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MARCELA DE ARAUJO PINTO
REMEMORAÇÃO E RENEMBRANÇA: A REVISÃO DE
PERSPECTIVAS HISTÓRICAS EM BELOVED (1987), DE TONI
MORRISON, E DESMUNDO (1996), DE ANA MIRANDA
Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Campus de
São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em
Letras (Área de Concentração: Teoria da Literatura)
Orientadora: Prof
a.
Dr
a.
Giséle Manganelli Fernandes
São José do Rio Preto,
2010
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MARCELA DE ARAUJO PINTO
Rememoração e Renembrança: a revisão de perspectivas históricas em
Beloved (1987), de Toni Morrison, e Desmundo (1996), de Ana
Miranda
Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre em
Letras, área de concentração em Teoria da Literatura, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio
Preto.
BANCA EXAMINADORA
Prof
a
. Dr
a
. Giséle Manganelli Fernandes
Professor Adjunto
UNESP São José do Rio Preto
Orientador
Prof. Dr. Manuel Fernando Medina
Associate Professor
University of Louisville
Prof
a
. Dr
a
. Norma Wimmer
Professor Assistente Doutor
UNESP São José do Rio Preto
São José do Rio Preto, 24 de fevereiro de 2010
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À Olezia, com quem
sempre rememoro
minha história
AGRADECIMENTOS
Antes de tudo, aos meus pais.
À minha mãe, Magda, por encher a casa com livros e por sempre explicar
historicamente o mundo.
Ao meu pai, João, por perceber (e me convencer) que no meio acadêmico eu faria meu
melhor.
À minha avó, Olezia, por mostrar como ser doce e forte ao mesmo tempo.
Ao meu avô, Luiz, por mostrar os benefícios em ser aplicado, exigente e sistemático.
À minha tia, Márcia, por estar sempre ao meu lado (até quando eu mesma não estava).
Ao meu tio, Maurício, pelo apoio constante e incondicional.
Ao meu primo, Léo, por ser meu melhor amigo (e não pelos momentos em que tirou
sarro porque estudo pós-modernismo).
Ao meu primo, Luís, por dividir comigo a função de caçula (e nós sabemos como essa
não é fácil).
Ao meu irmão, Daniel, por me mostrar desde pequena que eu entenderia melhor a vida
lendo romances atentamente, ouvindo músicas cuidadosamente e assistindo aos filmes certos.
À Priscilla, pelos emails encorajadores e pela Valentina.
À Valentina, por ser a continuação de tudo isso.
Ao João, por querer colocar sua história ao lado da minha, bem a tempo de mudar um
futuro que andava meio esquisito.
À Patrícia, pelo interesse sincero na minha pesquisa.
A toda família Fidelis, pelo João.
Ao Rodrigo, pela excelente companhia de intercâmbio e pelas longas conversas sobre
livros, filmes, Estados Unidos, vegetarianismo, religião, animais de estimação...
À Priscila, pelas muitas explicações sobre a pós e pelas horas de espera no aeroporto.
À Janaína, pela companhia nas aulas e eventos, pelas palavras incentivadoras e por
tornar presente a lembrança das amizades queridas dos anos de faculdade.
À Camila, à Malu, à Juliana, à Bruna, à Maísa, por terem oferecido amizades incríveis
que carrego comigo até hoje.
À Mariana, por ter me recebido carinhosamente em Ribeirão, entre tantas outras
manifestações de amizade sincera.
Aos colegas da pós, pelo companheirismo.
À Cris Lisboa, por me ensinar inglês.
À prof
a.
Giséle, pelo exemplo de integridade acadêmica e pessoal e por dividir
Louisville comigo.
Ao prof. Manuel Medina (Manolo), por fazer dos Estados Unidos um lugar próximo.
Ao prof. Alvaro e à prof
a.
Norma, pela leitura atenta da primeira versão deste texto.
À FAPESP, pelo importante apoio financeiro, essencial para eu que pudesse me
dedicar a este trabalho da maneira como Beloved e Desmundo merecem.
SUMÁRIO
Introdução .............................................................................................................................................................................................. 09
1. Memória, História e Literatura
I. A representação do passado ...................................................................................................................................... 15
I.a. A memória ..................................................................................................................................................... 25
II. Ausente anterior e ausente irreal ........................................................................................................................... 31
II.a. A estrutura textual da história ........................................................................................................... 40
II.b. A história como linguagem ................................................................................................................ 49
III. A narrativa como elemento fundamental ....................................................................................................... 56
III.a. A legitimação do conhecimento pela narrativa ..................................................................... 57
III.b. A metaficção historiográfica ........................................................................................................... 63
III.c. Elementos narrativos da ficção pós-moderna ........................................................................ 71
IV. Narrativas que lembram o passado .................................................................................................................... 78
2. A rememoração em Beloved
I. A rememoração ............................................................................................................................................................... 89
I.a. Uma imagem no mundo ......................................................................................................................... 90
I.a.1. A ausência ....................................................................................................................................... 91
I.a.2. O distanciamento ......................................................................................................................... 94
I.b. Imagens encontradas ................................................................................................................................ 97
II. Revisão de perspectivas históricas .................................................................................................................... 105
II.a. Características animais à direita” ............................................................................................... 111
II.a.1. “Entre pela porta da frente” .............................................................................................. 120
II.b. Linha de maternidade ......................................................................................................................... 123
II.c. Um monumento para lembrar dos escravos ........................................................................... 135
3. A renembrança em Desmundo
I. Falava eu de minhas renembranças” ................................................................................................................ 144
I.a. “Minhas renembranças” ....................................................................................................................... 144
I.b. “Modo que alembrava na fantasia” ............................................................................................... 146
I.b.1. O distanciamento ...................................................................................................................... 150
I.c. As falsidades formosas ........................................................................................................................ 155
II. Revisão de perspectivas históricas ..................................................................................................................... 161
II.a. O escuro dos gritos em silêncio ..................................................................................................... 163
II.b. “Na terra do Brasil” ............................................................................................................................. 168
4. A rememoração e a renembrança
I. O processo de rememoração e o de renembrança ....................................................................................... 182
II. A revisão de perspectivas históricas ................................................................................................................. 187
Considerações finais: A história compartilhada .................................................................................................... 198
Bibliografia ......................................................................................................................................................................................... 206
RESUMO: Os conceitos de rememoração e renembrança são apresentados e definidos nos
romances Beloved (1987), da autora norte-americana Toni Morrison, e Desmundo (1996), da
autora brasileira Ana Miranda, respectivamente, como processos pertencentes ao fenômeno
mnemônico, incorporados ao espaço ficcional para revisar perspectivas históricas nacionais
oficiais. Ambos os romances foram elaborados a partir de fatos ocorridos em momentos
históricos cruciais da grande narrativa de formação nacional dos Estados Unidos e do Brasil.
Beloved resgata o crime cometido pela escrava foragida Margaret Garner, poucos anos antes
da Guerra Civil (1861-1865), quando matou a própria filha na tentativa de evitar que suas
crianças voltassem para a fazenda onde seriam escravizadas. Desmundo retoma a vivência de
uma das órfãs enviadas pelo rei de Portugal à colônia Brasil, no culo XVI, para servirem
como esposas, a pedido dos padres que esperavam extinguir os hábitos dos colonos de se
relacionarem com as índias. A confluência entre memória, história e literatura acontece nesses
romances por meio da rememoração e da renembrança que se configuram, ao mesmo tempo,
como processos mnemônicos realizados pelas personagens e como estruturas narrativas. A
rememoração é definida como a imagem que permanece (individualmente e no mundo)
quando algo deixa de existir; a renembrança é originada a partir de experiências singulares e
possui relações com um mundo fantasioso. Ambas compartilham características ligadas ao
enigma da representação que retoma eventos do passado, tais como a construção paradoxal de
ausências e distâncias. Porém, a rememoração possibilita a memória coletiva, enquanto a
renembrança ocasiona a memória individual. As estratégias narrativas de cada romance
acompanham a caracterização de cada um desses processos, distinguindo-se na constituição
da memória e da vivência de suas personagens. As diferenças, no entanto, convergem para o
objetivo comum de prevenir o apagamento do passado, por meio da formulação de vida
interior de figuras marginais, do testemunho dessas figuras e do funcionamento do tempo, em
uma dimensão que desafia o calendário. Com esses recursos, os romances expõem o
estabelecimento de relações de dominação imanentes ao processo de formação das nações. O
desvendamento dessas relações acompanha-se da proposta de meios de resistência à
dominação, ligados ao reconhecimento da linha de maternidade pessoal e nacional. A
resistência sugerida possibilita o necessário movimento político de fortalecimento dos grupos
sociais marginais vitimados por sua ausência na história, em especial as mulheres.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura e História, Pós-modernismo, Beloved, Toni Morrison,
Desmundo, Ana Miranda.
Rememory and Renembrança: Revising Historical Perspectives in Toni Morrison’s
Beloved (1987) and Ana Miranda’s Desmundo (1996)
ABSTRACT: The concepts of rememory and renembrança are presented and defined in Toni
Morrison‟s Beloved (1987) and Ana Miranda‟s Desmundo (1996), respectively, as mnemonic
processes incorporated into the fictional space in order to revise official national historical
perspectives. The American and the Brazilian novels were both based on facts that took place
in crucial historical moments of the master narrative concerning the national formation of
each country. Beloved revisits the crime committed by Margaret Garner, a fugitive slave,
during the pre-Civil War years, when she killed her own daughter in an attempt to save her
children from returning to slavery. Desmundo recollects the experiences of one of the
Portuguese orphan girls sent to sixteenth-century colonial Brazil to serve as wives, by orders
of the king and by the request of the priests who wanted to put an end to the sexual relations
among Portuguese colonialists and natives. Rememory and Renembrança set the
interrelations between memory, history and literature because they are the mnemonic
processes engendered by the characters and, at the same time, they form the structure of the
novels. Rememory is defined as the image that lasts (individually and in the world) when
something no longer exists; renembrança originates from singular experiences and establishes
relations with a fantasy world. The two processes share features related to the enigma of
representation that recaptures past events, such as paradoxical constructions of absences and
distances. However, rememory triggers collective memory whereas renembrança belongs to
individual memory. The narrative strategies of each novel follow the characteristics of each
process, distinguishing themselves in the creation of characters‟ memory and experiences.
These differences, though, converge to a common objective of preventing the erasure of the
past not only through the development of interior life of marginal figures, but also through
these figures‟ testimony and diverse time performances, in a dimension that challenges
calendar conceptions of time. Using these devices, the novelists expose relations of
domination inherent to the formation of both nations. Such acknowledgment is followed by
proposals of resistance against the domination through the recognition of a personal and
national motherline. This kind of resistance foregrounds the necessary political movement of
empowerment of marginalized social groups, especially women, victimized by their absence
in official history.
KEYWORDS: Literature and History, Postmodernism, Beloved, Toni Morrison, Desmundo,
Ana Miranda.
Introdução
A comparação entre os romances Beloved e Desmundo, a partir dos conceitos de
rememoração e renembrança, insere-se em debates teóricos acerca da composição da
memória, da história e da literatura. Entendidas como áreas distintas do conhecimento pelo
pensamento positivista do século XIX, as três apresentam limites difíceis de distinguir entre
si, quando relacionadas à produção literária contemporânea que objetiva revisar a história
oficial, utilizando-se de processos pertencentes ao fenômeno mnemônico.
Assim, os debates inseridos no primeiro capítulo deste trabalho vão da discussão sobre
as fronteiras entre memória, história e literatura, passando pelas relações estabelecidas entre
literatura e história no pós-modernismo, até a atuação da memória na literatura como meio de
promover a revisão de perspectivas históricas. O item I apresenta os campos de proximidade e
de distinção entre a memória e a história, baseando-se, em grande parte, nas ideias de Paul
Ricoeur (2007) para explicar os mecanismos do processo mnemônico (I.a). O item seguinte
(II) detém-se nos processos de elaboração da história, em especial nos que se referem ao
conceito de história desenvolvido no século XIX: com um subitem (II.a) sobre a teoria de
Hayden White (1985;1987) acerca dos princípios que são impostos à história por meio de
mecanismos narrativos empregados pelo historiador ao discurso histórico; e um subitem (II.b)
dedicado ao questionamento, estabelecido pela pós-modernidade, em relação à organização da
realidade segundo padrões culturais. O item III, destinado à preocupação pós-moderna em
pensar as organizações sociais, as instituições, os campos do conhecimento como
representações narrativas, está dividido em três subitens que tratam da legitimação do
conhecimento pela narrativa (III.a), segundo Jean-François Lyotard (1993b); do conceito
desenvolvido por Linda Hutcheon (1988; 1993) sobre a produção literária contemporânea que
revisa a história, a metaficção historiográfica (III.b); e das estratégias narrativas de romances
contemporâneos (III.c), analisadas por Brian McHale (1992). O último item deste capítulo
10
(IV) aborda a atuação do processo mnemônico em romances, como Beloved e Desmundo, que
revisam fatos históricos.
O romance Beloved, analisado no segundo capítulo, foi elaborado por Toni Morrison a
partir de um fato real, ocorrido em 1856. A autora descobriu esse acontecimento quando
coeditava um livro sobre a história dos negros nos Estados Unidos, The Black Book,
publicado pela primeira vez em 1974. The Black Book tinha como objetivo a elaboração de
uma história dos negros baseada em relíquias herdadas pelos descendentes. Assim, os editores
buscaram famílias que tivessem preservado objetos, jornais, documentos de época,
reveladores não dos sofrimentos dos afro-americanos, mas também de tudo aquilo que eles
desenvolveram e alcançaram. Entre as notícias de jornais de época, Morrison encontrou o
crime de Margaret Garner, uma escrava foragida que assassinou uma de suas crianças ao
perceber a aproximação dos caçadores de escravos determinados a aprisionar a família
novamente. Para evitar o retorno dos filhos aos horrores da escravidão, ela adotou essa atitude
desesperada.
Em Beloved, Morrison cria acontecimentos em torno desse fato singular. No romance,
Sethe, a personagem baseada em Margaret Garner, vive com Denver, a filha mais nova, em
uma casa assombrada pela presença do espírito da filha assassinada. Dezoito anos após o
crime, elas vivem sozinhas, pois os irmãos de Denver fugiram e a avó, Baby Suggs, não está
mais viva. O equilíbrio da família se quebra com a chegada de Paul D, que conhecia Sethe e
Baby Suggs do período de escravidão na fazenda Sweet Home. A presença de Paul D na casa
espanta o fantasma do bebê assassinado, mas o espírito volta reencarnado no corpo de uma
jovem chamada Beloved. Esse retorno do fantasma, na forma de uma moça, coloca todas as
personagens em conflito com o passado. Sethe precisa enfrentar os traumas vividos sob a
escravidão e a culpa que sente em relação ao seu ato. Paul D deve enfrentar os eventos de seu
11
passado que lhe tiraram a capacidade de se ver como homem. Denver necessita conhecer o
passado de sua família para entender o seu presente e trilhar o seu futuro.
Com a criação dessas vivências pessoais, no espaço ficcional, Toni Morrison revisa a
história oficial ao fornecer um registro de vida pessoal e interior a personagens marginais,
escravos vislumbrando a liberdade na sociedade norte-americana após a Guerra Civil (1861-
1865). A vida interior constitui-se por meio de processos relacionados à memória das
personagens. Esses processos recebem o nome de rememory (rememoração, tradução nossa),
palavra cunhada pela autora, e apresentada no romance por Sethe. O próprio termo rememory
contém a ideia de retomada do passado, realizada em diversas repetições, em que cada
repetição traz alguma novidade, pois liga o evento do passado a diferentes momentos no
presente. O termo, por si só, carrega esse sentido por ser a concepção de uma palavra nova,
que não faz parte do léxico da ngua inglesa, mas uma criação baseada no passado, pois a
palavra é formada a partir da junção de memory com o prefixo re, de origem latina, referente a
uma linguagem pertencente ao passado. Por engendrar o significado de retomada, o termo
refere-se não aos processos relacionados às personagens, mas também aos processos de
elaboração da narrativa em Beloved.
No primeiro item do segundo capítulo, a análise de como a rememoração constitui-
se em processo mnemônico das personagens e procedimento narrativo do romance,
detalhando as características da rememoração referentes à imagem (I.a), à ausência (I.a.1), à
distância (I.a.2) e à memória coletiva (I.b). O item II contém a revisão de perspectivas
históricas realizada no romance por meio da memória. Essas perspectivas são detalhadas em
relação a Sethe (II.a), a Denver (II.a.1), à linha de maternidade estabelecida (II.b) e à nação
que se forma no período em que vivem as personagens (II.c).
Na elaboração do romance Desmundo, analisado no terceiro capítulo, Ana Miranda
também parte de um fato real, registrado em correspondências portuguesas coloniais, datadas
12
do século XVI, escritas pelo padre Manoel da Nóbrega, requisitando ao rei D. João III o envio
de órfãs para a colônia como noivas dos colonos. A justificativa para esse pedido era a
necessidade de cercear os hábitos dos colonos de se relacionarem com as índias. Embora esse
evento esteja registrado nas cartas e seja mencionado em livros de história da época, nada
mais se sabe sobre as moças que foram enviadas.
Em Desmundo, a autora cria para uma dessas órfãs os acontecimentos que envolvem o
seu envio à colônia. No romance, a jovem Oribela relata a sua jornada ao Novo Mundo, desde
a viagem de navio até o casamento com Francisco de Albuquerque, seu relacionamento
amoroso com o mouro Ximeno, e suas tentativas de fuga da situação em que é forçada a viver,
sempre enclausurada. Seu relato expõe uma personagem marginal envolvida no processo de
formação de um país sob o controle colonialista característico da expansão marítima europeia.
A narrativa de Desmundo compõe um mosaico de sensações, descobertas, crendices, sonhos e
experiências dessa jovem, expondo uma nação formada sob violência e elaborada a partir de
uma história oficial marcada pela ausência das figuras marginais.
O testemunho de Oribela sobre sua vivência na colônia revisa a história oficial ao
fornecer um registro da vida íntima de uma figura esquecida pela história. A vida interior
forma-se pelo testemunho ligado ao processo da memória de Oribela, no resgate de eventos
do passado. No romance, esse processo denomina-se renembrança, termo apresentado pela
própria Oribela. A palavra carrega em si mesma a ideia de retomada do passado que se repete,
indicada pelo prefixo re-. Além disso, a palavra representa uma característica do romance: a
indeterminação dos fatos em relação ao seu teor fictício ou real referente ao passado, pois
parece ser inventada pela autora, quando na verdade pertence ao léxico da língua portuguesa
arcaica. Assim, esse termo refere-se tanto ao processo mnemônico da personagem quanto à
elaboração da narrativa de Desmundo.
13
O primeiro item do terceiro capítulo contém a análise dos procedimentos da
renembrança como memória da personagem e como narrativa do romance, detalhados pelas
características de singularidade do relato (I.a), de fantasia (I.b), de distância (I.b.1) e de
criação imaginativa (I.c). No item II, a apresentação da revisão de perspectivas históricas
realizada no romance por meio da memória. Essas perspectivas são detalhadas no tocante ao
testemunho de Oribela (II.a) e ao nascimento da nação brasileira (II.b).
Beloved e Desmundo estruturam-se em torno dos processos mnemônicos apresentados
por suas personagens Sethe e Oribela. A rememoração e a renembrança compartilham as
características ligadas ao enigma da representação que retoma eventos do passado,
principalmente a construção paradoxal de ausências e distâncias. Entretanto, esses dois tipos
de memória diferenciam-se na formação da memória coletiva, pela rememoração, e da
memória individual, pela renembrança. As estratégias narrativas de cada romance
acompanham a caracterização de cada um desses processos, distinguindo-se na constituição
da memória e da vivência de Sethe e Oribela. As diferenças, no entanto, convergem para o
mesmo objetivo de prevenir o apagamento do passado, revisando as perspectivas históricas
oficialmente legitimadas para apresentar os momentos da história nacional norte-americana e
da brasileira a que pertencem as personagens. Nesse processo reavaliativo, a formulação de
vida interior de figuras marginais, o testemunho e o funcionamento do tempo, em uma
dimensão que desafia o calendário, constituem-se em formas de expor o estabelecimento de
relações de poder imanentes ao processo de formação das nações. O desvendamento dessas
relações, nos romances, acompanha-se da proposta de meios de resistência à dominação,
ligados ao reconhecimento da linha de maternidade pessoal e nacional. A resistência sugerida
possibilita o fortalecimento dos grupos sociais vitimados pela sua ausência na história, em
especial as mulheres.
14
O primeiro item do quarto capítulo apresenta as características similares e díspares dos
processos de rememoração e renembrança, com suas repercussões nas estratégias narrativas.
Os dois tipos de memória, desenvolvidos em cada romance, possibilitam a revisão de
perspectivas históricas (II). Quando comparadas, as propostas de reavaliação histórica
presentes em Beloved e em Desmundo proporcionam um aprofundado questionamento sobre o
conceito de formação de uma nação, que ultrapassa limites geográficos e temporais.
Capítulo 1.
Memória, História e Literatura
I) A representação do passado
Embora a memória e a história sejam atribuídas, em um primeiro momento, a campos
distintos do conhecimento, elas partilham uma característica essencial: ambas se referem ao
passado. A memória é marcada por um conhecimento pessoal e particular do passado, obtido
pela vivência e elaborado com sentimentos e esforços de recordação. A história é um
conhecimento científico, adquirido por meio de pesquisas e construído a partir do empenho
intelectual e profissional de estudiosos. Os diferentes caminhos de constituição, entretanto,
aproximam-se, segundo Paul Ricoeur, em sua obra A memória, a história, o esquecimento
(2007), por uma problemática comum: a representação do passado.
A problemática comum é uma das pontes que Ricoeur lança para forjar a continuidade
e a relação mútua entre a memória individual e a memória coletiva, esta erigida na memória
histórica que é relacionada ao conhecimento histórico. As pontes entre esses quatro discursos
são necessárias, de acordo com Ricoeur, para dar credibilidade a uma composição distinta,
porém mútua e cruzada, da memória e da história.
A representação do passado carrega o grande enigma da memória, existente na
dialética entre presença e ausência. Os mecanismos da memória trazem, para o presente, os
acontecimentos que não existem mais. O enigma forma-se na medida em que a
representação faz do passado, ausente e inatingível, um elemento presente no momento atual.
Essa representação também cria e, de maneira paradoxal, anula a distância temporal entre o
momento do acontecimento e o da recordação. A possibilidade de representar o ocorrido
confirma a existência anterior do acontecimento; mas, por ele estar presente mais uma vez,
essa distância é desfeita. Esse caráter problemático da representação, no tocante à ausência e à
distância, resulta na queda do grau de confiabilidade, principalmente, da memória que, em
16
face à elaboração científica da história, é colocada em dúvida por sua constituição pessoal e
sentimental.
A confiança na memória é abalada, ainda, pelo que Ricoeur chama de cilada do
imaginário” (2007, p.70). A imaginação se transforma em armadilha para a memória porque
ambas partilham um mesmo mecanismo de funcionamento. Tanto a recordação quanto a
fantasia se manifestam por meio da elaboração de imagens. A criação de imagens está
relacionada à função alucinatória da imaginação, sendo, dessa forma, deslegitimizada. A
cilada do imaginário define-se, então, de acordo com Ricoeur (2007), como o descrédito que a
composição de imagens confere à memória.
A suspeita, em relação à capacidade da memória de representar o passado de forma
fidedigna, estende-se ao testemunho. O testemunho é a memória declarada em uma sequência
narrativa e o seu registro configura-se na principal estrutura de transição entre a memória e a
história. A história é, a priori, possível pelo registro dos testemunhos que confirmam terem
visto ou presenciado o acontecimento. Sendo o testemunho uma das pontes entre os dois
discursos, a teoria da memória transmite à teoria da história a problemática da confiança na
asserção da verdade. Assim, as características da memória, que diminuem sua credibilidade,
chegam ao conhecimento histórico pelo ponto em comum da representação do passado: por
meio do testemunho que confere sequência narrativa à memória. Mas essa desconfiança não é
ilimitada, como afirma Ricoeur: “apesar da carência principal de confiabilidade do
testemunho, não temos nada melhor que o testemunho, em última análise, para assegurar-nos
de que algo aconteceu, a que alguém atesta ter assistido pessoalmente” (2007, p.156).
Desse modo, a memória é ainda a melhor forma disponível para certificação da
realidade de lembranças pessoais, assim como, o testemunho é a melhor forma disponível
para certificação do conhecimento histórico. Se a história está baseada no testemunho,
naquela pessoa com o poder de afirmar “eu vi”, então é exatamente o testemunho o que
17
crédito à representação histórica do passado. Chega-se a um em que o ponto de maior
credibilidade é, paradoxalmente, o mesmo de maior desconfiança. Esse ponto de
características contraditórias, oriundo da memória, é fundamental para a história, como afirma
Ricoeur:
a história pode ampliar, completar, corrigir, e até mesmo refutar o testemunho da
memória sobre o passado, mas não pode aboli-lo. Por quê? Porque, segundo nos
pareceu, a memória continua a ser o guardião da última dialética constitutiva da
preteridade do passado, a saber, a relação entre o “não mais” que marca seu caráter
acabado, abolido, ultrapassado, e o “tendo-sido” que designa seu caráter originário e,
nesse sentido, indestrutível. (2007, p.505)
A relação intrínseca entre a memória e a história, balizada pela atitude retrospectiva
que ambas apresentam, faz a escolha de uma das duas como mais próxima da verdade ser, nos
termos de Ricoeur, indecidível. o há como fazer essa opção, não como escolher uma
como superior a outra. Segundo Ricoeur, a competição entre a memória e a história, entre a
fidelidade de uma e a verdade da outra, não pode ser decidida no plano epistemológico.
A história elabora sua autonomia em relação à memória quando se configura como
disciplina científica. Para Ricoeur, a consciência privada, campo de existência da memória
individual, é considerada despojada de credibilidade científica, sendo apenas uma via de
descrição e explicação da interiorização. Essa história, que se justifica definindo sua área de
desempenho como científica, deseja reduzir a memória a um objeto de seu estudo,
minimizando a atuação da memória como meio de representação do passado. Paul Ricoeur
não aceita a subordinação da memória à história, mas também não pretende, em seu texto,
praticar uma valorização da memória em detrimento da história. Ele apresenta a memória e a
história como interligadas, a tal ponto que suas estruturas e ligações se revestem de um caráter
igualmente prezado.
Entretanto, historiadores, como o francês Jacques Le Goff, que defendem a clara
dissociação entre a história e os discursos que dela se aproximam, classificando-a sempre
como disciplina científica. No caso do fenômeno da memória, Le Goff o reduz a um objeto do
18
estudo científico, um novo objeto. Dessa forma, segundo Le Goff: “tal como o passado não é
a história, mas seu objeto, também a memória não é a história, mas um de seus objetos e,
simultaneamente, um nível elementar de elaboração histórica” (2003, p.49).
Em História e memória (2003), Le Goff traça a história da memória, com a pretensão
de dissolver o campo da memória no da história. Ele explica a memória dentro de
periodizações, indicando como ela se configurou em diferentes momentos históricos, em
diferentes povos e culturas. O apanhado realizado por Le Goff mostra como a noção de
memória foi elaborada e modificada ao longo do tempo.
Esse trajeto, porém, não leva em consideração os aspectos da fenomenologia da
memória que Ricoeur elabora, ocupando-se apenas da memória em diferentes momentos da
história. A preocupação de Ricoeur em explicar e valorizar os mecanismos mnemônicos, não
subordinando a memória à história, fundamenta, de modo mais apropriado, o estudo
desenvolvido nesta dissertação sobre os romances contemporâneos Beloved e Desmundo, que
revisam a história utilizando-se, não exclusivamente, das estruturas da memória. Nos espaços
ficcionais desses romances, a memória não é configurada como uma pequena parte da
história, de importância inferior; ao contrário, elas estão interligadas.
Le Goff, todavia, entende que a disciplina histórica alimenta-se da memória,
apresentando a história como uma forma científica desenvolvida, e a memória como um nível
elementar de elaboração histórica. Dessa forma, para este historiador francês, a memória
dependeria dos padrões explicativos e dos métodos científicos para se tornar história. O texto
de Le Goff possui um tom marcado pela desconfiança em relação ao elogio excessivo da
memória.
Na história da memória, elaborada por Le Goff, o estatuto da memória é inseparável
da reflexão sobre o binômio passado/presente. A oposição entre passado e presente não é
neutra. Essa oposição subentende ou exprime sempre um sistema de valoração, em que o
19
passado pode ser entendido como antigo, e o presente como moderno, ou ainda, o passado
pode ser entendido como reacionário, e o presente como progressivo. As formações sociais de
cada período histórico conferem esse sistema de valoração à relação entre passado e presente.
Assim, a marca dessa história da memória são os modos de transmissão entre as
divisões periódicas. Essas divisões mostram o desenvolvimento da memória indo da oralidade
para a escrita, em um trajeto que começa nas sociedades ágrafas, onde a memória é muito
valorizada como depositária do conhecimento, passando pelo equilíbrio entre a memória oral
e a escrita nas sociedades medievais, até chegar ao progresso da memória escrita, do século
XVI até o fim do século XX.
A noção de memória no fim do século XX, segundo Le Goff, tende a transformar a
noção de tempo histórico. Mas essa transformação ocorre, antes, pela ampliação do campo
científico da história, decorrente de suas relações com outras disciplinas. Assim, para Le
Goff:
a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da experiência individual e
coletiva tende a introduzir, junto destes quadros mensuráveis do tempo histórico, a
noção de duração, de tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos
subjetivos ou simbólicos. O tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o
velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta. (2003, p. 13)
De acordo com Le Goff, os tempos diferentes que a memória é capaz de elaborar
passam a ser reconhecidos pela história, mas não por meio da aproximação entre a memória e
a história e, sim, por meio da aproximação entre a história e outras disciplinas. Mesmo
concebendo o tempo histórico linear, separado em períodos distintos, como possível de ser
ampliado para tempos múltiplos, relativos, subjetivos e simbólicos oriundos da memória,
ainda assim, Le Goff considera que essa ampliação é feita por meio das outras ciências, não
da relação com a memória. Além disso, ele julga mensurável o tempo da história, uma
característica positiva dentro dos padrões científicos. O tempo da memória seria, então, o
oposto, impossível de ser medido.
20
A preocupação de Le Goff com a memória se expressa, principalmente, por meio da
memória coletiva. A memória individual não é a valorizada pelo historiador, ao contrário da
visão de Ricoeur, que apresenta os dois tipos de memória com o mesmo valor. Essa opinião
de Le Goff é evidenciada quando ele postula a existência de pelo menos duas histórias. Uma
delas seria a memória coletiva, portadora das características de tica, deformada e
anacrônica. Essa história representaria o vivido da relação nunca acabada entre passado e
presente. A segunda história, para Le Goff, seria a dos historiadores, que serviria para corrigir
e esclarecer a memória coletiva.
A memória coletiva aparece, assim, no texto de Le Goff, em uma descrição que lhe
fornece os atributos de caótica e incontrolável, como se ela existisse fora da regularização da
história. Mesmo exterior à história, segundo Le Goff, essa memória coletiva ampliou seu
campo de atuação até chegar ao ponto de a disciplina histórica não poder mais ignorá-la. Le
Goff descreve a memória coletiva e seus efeitos da seguinte forma:
toda a evolução do mundo contemporâneo, sob a pressão da história imediata em
grande parte fabricada ao acaso pela media, caminha na direção de um mundo
acrescido de memórias coletivas, e a história estaria, muito mais do que antes ou
recentemente, sob a pressão dessas memórias coletivas. A história dita “nova”, que se
esforça por criar uma história científica a partir da memória coletiva, pode ser
interpretada como “uma revolução da memória” fazendo-a cumprir uma “rotação” em
torno de alguns eixos fundamentais: uma problemática abertamente contemporânea
[...] e uma iniciativa decididamente retrospectiva”, a renúncia de uma temporalidade
linear” em proveito dos tempos vividos múltiplos nos níveis em que o individual se
enraíza no social e no coletivo” (linguística, demografia, economia, biologia, cultura).
(2003, p.467)
Para Le Goff, a disciplina histórica deveria, então, criar a história científica a partir da
memória coletiva, como se a história organizasse a memória. Para resumir o ponto de
separação entre a história científica e a memória coletiva, Paul Ricoeur afirma que: “de um
lado, a história gostaria de reduzir a memória ao estatuto de objeto entre outros, em seu
campo de pesquisa; de outro, a memória coletiva opõe seus recursos de comemoração à
21
empreitada de neutralização das significações vividas sob o olhar distanciado do historiador”
(2007, p.363).
Dessa forma, a memória coletiva reivindica a sua participação na sociedade de uma
forma muito mais próxima das pessoas, dos grupos sociais; ao contrário da sistematização
científica da história, que acaba por afastar o vivido do que é considerado histórico. Esse
afastamento isola a história da experiência de vida pessoal e comunitária. Porém, ainda
segundo Ricoeur, o conhecimento histórico pode trazer à estrutura da memória elementos que
a memória coletiva não consegue desenvolver:
o conhecimento histórico a vantagem a arquiteturas de sentido que excedem os
próprios recursos da memória coletiva: articulação entre acontecimentos, estruturas e
conjunturas, multiplicação das escalas de duração estendidas às escalas de normas e de
avaliações, distribuição dos objetos pertinentes da história em múltiplos planos,
econômico, político, social, cultural, religioso, etc. A história não é apenas mais vasta
que a memória, mas seu tempo é folheado de outro modo. (2007, p.505)
Nesse ponto, existe um nas discussões de Le Goff e Ricoeur, em que o historiador,
ao defender e valorizar a ciência histórica, afirma que o tempo da memória é múltiplo, e a
pressão exercida pela memória coletiva acaba por dar ao tempo da história um novo formato,
enquanto o filósofo, ao colocar o fenômeno da memória e o conhecimento histórico no
mesmo patamar, expõe que o tempo da história possui estruturas múltiplas e por isso tem um
formato diferente, não como resultado da influência da memória, mas porque são
conhecimentos distintos.
O tempo da história com estruturas múltiplas não se realiza, entretanto, na história una,
que, segundo Ricoeur, é criada sob o signo do coletivo singular. O coletivo reúne um conjunto
de histórias particulares, apresentando-as como uma só. Esse conjunto unificado distancia a
história da multiplicidade ilimitada das memórias individuais e da pluralidade das memórias
coletivas. A pretensão da disciplina histórica de formular uma história universal dissolve a
noção de multiplicidade da memória.
22
A observação de Le Goff sobre a capacidade de a história corrigir a memória coletiva
reaparece no texto de Ricoeur, mas sob um aspecto diferenciado. Ricoeur explica que essa
correção da memória pela história faz sentido apenas quando ela agrega um valor social, um
valor de justiça. Le Goff não explicita a correção que a história pode fazer da memória como
revestida de um caráter de justiça. No entanto, para Ricoeur:
um privilégio que não pode ser recusado à história, não apenas o de estender a
memória coletiva além de toda lembrança efetiva, mas o de corrigir, criticar, e até
mesmo desmentir a memória de uma comunidade determinada, quando ela se retrai e
se fecha sobre seus sofrimentos próprios a ponto de se tornar cega e surda aos
sofrimentos de outras comunidades. É no caminho da crítica histórica que a memória
encontra o sentido da justiça. (2007, p.507)
Ricoeur aponta a crítica, que a história pode fazer, como um recurso de proteção
contra a “pretensão da memória coletiva de avassalar a história pelo viés desses abusos de
memória, nos quais podem se transformar as comemorações impostas pelo poder político ou
pelos grupos de pressão” (2007, p.403). Mas a correção empreendida pela história não é, para
Ricoeur, uma função, uma obrigação; ela é uma forma de justiça. Le Goff, ao contrário,
considera essa correção uma função estritamente ligada à atividade de aprimorar o
conhecimento.
Por valorizar esse caráter de justiça, Ricoeur salienta ainda que cabe ao destinatário do
texto histórico fazer, nele mesmo e no plano da discussão pública, o balanço entre a história e
a memória. Ricoeur critica um tratamento do passado em termos de instrumento ou de
utensílio e aponta o destinatário/leitor como o responsável por colocar em discussão as
relações entre história e memória. Essas relações não estão prontas no texto, nem da história,
nem da memória.
No caso dos dois romances estudados nesta pesquisa, Beloved e Desmundo, não é a
história que pode corrigir a memória coletiva. Pelo contrário, neles, a memória individual ou
de pequenos grupos é capaz de criticar a história, em um espaço ficcional. A ação que Ricoeur
credita ao conhecimento histórico é realizada por esses romances, mas usando a memória
23
como meio para buscar e expressar percursos alternativos da história. Esse uso da memória
apresenta ambos os discursos como interligados, assim como defendido por Ricoeur. Além
disso, justamente essa interligação de discursos remete ao leitor a responsabilidade pelo
balanço entre história e memória, também como Ricoeur acredita que deva ser.
Mesmo especificando as diferentes atuações possíveis do fenômeno mnemônico e do
conhecimento histórico, o intuito de Ricoeur é desvendar as interligações entre a memória e a
história, colocadas em um patamar de igualdade, por meio de sua problemática comum da
representação do passado. Mais especificamente, a representação mnemônica tem um
correspondente histórico no conceito de representância. Representância
1
é o termo usado por
Ricoeur (2007) para designar a capacidade do discurso histórico de representar o passado.
A representação historiadora
2
mantém, para Ricoeur, a aporia da imagem presente de
algo ausente. Porém, a qualidade de “ausente” apresenta duas características distintas: a
desaparição; e a anterioridade da existência, no passado, desse algo que está ausente no
presente. Assim, Ricoeur afirma:
as coisas passadas são abolidas, mas ninguém pode fazer com que não tenham sido.
[...] A ausência seria desdobrada entre a ausência como visada pela imagem presente e
a ausência das coisas passadas enquanto concluídas em relação ao seu „ter sido‟. É
nesse sentido que o anteriormente significaria a realidade, mas a realidade do passado.
[...] a veemência assertiva da representação historiadora enquanto representância
basear-se-ia unicamente na positividade do „ter sido‟ visado através da negatividade
do „não ser mais‟. (2007, p.294)
1
O termo “representância” é definido por Paul Ricoeur, de modo sucinto, no seguinte trecho: “trata-se [...] de
discernir a capacidade do discurso histórico de representar o passado, capacidade que chamamos de
representância. Este título designa a própria intencionalidade do conhecimento histórico que se enxerta na do
conhecimento mnemônico na medida em que a memória é do passado. Ora, as análises detalhadas dedicadas à
relação entre representação e narração, entre representação e retórica, entre representação e ficção não balizam
apenas uma progressão no reconhecimento da visada intencional do saber histórico, mas também uma progressão
na resistência a esse reconhecimento. [...] Como manter a diferença de princípio entre a imagem do ausente
como irreal e a imagem do ausente como anterior?” (2007, p.250).
2
Paul Ricoeur utiliza o termo “representação historiadora” para intitular aquilo que considera como “a terceira
fase da operação historiográfica”. Para esta fase, segundo o autor, “aplicar-lhe o título de escrita da história ou
historiografia é um equívoco. Uma tese constante deste livro é que a história é uma escrita, de uma ponta a outra:
dos arquivos aos textos de historiadores” (2007, p.247). O termo também se justifica pela seguinte explicação
fornecida por Ricoeur: “será fortemente enfatizado o fato de que a representação no plano histórico não se limita
a conferir uma roupagem verbal a um discurso cuja coerência estaria completa antes de sua entrada na literatura,
mas que constitui propriamente uma operação que tem o privilégio de trazer à luz a visada referencial do
discurso histórico” (2007, p.248).
24
A representância ocupa-se do passado como tendo-sido, na forma do enigma da
ausência do passado decorrido. A representância, que faz parte da epistemologia da operação
historiográfica, tem por trás a representação do passado no ato de memória. Essa problemática
da ausência na esfera da representação corresponde, para Ricoeur, à própria característica do
passado, de ser indisponível. Dessa forma, a indisponibilidade do passado é equivalente, na
representação, à característica de ausência.
Além da problemática da ausência, a representação historiadora apresenta um sério
problema que demarca seus limites. Paul Ricoeur refere-se ao problema das experiências
extremas, para as quais a vivência do homem cotidiano não consegue encontrar paralelos. No
caso das experiências extremas, a representação historiadora mostra os seus limites, porque
ela não é capaz de representar o que aconteceu. A representação historiadora não possui meios
para dar conta do relato dessas experiências.
O conhecimento histórico apresenta ainda outra ausência, relacionada à epistemologia
e à condição histórica. Para Ricoeur, na história, a morte é a referência de ausência. Por isso,
Ricoeur considera “a operação historiográfica como o equivalente escrituário do rito social do
sepultamento, da sepultura” (2007, p.377). Assim, a história fornece a sepultura, mas não a
qualquer um: essa morte, que aparece na história, não é a morte dos anônimos. A história se
ocupa da morte dos que têm um nome, aqueles cuja morte se torna um acontecimento. Por
isso, Ricoeur afirma ser a ambição de todo historiador alcançar, atrás da máscara da morte, o
rosto dos que, no passado, existiram e agiram. Mas, ainda segundo Ricoeur, o destinatário, o
leitor, é capaz de fazer isso e não o historiador. Encontrar o rosto das figuras da história é
tarefa para aqueles que darão continuidade ao passado.
25
I.a) A memória
Mesmo que o fenômeno mnemônico e o conhecimento histórico estejam em um
patamar de igualdade que lhes confere um caráter indecidível de prioridade na relação com o
passado, é necessário distingui-los para compreendê-los melhor em suas configurações
distintas para, assim, entender melhor as interligações apresentadas por ambos os discursos. A
multiplicidade da memória individual é enfatizada, por Paul Ricoeur, na descrição das
diferenças entre a memória e a história. Essa multiplicidade toma forma na quantidade de
indivíduos, mas também na quantidade de lembranças. Uma característica importante da
memória é existir no singular, como pano de fundo, como uma capacidade, enquanto as
lembranças existem no plural. Ricoeur afirma que as lembranças: “se apresentam
isoladamente ou em cachos, de acordo com relações complexas atinentes ao tema ou às
circunstâncias, ou em sequências mais ou menos favoráveis à composição de uma narrativa”
(2007, p.41).
Dessa forma, a memória manifesta-se por meio das lembranças, e são as lembranças
surgidas em sequências que podem se aproximar mais ou menos da composição de uma
narrativa. Baseando-se em ideias desenvolvidas pelos gregos, Ricoeur traça as diferenças
entre dois tipos de lembrança: a lembrança encontrada (referente ao ato de ter uma lembrança,
que aparece passivamente) e a lembrança buscada (referente ao ato de buscar uma lembrança,
o ato da recordação).
A lembrança encontrada é fruto de uma evocação; ela é o aparecimento atual de uma
lembrança. Já a lembrança buscada é o resultado de uma busca; ela é a recordação, a volta, a
retomada, o recobramento, a repetição. A recordação marca uma distância temporal entre a
impressão original e o retorno dessa impressão. O ato de lembrar pode acontecer depois de
transcorrido algum tempo. É esse intervalo de tempo que a recordação percorre em busca da
impressão original. Para Ricoeur: “a noção de distância temporal é inerente à essência da
26
memória e assegura a distinção de princípio entre memória e imaginação. Ademais, o papel
desempenhado pela estimativa dos lapsos de tempo enfatiza o lado racional da recordação: a
“busca” constitui uma “espécie de raciocínio”” (2007, p.38).
A distância temporal é, portanto, a característica essencial da memória. A busca que
pode ser feita pela memória é racional e possibilita o ato de repetição, no qual um evento do
passado apresenta-se outra vez, no presente. Essa qualidade de retomar algo distante no tempo
separa a memória da imaginação. A imaginação não efetua o processo de retomada: a
imaginação oferece eventos criados de maneira original, realizados pela primeira vez no
próprio processo imaginativo. O fenômeno mnemônico, por si só, assegura que sua
reprodução é a reprodução do passado. A lembrança estabelece e confirma a separação
temporal entre a representação atual e a esfera do campo temporal da impressão originária.
A intenção de Ricoeur em distinguir bem a memória da imaginação é evitar que a
proximidade entre os dois discursos resulte na perda de credibilidade da memória. A
confiabilidade no teor de verdade do evento mnemônico é abalada por o ser a memória um
discurso científico. A falta de elementos científicos aproxima a memória mais do campo da
imaginação do que do campo histórico. Mas, segundo Ricoeur, exatamente na questão da
representação, a memória está mais próxima da história, porque ambas se encarregam da
representação do passado. Embora memória e imaginação refiram-se à representação do
ausente, a memória e a história estão mais próximas, pois referem-se à representação do
ausente que já existiu, do ausente ligado ao passado.
Entretanto, sendo esta pesquisa voltada para o estudo dos romances Beloved e
Desmundo, cumpre ressaltar que a composição narrativa de ambos não desvaloriza a memória
por sua proximidade com a imaginação. Nos romances, a interligação entre os discursos
mnemônico e imaginativo é apresentada como positiva para os dois campos: memória e
imaginação se complementam sem que a imaginação enfraqueça a credibilidade da memória.
27
Logo, por não ter o seu campo de atuação ameaçado pelos parâmetros científicos, a memória
pode, por sua vez, revisar a história sem enfraquecer sua área de desempenho.
Dessa forma, mesmo focando seus argumentos na classificação de diferenças entre a
memória e a imaginação, Paul Ricoeur afirma que: “as lembranças podem ser tratadas como
formas discretas com margens mais ou menos precisas, que se destacam contra aquilo que
poderíamos chamar de um fundo memorial, com o qual podemos nos deleitar em estados de
vago devaneio” (2007, p.41).
“Estados de vago devaneio” parecem mais próximos da imaginação do que dos
acontecimentos do passado. Por isso, Ricoeur assevera a existência de um perigo permanente
de confusão entre memória e imaginação. Essa indistinção entre os dois campos provém do
fato de memória e imaginação formarem imagens, mas é problemática porque afeta a ambição
veritativa da memória. A ambição da memória é ser fiel ao passado. Assim, para Ricoeur:
se podemos acusar a memória de se mostrar pouco confiável, é precisamente porque
ela é o nosso único recurso para significar o caráter passado daquilo de que
declaramos nos lembrar. Ninguém pensaria em dirigir semelhante censura à
imaginação, na medida em que esta tem como paradigma o irreal, o fictício, o possível
e outros traços que podemos chamar de não posicionais. (2007, p.40)
Memória e imaginação possuem em comum a característica de tornar o ausente
presente e diferenciam-se porque a memória alude a um ausente que foi real no passado e a
imaginação alude a um ausente sem posição real. A característica comum entre ambas remete
à disposição de seus discursos para formar imagens. No entanto, a formação de imagens por
meio do discurso não se apresenta da mesma maneira na memória e na imaginação. Segundo
Ricoeur, toda lembrança configura-se em uma imagem, mas nem toda imagem é uma
lembrança.
A diferença primordial entre a memória e a imaginação, para Ricoeur, está na busca
específica de verdade que a memória empreende em relação ao passado. A lembrança
significa o momento em que ocorre o reconhecimento da impressão originária. Esse momento
28
é o resultado do esforço de recordação. É exatamente nesse ponto que a busca de verdade se
realiza. Assim, o instanto do reconhecimento distingue, de forma mais profunda, a memória
da imaginação. Ricoeur define-o como a solução para o enigma da representação mnemônica
que faz algo ausente anteriormente tornar-se presente: “esse pequeno milagre de múltiplas
facetas propõe a solução em ato do enigma primeiro, constituído pela representação presente
de uma coisa passada. A esse respeito, o reconhecimento é o ato mnemônico por excelência
(2007, p.438, grifo do autor).
O reconhecimento é, ainda, o que difere a representação mnemônica da representância
historiadora. A representância não possui em seu processo um momento como esse porque ela
não produz a volta de uma impressão originária, embora ela tenha a referência ao passado.
Apenas o reconhecimento determina a certeza de que a impressão originária permaneceu de
alguma forma. Essa certeza existe por meio de um pressuposto retrospectivo: somente
depois da retomada da impressão originária confirma-se que ela permaneceu o tempo todo;
antes dessa volta não é possível fazer essa afirmação. A respeito da permanência da
impressão, Ricoeur afirma: “foi preciso que algo permanecesse da primeira impressão para
que dela me lembre agora. Se uma lembrança volta, é porque eu a perdera; mas se, apesar
disso, eu a reencontro e reconheço, é que sua imagem sobrevivera” (2007, p.438).
A capacidade específica do reconhecimento de certificar a anterioridade da impressão
originária, autenticando sua presença, faz Ricoeur chamá-lo de pequeno milagre. Segundo o
filósofo, o reconhecimento é capaz de “envolver em presença a alteridade do decorrido. É
nisso que a lembrança é a re-(a)presentação, no duplo sentido de re-: para trás e de novo”
(2007, p.56). Esse duplo sentido de “re- existe nos romances aqui estudados, Beloved e
Desmundo. A revisão de perspectivas históricas que eles realizam possui o duplo sentido de
olhar para trás e de retomada (mas uma retomada com elementos de novidade), tal como as
29
estruturas narrativas adotadas em ambos, passíveis de serem classificadas com os termos
usados por suas autoras: rememoração e renembrança, respectivamente.
A memória ainda se define diferente da imaginação e da história em relação ao espaço
e ao tempo. Em relação ao espaço, Ricoeur define dois tipos de memória. O primeiro tipo é a
memória corporal, concentrada em incidentes precisos e povoada de lembranças afetadas por
diferentes graus de distanciamento temporal. O segundo tipo de memória relacionado ao
espaço acontece com a transição da memória corporal: é a memória dos lugares, assegurada
por atos como orientar-se, deslocar-se e habitar. A memória dos lugares constitui um nível
primordial do processo que faz os espaços tornarem-se históricos. Sobre esse processo,
Ricoeur afirma: “os lugares „permanecem‟ como inscrições, monumentos, potencialmente
como documentos, enquanto as lembranças transmitidas unicamente pela voz voam, como
voam as palavras” (2007, p.58). Ao comparar as lembranças a uma definição oficial do
passado, Ricoeur avalia a relação da lembrança com a palavra mais rica, pela maior liberdade
e facilidade de comunicação. Os romances estudados neste trabalho exploram exatamente
essa relação da lembrança com a palavra.
Quanto ao tempo, Ricoeur esclarece ter sido Santo Agostinho o criador da ideia de
interioridade humana, ao apontar que o sentido da orientação da passagem do tempo está
vinculado à memória. Santo Agostinho fundamenta a problemática da interioridade na
questão da dificuldade de se medir o tempo quando ele está relacionado à memória. A noção
de tempo histórico, enquanto tempo de calendário, transforma-se em obstáculo na transição da
consciência íntima do tempo para o tempo demarcado por medidas externas, fazendo a
medida íntima da memória fechar-se sobre si mesma. Assim, a memória existe e se mantém
em um tempo que não encontra correlação exata com o tempo do calendário.
Além das implicações do espaço e do tempo, a memória se estabelece na relação com
o outro. Ricoeur (2007, p.130) considera que foi Maurice Halbwachs quem, audaciosamente,
30
atribuiu a memória a uma entidade coletiva (um grupo ou uma sociedade), salientando que o
ato de lembrar exige a participação dos outros. Halbwachs, ao propor que ninguém é capaz de
lembrar sozinho, faz um apelo ao testemunho dos outros: a recordação, com o processo
pessoal do reconhecimento, sempre se depara com a memória dos outros, com lembranças
compartilhadas, com lembranças comuns (até mesmo com lugares visitados em comum). A
memória como entidade coletiva, como o resultado de interações de diferentes pessoas, em
um mesmo grupo, reforça a ideia de Ricoeur de que lembrar-se é fazer algo. Esse fazer
memória, segundo o filósofo, inscreve-se em uma rede de exploração prática do mundo, de
iniciativa corporal e mental, tornando os homens sujeitos atuantes. Ricoeur explica:
não nos lembramos somente de nós, vendo, experimentando, aprendendo, mas das
situações do mundo, nas quais vimos, experimentamos, aprendemos. Tais situações
implicam o próprio corpo e o corpo dos outros, o espaço onde se viveu, enfim, o
horizonte do mundo e dos mundos, sob o qual alguma coisa aconteceu. (2007, p.53)
A atuação do homem em uma rede de exploração prática do mundo permite o
delineamento da ponte da memória individual para a coletiva e dessa para a história. Ricoeur
orienta o caminho dessa ponte da seguinte forma: “não é apenas com a hipótese da polaridade
entre memória individual e memória coletiva que se deve entrar no campo da história, mas
com a de uma tríplice atribuição da memória: a si, aos próximos, aos outros” (2007, p.142).
Os traços diferenciais do fenômeno mnemônico que o separam da imaginação e do
conhecimento histórico se formulam nos pontos de obscuridade entre os limites desses
campos do saber. A classificação de cada campo distinto existe em decorrência da
necessidade de reconhecimento dos diferentes tipos de representação elaborados por uma
cultura. Entretanto, as interligações entre os três discursos mostram-se capazes de produzir
um entendimento mais amplo a respeito dos três, principalmente no espaço ficcional de
romances que revisitam o conhecimento histórico, por meio da narrativização do fenômeno
mnemônico.
31
II) Ausente anterior e ausente irreal
Da mesma forma que o conhecimento histórico e o fenômeno mnemônico se
aproximam, por compartilharem a problemática da representação do passado (da imagem
presente do ausente anterior), a memória se assemelha à imaginação por partilharem, ambas, o
enigma da representação criadora de uma imagem (mas elas se distinguem na medida em que
a primeira se refere a imagens do ausente anterior e a segunda, do ausente irreal). A
imaginação relaciona-se à ficção pela representação de imagens irreais, resultado da vertente
fantasiosa da imaginação. A ficção colocada como próxima da imaginação transforma a
literatura em um campo diferente da história, pois esta possui a alusão ao ausente anterior.
Porém, como literatura e história caracterizam-se em grande parte por seus processos de
escrita, a linha divisória entre ambas torna-se porosa, com pontos de difícil distinção.
A distinção entre literatura, como pertencente ao campo da imaginação, e história,
como referente à realidade, foi promovida na segunda metade do século XIX, em decorrência
de estudos deterministas e positivistas. De acordo com Hayden White (1985) e Steven Best
(1995), nesse período, os cientistas passaram a associar o conceito de verdade ao fato
empírico, e a entender a ficção como o oposto da verdade. O intuito era desvincular o estudo
da história de sua relação com a elaboração de narrativas e, assim, aproximá-lo do conceito de
ciência. O método científico era reconhecido como a forma mais segura e certa de se alcançar
a verdade. Para tornar a história objetiva e realista, o historiador deveria abandonar os
recursos e as técnicas do contador de histórias.
A ciência positivista procura entender a sociedade a partir de padrões
comportamentais naturais, buscando estabelecer para fenômenos sociais o mesmo
funcionamento de fenômenos da natureza. Assim, subentende-se haver, por trás dos fatos e
acontecimentos sociais, um sistema regulador que existe independentemente do conhecimento
humano a respeito de sua atuação. Para compreender a sociedade seria necessário, então, por
32
meio de uma pesquisa criteriosa, desvendar esse sistema. Segundo Jacques Le Goff (2003),
por trás desse sistema a noção de um sentido da história. Esse sentido se forma na crença
em grandes movimentos cíclicos, na ideia de um objetivo da história, situado fora dela,
consistindo na busca pela perfeição da sociedade.
Steven Best, em Modernity and Historical Vision (1995) aponta duas principais
suposições desse conceito moderno de sistema histórico progressivo: a primeira é a de um
tempo humano único e contínuo, como se diferentes culturas e nações pertencessem ao
mesmo processo histórico; a segunda é a da continuidade do tempo histórico como um
movimento teleológico.
3
Desse modo, para Best, o positivismo e o determinismo entendem
que:
como nas ciências naturais, o objetivo da explicação histórica é a previsão: dada uma
afirmação verdadeira sobre as condições empíricas, um evento deve ser logicamente
deduzido a partir de uma lei. Conhecendo as condições iniciais, pode-se reconhecer
que um evento teria de acontecer. Eventualidade e indeterminação são apagadas da
ação social; o apelo à irregularidade ou à variabilidade dos eventos é meramente um
sinal de fraqueza, um sinal da incapacidade do historiador em identificar leis básicas
mais profundas. (1995, p.13, grifo do autor, tradução nossa)
4
A história, como ciência, deveria, portanto, encontrar o sistema regulador dos fatos
históricos. Para isso, o historiador deveria focar os fatos como objetos completos, vendo-os da
forma mais objetiva possível, distanciando valores decorrentes de princípios ideológicos.
Assim, com o foco em fatos concretos, o historiador produziria um conhecimento certo,
objetivo e exato, como o das ciências biológicas e exatas. É o que Le Goff classifica como a
lenta marcha da história para a objetividade (2003, p.33).
3
Teleológico(a) é o adjetivo utilizado para designar conceitos elaborados a partir da pressuposição de que os
acontecimentos históricos se desenvolvem naturalmente em uma linearidade de organização causal e
progressiva, em direção a uma consequência logicamente dedutível (definições baseadas em leituras de
HUTCHEON, 1988, 1993).
4
Do original: like the natural sciences, the goal of historical explanation is prediction: given a true statement
about empirical conditions, an event is logically deducible from a law. Assuming knowledge of initial conditions,
we can say that the event had to occur. Contingency and indeterminacy are erased from social action; the
appeal to irregularity or variability of events is merely a sign of impoverishment, of the historian‟s inability to
identify deeper, underlying laws” (1995, p.13, grifo do autor).
33
A crença positivista considera que os fatos podem apresentar-se por si mesmos, como
se a simples e imparcial observação do historiador fosse capaz de detectar o sentido inerente a
eles. Paul Ricoeur entende essa crença como uma ilusão que contribui para a confusão entre o
fato histórico e o fato empírico das ciências experimentais da natureza. Segundo Ricoeur, é
ilusório acreditar que: “aquilo a que chamamos fato coincide com aquilo que realmente se
passou, ou até mesmo com a memória vívida que dele têm as testemunhas oculares, como se
os fatos dormissem nos documentos até que os historiadores dali os extraíssem” (2007,
p.189).
Essa visão sobre a história não avalia o aspecto discursivo da produção histórica.
Como Ricoeur salienta, a historiografia é um processo relacionado, do princípio ao fim, à
escrita. Esse processo impõe a pergunta: “será isso narrativa ou ciência? Ou algum discurso
instável entre as duas? (2007, p.355). Paul Ricoeur designa como poética
5
essa
indeterminação e a classifica como parente do indecidível entre memória e história. Hayden
White também aponta que a ilusão dos positivistas desvaloriza a construção poética do fato:
[Eles] não compreendiam que os fatos não falam por si mesmos, mas que o historiador
fala por eles, fala em nome deles, e molda os fragmentos do passado num todo cuja
integridade é na sua representação puramente discursiva. Os romancistas podiam
lidar apenas com eventos imaginários, enquanto os historiadores se ocupavam dos
reais, mas o processo de fundir os eventos, fossem imaginários ou reais, numa
totalidade compreensível capaz de servir de objeto de uma representação é um
processo poético. (1994, p.141, grifo do autor)
6
A atuação dos historiadores na elaboração dos fatos históricos é igualmente
apresentada por Le Goff: “o fato não é, em história, a base essencial de objetividade, ao
mesmo tempo porque os fatos históricos são fabricados e não dados e porque, em história, a
5
O termo poética é usado neste trabalho no sentido de elaboração narrativa literária, resultado da habilidade
artística humana de conceber mundos ficcionais (definições baseadas em leituras de WHITE, 1985;
http://pt.wikipedia.org/wiki/Poética; http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/P/poetica.htm).
6
Do original: “[they] did not realize that the facts do not speak for themselves, but that the historian speaks for
them, speaks on their behalf, and fashions the fragments of the past into a new whole whose integrity is in its
representation a purely discursive one. Novelists might be dealing with imaginary events whereas historians
are dealing with real ones, but the process of fusing events, whether imaginary or real, into a comprehensible
totality capable of serving as the object of a representation is a poetic process” (1985, p.125, grifo do autor).
34
objetividade não é a pura submissão aos fatos” (2003, p. 31). Ricoeur, novamente, alerta para
a singularidade da produção do fato: “o fato não é o acontecimento, mas o conteúdo de um
enunciado que visa a representá-lo” (2007, p.190). Os historiadores positivistas do século
XIX, porém, achavam que a objetividade encontrava-se na submissão aos fatos.
Os teóricos positivistas, designados como metódicos por Ricoeur (por se encarregarem
de uma história historicizante), tinham a ideia ingênua de que a história poderia ser dividida
em uma primeira fase, na qual o historiador apenas reuniria os documentos, para lê-los, e uma
segunda fase na qual ele os utilizaria, para apresentar os fatos do passado. Segundo Ricoeur
(2007), com a transferência dos critérios de qualificação das ciências naturais, a pretensão à
verdade da história passa a fazer sentido relativamente à pretensão à verdade de outras
ciências. Porém, como o passado é o objetivo referencial da pretensão da história, o que
credencia a verdade do discurso histórico é a prova documental. Reprova-se nos positivistas,
segundo Ricoeur, terem feito do passado morto, desligado do presente vivo, o campo fechado
do conhecimento histórico.
O termo historicismo é, para Le Goff, a melhor designação para o positivismo. O
historiador explica que: “no fim do século [XIX], assiste-se ao refluxo do historicismo na
Alemanha, enquanto triunfava em outros locais, com deformações positivistas (França,
Estados Unidos), ou idealistas (Itália, com Croce)” (2003, p.90). Há duas fontes para o
surgimento do historicismo: uma que considera o desenvolvimento histórico com base no
modelo de crescimento dos seres vivos; e outra que coloca a história como ciência da
sociedade, baseada em leis de desenvolvimento social.
Assim, Le Goff aponta que: “o historicismo esbarrou com o problema da existência de
leis em história, leis que têm um sentido, e com o problema de um modelo único de
desenvolvimento histórico” (2003, p.89). Para o historicismo, fazer história é dar uma
explicação suficiente aos acontecimentos, entendidos como existentes em decorrência de uma
35
sequência lógica na ordem cronológica dos acontecimentos. A partir dessa sequência, a
ciência histórica seria capaz de predizer o futuro.
Essa capacidade, estabelecida pela ciência positivista, fornece ao conhecimento
histórico uma utilidade, considerando-se a necessidade de aplicabilidade do saber. O objetivo
principal no reconhecimento dos padrões do sistema regulador da sociedade seria a
possibilidade de previsão do futuro. Encontrando-se um padrão comportamental universal,
seria possível prever como qualquer grupo social, em qualquer lugar e tempo, reagiria às
mudanças que tivesse de enfrentar. Seria possível, até mesmo, prever quais tipos de mudanças
iriam acontecer, e em qual ordem se apresentariam.
A Primeira Guerra Mundial, porém, destruiu esse prestígio da história, segundo
Hayden White (1985). O estudo da história não serviu para alertar a população sobre uma
guerra de tamanha proporção, tampouco serviu para fornecer à sociedade estratégias de ão
durante o período do conflito. Assim, colocou-se como duvidosa a finalidade do
conhecimento histórico.
Dentro do paradigma de legitimação do conhecimento, um campo do saber não
poderia ter sua aplicabilidade questionada. Jean-François Lyotard (1993b), em seu estudo
sobre as metanarrativas legitimadoras, descreve a grande narrativa de orientação francesa,
cuja função seria a de validar o conhecimento. Baseada na ideia de que a educação precisa
oferecer resultados de emancipação para a nação como um todo, essa narrativa possui como
sujeito o herói da liberdade. Segundo Lyotard, o século XX privilegiou essa vertente, em que
a validação do conhecimento está ligada a uma finalidade.
Dessa forma, o valor de produção da ciência advém dos benefícios que o
conhecimento originado potencialmente trará à sociedade. O investimento aplicado nesse
conhecimento precisa fornecer algum tipo de retorno. Nesse sentido, a história não teria
finalidade se fosse apenas o estudo do passado pelo passado. A validade da história estaria em
36
sua capacidade de prever o futuro. Esta é a razão pela qual o estudo histórico perdeu prestígio
após a Primeira Guerra Mundial e teve seus métodos questionados.
O fim da Segunda Guerra Mundial legou aos intelectuais a necessidade de entender
qual tipo de sociedade possibilitou a ocorrência dos ferozes combates e genocídios. A busca
por compreender a organização social como constructo de representações culturais não ajudou
o historiador a encontrar sua posição nos estudos científicos, nem nas produções artísticas. A
dificuldade em localizar essa posição foi acompanhada pela adicional problemática
apresentada ao historiador de detectar o seu material de estudo e o seu propósito. Hayden
White afirma que:
Como o historiador não reivindica um meio de conhecer unicamente a sua própria
época, isto implica uma disposição, da parte do historiador contemporâneo, de chegar
a um acordo com as técnicas de análise e representação que a ciência moderna e a arte
moderna têm oferecido para a compreensão das operações da consciência e do
processo social. Em resumo, o que o historiador pode reivindicar é ser uma voz no
diálogo cultural contemporâneo na medida em que considera seriamente o tipo de
pergunta que a arte e a ciência da sua própria época o obrigam a fazer quanto à
matéria que ele decidiu estudar. (1994, p.54, grifo do autor)
7
White acredita que o historiador precisa se adequar aos questionamentos levantados
pelas ciências e pelas artes contemporâneas, ajustando-se não às questões apresentadas,
como também às técnicas de análise e representação de diferentes campos do conhecimento.
O historiador deve, ao aceitá-los, abrir espaço para uma história que não se faz sozinha e não
se configura como o encadeamento causal natural de fatos isolados. White alerta os leitores
para o seguinte aspecto: O historiador não presta nenhum bom serviço quando elabora uma
continuidade especiosa entre o mundo atual e o mundo que o antecedeu. Ao contrário,
7
Do original: since the historian claims no way of knowing uniquely his own, this implies a willingness on the
part of the contemporary historian to come to terms with the techniques of analysis and representation which
modern science and modern art have offered for understanding the operations of consciousness and social
process. In short, the historian can claim a voice in the contemporary cultural dialogue only insofar as he takes
seriously the kind of questions that the art and science of his own time demand that he ask of the materials he
has chosen to study (1985, p.41, grifo do autor).
37
precisamos de uma história que nos eduque para a descontinuidade de um modo como nunca
se fez antes; pois a descontinuidade, a ruptura e o caos são o nosso destino” (1994, p.63).
8
Os acontecimentos do século XX, segundo Le Goff, transformaram o alto crédito
conferido ao progresso científico: “a crença num progresso linear, contínuo, irreversível, que
se desenvolve segundo um modelo em todas as sociedades, já quase não existe” (2003, p. 14).
De acordo com Le Goff, em vez do fato, privilegiado na história do século XIX por meio do
documento e da história linear, no século XX privilegia-se o dado histórico, por meio da
percepção de problemas que fazem uma história descontínua.
O fim da Segunda Guerra Mundial trouxe outros desafios para o campo da história,
conforme afirma Le Goff, exigindo dela a resposta aos pedidos dos povos, das nações, dos
estados, que nela esperam encontrar elementos da identidade individual e coletiva, procurados
com angústia. Essa busca da identidade por meio da história é, paradoxalmente, a causa da
crise da história. Le Goff acredita que:
hoje, o paradoxo da ciência história é que, justamente quando, sob suas diversas
formas (incluindo o romance histórico), ela conhece uma popularidade sem par nas
sociedades ocidentais, e logo quando as nações do Terceiro Mundo se preocupam,
antes de mais nada, com dotar-se de uma história [...] se a história se tornou, portanto,
um elemento essencial da necessidade de identidade individual e coletiva, logo agora a
ciência histórica sofre uma crise (de crescimento?): no diálogo com as outras ciências
sociais, na expansão considerável de seus problemas, métodos, objetos, ela pergunta
se não começa a perder-se. (2003, p.16)
A crise da história é vista por Le Goff como consequência do diálogo com outras
ciências. A história enfrentaria dificuldades, então, por não estar preservada e isolada em seu
campo. Não se pode esquecer que Le Goff preza a ciência histórica. Mesmo não acreditando
no ideal positivista, ainda assim, ele espera que o conhecimento histórico exista, de certa
forma, credenciado pela ciência. Por isso, para ele, a história estaria se perdendo, ao dialogar
com outras áreas. Entretanto, em relação a algumas ciências, por exemplo, a antropologia, ele
8
Do original: the historian serves no one well by constructing a specious continuity between the present world
and that which preceded it. On the contrary, we require a history that will educate us to discontinuity more than
ever before; for discontinuity, disruption, and chaos is our lot (1985, p.50).
38
afirma que a interdisciplinaridade traz o aparato científico necessário para sustentar a história
não-linear e descontínua. Para Le Goff, a necessidade de abertura da história é ao mesmo
tempo benéfica para a ampliação do campo histórico e um risco à integridade desse campo.
Se, na opinião de Le Goff, a história enfrenta problemas teóricos no fim do século XX
por se aliar a outros campos do saber, Hayden White aponta a primeira metade do século XIX
como o período de ouro do estudo histórico, justamente por apresentar uma história
construída a partir da interpretação conjunta de diversos campos do conhecimento, na busca
pela compreensão acerca dos eventos extraordinários da Revolução Francesa. Pensadores
dessa época declaravam que a função da história era tornar o homem consciente de sua
responsabilidade sobre o próprio futuro. Eles não entendiam a história como responsável por
encontrar um sistema universal regulador independente da atuação humana, e queriam
alcançar o entendimento de que a condição então vivida pelo homem era, em parte, resultado
de escolhas humanas, condição passível de ser alterada por ões humanas. White avalia essa
como a melhor resposta para a questão relativa ao porquê de se estudar o passado, por ser
capaz de indicar o redirecionamento da história demandado pelas situações criadas pelos
acontecimentos do século XX. Para White, a história não enfrenta uma crise, apenas exige-se
dela um redirecionamento. Ainda segundo White, o redirecionamento pode definir a história
como uma forma de compreender o papel do indivíduo na formação do futuro. Os conceitos
de passado e futuro inerentes a essa história resultam em um conceito de presente repleto de
elementos dinâmicos, sujeito a mudanças inevitáveis, mas, ao mesmo tempo, com atuação
humana decisiva.
A proposta contemporânea de história, apresentada por White, compreende a
participação humana como elemento decisivo de criação dos eventos históricos, no sentido de
construção de representações, não de ações intencionais sobre os acontecimentos. A partir da
compreensão da história como um processo de elaboração de representações, apreende-se
39
melhor como o homem enxerga o próprio homem dentro de uma sociedade, como essa
sociedade é organizada de acordo com essas representações, como a cultura se forma e como
o homem atribui significado à sua experiência dentro dessa cultura.
A maior conquista da história, no final século XX, para Paul Ricoeur, é a mobilidade
do olhar do historiador nos “jogos de escalas” entre macro e micro-história. Essas são duas
formas de análise: a micro-história, abordando vilarejos, famílias, indivíduos, cria o efeito de
credibilidade por proximidade; a macro-história, relacionada às grandes narrativas, sagas,
lendas fundadoras, atribui amplidão ao olhar, causando um afastamento. A noção de variação
de escalas insere a ideia-chave de se poder ver o anteriormente oculto: a mudança de escalas
não mostra os mesmos encadeamentos, mas conexões difíceis de serem percebidas em um
nível. Essa é a ausência de comensurabilidade das dimensões: ao mudar de escala, ao
contrário de se ver o conhecido em estatura maior ou menor, notam-se as relações entre
uma e outra forma de olhar. Nas considerações de Ricoeur, o mais valioso é o jogo de escalas
e não simplesmente a substituição de uma escala em favor de outra, pois o jogo é capaz de
mostrar o que não se veria com o olhar fixo em apenas uma escala.
O jogo de escalas não é realizado apenas pela história contemporânea. Nos romances
estudados, Beloved e Desmundo, ele ocorre no espaço ficcional pela interligação entre os
discursos histórico e literário (e mnemônico). Nesses romances, o debate em torno da questão
da proximidade entre literatura e história forma-se, também, na tênue linha de divisão entre
ambas. Essa linha, sem definição precisa, é entendida, nos romances como a oportunidade de
estabelecimento de uma discussão acerca da formação do conhecimento histórico.
40
II.a) A estrutura textual da história
Os procedimentos de representação por meio da produção escrita constroem pontes de
interligação entre os discursos do conhecimento histórico e da composição literária. Segundo
Paul Ricoeur, essas pontes levam à confusão de um discurso com o outro; isto é, ambos
passam a dividir a seguinte problemática: “como manter a diferença de princípio entre a
imagem do ausente como irreal e a imagem do ausente como anterior? O intrincamento da
representação histórica e da ficção literária repete [...] aquela mesma aporia que parecera
atormentar a fenomenologia da memória” (2007, p.250).
A elaboração poética do fato, realizada pelos historiadores, é o principal meio de
aproximação entre a literatura e a história. Isso acontece porque, como Ricoeur aponta, “a
representação no plano histórico não se limita a conferir uma roupagem verbal a um discurso
cuja coerência estaria completa antes de sua entrada na literatura, mas que constitui
propriamente uma operação que tem o privilégio de trazer à luz a visada referencial do
discurso histórico” (2007, p.248).
Considerando esse caráter discursivo da produção histórica, Hayden White (1987)
afirma que elementos narrativos compõem o fazer histórico, atribuindo, assim, a unidade do
discurso histórico ao uso de princípios morais e estéticos narrativos. A organização dos
eventos históricos em uma totalidade, objeto originado a partir de representações, torna
poético o procedimento histórico. White encontra na estrutura narrativa a explicação para a
operação que traz o referencial do discurso histórico.
A narrativa é apresentada por White como forma legítima de transmissão do
conhecimento, no capítulo The Value of Narrativity in the Representation of Reality, em
The Content of the Form (1987). Segundo o historiador, uma aparente necessidade
universal de dar aos eventos um aspecto de narratividade. Para isso, os fatos precisam mostrar
uma estrutura de significado. As relações entre os eventos, que fornecem significado aos
41
acontecimentos em uma determinada cultura, não se configuram naturalmente por sua
existência em uma sequência cronológica.
A história em anais, um estilo medieval do escrever histórico, utilizado por White
como exemplificação, apresentava o registro histórico em uma lista, de ordem cronológica,
com as datas de cada ano e os eventos ocorridos naquele ano escritos diante da data. Não ,
nesse tipo de texto histórico, o componente narrativo: os eventos acontecem isoladamente,
sem relações causais interligando-os. Por isso, espaços deixados em branco nas datas em
que nada aconteceu. Mas o registro é coerente, pois apresenta a sequência completa dos anos:
os espaços em branco referem-se aos eventos, não às datas.
Dessa maneira, a história em anais não possui plot, não possui uma estrutura de
relações que identifiquem os eventos como parte de um todo. Essa estrutura é responsável por
fornecer significado aos eventos. Eles passam a fazer sentido quando são colocados em uma
totalidade e assumem uma função dentro dessa totalidade. Para o historiador moderno, o plot
tem de ser apresentado como natural e inerente aos eventos, como se ele fosse encontrado
pelo historiador, ao passo que, segundo White, o plot foi, ao contrário, imposto aos eventos
por meio de cnicas narrativas utilizadas pelo próprio historiador. Porém, para o historiador
moderno admitir a imposição humana no processo de significação da história seria admitir a
ideologia existente por trás disso.
O historiador moderno procura preencher todos os espaços considerados vazios na
história. Para esse historiador, o autor dos anais deixa fendas na história, ao anotar a data, mas
não um acontecimento ligado a essa data. Há uma necessidade, na modernidade, de se colocar
os eventos seguindo a ordem de importância que ocupam em uma dada cultura de um grupo
específico. Ao fazer isso, escreve-se a própria história. Esse processo torna possível a
narrativa representacional de fatos reais. White faz a seguinte avaliação: “o pesquisador
moderno procura completude e continuidade na ordem dos eventos; o autor dos anais as
42
encontra na sequência dos anos. Qual deles possui a expectativa mais „realista‟?” (1987, p.9,
tradução nossa).
9
O autor dos anais considera a continuidade e a completude do que registra decorrentes
da ordem sequencial dos anos. O historiador moderno quer encontrar essa continuidade e
completude na ordem causal dos eventos, por isso julga os espaços em branco, deixados nos
anais, como lacunas na história. Assim, White indica os princípios válidos para a história
moderna: “o valor atrelado à narratividade na representação de eventos reais provém de um
desejo de que os eventos reais apresentem a coerência, integridade, completude e closure de
uma imagem que é e só pode ser imaginária” (1987, p.24, tradução nossa).
10
Os princípios de coerência, integridade, completude e closure
11
definem o conceito de
história elaborado na modernidade. Esses são os princípios que norteiam o entendimento do
homem sobre sua experiência social. Eles são os componentes, por exemplo, do conceito de
formação de nação, elaborado no século XIX. Admite-se o desenvolvimento de uma nação
como um processo coerente, íntegro, completo e com um final conhecido. O final conhecido é
a nação agora existente e, sendo assim, esse é um processo completo. Trata-se também de um
processo íntegro porque cada evento colocado na história dessa formação nacional está
relacionado a outros, ou seja, não eventos perdidos, sem relação com eventos anteriores e
posteriores. Dessa forma, trata-se, ainda, de um processo coerente porque os eventos
obedecem a uma ordem, estabelecendo uma relação de coerência e continuidade.
9
Do original: the modern scholar seeks fullness and continuity in an order of events; the annalist has both in
the sequence of years. Which is the more „realistic‟ expectation? (1987, p.9).
10
Do original: this value attached to narrativity in the representation of real events arises out of a desire to
have real events display the coherence, integrity, fullness, and closure of an image that is and can only be
imaginary(1987, p.24).
11
Closure refere-se à estrutura do texto literário que determina um ponto final, um ponto de chegada almejado
ou esperado desde o princípio, por meio de relações lógicas causais apresentadas ao leitor. O desfecho do texto é
antecipado e esperado pelo leitor, em razão das marcas textuais anteriores que o orientam a chegar em uma
conclusão lógica final (definições baseadas em leituras de WHITE, 1987).
43
O conceito de nação do século XIX está estritamente ligado ao conceito de história
desse período. Segundo Jacques Le Goff as “duas ideias que contribuem em primeiro plano
para a paixão pela história, no século XIX” são “a inspiração burguesa a que estão então
ligadas as noções de classe e democracia e o sentimento nacional” (2003, p.73). A burguesia
impõe ao sentimento nacional uma ideia de unidade e coesão que cria um novo sentido à
nação, como aponta Le Goff: a ideia de nação vem desde a Idade Média, mas a religião da
pátria é uma novidade que data da Revolução Francesa” (2003, p.74). A “religião da pátria”
era difundida por meio do ensino escolar de história encarregado de fazer as massas
conhecerem as glórias nacionais dos campos de batalha, o sangue e o esforço despendidos na
construção da nação.
A ideia de nação una estava ligada a uma história una e total, referente a uma
humanidade una, como afirma Paul Ricoeur: “a referência à nação foi mesmo tão forte que os
representantes da grande escola histórica alemã não cessaram de escrever a história do ponto
de vista da nação alemã. O mesmo se deu na França, com Michelet em particular. O paradoxo
é enorme: a história é declarada mundial por historiadores patriotas” (2007, p.317). Dessa
forma, estão interligadas as noções de nação, de história universal e de humanidade total.
A ideia de história universal e total origina-se dessa visão moderna, com bases no
empirismo, convicto de que a realidade não é observável e perceptível, mas é também
coerente em sua estrutura. Acredita-se, assim, que todos os acontecimentos desde o início de
uma nação, por exemplo, formam uma cadeia de efeitos, como se todos estivessem ligados,
como se a realidade se organizasse de tal forma. Essa visão não considera a impossibilidade
de se levar em conta todos os acontecimentos ocorridos durante séculos. Deixa-se de lado,
ainda, a impossibilidade de todos os acontecimentos estarem relacionados a um mesmo fim,
levando para o mesmo ponto final, de chegada. A organização e a seleção de eventos são
44
impostas pelo historiador; isto é, ele organiza a realidade de acordo com os princípios de
coerência, integridade, completude e closure.
O processo de atribuição de plot aos eventos históricos, que confere narratividade ao
discurso histórico, sustenta a progressividade da história total. Hayden White, na sua obra
Tropics of Discourse (1985), diferencia o material, o ponto de partida, de dois tipos de texto,
considerando a natureza dos eventos originários desses textos: o texto histórico e o texto
ficcional. O historiador preocupa-se com eventos definidos por dados de tempo e espaço
específicos, eventos que podem ser observados, percebidos, vistos. os poetas, romancistas,
autores de peças teatrais preocupam-se não com esses eventos, mas também com eventos
imaginados, hipotéticos ou inventados. Essa diferença de material inicial, entretanto, não
altera as formas e objetivos de ambos os textos. O processo poético de elaboração de uma
imagem verbal da realidade é realizado em ambos. As técnicas discursivas são as mesmas, na
ficção do romancista e no que White denomina ficções da representação factual: o que nos
deveria interessar na discussão da literatura do fato” ou, como preferi chamar, da “ficção da
representação factual”, é o grau em que o discurso do historiador e do escritor imaginativo se
sobrepõem, se assemelham ou se correspondem mutuamente” (1994, p.137).
12
Para White, aceitar a narratividade do discurso histórico não significa reduzi-lo, nem
privá-lo de sua função de representar o passado. Objetiva-se, por meio dessa aceitação,
problematizar as representações históricas ideológicas, colaborando, assim, para a
conscientização de que a história, por ser apresentada por meio da linguagem, é um processo
de construção linguística e ideológica. Não se trata, simplesmente, do questionamento sobre a
verdade da história ou o irreal da ficção; trata-se do entendimento de que, por serem
discursos, ambas são construídas por métodos semelhantes, e estes, por si , não conferem
12
Do original: “What should interest us in the discussion of “the literature of fact” or, as I have chosen to call it,
the fictions of factual representation is the extent to which the discourse of the historian and that of the
imaginative writer overlap, resemble, or correspond with each other(1985, p.121).
45
nem a uma nem a outra a exclusividade de se referir à realidade ou ao imaginário. Paul
Ricoeur entende essa problemática da seguinte forma:
o problema está posto e atormentará toda uma filosofia literária da história: que
diferença separa a história e a ficção, se ambas narram? A resposta clássica, segundo a
qual apenas a história relata o que aconteceu efetivamente, não parece contida na ideia
de que a forma narrativa tem enquanto tal uma função cognitiva. A aporia, que
podemos chamar de aporia da verdade em história, é evidenciada pelo fato de que os
historiadores constroem frequentemente narrativas diferentes e opostas em torno dos
mesmos acontecimentos. (2007, p.253)
Mas Ricoeur deseja ultrapassar a linha de combate formada em razão desse problema
da diferenciação entre a história e a ficção. Essa linha separa de um lado os historiadores
franceses, que se queixam da oposição provisória entre história-narrativa e história-problema,
e de outro lado os historiadores de língua inglesa, que elevaram a narrativa à posição de
explicação exclusiva das relações causais. A história-narrativa criticada pelos franceses é a
história positivista. Esses historiadores consideram a preocupação excessiva dos positivistas
com o fato uma característica geradora de um alto teor maléfico de narratividade na história.
Para os franceses, a história positivista possuía uma base narrativa dos acontecimentos que se
tornava problemática ao desenvolvimento do conhecimento histórico. A este respeito, Ricoeur
aponta que: “criou-se, assim, uma alternativa aparente que faz da narratividade ora um
obstáculo, ora um substituto para a explicação” (2007, p.251).
A narrativa como substituto para a explicação é o que a escola narrativista, dos
historiadores de língua inglesa, defende. Para essa escola, o caráter configurante da narrativa
da história positivista foi trazido ao primeiro plano em detrimento do caráter episódico
(relativo aos fatos que singularizam a história), o único levado em conta pelos historiadores
dos Annales (o movimento dos historiadores franceses). Os narrativistas e os estudiosos dos
Annales estavam levando em consideração diferentes aspectos da história do século XIX, por
isso surgiram as opiniões contrárias. Para a escola narrativista, compreender uma narrativa é,
46
consequentemente, explicar os acontecimentos que ela integra e os fatos por ela relatados.
Dessa forma, Ricoeur resume:
se, segundo os defensores dos Annales, a narrativa constitui obstáculo à história-
problema enquanto coletânea de acontecimentos pontuais e forma tradicional de
transmissão cultural, segundo a escola narrativista norte-americana, ela é digna de
entrar em competição com os modos de explicação que as ciências humanas teriam em
comum com as ciências da natureza. De obstáculo à cientificidade da história, a
narrativa se transforma em seu substituto. (2007, p.252)
Pensar a narrativa como uma estrutura de explicação da história pode ser
problemático, segundo Ricoeur, já que da teoria literária veio a constatação da disjunção entre
a estrutura interna do texto e o real extratextual. Para Ricoeur, os efeitos dessa dissociação
sobre a narrativa de ficção podem parecer discutíveis sem serem desastrosos, mas “eles
podem ser devastadores para a narrativa histórica, cuja diferença com a narrativa de ficção é
baseada na visada referencial que a perpassa e que é apenas a significância da representação”
(2007, p.259).
A fim de que esse problema da referencialidade extratextual do discurso histórico não
se torne tão devastador para a epistemologia histórica, Ricoeur estabelece a diferença entre
representação e representância.
13
Porém, ele continua a considerar a estrutura narrativa de
fundamental importância para a história. Ricoeur entende a narrativa como um meio de
realizar o jogo entre escalas, entre macro e micro-história, e isso é, para ele, a maior conquista
do historiador do século XX: “a integração narrativa entre estrutura e acontecimento reforça
assim a integração narrativa entre fenômenos situados em níveis diferentes nas escalas de
duração e de eficiência” (2007, p.258). Ricoeur afirma que cabe à narrativa entrelaçar os
planos entre estrutura histórica e acontecimento para produzir o jogo de escalas.
Por considerar a importância da estrutura discursiva da narrativa para a história,
Ricoeur reconhece em Hayden White um pensador preocupado em ampliar o campo de
13
Ricoeur estabelece essa diferença ao considerar “representância” a capacidade, exclusiva, do discurso histórico
de representar o passado. A representação, para Ricoeur, está relacionada ao processo significativo de qualquer
discurso; já a representância certifica o discurso histórico de seu referente extratextual passado.
47
consciência de seus leitores. Segundo Ricoeur: “a maior contribuição para a exploração dos
recursos propriamente retóricos da representação continua a ser a de Hayden White. [...] O
debate aberto pelo autor [...] [trata-se] de uma poética cujo tema é a imaginação, mais
precisamente a imaginação histórica” (2007, p.263).
Ricoeur salienta ainda que Hayden White considera o plot, a composição da trama,
como a forma verbal da imaginação histórica. Para chegar a essa conclusão, White analisou os
textos de historiadores do século XIX (Michelet, Ranke, Hegel, Marx, entre outros) que
deram a forma de discurso à imaginação histórica, levando em conta a retórica dos tropos.
Assim, ele coloca a narrativa histórica e a narrativa de ficção sob o ângulo da imaginação da
linguagem. Dessa forma, ambas pertencem a uma única e mesma classe, a das “ficções
verbais”, e, com isso, elabora-se a ideia de estrutura profunda da imaginação.
A originalidade do projeto de White constitui um fator muitas vezes relegado a
segundo plano por críticos que discordam de suas ideias, mas é altamente valorizada por
Ricoeur. Entretanto, Ricoeur faz uma ressalva ao trabalho de White considerando que ele se
fechou em um impasse “ao tratar das operações de composição da intriga como modos
explicativos, tidos, na melhor das hipóteses, como indiferentes para os procedimentos
científicos do saber histórico, na pior, como substituíveis por esses últimos” (2007, p.266).
Ricoeur não pretende posicionar a estrutura da narrativa como o único modo
explicativo da história, desconsiderando, assim, os procedimentos científicos. Ele acredita que
apesar do entrelaçamento entre história e narrativa: torna-se urgente especificar o momento
referencial que distingue a história da ficção. Ora, essa discriminação não pode ser feita sem
sair do âmbito das formas literárias” (2007, p.266).
Ainda segundo Ricoeur, o trabalho de White não leva em conta o processo operatório
histórico completo, com todas as suas fases. White descarta a fase documental e a fase
explicativa/compreensiva, entendidas pelo filósofo como antecessoras fundamentais da última
48
fase, a da representação. Hayden White analisa, em seus estudos, apenas a última fase. Assim,
na opinião de Ricoeur, White exagera a relatividade de toda representação dos fenômenos
históricos. Segundo o filósofo, a crítica ao realismo desenvolvida por White contribui, ao
contrário, para fortalecer a demanda de verdade vinda de fora do discurso (não para mostrar a
opacidade do acontecimento). Ricoeur defende que é necessário resistir: “à tentação de
dissolver o fato histórico na narração e esta numa composição literária indistinguível da
ficção, quanto é preciso recusar a confusão inicial entre fato histórico e acontecimento real
rememorado” (2007, p.189).
Orientado pela escola dos Annales, Jacques Le Goff desconfia da aproximação entre
literatura e história elaborada por Hayden White. O historiador francês afirma que: “Hayden
White não fez nada além de descobrir a relativa unidade de estilo de uma época” (2003, p.36).
Por compreender a história-narrativa como característica do positivismo, e não da história, Le
Goff afirma que:
onde Hayden White vê uma espécie de natureza intrínseca, a situação histórica de
uma disciplina; podemos dizer, em resumo, que a história, intimamente misturada até
o fim do século XIX com a arte e com a filosofia, se esforça (o que consegue
parcialmente) por se tornar mais específica, técnica e científica e menos literária e
filosófica. (2007, p. 38)
A substituição da explicação científica pela narrativa, em história, é inaceitável para
Le Goff. Ele demonstra a sua preocupação acerca dessa substituição ao comentar as ideias de
Paul Veyne. Na opinião de Le Goff, a história feita de intrigas, da forma que Paul Veyne a
qualifica (como um conto de acontecimentos verdadeiros”), assemelha-se a um romance:
“essa noção tem, a meu ver, o defeito de fazer crer que o historiador tem a mesma liberdade
que o romancista e que a história não é uma ciência, mas por mais precaução que Veyne
tome um gênero literário; enquanto ela me parece como uma ciência” (2003, p. 39).
Embora a resistência dos historiadores franceses à explicação narrativa venha das
características da história do século XIX, o fascínio pela aproximação entre história e
49
literatura vem exatamente do fato de elas estarem interligadas. Os historiadores do século
XIX, entretanto, não queriam aceitar essa interligação, e esforçavam-se para afirmar que
apresentavam o fato como realmente tinha acontecido, sem suas próprias intervenções. Ora,
apontar estruturas textuais mostrando a impossibilidade de se ter acesso ao fato como
realmente se passou não é desmerecer a história. As ideias de White não pretendem depreciar
o conhecimento histórico. Seu intuito é entendê-lo melhor, contribuindo para a formação de
leitores e destinatários conscientes. As ideias de White são ainda interessantes porque deixam
a divisão entre as áreas difusa, abrindo espaço para que a literatura também possa ser
entendida de maneira diferente. Além disso, os conceitos estudados por White não perdem
valor por se referirem ao tipo de história do século XIX (como afirma Le Goff), pois, afinal,
foi exatamente essa história que passou por uma revisão no século XX.
II.b) A história como linguagem
As discussões sobre o limite de contornos questionáveis entre história e literatura
participam de um discurso maior da pós-modernidade
14
sobre a imposição não-natural de
limites que a representação estabelece na construção cultural das sociedades. O
questionamento a respeito da formação do conhecimento histórico pertence ao quadro teórico
de debates, intensificado a partir da década de 1970, acerca do período pós-moderno, cujo
início pode ser demarcado com o fim da Segunda Guerra Mundial, segundo Perry Anderson,
em As origens da pós-modernidade (1999). Na pós-modernidade, as organizações sociais, as
instituições, os campos do conhecimento são pensados como representações narrativas.
Assim, o problema da representação que atormenta a memória, a história, a ficção amplia-se e
14
O termo “pós-modernidade” será utilizado deste ponto em diante para designar um período histórico de
mudanças sociais, culturais, econômicas, políticas, ocorridas após a Segunda Guerra Mundial; a palavra “pós-
modernismo” será empregada para assinalar a produção artística desse período; e os termos “pós-moderno(s)” e
“pós-moderna(s)” serão usados como adjetivos do que se refere tanto à “pós-modernidade” quanto ao “pós-
modernismo” (definições baseadas em leituras de ANDERSON, 1999; EAGLETON, 2003; FERNANDES,
2009).
50
alcança toda a organização cultural e social. Desse ponto de vista, as sociedades organizam-se
e compreendem-se por meio de representações.
A conscientização, estimulada por Hayden White em seus leitores, de uma história que
não se configura como o encadeamento causal natural de fatos isolados, mas como
organização e seleção de eventos impostas pelo historiador, é a mesma que teóricos pós-
modernos pretendem difundir em relação a outras áreas do conhecimento. Para uma vertente
do pensamento pós-moderno, a realidade é vista como o resultado da organização de
elementos segundo os princípios de coerência, integridade, completude e closure; autorizados
por vozes centrais legitimadas por mecanismos sociais. Esses princípios regem uma ideia de
progresso, fundamentada em uma linearidade teleológica. Essa linearidade contribui para a
elaboração do conceito de história total, englobando os acontecimentos sequenciais
responsáveis pelo desenvolvimento progressivo da humanidade. Na história total, os
momentos históricos são privilegiados como resultados únicos da sequência causal de
eventos. De acordo com Paul Ricoeur (2007), esse conceito de história, ligado à modernidade,
implica o fortalecimento da consciência histórica sobre o momento em que se vive. Por isso,
segundo Ricoeur, a burguesia do século XIX demonstrava preocupação com a disciplina
histórica, pois pretendia comprovar que o momento histórico por ela vivido, como grupo
central dominante, era o resultado singular e positivo do progresso histórico.
O pós-modernismo alude, então, a um estágio questionador dos princípios de
legitimação da modernidade. A narrativa pós-moderna procura expor as características de
coerência, integridade, completude e closure como não naturais: elas não organizam a
realidade naturalmente, tampouco são transpostas espontaneamente para a história, para a
literatura e para outras instâncias sociais. Elas são impostas culturalmente e precisam ser
identificadas dessa forma. Essa identificação colabora para a conscientização de que na
história, o esforço em fornecer completude aos eventos, possível pela utilização dos
51
elementos estruturais narrativos, por si só, não significa que o historiador consiga preencher
todas as possíveis ausências históricas.
A proposta contemporânea de história, apresentada por Hayden White (1985; 1987), e
a relação entre literatura e história, formulada por Linda Hutcheon (1988; 1993), entendem a
participação humana como elemento decisivo de criação dos eventos históricos. A atuação
humana volta-se, assim, para construção de representações que orientam e explicam a
organização da história, apresentada por meio do conhecimento histórico. O desempenho do
homem não é visto apenas como intencional, no sentido de uma atuação feita na esperança de
um resultado lógico causal, nem como unicamente submetido a uma causalidade sistemática,
de eventos que se desenrolam de maneira gica independente da participação humana. Por
isso, Steven Best tece as seguintes considerações:
o pós-moderno enfatiza na história a probabilidade, a eventualidade, a pluralidade e a
indeterminação, opondo-se firmemente a reduzir, de antemão, a probabilidade à
regularidade e a leis universais. Teóricos pós-modernos rejeitam tanto visões idealistas
da história como o resultado de intenções humanas, quanto visões deterministas da
inevitabilidade de ações e eventos. (1995, p.24, tradução nossa)
15
No contexto de valorização da história total, progressiva, gica e causal, pela
burguesia do século XIX, surge o romance histórico tradicional, associado ao processo de
fortalecimento e autorização do poder dessa burguesia. Como parte desse processo, os
escritores que representavam a ascensão da burguesia pretendiam criar um imaginário
nacional que aceitasse a acepção teleológica de formação da nação liberal. No auge dos
estudos cientificistas do século XIX, quando a base empírica e naturalista dos fatos sustentava
a disciplina histórica com a noção de história total, humanidade una e formação nacional,
aparece o romance histórico. Segundo Jacques Le Goff (2003), o romance histórico forma-se
em meio a essa ideologia do progresso, usada como justificativa para os esforços científicos e
15
Do original: postmodern accounts of history emphasize chance, contingency, plurality, and indeterminancy,
and firmly oppose the a priori reduction of change to regularity and universal law. Postmodern theorists reject
both idealist emphases on history as the outcome of human intentionality as well as determinist emphases on the
inevitability of actions and events” (1995, p.24).
52
responsável por fornecer à história uma orientação teleológica e um objetivo de valorização
do futuro. A ideia de um processo natural de eventos formando uma nação homogênea fez os
artistas buscarem a identidade como uma instância nacional que precisa ser remontada desde
as suas origens. Dessa forma, o Romantismo voltou-se para o passado na procura pelo
nascimento e desenvolvimento da identidade nacional. O gosto romântico pelo passado
alimentou os movimentos nacionalistas europeus do século XIX.
Esse conceito de nação, de ordem cientificista, encontrou na literatura uma forma de
auxílio na construção de uma identidade nacional. O romance histórico tradicional forneceu
meios culturais para o desejo burguês de consolidação de ideias teleológicas de
desenvolvimento, de formação progressiva de um povo, de um país, de uma nação. Já a
produção literária pós-moderna que retoma aspectos históricos, como Beloved e Desmundo,
vem questionar tanto o conceito histórico total de nação quanto o romance histórico
tradicional ligado a esse conceito. Assim, tanto a história é questionada, por meio de um
conceito específico ligado a ela, quanto a literatura, por meio de um gênero específico.
Beloved desafia a unidade e completude que a Guerra de Secessão representa na história dos
Estados Unidos. Desmundo troca a representação do nascimento da nação brasileira, em sua
colonização, pela decadência da vida de uma jovem. A elaboração narrativa desses romances
coloca em xeque os princípios norteadores do conceito de nação referentes à totalidade, à
completude, à integridade, à coerência, questionando o que foi oficialmente estabelecido.
Mas esse objetivo dos romances históricos contemporâneos, de problematizar os
processos de formação do conhecimento histórico, diluindo as fronteiras do limite entre
história e literatura, nem sempre é bem visto. Jacques Le Goff descarta o romance como uma
forma séria de interrogação a respeito de teorias sobre campos do conhecimento. Le Goff
expressa sua opinião da seguinte forma: “devo acrescentar que tenho muitas vezes prazer em
ler quando são bem feitos e escritos os romances históricos e que reconheço em seus
53
autores a liberdade de fantasia que lhes é devida. Mas naturalmente que, se me pedirem a
minha opinião de historiador, não identifico com história as liberdades ali tomadas” (2003,
p.50). Dessa forma, Le Goff estabelece e marca a divisão entre literatura e história, não
admitindo a fusão entre as duas. Porém, a ficção pós-moderna baseada na história, e
denominada por Linda Hutcheon (1988; 1993) como “metaficção historiográfica”, mostra que
exatamente a contestação dos limites entre os campos do conhecimento promove um melhor
entendimento da história.
Paul Ricoeur (2007) critica o pós-modernismo em relação à polissemia en abîme do
discurso e à autorreferencialidade das construções linguísticas que tornam impossível a
identificação de toda e qualquer realidade estável. Segundo Ricoeur, essas características são
problemáticas porque desarmam o pensamento: em vez de conscientizar as pessoas,
promovendo a ampliação de debates, a falta de uma realidade estável deixa-as sem
argumento, sem defesa contra atrocidades. A metaficção historiográfica pode, entretanto,
contradizer a opinião de Ricoeur. Esses romances estimulam o debate sobre o passado e sobre
o processo de conhecimento do passado, levantando questões de ordem epistemológica e
ontológica.
A preocupação com as consequências da falta de uma realidade estável, criada pela pós-
modernidade, também aparece nas considerações de Terry Eagleton, em After Theory (2003).
Eagleton afirma que:
confrontado com um inimigo político implacável e fundamentalista, o Ocidente será,
sem dúvida, forçado cada vez mais a refletir sobre as bases de fundação de sua própria
civilização. Entretanto, essa atividade faz-se necessária justo no momento em que os
filósofos estão chegando com a notícia urgente de que essas bases não existem. [...] O
Ocidente pode ser forçado a refletir sobre a verdade e a realidade de sua existência em
um momento em que o pensamento pós-moderno possui sérias dúvidas sobre a
verdade e a realidade. (2003, p.73, tradução nossa)
16
16
Do original: confronted with an implacable political enemy, and a fundamentalist one at that, the West will
no doubt be forced more and more to reflect on the foundations of its own civilization. It must do so, however, at
the very time when the philosophers are arriving hot-foot with the news that there are no such foundations in the
first place. […] It may be forced to reflect on the truth and reality of its existence, at a time when postmodern
thought has grave doubts about truth and reality” (2003, p.73).
54
Linda Hutcheon, porém, mostra que, quando se considera a discussão levantada pelas
metaficções historiográficas, o pensamento pós-moderno não tem dúvidas sobre a verdade e a
realidade. O pós-modernismo não questiona se os acontecimentos realmente existiram no
passado, a realidade não é negada; coloca-se em xeque o processo de formação do
conhecimento acerca desses eventos. Assim, Hutcheon defende que: “embora os
acontecimentos tenham mesmo ocorrido no passado real empírico, nós denominamos e
constituímos esses acontecimentos como fatos históricos por meio da seleção e do
posicionamento narrativo” (1991, p.131).
17
O questionamento acerca dos meios de formação do conhecimento histórico possibilita
a reflexão sobre as raízes da civilização ocidental. Esse debate colabora para o entendimento
das bases da sociedade atual: a metaficção historiográfica realiza, assim, exatamente o que
Eagleton como necessário, mas acredita ser impossível de realizar pelo pós-modernismo.
Ele teme que o Ocidente não possua formas de defesa contra os problemas do presente se não
conhecer suas origens no passado. As discussões possibilitadas pela metaficção
historiográfica, entretanto, ao relativizarem a formação do conhecimento histórico, não
relativizam a realidade. Esses romances armam seus leitores, capacitando-os para
compreender e enfrentar o presente, ao forçar-lhes a pensar sobre os acontecimentos do
passado e como esses acontecimentos foram registrados e narrados pela história oficial.
Linda Hutcheon considera a narrativa um ato simbólico que apresenta a possibilidade
de transformar a representação cultural e produzir efeitos em outros níveis sociais. Fredric
Jameson (1982) considera a literatura um ato simbólico social, mas não a como capaz de
transformar a representação cultural. Hutcheon, no entanto, defende que a representação
desenvolvida no pós-modernismo, ao justapor a história e a literatura, abre a formação
17
Do original: while events did occur in the real empirical past, we name and constitute those events as
historical facts by selection and narrative positioning” (1988, p.97).
55
histórica para múltiplas possibilidades, para a coexistência de diversas perspectivas. Jameson
(1998), entretanto, discorda: para ele, existe apenas uma história, e a participação política
social não significa incluir vozes para multiplicar essa história, mas se conscientizar das
diretrizes (passadas e futuras) dessa sequência de eventos. Hutcheon, porém, afirma: a
„História‟ de Jameson como „narrativa ininterrupta‟ é exatamente o que as histórias (no plural)
interruptas, diversificadas e não controladas [dos romances de metaficção historiográfica]
contestam” (1993, p.65, tradução nossa).
18
Jameson (1998) avalia essa multiplicação do texto pós-moderno como uma
apropriação da história que a desvirtua, contribuindo assim, para que a humanidade perca a
capacidade crítica de se posicionar na sequência histórica. Hutcheon, contudo, apresenta o
oposto, e analisa essa abertura do literário ao histórico como estímulo à competência do leitor
em conhecer os meios pelos quais a história é construída, formando uma consciência crítica
sobre os processos de representação da realidade. Para Hutcheon, “é a essa mistura do
histórico e do fictício e a essa adulteração dos „fatos‟ da história consagrada que Jameson se
opõe. Porém, esse é o principal meio de fazer com que o leitor se conscientize sobre a
natureza específica do referente histórico” (1991, p.122).
19
As teorias de pensadores como Jacques Le Goff, Paul Ricoeur, Terry Eagleton, Fredric
Jameson não aceitam as ideias oriundas de posicionamentos pós-modernos; porém, eles
demarcam a necessidade de um pensamento crítico. Linda Hutcheon, entretanto, defende que
a metaficção historiográfica possibilita, a partir do campo das artes, o estímulo ao pensamento
crítico necessário à contemporaneidade.
18
Do original: Jameson‟s „History‟ as „uninterrupted narrative,‟ however repressed, is exactly what is
contested by the plural, interrupted, unrepressed histories (in the plural) [of historiographic metafiction
novels]” (1993, p.65).
19
Do original: it is this mixing of the historical and the fictive and this tampering with the „facts‟ of received
history that Jameson objects to. Yet that is the major means to making the reader aware of the particular nature
of the historical referent” (1988, p.89).
56
Os próximos itens deste capítulo discutem pontos das teorias formuladas pelos
pensadores do pós-moderno, principalmente no tocante à questão da narrativa na pós-
modernidade e em relação às interligações entre história e literatura. As discussões seguintes
colocam-se em posições diferentes das formuladas nos itens anteriores, baseadas, em grande
parte, nos textos dos pensadores franceses Paul Ricoeur e Jacques Le Goff. Os
posicionamentos divergentes entre as ideias desses teóricos franceses e as dos pós-modernos
podem se conciliar quando estabelecidas as relações entre os conceitos utilizados para análise
dos romances aqui desenvolvida, mantendo-se sempre o pressuposto desta pesquisa,
proveniente do pós-modernismo, de que a literatura possui meios de revisar a história oficial.
A conciliação entre esses posicionamentos é possível principalmente porque as detalhadas
considerações de Ricoeur (2007) sobre o fenômeno mnemônico ajudam a explicar a estrutura
da memória que orienta a elaboração narrativa dos romances Beloved e Desmundo.
III) A narrativa como elemento fundamental
Na pós-modernidade, a preocupação em pensar as organizações sociais, as
instituições, os campos do conhecimento como representações narrativas torna a estrutura
narrativa uma parte essencial do entendimento da configuração cultural da sociedade.
Segundo Linda Hutcheon: “na maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é
a narrativa seja na literatura, na história ou na teoria que tem constituído o principal foco
de atenção” (1991, p.22).
20
As discussões sobre narrativa extrapolam a esfera das
características estéticas, passando a incluir questões filosóficas que apresentam a narrativa
como instância da mente humana e princípio fundamental na organização da sociedade.
20
Do original: in most of the critical work on postmodernism, it is narrative be it in literature, history, or
theory that has usually been the major focus of attention(1988, p.5).
57
Esse valor crescente da narrativa além do âmbito das artes, ao produzir discussões
interdisciplinares, transforma tanto os conceitos de expressão artística quanto os conceitos
usados para apreender o mundo. Wallace Martin, em Recent Theories of Narrative (1994),
aponta que “nos últimos anos, a teoria da narrativa substituiu a teoria do romance (p.15,
tradução nossa).
21
Este item do capítulo objetiva apresentar alguns aspectos da discussão sobre o caráter
da narrativa na pós-modernidade. Obviamente, trata-se de uma discussão que não se fecha e
não se esgota, como expõe Martin: “O que afinal é a narrativa? [...] Apenas posso dizer que
jamais teria iniciado uma discussão sobre as recentes teorias se eu soubesse a resposta para
essa questão. Entender a narrativa é um projeto para o futuro e não apenas o futuro do
estudo de literatura” (1994, p.190, tradução nossa).
22
Portanto, este item não tem como
finalidade oferecer um panorama exaustivo dessa discussão. O objetivo aqui é levantar
questões pertinentes à narrativa e suas conexões, formuladas por teóricos contemporâneos
como Jean-François Lyotard, Linda Hutcheon e Brian McHale.
III.a) A legitimação do conhecimento pela narrativa
O filósofo francês Jean-François Lyotard, na segunda metade do século XX, elaborou
uma teoria, acerca do papel da narrativa na legitimação do conhecimento, que norteou estudos
sobre a pós-modernidade e, por conseguinte, sobre formas narrativas pós-modernas. Lyotard,
em sua obra The Postmodern Condition (1993b), contrapõe a legitimação do conhecimento
científico à do conhecimento narrativo. Atribuindo à narrativa a distinção de possuir
autolegitimação, Lyotard aponta que a estrutura narrativa legitima e organiza a convivência
21
Do original: during the past years, the theory of the narrative has displaced the theory of the novel(1994,
p.15).
22
Do original: What then is narrative? […] I can only say I would never have undertaken a discussion of recent
theories if I had known how to answer the question. An understanding of narrative is a project for the future
and not only the future of literary study” (1994, p.190).
58
social, pois, para ele, a formulação mínima das sociedades existe em relações de
comunicação; assim, a linguagem assume papel central de constructo sociocultural. Dessa
maneira, para Lyotard, a forma artística da linguagem exerce a função de entender o
constructo sociocultural, o mundo, a partir do próprio material que o constitui.
Na publicação norte-americana da obra The Postmodern Condition (1993b), Fredric
Jameson faz um prefácio ao texto de Lyotard considerando-o uma discussão sobre o status da
ciência, da tecnologia, do conhecimento e do controle sobre a informação no final da década
de 1970. Para Jameson, o desenvolvimento tecnológico e científico desse período é um
elemento metonímico do sistema capitalista. Participando ativamente da organização
econômica do Ocidente, a ciência torna-se possuidora de um processo de autenticação que lhe
garante ser o único meio válido do conhecimento face à narração de histórias.
Dentro dessa perspectiva de superioridade da ciência, Lyotard constrói, segundo
Jameson, a maneira como a narrativa “afirma-se não somente como um novo campo
significativo de pesquisa, mas, muito além, como uma instância central da mente humana e
um modo de pensar tão legítimo quanto o do conhecimento abstrato” (1993b, p.xi, tradução
nossa).
23
Lyotard contrapõe, assim, o conhecimento científico ao conhecimento narrativo,
indicando que a ciência produz um discurso de legitimação, indispensável para afirmação de
seus conceitos de verdade, exatidão e totalidade. A narrativa, por sua vez, é vista como uma
forma de conhecimento autolegitimadora. A narrativa possui um equilíbrio interno que
confere validade às afirmações emitidas durante o narrar, apenas pelo fato de elas terem sido
proferidas dentro do esquema narrativo. A própria estrutura narrativa justifica a inserção das
afirmações que vão se configurando. Entretanto, a ciência não possui esse equilíbrio; por isso,
ela precisa estabelecer um processo de legitimação, no qual uma afirmação deve satisfazer
23
Do original: is affirmed, not merely as a significant new field of research, but well beyond that as a central
instance of the human mind and a mode of thinking fully as legitimate as that of abstract knowledge(1993b,
p.xi).
59
todos os itens de uma lista de condições para ser aceita como exata e verdadeira, tais como
comprovação empírica ou aplicabilidade a padrões de desempenho.
Estabelece-se, então, no período da tecnocracia, as afirmações da ciência como mais
próximas da verdade, por respeitarem as condições impostas, enquanto as afirmativas da
narrativa estariam mais distantes, por não obedecerem a essa lista. Porém, esse processo de
legitimação é um jogo que a ciência precisa criar justamente por não ter o equilíbrio interno
capaz de lhe assegurar a validade de suas asserções. As afirmações da ciência não são lidas
pelo simples fato de serem ditas; elas têm de ser verificáveis por meio de argumentação e
prova.
Associando a forma narrativa à construção do conhecimento tradicional e
considerando a presença do contador de histórias em comunidades pré-capitalistas, Lyotard
entende que as narrativas estabelecem as regras pragmáticas norteadoras das relações sociais.
O conhecimento transmitido por essas narrativas determina três regras principais: a) o que é
preciso dizer para ser ouvido; b) o que é preciso ouvir para poder falar; c) o que fazer para ser
o objeto da narrativa.
Também apresentadas como saber falar (savoir-dire), saber ouvir (savoir-entendre) e
saber fazer (savoir-faire), essas três regras possuem legitimação na organização social por
partirem de relações de comunicação. Para Lyotard, a formulação mínima das sociedades
existe em relações de comunicação. A importância sócio-político-cultural da narrativa estaria,
então, na determinação de critérios de competência para essas relações, como afirma Lyotard:
as narrativas, como vimos, determinam os critérios de competência e/ou ilustram o seu
uso. Elas definem, assim, o que se tem o direito de dizer e fazer na cultura e, como
elas também são uma parte da cultura, encontram-se legitimadas pelo simples fato de
que realizam o que têm de realizar. (1993b, p.23, tradução nossa)
24
24
Do original: narratives, as we have seen, determine criteria of competence and/or illustrate how they are to
be applied. They thus define what has the right to be said and done in the culture in question, and since they are
themselves a part of that culture, they are legitimated by the simple fact that they do what they do (1993b,
p.23).
60
O conhecimento científico, por não possuir um mecanismo de autolegitimação, recorre
à narrativa para validar sua legitimidade. Segundo Lyotard, duas grandes narrativas de
validação do conhecimento: uma mais prática, e outra mais cognitiva. Na primeira, de
orientação francesa, o sujeito da narrativa é o herói da liberdade, em busca da emancipação da
humanidade. A ideia que perpassa essa legitimação fundamenta-se na utilidade da educação,
realizada apenas quando a nação como um todo se beneficia do surgimento de campos do
conhecimento. Conforme explica Lyotard, essa vertente retornou a ter força no fim do século
XX, restituindo a validade do conhecimento a uma finalidade. Na segunda, pertencente à
vertente alemã, o sujeito é o herói do conhecimento, em busca de um ideal; assim, o
conhecimento legitima-se por ele mesmo, não por sua utilidade.
De acordo com Lyotard, todas as grandes narrativas de legitimação, também chamadas
de metanarrativas, perderam sua principal função. Em consequência, uma descrença
generalizada em relação a teleologias históricas, políticas ou científicas. Não se acredita mais
na evolução progressiva da história, na aplicabilidade, em escala universal, de teorias políticas
ou na emancipação pelo desenvolvimento científico. Entende-se, agora, essas três linhas, entre
outras, de progresso e melhoria social como construções de linguagem; portanto, o significado
que elas possuem lhes foi imposto culturalmente. Dessa forma, não um processo
organizado de desenvolvimento ocorrendo de modo natural; a organização de ideias em
linhas teleológicas, como o resultado de uma construção de linguagem, que explicam e
justificam as mudanças sociais. Por isso, segundo Lyotard, o pós-moderno substitui a
totalidade, vista como enganadora, das metanarrativas, pela acessibilidade das pequenas
narrativas locais. A crescente valorização de pequenas narrativas locais no atual sistema social
global acompanha um paradoxal declínio da crença nas funções gerais da narrativa.
A teoria acerca das metanarrativas elaborada por Lyotard volta-se contra ela mesma,
quando outros teóricos apontam que sem recorrer às grandes narrativas não é possível
61
legitimar nenhum conhecimento, nem esse do próprio Lyotard. Jameson, por exemplo, o
texto do filósofo francês sob uma ótica marxista e enxerga nele um impasse: não como
defender um envolvimento político e contestador sem a validade de uma teoria política total.
Para Lyotard, contudo, o mundo pós-moderno não lamenta a perda das grandes
narrativas. A pós-modernidade apresenta um tipo de legitimação que não está baseado no
critério de desempenho total e universal, pois a legitimação encontra-se na prática linguística
e na interação comunicacional. A produção artística pós-moderna preocupa-se em
compreender e contestar essa legitimação autorizada pelo desempenho total e universal. Sobre
essa produção, Lyotard acredita que “o pós-moderno seria aquele que, no moderno, apresenta
o inapresentável” (1993b, p.81, tradução nossa).
25
De acordo com Lyotard, como a pós-
modernidade trouxe a percepção de que a linguagem é elemento central na constituição de
instâncias sociais, a criação artística com a linguagem passa a ser entendida como uma busca
pela compreensão do mundo de dentro do material que o compõe. O discurso responsável por
tecer e estabelecer as relações sociais precisa, portanto, dar conta de representar o que escapa
à própria palavra. Assim, surgem romances, como Beloved e Desmundo, para narrar o
inenarrável: a experiência dos horrores da escravidão, a brutalidade da colonização.
Apesar da ressalva feita por Paul Ricoeur (2007) ao trabalho de Lyotard (sobre os
riscos de se criar um discurso de deslegitimação que pode se voltar contra si mesmo), existe
um ponto em comum entre as ideias desenvolvidas pelos dois filósofos. Esse ponto está
relacionado à questão das experiências extremas: aquelas impossíveis de serem transmitidas
por não possuírem meios de comparação com a experiência cotidiana do homem ordinário.
Ricoeur coloca essa problemática na esfera da representação historiadora e de seus limites,
enquanto Lyotard afirma que o discurso precisa mostrar o “inapresentável”.
25
Do original: “the postmodern would be that which, in the modern, puts forward the unpresentable in
presentation itself(1993b, p.81).
62
Por isso, Lyotard considera o artista pós-moderno um filósofo, em busca de regras e
padrões ainda desconhecidos e indefinidos:
o artista ou o escritor pós-moderno ocupa a mesma posição de um filósofo: o texto que
escreve e a obra que produz não são governados por regras pré-estabelecidas, e não
podem ser avaliados a partir de um julgamento determinante, por meio da aplicação de
categorias familiares ao texto ou à obra. Essas regras e categorias são o que a obra de
arte está procurando por si mesma. O artista e o escritor estão, assim, trabalhando fora
das regras com o objetivo de formular as regras do que terá sido feito. (1993b, p.81,
grifo do autor, tradução nossa)
26
Lyotard aponta para a suspeita da pós-modernidade em relação a totalidades. O
pensamento pós-moderno desconfia de explicações aplicadas universalmente. A expressão
artística desse pensamento, principalmente a narrativa, torna-se importante por buscar
compreender o mundo pelo mesmo meio que nos apresenta esse mundo, construindo a
realidade em termos culturais, pois Lyotard entende a narrativa como ponto de partida para a
definição das regras pragmáticas das relações sociais.
Essas regras funcionam também na legitimação do conhecimento. Linda Hutcheon
expressa a seguinte opinião sobre o conhecimento histórico que sempre fez uso das regras
pragmáticas pertencentes à estrutura narrativa:
como Lyotard apresentou em The Postmodern Condition, a narrativa ainda é o meio
essencial pelo qual representamos o conhecimento e isso explica porque o descrédito
do conhecimento narrativo pela ciência positivista provocou tantas respostas intensas
vindas de diferentes áreas e pontos de vista. Em muitos campos, a narrativa é, e
sempre foi, um modo válido de explicação, e os historiados sempre tiraram proveito
tanto de sua ordenação quanto de seus poderes de explicação. (1993, p.67, tradução
nossa)
27
26
Do original: a postmodern artist or writer is in the position of a philosopher: the text he writes, the work he
produces are not in principle governed by preestablished rules, and they cannot be judged according to a
determining judgment, by applying familiar categories to the text or to the work. Those rules and categories are
what the work of art itself is looking for. The artist and the writer, then, are working without rules in order to
formulate the rules of what will have been done” (1993b, p.81, grifo do autor).
27
Do original: as Lyotard argued in The Postmodern Condition, narrative is still the quintessential way we
represent knowledge and this explains why the denigration of narrative knowledge by positivist science has
provoked such a strong response from so many different domains and points of view. In many fields, narrative is,
and always has been, a valid mode of explanation, and historians have always availed themselves of its ordering
as well as its explanatory powers” (1993, p.67).
63
Como afirma Hutcheon, o pós-modernismo apresenta-se de forma intrincada, em que é
difícil delimitar até onde ele foi encontrado em manifestações culturais e a partir de onde ele
foi criado por práticas artísticas e teóricas: é praticamente inquestionável o fato de que um
certo tipo de teoria embasou e até mesmo criou um certo tipo de arte e de que o meio
acadêmico, as instituições de arte e a indústria editorial construíram, em parte, o pós-
modernismo” (1993, p.19, grifo da autora, tradução nossa).
28
III.b) A metaficção historiográfica
Na pós-modernidade, a revisão da disciplina histórica cientificista do século XIX, a
desconfiança em relação a explicações totais e universais, a percepção da posição central da
linguagem como constructo sociocultural fornecem ao romance histórico um novo formato. O
romance histórico tradicional surgiu no século XIX, ligado à noção de história total e
formação nacional. Como parte dos movimentos nacionalistas, ele buscava os eventos
originários formadores da nação e da identidade nacional. O modelo nacional, portanto,
forma ao romance histórico. Linda Hutcheon, em Rethinking the National Model”, define
esse modelo como: “a combinação potente entre o impacto nostálgico das origens (o momento
de fundação) e a projeção utópica linear (em direção ao futuro)” (2002, p.07, tradução
nossa).
29
O novo formato do romance histórico é classificado por Linda Hutcheon (1988;
1993) sob o conceito de “metaficção historiográfica”.
A metaficção historiográfica engloba as discussões referentes à história, à literatura e à
teoria sobre linguagem em uma expressão artística. Como composição literária, ela expõe as
implicações da narrativa e da representação nas estratégias culturais de construção de
28
Do original: there is little doubt that a certain kind of theory has supported and even created a certain kind of
art and that the academy, art institutions, and the publishing industry have, in part constructed postmodernism
(1993, p.19, grifo da autora).
29
Do original: the potent combination of the nostalgic impact of origins (the founding moment) and linear
utopian projection (into the future)” (2002, p.07).
64
significados. Por meio da formulação de paradoxos, essa narrativa questiona as representações
culturais que impõem ordem e sentido à experiência social do homem.
A ideia de paradoxos, encontrada por Hutcheon nos textos pós-modernos, é usada
também pela autora para apresentar as características da pós-modernidade. Não conceitos
sobre esse período, ou sobre as obras de arte nele produzidas, explicados por ela dentro de
uma única categoria. A metaficção historiográfica é construída com base em diversos
paradoxos que problematizam os três campos de discussão da narrativa: a literatura, a história
e a teoria. Hutcheon elaborou a seguinte definição do conceito de metaficção historiográfica:
“A metaficção historiográfica incorpora todos esses três domínios, ou seja, sua
autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção
historiográfica) passa a ser base para seu repensar e sua reelaboração das formas e dos
conteúdos do passado” (1991, p.22).
30
Conscientemente formulada para mostrar a história e a ficção como construções de
linguagem, a metaficção historiográfica questiona os processos de representação social,
processos esses elaborados pela linguagem, em discursos que se colocam como naturais,
embora organizem a realidade segundo imposições de ordem humana. A literatura aproveita-
se de sua condição artística de representação para contestar, de dentro do próprio discurso
ficcional, a sua relação de semelhança com discursos que seriam apresentados como
pertencentes à realidade. Esta é a expressão artística que Jean-François Lyotard confere à pós-
modernidade, no sentido de compreensão ficcional do mundo pela utilização do elemento, a
linguagem, que constrói a realidade culturalmente. A metaficção historiográfica provoca,
assim, os seguintes questionamentos: Como representamos o mundo? Como construímos a
nossa visão da realidade e de nós mesmos? Por qual processo damos sentido e impomos uma
ordem para a experiência em nossa cultura?
30
Do original: historiographic metafiction incorporates all three of these domains that is, its theoretical self-
awareness of history and fiction as human constructs (historiographic metafiction) is made the grounds for its
rethinking and reworking of the forms and contents of the past” (1988, p.5, grifo da autora).
65
A formulação de perguntas é sugerida pela estrutura de paradoxos que coexistem na
metaficção historiográfica sem oferecer resolução para os temas que levantam. Não
indicação nem imposição de respostas ao se estabelecer e ultrapassar fronteiras e divisões
conceituais. A fronteira entre literatura e história é definida e apagada, incessantemente, na
metaficção historiográfica, para salientar o fato de serem ambas formas de representação.
O processo de representação, com o seu paradoxo de tornar presente o ausente
anterior, aproxima a história, a memória e a literatura. Em relação à história, a representação
torna-se essencial, pois o passado é acessível por meio de representações. Porém, como a
formulação dessas representações é carregada de ideologia, o processo de construção cultural
da história carrega uma forma de poder e de dominação, ao se determinar quais eventos, de
quem e em qual circunstância, são registrados. A metaficção historiográfica explora e
desestrutura essa forma de poder, salientando a narratividade do discurso histórico. Como os
traços do passado são apresentados em textos narrativos, ao interpretá-los monta-se uma
ficção a partir de narrativas, uma ficção da ficção, uma interpretação da interpretação.
A metaficção historiográfica é a forma narrativa ficcional que realiza um movimento
discursivo contrário daquele explicado por Hayden White. Não é o discurso histórico
apresentado como estruturado pela narrativa, mas é a narrativa assimilando o discurso
histórico, em uma estrutura que se mostra, abertamente, como construção de linguagem. O
percurso diferente, entretanto, pretende alcançar o mesmo objetivo, pois possui o mesmo
intuito de questionar os processos de representação social elaborados pela linguagem e de
problematizar a situação dos discursos oferecidos como naturais.
Esse questionamento das representações é pautado pela mesma preocupação expressa
por Jacques Le Goff ao defender suas reflexões em relação ao fazer histórico:
falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta: penso que é preciso ir mais
longe: questionar a documentação histórica sobre as lacunas, interrogar-se sobre os
esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco da história. Devemos fazer o
inventário dos arquivos do silêncio e fazer a história a partir dos documentos e da
ausência de documentos. (2003, p.109)
66
É exatamente esse “ir mais longe” que a metaficção historiográfica propõe-se a fazer.
Ora, a literatura pós-moderna mostra os caminhos para “ir mais longe”; não somente a
história. Entretanto, esses caminhos aparecem na produção literária em razão das
interligações entre as duas áreas do conhecimento. O reconhecimento dos limites incertos
entre o conhecimento histórico e a literatura possibilita o questionamento. Cada campo
isolado em si não produz as questões que os pensadores contemporâneos, como Le Goff,
Ricoeur, White, consideram urgentes.
A literatura aproveita-se de sua condição artística de representação para contestar, de
dentro do próprio discurso ficcional, a sua relação de semelhança com discursos que se
encarregam de representar o ausente de referência real. Assim, a metaficção historiográfica
apresenta as características que White aponta como fundamentais em grandes obras
ficcionais: “As grandes obras de ficção se Roman Jakobson estiver certo em geral não
versarão apenas sobre o seu assunto presuntivo, mas também sobre a própria linguagem e a
relação problemática entre linguagem, consciência e realidade” (1994, p.143, grifo do
autor).
31
Dessa forma, as grandes obras da ficção são aquelas que se encarregam do enigma da
representação, a aporia considerada por Ricoeur como originária da memória, da história e da
ficção.
A metaficção historiográfica, de forma aberta e autoconsciente, torna opacas as
divisões conceituais previamente estabelecidas por estudos positivistas, para forçar o
questionamento dos meios que dão sentido e impõem uma ordem à experiência em nossa
cultura. Steven Best assinala a preocupação dos teóricos da pós-modernidade em entender a
formação social em termos culturais:
31
Do original: great works of fiction will usually if Roman Jakobson is right not only be about their putative
subject matter, but also about language itself and the problematical relation between language, consciousness,
and reality(1985, p.127, grifo do autor).
67
rejeitando todos os conceitos estáticos e ahistóricos de fenômenos, os teóricos pós-
modernos adotam maneiras de historicizar e contextualizar a cultura, a literatura, a
filosofia e outros „textos‟, lendo-os como artefatos produzidos em condições sociais,
históricas e linguísticas específicas. [...] Em particular, teóricos pós-modernos
abandonam análises essencialistas e idealistas do sujeito como consciência unificada
que projeta suas intenções no campo da ação social. (1995, p.23, tradução nossa)
32
Segundo Hutcheon, não como evitar o uso das representações que constroem o
conhecimento sobre a realidade, pois elas produzem e sustentam essa realidade. Porém, pode-
se duvidar do caráter natural dessas representações, e procurar meios de conscientização sobre
como elas legitimam e privilegiam tipos específicos de conhecimento, determinados por
circunstâncias políticas (de esfera pessoal e pública). A metaficção historiográfica propõe-se a
ser um desses meios de conscientização, questionando as limitações impostas pela forma de
representação histórica. Assim, Hutcheon define que:
Autoconscientemente, a metaficção historiográfica nos lembra que, embora os
acontecimentos tenham mesmo ocorrido no passado real empírico, nós denominamos
e constituímos esses acontecimentos como fatos históricos por meio da seleção e do
posicionamento narrativo. E, em termos mais básicos, conhecemos esses
acontecimentos passados por intermédio de seu estabelecimento discursivo, por
intermédio de seus vestígios no presente. (1991, p.131)
33
Ao explorar a narratividade do discurso histórico, a metaficção historiográfica
justapõe o que supostamente se sabe a respeito do passado, a partir de arquivos oficiais,
documentos, testemunhos autorizados, a representações alternativas. Conforme assinala
Hutcheon, “a metaficção historiográfica não pretende reproduzir os eventos, mas, em vez
disso, nos direcionar aos fatos, ou a novas maneiras de pensar sobre os eventos” (1988, p.154,
32
Do original: rejecting all static, ahistorical conceptions of phenomena, postmodern theorists adopt
historicizing, contextualizing approaches to culture, literature, philosophy, and other „texts‟, reading them as
artifacts produced within specific social, historical, and linguistic conditions. […] In particular, postmodern
theorists abandon essentialist and idealist analysis of the subject as a unified consciousness that projects its
intentions onto the field of social action (1995, p.23).
33
Do original: historiographic metafiction self-consciously reminds us that, while events did occur in the real
empirical past, we name and constitute those events as historical facts by selection and narrative positioning.
And, even more basically, we only know of those past events through their discursive inscription, through their
traces in the present (1988, p.97).
68
tradução nossa).
34
O ponto de debate da ficção pós-moderna não é estabelecer o quê realmente
aconteceu, em uma versão acabada dos eventos (instituindo um referente fixo real como
passado), mas questionar o processo de construção do conhecimento sobre o ocorrido.
A elaboração dos fatos, a partir dos eventos, vincula-se a escolhas culturais centradas
em um eixo político dominante, também estabelecido culturalmente. A ficção pós-moderna
desfaz a imposição desse centro, trabalhando com o marginal para fundar uma pluralidade de
visões. No caso dos romances Beloved e Desmundo, torna-se o centro inexistente, em vez de
simplesmente posicionar o marginal como um novo centro. A descentralização pós-moderna
questiona os conceitos ligados a uma visão centralizada: autonomia, transcendência, certeza,
autoridade, unidade, totalização, sistema, universalização, hierarquia, homogeneidade,
originalidade, raridade, sequência lógica. A organização da realidade não pode ser feita nesses
termos porque eles são criações de uma sistematização social, não um arranjo natural. Assim,
Best salienta:
teóricos pós-modernos argumentam que a história não é uma linha contínua de
desenvolvimento englobando todas as culturas em um grande movimento e
culminando na harmonia universal de leis teleológicas. Ao contrário, a história é uma
pluralidade fraturada e descontínua de micronarrativas governadas pela atuação
indeterminada de forças eventuais desprovidas de um propósito, de uma lógica
imanente ou de uma direção coerente. (1995, p.23, tradução nossa)
35
A história descontínua e plural das micronarrativas se forma porque os significados
dos acontecimentos não estão nos eventos em si, mas nos sistemas que transformam esses
eventos do passado em fatos históricos no presente. um processo pelo qual os eventos
passam para se tornarem fatos históricos. Esse é um processo de construção humana, uma
construção com função de fornecer significados. O fato histórico é um evento ao qual foi dado
34
Do original: historiographic metafiction does not pretend to reproduce events, but to direct us, instead, to
facts, or to new directions in which to think about events” (1988, p.154).
35
Do original: postmodern theorists argue that history is not a continuous, linear path of development that
encompasses all cultures within one great movement and culminates in universal harmony at the impetus of
teleological laws. Rather, history is a discontinuous, fractured plurality of micronarratives governed by an
indeterminant play of contingent forces devoid of purposes, immanent logic, or coherent direction (1995, p.23).
69
um significado; por isso, é instável, provisório, contextual. Hutcheon observa que: “o sentido
histórico pode, então, ser entendido hoje como instável, contextual, relacional e provisório,
mas o pós-modernismo argumenta que, na verdade, sempre foi assim; usando, nesse
argumento, representações do romance para enfatizar a natureza narrativa do conhecimento”
(1993, p.67, tradução nossa).
36
A metaficção historiográfica recusa as distinções pré-concebidas entre fato histórico e
ficção, entendendo a história e a ficção como discursos, como sistemas de significação,
ligando, assim, o público ao histórico, o privado ao biográfico. Ao problematizar o discurso
histórico, a metaficção historiográfica desfaz as oposições binárias entre os conceitos de
passado/presente, verdade/ficção, história/literatura, estabelecendo contradições não
resolvidas. Dessa forma, nenhum dos lados das dicotomias é dissolvido, ao contrário,
exploram-se ao máximo os dois. Ao explorar as oposições binárias, formando paradoxos, a
metaficção historiográfica problematiza o discurso histórico deixando-o em aberto. Hutcheon
explica que: [a] ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na
ficção e na história é em ambos os casos revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser
conclusivo e teleológico” (1991, p.147).
37
A problematização do discurso histórico questiona também a inscrição da
subjetividade na escrita histórica. A ficção pós-moderna não almeja narrar a verdade, ela
deseja questionar a verdade de quem, de qual grupo social, possui o privilégio de ser narrada.
A metaficção historiográfica indica que os termos verdadeiro e falso não são a melhor forma
de se discutir a ficção, nem a história: verdades, no plural. Nunca falsidade, outras
verdades. As outras verdades são trazidas à tona por seus personagens ex-cêntricos,
36
Do original: historical meaning may thus be seen today as unstable, contextual, relational, and provisional,
but postmodernism argues that, in fact, it has always been so. And it uses novelistic representations to underline
the narrative nature of much knowledge” (1993, p.67).
37
Do original: postmodern fiction suggests that to re-write or to re-present the past in fiction and in history is,
in both cases, to open it up to the present, to prevent it from being conclusive and teleological” (1988, p.110).
70
claramente específicos, individuais, cultural e familiarmente condicionados em suas respostas
à história, pública e privada.
Demonstrando intensa autoconsciência de como literatura e história são produzidas, a
metaficção historiográfica coloca em questão quais textualizações anteriores (em seus
contextos específicos) estão presentes na forma de entendimento da cultura atual, em vez de
se perguntar a qual objeto empiricamente real no passado o discurso se refere. As produções
pós-modernas procuram entender a cultura como o produto de representações anteriores,
incorporando o passado textualizado no texto do presente. As obras pós-modernas contestam,
também, o direito da arte de assumir para si mesma a capacidade de inscrever valores
universais atemporais e fazem isso tematizando a natureza contexto-dependente de todos os
valores, em suas personagens ex-cêntricas.
As obras literárias pós-modernas, baseadas em fatos históricos, não oferecem uma
resposta para a questão de como se conhece o passado, elas problematizam as possibilidades
de resposta. O pós-moderno não rejeita a história: ao discutir a maneira como se conhece o
passado, não se tira o valor da história. O questionamento existe para entender como funciona
o processo de historicização, e aceitar que um processo de construção humana em jogo.
Como Linda Hutcheon salienta: ele [o pós-moderno] reinsere os contextos históricos como
sendo significantes, e até mesmo determinante, mas, ao fazê-lo, problematiza toda a noção de
conhecimento histórico” (1991, p.122).
38
A pós-modernidade apresenta uma preocupação em ensinar o homem a entender a sua
situação fazendo perguntas, e não tentando encontrar respostas exatas. O simples
questionamento isso é a verdade comprovável? não permite ao homem construir um
conhecimento amplo. Por isso, Hutcheon aponta que: “o empreendimento pós-moderno
ultrapassa as fronteiras da teoria e da prática, muitas vezes envolvendo uma na outra e uma
38
Do original: it [the postmodern] reinstalls historical contexts as significant and even determining, but in so
doing, it problematizes the entire notion of historical knowledge” (1988, p.89).
71
pela outra, e muitas vezes a história é o cenário dessa problematização” (1991, p.123).
39
Quando relacionados à ficção, os campos da história e da memória, com as suas aporias
originárias sobre a representação, transformam-se em áreas do conhecimento propícias para
realizar a empreitada que o pós-modernismo propõe.
III.c) Elementos narrativos da ficção pós-moderna
A teoria formulada por Linda Hutcheon ocupa-se de uma produção específica da pós-
modernidade que questiona as implicações da narrativa e da representação nas estratégias
culturais de construção de significados, revisando, por meio da linguagem, o modo como se
entende e elabora a história. Os romances pós-modernos podem ser lidos por características
distintas das apresentadas por Hutcheon. Brian McHale (1992), por exemplo, discorda de
Hutcheon em relação ao estatuto do questionamento pós-moderno. Para McHale, a
contestação realizada pela arte pós-moderna é de ordem ontológica. Linda Hutcheon diverge
da orientação ontológica de McHale, por acreditar que as contradições do pós-modernismo
não se encaixam em definições elucidadas a partir de oposições binárias. A simples separação
entre ontológico e epistemológico não é suficiente para a caracterização do pós-moderno.
Segundo Hutcheon: “a metaficção historiográfica formula tanto perguntas epistemológicas
quanto ontológicas. Como é que conhecemos o passado (ou o presente)? Qual é o status
ontológico desse passado? De seus documentos? De nossas narrativas?” (1991, p.76).
40
Baseando-se em romances de diversos autores contemporâneos (como Thomas
Pynchon, Umberto Eco, Joseph McElroy), McHale preocupa-se em formular parâmetros para
entender as narrativas que constroem mundos ficcionais híbridos, movediços e instáveis.
39
Do original: the postmodern enterprise is one that traverses the boundaries of theory and practice, often
implicating one in and by the other, and history is often the site of this problematization” (1988, p.90).
40
Do original: Historiographic metafiction asks both epistemological and ontological questions. How do we
know the past (or the present)? What is the ontological status of that past? Of its documents? Of our
narratives? (1988, p.50).
72
Embora a visão de Hutcheon seja mais pertinente para a análise dos romances que incitam
questões relativas ao conhecimento histórico, o estudo realizado por McHale considera pontos
da estrutura narrativa importantes para se pensar no texto pós-moderno. O teórico não usa a
denominação metaficção historiográfica, por não ser esse o seu foco, mas apresenta elementos
narrativos estruturais que ajudam a ler e a compreender melhor a formação narrativa pós-
moderna.
Em Constructing Postmodernism (1992), Brian McHale assinala a importância da
narrativa face à crise das teorias. Segundo McHale, com o estruturalismo francês da década de
1960, a narrativa torna-se o objeto favorito de estudos teóricos. Porém, dos anos 80 em diante,
ele acredita ter havido uma mudança nesse paradigma: a teoria virou o objeto da narrativa,
aproximando, assim, a figura do artista pós-moderno à do filósofo, como fez Jean-François
Lyotard. Para McHale, essa inversão de posições da teoria aconteceu em decorrência da
capacidade da narrativa de autolegitimação, como definiu Lyotard.
A partir de narrativas de James Joyce, Thomas Pynchon, Umberto Eco, Joseph
McElroy e Christine Brooke-Rose, McHale estabelece contiguidades e distinções entre o
moderno e o pós-moderno, adotando a máxima paradoxal de Lyotard: “o pós-modernismo
entendido dessa forma não é o modernismo na sua parte final, mas no seu estado nascente, e
esse estado é constante” (1993b, p.79, tradução nossa).
41
A posição assumida por McHale
(1992) entende que a ficção modernista é de ordem epistemológica, levantando questões
referentes ao conhecimento sobre o mundo, enquanto a ficção pós-modernista é de ordem
ontológica, por formular questões sobre a existência de uma pluralidade de mundos. No pós-
modernismo, a ideia de haver apenas um único mundo passível de ser compreendido é
substituída pela ideia de coexistência de mundos diferentes, impossíveis de serem conhecidos
em sua totalidade.
41
Do original: postmodernism thus understood is not modernism at its end but at its nascent state, and this state
is constant” (1993b, p.79).
73
O questionamento de ordem ontológica formula-se em narrativas que deixam à mostra
a mobilidade e a instabilidade entre mundos. Constroem-se, nessas narrativas, mundos
ficcionais marcados por um hibridismo originário de incertezas em relação a suas
composições: não realidade ficcional
42
sólida o suficiente para se distinguir as
características de cada mundo. As narrativas pós-modernas apresentam mundos paralelos ou
alternativos que exploram não a ideia de uma outra ordem de existência, mas também a
ideia de haver fronteiras invisíveis entre esses mundos, perceptíveis apenas ao serem
transpostas.
Há, nas narrativas pós-modernas, segundo McHale, a elaboração de uma paralaxe de
discursos. Paralaxe é a alteração aparente de um objeto contra um fundo, quando observado a
partir de duas linhas diferentes de visão. Dependendo do lugar onde o observador se encontra,
a imagem vista se altera: o fundo pode ser diferente, ou a composição entre objeto e fundo
pode mudar. Na narrativa, McHale elabora a ideia de paralaxe de discursos, na qual cada
discurso constrói uma imagem diferente, porque cada um é produzido por pessoas
posicionadas de modos diferentes. Quando não como atribuir aos discursos uma fonte
personificada dentro do mundo ficcional, a paralaxe de discursos resulta em uma paralaxe de
mundos. Ao criar instabilidades e incertezas, a narrativa pós-moderna assume sua função
crítica, de questionamento sobre a composição material do mundo, e autocrítica, de
questionamento sobre sua própria composição linguística.
A estética do romance pós-moderno, para McHale, está subordinada à orientação
ontológica, como ele salienta: “Eu prefiro construir um pós-modernismo de orientação
ontológica, isto é, uma poética subordinada a um dominante ontológico” (1992, p.206,
tradução nossa).
43
O questionamento levantado na pós-modernidade está relacionado, então, a
42
Realidade ficcional é um termo utilizado pelo próprio McHale (1992).
43
Do original: I prefer to construct a postmodernism with an ontological orientation, that is, a poetics
subordinated to an ontological dominant” (1992, p.206).
74
perguntas tais como: que mundo é esse? O que pode ser feito nele? O que acontece quando
dois mundos se encontram?
Essas questões decorrem da criação de uma pluralidade ontológica dentro das
narrativas pós-modernas. Ao analisar os romances em Constructing Postmodernism, McHale
toma como norteador o objetivo de responder por que essa pluralidade é importante dentro de
cada texto e o que ela mostra a respeito de cada elaboração narrativa específica, levando em
consideração, assim, o fato de cada romance elaborar mundos paralelos ou alternativos por
motivos diferentes.
McHale (1992) esquematiza três mecanismos formais/estilísticos e quatro motivos
narrativos que introduzem mundos secundários ou dividem e multiplicam o primeiro plano
ontológico do texto narrativo. Denominados de pluralizadores ontológicos, esses mecanismos
e motivos constituem, para o teórico, a base da produção narrativa pós-moderna.
Os três mecanismos formais ou estilísticos apresentados são os seguintes: a)
autocontradição e autorrasura que criam estados paralelos; b) expressões metafóricas
ambíguas, nos planos figurativo e literal; c) uso expressivo e evidente do pronome de segunda
pessoa.
Os quatro motivos narrativos responsáveis por alterar o primeiro plano ontológico do
texto são: a) visitante de outros mundos - a visita quebra a homogeneidade ontológica; b)
portas, espelhos e outros pontos de intersecção ou ingresso entre mundos adjacentes; c)
sonhos, visões, alucinações; d) representações dentro da representação - romance dentro do
romance, descrição de pinturas, fotografias.
Além dos mecanismos formais ou estilísticos e dos motivos narrativos, McHale (1992)
apresenta dois grupos de estratégias narrativas pós-modernas: 1) estabelecer confrontos entre
dois ou mais mundos; 2) desestabilizar o mundo projetado pelo romance.
75
McHale aponta três formas nas quais o romance pós-moderno estabelece confrontos
entre mundos: a) confrontação ontológica entre o mundo ficcional do romance e o mundo real
do fato histórico - esse confronto cria uma tensão entre fato e ficção, entre verdade e ilusão,
assim, McHale argumenta que: “as ficções históricas pós-modernas objetivam extrapolar essa
tensão e expor a linha [na qual fato e ficção se encontram]. Fazem isso, por exemplo,
contradizendo um fato histórico familiar, misturando o real e o fantástico e valorizando o
anacronismo” (1992, p.153, tradução nossa)
44
- isso é caracterizado por Linda Hutcheon como
metaficção historiográfica; b) criação de identidades que pertencem a mais de um mundo,
realizando a incursão de um mundo em outro, por exemplo, quando a presença de um
personagem histórico do mundo real em um texto ficcional; c) elaboração de um texto com
várias linguagem diferentes, cada linguagem definindo um mundo, como aponta McHale:
línguas diferentes, registros diferentes da mesma língua, discursos diferentes: cada um
constrói o mundo de modo diferente; na verdade, cada um constrói mundos distintos
[...] justapor ou superpor línguas, registros ou discursos díspares é colocar mundos
diversos, talvez incomensuráveis, em tensa confrontação. (1992, p.153, tradução
nossa)
45
As duas formas de desestabilização do mundo projetado pelo romance são: a) criar o
efeito de enfraquecimento do mundo ficcional ao elaborar vários movimentos narrativos que
resultam em um mundo mediado por intermediários, um mundo dissolvido em textualidade;
b) reproduzir, de forma paradoxal, o mundo ficcional dentro do mundo ficcional, técnica
conhecida como mise-en-abyme (McHALE, 1992).
A confrontação ontológica entre o mundo ficcional do romance e o mundo real do fato
histórico estabelece-se intensamente em Beloved e em Desmundo. Ambos os romances
44
Do original: postmodernist historical fictions [...] aim to exacerbate this tension and expose the seam [along
which fact and fiction meet]. They do this, for instance, by contradicting familiar historical fact, by mingling the
realistic and fantastic modes, and by flaunting anachronism” (1992, p.153)
45
Do original: different languages, different registers of the same language, different discourses each construct
the world differently; in effect, they each construct different worlds […] to juxtapose or superimpose different
languages, registers or discourses is to place different, perhaps incommensurable worlds in tense confrontation
(1992, p.153).
76
revisitam momentos históricos por meio da ficcionalização de fatos. O que McHale entende
como forma literária de confrontação entre mundos, Linda Hutcheon entende como
metaficção historiográfica. Mesmo com essas diferenças de conceituação, ambos os teóricos
concordariam que a leitura de Beloved e de Desmundo não poderia fechar a análise dessas
narrativas em uma única totalidade. Arrisca-se perder porções significativas da narrativa ao
excluir possibilidades interpretativas que ambos os textos oferecem. A personagem Beloved,
por exemplo, e o relato de Oribela, em Desmundo, não se deixam definir de forma precisa. O
leitor que estabelece relações textuais, dentro desses romances, para explicar de forma
definitiva a natureza de Beloved ou a vivência de Oribela, mesmo encontrando respostas
supostamente aceitáveis, pode se perder na narrativa. Para McHale, o leitor está condicionado,
pelo modernismo, a encontrar relações totais e fechadas dentro do mundo ficcional, e isso não
é mais possível no pós-modernismo.
Segundo McHale, “somos todos, ainda, leitores modernistas” (1992, p.81, tradução
nossa).
46
Somos responsáveis por uma leitura que ele classifica como paranoia”, na qual o
leitor procura estabelecer relações entre os elementos fictícios, mesmo ínfimos, dentro da
narrativa. A literatura modernista e a teoria crítica do New Criticism, para McHale,
colaboraram para a formação desse leitor-paranoico, incapaz de aceitar incertezas, mistérios e
dúvidas. Os textos pós-modernos antecipam a leitura-paranoia: são textos produzidos
esperando que o leitor empreenda uma leitura-paranoia. Para lê-los, então, é preciso fazer uma
leitura cética, uma leitura meta-paranoia. Neste tipo de leitura, devem-se procurar as
indicações de soluções, mas não aceitá-las, aprendendo a vê-las como marcas abertas e
explícitas que alertam para o fato de integrarem uma construção de linguagem.
McHale defende que se deve aceitar as incertezas e aprender a lidar com a tensão
produzida em um texto pós-moderno. Essa tensão não deve ser solucionada, pois isso
46
Do original: we are all, still, modernist readers(1992, p.81).
77
resultaria na construção de apenas um único mundo ficcional. A narrativa pós-moderna
oferece ao leitor a construção aberta de possíveis mundos provisórios. A ideia de tensão e
desordenamento textuais apresentada por McHale está próxima da ideia de paradoxos pós-
modernos, desenvolvida por Linda Hutcheon. Ela acredita que esses paradoxos não existem
para serem resolvidos. As contradições não devem ser desfeitas, pois o privilégio de uma das
partes sobre a outra implicaria fechar a significação em somente um aspecto. Assim como
Lyotard, Hutcheon e McHale desconfiam de explicações teleológicas.
A ideia de multiplicação de mundos e de confrontos existentes a partir da convivência
entre diferentes mundos conta de explicar apenas uma parte desses romances. A discussão
filosófica a respeito da literalidade da história, as questões sobre representações culturais,
sobre imposição de sentido e ordem à realidade e a denúncia à formação de esferas de poder
são perdidas na explicação exclusivamente ontológica, criada por Brian McHale.
Enquanto Hutcheon amplia o olhar para o questionamento maior que o pós-moderno
realiza (englobando as instâncias epistemológicas e as ontológicas), McHale aproxima o olhar
para a construção textual. Entre os pontos de vista dos dois sobre a literatura pós-moderna,
pode-se realizar um jogo de escalas, como o sugerido por Paul Ricoeur (2003) para o campo
do conhecimento histórico. O olhar preso ao texto, sugerido por McHale, desconsidera o
quadro contextual traçado por Hutcheon. Porém, esse olhar voltado para especificidades da
estrutura narrativa pode ser útil ao quadro de Hutcheon, oferecendo-lhe suportes textuais para
suas ideias.
78
IV) Narrativas que lembram o passado
Os romances Beloved e Desmundo, resgatando momentos históricos da formação da
nação norte-americana e da brasileira por meio da memória, revisitam perspectivas históricas,
questionando a literatura e a história como representações culturais que impõem sentido e
ordem à realidade segundo um eixo político dominante. Esse questionamento é possível em
razão da memória que atua nesses romances recuperando o passado de uma nova maneira,
marcando a narrativa, estruturalmente, pelas características de ausência e distância.
A ausência configura, em sua dialética com a presença, o grande enigma primordial da
memória. O enigma existe na medida em que a representação, realizada pelos mecanismos
mnemônicos, faz do passado, ausente e inatingível, um elemento presente no momento atual.
A distância, como elemento configurativo essencial da memória, é marcada pela distância
temporal entre a impressão original e o retorno dessa impressão. O ato de lembrar pode
acontecer depois de transcorrido um tempo. A recordação percorre esse intervalo de tempo
em busca da impressão. A lembrança estabelece e confirma a separação de tempos entre a
representação no presente e a esfera do campo temporal da impressão originária.
Segundo Toni Morrison, no artigo The Site of Memory, publicado em What Moves
at the Margin (2008), lembrar o passado é a função primordial dos escritores de ficção. Ela
não denomina essa função com as ações de estudar, analisar, nem de repetir o passado; o
desempenho dos autores de ficção realiza-se no ato de lembrar. O meio pelo qual os escritores
exercem sua função é a memória. Mas a memória dos autores, para Morrison, está sempre
associada à imaginação. Para explicar essa capacidade dos autores de interligar a memória e a
imaginação na lembrança do passado, Morrison elabora uma metáfora sobre a força das águas
de um rio:
o ato da imaginação é paralelo à memória. Você sabe, estreitaram algumas partes do
rio Mississipi, com o objetivo de criar espaço para casas e terrenos. De vez em
quando, o rio alaga esses lugares. „Alaga‟ é o termo que usam, mas na verdade ele não
está alagando; ele está lembrando. Lembrando do lugar onde costumava ficar. A água
possui uma memória perfeita e es sempre tentando voltar para onde estava. Os
79
escritores são assim também: sempre lembrando onde estávamos, por quais vales
corríamos, como eram as colinas, a luz que havia e a rota para o nosso lugar de
origem. É uma memória emocional o que os nervos e a pele lembram tanto quanto a
impressão de como as coisas eram. Um jorro de imaginação é o nosso „alagamento‟.
(2008, p.77, tradução nossa)
47
As lembranças, permeadas pela imaginação, resultam em uma construção narrativa
capaz de recuperar o passado. A relação intrínseca entre a lembrança e a narrativa existe antes
mesmo da elaboração poética realizada pelos escritores de ficção. Segundo Paul Ricoeur, a
narrativa forma às lembranças que “se apresentam isoladamente ou em cachos, de acordo
com relações complexas atinentes ao tema ou às circunstâncias, ou em sequências mais ou
menos favoráveis à composição de uma narrativa” (2007, p.41). A lembrança é o acesso à
memória, e esse acesso acontece por meio de uma sequência estruturada com elementos
narrativos. Assim, a memória ganha sentido quando é organizada em uma composição
narrativa. Dessa forma, os romancistas fazem a criação artística a partir do próprio material
que forma a memória.
O comportamento narrativo é definido também por Jacques Le Goff (2003) como o
ato mnemônico fundamental. O ato de lembrar, para Le Goff, caracteriza-se por sua função
social de comunicar a outrem uma informação. Essa ligação entre a narrativa e a lembrança,
por uma possibilitar a outra, é a base de romances como Beloved e Desmundo; porém, não se
pode deixar de considerar que nesses romances os mecanismos da memória funcionam para
desestruturar a narrativa tradicional linear, configurando ausências e distâncias desafiadoras
da configuração narrativa coerente, completa, integral.
A narrativa tradicional linear é responsável pela história teleológica, com a imposição
de sentido e ordem à realidade sob um eixo político fundamentado em um regime de
47
Do original: the act of imagination is up with memory. You know, they straightened out the Mississippi River
in places, to make room for houses and livable acreage. Occasionally the river floods these places. „Floods‟ is
the word they use, but in fact is it is not flooding; it is remembering. Remembering where is used to be. All water
has a perfect memory and is forever trying to get back to where it was. Writers are like that: remembering where
we were, what valley we ran through, what the banks were like, the light that was there and the route back to our
original place. It is emotional memory what the nerves and the skin remember as well as how it appeared. And
a rush of imagination is our „flooding‟ (2008, p.77).
80
exclusão. Essa história se forma repleta de esquecimentos que a memória pode reparar.
Nesse sentido, os mecanismos da memória, ao quebrar a linearidade da narrativa, mudam a
configuração do tempo da narrativa (com a aporia da presença do ausente anterior) e tornam
possível a inclusão do que havia sido esquecido. Essa possibilidade acontece no espaço
ficcional elaborado para recuperar a história pela memória. No entanto, Paul Ricoeur
considera o campo da memória capaz de realizar essa reparação por si : “esquecimentos,
lembranças encobridoras, atos falhos assumem, na escala da memória coletiva, proporções
gigantescas, que apenas a história, e mais precisamente, a história da memória é capaz de
trazer à luz” (2007, p.455).
No campo da memória, essa reparação ocorre pela multiplicidade não numérica das
lembranças. O conjunto de lembranças, formado de maneira desordenada e simultânea,
possibilita a reconstrução de uma experiência híbrida, mista de criação imaginativa subjetiva e
busca pela exatidão do evento passado. Segundo Ricoeur, “há mais do que sonho na evocação
da latência daquilo que permanece do passado: algo como uma especulação, no sentido de um
pensamento no limite” (2007, p.444).
Os romances da metaficção historiográfica criam essa especulação sobre o passado por
meio de suas narrativas. A literatura e a memória compartilham, assim, a possibilidade de
elaboração de uma imagem híbrida de sonho e realidade. O estado de devaneio onírico
permite a reconfiguração do passado em ambos os casos, segundo Ricoeur. Dessa forma, para
Ricoeur: “é por um salto que se deve romper o círculo mágico da atenção à vida para
entregar-se à lembrança numa espécie de estado de sonho. Sob esse aspecto, a literatura mais
que a experiência cotidiana [realiza esse salto] (2007, p.447). Portanto, Ricoeur considera
que a memória pode fazer a reparação por si porque ela carrega em si a característica da
literatura de extrapolar, em alguns momentos, a esfera de necessidade de representação de
referencial extratextual fixo e identificável.
81
Embora sair da linearidade possa significar a possibilidade de suprir uma lacuna de um
esquecimento histórico, Ricoeur entende a formação do esquecimento, em primeiro lugar,
exatamente no ponto em que a linearidade é quebrada. Assim, ao descrever o esquecimento,
Ricoeur tece as seguintes considerações:
saímos de todas as linearidades narrativas; ou, se ainda se pudesse falar de narrativa,
seria de uma narrativa que teria rompido com toda cronologia. Neste sentido, toda
origem, tomada na sua potência originante, revela-se irredutível a um início datado e,
nessa condição, está ligado ao mesmo estatuto do esquecimento fundador. É
importante penetrarmos na área do esquecimento sob o signo de uma ambiguidade
primordial. (2007, p.449)
A ambiguidade cria um paradoxo: a mesma estrutura causadora do esquecimento é a
que pode repará-lo. Beloved e Desmundo trabalham com esse paradoxo: eles criam as
lembranças, mas apontam para o esquecimento. Além da necessidade de lembrança atestar
a existência prévia do esquecimento, os dois se formam sob o mesmo mecanismo. Ricoeur
explica a formulação da memória em decorrência dos recursos de variação possibilitados pela
configuração narrativa, da mesma forma que as estratégias do esquecimento enxertam-se
diretamente nesse trabalho de configuração: pode-se sempre narrar de outro modo,
suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando diretamente os protagonistas da ação assim
como os contornos dela” (2007, p.455).
O esquecimento reveste-se de interesses políticos de manutenção de posições de poder
na história oficial totalizadora, preocupada em legitimar a formação originária teleológica da
nação. A respeito dessa história com pretensões de universalidade, Ricoeur adverte:
para quem atravessou todas as camadas de configuração e refiguração narrativa desde
a constituição da identidade pessoal até a das identidades comunitárias que estruturam
nossos vínculos de pertencimento, o perigo maior, no fim do percurso, está no manejo
da história autorizada, imposta, celebrada, comemorada da história oficial. O recurso
à narrativa torna-se assim a armadilha, quando potências superiores passam a
direcionar a composição da intriga e impõe uma narrativa canônica por meio de
intimidação ou de sedução, de medo ou de lisonja. Está em ação aqui uma forma
ardilosa de esquecimento, resultante do desapossamento dos atores sociais de seu
poder originário de narrarem a si mesmos. Mas esse desapossamento não existe sem
uma cumplicidade secreta, que faz do esquecimento um comportamento semipassivo e
semi-ativo. (2007, p.455)
82
Se a história oficial gera o esquecimento, que priva os atores sociais de sua
participação política de narrarem a si mesmos, os romances da metaficção historiográfica são
exatamente o oposto: eles são o espaço que as personagens esquecidas têm para narrarem a si
mesmas. Essa atitude de assumir a própria voz e usá-la para contar a própria história é um ato
político. Assim, a atuação das personagens femininas em Beloved e Desmundo configura-se
em um ato político. Como Ricoeur explica, lembrar-se é fazer algo, o fazer memória
transforma os indivíduos em sujeitos atuantes. O ato de lembrar realizado pelas personagens
femininas corresponde, então, ao ato político de se colocar na história, na sociedade: um ato
de sair da margem. Embora pareça ser um ato individual, reservado à esfera particular, ele não
o é. Lembrar refere-se à atuação social pública, tendo, portanto, implicações políticas.
Essa atuação política faz a busca pela lembrança comprovar a luta contra o
esquecimento como uma das finalidades da memória. Segundo Paul Ricoeur: “boa parte da
busca do passado se encaixa na tarefa de não esquecer” (2007, p.48). Esse esforço de o
esquecer é o que os romances da metaficção historiográfica realizam. Esses romances são o
esforço de seus autores para lembrar, como o rio, descrito por Toni Morrison, esforçando-se
por encontrar o seu curso antigo.
O empenho de recordação está associado à lembrança de busca. dois tipos de
lembrança: uma relacionada à evocação (aparecimento) e outra à busca (volta, retomada,
recobramento, repetição). O movimento narrativo dos romances, de rememory (rememoração)
em Beloved e de renembrança em Desmundo, é o movimento de busca, de volta, de retomada,
de recobramento, de repetição, realizado pelas personagens. Mas os romances extrapolam o
espaço de retomada da memória das personagens e recuperam o conceito de história nacional,
por meio de uma revisão que liga a história ao estado de vago devaneio da memória. Ricoeur
explica que:
uma fenomenologia da memória não pode ignorar aquilo que acabamos de chamar de
cilada do imaginário, na medida em que essa composição de imagens, que se
83
aproxima da função alucinatória da imaginação, constitui uma espécie de fraqueza, de
descrédito, de perda de confiabilidade para a memória [...] a ressurreição do passado
tende, também ela, a revestir-se se formas quase alucinatórias. A escrita da história
partilha dessa forma das aventuras da composição em imagens da lembrança sob a
égide da função ostensiva da imaginação. (2007, p.70)
Para Ricoeur, sem a explicação sobre os pontos de separação entre a imaginação e a
memória, a memória pode perder credibilidade diante da história. Esse temor de Ricoeur
justifica-se porque o intuito do filósofo é colocar o discurso histórico e o mnemônico no
mesmo patamar. Porém, os romances de metaficção historiográfica sugerem que a
interligação entre discursos torna possível a produção de um conhecimento legítimo. Para essa
produção literária contemporânea, a conexão entre a memória e a imaginação não produz
falsas lembranças.
As falsas lembranças são produzidas no esquecimento, que se refere à história oficial.
Os romances produzidos levando em consideração a memória não têm como objetivo afirmar
a possibilidade das lembranças serem falsas. Mesmo colocando em debate a ideia de que o
passado é sempre incerto, por sua mediação textual, os romancistas não tomam essa incerteza
como paralisante. Embora o acesso ao passado seja provisório, instável e híbrido, não se pode
deixar de tentar compreendê-lo, nem tampouco de entender a forma como ele se apresenta na
atualidade. Esses romances buscam essa compreensão e esse entendimento.
A difícil apreensão do passado, segundo Ricoeur, toma forma no processo de
representação sob a característica da ausência. Ricoeur afirma que: “o caráter não manejável,
indisponível do passado parece efetivamente corresponder, na esfera prática, à ausência, na
esfera cognitiva da representação (2007, p.375).
A ausência se configura nas narrativas do passado, feitas pela escrita historiadora, pela
presença da morte. Para Ricoeur, as narrativas produzidas na última fase do processo
histórico, a da representação, são como os cemitérios nas cidades: elas exorcizam e
reconhecem uma presença de morte no meio dos vivos. A narrativa histórica é como um
84
cemitério que atesta a ausência causada pela morte. Dessa forma, a escrita historiográfica
representa a ausência, pelo tema da morte, como Ricoeur mostra: “toda nossa problemática da
relação da memória e da história com a ausência do passado é alcançada pelo tema da morte
na história” (2007, p.379).
Ao elaborar a ausência com palavras, a história é capaz de dar voz aos ausentes, aos
protagonistas silenciosos. Dar voz a quem não participou da formação histórica atesta que
houve abuso de poder das instâncias responsáveis por contar a história. Esse abuso acontece
porque uma instância usou as palavras em excesso, apropriando-se das palavras que seriam do
outro. A dominação sobre o outro não se limita à coerção física, os recursos de manipulação
da narrativa também são usados como forma de dominação. As narrativas de fundação,
segundo Ricoeur, são narrativas de glória e de humilhação que alimentam o discurso da
lisonja e do medo. Para Toni Morrison, fazer uso da própria voz é uma necessidade crítica: “o
exercício também é crítico para qualquer pessoa negra, ou que pertença a qualquer grupo
marginalizado, pois, historicamente, raramente fomos convidados a participar do discurso
mesmo quando éramos o seu tópico” (2008, p.70, tradução nossa).
48
O abuso de poder por meio da linguagem proporciona sérias consequências, como
Ricoeur apresenta: “esse processo de nomeação é particularmente perturbador, em se tratando
das „narrativas fundadoras‟, especialmente aquelas que deram um nome ao que sucedeu aos
reis: a França, a pátria, a nação, essas „abstrações personificadas‟” (2007, p.356). As
narrativas fundadoras, pertencentes ao conhecimento histórico, referem-se aos movimentos do
século XIX que pretendiam elaborar histórias nacionais, com pretensões de universalidade
total, segundo os princípios norteadores de coerência, integridade, completude e closure.
48
Do original: the exercise is also critical for any person who is black, or who belongs to any marginalized
category, for, historically, we were seldom invited to participate in the discourse even when we were its topic
(2008, p.70).
85
As histórias nacionais, preocupadas com os momentos fundadores da nação, são
responsáveis por constituir a ligação intrínseca entre a memória, a história e a violência. Paul
Ricoeur aponta a necessidade de se marcar essa conexão:
o que se deve evocar aqui, é a relação fundamental da história com a violência [...] não
existe nenhuma comunidade histórica que não tenha nascido de uma relação que se
possa comparar sem hesitação à guerra. Aquilo que celebramos como acontecimentos
fundadores são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um
estado de direita precário. A glória de uns foi a humilhação para outros. À celebração,
de um lado, corresponde à execração, do outro. Assim, se armazenam, nos arquivos da
memória coletiva, feridas simbólicas que pedem uma cura. Mais precisamente, o que,
na experiência histórica, surge como um paradoxo, a saber, excesso de memória aqui,
insuficiência de memória ali, se deixa reinterpretar dentro das categorias da
resistência, da compulsão, da repetição e, finalmente, encontra-se submetido à prova
do difícil trabalho de rememoração. (2007, p.92)
A função do escritor de ficções, encarregado de lembrar o passado, como aponta
Morrison, é a de ajudar a curar, por meio da lembrança buscada, as feridas simbólicas dos atos
violentos celebrados como acontecimentos fundadores e formadores de nações. Ricoeur
salienta a importância de se submeter a história de momentos traumáticos a uma revisão para
criar uma ampliação de perspectiva. A ampliação de perspectiva é necessária para que os
acontecimentos negativos relacionados à ideologia fundadora não se tornem mitos. A revisão
da história possibilita a abertura de debate crítico sobre o passado. Só por esse debate pode-se
curar as feridas do passado, segundo Ricoeur. Nessa posição de debate, insere-se a
“metaficção historiográfica”.
Colocar em debate, por meio da memória, os momentos traumáticos referentes à
fundação e à formação da nação significa discutir os conceitos de história total e de
humanidade una. A narrativa desestruturada da metaficção historiográfica revisa a linguagem
histórica que estabelece a ideia de nação. Ao desestruturar a ideia de nação, questionam-se os
conceitos de história e de humanidade ligados a ela, possibilitando a discussão sobre o
funcionamento da imposição de sentido a toda experiência dentro da cultura nas sociedades
ocidentais.
86
A narrativa, desestruturada por meio da memória, dos romances da metaficção
historiográfica Beloved e Desmundo, revisa ainda o conceito literário relacionado ao romance
histórico do século XIX, surgido do gosto romântico pelo passado. O romance histórico, fruto
dos movimentos nacionalistas, busca retratar os acontecimentos que fazem parte de uma
sequência teleológica usada como explicação para o desenvolvimento da nação. A metaficção
historiográfica revisa a composição da história total e da literatura relacionada aos conceitos
dessa história autorizada pela narrativa literária tradicional.
Segundo Toni Morrison, o romance contemporâneo, produzido pelos escritores
voltados para sua função de lembrar, funciona como uma forma de revisão da história e do
romance histórico tradicional, marcando a necessidade de criação da vida interior das
personagens. Nessa busca pela formação da vida interior, o escritor depende da memória e da
imaginação, como Morrison mostra:
em primeiro lugar, eu preciso confiar nas minhas lembranças. Preciso também confiar
nas lembranças dos outros. Dessa forma, a memória tem um valor importante no que
escrevo, na maneira em que começo e no que é significante para mim. [...] Mas
memórias e recordações não me dão acesso total à vida interior não-escrita dessas
pessoas. Somente o ato da imaginação pode me ajudar. (2008, p.71, tradução nossa)
49
A ausência de vida interior das personagens constitui-se em tema comum entre
Beloved e Desmundo. Os dois romances buscam acesso a essa vida interior, preenchendo as
lacunas deixadas pela história oficial e pelos romances da narrativa fundadora. Lacunas
existentes pela não participação de mulheres e escravos nos discursos “mesmo quando eram o
tópico” desses discursos. Os dois romances apresentam personagens com vida interior
carregada, preenchida pela associação entre a memória e a imaginação, e pelas imagens
criadas a partir dessa associação. Toni Morrison classifica esse trabalho do escritor de ficção
como arqueologia literária:
49
Do original: first of all, I must trust my own recollections. I must also depend on the recollections of others.
Thus memory weights heavily in what I write, in how I begin and in what I find to be significant. […] But
memories and recollections won‟t give me total access to the unwritten interior life of these people. Only the act
of imagination can help me (2008, p.71).
87
é como uma arqueologia literária: com base em algumas informações e um pouco de
adivinhação você vai até um lugar para ver o que restou e reconstruir o mundo que
esses vestígios implicam. O que transforma essa atividade em ficção é o ato da
imaginação: minha confiança na imagem nos vestígios adicionada à recordação,
para desvendar um tipo de verdade. Não uso o termo “imagem” com o sentido de
“símbolo”, claro; apenas com o significado de “figura” e do sentimento que a
acompanha. (2008, p.71, tradução nossa)
50
As imagens, criadas a partir da associação entre a memória e a imaginação, e a vida
interior que se apresenta por meio dessas imagens compõem-se em uma estrutura fundamental
para a memória e para a história: o testemunho. Segundo Ricoeur, “o testemunho constitui a
estrutura fundamental de transição entre a memória e a história” (2007, p.41). O universo
feminino desses romances, existente em decorrência da criação de vida interior, forma-se no
testemunho. O testemunho, por sua vez, é importante, ainda, para o movimento realizado
pelas personagens de aquisição e uso político da voz.
O testemunho como consciência íntima de um universo feminino, nos romances aqui
analisados, colabora para a formação de uma noção de tempo histórico distinta da noção de
tempo de calendário. Os mecanismos da memória e do testemunho funcionam nessas
narrativas como revisão até mesmo do tempo histórico, que deixa de se enquadrar nos padrões
impostos pelo calendário, voltando-se para uma consciência íntima do tempo.
Beloved e Desmundo subvertem, ainda, o valor que a escrita confere à história em
detrimento da memória. Paul Ricoeur define que “a escrita, com efeito, é o patamar de
linguagem que o conhecimento histórico sempre já transpôs, ao se distanciar da memória para
viver a tripla aventura do arquivamento, da explicação e da representação” (2007, p.148).
Entretanto, em Beloved e em Desmundo, a escrita está relacionada tanto à história quando à
memória. Ambos os discursos o colocados no mesmo patamar pelas narrativas dos dois
romances. Essa igualdade é defendida por Ricoeur, embora ele não considere, em A memória,
50
Do original: it‟s kind of literary archeology: on the basis of some information and a little bit of guesswork
you journey to a site to see what remains were left behind and to reconstruct the world that these remains imply.
What makes it fiction is the nature of the imaginative act: my reliance on the image on the remains in
addition to recollection, to yield up a kind of truth. By „image‟, of course, I don‟t mean „symbol‟; I simply mean
„picture‟ and the feeling that accompany the picture (2008, p.71).
88
a história, o esquecimento (2007), que a equidade aconteça em um espaço ficcional. Além da
nivelação de discursos, outro ponto defendido por Ricoeur realiza-se pela análise da questão
da memória nos romances: a possibilidade do jogo de escalas entre macro e micro-história,
pela transição que pode ser alcançada da memória individual para a coletiva, e desta para o
conhecimento histórico. Apesar de considerar a narrativa como meio de expressão e
realização do jogo de escalas, Ricoeur não entende que esse jogo possa acontecer na ficção
pós-moderna. Os romances Beloved e Desmundo, entretanto, apresentam a possibilidade de
efetivação do jogo de escalas. Além disso, a memória, com o seu tempo tripartido em
passado, presente e futuro, desafia a ideia de que o pós-moderno preocupa-se apenas com o
presente.
Os próximos capítulos analisarão os romances, mostrando como os mecanismos e a
estrutura da memória, discutidos neste item, aparecem nas estratégias narrativas que podem
ser classificadas como rememoração, em Beloved, e como renembrança, em Desmundo.
Capítulo 2.
A rememoração em Beloved
I) A rememoração
No romance Beloved, a personagem Sethe apresenta o termo rememory
(rememoração) quando tenta explicar para sua filha Denver a situação que elas têm de
enfrentar ao viver em liberdade após o regime de escravidão. A conversa entre as duas
acontece da seguinte forma:
„If a house burns down, it‟s gone, but the place the picture of it stays, and not
just in my rememory, but out there in the world. What I remember is a picture floating
around out there outside my head. I mean, even if I don‟t think it, even if I die, the
picture of what I did, or knew, or saw is still out there. Right in the place where it
happened.‟
„Can other people see it?‟ asked Denver.
„Oh, yes. Oh, yes, yes, yes. Someday you will be walking down the road and you
hear something or see something going on. So clear. And you think it‟s you thinking it
up. A thought picture. But no. It‟s when you bump into a rememory that belongs to
somebody else. (1998, p.36)
1
Sethe define rememoração como a imagem que continua a existir mesmo depois de
finalizado o acontecimento que a gerou. Sem possuir palavras ou conceitos capazes de
explicar a permanência insistente de seu passado, Sethe cria um termo que não descreve a
sua situação (a de Denver, e de todo o seu grupo social), mas também estrutura a narrativa do
romance.
A definição oferecida por Sethe apresenta duas características principais da
rememoração: a primeira a descreve como uma imagem existente no mundo, independente da
pessoa a quem ela pertence; a segunda estabelece a possibilidade de a imagem ser encontrada
por outras pessoas. Essas duas características aproximam o conceito de Sethe do conceito de
1
“Se uma casa é incendiada, ela some; mas o lugar, a imagem dele, permanece, e não só em minha relembrança,
mas fora, no mundo. O que recordo é uma imagem flutuando fora de minha cabeça. Quero dizer, mesmo que
eu não pense nela, mesmo que eu morra, a imagem do que fiz, conheci ou vi continua lá. Bem no lugar onde
tudo aconteceu. / - E as outras pessoas conseguem vê-la? / - Oh, sim. Oh, sim, sim, sim. Um dia, andando na rua,
a gente ouve ou alguma coisa. Bem nitidamente. E a gente pensa que está apenas pensando. Uma imagem no
pensamento. Mas não. É quando se tromba com uma relembrança pertencente a outra pessoa” (1987, p.50).
90
memória desenvolvido por Paul Ricoeur (2007), mas, ao mesmo tempo, proporcionam à
rememoração a especificidade de estar ligada a uma revisão de perspectivas históricas.
I.a) Uma imagem no mundo
Ao explicar o funcionamento do processo mnemônico, Paul Ricoeur valoriza o
instante do reconhecimento como o ato mnemônico por excelência (2007, p.438). O
reconhecimento recebe essa distinção por comprovar que a impressão do evento originário
permaneceu, de alguma forma: “sobre o pressuposto retrospectivo, construo um raciocínio: foi
preciso que algo permanecesse da primeira impressão para que dela me lembre agora. Se uma
lembrança volta, é porque eu a perdera; mas se, apesar disso, eu a reencontro e reconheço, é
que sua imagem sobrevivera” (2007, p.438).
Dessa forma, para Ricoeur, a principal função do reconhecimento, entendido como o
ponto essencial da memória, é mostrar a sobrevivência da imagem. Isso é exatamente o que
Sethe explica a Denver: as imagens dos acontecimentos passados não se extinguem com o fim
dos acontecimentos. No caso de Sethe, a ideia de permanência de imagens do passado
extrapola o plano das personagens e se relaciona com o processo imaginativo de criação do
romance. Afinal, a rememoração orienta a elaboração narrativa feita por Toni Morrison.
O conceito de rememoração existe nesse limite entre o processo mnemônico das
personagens e o processo criativo da autora. Em ambos os casos, personagens e autora
dependem das imagens do passado, remanescentes da própria memória ou da memória dos
ancestrais, para (re)criar eventos antecedentes. A rememoração está ligada à imagem, como
Morrison mesmo afirma:
Para mim, a diferença crucial não está entre fato e ficção, mas na distinção entre fato e
verdade. Porque fatos podem existir sem a inteligência humana, mas a verdade não.
Dessa forma, se eu quero encontrar e expor a verdade sobre a vida interior de pessoas
que não a escreveram (o que não significa que elas não a possuíam), se estou tentando
preencher as lacunas que as narrativas de escravos deixaram retirar o véu que foi
frequentemente colocado, utilizando as histórias que ouvi então, o modo mais
produtivo e confiável que eu possuo é a recordação que vai da imagem ao texto. Não a
91
que vai do texto à imagem. [...] a imagem vem primeiro e me explica sobre o que a
memória trata. (2008, p.72, tradução nossa)
2
A dependência em relação à imagem marca a difícil apreensão do passado, assinalada
pelo grande enigma da memória: a dialética entre presença e ausência. A imagem que faz do
passado ausente um elemento presente é o enigma da representação do passado. Por isso,
Ricoeur afirma que: “o caráter não manejável, indisponível do passado parece efetivamente
corresponder, na esfera prática, à ausência, na esfera cognitiva da representação (2007,
p.375). O próximo item discute a configuração da ausência, como parte do processo de
rememoração, na esfera de representação criada em Beloved.
I.a.1) A ausência
Todo o passado está ausente e inatingível: a ausência é a principal (e angustiante)
característica dos momentos decorridos. A rememoração desafia essa propriedade do
passado, ao tornar presente o ausente. Porém, o evento original, uma vez terminado, será
sempre ausente; então, a angústia é também característica da rememoração. O romance
constrói essa ausência paradoxal em elementos narrativos que extrapolam a relação direta
com a rememoração, mas que mantêm o enigma da presença de algo ausente em diferentes
instâncias do texto.
A ausência configura-se, por exemplo, na improvável personagem Beloved. Essa é
uma figura complexa que muda de forma para assegurar a todos sua intensa e contínua
presença. No início, ela é o fantasma do bebê assassinado, assombrando a casa 124 de Sethe.
Depois, Beloved volta no corpo de uma garota. Ela está intensamente presente para alguém
2
Do original: the crucial distinction for me is not the difference between fact and fiction, but the distinction
between fact and truth. Because facts can exist without human intelligence, but truth cannot. So if I‟m looking to
find and expose a truth about the interior life of people who didn‟t write it (which doesn‟t mean that they didn‟t
have it); if I‟m trying to fill in the blanks that the slave narratives left to part the veil that was so frequently
drawn, to implement the stories I heard then the approach that‟s most productive and most trustworthy for me
is the recollection that moves from the image to the text. Not from the text to the image. [...] the image comes first
and tells me what the „memory‟ is about (2008, p.72).
92
que morreu dezoito anos, com apenas um ano de vida. Como Beloved faleceu no passado,
de certa forma, ela está presa nesse passado, e não teria como existir no presente da família;
mas ela existe e acompanha os familiares por todo o romance. Ela é construída de forma tão
complexa que James Phelan, em Toward a Rhetorical Reader-Response Criticism: The
Difficult, The Stubborn, and the Ending of Beloved, expõe a personagem Beloved como um
elemento impossível de ser completamente compreendido. Phelan aceita-a como um paradoxo
intrigante aos leitores:
Apesar dos esforços de muitos leitores cuidadosos, sua personagem resiste a qualquer
análise abrangente e coerente. Não importa como arranjamos ou rearranjamos as
informações sobre Beloved, sempre alguma coisa que não combina com a
experiência total. (1993, p.174, tradução nossa)
3
Assim, o autor defende que a escolha por uma definição única em relação a essa
personagem exclui todas as outras partes presentes no romance, nas quais ela se configura sob
diferentes aspectos igualmente importantes para serem considerados ao explicá-la. Dessa
forma, definindo Beloved apenas como o fantasma da bebê assassinada, excluem-se os
momentos nos quais ela aparece como a moça que vai morar na casa 124; para considerá-los
em conjunto seria preciso analisar a moça como uma materialização do fantasma. Ainda,
sendo Beloved a materialização do fantasma, ignoram-se as passagens nas quais ela surge
como uma escrava viajando no navio rumo à América, ou o fato de ela simplesmente
desaparecer, no final do livro. Além disso, ela pode ser apenas uma metáfora sobre o passado
traumático das personagens. Todas essas possibilidades listadas ainda não conseguem abarcar
as várias facetas que Beloved apresenta para Sethe, Paul D e Denver, sendo a personagem o
catalisador de diferentes reações para cada um deles: a presença dela faz Denver amadurecer e
tornar-se adulta; faz Sethe quase sucumbir à loucura; faz Paul D entender porque gosta tanto
de Sethe. Para Phelan, não é possível classificar Beloved dentro de um único parâmetro.
3
Do original: Despite the best efforts of many careful readers, her character escapes any comprehensive,
coherent account. No matter how we arrange or rearrange the information about Beloved, there is always
something that does not fit with the experience of everything else (1993, p.714).
93
As características da personagem reforçam a intensidade com que ela se faz presente,
embora esteja ausente. Mas Beloved não é a única presença paradoxal. Baby Suggs, a avó, é
outra ausência que se torna presente. Em 1873, Baby Suggs estava morta dez anos, mas
isso não a impede de ser uma presença marcante do começo ao fim da narrativa. Ela está
presente, não apenas por meio de rememorações, mas também por meio de conversas que
Sethe e Denver têm com ela nesse período do ano 1873. Por exemplo, quando Denver sente
medo de sair do quintal da casa, Baby Suggs chega a conversar com a garota para convencê-la
a ser forte e enfrentar as circunstâncias. Embora Baby Suggs esteja morta nesse momento, ela
está, paradoxalmente, ao lado de Denver, conversando. Segundo Rafael Pérez-Torres, no
artigo Between Presence and Absence (1999), a presença de Baby Suggs torna confusos os
limites entre a vida e a morte, que constituem a distinção máxima entre existência e extinção
na cultura ocidental.
No romance, a ausência marcada pelo enigma da presença está relacionada apenas às
personagens femininas. Os homens que, de alguma forma, estão ausentes do presente da
família, em 1873, como Halle (que não conseguiu escapar de Sweet Home junto com Sethe) e
os meninos que fugiram de casa, não se tornam presentes. Eles estão totalmente ausentes;
mesmo aparecendo em algumas rememorações, eles se mostram sem intensidade e não têm
participação nenhuma no presente.
Personagens como Beloved e Baby Suggs são elaborações narrativas expressivas do
que Jean-François Lyotard considera uma característica das obras artísticas pós-modernas: a
formulação em linguagem de algo impossível de ser, em um primeiro momento, apresentado
por meio da representação escrita. Em Beloved, a preocupação em revisitar a história por meio
da memória abre espaço para a ficção mostrar algo de difícil apreensão, isto é, a ausência.
Rafael Pérez-Torres (1999) aponta que a ausência é disposta no romance desde o
primeiro parágrafo: no número da casa (em que o 3 está ausente da sequência 124) e nos
94
detalhes históricos e geográficos que não tiram do leitor o sentimento de que falta algo para
explicar melhor o acontecido com a família (o leitor é colocado em um espaço indeterminado
entre a ausência de um passado e a ausência de um futuro). Para Pérez-Torres, a questão da
ausência paradoxal é demarcada no romance em função da problemática de se encontrar uma
linguagem na qual as personagens negras consigam se expressar. Coagidas a se ausentarem do
discurso, o problema da linguagem para as personagens é: como falar quando se foi sempre
forçado ao silêncio?”. Ainda segundo Pérez-Torres, as personagens em Beloved transformam
a ausência em uma presença poderosa e intensa: “A narrativa de Morrison, confrontando a
falta de rosto que a cultura norte-americana dominante ameaça impor à expressão negra, cria
voz e identidade a partir de ausências culturais e sociais” (1999, p.180, tradução nossa).
4
Além da característica de ausência, proveniente do processo mnemônico, a
rememoração traz para a narrativa outro elemento difícil de apreender e de expressar pela
linguagem: a problemática da distância temporal que é instaurada e eliminada pela retomada,
no presente, dos eventos passados.
I.a.2) O distanciamento
A distância temporal, característica do processo mnemônico, é construída na narrativa
de Beloved, em primeiro lugar, na separação entre os acontecimentos do passado e o momento
em que são transformados em rememoração, no presente das personagens. Essa distância,
diretamente relacionada à memória, é paradoxal porque demarca o intervalo de tempo entre a
impressão originária e o momento de recordação, mas ao mesmo tempo elimina esse intervalo
ao colocar a impressão originária presente novamente. No processo mnemônico, a distância
temporal certifica o acontecimento como pertencente ao passado. Essa certificação autoriza a
passagem da memória para a história.
4
Do original: Morrison‟s narrative, confronting a faceless dominant American culture threatens to impose on
black expression, forges out of cultural and social absences a voice and identity” (1999, p.180).
95
A narrativa forma ainda a distância temporal entre o momento em que os eventos
narrados aconteceram e o momento em que o narrador os conta. O narrador não participa da
história de Sethe e sua família e está distante no tempo da existência da família. Eusebio
Rodrigues, no artigo The Telling of Beloved (1991), aponta, em Beloved, marcas da
distância temporal que separa o narrador e os leitores da vivência de Sethe e sua família. No
início do romance, a casa 124 é descrita juntamente com a apresentação de seus moradores, os
atuais e os que a deixaram: Sethe e Denver e um bebê fantasma ainda moram lá; Baby
Suggs, a avó, faleceu e Howard e Buglar, irmãos de Denver, fugiram, segundo o narrador,
para evitar a convivência com o fantasminha. Ao caracterizar os momentos em que cada
personagem viveu na casa, o narrador demarca o tempo com a seguinte frase: In fact, Ohio
had been calling itself a state only seventy years(1998, p.03).
5
A presença de only, como
delimitador de um período de tempo de setenta anos, denuncia a distância temporal: pode-se
classificar setenta anos como apenas somente se o enunciador vive em uma época histórica
posterior, em séculos, ao momento em que Ohio havia se tornado um estado (o que aconteceu
em 1803, colocando a história narrada em torno de 1873-75, e o narrador distante desse final
de século XIX muito provavelmente no final do século seguinte).
O narrador de Beloved, porém, não se apresenta de maneira uniforme em todo o
romance, mantendo-se algumas vezes mais próximo dos fatos e, em outros momentos,
colocando-se como alguém que ouviu a história de terceiros. Por exemplo, ao retomar a
trajetória de Paul D, no final da obra, quando tanto as histórias de Paul quanto as de Sethe e
Baby Suggs foram relembradas e retratadas (até mesmo de maneira íntima), o narrador
assim descreve: And he did it for seven years till he found himself in southern Ohio, where
an old lady and a girl he used to know had gone” (1998, 269).
6
Old lady and a girl
7
são Baby
5
“De fato, Ohio se tornara um Estado havia apenas setenta anos” (1987, p.11)
6
“E viveu assim por sete anos, até se encontrar no sul do Estado de Ohio, para onde haviam ido uma velha e
uma mocinha que conhecera muito tempo antes” (1987, p.315).
96
Suggs e Sethe apresentadas como se fossem desconhecidas para o leitor, e com quem Paul D
não tem contato muito tempo, mas neste ponto da narrativa o leitor acompanhou as
histórias dessas personagens. Mesmo Paul D sabe o que aconteceu com elas (quando ele
chega a casa 124, Baby Suggs morreu e Sethe assassinou uma de suas crianças). A
distância do narrador torna-se paradoxal porque mesmo longe dos acontecimentos, no tempo,
ele apresenta a história das personagens de forma muito próxima, ele acompanha bem de
perto o que aconteceu; além disso, ele alterna a proximidade e a distância em relação aos
eventos.
A distância também se apresenta de maneira paradoxal em instâncias não relacionadas
ao tempo. o distanciamento entre personagens: Sethe e Denver estão isoladas da
comunidade onde vivem, pois seus vizinhos e vizinhas não visitam a casa 124 nem conversam
com elas, por julgarem negativamente as atitudes de Sethe. até mesmo a imagem de uma
floresta que se forma, distanciando as pessoas, no momento em que Paul D descobre o crime
de Sethe e vai embora, deixando-a:
„You got two feet, Sethe, not four,‟ he said, and right then a forest sprang up between
them; trackless and quiet. […] the forest was locking the distance between them,
giving it shape and heft. […] He didn‟t rush to the door. He moved slowly and when
he got there he opened it before asking Sethe to put supper aside for him because he
might be a little late getting back. Only then did he put on his hat. […] „So long,‟ she
murmured from the far side of the trees. (1998, p.165)
8
A distância entre Sethe e os outros da mesma comunidade é paradoxal porque todos
vivem no mesmo lugar e dividem o mesmo passado traumático. muitas atitudes adotadas
no passado que os aproximam do que aconteceu com Sethe (Stamp Paid, provavelmente
matou a sua esposa, Ella deixou que um filho seu com um dos homens brancos que a
aprisionaram - morresse), mas, mesmo assim, eles se mantêm distantes dela e de Denver.
7
Uma velha e uma mocinha.
8
- Você tem dois pés, Sethe, não quatro. Nesse instante, uma floresta cresceu entre eles. Silenciosa e sem
trilhas. [...] a floresta aumentava a distância entre eles, dando-lhe forma e volume. [...] Paul D não correu para a
porta. Caminhou bem devagar e, ao abri-la, pediu que Sethe guardasse o jantar porque ele deveria chegar bem
mais tarde. Só então pôs o chapéu. [...] Até logo, murmurou ela, do outro lado das árvores” (1987, p.192).
97
Há ainda a distância estabelecida pelo ponto de vista por meio do qual a história norte-
americana oficial é contada. O ponto de vista nesse romance não remete a figuras centrais da
história nacional; são membros de um grupo marginal, dominado, que contam a sua própria
história, e assim, contam a história nacional. Ainda, dentro desse grupo marginal, a voz é dada
a um número maior de mulheres do que de homens. O leitor conhece as histórias pessoais e a
história nacional por meio da vivência de personagens femininas como Sethe, Baby Suggs,
Denver, Beloved e outras mulheres da comunidade, como Ella e Lady Jones. A presença do
ponto de vista feminino é intensificada até na questão da ausência, relacionada à memória, das
personagens masculinas, como Halle e os irmãos de Denver, que somem, no passado.
I.b) Imagens encontradas
A segunda característica da rememoração explicada por Sethe configura-se na
possibilidade de as pessoas encontrarem imagens remanescentes da vivência passada de
outras pessoas. Ela explica à Denver que sempre pode-se “trombar” com as rememorações
dos outros: Someday you will be walking down the road and you hear something or see
something going on. So clear. And you think it‟s you thinking it up. A thought picture. But no.
It‟s when you bump into a rememory that belongs to somebody else (1998, p.36).
9
Dessa
forma, constrói-se a memória coletiva, pois, como Paul Ricoeur (2007) aponta, ninguém é
capaz de realizar o ato de lembrar sozinho: o desenvolvimento da memória depende da
participação dos outros.
Segundo Ricoeur, a memória se manifesta por meio das lembranças que aparecem em
grupos e em sequências mais ou menos semelhantes à composição de uma narrativa. Ricoeur
explica que a memória existe em decorrência dos recursos de variação possibilitados pela
9
Um dia, andando na rua, a gente ouve ou alguma coisa. Bem nitidamente. E a gente pensa que está apenas
pensando. Uma imagem no pensamento. Mas não. É quando se tromba com uma relembrança pertencente a outra
pessoa” (1987, p.50).
98
configuração narrativa. Para Sethe, a memória forma-se nas imagens de rememorações que
existem prontas e soltas no mundo. Porém, essas imagens só são reconhecidas e expressas por
outros quando são colocadas em uma sequência narrativa. O conjunto de lembranças, formado
de maneira desordenada e simultânea, possibilita a reconstrução de uma experiência híbrida,
mista de criação imaginativa subjetiva e busca pela exatidão do evento passado. Ricoeur
assinala: “há mais do que sonho na evocação da latência daquilo que permanece do passado:
algo como uma especulação, no sentido de um pensamento no limite” (2007, p.444).
Dessa maneira, a narrativa do romance é elaborada a partir dos grupos de
rememorações produzidos e encontrados pelas personagens. O nascimento de Denver, por
exemplo, é uma rememoração de Sethe constantemente encontrada por Denver, Sethe e outras
personagens. A cada encontro com essa rememoração, o leitor descobre algum detalhe não
mencionado nas vezes anteriores em que a lembrança foi encontrada: cada encontro resulta
em uma rememoração diferente do mesmo evento. Por isso, Sethe atribui o termo de re-
memoração a esse fenômeno. Em “A Conversation on Toni Morrison‟s Beloved”, com
Barbara Christian e Nellie McKay, Deborah McDowell aponta ao leitor a formação da re-
memoração: “Sethe entende [...] que toda re-visitação a um evento real recria ou re-arruma,
juntando novamente o que existiu no passado, mas o rearranjo não possui uma relação de
uniformidade com o original: a memória é um processo criativo” (1999, p.210, tradução
nossa).
10
Esse processo de rememoração envolve os limites entre os mundos das diferentes
pessoas implicadas no “fazer memória”. Assim, Denver, ao encontrar a rememoração de sua
mãe, tem o seu corpo e o espaço que ocupa implicados no evento passado que ela revisita:
Easily she [Denver] stepped into the told story that lay before her eyes on the path she
followed away from the window. […] And to get to the part of the story she liked best,
she had to start way back: hear the birds in the thick wood, the crunch of leaves
10
Do original: what Sethe understands […] is that every revisitation of an actual event recreates or re-
members, puts back together that which was, but that putting together doesn‟t bear a uniform relation to what
was there before: memory is a creative process” (1999, p.210).
99
underfoot; see her mother making her way up into the hills where no houses were
likely to be. (1998, p.29)
11
O trecho mostra Denver encontrando a imagem da rememoração de sua mãe e
colocando essa imagem em uma forma narrativa para ela mesma. Esse processo implica o
corpo de Denver e o de Sethe e as trilhas distintas percorridas por cada um, em cada
momento. Denver está andando em uma trilha que a leva para longe de uma janela; Sethe está
em um caminho dentro da floresta, fugindo de Sweet Home. São corpos diferentes, ocupando
espaços e tempos diferentes, mas que se encontram, fazendo dois mundos diferentes
convergirem. Ritashona Simpson, em Black Looks and Black Acts, descreve três espaços e
tempos distintos nessa rememoração:
O foco da narrativa está no tempo e espaço de Sethe. Entretanto, a narrativa justapõe
este tempo e espaço com os do momento em que Sethe conta essa memória à sua filha.
O terceiro tempo e espaço, menos valorizado nessa passagem, é o tempo em que
Denver está andando pela floresta lembrando o que sua mãe lhe contou. (2007, p.67,
tradução nossa)
12
Simpson, entretanto, deixa de mencionar o quarto tempo envolvido nessa passagem: o
momento em que o narrador conta essa rememoração, posterior ainda ao tempo que Denver
ocupa. No entanto, Simpson comenta sobre a posição do narrador quando explica a estrutura
narrativa do romance, baseada no processo mnemônico, a partir dessa rememoração de Sethe
e Denver:
Ao falar por Sethe e Denver, o narrador onisciente acompanha os padrões das
lembranças da forma que ocorrem, em vez de desdobrar a história em uma progressão
lógica de tempo cronológico. Dessa maneira, o narrador encontra uma linguagem
escrita para as imagens que pertencem às memórias de Denver e Sethe. A linguagem
desta passagem é típica da linguagem em Beloved no sentido de que está preocupada,
principalmente, com o que as personagens lembram, em oposição ao que elas dizem, e
11
“Com facilidade [Denver] mergulhou na história que se desenrolava diante de seus olhos, enquanto se afastava
da janela. [...] E, para chegar à parte que mais gostava da história, tinha de começar bem antes: ouvir os pássaros
na mata espessa, o amassar das folhas sob os pés; ver a mãe abrindo caminho, subindo para as colinas onde era
pouco provável que houvesse casas” (1987, p.42).
12
Do original: The focus of the narrative is on Sethe‟s time and space. However, the narrative juxtaposes this
time and place with the event of Sethe‟s relation of this memory to her daughter. The third time and space, which
is diminished in this passage, is the time when Denver is walking through the forest remembering what her
mother had told her (2007, p.67).
100
em encontrar uma forma de relatar as memórias da maneira como elas às vezes
ocorrem. A transição da memória entre tempos e espaços, a perda de partes dela em
razão da recriminação e a desorganização narrativa que ela gera são o foco desse
romance e a esquematização de sua estrutura narrativa. (2007, p.68, tradução nossa)
13
O romance todo é constituído de rememorações que estão soltas e são encontradas por
outras personagens. O processo de rememoração e a formação da memória coletiva
acontecem nos momentos dos encontros, como esse de Denver, mas também naqueles ainda
mais intensos como o de Denver e Beloved com esse mesmo evento. Quando Beloved pede
para Denver contar a história de seu nascimento, esse processo configura-se em uma
rememoração diferente da que Denver faz quando está sozinha. Há uma intensidade maior na
rememoração feita pelas duas garotas, reforçando a necessidade do outro para lembrar-se:
Now, watching Beloved‟s angry and alert face, how she took in every word, asking
questions about the color of things and their size, her downright craving to know,
Denver began to see what she was saying and not just hear it: there is this nineteen-
year-old slave girl a year older than herself walking through the dark woods to get
to her children who are far away. […] Denver was seeing it and feeling it through
Beloved. Feeling how it must have felt to her mother. […] Denver spoke, Beloved
listened, and the two did the best they could to create what really happened, how it
really was, something only Sethe knew because she alone had the mind for it and the
time afterward to shape it. (1998, p.78)
14
A narrativa que Denver faz da rememoração de sua mãe, para Beloved, refere-se à
especulação, no sentido de um pensamento no limite, classificada por Ricoeur (2007). Essa
narrativa é o testemunho que funciona como ponte entre a memória e a história. Embora
Denver não seja capaz de dar o testemunho de seu nascimento, ela é capaz de recontá-lo a
13
Do original: in speaking for Sethe and Denver, the omniscient narrator follows the patterns of the memories
as they occur in their minds rather than to unfold the story as a logical progression of chronological time. In this
sense, the narrator finds a written language for the images in Denver and Sethe‟s memories. The language in
this passage is typical of the language in Beloved in the sense that it is preoccupied primarily with what
characters remember as opposed to what they say; and it is concerned with relating the memories as they
sometimes occur. The transition of memory as it moves from time and space, the loss of its parts to censorship,
and the disorganization of its narrative is the focus of this novel and the pattern of its narrative structure (2007,
p.68).
14
“Agora, observando o rosto atento e ávido de Amada, o jeito como bebia cada palavra, fazendo perguntas
sobre a cor e o tamanho das coisas, sua ânsia de saber, Denver começou a visualizar o que dizia. estava
aquela escrava de dezenove anos um ano mais velha que ela andando pela mata escura para alcançar os filhos
distantes. [...] Denver agora via e sentia tudo, através de Amada. [...] Denver falava, Amada ouvia, e ambas
faziam o possível para recriar na imaginação o que de fato acontecera, como tudo realmente se passara, algo que
só Sethe sabia, pois apenas ela vivera aquilo” (1987, p.95).
101
partir do que a sua mãe lhe contou, a partir do testemunho de sua mãe. Por isso, Ricoeur
afirma: “as lembranças transmitidas unicamente pela voz voam, como voam as palavras”
(2007, p.58). Ao recontar o nascimento para outra pessoa, Denver começa a sentir o que
aconteceu, não apenas a receber a história pronta, e assim ela passa adiante a história, no
formato de um pensamento no limite.
A rememoração do nascimento exemplifica ainda o aspecto da narrativa do romance
de encadeamento de rememorações. Quando Denver está lembrando o nascimento, ela chega
na parte exata quando Amy, a garota que está ajudando Sethe a ter o bebê, faz um comentário
sobre a dor das coisas que voltam a ter vida. Esse comentário incita Denver a lembrar de outra
situação, mas uma situação vivida por ela mesma: uma visão que ela teve, algum tempo antes
de Paul D chegar à casa 124 (e a rememoração do nascimento acontece um pouco depois de
sua chegada). Assim o romance é elaborado: de uma rememoração à outra. Como as
rememorações pertencem a diferentes momentos, a narrativa é estruturada em um tempo não-
linear: um tempo que se move para trás e para frente, dependendo das lembranças incitadas a
partir do que as personagens estão fazendo, vendo, ou até mesmo pela rememoração de outra
pessoa. O seguinte trecho mostra Denver saindo da rememoração do nascimento e passando
para a rememoração da visão que ela teve de um vestido branco ao lado de sua mãe:
„It‟s gonna hurt, now,” said Amy. „Anything coming back to life hurts.‟
A truth for all times, thought Denver. Maybe the white dress holding its arm
around her mother‟s waist was in pain. If so, it could mean the baby ghost had plans.
When she opened the door, Sethe was just leaving the keeping room. (1998, p.35)
15
Da mesma forma que Denver muda repentinamente de rememoração, a narrativa, em
todo o romance, realiza mudanças bruscas. Do início ao fim, as histórias das personagens são
apresentadas ao leitor por essas mudanças. Por exemplo, Paul D, ao entrar pela primeira vez
15
- Vai doer mesmo disse Amy toda coisa morta que volta a viver dói. / Nunca houvera verdade maior,
pensou Denver. Talvez o vestido brando com manga enlaçada na cintura da mãe estivesse sentindo dor. Se fosse
assim, poderia significar que o bebê fantasma tinha planos. Abriu a porta ao mesmo tempo em que Sethe saía do
quartinho” (1987, p.49).
102
na casa 124 fica paralisado com a presença do fantasma, mas Sethe lhe garante ser seguro
entrar. Então, ele olha bem para ela e tudo o que é descrito a partir da frase He had never
seen her hair in Kentucky,
16
aa frase Now the iron was back but the face, softened by
hair, made him trust her enough
17
é uma mudança na ordem narrativa. Essa mudança tira o
leitor do momento que ele está acompanhando, leva-o a uma rememoração de Paul D e o traz
de volta para o momento de Paul D entrar na casa, como aparece no seguinte trecho:
He looked at her then, closely. Closer than he had when she first rounded the
house on wet and shining legs, holding her shoes and stockings up in one hand, her
skirts in the other. Halle‟s girl the one with iron eyes and backbone to match. He
had never seen her hair in Kentucky. And though her face was eighteen years older
than when he last saw her, it was softer now. […] Halle‟s woman. Pregnant every
year including the year she sat by the fire telling him she was going to run. Her three
children she had already packed into a wagonload of others in a caravan of Negroes
crossing the river. They were to be left with Halle‟s mother near Cincinnati. Even in
that tiny shack, leaning so close to the fire you could smell the heat in her dress, her
eyes did not pick a flicker of light. They were like two wells into which he had trouble
gazing. Even punched out they needed to be covered, lidded, marked with some sign to
warn folks of what that emptiness held. So he looked instead at the fire while she told
him, because her husband was not there for the telling. Mr. Garner was dead and his
wife had a lump in her neck the size of a sweet potato and unable to speak to anyone.
She leaned as close to the fire as her pregnant belly allowed and told him, Paul D, the
last of the Sweet Home men.
There had been six of them who belonged to the farm, Sethe the only female. Mrs.
Garner, crying like a baby had sold his brother to pay off the debts that surfaced the
minute she was widowed. Then schoolteacher arrived to put things in order. But what
he did broke three more Sweet Home men and punched the glittering iron out of
Sethe‟s eyes, leaving two open wells that did not reflect firelight.
Now the iron was back but the face, softened by hair, made him trust her enough to
step inside her door smack into a pool of pulsating red light. (1998, p.9)
18
16
“Nunca vira seus cabelos em Kentucky”.
17
“Agora o ferro voltara, mas o rosto, suavizado pelos cabelos, fez Paul D confiar suficientemente nela”.
18
“Paul D olhou para Sethe atentamente. Mais do que quando ela fizera a volta na casa, as pernas úmidas e
brilhantes, segurando as meias e os sapatos numa das mãos e a saia na outra. A garota de Halle com olhos e
vontade de ferro. Nunca vira seus cabelos em Kentucky. E, apesar de o rosto estar dezoito anos mais velho,
agora era mais suave, por causa dos cabelos. […] A mulher de Halle. Grávida todos os anos, até mesmo naquele
em que se sentara perto do fogo lhe dizendo que ia fugir. Já embarcara as três crianças num carroção de uma
caravana de negros que cruzara o rio. Iam ser entregues à mãe de Halle, perto de Cincinnati. Mesmo naquela
cabana pequenina, inclinando-se tão perto do fogo que Paul D podia sentir o calor em seu vestido, seus olhos não
haviam captado nem uma centelha de luz. Eram como dois poços cujos fundos não se podiam divisar. Mesmo
perfurados, precisavam ser cobertos, tapados, marcados com algum sinal que alertasse as pessoas sobre o que
havia por trás daquele vazio. Ele preferira ficar olhando para o fogo enquanto ela falava, uma vez que o seu
marido não estava ali perto para que ela lhe contasse tudo. O Sr. Garner morrera; sua mulher tinha no pescoço
um caroço do tamanho de uma batata-doce e não podia falar com ninguém. Sethe inclinou-se o mais perto da
fogueira que sua barriga permitiu e contou a ele, Paul D, o último dos homens de Sweet Home. / Antes houvera
seis homens na fazenda; Sethe era a única mulher. A Sra. Garner, chorando como um bebê, vendera o irmão de
Paul D para pagar as dívidas que surgiram no instante em que ficara viúva. Depois o professor chegara para pôr
ordem nas coisas. Porém, só conseguiu acabar com mais três homens de Sweet Home e perfurar o ferro brilhante
103
A rememoração de Paul D nessa passagem, em relação à época que viveram no
Kentucky, abrange concomitantemente a descrição de dois períodos: um período de tempo
referente a anos e meses em Sweet Home (“pregnant every year; there had been six of
them”; Mrs. Garner [...] had sold his brother”; then schoolteacher arrived”; what he did
broke three more Sweet Home men);
19
e um período específico de tempo, de curta duração,
referente ao momento em que Sethe lhe conta sobre sua futura fuga, narrado em detalhes
como iluminação, odores e os olhos de Sethe. Além desses dois períodos, essa rememoração
está ligada ao momento em que acontece, quase vinte anos depois dos eventos originários,
pela relação com o cabelo e o rosto de Sethe. As relações estabelecidas por Paul D, entre as
características fisionômicas da Sethe jovem e as da Sethe de vinte anos depois, realizam,
novamente, o encontro entre corpos e mundos.
O tempo estabelecido assim, de maneira complexa, não se encaixa em definições
lineares, correspondendo à crítica feita por Paul Ricoeur sobre a noção de tempo histórico
que, enquanto tempo de calendário, transforma-se em obstáculo na transição da consciência
íntima do tempo ao tempo demarcado por medidas externas. Dessa forma, a memória existe e
se mantém em um tempo sem correlação exata com o tempo de calendário. Toni Morrison
elabora, na narrativa de Beloved, um tempo de experiências pessoais que não cabe no tempo
estático do calendário, rompendo com delimitações cronológicas.
A consciência íntima do tempo está ligada à memória individual que, por meio do
testemunho, transforma-se em memória coletiva e até mesmo em história. O entendimento
subjetivo do tempo passa a se relacionar com outros entendimentos subjetivos do tempo,
dos olhos de Sethe, deixando dois poços abertos que não refletiam a luz do fogo. / Agora o ferro voltara, mas o
rosto, suavizado pelos cabelos, fez Paul D confiar suficientemente nela para penetrar naquela poça de luz
vermelha e pulsante” (1987, p.19).
19
Grávida todos os anos”; Antes houvera seis homens na fazenda”; A Sra. Garner [...] vendera o irmão de
Paul D”; “Depois o professor chegara”; “só conseguiu acabar com mais três homens de Sweet Home”.
104
formando um conhecimento que escapa à gica da ciência (almejada pela história como
disciplina). A ação de fazer memória é, assim, uma forma de atuação prática no mundo. Como
Sethe e Denver mostram, ao fazer memória, narra-se a própria história: tomar a voz para
relatar experiências pessoais é assumir uma posição ativa no mundo, garantindo que ninguém
esquecerá o acontecido. O ato de lembrar realizado pelas personagens femininas corresponde,
então, ao ato político de se colocar na história, na sociedade: um ato de sair da margem.
Embora pareça ser um ato individual, reservado à esfera particular, Beloved mostra que se
trata de uma atuação social pública.
A habilidade para contar a própria história realiza-se no testemunho, na memória
declarada em uma sequência narrativa. O testemunho possibilita a história, pois a história é
fundamentalmente feita de registros de testemunhos confirmando que alguém viu ou
participou de um evento. Em Beloved, o testemunho se torna essencial para que Denver
conheça a história de sua mãe. O testemunho garante que a rememoração de Sethe seja
encontrada e entendida. Dessa forma, o processo de rememoração não se realiza
unilateralmente. A rememoração é conjunta, nunca individual, mesmo a memória
funcionando inicialmente de maneira individual. A rememoração não é, então, como Mae G.
Henderson (1999) a considera: “„rememory‟, parece, é mais algo que atormenta (ou assombra)
do que um objeto que alguém possui” (p.86, tradução nossa).
20
Se a rememoração não
pertence a uma única pessoa é porque se trata de um processo coletivo, não porque assombra
as pessoas; a questão problemática da rememoração em Beloved não diz respeito à sua
existência, nem a sua estrutura de funcionamento: o problema está no passado traumático das
personagens, nas experiências sob o sistema escravocrata que as perseguem.
Ao elaborar uma construção coletiva da memória, Toni Morrison dispõe em Beloved
diversas vozes coexistentes. A polifonia, além de funcionar na construção da rememoração,
20
Do original: „rememory‟, it seems, is something that possess (or haunts) one rather than something that one
possesses” (p.86).
105
chama a atenção do leitor para o modo como a narrativa é construída, sendo uma forma de
comentário sobre a ficção. A metaficção nesse romance forma-se, então, a partir de elementos
que configuram o processo de rememoração. A rememoração permite se pensar a respeito do
processo de elaboração textual do romance. Pelo processo de rememoração, cria-se a estética
do fragmentário, outra característica da metaficção historiográfica. A estética do fragmentário
se estabelece de muitas maneiras; entre elas, as mudanças repentinas do presente das
personagens para suas rememorações, como foi mostrado acima, com a rememoração de Paul
D.
A narrativa fora de padrões convencionais, elaborada pelo processo de rememoração,
marcada pelas características de ausência e distância, pelo tempo não-linear, pela polifonia, e
pela fragmentação, é o espaço ficcional onde a revisão de perspectivas históricas ocorre.
II) Revisão de perspectivas históricas
Em Beloved, a memória possibilita a revisão de perspectivas históricas pelo ponto de
partida que Toni Morrison adota no romance: a urgência de lembrar como função do escritor
de ficção. Segundo Morrison (2008), o romance contemporâneo, voltado para o exercício da
lembrança, marca a necessidade de constituição da vida interior das personagens. No caso de
Beloved, essa elaboração é uma forma de revisão porque fornece vida interior a figuras de
escravos e de seus filhos, oferecendo-lhes um registro pessoal que a história oficial não teve
espaço para proporcionar. A busca da autora para formar essa vida interior depende tanto da
memória quanto da imaginação.
Assim, o processo de rememoração acontece no limite entre as lembranças revisitadas
pelas personagens e o processo criativo da autora em busca das imagens mnemônicas de seus
antepassados que viveram sob o regime de escravidão ou sob suas sequelas. A dependência da
106
memória em relação às imagens que permanecem é característica tanto das personagens
quanto da autora na procura pela formação da vida interior deixada de lado tanto pela história
oficial quanto pelos romances históricos tradicionais, em decorrência da não participação de
mulheres e escravos nos discursos. A vida interior das personagens de Beloved é preenchida
pela associação entre a memória e a imaginação e pelas imagens criadas a partir dessa
associação (feita pelas personagens e pela autora).
A vida interior também se forma no testemunho que funciona como consciência íntima
de um universo feminino no romance, colaborando para a formação de uma noção de tempo
histórico distinta da noção de tempo de calendário. Os mecanismos da memória e do
testemunho funcionam na narrativa como revisão até mesmo do tempo histórico e do tempo
linear, deixando de se enquadrar nos padrões impostos pelo calendário, voltando-se para uma
consciência íntima do tempo.
A ausência de vida interior das personagens históricas relaciona-se com a ausência
característica do passado: ambos são inacessíveis e difíceis de expressar por meio de
linguagem. Entretanto, segundo Ricoeur, há meios dentro da linguagem histórica de expressão
da ausência: toda nossa problemática da relação da memória e da história com a ausência do
passado é alcançada pelo tema da morte na história(2007, p.379). O tema da morte, para
Ricoeur, “assinala, de certa forma, o ausente na história. O ausente no discurso
historiográfico” (2007, p.376). O tema da morte indica a ausência de alguém no discurso;
porém, ao tratar da morte dessa pessoa a história oferece-lhe um marco de existência. Assim,
Ricoeur defende que se pode “considerar a operação historiográfica como o equivalente
escrituário do rito social do sepultamento, da sepultura” (2007, p.377). A sepultura não é
somente um lugar: ela é um ato, o de enterrar. Esse ato não é pontual, que a sepultura
permanece.
107
Em Beloved, a personagem da criança assassinada representa a questão da sepultura. O
sepultamento de Beloved não é um acontecimento pontual, porque trata-se de um ritual que a
família precisa fazer constantemente. O fantasma assombrando a casa 124 exige que a família
se lembre de sua existência. A própria sepultura da criança apresenta o problema da escrita na
história, pois ela deveria garantir às próximas gerações o conhecimento sobre essa existência
específica. Sethe, entretanto, além de não ter como pagar por uma inscrição na lápide, não
sabe o que deixar escrito ali. Ela escolhe uma das palavras que ouviu o padre dizer no funeral
Beloved e paga por ela com dez minutos de sexo com o responsável por fazer a inscrição.
A sepultura de Beloved é incompleta: pois Sethe queria duas palavras (Dearly Beloved), e
pediu apenas por uma; a única palavra na lápide provém de um discurso oficial e padronizado,
provém de uma voz masculina, pertencente ao centro do poder (essa voz não poderia
representar Beloved); e o preço pago por essa inscrição faz de Sethe um objeto como a
escravidão fizera. A rememoração de Sethe, no início do romance, mostra como o
sepultamento foi problemático:
Ten minutes for seven letters. With another ten could she have gotten Dearly‟ too?
She had not bothered to ask him and it bothered her still that it might have been
possible that for twenty minutes, a half hour, say, she could have had the whole
thing, every word she heard the preacher say at the funeral (and all that was to say,
surely) engraved on her baby‟s headstone: Dearly Beloved. But what she got, settled
for, was the one word that mattered. She thought it would be enough, rutting among
the headstones with the engraver, his young son looking on, the anger in his face so
old; the appetite in it quite new. That should certainly be enough. Enough to answer
one more preacher, one more abolitionist and a town full of disgust. (1998, p.5)
21
O sepultamento que Beloved recebe não é o suficiente para assegurar que sua
existência será lembrada porque ele não reverte nenhuma situação; o discurso oficial e o
corpo como objeto apenas confirmam a situação que resultou na morte da criança. Se a
21
“Dez minutos por cinco letras. Com mais dez teria conseguido também o „Caríssima‟? Não pensara em
perguntar-lhe e ainda se perturbava com a probabilidade de ter sido possível que por vinte minutos, talvez meia
hora, teria obtido a coisa inteira, cada palavra que ouvira o pastor dizer no funeral (e certamente tudo o que havia
para ser dito) gravada na lápide de sua filhinha: Caríssima Amada. Mas o que conseguira, como combinado, fora
a única palavra que importava. Achou que seria o suficiente entre as lápides, a raiva e o desejo misturados no
olhar do filho do homem, que assistia a tudo. Isso seria o suficiente. O bastante para responder a mais um pastor,
a mais um abolicionista e a uma cidade cheia de revolta” (1987, p.13).
108
sepultura não oferece a Beloved a possibilidade de ser lembrada, essa sepultura está
incompleta. Afinal, segundo Ricoeur, a sepultura teria de tornar presente, na linguagem, o ato
social de existir hoje e lhe fornecer um ponto de referência cultural. Se a sepultura não faz
isso, Ricoeur afirma: “então, a ausência não é mais um estado, mas um resultado do trabalho
da história, verdadeira máquina de produzir separação” (2007, p.378).
As narrativas do passado, feitas pela escrita historiadora, de acordo com Ricoeur, são
como os cemitérios nas cidades: elas exorcizam e reconhecem uma presença de morte no
meio dos vivos. Entretanto, a presença reconhecida pela história não é a de todos os mortos, é
apenas a dos mortos que têm algum nome. Ricoeur aponta: “Primeiramente, observa-se que a
morte em história não é diretamente a morte indiscriminada dos anônimos. Ela é, em primeiro
lugar, a morte dos que têm um nome, a morte que faz o acontecimento” (2007, p.379).
A personagem Beloved instala e subverte esse conceito da morte em história. Ela é a
ausência, a morte com a sepultura incompleta, que ficará fora da história; mas ela procura
permanecer, ela quer assegurar as rememorações para não ser esquecida. Um romance inteiro
dedicado a rememorações garantindo a existência de Beloved é uma revisão da história que a
deixou de fora. Beloved representa, no romance, a morte dos que não têm um nome, todos os
que morreram sem serem conhecidos. Ela literalmente não tem nome; ela usa como nome o
pedaço de discurso oficial registrado em sua lápide. Essa é uma nova perspectiva histórica
possibilitada pelo espaço ficcional: a elaboração de sepultura aos desconhecidos.
Os desconhecidos que ganham uma sepultura no romance não são apenas os escravos
do fim do período escravocrata. As referências à mãe de Sethe apontam para um grupo maior
de desconhecidos, acrescentando os escravos que viveram a vida inteira sob o regime de
escravidão. Como a mãe de Sethe veio da África de navio, de acordo com as rememorações
apresentadas, adiciona-se ao conjunto de desconhecidos todos os africanos retirados de sua
terra natal e levados para a escravidão. Beloved também representa os africanos forçados a ir
109
para a América, pois, em um dos momentos, ela descreve estar em alto-mar, fazendo a
travessia. Morrison engloba, com as personagens Beloved e a mãe de Sethe, uma perspectiva
histórica voltada para os rastros que a história não deixou, nos quais pudessem ser
identificadas as vidas interiores desses desconhecidos em número muito maior do que a
família de Sethe e sua comunidade. Eles são os Sixty Million and more
22
a quem o romance
é dedicado.
Ao formular a vida interior dos escravos, principalmente a de Sethe e sua família, Toni
Morrison revisa, ainda, as perspectivas históricas que os percebiam apenas como objetos de
valor econômico. Essas perspectivas, durante o século XIX, apoiavam-se em justificativas
científicas, provenientes do positivismo que levou a história e os outros campos do
conhecimento a se basearem na comprovação de fatos empíricos. As justificativas científicas
partiam de estudos como o de Josiah Clark Nott, com trechos presentes na coletânea Selected
Readings in American History (DeNOVO, J. A., 1969), que apresenta o negro como
desprovido de intelecto. Nott chega a essa conclusão utilizando métodos considerados por ele
científicos e incapazes de serem contestados, baseados na medição do crânio: “está provado
que o negro e outros tipos desprovidos de intelecto possuem cabeças muito menores do que as
raças brancas” (1969, p.382, tradução nossa).
23
Ao classificá-lo como uma raça sem
desenvolvimento da inteligência, o cientista exclui o negro da sociedade organizada em torno
da razão, a sociedade valorizada pelo cientificismo do século XIX.
Um estudo científico de Samuel A. Cartwright, também presente em Selected
Readings (1969), chega a descrever a constituição física e mental dos negros em uma
linguagem próxima da que era usada nos anúncios publicitários da venda de escravos (por
exemplo, com o uso de adjetivos: amor inato para trabalhar; qualifica-se
22
“Sessenta Milhões ou mais”.
23
Do original: the Negro and other unintellectual types have been shown to possess heads much smaller than
the white races” (1969, p.382).
110
admiravelmente/abundantemente; forte; resistente; prazer positivo).
24
O estudo científico,
assim considerado por Cartwright, coloca o negro como um objeto mensurado, à margem da
formação social, como um elemento de valor econômico.
A exclusão do negro da cena social, que aparece nestes registros históricos, reflete-se
em livros de história produzidos um século depois, como em A History of the Southern
Confederacy, de Clement Eaton, publicado em 1961. A maior parte do livro é destinada a
retratar as batalhas da Guerra Civil norte-americana, as estratégias, os generais, as armas; mas
dois capítulos para explicar o contexto histórico da guerra: Society and Culture in a War
Atmosphere e Economic Disintegration. No primeiro, o autor descreve a situação social e
cultural exclusiva da elite, dos proprietários de terra. Neste capítulo, a presença social dos
negros escravos é mencionada apenas quando o autor caracteriza a escola das crianças brancas
da elite, e ao listar os assuntos de livros escolares, o escravo aparece como um dos conteúdos.
A existência dos negros é atribuída à esfera econômica, descrita no capítulo seguinte, entre
considerações a respeito de mercadorias, como preço, distribuição e consumo (de sal, carne e
remédios).
Mas a abordagem histórica exclusivamente econômica da presença dos negros é
alterada na segunda metade do século XX, segundo Charles Sellers, Henry May e Neil
McMillen, autores de Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos (1990). Antes da
Segunda Guerra Mundial, a escravidão era retratada pelos historiadores como uma instituição
econômica paternalista; entretanto, após a guerra, de forma geral, os estudos não se
preocupam tanto com as características institucionais da escravidão quanto em analisá-la no
dia-a-dia, focalizando a autonomia da comunidade negra, em sua capacidade criativa de
adaptação. Ao reconhecer a organização em comunidade, confere-se ao negro uma
participação na configuração social. Howard Zinn (2003) também discute como a escravidão
24
Do original: innate love to act; admirably/abundantly qualifies; strong; hardy; positive pleasure.
111
é retratada pelos historiadores e aponta que ela, geralmente, é descrita por meio de números e
estatísticas, ou por meio da avaliação de quanto dinheiro era gasto para sustentar os escravos.
Para o autor, esses não são meios válidos de se considerar a escravidão: “como isso poderia
descrever a realidade da escravidão tal como era para um ser humano vivendo nesse sistema?
As condições da escravidão são tão importantes quanto sua existência?” (2003, p.172,
tradução nossa).
25
Aproveitando-se de questões como essas, Toni Morrison elabora em Beloved não a
realidade da escravidão como ela era para quem a viveu, mas como poderia ter sido a vida
interior de quem viveu sob a égide desse sistema cruel. Essa mudança de visão questiona as
formas pelas quais esse período da história foi entendido. Morrison volta para esse momento
histórico um olhar pessoal, privado, de uma família afro-americana, ao contrário do ponto de
vista do pensamento positivista que definia a história no século XIX e era usado para justificar
a escravidão. Como a ciência, com seus métodos, era considerada confiável na busca pela
verdade, estudos científicos eram realizados para justificar racialmente a escravidão. Os
negros eram vistos por esse ponto de vista oficializado e difundido pelo ensino acadêmico
disciplinar. O próximo item apresenta os trechos do romance que resgatam e subvertem o
sistema de ensino autorizador e disseminador desse conhecimento.
II.a) “Características animais à direita”
A dominação cultural exercida sobre os escravos, autorizada pelo pensamento
positivista, resultou na história que desumanizou os negros, registrando os escravos sem vida
interior, como peças de valor econômico. Essa dominação é evidenciada em um relato de
Sethe a Beloved sobre uma aula da personagem schoolteacher que ela ouviu acidentalmente,
em Sweet Home. Sethe elabora sua rememoração para Beloved da seguinte maneira:
25
Do original: how can this describe the reality of slavery as it was to a human being who lived inside it? Are
the conditions of slavery as important as the existence of slavery?(2003, p.172).
112
I got near the door and I heard voices. Schoolteacher made his pupils sit and learn
books for a spell every afternoon. If it was nice enough weather, they‟d sit on the
porch. All three of em. He‟d talk and they‟d write. Or he‟d read and they‟d write down
what he said. I never told nobody this. Not your pap, not nobody. I almost told Mrs.
Garner, but she was so weak then and getting weaker. This is the first time I am telling
it and I‟m telling it to you because it might help explain something to you although I
know you don‟t need me to do it. To tell it or even think over it. You don‟t have to
listen either, if you don‟t want to. But I couldn‟t help listening to what I heard that
day. He was talking to his pupils and I heard him say, „Which one are you doing?‟
And one of the boys said, „Sethe.‟ That‟s when I stopped because I heard my name,
and then I took a few steps to where I could see what they was doing. Schoolteacher
was standing over one of them with one hand behind his back. He licked a forefinger a
couple of times and turned a few pages. Slow. I was about to turn around and keep on
my way to where the muslin was, when I heard him say, „No, no. That‟s not the way. I
told you to put her human characteristics on the left; her animal ones on the right.
And don‟t forget to line them up‟. (1998, p.193)
26
A dominação cultural sobre os negros escravos toma forma nessa passagem por meio
de um olhar feminino. Quem conta essa passagem, no romance, é a própria Sethe. Quem
apreende o tipo de aula que está sendo ministrada e a relação de dominação imanente a essa
atividade possui uma visão feminina, não um olhar masculino.
O olhar, feminino, configura-se do lado do dominado, na situação descrita. Um olhar
formulado à distância, pois Sethe ouve de longe a conversa, apenas por passar pelo local, não
participando da aula: I got near the door and I heard voices.
27
Ela não está no centro da
ação, ela está à margem do evento, alheia ao acontecimento central. Por isso, as ações de
Sethe definem-se pela passividade: suas atitudes são ouvir e observar. A distância de Sethe
evidencia-se ainda por ser ela o objeto do enunciado dos garotos e do professor. Ela é objeto
da discussão apresentada, não enunciador. O discurso, interno à aula, formula-se independente
26
“Cheguei perto da porta e ouvi vozes. O professor fazia seus sobrinhos estudarem todas as tardes. Quando o
tempo estava bom ficavam na varanda lateral. Ele falava e os garotos escreviam, ou então ele lia em voz alta e os
garotos repetiam. Nunca contei o que vi a ninguém, nem mesmo a seu papai. Estive prestes a contar para a
senhora Garner, mas na época ela estava muito fraca e doente. É a primeira vez que falo com alguém a
respeito disso. Resolvi lhe contar porque isso talvez explique alguma coisa, embora eu saiba que você não
precisa de explicações. E também não precisa ouvir se não quiser. [não pude evitar ouvir o que escutei naquele
dia] Bem, eu ia entrar pela porta da cozinha, quando escutei o professor perguntar: - Qual você está fazendo? Um
dos meninos respondeu: - Sethe. Parei ao escutar meu nome e então dei alguns passos em direção à varanda, para
poder ver o que estava acontecendo. O professor, inclinado sobre um dos garotos e com uma das mãos atrás das
costas, espiava o que ele escrevera. Lambeu a ponta dos dedos e virou algumas páginas do caderno. Eu já me
afastava para ir pegar a musselina quando o ouvi dizer: - Não, não é assim. Já lhe disse para pôr as características
humanas do lado esquerdo, e as animais do lado direito. E não se esqueça de sublinhá-las” (1987, p.225).
27
“Cheguei perto da porta e ouvi vozes”.
113
da participação dela. Essa é outra das maneiras em que a distância é expressa pela narrativa,
seguindo as formas já descritas no item I.a.2.
A distância, em que Sethe é colocada, força-a a rearranjar sua posição inicial no
evento para entender a situação em que está inserida. Exige-se dela um esforço físico para ver
e compreender o que acontece: That‟s when I stopped because I heard my name, and then I
took a few steps to where I could see what they was doing.
28
Por não estar no centro do
acontecimento, ela precisa se movimentar.
A situação de dominação sobre Sethe também é formulada nesse trecho no fato de ela
não conseguir contar o evento de forma direta. Sethe voltas no assunto antes de apresentar
a passagem específica que deseja narrar. Isso é um atributo da personagem em todo o
romance. Pode-se perceber que ela inicia o assunto com I got near the door”, interrompe-o,
com I never told nobody this”, e retoma dizendo I couldn‟t help listening to what I heard
that day.
29
Desviar-se do assunto é uma marca de oralidade dentro do texto literário. Além
disso, aqui, também é resultado da dificuldade da personagem em verbalizar suas
experiências. Ela passou por experiências ditas no limite, como Paul Ricoeur (2007) as
classifica, e por isso tem dificuldade de expressá-las. Mesmo assim, nesse momento, ela está
realizando a atividade de tomar a voz e narrar a própria história. Essa atitude não é fácil para
Sethe. Formular o seu próprio testemunho é o passo necessário para Sethe sair do
posicionamento marginal (de escutar) e entrar no posicionamento central (de falar).
O tempo verbal de passado confere a esse trecho, ainda, a característica de relato,
atribuindo-lhe a configuração de um testemunho, de uma lembrança colocada em forma mais
ou menos narrativa. Sethe conta sua experiência depois do acontecimento. Uma representação
é oferecida no lugar do evento original; o acesso ao episódio é mediado. Essa mediação expõe
28
Parei ao escutar meu nome e então dei alguns passos em direção à varanda, para poder ver o que estava
acontecendo.
29
“Cheguei perto da porta”; “Nunca contei o que vi a ninguém”; “[não pude evitar ouvir o que escutei naquele
dia]. Bem,”.
114
o envolvimento de uma segunda pessoa, a quem o discurso de Sethe se destina. Essa segunda
pessoa, para Sethe, é Beloved. Na tentativa de justificar seus atos, Sethe conta inúmeras
passagens de sua vida para Beloved: I never told nobody this. Not your pap, not nobody.
30
Entretanto, como a personagem Beloved não é facilmente classificável, complica-se a
definição e distinção da pessoa para quem essa história é contada.
Mesmo não possuindo uma definição precisa do seu estado ficcional em nenhuma
parte da narrativa, a presença de Beloved leva todas as personagens a entrarem em contato
com seus passados. Depois de sua chegada, Sethe, Paul D e Denver começam a lembrar e a
contar histórias de suas vidas que eles tinham esquecido, ou tentado ocultar. Beloved é o
ponto de intersecção do presente com o passado. O passado torna-se acessível (e presente) por
meio das histórias contadas. Esse segundo plano, configurado pelo passado, gera um terceiro
plano, formado pelo futuro que cada membro da família consegue vislumbrar após ter
estabelecido contato com o passado. Beloved seria, então, o passado, o presente e o futuro, ao
mesmo tempo. Ela é a verbalização das experiências passadas, extrapolando a definição de ser
simplesmente uma forma humana. Essa forte indeterminação da personagem que ouve a
história de Sethe torna a própria narrativa imprecisa, pois não como afirmar que o trecho
aqui citado refere-se somente a uma mãe contando experiências de vida à filha. Essa
indeterminação abrange passado, presente e futuro, ampliando o significado da história
contada por Sethe.
A aula na fazenda é elaborada segundo um ensino racional e científico, baseado na
repetição: He‟d talk and they‟d write. Or he‟d read and they‟d write down what he said.
31
Nessa situação, o saber vem de uma hierarquia, o professor possui autoridade por ser quem
detém o conhecimento. Conhecimento este reunido e ensinado em classificações, organizado
em listas: I told you to put her human characteristics on the left; her animal ones on the
30
“Nunca contei o que vi a ninguém, nem mesmo a seu papai”.
31
Ele falava e os garotos escreviam, ou então ele lia em voz alta e os garotos repetiam [escreviam]”.
115
right. And don‟t forget to line them up.
32
O teor cientificista arranja a informação a ser
ensinada, em categorias delimitadas e fixas, e revela uma dominação cultural, especificamente
nessa situação que ela conta, do schoolteacher e dos alunos sobre Sethe. Esse tipo de
conhecimento determina uma hierarquia social que permite e autoriza o domínio de um grupo
sob outro. Nessa dominação, Sethe não tem voz ativa, está distanciada. E por ser objeto do
discurso deles, ela se torna também um objeto, perdendo o reconhecimento de sua
humanidade: a pergunta do professor utiliza o pronome interrogativo which (“qual”), para
objetos, em vez de usar o pronome “who (“quem”), específico para pessoas. A voz feminina
que expõe essa dominação formula-se em uma imagem de distanciamento e marginalização.
Como Rafael Pérez-Torres observa: “A identidade de Sethe, circunscrita por essas práticas
„científicas‟, está sujeita aos efeitos do discurso do schoolteacher. Como acontece com
frequência, o tratamento que ela recebe como objeto do discurso a transforma em objeto de
violência” (1999, p.186, tradução nossa).
33
O ensino baseado na repetição é definido por Paul Ricoeur (2007) como o modelo
clássico, estruturado pela recitação da lição decorada. Nesse modelo, Ricoeur aponta que as
maneiras de aprender oscilavam entre a manipulação (decorrente do domínio do mestre) e a
disciplina (a obediência requisitada do discípulo). Essa forma de ensino é, para Ricoeur, uma
forma de abuso da memória utilizada para certificar o domínio do mestre. A recitação é o
modo privilegiado de transmissão, controlado pelos educadores: a autoridade enunciativa se
trata, em última instância, de domínio mesmo. O processo de recitação decorada, conclui
Ricoeur, não visava dar valor ao poder da imaginação; ele objetivava certificar a autoridade
da herança cultural transmitida pelos textos.
32
lhe disse para pôr as características humanas do lado esquerdo, e as animais do lado direito. E não se
esqueça de sublinhá-las”.
33
Do original: Sethe‟s identity, circumscribed by these „scientific‟ practices, is subject to the effects of
schoolteacher‟s discourse. As often happens, the treatment she receives as an object of discourse transforms her
into an object of violence” (1999, p.186).
116
O domínio do schoolteacher, decorrente de sua posição de mestre, com o seu abuso
das ferramentas de linguagem e do método científico, faz dele a única personagem
completamente perversa, segundo Linda Krumholz, em The Ghosts of Slavery: “A única
personagem em Beloved que representa uma moral absoluta do mal o inominado
schoolteacher é uma personificação dos métodos errados” (1999, p.112, tradução nossa).
34
De acordo com Krumholz, a autoridade social do schoolteacher e a clareza de seus métodos
lhe conferem um poder de privilégio exclusivo da verdade. Assim, ela afirma que: “por meio
do schoolteacher, Morrison demonstra que discurso, definições e métodos históricos não são
arbitrários nem objetivos; eles são ferramentas em um sistema de relações de poder” (1999,
p.113, tradução nossa).
35
O acesso à herança cultural transmitida pelos textos era negado aos escravos, de
acordo com Toni Morrison, em The Site of Memory (2008). Ao explicar as narrativas de
escravos, como as de Fredrick Douglass e de Harriet Jacobs (textos de grande circulação,
pertencentes à propaganda abolicionista, no século XIX), Morrison aponta o letramento deles
como uma forma de resistência à dominação cultural:
Além de usar suas próprias vidas para expor os horrores da escravidão, eles tinham
outro motivo para realizar seus trabalhos: a necessidade de destruir, a todo custo, a
proibição contra o ensino de leitura e escrita aos escravos (o que em muitos estados do
Sul era punido severamente) e contra a aprendizagem de um escravo a ler e a escrever.
Esses autores sabiam que a alfabetização significava uma forma de poder. A
permissão para votar estava, afinal, absolutamente conectada à habilidade de ler; a
alfabetização era um meio de assumir e provar a „humanidade‟ que a Constituição
negava-lhes. (2008, p.68, tradução nossa)
36
34
Do original: The only character in Beloved who represents a moral absolute of evil the unnamed
„schoolteacher‟ – is an embodiment of the wrong methods” (1999, p.112).
35
Do original: through schoolteacher Morrison demonstrates that discourse, definitions, and historical
methods are neither arbitrary nor objective; they are tools in a system of power relations” (1999, p.113).
36
Do original: In addition to using their own lives to expose the horrors of slavery, they had a companion
motive for their efforts. The prohibition against teaching a slave to read and write (which in many Southern
states carried severe punishment) and against a slave‟s learning to read and write had to be scuttled at all costs.
These writers knew that literacy was power. Voting, after all, was inextricably connected to the ability to read;
literacy was a way of assuming and proving the „humanity‟ that the Constitution denied them” (2008, p.68).
117
Quando o schoolteacher instrui os seus alunos a classificar as características animais
de Sethe e dos outros escravos, ele não está apenas classificando os escravos, ele está
exercendo uma forma de dominação que os desumaniza. Assim como Paul Ricoeur afirma
sobre o próprio processo histórico, ao assinalar que na história “as palavras demonstram ser,
mais que instrumentos de classificação, meios de dominação” (2007, p.356).
Ao narrar o evento da aula na fazenda para Beloved, Sethe inverte a ordem de valores
culturais transmitidos no modelo clássico de aula, que correspondem aos valores da história
oficial. Em primeiro lugar, ela é quem possui voz e não mais o schoolteacher. Ao contrário
dele, ela não impõe a autoridade de que Beloved tenha de escutar o que ela diz: I‟m telling it
to you because it might help explain something to you although I know you don‟t need me to
do it. To tell it or even think over it. You don‟t have to listen either, if you don‟t want to
37
.
Schoolteacher apoia-se sempre no texto escrito (que ele lê e que os meninos têm de escrever);
já Sethe está contando o evento em uma conversa, de forma oral apenas. O apoio do professor
é o texto escrito; o saber de Sethe não vem de livros e de textos, vem de experiências
pessoais, revalorizando, assim, a tradição oral africana, mantendo-a na cultura afro-americana.
O valor para Sethe é o da rememoração, é a memória sendo usada para revisitar o passado. O
valor para o professor é o da simples memorização, uma forma não saudável de uso da
memória.
Sethe inverte ainda o valor de objeto econômico, atribuindo humanidade para ela, para
seus filhos e os outros escravos. Ela conta essa passagem para Beloved como forma de se
justificar pelo que fez. Mais tarde, quando Sethe está fraca e conversa com Beloved, meio
em delírio e sem parar, ela usa como argumento o fato de que nunca deixaria ninguém
classificar seus filhos como animais: “And no one, nobody on this earth, would list her
daughter‟s characteristics on the animal side of the paper. No. Oh no. Maybe Baby Suggs
37
“Resolvi lhe contar porque isso talvez explique alguma coisa, embora eu saiba que você não precisa de
explicações. E também não precisa ouvir se não quiser.
118
could worry about it, live with the likelihood of it; Sethe had refused and refused still
(1998, p.251).
38
Ela justifica o seu ato como uma afirmação da humanidade de seus filhos.
A descoberta de Sethe sobre o modo como é vista por schoolteacher marca o momento
em que ela compreende a sua situação naquela sociedade. Esse entendimento, acompanhado
da recusa em aceitar a posição desumana reservada a ela e à sua família, resulta em seu ato de
assassinar a criança. Até as reações que Sethe apresenta nos dois momentos estão interligadas.
Ao ouvir a aula, ela conta para Beloved o seguinte: My head itched like the devil. Like
somebody was sticking fine needles in my scalp (1998, p.193).
39
Quando ela encontra a
rememoração do dia do crime, ela lembra que: she saw them coming and recognized
schoolteacher‟s hat, she heard wings. Little hummingbirds stuck their needle beaks right
through her headcloth into her hair and beat their wings. And if she thought anything, it was
No. No. Nono. Nonono. Simple” (1998, p.163).
40
Sethe descreve a sensação que teve em cada momento de forma semelhante. Nas duas
vezes, ela sente uma dor de cabeça tão forte que a deixa desnorteada. A primeira dor é
horrível, mas é menos intensa: Like somebody was sticking fine needles in my scalp.
41
A
segunda, além das pontadas, vem acompanhada da sensação de asas de pássaros a lhe
atormentar. A sensação das bicadas constrói o desespero que ela sentiu e liga o momento do
assassinato ao momento da descoberta.
Dessa maneira, a atitude extrema de Sethe se transforma em um ato desesperado para
resguardar a humanidade de seus filhos. A personagem de Sethe apresenta essa coerência: ela
38
“E ninguém, ninguém no mundo, iria escrever a lista das partes do corpo de sua filha no lado do papel
reservado às características animais. Não. Não, não. Baby Suggs, mesmo sem gostar de tudo aquilo, se
conformara. Mas ela, Sethe, se recusara e ainda se recusava” (1987, p.294).
39
“Minha cabeça estourava de dor. Era como se alguém estivesse enfiando agulhas no couro cabeludo” (1987,
p.226).
40
“os vira chegando, e reconhecera o chapéu do professor. Ouvira o barulho de asas – pequeninos colibris
enfiando os biquinhos em seu lenço de cabeça, chegando até os cabelos e batendo as asas. Seu único pensamento
fora: Não. Não. Nãonão. Nãonãonão. Simples.” (1987, p.190).
41
“como se alguém estivesse enfiando agulhas no couro cabeludo”.
119
nunca se compara a animais, nem compara os outros a animais. Ela resiste a essa dominação
em seu discurso. Já Paul D não consegue fazer isso: ele se compara a animais o tempo todo e
se sente diminuído por eles em alguns momentos. Quando ele está preso, com o instrumento
de ferro em seu rosto, ele olha para o galo Mister, que está livre, e se sente inferior ao galo:
„Mister, he looked so... free. Better than me. Stronger, thougher. Son a bitch
couldn‟t even get out the shell by himself but he was still king and I was…[…]
„Mister was allowed to be and stay what he was. But I wasn‟t allowed to be and
stay what I was. Even if you cooked him you‟d be cooking a rooster named Mister. But
wasn‟t no way I‟d ever be Paul D again, living or dead. Schoolteacher changed me. I
was something else and that something was less than a chicken sitting in the sun on a
tub.‟ (1998, p.72)
42
Paul D também compara Sethe a animais quando descobre que ela matou a bebê: You
got two feet, Sethe, not four (1998, p.165).
43
Mas Sethe nunca faz isso com ele, nem com
outras pessoas. Por isso, no final, ele reconhece que a força que o atrai a Sethe origina-se
nesse respeito à humanidade dos escravos. No final, Paul D lembra que only this woman
Sethe could have left him his manhood like that (1998, p.273).
44
Ele lembra que ela não
olhou para o aparelho de ferro em nenhum momento quando estava lhe contando sobre seu
plano de fuga. Ela não reagiu como Paul D ao pensar que o galo, ou qualquer outro ser, lhe
era superior.
O paradoxo criado no romance, elemento essencial para formular a vida interior de
Sethe, é o seguinte: a melhor qualidade de Sethe é o que a leva a cometer seu pior erro. A
atitude dela de atribuir humanidade aos escravos, repleta de força e respeito, e de não aceitar
comparações com animais, contrariando os valores ao seu redor, é exatamente o que resulta
em seu crime. Dois extremos são criados a partir da resistência dela à dominação cultural: de
42
“Mister parecia tão… livre. Melhor do que eu. Mais forte, mais duro. O filho da puta nem conseguira sair da
casca sozinho, mas ainda era rei. E eu... […] / Mister recebeu permissão de ser e continuar a ser o que era. Mas
eu, não. Mesmo se alguém o cozinhasse, estaria cozinhando um galo chamado Mister. Mas não havia jeito de eu
voltar a ser o Paul D, vivo ou morto. O professor me modificou. Eu era uma outra coisa e aquela coisa era menos
do que um frango sentado na tina sob o sol” (1987, p.89).
43
- Você tem dois pés, Sethe, não quatro” (1987, p.192).
44
“Somente esta mulher, Sethe, poderia ter deixado sua virilidade intacta com essa atitude” (1987, p.319).
120
um lado, a atribuição de humanidade a Paul D, apenas com um olhar, preservando e
destacando a virilidade que lhe garante ser um homem, e do lado oposto o ato de assassinar
sua filha. As duas ações, a de extrema bondade e a de extremo horror, são pautadas pela
mesma atitude em relação à estrutura social opressora.
II.a.1) “Entre pela porta da frente”
A aula que Sethe escuta e depois relata para Beloved não é a única rememorada no
romance. Denver também possui uma rememoração sobre aulas, mas a dela se forma de
maneira diferente. Denver lembra que:
Once upon a time she had known more and wanted to. Had walked the path
leading to a real other house. Had stood outside the window listening. Four times she
it on her own […] Denver had walked off looking for the house other children visited
but not her. When she found it she was too timid to go to the front door so she peeped
in the window. Lady Jones sat in a straight-back chair; several children sat cross-
legged on the floor in front of her. Lady Jones had a book. The children had slates.
Lady Jones was saying something too soft to hear. The children were saying it after
her. Four times Denver went to look. The fifth time Lady Jones caught her and said,
„Come in the front door, Miss Denver. This is not a side show.‟
She had almost a whole year of the company of her peers and along with them
learned to spell and count. She was seven, and those two hours in the afternoon were
precious to her. Especially so because she had done it on her own and was pleased
and surprised by the pleasure and surprise it created in her mother and her brothers.
(1998, p.102)
45
Neste trecho, Denver se lembra não apenas de uma aula, mas de um período em que
ela ia até a casa onde as aulas eram ministradas a crianças negras: She had almost a whole
year of the company of her peers and along with them learned to spell and count.
46
Assim, a
45
“Mas um dia conhecera mais. Percorrera o caminho que levava a uma outra casa de verdade. Ficara para perto
da janela, ouvindo. Fora sozinha quatro vezes [...] Denver se afastara procurando a casa que outras crianças
visitavam, menos ela. Quando a encontrou, sentiu vergonha de ir até a porta da frente e contentou-se em espiar
pela janela. Lady Jones estava sentada em uma cadeira segurando um livro; a sua frente, várias crianças no chão,
com lousas apoiadas nas perninhas cruzadas. Lady Jones falava coisas que Denver não conseguia ouvir. As
crianças repetiam o que a mulher dizia. Por quatro vezes Denver ficou olhando aquela cena, da janela. Na quinta,
Lady Jones surpreendeu-a espionando. / - Entre pela porta da frente, senhorita Denver. Aqui não é um parquinho
de diversões. / Assim, Denver passara quase um ano inteiro na companhia de seus pares e junto com eles
aprendera a ler e a contar. Estava com sete anos e aquelas duas horas no fim da tarde eram preciosas para ela.
Mais ainda porque fora até lá sozinha e vira o prazer e a surpresa no rosto da mãe e dos irmãos ao lhes contar sua
proeza” (1987, p.122).
46
“Denver passara quase um ano inteiro na companhia de seus pares e junto com eles aprendera a ler e a contar”.
121
rememoração dela difere da de Sethe pelo contato prolongado com situações de ensino
tradicional. A experiência de Sethe é pontual, a de Denver envolve situações diferentes. A
movimentação delas também é diferente: Denver caminha até o local das aulas, por decisão
própria; Sethe está passando pelo local sem querer e ouve a aula. Denver vai até a casa de
Lady Jones propositalmente, ela sabe o que está fazendo e tem liberdade para tomar a decisão
de ir até lá.
Denver, entretanto, tem vergonha de entrar na sala para acompanhar a aula; então, ela
tenta apenas ouvir o que a professora diz, do lado de fora da casa. Mas ela não consegue fazer
isso, e fica somente vendo a aula pela janela. Lady Jones, a professora, não a deixa ficar do
lado de fora. Ela convida Denver para dentro da sala, para participar da aula: The fifth time
Lady Jones caught her and said, „Come in the front door, Miss Denver. This is not a side
show.
47
O convite da professora força Denver a sair da posição marginal que ocupa na
situação e a adotar uma posição participante, mesmo que seja como aluna. Isso não acontece
com Sethe, pois ela apenas ocupa uma posição diferente muito tempo depois quando assume a
voz para narrar por si mesma o evento. O resultado desse contato com o ensino tradicional
também difere de Sethe para Denver: Sethe sai atordoada da aula do schoolteacher; Denver,
ao contrário, considera que “those two hours in the afternoon were precious to her.
48
Embora
os sentimentos em relação às aulas sejam distintos para cada uma, as duas se armam para
resistir à dominação cultural a partir dessas aulas. A resistência de Sethe é trágica, mas a de
Denver não precisa mais ser assim.
Denver tem a liberdade e a opção de resistir a essa dominação participando da
construção cultural de conhecimento. Ela tem acesso aos textos, pois teve acesso ao ensino;
mesmo aprendendo dentro do modelo clássico, que a aula de Lady Jones possui o formato
47
“Na quinta, Lady Jones surpreendeu-a espionando. / - Entre pela porta da frente, senhorita Denver. Aqui não é
um parquinho de diversões”.
48
“aquelas duas horas no fim da tarde eram preciosas para ela”.
122
de repetição e memorização: Lady Jones had a book. The children had slates. Lady Jones
was saying something too soft to hear. The children were saying it after her.
49
Diferente do
schoolteacher que deseja propagar a cultura de dominação, Lady Jones possui alunos e
objetivos distintos, em que a transmissão do conhecimento é usada para resistir e armar as
crianças negras contra a imposição cultural. Ainda assim, o formato da aula é o mesmo. O
conhecimento que essa aula pode trazer para Denver, mesmo sendo precioso para sua atuação
no mundo, é pautado pela memorização (pelo abuso da memória).
O conhecimento necessário para Denver atuar de modo completo no mundo, sabendo
como e contra o que resistir, não vem das aulas de Lady Jones. Esse conhecimento não vem
da memorização, ele vem da rememoração, como mostra o trecho no qual ela revela a
necessidade de ter coragem para sair de casa:
Remembering those conversations and her grandmother‟s last and final words,
Denver stood on the porch in the sun and couldn‟t leave it. Her throat itched; her
heart kicked and then Baby Suggs laughed, clear as anything. „You mean I never
told you nothing about Carolina? About your daddy? You don‟t remember nothing
about how come I walk the way I do and about your mother‟s feet, not to speak of her
back? I never told you all that? Is that why you can‟t walk down the steps? My Jesus
my.‟
But you said there was no defense.
„There ain‟t.‟
Then what do I do?
„Know it and on out the yard. Go on.‟ (1998, p.244)
50
O início deste trecho, com o termo remembering, indica a principal atividade
realizada por Denver nesse momento. Ela consegue sair de casa ao rememorar o que
aconteceu com seus familiares, pois sua rememoração constrói o conhecimento necessário
para encorajá-la, como Baby Suggs diz: know it. Mesmo que Denver precise do
49
Lady Jones estava sentada em uma cadeira segurando um livro. Lady Jones falava coisas que Denver o
conseguia ouvir. As crianças repetiam o que a mulher dizia.
50
“Lembrando-se dessas conversas e das palavras finais da avó, Denver, parada na varanda, não conseguia se
mexer. A garganta doía; o coração saltava. Então Baby Suggs deu uma gargalhada. Sua voz veio tão clara como
um dia de primavera. / - Eu não lhe contei tudo sobre a Carolina? Sobre seu papai? Não lembra porque eu ando
deste jeito, do que aconteceu com os pés e as costas de sua mãe? Eu lhe contei, não é? É por isso que não
consegue descer os degraus? Ora, ora. / - Mas você falou que não havia defesa contra eles. / - E não mesmo. /
- Então, o que devo fazer? / - vai saber se sair para a rua [tenha conhecimento disso e saia]. Vá” (1987,
p.285).
123
conhecimento letrado para agir no mundo e ter como se defender do domínio cultural, esse
conhecimento não é o suficiente para fazê-la sair do quintal de casa para o mundo. Resulta da
rememoração o conhecimento que lhe dá coragem para deixar o espaço fechado privado. Uma
vez fora desse espaço, o conhecimento das letras lhe dará a oportunidade de atuar no mundo,
de resistir, de inverter os valores tornando-se ela detentora desse conhecimento. Por isso, no
final, ela diz para Paul D que considera a possibilidade de estudar na faculdade de Oberlin,
em Ohio, onde foram aceitos, desde a inauguração na primeira metade do século XIX, alunos
brancos, negros e mulheres:
When he asked her if they treated her all right over there, she said more than all right.
Miss Bodwin taught her stuff. He asked her what stuff and she laughed and said book
stuff. „She says I might go to Oberlin. She‟s experimenting on me.And he didn‟t say,
„Watch out. Watch out. Nothing in the world more dangerous than a white
schoolteacher.‟ Instead he nodded and asked the question he wanted to. (1998,
p.266)
51
Miss Bodwin, a mulher para quem Denver trabalha, oferece-lhe o conhecimento
letrado que possibilitará seu acesso à universidade. Mas o outro tipo de conhecimento,
proveniente da família de Denver, também é valorizado e necessário. Paul D não diz para ela
tomar cuidado (nem com a Miss Bodwin, nem com os professores da faculdade), e ele nem
precisaria. Ela sabe a história de sua família. O romance valoriza o conhecimento
proveniente da rememoração como uma forma de resistência à dominação cultural,
elaborando uma revisão das perspectivas históricas oficiais.
II.b) Linha de maternidade
O processo de rememoração realizado pelas personagens em Beloved define a figura
do ancestral como fundamental para a constituição do presente e para a possibilidade de
51
“Quando Paul D lhe perguntou se os patrões a estavam tratando bem, Denver respondeu que bem era pouco.A
Srta. Bodwin lhe ensinava muitas coisas. Ao ser indagada sobre o que estava aprendendo, ela riu e falou que
eram as coisas que há nos livros. / - A senhorita Bodwin diz que está fazendo uma experiência comigo. Se eu me
sair bem, vai me mandar estudar em Oberlin. / Paul D não expressou em palavras seu pensamento: cuidado,
cuidado. Nada no mundo é mais perigoso do que um professor branco. Em vez disso, só assentiu com a cabeça e
fez a pergunta que realmente o interessava” (1987, p.311).
124
visualização do futuro. Quando Denver precisa sair de casa, Baby Suggs lhe a coragem
necessária para dar um passo adiante. A avó é, junto com Beloved, uma das personagens
presentes em todo o romance, embora tenham morrido anos antes do momento vivido por
Sethe e Denver. Baby Suggs e Beloved deveriam estar ausentes, mas são forças palpáveis nas
vidas da família. Toni Morrison, no artigo Rootdness: The Ancestor as Foundation, ao falar
sobre literatura, oferece uma explicação, apesar não se referir à Baby Suggs, sobre a posição
das personagens que permanecem, mesmo quando ausentes:
parece-me interessante avaliar a literatura negra baseando-se em como o escritor
trabalha a presença de um ancestral [...]. E esses ancestrais não são somente pais e
mães, eles são pessoas fora do tempo, que estabelecem relações benevolentes,
instrutivas e acolhedoras com as personagens, oferecendo-lhes um certo tipo de
sabedoria. (2008, p.61, tradução nossa)
52
A permanência do ancestral, além de funcionar de maneira semelhante ao processo
mnemônico (do ausente presente) possui uma diferença em relação à presença insistente de
Beloved: Baby Suggs impulsiona as pessoas da família a seguirem em frente em suas vidas,
ela as apoia. Beloved, ao contrário, demanda atenção, desejando que as pessoas se prendam
ao passado, onde ela está.
Denver escapa dessas forças conflitantes e trilha o seu próprio caminho. Ela não
conseguiria conhecer o passado sem a forte presença de Beloved (quem impulsiona Sethe a
contar a própria história), e ela precisa desse conhecimento para saber se desvencilhar do
passado. Quem a ajuda na segunda parte da empreitada é Baby Suggs, sua avó. Ela e Sethe
trazem para Denver as referências que Toni Morrison, no artigo Rediscovering Black
History, considera necessárias:
abandonamos o passado e grande parte da verdade e dos meios de sobrevivência
relacionados a ele. [...] o objetivo não é submergir-se em um banho quente de
nostalgia dos velhos bons tempos eles nunca existiram! mas reconhecer e resgatar
as qualidades de resistência, excelência e integridade que faziam parte de nosso
52
Do original: it seems to me interesting to evaluate Black literature on what the writer does with the presence
of an ancestor […]. And these ancestors are not just parents, they are sort of timeless people whose
relationships to the characters are benevolent, instructive, and protective, and they provide a certain kind of
wisdom (2008, p.61).
125
passado e são tão úteis a nós e às gerações de negros que estão crescendo agora.
(2008, p.42, tradução nossa)
53
Conquanto sejam conflitantes, as figuras em Beloved capazes de formar essas forças
são sempre femininas. Os homens não participam mais do presente da família: Halle e os
garotos irmãos de Denver simplesmente sumiram. Não nenhuma força proveniente deles
que possa ajudar Denver. A linhagem orientadora de Denver é constituída por mães: Baby
Suggs, mãe de Halle; e Sethe (levada a contar sua história por meio de outra figura feminina,
Beloved, que entraria na linhagem se não tivesse morrido bebê), mãe de Denver.
A continuidade entre avó, mãe e filha constrói a linha de maternidade valorizada por
Toni Morrison como a forma de sobrevivência da cultura negra norte-americana. Andrea
O‟Reilly, em em Toni Morrison and Motherhood (2004) argumenta que:
Na sociedade afro-americana, a linha de maternidade representa a memória ancestral,
os valores tradicionais da cultura afro-americana. As mães negras passam os
ensinamentos da linha de maternidade a cada geração por meio da função maternal de
resistência cultural. Muitos autores afro-americanos defendem que a própria
sobrevivência dos afro-americanos depende da preservação da cultura e da história dos
negros. (2004, p.12, tradução nossa)
54
A linha de maternidade existente na família é possível pela memória. O processo de
rememoração que Sethe explica para Denver possibilita a delineação da linha de maternidade.
Embora Sethe não o diga quando elabora sua definição, o processo de rememoração
desenvolve a conexão entre filhas e mães. A vinculação oferece às filhas a possibilidade de
desenvolvimento de uma identidade forte e confiante, como mulheres negras. Para Denver,
conhecer o passado está ligado a conhecer a linha de maternidade que existe achegar nela.
Esse conhecimento situa Denver na sociedade e na história, segundo Linda Krumholz: “Sem
53
Do original: we abandoned the past and a lot of the truth and sustenance that went with it. […] the point is
not to soak in some warm bath of nostalgia about the good old days there were none! but to recognize and
rescue those qualities of resistance, excellence and integrity that were so much a part of our past and so useful
to us and to the generations of blacks now growing up (2008, p.42).
54
Do original: In African American society the motherline represents the ancestral memory, traditional values
of African American culture. Black mothers pass on the teachings of the motherline to each successive
generation through the maternal function of cultural bearing. Various African American writers argue that the
very survival of African Americans depends upon the preservation of black culture and history (2004, p.12).
126
conhecer o passado de sua mãe, Denver permanece isolada da história e de sua posição no
mundo, que só pode ser entendida por meio da história” (1999, p.120, tradução nossa).
55
Sethe e Baby Suggs precisam garantir que Denver conheça essa linha. O poder de
contar a própria história é atribuído à Sethe e à Baby Suggs por meio da maternidade e elas
têm de usar esse poder para fortalecer Denver. Assim, O‟Reilly acredita que:
Morrison define e posiciona a identidade maternal como um espaço de poder das
mulheres negras. Dessa posição de poder, as mães negras empregam uma prática
maternal que possui como objetivo explícito o fortalecimento das crianças. [...] A
maternidade, para Morrison, está relacionada ao modo pelo qual mães, cuidando de
crianças negras em um mundo racista, podem melhor proteger seus filhos, instruí-los a
proteger-se, desafiando o racismo e, para as meninas, o sexismo que pode prejudicá-
las. (2004, p.1, tradução nossa)
56
Dessa forma, a maternidade constitui-se em campo de atuação cultural e política das
mulheres negras. Segundo O‟Reilly, Morrison entende a maternidade como libertadora, o
oposto do ponto de vista ocidental que mostra as mães presas à figura maternal santificada,
obrigadas a fazer sacrifícios em nome dos filhos, colocadas em segundo plano. A figura da
mãe ocidental está associada ao campo privado de atuação, longe da esfera pública e política.
Mas, para Morrison, no caso das mulheres negras, não existe essa separação entre espaço
público e privado porque elas precisam ensinar suas filhas a enfrentar um mundo hostil: o
trabalho da mãe negra em criar os seus filhos é sempre uma atuação política. Por isso,
O‟Reilly considera: “Morrison é uma intelectual que se aproveita dos temas centrais da
maternidade negra para a partir deles desenvolver uma nova consciência da maternidade
55
Do original: Without knowledge of her mother‟s past, Denver must remain in isolation from history and from
her position in the world that can only be understood through history” (1999, p.120).
56
Do original: Morrison defines and positions maternal identity as a site of power for black women. From this
position of power black mothers engage in a maternal practice that has as its explicit goal the empowerment of
children. […] Motherwork, in Morrison, is concerned with how mothers raising black children in a racist world,
can best protect their children, instruct them in how to protect themselves, challenge racism, and, for daughters,
the sexism that seeks to harm them (2004, p.1).
127
negra que fortalece as mulheres afro-americanas e estimula a resistência” (2004, p.3, tradução
nossa).
57
A ficção de Toni Morrison, ainda de acordo com O‟Reilly, cria um modo especial de
maternidade vinculada ao fortalecimento das crianças, oferecendo-lhes meios de resistência
ao conectá-las à sua linha de maternidade africana e americana, desenvolvendo nelas a
consciência crítica. As mães alcançam esse objetivo servindo de modelos e mentoras das
propriedades ancestrais da maternidade negra tradicional. O‟Reilly afirma que o papel de
esposa na sociedade patriarcal, por si só, não fornece à mulher o espaço de atuação necessário
para oferecer esse tipo de ensinamento aos filhos; nem o papel de esposa, nem o papel de
mulher independente após o feminismo. O‟Reilly cita em seu livro uma entrevista na qual
Toni Morrison explica que para as mulheres se tornarem completas elas precisam olhar para o
passado, e não para elas mesmas, nem para o futuro:
se as mulheres querem tornar-se completas, absolutas, a resposta pode não estar no
futuro, mas atrás. E a mulher que entende o seu passado me interessa mais do que a
mulher completamente liberada, que simplesmente consegue as coisas à sua maneira.
Porque aquela mulher realmente sabia como cuidar dos outros e sobreviver. (2004,
p.21, tradução nossa)
58
A rememoração colocada junto da linha de maternidade retoma, assim, o contexto
político da memória coletiva e do testemunho, no qual a possibilidade de narrar a própria
história refere-se a uma atuação prática no mundo e ainda reveste-se de um teor político: o de
fortalecer a próxima geração para que ela saiba como atuar no mundo. Isso é importante,
segundo O‟Reilly: “as filhas precisam da força e da confiança de suas mães porque, na
57
Do original: Morrison is an intellectual who takes the core themes of black motherhood and develops from
them a new consciousness of black motherhood that empowers African American women and engenders
resistance” (2004, p.3).
58
Do original: if women are to become full, complete, the answer may not be in the future, but the answer may
be back there. And that does interest me more than the fully liberated woman, the woman who understands her
past, not the woman who merely has her way. Because that woman did know how to nurture and survive (2004,
p.21).
128
sociedade patriarcal, as identidades femininas estão suscetíveis à extinção e ao deslocamento”
(2004, p.33, tradução nossa).
59
Para reconstruir a linha de maternidade apagada na sociedade patriarcal pelo sistema
escravocrata, Toni Morrison elabora em Beloved uma linha complexa ligada à personagem
Beloved. Ao fazer Sethe encontrar rememorações esquecidas de sua mãe, e ao fazer Denver
construir diferentes rememorações sobre a vida de Sethe, Beloved funciona como uma
metáfora de reconstrução das linhas de maternidade perdidas. Assim, O‟Reilly defende que:
A herança matrilinear representada metaforicamente por Beloved é uma recuperação
radical da relação entre mãe e filha que foi negada e despedaçada pela escravidão. Por
reconectar Sethe à sua mãe e por fornecer um corpo ao bebê assassinado, relacionado
ao futuro, e aos „sessenta milhões e mais‟, do passado, Beloved surge como a mais
poderosa representação da linha materna afro-americana feita por Morrison. (2004,
p.87, tradução nossa)
60
O‟Reilly critica o fato de a maior parte dos leitores não ver a dimensão metafórica da
personagem Beloved, considerando-a simplesmente como uma pessoa. Como o nascimento
de Beloved nunca é mencionado, sua dimensão metafórica, de reconstrução da linha de
maternidade que foi suprimida, assume maior intensidade. O nascimento de Denver é uma
rememoração encontrada diversas vezes, mas o de Beloved jamais é narrado. Não
rememorações sobre os nascimentos dos meninos também. Assim, dentro das rememorações,
a ligação especial com a mãe refere-se à Denver: a linha de maternidade pertence à Denver
mesmo. Por isso, seu nascimento é descrito como um ato heroico, segundo O‟Reilly:
Sugiro que a fuga de Sethe, para a liberdade, estrutura-se principalmente como uma
jornada heroica. O objetivo dessa jornada não é descobrir novas terras ou encontrar o
Santo Graal, mas „levar leite à sua menininha‟. E o feito central triunfante de Sethe
não é vencer um dragão, mas dar à luz uma criança. O próprio significado de herói e
de heroísmo é redefinido, tornando possível à Sethe inscrever-se como sujeito e
celebrar os atos reprodutivos de amamentar e parir como processos heroicos. [...] Por
meio do amor que sente por seus filhos, Sethe encontra a confiança e a coragem para
59
Do original: daughters need strength and confidence from their mothers because, in patriarchy, female selves
are susceptible to erasure and displacement(2004, p.33).
60
Do original: The matrilineal heritage metaphorically represented by Beloved is a radical reclamation of the
mother and daughter bond that was denied and severed under slavery. Reconnecting Sethe to her own mother,
and embodying the murdered baby, the one of the future, and the „sixty million and more‟, those of the past,
Beloved emerges as Morrison‟s most powerful representation of the African American motherline” (2004, p.87).
129
resistir à escravidão, tornando-se uma heroína de proporções épicas. (2004, p.134,
tradução nossa)
61
O pelo qual o nascimento de Denver é narrado evidencia a maternidade como uma das
formas que Sethe possui para agir no mundo. Denver é quem, especificamente, permite a
Sethe exercer o papel de mãe. Por isso, o nascimento heroico de Denver é um marco, sendo
transformado em diferentes rememorações, no romance todo. Consistindo o nascimento em
uma metáfora da linha maternal que não será rompida, nem ocultada, mas que terá de “lutar”
para sobreviver, ele é todo descrito em metáforas. Em uma das rememorações, o nascimento é
descrito da seguinte maneira:
Spores of bluefern growing in the hollows along the riverbanks float toward the
water in silver-blue lines hard to see unless you are in or near them, lying right at the
river‟s edge when the sunshots are low and drained. Often they are mistook for insects
but they are seeds in which the whole generation sleeps confident of a future. And
for a moment it is easy to believe each one has one will become all of what is
contained in the spore: will live out its days as planned. This moment of certainty lasts
no longer than that; longer, perhaps, than the spore itself.
On a riverbank in the cool of a summer evening two women struggled under a
shower of silvery blue. They never expected to see each other again in this world and
at that moment couldn‟t care less. But there on a summer night surrounded by
bluefern they did something together appropriately and well. A pateroller passing
would have sniggered to see two throw-away people, two lawless outlaws a slave
and a barefoot whitewoman with unpinned hair wrapping a ten-minute-old baby in
the rags they wore. But no pateroller came and no preacher. The water sucked and
swallowed itself beneath them. There was nothing to disturb them at their work. So
they did it appropriately and well. (1998, p.85)
62
61
Do original: I would suggest that Sethe‟s flight to freedom is structured specially as a heroic quest. The
ambition of Sethe‟s quest is not to discover new lands or to find a Holy Grail but to „get milk to [her] baby girl.‟
And the central triumphant achievement of Sethe‟s quest is not the slaying of a dragon but the birth of a child.
The very meaning of a hero and heroism is redefined, making it possible for Sethe to inscribe herself as subject
and celebrate the reproductive feats of nursing and birth as heroic labor. […] Through her love for the children,
Sethe finds the confidence and courage to resist slavery and she becomes a hero of epic proportions (2004,
p.134).
62
“Os esporos da samambaia azul que cresce nas grotas ao longo das margens dos rios flutuam na água em
linhas prateadas visíveis apenas de perto, bem na beira, onde a luz bate fraca. Confundidos muitas vezes com
insetos, são na verdade sementes de uma geração que dorme confiante num futuro. E, por um instante, é fácil
acreditar que cada uma dessas sementes vai se tornar tudo o que está contido no esporo; que viverá seus dias
como planejado. Esse momento de certeza não dura mais do que isso; um pouco mais, talvez, do que o esporo
em si. / Naquela margem do rio, no frescor de uma noite de verão, duas mulheres lutaram sob uma chuva azul-
acinzentada. Não tinham a menor esperança de que fossem se encontrar de novo neste mundo, e no momento
nem ligaram para isso. Mas ali, numa noite de verão, cercadas de samambaias azuis, concentraram-se numa
mesma tarefa. Qualquer um que passasse por perto teria rido com desdém ao ver duas párias, duas foras-da-lei
uma escrava e uma branca descalça, com os cabelos soltos cobrindo um bebê de dez minutos de idade com os
trapos que usavam. Mas não apareceu ninguém para perturbá-las em seu trabalho. Assim, o fizeram
adequadamente e bem” (1987, p.102).
130
A samambaia-azul produz uma imagem metafórica do nascimento de Denver. Essa
samambaia fica nas margens do rio onde Sethe e Amy estão, espalhando suas sementes. A
samambaia intenta garantir a sua existência disseminando os esporos pelo rio, mas ninguém
consegue ver isso acontecendo, a não ser que esteja muito perto: Spores of bluefern growing
in the hollows along the riverbanks float toward the water in silver-blue lines hard to see
unless you are in or near them.
63
Do mesmo modo como ninguém a samambaia
espalhando os esporos, ninguém vê as duas moças na margem do rio carregando o bebezinho.
Assim, a imagem que se forma do instante do nascimento é a de um ambiente recluso, dentro
de uma floresta. O lugar tem marcas fortes de azul e prata, como se a luz da lua estivesse
iluminando e dando um brilho diferente para aquele ponto onde Sethe e Amy estão: On a
riverbank in the cool of a summer evening two women struggled under a shower of silvery
blue.
64
Esta é ao mesmo tempo uma imagem de distanciamento, como de proteção para que
elas pudessem escapar, e de descaso, de ninguém se importando com o acontecimento. A
segunda ideia transparece na imagem dos esporos que podem ser vistos por quem está
muito perto, mas aparece principalmente no comentário de eles poderem ser confundidos com
insetos. Como os esporos referem-se à Denver, então confundi-los com insetos significa,
simultaneamente, que ninguém olha em direção ao local onde elas estão e que ninguém se
importa com o nascimento de um bebê negro. O desinteresse da sociedade por aquela pequena
vida se configura, especialmente, pela comparação com um animal (o inseto). Sethe resiste a
esse tipo de comparação (e engano they are mistook): a sociedade considera aquele bebê
como um animalzinho insignificante, sem valor nenhum.
63
“Os esporos da samambaia azul que cresce nas grotas ao longo das margens dos rios flutuam na água em
linhas prateadas visíveis apenas de perto”.
64
“Naquela margem do rio, no frescor de uma noite de verão, duas mulheres lutaram sob uma chuva azul-
acinzentada”.
131
Porém, assim como os esporos não são insetos, mas sementes onde uma geração
inteira dorme confiante de seu futuro, Denver representa uma geração inteira que promete
viver um futuro melhor. Entretanto, a certeza a respeito do futuro dos esporos dura pouco:
for a moment it is easy to believe each one has one will become all of what is contained in
the spore: will live out its days as planned. This moment of certainty lasts no longer than that;
longer, perhaps, than the spore itself.
65
Olhando para Denver, com seus dez minutos de
idade, por um instante pode-se confiar no futuro daquele bebezinho nascendo em um
momento que promete liberdade e, o mais importante, um bebezinho nascendo do esforço
conjunto de uma branca e de uma negra.
O futuro de Denver, entretanto, é incerto; assim como o de seus irmãos, que fazem
parte da mesma geração. Sua irmã não irá viver muito, ela morrerá um pouco depois, como o
texto diz (o momento de certeza pode durar mais do que o tempo de vida do esporo) e seus
dois irmãos sumirão. Mas Denver, nascida nesse momento isolado, azul, quando sua mãe
estava em liberdade, e com a ajuda de uma moça branca, conseguirá ter um futuro. Ela precisa
enfrentar o passado traumático, mas conseguirá seguir a linhagem de sua família.
A imagem das duas mulheres enrolando o bebezinho nos panos, logo após o
nascimento, confirma a linha de maternidade que Denver irá continuar: não há homens
participando desse ato heroico, o pai de Denver não está e nunca estará. As mulheres estão
encarregadas de garantir a linha de uma geração para a outra. Além disso, Denver só consegue
nascer por causa do esforço conjunto dessas duas mulheres de grupos distintos. O que
garantirá o futuro de Denver é esse empenho em conjunto, não a perpetuação do domínio de
um grupo sobre o outro. O trabalho em conjunto vem do fato de Amy ver humanidade em
Sethe. Ela apenas ajuda Sethe porque entende a situação em que ela está. Amy não é uma
abolicionista, nem espera ganhar uma disputa política e econômica; ela quer apenas encontrar
65
E, por um instante, é fácil acreditar que cada uma dessas sementes vai se tornar tudo o que está contido no
esporo; que viverá seus dias como planejado. Esse momento de certeza não dura mais do que isso; um pouco
mais, talvez, do que o esporo em si.
132
o veludo vendido em Boston. Sethe, como sempre, também Amy com humanidade, por
isso elas conseguem fazer o nascimento juntas: two lawless outlaws a slave and a barefoot
whitewoman with unpinned hair wrapping a ten-minute-old baby in the rags they wore. […]
There was nothing to disturb them at their work. So they did it appropriately and well.
66
Tanto a imagem metafórica proporcionada pela samambaia-azul quanto aquela
formada pelas duas moças com o bebezinho exemplificam a definição de Paul Ricoeur (1992)
para a metáfora: de que ela apresenta uma informação intraduzível ao mesmo tempo em que
propõe um insight da realidade. As duas imagens são criadas para proporcionar informações
sobre a linha de maternidade, fundamental para a continuidade das gerações, que foi
interrompida ou ocultada na sociedade norte-americana do século XIX, na qual as
personagens vivem. A imagem condensa diversas informações; ao invés de criar um texto
imenso explicando toda a situação do país naquele momento, em pormenores, a autora cria
uma imagem. Assim, Paul Ricoeur afirma que:
O significado metafórico não consiste meramente em um choque semântico, mas em
um novo significado predicativo que surge a partir do colapso do significado literal,
isto é, do colapso do significado que se obtém se confiarmos apenas nos valores
lexicais usuais ou comuns de nossas palavras. A metáfora não é o enigma, mas a
solução do enigma. (1992, p.148)
O processo de rememoração realizado pelas personagens do romance, baseado no
enigma da imagem presente de algo ausente, completa-se pela metáfora, fundamentada na
imagem que fornece um novo significado para o que já existe no presente. Nisso a re-
memoração se forma, novamente, voltada para o presente. A metáfora faz a rememoração
referir-se ao passado intraduzível das personagens e a um insight da realidade histórica que o
romance retrata. As imagens metafóricas ajudam a criar a referência à realidade histórica
retratada, dando-lhe um novo significado, ajudando na revisão de perspectivas históricas a
66
“duas párias, duas foras-da-lei uma escrava e uma branca descalça, com os cabelos soltos cobrindo um
bebê de dez minutos de idade com os trapos que usavam. Mas não apareceu ninguém para perturbá-las em seu
trabalho. Assim, o fizeram adequadamente e bem”.
133
que Beloved se propõe. Essa referência forma-se porque, de acordo com Ricoeur, o
significado metafórico nega a distinção entre sentido e representação. Assim, para Ricoeur:
Ao fazer essa distinção de limites menos nítidos, o significado metafórico nos leva a
explorar os limites entre o verbal e o não-verbal. O processo de esquematização e o
das imagens provocadas e controladas pela esquematização nascem exatamente dessa
fronteira entre uma semântica de enunciados metafóricos e uma psicologia da
imaginação. (1992, p.152)
Segundo Jean-François Lyotard (1993b), a exploração dos limites entre o verbal e o
não-verbal é a proposta da produção artística pós-moderna. Lyotard assinala a preocupação do
artista pós-moderno em ser capaz de dizer o indizível. Toni Morrison classifica o “dizer o
indizível” como unspeakable thoughts unspoken,
67
em Beloved. Esses pensamentos que não
teriam como ser ditos, como ser explicados em palavras, são os pensamentos resultantes do
passado traumático das personagens. A rememoração é um meio de colocar esse passado em
uma forma narrativa, pelo testemunho, ou por imagens, que possam ser entendidas pelos
outros.
A metáfora ajuda a rememoração no processo de dizer o indizível sobre o passado,
sendo um recurso constante no romance. Amy, por exemplo, quando vê as costas marcadas de
Sethe, explica essas marcas como uma árvore florida, não como feridas com pus:
It‟s a tree, Lu. A chokeberry tree. See, here‟s the trunk it‟s red and split wide open,
full of sap, and this here‟s the parting for the branches. You got a mighty lot of
branches. Leaves, too, look like, and dern it these ain‟t blossoms. Tiny little cherry
blossoms, just as white. Your back got a whole tree on it. In bloom. (1998, p.79)
68
Sethe não revela o seu verdadeiro nome para Amy. Como está fugindo, ela acha mais
prudente dizer que se chama Lu. Amy oferece a Sethe uma imagem de suas feridas que está
67
„pensamentos não falados, impossíveis de serem expressados em palavras‟ (1987, p.233)
68
- É uma árvore, Lu. Um pé de cereja selvagem. Aqui está o tronco; é vermelho e está bem aberto, cheio de
seiva. E isto aqui é o começo dos galhos. um monte de galhos. Folhas também, parece, e, veja só, flores.
Flores de cerejeira bem pequenininhas, brancas também. Você tem uma árvore em suas costas. Em flor” (1987,
p.97).
134
ligada à vida: in bloom.
69
Essa metáfora também está vinculada à imagem das novas gerações
chegando, pois ela é elaborada no momento do nascimento de Denver. As metáforas
representando o fortalecimento de Denver continuam até ela ficar adulta, como no trecho
seguinte:
Oh, baby,‟ Said Mrs. Jones. „Oh, baby.‟
Denver looked up at her. She did not know it then, but it was the word „baby‟ said
softly and with such kindness, that inaugurated her life in the world as a woman. The
trail she followed to get to that sweet thorny place was made up of paper scraps
containing the handwritten names of others. (1998, p.248)
70
Ela chega até o momento de se tornar adulta seguindo o caminho que outras trilharam
para ela: The trail she followed to get to that sweet thorny place was made up of paper
scraps containing the handwritten names of others.
71
Essas metáforas reconstroem a linha de
maternidade, por chegarem até Denver, e por se referirem a mulheres. Como a linha da
maternidade é feita entre gerações de mulheres, ao final, quem vai salvar Sethe são as
mulheres. O ritual que elas executam funciona para completar essa linha, pois elas chegam
trazendo o número que falta para a casa 124: elas chegam em um grupo de 30 mulheres, às 3
horas da tarde. Elas não podem simplesmente refazer a linha de maternidade original que foi
rompida naquela casa (entre Sethe e sua mãe, e entre Sethe e Beloved), mas elas podem
ajudar a remendar o rompimento, expondo essa fratura e impedindo que a linha se quebre em
relação a Denver.
A linha é formada, então, não entre as mulheres da casa, mas em conjunto com as
mulheres da comunidade com passado semelhante. Assim como o passado só pode ser
transformado em rememoração por meio da memória coletiva, a linha de maternidade também
69
“Em flor [florescendo]”.
70
- Oh, filhinha disse a Sra. Jones. Oh, filhinha. / Denver olhou para ela. Não soube na hora, mas foi a
palavra „filhinha‟, falada baixinho e com tanta ternura, que inaugurou sua vida como mulher no mundo exterior
que tanto temia. O caminho sofrido que cobrira até aquela casa, onde a recebiam carinhosamente, foi
pavimentado com pedaços de papel contendo os nomes de outras pessoas bondosas” (1987, p.290).
71
“[O caminho que percorreu até chegar nesse lugar para ser adulta] foi pavimentado com pedaços de papel
contendo os nomes de outras pessoas”.
135
se forma de maneira coletiva, em um espaço de atuação política. O ato de sair da margem não
é realizado apenas na determinação de contar a própria história; ele acontece também na
decisão de reconhecimento e manutenção da linha de maternidade a que cada um pertence.
Por isso, Andrea O‟Reilly sugere que:
Morrison, em sua interpretação da maternidade como uma empreitada política, pode
ser lida como uma comentarista social ou teórica política que, por meio de sua
filosofia maternal, retrabalha, repensa e redefine as preocupações e as estratégias de
emancipação dos afro-americanos, principalmente das mulheres. De acordo com
Morrison, o poder da maternidade e o fortalecimento que provém do cuidado com os
filhos tornam possível o mundo melhor que buscamos para nós e nossos filhos. (2004,
p.171, tradução nossa)
72
A busca por um mundo melhor faz parte do projeto de revisão de perspectivas
históricas. A dupla empreitada de Toni Morrison em mostrar, no espaço ficcional de Beloved,
a ruptura da linha de maternidade causada no sistema escravocrata e, ao mesmo tempo, em
reconstituir essa linha, apagada pela sociedade patriarcal, é a revisão da perspectiva histórica.
A construção de uma figura materna dentro dessa linha de importância política, ao
deslegitimar a grande narrativa de maternidade na sociedade ocidental, constitui-se em uma
das características da ficção pós-moderna. Ao inserir a linha de maternidade como
participação política de um grupo social marginalizado e dominado, o romance deslegitima
também a grande narrativa da nação, responsável por apagar essa linha mestra de maternidade
da formação nacional.
II.c) Um monumento para lembrar dos escravos
O conceito de rememoração, com suas características de ausência e distância e com
seu processo de formação coletiva passível de ser constantemente revisado, questionando a
noção de tempo do calendário, oferece em Beloved a revisão de perspectivas históricas ligadas
72
Do original: Morrison, in her rendition of mothering as a political enterprise, could be read as a social
commentator or political theorist who radically, through her maternal philosophy, reworks, rethinks, and
reconfigures the concerns and strategies of African American, and in particular black woman‟s emancipation in
America. According to Morrison, the power of motherhood and the empowerment of mothering is what make
possible the better world we seek for ourselves and for our children (2004, p.171).
136
à ideia de formação da nação. A vivência pessoal da família de Sethe produz a mobilidade
entre micro e macro-história, o jogo de escalas valorizado por Ricoeur (2007), por integrar
fenômenos situados em diferentes níveis.
As circunstâncias que Sethe, Denver, Paul D e toda a comunidade precisam enfrentar
os situam em meio a um ponto importante da grande narrativa de formação da nação norte-
americana: o período da Guerra Civil (1861-1865). Essa grande narrativa começou a ser
elaborada no próprio século XIX, como meio de autenticação da identidade nacional que a
burguesia desejava instalar. O conceito de nação que surge dessa narrativa baseia-se nos
princípios de coerência, integridade, completude e closure; os mesmos valorizados pela
disciplina histórica da época. O sentimento nacional, buscado por meio desse conceito,
possuía uma ideia de unidade e coesão, responsáveis por fornecer um novo sentido à nação.
Sentido esse que era disseminado pelo ensino escolar de história, pautado em glórias
nacionais dos campos de batalha. A partir desse conceito de nação defendia-se a ideia de
história universal e total, baseada no ideal empírico de que a realidade possui uma estrutura
coerente que poderia ser apreendida pela observação metódica. A visão da formação da nação,
gerada pela grande narrativa, ignora a imposição subjetiva do historiador na ordem e no
processo de seleção dos eventos.
Ao reavaliar a perspectiva histórica nacional, Beloved também revisa o romance
histórico tradicional, originado no mesmo contexto do século XIX de busca por um
sentimento nacional resultante da acepção teleológica de formação da nação liberal. O
romance histórico aparece no mesmo período em que a história equipa-se de uma orientação
teleológica e um objetivo de valorização do futuro. Nessa orientação, defende-se a ideia de
que uma sequência causal natural de eventos formou a nação homogênea. Para a nação
provida de sentimento de unidade, as artes buscaram a identidade como uma instância
nacional. O romance histórico faz parte dos movimentos nacionalistas, buscando nos eventos
137
nacionais originários, o início da sequência coerente e total que poderia explicar o progresso
da nação e das identidades a ela ligadas.
O modelo nacional, responsável pela história e pelo romance histórico do século XIX,
resulta em sérias consequências do abuso de poder por meio da linguagem. O abuso acontece
quando apenas um grupo social detém o acesso à linguagem que constrói o modelo nacional.
Esse é um dos pontos expostos em Beloved, na figura do schoolteacher, que personifica todo o
processo positivista e cientificista ligado a esse conceito de formação de nação. Paul Ricoeur
salienta os perigos que o abuso de poder na linguagem das narrativas fundadoras” pode
trazer:
Esse processo de nomeação é particularmente perturbador, em se tratando das
“narrativas fundadoras”, especialmente aquelas que deram um nome ao que sucedeu
aos reis: a França, a tria, a nação, essas „abstrações personificadas‟. Acontecimento
e nome andam juntos na encenação. [...] O discurso substituído é essencialmente
antimimético; ele não existe, produz algo oculto: ele diz o que esses outros poderiam
dizer. Então, na perspectiva do debate, a questão é saber se as massas encontraram, na
idade que é delas, um discurso apropriado, entre a lenda e o discurso científico. (2007,
p.356)
A questão de encontrar um discurso entre a lenda e o discurso científico é a revisão de
perspectivas históricas realizada em Beloved. Toni Morrison, em Rootedness: The Ancestor
as Foundation, afirma que, assim como o romance surgiu a partir de necessidades burguesas,
o romance contemporâneo extrapola a sua conexão com essa classe, servindo de espaço para a
elaboração do discurso nacional revisado que foge à lógica burguesa, atendendo a necessidade
de diferentes grupos. Sobre o surgimento do romance, Morrison assevera:
Entendo que o romance sempre funcionou para a classe ou grupo que o escreve. A
história do romance como forma começou quando havia uma nova classe, a classe
média, para lê-lo. Esta era a forma de arte que essa classe precisava. As classes baixas
não precisavam de romances naquela época porque possuíam suas formas de arte:
músicas, danças, cerimônias, fofocas e comemorações. A aristocracia não precisava do
romance porque era patrona de sua própria arte: seus quadros, suas casas, eram
pintados e construídos exclusivamente para eles, que faziam questão de que sua arte os
separasse do resto mundo. Mas, com a revolução industrial surgiu uma nova classe de
pessoas que não eram camponeses nem aristocratas: em grande medida, elas não
138
tinham nenhuma forma de arte para explicar-lhes como se comportar nessa nova
situação. (2008, p.57, tradução nossa)
73
O funcionamento do romance para a burguesia é o que Morrison valoriza como o
funcionamento do romance contemporâneo para todas as classes e grupos sociais.
Particularmente para os grupos de afro-americanos, por meio do romance há, segundo
Morrison, a possibilidade de recuperação de suas histórias típicas, que podem revisar o
discurso científico histórico:
parece-me que o romance é necessário aos afro-americanos, hoje em dia, de uma
maneira que antes não era e nisso ele está seguindo as funções dos romances em
todos os lugares. Não vivemos mais em ambientes onde escutamos aquelas histórias;
os pais não sentam e contam às crianças aquelas histórias mitológicas arquetípicas,
clássicas, que ouvíamos anos atrás. Mas as informações precisam ser liberadas e
existem muitos modos de se fazer isso. Um desses modos está no romance. (2008,
p.58, tradução nossa)
74
A intenção da perpetuação de histórias mitológicas mencionada por Morrison não é a
de estabelecer parâmetros míticos; elas são necessárias para a contestação de um discurso
científico histórico que, quando transformado em instrumento de formação de uma identidade
nacional, pode estabelecer mitos de origem a partir de momentos de extrema dominação (e
consequente violência). Como aponta Paul Ricoeur: não existe nenhuma comunidade
histórica que não tenha nascido de uma relação que se possa comparar sem hesitação à guerra.
Aquilo que celebramos como acontecimentos fundadores são essencialmente atos violentos
legitimados posteriormente por um estado de direita precário” (2007, p.92).
73
Do original: My sense of the novel is that it has always functioned for the class or the group that wrote it. The
history of the novel as a form began when there was a new class, a middle class, to read it; it was an art form
that they needed. The lower classes didn‟t need novels at that time because they had an art form already: they
had songs, and dances, and ceremony, and gossip, and celebrations. The aristocracy didn‟t need it because they
had the art that they patronized, they had their own pictures painted, their own houses built, and they made sure
their art separated them from the rest of the world. But when the industrial revolution began, there emerged a
new class of people who were neither peasants nor aristocrats. In large measure they had no art form to tell
them how to behave in this new situation (2008, p.57).
74
Do original: it seems to me that the novel is needed by African-Americans now in a way that it was not
needed before and it is following along the lines of the function of the novels everywhere. We don‟t live in
places where we hear those stories anymore; parents don‟t sit around and tell their children those classical,
mythological archetypal stories that we heard years ago. But new information has got to get out, and there are
several ways to do it. One is in the novel (2008, p.58).
139
O escritor de romances, quando desenvolve a sua função de lembrar” o passado,
como Morrison define em The Site of Memory (2008), colabora no processo de cura das
feridas simbólicas dos atos violentos que são celebrados como acontecimentos fundadores e
formadores de nações. Ricoeur (2007) considera a revisão desses acontecimentos como
crucial no sentido de não permitir que os atos violentos relacionados à ideologia fundadora se
tornem mitos. A revisão da história é, portanto, necessária a fim de proporcionar uma abertura
de debate crítico sobre o passado. Somente esse debate é capaz de curar as feridas do passado,
segundo Ricoeur.
Toni Morrison, assim, lembra, em Beloved, o fim do período de escravidão nos
Estados Unidos, marcado pela Guerra Civil (1861-1865). A guerra produziu figuras de
enorme relevância histórica, tais como o presidente Abraham Lincoln, e configura-se, dentro
do conceito de formação da nação valorizado no século XIX, como o ponto mítico em que a
nação manteve-se unida. Morrison situa Sethe nesse momento da história, mas sem
transformá-lo em mito de formação nacional. Ela contesta essa ideia, tirando o foco da Guerra
de Secessão, e concentrando-se na possibilidade de uma nova geração de membros do país na
figura de Denver. Não é a Guerra que pode trazer a nova geração, é a liberdade do fim da
escravidão; mas uma liberdade que não pode esquecer os horrores desse sistema. Esse
caminho para a liberdade é trilhado em uma história épica, mítica, de uma linha de
maternidade entre Baby Suggs, Sethe e Denver que não pode ser quebrada. O valor dessa
linha, localizada fora da Guerra, expõe sua ausência no conceito de formação da nação. O
paradoxo de fornecer valor mítico à linha de maternidade para contestar o valor mítico da
Guerra Civil forma-se por uma das características da metaficção historiográfica: de instalar e
subverter os modelos culturais.
O romance não trata das disputas entre os estados do Norte e os estados do Sul, nem
das glórias dos campos de batalha; apenas menciona partes da guerra por meio da vivência de
140
Paul D (que ainda assim não é mostrado como glorioso: ele luta pelos dois lados e apenas
porque é obrigado, não porque acredita nos ideais políticos). A burguesia industrial, com
interesses protecionistas e autoritários, venceu a guerra e perpetuou uma mentalidade de
enriquecimento rápido, alimentada pelas condições da época bélica. A vitória do Norte
significou que os interesses industriais e comerciais da burguesia nortista tinham liberdade
para dirigir a nação. Foram esses capitalistas que fizeram a América moderna. Para Howard
Zinn (2003), o fim da guerra marcou a direção da nação, rumo ao acúmulo de capital e
domínio sobre outros povos e nações.
Toni Morrison situa o seu romance nesse período, mas revisa-o por meio do âmbito
pessoal e familiar de Sethe. A importância do reconhecimento da linha de maternidade
contesta o conceito positivista de história como progresso e implica a retomada de valores
ancestrais, fazendo a história adotar uma forma circular, e não linear. A necessidade da
memória, das rememorações, para constituição dessa linha contradiz a história linear,
teleológica. O tom familiar também desafia a ideia de história una ligada à história nacional.
Beloved não mostra a história universal, mas a história pessoal, micro, que tem ligações com
os outros níveis, macro.
A ênfase na linha de maternidade que se mantém (Baby Suggs, Sethe, Denver) é
contraposta às linhas quebradas pela história oficial de formação da nação (Beloved, a mãe de
Sethe, os irmãos de Denver, os filhos de Baby Suggs). A linha de maternidade está ausente no
contexto macro-histórico da nação teleológica, assim como os escravos (pertencentes a uma
parte grande dessa formação). Toni Morrison aponta essa ausência histórica como motivo
para criação de Beloved, segundo a citação de uma entrevista da autora, que Nelli McKay
colocou na introdução de Toni Morrison‟s Beloved: A Casebook:
Não há nenhum lugar que possamos ir para pensar, ou não pensar, sobre o aglomerado
das presenças, ou recordar as ausências, dos escravos; nada que nos lembre daquele
que completou a jornada e daqueles que não conseguiram. Não nenhum memorial,
placa, guirlanda, parede, parque ou lobby de prédio importante apropriado para isso.
Não há nenhuma torre com 30 metros de altura. Não há nenhum banquinho na beira da
141
estrada. Não nem mesmo uma árvore com marcações, com uma inicial, que
possamos visitar em Charleston, Savannah, Nova York, Providence ou, melhor ainda,
às margens do Mississippi. E porque um lugar como esse não existe (que eu saiba), o
livro tinha de existir. (1999, p.3, tradução nossa)
75
A apresentação das linhas de maternidade ausentes e a manutenção da linha entre
Baby Suggs, Sethe e Denver (ainda possível) centram a responsabilidade histórica nas
mulheres. Porém, como nota Rafael Pérez-Torres, no final, quem mostra para Sethe a
necessidade de renomeação e reidentificação do passado (além de Denver) é Paul D. Ele quer
colocar a história dele ao lado da história dela para reescrever o curso de suas narrativas. A
linha de maternidade que precisa ser encontrada e preservada é completa com todos,
homens e mulheres, como afirma Pérez-Torres:
Por um lado, a história é eternamente re-invocada e reforçada: Beloved é uma história
que não pode ser ignorada. Por outro lado, a história precisa ser contestada e recusada:
Beloved é uma história que não pode ter continuidade. Um possível meio para sair
desse impasse pode estar na reconfiguração da história, no ato de vincular narrativas
díspares na formação de uma nova sintaxe. (1999, p.193, tradução nossa)
76
Durante o romance, as ausências presentes são configuradas por mulheres, para marcar
que a ausência da linha de maternidade no conceito de formação da nação exclui as mulheres
da história, mesmo que elas estejam presentes. Mas, ao final, reforça-se a ideia de que a linha
(e a nação), só com mulheres, estaria incompleta se não incluísse a participação dos homens.
Em Beloved, a concepção da linha de maternidade, reconhecida pela memória,
proporciona o debate sobre momentos traumáticos referentes à fundação e à formação da
nação. Esse debate expõe o conceito de história total e de gênese nacional como construções
75
Do original: there is no place you or I can go, to think about or not think about, to summon the presences of,
or recollect the absences of slaves; nothing that reminds us of the one who made the journey and of those who
did not make it. There is no suitable memorial or plaque or wreath or wall or park or skyscraper lobby. There‟s
no 300 foot tower. There‟s no small bench by the road. There is not even a tree scored, an initial that I can visit
or you can visit in Charleston or Savannah or New York or Providence or, better still, on the banks of the
Mississippi. And because such a place does not exist (that I know of), the book had to (1999, p.3).
76
Do original: On the one hand, history is eternally reinvoked and reinforced: Beloved‟s is a story that cannot
be ignored. On the other hand, history must be contested and refused: Beloved‟s is a story that cannot be passed
down. A possible means out of this impasse may be the reconfiguration of history, the putting together of
disparate narratives in the formation of a new syntax” (1999, p.193).
142
subjetivas de linguagem usadas como forma de poder e de dominação. A compreensão da
grande narrativa nacional como discurso possibilita o questionamento sobre a imposição de
sentido à experiência dentro da cultura ocidental. Assim, Rafael Pérez-Torres salienta, a
respeito da obra de Toni Morrison, que:
Seu romance revisita a história não como puro jogo estético nem como apelo
neoconservativo a formas estáveis da tradição. O texto de Morrison oferece uma
revisão radical da história. Esse modo de recontar a história busca salientar o
desaparecimento daqueles que frequentemente pagam um alto preço na corrida pelo
“progresso” econômico e tecnológico. Mais do que fazer de sua arte algo novo um
ponto de vista ligado à ideia de progresso infinito da civilização moderna Morrison
apresenta o seu trabalho como a re-escrita e re-interpretação das formas estabelecidas.
Seu trabalho, em outras palavras, adota uma posição pós-moderna. (1999, p.195,
tradução nossa)
77
A posição pós-moderna que a obra de Morrison ocupa se propõe a levantar questões, a
fornecer argumentos para discussões, e não a oferecer respostas, por isso os paradoxos criados
dentro do romance ajudam na realização dessa proposta. A própria autora, em Rootedness:
The Ancestor as Foundation, aponta para essa característica da obra de ficção:
Ela deve ser bonita, e poderosa, mas deve também ser efetiva. Deve conter algo que
ilumine, algo que abra as portas e aponte o caminho; algo que sugira quais são os
conflitos, os problemas. Ela não precisa solucionar os problemas, porque não é um
estudo de caso, não é uma receita. (2008, p.58, tradução nossa)
78
A narrativa de Beloved, desestruturada por meio da memória, revisa ainda o conceito
literário relacionado ao romance histórico do século XIX. O romance histórico, baseado na
busca por fornecer eventos nacionais originários que poderiam ser dispostos em uma
sequência coerente e total, apresenta a narrativa tradicional linear, representante da história
77
Do original: Her novel revisits history neither for sheer aesthetic play nor as a neoconservative call upon
staid forms of tradition. Rather, Morrison‟s text offers a radical revisioning and recounting of history. This
recounting seeks to highlight the erasure enacted on those who have often paid the dearest price in race for
economic and technological „progress‟. Rather than make her art new a view linked to the infinity progress of
modern civilization Morrison discusses her works in terms of rewriting and reinterpreting established forms.
Her work, in other words, assumes a postmodern position (1999, p.195).
78
Do original: It should be beautiful, and powerful, but it should also work. It should have something in it that
enlightens; something in it that opens the door and points the way. Something in it that suggests what the
conflicts are, what the problems are. But it need not solve those problems because it is not a case study, it is not
a recipe (2008, p.58).
143
teleológica. A metaficção historiográfica revisa, então, a composição da história total e da
literatura relacionada aos conceitos dessa história autorizada pela narrativa literária
tradicional, por meio de mecanismos textuais que sempre existiram. A diferença está no
emprego desses mecanismos para revisar a história, incorporando-a e subvertendo-a, ao
mesmo tempo. Toni Morrison afirma essa posição de escritora contemporânea: “Tento
incorporar, no gênero tradicional do romance, características não-ortodoxas do romance que
são, no meu ponto de vista, negras, porque se utilizam de elementos da arte negra. Não estou
sugerindo que algumas dessas estratégias não tenham sido usadas antes e em outros lugares,
sugiro apenas que a razão pela qual as uso é nova” (2008, p.60, tradução nossa).
79
Por isso, Mae G. Henderson oferece uma caracterização inexata do processo de
rememoração por meio da narrativização, quando afirma que: “a narrativização possibilita a
Sethe construir uma história de vida significativa a partir de um aglomerado de imagens,
transformando eventos separados e dispersos em uma história total e coerente” (1999, p.90,
tradução nossa).
80
Toni Morrison não almeja contar uma história completa e coerente. Ela usa
as técnicas narrativas, desestruturando a forma teleológica tradicional da história, para expor a
elaboração textual da história. O conceito de rememoração funciona em Beloved, então, como
formulação metaficcional e histórica. Por meio desse conceito, Morrison constrói uma
metaficção historiográfica.
79
Do original: I try to incorporate, into that traditional genre the novel, unorthodox novelist characteristics
so that it is, in my view, Black, because it uses the characteristics of Black art. I am not suggesting that some of
these devices have not been used before and elsewhere only the reason I do” (2008, p.60).
80
Do original: narrativization enables Sethe to construct a meaningful life-story from a cluster of images, to
transform separate and disparate events into a whole and coherent story” (1999, p.90).
Capítulo 3.
A renembrança em Desmundo
I) “Falava eu de minhas renembranças”
Em Desmundo, o termo renembrança é apresentado por Oribela, quando a jovem está
contando sobre Portugal para Temericô, uma das índias que trabalha na casa de Francisco de
Albuquerque. Oribela diz: “Falava eu de minhas renembranças, do modo que alembrava na
minha fantasia e se não, em falsidades, mas formosas, de seduzir meu coração partido” (1996,
p.123).
A explicação de Oribela sobre a natureza de seu relato delineia três características
marcantes: a) a singularidade de sua experiência (minhas renembranças; minha fantasia; meu
coração partido); b) a ligação entre o processo da memória e um mundo fantasioso (“modo
que alembrava na minha fantasia”); c) a criação de “falsidades formosas”, que ocorre dentro
de, pelo menos, duas possibilidades segundo a ressalva ambígua da personagem (“e se não
pode se referir tanto ao caso de Oribela não conseguir lembrar-se de alguns eventos quanto à
vontade dela de apagar de sua memória os eventos que partiram o seu coração). Esses três
pontos da ideia de renembrança caracterizam o relato desenvolvido por Oribela em todo o
romance, não apenas as conversas com Temericô, que fazem parte de apenas um capítulo da
obra.
I.a) “Minhas renembranças
A singularidade da experiência de Oribela forma-se, primeiramente, no relato único
que ela constrói. Controlando ela mesma a voz narrativa, e não abrindo espaço nem para
outras personagens narrarem, nem para um narrador fora dos acontecimentos, os leitores têm
acesso às passagens de sua vida no Brasil apenas pelo ponto de vista de Oribela. A
experiência que ela conta não é somada a outras, é única, e reforça essa característica por ser
contada sempre pelo mesmo ponto de vista.
145
O formato gráfico do livro, por fornecer ao romance um aspecto de diário, colabora
para intensificação das características de singularidade. Os textos começam e terminam em
cada página, e as páginas recebem, além da numeração convencional, uma numeração em
tamanho grande, centralizada, no topo, que se inicia a cada capítulo. Esse formato se
assemelha ao de um diário, no qual ela registraria suas experiências e impressões, em um
primeiro momento, para ela mesma, tornando o relato ainda mais singular. Entretanto, ao
considerar este um diário escrito não se pode ignorar as marcas de oralidade apresentadas no
texto, que relativizam todas as indicações de que este seja um documento escrito dia-a-dia.
Texto oral ou escrito, o relato de Oribela configura-se sempre como um monólogo.
A especificidade desse relato compara-se às definições de memória traçadas por Santo
Agostinho e explicadas por Paul Ricoeur em A memória, a história, o esquecimento (2007,
p.108). Santo Agostinho afirma que ao se lembrar de algo, alguém se lembra de si. As
renembranças de Oribela, em razão de sua singularidade, são a forma que a jovem encontra de
lembrar algo, lembrando-se de si mesma. As renembranças são uma busca pela interioridade,
como a própria Oribela afirma:
Vivia eu metida dentro de mim para saber o fundo e para onde endereçavam meus
pensamentos e por que entradas vinham as palavras alheias, as boas e as impuras, que
rotas tomavam, alcançar minhas verdades, meus remansos, alturas, abrigos, saber
como não entrarem em mim e me descobrirem. (1996, p.74)
Além disso, Santo Agostinho defende que a memória é singular, não sendo possível a
transferência de lembranças de uma a outra pessoa. Essa ideia da memória singular é
contestada desde que Maurice Halbwachs atribuiu à memória o status uma entidade coletiva,
como aponta Ricoeur (2007). A memória coletiva toma forma em Beloved. Em Desmundo, ao
contrário, a memória singular, ligada a uma vida única interior, toma forma. De acordo com
Ricoeur, Santo Agostinho é responsável pela criação do conceito de interioridade do homem,
sobre o fundo da experiência cristã da conversação. Para Santo Agostinho, ainda segundo
Ricoeur, o gênero literário da confissão associa o momento reflexivo que conecta memória e
146
presença a si. A fala de Oribela é permeada por essa associação entre memória e narrativa de
confessionário, na procura por interioridade, embora seu discurso não se limite ao gênero de
confissão, até mesmo porque não se sabe a quem o discurso dela se dirige.
Santo Agostinho vincula, ainda, o sentido de passagem do tempo à memória. A
problemática da interioridade está ligada à medida íntima de passagem do tempo, demarcada
pela memória. A consciência íntima do tempo não está relacionada ao tempo calendário. O
relato de Oribela cria essa tensão entre o tempo íntimo e o tempo calendário ao desrespeitar as
demarcações do formato de diário. Apesar dos cortes do texto, de acordo com a divisão
numérica de ginas, que remete à contagem de dias do mês, o conteúdo não acompanha os
acontecimentos diários. Em alguns capítulos, como em O casamento, a ação de algumas
horas se desenrola em três ginas diferentes; enquanto em outros capítulos, como O filho,
toda a gestação de Oribela se desenvolve em treze páginas. Cada página deveria corresponder
a um dia, mas a consciência íntima que a jovem possui de suas experiências não apresenta
correlação exata com o tempo de calendário.
I.b) “Modo que alembrava na fantasia”
A segunda característica fornecida por Oribela à renembrança é a ligação entre o
processo da memória e um mundo fantasioso inerente a todo o relato da jovem. Um dos
momentos de configuração fantasiosa é o medo que ela sente do mouro Ximeno, acreditando
que ele tenha partes do corpo não humanas. Nas palavras de Oribela: “fiquei um grande
tempo pensativa com o sangue gelado de medo do que podia ter o mouro, chifres debaixo do
chapéu e patas nas botas de cordovão” (1996, p.61). Esse mundo de fantasia é tão poderoso
para Oribela que ela afirma realmente enxergar os elementos irreais temidos: “vi entre os seus
cabelos os chifres” (1996, p.179).
147
A lembrança ligada à fantasia carrega o enigma da representação que torna presente o
ausente. Segundo Ricoeur, a representação do passado e a memória partilham o enigma criado
pela dialética entre presença e ausência. A representação, que faz do passado, ausente e
inatingível, presente, e que também estabelece e anula a distância temporal entre o momento
do acontecimento e o da recordação, relaciona-se à fantasia pela imaginação. A imaginação e
a memória partilham o mesmo mecanismo de funcionamento: a elaboração de imagens. As
renembranças de Oribela são lembradas na fantasia porque a personagem cria imagens tanto a
partir de seu passado, quanto de sua imaginação, e essas imagens mesclam-se em seu relato.
Como Ricoeur afirma, “o caráter não manejável, indisponível do passado parece
efetivamente corresponder, na esfera prática, à ausência, na esfera cognitiva da representação
(2007, p.375). Assim, as imagens que servem de representação trazem o caráter de
indisponibilidade do passado na característica de ausência. As imagens de origem fantasiosa e
mnemônica, caracterizadas pela ausência e pelo enigma do ausente presente, estão expostas
no trecho seguinte, em que Oribela sonha com sua mãe:
Dormi quando viravam as estrelas pelo poente. [...] No sonho apareceu minha mãe
vestida numa túnica de muitas pedras por arredor guarnecida e disse. Filha minha, tu
ontem me vestiste com a tua túnica, eu por semelhante quero te revestir hoje com
outra minha túnica. Pareceu então que tirava ela, do lado direito, um vestido de que
me vestia, luvas, sapatos de seda com picados e fivelas de ouro e prata, cravejadas
pedras, meias bordadas. Passada assim aquela escura noite entre frios, lágrimas,
suspiros, despertou o alvorecer. Tinha a mãe do sonho nenhum rosto. Nunca soube o
nome de minha mãe, por vergonha de perguntar ao meu pai e ser indigna de dizer em
meus lábios. Dela meu pai falava. Era uma cabeça muito grande, de bondade e pura,
saúde e fertilidade, paz nos olhos, jovem como um bezerro e divertida como um arco-
íris, que se adornava com tanto gosto que se venerava o de fora como o de dentro e da
sua pele dizia ser mais dourada que a da cravação em cetim e corjas de caraças e
lâminas de damasco e panos malaios, mais macia que dez carapuções de veludo verde,
os olhos mais fulminantes que os fogos de Santelmo. Era assim mesmo que parecia,
semelhava eu a estivesse vendo agora, sem mesmo fechar os olhos, como vivesse ela
nos interiores de mim e eu nos arrebaldes dela, ateando sempre ela fogo à minha alma
por me querer dar a vida, o ímpeto e uma embarcação para avoar no céu como uma
ave sem asas. Quisera eu ter. (1996, p.63, grifo nosso)
Oribela não chegou a conhecer sua mãe, falecida durante o parto; por isso, a ausência
é fortemente assinalada, como em “Tinha a mãe do sonho nenhum rosto. Nunca soube o nome
148
de minha mãe”. Nessa passagem, a figura ausente marcante é a mãe de Oribela, mas a
ausência expande-se além, encontrando-se no cerne das características da própria jovem.
Tudo o que a define é o não ter. Sua primeira definição é ser órfã, sendo assim, o que a
caracteriza é não ter pais. Ela é forçada a ir para a colônia para casar, em primeiro lugar por
não ter um marido, pela ausência de família. Em segundo lugar, ela não tem a opção de
permanecer em Portugal porque não tem dinheiro; assim como não tem roupas, não tem
sapatos, não tem cama, não tem água para beber (segundo descreve no início do romance, em
A chegada, quando ainda está no navio). Quando estava em Portugal, ela morava em um
convento, havia a ausência de uma casa mesmo quando estava em sua terra-natal. Mas como
ela saiu de lá, ela enfrenta ainda a ausência de uma pátria.
Ao dormir, os sonhos de Oribela preenchem as ausências que ela sente, em vários
momentos. Especificamente, na passagem acima, ela sonha com essa figura maternal, sem
rosto. Ao acordar, essa figura reaparece em uma visão, ou em imaginação, delineada por
características fantasiosas, pertencentes a um mundo de fascínio infantil, como o arco-íris e o
fogo de Santelmo (em “divertida como um arco-íris”, “os olhos mais fulminantes do que os
fogos de Santelmo”). O fogo de Santelmo é um fenômeno óptico que aparecia com frequência
nos mastros dos barcos durante tempestades, decorrente de uma descarga elétrica, causada
pelo atrito de massas de ar de diferentes temperaturas; constitui-se em uma chama azulada,
não propriamente fogo. O arco-íris é um fenômeno óptico que separa a luz do sol em seu
espectro contínuo quando os raios brilham sobre gotas de chuva. Sendo ambos os fenômenos
ópticos, eles são imagens formadas de maneira fantasiosa, que aparecem como magia, embora
existam explicações científicas para esclarecê-los.
Oribela, entretanto, não está interessada em esclarecimentos científicos. Ela gosta do
fascínio infantil exercido sobre ela por essas imagens; exatamente como sua relação com a
imagem da mãe que lhe aparece no momento do despertar. Oribela diz: semelhava eu a
149
estivesse vendo agora, sem mesmo fechar os olhos, como vivesse ela nos interiores de mim e
eu nos arrebaldes dela”. Tal como o arco-íris e o fogo de Santelmo, a mãe torna-se um
fenômeno óptico, uma visão. Além disso, ela reconhece a mãe como parte de sua
interioridade. Constrói-se assim um paradoxo, de uma ausência insistentemente presente, de
uma mãe sem rosto que a acompanha nos momentos de sono, de vigília e até mesmo dentro
dela.
Dessa forma, em Desmundo, Oribela realiza a reconstrução de uma experiência
híbrida, mista de criação imaginativa subjetiva e busca pela exatidão do passado. Ricoeur
assinala que “há mais do que sonho na evocação da latência daquilo que permanece do
passado: algo como uma especulação, no sentido de um pensamento no limite” (2007, p.444).
A busca pela figura da mãe, na reconstrução de seu passado de experiências pessoais, faz
Oribela chegar nesse pensamento no limite, que ela procura expressar, em palavras, em todo o
romance.
Assim, os sonhos invadem a narrativa de Oribela. Não apenas nos momentos nos quais
ela anuncia a descrição de um sonho, como no trecho acima, mas também nas partes em que o
leitor não tem uma noção antecipada de estar diante do relato de um sonho. O início do
capítulo O mouro insere a narração de um sonho que começa apenas com “Numa casa à
maneira de igreja” (1996, p.161). Somente no final da página seguinte, o leitor descobre que
até ali estava acompanhando um sonho: “vi que estava no mundo dos sonhos, queria sair, mas
não queria, sem saber qual dos mundos era o mais ruim e sem querer ver o que ia. Mas abri os
olhos. E vi” (1996, p.162).
Os sonhos estão tão presentes na vida de Oribela que, quando foge e é acolhida pelo
mouro, sábio e leitor de muitos livros, ela recorre a ele com indagações a respeito da natureza
dos sonhos. Ela descreve esse momento no seguinte diálogo:
E perguntei se o sonho era verdade ou mentira. O sonho é como uma estrela sombria,
de natureza tenebrosa, um longo inverno, mas onde se podem avistar coisas
150
admiráveis que nossos olhos abertos o nos podem mostrar. E onde ficava o mundo
dos sonhos? O mundo dos sonhos ficava, disse ele, dentro de nós mesmos. E que mais
mundos havia dentro de nós? Isso ele disse não saber, disse não saber tudo, saber
quase nada (1996, p.173).
O sonho é explicado dentro de um parâmetro de fantasia (“como uma estrela sombria”,
“um longo inverno”) no qual existem imagens improváveis no mundo da vigília (“onde se
podem avistar coisas admiráveis que nossos olhos abertos não nos podem mostrar”). Esse
mundo dos sonhos remete, novamente, à interioridade de Oribela (“o mundo dos sonhos
ficava, disse ele, dentro de nós mesmos”), tal como a singularidade de sua experiência.
O pensamento no limite, que Oribela procura expressar por sonhos e visões fundidos
ao relato de suas experiências, apresenta ainda uma característica de ausência linguística.
Esses sonhos e visões são descritos, assim como todo o romance, por meio de um português
arcaico, uma língua ausente na época de publicação do livro. O leitor depara-se com a
descrição de figuras, elementos e momentos ausentes que se fazem presentes em uma
representação realizada por meio de uma língua ausente. Entretanto, essa língua não é
autenticamente a língua falada no século XVI, época de Oribela. Ela é formulada também
com palavras e termos atuais e algumas vezes até inventados. A própria linguagem usada no
romance possui ausências que são preenchidas por procedimentos imaginativos; da mesma
forma que os sonhos e visões preenchem as ausências da vida interior de Oribela.
I.b.1) O distanciamento
A dialética entre ausência e presença, construída na narrativa de Oribela, é uma das
características problemáticas da memória e da representação do passado. Segundo Paul
Ricoeur (2007), a outra instância complexa relacionada à representação do passado diz
respeito ao estabelecimento e à revogação da distância temporal entre o primeiro momento do
processo mnemônico, o acontecimento, e o segundo momento, quando a recordação ocorre. A
distância é instaurada a partir do momento da recordação que certifica a existência anterior da
151
impressão originária do acontecimento e instaura o intervalo de tempo entre essa impressão e
sua lembrança; porém, a distância é anulada com a repetição da impressão originária, que se
faz presente por meio da recordação.
A narrativa de Oribela estabelece não apenas distâncias paradoxais de tempo,
relacionadas às suas renembranças, mas também distâncias criadas a partir de tensões em
diferentes níveis, igualmente ligadas às suas renembranças. A passagem a seguir constrói
algumas dessas distâncias, no relato de Oribela sobre o tempo em que ficou encarcerada, ao
chegar ao Brasil e esperar pelo casamento:
Os padres, nunca víamos, pela janela a cruzar o pátio, nem olhavam para cima,
puxavam as orelhas dos meninos que olhassem, estivesse o Demo ali, depois nem os
ninos olhavam mais. As naturais falavam suas falas, destarte ficamos muito em
silêncio, cada uma em sua cela, comendo a portas fechadas, sem haver um bordado
que fosse, uma tina de lavar, um nada a fazer, esquecidas ali, guardadas, esperando
esperandesperando, de doer os pés, uxte, os joelhos de rezas, escutando as solfas dos
meninos muito compridas e tristes, o sino, a sineta da missa, tiros no terreiro,
conhecendo a cidade por seus barulhos, cascos de cavalos, rodas de carros, guinchos,
asas de morcegos, ondas batendo nas pedras, uma procissão, uma venda de escravos,
tudo eu queria avistar da grade da janela pequena e alta, mas não alcançava. [...] Tudo
era devagar. De noite a porta se abria e entrava uma luz e uma sombra alta, pensava eu
sempre que seria meu pai, que vinha primeiro sua sombra antes dele, mas a natural
com o lume para a candela e às vezes um pouco de azeite, a sombra de meu pai
subindo a escada ainda existia em mim e eu queria esquecer, antes, mas aqui não
queria mais, que a distância e o tempo dela fizeram apagar a dor e o mistério. Na
ponta dos pés dava para avistar uma parte do terreiro, uns telhados, a cruz, uma
luzinha numa casa, quase sem gente, sem carros, sem ronda, sem luzes. (1996, p.46,
grifo nosso)
Configuram-se, nesse trecho, três tipos de distância: distância física; distância
pertencente à voz do discurso; distância temporal. A distância física figura na situação de
encarceramento enfrentado por Oribela. Ela foi levada ao convento, para esperar tanto o
momento de escolha dos maridos quanto o dia do casamento. Assim, o que ela chama de
celas‟ são, literalmente, os quartos pequenos de freiras e padres. Para Oribela e para as outras
órfãs, entretanto, a definição de cela abarca também o sentido de quarto pequeno ocupado por
presos em penitenciárias, afinal elas são mantidas lá, não tendo nenhuma liberdade para sair.
O modo pelo qual Oribela descreve sua rotina expõe a conotação de aprisionamento e
152
distanciamento da sociedade que o termo cela carrega: “comendo a portas fechadas,
esquecidas, guardadas”.
O distanciamento apresenta-se também quando ela expõe sua vivência apenas por
meio dos sons percebidos de dentro da cela. Ela escuta os acontecimentos da cidade mais do
que é capaz de vê-los ou participar deles; ela conta que sua atividade limita-se a ficar apenas
“conhecendo a cidade por seus barulhos”. Oribela descreve, por sons, tudo o que lhe foi
proibido integrar. A distância física estabelecida é marcante, pois a órfã está declaradamente
separada e escondida dos eventos cotidianos. Oribela vive, então, encarcerada, abandonada e
sozinha, como ela descreve: “cada uma em sua cela”. Além disso, ninguém conversa com
elas, nem mesmo olha em sua direção, como ela afirma: os padres nem olhavam para cima”,
“depois nem os ninos olhavam mais”.
A distância configurada nesse trecho apresenta um paradoxo, pois Oribela está distante
o suficiente dos eventos para não ser capaz de participar deles ao mesmo tempo em que está
perto o suficiente para acompanhá-los. Ela não faz parte dos acontecimentos; mesmo assim,
ela sabe que tipo de movimentação está ocorrendo na cidade. A distância formulada pelo
próprio relato de Oribela ajuda a construir esse paradoxo; pois o que em sua linguagem
significaria proximidade, remete, concomitantemente, à distância.
A distância paradoxal referente à voz do discurso narrativo formula-se na
incapacidade de Oribela em narrar de forma coerente sua própria história. Sendo um narrador
personificado dentro da história, Oribela ocuparia uma posição central, próxima à realidade
ficcional. Porém, a jovem não consegue contar sua história de modo lógico, distanciando-se
de sua posição de controladora da narrativa. Oribela se contradiz, tornando inexata a sua
realidade ficcional. Ela realiza autocorreções e autorrasuras nas suas afirmações, mudando as
características de seu ambiente, de parte em parte. Nessa passagem sobre sua prisão no
convento, a princípio ela descreve que consegue ver através da janela da cela: “os padres,
153
nunca víamos, pela janela a cruzar o pátio”. Depois, porém, ela explica que não conseguia
ver pela janela: “tudo eu queria avistar da grade da janela pequena e alta, mas não alcançava”.
Em outro momento, ela diz, novamente, que consegue ver, mas com dificuldade: “na ponta
dos pés dava para avistar”. Assim, a descrição espacial torna-se incerta. Por Oribela não ser
capaz de elaborar uma narrativa uniforme, ela coloca em questão seu poder de controle sobre
a história que conta; como se ela não dominasse o que aconteceu com ela mesma,
distanciando-se.
Seu distanciamento configura-se, ainda, no formato solitário de seu relato: o
monólogo. Os verbos estão conjugados no passado, fazendo deste um relato posterior ao
acontecimento, porém a natureza desse relato é imprecisa. Pode-se tratar de uma conversa,
pois há marcas de oralidade, mas pode-se, igualmente, tratar de um registro escrito. De
qualquer forma, o discurso de Oribela sugere a existência de uma segunda pessoa, de um
destinatário. Não há, entretanto, personificação da segunda pessoa no texto de Desmundo.
Não se sabe para quem ela conta suas experiências.
A distância temporal formula-se entre os acontecimentos originais e as renembranças
de Oribela sobre eles, ocorridas no momento em que ela os descreve. Essa distância não é
demarcada em Desmundo, tornando-se difícil apreender quanto tempo depois dos eventos
originários as renembranças ocorrem. Pode-se, entretanto, afirmar que o relato é feito após
decorrido um tempo do acontecimento, porque os verbos estão todos conjugados no tempo
verbal passado (não apenas na passagem citada acima, em todo o romance). Essa difícil
apreensão contribui na formação paradoxal entre estabelecimento e concomitante anulação da
distância temporal na representação do passado realizada pela memória.
Além disso, a distância temporal é marcada, no trecho citado acima, em relação ao
tempo que Oribela passa encarcerada na cela do convento. As marcações da passagem dos
dias enquanto ela está presa colaboram para o registro paradoxal do tempo se considerado o
154
formato diário do relato. Sendo cada página destinada a um dia, o registro da experiência de
Oribela na cela torna-se paradoxal porque está todo escrito em uma gina, mesmo referindo-
se a uma experiência mais longa do que um dia (embora ela não especifique quantos dias
ficou lá, ela registra a sensação do tempo passando enquanto ela continuava encarcerada).
A passagem dos dias é exposta, primeiro, na contraditória percepção de Oribela sobre
a cidade. Ao ouvir, ela percebe uma clara movimentação, com diversas ocorrências e muitas
pessoas (“cascos de cavalos, rodas de carros, guinchos, asas de morcegos, ondas batendo nas
pedras, uma procissão, uma venda de escravos”). Porém, quando ela consegue olhar, não
muito movimento, pouca gente, tudo parece parado (“uns telhados, a cruz, uma luzinha
numa casa, quase sem gente, sem carros, sem ronda, sem luzes”). O que ela não
corresponde ao que ela ouve. Isso imprime certa estranheza ao relato. Cria-se, assim, a
impressão de que o que ela ouve e vê está prejudicado por sua posição de isolamento,
impondo uma sensação de imprecisão ao que ela conta. Entretanto, cria-se, também, a
impressão de que ela ouve durante o dia, e se estica para espiar o lado de fora, à noite.
Considerando esses dois períodos de tempo, a sensação elaborada é a de o tempo passar e ela
continuar presa.
Neste trecho selecionado, assim como em todo o romance, o discurso da personagem
se faz por meio de construções sentenciais longas. A pontuação não é utilizada de forma
convencional. Encadeando diferentes ideias por vírgulas em um fluxo de palavras que vai de
“as naturais” até “não alcançava”, estabelece-se um tom de pesar, de dificuldade e de demora,
relativo ao abandono e ao aprisionamento. Esse fluxo é uma listagem de descrições da
situação de Oribela e dos eventos que acontecem alheios à sua permanência na cela. Essa
listagem, encadeada, a sensação de demora, de algo que não termina. Ao mesmo tempo, as
vírgulas dão a sensação de algo que não flui, com obstáculos.
155
Além da construção gramatical, a elaboração e a seleção do vocabulário contribuem
para formar um ambiente de lentidão, pesar e dificuldade. O termo “esperandesperando”, por
exemplo, encadeia a repetição da palavra “esperando”. Isto fornece ao relato um caráter de
oralidade, pois, a mesma palavra ao ser repetida junta o som final de uma com o som inicial
da seguinte. O verbo “esperar” denota a passagem de um período de tempo sem ação,
demorado. Essa ideia é fortalecida pelo uso do gerúndio e reforçada pela repetição. A
repetição provoca um sentimento de uma espera que não é calma, de uma ação que não flui
tranquilamente. O prefixo “des-”, que se forma no meio do termo “esperandesperando”,
fortalece a elaboração do sentido de negação e privação do ambiente retratado e de espera sem
fim (como a personagem sente).
Embora as características de ausência e distância tenham sido descritas aqui em itens
diferentes e a partir de trechos diferentes do romance, elas são elaboradas em toda a narrativa
de forma interligada (tal como no processo mnemônico): no trecho sobre o sonho de Oribela,
utilizado no item anterior para mostrar como a ausência é formada na narrativa, por exemplo,
a jovem emprega em sua descrição vários termos ligados à navegação (“estrelas pelo poente”
ideia de orientação espacial, “os fogos de Santelmo”, “uma embarcação para avoar”), que
marcam a distância dela de sua terra-natal. na passagem citada neste item para exemplificar
a formação da característica de distância, o fato de ninguém olhar para ela enquanto ela estava
na cela, por exemplo, marca uma característica de ausência dela em relação à sociedade (os
padres “nem olhavam para cima”, “depois nem os ninos olhavam mais”).
I.c) As falsidades formosas
A terceira característica ligada ao termo renembrança e apresentada por Oribela refere-
se à criação de “falsidades formosas”. Essas falsidades podem ocorrer, segundo Oribela,
dentro de, pelo menos, duas possibilidades. Elas podem ser o resultado da incapacidade de a
156
personagem lembrar-se de detalhes de eventos ou o resultado da vontade da jovem de apagar
de sua memória as lembranças tristes, desagradáveis, traumáticas.
As falsidades do discurso de Oribela evidenciam-se, principalmente, nos momentos
em que ela realiza as autocorreções e autorrasuras ao que diz. Como acontece na passagem,
citada no item anterior, sobre a descrição do ambiente onde está presa. Oribela se contradiz
mudando as características espaciais da cela. Ao tornar incerta a descrição espacial, torna-se
incerta também a realidade ficcional, não sendo possível ao leitor distinguir, ao longo do
romance, com clareza e precisão, as partes do relato de Oribela que tratam de renembranças
ligadas à fantasia ou a falsidades formosas.
As partes em que Oribela se contradiz estão presentes em toda sua narrativa. Logo no
início do romance, por exemplo, existe um relato contraditório sobre os sapatos de Oribela,
que estão ligados à morte de uma das órfãs durante a viagem de navio até a colônia. Em um
primeiro momento, Oribela diz: “o chão maltratava os pés das órfãs, as pedras cortavam, não
os meus que tinha eu sapatos, fossem malditos, quase roubados, mas eram meus, dera o
destino por serem meus pés iguais aos da manceba que morrera” (1996, p.23). Nesse
momento, a jovem atribui o fato de possuir os sapatos ao destino, como se ela não tivesse
nenhuma participação no ato de consegui-los. Entretanto, mesmo conferindo ao destino a
responsabilidade, ela afirma que eles eram “quase roubados”.
Em um segundo momento, quando chegam à colônia e um rapaz vem perguntar sobre
uma das órfãs, a Velha, ex-freira que acompanha o grupo de órfãs, responde que a jovem
falecera de uma forma aparentemente acidental: “ele perguntou por dona Isobel. Caíra ao mar,
moça de uns quatorze anos na sua flor muito suave, que foram todos numa agonia olhar, sem
nada poder fazer em joelhos se puseram a rezar. Disseram tinha sido caída ao mar por
bondade, que havia o temor de sermos sete” (1996, p.27).
157
A Velha explica que a jovem “caíra ao mar” e que todos foram “numa agonia olhar,
sem nada poder fazer”. Esses termos sugerem que a órfã estava viva e por algum acidente
tinha caído no mar. A fala da Velha, dirigida a outro personagem, deixa implícita essa
possibilidade; Oribela se escusa de esclarecer o ocorrido ao leitor, ao seu destinatário.
Em um terceiro momento, a Velha comenta com o rapaz sobre o destino das posses da
jovem morta. Nesse comentário, uma frase da Velha contradiz a explicação anterior sobre a
morte de dona Isobel:
Bebeu ele da água da fonte, molhou o rosto, os cabelos e perguntou à Velha onde
estavam as coisas de dona Isobel, ao que disse ela o saco com umas roupas, coisas
pequenas de seu uso e uns papéis estavam com o capitão da nau, mas fora lançada ao
mar descalçada que os sapatos não teriam serventia aos peixes avoadores ou os
monstros do fundo e que serviam agora aos pés de uma órfã. Estava eu com os sapatos
de dona Isobel. (1996, p.28)
Essa segunda explicação também é oferecida apenas pela Velha. Oribela novamente se
isenta de contar esse evento a seu destinatário. Nessa nova versão, a Velha diz: “fora lançada
ao mar descalçada que os sapatos não teriam serventia aos peixes”. Assim, o tom de acidente
e de que ninguém podia fazer nada, da primeira versão, se perde; afinal, os passageiros
tiveram tempo até de pensar que os sapatos teriam mais proveito para outra órfã e de
descobrir que serviriam em Oribela. Não se sabe se dona Isobel estava viva ou morta quando
foi lançada ao mar, e tem-se uma informação que suscita dúvidas em relação à morte da órfã.
A informação vem de Oribela, que sentencia: “Disseram tinha sido caída ao mar por bondade,
que havia o temor de sermos sete”. Havia a crença, segundo Oribela, de que sete moças em
um navio era sinal de mau agouro. A seriedade com que essa crença é apresentada, mais de
uma vez, deixa ao leitor a dúvida de que possam ter decidido, propositadamente, diminuir o
número de mulheres do navio e, por algum motivo qualquer, possa ter sido dona Isobel
escolhida para ser jogada ao mar. Essas seriam suposições prováveis, embora não sejam as
únicas possíveis, do leitor que acompanhou esse episódio narrado de forma evasiva, vaga e
contraditória.
158
O evento da morte de dona Isobel configura-se como uma das falsidades que Oribela
menciona: uma história imprecisa, com dados apontando para um desenrolar dos fatos
diferente daquele proporcionado, apresentada por Oribela apenas por meio das palavras de
outra personagem, embora ela mesma estivesse presente quando o evento ocorreu. É uma
falsidade formosa, para Oribela, porque serve para eximir a culpa que sente em relação a esse
evento. A jovem não deseja se sentir culpada pela estranha morte de dona Isobel, nem por ser
a única órfã com sapatos; então, ela elabora sua renembrança sobre essa passagem de sua vida
em uma forma de falsidade disfarçada, que se torna formosa por esconder, dela mesma, o que
ela não quer lembrar.
Oribela classifica no mesmo grau de importância sua capacidade de lembrar e sua
capacidade de esquecer. Durante sua narrativa de renembranças, ela afirma que tinha Poucas
lembranças. Mais as tinha de haver visto a rainha. Que este era o meu tesouro, poder alembrar
e poder esquecer” (1996, p.52). O tesouro de Oribela (de poder lembrar e esquecer) realiza-se
em suas renembranças de falsidades formosas. Essas falsidades, mesmo sendo inexatas e
duvidosas, são a concretização do duplo sentido do prefixo re-, em renembrança. Re-
significa, simultaneamente, “para trás” e “de novo”. Assim, as falsidades formosas fazem a
renembrança ser uma retomada dos eventos, que se referem ao acontecimento passado,
repetindo-o no presente, mas uma repetição que traz em seu bojo algo novo, alguma novidade
em relação à primeira impressão do evento originário.
As renembranças de falsidades formosas de Oribela intensificam-se com o desenrolar
de sua narrativa. Quanto mais tempo ela passa na colônia, e mais experiências ela vive no
desmundo, mais indícios de falsidades aparecem em seu relato; sugerindo que a vivência na
colônia lhe forneceu um acúmulo de lembranças que ela não quer guardar. A própria Oribela
afirma mudar as informações desagradáveis de seu passado. Quando ela está na casa do
mouro, e ele lhe fala sobre a importância dos pais, ela mente sobre sua relação com o pai e
159
depois assume ao leitor a mentira que contou. O mouro afirma “O ensino do pai e a instrução
da mãe são diademas de graças para nossas cabeças”; e Oribela conta: Senti angústia, por
disso nada ter havido para mim. Mas disse. Assim era meu pai” (1996, p.168).
Quando Oribela está na casa de Francisco de Albuquerque, e à noite não consegue
dormir, ela demonstra até que suas renembranças sobre Portugal, para onde tanto quer voltar,
são falsidades:
Estando todavia a noite deitada em toda a terra, em suas trevas escuras e em todas as
vistas as estrelas, as candeias apagadas, as velas assopradas, era que o mundo se dizia
mundo, o do suspirar, namorar sonhos, minha alma viajava por nuvens pretas, pelas
moradas do zodíaco, meus olhares esvaneciam, as lágrimas saíam, meu espírito
mulheril andava pelos chavascais, portos, pelas Índias, casa dos amores, pelos
pecados, nas raivas moídas, no querer bem, nos altares, nas danças do vento nos
campos de oliveiras, a adivinhar no curso das estrelas e nesse escuro dos gritos em
silêncio corria a vida de falsidade como de verdade fosse, mais funda se fazia em
mim. Da vida em minha terra não queria recordar por ser um falso lume a derramar
pelo mundo o alembrar como fora uma verdade, querendo animar e esforçar minha
alma perdida, como nessa ajuda subir à alteza das virtudes falsas. Alembrasse eu de
meu desígnio e de minha esperança, embarcar na nau, rija e direita, fortemente levada
com ventos a ir guiar pelo meu desrumo à terra minha. E a dizer, sem mais meu desejo
torcido com amarguras. (1996, p.105 grifo nosso)
Quando escurece, e Oribela está sem as referências, sem as luzes, que normalmente a
guiam (“as candeias apagadas, as velas assopradas”), ela pensa em tudo que lhe interessa.
Nesses pensamentos, ela encontra as renembranças de sua terra-natal. Não é um encontro
pacífico; essas renembranças vêm em gritos em meio ao silêncio, e choro: “nesse escuro dos
gritos em silêncio corria a vida de falsidade como de verdade fosse”, “as lágrimas saíam”. O
espírito de Oribela, que andava “nas danças do vento nos campos de oliveira”, lembra de
Portugal com saudosismo, mas essa lembrança agradável não corresponde à realidade, é uma
falsidade, como a jovem mesmo afirma: Da vida em minha terra não queria recordar por ser
um falso lume a derramar pelo mundo o alembrar como fora uma verdade”. Por estar distante,
as renembranças de Portugal aparecem como boas e se transformam no recurso ao qual ela se
agarra para ter ânimo de sair da colônia. São as falsidades formosas procuradas por ela para se
convencer de que tem um lugar para ir, onde escapar do Brasil.
160
As falsidades, mesmo tentando ser uma maneira de esquecer o passado traumático,
podem ser nocivas, como afirma Paul Ricoeur:
o exemplo das lembranças encobridoras, interpostas entre nossas impressões infantis e
as narrativas que dela fazemos com toda confiança, acrescenta à simples substituição
no esquecimento dos nomes uma verdadeira produção de falsas lembranças que nos
desnorteiam sem que o percebamos; o esquecimento de impressões e de
acontecimentos vivenciados (isto é, de coisas que sabemos ou que sabíamos) e o
esquecimento de projetos, que equivale à omissão, à negligência seletiva, revelam um
lado ardiloso do inconsciente colocado em postura defensiva. (2007, p.454)
As falsas lembranças parecem formosas a Oribela, mas talvez elas estejam lhe
desnorteando sem que ela perceba. Afinal, elas vêm na escuridão, quando as luzes que a
guiam estão apagadas, e vêm no silêncio (da omissão). Dessa forma, elas expõem a urgência
de Oribela falar, e não silenciar-se; ora, ela precisa falar de suas renembranças. Porém, seu
desejo é de aniquilar as renembranças, não de relatá-las. Esse desejo se expressa ao final de
sua narrativa, no ato que ela realiza de queimar a casa de Francisco de Albuquerque:
Francisco de Albuquerque partira levando meu filho e seu saco de coisas, a santa do
oratório, vacas, vaqueiros, armas, o mesmo que dizer, não iam tornar tão cedo. Não
iam tornar nunca mais. [...] Por minha ordem se ateou fogo à casa com as coisas
dentro, queria eu nada do que me deram ali, [...] fiquei só com a caravelinha. [...] Quis
eu ver o incêndio até a derradeira chama, custou pouco a se desfazer a casa e todas as
suas fortalezas viraram um monte de brasas, coisas retorcidas, nada que se pudesse
conhecer por nome, por cinza, no que queria eu dizer para mim, devia esquecer
tudo no meu passado, ardendo o fogo na madeira ardia também em minha alma, onde
se agasalhavam as renembranças. (1996, p.209, grifo nosso)
Oribela queima a casa na esperança de queimar assim suas renembranças dos
momentos horríveis enfrentados por ela enquanto estava ali. Ela não quer que essas
renembranças se transformem em palavras, ela deseja que elas sumam: “nada que se pudesse
conhecer por nome, por cinza”. O ímpeto de queimar a casa, no exterior, é o mesmo de
queimar as renembranças, que estão no seu interior, em sua alma.
161
II) Revisão de perspectivas históricas
Com as renembranças de Oribela em Desmundo, Ana Miranda realiza o que Toni
Morrison (2008) considera a função primordial do escritor contemporâneo: lembrar. O
exercício da memória da autora desenvolve-se em conjunto com sua habilidade imaginativa
na elaboração da interioridade de Oribela. A vida interior da jovem órfã apresenta-se em suas
renembranças, que se “agasalham” em sua alma ao mesmo tempo em que possibilitam a
revisão de perspectivas históricas. A constituição da vida interior dessa jovem revisa a história
por fornecer interioridade a personagens históricos cujos nomes nem constam nos registros
oficiais. Documentos atestam apenas o número total de órfãs que embarcavam nos navios em
Portugal, o que Antonio Esteves (2007) chama de “lote de jovens”. Não seria possível
reconhecer a prática de envio de órfãs efetuada nos anos de colonização, não fosse a leitura
atenta de algumas linhas das cartas escritas pelo padre Manoel da Nóbrega, ou do quarto
parágrafo, do capítulo segundo, do livro terceiro da História do Brasil, de Frei Vicente do
Salvador (do início do século XVII, mas publicada pela primeira vez no século XIX), em
que o autor escreve:
O ano seguinte de 1551 mandou el-rei outra armada e por capitão-mor dela Antonio de
Oliveira do Carvalhal pera alcaide-mor de vila velha, com muitas donzelas da rainha
D. Catarina e dos mosteiro das órfãs, encarregadas ao governador pêra que as casasse,
como o fez, com homens a quem deu ofícios da república e algumas dotou de sua
própria fazenda. (1982, p.146)
Desmundo extrapola o reconhecimento dessa prática, reservando a uma dessas
meninas enviadas um registro pessoal intenso que a história oficial deixou de proporcionar.
Nesse registro pessoal, as renembranças são a forma de busca e constituição da interioridade
que Oribela possui. Uma vida interior singular, segundo conceitos de Santo Agostinho que
definem a memória como intransferível a outros, por ser composta exclusivamente de
lembranças de si mesmo. Essa especificidade das renembranças pessoais revisa as linhas
gerais estabelecidas pela história oficial como se fossem representativas de todos.
162
A interioridade de Oribela também constrói-se para o leitor nas suas diversas
tentativas de fugas. Essas tentativas sugerem ao leitor que a jovem procura viver de acordo
com escolhas pessoais e íntimas, contrariando a instituição do casamento da época. Fernando
Torres-Londoño discute essa característica do casamento (e das pessoas que tentavam escapar
dele):
Centrado no favorecimento de interesses coletivos e familiares, o casamento nem
sempre contemplava satisfações e desejos pessoais. A alta porcentagem de solteiros na
população e a procura de mulheres de camadas altas, escassas, já que muitas optavam
pela vida nos recolhimentos e conventos da colônia e do reino, o elementos que,
embora não possam ser lidos independente de conjunturas específicas e circunstâncias
familiares, são capazes de apontar para uma possível procura por “estados” que
levassem mais em conta desejos e vontades pessoais. (1999, p.51)
A vida interior de Oribela forma-se ainda pelo testemunho, misto de fantasia e
falsidades formosas, que funciona na construção de uma consciência íntima pertencente a um
universo feminino. Essa consciência íntima está ligada a uma noção pessoal de passagem do
tempo, diferente da noção de tempo de calendário. Os mecanismos da memória e do
testemunho revisam, por meio da narrativa, até mesmo a noção de tempo linear histórico, que
volta-se para a consciência íntima do tempo, saindo do padrão calendário de registro da
passagem do tempo.
A composição narrativa fornecida pelo testemunho às renembranças forma à
memória, constituindo-se no processo comunicativo de função social. O conjunto de
lembranças, desordenado e de apresentação simultânea, reconstrói uma experiência híbrida,
mista de criação imaginativa subjetiva e busca pela exatidão do evento passado. O espaço
ficcional fornece a Oribela a possibilidade de contar sua história a partir de sua memória,
elaborando uma imagem híbrida de sonho e realidade. Por isso Ricoeur afirma que “é por um
salto que se deve romper o círculo mágico da atenção à vida para entregar-se à lembrança
numa espécie de estado de sonho. Sob esse aspecto, a literatura mais que a experiência
cotidiana [realiza esse salto]” (2007, p.447).
163
A experiência híbrida permite a Oribela realizar o ato político de assumir a própria voz
e de narrar a própria história. Como Ricoeur (2007) aponta, o fazer memória inscreve-se
numa rede de exploração prática do mundo. O ato de lembrar corresponde ao ato de sair da
margem, posicionando-se na história e na sociedade. A efetivação desse ato não é fácil de ser
desempenhada: o testemunho de Oribela precisa romper barreiras de linguagem para existir,
realizando-se como uma especulação, no sentido de um pensamento no limite, conforme
nomeado por Ricoeur.
II.a) O escuro dos gritos em silêncio
O testemunho de Oribela assume a importância política de participação social por se
constituir em transgressão da dominação que lhe era imposta. As ordens recebidas e as
situações em que é colocada exigem de Oribela que permaneça sempre em silêncio; não
ela, as outras órfãs também. Assim ela relata, sobre a passagem que ficou na cela, esperando o
dia do casamento: “As naturais só falavam suas falas, destarte ficamos muito em silêncio cada
uma em sua cela(1996, p.46). No dia do casamento coletivo, as jovens são orientadas pela
Velha sobre como devem se comportar na posição de esposas. A Velha diz: “No lábio da
mulher deve cintilar o silêncio, onde floresce o saber” (1996, p.66).
Dessa forma, mesmo quando pedem para Oribela falar algo, ela se nega. Como no
momento em que está indo pela primeira vez à casa de Francisco de Albuquerque e ele insiste
em fazer perguntas sobre o seu passado. A jovem relata o seguinte: “Disse Francisco de
Albuquerque. Desterra da tua mente teus segredos. [...] E disse eu. Meu silêncio te dirá o que
meu coração em si cala” (1996, p.83).
Porém, em sua busca pela interioridade, Oribela começa o monólogo que oferece às
suas renembranças a forma narrativa, o que ela mesma classifica como “escuro dos gritos em
silêncio” (1996, p.105). Essa fala, definida como a exploração prática do mundo executada
164
pela jovem, é delineada pelos componentes essenciais do testemunho, definidos por Paul
Ricoeur (2007). O primeiro desses componentes refere-se à relação entre a asserção da
realidade factual e a autenticação dessa asserção. Segundo Ricoeur, a factualidade atestada
supostamente traça uma fronteira nítida entre realidade e ficção. Entretanto, a asserção é
resultado da autodesignação do sujeito que testemunha, e esse sujeito traz em seu relato a
opacidade inextricável de uma história pessoal. Sendo assim, a fonte que pode contar o que
viu é também a única que pode legitimar como verdadeiro o acontecimento.
A tensão entre contar e autenticar eventos passados cria uma situação dialogal, o
segundo componente essencial do testemunho. Nessa situação, a testemunha pede que lhe
deem crédito. Do pedido cria-se a alternativa entre a confiança e a suspeita do destinatário em
relação à testemunha. Dessa possibilidade, designa-se o terceiro componente essencial: a
testemunha antecipa a circunstância de que vários testemunhos possam ser confrontados (e o
seu relato possa ser colocado à prova). Outro fator à disposição da testemunha é a opção de
reiterar seu testemunho; porém, a testemunha confiável é a que pode manter o mesmo relato
com o passar do tempo (e essa manutenção aproxima o relato de uma promessa).
Os componentes essenciais do testemunho fazem dele uma instituição estável,
confiável, baseada no assentimento da palavra a outrem e no intercâmbio das confianças, que
especifica o vínculo entre seres semelhantes. Dessa forma, Paul Ricoeur afirma que:
é da confiabilidade, e, portanto, da atestação biográfica de cada testemunha
considerada uma a uma que depende, em última instância, o nível médio de segurança
de linguagem de uma sociedade. É contra esse fundo de confiança presumida que se
destaca de maneira trágica a solidão das „testemunhas históricas cuja experiência
extraordinária mostra as limitações da capacidade de compreensão mediana, comum.
testemunhas que jamais encontram a audiência capaz de escutá-las e entendê-las.
(2007, p.175)
O testemunho de Oribela em Desmundo existe contra esse fundo de confiança
presumida. A jovem órfã experimenta a solidão das testemunhas históricas, sua experiência
mostra as limitações da capacidade de compreensão mediana. Oribela não consegue organizar
165
o seu relato para ele se encaixar no fundo de confiança presumida, mesmo se aproveitando de
características que o indicariam como confiável. O relato de Oribela possui a opacidade da
história pessoal: a especificidade de ser a órfã a única que pode atestar sua narrativa ao leitor
(ela sabe da impossibilidade de confrontar o seu testemunho com outros). Assim, ela pede ao
leitor que acredite nela, mesmo reiterando o seu testemunho ao longo do romance. Oribela,
como voz narrativa, possui as características que fariam seu testemunho confiável, mas suas
contradições e reiterações contrariam esse estatuto. Dessa forma, a narrativa de Desmundo
instaura e subverte os elementos essenciais do testemunho, seguindo as características da
metaficção historiográfica.
Não se pode confiar no testemunho de Oribela, mas essa desconfiança não pode
impedir que ele seja escutado, ou lido. A falta de confiança, decorrente das reiterações
realizadas pela órfã (denominando-as de falsidades formosas), expõe a limitação da
capacidade de compreensão mediana, como Ricoeur aponta. A linguagem onírica, confusa e
contraditória do relato de Oribela existe fora do fundo comum da linguagem de confiança
presumida. Esse deslocamento da linguagem aponta para a incapacidade do leitor de
compreender e conhecer, em sua totalidade, os eventos narrados por Oribela. Ela é uma
testemunha que está sozinha, sem encontrar quem seja capaz de escutá-la e entendê-la.
A incompreensão do leitor, em relação à sua situação, aparece em estudos sobre o
romance que tomam de forma literal as afirmações de Oribela, procurando na narrativa
versões finais dos fatos. Priscila Reis Franz, em A viagem de Oribela em Desmundo explica
o seguinte sobre o final do romance: “Quando a criança nasce (ruiva, isto é, filho do mouro),
o português vai embora, levando a criança e abandonando sua mulher. Mas Ximeno consegue
resgatar o filho e o traz de volta para sua mãe, que enfim, realiza seu sonho de ser feliz e livre,
finalizando sua viagem de busca de identidade, de realização, de encontro e reencontro
consigo mesma” (2008, p.12).
166
O final de Desmundo é aberto: indícios dos acontecimentos, mas nada que os
certifique. indicativos de que o mouro tenha sido assassinado por Francisco, e o filho que
sumiu pode estar morto, ou indo em um navio com Francisco de volta à Portugal. Assim, a
imagem do mouro carregando um bebê, ao final, pode ser decorrente de um sonho, de uma
visão, ou até o início de um estado de loucura de Oribela; a jovem está contando sua história,
mas não sabe o que aconteceu. A linguagem confusa de Oribela desnorteia o leitor.
Da mesma forma, Mariléia Gärtner, em sua tese Mulheres contando histórias de
mulheres, afirma que: Mais tarde ela reencontra o seu filho nos braços do mouro Ximeno
Dias, após saber que o marido provavelmente morreu durante a viagem(2006, p.75). Essa
afirmação confunde o relato ficcional de Oribela com informações provenientes de registros
históricos sobre um Francisco de Albuquerque que viveu no Brasil colônia e talvez tenha
falecido em 1556, provavelmente devorado, quando uma tribo de índios atacou o navio onde
estava o primeiro bispo do Brasil, dom Pedro Fernandes de Sardinha. Essas informações
históricas (também imprecisas) sobre o paradeiro do Francisco de Albuquerque histórico não
existem no relato ficcional de Oribela. A jovem vê um navio indo embora e supõe que
Francisco esteja a bordo, mas ela não sabe ao certo. Como ela não tem certeza se ele está no
navio, ela não tem a informação segura sobre sua morte na viagem. Novamente, Oribela é
incompreendida em razão de sua linguagem, tornando-se uma testemunha histórica solitária.
Por elaborar essa incapacidade de compreensão no tocante à história de Oribela,
Desmundo questiona todo o processo autorizado pela história com pretensão de
universalidade total, orientada pelos princípios de coerência, integridade, completude e
closure. A história pessoal quase incompreensível de Oribela expõe a incapacidade de
compreensão universal, total, integral do passado. Entretanto, essa insuficiência não pode se
tornar a razão de descaso da parte do leitor, ela deve ser apontada, mas não deve nunca servir
167
de argumento para que não se preste atenção às vozes de figuras marginais da história
gritando no silêncio: o leitor deve sempre estar atento ao “escuro dos gritos em silêncio”.
A impossibilidade de o conhecimento total ser alcançado não deve resultar no temor
ao saber. O mouro Ximeno alerta Oribela em relação à aceitação dos fatos inacabados,
incompletos e incoerentes. Oribela lhe pergunta se o conhecimento do homem é verdadeiro ou
falso, o mouro responde: “Pouco importam sejam verdadeiros ou falsos as hipóteses, a fé, o
cálculo, desde que descrevam e reproduzam o que tem existência, que eu não temesse as
contradições” (1996, p.173). Nessa passagem, o mouro explica que a pergunta em relação à
veracidade ou à falsidade do conhecimento não é suficiente para avaliar esse conhecimento.
Da mesma forma, não deve o leitor entender Desmundo dentro desses padrões de verdade e
falsidade; é o leitor quem não deve temer as contradições apresentadas por Oribela. Essas
contradições são estabelecidas nos paradoxos da metaficção historiográfica que
problematizam a relação entre literatura e história.
O próprio Ximeno defende o relato de Oribela, conforme ela o narra: “pusemos a falar
sobre mistérios, de como formavam as pérolas, que era de lágrimas da lua que nas noites
tristes escorriam ao fundo do mar, ele riu de mim. Sou besta? Não, dizia eu palavras mais
formosas que os apontamentos de um filósofo. Não se deve acreditar senão em que diz o
coração” (1996, p.171). Ao afirmar que “não se deve acreditar senão em que diz o coração”, o
mouro justifica o relato onírico de Oribela, tirando o valor de verdade exclusivo de
explicações científicas, baseadas no empirismo e em experiências comprováveis. O mesmo
acontece no caso dos fenômenos ópticos do arco-íris e do fogo de Santelmo, usados por
Oribela para descrever sua mãe (1996, p.63). Mesmo existindo explicações científicas para
esses fenômenos, Oribela não está preocupada com elas, pois não servem para saciar sua
necessidade de colocar em palavras o que seu coração diz em relação à mãe que nunca
conheceu.
168
Dessa maneira, o testemunho de Oribela constrói-se em suas renembranças expressas
em uma linguagem pessoal, emocional, contraditória e de difícil compreensão, explorando os
limites entre o verbal e o não-verbal. Esses limites são apresentados por Paul Ricoeur (2007)
como pertencentes à representação historiadora que não consegue transmitir a experiência
extrema, a experiência que não tem comparação com a experiência do homem ordinário. Jean-
François Lyotard (1993b), por sua vez, explica que os limites entre o verbal e o não-verbal se
expressam quando o discurso precisa dar conta do que escapa à palavra. Segundo Lyotard, o
artista pós-moderno busca trabalhar nesses limites. Esse trabalho é realizado por Ana Miranda
em Desmundo. Para dar conta desses limites e conseguir expressar o que escapa à palavra, a
autora utiliza técnicas exploradas pelo pós-modernismo, como a mistura do gênero literário de
romance histórico com o gênero do testemunho, instaurando e subvertendo ambos no discurso
de Oribela. Conforme afirma Antonio Esteves, em O romance histórico brasileiro no final do
século XX:
A novidade é a inversão que ocorre no enfoque adotado. Em Desmundo temos uma
escritora que reconta um episódio da colonização do país, valendo-se para isso da voz
de uma mulher, Oribela, a protagonista do romance. Além de adotar o ponto de vista
feminino, invertendo a tradicional forma de contar a história e de narrar o romance,
aparecem na narrativa outros ex-cêntricos da história do Brasil como são os indígenas,
judeus ou mouros. (2007, p.126)
Colocado como a voz de alguém que viveu o início da colonização portuguesa no
Brasil, o testemunho de Oribela, com suas renembranças de dimensão pessoal elaboradas em
situações de paradoxo e contradição, que invertem a lógica do tempo do calendário,
deslegitima a grande narrativa de formação da nação brasileira como um processo construtivo
teleológico, de desenvolvimento contínuo em direção à constituição de um grupo civilizado.
II.b) “Na terra do Brasil”
O relato pessoal e complexo de Oribela, inserido no momento da história nacional
entendido como o nascimento da nação brasileira, possibilita o jogo de escalas entre micro e
169
macro-história, valorizado por Paul Ricoeur (2007). Os diferentes níveis entre história pessoal
e história nacional são percorridos pelo discurso de Oribela, possibilitando um novo olhar
sobre o processo de colonização do Brasil. Enquanto a grande narrativa da formação do país
apresenta a colonização como a alternativa que trouxe o progresso e a civilização para edificar
o Novo Mundo, o relato de Oribela apresenta esse momento como a destruição, como o
Desmundo. Em volta de Oribela, não há nada sendo construído, apenas devastado.
As renembranças, com forte carga emocional, provenientes de uma figura feminina,
não constroem a vida interior de uma personagem marginal da história, mas também
mostram o que Oribela e entende a partir de sua posição. O que ela relata são atos de
violência e dominação entre povos e indivíduos. Por meio das renembranças, os
acontecimentos das narrativas fundadoras da nação deixam de ser heroicos e passam a ser
degradantes. Flávio Henrique Menezes da Silva, em sua dissertação Desmundo, de Ana
Miranda: a reconstrução ficcional da história do Brasil colonial, também aponta a
caracterização de tudo o que se desfaz perante os olhos da órfã:
essa “desfeitura” do mundo fica evidente nas inúmeras palavras iniciadas com o
prefixo „des‟: desmundo, desbaratado, desatino, desmancho, desconcentrado,
desespero, destrato, desesperada, desentendida, desmelancolizado, desordenado,
desconsolado, desmando, desordem, desformidades, desmovido, desnudado,
desfalecido, desfeito, desfortunado, etc. Na verdade seu próximo vínculo e
comprometimento com essa desconstrução do mundo é que a tornam uma das
personagens mais interessantes de Ana Miranda. O desmanchar de um mundo nos é
apresentado pelo olhar de Oribela, permeado pela voz narrativa, e nos leva a
compreender que algo está sendo desfeito, desmontado, desnudado. (2008, p.56)
A revisão da perspectiva histórica elaborada em termos contrastantes é expressa até
mesmo pelo nome da personagem. O termo ori, no latim, significa nascer, surgir, aparecer,
e está ligado à fonte, origem. Oribela sugere a ideia de uma bela origem, de um nascimento
que acontece de forma bonita. Entretanto, as renembranças de Oribela revelam uma origem
baseada em violência e dominação.
170
Ao viver na colônia, Oribela encontra cenas de violência em diversas situações. Dona
Bernardinha, uma das órfãs, é colocada, por seu marido, à disposição de quem procurava por
sexo. Assim conta Oribela:
Quis eu saber de que vinha uma grita de machos na porta da casa de dona
Bernardinha. O perro do esposo dela fazia servir sua mulher por dinheiro, que se fez
uma espera na frente da vivenda e dela se ouviam os gritos, deles os risos, uns davam
por isso uma moeda, outros um pedaço de uma qualquer coisa, não havendo ali um
padre que pusesse fim a tal desmando. (1996, p.151)
Pelo relato de Oribela, as pessoas da cidade sabem o que está acontecendo com dona
Bernardinha, mas ninguém faz nada porque não se podia intrometer em assuntos pessoais de
um casal. Todos testemunham seu sofrimento, mas ninguém interrompe essa brutalidade.
Quando dona Bernardinha não aguenta mais a situação, ela mesma comete um ato violento: o
assassinato do marido. Como consequência, prendem-na em uma gaiola, na rua, onde é
apedrejada pelos passantes. As pessoas, que não se atreviam a contestar as atitudes do marido,
condenam o ato de dona Bernardinha e chegam a puni-la violentamente. Oribela conversa
com ela, quando ouve da companheira a descrição de sua situação: “Este mundo é um
desterro e nós, estrangeiros” (1996, p.180).
Oribela também acompanha a invasão que Francisco de Albuquerque e seus capangas
realizam em uma aldeia de índios, onde matam a maior parte da tribo. Oribela, ao acompanhar
a chacina, diz: “pensei estar na batalha do fim do mundo” (1996, p.144). Após esse ataque, os
índios respondem com uma ofensiva contra a casa de Francisco de Albuquerque, e nela põem
fogo. Oribela testemunha ainda o assassinato de dona Branca, mãe de Francisco. Quando
Oribela está grávida e passa mal, ela acredita que ficou ruim porque dona Branca a estava
envenenando. Ao comentar isso com o marido, ele discute com a mãe e perde o controle,
como conta a jovem:
e se ouviram gritos de dona Branca para que a socorressem, fomos ao quarto, estava
Viliganda contra a parede e no meio do quarto, com uma faca de cintura, de punhal, o
filho acutilava a mãe no peito e tantas vezes o fez até que ela se quedasse sem mover
no chão com a morte na face e ele, com todo o sangue da mãe em suas roupas correu
171
porta afora e na chuva à luz dos raios e trovões, em joelhos, gritou. Piedade, piedade.
E era tal a visão daquele sofrimento que me certifiquei para sempre de estarmos no
inferno. (1996, p.198)
Além da morte de dona Branca, Oribela presencia Francisco de Albuquerque
assassinar os marujos que a estupraram. Ela também se envolve nos atos de violência ao
instigar Francisco sobre a possibilidade de sua mãe estar tentando matá-la e ao contar-lhe que
o mouro Ximeno a acolheu durante sua fuga. Francisco provavelmente assassinou o mouro ao
saber disso. Ao final, Oribela sofre ainda o sumiço de seu filho que ela teme tenha sido
assassinado ou levado para Portugal por Francisco de Albuquerque.
As situações particulares vivenciadas por ela mostram o Desmundo do início da
colonização, contrariando alguns registros históricos que exaltam as qualidades do Novo
Mundo, como o da primeira obra de história do Brasil, de Pero de Magalhães de Gândavo, de
1576, em que se lê: “é esta província, sem contradição, a melhor para a vida do homem que
cada uma das outras da América, por ser comumente de bons ares e fertilíssima, e em grã
maneira deleitosa e aprazível à vista humana” (2004, p.49). Assim como as atitudes das
pessoas em relação à dona Bernardinha contradizem o que Pero de Magalhães de Gândavo
registra sobre “o modo de viver” dos “moradores destas capitanias”: “Esses moradores todos,
em grande parte, tratam-se muito bem, e folgam com se ajudarem uns aos outros com seus
escravos, e favorecem muito os pobres que começam a viver nesta terra” (2004, p.74).
Jacques Le Goff (2003) afirma que a descoberta e colonização do Novo Mundo foram
sentidas como todos os grandes acontecimentos: como traumatismos coletivos. Para Le Goff,
nesses traumatismos, os vencidos vivem a história como irracionalidade e alienação, enquanto
para os vencedores sempre lógica nos acontecimentos violentos. A falta de lógica
apresentada por Oribela em relação ao que vive, sem pessoas que controlem a violência,
demonstra a distância que ela sente da história. Como Le Goff salienta: “De uma maneira
geral, é às estruturas e à imagem do Estado que muitas vezes se ligará a ideia de história, à
172
qual se oporá positiva ou negativamente a ideia de uma sociedade sem Estado e sem
história” (2003, p.58).
A ideia de história está ligada à estrutura e à imagem do Estado, fazendo da história da
nação uma forma de legitimação do poder. Essa história, no romance, é contestada pelas
renembranças de Oribela. Conforme pode-se ler no ensaio Poder e alegria: a Literatura
Brasileira pós-64, de Silviano Santiago, publicado em Nas malhas da letra (1989), a
descoberta da violência do poder é um dos temas da literatura brasileira:
A descoberta assustada e indignada da violência do poder é a principal característica
temática da literatura brasileira pós-64. [...] A opção dramática é, de maneira geral,
pelos temas que, no particular e no cotidiano, na cor da pele, no corpo e na
sexualidade, representariam uma alavanca que pudesse balançar a sólida e
indestrutível planificação do Estado militarizado e o aprisionamento de uma
população pelas fronteiras “naturais” do país. (1989, p.16)
O aprisionamento de Oribela pelas fronteiras naturais do país, que se estende a toda
sua situação, revela-se quando ela chega à colônia e toma consciência a respeito do que ouvia
sobre o Brasil: “Na terra do Brasil viverás em mosteiros muito suntuosos e ricos, de paredes
verdes e abóbadas azuis. Agora sei do que estavam dizendo” (1996, p.39). Esse
aprisionamento configura-se, para Oribela, na solidão e no abandono que resultam em seu
distanciamento. Ela está sempre presa: ou está no navio, ou está na cela do convento (que ela
compara ao camarote do navio), ou amarrada pelo na casa de Francisco de Albuquerque,
ou escondida na casa do mouro ou na casa à beira do rio (sem poder sair porque não poderia
ser encontrada pelos capangas do marido que a procuravam). Para representar sua situação,
Oribela menciona sempre a imagem da ave sem asas para voar.
A distância física, decorrente de seu aprisionamento, faz do relato de Oribela uma
revisão da perspectiva histórica, por meio do ponto de vista da figura do dominado. As
descrições dos momentos em que está presa, como na passagem da cela no convento, citada
no item I.b.1 deste capítulo, constroem o seu ponto de vista marginal, distante do centro dos
acontecimentos. As autocorreções e autorrasuras que ela realiza em sua fala contribuem para
173
o seu distanciamento e expõem o domínio exercido sobre a órfã, pois a incapacidade de
Oribela em elaborar uma narrativa coerente questiona seu poder sobre a história narrada,
tendo-se a impressão de que ela não domina o ocorrido com ela mesma. Essa falta de controle
no ato de narrar sugere tanto que ela não possui comando sobre a própria vida, por sua
posição social não lhe permitir liberdade suficiente para fazer isso, quanto coloca em dúvida a
exatidão de qualquer relato estruturado de forma unilateral.
No relato de Oribela, embora existam algumas figuras (masculinas e femininas) de
dominação representadas em personagens como Francisco de Albuquerque (sempre
mencionado por seu nome completo atestando sua posição social), o marido de dona
Bernardinha, a esposa do governador (que força Oribela a casar com Francisco), a dominação
exercida na maior parte da narrativa não possui um rosto, uma referência. Na passagem de
Oribela na cela, por exemplo, não se sabe quem a mantém lá: os padres, a Velha, o
governador. Assim como não se sabe quem a obriga a vir para o Brasil. Da mesma forma, no
momento em que está totalmente sozinha (ao final, quando Francisco a abandonou), ela ainda
se sente presa, dominada, sem poder decidir o que fazer (ou para onde ir).
Oribela tem a possibilidade de inverter essa dominação quando muda de posição e
assume a voz para narrar sua própria história. As renembranças são a oportunidade de Oribela
de resistência e de atuação prática no mundo. A atitude de narrar a própria história é
responsável por inverter a situação, não as outras tentativas buscadas por ela para isso, como,
por exemplo, exercer domínio sobre Temericô, a índia que trabalha na casa de Francisco de
Albuquerque. Enquanto as duas estão conversando, Oribela deseja marcar uma posição de
superioridade em relação à índia. Ela diz: “Se era a feição da rainha a de uma mulher
perguntou a natural, como que firmando sua parecença com as mais de nós, cristãs, sendo ela
uma brasil como quem bebeu do pau de tinta, tinha todavia seu nariz e olhos que enxergavam,
174
boca que falava, cabelos que caíam aos ombros. Vi um dia a rainha e é ela mulher como eu”
(1996, p.124).
Procurando marcar a diferença entre as duas, Oribela diz “é ela mulher como eu”. Ela
não aceita que Temericô seja uma mulher, mesmo tendo as feições de mulher, ela é “uma
brasil”. Oribela adota a mesma postura quando estão assistindo a Francisco e seu grupo
saquearem a tribo indígena e matarem seus integrantes. Temericô sofre ao ver o seu povo
massacrado, mas Oribela se espanta ao perceber esse sofrimento: A pobre da Temericô
enxergava tudo, parada na mata feito uma pedra, depois de algumas gritas se curvou sobre a
barriga e gemeu feito cantasse, uma coisa estranha de se ver. Mandei assentar ao meu lado, o
que ela fez. Não sabia que brasil sente dor” (1996, p.144). Oribela não respeita Temericô e
não entende sua situação; ela diz que o sofrimento da índia era “uma coisa estranha de se
ver”.
Considerando Temericô como inferior, Oribela, ao se aproximar dela, monta um jogo
de domínio. Quando estão as duas conversando sobre a rainha, Oribela diz que:
Tornou Temericô naquela mesma hora trazendo uma tiara de vimes, ramos e me
coroou, jurou ser eu desde então sua rainha, jamais vira tão longos cabelos nem
alvura. Chamasse Alteza e se pusesse em joelhos sempre ao me avistar, curvasse a
alma, dobrasse a cabeça, logo se fez vassala, do que me dava uma conciliação entre as
inimizades da alma. E lhe ordenava muito beijar meus pés, ao lavar. (1996, p.125,
grifo nosso)
Da maneira como Oribela conta, Temericô decidiu chamá-la de rainha e tratá-la de
forma real por vontade própria. Ela diz apenas que a índia “jurou ser eu desde então sua
rainha”. Porém, a sentença que começa em “chamasse alteza” e termina em “dobrasse a
cabeça” parece uma listagem das ordens que Oribela demanda à Temericô. Essa sentença
sugere que Temericô realiza as saudações por ordem de Oribela, não porque simplesmente
deseja coroá-la rainha. A última frase confirma essa ideia, pois Oribela diz: “lhe ordenava
muito beijar meus pés, ao lavar”.
175
Oribela exerce domínio sobre Temericô de maneira um pouco alucinada. Ela não é a
rainha para receber o tratamento que exige. O jogo de domínio desenvolvido por Oribela não
se constitui em uma forma autêntica de inverter a situação de submissão; sua atitude funciona
apenas como perpetuação das relações de dominação. O jogo criado com Temericô estabelece
ainda a tensão da posição que Oribela ocupa; alternando-se entre vítima e dominadora. Mas a
alternância não traz mudanças significativas, pois não altera a ordem social. Essa ordem é
modificada quando Oribela, como vítima, começa a falar. Assim, o romance todo é a forma de
atuação no mundo que Oribela pode realizar para subverter os valores culturais.
As renembranças trazem a possibilidade de os valores sociais e históricos serem
instaurados e subvertidos no espaço ficcional do romance histórico. Oribela precisa enfrentar
circunstâncias situadas em um momento fundamental da grande narrativa de formação da
nação brasileira. Os valores, subvertidos pelas renembranças de Oribela, pertencem, então, a
essa grande narrativa, estabelecida durante o século XIX pela burguesia em busca da linha
teológica dos acontecimentos que justificaria a existência das nações. A linha pressupõe os
princípios de coerência, integridade, completude e closure, os mesmos prezados pelo conceito
de história da época. Assim, o estabelecimento dessa linha impõe unidade e coesão ao
sentimento nacional. Dessa visão de nação provém a ideia de história universal e total, com
base no empirismo, convicto de que a realidade possui uma estrutura coerente passível de ser
desvendada. Esta abordagem da formação da nação ignora que o historiador impõe a ordem e
a seleção dos eventos.
Desmundo, ao mostrar a supressão de liberdade, a violência e o domínio exercidos
sobre os outros, por meio de uma visão feminina pessoal, revisa não essa perspectiva
histórica nacional, mas também o romance histórico tradicional, que surgiu no mesmo
contexto de fortalecimento da burguesia. Os burgueses tinham por objetivo criar um
imaginário nacional que aceitasse a acepção teleológica de formação da nação liberal. A ideia
176
de um processo de encadeamento natural de eventos formador da nação homogênea estimula
nas artes a busca pela identidade como uma instância nacional que precisa ser remontada
desde suas origens. Dessa maneira, o romance histórico nasce dos movimentos nacionalistas,
na procura por eventos originários que poderiam explicar o progresso da nação e das
identidades a ela ligadas quando remontados em uma sequência coerente e total. O romance
histórico recebe o seu formato a partir do modelo nacional.
Esse modelo nacional resulta em sérias consequências de abuso de poder por meio da
linguagem. O abuso decorre do exclusivo acesso, de um grupo dominante, a essa linguagem
construtora do modelo nacional. Desmundo subverte esse acesso, fornecendo-o a uma figura
que viveu no período de nascimento da nação (ela não o está apenas remontando séculos
depois, ela vivenciou os acontecimentos) e não pertencente ao grupo glorificado desse período
(ela não é um dos bravos colonos que vieram civilizar as terras descobertas). Ao acessar essa
linguagem, Oribela também a subverte, pois, a partir de sua posição, ela não poderia fazer uso
de uma linguagem coerente, de lógica causal pertencente à ideia de nação; assim, ela utiliza
uma linguagem fragmentada, composta de elementos oníricos e imaginativos. Dessa forma,
ao mesmo tempo em que ela recebe crédito de confiabilidade, segundo os padrões da história
positivista, observável, por ser testemunha direta dos acontecimentos, ela se expressa em uma
linguagem transgressora das expectativas teleológicas vinculadas a esses padrões. Uma
linguagem gica não seria capaz de expressar as experiências extremas às quais Oribela é
submetida. Por isso Paul Ricoeur salienta os perigos do abuso de poder na linguagem das
“narrativas fundadoras”, sugerindo que a questão importante: “é saber se as massas
encontraram, na idade que é delas, um discurso apropriado, entre a lenda e o discurso
científico” (2007, p.356).
Ao encontrar esse discurso, entre lenda e cientificidade, contesta-se o discurso
científico histórico que, ao ser transformado em instrumento de constituição de uma
177
identidade nacional, pode estabelecer mitos de origem a partir de momentos violentos de
extrema dominação. Esses momentos, segundo Ricoeur, são legitimados pelo Estado: não
existe nenhuma comunidade histórica que não tenha nascido de uma relação que se possa
comparar sem hesitação à guerra. Aquilo que celebramos como acontecimentos fundadores
são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um estado de direita
precário” (2007, p.92).
O escritor de romances precisa prestar atenção à sua função de “lembrar”, como
Morrison define em The Site of Memory (2008), para ajudar a curar as feridas simbólicas
dos atos violentos celebrados como acontecimentos fundadores de nações. Ricoeur aponta a
necessidade de uma revisão da história de momentos traumáticos e violentos para haver uma
ampliação de perspectiva. A ampliação de perspectiva é fundamental para evitar que os
acontecimentos negativos relacionados à ideologia fundadora se tornem mitos. A revisão da
história possibilita a abertura de um debate crítico sobre o passado, o único meio de se curar
as feridas do passado, segundo Ricoeur.
Assim, Ana Miranda lembra em Desmundo o início da colonização brasileira, com
seus aspectos de povoação e constituição de núcleos familiares. A autora situa Oribela nesse
contexto de formação nacional, mas sem transformá-lo em mito. Na verdade, essa maneira
mítica de entender a história nacional é contestada pela autora, ao tirar o foco das explorações
e campanhas civilizatórias e direcioná-lo para âmbito pessoal de uma jovem forçada a realizar
o processo de colonização de fornecimento de novas gerações de portugueses na nova terra. O
casamento não altera a sua situação de encarceramento nem o seu valor apenas como objeto
nessa sociedade. Essa história pessoal é trilhada por ausências, distanciamentos, perdas; não
há nada que se forme e se desenvolva para Oribela. Nem mesmo a sua tarefa de gerar um filho
na colônia realiza-se de maneira total: primeiro porque a possibilidade de seu filho não ser
um português nascido na nova terra, visto que ele pode ser do mouro (não de Francisco);
178
segundo, em razão do sumiço de seu filho (talvez ele tenha sido levado ou assassinado por
Francisco ela não sabe ao certo o que aconteceu com o bebê). O contexto de história pessoal
de Oribela em nada reflete o contexto oficial de nascimento e desenvolvimento da nação do
qual faz parte.
Trata-se, então, de uma história oficial que apresenta a necessidade de ser reestudada e
reestruturada, como Fernando Torres-Londoño afirma, em A outra família (1999): “O
imaginário do que era a família não no Brasil-colônia, mas também no Império, sofreu
profundas modificações nos últimos trinta anos” (p.13). Essas modificações mostram famílias
geradas a partir do concubinato, como resultado de adultérios, ou até mesmo de raptos e
violência. Essas histórias são difíceis de serem estudadas pela disciplina histórica de teor
científico, por não possuírem registros oficiais de existência.
As expectativas em relação à macro-história nacional estudada no século XX são
quebradas, no romance, pelas renembranças de teor pessoal, mistas de fantasia e falsidade
formosa. Além das renembranças contestarem a história linear e teleológica, o tom pessoal do
relato desafia a ideia de história una relacionada à história nacional. Desmundo mostra a
história pessoal que tem ligações com a macro-história. A história fragmentada e quebrada de
Oribela sugere a quebra de lógica e de linearidade também na macro-história. A história
oficial de formação da nação, embora se coloque como organização causal, rompe com as
linhas de lógica e continuidade para aqueles que não participam de seu centro. A linha de
maternidade de Oribela, por exemplo, foi quebrada por essa história. A jovem não consegue
ser filha (pois a mãe morreu durante o parto) e não consegue ser mãe do bebê que nasce na
colônia (pois ele some). Sem entender as causas, sem que haja explicações lógicas para essas
rupturas, Oribela é desconectada de sua linha de maternidade.
O rompimento da linha de maternidade no contexto de micro-história sugere a mesma
quebra no contexto macro-histórico da nação teleológica. Se uma nação nascendo nesse
179
momento, ela nasce órfã. A história oficial ausenta e distancia a linha de maternidade de seu
discurso; exatamente como Oribela é ausente e distanciada dos acontecimentos (como mostra
seu relato sobre as vezes em que esteve presa). O fato de ela estar presa e escondida a maior
parte da narrativa não significa que ela não estava nos lugares e não participava dos eventos.
Assim, a história total é questionável, pois carrega em si a ausência e a distância dos
silenciados.
Em Desmundo, a concepção de ausência da linha de maternidade, reconhecida nas
renembranças, possibilita o debate sobre os momentos traumáticos ligados à fundação da
nação. Desse debate, abre-se espaço para a conscientização sobre os conceitos de história total
como construções subjetivas de linguagem, que, em razão da maneira pela qual são usadas,
resultam em uma forma de poder e de dominação. O entendimento da formação da nação
como construção de linguagem possibilita também o debate sobre o funcionamento da
imposição de sentido à experiência dentro da cultura ocidental. Fernando Torres-Londoño
aponta, por exemplo, a construção no imaginário europeu da sensualidade e disponibilidade
para o prazer das mulheres das colônias:
Segundo essa imagem, carregada da misoginia europeia, eram as mulheres das „novas‟
regiões as responsáveis pela conduta dos portugueses. Inocentados, até pelos jesuítas
que os atacavam, os portugueses apareciam nos relatos dos primeiros tempos da
colônia mais vítimas do que algozes; tanto assim que as mulheres, particularmente as
índias, eram desqualificadas quando identificadas com o espírito ruim da tentação, do
engano e do pecado. (1999, p.35)
Rodolfo Vainfas, no Dicionário do Brasil colonial, também questiona a imagem da
mulher como construção subjetiva de linguagem de um ideal de conduta usado como forma
de poder e de dominação. Vainfas afirma que:
foi basicamente a partir das imagens construídas pelos viajantes e cronistas que se
forjaram as figuras da mulher branca reclusa, tolhida e dominada, e a da mulher
escrava, negra ou mestiça, como extremamente sensual. A partir da década de 1980, a
historiografia passou a rever esses estereótipos. Questionou principalmente a tão
alegada submissão feminina, mostrando que uma coisa era o modelo ideal de conduta
feminina veiculado pelos moralistas e outra bem diferente eram as condutas das
mulheres, não raro desafiadoras em vários aspectos. Desde o início da colonização,
180
mulheres colocaram-se à frente dos negócios mais variados [...]. Estudos quantitativos
demonstraram [...] [nos] centros urbanos, 50% das unidades domésticas eram
chefiadas por mulheres [...]. Em quase todos os divórcios ocorridos no Brasil colonial,
foram as mulheres que iniciaram o processo. (2001, p.415)
De orientação pós-moderna, a obra de Ana Miranda propõe-se a levantar essas
questões de dentro do espaço ficcional, fornecendo argumentos para discussões sobre essas
ausências, não oferecendo respostas (os paradoxos criados dentro do romance ajudam na
realização dessa proposta). O final do romance forma a essa proposta pós-moderna ao
deixar a resolução sobre o destino de Oribela em aberto, sem closure. O leitor é forçado a
formular hipóteses, a pensar sobre questões relativas à vida de Oribela até aquele momento
para tentar elaborar um sentido a partir do que é contado, afinal a jovem termina o seu relato
de forma vaga:
Fácil era sair daqui, um cortezinho no punho, um deitar na água, um pular do galho
alto, cortar o vessadre que se opõe ao açor, fio de seda da memória, correia que fazem
de couro de animalha morta, mas ficava todala gente por aqui prezando o viver, feito
este mundo fosse o melhor ou o apenas e bom estar arrojado aqui nestes mangues
junto dos maléficos, rufiões, ciganas [...]. Uxtix, uxte, xulo, cá! Por que me mandou
Deus para tal fim? Todo o meu mundo esvaneceu, estava eu endoidando, dormindo,
sonhando? Ouvi o choro de meu filho, virei e na porta, atravessado pelos raios
derradeiros do sol, os cabelos em fogo puro, estava o Ximeno com uma trouxa de
criança no colo. Hou há. (1996, p.213)
Assim, as renembranças em Desmundo produzem uma narrativa desestruturada,
revisando o conceito literário relacionado ao romance histórico do século XIX. O romance
histórico, com seu intuito de fornecer eventos nacionais originários, dispostos em uma
sequência coerente e total, possui uma narrativa tradicional linear, representante da história
teleológica. A metaficção historiográfica busca revisar, a um tempo, a composição da
história total e da literatura relacionada aos conceitos dessa história autorizada pela narrativa
literária tradicional. O conceito de renembrança possibilita à Ana Miranda formular em
Desmundo esses dois propósitos da metaficção historiográfica. As renembranças são os
comentários metaficcionais do texto, chamando a atenção do leitor para o modo como a
181
narrativa é construída, com sua estética fragmentada. As renembranças são também o resgate
do passado pessoal e nacional, revisado por uma perspectiva feminina subalterna. Ana
Miranda não objetiva oferecer ao leitor uma história completa e coerente. Ela se aproveita de
técnicas narrativas para desestruturar a forma teleológica tradicional da história, como meio
de expor a elaboração textual da história.
Capítulo 4.
A rememoração e a renembrança
I) O processo de rememoração e o de renembrança
Os conceitos de rememoração e renembrança são definidos de forma diferente por
Sethe, em Beloved, e por Oribela, em Desmundo. A rememoração possui duas características
principais: primeiro, sua existência está sujeita à imagem que permanece no mundo, mesmo
depois que o evento originário extinguiu-se; segundo, essa imagem pode ser encontrada por
outras pessoas. Já a renembrança define-se por três pontos centrais: a singularidade da
experiência pessoal; a ligação entre o fenômeno mnemônico e um mundo fantasioso; e a
criação de falsidades formosas para encobrir a memória de eventos traumáticos.
A segunda característica da renembrança, ao estabelecer a ligação da lembrança à
fantasia, oferece o enigma da representação que torna presente o ausente. Enigma que se
forma também na primeira definição da rememoração, da imagem que permanece. Assim, a
problemática comum da memória e da história de representar o passado configura-se nos dois
conceitos, proporcionando-lhes as paradoxais ausência (do passado se fazendo presente) e
distância (temporal entre o momento do acontecimento e o da recordação).
A elaboração de imagens relacionadas aos eventos recuperados pela memória, tanto as
mais próximas ao processo mnemônico quanto as que também emprestam elementos do
processo imaginativo, possui o caráter de indisponibilidade do passado nas características de
ausência e distância. Dessa forma, os romances orientados pela rememoração e pela
renembrança apresentam elementos narrativos que constroem e anulam a ausência e a
distância.
Em Beloved, o enigma da presença de algo ausente elabora-se nas rememorações das
personagens, responsáveis pela apresentação dos eventos originários ao leitor que apreende os
acontecimentos por meio da retomada promovida pela memória. Os eventos originários estão
ausentes, mas são presentificados pela rememoração. Além disso, algumas das personagens,
183
como Beloved e Baby Suggs, estão ausentes por já terem morrido, mas se fazem presentes na
vida de Sethe. Em Desmundo, a ausência define Oribela: ela não tem pais, família, dinheiro,
casa, nem mesmo uma pátria. A órfã muitas vezes utiliza as fantasias e sonhos para preencher
as ausências que sente.
A distância se estabelece de forma paradoxal em Beloved na própria rememoração das
personagens, que constitui e anula a distância temporal entre o evento originário e a
recordação. Há também o distanciamento entre a família de Sethe e os vizinhos que a
reprovavam pela atitude desesperada de assassinato, embora estejam próximos pelo passado
em comum. O narrador configura uma distância ao se colocar quase um século depois dos
acontecimentos envolvendo Sethe, Paul D e Denver; mas anula essa distância ao se mostrar
próximo das personagens. A distância ainda se institui do ponto de vista marginal pelo qual a
história é apresentada, distante do centro fundado pela história oficial. Desmundo também
estabelece a distância criada pela memória, entre o evento e a recordação. Além disso, há uma
distância física configurada pelos sucessivos encarceramentos aos quais Oribela é submetida
(distância paradoxal porque ela permanece perto o suficiente para perceber o que acontece) e
uma distância relativa à voz do discurso, pertencente à órfã. A jovem deveria contar com
propriedade os acontecimentos de sua própria vida, por estar próxima deles; porém, ela os
narra com alterações, distanciando-se. Tal como em Beloved, o ponto de vista marginal que
apresenta a história forma-se distante do centro estabelecido pela história oficial.
O eixo central da história oficial também se distancia, nos dois romances, na
elaboração de um tempo que não possui correlação com a noção histórica de tempo do
calendário. A definição linear e progressiva do calendário converte-se em obstáculo na
transição da consciência íntima do tempo, que se configura com as rememorações e as
renembranças. Em Beloved, as experiências pessoais interligadas não cabem no tempo
unidimensional do calendário, pois a apreensão do tempo dessas experiências está ligada à
184
formação da memória coletiva, a partir das memórias individuais. Em Desmundo, a
desvinculação entre a consciência íntima de tempo e o calendário também acontece, mas em
razão da singularidade da experiência de Oribela. O testemunho de Oribela cria um tempo
fora das delimitações do calendário por sua especificidade e interioridade, não por sua relação
com outras memórias individuais.
Estabelece-se, assim, a principal diferença entre a rememoração e a renembrança: as
imagens da rememoração podem ser encontradas por outras pessoas, criando a memória
coletiva; a renembrança é de ordem singular, individual. Em Beloved, blocos de
rememorações são encontrados, implicando diferentes espaços, corpos e tempos em
decorrência do processo mnemônico. O romance é estruturado a partir do encadeamento de
rememorações de diferentes personagens. Em Desmundo, as renembranças pertencem apenas
a Oribela e se desenvolvem em um formato de monólogo, como uma busca pela interioridade.
Assim, em Beloved, o testemunho de Sethe, principalmente, e suas rememorações não
ficam perdidos; ambos encontram destinatário em Denver. para Oribela, o testemunho não
é direcionado; não indícios de outra personagem que preste atenção em suas renembranças
(e mesmo que Temericô escute algumas das histórias, ela não se relaciona com elas, não as
reconhece como renembranças). Existe, portanto, a marca de outra ausência em Desmundo:
não interlocutor para Oribela (em seu nível narrativo). Conquanto Oribela e Sethe tenham
passados traumáticos, Oribela está mais sozinha do que Sethe.
A solidão do relato de Oribela relaciona-se com a terceira característica da
renembrança: a criação de falsidades formosas. Essas falsidades aparecem quando a jovem
não é capaz de lembrar detalhes do que conta ou nos momentos em que ela tenta encobrir as
lembranças desagradáveis. Com esse recurso de escape, o prefixo re-, em renembrança,
efetiva seus dois sentidos: “para trás” e “de novo”. Sob essas duas acepções, o conceito de
renembrança reforça-se como retomada de eventos ligados ao passado que se repetem no
185
presente. Entretanto, a repetição traz algo novo no tocante à impressão do evento originário.
As informações inexatas fornecem um teor de novidade às lembranças.
A rememoração também possui as qualidades do prefixo re- de: “para trás” e “de
novo”. Os eventos do passado são retomados em uma repetição. Da mesma forma que
acontece na renembrança, a repetição traz algo novo. No caso da rememoração, no entanto, a
novidade provém dos detalhes que são acrescentados conforme as imagens das rememorações
são encontradas pelas personagens.
Rememoração e renembrança apresentam diferentes formas de “novidades” às
impressões dos eventos originários. A novidade oferecida por Oribela, em suas renembranças,
reveste-se de inexatidão, falsidade. A novidade das rememorações de Sethe reside em sua
participação na formação de uma memória coletiva. Embora o elo principal de continuidade
das rememorações de Sethe seja Denver, a constituição da memória coletiva compreende
todos que partilham o passado traumático sob o regime escravocrata.
O perigo das falsidades formosas da renembrança surge em sua relação com o
esquecimento. Um dos motivos para a criação de falsidades configura-se na necessidade,
ostentada por Oribela, de evitar lembrar os eventos traumáticos de seu passado. Embora Sethe
e Oribela tenham de enfrentar os traumas do passado, o tipo de esquecimento gerado pelas
falsidades formosas está mais presente em Desmundo do que em Beloved. No caso de Sethe,
existe a presença de elementos relacionados à história oral de um grupo. Oribela não possui
esse apoio: a ausência de interlocutor faz dela uma vítima solitária do passado. Por isso, as
falsas lembranças aparecem para Oribela na escuridão da noite e no silêncio da omissão.
O silêncio é prejudicial à Oribela; ela precisa relatar as renembranças para evitar as
falsas lembranças. Porém, o seu desejo é inverso; ela quer aniquilar o seu passado incômodo.
A sua tentativa desesperada para extinguir as renembranças aparece ao final da narrativa,
186
quando ela queima a casa de Francisco de Albuquerque na esperança de as lembranças
sumirem. Oribela conta que:
Quis eu ver o incêndio até a derradeira chama, custou pouco a se desfazer a casa e
todas as suas fortalezas viraram um monte de brasas, coisas retorcidas, nada que se
pudesse conhecer por nome, por cinza, no que queria eu dizer para mim, devia
esquecer tudo no meu passado, ardendo o fogo na madeira ardia também em minha
alma, onde se agasalhavam as renembranças. (1996, p.209)
Oribela pretende queimar as renembranças de sua alma, ao queimar a casa e não
deixar “nada que se pudesse conhecer por nome, por cinza”. Por estar sozinha, a órfã
acredita que as renembranças pertencem apenas a sua alma, não ao mundo. Sethe sabe que
o funcionamento da memória pode transcender a experiência pessoal e, por isso, ela faz a
seguinte afirmação: If a house burns down, it‟s gone, but the place the picture of it stays,
and not just in my rememory, but out there in the world(1998, p.36).
1
Sethe compreende a
memória dessa forma porque ela tem Denver, Paul D, Baby Suggs e toda a comunidade
dividindo com ela o passado traumático; Oribela não tem ninguém, então, ela entende que ao
queimar a casa tudo vai sumir.
A questão que perpassa os dois romances é exatamente essa: o passado não pode
sumir. A rememoração e a renembrança são as estruturas narrativas que permitem ao espaço
ficcional construir a experiência híbrida de busca pelo passado e de criação imaginativa. Os
processos mnemônicos de Sethe e de Oribela, em relação ao passado particular de cada uma,
são executados pelas autoras de Beloved e Desmundo, em relação ao passado histórico
nacional dos Estados Unidos e do Brasil. A revisão de perspectivas históricas presentes nos
dois romances resulta da rememoração e da renembrança.
1
“Se uma casa é incendiada, ela some; mas o lugar, a imagem dele, permanece, e não só em minha relembrança,
mas lá fora, no mundo”.
187
II) A revisão de perspectivas históricas
A rememoração e a renembrança, em razão de seus diferentes formatos, estruturam
narrativas distintas, mas que possuem o mesmo objetivo de retomada do passado. Beloved e
Desmundo, ao tratarem de diferentes momentos históricos, de diferentes países, lembram o
passado de maneiras distintas; porém, com o mesmo intuito de revisar os acontecimentos e a
maneira como são compreendidos. A necessidade de resgate do passado traumático sob um
novo olhar apresenta-se como característica tanto da vida interior de Sethe e Oribela quanto
do processo de escrita dos romances aos quais pertencem. As autoras, Toni Morrison e Ana
Miranda, lembram a história nacional pelos processos narrativos da rememoração e da
renembrança, assim como suas personagens lembram as próprias trajetórias pessoais pelos
mesmos processos. Para Morrison (2008), “lembrar” configura-se na função primordial do
escritor contemporâneo.
As lembranças realizadas em Beloved e Desmundo, por suas autoras, seguindo as
características da rememoração e da renembrança, apontam para as ausências paradoxais que
fazem parte da história nacional norte-americana e brasileira. Na introdução de Toni
Morrison‟s Beloved: A Casebook, Nellie Mckay salienta o aspecto da ausência histórica
presente, que existe no romance: “Suas palavras poderosas, em nome de milhões, dão voz a
um profundo lamento: a ausência de um marco histórico que nos lembre de impedir a
repetição dessa atrocidade. Afinal, a ausência não apagou nem diminuiu a dor dessa
barbaridade, pois ela apenas nos lembra dela mesma: daquilo que está faltando” (1999, p.3,
tradução nossa).
2
Ao expor as ausências históricas, Beloved e em Desmundo revisam as perspectivas
históricas responsáveis pela determinação dessas ausências. A elaboração da vida interior de
personagens marginais da história oficial apresenta novas formas de compreensão acerca do
2
Do original: Her powerful words, on behalf of millions, give voice to a profound lament: the absence of a
historical marker to remind us never to let this atrocity happen again. For its absence has neither erased nor
diminished its pain; rather, it reminds us only of itself: of what is missing” (1999, p.3).
188
conceito de formação de nação. Morrison oferece a figuras de escravos um registro pessoal
que questiona o apagamento dessas figuras das posições ativas de constituição nacional e de
qualquer participação histórica. Ana Miranda também problematiza o esquecimento de figuras
históricas ao proporcionar um registro pessoal emocional a uma órfã que não possui nome nos
registros oficiais, sendo reconhecida apenas como parte de um grupo identificado pelas
características da orfandade e do objetivo de casar com os colonos.
Assim como a órfã Oribela, a personagem Beloved representa aqueles que não tiveram
seus nomes registrados na história. Beloved apresenta uma urgência em assegurar que os
outros não a esqueçam, atormentando-os na forma de um fantasma e invadindo suas vidas na
forma da moça misteriosa. Ao escrever um romance sobre as rememorações que marcam a
existência de Beloved, Morrison revisa a história que não reconhece as vítimas dos processos
de dominação e poder. As personagens de Beloved e Desmundo, elaboradas com vida interior
intensa, representam pessoas que não tiveram o próprio nome, muito menos vida interior,
como parte da história; esses romances não tratam da história dos grandes acontecimentos,
nem das grandes figuras políticas, econômicas, religiosas.
A vida interior das personagens de Beloved e Desmundo também constitui a
consciência íntima de universos femininos que formam uma noção de tempo distinta da noção
de tempo histórico do calendário. A rememoração e a renembrança estabelecem relações de
tempo que desafiam a linearidade do tempo do calendário; revisando, assim, a ideia de
progressividade imposta aos fatos pelos historiadores, ao colocá-los em uma sequência causal
que acompanha a linearidade do calendário. A consciência íntima do passado revisa a
orientação teleológica da história.
Os universos femininos, em ambos os romances, são elaborados, também, por meio do
testemunho realizado pelas personagens. A ficção oferece o espaço para que aqueles que não
tiveram voz na história oficial possam narrar suas próprias histórias. Em Beloved, a
189
rememoração possibilita a constituição do testemunho na formação da memória coletiva. A
ação de fazer memória apresenta-se, assim, como uma maneira de atuação prática no mundo.
O ato de fazer memória significa narrar a própria história, elaborando um testemunho que
assume a importância política de evitar o esquecimento público referente a experiências
pessoais. O mesmo acontece com Oribela, pois seu testemunho adquire a importância política
de participação social que transgride a dominação imposta à órfã em todas as situações em
que é forçada a permanecer em silêncio. Lembrar, em Beloved e em Desmundo, corresponde a
sair da margem; a lembrança corresponde à revisão da história, pois leva as personagens
marginais a posicionarem-se, por suas próprias vozes, na história e na sociedade.
Porém, a efetivação do ato de lembrar, de assumir a voz para narrar as experiências
pessoais, não se realiza facilmente. Sethe, em Beloved, precisa da ajuda de Denver, Paul D,
Baby Suggs e toda a comunidade para constituir o seu testemunho, formado ao romper
barreiras de linguagem e denominado, no romance, unspeakable thoughts unspoken”.
3
Oribela, em Desmundo, também precisa romper barreiras de linguagem para expressar suas
vivências. Sethe e Oribela são vítimas da história que passaram por experiências sem paralelo
com a existência ordinária do homem comum. Sethe, entretanto, encontra, em Denver e nos
outros que possuem o mesmo passado traumático, uma audiência capaz de compreendê-la.
Oribela não consegue encontrar seu público.
O testemunho de Oribela desafia os componentes essenciais de confiabilidade da
linguagem porque ela experimenta a solidão das testemunhas históricas: a capacidade de
compreensão mediana mostra-se limitada no que concerne às experiências da jovem. O relato
de Oribela não se encaixa no fundo de confiança presumida da linguagem. Expondo a
incapacidade de compreensão das experiências extremas, Desmundo questiona o processo da
3
„pensamentos não falados, impossíveis de serem expressos em palavras‟ (1987, p.233).
190
história total. A incompreensão acerca da história pessoal da Oribela expõe a incapacidade de
compreensão universal, total, integral do passado.
Embora o passado seja difícil de compreender em sua totalidade, Beloved e Desmundo
apontam que essa dificuldade não pode se tornar uma razão para desacreditar a história; a
incapacidade de compreensão deve fomentar a revisão da história que se apresenta como total,
procurando ouvir as vozes das figuras marginais, vítimas da dominação. A busca por um meio
de expressar as experiências extremas, realizada pelas personagens em rememorações e
renembranças e pelas autoras nos romances, é uma forma de revisão da história: os eventos
traumáticos precisam ser reavaliados pelo ponto de vista de quem os sofreu, a fim de serem
expostos despidos da lógica imposta pela ótica dos vencedores.
Os eventos expostos em Beloved e Desmundo indicam a difícil apreensão e expressão
das situações nas quais as personagens marginais da história sofreram algum tipo de violência
e dominação. A constituição da vida interior no espaço ficcional e o testemunho das vítimas
expõem, ao mesmo tempo em que subvertem, essa dominação. Ao fornecer vida interior aos
escravos, Toni Morrison revisa tanto a história que os compreendia como objetos de valor
econômico quanto os conceitos oriundos do pensamento positivista, que definia a história do
século XIX e justificava a escravidão com argumentos cientificistas. Difundido e oficializado
pelo ensino escolar, o argumento de inferioridade racial dos negros legitimava uma forma de
dominação cultural que resultou na desumanização dos negros, na sociedade e na história. No
romance, essa situação é exposta no relato de Sethe a respeito da aula do schoolteacher em
Sweet Home. O conhecimento ensinado nessa aula determina e autoriza uma hierarquia social
que permite o domínio de um grupo sobre o outro, excluindo Sethe de participar em um
discurso do qual é objeto. Em Desmundo, o relato íntimo de Oribela expõe a dominação sobre
as órfãs nas descrições dos momentos em que ela está encarcerada, na cela do convento, por
exemplo, ou em que as outras estão presas, como Dona Bernardinha, mantida presa primeiro
191
pelo marido e, depois, pelas pessoas da cidade. O testemunho de Oribela não apresenta figuras
de dominação personificadas; embora existam personagens exercendo domínio sobre as órfãs
(como os maridos, a velha, a esposa do governador), na maior parte das descrições as moças
são controladas por forças anônimas (no momento em que estão nas celas, o se sabe quem
as mantém presas). Em Beloved, entretanto, o schoolteacher personifica a dominação; a
violência e o domínio possuem um rosto.
A diferença na caracterização das figuras de dominação de cada romance mostra que
Sethe enfrenta forças pontuais de dominação e Oribela enfrenta forças difusas. Isso significa
que para Sethe encontrar meios de resistência à dominação se diferente do que para Oribela.
Em Beloved, Denver participa de outro tipo de aula, no qual ela é aluna e adquire o
conhecimento oficializado para agir no mundo. Denver inverte a situação de Sethe ao deixar
de ser objeto do discurso para participar dele ativamente. Denver, assim, apresenta a
possibilidade de resistência à dominação sem desfechos trágicos, ao contrário da resistência
aflita e desastrosa de Sethe: ela mata a própria filha para que sua criança não sofra as
consequências de ser objeto desse discurso degradante. Já em Desmundo, Oribela procura
resistir à dominação com suas constantes fugas da casa de Francisco de Albuquerque,
chegando a queimar a casa, ao final; porém, a resistência por ela realizada não se configura
em uma ação efetiva, pois mesmo quando Francisco vai embora e ela está sozinha, ainda
assim ela se sente presa por não poder fazer o que deseja (ela quer voltar para Portugal, mas,
mesmo sem o marido, ela ainda está enclausurada no desmundo).
Para resistir efetivamente à dominação, Oribela precisaria subverter o discurso do
opressor. A subversão ocorre quando ela assume a própria voz e narra os acontecimentos pelo
seu ponto de vista, distante, marginalizado. O testemunho configura-se em atuação política;
assim, as renembranças são a forma de Oribela agir no mundo. O mesmo acontece com Sethe,
que pode atuar no mundo com as suas rememorações. Sethe, entretanto, possui Denver como
192
o destinatário das rememorações, que não as compreende como também perpetua a
resistência utilizando-se do conhecimento oficial, pertencente ao sistema de ensino. Denver
resiste fazendo uso dos meios que autorizam a dominação. Assim, ao expor a dominação
violenta entre grupos, inerente aos momentos históricos nacionais resgatados, os romances
sugerem que o valor para resistir está na rememoração e na renembrança.
A atuação política de narrar a própria história realiza-se de modo mais completo para
Sethe: a possibilidade de perpetuação da ação política, em Denver, assegura a resistência à
dominação, tanto para Sethe quanto para as gerações futuras, colaborando para o passado
traumático não ser esquecido, nem contado apenas pelo ponto de vista central do dominador.
Oribela enfrenta dificuldades em realizar sua atuação política, por ter a possibilidade de
perpetuação interrompida. Sethe e Denver encontram uma na outra, com a ajuda de Baby
Suggs, meios de resistir à dominação; Oribela não encontra ninguém, está sozinha, por isso
ela está presa mesmo quando Francisco vai embora. Sethe e Denver criam entre si a linha de
maternidade que as fortalece, mesmo que a linha tenha sido interrompida em relação aos
outros filhos e em relação à mãe de Sethe. Oribela não possui essa linha; todas as linhas de
maternidade dela foram interrompidas: em relação à sua mãe e em relação ao seu filho.
O processo de rememoração, em Beloved, apresenta a figura do ancestral como ponto
fundamental para construção do presente e do futuro. Denver faz parte de uma linhagem que a
orienta, desde Baby Suggs à sua mãe, Sethe. A continuidade entre avó, mãe e filha constrói a
linha de maternidade, apreciada por Toni Morrison como o meio de sobrevivência da cultura
negra norte-americana. A maternidade constitui-se em uma forma de resistência política, ao
atribuir à Sethe o espaço e a necessidade de narrar a própria história.
A necessidade surge da preocupação maior de Sethe em evitar o sofrimento de
Denver; o objetivo primeiro dela é proteger Denver, não contar a história. Aliás, no início do
romance, Sethe quer preservar Denver de suas rememorações; mas é exatamente o encontro
193
com as rememorações que possibilita o fortalecimento de Denver e a sua própria resistência à
dominação. Além disso, a linha de maternidade é formada no romance pelo conjunto de
mulheres da comunidade; da mesma maneira em que a rememoração constrói a memória
coletiva, a linha de maternidade estabelece-se de forma coletiva, em um espaço público de
atuação. A rememoração criada pelo reconhecimento da linha de maternidade a que cada
pessoa pertence possibilita o ato de sair da margem na busca pela manutenção dessa linha. O
processo de renembrança, entretanto, funciona de maneira solitária para Oribela. A órfã é
privada da resistência proveniente da linha de maternidade tanto por estar desligada de sua
mãe e de seu filho quanto por não ter uma comunidade de mulheres para lhe apoiar.
O reconhecimento da linha de maternidade contesta, ainda, o conceito positivista de
história como progresso, pois implica a retomada de valores ancestrais que fornecem à
história um sentido de circularidade em vez de linearidade teleológica. A linha de
maternidade também imprime um tom familiar que desafia a ideia de história total universal,
apresentando uma história pessoal, micro, ligada a níveis-macro. Nesse tom familiar, a
responsabilidade histórica centra-se nas mulheres, subvertendo a história oficial dos feitos dos
grandes homens. Entretanto, em Beloved, a forte presença da personagem de Paul D aponta
que a linha de maternidade a ser preservada só está completa quando inclui homens e
mulheres. Em Desmundo, a figura do mouro reforça a ideia de completude da linha de
maternidade com homens e mulheres. Em ambos os casos, a figura masculina que ajuda a
completar a linha de maternidade não possui relação oficial de parentesco com as figuras
maternas: Paul D não é o marido de Sethe, nem o pai de Denver; Ximeno não é o marido de
Oribela e pode (ou não) ser o pai do bebê. O tom familiar que Beloved e Desmundo imprimem
às histórias nacionais não se constrói na forma de núcleos familiares tradicionais
representativos de conceitos patriarcais.
194
As ausências e distâncias configuradas nas narrativas de Beloved e Desmundo indicam
rupturas e ausências na linha de maternidade. Em Desmundo, a linha de maternidade não
chega a se configurar, com a mãe sem rosto de Oribela e o sumiço de seu filho, com Francisco
assassinando a própria mãe, com Viliganda (irde Francisco à qual não dão atenção em
razão da suspeita de que seja fruto de um relacionamento de Francisco com a mãe). Em
Beloved, Sethe não pôde ser filha, porque perdeu a mãe quando era criança ainda, e não pôde
ser mãe de Beloved, Howard e Buglar (embora Sethe tenha a linha de maternidade
estabelecida com Denver), Baby Suggs perde todos os filhos (exceto Halle) quando são
vendidos a outros fazendeiros, Ella não alimenta o seu bebê, fruto dos abusos sexuais
realizados por um pai e um filho branco que a mantém presa. As linhas, em ambos os
romances, são rompidas pelas situações hediondas que Sethe e Oribela, em especial,
enfrentam: a sociedade violenta e o domínio de grupos detentores de poder sobre as duas
desconectam-nas da maternidade. A violência social dos momentos históricos vividos por
cada uma resulta na ruptura da linha de maternidade.
A mesma ruptura, sentida pelas personagens em relação a suas vidas, está presente na
história macro da formação nacional norte-americana e brasileira. A ausência da linha de
maternidade na formação da nação exclui da história a figura da mulher; tornando-se, assim,
uma ausência paradoxal, pois deixa de mencionar pontos de vista que participaram da história.
A empreita de Toni Morrison e Ana Miranda em mostrar, nos espaços ficcionais de
Beloved e Desmundo, a ruptura da linha de maternidade funciona, de forma paradoxal, na
revisão histórica de reconstituição dessa linha na esfera macro da nação apresentada de
maneira teleológica. Em Beloved, a reconstituição da linha na esfera micro, entre Sethe e
Denver, imprime à figura materna uma importância política que deslegitima a grande
narrativa da maternidade na cultura ocidental. Como Oribela não possui, no espaço ficcional,
a possibilidade de reconstituição da linha de maternidade, ela não consegue exercer sua
195
participação política, sofrendo as consequências dessa solidão; embora a inserção da vivência
dela na história nacional seja uma reconstituição na esfera macro.
Por estar ligado à memória, o reconhecimento da linha de maternidade, umas das
formas disponíveis às personagens de Beloved e Desmundo para resistir à dominação imposta,
constrói uma história de referências pessoais que revisa a ideia de nação estabelecida distante
de relações pessoais diretas com o passado. A própria estrutura da memória, sendo circular,
não-linear, composta por blocos de lembranças, dessimplicadas do espaço e do tempo,
questiona a estrutura que dá sentido à ideia de nação teleológica elaborada no século XIX.
A memória pode também reparar os esquecimentos da história. O esquecimento
resulta de objetivos políticos de manutenção de poder, executados na elaboração da história
oficial que se coloca como total. A legitimação do conhecimento histórico, garantida pela
autoridade atribuída às vozes capacitadas para construção desse conhecimento, impõe à
história a característica de universalidade. O caráter universal forja esquecimentos graves,
pois as ausências da história transformam-se em ausências sociais e culturais mantenedoras
das estruturas de poder. A memória, entretanto, pode enfrentar o esquecimento histórico
utilizando-se da mesma estrutura que o elabora: narrando os eventos de outro modo. O
esquecimento provém da supressão, da refiguração, da enfatização. A memória aproveita-se
da possibilidade narrativa, de se narrar de modos diferentes, para reparar os esquecimentos e
imprimir um teor pessoal aos eventos do passado. Como já mencionado no primeiro capítulo,
Paul Ricoeur adverte sobre o perigo do conceito de formação nacional baseado nessa história
total que autoriza esquecimentos:
o perigo maior, no fim do percurso, está no manejo da história autorizada, imposta,
celebrada, comemorada da história oficial. O recurso à narrativa torna-se assim a
armadilha, quando potências superiores passam a direcionar a composição da intriga e
impõe uma narrativa canônica por meio de intimidação ou de sedução, de medo ou de
lisonja. Está em ação aqui uma forma ardilosa de esquecimento, resultante do
desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrarem a si mesmos.
(2007, p.455)
196
A memória confere aos atores sociais a possibilidade de retomarem seu poder
originário de narrarem a si mesmos e contarem suas próprias histórias. Assim, os
protagonistas silenciosos da história, como Sethe e Oribela, podem fazer uso da própria voz e
subverterem o abuso de poder que os forçou a silenciarem-se. A apropriação da palavra do
outro, por uma instância de poder, configura-se em uma forma de dominação além da coerção
física; uma dominação exercida pelos recursos de manipulação da narrativa. As narrativas
acerca da fundação nacional, segundo Ricoeur, estabelecem a ligação entre a dominação
violenta física e cultural: Aquilo que celebramos como acontecimentos fundadores são
essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um estado de direita precário”
(2007, p.92). Por isso, a revisão de perspectivas históricas faz-se necessária: para evitar que
atos violentos e traumáticos relacionados à ideologia fundadora tornem-se mitos. O processo
de rememoração e de renembrança, de Sethe e Oribela, ao permitirem a atuação política de
narrar a própria história, colaboram na formação de obstáculos à fundação de mitos,
contribuindo para as personagens marginais se colocarem na história.
A família de Sethe, em Beloved, enfrenta situações pessoais inseridas no momento da
macro-história referente ao período da Guerra Civil Norte-Americana (1861-1865). A guerra
constitui um ponto importante na grande narrativa da formação nacional dos Estados Unidos
por representar a preservação da união dos estados. O sentimento nacional, atrelado ao
conceito de nação baseado nos princípios de coerência, integridade, completude e closure,
apresenta as ideias de unidade e coesão; ambas responsáveis por prover à nação um novo
sentido. As rememorações de Beloved subvertem os sentimentos de unidade e coesão ao
mostrar as histórias pessoais estilhaçadas da sociedade histórica que permitiu a existência do
sistema escravocrata e depois o extinguiu mais por motivos políticos do que humanitários.
Nessa sociedade, o modelo nacional resulta de abusos de poder por meio da linguagem, como
expõe a figura do schoolteacher, que personifica os ideais positivistas e cientificistas do
197
conceito de formação da nação. As histórias pessoais estilhaçadas apontam a quebra da linha
de maternidade que resulta na ausência dessa linha no conceito de desenvolvimento nacional.
Os valores de liberdade, igualdade e união residem, prioritariamente, na linha de maternidade
e não na guerra, como a história oficial parece sugerir.
Oribela, em Desmundo, insere-se na história no momento da formação nacional
atribuído ao surgimento da nação. O processo de colonização constitui na história oficial o
nascimento do Brasil; entretanto, as renembranças de Oribela não mostram a edificação de um
novo mundo, mas a destruição que a violência e o abuso de poder levam ao desmundo. As
renembranças de uma figura feminina marginal subvertem os atos heroicos, presentes na
grande narrativa do desenvolvimento da nação, expondo-os antes como maneiras de dominar
e escravizar outros povos e grupos sociais e não apenas formas de estabelecer um processo
civilizatório. Oribela, mesmo sendo portuguesa, não pertence ao grupo social dominante, por
ser mulher; em razão disso, sua situação na colônia assemelha-se à escravidão, pois a mantêm
encarcerada a maior parte do tempo, seu corpo é objeto de abusos violentos e ela não tem
independência nenhuma para tomar as decisões de sua vida. A falta de liberdade e autonomia
de Oribela são resultados da interrupção em sua linha de maternidade. A quebra dessa linha,
causada pelos atos violentos, implica sua ausência na formação do conceito de nação. Assim
como Beloved, Desmundo sugere que os valores de liberdade e igualdade, vinculados ao
surgimento de uma nova nação, residem, prioritariamente, na linha de maternidade e não no
processo de colonização, como a história oficial indica. Ao apontar a ausência da linha de
maternidade no modelo nacional, Beloved e Desmundo questionam os padrões culturais
impostos pela história oficial.
Considerações finais: A história compartilhada
A história oficial totalizadora perpetua os valores de coerência, integridade,
completude e closure, que instituem uma organização não-natural para a realidade. A
realidade não se organiza dessa forma. A história oficial fixa esses princípios, baseando-se em
padrões culturais também impostos à sociedade. As ideias de integridade e completude,
quando atreladas a uma história unilateral que ignora a participação de grupos como os
escravos do sistema agrário norte-americano ou as jovens órfãs enviadas para o Brasil
colonial, autorizam um padrão cultural de exclusão e ausência desses grupos na sociedade.
Criam-se, assim, as ausências paradoxais de grupos inteiros de indivíduos que estão presentes
enquanto o padrão cultural perpetua a ideia de que não existem.
A revisão de perspectivas históricas faz-se necessária para indicar as ausências criadas
na história total. Os questionamentos acerca da história colocam em debate a ideia da
imprecisão do passado, por sua mediação textual: não há como alcançar um registro objetivo e
completo do passado. A incerteza, entretanto, não se configura em motivo para deixar de
entender e buscar a história. Romancistas como Toni Morrison e Ana Miranda trabalham com
essa incerteza justamente para tentar compreender a formação do passado híbrido de método
científico e atuação subjetiva dos historiadores.
O entendimento da construção cultural do passado possibilita a conscientização sobre
a elaboração da cultura atual. Os questionamentos levantados nos romances Beloved e
Desmundo sobre o passado, sobre a formação nacional, sobre a história teleológica de
formação dos povos norte-americano e brasileiro, incitam o leitor a formular perguntas: como
entendemos quem somos? como chegamos a nos entender dessa forma? quais referências nos
são apresentadas como formadoras de nossa identidade nacional?
Linda Hutcheon salienta o propósito das obras pós-modernas em formular essas
questões: “a ficção pós-moderna demanda de seus leitores o questionamento acerca do
199
processo pelo qual representamos nós mesmos e nosso mundo para nós e a conscientização
dos meios pelos quais formulamos sentido e construímos uma ordem a partir da experiência
em nossa própria cultura” (1993, p.53, tradução nossa).
1
Ao expor a ausência da linha de
maternidade no conceito de formação nacional, Beloved e Desmundo elaboram
questionamentos sobre a cultura de povos que entendem a si mesmos sem o reconhecimento
dessa linha, nos quais as crianças crescem sem se identificar com figuras femininas ancestrais
e históricas.
A ausência da mulher na história e a falta de reconhecimento da linha de maternidade
na formação da identidade nacional constroem para a mulher, na cultura atual, uma
representação de ausência que ela precisa enfrentar. A cultura formada a partir das
representações do passado que criam ausências para as mulheres torna urgente à mulher atual
encontrar meios de se impor, de usar a própria voz para tomar a palavra e subverter o quadro
de ausência. Esse é o mesmo processo que Sethe e Oribela precisam empregar e que elas
conseguem realizar por meio da memória e do reconhecimento da linha de maternidade. Sethe
e Oribela são as ausências históricas que têm no espaço ficcional dos romances a
oportunidade de subverterem a ausência. Os romances funcionam duplamente oferecendo
exemplos de como subverter a ausência e, ao mesmo tempo, sugerindo à mulher
contemporânea reconstituições potenciais da linha de maternidade que foi rompida,
apresentando possíveis figuras femininas históricas.
O reconhecimento da linha de maternidade possibilita o fortalecimento da mulher
contemporânea e contribui para que ela desenvolva a capacidade crítica de se posicionar na
sequência histórica. Assim, a atuação do reconhecimento da linha de maternidade contraria as
ideias de Fredric Jameson (1998) a respeito de o pós-modernismo apropriar-se da história a
1
Do original: postmodern fiction asks its readers to question the process by which we represent ourselves and
our world to ourselves and to become aware of the means by which we make sense of and construct order out of
experience in our particular culture” (1993, p.53).
200
ponto de desvirtuá-la. Romances como Beloved e Desmundo estimulam o desenvolvimento da
competência do leitor em conhecer o passado histórico, como Rafael Pérez-Torres salienta:
Ao invés de entender o pós-modernismo como um campo de atuação
descontextualizado historicamente, tal qual críticos como Fredric Jameson e Hal
Foster sugeriram, Beloved nos apresenta uma visão diferente da reconstrução histórica.
O movimento que o texto realiza do moderno ao pré-moderno, o reexame do
significado histórico, sugere um comprometimento crítico com a história como
narrativa, uma construção envolvida com ideologia. (1999, p.183, tradução nossa)
2
O comprometimento crítico de Beloved e Desmundo em entender a história como uma
narrativa, reavaliando o significado histórico, produz a reflexão sobre as bases de fundação do
Ocidente, aponta por Terry Eagleton (2003) como necessária. Eagleton, no entanto, acredita
que o pós-modernismo não é capaz de oferecer essa reflexão. O romance de Toni Morrison e
o de Ana Miranda provam o contrário, ao promover, por meio da criação ficcional, a reflexão
sobre a verdade e a realidade da formação do Ocidente, indicando as ausências, implicadas
nessa formação, que produzem resultados na atualidade.
Como Zygmunt Bauman (1998, p.149) afirma, a pós-modernidade encontrou a
verdade na ficção. Segundo Bauman, o legado da cultura ocidental foi desprezado pelos
filósofos; por ser uma cultura racista, sexista e imperialista, os filósofos deixaram de valorizar
o aspecto positivo que ela apresenta de enfrentar essas características, procurando desenvolver
a capacidade de abarcar em si mesma uma multiplicidade de diferentes espécies de pessoas.
Por ter sua qualidade desprezada, a cultura ocidental precisou buscar formas de sobrevivência
distantes do discurso filosófico. De acordo com Bauman:
Exilada do discurso filosófico, ela necessitava, para sobreviver, de outro abrigo. [...]
ela de fato encontrou outro abrigo: nessa grande invenção ocidental o romance, a
obra de ficção. Se assim for, então um dos grandes paradoxos de uma civilização
empenhada na eliminação de paradoxos é que a verdade do Ocidente, a verdade da
modernidade, achou refúgio na mesmíssima obra de ficção que combateu com unhas e
dentes. (1998, p.149)
2
Do original: “Rather than view postmodernism as a historically decontextualized field of endless play, as critics
such as Fredric Jameson and Hal Foster have suggested, Beloved presents us with a different vision of historical
reconstruction. The movement in the text among the modern and premodern, the reexamination of historical
signification, suggests a critical engagement with history as a narrative, a construction implicated in ideology
(1999, p.183).
201
Enquanto a modernidade, baseada nos princípios positivistas de objetividade,
aproximou a ficção da imaginação, distanciando ambas da verdade, a pós-modernidade
encontrou a verdade exatamente na ficção. Uma verdade capaz de fortalecer as pessoas para
enfrentarem a realidade que se apresenta organizada em padrões impostos como naturais,
apesar de serem construções culturais. A exposição de uma possível reconstituição da linha de
maternidade, como em Beloved e Desmundo, constitui-se em uma dessas verdades explicadas
por Bauman:
as verdades nascidas na obra da ficção artística, e por meio dela, podem apenas
podem preencher a deficiência, na existência humana, deixada pela espécie de
realidade que faz todo o possível para tornar a busca de significado redundante e
irrelevante para a própria autoperpetuação, assim como um objetivo indigno dos
esforços de uma vida. (1998, p.159)
Nos romances Beloved e Desmundo, o fortalecimento pessoal proveniente do
reconhecimento da linha de maternidade surge da fusão da ficção com o processo
mnemônico. A memória, além de possibilitar a reconstituição dessa linha, produz, segundo
Paul Ricoeur, “a dessimplicação do espaço e do tempo de sua forma objetivada” (2007, p.59).
A memória faz o espaço vivido e o tempo vivido estarem implicados, e, ao mesmo tempo,
desconectados do espaço objetivo de localização geográfica e do tempo linear cronológico do
calendário. Esse movimento dialético define o relacionamento do próprio com o alheio, como
apresenta Ricoeur:
A fenomenologia da memória dos lugares parece ser apanhada, desde o início, num
movimento dialético intransponível de dessimplicação do espaço vivido em relação ao
espaço geométrico e de reimplicação de um pelo outro em todo o processo de
relacionamento do próprio com o alheio. Poderíamos considerar-nos como vizinhos de
alguém diferente sem um esboço topográfico? (2007, p.59)
Assim, a memória determina aproximações entre pessoas que vivem em tempos e
espaços diferentes. Dessa forma, os eventos retratos pela memória em Beloved e Desmundo se
aproximam, mesmo pertencendo a romances escritos e publicados em diferentes países, em
202
décadas diferentes, tratando de momentos históricos diferentes de cada país. O processo
mnemônico, das rememorações e das renembranças, faz de Sethe e Oribela vizinhas em
tempos e espaços dessimplicados de suas características objetivas. A memória, ao buscar
passado pessoal e o histórico, autoriza e justifica a comparação entre os dois romances.
Ashraf Rushdy, em Daughters Signifyin(g) History cita uma entrevista de Toni Morrison na
qual a autora expõe que as origens de um povo não se limitam aos espaços geográficos; nas
palavras de Morrison: “as raízes são menos uma questão geográfica do que um sentimento de
história compartilhada; estão menos relacionadas com um lugar do que com o interior das
pessoas” (1999, p.45, tradução nossa).
3
Por isso, as histórias de Sethe e Oribela estão próximas uma da outra, podendo-se
relacioná-las apesar da distância espacial e temporal que apresentam. De acordo com nia
Carvalhal (2003), na atualidade, é necessário pensar o literário como um conjunto de relações
múltiplas que ultrapassam fronteiras nacionais. Carvalhal baseia essa ideia no conceito de
hibridização, que ela empresta de Ernesto Laclau, professor de ciências políticas: segundo
esse conceito, o território no qual as identidades contemporâneas são construídas não possui
demarcação geográfica precisa. Os contornos imprecisos envolvem uma redefinição dos
conceitos de universalidade e particularidade, centrais à reflexão da literatura comparada, no
contexto do processo de globalização e mundialização. Universalidade e particularidade
deixam de ser termos opostos, para se tornarem coexistentes. Assim, cria-se um paradoxo em
que a uma “lógica da diferença” se agrega uma “lógica da equivalência”. Esse paradoxo, sem
expressar nenhuma unidade, regula as relações das diferenças entre si quando elas convergem
para reivindicações comuns. As diferenças entre Beloved e Desmundo podem ser reguladas
pela conversão na reivindicação comum de expor a ausência da linha de maternidade na
formação do conceito de nação e de forjar uma possibilidade de reconhecimento para essa
3
Do original: roots are less a matter of geography than sense of shared history; less to do with place than with
inner space(1999, p.45).
203
linha, apresentando esse reconhecimento como o movimento político necessário para as
mulheres (e as vítimas da história) saírem da margem, fortalecerem-se e assumirem uma nova
posição na sociedade.
Encontrar reivindicações comuns entre obras literárias de diferentes países constitui-se
em um dos temas da literatura comparada, que, segundo Sandra Nitrini (2000), surgiu no
período de formação das nações, quando a questão da cultura e da identidade nacional estava
sendo discutida: “portanto, desde as suas origens, a literatura comparada acha-se em íntima
conexão com a política” (2000, p.21). O surgimento da literatura comparada também está
ligado ao conceito de formação da nação que passa por uma revisão na atualidade. Por isso,
um estudo comparativo que regule as diferenças que convergem para uma reivindicação
comum institui-se também em uma forma de rever o conceito de nação, ampliando e apoiando
as propostas de Beloved e Desmundo de revisar perspectivas históricas.
A comparação das questões abordadas nos dois romances pode ser expandida ainda,
em pesquisas futuras, por meio do estudo sobre os acontecimentos históricos não dos
períodos retratados em cada romance, mas também daqueles pertencentes às épocas de
produção, década de 1980, para Beloved, e década de 1990, para Desmundo. A partir da
comparação entre o panorama histórico resgatado nos romances e o contexto de suas
produções, pode-se traçar ainda o paralelo com os eventos de repercussão nacional e
internacional do período de realização da pesquisa. Por exemplo, este trabalho foi executado
no fim da primeira década do século XXI, dez a vinte anos distante da elaboração dos
romances, em uma época de mudanças significativas da imagem da mulher afro-americana
com Michelle Obama e suas duas filhas, Malia e Sasha. Também caracteriza-se, no Brasil, um
período de intensas campanhas governamentais para diminuição da violência contra a mulher,
com a divulgação ampla do disque-denúncia e aprovação de leis punitivas à violência
doméstica, incluindo a violência psicológica. Entretanto, os números divulgados indicam que,
204
no Brasil, a cada 15 segundos uma mulher sofre alguma agressão
4
e que, em 2008, 30% das
mulheres assassinadas na Espanha por seus maridos ou namorados eram brasileiras.
5
Esses dados se relacionam com os romances porque expõem as consequências da
identidade nacional formada sobre a quebra da linha de maternidade. A ausência e o
distanciamento da mulher na história dificultam o reconhecimento de sua existência e
resultam em relacionamentos nos quais os homens não conseguem conviver com a presença
constante de uma figura que não existiria, segundo as representações históricas e nacionais
providas pela sociedade. No caso das informações sobre a Espanha, acentua-se a relação entre
a linha de maternidade e a narrativa de formação da nação, afinal, a porcentagem sugere que
em outro país o reconhecimento da imagem da mulher brasileira está comprometido.
Uma pesquisa abordando os acontecimentos atuais relacionados a Beloved e
Desmundo poderia explorar a maneira como esses romances explicam a cultura ocidental, de
acordo com a definição formulada por Hutcheon sobre o propósito das obras pós-modernas
estimularem o leitor a se perguntar sobre os processos de representações culturais que
constroem identidades e reconhecimentos do mundo. As informações coletadas de fontes
jornalísticas extratextuais podem ter importante significado quando comparadas às análises
dos romances como metaficções historiográficas, expandindo o trabalho feito aqui.
A partir do estudo desenvolvido nesta dissertação, pode-se empreender uma pesquisa
considerando as questões da memória, da história e da formação nacional nos romances da
trilogia escrita por Toni Morrison, da qual Beloved faz parte, junto com Jazz e Paradise.
Analisando as três obras em conjunto, pode-se traçar uma revisão da história norte-americana
desde o momento da abolição da escravidão, passando pelo otimismo dos anos 1920, até os
movimentos civis dos anos 1960 e 1970.
4
Dados acessados em http://www.portalcorreio.com.br/noticias/matLer.asp?newsId=109873, em 03/01/2009.
5
Dados acessados em http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u390792.shtml, em 03/01/2009.
205
A análise de Desmundo por meio de sua proposta de retomada e revisão da história
pode ser ampliada em um estudo sobre a retomada da literatura nacional, também promovida
no romance. A linguagem utilizada na narrativa elaborada por Ana Miranda pode ser
analisada em termos das paródias, no sentido definido por Linda Hutcheon (2000), que realiza
em relação a diversos textos da época retratada, tais como relato de viajantes, o discurso
confessionário, os poemas barrocos.
A questão da literatura comparada como história compartilhada é outra forma de
expansão da pesquisa realizada aqui. A análise de outros romances norte-americanos e
brasileiros dentro dos parâmetros de história compartilhada pode revelar novas relações entre
metaficções historiográficas.
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Autorizo a reprodução xerográfica deste trabalho para fins de pesquisa.
São José do Rio Preto, 24 de fevereiro de 2010
MARCELA DE ARAUJO PINTO
Pinto, Marcela de Araujo.
Rememoração e renembrança: a revisão de perspectivas históricas em
Beloved (1987), de Toni Morrison, e Desmundo (1996), de Ana Miranda /
Marcela de Araujo Pinto. - São José do Rio Preto : [s.n.], 2010.
210 f.; 30 cm.
Orientadora: Giséle Manganelli Fernandes
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto
de Biociências, Letras e Ciências Exatas
1. Literatura comparada - Americana e brasileira - História e crítica. 2.
3. Morrison, Toni, - Beloved - Crítica e interpretação. 3. Miranda, Ana -
Desmundo - Crítica e interpretação. 4. Pós-modernismo (Literatura) 5.
Literatura e história. I. Fernandes, Giséle Manganelli. III. Universidade
Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. IV.
Título.
CDU - 82.091
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE
Campus de São José do Rio Preto - UNESP
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