere, portanto, que pesquisas futuras entre os Waiwai considerem a
possibilidade da transformação do lugar ocupado pelo xamanismo (ao invés de sua
aniqüilação), bem como a possibilidade de encontrar a tradução de uma cosmologia nativa em
uma cosmologia cristã, partindo da seguinte indagação:
O discurso de que os xamãs perderam a capacidade de curar implica o fato
de que as causas (agentes) que eles combatiam tenham elas também
desaparecido, digamos, na mente dos mesmos Waiwai? Quando se admite
um ato de feitiçaria, não se estaria repondo um sistema de causalidade que
tende a competir com a etiologia médica e missionária? (Sztutman,
2005:212).
Examinarei as conclusões de Sztutman sobre o destino do xamanismo entre os Waiwai
mais adiante. Antes, é necessário examinar melhor a transformação da relação com os
kakenau-kworokjam implicada no abandono das práticas tradicionais de cura, incentivado
pelos missionários.
Criação e perspectiva
A seguir, reproduzo alguns dos sonhos de Ewká em seu processo de iniciação
xamânica, que explicitam o tipo de comunicação estabelecida com seus espíritos auxiliares. É
interessante notar que não apenas a relação pessoal de Ewká com Deus foi iniciada através de
sonhos, mas também a relação anterior com o pai dos queixadas, poinko-yin. Assim como em
seu último sonho com o Espírito Santo Ewká recebeu instruções de como agir para
aproximar-se de Deus, em seus primeiros sonhos com o pai dos queixadas ele havia recebido
instruções de como agir para aproximar-se desses animais e canalizar os benefícios desse
relacionamento para os Waiwai. Vejamos.
95
Quando criança, certa vez Ewká permaneceu escondido próximo a uma shutepana
onde um xamã estava tratando um doente, e nunca mais se esqueceu dos cânticos que ouvira.
Às vezes ele repetia esses eremu sem que as outras pessoas da aldeia percebessem. Algum
tempo depois, enquanto dormia, Ewká sentiu um puxão em sua rede, seguido pelo bufar de
um queixada e palavras incompreensíveis, na língua do animal: “Hee hai yoko”. Ewká
também sentiu algo peludo e sem forma passar em seu rosto. Ele tentou afastar aquilo, mas
seu braço estava muito pesado. Somente após muito esforço conseguiu movimentar-se e abrir
os olhos. A lua brilhava muito, e ao olhar para ela Ewká viu o queixada que falara com ele
momentos antes. Era um animal enorme, com pelos rijos e presas. Ele sorria amigavelmente,
e ao seu lado estavam um beija-flor luminoso, uma enorme sucuri e um tatu. O queixada
acenou e disse: “Cante os cânticos de kworokjam para nós!”. Em seguida, disse junto com os
outros animais: “Nós ensinaremos a você, baixinho”
136
. Dessa vez Ewká entendeu o que o
queixada e os outros diziam, mas estava paralisado de medo e não conseguiu respondê-los.
Quando o dia amanheceu, ele contou o acontecido a Mafoliô. O velho xamã disse a Ewká que
o queixada no sonho era kworokjam
137
.
Em um sonho posterior, Ewká e outros caçadores da aldeia seguiram um bando de
queixadas até um buritizal, onde conseguiram cercá-los. Nesse momento, um animal enorme
separou-se dos demais e foi perseguido por Ewká. Quando este se preparava para atirar uma
flecha certeira, foi encarado pelo animal que disse: “Irmãozinho, por quê você quer me
acertar? Eu sou um que você não deve acertar”. Ewká abaixou o arco. O queixada inclinou a
cabeça num agradecimento e voltou correndo para junto do bando. No dia seguinte, Ewká e os
outros homens da aldeia foram caçar, e aconteceu a mesma coisa do sonho. Eles seguiram os
queixadas até um buritizal. Ali, um animal bem gordo manteve-se separado dos demais. Ele
era tão grande que nenhum Waiwai poderia errá-lo, mas Ewká atirou uma flecha que passou
longe do alvo. O animal continuou imóvel, olhando diretamente para Ewká. Este não desistiu
e atirou várias outras flechas, mas o animal saiu ileso. Os outros caçadores flecharam e
mataram vários queixadas; apenas Ewká voltou para a aldeia de mãos vazias.
Em sua próxima caçada, Ewká enganou os queixadas disfarçando-se com folhas de
palmeiras. Após matar dois animais resolveu livrar-se do disfarce, mas assim que desamarrou
136
“Baixinho” é uma forma de tratar a criança. Na edição norte-americana aparece a expressão Little Body.
137
Como mencionei anteriormente, esse sonho é descrito pelos missionários, que utilizam o nome kworokjam de
forma genérica, para referir-se ao diabo. Portanto, é impossível saber se este foi o termo utilizado pelos waiwai
ao narrar os acontecimentos, ou se foi algum termo mais específico não discriminado no texto dos missionários,
como poinko-yin (pai dos pecaris) ou kakenaw-kworokjam.
96
as folhas presas ao seu corpo as flechas não mais acertaram os alvos
138
. Na noite seguinte a
essa caçada, Ewká sonhou novamente com o queixada, que lhe disse: “Irmãozinho, por quê
você vem atrás de nós para nos matar? Você deveria estar derrubando os frutos das palmeiras
para comermos”. E lhe entregou uma flauta, dizendo: “Toque a canção do urubu!”
139
.
Enquanto Ewká tocava o instrumento, a cara do queixada transformou-se num rosto de
homem, e o seu pêlo num longo e preto cabelo de homem. E o animal, agora homem, lhe
disse: “Eu quero que você seja um yaskomo. Quando isso acontecer, você não me comerá
mais, exceto por um pedacinho minúsculo do meu lombo. Se você comer mais de mim do que
isso, eu comerei o seu espírito. Se você me negligenciar, você também morrerá”. Ewká
acordou com o corpo tremendo, e com a sensação semelhante à de ter faixas com formigas
tocandiras vivas amarradas nele
140
. Ele contou o ocorrido a seu tio Mapale. Este afirmou que
o porco do sonho era kworokjam (Dowdy, 1997:53-55).
Fock registrou outro sonho importante de Ewká (1963:123). Uma noite, um grande
bando de queixadas veio até ele dizendo: “Você não quer um pouco de carne?” Ewká
respondeu positivamente, e os animais disseram: “Nós retornaremos”. Ewká perguntou
quando aquilo aconteceria, e os queixadas responderam: “De manhã cedo estaremos perto das
palmeiras”. No dia seguinte, Ewká contou o ocorrido a seu tio Mapale, que lhe disse: “você
deve ser um yaskomo”.
Após tantos sonhos, não havia dúvidas de que Ewká demonstrava a inclinação
necessária para ser um xamã. Mapale conduziu o jovem sobrinho num ritual de iniciação que
teve duas fases
141
. Numa noite, os dois entraram numa shutepana. Ali pintaram os rostos e
vestiram cocares de penas de garça azul e peitorais feitos com pele de queixada. Durante
138
Recentemente assisti ao filme Histórias de Mawari, dirigido por Queiroz e filmado na aldeia Mapuera
durante os preparativos dos Waiwai para as comemorações do Natal de 1994. Em um dos trechos do filme, os
Waiwai fazem uma performance da caça aos queixadas. Nessa performance, um grande bando de queixadas
entra na aldeia, e é perseguido por uma onça e também por caçadores humanos. Os queixadas são índios vestidos
de folhas de palmeiras, com os corpos cobertos de lama, e tocando flautas que emitem sons semelhantes aos
produzidos por esses animais. Ao ver essas cenas, lembrei-me imediatamente de uma informação fornecida pela
etnografia de Fock, onde um xamã relata ao antropólogo que os queixadas pintam seus corpos, mas utilizam
lama ao invés de urucum; e também do relato acima descrito, sobre a caçada de Ewká. Parece-me, portanto, que
ao cobrir seu corpo com folhas de palmeira durante a caçada Ewká disfarçava-se justamente de um queixada,
para que o animal não percebesse sua presença e assim pudesse ser atingido.
139
Nas descrições tradicionais, o povo-urubu habita a camada mais alta do céu, e tem a aparência semelhante à
dos Waiwai. Howard sugere que a camada habitada pelo povo-urubu apresenta de forma clara o contraste entre a
temporalidade dos kakenaw-kworokjam e a finitude da existência terrestre, já que o povo-urubu associa-se à
permanência e à vitalidade dos kakenaw, mas para viver alimenta-se da carniça presente nas carcaças de animais
(2001:92-93).
140
A prática de prender ao corpo faixas com formigas tucandeiras faz parte do rito de passagem masculino para a
idade adulta (ver Dowdy, 1997:29-31).
141
Tanto Fock como os missionários descrevem esse ritual. Fock descreve primeiro a fase noturna e depois a
diurna, sem estabelecer uma ligação direta entre elas (1963:124). Já os missionários sustentam que as duas
etapas teriam acontecido seguidamente, durante um dia inteiro e a noite seguinte (Dowdy, 1997:56-60).
97
muitas horas os dois fumaram tabaco e cantaram. Mapale colocou uma pedra ñukwa na boca
de Ewká, e o ensinou a cantar novos eremu – primeiro Mapale cantou sozinho, depois Ewká
cantou junto, até que finalmente Ewká pôde cantar sozinho. Eles cantaram ao beija-flor, o
espírito mais gracioso de todos, que conduziu Ewká ao céu. No céu este viu pessoas
pequenas, algumas com pele vermelha, outras com pele branca e outras com pele preta.
Algumas se vestiam como os Waiwai, outras tinham o corpo coberto por roupas. A sucuri e
muitos queixadas também estavam lá. Quando Ewká voltou do céu e finalmente saiu da
shutepana, as pessoas que estavam ao lado de fora disseram que ouviram-no falar palavras
desconhecidas, que ninguém entendia.
A outra parte do ritual consistiu numa cerimônia pública ao ar livre, durante um dia
inteiro. Mapale e Ewká permaneceram sentados em seus banquinhos, cantando eremu para
diversos animais. Mapale levou um pó de tabaco bem fino e passou nas suas narinas e nas do
sobrinho
142
. Depois ele fumou tabaco e soprou no nariz do jovem, que não deveria espirrar,
mas engolir a fumaça. Através desses sopros ele transmitiu vários hyasïrï a Ewká
143
.
Na noite seguinte à sua iniciação, Ewká teve um sonho no qual seguiu o cheiro dos
queixadas por uma trilha, mas no fim só encontrou um monte de ossos secos. Ele entoou o
canto do urubu, e isto soprou vida nos ossos. Os animais ressuscitados cantaram em
apreciação: “Ewká agora é um dos nossos!”. Num outro sonho registrado por Fock, certa
noite poinko-yin apareceu a Ewká e disse: “Por que você canta o eremu do queixada? Eu sou
o pai dos queixadas!” E soprou fumaça de tabaco sobre a cabeça do yaskomo (1963:113)
144
.
O objetivo de descrever esses sonhos aqui é evidenciar o tipo de relação existente
entre o yaskomo e seus espíritos auxiliares. No princípio, Ewká e os queixadas tinham pontos
de vista completamente diferentes, o que é evidenciado pelo fato de Ewká vê-los como
animais, como presas que deviam ser caçadas e comidas
145
. As palavras do queixada eram
142
No relato dos missionários, os nativos que assistiam à cerimônia também utilizaram tabaco. Mapale teria
distribuído pedacinhos de folhas secas a eles, que as esmagaram nas mãos e cheiraram. Fock informa que o pó
utilizado por Mapale e Ewká foi moído num pilão especial (1963:124).
143
O Christ’s Witchdoctor menciona a participação de uma velhinha “feiticeira” (sorcerer) nessa fase da
iniciação de Ewká. Ela também teria fumado tabaco e soprado sobre Ewká durante esse ritual de iniciação
(1994:30). A versão brasileira do livro identifica a velhinha como pajé (1997:46). A etnografia de Fock não faz
referência à participação dessa mulher, nem admite a existência de mulheres yaskomo, embora mencione a
história, contada pelos Waiwai, de uma mulher mais velha que tocava uma flauta para atrair os queixadas para a
caça. Essa flauta, diz o autor, provavelmente era uma herança deixada pelo marido da mulher. Após a morte
dela, os queixadas teriam desaparecido da região (1963:30).
144
De acordo com Fock, antes do contato, o uso do tabaco entre os Waiwai era restrito aos xamãs. A
identificação entre o tabaco e o xamanismo era tão evidente que certa vez um pai teria dito ao seu filho cético:
“Sim, eu sou um yaskomo, eu sopro tabaco” (1963:113). Desse modo, o uso dessa substância por poinko-yin
denuncia que ele também era xamã.
145
Utilizo aqui na noção de “ponto de vista” ou “perspectiva” formulada por Viveiros de Castro (1996,2002) e
por Lima (1996). Essa noção diz respeito à suposição ameríndia de um mundo onde a subjetividade é atribuída
98
nada mais que grunhidos aos seus ouvidos. Ao longo do primeiro sonho e nos episódios
seguintes, a distância entre o jovem waiwai e os queixadas é superada. Ewká torna-se capaz
de comunicar-se na língua desses animais, ouvindo e falando palavras que os outros Waiwai
não podiam entender. Ewká também passou a ver o queixada em forma humana, e a ser
tratado pelos outros membros de sua espécie não como um predador, e sim como um
“irmãozinho”. Ao invés de alimentar-se dos queixadas, Ewká deveria alimentar os queixadas,
mesmo tipo de cuidado demonstrado entre parentes humanos. Ou seja, Ewká assumiu o ponto
de vista desses animais, que passaram a considerá-lo como um parente, como “um dos
nossos”.
O grande benefício obtido através dessa relação especial com os queixadas, sobretudo
com poinko-yin, era a dádiva da carne de caça. Além disso, a comunicação privilegiada do
yaskomo com outros kakenau-kworokjam oferecia benefícios diversos aos Waiwai: a
comunicação como o pai dos Peixes, uma sucuri, garantia boas pescarias; a comunicação com
a harpia e com o beija-flor permitia buscar ekatï perdidos e seqüestrados em outras camadas
cósmicas e trazê-los de volta aos corpos dos doentes, e assim por diante. Os peitorais de peles
e cocares de penas utilizados pelos yaskomo eram como “roupas” com as quais eles assumiam
outros corpos, outros pontos de vista e assim comunicavam-se com esses seres. As atitudes
tomadas por Ewká após sua conversão – orar a Deus antes das refeições e recusar-se a praticar
os rituais de cura através dos seus hyasïrï – eram a negação dessa reciprocidade, eram uma
declaração de hostilidade que poderia resultar na sua morte. Além do risco pessoal que essas
atitudes implicavam, Ewká estava abrindo mão dos benefícios que canalizava para a
comunidade waiwai – e, portanto, abrindo mão até mesmo de seu prestígio como yaskomo.
A negação dessa reciprocidade atingiu níveis extremos no ano posterior à conversão
de Ewká. A maior insistência dos missionários era pelo abandono do cesto no qual o yaskomo
não apenas aos humanos, mas também às plantas, animais, objetos, espíritos e até fenômenos físicos. Nesse
contexto, a humanidade é definida como a capacidade de possuir uma perspectiva própria, de ter um ponto de
vista sobre o mundo – ou seja, os animais, plantas, objetos, espíritos, fenômenos físicos também são pessoas que
se percebem como humanas. Todos os seres dotados de subjetividade vêem o mundo a partir da mesma
perspectiva (humana), o que muda são as coisas que cada um vê:
“Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos que os animais e espíritos se vêem como humanos. Eles
se apreendem como, ou se tornam, antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e
experimentam os seus próprios hábitos e características sobre a espécie da cultura: vêem o seu alimento como
alimento humano (os jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos vêem os grilos como peixes, os urubus
vêem os vermes da carne podre como peixe assado, etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras,
bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado identicamente às
instituições humanas (com chefes, xamãs, ritos de casamento etc.). Esse “ver como” refere-se literalmente a
perceptos [...]. Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas.” (Viveiros de Castro, 2002:350)
Portanto, o ponto de vista é um atributo corporal. As diferentes posições ocupadas pelos sujeitos são
relativas ao corpo, ou ao ponto de vista de quem os vê. Essas posições são reversíveis, sendo possível assumir o
ponto de vista de um outro, capacidade especialmente desenvolvida pelos xamãs.
99
guardava os instrumentos especiais que utilizava: as ñukwa, folhas de tabaco, um cocar de
penas, peitorais de peles, e um tubo utilizado para aspirar e soprar os kworokjam e os ekatï, e
para soprar fumaça (Dowdy, 1997:151; Fock, 1963:126). O fato de Ewká conservar esses
objetos significava que ele continuava sendo yaskomo, mesmo que “inativo”. Os missionários
desejavam que ele renunciasse definitivamente sua relação especial com os kworokjam e
seguisse a Jesus. Ewká temia que essa atitude radical provocasse uma vingança furiosa dos
kakenau-kworokjam (Dowdy, 1997:152). Todos os xamãs que jogavam seus cestos fora
morriam em pouco tempo. Os Waiwai já haviam testemunhado mortes desse tipo. Nessa
mesma época, um xamã mawayana chamado Machere, depois de não conseguir curar várias
pessoas de sua aldeia, inclusive sua esposa, desistiu de viver e jogou seu cesto na floresta,
espalhando as pedras ñukwa pelo mato. Nos dias seguintes ele teve vários sonhos nos quais os
kakenau-kworokjam e sua esposa o chamavam. Incapaz de alimentar-se, ele foi levado para
Kanashen, onde morreu sofrendo agonias terríveis (Idem, :152-153, Queiroz, 1999:275)
146
.
Um outro xamã havia perdido seu cesto por acidente enquanto passava de canoa por uma
corredeira num rio, e também morreu dentro de poucos dias (Dowdy, 1997:154). Somente
após muitas conversas, Ewká foi convencido por Claude Leavitt a provar que Deus era mais
poderoso do que os kworokjam, e por isso poderia protegê-lo da morte. Como único nativo
cristão, o líder deveria despojar-se do cesto como testemunho do poder de Deus para todos os
Waiwai.
Quando souberam da decisão de Ewká de abandonar o cesto, vários Waiwai
procuraram o líder e o aconselharam a não tomar tal atitude. Ewká respondia a todos que sua
decisão era um teste para saber se o que os missionários estavam falando era verdade ou não.
Se ele sobrevivesse, os demais também deveriam tornar-se “companheiros de Jesus” (Idem,
:156). Os Waiwai esperavam que Ewká morresse, e haviam decidido que após esse
acontecimento voltariam a morar em regiões remotas na Serra Acaraí, longe dos missionários
(Idem, :159, Queiroz, 1999:272). Leavitt instruiu Ewká a aproveitar uma festa que se
aproximava, e que reuniria todos os Waiwai do Essequibo e do Mapuera, para renunciar o
cesto como confissão pública de que havia se tornado um seguidor de Jesus. Para o
missionário, a confissão de Ewká seria o momento culminante da festa. Ele também instruiu
Ewká a substituir a bebedeira, os cantos, as danças e as relações sexuais fora do casamento
(mesmo aquelas consideradas lícitas pelos Waiwai) pela realização de jogos e brincadeiras,
146
Entre os Waiwai uma pessoa pode morrer por mais de um motivo. Na época da morte de Machare, os Waiwai
afirmaram que o xamã também foi vítima de um feitiço de vingança, parawa, por ter “comido” o ekatï de uma
mulher algum tempo antes, e assim provocado sua morte (Dowdy, 1997:152-153). O falecimento de Machere
teria sido conseqüência tanto da negligência com os kakenau-kworokjam quanto do feitiço de vingança.
100
acompanhados por uma bebida não-fermentada e muita carne. Apesar de criticarem a postura
de Ewká, os nativos continuavam respeitando-o como líder.
O Christ’s Witchdoctor relata que Ewká entregou seu cesto a Claude Leavitt no
último dia de festa, apesar da reprovação de todos os Waiwai que testemunhavam o
acontecimento. O missionário tencionava enviar os instrumentos do xamã para os Estados
Unidos como prova do sucesso do trabalho de evangelização, mas os índios pensavam que ele
poderia utilizar o cesto para fazer feitiços contra eles. Antes de entregar o cesto, Ewká teria
dito ao público: “Se vou morrer, isso é Deus quem sabe. Se Deus não for verdadeiro,
morrerei. Se ele for verdadeiro, não morrerei” (Dowdy, 1997:161). E ainda: “Eu estou
confiando em Deus. Eu não quero mais ter nenhum relacionamento com kworokjam” (Idem).
Em seguida, Claude Leavitt disse ao grupo que Ewká não era mais um yaskomo, e portanto
ninguém deveria pedir a ele para soprar sobre algum doente. A partir daquele dia Ewká
apenas oraria a Deus pela cura.
Para Dias Junior, o maior espanto dos outros waiwai com o gesto de Ewká abandonar
o cesto no qual guardava seus utensílios de yaskomo não dizia respeito à renúncia da
reciprocidade com os kakenau-kworokjam e os perigos que ela acarretava, mas ao fato de
manifestar a renúncia da proeminência política que Ewká havia conquistado no grupo:
Meu argumento é que, para seus pares, o fato de Ewka dar demonstração de
fé no suposto Deus dos missionários não criaria tanto espanto, ao contrário
de uma outra interpretação (cf. Queiroz, 1999). O problema não era acreditar
nesta ou naquela divindade mas [...] o espanto foi pelo fato de Ewka abrir
mão do espaço que ele mesmo havia construído formalmente em conjunto
com os demais líderes e não-líderes (2005:45).
O antropólogo argumenta que o abandono do cesto com os utensílios de yaskomo foi o
maior passo dado por Ewká em sua trajetória de líder (Idem, :45-46). Depois desse gesto,
Ewká aproximou-se ainda mais dos missionários, junto aos quais colocou em prática um
projeto de evangelização que atendia ao mesmo tempo seus interesses políticos e os interesses
espirituais dos norte-americanos:
Em pouco tempo Ewka redefiniu seu espaço entre seus pares e arranjou os
missionários no interior da mesma ordem que esses imaginavam ter
transformado. Isolado de seus co-residentes, Ewka instalou-se
provisoriamente em Kanaxen onde tratou de acertar com os missionários os
próximos passos para o que diziam ser a “conversão” dos demais. Acordo
selado em torno da idéia da “evangelização”, cujo conteúdo do termo atendia
a um só tempo os interesses de ambas as partes; para os missionários
significava convencer os demais da soberania do Deus cristão, isto é,
101
“evangelizá-los”. Para Ewka, convencê-los da importância de englobar as
diversas casas coletivas em uma só extensão (adotando uma só língua –
aquela que os missionários aprendiam e grafavam em Kanaxen; e uma só
conduta pacífica [...]), isto é, “waiwaizá-los”. Para ambas as intenções, o
esforço seguinte consistia em reunir as casas coletivas compondo um novo
contexto de casas aglomeradas” (2005:46).
Portanto, Dias Junior sugere que as atitudes de Ewká em relação aos kakenau-
kworokjam sejam compreendidas como parte do esforço de construção de um novo tipo de
coletivo que já se configurava pela aglomeração de outros grupos de co-residentes no entorno
da missão e pelo aprendizado da língua Waiwai, na qual eram evangelizados. O papel de
liderança precisava ser redefinido, o que foi possível através da conversão de Ewká ao
cristianismo. Posteriormente, com a conversão dos demais co-residentes, o mundo espiritual
passou a ser agenciado de outra maneira:
o perigoso mundo dos espíritos, de Kworokjan, era controlado pelo conjunto
das novas ações (cultos diários) e intenções (pregar o bem, isto é, a troca em
detrimento da guerra e do rapto), sobre as quais instituíam a conduta ideal na
nova forma do coletivo. Juntando as interpretações dos missionários com as
suas próprias, construíam a imagem de Deus sobreposta, mas sem anular, à
de Kworokjan (2005:48).
A meu ver, não é frutífera a distinção inicialmente feita pelo antropólogo, entre a
relação de Ewká com as “divindades” (kworokjam e Deus cristão) por um lado, e, por outro
lado, a redefinição da sua liderança no processo de construção de um novo coletivo waiwai.
Parece-me que a transformação das relações com os agentes sobrenaturais e a redefinição da
liderança e do coletivo são aspectos igualmente importantes de um mesmo processo. Se o
xamanismo era freqüentemente uma condição para a liderança, e se ao despojar-se do cesto
com os instrumentos de yaskomo Ewká também abdicava da sua influência como líder, é
porque para os Waiwai as questões políticas e as questões espirituais, ou sobrenaturais, estão
imbricadas (e não poderia ser diferente, já que o universo social ameríndio inclui uma
multiplicidade de pessoas humanas e não-humanas). Essa imbricação fica clara ao longo da
argumentação do próprio autor, embora ele insista em distinguir as novas ações “espirituais”
(como freqüentar cultos) das novas intenções “políticas” (como a ênfase em fazer o bem
através do cultivo das relações de reciprocidade com outros grupos) no controle dos poderes
destrutivos dos kworokjam, no novo contexto das casas aglomeradas. Tal distinção não se
sustenta, pois as intenções políticas são, para os waiwai convertidos, tão espirituais quanto
freqüentar cultos ou adorar ao Deus cristão. Essa observação remete à discussão iniciada
102
numa seção anterior deste capítulo, sobre a santificação cristã ser experimentada pelos
Waiwai como um processo de intensificação e ampliação das relações pacíficas entre
parentes, guiadas pelo ideal do amor ao próximo, em oposição a uma vida de pecado onde há
espaço para sentimentos raivosos e egoístas, geradores de conflitos, cisões e mortes –
agenciadores dos poderes espirituais destrutivos relacionados aos kworokjam. A
transformação nas relações com os kworokjam e com Deus é um aspecto central, tanto do
ponto de vista missionário como do ponto de vista waiwai sobre os processos de conversão e
evangelização – embora por motivos diferentes, como venho tentando demonstrar ao longo
deste trabalho. Prossigo, a seguir, com o exame atencioso da transformação da relação de
Ewká com os kakenau-kworokjam, pois ele permite desenvolver melhor essa questão da
reconfiguração da liderança no novo coletivo.
O ápice da narrativa do Christ’s Witchdoctor ocupa quinze páginas do livro, e
descreve o confronto direto entre Ewká e seus antigos espíritos auxiliares, que após serem
desprezados, voltaram para matá-lo (Dowdy, 1997:184-197). Para os missionários, a
sobrevivência de Ewká a esse confronto era uma demonstração da destruição dos poderes
demoníacos que regiam sua vida anteriormente, antes dele aceitar Jesus (Idem, :194). A
vitória de Ewká também era a prova que faltava para os outros waiwai acreditarem nos
missionários e seguirem o exemplo de conversão do líder.
A primeira a desafiar Ewká foi uma grande sucuri de cabeça branca, que costumava
estar com ele quando era xamã. Certo dia, o animal apareceu nas águas do Essequibo, perto de
Yakayaka. Os habitantes da aldeia quiseram espantar o kakenau-kworokjam queimando
pimentas no embarcadouro, mas para sua surpresa, Ewká os instruiu a não fazerem isso. Para
os missionários, a atitude de Ewká podia demonstrar duas coisas: ou ele estava percebendo
que a sucuri era apenas um animal, e não um espírito, ou ele continuava acreditando que se
tratava de um espírito, do qual não tinha mais medo por ter recebido Jesus (Dowdy,
1997:185). Alguns dias depois, num domingo, um grupo do qual Ewká fazia parte seguia de
canoa para a escola dominical em Kanashen quando a sucuri apareceu novamente no rio,
agitando-se perto da embarcação. Os waiwai ficaram desesperados pensando que o kakenau-
kworokjam mataria Ewká naquele momento. Ewká também teve medo, mas segundo os
missionários, apenas “do risco físico” representado pela sucuri, pois a agitação de todos
poderia virar o barco e fazer com que caíssem na água e fossem mortos pelo animal. O grupo
conseguiu continuar remando e chegar a salvo do outro lado do rio.
Depois da sucuri, foi a vez dos queixadas. O livro relata que esses animais haviam
desaparecido completamente da região por quase um ano após Ewká renunciar seu cesto com
103
os instrumentos especiais de yaskomo (Dowdy, 1997:167,168). O desaparecimento fora
causado pela negligência de Ewká, já que o xamã tinha uma relação especial com esses
animais, cuja carne era uma das mais apreciadas pelos Waiwai. Certo dia, um grande bando
com mais de vinte queixadas apareceu nadando no Essequibo, em direção ao embarcadouro
de Yakayaka. Esse ressurgimento dos animais provocou uma grande agitação na aldeia, pois
havia a certeza de que eles desejavam matar Ewká. Para surpresa dos Waiwai, o líder foi o
primeiro a pegar uma espingarda e a entrar num barco para perseguir o bando. Não caçar, não
carregar ou manusear a caça, e não se alimentar da carne de seus animais favoritos eram
algumas das principais restrições observadas por um xamã. A inobservância dessas restrições
certamente provocaria a morte do líder dos Waiwai.
Espantados com a agitação das pessoas e de cachorros no embarcadouro da aldeia, os
queixadas voltaram a nadar em direção à floresta. Inicialmente, Ewká seguiu atrás dos
animais sozinho. Depois outros homens, que não haviam sido tão rápidos em iniciar a caça,
também foram. Ewká matou dois queixadas. Em seguida, outros homens mataram vários
outros animais do bando. Ewká levou os animais que havia matado de volta para a aldeia,
onde cortou a carne em pedaços e pediu à sua esposa que cozinhasse para ele. Os missionários
relatam que os Waiwai permaneceram aglomerados ao redor de Ewká, chocados. Eles
esperavam que a qualquer momento seu maior líder começasse a enfraquecer e morresse.
Quando a carne ficou pronta, Ewká pediu que todos fechassem os olhos enquanto ele falava
com Deus. Depois comeu um pedaço grande da carne, e insistiu para que o restante do povo
também comesse.
Para tranqüilizar a todos e incentivá-los a comer Ewká começou a cantar uma
música ensinada pelos missionários, que dizia “tudo é bom na casa de meu pai”, e depois uma
outra música que dizia “Jesus, o que é forte, quer levá-lo com ele”. Essa última música tinha
sido ensinada pelos missionários com o objetivo de mostrar Jesus como alguém forte para os
Waiwai, assim como outras músicas que pretendiam ensinar doutrinas bíblicas (Dowdy,
1997:169,198). O livro também relata que por causa da sobrevivência de Ewká a essas provas
os Waiwai viram que Deus era maior que kworokjam. Todos comentavam sobre Ewká pescar
em lugares proibidos, onde a sucuri dormia, e matar seus animais preferidos sem que estes
pudessem feri-lo.
Na época, segundo o relato dos missionários, Ewká estava fascinado pela idéia de
Deus ter criado cada coisa existente no mundo (Idem, :145). Esse era um assunto que ele
freqüentemente abordava em suas conversas com outros nativos. Ewká havia começado a dar
aulas de alfabetização para outros homens da aldeia, e muitas vezes iniciava descrevendo a
104
criação da terra, das plantas, das rochas, do sol, das estrelas (Idem, :172). Penso que a
introdução dessa idéia, a criação de todas as coisas do mundo por Deus, pode estar
relacionada às novas atitudes de Ewká para com os kakenau-kworokjam. Vejamos.
Em um artigo recente sobre o cristianismo dos Wari’, Vilaça observa uma
insistência semelhante no tema da criação, freqüentemente abordado pelos pastores nativos
durante as orações e pregações na igreja (2008:188). A antropóloga também observa que na
tradução dos primeiros versículos da Bíblia em Wari’, a idéia da criação do mundo a partir do
nada é enfatizada. Essas situações sinalizam a surpresa dos Waiwai diante da idéia de um
Deus criador do mundo, ausente de suas noções tradicionais, e o seu esforço para assimilá-la:
Observa-se de início que na tradução wari’ do primeiro versículo, diferente
da versão em português, foi necessária a afirmação de um vazio anterior para
que o ato criador se colocasse. Como fica claro na perplexidade dos Wari’
nos primeiros tempos da catequese, [...] a idéia de criação é estranha a eles,
para quem as coisas, os animais e as pessoas sempre existiram no mundo.
[...] Atualmente, quarenta anos após o início da catequese, a afirmação
constante da criação divina em seus cultos revela que esta idéia ainda lhes
parece estranha e, por isso, devem reafirmá-la todo o tempo, especialmente
nas orações em voz alta no início do culto (2008:186,188).
Vilaça sugere que a perplexidade diante da criação também diz respeito à imposição
do ponto de vista de Deus sobre o universo social wari’. No contexto perspectivista, os
humanos e os animais relacionam-se como sujeitos, que ocupam posições reversíveis: na
caça, assim como na guerra, há uma disputa pela posição de predador. Desse modo, “tanto os
Wari’ quanto as suas presas preferenciais podem ora colocar-se na posição de humanos
(wari’), definidos como predadores, ora na posição de animais (karawa), que são as presas”
(Idem, :189). Essas posições deixam de ser reversíveis quando a perspectiva do criador é
incluída na relação, já que os humanos foram feitos por Deus como “líderes/chefes” e
predadores de todos os animais – conforme os versículos 26, 28 e 30 do primeiro capítulo do
Gênesis em wari’. Portanto, após a inserção da noção de criação a relação com os animais
sofre uma transformação, pela fixação dos Wari’ na posição de predadores e dos animais na
posição de presas. Essa transformação vai de encontro ao anseio existencial dos Wari’, de
assumir a condição humana e nela permanecer.
Penso que os Waiwai sofreram uma mudança de perspectiva semelhante, provocada
pela introdução da idéia de um Deus criador. O ato da criação divina, que tanto impressionava
Ewká, situava o yaskomo em uma posição irreversivelmente humana, e os hyasïri em posições
irreversivelmente não-humanas – seja como espíritos/seres sobrenaturais, ou como animais.
105
Essa objetivação da não-humanidade dos animais permitia que Ewká quebrasse as restrições
anteriormente observadas em relação aos queixadas, agora fixados na posição de presas que
deveriam ser caçadas e comidas. O mesmo pode ser dito em relação à sucuri, que fixada como
presa passou até mesmo a ser capturada e vendida pelos Waiwai a comerciantes de animais
exóticos (cf. Howard, 2001:248). O outro pólo não-humano ocupado pelos kworokjam, o de
espíritos sobrenaturais, continuou dotado de poderes ameaçadores, agora associados ao
diabólico (embora, como ressaltei no primeiro capítulo, aparentemente este pólo espiritual
conserve uma especificidade que não permite sua identificação completa com a noção cristã
de diabo). Portanto, se a recusa dos hyasïri em comunicar-se com Ewká foi inicialmente
explicada pela aproximação cada vez maior entre este último e Deus – isto é, pela violação da
ética da reciprocidade e dos cuidados mútuos que orientava o relacionamento de Ewká com
seus espíritos auxiliares, preteridos quando o interesse maior do yaskomo voltou-se para a
relação com outro ser sobrenatural, Deus –, num segundo momento o ponto de vista de Deus
se impõe, e a interrupção da comunicação se dá pela transformação do próprio modo de
relação entre Ewká e os kworokjam, que passou a se desenvolver num sentido único: o da
predação, através da caça e da feitiçaria, em detrimento da reciprocidade. A feitiçaria não era
praticada por Ewká após a conversão, mas continuava sendo um modo de comunicação com
os kakenau-kworokjam, já que as doenças e mortes humanas eram sempre conseqüência do
tono, o sopro fatal, ou da vingança parawa.
Enquanto as relações dos Waiwai convertidos com os não-humanos passaram a ser
preponderantemente predatórias, as relações com os outros humanos foram marcadas por uma
ênfase maior na reciprocidade, reafirmada pela mensagem do amor ao próximo e da salvação
eterna (muito embora o “grau” de humanidade atribuída a diferentes tipos de pessoas varie,
como ressaltou Howard, pois os Waiwai consideram os indivíduos procedentes de outros
grupos indígenas e não-indígenas como versões menos humanizadas, que precisam ser
socializadas corretamente). As relações com Deus, Jesus e o Espírito Santo continuaram
acontecendo pelo modo da reciprocidade, embora Deus seja um ser sobrenatural não-humano.
Sobre esse ponto, é interessante relembrar que a tradução waiwai para “Espírito Santo” é
Kiriwan Ekatï, ou “Espírito Bom”, onde ekatï é a palavra para a alma ou o espírito humano –
o que reafirma a dissociação entre o poder divino e os poderes dos seres classificados como
kworokjam. Embora ambos tenham origem sobrenatural, é com o ekatï de Deus que se
estabelece uma relação de reciprocidade; o convertido waiwai se torna “filho de Deus” num
sentido amplo, fornecido não só pelo próprio cristianismo, como também pelas idéias waiwai
sobre a produção do parentesco.
106
Um outro exemplo etnográfico ilustra essa questão da transformação da relação dos
yaskomo com os kworokjam, e ao mesmo tempo serve de contraponto à experiência de Ewká.
Mentore descreve sua participação em uma expedição de caça aos queixadas, empreendida
durante sua pesquisa de campo, nos anos 1970 (2005:149-154). O líder do grupo de caçadores
era Shawama, que segundo o antropólogo, concentrava os papéis formais de kayaritomo e
pastor principal da igreja em Shepariymo, além de informalmente ser um xamã com uma
longa relação com os queixadas. Seu prestígio social e político entre os waiwai era reafirmado
através de inúmeras histórias sobre as suas façanhas como caçador. Uma das mais ouvidas
contava que certo dia, voltando da roça pelo rio e completamente desarmado, Shawama
deparou-se com um bando de queixadas bem em frente à sua canoa. Os animais teriam sido
enviados diretamente a ele como dádiva, por poinko-yin, o pai dos queixadas. Utilizando o
remo como arma, Shawama matou o máximo de animais que conseguiu, e voltou para a aldeia
com sua canoa empilhada de carne. Os demais Waiwai ficaram maravilhados, e convencidos
de que Shawama tinha uma relação privilegiada com o divino (“divino” é o termo usado por
Mentore e nessa situação tem mais de uma conotação, como veremos a seguir).
Voltando ao relato da caça na qual Mentore participava, antes que os caçadores
começassem a seguir a trilha até os animais Shawama os conduziu numa oração. O
antropólogo não reproduz o que foi dito nessa oração, apenas comenta que aquele ritual
cristão no meio da floresta amazônica lhe pareceu fora de lugar, abrupto e “excessivamente
ornado” (2005:149, tradução minha). Admito, portanto, que a oração dirigiu-se a Deus.
Mentore afirma que com a oração conduzida por Shawama o grupo esperava uma repetição da
dádiva do pai dos queixadas. Por isso, durante a caça nenhum homem se atreveria a matar o
animal líder do bando, a personificação de poinko-yin, cuja morte faria com que a dádiva de
carne aos humanos fosse para sempre negada.
O que chama a atenção sobre Shawama é que sua relação especial com os queixadas
não parecia proceder do compartilhamento de perspectiva com esses animais, como procedia
no caso de Ewká, antes da sua conversão. Por isso Shawama podia ser considerado
“informalmente” como um xamã e mesmo assim participar das expedições de caça, e até
mesmo limpar a carne, distribuí-la para sua família e comer os queixadas. Como mencionei
anteriormente, todas essas atitudes eram impraticáveis para um yaskomo antes do
cristianismo. Além disso, ao contrário do exemplo de Ewká, no caso dos caçadores de
Shepariymo a relação de reciprocidade com os kakenau-kworokjam foi mantida após a
conversão, através do respeito ao pai dos queixadas, que não podia ser morto durante a
caçada. Mas essa reciprocidade era subordinada à relação com Deus, como indica o fato de
107
Shawama ter orado para garantir uma boa caça, ao invés de cantar algum eremu direcionado
aos animais, como os antigos xamãs costumavam fazer.
Penso que vários fatores influenciam na diferença entre as situações de Ewká e de
Shawama. Em primeiro lugar, o fato do relato sobre Ewká ter sido escrito como uma
propaganda missionária, que visava ressaltar a radicalidade da transformação experimentada
pelo xamã convertido, enquanto o relato sobre Shawama foi escrito por um antropólogo que
desejava ressaltar justamente o que havia de não-cristão entre os Waiwai convertidos. Como
mencionei na introdução, nos trabalhos de Mentore a que tive acesso o cristianismo não
aparece com o mesmo destaque que nos trabalhos de Howard, Queiroz e Dias Junior. Mas
essa diferença provavelmente também está relacionada a um outro fator: Mentore realizou sua
pesquisa de campo aproximadamente cinco anos antes de Howard, quinze anos antes de
Queiroz e vinte anos antes de Dias Junior, e esteve em uma aldeia na Guiana – ao contrário
dos demais, que realizaram suas pesquisas em aldeias no Brasil. Na época, um governo
esquerdista havia se instalado naquele país, e os missionários haviam se transferido para
aldeias no rio Mapuera – movimento que foi acompanhado pela grande maioria dos Waiwai.
Portanto, o grupo liderado por Shawama era um dos poucos que permanecia livre da
influência direta dos missionários desde 1969, isto é, há dez anos. Além disso, Shawama era
jovem quando os irmãos Hawkins se estabeleceram pela primeira vez no alto Essequibo
(Mentore, 2005:21). É possível, portanto, que antes de tornar-se pastor, ele já demonstrasse
inclinação para o xamanismo. O reconhecimento de sua proximidade com o “divino”, a que
Mentore se refere, pode dizer respeito, ao mesmo tempo, ao Deus cristão e ao mundo dos
kakenau-kworokjam, como era experimentado antes da conversão
147
.
Apesar das diferenças entre os relatos sobre Ewká e sobre Shawama, a situação
encontrada por Mentore ainda permite afirmar que a conversão significou uma mudança de
perspectiva importante entre os Waiwai, já que em Shepariymo a reciprocidade entre os
caçadores e o pai dos queixadas não dependia da adoção de um ponto de vista animal pelo
yaskomo, e era subordinada à relação com Deus. Shawama não hesitava em ver os queixadas
como presas. Essa mudança aponta para a objetivação dos animais e dos kworokjam como
não-humanos, e pela fixação dos Waiwai na posição de humanos. Por outro lado, as idéias
sobre a formação da pessoa desde a concepção ainda não afirmavam essa mesma
descontinuidade entre os humanos e os animais tão claramente. Pois também foi Mentore
147
Sobre as diferenças entre a situação dos Waiwai na Guiana e No Brasil, Howard afirma em sua tese que
“Members of the last Waiwai village left in Guyana, who have had no mission assistance since 1969, revived
many pre-contact practices designed to control the spirit world, which in their eyes had never really been
extinguished, but merely temporarily superseded by the Christian God.” (2001:5).
108
quem observou que a gravidez de uma mulher poderia se iniciar a partir do ekatï recebido de
um animal, e que os bebês são gradualmente humanizados pelos pais
148
. De todo modo, essa
continuidade entre humanos e animais não era livre de problemas, já que a entrada do espírito
animal na mulher era a causa das doenças apresentadas por seu filho – ou seja, figurava como
uma agressão. Ainda sobre esse tema, Howard observou que entre os waiwai de Kaxmi os
altos índices de mortalidade infantil antes da conversão eram explicados retrospectivamente
como uma conseqüência da prática das restrições pós-parto (de alimentos e atividades), que
tornavam os bebês vulneráveis à influência dos espíritos da floresta (2001:260). Essa
formulação dos waiwai é significativa, pois de acordo com as informações levantadas por
Fock e por Mentore, as restrições pós-parto observadas pelos pais visavam justamente o
contrário: diminuir a vulnerabilidade das crianças à influência dos espíritos/animais. Ou seja,
o reforço do elo de substância com os pais deveria ser acompanhado pelo enfraquecimento do
elo de substância com os animais, para que a criança se situasse num pólo cada vez mais
humano. Essas idéias waiwai sobre a construção da pessoa e do parentesco serão abordadas
mais detidamente na próxima seção do capítulo. De todo modo, parece-me que para os
waiwai de Kaxmi a observância das restrições pós-parto era vista como um problema
exatamente por pressupor uma relação de continuidade com os animais e espíritos que
precisava ser negada após a conversão. Finalmente, cabe observar que a obra de Mentore
salienta a atuação do feiticeiro inconfesso, o “dark shaman”, no contexto comunitário,
enquanto o relato sobre Shawama é a única referência à persistência de um xamanismo
positivo
149
. Isso indica que mesmo em Shepariymo a predação era o modo de relação por
excelência dos humanos com os kakenau-kworokjam, após a conversão.
A igreja waiwai
Depois de Ewká, aos poucos outros Waiwai se converteram. Quando havia seis índios
convertidos, os missionários iniciaram uma classe semanal, específica para ensiná-los sobre a
148
Outra observação feita por Fock reforça a idéia de uma continuidade entre humanos e animais: a criança
quando nasce, antes de receber um nome dado pelo yaskomo (o nome é na verdade dado pela Lua, que é um
kakenau-kworokjam, mas é o yaskomo quem se comunica com a Lua para saber o nome da criança) é chamada
tanto de kworokjam como de yaskomo (1963:16). Ou seja, antes de receber um nome, a criança é identificada
pelo termo genérico para espírito não-humano, kworokjam, ou pelo nome para xamã, yaskomo – e este, como
demonstro neste capítulo, é considerado ao mesmo tempo humano e não-humano. Fock também observa que
muitas vezes os Waiwai podem referir-se ao kworokjam de um animal como ekatï – é o que acontece, por
exemplo, no caso já citado, no qual o espírito do animal entra no corpo da mulher para formar uma criança.
149
Há um capítulo do livro mais recente de Mentore dedicado ao tema do dark shamanism, e também um artigo
publicado há poucos anos (Mentore, 2005:148-205; 2007).
109
Bíblia. O interesse em freqüentar essas aulas era grande, por isso os missionários passaram a
aceitar a presença de alunos não-convertidos indicados por Ewká. E como as mulheres
também se interessavam pelas aulas, uma classe feminina foi aberta em outro dia da semana.
De acordo com o Christ’s Witchdoctor, essa classe deu origem a uma liderança waiwai
feminina, supervisionada pelas missionárias (Dowdy, 1997:214)
150
. A conversão generalizada
teria acontecido a partir de 1956, quando as reuniões semanais para homens e mulheres novos
convertidos foram unificadas. As conversões eram acompanhadas pela confissão pública dos
pecados. Yakuta, primeiro a entregar a vida a Jesus depois de Ewká, assumiu publicamente
que seduzia mulheres de outros homens (Idem, :202). Na reunião para os novos convertidos,
uma fila de bancos na frente, perto do professor, era reservada àqueles que desejavam assumir
publicamente a conversão. Todos os que se assentavam nesses bancos eram interrogados, os
homens por Ewká e as mulheres por Ioxiuí, sua sogra. As perguntas e respostas-padrão eram:
– “Você veio para a aula?”
– “Sim.”
– “Por que você veio?”
– “Porque recebi Jesus.”
– “Como você vê seu pecado?”
– “Eu sei que meu pecado é mau” (Dowdy, 1997:214).
A ênfase das aulas eram as normas para a vida diária: perdoar uns aos outros ao invés
de praticar feitiçaria, ser paciente e misericordioso com os outros, vencer o hábito de mentir e
roubar, ter o comportamento sexual adequado (Idem). Os índios com mais de uma esposa
foram aconselhados a liberar todas, exceto uma. Essa estratégia também visava promover
novos casamentos, pois o número de homens disponíveis era maior que o número de
mulheres. Cada lição era repetida pelos missionários em outras reuniões da semana, e durante
várias semanas, até que os assunto fosse bem memorizado pelos índios. Em algum tempo, a
própria liderança nativa teria “desaconselhado” a realização de danças noturnas, por levarem à
prática de relações sexuais fora do casamento, e decidido começar todas as reuniões festivas
da aldeia com um ensinamento bíblico (Idem, :215).
Outros yaskomo waiwai abandonaram seus cestos: primeiro Xiriminau, depois Mïya
(Idem, :229,230). O livro relata que Ewká ensinava a Bíblia para Mïya no estilo oho. Este
150
Na época da pesquisa de campo de Howard havia reuniões femininas semanais na igreja, com as orações e
pregações dirigidas por mulheres (2001:525).
110
confessou publicamente sua decisão de seguir a Jesus durante uma reunião dominical
conduzida por Claude Leavitt. Na ocasião, o missionário revelou que havia enviado uma
fotografia de Mïya aos seus amigos nos Estados Unidos, para que orassem pela conversão do
yaskomo. No fim da reunião, o grupo seguiu para a beira do rio, cantando um hino que dizia
“Jesus é forte, ele é mais forte que tudo”. Em seguida, Ewká orou pedindo a Deus que
protegesse Mïya de qualquer vingança dos kworokjam. O velho yaskomo entrou numa canoa e
abriu seu cesto com todos os seus aparatos no rio: uma faixa/testeira feita de pele de
tamanduá, uma pulseira com penas de garça branca, diversos peitorais de penas de muitos
pássaros, tabaco, canudos usados para soprar e sugar, um apito, um chocalho de cabaça, e
pedrinhas ñukha (Dowdy, 1997:231).
O processo de escolha dos pastores waiwai para a igreja que se formava foi conduzido
pelos missionários com a participação dos índios já convertidos, e baseou-se em instruções
encontradas no livro bíblico de Tito, uma carta de Paulo onde são enumeradas as
qualificações esperadas de um presbítero: ter uma única esposa, não se irar facilmente, não ser
violento, não ser habituado ou propenso à bebida, ser hospitaleiro e outras (Idem, :232-
233)
151
. Ewká, Kririfacá, Mawashá e Yakutá foram escolhidos por unanimidade. Os
missionários ensinavam lições aos quatro pastores waiwai durante a semana, e estes pregavam
ao restante do povo aos domingos.
Na visão dos missionários, em 1958 a maioria dos waiwai já era crente. Nessa época,
já viviam junto com os Waiwai os Xerew, Mawayana, Wayana, Kaxuyana, e alguns
indivíduos Tiriyó e Hixkaryana. Nesse mesmo ano, os índios se dispuseram a construir uma
casa grande para comportar as reuniões da igreja, a “Casa de Deus”, Kaan mîîn. Essa casa
ficava ao lado da sede da missão em Kanashen, e comportava cem pessoas sentadas. Após a
inauguração, Robert Hawkins e Claude Leavitt batizaram os quatro líderes nativos, e outros
22 índios foram batizados pelos próprios líderes waiwai. Durante o ritual do batismo Ewká
fez uma pregação, exortando os convertidos a serem como mortos para kworokjam, e como
revividos para Deus (provavelmente aludindo à imersão na água como metáfora de morrer
para kworokjam, e à emersão como uma revificação para Deus). Ao batizar cada pessoa, os
líderes perguntavam: “O que você acha do seu pecado?” e a resposta era “Eu o considero um
mal” (Idem, 1997:237).
Dessa época em diante, os índios passaram a demonstrar um intenso zelo missionário,
ancorado em sua longa tradição de intercâmbios com outros grupos nativos da região. Além
151
Para a descrição completa dessas qualificações ver Tito 1.5-9.
111
dos grupos que já haviam se estabelecido ao redor de Kanashen até 1958, citados
anteriormente, foram contatados os Xirixana, Waika, Tunayana, Waiampi, Wayana, Katuena,
Cikiana, Waimiri-Atroari, Karafawyana e Maku, até 1984 (Howard, 2001:296). Embora cada
grupo tenha respondido a esse esforço evangelizador de uma maneira – alguns dissolveram
suas aldeias independentes e passaram a viver junto com os Waiwai, outros mantiveram suas
próprias aldeias, mas se empenharam em trocas e intercasamentos com os Waiwai, outros não
levaram adiante relações posteriores ao primeiro contato –, Howard observa que a empreitada
missionária permitiu aos Waiwai expandir seu controle sobre domínios distantes do seu
universo social (2001:292,296,400). Esse controle era alcançado, inicialmente, pelo contato
com as pessoas, aldeias e modos de vida desses outros grupos – que assim deixavam de ser
enîhnî komo, “povos não-vistos”, como eram chamados pelos waiwai. A importância da visão
nesse processo fica clara a partir de observações de Mentore. Ele afirma que entre os Waiwai
o conhecimento é constituído a partir da visão: os olhos são considerados os receptores
sensórios dominantes de uma pessoa, e o meio pelo qual o conhecimento exterior é
transmitido à cabeça, e armazenado em forma de imagens mentais. Os outros orifícios da face
também são portas de entrada do conhecimento – os cheiros, os sons e os sabores captados
pelo nariz, boca e ouvidos são transformados em idéias visíveis, assim como as imagens
captadas pelos olhos (Mentore, 1993:29). Os jovens waiwai desejam ver coisas novas,
conhecer lugares e pessoas diferentes, e assim aumentar seu conhecimento; os yaskomo
possuem grande conhecimento, obtido em suas viagens cósmicas, onde formam imagens
mentais de outros seres, outros mundos. (Mentore, 2005:30).
O controle waiwai sobre a alteridade representada por esses outros grupos também
passava pelo esforço de atraí-los para suas aldeias e assimilá-los ou “pacificá-los”. Esse
movimento era iniciado por meio da generosidade excessiva (que sujeitava os grupos
contatados pela obrigação de retribuir aos Waiwai) e pela mensagem evangélica (Howard,
2001:321-322). O estabelecimento de vínculos pela troca e a evangelização são considerados
meios de socialização, pacificação e humanização por excelência – o que fica mais claro
quando observamos como os waiwai vivenciavam o cristianismo em suas próprias aldeias.
Uma prática da igreja nativa mencionada no Christ’s Witchdoctor era a de tratar
publicamente e punir os pecadores (Dowdy, 1997:249, 255). Ewká costumava dizer em suas
pregações que um homem quando peca é envenenado pelo pecado, e esse veneno se espalha
para todos os outros Waiwai. Os pecados punidos eram a feitiçaria, a maledicência e a
imoralidade. O livro não deixa claro quais condutas eram tidas como imorais, mas imagino
que o termo seja uma referência às relações sexuais fora do casamento, tema enfatizado pelos
112
missionários desde o início de sua atuação. Esses pecados punidos pelos Waiwai – falar mal
uns dos outros e alimentar o ciclo de vinganças através de feitiços ou da disputa por mulheres
– são atitudes que despertam ou reforçam inimizades, separam as pessoas umas das outras.
Desse modo, o foco das atitudes em relação ao pecado era evitar os problemas que ele
desencadeava no contexto das relações comunitárias: as brigas, as mortes, as cisões. As
preocupações com o malefício que o pecado trazia para o indivíduo ficavam em segundo
plano. A punição aplicada aos que fossem surpreendidos pecando não poderia ser mais
adequada: eles eram deixados sozinhos em casa enquanto os demais participavam dos
encontros para as aulas ou reuniões (Dowdy, 1997:249, 255). É como se através da privação
da companhia de seus parentes o pecador fosse obrigado a provar a solidão e o isolamento
que, no limite, sua atitude anti-social poderia originar. O livro relata que esse castigo era
muito eficiente, pois só de saber que ficaria sozinha em casa a pessoa imediatamente se
arrependia do que tinha feito.
Mentore relata que em seus primeiros seis meses de pesquisa em campo um líder de
trabalhos de Shepariymo teria permanecido isolado da vida pública da aldeia. Durante todo
esse tempo o antropólogo não o viu, e sequer ouviu falar de sua presença (2005:25). Akiamon
tinha uma personalidade vibrante e normalmente todos gostavam de desfrutar da sua presença,
mas havia cometido adultério com a esposa de seu vizinho e colega de liderança de trabalhos,
e estava sendo punido. O antropólogo argumenta que a punição não era o isolamento em si,
mas a perda da prerrogativa de falar como líder. A posição de destaque do líder deveria servir
ao bem da comunidade, mas havia sido deturpada por Akiamon, tendo em vista um benefício
individual que não trazia vantagem coletiva alguma:
What the Shepariymo community sought to punish in Akiamon’s adultery
was not some sexual sin or individual guilt, but the unauthorized use of
leadership to attain an advantage for himself rather for the community at
large. The punishment removed Akiamon’s leadership duty to speak,
because it was judged that his duty to speak – exercised only in the role of
work leader – had unfairly enabled him to acquire his extramarital favors. In
its additional daily application of his exile, the punishment also stated very
clearly that its very own functioning inhabited the social space of the
community (2005:25).
A punição comunitária aos pecados estancava, ao menos no plano ideal, o ciclo de
agressões espirituais e físicas que poderia se desenvolver a partir de uma atitude hostil inicial.
Fock observa, por exemplo, que antes da conversão generalizada dos Waiwai a borduna não
raro era utilizada pelos homens para matar seus oponentes, especialmente no caso de suspeita
113
de feitiçaria (1963:161,162). Mas mesmo antes da conversão a resolução pacífica de conflitos
já era considerada um meio superior de conduta pelos Waiwai. O diálogo oho é um exemplo
nesse sentido, e na época da pesquisa de Mentore ainda era utilizado (embora de maneira
menos formal do que a registrada por Fock em sua etnografia) para restabelecer a
convivialidade após a morte de alguém. Sendo a morte sempre conseqüência de uma agressão
espiritual agenciada por meio da feitiçaria, quando alguém morre as suspeitas sobre a
identidade do matador começam a proliferar. Até que um parente próximo da vítima se
encarrega de interrogar cada chefe de família da aldeia, certificando-se das boas intenções de
todos os moradores:
Until those present have performed the public lament for the dead, everyone
beyond the resident close relatives of the deceased is a murder suspect.
Particularly beyond the household cluster of the deceased, everyone
becomes a potentially hostile stranger [...]. Thus, in regards to the form-
defined dialogicality of the death-oho, the participants appear to evoke a
public display of normal everyday discourse for the good reason of wanting
to resume the regular flow of amicable relations – or at least, in the mimicry,
of wanting to suggest that the flow of normal conversation implies the
resumption of normal relations. [...] As the counterpoint to erem [eremu], the
death-oho resonates as the formal opportunity to deny any accusations of
personal ill will and to affirm conviviality (2005:190-191).
Mentore sugere que esses diálogos após a morte são demonstrações mútuas de boas
intenções e bons sentimentos. Os Waiwai manifestam uma preocupação constante com os
estados emocionais uns dos outros. Essa preocupação visa evitar que sentimentos
essencialmente anti-sociais se transformem em violência espiritual e física:
Knowing about the emotional disposition of those with whom one lives
appears to be of crucial interest. Locating where bad intentions reside and
making sure – when they erupt – to deter them form accessing violence
become the required aspects of social harmony. When this fails, however,
and even without knowing the murderer’s identity, knowledge about hostile
intentions remains the leading evidence toward exposing the killer
(2005:191).
A esse respeito, Howard observa que a raiva (tîrwoñe) é o sentimento mais censurado
pelos Waiwai (2001:188). Os comportamentos considerados “irados” ou “zangados” incluem,
por exemplo, uma simples recusa a alguma solicitação de alguém, o rancor, e também a
feitiçaria e o assassinato. Quando duas pessoas possuem alguma desavença, podem ser
procuradas pelo pastor que escutará as partes em conflito. Através dessa atitude, os pastores
não apenas investigam os erros dos acusados, mas também se certificam de que estes não se
114
sentem zangados – já que a raiva poderia levar à vingança, que por sua vez desencadearia um
infindável ciclo de agressões.
Tanto no exemplo do oho fúnebre fornecido por Mentore como no exemplo das
conversas de aconselhamento realizadas pelos pastores, fornecido por Howard, o
apaziguamento de conflitos passa pela articulação entre dois tipos de discurso ou fala
distinguidos pelos Waiwai: a fala “pacífica” e a fala “irada” (Howard, 2001:199). Enquanto a
fala pacífica produz sentimentos de alegria, amor e equanimidade, viabilizando um estado
coletivo harmônico considerado ideal pelos Waiwai, a fala irada promove intrigas,
desavenças, mortes; é considerada essencialmente anti-social:
peaceful language is considered “beautiful to hear” (centaporem) because it
circulates “in the open” (kirwantaw), while angry language is “ugly” and
usually hidden, doing damage behind the scenes. Public, peaceful speech
engenders the reproduction of the social body, while concealed, angry speech
undermines the health of an individual’s body, even to the point of death. […]
The most negative forms of private speech are gossip and sorcery: gossip can
destroy the social personae of others, while sorcery destroys their pshisical
bodies and the soul resident within. The most positive forms of speech are
collective prayers, hymns, and sermons (Howard, 2001:199).
Nesse contexto, a eficácia do líder em administrar conflitos e manter a comunidade
unida envolve a sua capacidade de trazer a público as palavras clandestinas, pronunciadas em
privado. Howard nota que esse movimento de revelação é realizado pelos pastores, através,
principalmente, do estímulo às confissões de pecados e dos encontros para apaziguamento de
pessoas que possuem algum desentendimento, insatisfação ou questão mal resolvida entre si.
A confissão de pecados, realizada como ato público, é uma retratação com Deus e também
com a comunidade. Esse processo de trazer palavras secretas à luz é uma das principais
técnicas de cura de doenças, de resolução conflitos familiares e de corrigir o
descontentamento coletivo (Howard, 2001:199).
A atuação dos pastores é considerada um “trabalho nas pessoas” (etapi ckacho tooto
poko), através do qual a harmonia, a segurança e a saúde do grupo são asseguradas (Idem,
:316-317). A saúde é uma manifestação de um estado interior pacífico, tanto pessoal como
coletivo. Se há doenças e mortes em uma comunidade é porque há raiva, indicando que esse
processo de pacificação, através do esforço pessoal e também do trabalho dos líderes sobre as
pessoas, não tem sido bem realizado. Nesse mesmo sentido, Mentore observa que a morte de
alguém é sempre causada pela má intenção de outrem, e que essa situação é entendida pelos
115
Waiwai como conseqüência da incapacidade do matador controlar suas próprias emoções, ou
então do seu desinteresse por esse controle (2005:195).
Os cultos são momentos especiais, onde a comunidade se envolve em ações coletivas
de pacificação – por meio das orações, das pregações e dos hinos (Howard, 2001:316). No
começo de cada pregação, o ministrante conduz uma oração pedindo para que Deus tome a
sua língua e fale através dela. As palavras ensinadas serão então as palavras de Deus, e por
isso pacíficas por definição. Os waiwai afirmam que dos ouvidos dos que escutam, as
palavras seguem para o ventre, local da consciência, onde pacificam os sentimentos e fazem
as pessoas amarem (pinin yaw) umas às outras (Idem, :198). Portanto, parece-me que no
cristianismo waiwai há uma continuidade entre o relacionamento harmônico com as pessoas,
em comunidade, e o relacionamento harmônico com Deus. A solução para um grupo onde há
brigas, desentendimentos e doentes é aproximar-se de Deus, ouvir suas palavras pacíficas e
santificar-se, amando uns aos outros. Esse processo de santificação assegura o recebimento
das bênçãos e da proteção divina. As doenças são um sinal de que há um problema na relação
com Deus, e portanto, na relação uns com os outros. Esse problema deixa os Waiwai
vulneráveis aos ataques dos kworokjam. Para prevenir esses ataques, os Waiwai esforçam-se
para aproximar-se de Deus, intensificando as relações uns com os outros. Howard observa que
a doença sempre é explicada pelos waiwai como uma falha em controlar as relações com os
seres sobrenaturais, sejam os espíritos dos animais ou os espíritos cristãos (Idem, :260).
A tese de Howard traz um exemplo claro nesse sentido, a respeito dos preparativos
que envolvem as expedições missionárias waiwai. Segundo a antropóloga, durante as semanas
anteriores à partida de uma equipe missionária a outros grupos indígenas os Waiwai realizam
séries de reuniões para confissões públicas de pecados e também reuniões entre os pastores e
pessoas com desentendimentos. Por meio desse processo eles visam garantir a benção divina
em sua empreitada, que inclui a segurança da equipe que vai para a floresta procurar outros
índios. Qualquer doença na comunidade é tomada como um sinal de vulnerabilidade espiritual
que impede a equipe de partir, até que todos os pecados sejam devidamente expurgados e se
restabeleça um estado de harmonia coletiva no qual todos amam e respeitam uns aos outros
(Howard, 2001:316-317).
A relação que condensa esse ideal de harmonia social é o parentesco. Howard
observa que as pessoas consideradas pacíficas pelos Waiwai são descritas como cooperativas,
generosas e envolvidas em trocas diversas: de cuidados, alimentos, trabalhos e pessoas (Idem,
190). Essas trocas manifestam a essência do valor social positivo, e ao mesmo tempo definem
116
o parentesco entre os que nelas se engajam. Portanto, para os waiwai convertidos, a
santificação e a parentalização são um mesmo movimento. Vejamos.
Howard observa que os Waiwai distinguem diferentes categorias de pessoas. A
categoria “parentes” (poyino komo) pode ser acessada em oposição aos “afins” (woxin komo),
ou pode incluir a categoria de afins, quando assume um sentido próximo ao de “povo”, em
oposição à categoria de “meras pessoas” (tooto makî) – que inclui os não-parentes em geral,
tanto amigos (yakrono) como estranhos (anarî ro) (2001:101-102). O que diferencia os
parentes, no seu sentido amplo, das meras pessoas é a presença dos cuidados mútuos, que a
autora identifica como nurture que é também o que diferencia as pessoas “pacíficas” das
pessoas “iradas”. Em outras palavras, os Waiwai consideram seus parentes as pessoas com as
quais estabelecem vínculos recíprocos e de longa duração, essencialmente pacíficos, por meio
do compartilhamento de substâncias corporais e trocas diversas: de alimentos, objetos,
trabalho e pessoas. Os sentimentos que os Waiwai descrevem para com seus parentes são a
afeição, o apreço, o desejo, o amor (2001:103). Desse modo, podemos dizer que o processo de
santificação descrito anteriormente constitui, ao mesmo tempo, um processo de intensificação
das relações de parentesco.
Nesse mesmo sentido, Mentore observa que para os Waiwai a vida comunitária (a
vida junto a outras pessoas numa mesma localidade, por um bom período de tempo) torna as
pessoas semelhantes entre si, pelo compartilhamento de substâncias e de vitalidade entre os
seus corpos – já que toda substância corporal carrega também elementos do ekatï
(2005:86)
152
. Essa idéia waiwai emergiria do conceito de incorporação uterina, segundo o
qual as pessoas que têm a mesma mãe compartilham características por procederem do
mesmo útero. Ou seja, para os Waiwai o parentesco é definido por uma relação de substância.
Essa relação é chamada poyino. O relacionamento entre irmãos uterinos (epeka) opera, por
sua vez, “como conceito waiwai definitivo de substância comum e harmonia social” (Idem,
:87, tradução minha). O parentesco, especialmente na forma do relacionamento entre irmãos
uterinos, expressaria o ideal dos laços entre os waiwai que vivem juntos compartilhando
substâncias numa mesma aldeia:
152
De acordo com Fock, elementos do ekatï de uma pessoa estão presentes nas partes destacáveis do seu corpo,
como unhas, cabelos e fluidos. O ekatï também é apresentado como uma “imagem” ou “sombra” da pessoa. Por
isso restos de alimentos, unhas e cabelos cortados, pegadas no barro e objetos de uso pessoal (como as redes, por
exemplo) nunca são abandonados, pois podem ser utilizados para realização de feitiços contra seus donos (o
mesmo pode ser dito em relação às fotografias). Apesar de ser uma vitalidade espiritual impalpável, o ekatï
também é considerado algo substancial, que possui peso; por isso uma pessoa sente-se mais leve quando está
doente, conseqüência da saída temporária do ekatï do corpo (1963:14-15).
117
Coming from and living in the same place suggest the criteria for stablishing
proper ways of being human in the world. To be a proper human person, an
individual must be a member of a village community living together as if
they were poyino and/or epeka (Idem, :87).
Portanto, para os Waiwai, o ideal de uma sociedade pacífica é alcançado através de
dois movimentos imbricados: a intensificação dos vínculos de parentesco e a santificação
cristã. Os grupos atraídos para morar em suas aldeias – considerados “irados”, violentos,
imaturos e perigosos, mas também vulneráveis e medrosos – necessitam ser humanizados e
pacificados, e por isso são submetidos aos mecanismos de controle dos sentimentos que os
Waiwai aplicam a si mesmos: a intensificação das relações pacíficas entre si, e a aproximação
de Deus. Inicialmente pertencentes à categoria de “afins”, “amigos” ou “estranhos”, os grupos
evangelizados são gradualmente incorporados à rede de relacionamentos e de trocas waiwai, e
se tornam parentes, unidos por elos de substância e também pelo elo divino, já que a partir da
conversão os nativos se transformam em “filhos de Deus”.
118
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desse trabalho procurei descrever a relação dos Waiwai com o cristianismo
evangélico, levando em conta a importância que os próprios Waiwai atribuem ao processo de
transformação de seu modo de vida a partir da convivência permanente com os missionários
da UFM, iniciada nos anos 1950. Sem ignorar o caráter colonizador assumido pela empreitada
missionária – freqüentemente abordado em trabalhos sobre a cristianização de grupos nativos
ao redor do mundo – busquei enfatizar um outro aspecto da relação entre os Waiwai e os não-
índios, que é o modo como os primeiros vivem e elaboram as transformações decorrentes do
contato. Inspirada na etnografia amazônica recente, procuro mostrar que o cristianismo
waiwai não é apenas um efeito da expansão física e ideológica das sociedades nacionais, mas
constitui, do ponto de vista nativo, um efeito de transformações operadas pelos Waiwai a
partir de seus princípios cosmológicos tradicionais.
No primeiro capítulo, contextualizo os missionários da UFM num quadro histórico e
ideológico mais amplo, que permite identificar os pressupostos que orientaram suas ações
para com os Waiwai. Destaquei o caráter individualista da sua pregação, onde a conversão
figura como uma experiência mística individual, seguida por um processo de santificação
também individual. Esse processo de santificação é marcado pelo empenho em assumir um
novo padrão de conduta, no qual o ascetismo e a separação do meio cultural do fiel,
considerado decadente, são traços distintivos. Destaquei ainda a autoridade divina conferida
ao texto bíblico, que explica o esforço de tradução da Bíblia pelos missionários. Essa
autoridade também confere ao texto bíblico um valor de verdade absoluto, em oposição às
narrativas míticas e ao xamanismo, considerados essencialmente falsos ou demoníacos.
Finalmente, observo que a ênfase escatológica do discurso dos missionários foi absorvida pelo
cristianismo waiwai, especialmente no que diz respeito ao interesse pela vida eterna
concedida por Deus aos salvos.
No segundo capítulo, contraponho o relato dos missionários sobre a conversão dos
Waiwai, especialmente sobre a conversão do xamã e líder Ewká, à visão nativa desse
processo, a partir do material etnográfico existente sobre esse grupo indígena. Observo que,
do ponto de vista missionário, o movimento dos Waiwai em direção ao cristianismo segue um
padrão convencional comum às narrativas evangélicas, onde a ênfase é a redenção do
indivíduo enquanto ser moral autônomo e intrinsecamente mau. Sugiro, ao contrário, que a
conversão de Ewká e dos demais nativos não se dá a partir da idéia de indivíduo, e sim como
119
um processo de reconfiguração das relações de consubstancialidade ou parentesco que
constituem a pessoa entre os Waiwai. Demonstro que a especificidade do ofício do xamã, que
lhe confere o seu prestígio entre os Waiwai, é a capacidade de assumir um ponto de vista não-
humano, através da manutenção de cuidados recíprocos com os seus animais
favoritos/espíritos auxiliares, dos quais se torna parente. Nesse processo radical de alteração
ou des-humanização, o xamã adquire seu conhecimento, que será utilizado para o benefício do
seu grupo de parentes humanos. No contexto das epidemias que assolavam os Waiwai na
época da chegada dos missionários, a dificuldade dos xamãs em curar as doenças e o grande
número de mortes indicavam uma interrupção dessa reciprocidade com os seres sobrenaturais,
os kworokjam – que eram a fonte de poderes vitais altamente desejados e, ao mesmo tempo,
seres agressores que provocavam as doenças e mortes. Por outro lado, a aproximação de
Ewká dos missionários, sua dedicação à reflexões sobre Deus e sobre a Bíblia, e as orações de
agradecimento a Deus pelo alimento manifestavam seu crescente cuidado em nutrir a relação
de reciprocidade com a divindade cristã, em detrimento da dedicação devida aos seus hyasïri.
Com o tempo, atitudes mais hostis de Ewká demonstraram a negação da partilha de
perspectiva com os kworokjam, que passaram a ocupar um pólo constantemente não-humano
nas relações com o xamã. Dentre essas atitudes estão o abandono do cesto com os
instrumentos de yaskomo, a recusa em aplicar as técnicas tradicionais de cura e a
inobservância das restrições alimentares e das atitudes de respeito para com seus antigos
animais preferidos. Nesse contexto, o cristianismo tornou-se a nova via de controle das
potências sobrenaturais. Controle exercido pelo uso dos remédios (associados ao poder
divino) e também por novas práticas corporais, como a rejeição das antigas restrições
alimentares relativas aos kworokjam e o engajamento cada vez maior em relações de cuidados
mútuos entre humanos. A ênfase nas relações pacíficas que constituem o parentesco entre os
co-residentes de uma aldeia inibia o agenciamento de potências espirituais destrutivas pela
fofoca, violência e feitiçaria. Ao mesmo tempo, a negação de uma perspectiva compartilhada
com os animais/espíritos fixava os animais na posição de presas que deveriam ser caçadas e
comidas.
O que todas essas observações deixam claro é que as relações sociais de
consangüinização que envolvem a partilha de perspectiva são centrais para a compreensão
tanto do xamanismo como da conversão waiwai, assim como das interações desses índios de
um modo geral – com outros grupos indígenas, com os missionários, agentes governamentais
etc. Ou seja, não podemos afirmar que existe um universo xamânico dissociado do universo
cristão, mas ambos estão em continuidade porque operam a partir das mesmas premissas
120
sobre a constituição da pessoa waiwai. Em um artigo recente, Vilaça faz uma observação
semelhante sobre o cristianismo Wari’:
Ao considerar que adquirir uma outra perspectiva implica adotar novos
hábitos corporais, conclui-se que a idéia de transformação na Amazônia
relaciona-se mais à metamorfose corporal do que à mudança cultural (ver
Viveiros de Castro 1996:132 e nota 20; Vilaça 1999, 2006, 2007a). Ao se
consubstancializarem com os missionários, e através deles com Deus (que se
faz pai), os Wari’ vivem uma metamorfose corporal, e passam a
experimentar um mundo completamente novo, ou seja, uma nova natureza,
embora não uma nova cultura. As categorias são as mesmas, assim como os
valores. O mundo é diferenciado entre predadores e presas, e o que se
valoriza é a primeira posição. O que acontece nesse novo mundo cristão é
que os animais não são mais percebidos como humanos, e os afins são agora
vistos como consangüíneos. A conseqüência disso é que a predação, que se
dava em dois sentidos, passa a ser uma capacidade exclusiva dos Wari’, e
voltada somente para fora, tendo sido suprimidas as agressões internas que
caracterizavam a afinidade. O cristianismo é para eles, ao menos nesse
momento, antes de tudo uma nova perspectiva sobre as relações, instituída
por um ato criador de origem inimiga (2008:196).
Ressalto, portanto, que o objetivo aqui não é minimizar a conversão dos Waiwai ao
afirmar que ela se deu a partir do contexto sociocosmológico nativo, como uma transformação
de perspectiva. Minha intenção é apenas mostrar que o cristianismo waiwai surgiu em um
contexto importante de mudanças, com as epidemias principalmente, trazidas pelos
missionários e curadas por eles – do mesmo modo como se passou entre vários outros grupos
ameríndios. Esse contexto permite uma aproximação direta entre o tema da conversão e o
tema do xamanismo, pois em ambos os casos trata-se justamente de evitar agressões, doenças
e mortes.
No entanto, algumas questões permanecem abertas, pois as implicações cosmológicas
dessa mudança de perspectiva operada no cristianismo são demasiado dramáticas. A
imposição do ponto de vista de Deus sobre o universo de relações sociais waiwai, fixando
humanos e não-humanos em posições irreversíveis, e a conversão dos xamãs, não acabariam,
ao longo do tempo e no limite, por extingüir a lógica xamânica que fundamentou a
transformação dos Waiwai em direção ao cristianismo? Nesse sentido, Sztutman sugere que
os dados mais recentes recolhidos por Dias Junior no final da década de 1990 e início dos
anos 2000 apontam para uma transformação do xamanismo waiwai, e não para o seu
desaparecimento:
[E]ntre os waiwai do Jatapuzinho, tudo se passa como se o trabalho de cura e
troca de agressões tivesse se dissociado, como se a figura do xamã,
121
moralmente ambíguo, encontrasse uma clivagem, de um lado na pele do
pastor evangélico, aliado dos médicos e enfermeiros, que têm no Deus
bíblico a causa final de todos os infortúnios; de outro, na forma do feiticeiro
inconfessado, ávido para agredir seus oponentes políticos e produzir
dissensos na comunidade (2005:207).
O autor ainda observa que essa situação sugere, por um lado, uma “verticalização” do
xamanismo, e por outro, uma “horizontalização”, em sentidos próximos aos discutidos por
Hugh-Jones em seu conhecido artigo sobre o xamanismo amazônico (Hugh-Jones, 1996;
Sztutman, 2005:202). A distinção de Hugh-Jones diz respeito a uma diferenciação interna ao
xamanismo, observada mais claramente em grupos como os Bororo, Tukano e Aruaque, onde
há duas categorias de especialistas místicos: os xamãs “horizontais”, caracterizados pela sua
ambigüidade moral e pela capacidade de realizar viagens espirituais nas quais comunicam-se
com seres sobrenaturais localizados no “exterior” do grupo local; e os xamãs “verticais”, que
atuariam como mestres cerimoniais pacíficos, conservando poderes seculares voltados para a
reprodução interna do grupo (Hugh-Jones, 1996:37). Nos grupos onde existe apenas um tipo
de xamã, ele acumulará essas duas funções especializadas. Entre os waiwai convertidos, a
verticalização poderia estar relacionada ao papel atualmente exercido pelos pastores, que se
aproxima ao de um mestre de cerimônias ou sacerdote, e a horizontalização estaria vinculada
à proliferação de acusações de feitiçaria dentro das aldeias. Essa sugestão de Sztutman pode
ser enriquecida se tomarmos as considerações feitas por Viveiros de Castro, que parte das
observações de Hugh-Jones para sugerir que a emergência de um xamanismo vertical
está associada ao processo de constituição de uma interioridade social de
natureza substantiva, isto é, ao surgimento de valores de tipo
‘ancestralidade’, que enfatizam a continuidade diacrônica entre vivos e
mortos, e de valores de tipo ‘hierarquia’, que enfatizam as descontinuidades
sincrônicas entre os vivos. [...] O xamanismo horizontal supõe uma
economia ontológica onde a diferença entre humanos vivos e humanos
mortos é pelo menos tão grande quanto a semelhança entre humanos mortos
e não-humanos vivos. Talvez seja possível ver a emergência do xamanismo
vertical como associada à separação entre essas duas posições de alteridade,
com os mortos humanos sendo vistos mais como humanos que como mortos,
o que tem por conseqüência a possibilidade de uma objetivação dos não-
humanos, isto é, sua ‘desanimização’ potencial (2002:471-472).
Embora a sociocosmologia waiwai não enfatize a ancestralidade, como ocorre nos
grupos do Rio Negro que Viveiros de Castro tinha em mente quando fez a colocação acima
transcrita, um processo similar de “desanimização” pode ser observado entre esses índios.
Pois, como já mencionado ao longo desta dissertação, a introdução do ponto de vista de Deus
122
sobre o universo das relações sociais waiwai fixa os seres sobrenaturais, animais/espíritos, em
posições não-humanas irreversíveis. Desse modo, a atuação dos xamãs, agora pastores, passa
a estar desvinculada do compartilhamento de perspectiva com esses animais/espíritos
temíveis, e volta-se para uma relação filial com Deus, ser essencialmente pacífico e bondoso.
Em uma análise do cristianismo entre os Guarani contemporâneos, Fausto observa uma
verticalização semelhante, associada ao rompimento da articulação entre os xamãs e os
espíritos canibais, e à sua aproximação de almas divinas sem características predatórias
(2005). O antropólogo observa que essa disjunção atravessa vários domínios do pensamento
guarani, numa “crescente negação do canibalismo como poder xamânico e da reprodução
social” (Idem, :387). Esse processo de “desjaguarificação” abriu espaço para uma outra forma
de relação com outrem, pautada pelo amor, e para a concentração da violência no campo da
magia
153
.
A transformação das suas noções waiwai sobre o destino do espírito humano após a
morte do corpo, operadas pelo cristianismo, também são significativas e apontam nessa
mesma direção de uma “desanimização”. Pois antes da conversão o ekatï do morto waiwai se
transformava em um princípio agressivo essencialmente não-humano, o ekatïnho-kworokjam,
que também poderia originar algum animal. Após a conversão, essa continuidade entre a
vitalidade humana e animal foi negada, ao menos em parte, pela afirmação de que os corpos
dos humanos mortos ressuscitarão no fim dos tempos e serão novamente unidos aos seus
ekatï. Isto é, a humanidade tornou-se uma condição prolongada infinitamente no tempo, seja
para a vida eterna no céu com Deus, ou para o sofrimento contínuo no inferno.
Essas colocações sugerem caminhos pelos quais a descrição do cristianismo waiwai
pode ser enriquecida com a realização de novas pesquisas de campo, que dêem conta do
momento vivido por esses indígenas no presente – sobre o qual os dados etnográficos são
escassos. Caminhos que desejo explorar em pesquisas futuras entre os Waiwai.
153
O caso guarani analisado por Fausto guarda uma série de particularidades em relação ao caso waiwai, que não
serão analisadas aqui. Minha intenção no momento é justamente ressaltar as aproximações entre as
transformações experimentadas por esses grupos após a cristianização.
123
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