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Larissa Penelu Bitencourt Pacheco
TRABALHO E COSTUME DE FEIRANTES DE ALIMENTOS:
PEQUENOS COMERCIANTES E REGULAMENTAÇÕES DO
MERCADO EM FEIRA DE SANTANA (1960/1990)
Feira de Santana
2009
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Larissa Penelu Bitencourt Pacheco
TRABALHO E COSTUME DE FEIRANTES DE ALIMENTOS:
PEQUENOS COMERCIANTES E REGULAMENTAÇÕES DO
MERCADO EM FEIRA DE SANTANA (1960/1990)
Dissertação apresentada no curso de Pós-
Graduação em História da Universidade
Estadual de Feira de Santana para obtenção do
título de Mestre em História Orientador: Dr.
Eurelino Teixeira Coelho Neto
Feira de Santana
2009
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TRABALHO E COSTUME DE FEIRANTES DE ALIMENTOS:
PEQUENOS COMERCIANTES E REGULAMENTAÇÕES DO MERCADO EM FEIRA DE
SANTANA (1960/1990).
Larissa Penelu Bitencourt Pacheco
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Professor Doutor Orientador Eurelino Teixeira Coelho Neto
_____________________________________________
Professor Doutor Aldo José Moraes Silva
_____________________________________________
Professora Doutora Ana Maria Carvalho Oliveira
Feira de Santana, ____de ______________de_______.
12
Agradecimentos
Um lugar comum é mencionado no trabalho acadêmico, neste espaço dos agradecimentos.
Diz-se que todo esforço dissertativo nunca se trata de um labor solitário. Aqui, ali, o intelectual
conta com opiniões, com questionamentos, contribuições que o levam a dividir os méritos da sua
escrita. No caso deste texto, informar que corresponde a uma pesquisa cujos merecimentos não se
devem somente a mim, trata-se de uma atitude indispensável.
Primeiro, porque, como trabalho que se debruça sobre a fala de outras pessoas, não
existiria sim a atenção e a simpatia de Sr. Cláudio, Dona Tenícia, Dona Santinha, Jacira, Sr.
Sergipe, Sr. José Carlos, Dona Ester, “Seu” Agostinho, Daniel (Gu da Carne), Sr. Delorme
(Diretor do Centro de Abastecimento), Maria, Ana, Maria Celsa, Sr. Agnelo e muitos outros que
aqui ficaram anônimos, porém não deixarm de auxiliar na pesquisa. Seu Agostinho recebeu-me
em sua residência e gentilmente cedeu-me as Atas da Associação dos Feirantes que ali dispunha.
Com cada um vivenciei as melhores horas deste trabalho. Nada melhor do que ouvi-los
conversar, conhecê-los e, de quebra ainda degustar laranjas castanhas, tangerinas, umbus, caldo
de cana, milho assado...! Terei as feições destas pessoas nítidas em minha memória para sempre.
Em segundo lugar, desde que o tema de pesquisa foi apresentado aos colegas do
Laboratório de História e Memória, em 2005, pude contar com uma experiência singular de
debate coletivo. Procurávamos crescer juntos, criticando vírgulas e métodos, elogiando, dividindo
materiais de pesquisa. Algumas fontes e bibliografias utilizadas só estão aqui por causa do
esforço dos colegas em dividi-los e menciono especialmente Ricardo, Diego e Igor, este último,
meu leitor predileto. Espero não desapontá-lo, juro que tentei! Agradeço ainda a Rafael (não
por isto) pela idéia do mapa. Andrei, pelas polêmicas que surgiram como desafios para a pesquisa
e acompanharam vários trechos deste trabalho. Aos demais pelo esforço que fizeram em ler meus
textos e apresentar contribuições de significado para seu resultado.
Sei que minha memória falhará e esquecerei de muita gente, mas quero mencionar nomes:
Dos arquivos, Hélio e Dona Marieta ajudaram bastante. Agradeço a todos (as) os (as) colegas
servidores técnicos, pela curta aprendizagem sindical destes dois anos, a Patyelle, Mila
Washington e a James, especialmente pela compreensão nos momentos em que ser estudante do
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mestrado e funcionária do DCHF ficou complicado e a todos os outros pela vivência no ambiente
de trabalho.
Algumas pessoas acompanham nosso trabalho com desafios interessantes como o
professor Clóvis Ramaiana, a quem agradeço pelas questões. Também Valter Guimarães pelas
muitas provocações que não pude responder.
Aos meus professores e colegas do mestrado, preciso destacar muito especialmente a
amizade de Aruã Lima e à sua dedicação a um diálogo rico com minhas idéias.
Trabalhando como técnica no Departamento de Ciências Humanas pude contar com as
críticas e colaborações de vários professores como Ericivaldo Neves, Nacelice Freitas, Acácia
Batista, e outros e outras que procuraram ajudar com livros, textos, complementando as minhas
visões sobre o tema, ou nas conversas das manhãs de trabalho na secretaria do DCHF. À
professora Elizete Silva (Clio) agradeço pela disposição em ajudar, criticar e incentivar, sempre
contando com as pessoas em sua volta para projetos de Universidade, de História e de vida.
As ajudas nos detalhes vieram em boa hora. Tive sorte neste sentido. Jamile, sempre
esteve disposta para a ajuda com as normas, assim como Manuela. Julival que ainda me ajudou
em outros momentos mais difíceis, colaborou neste item imensamente no final do percurso.
Onildo Reis com contribuições pontuais e cruciais na qualificação. Priscila (NENNUEFS)
que atentou para a importância de seu bairro, a Rua Nova, na história da feira livre me trouxe
grandes alegrias nestes últimos meses.
Aos amigos e amigas das horas que pareciam mais distantes da academia, nos bares da
vida e que me inspiraram enormemente. Sei que torceram por mim e vibraram com as minhas
vitórias.
Aos familiares, agradeço especialmente pela paciência. Meus avós maternos, agradeço ao
carinho e a atenção e a curiosidade pela carreira que escolhi. Aos meus avós paternos, idem,
destacando Vovô João, feirense interessantíssimo, vindo de Irará, curtidor de samba de roda e
capoeira, bem como das histórias da feirinha. A Cristiano, a quem não considero padrasto, mas
amigo atencioso. A Tia Ivanide e Tio Regi, por povoarem o mundo com sua sabedoria e senso de
humor e ao povo do Jomafa. Aos primos e primas, pela torcida e pelos bons momentos.
Agradeço, em memória, a Rogério Fátima com quem tive o privilégio de desfrutar de uma
curta e profunda amizade, cujos frutos deixam marcas no texto.
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Ao meu orientador, pelos desafios que me faz cotidianamente e pela honestidade e
compromisso intelectuais nas quais busco espelhar minha trajetória acadêmica. Sinto-me
lisonjeada pela amizade que construímos durante estes anos e ainda, no dever de desculpar-me
pelos conselhos que não escutei.
Ao meu pai pela vibração positiva à distancia e a “Mainha”, que me diria que filho não
precisa agradecer. Contudo, não é redundante dizer que seu apoio foi indispensável e que sua
dedicação sempre foi muito além do que qualquer filho deseja de uma mãe. Sinceramente, nem
sei como retribuir.
Obrigada!
15
Para Luciano e Mônica
Sinto-me, com vocês, forte e verdadeira.
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Resumo
Tratamos, no texto a seguir, do comportamento de pequenos feirantes de alimentos em Feira de
Santana perante as transformações da Feira Livre entre os anos de 1960 e 1990. Nestes trinta anos
de história, selecionamos as práticas de venda e uso do centro da cidade no comércio ambulante
de frutas, verduras, hortaliças e produtos que caracterizavam a participação destas pessoas
naquela praça comercial, com o objetivo de perceber como suas relações sociais foram travadas
em conflito ou negociação com as políticas públicas direcionadas ao mercado de abastecimento e
como depois retornaram diante da emergência da mudança. A política que trazia alguns
elementos estranhos a toda esta aprendizagem, especialmente a construção do Centro de
Abastecimento de Feira de Santana, apresentava mutações nas relações do comércio com o centro
da cidade que atingiam os costumes dos feirantes. A intervenção se deu de formas diferentes
entre os sujeitos da feira. Esta política demonstra ainda a possibilidade de entender permanências
e atualizações das tradicionais relações de compra e venda entre atacadistas e varejistas na região,
pois entendemos que algumas práticas foram mantidas sustentando poderes locais e regionais na
distribuição de alimentos. Os significados do exercício da venda na feira, como trabalho, são
tomados como cerne para debate da diversidade de experiências comungadas na feira livre e das
características peculiares daqueles vendedores que vêm do campo para a cidade e nela se
encontram com outros trabalhadores. As fontes são atas da câmara municipal, documentos da
Prefeitura (atos do executivo), publicações oficiais do executivo, cadastro de contribuintes de
impostos, depoimentos de feirantes, fotografias, imprensa, atas da associação dos feirantes,
poemas, textos literários, o que demonstra uma tentativa de encontro com uma história social da
feira livre na conjuntura de construção de códigos de regulamentação que culminaram na sua
retirada oficial do centro da cidade.
Palavras-chave: cidade – trabalhadores – costume – feira livre.
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Sumário
Sumário
INTRODUÇÃO....................................................................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
CAPÍTULO I - DESENCONTROS E EXPECTATIVAS APÓS A CONSTRUÇÃO DO CENTRO DE
ABASTECIMENTO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
1.1 OS FEIRANTES E A IMPRENSA: PRIMEIROS OLHARES SOBRE O CENTRO DE ABASTECIMENTO. ERRO! INDICADOR
NÃO DEFINIDO.
1.2 A FEIRA COMO BODE EXPIATÓRIO E AS ATUALIZAÇÕES DAS TRADIÇÕES DO MERCADO DE ALIMENTOS DE
FEIRA DE SANTANA............................................................................................. ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
1.3 O CENTRO DE ABASTECIMENTO E A RETOMADA DOS NEGÓCIOS DE RUA. ... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
1.4 - EXPECTATIVAS APÓS MUDANÇAS NAS REGRAS DO JOGO: A ATUAÇÃO DO PODER EXECUTIVO. ..................ERRO!
INDICADOR NÃO DEFINIDO.
CAPÍTULO II - A CIDADE E O COSTUME FEIRANTE: 1959 A 1964. ERRO! INDICADOR NÃO
DEFINIDO.
2.1 O INÍCIO DA DÉCADA DE 1960 EM FEIRA DE SANTANA. .............................. ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
2.2 - QUANTO MAIS A CIDADE CRESCE, MAIS A FEIRA APARECE: ORGANIZAÇÃO COMERCIAL E URBANA EM
NEGOCIAÇÃO COM A FEIRA LIVRE........................................................................ ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
2.3 FEIRANTES E COMERCIANTES FEIRENSES FRENTE ÀS NOVAS REGRAS DE MERCADO...... ERRO! INDICADOR NÃO
DEFINIDO.
2.4 ENTRE A ROÇA E AS RUAS: O MERCADO DE ALIMENTOS E O POPULISMO DO GETULISMO NO TRATO DA
CARESTIA. ........................................................................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
2.5 –ASSOCIAÇÕES E REDES DE FEIRANTES ......................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
CAPÍTULO III - DO PAPEL ÀS RUAS: NOVOS PROJETOS NO COTIDIANO DOS FEIRANTES (1964-
1974) E NOVAS RELAÇÕES DE TRABALHO NA FEIRINHA. ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
3.1 A FEIRA E A CONJUNTURA DE MUDANÇAS PÓS-GOLPE MILITAR .................. ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
3.2 A CONSTRUÇÃO DO PLANO DIRETOR/PDLI, DO CÓDIGO DE POSTURAS MUNICIPAL E DO PROJETO CABANA.
............................................................................................................................ ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
3.3 A LEI E O CORPO A CORPO COM OS FEIRANTES ............................................ ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
3.4 “POLÍCIA TEM QUE CORRER ATRÁS É DE LADRÃO...................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
CAPÍTULO IV - SER FEIRANTE EM FEIRA DE SANTANA. ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
4.1- NA MARGEM DO FORMAL”: A DIVERSIDADE DO TRABALHO COMO FEIRANTE DE ALIMENTOS. ..................ERRO!
INDICADOR NÃO DEFINIDO.
4.2 TRAZER A ROÇA PARA A RUA: O FEIRANTE CAMPONÊS................................ ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
4.3 TRAÇOS DE UMA FEIRA NEGRA E POPULAR: PRÁTICAS COTIDIANAS ............ ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
4.4 A ASSOCIAÇÃO DOS FEIRANTES, AS HOMENAGENS A SANTA BÁRBARA E IANSÃ: PRÁTICAS COLETIVAS DE
FEIRANTES NO CENTRO DE ABASTECIMENTO ...................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
CONSIDERAÇÕES FINAIS ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
REFERÊNCIAS ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
18
Introdução
Após um período considerável de pesquisas sobre o tema aqui apresentado, retomo, nas
próximas linhas, as indagações iniciais que me moveram a tal trabalho. Entre as influências de
estudos em voga, durante a graduação, a respeito de uma história contada pelo olhar de grupos
subalternos e as referências do marxismo inglês, apresento as lembranças de inquietações
próprias a respeito do passado de minha cidade.
É bem verdade que este pequeno ponto de encontro de milhares de vidas a feira livre
que por ora venho estudando contada em memórias faladas, escritas, imagéticas, fragmentadas
e recortadas, veio a fazer parte de dúvidas a respeito do passado dos trabalhadores feirenses
após a minha entrada no curso de História. Como feirense, sinto-me estranha em não poder
apresentar aos que agora me lêem uma questão quanto àquelas vidas que se cruzaram no centro
da cidade onde nasci explicitamente construída em minha própria trajetória de vida. A falta de
uma memória positiva sobre a mesma na cidade talvez tenha atingido a falta de uma referência
das vidas que cruzaram a feira livre na minha própria. Lembro-me vagamente de passeios com
meu pai, no mercado desmembrado, onde comprávamos pintos coloridos, ovos de codorna e
queijos. E das “conhecidas” e “conhecidos” do meu avô, que traziam aos domingos o beiju de
farinha para o bairro onde morávamos. Mas não são recordações que podem ser apontadas como
mote de perguntas sobre as pessoas que praticavam aquelas feiras. O “fermento” para as minhas
indagações veio justamente de um trabalho acadêmico, escrito nos anos 1980 pelo reconhecido
professor Vicente Moreira, que se dedicou a sustentar, na academia, e difundir, na sociedade
feirense, as memórias da feira livre, já levada em parte dos moradores da cidade, com a maré dos
empreendimentos urbanos.
Entrando em contato com questões a respeito da produção social de memórias
1
e, ao
mesmo tempo, tendo lido insistentemente os historiadores que procuravam dar conta da vivência
_____________
1 A respeito desta questão, Ciro Flamarion Cardoso mostra que diante de uma supermodernidade conceituada por Marc Auge – na
qual a produção em sequência desencadeada de fatos e acontecimentos promove a perda de memórias coletivas entre os sujeitos
no presente os historiadores voltaram-se insistentemente para o passado em busca de memórias de vivências encadeadas e com
referências coletivas mais explícitas. Fenômeno semelhante pode ter ocorrido com a antropologia.
19
histórica dos grupos subalternos, passei a questionar os marcos de fim da feira livre (1977).
Procurei encontrar referências às trajetórias particulares dos sujeitos que realizavam a feira em
sondagens iniciais. De outro modo, outros feirantes haviam sido entrevistados no trabalho
realizado por Vicente Moreira nas pesquisas de Memória da Feira Livre, quando apresentaram
saudades e ricas descrições daquele mercado. A permanência das pessoas nos locais de venda e o
crescimento constante do número de barraqueiros e vendedeiras pareciam a todo tempo negar o
extermínio daquelas relações sociais, antes visualizadas no passado.
Com estes fios, comecei a tecer uma rie de perguntas. Outra motivação me movia na
academia e demonstrava-se a meu ver, relevante: fazer textos que pudessem contribuir de alguma
forma para questionar a relação da universidade com o delicado e complexo mundo que as
instituições e os intelectuais nomeiam de cultura popular. Como se aproximar cientificamente,
sem projetar juízos desconectados das suas reais formas de vida? Como abalizar conexões
intersubjetivas sem que haja prejuízos de suas histórias próprias? Afinal, parece que, neste
terreno, como bem disse o poeta, muitas vezes “é o povo quem produz o show e assina a
direção” e, neste caso, os artifícios da ciência histórica, assinalam uma infinidade de questões
sobre suas vidas, cabendo ao historiador, através de sua narrativa, escolher personagens, cenários,
para contar um passado de alegrias e sofrimentos, inatingíveis por completo nesta escrita
2
. Todas
estas indagações estão presentes neste texto. Este ponto talvez tenha sido o mais doloroso do
texto.
Expliquemos. É que inicialmente, projetei expectativas de discutir as experiências dos
feirantes, a partir do referencial de E. P. Thompson sobre a experiência da classe trabalhadora
inglesa, e pelo grande número de estudos neste sentido no Brasil. O conceito, ou noção da
experimentação levaria a uma percepção das relações sociais travadas entre os feirantes de
alimentos e o restante da sociedade feirense que embasaram suas reações às intervenções na
feirinha e quem sabe poderíamos perceber a dimensão destas vivências na composição da classe
trabalhadora em Feira. Contudo, esta proposta passou a se apresentar escorregadia à medida que
as fontes me afastavam das vivências dos feirantes e me indicavam muito mais os passos dados
pelo poder público, pelos dirigentes do executivo, por intelectuais organizadores de hegemonia
_____________
2
Também em Ciro Flamariom a respeito do trabalho narrativo do historiador, este defende que a narrativa, antes de se constituir
como mais um texto artificialmente montado e por esta razão, impossibilitado de atingir a verdade, reflete o próprio método de
construção de ciência da História. Assim, implica num tracejado entre a escolha do historiador, teórica e política, e no
prolongamento de fatos selecionados. O realismo epistemológico ocorre inegavelmente numa ciência que não se mostra neutra,
mas como produção humana, meio de interferência no presente.
20
(na imprensa). Optei neste caso em continuar caminhando sobre as pistas metodológicas de
Thompson, desta vez, debruçando-me sobre a noção de costumes. Traços de cultura do trabalho,
memórias, práticas herdadas, aprendidas somaram-se e estiveram em conflito com atuações dos
grupos dominantes da cidade na formação de uma caracterização da feira livre no centro da
cidade, havendo, portanto, um terreno social de aprendizagem de negociações (que procurei
localizar parte nos anos 1960) que deu chão para os conflitos e acordos futuros (após 1977 e a
construção do Centro de Abastecimento).
Feirante, feireiros, vendedeiras, ambulantes, autônomos ou quaisquer das maneiras como
se definiram os colaboradores, surpreendentemente, se tornaram termos difíceis e complexos em
meu vocabulário. Grandes comerciantes, fateiras, magarefes, vendedores de cachaça, donos de
bancas de jogo do bicho, quitandeiros, carregadores, empregados rurais, criadores, fazendeiros,
vendedoras de sarapatel e ensopados ao meio dia, uma infinidade de pessoas que vivem
diferentes relações sociais, enquadravam-se neste mundo da feira livre e são chamados de
feirantes. Percebi que os mesmos não se identificavam de acordo com as referencias externas.
Em meio a tanta diversidade, resolvi escolher direcionar a pesquisa para um debate mais
incisivo sobre a relação do campo e a cidade na configuração do costume feirante. Privilegiar os
vendedores e vendedoras de alimentos foi assim uma escolha delicada, mas necessária, pois é
fato que outras experiências, infelizmente, são deixadas de lado nesta opção. Ainda assim, não
deixei de mostrar parte destas experiências. Pareceu-me mais possível encontrar, nas práticas dos
baganeiros (vendedores de baganas, frutas, hortaliças e verduras a retalho), proximidades mais
concretas deste mercado com o campo, a correlação entre a cidade urbanizada e a vida da roça:
na tênue fronteira entre trabalhadores urbanos e rurais.
Acredito que foi possível possibilitar reflexões acerca dos poderes dos comerciantes que
realizavam os negócios de maior porte. Estes elementos foram comparados com a classe
dominante da cidade calcada nas tradições de venda de gado de corte, estocagem de fumo e,
dentro do recorte estudado, associada ao capital das indústrias instaladas com o Centro Industrial
Subaé. E assim, fui percebendo a indissociável afinidade entre a Feira atual e o seu histórico de
negócios do centro da cidade, ao qual, acrescente-se a presença indelével de muitas relações
sociais baseadas em trocos de favores pessoais, delicadamente sustentada ainda hoje no tracejado
de cada esquina do comércio local. Esta sim, é uma das questões para as quais foi preciso
desprender certo cuidado. Assumimos que foi necessário um esforço de afastamento da
21
pesquisadora com o objeto, para que a percepção cotidiana de apadrinhamentos, protecionismos e
lances pessoais de poder presentes em diversas instâncias desta pequena amostra da nossa
sociedade, Feira de Santana não definisse diretamente as conclusões a respeito do passado da
presente discussão.
A análise da historiografia social do trabalho na atualidade nos leva ainda a reflexões
sobre o Estado e sua relação com os trabalhadores afastada da simples conclusão de que os
interesses dos segundos parecem resolver-se no âmbito da troca de favores com o primeiro. A
dominação de classe e a hegemonia existente no controle das organizações de poder demonstram
que a aproximação dos trabalhadores com formas dominantes de resolução do conflito de classes
precisa ser historicizada em cada passo do sujeito em questão (a classe) em busca de seus direitos
para que não se depreenda de comportamentos subjetivos as escolhas políticas mais globais.
Mesmo o estudo das formas de conflito e negociação entre pequenos vendedores de rua e
o governo local pode ser amadurecido mediante o contato com esta discussão mais ampla. Sem
carteira assinada, os feirantes de Feira de Santana pagavam impostos para adquirir
aposentadorias, mas também, para obtenção de reconhecimento como trabalhadores na cidade. A
condição de legalidade foi a todo tempo negociada na Prefeitura Municipal, e, vale ressaltar,
estava também em disputa, dependendo da visão dos dirigentes à frente da mesma ou da Câmara.
O aprofundamento das leituras na pesquisa não se deu individualmente, mas foi
compartilhado no Laboratório de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais, onde o
trabalho de Igor Gomes Santos sobre o Partido dos Trabalhadores e suas posteriores questões a
respeito da classe trabalhadora na cidade, socializadas no grupo, uniram informações que antes
apareciam dispersas entre nós. Ficou mais fácil perceber que os feirantes, nos anos 1960, dirigiam
a palavra a uma Prefeitura que vivia uma conjuntura específica de pressão por parte dos
trabalhadores para que houvesse o reconhecimento de suas vozes na cidade. Sindicatos,
associações de bairro e associações profissionais diversas, cresciam num contexto de mobilização
no período anterior ao golpe militar, por uma série de direitos dos trabalhadores do campo e da
cidade. Hoje, outras iniciativas do LABELU vêm acrescer o debate. E, é nesta fronteira que o
exame das trajetórias dos feirantes de alimentos se insere.
Este não seria apenas um pano de fundo, mas, decididamente, os feirantes passaram a ser
percebidos dentro de circunstâncias comuns a camponeses e trabalhadores urbanos que tinham
que “sobreviver” na cidade através da venda muitas vezes clandestina de mercadorias. Este
22
fator, clandestinidade, supúnhamos, era mais direcionado para os trabalhadores urbanos do que
para os camponeses que mercavam em Feira, num primeiro momento de crescimento da cidade.
quando da modificação das relações do mercado de alimentos com o mercado de trabalho na
cidade – PROJETO CABANA – esta relação sofre alterações no que diz respeito ao olhar
dedicado a atividade de feira pelo pequeno camponês. Entendemos, portanto, a feira como
conjunto de relações sociais indispensável à compreensão da classe trabalhadora como um todo e
esperamos que de alguma forma o trabalho auxilie outros vindouros.
O tema da cidade e dos estudos sobre uma história social urbana perpassa todo o texto. O
século XX consolida a vida nas cidades como condição normal de vida humana A forma de
vestir-nos, alimentar-nos e regular as nossas horas, diariamente, se sobrepõe sobre todas as
outras, fundamentando uma espécie de naturalização de relações que transparecem aos nossos
olhos como quase que incontornáveis. Muitos intelectuais ainda retomam práticas de
solidariedades e laços que parecem estar contra esta maré como maneira de apontar modos de
vida nos quais a racionalidade e a urbanidade do capitalismo parecia ainda não ter se
consolidado. Ainda que Raymond Williams tenha nos alertado em demasia para que não
desçamos as “escadas rolantes” do tempo em direção ao passado, em busca de vivências
idealizadas sem conflitos sociais e que jamais existiram, relembrar tal historicidade também é
importante para que não deixemos de acreditar que o modo como vivemos não é o único possível.
Os feirantes persistiram e modelaram táticas para conviver na urbe feirense frente a
organização de um centro planejado, movidos por variadas razões que tentaremos demonstrar no
texto. As influências metodológicas para tratar destes modos de reagir são assumidamente
plurais.
principalmente uma tentativa de cruzamento de metodologias da História Urbana,
com a História do Trabalho e a História Oral, nos aproximando assim de uma história social da
feira livre
3
. A História Urbana tem buscado inserir cada vez mais no rol de seus estudos a
participação de grupos subalternizados no desenho da urbe. Além disto, o campo temático da
história das cidades se reforça no Brasil justamente quando uma tendência de aproximação da
história social do trabalho com estudos urbanos. Encontram-se, nos anos 1980 e 1990, ambas as
_____________
3
Tomamos como referência do que seja a História Urbana a definição formulada por David Herling e apresentada por Ronald
Raminelli (1997), da de um campo de estudo voltado para :as funções da cidade e seus vínculos com o fomento da urbanização,
2/ os efeitos da vida urbana sobre os ciclos vitais dos indivíduos, sobre o trabalho e a família, 3) as mudanças espaciais e
ecológicas da cidade, provocadas pelo desenvolvimento econômico e social, o que para Raminelli perpassa ainda uma série de
clivagens que refletem as especificidades de estudos em regiões nas quais a urbanização não se com nexos diretos com o
desenvolvimento da industrialização.
23
trajetórias de pesquisas, acrescidas da procura por parte de arquitetos, urbanistas e planejadores
da cidade de leituras mais próximas ao histórico dos sujeitos ainda invisíveis e que fazem as
grandes metrópoles e suas periferias.
A transformação na paisagem urbana das cidades acompanha a própria história do
capitalismo. Retirando-se o foco da análise do próprio centro de mudanças, dos planejamentos,
projetos e dos equipamentos que servem aos interesses de ajustar os lugares aos passos da
produção, revisitamos, portanto, um importante marco da história urbana de Feira através do
estudo das interrupções em modos de vida de sujeitos que estiveram distantes dos projetos
hegemonizados na sociedade feirense de transformação da sede Municipal.
Os objetivos que se casaram nas ações voltadas para a feira livre foram de diversas ordens
e, talvez não possam ser completamente alcançados. Todavia, visamos traçar pontos de
intersecção entre estes e os conflitos na vida dos feirantes e novamente, uma incompletude
neste ponto. O terreno juvenil do estudo das lutas sociais em Feira de Santana ainda apresentará
conclusões muito mais ricas.
Há um grande número de textos recentemente publicados a partir do referencial da cidade.
Um exemplo são os Trabalhos da Fundação Getúlio Vargas que acompanham o ensejo dos
debates acerca do novo Estatuto das Cidades, de 2001, responsável pela cobrança da montagem
de novos Planos Diretores, para cumprimento de prazos urgentes. Oportunamente, vêm à tona
num momento de discussões na sociedade civil sobre as formas de entendimento da política
urbana, as demandas sociais que cercam o vertiginoso crescimento populacional e seus efeitos
sobre territorializações e carências da cidade. Fica claro que a cidade existe para além de suas
ruas, muros, praças e toda estrutura física que se apresenta num primeiro olhar sobre seu passado,
constituindo-se sim de uma construção carregada de expectativas e de escritas diversificadas.
Cada modo de caminhar na estrutura fria da cidade produziu metáforas, percebidas apenas no
reencontro com os sujeitos que as delinearam.
Num mesmo espaço, podem ser inscritos projetos diferenciados e, inclusive, postos em
disputa, quando ocorrem bruscas mudanças nos seus traçados. Como as projeções sobre a vida no
centro de uma cidade estão para além de seu terreno físico e espacial, retornam nas formas de
memórias, signos de cultura e mesmo no cotidiano dos citadinos. Portanto, ele é organizado e
reorganizado para além de suas paredes e sinaleiras. A disputa pelos terrenos da cidade é movida
24
também por uma série de motivações aparentemente desconexas e díspares, mas que apontam
para maneiras populares de lidar com o seu traçado.
Esta é uma constatação um tanto óbvia para o já adiantado andar das carruagens da
história social e suas reflexões sobre o urbano. No entanto, vale ressaltar, ainda, a atualidade
desta abordagem que parece entrar num momento démodé em nossas academias. Pensar a síntese
e a globalidade de um objeto de pesquisa histórica parece ser tarefa ou complicada demais para
ser realizada (e, portanto, deixada de lado) ou apresenta-se como proposta impossível, diante de
justificativas de indeterminação das relações históricas. Acreditamos justamente que alguma
síntese possa ser alcançada, na medida em que possamos entender o “jeito” local de lidar com
modelos hegemonizados em nossa sociedade de tratar a participação popular na economia de
importantes centros urbanos.
Vale destacar aqui as abordagens sobre feiras livres que dialogam com a pesquisa. É
possível encontrar recentes produções das ciências sociais e da História sobre o ambiente
particular de troca e práticas sociais diversas que vêm a ser as feiras livres no percurso da
circulação de alimentos no Brasil. Podemos detectar em muitos trabalhos da historiografia
brasileira a referência às trocas nestes ambientes como os primeiros elementos de sociabilidade
do povoamento da colônia, ainda em meados do século XVII. As feiras são também apontadas
pelos urbanistas
4
como foco de surgimento de cidades “espontâneas”, marcadas em sua história
pela conexão com mercados populares e povoamentos não planejados por técnicos. As dimensões
das relações sociais nas feiras e mercados atraem assim sociólogos, antropólogos e mesmo
psicólogos, estes interessados em desvendar os mistérios individuais de conexão em redes que se
mantém tradicionalmente em todo o país
5
.
O espaço público, retratado nos novos moldes das ruas, sofreu, durante o século XX,
seleções de sujeitos e práticas a serem privilegiados. Fato ocorrido também no século XIX, tempo
em que a presença de estradas de ferro, monumentos e prédios públicos recompuseram o cenário
na maioria das cidades brasileiras
6
. Mas é na virada do século XIX para o XX que ficam
perceptíveis uma série de escolhas feitas nas construções urbanas e ações do poder público para
_____________
4
BARROS, José D’Assunção. Cidade e História. Petrópolis: Vozes, 2006.
5
FERRETI, Sérgio (org) reeducando o olhar: estudos sobre as feiras e mercados. São Luiz: UFMA, 2000. MOTT, Luiz Roberto
de Barros. A feira da ladra no século XVI e na atualidade. Lisboa: Portugal: Nova Gravura, 1973. FRAGA, Walter. Encruzilhadas
da Liberdade: história de escravos e libertos da Bahia (1870/1910). São Paulo: Editora Unicamp, 2006. PAIM, Márcia Regina da
Silva. Do sete de São Joaquim. O cotidiano de mulheres de saia e homens em feiras soteropolitanas (1964-1973). Dissertação de
Mestrado – UFBA, 2005.
6
LANNA, Ana Lúcia Duarte. Uma cidade na transição: Santos 1870-1913. São Paulo: HUCITEC, 1996.
25
selecionar a presença dos sujeitos nas cidades. Para Ana Lanna Duarte, a rua deixava aos poucos
de ser o palco dos acontecimentos sociais da cidade, dando lugar a alinhamentos de prédios,
construções privadas, tornando-se mais um local de trânsito.
Nesta passagem ela deverá simbolizar e guardar no seu contorno os elementos desta
nova sociedade. Simbolizar enquanto linearidade vista como vitória da racionalidade. E
ao seu redor vão aparecendo os elementos indicativos da nova rua formando a nova
cidade: a calçada que separa o trânsito dos pedestres e dos veículos; as lojas com vitrines
simbolizando o mundo fetichizado da mercadoria e do anonimato; os espaços
semipúblicos de lazer como consumo do tempo livre.
7
Se as festas, batuques, congados, entrudos e os modos populares de comemorar e estar na
rua foram civilizados, os trabalhadores resistiram, negociaram e relutaram mediante as tentativas
de exclusão de suas práticas na cidade. Estudos como os de Sidney Chalhoub fomentaram
percepções de que os modos de vida das classes populares passaram a ser sistematicamente
policiados em prol de modelos excludentes de urbanização e, apesar de todo esforço de
planejamento urbano da parte da Prefeitura de Pereira Passos, os modos de vida dos grupos
subalternos reconstituíam-se nos novos cenários de trabalho, nos novos espaços públicos. As
vivências sociais que lembravam, nos centros urbanos, o passado pré-industrial, ou que já
espelhavam a exclusão social do avanço da produção em cidades mais centrais (como as
epidemias e condições precárias de moradia), foram insistentemente afastadas dos locais centrais
da urbe brasileira, e, contraditoriamente, estas situações cresciam e crescem desde então. Michel
de Certeau expõe em Do conceito de cidade às práticas urbanas”, a insistência por via dos
planejadores de uma urbanização orientada para a racionalização em moldar as práticas dos
sujeitos que fazem a cidade acontecer. Sendo utópico, este planejamento é, para ele, inatingível.
Mesmo porque, estes planejamentos estabelecem um não tempo
para substituir as resistências inapreensíveis e teimosas das tradições: estratégias
cientificas unívocas, possibilitadas pela redução niveladora de todos os dados, devem
substituir as táticas dos usuários que astuciosamente jogam com as ocasiões e que, por
esses acontecimentos-armadilhas, lapsos da visibilidade, reintroduzem por toda a parte
as opacidades da história
8
No caso das feiras livres, tal assertiva nos leva a reflexão de que, ocorrendo em espaços
públicos na maioria das cidades brasileiras, estas passaram a ser sistematicamente reorientadas no
interior das cidades para que liberassem as ruas para o trânsito e poupassem as urbes
_____________
7
Idem, p.106.
8
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 7ª Ed, 2002. p.173
26
modernizadas da visibilidade dos modos populares de uso dos mercados. Ainda, inúmeros
objetivos podem ser encontrados nas ações dos poderes municipais sobre as feiras, sendo que,
muitas vezes, a higienização e o bem estar da população quase sempre foram utilizadas como
bandeira para escamotear intenções mais complexas na organização das vendas populares.
Existiram moldes de feiras livres diferenciados em todo o país. No caso do Rio de Janeiro,
no início do século, elas foram instituídas como forma permitida de negócio mais barato, em
detrimento da circulação de ambulantes que passaram a ser desterritorializados de suas práticas
que remontavam o comércio africano e representavam ameaças para normas de higiene e
limpeza
9
.
Estudos diferenciaram feiras de outros mercados, cobertos, na literatura que trata do
assunto do abastecimento. A diferença entre ser um local aberto ou fechado, murado, cercado,
onde as atividades acontecem em galpões elaborados pelo poder público e não pela arquitetura
própria erguida pelos feirantes, foi tomada como chave para entender estas disparidades. Nas
palavras de Milton Santos, os espaços inorgânicos é que são abertos e, os espaços regulares são
fechados, racionalizados e racionalizadores
10
.
Podemos dizer que, em geral, uma retomada de práticas das feiras livres por
antropólogos e historiadores como forma de se aproximar de práticas populares nas urbes
brasileiras. Vilma Nascimento
11
perpassou diversos temas de pesquisa sobre a formação da
população de Salvador e as práticas urbanas cerceadas ou permitidas pelos poderes ali
estabelecidos, por intermédio do estudo das artes dos comerciantes de ervas ambulantes de
Salvador. A riqueza de vivências na cidade que o comércio deste tipo agregava facilitou, por
exemplo, que a autora revelasse tensões entre o popular e o erudito a partir dos olhares da
medicina a respeito do caráter da cura promovida pelas mercadorias em questão. Atreladas à
religiosidade do candomblé, estas pessoas formulavam identidades na cidade de Salvador e seus
pontos de venda conectavam grupos sociais dispersos no território da capital baiana. Na sua
concepção de mercadorias que são vendidas por populares e são compradas por grupos também
_____________
9
JESUS, G. M. Territórios da Modernidade: a criação das feiras-livres na cidade do rio de Janeiro. Disponível no site do X
Encontro Nacional de Geógrafos, AGB, Recife (PE), julho de 1996.
10
SANTOS, Milton. A natureza do Espaço: técnica e tempo: razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996. Sobre esta
diferenciação de racionalidade e de emoção no uso do espaço, devemos também relativizar a possibilidade de um essencialismo
na afirmação de que o raciona exclui necessariamente.
11
NASCIMENTO, Vilma Maria de. Espaço e Memória: artes de curar e comercio de ervas em Salvador 1950-2000. Tese
(Progressão de carreira) Feira de Santana, 2002.
27
menos favorecidos, vemos uma amostragem de possibilidades de infinidades de questões a serem
pesquisadas nos mercados urbanos.
As feiras-livres na Bahia podem ser vistas no geral como ambiente de trabalho
fundamental desde os séculos XVIII e XIX, no fornecimento de produtos alimentares para a
população local e sendo composta na maioria das vezes por uma população de cor, liberta ou
escrava.
Algumas feiras de destaque na Bahia já foram estudadas. Para citar exemplos. a feira de
Santo Antônio de Jesus foi apresentada na academia pelo historiador Hamilton Santos
12
que,
enfocando o cotidiano destes trabalhadores, demonstrou que os mesmos também foram agentes
construtores de um modo de viver no centro desta cidade do recôncavo baiano.
Santos privilegia a dimensão da autonomia, encontrada por alguns comerciantes na feira.
Como ex-meeiros, posseiros, rendeiros, diaristas, descobririam no mercado uma alternativa,
mediante descontentamentos com a realidade no campo. Além disto, o mercado possibilitou a
muitas destas pessoas o estabelecimento de um vínculo com a cidade que perduraria por
gerações.
Em seu trabalho é nítido o caráter difusor e aglutinador da feira de Feira de Santana em
meados dos anos 1940, pois, os feirantes estudados em sua narrativa transitavam em Feira, onde
buscavam mercadorias para vender em diversas “praças” na Bahia. Assim também, o
deslocamento para São Joaquim é citado constantemente como forma de superar momentos de
pouca movimentação na freguesia de Santo Antônio de Jesus.
Júlia Rosa
13
, ao estudar a feira da cidade de Camaçari, atribuiu aos feirantes as relações de
fomento dos movimentos que consolidaram a formação da parte central da localidade. Portanto,
se as feiras são indissolúveis da gênese de algumas cidades nordestinas, os sujeitos que as
construíram, os feirantes, vêm sendo destacados pela história como protagonistas de uma série
de relações que sustentam as suas arquiteturas, e a sua história.
Por outro lado, na íntegra da sua própria definição, a prática dos mercados a céu aberto
remonta configurações medievais de estabelecimentos de negócios entre regiões distantes entre
si, como fronteiras sociais fundamentais na organização da economia agrária. As mercadorias que
transitavam entre localidades longínquas e a produção mais próxima do campo dividiam nas
_____________
12
SANTOS, Hamilton Rodrigues. Vidas nas Fronteiras: Práticas Sociais e Experiências de Feirantes no recôncavo Sul da
Bahia. Santo Antonio de Jesus (1948-1971). Uneb. Dissertação de Mestrado em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional.
UNEB: 2007.
13
BRITTO, Julia Rosa Castro. Feirantes: do Centro Comercial à Nova Feira de Camaçari. Dissertação de Mestrado.
28
feiras as atenções de populações inteiras em “dias de feira”, em busca de suprimento de
necessidades não atendidas no cotidiano do interior das propriedades agrícolas. Os sistemas de
trocas facilitavam o abastecimento de produtos não encontrados em suas localidades. Esta
clássica versão permite definir a correlação crucial entre o comércio das feiras e a existência das
cidades como centro de economias predominantemente rurais que, aos poucos vem a se desfazer
justamente no crescimento destes focos atrativos dos negócios, constituindo-se em formas
específicas da modernidade, de vida pública e de política nas sociedades ocidentais.
Portanto, torna-se uma redundância incontornável a afirmação do caráter plural de uma
feira livre, tanto no que diz respeito à quantidade de trocas dadas na circulação de uma
diversidade de mercadorias, quanto, num sentido mais complexo, no que toca aos encontros
humanos neste tipo de ambiente. Estes se apresentam na realização de cada feira sob uma relativa
efemeridade, contudo, quando observados ao longo de certo período de tempo, em alguns casos,
permite leituras sobre redes de relações sociais produzidas nas feiras importantes na consolidação
de identidades para os habitantes das cidades e grupos sociais específicos nelas estabelecidos.
Podemos nos questionar se estas definições simbólicas e materiais podem ser entendidas
num estudo de qualquer feira livre ou se especificidades locais nos arranjos de cada mercado,
nas formas de negociação, nos laços culturais.
Milton Santos
14
prefere afirmar que “cada lugar é, a sua maneira, o mundo”, seguindo a
metáfora proposta por Pascal de que o universo teria o seu núcleo em qualquer parte.
Acreditamos que, mesmo o pequeno universo da feira de Feira de Santana tem dimensões físicas
e simbólicas imensuráveis num texto dissertativo. Aspectos de trocas subjetivas e grupais entre
mundos diferenciados se conectaram durante anos e deixaram rastros no desenho da cidade, na
memória dos feirenses e na forma de continuidade e dispersão no curso da história de milhares de
feirantes que ali passaram.
Solidariedades foram montadas entre trabalhadores informais em outros canais de
expressão, por conta da exclusão do beneficiamento como trabalhador “por carteira assinada”.
Sabemos que, no caso do mercado informal no Brasil, ainda especialmente a partir dos anos
1930, abrigou o montante de trabalhadores negros que sofreram discriminações no ambiente
industrializado e outros postos de trabalho formalizado, por diversas razões historicamente
sustentadas na sociedade brasileira.
_____________
14
SANTOS, Milton. Op. CIt.
29
Os segmentos “marginais” aos setores hegemônicos dispõem de uma “cidadania
parcial”, isto é, os trabalhadores em atividades como engraxate, vendedores de rua,
pedreiros, biscateiros etc, tinham que construir a cada dia seu direito à sobrevivência,
sem contar com o Estado para lhes garantir os direitos à educação, saúde moradia e
segurança, disponibilizados a todo cidadão.
27
Se o mundo do trabalho em Feira de Santana pode se constituir nas estratégias
encontradas pela população no trânsito entre as demandas do campo para com a cidade (o
consumo) e vice versa, também os poderes das classes dominantes que aqui se instalaram, como
já mencionamos, tiveram de maneira significativa aportados nesta forma urbana de circulação.
Dito isto, apresentamos o percurso dos capítulos. Iniciaremos o texto com um capítulo
que trata da construção do Centro de Abastecimento em 1977. Os desdobramentos desta
mudança, as resistências dos feirantes, conflitos e negociações pelo uso do espaço de calçadas,
ruas e praças, são elementos que sugerem recuos nos capítulos seguintes. A saudade será tema
abordado por meio do uso da fala dos feirantes em diálogo com outras fontes sobre 1977 e sua
posteridade. No projeto de pesquisa, prevíamos ainda a utilização dos cordéis sobre a feira livre,
no entanto, este êxito não foi alcançado, devido à proporção que outras questões tomaram dentro
do texto.
No segundo capítulo, buscaremos aproximação com os entrelaçamentos entre a vida dos
feirantes e o comércio, quando o circuito diário da urbe era regido pelo movimento de
vendedores ambulantes, barracas, lonas e demais apetrechos de seu trabalho. Mesmo a
expectativa de realização semanal movimentava aquelas ruas, dias antes da segunda-feira. Neste
recorte, de 1959 a 1964, utilizaremos o acervo do jornal Gazeta do Povo, Projetos de Lei da
Câmara Municipal, depoimentos de feirantes e outras fontes auxiliares no processo de narrativa
dos costumes feirenses da feira. Buscaremos diferenciar o tratamento da presença dos negócios
de rua neste período por parte de diferentes governos e analisaremos depois a conjuntura pós-
golpe, quando foi mais incisiva a mudança da rotina do centro da cidade.
No terceiro, trataremos justamente das medidas tomadas imediatamente após o golpe de
1964, pela Prefeitura Municipal, analisando alguns objetivos federais para alteração no comércio
de alimentos e de investimento industrial local. O destaque se dado para as fontes que
permitirão certa aproximação com as classes dirigentes de tal processo, em locução com pesquisa
desenvolvida a respeito da tradição comercial que passa a ser atualizada neste contexto, na
minha monografia. Também perceberemos grupos comerciais diferenciados se inserindo na
“Praça do Comércio” e modificações na estrutura política de tratamento das questões populares
30
em Feira. As medidas lançadas em propagandas e discutidas no legislativo, até meados de
1971/1972, não foram executadas em sua totalidade. Disputas políticas importantes somadas ao
convívio tradicional dos comerciantes com a feira geravam uma lentidão no processo que atinge
seu cume em seguida, de 1972 a 1976, quando, finalmente, a cidade conviveu com o
noticiamento das transformações e as ações passaram a ser implementadas.
No quarto e último capítulo, tentaremos apresentar uma leitura do que vem a ser a
identidade do feirante com a cidade e com aqueles locais públicos. Intencionamos apresentar a
vivencia particular dos vendedores de alimentos em locução com a sociologia e a antropologia.
As “alternativas de sobrevivência” de muitos trabalhadores urbanos moradores da zona urbana se
intercalaram com as de sujeitos oriundos do campo nas suas idas e vindas ao mercado aberto
daquelas ruas. Duas experimentações de prática coletiva no Centro de Abastecimento serão
abordadas: A formação da Associação dos Feirantes, composta em sua maioria de comerciantes
de atacado e os festejos à Santa Bárbara e Iansã, padroeira e protetora dos mercadores.
31
CAPÍTULO I
DESENCONTROS E EXPECTATIVAS APÓS A CONSTRUÇÃO DO CENTRO DE
ABASTECIMENTO.
A grande feira de Feira
Tá com seus dias contados
Vai sair do meio da rua
Vai prum lugar centrado
E o abastecimento
Deverá ser montado
15
Novamente as calçadas das ruas do centro de Feira de Santana estão sendo tomadas
pelos famosos comerciantes ambulantes notadamente na Praça João Pedreira e Marechal
Deodoro onde alguns deles comerciam até com tomate, chuchu, maxixe, cebola e outros
produtos, dando a impressão de que aos poucos a feira livre vai voltando ao centro desta
cidade, tirando completamente a finalidade do Centro de Abastecimento que tanto
dinheiro custou aos cofres públicos
16
As duas referências, acima citadas, estão situadas no intervalo entre a construção, a
inauguração e a tentativa de formalização de um equipamento urbano
17
que concentrasse as
atividades de venda de alimentos, antes feita nas ruas da cidade de Feira de Santana. Na primeira
notamos a expectativa da mudança vindoura e na segunda, uma denúncia da imprensa sobre a
preocupação que o abandono do Centro de Abastecimento por parte de centenas de feirantes,
após um ano de sua inauguração, gerou.
Muitos vendedores e vendedoras voltaram às ruas, recusando abdicar da feira nas vias
principais do centro
18
. Tal retorno se deveu a diversos fatores. Alguns grupos de feirantes
recusaram continuar a usar o novo espaço. Somada a este fator, a sobrevivência de pessoas nas
grandes cidades por meio de trabalhos urbanos não cadastrados tendeu a crescer, sem que
houvesse espaços suficientes. Não demorou muito tempo, após construído, o Centro não foi tão
bem aceito, aumentando as preocupações dos administradores com a ocupação das ruas por
pequenas barracas, carros de mão, caixotes e lonas através dos quais estas pessoas ganhavam a
vida.
_____________
15
MAXADO, Franklin. A feira de Feira vai sair do meio da rua, cordel, 1976.
16
A feira livre está de volta para o centro. Feira Hoje, 16 de Abril de 1978
17
MOREIRA, Vicente. Projeto Memória da Feira Livre de Feira de Santana, O fogo febril que prometeu roubou das chaminés
fabris: crônica da morte anunciada, da morte decretada e das reencarnações diárias de uma feira livre. Feira de Santana, UEFS,
2001.
32
O termo equipamento urbano é usado por estudiosos da história urbana e da geografia do
espaço público e através dele podemos criticar a falta de aproximação entre as projeções técnicas
e as reais necessidades da maioria da população.Os portadores de tais idéias seriam identificados
no interior das classes dominantes ou das elites dirigentes, com destaque especial para o que se
chamaria os "profissionais da cidade”: arquitetos, urbanistas, engenheiros, médicos sanitaristas
e os demais técnico-burocratas encarregados de implementar os equipamentos necessários à
intervenção urbana
19
.
A construção do Centro de Abastecimento em 1977 era parte de um conjunto de medidas
para organizar o comércio de alimentos, tendo como destaque o intento de consolidar aquele
mercado como o principal centro de compra e venda atacadista de produtos alimentícios de Feira
de Santana e da região. Para tanto, foi preciso que a administração montada no Centro tivesse de
lidar com a persistência de hábitos de feira e uma série de costumes conflitantes com os espaços
internos do local. O alcance do objetivo acima citado não se completava com a construção de
galpões e boxes padronizados. Era preciso reformular uma serie de hábitos de compra e venda
consolidados em Feira, e negociar com o descontentamento de muitos feirantes.
O superintendente de abastecimento declarou a imprensa da época: Quando aqui
chegamos, a grita era geral por parte de todos e de modo que sentimos a necessidade de um
remanejamento, colocando cada feirante em seu devido lugar.
20
.
O Centro de Abastecimento não está funcionando como fora projetado para o
ordenamento da feira-livre e a facilidade de locomoção dos feirantes e dos que o
utilizam para suas compras. As vias internas estão praticamente intransitáveis,
principalmente quando chove, cheias de lama e buraco, e muitas delas sendo invadidas
pelos vendedores ambulantes
21
.
Esta notícia era um dos destaques da nova coluna do jornal, inaugurada em 1978,
intitulada “Abastecimento”. Mudança nos dias de feira, localização, locomoção de consumidores,
enfim: havia descontentamento. Após a ida para o Centro, os vendedores se dispersaram, o que
interferiu na relação com a clientela, nos espaços de venda, na antiga vizinhança. Antes, a
concentração da feira num dia da semana ocorria, entre outros motivos, porque a constância de
um dia de pico no mercado era como a repetição de uma data festiva da cidade, momento de
encontro e expectativas: a segunda-feira. Muitos trabalhadores e trabalhadoras, durante o restante
_____________
19
PESAVENTO, Sandra Jetahy. Muito além do espaço. Por uma História Cultural do Urbano. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol.8, n.16, 1995, página 286.
20
“Superintendente e povo tem opiniões divergentes”. Feira Hoje, 01/1978.
21
“Centro de Abastecimento em desorganização interna”. Feira Hoje, 23/02/1978.
33
da semana, lavravam a terra, colhiam e outros grupos realizavam na cidade outras atividades para
ganhar a vida, além do que, o comércio ali existente acontecia em outras feiras, para onde muitos
se deslocavam, como as feiras de bairro, parte indispensável do circuito de trabalho de produtores
rurais e revendedores de alimentos em Feira. A transferência da feira invade assim esta
organização cotidiana.
Por outro lado, os feirantes assinalavam melhorias na estrutura para as vendas, mas
queixavam-se quanto a permanência de problemas sanitários e de organização no CAF. Se o
Centro de Abastecimento não condizia com as expectativas da antiga feira e era apresentado
como local racionalizado, a higiene, a organização e o funcionamento adequado nunca aconteceu
por completo. De início, faltavam ainda pontos de ônibus, o que impedia os vendedores disputar
concorrência com comerciantes que se posicionavam mais ao centro da cidade. Em tempo, o
projeto direcionou o comércio da feira livre para um local afastado em 1977. Hoje, uma das
principais avenidas feirenses, a Getúlio Vargas, se estende até as mediações do mercado. Porém
na década de 1970, acostumados com a centralidade da antiga feira, feirantes e consumidores
reclamaram da falta de bancos, farmácias e outros atrativos no lugar.
Em contrapartida, a Prefeitura procurou plantar árvores, construir novas bancadas, calçar
as vias internas e chegou a montar uma capela para Santa Bárbara, a padroeira dos feirantes, um
ano após a mudança da feira. A tentativa explicita a necessidade de um elemento simbólico no
local, para atração da feira. Assim, o Centro de Abastecimento ia sendo modificado aos poucos,
pela ação do executivo como pelas práticas de feirantes e usuários. Expectativas iam nascendo e
se frustrando e novas relações comerciais se agregavam ao mercado de alimentos. Também nas
ruas, o comércio “informal” destes produtos ia se expandindo, assim como a comercialização de
outros produtos sem pagamento de impostos e mesmo de mercadorias contrabandeadas, que
tomavam ainda mais as esquinas e praças feirenses.
E a feirinha de alimentos, pouco a pouco, parecia retornar aos pontos mais conhecidos ou
se estendendo para outros becos e praças. Por que motivos estas pessoas realizavam ali estas
atividades? Seria somente por necessidade comercial? Havia fatores que os impulsionavam a
voltar para as ruas... quais?
Há um caso típico de disparidade entre projetos urbanísticos unidos a uma organização do
mercado que se chocam diretamente com os interesses da população que usa a cidade com
outras necessidades e outras expectativas. Ainda que a população feirense em geral tenha sentido
34
aquela mudança, os trabalhadores da feira tiveram o seu modo próprio de percebê-la e, portanto,
de reagir. Sujeitos portadores da tradição viva da feirinha, eles eram a sua alma, os seus
criadores, transmissores das práticas erguidas cotidianamente em laços de proximidade – de
amizade, de coleguismo, feitos no trabalho com seus clientes, com o povo como em relações
conflituosas, com donos de loja, com guardas, fiscais e “políticos” feirenses. Este lugar de
tradição, que era então invadido pela racionalidade do Centro de Abastecimento, resgatava-se
entre feirantes e surpreendia a expectativa dos planejadores da cidade. Buscando ser sujeitos
neste novo jogo, no qual não poderiam os feirantes mais ser os protagonistas do comércio nas
segundas-feiras, expunham o que tinham em mãos como armas: seus costumes, sua relação com a
clientela, sua própria aprendizagem com os lojistas, demarcando assim, novos lugares na rua, no
Centro e em outras feirinhas.
Através dos artifícios da História Urbana é possível encontrar nas dimensões citadinas a
ampliação da análise sobre os trabalhadores como atores/ sujeitos. Neste sentido, a aproximação
por parte da história do trabalho de categorias como o espaço para a compreensão da experiência
do trabalhador brasileiro abriu caminhos interessantes de pesquisa, ainda que sem abdicar da
noção de conflito de classes
22
. Ao acompanhar a trajetória de vida de alguns feirantes
selecionados como colaboradores da pesquisa, entendemos que o espaço público foi fundamental
para sua inserção na cidade como trabalhadores, mediante o tipo de trabalho que realizavam. Para
ser feirantes, necessitavam disputar o centro da cidade. As experiências dos trabalhadores da feira
livre se inserem nas transformações do capitalismo e do avanço de relações sociais que criaram
dificuldades para a sobrevivência de grupos de trabalhadores ligados ao pequeno campesinato, ou
trabalhadores que se viam excluídos mediante as grandes reformas urbanas do século XX.
A experiência da feira livre era permeada de conflitos de ordens diversas entre os grupos
de comerciantes da cidade e a sua formação, heterogênea. Nas entrelinhas das amizades e das
negociações por local de vendas, havia, sobretudo, rastros de uma desigualdade social imensa,
construída em diversas situações de exploração direta e indireta do trabalho. Como na feira de
_____________
22
Cláudio H M. Batalha afirmou serem os anos 1980 momentos de “ampliação, fragmentação e crise” do campo de pesquisas da
história do trabalho. Por um lado havia os direcionamentos para os estudos referentes aos sindicatos e as lutas dos operários
devido à “volta à cena” do operariado em 1978 com a greve do ABC paulista e, por outro, houve uma ampliação de temas para os
quais puderam ser direcionados os problemas da história de trabalhadores, como o cotidiano, a história urbana e a cidadania,
apresentadas sob variados matizes teóricos. BATALHA, Cláudio. A Historiografia da Classe Operária no Brasil: trajetórias e
tendências. In FREITAS, Marcos Cezar de. (org) Historiografia Brasileira em Perspectiva 5 ed São Paulo: Contexto, 2003.
Aqui, buscamos o encontro entre o viés explicativo da importância do espaço como de outras dimensões da experiência para o
olhar sobre estes trabalhadores.
35
Caruaru, em Feira de Santana havia de tudo que no mundo
23
. Sendo este mundo a cruzada
entre a orbe sertaneja e suas tradições, em si permeada de conflitos, e as novidades resultantes
do trabalho urbano em suas diversas faces. Aproximadamente, cinco mil feirantes ocupavam uma área
de oito mil metros quadrados (...). vendiam produtos hortifrutigranjeiros, os mais diversos, dos mais
diversos municípios baianos e também de outros estados
24
.
Às vésperas da transferência da feira para o Centro de Abastecimento, esta caracterização
do local e de seus freqüentadores era feita pela imprensa:
Na feira são comercializados produtos hortifrutigranjeiros, oriundos dos diversos
municípios baianos, derivados de couro e barro, produtos avícolas, confecções, peças de
eletrodomésticos, além dos produtos mais procurados pelos que aqui chegam, a carne de
sertão e caças mais raras da região, paca, teiú, codorna, nambu, tatu e cotia
25
.
Além dos alimentos, dava-se, naquele ambiente, o escoamento da produção de artesanatos
e de produtos de fabricação feirense e de seus arredores. Baldes de lixos feitos de pneu, ervas
para todas as enfermidades, móveis, doces, comidas típicas, farinhas, alimentos, roupas e
calçados de todo tipo, vestimentas de couro, utensílios domésticos, sabões, produtos de limpeza,
adereços para os cultos do candomblé... As trocas ocorriam em grande e em pequeno porte e as
mercadorias, espalhavam-se em milhares de barracas e lonas, caminhões, carroças, burros e
cavalos que pertenciam a ou empregavam um número significativo de trabalhadores.
A construção do Centro de Abastecimento surge como cerne para conclusão de objetivos
que muito vinham sendo construídos como: organização do comércio de grande porte,
“limpeza” do centro da cidade e abertura das vias centrais para o trânsito de veículos,
padronização comercial, incluindo-se relações de trabalho, sistema de créditos, pagamento de
impostos e controle do comércio informal, políticas de controle de preços dos produtos de
primeira necessidade. Todos estes se mesclam no baluarte transferência da feira, indo de encontro
a um costume enraizado fortemente em Feira de Santana, que é o de comércio nas ruas.
O que realmente muda com o Centro de Abastecimento é um ponto de discussão que
envolve a necessidade de pensar os sujeitos do processo ao qual nos reportamos. Os depoimentos
dos feirantes são chave para indicar a intensidade desta mudança vivenciada desigualmente.
_____________
23
Luiz Gonzaga. Feira de Caruaru.
24
MOREIRA, Vicente Deocleciano. O fogo febril que prometeu roubou das chaminés fabris: crônica da morte anunciada, da
morte decretada e das reencarnações diárias de uma feira livre. Feira de Santana, UEFS, 2001, pág. 3.
25
A Tarde, 31/12/1976. apud MOREIRA, Vicente. Projeto Memória da Feira Livre de Feira de Santana, n.17, 1997, p. 306.
36
O ano de 1977 foi propagado como marco divisor de águas entre duas cidades. Este marco
foi estudado durante quase vinte anos pelo professor Vicente Moreira
26
. Segundo ele, a feira
estaria nos anos 1980 perdida em meio à propaganda de um progresso jamais alcançado e a um
quanto à vida rural e tradicional de Feira de Santana, superada portanto com a retirada da feira do
Centro. Para ele, em 1976, houve a antecipação da morte da feira com a decretação e a
propagação dos objetivos de construção de um Centro de Abastecimento para abrigá-la,
conclusão que tira a partir da fala do Prefeito José falcão da Silva
27
.
Em seguida, ainda segundo Moreira, a morte da feira se deu quando o então prefeito
28
assinou em finais do ano de 1976 o decreto que instituía a construção do Centro de
Abastecimento e retirava dos feirantes o direito de permanecer no centro da cidade: Dez de
janeiro de 1977, segunda-feira, último dia da velha feira livre. O Decreto de Extinção, assinado
pelo prefeito José Falcão (...) funcionara como uma sentença extrema, inapelável, uma pena
máxima
29
. Na sua visão, o ocorrido foi desastroso e, ao interpretar um dos poemas do cordelista
feirense Franklin Machado, de 1976, escreveu:
A rua e o céu são a alma de uma feira. Aprisioná-la entre quatro paredes de tijolo e sob
um teto de amianto ou seja, o Centro de Abastecimento é o mesmo que sepultá-la
numa carneira. (...) A feira não foi para lugar nenhum, porque ela morreu ali mesmo
onde ela nasceu, onde sempre viveu
30
.
Esta opinião é compartilhada por Helder Alencar, que comparou a mudança da feira de
Feira com a modernização de outras feiras no país:
_____________
26
Referência ao trabalho de progressão de carreira, mas ainda uma lista de artigos publicados na revista Sitientibus, da
Universidade Estadual de Feira de Santana (lista no final do capítulo), na qual o professor constantemente comunicava cada passo
de sua pesquisa feita com a colaboração de uma equipe de bolsistas que entrevistaram feirantes, fregueses e intelectuais feirenses,
além de recolher boa parte do material publicado sobre o “fim da feira” na imprensa da Bahia.
27
Para ele, as posturas dos jornais locais possuem leituras mais próximas sobre o fim da feira. Em contraposição, é nos jornais da
capital que ele consegue recolher os depoimentos que se referem contrariamente ao fim da feira, a uma possível “sobrevivência da
velha feira” frente ao progresso: “A cidade não comporta mais a feira que lhe deu origem: A feira, a razão da existência da
cidade, deve desaparecer. A mãe feira, com sua tradição popular, sua poesia desarrumada, expulsa pela filha cidade pelo bem do
progresso, do desenvolvimento e porque ela não precisa mais da sua atração” Tribuna da Bahia, Salvador Ba, 27/10/1976 (apud
MOREIRA, op. Cit. 1997, p.309).
28
José Falcão era prefeito do MDB num governo antecedido pela administração Arenista. (Para tratar em breves linhas de toda
sucessão dos prefeitos feirenses aqui trabalhados, temos a seguinte cronologia: 1955-1959: João Marinho Falcão; 1959 1962,
1962-1963: JoSisnando e Arnold Silva, 1963 1964: Francisco Pinto, 1964-1967: Joselito Amorim, 1967-1971: João Durval
Carneiro, 1971-1973: Newton Falcão, 1973-1977: José Falcão, 1977-1983: Colbert Martins, 1983-1988: José Raimundo) No
governo Falcão, a preocupação mais destacada era angariar os fundos necessários para o término de obras e projetos
sistematizados antes do governo de Newton Falcão (Arena), pois este teve um embate político de cunho pessoal com o grupo
político de Antônio Carlos Magalhães, que, segundo as memórias da família, impediu que Newton promovesse realizações e
obras na cidade.
29
MOREIRA. Op. cit, 2001, p. 44.
30
Idem ib. p. 39.
37
Aqui, porém o fato é irreversível. A feira livre já não existe, pertence a um passado não
muito distante e será sempre lembrada por um pedaço agora extirpado. A feira livre
viverá, tão somente nas recordações dos feirantes que não tem medo, receio ou vergonha
de defenderem a existência da feira, pois sabem que ela poderia, perfeitamente, viver de
mãos dadas com o desenvolvimento
31
.
Segundo o Feira Hoje, em uma reportagem especial sobre a mudança da feira, esta teria
sido bode expiatório de muita coisa que não era culpada. Não só ela havia sido alterada.
Ressalte-se outras mudanças ocorridas em Feira, como o fechamento do Mercado Municipal, em
1976 local de venda de carne verde e caças. Demonstrava-se, assim, que um conjunto mais amplo
de práticas ia sendo alvejado.
Com ela, terminou o folclore do setor do gado, o pandemônio da área de utilidades, o
multicolorido das barracas e dos artigos oferecidos, a multidão de compradores e
curiosos, o pregão da literatura de cordel. Com a feira-livre morreu a velha Feira de
Santana do troca troca indiscriminado e da pechincha, nascendo a nova Feira de Santana
da era das CEASAS e do abastecimento racional
32
.
Houve perdas inenarráveis. A feira em sua riqueza tem muito mais a ser deixado para trás
em mudanças que não podem ser vistas apenas como alterações espaciais, arquitetônicas ou
organizativas. Consideradas específicas pela sua periodicidade própria, as feiras possuem mais do
que o comércio, mas uma rede de relações sociais fundamentadas na sazonalidade
33
dos
encontros e na infinidade de trocas e de vivências que ocorrem em seu entorno. Os mercados
abertos como os das muitas CEASAS divididas em grandes galpões, mesmo possuindo boa parte
das formas de solidariedade entre trabalhadores e de redes internas de seu comércio, perderam
parcela importante das expectativas de encontros, do lazer, das práticas aparentemente
corriqueiras de uma feira e são normatizadas por regras externas da administração pública
34
.
A feira de Feira teve também, neste sentido, seus prejuízos com a mudança de local. Às
segundas-feiras
35
, dia em que os feirantes movimentavam não só o circuito interno da feira, mas a
vida comercial de toda a cidade, as ruas eram outras. Tudo era expectativa, era tensão, até que
chegava o grande dia da grande feira nordestina: a segunda-feira. (...) Começava nas quartas-
_____________
31
Helder Alencar apud MOREIRA. Op. cit. 1997, p. 319.
32
“Centro de Abastecimento: o fim de uma tradição”. Feira Hoje, 1/01/1980.
33
Sobre o assunto ver ainda SANTANA, Charles. Fartura e Ventura Camponesas. Trabalho, cotidiano e migrações. Bahia 1950-
1980. Annablume, 1998.
34
Filgueiras, Beatriz Silva Castro. Do mercado popular ao espaço de vitalidade: o mercado central de Belo Horizonte.
Disertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional. UFRJ – Rio de Janeiro: 2006.
35
As feiras ocorriam às terças-feiras até 22 de Dezembro de 1854, passando, posteriormente a ser realizada no domingo,
coincidindo com as missas. Assim, por influencia do Padre Ovídio, a feira passou a ser feita nas segundas-feiras desde 1874.
38
feiras, semanalmente, o movimento humano na direção da montagem ‘oficial’ da feira livre
36
.
Assim é que, tradicionalmente marcada para as segundas, aos poucos os feirantes estacionavam
seus pontos de venda cada vez mais ao longo dos outros dias da semana, o que se tornou um dos
motivos levantados pelo Projeto Cabana
37
para intervenção na instalação das barracas.
A espera da segunda-feira gerava uma organização operacional precedente a ela (em
artesanato, em produção agrícola, em fabriquetas de velas, sabão, colchões de mola, cestos,
chapéus, sapatos, nas viagens em busca de produtos para venda, caças) e um cotidiano diferente.
Neste sentido, a construção do Centro de Abastecimento mudou o ritmo das trocas, e uma
infinidade de relações sociais erguidas na feira alimentadas semanalmente.
Apesar dos prejuízos, as experiências sustentadas naquela feira livre ao longo de sua
existência, deixaram um legado que não se findou com a transferência espacial de suas atividades
e nem com a atuação do poder público em seu funcionamento. Mesmo os laços com o campo, no
comércio feirense de alimentos, seriam mantidos de outras formas, com novas roupagens. O Feira
Hoje noticiou, em 1978, que a feira ainda estava por toda a cidade:
Ao que tudo indica não terminou por completo a feira livre do centro da cidade, mesmo
com a transferência da grande feira para o Centro de Abastecimento, construído para
este fim. Em todos os pontos centrais, como sejam Praça da Bandeira, João Pedreira, e
mais particularmente na Bahia, os vendedores ambulantes se acumulam, chegando ao
ponto de os transeuntes encontrarem dificuldades para se locomoverem (...) Por sua vez
a Prefeitura ainda não se pronunciou a respeito do problema que a cada dia que passa
vem se agravando com impressionante rapidez e fazendo com que os próprios
comerciantes estabelecidos na Praça Bernardino Bahia e na rua Vitorino Gouveia façam
sérias restrições ao que vem ocorrendo naqueles locais
38
.
Parece, portanto que é justamente a partir da mudança de parte da feira para o CAF que os
conflitos entre a fiscalização das ruas e os feirantes passaram a se agravar. Não foram poucas as
notícias, desde então até os dias atuais, que mencionavam reclamações de lojistas e afrontas
vindas de vendedores de rua a fiscais. O controle dos negócios de rua, mais do que nunca, fazia
dos feirantes, sujeitos antes tradicionais naquele espaço, alvos da imputação de ilegalidade. O
passeio tornou-se cada vez mais objeto de disputa entre lojistas e camelôs, baganeiros, carga e
descarga de mercadorias, carregadores e os elementos da feirinha que impediam a visão de
vitrines ou que insinuavam concorrência com os produtos vendidos nas lojas. A feira ocupava,
_____________
36
MOREIRA. Op. cit, p. 23.
37
Projeto da Prefeitura destinado, entre outros objetivos à transferência da feira livre.
38
“A feira livre está por toda a cidade”. Feira Hoje, 14/09/1978;
39
até meados do início da década de 1970, as ruas por privilégio e não as calçadas, se deslocando
para estas últimas quando da maior incidência da passagem de veículos pela parte central da
cidade. Neste período, os conflitos entre feirantes e lojistas iam encontrando acomodações
particulares, na negociação do uso da parte da frente das casas de comércio, mas, cada vez mais o
incômodo ia sendo explicitado da parte dos donos de loja, o que reforça a necessidade da
construção do Centro de Abastecimento em 1977. em 1978, o próprio Clube de Diretores
Lojistas interferiu na questão com o projeto de estabelecer as calçadas da Rua Sales Barbosa para
local de vendas ambulantes, que vinham crescendo consideravelmente, tais como as de roupas,
sapatos, cintos, e outros. Neste caso, de mercadorias que imitavam as das butiques das Avenidas
Getúlio Vargas e Senhor dos Passos. Tal atitude demonstrou a tentativa de acomodação de
pequenos comerciantes não lojistas nos espaços centrais da cidade
39
.
Vale ressaltar que o mercado havia sofrido uma série de intervenções durante outros
processos que fundamentaram a circunscrição de Feira enquanto Município baiano na segunda
metade do século XX
40
. Na atualização destas medidas em conjunturas de urbanização no
Nordeste e outras de necessidades locais de organização, aos poucos foram muitas atividades
tradicionais foram ganhando o título da informalidade.
O afastamento de atividades populares do centro não é novidade desde o início do século,
mas consideramos que a partir dos anos 1950, este quadro ganhou novos contornos. O
crescimento de Feira ocorria como nas demais grandes e médias cidades nordestinas. Sua
indústria, até então, era calcada em capitais locais, como na produção de velas, sabão, calçados,
produtos de limpeza, beneficiamento de couro. Não consumidores, mas migrantes de várias
regiões, chegavam para encontrar uma forma de viver em Feira
41
. Por ser entroncamento, ponto
de passagem obrigatório do litoral para o sertão, significativo para toda a Bahia e Nordeste, Feira
atraía pessoas de várias cidades circunvizinhas e mesmo de outras regiões. Sergipanos,
pernambucanos, capixabas, chegavam constantemente e a feira cresceu.
Suprimiam-se alguns campos de trabalho. Na década de 1970, as alterações nos negócios
com o gado se desdobraram em incontornáveis modificações dos modos de vida dos habitantes
_____________
39
“CLD insiste em fazer da Sales Barbosa um Calçadão”. Feira Hoje, 20/10/1978. Neste caso, em se tratando de vendedores de
rua em geral
40
É sabido que várias eram as taxas cobradas desde 1860 sobre a realização da feira semanal, principalmente sobre aquelas
mercadorias vindas de outras localidades, como forma de proteger os comerciantes locais, a exemplo das cobradas nos estábulos
construídos na feira, para venda de gado em pé. POPPINO, Rolie. Feira de Santana. Salvador: Editora Itapoã, 1968.
41
Em 1970, 42,06 por cento dos moradores da cidade eram feirenses “natos” e 49,03 eram de outras cidades da Bahia. 8,63 por
centro eram de outros Estados. Destes, os ditos forasteiros”, somavam portanto 57, 94 por centro, segundo o jornal Feira Hoje,
sendo mais numerosos os pernambucanos, sergipanos e mineiros. Feira Hoje, 30/12/1979
40
da cidade, não só para aqueles que estavam diretamente atrelados ao comércio de gado e
derivados. A forma de produção e distribuição passou por transformações desde as fazendas, das
pequenas criações, aos frigoríficos e vendas de carne a céu aberto.
Hoje em dia os frigoríficos imperam, compram tudo, mesmo na fonte. Por isso eu
acho que a feira vai acabar desaparecendo, a feira do boi. Com isso também os vaqueiros
é que estão sumindo, tem muito vaqueiro desempregado e outros estão cuidando em
outra ocupação.
42
Segundo o entrevistado do jornal Movimento, os vaqueiros já, muito tempo, perdiam
seu espaço na feira do gado, que antes era realizada no centro da cidade. A permanência de
magarefes no centro em bancas abertas foi cerceada, como também a feira do gado em veio a
sair das proximidades da área urbana central. Na conjuntura, esta já teria mudado de local
diversas vezes. Currais, denominados Campos do Gado, sendo o primeiro deles na Praça D.
Pedro II, conhecida nas suas adjacências como Campo da Gameleira, onde já havia balanças para
pesagem (pois no início das vendas a compra ocorria mesmo a olho
43
). Em 1959 e 1962, durante
a segunda gestão do prefeito Arnold Silva, os Currais Modelo foram transferidos dos arredores
da zona central (...) para um local mais distante, no bairro da Queimadinha, no cruzamento da
rua principal com a Avenida Maria Quitéria
44
. Retirada a feira do gado do eixo central de
comércio, permaneceria ali ainda a feira livre de alimentos e o mercado de carne verde,
adequando-se ou não às normas exigidas na pesagem da carne ou inspeções. Quando o Centro de
Abastecimento foi construído, o mercado de carne e comércio de miúdos, este último realizado
em sua maioria por mulheres, foi deslocado para lá. Mas muito destas vendas foi aos poucos se
restabelecendo nas feirinhas de bairro, como a estação Nova, cidade Nova e bairro do Tomba.
Circundavam o mercado central de carne, até 1977 toda a feira de alimentos, varejista e
atacadista. O produto que atraía as atenções era a carne. Ali as pessoas vendiam e compravam,
abastecendo-se para a semana, mas as feiras do gado e a feira livre geral foram separadas como a
pecuária tradicional feirense e as relações sociais que a reproduziam.
A entardecer de domingo eles começam a chegar. Vêm de Alagoinhas, de Santa Mônica,
de Ipirá, Cruz das Almas, Tanquinho, Amélia Rodrigues Vêm das fazendas, dos sítios,
_____________
42
entrevista fornecida ao antropólogo Murilo Carvalho, da coluna que dedicou duas páginas especiais sobre a Feira de Santana.
Jornal o Movimento.
43
OLIVEIRA, Izabel Lorene Borges de. Apolo e Dionísio da festa de feira: cantadores, cordelistas, vaqueiros... da feira livre de
Feira de Santana (Bahia), Feira de Santana: UEFS, 2000.
44
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho. Feira de Santana em Tempos de Modernidade: olhares, imagens e práticas do cotidiano.
Doutorado em História. UFPE, Recife: 2008 p. 43.
41
das roças, dos povoados de muitas léguas ao redor de Feira de Santana. São milhares de
agricultores que vão chegando com seus produtos para a grande feira
Antes, aquele comércio incipiente, do metal, da pólvora, do sal, do vinho, do azeite, dos
tecidos de algodão, nacionais e estrangeiros. Da pecuária, com as primeiras tropas de
burro e os carros de boi primeiros, hoje substituídos pelas enormes carretas, que fizeram
evoluir a forma de se comercializar gado, mas descaracterizaram a famosa feira do
gado.
45
As áreas de pastagens na chamada micro-região (subsistema urbano regional de Feira de
Santana) na qual Feira de Santana ocupava lugar de núcleo, tenderam a crescer a partir da década
de 1960 e, a população rural decresceu
46
. Vários são os fatores apontados como causadores destas
mudanças, mas o principal deles, segundo a avaliação da SUDENE, é a extensão de práticas mais
modernas nas atividades rurais de toda a região, indo desde a mineração, cultura de café,
agricultura de cereais à pecuária melhorada. Tomando Feira como centro de um subsistema
formado por mais 80 Municípios baianos, calculou-se que houve uma diminuição de população
nos Municípios menores e mais voltados para a atividade agrícola (um exemplo é São Gonçalo
dos Campos, que de 1940 a 1950 tem sua população em crescimento negativo de 0,1 por cento e
de 1970 a 1980, crescendo apenas 0,3 por cento, enquanto Feira de Santana, no mesmo período,
apresenta taxas de 3 por cento e 4,4 por cento.) Para a SUDENE, esta realidade podia ser vista
também no Município feirense. Houve durante um maior investimento na chamada pecuária
melhorada, enfraquecendo a formação de postos de trabalho para vaqueiros na atividade ou
reforçando cobranças de capacitações técnicas que tais trabalhadores não atendiam.
De um lado, Feira de Santana situava-se num território cujas fronteiras se faziam entre
fazendas de gado e um cinturão de lavouras de abastecimento alimentar. Em 1985, os Municípios
que compunham a região centralizada por Feira eram: Água Fria, Anguera, Antonio Cardoso,
Castro Alves, Coração de Maria, Elísio Medrado, Feira de Santana, Iaçu, Ipecaetá, Ipirá, Irará,
Ouriçangas, Pedrão, Santa Bárbara, Santanópolis, Santa Terezinha, Santo Estevão, Serra Preta e
Tanquinho. Neste período, a SUDENE localizou como principal atividade a pecuária em função
da feira de gado em Feira de Santana, [no entanto] com grande expansão dos estabelecimentos
com pastagens artificiais, para a criação de gado de corte e de leite, além das atividades de
recria e engorda
47
. A preocupação da SUDENE, no estudo citado, era apresentar aos governos
_____________
45
As localidades são municípios próximos à Feira de Santana e a reportagem foi publicada pelo jornal O
Movimento.
46
MELO E SILVA, Sylvio C. Bandeira. SILVA, Bárbara. LEÂO, Sônia de Oliveira. O subsistema Urbano-regional de Feira de
Santana. SUDENE, 1985.p. 84.
47
MELO E SILVA ( et al) Op. oit, 1985. p.40.
42
locais propostas de investimento para a agricultura que diminuíssem os problemas sociais que
teriam sido gerados com o crescimento da população urbana desempregada e sub-empregada. Os
intelectuais propunham uma melhor oferta de condições de trabalho para a agricultura familiar.
Segundo os geógrafos,
Esta expansão espetacular das pastagens deveu-se a uma série de fatores, dentre os quais
vale ressaltar a política agrícola do Governo, que tem estimulado muito mais a pecuária
do que as lavouras (...), reforçada pelas alterações das relações de trabalho no campo,
tem contribuído bastante para a migração da população rural
48
.
Os técnicos visavam aplicar projetos de crédito rural e combate à seca, avaliando que os
efeitos dos problemas no campo convergiam para a cidade sede. Partiam da premissa de que
dentro da região, Feira possuía potencial para beneficiamentos de matéria-prima que não foi
aproveitado adequadamente na década de 1970, período que teria gerado vários problemas
urbanos para a década subseqüente.
O comércio ambulante do centro da cidade passou a ser alvo principal das diretrizes
Municipais de atualização das formas de entrelaçamento entre as atividades da economia rural
com o setor industrial. Do próprio Município de Feira, entre 1960 e 1980, a produção do setor
primário caiu de 56,33 por cento para 15,47 por cento, crescendo o secundário de 8,01 para 24,05
por cento e o terciário de 35,66 para 60,48 por cento
49
. As atenções se voltaram assim, cada vez
mais para o potencial comercial da cidade, porém sob moldes que não o da feira livre e da
produção primária de subsistência.
Agregada a estas mudanças, problemas de distribuição de emprego e renda demonstravam
seus efeitos nas atividades do centro da cidade, no crescimento do número de vendedores e
vendedoras a cada ano. Para o governo municipal, a questão do inchaço da feira precisava ser
resolvida e as intenções de mudança apontavam para retirada da feira dali como passo
fundamental para encaminhamento do nunca alcançado desenvolvimento feirense. Assim dariam
os passos iniciais para o abandono do que estaria atrasando a caminhada de Feira para o tão
almejado progresso. Porém, a cidade não deixaria seus laços culturais e sociais com o rural
completamente para trás
50
.
_____________
48
Idem, p. 81.
49
MELO E SILVA (et al) Op. cit, 1985. p. 128, 129, 130.
50
um exemplo é o fato de que alguns elementos de exclusão e exploração pouco são alterados, como a rede de interdependência
do atacado com o distribuidor a varejo, mantida por via de uma estranha relação de perseguição ou de vistas grossas aos
vendedores de rua.
43
Principalmente os elementos de exclusão e exploração pouco são alterados, como a rede
de interdependência do atacado com o distribuidor a varejo. As vendas prosseguem após 1977,
mantidas por via de uma estranha relação de perseguição ou de vistas grossas aos vendedores de
rua. Por outro lado, os pequenos feirantes mantém sua festividade, laços, solidariedades que,
bruscamente atingidos, não se findam. Os homens e mulheres persistem na labuta pela existência
dos elementos da feira, seja no Centro de Abastecimento, seja em outras feiras, seja na rua.
1.1 – Os feirantes e a imprensa: primeiros olhares sobre o Centro de Abastecimento.
As perspectivas sobre o caráter da mudança e as reações diversas de sujeitos diferentes
são retomadas aqui como forma de lançar questionamentos sobre a transferência da feira. Cabe,
portanto, apresentar a construção de alguns depoimentos orais para alcançar o objetivo de
entender o papel do CAF na vida dos feirantes e, ao mesmo tempo, demonstrar como os
relacionamos com a leitura da imprensa sobre o fato. Nem uma nem outra fonte se torna suporte,
mas sim, essência de um debate sobre olhares voltados para o Centro de Abastecimento do ano de
1977.
É necessário ainda encontrar artifícios metodológicos para tratar do controverso grupo de
feirantes de alimentos como sujeitos dos grupos subalternos
51
. Como não deixaram documentos
escritos no período, os depoimentos de algumas pessoas tornaram-se indispensáveis. Não por
este motivo, mas porque as nuances apresentadas na construção de um texto falado traz riquezas
a serem exploradas na escrita do tema. Em se tratando do uso de depoimentos orais, as sutilezas e
armadilhas da escolha por este material de pesquisa precisam ser explícitas em qualquer narrativa
que se aproxime de algum tema da história a partir de suas estratégias.
Com efeito, algumas das práticas e crenças da chamada História Oral ‘militante’ levaram
a equívocos que convém evitar. O primeiro deles consiste em considerar que o relato que
_____________
51
O termo foi usado por Gramsci ao estudar movimentos populares italianos ao longo da história que antecedeu o fascismo.
uma tendência em perceber que os grupos populares que se expressaram politicamente (limitados e mais restritos que as
estratégias encontradas pelos grupos dominantes para exercer o poder), deixaram marcas nas instituições sociais italianas, como a
Igreja, por conta da apresentação, por parte destas ações populares, das suas necessidades específicas frente ao Estado moderno,
quando este se consolidava. Assim, o uso de “grupos subalternos”, passou a ser usado para abrigar, de maneira ampliada, o
conjunto de sujeitos que, coletivamente estão dispersos na sociedade civil por não conseguirem agregar suas demandas e projetos
numa classe. É justamente esta dispersão que lhes confere o caráter de subalternidade. Aqui, não acreditamos ter existido a
montagem sistemática, por parte dos pequenos feirantes, de um conjunto de necessidades a serem atendidas. Mas ainda assim, são
camponeses, trabalhadores urbanos, ganhadores e ganhadoras que transitaram entre situações políticas diversas enquanto
trabalhadores (como sindicatos rurais, em condutas políticas com vereadores e outros sujeitos, de maneira individualizada, ou em
pequenos grupos) e, sua história encontra-se dispersa em fragmentos de ações na sociedade civil. Acreditamos ser possível, de
maneira mais genérica, percebê-los enquanto tais.
44
resulta da entrevista de Historia Oral já é a própria ‘História’, levando à ilusão de se
chegar à ‘verdade do povo’ graças ao levantamento do testemunho oral
52
.
A sensibilidade às subjetividades dos entrevistados é marcante na maioria dos trabalhos
de história oral e se faz ponto importante na sua metodologia. Sendo assim, o aspecto subjetivo é
articulado como traço fundamental da pesquisa ou como componente de montagem de
problemáticas outras, dependendo do referencial teórico que norteia o trabalho do historiador.
Muito se discute que a produção de um documento oral carrega consigo um traço de
subjetividade mais marcante do que em outras fontes que venham a ser utilizadas, isto porque é
no próprio ato de entrevista que algumas intenções do interlocutor são despejadas na relação com
o entrevistador/pesquisador.
Uma entrevista de história oral não apenas fornece relatos de ações passadas, mas é ela
mesma um conjunto de ações que visa determinados efeitos - efeitos que se pretende que
ajam sobre o interlocutor na própria entrevista, e efeitos que se pretende que repercutam
para além da relação de entrevista (...)
53
.
Uma das mais ricas contribuições da história oral está justamente na permissão de uma
aproximação do pesquisador com dimensões não conhecidas da elaboração subjetiva das
experiências sociais, podendo perceber inclusive os projetos não realizados que compunham tais
percursos de vida
54
.
No ato da entrevista, é possível perceber as escolhas do narrador/ colaborador do que
dizer e como dizer àquele (a) acadêmico (a) que o(a) aborda com modernos gravadores digitais,
cadernos de anotações e todo um arsenal que garante a produção oficial de um documento. Este
momento se apresenta como uma construção histórica de fontes. Os “ruídos” encontrados no
desenrolar de uma gravação tornam surpreendente o ato de dialogar com pessoas que são ao
mesmo tempo sujeitos do fato narrado e veículo das informações, mais precisamente, de uma
memória que conjuntamente fazemos esforço por trazer à tona.
Esta relação aconteceu por exemplo, quando da entrevista de Jacira Santos, que buscou
promover pontes de sua memória com a minha, a fim de montar uma imagem da feira que não
mais existe concretamente.
_____________
52
PINSK, Carla. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p.158. Fica claro, portanto, que ser feirante não gera uma
identificação direta com este trabalho, sendo que muitos se identificaram com outras profissões que exercem.
53
ALBERTI, Verena. Ouvir contar textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p 114.
54
PINSK. Op. cit, p. 164
45
Eu era menina na época por isso que eu não lembro muito de detalhe, mas lembro. Se for
pra tu fazer uma História, tu usa a imaginação, tu lembra como eu tou te contando. Era
assim tipo a feira de Tanquinho, aquele negócio tipo sertão mesmo, sabe? Aquela
feirinha humilde, todo mundo ali comprando, mas humilde, espalhado ali por cima, na
Senhor dos Passos, Marechal, ali tudo, Casa das Lâmpadas, Casas Pernambucanas, toda
aquela área ali que hoje é comércio, tudo era a feira. (...)
A feira era assim, tipo Tanquinho, agora hoje não, hoje está melhor que a de São
Joaquim. Hoje você fica a vontade, em São Joaquim você não consegue andar, era quase
idêntica a aí. Se bem que esvaziou, né? Você quer saber mais ou menos, quando você for
em Salvador, dê uma andada ali
55
.
Durante a pesquisa, para se entender elementos em comum num grupo, é mesmo possível,
por exemplo, detectar repetições numa série de entrevistas. No caso deste trabalho, este caminho
foi utilizado em parte, porém de maneira menos sistemática. Apenas informalmente
questionamos vários feirantes numa sondagem inicial. Pareceu mais proveitoso quando os
próprios entrevistados se dispuseram a apresentar outros possíveis entrevistados, geralmente
como pessoas que viveram situações semelhantes às suas. Ou seja, o chamado efeito bola de neve
foi importante no processo de achamento de uma rede de relações entre feirantes na feira livre. A
memória em termos de grupo foi mais explícita desta forma do que quando vasculhada nos
elementos comuns em diversas questões pré-elaboradas, tentativa inicial da pesquisa. Os feirantes
foram apontando situações de trabalho e apresentando-me uns aos outros, o que ajudou na
escolha de pessoas para serem entrevistadas na feira da estação nova, na rua e no CAF. Assim,
alguns marcos apresentados pelos próprios entrevistados foram escolhidos para lidar com um
universo amplo de pessoas e estabelecer contato com grupos dispersos pelo centro. Um exemplo
foi o momento em que algumas pessoas voltaram para o centro da cidade, anos após a construção
do Centro de Abastecimento. Como diz Verena Alberti, foi preciso encontrar trechos citáveis,
quando as entrevistas ensinam ao pesquisador mais do que versões do passado, mas se
apresentam carregadas de acontecimentos que são informações únicas sobre a realidade
56
. A
experiência é coletiva, porém os percursos de vida são diferentes e carregados de subjetividades
que fomentaram reações diversas às interferências na feira. Muitas pessoas voltaram a
comercializar o produto na Avenida Senhor dos Passos e travessas próximas, apresentando
leituras próprias sobre o fato. Esta subjetividade nos levou para outras teias de relações e assim
destacamos processos comuns.
_____________
55
Depoimento de Jacira Santos , gravado em 19 de Abril de 2006.
56
ALBERTI, Verena. Ouvir Contar textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
46
Na concepção de Milton Santos, uma dada situação não pode ser plenamente apreendida
se, a pretexto de contemplarmos sua objetividade, deixamos de considerar as relações
intersubjetivas que a caracterizam
57
. As falas não são vistas de uma forma isolada, pois o tema
em questão não é o subjetivo, mas o entrelaçamento e os conflitos entre os indivíduos. O olhar de
cada um é representativo no que diz respeito a como as pessoas se vêem realizando o seu
trabalho.
Como houve memórias diferentes a respeito do fato transferência da feira, buscamos
encontrar acontecimentos anteriores e posteriores a inauguração do Centro de Abastecimento que
possibilitassem tirar as atenções do marco de 1977, fornecendo uma leitura mais vagarosa da
transformação e uma demarcação mais ampla dos motivos de deslocamento das pessoas para o
CAF. Tentaremos, a seguir, acompanhar alguns passos importantes dados para esta ruptura e
localizar reações dos feirantes de alimentos.
Escolhemos, portanto, o que tem sido identificado nas rodas de pesquisadores da História
Oral como História Oral Temática, na qual os elementos ditos externos às trajetórias de vida dos
entrevistados delineiam conjuntamente com os fatores subjetivos os termos da narrativa
58
. As
versões da história são postas em jogo, nas falas e nas e fontes escritas, nos seus cruzamentos e
desencontros.
Como tivemos oportunidade de discutir, a feira livre tal qual se realizava no centro da
cidade era uma experiência social compartilhada em Feira de Santana não somente entre feirantes
e consumidores, mas entre classes sociais diferentes
59
. Ela não era um terreno homogêneo de
trocas de informações, mercadorias e referências culturais. Foi, sim, uma tradição, reconstruída,
moldada sobre de conflitos. Deste modo, os setores dominantes da sociedade feirense, como cada
feirante que ali expôs os seus produtos, foram delineadores de seus contornos. Mesmo
subalternizados por outros setores do comércio, os feirantes são entendidos como sujeitos
construtores da organização da feira livre.
As dimensões da sociabilidade, da reciprocidade, da solidariedade e das trocas internas do
grupo de feirantes que ali vendiam alimentos em pequenas quantidades e que por si era um
grupo composto por pessoas em situações de autonomia e exploração diversificadas são
_____________
57
SANTOS, Milton. A natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996, p. 253.
58
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História Oral. São Paulo: Contexto, 2007. p. 38 a 42.
59
PENELU, Larissa. A feira e a nova Feira. Tradição, costume e conflito em Feira de Santana Bahia. 1967-1977. Monografia
de Especialização em História da Bahia. UEFS, 2008.
47
tratadas como uma rede própria, contudo, necessariamente montada em locução constante com a
sociedade feirense.
Na sua extensão, barraqueiros, vendedoras, donas de casa, cordelistas, turistas, donos de
loja, madames e meninos de recado, puderam se esbarrar uns com os outros, mantendo diálogos e
acirrando diferenças durante as segundas-feiras e em torno de seus preparativos. Alguns feirantes
moravam ali mesmo, na rua.
Eu cheguei aqui no dia 1 de Agosto de 1970. O que eu trouxe pra aqui foi minha
esposa e o menino, o fogão e uma lata de carvão e uma lona pra dormir (...)
No outro dia, (..)eu vim passar de noite, nesse tempo trabalhava eu aí, (...) o povo foi
botando a barraca, botando a barraca, quando pensou que não, já tava lotado foi de
casa, n foi de barraca não. Era casa
60
.
O novo espaço, em 1977 racionalizado e fechado ofereceu limites (oficiais) à expansão da
feira nas ruas e aproximou aquela atividade ao modelo das ceasas construídas em todo país,
desde os anos 1950. O plano, na pauta, oferecia boxes de acordo com o volume de vendas
61
de
cada um e determinou 15 dias como prazo para os feirantes saírem das ruas.
O fator continuidade de vendas além da segunda-feira e de horários previamente
acordados era uma das argumentações do poder público para saída da feira e foi mencionado pela
imprensa como elemento explícito de desorganização do centro. Pessoas (feirantes e
consumidores) foram entrevistadas pelos jornais da cidade e foi possível perceber que muitos
acharam curto o prazo, reclamaram, resistiram a ir, ou desistiram e foram para outros mercados.
Vicente Moreira mostrou falas contra o projeto em boa parte de seus trabalhos de pesquisa
62
.
Entre intelectuais preocupados com o turismo e lojistas receosos com o movimento comercial, os
baganeiros (vendedores de frutas e verduras) mencionavam a dificuldade de locomoção, a queda
do movimento com a concorrência de supermercados, e mesmo, um feirante alegou que, se a
Prefeitura estava preocupada com a limpeza, que construísse sanitários públicos e atualizasse a
coleta de lixo
63
.
No início da recepção do Centro de Abastecimento, muitos registros foram feitos e o
vasto material foi recolhido por Vicente Moreira, que publicou recortes comentados de
reportagens
64
.
_____________
60
Entrevista Com Sr. José Santos. Mais detalhes adiante.
61
Prefeitura Municipal de Feira de Santana – Projeto Cabana, 1968.
62
MOREIRA, Vicente. Op. cit.
63
MOREIRA, Vicente. Projeto Memória da Feira Livre. Outras Palavras. Revista Sitientibus, UEFS: 1994, p. 193-200.
64
MOREIRA, Vicente. Projeto Memória da Feira Livre de Feira de Santana (todos os artigos).
48
À primeira vista, a transferência da feira, na leitura da imprensa, seria movida pelo
interesse dos comerciantes lojistas, através da constante presença da Associação Comercial de
Feira de Santana nos pronunciamentos a respeito da insatisfação da cidade com o mercado a céu
aberto. O lixo acumulado após as segundas feiras e a suposta concorrência entre ambulantes e
lojistas foram os fatores alegados como atraso diante da cidade que apresentaria todos os
requisitos para ser considerada “moderna”: uma universidade, um observatório astronômico, um
centro industrial, estradas conectadas à capital, sinaleiras e asfalto, além de uma população que
dobrava a cada dez anos.
Para o comerciante, a feira livre traz enormes transtornos além da queixa da
concorrência desleal, na medida em que lá se vende quase de tudo que vendem os
comerciantes estabelecidos. A confusão provocada no trânsito da cidade e o grande
número de veículos de carga também contribuem para acelerar as críticas à existência da
feira
65
.
A acusação de concorrência entre os trabalhadores de rua e lojistas parece estranha ao
observamos o comportamento do comércio lojista em outras situações comerciais nordestinas. Ao
estudar a feira de Brejo Grande, Sergipe, comparando-a com outras feiras, americanas e sul-
africanas, Luiz Mott notou a conveniência de que os mercados abertos geralmente fornecessem
aqueles gêneros de subsistência que o comércio estabelecido não estaria em condições de a
contento satisfazer
66
: produtos mais baratos, dadas sua condição de produção, tendo como
consumidores, em maioria, pessoas de baixa renda.
A associação comercial de Feira tinha como foco para a mudança da feira justamente a
queixa quanto à ocupação das calçadas. No entanto, observamos que, após 1977, a troca de
favores entre vendedores menores e os donos das lojas, como o uso das lojas como ponto para
guardar mercadorias não foi deixada de lado.
indícios de que a retirada da feira do eixo central do comércio não era consensual. Na
leitura do jornal A Tarde, da capital baiana, nota-se uma possível convergência entre os motivos
levantados pelos comerciantes lojistas e a esperança da manutenção das características da feira:
Para os líderes do comércio, a mudança da feira livre para o Parque Manoel Mathias até
o fim do ano, beneficiará bastante a cidade, pois deixará de ser um problema para o
centro e criará um novo centro comercial. Outros afirmam que não haverá queda no
volume de vendas ou mesmo da vinda de pessoas de outros locais, pois Feira de Santana
_____________
65
MOREIRA. Op. cit. 1997, p. 312.
66
MOTT, Luiz. Estrutura e função das feiras rurais no Nordeste do Brasil: o caso da feira do Brejo Grande, Sergipe: 1979, p.
71.
49
continuará sendo grande centro distribuidor de produtos alimentícios industrializados no
interior baiano. E assim a feira de Feira de Santana vai ceder o seu lugar atual e sim,
numa área específica, sem haver nenhum prejuízo de sua tradicional realização às
segundas-feiras, com todos os seus motivos folclóricos e regionais que a tem tornado
famosa em todo o país
67
.
Se o movimento de consumidores nos dias de segunda-feira era outrora comemorado, em
1976, não suplantava a preocupação com a imagem que esta traria para um cliente mais
preocupado com o aspecto do local de vendas. Para os comerciantes, o dia da feira era evitado
por um outro tipo de consumidor, que freqüentava joalherias e casas de moda do comércio. Além
disto, foi denunciada a incapacidade de trânsito de veículos num centro tomado por barracas e
lonas nos dias de maior intensidade de circulação e troca. Então, a higiene, em todos os aspectos,
seria tomada como tema fundamental para o prosseguimento de um sucesso na empreitada de
mudar o centro de Feira. Barulho, presença de menores de rua, e injustiça quanto ao uso do solo
urbano – já que muitos não pagavam impostos – eram acusações difundidas pela imprensa
feirense
68
.
Esta imprensa, monopolizada pelos jornais Feira Hoje e Folha do Norte, representava para
aquela sociedade um importante formador de opiniões para os poucos leitores (e eleitores). Seus
textos confrontavam os aspectos que seriam mais relevantes para dar prosseguimento a um
desenvolvimento para Feira. Notamos ser mais presente no primeiro uma tendência em
vislumbrar um avanço nas alterações da indústria sem fechar dos olhos para as atividades
tradicionais, como o comércio e a agricultura, que alimentavam as riquezas dos setores
dominantes mais antigos de Feira
69
. o segundo, explicitamente agregado, durante a ditadura
militar, aos projetos Arenistas em âmbito mais nacional, trazia textos cujo conteúdo se adequava
ao modelo nacionalmente cultivado: tomando como carro chefe atividades do centro industrial,
acompanhada de urbanização, mesmo que para isto, perdas ocorressem em setores produtivos
então apresentados, naquela esfera de ações, como atrasados e, mesmo que estes setores
permanecessem fundamentais na articulação desta industrialização
70
.
_____________
67
Maior Feira Livre da Bahia desloca-se para novo local. A Tarde. 16.06.1976 in MOREIRA, 1997.
68
MOREIRA, Vicente. Op. cit. 1994.
69
as opiniões publicadas nas colunas Informações e negócios e nas colunas Por que comprar? e Por que não comprar em Feira
de Santana? explicitam o posicionamento dos grupos que publicavam no jornal as posturas quanto ao modelo de negócios a
serem empreendidos em Feira: explicações sobre empresas em sociedade secreta, sociedades anônimas e atualização dos negócios
visavam atualizar os comerciantes feirenses e empresários que se associavam à industrias nacionais. As colunas estão publicadas
entre os anos de 1978 e 1980.
70
Esta seria uma análise ampla e um tanto superficial do conjunto de textos lidos sobre o comércio e a indústria de Feira entre
1970 e 1977.
50
Apesar de ser o mais explicitado e tomado como justificável pela imprensa, o motivo da
limpeza e do embelezamento das ruas pode ser considerado secundário mediante o conjunto de
outros fatores que podem ser postos em diálogo com este, encontrados especialmente na ação do
executivo. Olhando em conjunto as projeções para a feira livre, vimos que correspondiam a uma
realidade de expectativas que se mantinha em Feira desde o final da década de 1960: havia o
intenso crescimento de um mercado que provia supermercados, mercadinhos, vendolas e o
consumo direto, cujo controle por parte do poder Municipal e Estadual já era questionado. A
cidade recebia uma rie de novidades em seu comércio, como domínio de normas de pesos e
medidas, volume de circulação, relação entre fornecedores e varejistas (atravessadores), que se
fez notar no Projeto Cabana (em 1968). Este voltou às mesas da Secretaria de Desenvolvimento
Econômico em 1974 como a grande ação de conclusão do mandato do então prefeito em 1977.
A saúde pública também foi tomada como ponto de crítica sobre a feira, acusada de suja.
A ação sobre os sons produzidos na feira e os demais aspectos de seu cotidiano, que eram vistas
como problemas para a urbe, era constante, num controle que existiu desde a existência da
administração do espaço público em Feira, vindo a se intensificar antes do projeto CABANA,
com a formulação do Código de Posturas Municipal (1967). Em 1977, estas justificativas vieram
a respaldar outras ações maiores. O prefeito, em 1976, procurava contornar as divergências
quanto à má recepção da mudança, em entrevistas para a imprensa local e mencionava um
necessário consórcio entre indústria, comércio e agricultura não somente na urbanização das ruas,
mas num controle sobre o trabalho e as mercadorias que transitavam nas mãos de vendedores na
cidade. A prefeitura de Feira queria fazer cumprir os projetos como este, assumidos com o
governo federal, e, conseqüentemente embelezava o centro, atendendo às expectativas de
comerciantes lojistas
71
.
Na ocasião, a possibilidade de aproveitamento da feira livre como fonte de potencial
turístico foi inicialmente descartada pela Prefeitura. Apenas poderia ser considerado, no ponto de
vista do novo secretário de turismo, Itaracy Pedra Branca, que a limpeza, com uso de lonas e
barracas novas dentro do CAF, trariam um aspecto visual mais agradável aos visitantes da cidade.
Mas a conservação dos elementos que caracterizavam a feira, as “atrações” populares, como
lembraram alguns universitários no período, tomadas como estratégias de convivência com este
_____________
71
“O projeto de transferência da feira vem sendo cogitado a mais de 10 anos. No entanto, a idéia tomou vulto acerca de um
ano, quando a maioria dos comerciantes se tornou contrária. Eles achavam que isso provocaria uma sensível queda no comércio,
até que todo o fluxo se encaminhasse para o novo local levando consigo a maioria dos negociantes.” (Jornal da Bahia, 10 de
janeiro de 1977. in MOREIRA, op. cit. 1997).
51
tipo de mercado em várias cidades do país, não foram ponderadas pela Prefeitura
72
. após um
ano de construção do Centro, este começa a ser tomado forçosamente como ponto turístico de
Feira de Santana. Neste tempo, juntamente com o Observatório Astronômico Antares, a feira do
campo do gado e as Igrejas de São José e dos Remédios, o Centro ocupava a coluna de turismo
do jornal Feira Hoje. Além do que, o prefeito Colbert Martins promoveu, através da Secretaria de
Turismo, em 1978, um estudo sobre o calendário de festas religiosas da cidade e outros, a fim de
inserir Feira de Santana no circuito de turismo baiano
73
. Mas consagra-se, logo em 1980, apenas
a Micareta no calendário de festejos populares, já que mesmo a tradicional Festa de Santana é
abolida em 1982.
Percebemos assim que o Centro de Abastecimento chegara para ocupar uma lacuna
organizativa tanto para o comércio de alimentos em atacado, como para demarcar espaços para o
comércio lojista. Esta ruptura foi incisivamente citada na imprensa durante o ano determinante de
conclusão do Centro de Abastecimento e nos anos posteriores
74
.
A imprensa publicou algumas entrevistas, mas sabemos ainda pouco sobre os homens e
mulheres que puseram seus instrumentos de trabalho e mercadorias na carroceria de caminhões
emprestados pelo BNDES para a Prefeitura e os levaram para o CAF. Tais pessoas, segundo os
jornais, preocupavam-se, por exemplo, com a clientela, com a distância a ser percorrida pelos
consumidores até suas barracas, com a visualidade de seus pontos de venda. Alguns revelaram
que a segurança poderia lhes dar melhores condições de trabalho, além da proteção contra a
chuva, que trazia perda aos vendedores e vendedoras de farinha, ou espantavam os clientes.
Porém o balanço geral traduzia um estado de preocupação por parte dos feirantes que se
constituíam minoria (no sentido de que não conseguiram influenciar a condução do processo nos
seus primeiros atos)
75
.
Perguntamos-nos de que forma o Centro de Abastecimento se constituía como marco na
vida dos feirantes. Para os que tinham um histórico de trabalho “mais urbano”, por assim dizer,
ou seja, que não vendiam os produtos cultivados por eles mesmos nas roças e sim comprados de
atravessadores, as mudanças não foram apresentadas de maneira tão brusca em suas memórias.
_____________
72
Apesar de alguns registros na imprensa, não encontramos na Câmara Municipal outras idéias para intervenção na feira livre e
sim, a tentativa de conseguir os financiamentos necessários para a conclusão do Projeto.
73
“Turismo quer preservar Costumes e Origens. Feira Hoje”, 25/05/1978.
74
Centro de Abastecimento: o fim de uma tradição. Feira Hoje, 20/01/1979.
75
MOREIRA, op. cit.
52
Foi Zé Falcão. Foi Zé Falcão que fez o Centro de Abastecimento. Eu não lembro
porque... mas a primeira barraca quem carregou foi eu pra lá., pro Centro de
Abastecimento, quando mudou pra lá. A maioria quando mudou pra lá, a maioria
reclamou, o pessoal reclamava, ainda hoje tem gente que vivo e que teimou que era
aquilo, que hoje não tem mais negócio, mas eu, graças a Deus, o meu negócio é o meu
carrinho de mão. Eu cheguei aqui, não trouxe nada, saí daqui, também sem nada, então
não me reclamaram
76
.
Eu comprava aqui na mão do pessoal aqui no centro, naquele tempo não tinha centro [
Centro de Abastecimento], o centro foi passado para ali foi em ... 77, no governo de José
Falcão. E ali a gente comprava era por ali pelo mercado, ali onde hoje é Mercado de
Arte.
- Antes de existir o Centro, onde é que o Senhor comprava?
Ali no centro mesmo. No mercado. No caminhão, encontrava no caminhão. Agora,
depois que passou, que foi para o Centro, que fizeram os boxes lá, a gente vai e
compra lá no boxe. Tem o caminhão de fruta, a gente compra lá, na mão de [som baixo],
lá no centro
77
.
Todo mundo desceu pra baixo, pro centro. Eu fui também. Eu fui pra baixo,
agora lá... eu trabalhei uns oito anos por depois eu saí de também e vim pra aqui
pra feirinha [Estação Nova]. Passei uns oito anos lá e aqui já tenho uns 12 anos
78
.
Olha, não tinha CEASA em cima, ficava os carro, mas aquela CEASA apropriada
como tem aqui, não tinha. |Chegavam carros de onde?| Assim, como chega aqui na
CEASA né? não tinha aquela CEASA que tem hoje aqui, por isso que eles jogaram
pra aqui pra baixo, porque aqui em baixo tinha mais espaço, eles botaram a CEASA,
pros carros circular e eles resolveram deixar como mercado né, modelo, pra vender
arte
79
.
Eu fui pra lá, se eu trabalhava de carregador. Trabalhava de carregador e enquanto as
barracas a prefeitura queria pra lá, eu carregava daqui pra lá. Deu pra dar uma diferença
porque lá... , aqui a gente trabalhava nesses carros grandes, e lá a gente trabalhava
naquelas caçambazinhas, aqui a gente pegava, esse carro aqui, pega mil quilos, mas a
gente não bota. Pega 10 ou 12 sacos e já levava, daqui pra Marechal, ganhava um
trocado, levava no carro de mão, naqueles carrinhos de carroça, por outra, melhorou
porque o povo que veio de fora do Sul que ninguém nunca mais deixou fruta no meio da
rua. Cá ta bom. È porque para o povo, nada presta. Entendeu?
80
.
A forma de troca entre grandes comerciantes e distribuidores menores (cadastrados ou
não) teve suas relações pouco modificadas ou até mesmo foram intensificadas. O que parecia se
alterar em 1977 eram os espaços físicos para cada feirante e a interferência externa na arrumação
deste local, ocorrendo mudanças no contato com a clientela, motivo que levou muitas pessoas,
mais tarde, a negociar ou disputar seus espaços de venda em locais onde comercializavam, nas
_____________
76
José Santos, 67 anos. Depoimento gravado em 22/01/2008.
77
Cláudio Araújo Santana, 67 anos. Depoimento gravado em Outubro de 2007.
78
Idem.
79
Jacira Santos. Op. cit. Refere-se ao Mercado de Arte, o antigo mercado municipal de carne.
80
José Santos. Op. cit. Refere-se aos demais colegas que reclamaram da situação de trabalho, que ele conseguiu retomar as
vendas.
53
ruas. E, por outro lado, os impactos foram mais sentidos pelos vendedores que traziam dos
distritos próximos o resultado do cultivo de suas roças, o pequeno produtor, cujo enfrentamento
com a concorrência do mercado atacadista se ampliou. A perda diz respeito também a outros
grupos de trabalhadores e outras pessoas que não eram vendedores, mas se relacionavam com a
feira de outros modos. Consumidores, transeuntes, visitantes, vaqueiros, cordelistas
81
.
O feirante, em geral, passou a ser destituído do desfrute do espaço público, aglutinador de
territórios de ganho e de vivências construídos em gerações, locais socialmente valiosos para as
trocas comerciais e demarcados pelos próprios, em relação passada entre si e com a sua clientela.
Ângelo Serpa, ao estudar o espaço público na cidade contemporânea, defende que a
acessibilidade a este é, sobretudo, simbólica. A privatização dos locais públicos urbanos, numa
dimensão classista e excludente de uso dos centros das grandes cidades promove a tentativa dos
grupos populares de encontrar locais próprios para manutenção de suas práticas
82
. O centro
comercial de Feira antes era disputado por todos os comerciantes, sendo que as vias de resolução
dos conflitos pela privatização de seu uso puseram de lado os feirantes como subalternizados
neste processo. Mesmo o chamado “poder público” seleciona quais sujeitos sociais puderam ser
os usuários daquele centro.
A busca por ocupações e postos de trabalho mais urbanos em Feira, como nos centros do
Nordeste cresceram, contudo a presença dos mesmos foi cada vez mais social e simbolicamente
excluída no centro da cidade
83
. Os espaços de uso dos feirantes em calçadas, praças, ruas,
vinham sendo disputados havia mais tempo. O passado dos feirantes esteve assim historicamente
correlacionado com a perseguição ou com a restrita permissão de seus negócios, de acordo com a
legitimidade de uso do solo urbano em voga em cada conjuntura de crescimento comercial de
Feira. Este foi o passado que fez com que as pessoas reagissem da forma como reagiram.
_____________
81
Sobre o tema ver OLIVEIRA, Izabel Lorene Borges de. Apolo e Dionísio da festa de feira: cantadores, cordelistas, vaqueiros...
da feira livre de Feira de Santana (Bahia), Feira de Santana: UEFS, 2000.
82
SERPA, Ângelo. O espaço público na cidade contemporânea. São Paulo: Contexto, 2007.
83
Entidades como a Associação Feirense de Assistência Social, o Serviço de auxílio ao migrante, demonstraram a necessidade de
atender a demanda de pessoas que vinha de outros locais procurar emprego em Feira de Santana. Como mencionado, a
quantidade de pessoas que não eram de Feira de Santana chegava a mais da metade da população.
54
Enquadrados pelas estatísticas no setor terciário, ou na informalidade
84
, os feirantes
intercalaram experiências de trabalho oriundas do campo e da cidade. Na feira os agricultores que
traziam seus produtos das roças se aproximaram dos trabalhadores urbanos distribuidores de
gêneros alimentícios comprados de atacadistas. Nesta interlocução, ocorreram aprendizagens,
conhecimentos e jeitos de lidar com trocas urbanas próprios. O comércio de frutas, verduras e
cereais, das mais diversas localidades, neste trânsito, desenhava nas ruas o tracejado da
disposição das barracas e consagrava pontos de venda setorizados. Ressaltavam-se, portanto, as
vendas em pequenas quantidades que se espalhavam nas ruas e praças do centro e delimitavam
locais de comercialização por produto: a feira da cebola, a feira da banana, a feira de tempêros e
outras.
Em 1977, aparece em seu horizonte uma situação parcialmente conhecida, porém, desta
vez, muito mais marcante e agressiva a seus costumes. A fala do Sr. Agnelo, por exemplo, nos
permite tracejar os tentáculos da feira pelas ruas. Organizada na sua arquitetura própria, esta
delimitava as feições comerciais das principais vias de negócios feirenses, num desenho que era
reforçado nos dias de segunda-feira, mas começava a se formar desde o sábado da semana
anterior.
Na Getúlio Vargas tinha o correio da Farinha, e aqui na frente da Marechal tinha o
feijão, aqui na Marechal Deodoro. Já tinha feira. Tinha feira da Getúlio Vargas que
vendia... a feira dos passarinhos, em baixo defronte ao EMEC; de couro e cangalha,
palha, tinha a feira das frutas também, de abacaxi, banana, tudo na frente da Getúlio
Vargas também. emendando direto, direto. Aqui na praça da Bandeira era banana,
você ia via banana até a praça da farinha. Era a Praça da Bandeira. E tinha o mercado da
carne, o mercado velho, o mercado que tinha farinha também. no mercado, onde é o
Mercado Modelo hoje. E eu panhava abacaxi e ia vendendo, quando os caminhões
descarregavam, eu comprava, porque os caminhões descarregavam tudo ali na praça
da Getúlio Vargas. Laranja, manga, abacaxi eu comprava tudo ali na Getúlio Vargas
85
.
Havia, portanto demarcações físicas e simbólicas daquele espaço, sustentadas por
feirantes e consumidores. A desapropriação de um uso daquele chão foi brusca, contudo, práticas
_____________
84
Para Francisco de Oliveira, o chamado “setor informal”, analisado no caso de Salvador, tem um formato homogêneo na forma,
mas não nas atividades: “a não presença de estruturas formais de produção ou de circulação ou ainda de distribuição; dizendo
de forma mais rigorosa, o capital não é o sujeito dessas relações, e a força de trabalho não é pressuposta e posta no movimento
da reprodução, não é uma mercadoria.” OLIVEIRA, Francisco. O Elo perdido: classe e identidade de classe na Bahia. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003, p. 71. Socorre as bases de acumulação capitalista em serviços como os de
oficinas, consertos em geral, serviços de eletricidade e de construção, para citar alguns exemplos, mas comporta também uma lista
de formas de vida “por conta própria”, em especial de vendedores de rua, como é o caso dos 87,7 por cento tratando-se da capital
baiana no final dos anos 1970. Em Feira de Santana, a virada intervencionista sobre o comércio da feira também foi acompanhada
por um controle das formas reprodutivas do trabalho, como citaremos mais adiante, e, de uma atribuição de ilegalidade e
informalidade a uma serie de atividades que faziam os feirenses para sobreviver no centro urbano.
85
Agnelo, Depoimento gravado em Julho de 2008.
55
internamente montadas na feira voltaram à cena urbana mesmo após a medida. E foram vários os
modos de reagir destes sujeitos. Seus pequenos movimentos pela cidade promoveram a
remontagem de um modo de lidar com o comércio típico dos feirantes. Este modo se dava tanto
em relação aos seus consumidores como aos outros grupos citadinos que dividiam a riqueza
gerada no movimento comercial do centro, inclusive entre outros grupos de trabalhadores, como
sapateiros, vendedoras de acarajé, carregadores e mesmo, com os fiscais da prefeitura.
Vicente Moreira encontrou a reencarnação diária da feira nas ruas da cidade, no trabalho
de milhares de homens, mulheres, crianças, idosos que continuaram a vender frutas e verduras em
esquinas, becos e calçadas diariamente, durante todo o período posterior à construção do
mercado
86
. É comum em Feira topar com vendedores e vendedoras informais
87
de todo tipo de
mercadoria, inclusive de alimentos. ainda uma série de elementos da história dos
trabalhadores da feira, nesta mesma conjuntura tratada pelo referido antropólogo, que ainda estão
ocultados na propaganda de organização, do progresso e da limpeza do centro urbano feirense
como divisão de águas da economia da cidade. As justificativas disseminadas pela imprensa
naquele período estavam permeadas de projetos de partidos políticos de demonstrarem-se os
agentes de grandes marcos na cidade
88
. Entre estes propósitos, a visão dos feirantes e o que vem a
se tornar o CAF depois, há vários interesses em jogo.
Os motivos que impeliram a saída da feira do seu local de formação são correlacionados
ao aumento das ações de urbanização da cidade
89
, e a uma utopia civilizadora que almejava ares
industriais para a Princesa do Sertão
90
, como também em interesses da Associação Comercial de
Feira de Santana:
Para eles, o mundo perfeito seria a feira longe do centro e os consumidores em número
cada vez maior e cada vez mais perto de suas lojas.(...) Se querer fosse, necessariamente
_____________
86
MOREIRA, Vicente. Op. cit. 2001.
87
O informal e a informalidade foram mais demarcados no Brasil após os anos 1950.
88
Tive a oportunidade de revisar na bibliografia sobre Feira de Santana, a importância do mercado na consolidação do valor
comercial dos principais cruzamentos de ruas da cidade. PENELU, Larissa. OP. Cit. 2008. A feira livre não era apenas o local
privilegiado para as trocas, abastecimento e provimento da sobrevivência dos sujeitos subalternizados na cidade, mas também foi,
por um longo período de sua história, o próprio comércio feirense, rodeada por casas comerciais atacadistas e de varejo. A
conjuntura de alteração nos planos para o centro urbano, de acordo com as atividades que agora se inseriam na economia local (a
exemplo do parque industrial e do comércio de varejo sob moldes sulistas) foi constituída também de controvérsias sobre qual
seria o lugar das “atividades tradicionais” nos novos projetos.
89
FREITAS, Nacelice Barbosa. Urbanização em Feira de Santana. -Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo
Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1998.
90
SANTOS, Alane Carvalho. Feira de Santana nos tempos da modernidade: O sonho da industrialização. Dissertação de
Mestrado. Salvador: UFBA, 2002.
56
poder, num dia os comerciantes comemorariam a morte da feira, e, no dia seguinte, a
multidão ávida por consumir os produtos de suas lojas
91
.
Alessandra Araújo tem uma leitura de que o equipamento público, que objetivava
consolidar Feira de Santana como pólo comercial de alimentos, trouxe consigo intenções
modernizadoras nacionais:
A administração municipal, considerando o discurso modernizador pregado pelas
lideranças nacionais, regionais e locais, além dos comerciantes interessados na retirada
da feira livre do centro urbano da cidade, acata a justificativa de que esta precisa se
modernizar, para ter um maior crescimento econômico
92
.
Sugerimos que as ações focadas no Centro de Abastecimento podem ter se destinado à
atualização de tradições locais, no sentido de que as atividades comerciais que deram fama à
Feira de Santana foram tomadas como ponto de partida para a justificativa da mudança no
comércio. Os textos da imprensa são indícios destas relações, pois justificaram as origens
comerciais de Feira e alegaram a necessidade de que o mercado se tornasse adequado às
mudanças nas lojas e no mercado consumidor. O governo local procurou aproximar as formas de
trabalho da feira (que precisavam ser controladas) e a distribuição das mercadorias de modelos
em expansão na realidade nacional.
Seguindo este raciocínio, indícios de controvérsias tanto na saudade da feira antiga,
como na celebração de uma Feira de Santana nova, valendo questionar as mitificações que
circundam a memória do período. Em que aspectos Feira de Santana mudou?
1.2 – A feira como “bode expiatório” e as atualizações das tradições do mercado de
alimentos de Feira de Santana.
O destaque dos próximos parágrafos é a busca da relação da cidade e a economia
tradicional feirense com o CAF. A intenção de “exterminar” a feira, segundo Moreira, era
alimentada pelas ‘promessas’ imaginárias e reais de progresso, criadas e tidas como
‘milagrosas’ (o milagre brasileiro, paráfrase do milagre japonês) pelo projeto econômico
dos governantes militares a partir de 1964, baseado na supervalorização da
industrialização a santa do milagre (...) Assim mesmo, somente em inícios dos anos
70, com a criação do Projeto Cabana, os propósitos de acabar com a feira livre passaram
_____________
91
MOREIRA, Vicente. Op. cit. 2001, p. 27.
92
ARAÚJO, Alessandra. Redes de centralidade em Feira de Santana (BA) O centro de abastecimento e o comércio de feijão.
Salvador – Bahia: 2006, p. 52.
57
a adquirir efeitos práticos: a construção do Centro de Abastecimento e a mudança dos
feirantes para este equipamento
93
.
As investidas dos governos municipais anteriores na transformação da zona urbana
feirense também estiveram próximas dos programas nacionais de modernização do mercado de
alimentos. Para os governos militares, Feira de Santana era um ponto estratégico de aplicação de
recursos e os empresários locais potencializavam as características comerciais feirenses em busca
de mais investimentos. Esta estratégia teve destaque nos primeiros anos de atuação dos governos
Arenistas em Feira
94
, quando ficou explícita a investida dos prefeitos em assumir as demandas da
frente partidária para o Nordeste. Mais do que exterminar a feira e erradicar os elementos
indesejados de uma cultura popular de compra, venda e prática do centro da cidade, o Projeto
Cabana, de 1968, sistematizava elementos que atrelassem mais proveitosamente para o mercado
atacadista a produção do campo ao comércio e a indústria.
Também por este motivo, podemos nos questionar se o marco do “fim da feira” diz
respeito ao conjunto mercado livre como elemento central da economia da cidade. O destaque da
economia feirense com relação à circulação de alimentos regional, e mesmo nacional,
permaneceu forte, mesmo após a construção do Centro de Abastecimento, assunto do trabalho de
Alessandra Araújo, que viu no Projeto Cabana um destaque para os comerciantes atacadistas e
trânsito dos veículos que os abasteciam. Para ela,
o CAF vai contribuir para a tentativa de estruturar a feira nos moldes de um grande
comércio atacadista-varejista (...) A relação urbano-rural ocorrida no Município vem
ratificar a importância das atividades agrícolas na construção do espaço urbano,
comprovando que o vínculo entre estes fortalece a possibilidade de crescimento
econômico
95
.
A meta de empreender um outro ritmo para os negócios trouxe possibilidades de
manutenção do comércio de alimentos de grande porte com uma locação espacial aliada à
retirada dos pequenos feirantes da rua. Seu desígnio não era findar a feira inteira, mas sim, os
elementos de sua existência que não se acoplavam ao circuito almejado. Ou seja, o comércio dos
ambulantes estacionados: vendedores e vendedoras que se fixaram em locais (esquinas, becos,
praças) do centro urbano e ali se estabeleceram (com seus negócios, suas redes de amizade e
laços cotidianos que proviam relações de trabalho como pequenos comerciantes, suas freguesias).
_____________
93
MOREIRA, Vicente. Op. cit, 2001, p. 24.
94
Joselito Amorim, João Durval Carneiro, 1964-1967/ 1967-1971.
95
ARAÚJO, Alessandra. Op. cit., 2006, p. 54,55.
58
Tais pessoas se comportavam como sujeitos que acreditavam possuir por direito, justamente
sustentado nos seus costumes, utilizar as ruas para comércio e, no olhar do Projeto Cabana,
permanecer, estrangulando as outras atividades comerciais e o trânsito de veículos. Como os
projetos não constroem os espaços, este demorou quase dez anos para dar o seu passo
fundamental (Centro de Abastecimento) mediante passos vagarosos a serem tomados com relação
à sociedade feirense.
Menos de dez anos depois de sua construção, o Centro de Abastecimento passou por uma
avaliação por parte de equipe da SUDENE. De acordo com os objetivos de empreendimento do
local, pesquisadores avaliaram que as principais metas passaram longe de ser cumpridas nas
primeiras ações nela realizadas.
Em 1977 inaugurou-se a Central de Abastecimento de Feira de Santana (CAF), ligada à
Prefeitura Municipal, objetivando (a) atrair e integrar os produtores rurais à economia de
mercado; (b) regularizar a oferta de alimentos; (c) eliminar os intermediários; (d)
solucionar os problemas de trânsito causados pela localização da antiga feira no centro
da cidade e (f) dar aos feirantes condições mais higiênicas de trabalho
96
.
Os negócios atacadistas, antes do CAF, também entraram em atrito com a circulação de
veículos. A carga e descarga de alimentos para os diversos armazéns de secos e molhados
espalhados nas ruas centrais também foi acusada de desordenar a passagem dos automóveis.Em
geral, o que precisava ser feito, segundo o Projeto, era uma organização de todo o mercado
alimentício, para subsidiar, sobretudo, supermercados e a distribuição em atacado. Assim poder-
se-ia dar continuidade às atividades que tradicionalmente consagraram Feira como entreposto
comercial, sem que para tanto, incomodassem o privilégio do uso do centro da cidade pelo
comércio lojista e pelo trânsito.
Na leitura de Milton Santos,
há, de um lado, uma economia explicitamente globalizada, produzida de cima, e, um
setor produzido de baixo, que nos paises pobres, é um setor popular e, nos paises ricos,
inclui os setores desprivilegiados da sociedade, incluídos os imigrantes. Cada qual é
responsável pela instalação, dentro das cidades, de divisões de trabalho típicas. Em todos
os casos, a cidade é um grande sistema, produto de superposição de subsitemas diversos
de cooperação, que criam outros tantos sistemas de solidariedade. Nas atuais condições
de globalização, todos esses subcírculos ou subsistemas de solidariedades tendem a
especializações que não tem a mesma natureza. Pode-se também, dizer que há uma
especialização de atividades por cima e uma especialização de atividades por baixo. Mas
_____________
96
MELO E SILVA, Sylvio C. Bandeira. SILVA, Bárbara. LEÃO, Sônia de Oliveira.1985, op. cit., p. 268.
59
a primeira é rígida, dependente de normas implacáveis, de cuja obediência depende sua
eficácia
97
.
As duas realidades, atacado e varejo não estão estanques e separadas, mas
interconectadas.
Repetimos aqui uma questão quantitativa de significado e já formulada por Vicente
Moreira: Quem são os feirantes cadastrados a operar no CAF? Sigamos algumas pistas. Pelos
dados de pesquisa realizada pela SUDENE, a feira do Centro seria a mesma feira do antigo local,
pois, dado que, feita a pesquisa em 1983, a maioria absoluta dos feirantes tinha mais de cinco
anos de trabalho de feira e reproduziam ali uma realidade de origem e emprego existente nas
ruas. De um total de 5384 feirantes, foram selecionados os 1158 que se candidataram a uma vaga
no CAF, dados que:
67 % eram homens
33 % eram mulheres
26,4 % eram agricultores
31,8 % já eram comerciantes
39,2 % exerciam profissões as mais variadas possíveis (doméstica, técnico, estudante,
operário, lavadeira, funcionário, motorista, artesão e outros, considerando que
contabilizaram o total de feirantes entre atacadistas e varejistas)
Para os pesquisadores, o CAF conseguiu trazer para seu espaço aquela feira livre antes
feita nas ruas, sendo que os objetivos de eliminação dos intermediários não foram alcançados,
pois boa parte das pessoas que comercializavam viviam da economia da cidade em outras formas
de emprego e renda e permaneciam como “atravessadores” das mercadorias.
PROFISSÃO ANTERIOR DOS FEIRANTES
PROFISSÃO TOTAL DE FEIRANTES
%
COMERCIANTE 368
31,8
AGRICULTOR 306
26,4
DOMÉSTICA 172
14,9
TÉCNICO 104
9,0
ESTUDANTE 54
4,7
OPERÁRIO 40
3,4
_____________
97
SANTOS, Milton. Op. cit. 1996, p. 260.
60
COMERCIÁRIO 30
2,6
LAVADEIRA 17
1,5
FUNCIONÁRIO 15
1,3
MORTORISTA 14
1,2
ARTESÃO 4
0,3
OUTROS 4
0,3
SEM INFORMAÇÃO 30
2,6
TOTAL 1158
100,0
O cruzamento de experiências de homens e mulheres moradores da cidade com o
cotidiano daqueles trabalhadores “da roça”, em algum sentido fez com que superassem questões
de sobrevivência no centro da cidade juntos. O que veio a ocorrer especialmente após medidas
como o Centro de Abastecimento. A disputa por manutenção de seus postos de venda e a
negociação com seus fregueses gerou situações deste tipo
98
. Assim aprenderam a criar estratégias
para lidar com a sua própria reprodução enquanto vendedores no centro da cidade, de outros modos, em
outros locais e em diálogo com novos agentes, o que inspira relações de aproximação entre supostos
concorrentes.
Em outro âmbito, notamos indícios de relações de interdependência das atividades
comerciais pequenas e médias quando houve por parte do comércio dos supermercados e do
comércio de maior porte de alimentos com relação às vendas a retalho das feiras uma relação de
apropriações. Podemos dizer que as redes de supermercados precisaram lidar com uma série de
elementos de consumo e de cultura de vendas no centro da cidade, porque era preciso dialogar
com práticas da feira para escolher os melhores locais para se instalar e estabelecer a arrumação
de suas lojas. O hábito da compra nos supermercados e fazer a feira do mês continuou conjugado
com a compra na feira semanal, de bairros e mesmo no CAF, das frutas e das verduras, ou carnes,
que precisam ser repostas com mais freqüência na dispensa doméstica. Também, a frieza do
espaço não deixou de lado as apropriações da funcionalidade da organização dos mercados livres,
originalmente criadores da divisão das mercadorias por setor.
Num estudo de construção de instalações para o mercado central de Belo Horizonte, antes
uma feira livre, Beatriz Filgueiras defende que o novo espaço não permitiu negociações de
diferenças ao modo tradicional. Apesar disto, percebe que, mesmo os grandes hipermercados,
_____________
98
As aproximações mostraram correlações de interesses entre vendedores da cidade e lavradores, muitas vezes respaldadas pelos
sentimentos de que o outro é igual, ou pelo menos, torna-se igual quando precisa disputar um local para trabalho nas calçadas.
61
encontraram como referência práticas de vendas das feiras de alimentos
99
. Este seria um lado
bastante presente na relação entre as feiras livres e os supermercados em todo país, e não foi
diferente em Feira de Santana, especialmente por conta da presença mais incisiva de uma “cultura
de feira” vinculada a existência daquela feira no centro. Encontramos muitas vezes uma espécie
de simbiose entre o supermercado e a presença do negócio de rua em suas calçadas. O padrão de
higiene imposto com a chegada dos supermercados Mendonça (1978) na rua Marechal Deodoro
incidiu sobre as vendas dos pequenos vendedores nas ruas, mas estes não deixaram de vender
tomates, alfaces, batatas, cenouras e outros alimentos em frente ao terreno de sua instalação. O
que não retira o caráter excludente desta nova relação.
Araújo
100
fez uma avaliação sobre, de que maneira o Centro de Abastecimento
consolidou, nos anos 1990, uma importante rede de vendas do feijão, num mercado regulador
de preços, estando então numa estratégica área da cidade
101
. A pesquisadora aplicou
questionários a mais de 30 vendedores atacadistas. Entre outros, destaca que o Centro veio a
atender a demanda destes comerciantes maiores. A convivência destes com vendedores de menor
porte é cheia de trocas de favores, relações de aproximação e pequenos conflitos de interesses.
Por um lado, o dia de maior movimentação na vendagem do feijão é atualmente segunda-feira,
quando muitos atravessadores compram-lhes sacas de feijão para abastecer o consumo local,
com carros de mão que não necessariamente passaram pelo controle que fora estabelecido no
Centro, sem pagar taxas pelo uso do espaço do mesmo, coisa que fazem os atacadistas. Os
distribuidores, em sua maioria, são jovens e adolescentes que encontram como alternativa de
trabalho na cidade a vendagem consignada dos produtos. Maria Celsa, lavradora do distrito de
Maria Quitéria, percebeu a mudança, mas parece compreender a necessidade de trabalho dos
outros feirantes.
É... os vendedores vinham da roça... era mais da roça...
O vendedor era mais da roça e hoje em dia está sendo mais daqui da cidade mesmo.
Porque tem tanto homem, tanto menino... aí, tudo nos carrinhos de mão trabalhando. E
antigamente não tinha. Da roça não vinha nenhum deles vender... só vinha era mulher...é
que vinha da roça vender. Hoje em dia não. Ta normalizado: é os homem, é menino, é
_____________
99
Filgueiras, Beatriz Silva Castro. DO MERCADO POPULAR AO ESPAÇO DE VITALIDADE: O MERCADO CENTRAL DE
BELO HORIZONTE. Disertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional. UFRJ – Rio de Janeiro: 2006.
100
ARAUJO, Alessandra. Op. cit. 2006.
101
O Centro de Abastecimento foi construído numa depressão do relevo de Feira de Santana e os acessos ao local era tido como
um acesso dificultoso para pedestres e carroças que partiam da Avenida Getulio Vargas em sua direção, por entre estreitas vielas e
longas ladeiras ( a conhecida “ladeira do Centro”). Contudo, para caminhões e veículos de maior porte vindos de fora, o acesso
era facilitado pela saída para a Avenida de Canal, próxima a saídas para a BR 116 e 324. anexo 4.
62
mulher, é tudo! Com os carrinhos de mão aí...trabalhando. Juntou a falta do desemprego
pronto! E acha a mercadoria... muitas vezes, você chega no centro, faz amizade com
aquelas pessoas, vende a mercadoria hoje a dinheiro, amanhã você chega e paga
direitinho, você vende fiado. já vão vender. Vender e tornar chegar e pagar a eles
de novo. Aí pronto, multiplicou os trabalhadores
102
.
A distribuição tornara-se mais complexa. Como a produção vem sendo feita cada vez
mais em grandes áreas produtoras, especializadas neste tipo de abastecimento, diminui o número
dos raros feirantes que trazem o produto de suas pequenas roças
103
.
O acesso ao Centro de Abastecimento, em 1977, contou com a instalação de entradas para
caminhões atacadistas e esta redefinição veio a salientar o atendimento dos fluxos maiores de
mercadorias, em detrimento do pequeno negociante. Os sujeitos que realizavam este comércio
encontraram outras formas de se reinventar no mercado.
1.3 – O Centro de Abastecimento e a retomada dos negócios de rua.
O retorno dos feirantes para as ruas foi um acontecimento que pareceu surpreender a
imprensa e autoridades públicas. Os elementos que serviram de suporte para que os trabalhadores
da feira a reinventassem demonstram versões sobre como deveria ser o uso do solo urbano do
centro feirense. Articulações coletivas e saídas pessoais para reagir à situação foram realizadas no
momento em que a atividade que fundamentou as relações sociais de seu núcleo urbano foi
adjetivada de “velha”. Muitos feirantes procuraram assegurar suas trocas nos mesmos lugares
onde comercializavam. Outros grupos estabeleceram pontos diferentes. Pessoas, como Dona
Tenícia, passaram algum tempo no CAF e depois retornaram às ruas:
Sim quando começou a tirar, eu não sei que ano foi o que eu sei é que começou e tirou
todo mundo daqui lá para o centro. Eu vendia no centro, daqui eu fui no centro e
no centro, quando começou a organizar... eu tornei a voltar pra aqui. E eu já vendia na
Marechal (...)
E aí o meu negócio continua é aqui. Eu trabalhava o dia todo na roça, na enxada, e ainda
de madrugada vinha aqui pra feira
104
.
_____________
102
Entrevista com Maria Celsa. 39 anos. Setembro de 2008.
103
ARAUJO, Alessandra. Op. cit. 2006.
104
Entrevista com Tenícia, 68 anos. Mora na Fazenda Casa Nova, distrito de Maria Quitéria, apresentou-me a outras pessoas que
vendem o mesmo que ela e localizou muitas pessoas na feira antiga que como ela, permanecem negociando seus territórios de
venda pelo centro. Ela é uma daquelas vendedoras que trazem da roça o que for possível, dependendo da estação do ano, da
colheita. Junto com outras mulheres vende feijão de corda e frutas colhidas em sua roça. Consegue levantar nomes de pessoas que
muitos anos são seus consumidores e tem uma visualização de todas as mudanças que aconteceram na Praça do Comércio
63
O seu ponto de vendas está localizado na Praça da Bandeira, antiga Praça do Comércio,
cruzamento entre a Avenida Getúlio Vargas e a Rua Marechal Deodoro, defronte ao local onde se
instalava o Mercado de Carne (ou Mercado Municipal), hoje Mercado de Artes, onde são
vendidos produtos artesanais. Dona Tenícia, com base na experiência de anos de vendas no
mesmo lugar, juntamente com lembranças erguidas ao lado de outros companheiros de trabalho
na roça, justifica sua volta para o local. Alega o reconhecimento da parte de consumidores e de
lojistas da legitimidade da realização do seu pequeno comércio na calçada, considerado o seu
tempo de trabalho e a sua relação com a freguesia. A entrevista foi realizada no horário de
trabalho. Na ocasião, era possível observar as pessoas que passavam e a cumprimentavam.
Pessoas idosas, donas de casa, lavradores e consumidores; famílias inteiras que lhe pediam que
guardasse utensílios comprados no comércio da cidade, enquanto terminavam de fazer a feira. A
idade lhe impedia que lembrasse de uma ou outra pessoa, mas sempre com muito boa vontade,
atendia aos pedidos. Seu ponto fica em frente a uma loja, na calçada. Usa um banquinho para
sentar-se a observar seus caixotes de madeira com os produtos. Numa das vezes em que a
entrevistei, vendia castanhas e mangas. Já em outra estação do ano, numa segunda entrevista,
vendia igualmente castanhas, segundo ela, agora compradas com fornecedores, e não assadas em
sua roça, e vendia também carambolas. Os vendedores da loja se aproximaram para ouvir o seu
relato:
A gente chegava cedo, ninguém chegava primeiro do que a gente! A gente chegava e
ficava naquele lugarzinho bem ali. Ninguém barrava o lugar da gente porque todo
mundo já sabia que a gente vendia ali. Se a gente vendia ali então quando eu chegava
meu lugar tava disponível. É igualmente aqui ó. Quando eu cheguei aqui, eu pedi ao
dono dessa loja aqui (que cada tempo muda né?) eu pedi, muitos anos eu trabalho
aqui” aí ele falou a senhora pode ficar aí; Pronto. Fiquei aqui, ninguém me bole aqui
105
.
Como era de costume, alguns vendedores guardavam mercadorias, barracas, lonas e
diversos apetrechos dentro das lojas dos comerciantes com os quais negociavam o uso da calçada.
Através destas trocas, a negociação da convivência entre feirantes e lojistas não se findou em
1977 e entrou numa nova fase.
Assim como ela, num outro ponto da cidade, próximo à outra extremidade de extensão
do mercado na Getúlio Vargas, fica o Sr. José Santos. Em sua entrevista, nos falou sobre o fato
desde sua chegada ali. Contou sobre o trabalho de filhos e esposo. Este encontrando trabalho para além de suas terras fazendo
bicos nas fazendas em trabalho de colheitas de maior porte ou com o trato de gado. Depoimento gravado em 25 de março de 2008.
105
Depoimento de TEnícia, Op. cit.
64
de não ter sido incomodado por sujeitos que possuíam lugar consagrado na Avenida, como se
estes tivessem reconhecido os seus direitos de ali trabalhar.
Ninguém reclamava. Pois eu assei milho na frente da clínica de doutor Nilson. Eu acho
que você não lembra, mas sua mãe, seu pai, deve lembrar que era lá na frente e hoje ...
com pouco tempo que eu assava milho mais minha esposa e meu menino, aquele ali, e
tudo que eu tenho foi dado dali daquela feira na frente da clínica de Seu Nilton, que
Jesus muitos anos de vida a ele, o filho e a esposa. Nunca me reclamou. Então tudo
que eu tenho foi dado de lá. Aí eu cheguei no poste abracei o poste e beijei o poste. Feito
doido. Pronto, aí ninguém nunca reclamou a feira aqui não
106
.
Temos aqui dois casos de pessoas que hoje realizam seu trabalho em pontos isolados pelas
ruas de Feira. Aqui, ali, mantiveram a saudade de companheiros que se deslocaram para o Centro
e para outras feiras de bairro e tracejam através das suas memórias cada ponto das pequenas
feiras que ocorriam dentro da grande feira, contando sobre sua labuta cotidiana pela
sobrevivência. Orgulham-se do ar de autonomia que lhes é atribuído por possuírem seus
pequenos negócios, se percebendo por um lado como comerciantes e identificando-se ao mesmo
tempo como trabalhadores. É com esta forma de ganho que muitos homens e mulheres sustentam
famílias inteiras ou ajudam outras pessoas, complementando rendas ou fazendo da feira sua única
fonte de renda. Fazem questão de afirmar como contornaram os percalços da construção do
Centro de Abastecimento e as dificuldades ali encontradas para manutenção de seu trabalho. Para
eles, além de disputa pelo espaço feita por cada um, as pessoas à sua volta é que reconheceram o
lugar na rua principal do comércio feirense que alguns feirantes tinham
107
.
Para Beatriz Filgueiras
108
, no caso de Minas Gerais as subjetividades encontradas no
comércio do mercado de alimentos fizeram com que a venda ambulante prosseguisse com suas
características peculiares. Acreditamos que o conhecimento de freguesias e as trajetórias que cada
um construiu no mercado forneceram elementos de reprodução desta forma de comércio. Ao
pensar o caso específico de uma cidade que criou importantes tradições ligadas com a feira
central no passado, a ininterrupção de boa parte de sua organização mesmo sob a pecha da
ilegalidade e da proibição – pode confirmar esta leitura.
Houve interdependência dos lojistas com pequenos negócios e com as regras internas da
movimentação comercial da cidade inseparável da feira, quando lojas reconheceram que alguns
_____________
106
Depoimento de José Santos, 69 anos. Op. cit.
107
Pedimos desculpas ao leitor se estas conclusões são tiradas sem que possamos citar os entrevistados, pois são impressões
extraídas de conversas que precederam a gravação das entrevistas.
108
FILGUEIRAS, Beatriz. Op. cit. 2006. Importante ressaltar que a tese da autora é da área de urbanismo.
65
feirantes, ao permanecer em seus locais de venda após muitos anos de trabalho, manteriam a
freguesia e o movimento nas calçadas. As redes interpessoais se faziam presentes no fato de que,
a fidelidade do comprador garante um ponto fixo de encontro, em relações que vieram a se
manter após as mudanças espaciais da cidade e interessariam também aos lojistas.
No ano de 1977, a propaganda da ruptura deixava por vezes de mostrar as dimensões de
uma feira que caminhava muito com alterações em sua realização, em tempo que retratava
Feira de Santana como cidade que teria superado sua fase de comércio de alimentos. Nos dias
atuais, a visão de uma outra Feira de Santana agora sem a feira no centro é trazida por Adnil
Falcão:
1980... Feira de Santana, com seus 291.506 habitantes dos quais 233.617 alojados na
sede já se transformara em cidade industrial e universitária. Perdera o seu encanto
bucólico. Os velhos casarões, que haviam contribuído para lhe dar ares de princesa,
quase desapareceram. O centro, tomado pelo comércio, “moderniza-se”. A feira-livre,
transferida para um vistoso Centro de Abastecimento. Um novo complexo Campo de
Gado, fora do perímetro urbano, havia sido construído ara abrigar o comercio do boi em
pé. A rede de esgotos sanitários e pluviais, enfim, iniciada. O Mercado Municipal,
restaurado, tornara-se Mercado de Arte Popular. A cadeia pública transmudara-se em
Câmara Municipal. Instalaram-se em Calçadão, na rua Sales Barbosa e um
Camelodromo, na Praça Presidente Médici – o Feiraguai
109
.
Em 1978, insistimos, a surpresa da imprensa com a falta da organização do Centro de
Abastecimento, é constante
110
. O vai e vem nas vias de circulação internas do CAF não
funcionava conforme o projetado, passando a adequar-se, pouco a pouco, às inúmeras
necessidades comerciais dos feirantes. Os vendedores e vendedoras se agregavam uns aos outros
a partir do tipo de mercadoria que vendiam, da busca da facilitação de acesso para os fregueses
dentro do Centro e motivos outros que não os da administração. A espacialização da feira era
diferenciada e se dava por uma infinidade de fatores que não se resumiam simplesmente à
projeção do Centro. Havia espaços, por assim dizer; especializados na velha feira. E os
fregueses bem o sabiam e o aprovavam por uma questão de praticidade, de comodidade (...)
111
.
Muitas práticas foram trazidas para o espaço programado do mercado oficial e reelaboradas nesta
realidade, mais marcadamente no local destinado à disposição da feira livre de
hortifrutigranjeiros, realizada pelos pequenos comerciantes. De acordo com o Projeto Cabana,
este ambiente foi divididos em dimensões diferenciadas, é claro, do espaço para os atacadistas e
_____________
109
FALCÃO, Adnil, Memórias de Newton Facão. Feira de Santana: 2007. p. 169.
110
Centro de Abastecimento em desorganização interna (Feira Hoje, 23 de fevereiro de 1978).
111
MOREIRA, Vicente. Op. cit. 2001, p. 3.
66
para se dirigiram as queixas dos feirantes atacadistas quanto a uma desorganização
112
. Ora, o
que se constatou da realidade do CAF, na perspectiva de Araújo, é que “a antiga feira livre,
origem comercial da cidade, determinou regras tão fortes, que mesmo passadas mais de duas
décadas, os comerciantes, que utilizam o espaço do CA se transformaram de acordo com suas
necessidades, ao invés de adequar-se a ele.
113
. Isto quer dizer também que o controle do
mercado pelos atacadistas vinha a se reproduzir no CAF sob outras roupagens.
Os feirantes de baganas se depararam, em outras circunstâncias, com o controle do espaço
central da cidade como justificativa para o cerceamento de suas atividades. A mudança de local
de vendas, por exemplo, fez parte do cotidiano dos feirantes em momentos antecedentes ao CAF
e algumas pessoas refizeram, em 1977, suas rotinas de trabalho nas ruas e no Centro.
Eu cheguei aqui no dia 1 de Agosto de 1970. O que eu trouxe pra aqui foi minha
esposa e o menino, o fogão e uma lata de carvão e uma lona pra dormir. Ficava aqui na
Getúlio Vargas. Quando eu cheguei aqui, foi assando milho e o ponto era lá... ali por
baixo, em frente à clínica de doutor Nilson, ali eu fiquei os dias que eu tava assando
aquele milho na frente da clínica de doutor Nilson, entendeu? Quando terminava o
milho, eu trabalhava no carrinho de mão. (...) A maioria quando mudou pra lá, a maioria
reclamou, o pessoal reclamava, ainda hoje tem gente que vivo e que teimou que era
aquilo, que hoje não tem mais negócio, mas eu, graças a Deus, o meu negócio é o meu
carrinho de mão
114
.
É... comecei a vender, em 1962... em 1962... eu comecei a barraca aqui... mas minha
barraca era... comecei na Rua do Sol. Da rua do Sol, fui pra Getúlio Vargas... da Getúlio
Vargas fui pra frente da prefeitura..., da frente da Prefeitura vendi na Praça da Bandeira.
Ali onde era o mercado velho...
115
.
A lembrança que eu tenho de lá, que a gente vendia era.... a gente começou era
no mercado Municipal que hoje é o Mercado de Arte. E ali eu trabalhei bem perto de
onde é o hospital EMEC. Dali, a gente retornou... dali a gente saiu e veio pra Estação
Nova
116
.
_____________
112
Ata da Associação dos Feirantes das Feiras Livres de Feira de Santana, 1991.
113
ARAUJO, Alessandra. Op. cit. 2006, p.117.
114
Apresentaremos um dos nossos colaboradores. O Sr. José Santos trabalha na Av. Getúlio Vargas desde 1970. Migrante,
chegou com a esposa e aqui começou a trabalhar como feirante na rua. Segundo ele, continuou no local porque procurou por Sr.
Newton, que ainda não sei direito quem seja especificamente (há alguns Newtons e Niltons importantes em Feira). Ele é bastante
rancoroso com a reação de alguns amigos que deixaram de ser feirantes ou que na época da transferência para o Centro reagiram
às medidas da prefeitura. Encontra apoio em políticos locais desde sua chegada, segundo ele. uma relação de busca de
protecionismo. Ele relata a história de um ex companheiro de feira, Sr. Zequinha, que hoje é vigilante e reagiu negativamente as
mudanças, e, segundo ele, abandonou o trabalho na feira depois de algumas contendas com fiscais e pessoas que conseguiram
permanecer nos locais de venda. Sua história traz informações de experiências trocadas no cotidiano da feira e da chegada de
mudanças no comércio, como o horário de fechamento das lojas que os feirantes tiveram de acompanhar. Apesar de certa
melancolia na sua fala, se apresenta como alguém ordeiro e a favor da organização do comércio, elemento de sua fala que se poe
em diálogo com as especificidades vividas por um outro grupo de feirantes que se negaram a ficar no Centro de Abastecimento
disputando espaço e não tiveram um ponto fixo mantido na principal avenida da cidade.
115
MOREIRA, Vicente. Op. cit. 2001.
116
Junto com Sr. Cláudio outras pessoas em condições bastante semelhantes à dele: trabalhadores rurais que vendem seus
produtos no mercado da Estação Nova, relativamente distante do centro da cidade. Muitos se apresentam como feirantes da
67
Alguns artifícios garantiram este trânsito dos feirantes ao longo de tantos anos, e na
década de 1980, nota-se a presença mais constante do uso dos carros de mão e de tabuleiros
móveis nas reportagens que mencionam seu trabalho. Para conviver com uma realidade nova de
fiscalização, era comum que os pontos de venda não fossem mais fixos. Conjugada ao fator fuga,
os moleques da feira, ali presentes há muito tempo, estendiam o papel de carregadores e
auxiliares no comércio para o de vendedores que, trabalhando para barraqueiros fixos, burlavam
os fiscais mudando de um local para outro com quantidades menores de mercadorias de uma
esquina para outra
117
. A insatisfação com o comércio locado no CAF gerou as práticas de uso de
bacias e vasilhames com tomates, cebolas e frutas, carregados até os fregueses, em locais mais
centrais da cidade, como pontos de ônibus. Mas estas não eram as principais formas de
manterem-se no comércio de rua. O negócio permitido não era o necessário para grupos
diferentes de feirantes. A motivação, a maneira como cavaram justificativas para realizar a
atividade, revela importantes características políticas de negociação do solo urbano na cidade e
expõe ainda o passado feirante de Feira de Santana. Por outro lado, o fato de não ser permitida a
feira, promove uma brecha para negociações sub-reptícias do centro urbano e coloca na disputa a
troca de favores nas eleições.
Sabemos que o jogo de perseguição ou vistas-grossas feito pelas fiscalizações são
conhecidos não em Feira e muito menos apenas pelos feirantes de alimentos. O crescimento
das formas de trabalho urbano não oficiais trouxe artimanhas inventadas pelas pessoas que destes
mercados sobreviviam em todo o país
118
. Em Feira, inclusive, o comércio de produtos
clandestinos fabricados na China e distribuídos principalmente no Paraguai veio à tona como uma
das características do comércio ambulante de Feira de Santana, tornando-se inclusive o feiraguai
um ponto turístico, onde bancas foram estabelecidas mediante o aval da Prefeitura Municipal nos
anos 1990.
Também destacamos, nesta conjuntura após criação de uma nova disciplina nas vendas,
um maior desenvolvimento de feiras de bairro. Instituídas pelo Prefeito Arnold Silva em 1960, as
feiras passaram a ser a alternativa mais popular de compra e venda, com produtos mais baratos
“antiga feira” e se dispuseram para conversar. O contato tornou-se um tanto dificultado por conta da distância de moradia da
maioria: fazendas da região, onde é possível encontrá-los ocupados no campo, quando não estão em Feira. Procuro nestes
diálogos fazer com que externem fatos ocorridos e que parecem esconder, quando eu os pergunto sobre lembranças e conflitos,
sobre a história de suas vidas ali. Tímidos, preferem sorrir e dizer que não querem se comprometer, relatando apenas o orgulho de
sua labuta semanal ou mostrar que conheciam a arquitetura da feira, descrevendo seus espaços. Depoimento de Cláudio Araújo
Santana, 67 anos, Outubro de 2007.
117
Depoimento de José Carlos, Op. cit.
118
TELLES, Vera da Silva. Mutações do Trabalho e experiência urbana. Revista Tempo Social. v.18 n.1 São Paulo, jun. 2006.
68
em relação às grandes redes de supermercados. Além disto, os próprios moradores de áreas
distantes do centro exigiam feiras mais próximas, para que suas compras semanais fossem mais
cômodas, como foi o caso do conjunto João Marinho Falcão, onde o presidente da associação de
moradores revelou: devido à distância do João Marinho Falcão do Centro de Abastecimento e da
feira livre do largo do Tomba, toda a população do bairro está querendo uma feira livre
semanalmante
119
. Após a construção do CAF, as feiras de bairro tornaram-se pontos de venda
mais cheios do que o próprio, sendo inclusive freqüentado por muitas pessoas que possuíam
pontos no CAF.
1.4 - Expectativas após mudanças nas regras do jogo: a atuação do poder executivo.
Com o advento dos modernos hipermercados, os comerciantes do ramo, em Feira de
Santana, estavam mais preocupados em aprender a estocar, remarcar preços, como a associar o
seu capital a investimentos maiores para não serem engolidos. Na coluna Informações e Negócios
foi possível acompanhar algumas dicas feitas por comerciantes feirenses de como se aproximar
de uma sociedade anônima sem grandes perdas ou de como alterar constantemente o valor do
produto sem parecer injusto (num contexto inflacionário)
120
. Não no ramo de alimentos, é
claro, as casas comerciais lidavam com outro modelo de oferta e procura. Incapazes de conseguir
estocar grandes quantidades de produtos, algumas lojas se associaram para comprar em maiores
quantidades e depois dividirem lotes de mercadorias para conseguir concorrer com os preços das
grandes lojas
121
recém chegadas.
Destacamos da década de 1970 o ano de 1978, quando chegou em Feira o primeiro
hipermercado da Bahia (pelo menos assim anunciado em jornal impresso), filial do grupo
sergipano Paes Mendonça. A propaganda daquele mercado apresentava confortos para as
compras nunca antes vistos ali e avançavam cada vez mais sobre os modelos de compra e venda
antes praticados.
Imagine uma loja, bonita por fora e por dentro, prática, confortável, onde exista tudo o
que você possa desejar. Assim é o Hiper Mendonça, a nova unidade de Mendonça
Supermercados. Imagine seções e mais seções com milhares de artigos à sua escolha,
_____________
119
Moradores do João Marinho Falcão vão reivindicar uma feira livre. Feira Hoje, 26/02/1980.
120
Jornal Feira Hoje entre os anos de 1979 e 1981.
121
Cadeia de Lojas para enfrentar as grandes. Feira Hoje, 04/04/1978.
69
onde você possa servir-se de uma espetacular padaria, rotisserie, lanchonete, carne
verde, frutas e verduras... até confecções, utilidades par o lar e eletrodomésticos (...)
122
.
Ao contrário das comemorações para com o novo Hipermercado, o Centro de
Abastecimento iniciou a década de 1980 envolto em inúmeras queixas vindas de todos os lados e
publicadas na imprensa, sendo pauta constante na Câmara Municipal
123
. Além das acusações de
sujeira, havia cobranças para que a prefeitura disponibilizasse transporte adequado para os
consumidores e promovesse a organização interna. A imprensa também noticiava constantemente
o local nas páginas policiais como ponto de bêbados e ladrões, devido às inúmeras barracas de
cachaça existentes ali e a facilidade de roubos que seriam causados pela falta de policiamento.
Autuados com freqüência pela fiscalização de pesos e medidas, os comerciantes do CAF
tornaram-se amostra da maneira como não deveria ser feito o comércio com balanças. Acusados
de lesar a bolsa dos consumidores da cidade
124
, os vendedores e vendedoras de farinha, feijão,
camarão tinham suas balanças e pesos confiscados freqüentemente.
O ano de 1980 parece ter sido ano crítico no comercio feirense. Era hora de avaliar uma
década inteira de investimentos e pensar em novas estratégias de fortalecimento do comércio
feirense. Vale acrescentar que, como incluímos como fonte o Jornal Feira hoje, fundado em 1970,
a década de avaliações correspondeu também a uma retrospectiva de 10 anos do jornal. Ao ser
convidada para avaliar a conjuntura, a Associação Comercial pressiona o Prefeito Colbert
Martins para que tomasse medidas de potencialização do mercado local, o que incluía fornecer a
devida condição para que o Centro de Abastecimento fosse um ponto privilegiado de compras e
vendas de alimentos. Assim, segundo aquela leitura, os feirantes se manteriam no espaço e estaria
fortalecido o turismo na cidade
125
.
Apesar da concorrência com os supermercados, o Centro de Abastecimento se mantinha
como referencial pra o controle de preços de alimentos (sendo mercado regulador oficial). Alguns
casos destacados na imprensa sobre a alta dos preços merecem análise e revelam mais das
expectativas de atuação da prefeitura, da fiscalização estadual e do governo federal. Em casos
diferentes, encontramos uma conjuntura em que os pequenos comerciantes requeriam da
prefeitura e do governo do estado um comportamento semelhante às fiscalizações passadas, e em
_____________
122
Propaganda de inauguração do Hipermercado Mendonça. Feira Hoje. 26/06/1978.
123
No sentido de que instalavam-se banheiros, azulejos e parte da infra-estrutura pouco a pouco no Centro de Abastecimento.
124
Comerciantes autuados com balanças irregulares. Feira Hoje, 30/03/1978.
125
Mercado é um perigo. Feira Hoje. 02/06/1978.
70
outro momento, a solicitação de controle dos preços. Em 1991, localizamos no jornal Feira Hoje
a seguinte matéria:
Atitude radical da receita revolta pequenos produtores: os pequenos produtores da região
de Feira de Santana estão revoltados com a fiscalização exagerada que afirmam estar
recebendo de agentes da Receita Estadual, os quais estariam exigindo a nota fiscal
referente e até mesmo um ou dois sacos de feijão no trajeto para o Centro de
Abastecimento. A produção, segundo dizem, não é suficiente nem mesmo para o
sustento da família. “comercializamos uma parte apenas para ter algum dinheiro” afirma
Francisco Moreira, do distrito de Maria Quitéria (...). Os produtores lembram que no
passado, este tipo de fiscalização acontecia uma vez ou outra, “mas agora, está demais.
houve tempo em que o governo nos permitia, diante da situação de quase miséria, o
transporte e comercialização de até 10 sacos”, lembra Almeida. Durval de Oliveira, do
distrito de JAGUARÁ, afirma ter sofrido a mesma situação: “Trouxe quatro sacos de
feijão para o Centro de Abastecimento, uma semana no intuito de vendê-los. Mas,
para conseguir isso, tive que me safar das garras do fisco. O pequeno é humilhado de
todas as maneiras”
126
.
O segundo caso de recorrência a protecionismos têm relação com medidas nacionais de
controle de preços de produtos em épocas de inflação, quando os governos locais precisaram
atuar notificando desvios de preços. Entre 1973 e 1974, a ação do ministério chefiado por Delfim
Neto no tabelamento de preços foi uma constante para a contenção das altas de preços. Carnes,
leite, verduras, pão, eram tabelados como forma de garantir uma equivalência nos mercados, o
que agradava de um lado os consumidores e também os próprios comerciantes de rua. Contudo,
com uma inflação incontida, os preços variavam e nem os mesmos saberiam a quanto vender
127
.
Por este motivo, o “deus” Delfim também era aclamado pela população feirense durante o
governo Collor. Regras de conduta passadas se redimensionavam na apropriação dos feirantes e
consumidores do mercado do Centro de Abastecimento no final dos anos 1980 e início dos 1990.
Nesse intermédio, podemos sugerir outras temporalidades nesta retomada ao passado.
Além da freguesia, algumas pessoas afirmaram continuar em certos locais de venda na rua por
motivações outras. Manutenção de uma forma de vida passada por gerações, falta de adequação
ao Centro de Abastecimento, deslocamentos e até mesmo relações delineadas entre os feirantes e
algumas lideranças do executivo pela negociação do uso do espaço público.
Na descida do Centro foi todo mundo mudado, agora depois foi que começou a subir.
Depois que eu subi e escalei a feira ali (...) agora quando eu subi ai foram começando a
vir. Eu saí do Centro foi porque se eu fico lá eu passo fome. Porque quando eu vendia 10
caixas de ovos, jogava mais 10 no mato.
_____________
126
Feira Hoje, 06.10.1991.
127
Agostinho Vieira, feirante, Jornal Feira Hoje, 01.01.1992.
71
(...) Foi um dia de segunda-feira, carreguei um carro de mão daqueles grandes dali,
mande os meninos puxar e vim e botei ali na quina. Chegaram aquela multidão de
guarda. Mas, toda uma vida eu tive história para conversar e toda uma vida eu fui um
cara que era bom de papo e levei todo mundo na conversa.
(...) eles me pediram pra ficar com um, mas guardar um. Fiquei com um. Entendeu
como é? E nunca parei. Depois eu resolvi que ali estava muito na frente
128
vim para a
Marechal
129
. Cada dia foi vindo um aí a feira formou e, como neste tempo eu tinha muita
média com finado Colbert e com Chico Pinto, que eu tinha carta branca dele, aí começou
(...)
130
.
Sugerimos, para o capítulo que segue questões para recuo aos anos em que boa parte
destas relações foi construída, quando o mercado de alimentos de Feira de Santana reunia
interesses diferenciados para lavradores e trabalhadores urbanos, comerciantes atacadistas e para
os partidos políticos que disputavam o executivo da cidade.
Em tempo, não poderíamos deixar de mencionar que O Centro de Abastecimento foi
palco ainda de conflitos envolvendo trabalhadores urbanos, em sua maioria migrantes, em
questões que não envolveram os preços dos produtos ou o local da feira. Foi o caso do momento
em que alguns negociantes iniciaram um processo de ocupação do local, em 1980. Assim como o
faziam no centro da cidade, muitos barraqueiros começaram a morar no seu ponto de venda,
causando um problema para o prefeito da cidade, que havia criado o PLANOLAR para atender à
população de baixa renda e sofria pressões da parte de algumas famílias instaladas no Centro de
Abastecimento. Havia toda uma expectativa entre estes moradores/feirantes do Centro para com a
cessão do terreno para que construíssem moradias fixas.
Aquele terreno era especulado por outros interesses. A Urbis empresa de construção
civil havia planejado construir um conjunto habitacional com 413 unidades em área da
Prefeitura vizinha ao Centro de Abastecimento. Ali mesmo, começaram a se formar aglomerados
de pessoas que iniciaram o levantamento de barracos. No dia 06 de junho de 1980, cerca de 30
pessoas, descritas pelo Feira Hoje como simples, trajando roupas velhas e estragadas e portando
enxadas, foices e facões, se manifestaram na porta da Prefeitura Municipal exigindo a liberação
da construção de suas moradias na área. Após negociação com o diretor do PLANOLAR, se
retiraram sob promessas de receber acesso à habitação da parte do plano em voga, em outros
_____________
128
Estava em frente ao antigo Mercado Municipal, hoje Mercado de Artes, na Praça da Bandeira, antiga Praça do Comércio.
129
Rua Marechal Deodoro.
130
Depoimento de. José Carlos. Op. cit.
72
locais
131
. Enquanto muitos alegaram não ter para onde ir, outros encontraram como argumento
para ficar ali o fato de estarem no local desde que se transferiram da rua para o Centro.
Ou seja, muitas pessoas que ocupavam o Centro em busca de moradia eram feirantes ou
ainda, os migrantes que chegavam à cidade em busca de trabalho se estabeleciam ali mesmo
naquele novo terreno do Centro. Tal problemática habitacional demonstra condições de vida
destes trabalhadores como proximidade destas situações com a luta de outros setores do trabalho
urbano em Feira. Não só nesta, mas em outras situações, o trabalhador da feira viveu, assim como
os demais, conflitos por melhores condições de vida. Mais do que mostrar esta aproximação,
atentamos para o fato de que a feira e seus negócios ocuparam papel de destaque nas negociações
do mundo do trabalho em Feira, como veremos a seguir.
_____________
131
Invasores realizam uma passeata para pedir terreno para o Prefeito. Feira Hoje, 07/06/1980; Moradores serão removidos do
CA: Famílias instaladas em barracas no CA poderão ser transferidas. Feira Hoje, 1980.
73
CATULO II
A CIDADE E O COSTUME FEIRANTE: 1959 A 1964.
Foi com base em aprendizagens em comum entre feirantes e a sociedade feirense em geral
que muitos trabalhadores da feira procuraram reaver suas práticas de compra e venda. Por este
motivo, o encontro com as práticas de tempos passados, especialmente com a década iniciada em
1960, sustenta nosso caminho argumentativo que se iniciou na reflexão sobre 1977. É necessário
aqui buscar costumes dos feirantes que dialogaram fortemente com o fato transferência da feira.
Horários comerciais foram estipulados a partir das práticas do feirante ou tiveram que
corresponder a estas. Pontos de venda foram montados a partir de aproximações entre
trabalhadoras rurais, assim também como a proteção ao lavrador influenciaram fortemente na
feira dos anos 60. Estes elementos costumeiros se enraizaram no período aqui escolhido. Não há,
portanto, o intuito de recorrer a uma origem para os mesmos. A seleção dos princípios da década
é fundamentada por alguns fatores, como a leitura de que este teria sido um tempo de mudanças
populacionais perceptíveis em todo o país e igualmente em Feira de Santana. O período demarca
a intensidade da migração para a cidade, bem como o deslocamento de investimentos para
cidades como Feira de Santana, consideradas estratégicas no Nordeste
132
. No tempo que precede
o golpe ocorreram negociações importantes dos trabalhadores feirenses com o executivo
municipal, diante da intensificação de medidas de padronização do comércio, como também da
readequação de poderes por parte de famílias tradicionalmente conhecidas na praça comercial.
Estes foram anos nos quais alguns aspectos despontam como novidade, a exemplo da grande
quantidade de comerciantes que não eram feirenses na praça comercial.
O costume se elaborou, portanto, entre estes fatores que ora se desenrolam nesta seção.
Em outros tempos, E. P. Thompson analisou algumas situações de instituição de novas leis, na
Inglaterra do século XVIII e percebeu que a bandeira da tradição serviu muitas vezes como arma
aos subalternos, para exigir direitos perdidos
133
.
Adentramos assim o campo daqueles que enfrentam questões sobre direitos
compartilhados por trabalhadores – ainda que, em experiências específicas de dominação de
_____________
132
Não só por esta razão, o crescimento da cidade ocorre também por conta de alterações significativas no campo, não
contempladas neste texto.
133
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
74
classe frente a alterações legais, quando a lei que se atualiza traz consigo pressupostos
diferentes dos tradicionais. Comumente, nestes episódios, a modificação do caráter da
intervenção do Estado nas políticas públicas corrompe relações civis entre sujeitos das classes
dominantes e subalternas e provoca reações de ambas as partes. As perdas para comerciantes,
artesãos e outros setores que se viram destituídos de poder de participação nas decisões sobre o
mercado, por exemplo, fundamentaram reivindicações dos mesmos na Inglaterra durante o
avançar do capitalismo agrário. Tal foi o caso da perda de algumas leis Elizabetanas que
protegiam o comércio interno. É justamente nestes momentos que a tradição é um meio de
reivindicar suas posições.
Para Alexandre Fortes, a inauguração, atribuída a Thompson, de uma história social do
Direito deu um status diferenciado ao estudo dos costumes e pôs no centro da reflexão sobre a lei
a importância da elaboração popular de normas de comportamento. Assim, Senhores e Caçadores
tornou-se, para Fortes, obra fundante de uma história social do direito, que se colocam as
condições para a elaboração que traz a lei e a questão dos ‘direitos’ para o centro das
preocupações dos estudos das relações de classe
134
.Tais lutas definiriam, portanto, a própria
noção de propriedade em formação durante os séculos XVII e XVIII ingleses. Formas históricas
de convivência com a terra e com a propriedade privada foram ponte para a defesa de um
encaminhamento tradicional para as coisas. A presença desta rendição das classes dominantes ao
domínio tradicional da Lei fica clara também nos textos de Costumes em Comum. Constrangidos
por formas passadas de conduta com relação ao tabelamento de preços, os patrícios se viam
encurralados pela cobrança de diversos grupos de trabalhadores. Além disto, Thompson
preocupa-se em localizar nestas resistências sujeitos antes não mencionados pela história do
trabalho. Segundo ele, este tipo de gente tem se esquivado da atenção dos historiadores, pois não
eram nem agricultores, nem proletários emergentes, e não tinham importância para ninguém a
não ser para eles mesmos
135
, referindo-se a vendedores ambulantes, por exemplo, que sofreram
com o cercamento de terras, pois precisavam recorrer às terras comunais para colher algumas
matérias primas (gengibre, leite, maçãs, etc.). Mas estas pessoas reagiam e a moral da plebe
limitava excessos, demonstrando expectativas entre as classes subalternas que perturbaram a
ordem de grupos hegemônicos.
_____________
134
FORTES, Alexandre. O Direito na Obra de Thompson. Revista de História Social da Unicamp, n. 2, 1995.
135
THOMPSON, Op. cit., p. 144.
75
Para Alexandre Fortes, esta análise da lei e dos costumes ainda pode ser encontrada no
texto mais famoso de Thompson, quando ele aponta para o comportamento de aprendizagem da
classe trabalhadora em formação, que envolve experiências de situações em comum com a classe
dominante e valores religiosos transferidos para o novo contexto do sindicato em nascimento.
Mas, toda esta análise pode ser comparada a casos que não os dos ingleses? Alguns textos
já foram publicados no Brasil e ressaltaram que, apesar de peculiaridades, há situações de
expansão do capitalismo em que o avanço da exploração promove reações bastante semelhantes.
Entre muitas outras argumentações thompsonianas, a noção de que a economia é social e
culturalmente fundamentada permite ainda que se estendam os estudos sobre as transformações
nas relações sociais entre as classes antagônicas, de maneira que os subalternos aparecem mais
incisivamente como protagonistas.
No caso da análise presente em A Economia Moral da Multidão Inglesa no século XVIII,
na coletânea Costumes em Comum, Thompson contesta o liberalismo, quando tratou da
importância das práticas populares na economia. Dialogando com Adam Smith, mostrou que os
preços não se ajustariam somente pelos mecanismos de mercado. Smith acreditava que a única
maneira de essa economia auto-reguladora entrar em colapso era pela interferência do Estado,
fazendo uma análise superficial das práticas populares, as ditas superstições. Para ele, Smith
construiu um ilusório ar de validação empírica, num ensaio de lógica que se autovalida.
Não deveria ser necessário argumentar que o modelo de uma economia natural e auto-
reguladora, funcionando providencialmente para o bem de todos, é tão supersticioso
quanto as noções paternalistas embora, curiosamente, seja uma superstição que alguns
historiadores econômicos têm sido os últimos a abandonar (...)
136
.
Sendo assim, os mecanismos de funcionamento dos mercados de abastecimento não
podem ser resumidos a uma ordem econômica, no sentido restrito da palavra. A noção de
experiência de Thompson, atrelada às suas análises a respeito das práticas populares nos
mercados nos inspira, além de uma aproximação com grupos de trabalhadores não operários,
levantada em sua obra, e a busca por acionamento de mecanismos tradicionais para negociar com
as mudanças.
Os anos 1960 reservaram fatos vinculados a conjunturas nacionais de políticas para o
controle dos mercados, em especial no Nordeste brasileiro que influenciaram enormemente na
construção destas relações. No final da década anterior, até o período inicial da ditadura militar, a
_____________
136
THOMPSON, Op. cit. p.160-162.
76
intervenção no comércio de rua acompanhava medidas de controle de preços dos insumos básicos
e da instalação das feiras como centro popular de compras comum no país. Neste ínterim,
medidas construídas entre trabalhadores e poderes municipais para lidar com as transformações
em curso tiveram relação com a conduta da classe trabalhadora feirense de maneira mais ampla e,
conseqüentemente com a própria feira.
Os laços entre as pessoas que faziam a feira acontecer advinham do diálogo constante
com costumes da sociedade feirense, o que envolvia outras classes sociais. Na década de 1960, as
regras de funcionamento do mercado livre eram renovadas sem que, no entanto, se pusesse em
xeque a realização da feira no centro da cidade. Os governos locais organizavam a urbe e a feira
livre, coração do comércio feirense, segundo interesses diferenciados. E a necessidade das trocas
da feirinha como articuladoras do comércio local se confirmava justamente pela reedição
constante das suas normas.
A feira recebia novos trabalhadores e ia se expandindo ao lado de cada novo tracejado das
ruas e em cada novidade trazida ao comércio. Nacionalmente, o mercado de alimentos foi
modificado e, como não poderia ser diferente na cidade Feira, os espaços de atuação dos
vendedores ambulantes de alimentos na composição do ambiente da urbe foram controlados de
acordo com as novas diretrizes. Porém, não passivamente, as pessoas tiveram, a seu modo, tratos
diferenciados da situação em curso e assim, neste período de modificações, encontramos
negociações e legitimação de uso das ruas pelos feirantes em mais um conjunto de passos em
busca da “modernização” feirense.
2.1 – O início da década de 1960 em Feira de Santana.
Adnil Falcão
137
quando escreveu as memórias sobre a trajetória de vida de seu pai,
importante investidor no comércio e na agropecuária feirense, descreve um processo em curso
nos anos 1960:
o aumento da população municipal, que quase dobrou ente 1940 e 1960, passando ao
impressionante número de 141.757 habitantes, dos quais, 61.612 fixaram-se na sede; o
crescimento expressivo da malha rodoviária, fortalecendo, cada vez mais, o município
como maior entroncamento de estradas do estado; o progresso nos meios de transportes,;
a inauguração do sistema de abastecimento de água da cidade; a ampliação dos serviços
_____________
137
FALCÃO, Adnil. Olhares sobre Newton Falcão. Feira de Santana: Editora da UEFS, 2007.
77
educacionais, o aperfeiçoamento crescente das comunicações favoreciam as mudanças
em curso na estrutura econômica do município
138
.
A alvorada desta década é marcada por novas iniciativas da Prefeitura Municipal de
aproximar-se dos objetivos federais para o Nordeste, como o controle do comércio agropecuário
e instaurar melhorias de infra-estrutura urbana em Feira de Santana. Algo de significativo
acontecia nas relações sociais desta cidade nordestina, conhecida por ser o mais importante
vínculo do litoral com a civilização do couro dos sertões. As manobras do executivo local para
redefinição da combinação das práticas tradicionais com os novos parâmetros nacionais eram
notórias. O gado e as culturas dele derivadas, as criações de animais nos quintais das casas, o
cerceamento das hortas urbanas, a presença da cultura roceira lado a lado às lojas de
departamento, no comércio, e as aspirações pela modernidade, justificadas pelo avanço das
estradas no entroncamento de Feira, foram fartamente noticiados nesta década, revelando tensão
entre modelos urbanos para o comércio feirense, presente em cada opinião publicada.
É fato que o comércio do gado era alterado, quando da adequação da praça comercial
feirense às exigências estaduais de sistema de peso e modo de operar as vendas e que alguns
grupos importantes de investidores da pecuária associavam-se às possibilidades de negociação
com empresas multinacionais forâneas. Destacavam-se ainda os fazendeiros que multiplicavam
seus lucros no comércio da cidade ao tempo em que direcionavam seus esforços para empreender
melhorias técnicas na produção. Vale a pena ressaltar a descrição da Fazenda Santana feita por
Adnil Falcão, patrimônio de seu pai. Tais características faziam inclusive, da fazenda Santana um
local de estudos para acadêmicos de veterinária da UFBA.
...as instalações resultaram perfeitas: maternidade, isolamento, farmácia, baias para bois
e cavalos, edificações próprias para ovinos e caprinos também criava carneiros das
raças Santa Inês e Bergamácia e três currais-modelo, um dos quais em estilo
americano, com área para apresentação de animais de seleção, dez boxes cimentados,
cobertura, cercas em mourões e tubos galvanizados, piso calcetado, caixa de areia e
embarcadouro. Os dois outros, com quase 2000m2 de área, além de piso calcetado em
paralelepípedo, cobertura parcial (...) dispunham de Bret e balança. Um galpão oficina,
pátios cobertos para equipamentos agropecuários, caixa d’água elevada, poço artesiano
com cata-vento, escritórios administrativos e casas para colonos rematavam as
instalações de serviços.
139
A família Falcão parece um caso interessante de transformação da conduta dos negócios.
O patriarca dos Falcão, em 1961 comunica aos seus filhos a sua retirada da direção dos negócios
_____________
138
Idem, ibidem, p. 105.
139
FALCÃO, Adnil. Op. cit. 2007. P. 94.
78
comerciais da família. Adnil Falcão descreve que entre os motivos para o recuo do velho
guerreiro, estavam a mudança no ambiente de negócios e comércio ilegal que se instalara na via
pública de Feira de Santana, sem ônus de impostos, nem despesas com empregados. Sinais do
novo tempo.
140
Em uma outra obra, João Falcão ressalta maiores detalhes do que seria para as famílias
estabelecidas no comércio a entrada de comerciantes que não pagavam impostos para uso do
centro da cidade. João Marinho, patriarca da família, teria chamado os filhos e dito:
Nos dias de hoje, (...) os caminhões carregados de mercadorias vêm do Rio de Janeiro e
São Paulo para vendê-las na nossa porta, sem pagar impostos nem fazer despesa com
empregados e a administração. Revelando em seguida uma humildade comovente,
aquele homem forte, bem-sucedido nos seus diversos negócios, de um amor próprio à
flor da pele, confessou aos filhos, serenamente, que não tinha mais condições de
competir com aquela guerra e iria entregar-lhes a direção de sua casa comercial
141
.
Nestes textos ocorre um sentimento de perda de controle dos negócios na praça comercial
nesta conjuntura, ou mais especificamente, de um modo de operá-los. A justificativa para o
afastamento de João Marinho, que teria entregado às novas gerações a administração do seu
patrimônio, é a patente presença de novos comerciantes e de novas formas de mercar em Feira.
Este parece ser um sentimento encontrado também por Raymond Williams na conjuntura em que
mercados ingleses ficavam mais complexos, aumentando o numero de intermediários na
economia da cidade. Williams encontra sentimentos em comum por parte de figurões tradicionais
mediante mudanças na condução de negócios na Inglaterra. A identidade destes grupos na
modernidade inglesa parece se dar num misto de apego a valores passados e condenação de
novidades das quais não se viam à frente, como era de costume em outras épocas. São grupos que
ficaram espremidos entre o antigo e o novo. Esta imagem nos serve de inspiração para pensar
alterações nos negócios das grandes famílias feirenses. Por outro lado, se nos atermos ao fato de
que Adnil Falcão e João Falcão escrevem memórias, é possível questionar, como o faz Raymond
Williams, quais aspectos do passado são trazidos à tona. Percebemos, por exemplo, que a
separação mais explícita entre ricos e pobres ocorrida com a redução das classes intermediárias
foi, para Raymond Williams, fator impulsionador de alguns escritos na Inglaterra. Gilbert White,
William Cobett e Jane Austen, na conjuntura de aumento dos cercamentos de terras, formularam,
cada um a seu modo, expectativas próprias para uma terra em transformação. O primeiro
_____________
140
Idem, 106.
141
Falcão, João. A vida de João Marinho Falcão. Editora Brasília, 1993, p. 141.
79
lamentava a perda da ordem natural das coisas. O segundo escrevia romances realistas cujo tom
de denúncia demonstrava tradições perdidas entre as famílias camponesas. Esta estrutura de
sentimento
142
precisou ser historicizada pelo lingüista inglês, para que pudesse demonstrar que a
individualidade de muitos escritores que se remeteram a um mito do passado mais feliz se deu
numa conjuntura comum de perdas de status por parte das classes médias na Inglaterra. Os
distúrbios na ordem social que os deixava ainda numa posição cômoda fizeram com que
intelectuais metropolitanos buscassem no campo as características de uma sociedade que viam
ser esfacelada.
A inserção dos grupos intermediários, como os comerciantes, na cidade capitalista não
aconteceu de maneira pacífica. Em Charles Dickens, Raymond Williams percebeu uma
demonstração de homem urbano inglês como uma figura opaca e desconhecida em seus
sentimentos. A busca de uma identidade urbana esteve presente na literatura em escritos sobre os
modos de vida do trabalhador, construção de refúgios no campo, vivências em subúrbios recém
erguidos, entre outras temáticas. Para Williams, em comum com todas, é possível localizar perdas
de grupos médios com a internacionalização do mercado e presença de novas profissões na
cidade com algum estremecimento do status social. Apesar de encontrar, por exemplo, nos
cercamentos, marcos materiais para a conjuntura de mudança decisiva da relação do campo com
a cidade, ele lembra que a causa dos problemas sociais não seria a industrialização, mas sim o
capitalismo como um todo. Portanto, esta ordem era realidade iniciada quando muitos
proprietários passaram a vender suas terras. Ou seja, recorrer a tempos imemoriáveis seria mais
uma fuga da realidade urbana da qual muitos ainda não teriam se apropriado. Vale ressaltar que a
análise de Raymond Williams está apegada incondicionalmente à importância do status na
sociedade inglesa, objeto de disputa dos sujeitos por ele estudados. A especificidade do estudo
que fez para a sociedade inglesa não é aqui deixada de lado. Mas ainda assim, o desconforto pelo
qual grupos médios passaram com as mudanças empreendidas pelo capitalismo foi elemento de
destaque em sua análise.
Comparando ao caso feirense, encontramos uma produção de memórias de famílias como
elementos demarcadores de lugares de tradição. Muitas vezes o momento passado de apoio destas
memórias são tempos em que os personagens vinham perdendo seus lugares de poder. É
interessante que, em Feira, a produção de biografias da família Falcão, remeteu-se à conjuntura
_____________
142
CEVASCO, Maria Elisa. Para Ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
80
emblemática do final dos anos 1950 e início da década seguinte para demonstrar duas questões
importantes: a presença de comerciantes não feirenses que aplicavam ali seus investimentos e o
aumento de número deste tipo de negócios num Município que não possuía um código tributário,
trazendo problemas de falta de controle de impostos.
A trajetória desta família pode ser o emblema de um conjunto de novidades no comércio
feirense com as quais os setores mais tradicionais não se relacionaram sem conflitos. Há, por
outro lado, indícios de que havia uma identidade mais complexa dos grupos médios urbanos mais
tradicionais com a cidade em transformação. O centro da cidade não era, como descreveu
Eurico Alves, um local de convivência idílica das famílias feirenses. Para o escritor, o brio
feirense ia ficando no passado. Revela, principalmente nos anos 1960, a saudade da festa de
Santana, recorrendo insistentemente a sua pré-adolescência para narrar o comportamento dos
párocos, das mulheres feirenses e uma religiosidade que beirava uma noção de pureza ao
comparar com os festejos portugueses. Eurico Alves incomodava-se com a presença negra nas
festas, e com os arremedos de festejos que iam se instituindo ao longe do que considerava
tradicional. A paisagem urbana revelava um padrão de vestimenta para as senhoras e homens de
bem, em avenidas consideradas calmas e arborizadas. A avenida Senhor dos Passos e a Rua
Conselheiro Franco, naqueles anos lembrados por Eurico Alves, mais pareciam uma extensão,
para as ruas, dos costumes das casas dos grandes proprietários da cidade. E assim o escritor
adjetivou de inúteis os automóveis e de feias as novas casas de comerciantes enriquecidos então.
A obra de Eurico Alves apesar de muito visitada, merece ainda análise a respeito deste retorno ao
passado. Se o brio feirense vinha se perdendo com a modernidade dos anos, em que lugar do
passado estaria? E, em estando no passado, este seria ordeiro, brando, sossegado, como propôs o
escritor? Deixemos o longo debate para uma outra oportunidade
143
.
Literatos feirenses que escreveram memórias de Feira de Santana na Folha do Norte dos
anos 1950 e 1960, em crônicas e poemas criaram representações geralmente relacionadas ao
tempo vivido (...), de intensas mudanças em seu ambiente físico e sócio-cultural
144
. A Folha do
Norte torna-se neste sentido, ao mesmo tempo o veículo das informações sobre a transformação
_____________
143
ALVES, Eurico. A Paisagem Urbana e o Homem. Feira de Santana UEFS, 2006. Organização e notas de Maria Eugenia
Boaventura. Não nos referimos a todos os textos de Eurico Alves, mas aqueles publicados nos anos 1960.
144
REIS, Grazyelle. Literatura e Cultura em Feira de Santana. Práticas usos e tendências em impressos da Folha do Norte (1951-
1969). Dissertação de Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural. UEFS Feira de Santana, 2008 p. 103. “Expectativas,
anseios, desejos e dramas registrados nessa literatura são vistos como matéria integrante de um processo intricado que, pelo
menos de 1951 a 1969, envolve a renovação do espaço urbano feirense, mudanças de hábitos sociais, nascimento de novos
códigos culturais, em convívio e em confronto com estruturas antigas” (p. 101)
81
e, ao mesmo tempo, reserva espaço em suas ginas para que poetas e cronistas expusessem um
novo olhar sobre a cidade de modo análogo. No jornal Gazeta do Povo, entre notícias de
sinaleiras e posturas do governo municipal na organização das vias blicas, encontramos a
reedição de um poema dos anos 1940, resgatando a vida na avenida principal de Feira no período.
Em alguns trechos de um poema de Arnold Mota, é possível cruzar com situações de percepção
da avenida anos antes de algumas transformações consideráveis:
Canção a Avenida Fidalga
Avenida – fidalga
Que reza toda noite
o seu rosário de luz
de postes negros, esguios,
coroados de lâmpadas
e os braços em cruz
que tem um ar eternamente
primaveril
nos seus canteiros de grama
nas suas árvores verdes
(...)
Avenida Fidalga
Que liga a Cidade ao Sertão
Que começa à margem da estrada
Onde os autos claxonam o dia inteiro
E vai findar-se
Lá no campo das boiadas
Entre o mugir do gado
E o boiar dolente do vaqueiro
(...)
Avenida da Feira!
Avenida fidalga da cidade Alegria
Tens a paz sugestiva dos jardins enflorados
Dos recantos calmosos
Onde o amor em tudo se anuncia
E se entorna em cascatas de eufonia
Pela boca dos namorados! (...)
145
.
Fiquemos com a hipótese de que um modo próprio de relacionamento com o comércio,
vindo destes grupos, estaria sendo esfacelado. Uma rede de relacionamentos sofria então
alterações que não seriam passageiras. Recorrendo a um momento anterior à saída de João
Marinho da direção da loja e dos armazéns, João Falcão retrata suas atitudes na loja da família,
que parecia se estender à feira.
Nas segundas-feiras, o grande dia de feira, que valia por toda a semana, ele se
desdobrava no atendimento à freguesia do interior e aos visitantes da capital, atraídos
_____________
145
Poema datado de 1941 pelo Gazeta do Povo de 13 de Dezembro de 1959, referindo-se à avenida Senhor dos Passos que
começava com casarões de famílias importantes da cidade e terminava no antigo campo do gado.
82
pelo espetáculo da imensa feira. Todos lhe procuravam no escritório, aberto a quase na
rua, tal a proximidade desta, pois ficava da secção de secos e molhados. Dali, ele
despachava a clientela, que na maioria das vezes mandava seus prepostos, os tropeiros,
com os pedidos de mercadorias. Ele conhecia a todos, atendia-os sem formalidades,
tendo no fator confiança a base do seu relacionamento com eles
146
.
Parece que o crescimento da cidade e o contato com novos comerciantes, bem como o
aumento constante das atividades da feira, causaram espanto e as relações interpessoais aparecem
não como pano de fundo, porém como decisivas para aquele comércio.
Para Ana Carvalho, as marcas da mudança comercial que projetou sobre os sujeitos da
urbe exclusões e elaborações destes novos lugares podem ser encontradas em empreendimentos
como O Fórum Felinto Bastos, A Estação Rodoviária, os Currais Modelo, o Código Tributário do
Município (já em 1964), o PDLI, a Semana Inglesa, e o Código de Edificações do Município
147
.
Todos foram datados da década de 50 aos primórdios da década de 1960. No período do governo
de Arnold Silva (1959 a 1962) até o golpe militar, Carvalho encontra na imprensa destaques para
o movimento comercial da cidade em relação às mudanças que vinham sendo implementadas na
década precedente.
As fontes a respeito do feirante neste período são raras e, além disto, a lembrança da
maioria dos nossos entrevistados nos permite recordações não vinculadas ao tempo serial.
Contudo, é possível perceber mitificações, expectativas e imagens deste passado. Mediante os
juízos da antiga feira, apontados por comparação aos momentos posteriores à instalação do
Centro de Abastecimento, é legível nas lembranças este passado. Como estas memórias são
heterogêneas formas diversas desta lembrança foram apontadas. Algumas pessoas construíram
pares antagônicos ao relembrarem a feira antes do CAF. Primeiro desorganizada, depois,
arrumada, as descrições do ambiente da feira e da disposição das mercadorias neste aspecto,
foram próximas:
A feira em cima era a feira como aqui né? que em cima, Marechal, era cheio de
saco de feijão, não era mercado modelo, aqui não tinha mercado modelo. Ali no fundo
era feira, verdura, fumo, tinha a parte do fato, tinha a parte do... , tudo ali espalhado pela
Marechal ali. De frente das Pernambucanas, aquele Beco da Marechal, aquele beco, na
Senhor dos Passos, tudo ali era a feira
148
.
Na memória de Jacira, que não conheceu a feira, a extensão das vendas é ponto de
destaque em sua exposição, assim como a repartição dos produtos em setores. Este detalhe é
_____________
146
FALCÃO. Op. cit. p. 63).
147
OLIVEIRA, Ana. Op. cit. p. 27.
148
Depoimento de Jacira Ribeiro dos Santos, Op. cit
83
fundamental na lembrança de Sr. Agnelo, hoje vendedor na rua Marechal Deodoro (citado no
capítulo I). O Senhor Agnelo recorda-se da feira livre ainda no início da década de 1970, mas não
é impossível que, de acordo com a extensão e o feitio próprio de ocupação do centro, esta
lembrança se aproximasse a um quadro semelhante ao da feira de dez anos anteriores. O
vendedor José Santos também consegue rememorar com detalhes a distribuição dos espaços de
venda, na conjuntura do governo de José Falcão (1973/1976):
Cada um aqui tinha seu setor. Aqui mesmo nesse pau era tomate, aqui era cebola, dali
pra lá era de frutas, laranja, banana, manga, essas coisas, láaaa em baixo, perto do
palácio era banana, e aquele povo que trazia porco, galinha, pra vender em baixo.
eles compravam e levavam pra Marechal, ganhava ali na Marechal. E a feira começava
quinta, sexta sábado, domingo segunda. E ninguém reclamava não e lá também ninguém
reclamava.
Não era junto. Dali pra era tomate. Outro lugar dali “prali” era cebola, você
comprava a cebola pra vender fora em outro lugar, ficava os caminhão pra vender
no retalho e vender também pra você ir vender fora
149
.
Como o Senhor José Santos era um migrante sergipano que veio para o local em 1970,
tudo era uma novidade para ele, que procurou se adequar, arrumando o seu pontinho em
negociação com outros vendedores e vendedoras
150
.
Nos anos 1960, a composição da população e o desenho da urbe mudavam, o que
remontava sociabilidades entre os feirenses. Este marco foi tomado como ponto de partida para a
análise de Ana Oliveira
151
, que, subsidiada pelas teorias de Michel de Certeau, buscou encontrar
uma identidade feirense em transição, visto que as imagens do urbano e do rural, exemplificadas
pela aproximação ou afastamento com a figura do vaqueiro, punham-se em disputa nesta
saudade, na consolidação de uma cidade comercial e civilizada.
Configurava-se a partir daí, sob nossa perspectiva, um outro momento de sua história,
razão pela qual escolhemos o final dos anos 60 como data-limite de nossa análise, pois
compreendemos que, até aquele momento, embora houvesse diferentes representações
da cidade, prevaleceram as imagens de cidade comercial e civilizada
152
.
Na sua perspectiva, atribuiu às elites feirenses o papel de elaboradoras de discursos que
visavam identidades para uma Feira renovada, objetivando a integração com o nacional, aspectos
advindos do legado do governo Juscelino Kubitscheck. No traçado destas práticas, os usuários da
_____________
149
Depoimento de José Santos, Op. cit.
150
mapa
151
OLIVEIRA, Ana. Feira de Santana em tempos de modernidade: olhares, imagens e práticas do cotidiano (1950-
1960). Tese de Doutorado, UFPE, Recife, 2008.
152
Idem, ibidem, p.21.
84
cidade, consumidores, enfim, os caminhantes, não se sujeitaram pacificamente a tais alterações,
sendo também construtores de seus próprios territórios na urbe que ali se delineava. Há pontos de
seu texto nos quais mostra que tais práticas anônimas eram objeto de discussão na imprensa, nas
associações de classe e na Câmara Municipal. Sua argumentação nos traz algumas contribuições,
ao defender os anos 1960, assim como Grazyelle Reis, como período de transição em Feira.
2.2 - Quanto mais a cidade cresce, mais a feira aparece: organização comercial e urbana em
negociação com a feira livre.
No final da cada de 1950 e início dos 60 aconteceram medidas como a intervenção do
governo estadual na cobrança de taxas de venda (notas fiscais), controle de horários, ou a
presença mais incisiva da atuação do poder municipal nas vias públicas. Juntamente a estes,
outros fatores eram oriundos da iniciativa privada, como pequenos supermercados passaram a
concorrer, por exemplo, com a primazia da feira livre e dos armazéns de “secos e molhados” na
distribuição de alimentos para o mercado consumidor local. Também ações voltadas para o
trânsito são iniciadas aos poucos, numa convivência mais marcante da população com veículos
no cotidiano. Aumentava a presença de carros de todo porte, vindos também de passagem, por
conta das rodovias que foram inauguradas neste período. A inauguração da rodovia que ligava
Feira de Santana a Salvador é um dos principais marcos da época.
Dentre as principais rodovias concluídas no período, destacava-se a Rio-BAHIA (BR
116), a qual foi aberta em 1950, tendo sua construção iniciada em 1941 e seu
asfaltamento completado em 1963, e a BAHIA – FEIRA, ou Feira Salvador (BR 324),
cujo asfaltamento foi concluído em 1960, sendo este um velho sonho dos feirenses, cuja
efetivação possibilitou que o deslocamento para a capital se realizasse a partir de então
em apenas três horas e meia.
153
Como o costume dos feirantes compõe-se também da experimentação das formas de
controle da feira, este histórico foi decisivo para as suas aprendizagens de negociação com as
políticas municipais e federais. Principalmente porque, estas são, sobretudo, advindas: 1) do
contexto de normas para o mercado de alimentos em âmbito federal e 2) de mudanças na relação
da sociedade local com o comércio urbano em geral. O crescimento populacional, a migração e a
passagem para uma população de maioria urbana ainda contribuem para marcar a cidade nesta
_____________
153
OLIVEIRA. Op. cit. p. 20.
85
década
154
. Sublinhamos que, nos tempos em que o exercício da feira havia sido proibido nas
ruas (1977), os feirantes recorrem a este passado como elemento de retomada das atividades.
Muitas são as práticas populares que podem ser citadas. As casas de jogos viveram
períodos de altos e baixos, quando, no intervalo de dois anos, foram proibidas e liberadas
sucessivamente. A presença de personagens que se embriagavam nas barracas da feira, bem como
dos apostadores, era noticiada freqüentemente
155
. Jogos diversos divertiam a população que vinha
à Feira, como damas, roletas, bingos e as mais variadas formas de apostas. Todas foram
proibidas, sendo que o conhecido Jogo do Bicho, de estrutura organizativa mais complexa, era
mantido ou excluído do rol das jogatinas quando também o era em âmbito nacional. Um outro
jogo, chamado Jogo de Piu (jogo de aposta com dados), também era relatado como prática
constante entre os freqüentadores da feira. Os modos como eram feitos e, principalmente, a
acusação da desonestidade, fazia com que fossem alvos fáceis, apesar de que uma política
sistemática de coibir em conjunto todas as práticas populares nas ruas veio a ganhar fôlego
durante a ditadura militar. No início da década, o movimento de pessoas e carros das ruas, sem
dúvida, seguia a rotina da feira livre. Até mesmo os horários dos ônibus que iam para a capital,
do trem, do cinema, eram diferenciados nos dias de segunda-feira, quando os meios de transporte
chegavam mais cedo e saíam mais tarde, por exemplo.
Descrevendo algumas das práticas cerceadas durante a ditadura, Muniz Sodré narra um
possível encontro entre sujeitos de classes diferentes no cinema.
Mas não era o mundo vaporoso da tela, era o feitiço de segunda a noite no Cine Íris
quando, acabada a feira, civilizados e tabaréus ajeitavam-se nos assentos dobráveis para
brigarem lado a lado com Roy Rogers, Hopalong Casidy, Tom Mix, Randolph Scott,
Jhon Wayne, ou exultarem com o berro de Tarzã ou temerem pelo destino das damas de
negro mexicanas
156
.
Apesar deste convívio, um tanto tácito, com a rotina do mercado livre, os conflitos aos
poucos foram tornando-se mais claros. A presença dos feirantes nas ruas era ajustada e aceita no
comércio em geral, desde que sob as normas estipuladas. A preocupação com o exagero das suas
dimensões pode ser percebida no seguinte relato do Gazeta que, após uma série de elogios à
cidade pela passagem de estradas importantes e a retomada da atenção do governo do estado da
Bahia sobre a mesma, afirma:
_____________
154
dados populacionais anos 1960.
155
Gazeta do Povo, 24/05/1959, 1 /06/1959, 1 /08/ 1959.
156
SODRÈ, Muniz. O Bicho que chegou à Feira. Francisco Alves Editora, 1991. p. 64.
86
(...) Hoje, porém temos que a lamentar o aspecto triste da nossa cidade. Os camelôs
tomaram conta das nossas ruas e praças. O comércio legal vê-se prejudicado com a onda
de comerciantes ambulantes e clandestinos que não pagam aluguel de prédios,
instalações, luz, tributos e não estão sujeitos às leis trabalhistas. Enfim, transformaram a
Princesa do Sertão numa Bagdá ou Água de Meninos. A parte extrema do Mercado
Municipal está toda ocupada por barracas de frutas, legumes, cereais, tecidos,
confecções, armarinhos, etc.(...)
157
.
Na reportagem de tulo no mínimo curioso, a comparação com a antiga feira de Água de
Meninos em Salvador envolve ainda críticas aos costumes populares. A cobrança dos impostos e
o fator clandestinidade também é explícito, diferenciando os comerciantes legais dos demais.
Uma das discussões bastante notórias no comércio foi presente na Câmara nestes anos e se referia
a cobrança de encargos trabalhistas, o que separava feirantes de lojistas, que os primeiros não
se enquadravam neste caso como trabalhadores nem, no entanto, como empregadores.
Uma situação interessante e que possui uma interface com esta nota da imprensa é a
posição da Associação própria dos feirantes. Em 1960, ao lado da publicação do chamado da
mesa de recebedoria de rendas para pagamento de impostos sobre as vendas na cidade, publicou-
se uma nota da Associação de Feirantes pedindo aos seus associados que não deixassem de estar
em dias
158
. Neste caso, os participantes da Associação possuíam notas de vendas e procuravam se
destacar com relação aos outros feirantes menores que não pagavam impostos.
As transformações em Feira ocorriam também nas organizações dos trabalhadores e na
sua relação com poderes dominantes. As categorias locais expunham-se publicamente através da
imprensa, com chamados para reuniões e outros eventos. No Gazeta do Povo, percebemos as
denúncias contra carestias, abusos de comerciantes e denúncia de falta de intervenção de uma
política pública que sistematizasse o mercado de leite e carne. Inclusive, comportamentos
próximos aos do populismo varguista, nas suas relações com o combate à alta de preços,
repercutiram em Feira e tiveram impacto no mercado de alimentos. Os procedimentos com
relação às políticas de abastecimento envolveram assim os trabalhadores da feira livre.
No Gazeta de 1959, o anúncio de novas empresas, junto a matérias de sujeitos que se auto
apresentaram como inovadores frente a velhas práticas, anunciava baluartes da Feira de Santana
em transformação.
Sem pretensões outras que a de formar na vanguarda dos que se compromissaram, quer
por nascimento, quer por residência, em movimentar os nossos problemas, indicando
_____________
157
Feira, Água de Meninos ou Bagdá? Gazeta do Povo, 13/12/1959.
158
Folha do Norte. 30/01/ 1960.
87
soluções ou resolvendo-os, buscamos diretrizes de trabalho, inspirados nos que sempre
pensaram numa Feira livre, numa cidade culta, numa colectividade progressista, num
povo humanitário e hordeiro (sic)
159
.
A antipatia tornou-se pública no jornal Folha do Norte, de tradição situacionista e
defensor da UDN e do Prefeito Arnold Silva. a primeira edição do Gazeta, traz em sua capa
foto e texto homenageando o coronel Agostinho Fróes da Mota, de aproximação com a bancada
do PSD, e defendida pelo Gazeta
160
. Não demorou muito, o jornal entrou em desentendimentos
com os setores hegemônicos. Ao acompanharmos no Folha do Norte, o debate sobre um
incêndio que misteriosamente acometeu a sede do Gazeta do Povo, as diferenças entre ambos os
jornais fica notória. Em referência a atuação do Gazeta, o jornal folha do Norte publica:
a oposição em Feira de Santana não é oposição. É sim, despeito e fanatismo incontidos.
E ocorre-me um preceito: o despeito e fanatismo são os meios mais eficazes para atingir
ao atípico: a demência. E realmente é o que nota o leitor do órgão da oposição. Através
dos seus editoriais e artiguetes, a Gazeta do Povo procura sempre criar, na pessoa do sr.
Arnold Silva, perante a opinião pública, um mito, que realmente, jamais, em juízo
perfeito, poderia supor-se, poderia conceber-se
161
.
O primeiro jornal expunha um discurso de imparcialidade, enquanto o segundo se
posicionava claramente com relação aos acontecimentos. Apesar da clara intenção de ser
imparcial, o Folha do Norte defendia a maioria das decisões da prefeitura.
O jornal explicitava apoio a figuras como o gene “A Folha do Norte cumpria ainda um
papel pedagógico ao estabelecer idéias de cidade e de cidadãos propagados em notícias,
crônicas, contos e poemas, criando e difundindo padrões que influenciavam os pontos de
vista da população como um todo acerca do espaço em que viviam e de como deveriam
viver nesse espaço
162
.
O Gazeta do Povo dispunha-se a relatar as transformações na cidade com abertura para
avaliar a condução de tal processo, o que não era prática no Folha do Norte. Quando da chegada
da primeira sinaleira na cidade, toda a balbúrdia das ruas e, ao mesmo tempo, as comemorações
para o grupo de empresários que tomou tal iniciativa foi compendiada num só poema:
Afinal até que surgiu
a sinaleira na praça
o povo pasmado viu
ficando quase sem graça
instalarem a sinaleira
_____________
159
Gazeta do Povo, Página 1, ano 1, 3 /05/ 1959.
160
Idem.
161
Folha do Norte, 1960: recorte de jornal não datado na Biblioteca Municipal de Feira de Santana.
162
REIS, Grazyelle. Literatura e Cultura em Feira de Santana Práticas usos e tendências nos impressos da Folha do Norte
(1951-1969).
88
repletos de arroubos mil
trabalho de Seu Frangueiro
para a Serraria Brasil
comenta o povo da Feira
"agora tá tudo certo!
o carro só faz carreira
estando o "sinal" aberto
163
Aguardava-se com ansiedade artifícios urbanos novos para controlar o trânsito que crescia
e, contudo, a primeira sinaleira da cidade foi construída por iniciativa do dono de um
estabelecimento privado: a Serraria Brasil. Isto se desdobrava, para o Gazeta, numa afronta a
Arnold Silva, o prefeito acusado de não tomar iniciativas urbanizadoras. Em outro texto
anônimo publicado no mesmo jornal:
de vez em quando
Já começa a mudar a princesa do sertão
Os caminhões a tirar muito lixo em profusão
Falta o esgoto que corre
Do mercado à Estação
Fedendo como o diabo
Por causa da Podridão
Antoninho com paciência
Ponha a mão na consciência
E nós dê boa impressão
164
A cidade mudava, crescia e atraía mais pessoas e os problemas de administração deste
crescimento eram cerne de matérias no Gazeta. Encontramos assim, preferencialmente neste
jornal, um conjunto de opiniões sobre as práticas dos feirenses no espaço público. Com tom
irônico, o jornal tratava também do aspecto humano nas ruas, dos homens e mulheres feirenses
que acompanhavam as mudanças, distantes e desconhecedores dos rumos que tomavam a cidade,
ou protagonizando-os. Um exemplo foi quando um escritor procurou retratar as tradições
populares daquela urbe com o pseudônimo de Pio Velho. O colunista escreveu sobre as Tradições
Populares de Feira de Santana e, assim, compunha seus textos com figuras que circulavam pela
cidade, personagens de ficções interessantes que revelaram um cotidiano e, ao mesmo tempo,
produziram uma visão própria daquela transformação. Uma das personalidades protagoniza a
narrativa de título Marca J. Ao transitar pelas ruas, depara-se com um pedaço de ferro. Nele
_____________
163
Gazeta do Povo, primeira página, 26 de junho de 1959.
164
Gazeta do Povo, 3 /05/ 1959.
89
estavam inscritas as iniciais J.O. E assim, o homenzinho mirou o objeto, virou e revirou nas
mãos, mediu o peso, como se examinasse uma jóia de raríssima beleza e filosofou: - Não tenho
boi, não tenho cabra, não tenho ovêia, pra que diabo eu quero um ferro marca J. O.?
165
.
Os empreendimentos selecionados como meta pela Prefeitura Arnold Silva eram
avaliados pelos produtores dos textos do Gazeta, vinculado diretamente ao PSD. Mas isto não
significa, é claro, que os melhoramentos urbanos não fosse de interesse dos sujeitos que
publicavam no jornal. Inclusive, as matérias pagas e os anúncios, apontavam para uma cidade na
qual o acesso aos equipamentos modernos para os fazendeiros, o consumo da moda e dos
produtos da capital pelos feirenses, eram fundamentais para que se atingisse um estágio de
urbanidade mais avançado. O interesse em modificar o centro era também dos grupos que
estreitaram laços com os trabalhadores, a exemplo do então vereador Colbert Martins, que por
vezes seguidas, cobrou atitudes da prefeitura para organização das vendas de alimentos, carnes e
farinhas.
Naquele momento, enquanto a cidade cresce, o comércio feirante também se avoluma
cada vez mais na devida proporção.
166
Sendo assim, vinha de parte da oposição local a cobrança
de uma atitude mais incisiva no ordenamento das vias urbanas. A abertura para tráfego de
veículos, por exemplo, era ponto de pauta constante em suas páginas. Outras atividades para as
quais o Gazeta se direcionou criticamente, para cobrar limpeza, podem ser também citados, como
ocorreu no caso da venda do leite nos bairros. Boa parte do leite vinha diretamente das fazendas e
leiteiros da região, todas as manhãs na porta do consumidor e, a fiscalização sobre esta venda é
fortificada ainda mais mediante algumas denúncias, feitas também pelo Gazeta do Povo, de
colocação de água no leite, de armazenamento inadequado e de distribuição injusta (preços),
discussão bastante em voga nacionalmente. A presença da questão do leite, na imprensa, se
assemelha bastante às denúncias quanto à maneira dos aguadeiros”, que traziam sobre o lombo
de burros a água para a população, quando o Serviço autônomo de Abastecimento de Água não
atendia a todas as residências.
A verdade é que é comum na imprensa em geral (não só de Feira de Santana do período) o
alerta para práticas consideradas inadequadas, como é o caso de reclamações neste mesmo jornal
quanto a donos de veículos que lavavam seus carros fora dos postos de gasolina, em passeios
públicos. No entanto, precisamos promover um cruzamento destas leituras da cidade com dados
_____________
165
Idem.
166
29/11/1959.
90
do executivo e do legislativo para perceber em que medida alguns destes alertas à população
diziam respeito às práticas de vendas de alimentos e demarcaram um contexto de alterações, o
que nos faz perceber que o entendimento do que seja a modernização passa por percepções
diversas, mediante o projeto de sociedade do sujeito que se pronuncia. As alterações feitas na
urbe ocorriam de maneira que a feira livre fosse adequada às mudanças, contudo não deixasse
para trás suas tradições, diga-se de passagem, aquelas mais importantes para a consolidação
comercial de Feira na Bahia.
Para verificar as diferenças entre as posturas de quem estava no governo, pensemos sobre
relações locais entre os principais partidos em destaque na cidade. Fundamentalmente as
diferenças e aproximações nas posturas nacionais dos PSD e da UDN não apontam,
necessariamente para querelas no trato com a questão do mercado de alimentos. Mas percebemos
que, efetivamente, os chefes do executivo municipal assumiram reivindicações de grupos sociais
e sujeitos dispares.
Sabemos que a aliança temporária entre a UDN e o PSD, durante a candidatura Dutra não
durou muito. O antigetulismo tradicional da Banda de Música udenista e o moralismo
parlamentarista do seu setor mais conservador entrou em atrito com a Bossa Nova dentro do
partido, que apoiou o presidencialismo (muito a propósito de candidaturas próprias), chegando a
se envolver com a Força Popular Nacionalista e setores que visavam as reformas de base
167
.
Contudo a direção, pouco depois das eleições de outubro, em nota oficial ‘aos brasileiros’, (...)
deixa claro sua posição contrária a todos os aspectos da política trabalhista de João Goulart
168
.
A prefeitura Arnold Silva conduzia a urbanização da cidade sem aproximar-se dos trabalhadores,
consolidando atos sobre o mercado de alimentos inevitáveis diante do crescimento das feiras e
mesmo do movimento comercial da cidade.
O empobrecimento do trabalhador urbano e as mudanças que afetavam o cotidiano dos
feirenses forçavam atitudes do executivo, como pudemos ver nas diversas queixas populares a
alta de preços publicadas na conjuntura. Reclamações sugeriram perdas de poder de compra para
os feirenses e o jornal Gazeta do Povo exigia regulamentação de preços da parte do prefeito.
Faltavam 600 gramas na compra feita pelo senhor José Fernandes Pimenta, que direciona
lamentações à Prefeitura e a notícia é publicada no Gazeta em maio de 1959. Uma simples queixa
de peso errado de carne verde demonstra como o fato que pode parecer corriqueiro numa feira
_____________
167
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita; A UDN e o Udenismo: ambiguidades do Liberalismo Brasileiro (1945-1965).
168
idem, 122.
91
toma destaque naquela conjuntura. Primeiro porque, em âmbito nacional, o declínio do poder
aquisitivo dos trabalhadores e as reivindicações dos movimentos sociais urbanos se reforçam
neste sentido, sendo que qualquer acontecimento relacionado a preços ampliava-se em
publicações na imprensa. Segundo porque, localmente, as práticas dos negócios tradicionais
sofriam mudanças importantes e a alta dos preços se misturava com as insatisfações diante de tais
alterações. Nesta conjuntura, as políticas voltadas para o comércio ganhavam o tom das disputas
partidárias e apontaram para a centralidade da feira livre e do comércio.
2.3 – Feirantes e comerciantes feirenses frente às novas regras de mercado.
Entre trocas de locais de vendas e cobrança de notas (fiscais), os feirantes que vendiam
em menor quantidade iam sendo espremidos pelas novas regras. No mesmo mês de publicação
destas queixas, houve arranjos diferentes das pessoas no mercado iniciados pelo poder público. A
prefeitura Arnold Silva acomodava os feirantes em pontos distintos do comércio de forma que
estes não provocassem conflitos com os demais comerciantes, preocupados com o suposto “mau
cheiro” dos produtos expostos. A atuação dos fiscais foi elogiada pela imprensa
169
.
Jacira Ribeiro contou-nos que nunca teve barraca e trabalhava, juntamente com sua mãe,
quando criança, com caixotes e bacias, e busca em sua memória um retrato dos fiscais, que
aparecem então como sujeitos que sempre estiveram presentes no cotidiano dos feirantes.
Tinha fiscal. A fiscalização era tipo assim... eles ficavam fiscalizando a feira, chegava de
junto da gente, chegava anotavam dava aquele papelzinho, você voltava de novo,
sempre teve o fiscal, sempre teve. Pra organizar o ponto, porque quem tem barraca paga,
sabe? quem tem barraca paga, de tarde vem o fiscal, com o talão de cobrança, ele
cobra um real ou dois a depender da barraca de cada um. Até a minha aqui, se eu tivesse
(...) ele já tinha vindo com a canetinha cobrir
170
.
O Sr. Cláudio, diz que a presença dos fiscais era necessária, por conta dos conflitos de
ordem pessoal que aconteciam na feira e nos mostra mais uma dimensão da presença do fiscal,
ainda que não possamos localizar exatamente esta visão no tempo. Ele é um dos entrevistados
que reforça a idéia da desorganização interna da feira do centro da cidade. E não reclama da
transferência da feira livre para o Centro.
_____________
169
Bem recebidas as inovações introduzidas pela Prefeitura na disposição das barracas nas feiras livres das
segundas feiras. Espera-se igual medida para o interior do mercado. Especialmente, nos locais destinados a caças,
farinhas e peixes. Gazeta do Povo, 3 de maio de 1959.
170
Depoimento de Jacira Ribeiro dos Santos, Op. cit.
92
era uma bagunça danada, quando a pessoa chegava, por negócio de ponto dava até
briga. Brigava, depois a polícia vinha, ajeitava tudo, botava um num lugar, em outro, e aí
tinha dia que terminava. Naquele tempo o fiscal chamava... o finado Liu, já morreu. Esse
homem já morreu. Trabalhava com oito fiscais atrás. o povo brigava, ele vinha e
apartava, e botava cada qual no seu lugar, mas esse homem morreu. Era os guardas
sabe? Como igualmente tem o policiamento. E ele vinha ajeitava tudo, não
acontecia mais briga. Eu não tenho mais nada a dizer, o que eu tenho a dizer é isso
que eu falei aqui.
Fica notória nesta lembrança que o papel de organização dos fiscais e do policiamento
acontecia sobre os feirantes mais incisivamente com o crescimento da cidade e da população,
buscando-se ajeitar como fosse possível e, de maneira que não afetasse os negócios lojistas, cada
feirante em seu ponto.
Remetendo-se a período anterior, notamos que não os pequenos feirantes eram
atingidos e toda a cidade parecia mobilizar-se diante das novidades. O episódio da greve dos
comerciantes de Juazeiro, que relataremos, trouxe repercussões e refletiu de uma maneira mais
ampla a transformação na estrutura comercial do interior da Bahia. A greve ocorreu devido à
cobrança de notas de venda por parte do governo estadual aos comerciantes. Para eles, esta
atitude lhes obrigava a encarecer o preço dos produtos e, com isto, perdiam clientes para a
vizinha, Petrolina. O Gazeta do Povo se posicionou a favor dos grevistas de Juazeiro e publicou
logo abaixo da notícia a seguinte nota: Feira de Santana deve imitar a sua co-irmã de Juazeiro
da Bahia, referindo-se a Associação Comercial daquele local
171
. Mais uma vez a alta dos preços
estava em jogo, bem como as medidas para oficialização dos impostos. Pressionados para seguir
as normas, os comerciantes de Juazeiro jogaram para o consumidor os efeitos da fiscalização e
culpavam o governo.
Porém, algo de mais pontual e de ordem da organização própria do comércio feirense
merece destaque: o evento da abertura (ou não abertura) das lojas feirenses no feriado de 7 de
Setembro de 1959, data esta que caíra em plena segunda-feira, marco inadiável para a feira livre e
a maior parte das movimentações do centro da cidade. A relação do comércio com a feirinha é
outro ponto de discussão importante no estudo deste mercado. Recentemente, no ano de 2009, a
Associação Comercial de Feira de Santana reuniu-se para estudar uma forma de evitar que, nos
dias de feriado, houvesse tantas perdas no comércio local. Na atualidade, cerca de 10 milhões de
reais são perdidos pelos lojistas em cada feriado. Em outros tempos, a grande movimentação da
cidade em torno de seu comércio fazia com que os comerciantes se negassem a seguir inclusive
_____________
171
Gazeta do Povo, 26 /06/ 1959.
93
feriados nacionais, como nos anos 1960. Para Ana Oliveira este seria um emblema da ligação
entre o comércio, a cidade e a feira, de modo que parecia mais plausível aos os cidadãos feirenses
defender a manutenção das atividades na segunda-feira, independente do feriado, do que
comemorar a data cívica.
Passados alguns anos, este momento ainda foi discutido na Câmara Municipal de Feira de
Santana. Após falações sucessivas entre 1959 e 1961, é na Prefeitura de Arnold Silva que João
Durval, o então presidente da Câmara anuncia o Projeto de Lei número 3 de 1961, que insistia no
fechamento comercial nos dias de feriado, ainda que estes caíssem nos dias de segunda e
pudessem trazer prejuízos aos donos de loja. A abertura das casas comerciais justificava
custava à Associação Comercial os ônus trabalhistas. Para ele, não haveria vantagens nesta
prática e a câmara expõe no Projeto: Nossa cidade tem sido alvo de críticas chistosas na
imprensa do país, pelo fato de não serem observados nos dias exatos, os feriados nacionais,
quando as suas datas coincidem com o dia da feira livre.
172
Feira de Santana começava a ter que estabelecer os meios que dessem continuidade ao
modelo adotado nacionalmente para funcionamento dos negócios, a exemplo das Leis
Trabalhistas que incidiam sobre os horários de trabalho dos comerciários, o que trazia para a
Associação Comercial alguns desconfortos.
Fazer a feira semanalmente era um hábito acrescido da relação com novas lojas e vitrines
e novos mercados, que passaram a concorrer com as vendas de alimentos nas ruas.
Supermercado
Feira de Santana, um dos centros urbanos de maior progresso no Norte do Brasil, está no
planejamento de construção de um Super-mercado, empreendimento esse de interesse de
desenvolvimento da Zona e aqui lançado por COESA, como cooperação particular com
o Governo, no plano de abastecimento de gêneros alimentícios a cargo da OPENE,. Está
marcado o funcionamento do Super-mercado de Feira de Santana para 120 dias e o
capital de 4 milhões, sendo levantado através de ações de valor nominal de 1.000,00 que
estão sendo oferecidas ao público pelos corretores autorizados Antonio Rodrigues e
Erasmo Jacobina.
Super-mercado de Feira de Santana é uma poderosa empresa mercantil que irá valorizar
esta terra e operará nos ramos do comercio varejista e grossista., inclusive no de
produtos farmacêuticos, perfumaria, importação e exportação, principalmente gêneros
alimentícios de primeira necessidade. Tem essa empresa grande função – baratear o
custo de vida, oferecer mercadorias com abundancia e higiene às donas de casa. As
empresas receberão os produtos da fonte de produção para o mercado de consumo, a ser
construído em moldes técnicos mais ( ilegível). Este é um meio de eliminação dos
grandes lucros dos grossistas e retalhistas em beneficio do povo (...)
173
.
_____________
172
Projeto de Lei n 3/1961. Câmara Municipal de Feira de Santana.
173
Gazeta do Povo, 10/05/1959.
94
Se as compras eram feitas na feirinha, nas mercearias, nas vendas e nos armazéns de
figurões da cidade, em 1959 a compra e venda de alimentos são vislumbradas de outra forma por
algumas lideranças locais. No processo de construção do supermercado, diversos objetivos
estariam implícitos e, entre eles, a intenção de se aliar a metas nacionais para baratear o preço dos
produtos alimentícios. Antes disto, havia um posto para atendimento dos trabalhadores, uma
espécie de mercado que, segundo opiniões do Gazeta do povo, vinha desservindo os
trabalhadores com preços mais caros do que os praticados na feira livre
174
. Então, formando uma
sociedade para instalar novo local de vendas, alguns empresários feirenses conseguiram unir
numa empresa objetivos políticos mais complexos à obtenção de lucros, como comerciantes
locais. Davam conta de dois coelhos numa cajadada só!
A necessidade de baratear o custo dos alimentos teve implicações diretas na organização
das feiras livres do país. A postura de trato populista da carestia foi difundida na Bahia nos anos
1950 durante o segundo governo Vargas.
De um lado, o Estado populista atento às expectativas que criara e a necessidade de
manter o apoio político dessa massa popular que legitimara o seu poder, procurou evitar
o confronto entre as massas e o Estado. Isso foi feito através da responsabilização de um
agente social como grande culpado dos problemas das classes populares
175
.
Este culpado seria o Tubarão, adjetivo usado para comerciantes que não praticavam
preços justos. Assim, o Estado se posicionava como solucionador das altas dos preços, o que
mais tarde lhe custou cobranças por ações semelhantes. A denúncia de motins urbanos na
imprensa baiana demonstrava, para Mirian Freitas, que a população não aguardava apenas a ação
do Estado, defendendo na maioria das vezes uma economia moral reguladora de preços em
detrimento da concorrência desenfreada. Cultura combatida pelo Partido Comunista, alguns
trabalhadores urbanos criavam no Estado a imagem do antagonista que era ao mesmo tempo
solucionador da alta dos preços. Mesmo a UDN, antigetulista, não teria fugido a estas práticas.
Em Feira, temos a apresentação pública de um grupo de investidores interessados ao
mesmo tempo em criar um novo modo de consumo e atender a expectativas de barateamento de
preços
176
. A empresa teria parceria com o governo e a OPENE e, o que era curioso, abre vendas
de ações através de edital público na cidade. Os membros fundadores eram: João Marinho
_____________
174
Gazeta do Povo, 24 de maio de 1959.
175
FREITAS, Mirian. Populismo e Carestia. 1951-1954. Universidade Federal da Bahia. Mestrado de Ciências Sociais. Salvador
– Bahia, ano, p. 105.
176
Gazeta do Povo, 3 de maio de 1959.
95
Falcão, Francisco Barbosa Caribé, João Durval Carneiro, Dival Pitombo, Waldy Pitombo
177
. Em
seguida, novas pessoas passaram a compor o grupo, entre estas, inclusive uma professora. No
âmbito do executivo, o prefeito Arnold Silva reconheceu a feira de bairro como oficial, o que se
deve, sobretudo, à cobrança da população urbana em busca de meios mais baratos e mais
próximos de suas residências para prover a mesa com produtos básicos.
Estes foram fatores que se desdobraram em conseqüências diretas sobre nosso objeto de
análise, visto que, a conduta do executivo e do legislativo municipal para com a urbanização (o
que inclui modelo de planejamento da economia da cidade, relação com os trabalhadores urbanos
e relação com as atividades tradicionais) dizia respeito diretamente ao comércio das ruas
principais. A sucessão de 1962/1963 também pouco modificou esta relação em específico.
2.4 – Entre a roça e as ruas: o mercado de alimentos e o “populismo do getulismo” no trato
da carestia.
Podemos projetar sobre o tema da venda de alimentos feita por ambulantes uma
infinidade de questões de pesquisa: estruturas de produção, comercialização e conjunturas, tipos
de sociedade, com suas hierarquias, seus modelos, seus grupos sócio-profissionais, seus grupos
de consumidores, suas tensões, seu movimentos sociais; o poder, na sua estrutura, composição e
funcionamento
178
. É possível encontrar nos desdobramentos do consumo urbano, como
afirmou Mário Augusto Silva, estudos para fins demográficos e até mesmo de compreensão da
formação da classe trabalhadora nas grandes e médias cidades. Fica notória a sua importância
para o encontro da história do trabalho com sujeitos históricos que vivem no trânsito do campo
para a cidade, no chamado setor de serviços ou na agricultura familiar. Se questões sobre a
chamada produção de subsistência, que deixara seu legado na história da divisão de terras e
situações políticas ainda não resolvidas na zona rural, permitem uma aproximação com o passado
dos trabalhadores rurais, de outro modo, trazem um contato interessante com as suas idas e
vindas ao centro da cidade, laços culturais e redes formadas durante este processo. Nos mapas
_____________
177
João Marinho Falcão (1893/1971), foi prefeito em coligação UDN, PSD, PR, PDC, PC até 1959, sendo considerado influente
negociante em Feira, como mencionamos; Francisco Barbosa Caribe (não encontrado registros), João Durval Carneiro (1929)
foi dono de empresa de ônibus, era membro da UDN em Feira de Santana, sendo eleito prefeito pela Arena em 1967; Dival
Pitombo (1916), era poeta e escritor em Feira de Santana; Waldy Pitombo (1916/1998), era médico de destaque na cidade.
178
SILVA, Mário Augusto dos Santos. O tema do abastecimento da historiografia baiana: uma avaliação. Universitas. Cultura,
Salvador, 1986, página 104
96
demográficos da Bahia, ainda segundo Mário Silva, estas pessoas só eram acessíveis ao serem
contabilizados nos mapas comerciais, sendo desconhecidos seus modos de vida no campo.
Pois é neste trânsito que são elaboradas sociabilidades fundamentais na vida dos
lavradores feirantes. a sua identificação com o ambiente urbano de trabalho é escorregadia, no
entanto fundamental para o entendimento de uma classe trabalhadora urbana plural e de
expectativas de atuação frente aos poderes públicos diferenciadas.
Dona Maria (Santinha, como é conhecida), 68 anos e Dona Joana, 53, são primas. Hoje
dividem a calçada da rua Marechal Deodoro com outros feirantes. Santinha vende o que produz
na roça: acerola, caju, manga e o que for do tempo. Ainda, como lavradora, planta seu feijão e
possui uma roça de acerola, no seu sítio no interior da Fazenda Alto do Canudo, distrito de Maria
Quitéria, Feira. Trabalha ali desde os 12 anos de idade. Segundo ela, os avós e as tias a traziam
para a feira, o que lhe levou a aprender os negócios. É ela mesma quem nos conduz a Dona
Joana. Apesar de vender alguns produtos da roça, Dona Joana compra mercadorias em
quantidade, o que Santinha chama de saco da usura. Dona Joana explica que, não tem mais como
viver apenas do que a roça dá. Antes, plantava mangalô, ervilha, mostarda e criava galinhas no
povoado de Moita da Onça (Maria Quitéria). Diz que nos anos 60 é que “veio aparecer arroz,
macarrão, porque tinha, mas nem todo mundo comprava”. Segunda ela, “naquele tempo, tudo que
se plantava, a terra dava, hoje, sem remédio não cresce”. Como outros feirantes, ela também
afirma que a facilidade de trazer o produto da roça para daí comprar aquilo que faltava em sua
residência, como a carne, era bem maior. Esta situação ainda estava semelhante no Centro de
Abastecimento onde era bom de início, mas depois chegou mais gente diferente, o movimento foi
crescendo e as pessoas compravam em maior quantidade. A mãe de Dona Joana e tia de Dona
Santinha era citada como quem as trazia ainda meninas para a feira
Para comparar os tempos de hoje, quando precisa negociar os espaços com outros
vendedores de outras mercadorias (que lhes cobram para dividir a calçada), com os tempos idos,
Dona Joana listou elementos de seu cotidiano: cama de quitanda, não tinha TV, rádio, transporte,
telefone, a luz era de candeeiro. No entanto, para ela não havia violência, nem dificuldades para o
lavrador.
Dona Santinha e Dona Joana nos atentam para algumas coisas importantes. Os feirantes
que vêm da roça, identificam-se como lavradores, lavradoras, neste caso. Na cidade, os órgãos
que empreenderam as medidas sobre a feira é que identificavam estas pessoas como feirantes. De
97
outro modo, as associações, como ainda veremos, de comerciantes atacadistas, cadastrados, se
identificavam como tal. Uma outra coisa é o encontro com um passado de tranqüilidade diante
das situações adversas de seu trabalho. Após tantos anos, o passado se revela como fuga de uma
realidade na qual são cada vez mais espremidos pelo grande comércio. Esta situação se
assemelha, inclusive, à dos próprios negociantes de maior porte diante dos supermercados, enfim,
num processo longo de modernização da feira.
Retomaremos, a seguir, brevemente, as intervenções no Nordeste que tiveram uma relação
com o mercado de alimentos para entender o lugar de algumas políticas públicas direcionadas à
feira de Feira de Santana e como estas fincaram tripés fundamentalmente na relação da
distribuição dos alimentos com a produção no campo. Estes fatores tem ligação próxima com as
alterações no ambiente de trabalho destas mulheres.
A SUDENE veio a consolidar políticas intervencionistas no Nordeste, colocando em
pauta uma critica do desenvolvimento nacional, dado de maneira desigual no território brasileiro.
No famoso documento do GTDN
179
, atribuído a Celso Furtado, há uma clara alusão a uma
tendência de disparidade da produção nordestina com relação ao Centro-Sul, devido a,
principalmente, suas condições naturais, em especial a presença do fator seca como fenômeno
multiplicador da pobreza na região. Seria pela tendência secular ao atraso da economia
nordestina unida ao investimento industrial concentrado no sudeste que haveria se construído
uma realidade territorial descompassada. Na leitura da CEPAL, era necessário criar subsídios
estatais, em aparelhos como bancos de créditos ou fornecimento de equipamentos de infra-
estrutura urbana para gerar a industrialização regional permitindo então que o Nordeste
acompanhasse o centro industrial do país. O atraso seria superado, além disto, por uma incisiva
readequação da produção de alimentos ao crescimento demográfico dos centros urbanos
periféricos. O GTDN entendia também que era nos mercados que se tornava possível
acompanhar o problema da carestia, dado assim por uma combinação de fatores no campo e na
cidade. Esta forma de pensar o Nordeste inventando regionalmente características peculiares
para que novos fôlegos fossem tomados pelos poderes locais
180
- difundiu-se consideravelmente
entre as cidades tidas como pólos, num ideário que via como ultrapassadas as atividades agrícolas
tradicionais
181
. No entanto, como veio a demonstrar Francisco de Oliveira
182
, uma relação que
_____________
179
Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste: Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste. 1959.
180
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes, São Paulo: Cortez; Recife, Massangana, 1999.
181
CARVALHO, Alane. Feira de Santana nos tempos da modernidade. O sonho da Industrialização em Feira de Santana.
98
parecia desconexa, quase como duas economias díspares, uma urbanizada, outra rural e atrasada,
se dava, na verdade, de maneira combinada. Estes se complementavam na consolidação de um
capitalismo desigual e incompleto por natureza de seus princípios. Sua visão inaugurava uma
leitura dialética do processo. Relações produtivas pré-capitalistas e o que havia de mais avançado
em técnica de produção, para ele, andavam de mãos dadas em estruturas de poder conservadoras
e na exploração do trabalhador. Formas precárias de trabalho e desemprego eram tomadas como
exemplo da dupla face da moeda capitalista.
Para alguns intelectuais a noção de “periferia” foi fundamental para compreender de que
maneira os governos locais viriam a se integrar aos desfechos da política desenvolvimentista que
se amplia no governo Kubitscheck. Este é um assunto que vem intrigando alguns pesquisadores
em Feira de Santana há mais de uma década
183
. No entanto, ressaltamos a necessidade da
substituição da perspectiva de arranjo local para o desenvolvimento, considerando Feira como
uma típica periferia a se desenvolver, para perceber a relação dialética desta cidade comercial e
suas relações sociais desenroladas do comércio como ponto de destaque nas reflexões sobre sua
integração ao capital, desta vez sem a expectativa do “desenvolvimento”. Consideramos que,
neste sentido, as relações campo e cidade por intermédio do mercado de alimentos, é fundamental
nesta análise.
Sabe-se que o modelo da CEASA foi criado a nível nacional com o objetivo de regular a
oferta de preços dos hortifrutigranjeiros e disciplinar esta produção para fins de atacado, tendo
em vista facilitar a intermediação para chegar ao consumidor final através do varejo, que foi
instituído posteriormente
184
. Desde o final dos anos 1950 que estas medidas vêm sendo adotadas,
localmente, na maioria das cidades brasileiras, como forma de regulamentar as vendas grossistas
e a distribuição dos insumos básicos para a população. Com base nos pensamentos de Francisco
de Oliveira, pesquisadores vinculados à SUDENE produziram diversos documentos afirmando a
182
OLIVEIRA, Francisco. Crítica à Razão Dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
183
Além dos localmente conhecidos trabalhos de Rossine Cruz e Nacelice Freitas, podemos citar CARVALHO,
Alane Op. cit.; Diego. O futuro do pretérito ou uma cidade para o futuro (Projeto de Pesquisa), MONTEIRO,
Jonatas e o trabalho não publicado de VALENTE, Andrei de Brito. Estado e direção de classe: algumas reflexões
sobre o período de industrialização em Feira de Santana. Texto apresentado no Seminário do LABELU, 2006
mimeo.
184
FILHO, Miguel Abraão Fahel. A atuação da CEASA na Bahia. In Governo da Bahia. Secretaria de Planejamento, Ciência e
Tecnologia. Centro de Projetos e Estudos. 1º Encontro Técnico sobre Prioridades Sociais da Nova República Alimentação
Popular na Bahia. Salvador, 1985.
99
desigualdade no campo como a principal causa dos problemas de oferta de alimentos e não a sua
circulação, estabelecendo contrapontos, a partir dos anos 1980, à intervenção direta nos
mercados
185
. É fato que, como colocou Homem de Melo
186
, a partir de 1960 verifica-se um
crescimento na cultura de exportação e os produtos alimentares domésticos tiveram a sua
produção declinada em todo o país. Não pelo esgotamento das terras, como afirmou a CEPAL,
mas por uma mudança drástica na composição da produção
187
. A queda da produção dos
pequenos produtores (áreas com menos de 50 hectares) é geral, agravando-se mais ainda na
década de 1970. No Nordeste a avaliação era de que um crescimento de setores não agrícolas,
conseqüência da política industrializante não foi capaz de criar os empregos para incorporar os
migrantes rurais que, encontravam na cidade trabalho nos setores de comércio e serviços
188
. A
sugestão do IPEA, para estes e outros problemas gerados na diminuição da produção de
subsistência era, nos anos 1980, retomar as políticas agrícolas de fornecimento de sementes e
priorizar os pequenos produtores e não os setores urbanos. A crise que atingiu o país nos anos
1980 fomentou uma reflexão, segundo os pesquisadores, sobre os erros cometidos no passado
pelas políticas tomadas para trato político da questão alimentar.
Ana Oliveira também percebe que a interiorização da economia, pelas vias da
interferência nacional nas lavouras de subsistência, foi um dos motivos que tornou Feira de
Santana um dos focos de ação do governo federal
189
nos anos 60. Sabemos que somente na
década de 1970 foram postas sistematicamente em prática as metas desenvolvimentistas no
mercado de alimentos em Feira de Santana. Mas observamos, na Feira dos primeiros anos da
década de 1960, tentativas de acompanhar as políticas implementadas em outros locais para
controle da distribuição de alimentos nos centros urbanos, ainda que timidamente.
Diante da maior incidência do trato público da carestia, o mercado dos feirantes recebeu
destaque nos primeiros anos da década de 60. É possível supor a existência de alguma relação
entre as mobilizações de trabalhadores em Feira de Santana, nos anos 1960, pela melhoria de suas
condições de vida na cidade e a atuação da Prefeitura Municipal no mercado de alimentos. Pouco
_____________
185
AGUIAR, Maria de Nazareth (org.) A questão da produção e do abastecimento alimentar no Brasil. Um diagnóstico Macro
com recortes regionais. Brasília, 1988. um exemplo local é o trabalho de SILVA, Milton Barbosa da. O crédito rural e a
produção de milho e feijão no Município de Feira de Santana, 1975-1985. Feira de Santana, Monografia. UEFS, 1996.
186
HOMEM DE MELLO, Fernando. O Problema Alimentar no Brasil: a importância dos desequilíbrios tecnológicos. RJ: Paz e
Terra, 1983.
187
NAZARETH, Maria de Nazareth (org). A questão da produção e do abastecimento alimentar no Brasil. Um diagnóstico
Macro com cortes regionais. Brasília: 1988. p. 20.
188
idem, p. 141.
189
OLIVEIRA, Op. cit. p. 19.
100
se sabe, ainda, sobre a organização dos trabalhadores feirenses no pré-golpe (1964), contexto em
que se atribui nacionalmente uma grande retomada de mobilizações no campo e na cidade entre a
classe trabalhadora
190
. Francisco Pinto, à época no PSD, e depois membro do extinto MBD, faz
referência aos anos que precederam a sua deposição em 1964, como um momento propenso para
a instalação de um governo popular em Feira, por ter conseguido se aproximar com demandas de
sindicatos e organizações de bairro
191
. Não ele como seus colegas de militância, recorreram ao
período para apontar um exemplo único de gestão popular da Prefeitura de Feira de Santana:
Chico Pinto, num embate frontal contra aqueles que (...) emprestavam seu nome em
defesa dos interesses do que se costumava chamar na época de forças da burguesia,
Chico Pinto representava (...) esta anti-força, as forças que estavam aliadas aos interesses
dos trabalhadores, dos mais pobres de Feira de Santana (...)
192
.
Após a dura repressão do golpe aos militantes do PC e às oposições em Feira de Santana,
também os lideres sindicais foram coagidos, segundo Hosanah Leite. Logo em seguida, Pinto é
perseguido, o que lhe põe, nas memórias de Hosanah, ao lado dos que foram excluídos da
hegemonia política militar.
Sindicatos como dos fumageiros, como dos feirantes, sindicatos dos mecânicos
metalúrgicos, muitos outros sindicatos. Sindicato dos Bancários, Sindicato dos
Comerciários, todos eles sofreram um processo de coação, sofreram processo de
intimidação, e, muitas das vezes é tirado [as lideranças] da frente desses movimentos
193
.
Para Igor Gomes
194
a lembrança que os movimentos sociais da cidade guardam da figura
de Francisco Pinto não é gratuita, visto que buscou tornar seu programa de ações próximo da
maior parte das reivindicações dos sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos de Feira de
_____________
190
Boa parte deste debate tem sido feito no Laboratório de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais, no DCHF-UEFS,
por bolsistas e voluntários interessados em desvendar uma conjuntura bastante citada por sujeitos que se mobilizaram em torno de
uma oposição aos movimentos da direita antes e durante a ditadura na cidade. Muitas notícias da imprensa do período
demonstram a preocupação com o encarecimento dos insumos básicos e, ao mesmo tempo, é notória a necessidade de os
trabalhadores organizados publicarem notas, informativos, convites para comemorações (especialmente o 1 de maio) entre outros.
As Prefeituras, no início da década, costumavam fornecer auxílios para estas organizações, doação de terrenos para instalação de
sedes e outras solicitações vindas de sindicatos e associações. Muitas destas recorreram ao reconhecimento público, quando eram
de âmbito municipal, neste período ( o que está documentado nos projetos de Lei da Câmara Municipal).
191
NADER, Ana Beatriz. Autênticos do MDB. Semeadores da Democracia. História Oral de vida Política. Paz e Terra, 1998.
192
Depoimento de Hosanah Leite, gravado no Seminário Chico Pinto: Democracia e Ditadura em Feira de Santana,
realizado pelo LABELU – UEFS, em Setembro de 2007.
193
Idem.
194
GOMES, Igor. Lutas de classes nas encruzilhadas entre o rural e o urbano: Lavradores, vaqueiros e artesãos,
cativos e libertos, nos primeiros passos da montagem de um projeto de pesquisa. Texto apresentado no LABELU,
mimeo, 2008.
101
Santana. Chico Pinto, junto à Prefeitura, levava a sério um projeto de construção de suas bases
junto às mobilizações dos trabalhadores
195
.
O histórico pessoal de Chico Pinto e a sua formação política podem ser apontados como
justificativa para parte de suas atitudes como chefe municipal em 1963. Definia-se como um
produto do populismo do Getulismo, da rígida ética que a UDN pelo menos externava e, mais
tarde, dos ideais socialistas absorvidos na universidade
196
. Desta trajetória, nasceu uma postura
de aproximação com questões trabalhistas que nos permite também entender os motivos que
moviam a sua popularidade. Relembrando sua carreira, fala de quando foi convidado para
assumir a candidatura para Prefeito, pelo PSD, momento em que afirmou: não quero votos da
burguesia. Não servirei a dois senhores, Deus e o Diabo. Pinto também iniciou um esvaziamento
dos setores do PTB que estavam próximos a associações de trabalhadores e de bairro
197
e
daqueles que se vinculavam aos edis da UDN. O mandato anterior de vereador, segundo Chico
Pinto
198
, ainda fundamentou o sucesso popular da candidatura para Prefeito.
Um acontecimento que, mais adiante foi usado como justificativa da UDN para deposição
do Prefeito feirense em 1964, foi uma mobilização em prol da construção de uma maior
participação da sociedade organizada no controle das contas públicas, estopim para um “quebra-
quebra” na Câmara Municipal de Feira. Era fato que Francisco Pinto possuía um programa
diferente de governo, seguindo tendências de negociações com os trabalhadores, o que lhe
custava nos sertões da Bahia a fama de Prefeito oposicionista e, entre a população feirense, a
promoção da imagem de governo popular. Mas tais elementos de seus caminhos políticos e
pessoais não podem, por si só, definir os rumos do governo pintista
199
.
Muitos textos vêm testando a possibilidade de empregar uso do pensamento da história
operária inglesa no estudo das características paternalistas para o comportamento dos
_____________
195
Ainda no governo do Prefeito Arnold Silva (UDN – 1959/1962), encontramos medidas voltadas para escolarização da
população rural em escolas criadas dentro de fazendas da região, o que para nós indica uma preocupação em angariar votos. A
Associação dos Estudantes Secundaristas (AFES), importante órgão mobilizador em Feira é reconhecida pela prefeitura (Projeto
de Lei n 60/1960), Créditos eram oferecidos para o funcionamento da Sociedade Montepio dos Artistas Feirenses, um terreno é
doado para funcionamento da Associação União dos Sapateiros (PL n 27/1960) e outras associações, a exemplo da Associação
dos Abatedores e classes anexas de Feira de Santana (que abrigava grandes e pequenos revendedores de carne, alguns
proprietários de gado, outros apenas “açougueiros”, de acordo com o PL 29/1961). Enfim, era possível notar o empreendimento
para postura pública por parte da maioria destas organizações.
196
NADER, Ana Beatriz. Op. cit. p. 112.
197
idem, p.
198
Ccomecei a advogar em Feira em 1955, e o fato de ter sido um vereador atuante contribuiu para que clientes aparecessem nos
primeiros dias. Tornei-me advogado dos sindicatos de Construção Civil, fumageira, Feirantes,. Metalúrgicos e comerciários e
cheguei a ter a maior banca de advocacia da região, embora na a mais rendosa. Depoimento de Francisco Pinto in NADER, Ana
Beatriz. Autênticos do MDB (...) p. 112.
199
expressão utilizada por Igor Gomes.
102
trabalhadores brasileiros
200
. Quando os trabalhadores encontram maneiras para fugir da perda de
direitos e garantir a defesa de interesses próprios, o fazem por meio de artifícios que podem
parecer atrelados à política populista herdada do governo Getulio Vargas, que deixara um legado
ainda difícil de apreender na política nacional, já que muito do que foi atrelado ao trabalhismo,
foi construído com base numa apropriação de reivindicações clássicas dos trabalhadores
brasileiros
201
. Podemos dizer que o legado populista getulista, conforme citado por Pinto não era
privilégio do Prefeito, mas era realidade de aprendizagem de vários setores do trabalho feirense
que buscavam então fazer ecoar suas vozes no espaço de negociação com a gestão municipal
202
.
Maria Vitória Mesquita Benevides afirma que o antigetulismo feroz da UDN contribuiu
para trazer à tona o comportamento getulista entre políticos que visavam se aproximar do modo
de operar o conflito entre trabalhadores e Estado do governo Getúlio, que ganhavam assim, título
de esquerdistas
203
.
Como plano da equipe então à frente da Prefeitura, a cidade, que havia recebido uma
série de modificações nos modos de negociar no centro e na modernização do comércio de gado,
com a criação dos mercados modelo, por exemplo, necessitaria ainda de um aparelho
governamental que fizesse jus a todas aquelas transformações
204
. Sem código Tributário
oficializado, sem um debate precedente do orçamento anual e, num sistema de pagamento de
licenças e impostos caótico diante do tamanho da população, as ações de Chico Pinto para
formular tais instrumentos apresentavam, portanto, diferencial
205
.
_____________
200
NEGRO, Antonio Luigi. Paternalismo, populismo e História Social. Cadernos AEL n 20/21.; FORTES,
Alexandre. O direito na Obra de Thompson. Unicamp, 2005; FORTES, Alexandre. Miríades por toda a eternidade. A
atualidade de E. P. Thompson. Tempo Social, vol 18, n1. GOMES, Flávio e NEGRO, Antonio Luigi. Além das
Senzalas e Fábricas. Uma história Social do trabalho. MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson no Brasil.
Outubro, Revista do Instituto de Estudos Socialistas: Alemeda, n.14, 2006.; FORTES, Alexandre e NEGRO, Antonio
Luigi. Historiografia, trabalho e cidadania no Brasil in O Brasil Republicano: o tempo do nacional-estatismo do
início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo.
201
O trabalhismo seria uma política construída tanto por trabalhadores como pelo Estado, mas não de maneira consensual. O
Estado havia, de certa forma se apropriado da auto-imagem dos trabalhadores, numa estrutura sindical a ele atrelada. Para Ângela
Gomes, a cultura política trabalhista era mediadora dos interesses de ambas as partes. Não concordamos que tal afirmativa
permita a leitura de uma relação de interlocução e cumplicidade (FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política
brasileira in O Populismo e sua História: debate crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 ).
202
No Laboratório de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais da UEFS alguns textos têm produzido resultados
significativos quanto aos estudos sobre a classe trabalhadora urbana de Feira de Santana.
203
BENEVIDES, op. cit, 222.
204
“contratamos fiscais competentes na capital do Estado e intensificamos a fiscalização. Declaramos guerra ao
contrabando, e, em apenas um ano, o município, que ocupava o quarto lugar na arrecadação de impostos, sem
qualquer aumento, pulou para o primeiro lugar, excluindo Salvador.” Idem, p. 148.
205
Apesar disto, o próprio Francisco Pinto se afirmou um herdeiro da ética da UDN que continha, entre outros fatores o discurso
de lisura e combate a corrupção mediante o aparelhamento burocrático. “O moralismo, marca registrada do partido, interna e
externamente corresponde, por um lado, ao ascetismo tático no combate à corrupção (via indireta do ataque ao getulismo) e, por
103
Inicialmente, organizamos a população em Associações de bairro, ainda inexistentes no
município e criamos uma Federação das associações nascentes, nenhuma obra era
realizada na cidade sem uma discussão em cada bairro e em praça pública, onde
falavam, no inicio os trabalhadores, o prefeito e alguns secretários, a fim de defender as
reformas de base, programadas pelo governo de João Goulart: Agrária, tributária,
bancária, cambial, fiscal, com os acréscimos por nossa conta. ... Construímos e
implantamos o Centro de Abastecimento fixo e outros volantes, em caminhões
apropriados, vendendo, em cada bairro, somente aos filiados, às associações e aos
sindicalizados, os produtos básicos, pela metade do preço do mercado
206
.
Tal projeto de montagem de uma Central de Abastecimento merece análise. Naquele
governo existiram outras iniciativas que corroboraram com objetivos de amenizar a situação de
precarização da renda dos trabalhadores urbanos. Iniciativas como farmácias populares,
suspensão de pagamento de impostos para os devedores de menos de 5 mil cruzeiros, construção
de albergues, entre outras propostas, eram encaminhadas pela Prefeitura à Câmara Municipal, que
na maioria das vezes se mostrava contrária.
A moral do circuito tradicional das vendas foi reforçada por Chico Pinto nos seus atos de
regulamentação das práticas no mercado de alimentos feirense. O crescimento comercial e a
presença de negociadores de todo o tipo como os famosos atravessadores, intermediários,
taxados de especuladores era o alvo das críticas sobre o encarecimento dos produtos vendidos
pelos feirantes e é no texto do projeto de Lei que encontramos a condenação dos personagens da
feira que não eram tradicionais naquela rede de trocas como fomentadores de preços injustos.
Os historiadores ingleses mostraram que os intermediários dentro do comércio tradicional
da Inglaterra eram muitas vezes denunciados como agentes culpados pela complexificação das
trocas e pelo conseqüente encarecimento de alimentos
207
. No caso local, ora estudado, numa
economia de tradição rural, trazer os produtos diretamente das lavouras seria mais justo, visto que
se eliminaria a figura do comerciante que atravessava os insumos. Estas pessoas eram geralmente
recém chegadas no mercado local, ou eram comerciantes maiores.
Além disto, a prefeitura visava à construção de um mercado para abrigar os feirantes:
Projeto de Lei n 07/1963 Autoriza estudos para localização e construção de novo
mercado municipal nesta cidade.
O prefeito municipal de Feira de Santana, Estado da Bahia faço saber e sanciono a
seguinte Lei:
outro, ao compromisso com a moralização desejada pelas classes médias, que a UDN pretendia representar.” BENEVIDES, Op.
cit. p. 149.
206
idem . grifo meu.
207
THOMPSON, E. P. Op. cit.
104
Fica o governo do Município autorizado a mandar projetar um novo mercado central
para a cidade, a ser localizado em Loteamento existente, ou que venham a existir, nas
proximidades do centro urbano, com a conseqüente possibilidade de construção de
praça, contígua ao futuro imóvel e suficientemente ampla, onde possam ser realizadas as
atividades das tradicionais feiras livres
208
.
O projeto de Lei estipulava que os contornos do novo mercado fossem escolhidos por sua
funcionalidade e levava em conta, segundo o texto, o crescimento das atividades de feiras livres e
o grande número de trabalhadores recém chegados transitando desordenadamente entre os mais
antigos na feira. Abaixo do projeto uma nota de lápis de cor indica: “cemitério”, ou seja, o
projeto não teria sido aprovado
209
.
Esta medida não era isolada e vinha acompanhada de debate mais ampliado sobre o
abastecimento na cidade. De acordo com o projeto de Lei 48/1963, a Prefeitura também
propunha a criação de uma Comissão Municipal de Abastecimento (COMAB). Podemos sugerir
que esta seguia um modelo implantado em outros locais, como pelo PSD na Bahia, tais quais
Comissões de Preços, Comitês contra a Carestia, Congressos e outras iniciativas vindas do Estado
e dos trabalhadores. A convenção Baiana contra a alta do custo da vida agregava sindicatos,
associações de classe média e de trabalhadores urbanos (alfaiates, panificadores, eletricistas,
pintores, metalúrgicos, marceneiros, entre outros)
210
. Foram organizações que visavam fiscalizar
a atuação dos comerciantes que não respeitavam os preços, vistos como açambarcadores,
especuladores, atravessadores, exploradores, gananciosos, que, com sua usura desregulavam a
oferta e os preços dos alimentos nos mercados
211
. Com isto, desviava-se a atenção do conflito de
classe e de problemas mais amplos que envolvem o campo para uma moral no funcionamento dos
mercados. Nem sempre esta foi a situação encontrada pelas comissões como princípio do
problema. A baixa produção agrícola, associada a um conjunto mais amplo de fatores, também
era tomada como causa, abrindo outra frente de atuação contra a carestia, mais voltada para o
homem do campo por via da distribuição de sementes. No trabalho de Mirian Freitas, a atuação
das lideranças políticas varguistas, nas duas frentes, fornecendo subsídios no campo, ou
readequando o comércio local aos preços, ou nas duas concomitantemente, foi notada como
_____________
208
Câmara Municipal de Feira de Santana. Livro de Projetos de Lei (16.03.1963).
209
Não só este projeto de Lei, como outros da gestão de Francisco Pinto vêm acompanhados da referida indicação,
além do que está incompleta a seqüência dos projetos deste ano. Não sabemos ao certo se esta medida se deveu ao
fato de sua deposição, ou se era uma prática dos edis para identificação dos textos que não tiveram aprovação.
210
FREITAS, Miriam Tereza M. de. Populismo e carestia: 1951-1954. 1985. Dissertação (Mestrado) – Salvador, 1994.
211
Idem.
105
caminhos para negociação com os trabalhadores em Salvador
212
. Em Feira, encontramos
conexões com ambos os modos de operar a questão da carestia num mesmo projeto. Quando foi
criada a COMAB, subordinada diretamente à secretaria de Indústria, Agricultura e Comércio, a
ela competia fixar preços de produtos e serviços essenciais, disciplinando o sistema de seu
controle, fornecer sistema de informação sobre produção e distribuição e consumo, (...), além de
estudar e estabelecer medidas de fomento à produção de insumos essenciais
213
. Em colaboração
com a SUNAB, caberia à Comissão garantir o livre comércio dos produtos, desde que
obedecessem às regras estabelecidas pela própria entidade, composta por: Representante da
Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio (o presidente); Câmara de Vereadores; Sindicato
de Trabalhadores; Sociedades de Bairro; Associação de Estudantes; Associação Rural
A justificativa do Prefeito era que a cidade havia verificado aumentos dos Preços das
mercadorias de primeira necessidade sem que medidas [fossem] tomadas para impedi-las ou, no
mínimo, minimizá-las. A prefeitura tentou criar uma outra comissão anteriormente sem sucesso,
tornando-se medida urgente a criação da Comissão Municipal de Abastecimento. No texto do
Projeto de Lei, a Comissão se justifica da seguinte forma:
A COMAB, realizando estudos das mercadorias essenciais que deverão vigorar em
nossa cidade, tomará por certo deliberações mais justas e democráticas, pois da comissão
participarão representantes das diversas classes e camadas interessadas na questão. Tem
sido preocupação do atual governo do município o problema do abastecimento. Assim é
que já realizou maior fomento à produção jamais realizada em Feira, com a disctribuição
em quantidade ponderada de sementes de feijão e milho, fez instalar e funcionar o Posto
de Abastecimento par revenda a preços baixos, objetivando estabilizar o mercado de
gêneros de primeira necessidade, fez instalar a Farmácia Municipal para vender por
preços acessíveis os medicamentos de maior necessidade do povo. Na proposta
orçamentária inclui verbas, pra [sic], no próximo exercício atuar com mais amplitude no
fomento a produção e na organização do abastecimento.
Denomina, também de açambarcadores e contrabandistas as pessoas que viriam agindo
sobre o controle dos preços dos produtos e a medida denunciava o imperialismo e a abertura dos
mercados. O autor do texto abaixo terminava-o com uma citação da FAO: A fome somente pode
ser real e efetivamente eliminada com a abolição da pobreza. Esta é a razão da nossa luta
Sabemos que o problema da carestia de vida na nossa cidade, como em nosso país tem
como base as estruturas arcaicas e obsoletas, que, juntamente com a expoliação externa
da nossa economia, impera contra (...) o bem estar do nosso povo
214
.
_____________
212
Idem.
213
Projeto de Lei 48/1963.
214
Feira de Santana, Projeto de Lei nº 48/1963. Francisco Pinto.
106
Solicitou também à mara, na oportunidade, a aprovação da ampliação de verbas
destinadas ao assunto e à manutenção do Posto de Abastecimento em funcionamento desde o
final dos 50, no total de 10 milhões de cruzeiros. Isto, por conta de seus objetivos
redundantemente explicitados no texto de acatar a demanda dos pobres da cidade pelo sustento
familiar, diante do encarecimento dos produtos alimentares e baixos salários. Chico Pinto unia
assim as demandas de produção das lavouras de subsistência à diminuição dos custos familiares
dos trabalhadores urbanos. Beneficiou, desta forma, é bem verdade, os produtores agrícolas que
dependiam da feira livre para trocar os insumos oriundos de suas pequenas terras
215
, interferindo
diretamente na presença de negociantes grossistas ou estranhos à lógica fundamentada de
negociação. A sua principal justificativa era a de facilitar o acesso aos gêneros de primeira
necessidade para os trabalhadores menos afortunados, que as suas profissões não os poderia
oferecer.
Segundo o prefeito, Preocupado com esta situação foi que meu governo instalou nesta
cidade o Posto de Abastecimento para a população pobre, que vem funcionando com
excelentes resultados e real proveito. Aliás, a atribuição desta ação é corrente à ação da
Comissão da Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio. Diga-se de passagem, a secretaria
foi criada pelo próprio governo de Francisco Pinto, em decreto. As suas finalidades eram atrelar
as decisões municipais a uma gestão participativa com associações de bairro e mesmo com o
movimento estudantil, já reconhecido na cidade (a Associação Feirense de Estudantes
Secundaristas -AFES) desde 1960.
Atentamos para o fato de que estes atravessadores eram identificados como aqueles que,
nas estradas e nas feiras, compram tais gêneros para fazer monopólio e revenda ao público,
estando, por este motivo, sujeitos à multa de metade do salário mínimo ao tripulo do salário
mínimo. E mais, nos mercados e nas feiras, e nas estradas compram diretamente ao produtor
gêneros de primeira necessidade a preços módicos para revender com lucros excessivos, ou
ainda, adquirem tais utilidades até antes do meio dia, prejudicando o abastecimento normal da
população
216
.
A fala recente de um comerciante de alimentos que voltou às ruas após a construção do
Centro de Abastecimento (1977) traz à tona uma memória importante da atuação de Francisco
Pinto. Personalizado como emblema de um modo de tratar os vendedores de rua, sua figura é
_____________
215
Gomes, Igor. Op. cit.
216
Francisco Pinto. Projeto de Lei n 1/1964 – não aprovado.
107
correlacionada a uma ética interna de distribuição de mercadorias, cobrança dos fiscos e
espacialização das vendas.
Ao contar como voltou para trabalhar nas ruas, José Carlos, feirante, citou os artifícios
pessoais para permanecer no local que escolheu para suas vendas fora do Centro de
Abastecimento.
Diversos fatores desta trilha podem ser acompanhados na fala do feirante que interpreta
conflitos de classes como hierarquias e ao mesmo tempo, mostra como pretendeu burlá-las em
ações individuais. Ele nos contou como foi que voltou às ruas na década de 1980, criando para
tanto um refúgio na memória do período em que o modo de operar de Francisco Pinto lhe
oportuniza algum tipo de respaldo.
Como eu falei com a senhora que eu tinha média com os homem, com os graúdos, neste
tempo eu tinha muita média com o finado Colbert e o Chico Pinto, que eu tinha carta
branca deles, começou. Chegava este menino pra trabalhar, eu botava um cesto de
mercadoria, mandava eles ir. Se o guarda perguntasse: de quem é esta mercadoria,
[respondiam]: é de Sergipe. eu tinha muita bagagem, eles também não buliam com
ninguém. foi formando a feira, foi formando a feira e a feira foi crescendo e foi
multiplicando. Mas tudo numa boa. Sem briga. Eu estou com trinta anos aqui na
Marechal, nuca discuti. Não tem um guarda que... Hoje mesmo esse rapa passa tudo aí,
mas tudo é meus amigos. Tudo é barra limpa comigo. Uma comparação: se eu botar um
carro para trabalhar, que é difícil de eu botar, antigamente eu ainda ia passar, quando eu
tava com a minha saúde, eu ia para a feira meio dia, duas horas eu saía, cinco horas, eu
ia novamente, sete horas eu saía
217
.
Em que medida estas táticas foram individualizadas ou eram compartilhadas com os
demais feirantes é uma questão que merece ser feita. Nas entrevistas, encontramos uma prática
justificada de maneira semelhante com Dona Tenícia e com o Sr. José Santos. Ambos
trabalhadores na Avenida Getúlio Vargas, mantiveram seus locais de venda tradicionais e não
ficaram no Centro de Abastecimento. Dona Tenícia alegou que os donos das lojas que se
instalaram na região de seu ponto de vendas reconheciam o seu tempo de trabalho e não
interferiam no seu ponto. o Sr. José Santos, mostrou como o conhecimento de figurões da
cidade, proporcionou-lhe a continuidade de seus negócios no local já estabelecido sem que
sofresse represálias. Como usuários tradicionais do centro da cidade, os feirantes encontravam no
seu histórico pessoal as artimanhas para burlar a perda de espaços. Algo em comum cortava
desigualmente estas trajetórias. A lembrança dos tempos em que a feira era permitida e o
pequeno era protegido. No entanto, enquanto José Carlos recorre a memórias de chefes do
_____________
217
José Carlos.
108
executivo, Dona Tenícia e José Santos procuram argumentos nas relações pessoais com sujeitos
abastados da cidade.
Sobre a memória de Francisco Pinto, especificamente, José Carlos atenta:
é o seguinte: ele fazia muita coisa pela feira. Ele ajudava o pequeno, qualquer coisa que
quisesse o pequeno, ele ajudava. Ele fazia muita coisa pelo pessoal pequeno. Ele ajudava
em qualquer setor, se fosse um emprego, ele conseguia, fazia muita coisa pelo povo. Era
um cara que deixava o povo trabalhar, não perseguia ninguém, sempre ajudava. Não é
como esse aqui. Este aqui quer tomar o que é dos outros
218
.
Michel Pollak estudou situações de produção de memórias nas quais o trauma foi fator de
encobrimento ou de seleção de lembranças a serem relatadas por parte de sujeitos entrevistados.
Estes, no ato de serem abordados no presente, não se sentiram “à vontade”, ou trouxeram consigo
elementos de repressão invisíveis aparentemente, mas que teriam implicações diretas em
memórias coletivas difundidas em algumas sociedades. Este alerta para a produção presente da
memória, em condições adversas nos pistas interessantes para refletir sobre a memória a
respeito de Francisco Pinto, produzida em 2004 e 2007 durante duas entrevistas diferentes com
José Carlos. Na primeira delas, não forneceu maiores detalhes e na segunda, insatisfeito com a
atuação do prefeito de então, resolveu falar.
Não podemos atribuir uma correlação direta entre esta expectativa do Senhor José Carlos
em 2004 a olhares de outros feirantes sobre a diferença entre o comércio dos anos 60 e os de
depois de 1977. Porém, ambos demonstram que uma questão substancial que é a manutenção
do laço de proximidade intra grupo de feirantes que são mantidos após 1977 e, por outro lado, a
sensação de tranqüilidade atribuída à realização dos negócios na “antiga feira”. Este terreno
tradicional aparece, retomado pela memória, como ponto de destaque conflituoso com o presente
das mudanças.
2.5 –Associações e redes de feirantes
As redes de aproximação entre os feirantes são o assunto dos próximos parágrafos. Pois a
partir destas relações, vale questionar como estes se viam e viam outros sujeitos no comércio
feirense, numa conjuntura de redefinição das normas comerciais.
_____________
218
Idem.
109
Como grupo de trabalhadores urbanos na fronteira direta com o rural, os trabalhadores da
feira tiveram várias possibilidades de laços de aproximação entre si e podemos concluir que suas
organizações se deram de maneira complexa e diferenciada. De acordo com o volume das
vendas, procedência das mercadorias, locais de trabalho, vizinhança, parentesco, solidariedades
dadas no campo e outras formas de contato, por intermédio do trabalho, estas pessoas puderam
manter redes de identificação e verificação dos que estavam em sua oposição. A percepção do
seu trabalho perpassava identidades coletivas que transitavam também entre o ser comerciante e o
ser trabalhador. Se ser um feirante naquela praça comercial era sinônimo de práticas de venda de
grandes e pequenos comerciantes, numa enorme disparidade entre seus volumes comerciais, ou
mesmo, o termo identificava empregados da feira, como carregadores, ajudantes, entre outros e
suas formas de inserção na sociedade feirense eram igualmente díspares.
A Associação dos Comerciantes Feirantes e outras Praças cobrou de seus pares que
fizessem os pagamentos corretamente a fim de que a categoria fosse aceita na sociedade
feirense
219
. O respeito à condição de comerciante legalizado era exigido para que o feirante fosse
associado. A associação tinha como tesoureiro o presidente do PTB, o que não indica,
explicitamente o tipo de vínculo do coletivo com o Partido em questão. Embora, pela limitação
das fontes e complexidade do problema, não possamos perceber melhor o papel desta associação
no universo dos trabalhadores da feira e suas relações com a Prefeitura da cidade, percebemos
que a associação citada publicava notas pagas na imprensa local quando havia intervenções no
mercado, a convite de vereadores.
O jornal Folha do Norte publicava as notas das mais diversas sem necessariamente
discriminá-las, o que torna adequado dizer que a publicação da nota pelo PTB não revela um
vinculo com o jornal, nem com a imprensa. Para Grazyelle Reis, o fato de o jornal sofrer
problemas de consumo, diante do índice de analfabetismo, seriam os grupos sociais mais
abastados da cidade o seu público consumidor e em seguida, as notícias eram comentadas no
cotidiano nas esquinas e cafés da cidade, chegando posteriormente ao público mais amplo
220
.
A maneira como se dava a cobrança desta conduta era administrada pela atuação do fiscal
ou pelos próprios feirantes de maior porte no local. Obviamente, nem todos os comerciantes
pagavam os impostos à Mesa Recebedora de Rendas do Município e ao fisco estadual e, o grupo
_____________
219
Nota no Jornal Folha do Norte, 1969.(recorte).
220
REIS, Grayelle. Literatura e Cultura em Feira de Santana. Práticas, usos e tendências em impressos da Folha do Norte
(1951-1969). Feira de Santana – Dissertação de Mestrado, 2008.
110
ligado à Associação de Feirantes observou o uso das notas de vendas como fator importante de
sua inserção por via legal na sociedade. Já havendo uma associação comercial (nota), os
comerciantes da feira visavam se apresentar organizados por via de uma representação.
Marx, ao analisar a evolução do capitalismo entendeu que era de sua característica a
superação de modos comerciais praticados por atravessadores de menor porte, através da
ampliação do número de capitais em mãos de uma menor quantidade de capitalistas. Com isto,
uma proletarização de comerciantes tradicionais. Neste sentido, é valido dizer que boa parte do
comércio tradicional de Feira de Santana ia, aos poucos se moldando ao sabor das mudanças
comerciais da Bahia e uma parte ficava para trás. Durante este processo, encontramos outros
caminhos trilhados por outros feirantes para acompanhar ou negar a organização oficial.
Sabemos que, entre os feirantes que comercializavam quantidades menores de produtos,
oriundas diretamente de suas roças e quintais ou compradas em caminhões atravessadores,
existiu um reconhecimento de espaços de venda de costume ainda hoje válidas na cidade. Neste
caso, a própria prática de montagem da feira era o ponto de partida para o reconhecimento dos
espaços específicos e de definição de uso do espaço público para comércio, quando a venda na
feira livre é territorializada por sujeitos que vendem os mesmos tipos de produtos.
A gente sentava ali na frente daquele mercado que ali era o mercado de cortar a carne.
A gente chegava cedo, ninguém chegava primeiro do que a gente! A gente chegava e
ficava naquele lugarzinho bem ali. Ninguém barrava o lugar da gente porque todo
mundo já sabia que a gente vendia ali. Se a gente vendia ali então quando eu chegava
meu lugar tava disponível
221
.
A superação de situações de concorrência era fundamental na distribuição das atividades
de feira, como é comum nos mercados abertos. Diferentes de supermercados e grandes lojas de
ampla disputa de clientela, os feirantes costumavam vender seus produtos ombreados em setores
por tipo de mercadorias. Este aspecto revela uma situação própria às feiras populares: a troca de
favores entre as pessoas que trabalham no ambiente, como tomar conta da barraca do vizinho,
passar produtos para o colega de vendas quando este não dispõe mais da mercadoria, ou troco,
indicar amigos vendedores dos mesmos produtos na feira ou deixar que outras pessoas
desprovidas de bancas venham a ajudar no serviço, como solidariedade familiar.
O fator concorrência dentro de um mercado popular como aquele, é digno de análise. As
feiras livres dividem seus territórios internos de venda por setores nos quais os feirantes vendem
_____________
221
Entrevista com Tenícia.
111
os mesmos produtos. O que parece um problema para superar a concorrência gera, na verdade,
um modo popular de conduta que ainda hoje mantém seu legado.
Próximos dos colegas de venda, o feirante exibe ao consumidor as mercadorias para sua
escolha e facilita a venda a preços competitivos ao trabalhador, em busca de demonstrar
honestidade. Se alguém vendia mais distante, este sim teria um problema em ser julgado pelo
comprador pelos preços que não tem com quem comparar e qualidade dos alimentos. Por
relação direta com esta prática, as feiras são consideradas locais privilegiados para as compras
populares, servindo de referencial para informações sobre preços e condição de safras.
Ainda, o acesso à feira
222
(transporte em caminhonetas abertas ou outros meios de
transportes coletivos como carroças ou a pé) foi anunciada como aspecto que justificava auxílios
mútuos entre os feirantes que vinham do campo. Especialmente nas entrevistas duas destas
pessoas eram de São José das Itapororocas, hoje distrito de Maria Quitéria. Outros tipos de laços
e aproximações entre feirantes é dado nos seus legados do campo. Reconhecimento de situações
semelhantes de trabalho na labuta diária de montagem da feira desde a colheita, produção do
alimento a ser vendido até a relação com a clientela.
Entre as meninas vendedeiras estes encontros foram mais lembrados como forma de
enfrentar os processos cotidianos de lida com o mercado. O transporte até a feira era parte
importante da montagem do universo das suas relações de trabalho. As mulheres lavradeiras,
trabalhadoras rurais que foram entrevistadas, arcavam com as despesas domésticas durante toda a
sua trajetória pessoal
223
. Não por coincidência, dona Tenícia e dona Ester, protagonizam, a
seguir, o tracejado desta experiência particular das mulheres feirantes que vinham do campo.
O caminho até o centro da cidade era feito a pé, segundo seus relatos, desde a madrugada,
da roça, perpassando as lagoas ainda existentes em Feira de Santana e algumas fazendas das
áreas. Informalmente, as senhoras contaram casos de amigos que apostavam corridas neste
trajeto, paravam para banhar-se nos rios e outras águas, trazendo consigo o almoço e os
_____________
222
Ó, eu vinha com minhas tia, vinha com uns vizinho que tinha lá, compadre João e comadre, vinha um grupo de
oito a nove pessoas, vinha aquele grupo, juntava aquele grupo pra vir, a gente não vinha sozinho o. Era grupo
que vinha de homem e de mulher; tudo junto e quase tudo vizinho. Aí a gente acertava aquele horário de sair e vinha
todo mundo junto. Quando chegava no horário de ir embora, reunia todo mundo pra todo mundo ir embora junto..
Entrevista Com Tenícia.
223
questinada sobre o trabalho do esposo, Dona Tenícia afirmou que este tem serviços em áreas de plantação que eventualmente
vinham a oferecer vagas em setores agropecuários, mas não em suas terras. A ocupação de prover a casa com a plantação do
terreiro dos fundos de sua casa, de onde saíam os produtos da feira, era sua: Ele nunca trabalhou aqui. Aqui ele não conhece
nada., referindo-se ao ambiente da cidade.
112
apetrechos para o trabalho. Dona Tenícia trabalha como feirante desde 1956. O relato de suas
memórias traz o tempo do campo como condutor da lida com os negócios de rua.
Eu comecei a partir de 16 anos, eu já vivia aqui, tinha... negociei aqui a partir de 16
anos. Aí, me casei, vinha pra aqui com o barrigão, com balaio na cabeça, pra vender as
mercadorias, comprava comida levava pra casa, no outro dia tornava voltar pra aqui de
novo; a gente vinha segunda e sábado. a gente continuava nessa luta. Eu e vinha
um grupo de mulher; aí a gente saía de casa de madrugada. As vezes que a gente perdia a
madrugada pra sair de casa, saía de casa antes da hora e ninguém via a gente. Ninguém
tinha relógio, não tinha nada, era assim... a gente saía assim quando via o dia querer
clarear, o galo cantar. O relógio da gente era um galo; que começava a cantar e quando
começava a cantar o canto a gente depenava e vinha pra aqui.
224
Mas, a partir do final dos anos 1960, este transporte passou a ser organizado em
caminhonetas, dividindo, nas carrocerias, consumidores e feirantes como também feirantes
consumidores.
A caminhoneta era de um Senhor que chama Tomaz, Tomazinho, que a gente vinha na
caminhoneta dele. E minha filha quando a gente tinha coisa da roça trazia e quando
não tinha a gente saía pelos pastos a procurar coisa pra trazer pra vender. A luta era
grande viu minha filha? O que tinha na roça a gente trazia e o que não tinha a gente
trazia. Qualquer coisa a gente trazia, eu fazia bolinho de mandioca, bolinho de puba e
trazia e era assim, a luta era assim. Eu deixava os meninos pequenos em casa, com
minha tia que me criou, e panhava aqui pra rua
225
.
A pluralidade de culturas de trabalho com as quais se relacionavam até a realização da
feira é outro aspecto importante para os laços que são estabelecidos. A venda dos produtos da
terra nem sempre era possível, sendo encontradas alternativas de suprimento do sustento familiar
em outras fontes de renda, como a produção doméstica de alimentos e quitutes para os
consumidores da feira, bem como a colheita de frutos em terras alheias.
Um homem de saia é apontado pela senhora que nos reporta ainda a uma seqüência de
acontecimentos que modificara o convívio com as ruas e estradas. A presença de uma
representação de sujeitos que vieram a tirar o sossego de seu trânsito até a cidade, provavelmente,
associado ao crescimento da migração.
... quando começou a violência , andaram falando que tinha um homem que andava
vestido de saia pra se passar por mulher, a gente ficou com medo de vir de lá. Um dia
mesmo a gente vinha, eu,o meu vizinho, quando a gente chegamos ali num lugar
_____________
224
Depoimento de Tenícia. Op. cit.
225
Idem.
113
chamado poça d’água, e vem de pra cá. A lua tava bonita nesse dia. A gente perdeu o
horário de sair, saiu antes da hora, ta aquela estatua assim no meio da estrada, vestida
de saia;
compadre, meu compadre fez assim hum hum, começou a esquentar a guela né?
aquela estátua respondeu: Oxente!, tá temperando a guela? Ta com medo, eu to aqui é
esperando comadre Maria. (risos)
minha filha desse dia em diante, nunca mais a gente começou a... nunca mais a gente
andou de pés, começou a vir na caminhoneta, foi...
Aí desse dia em diante começou a violência, não deu mais pra vir. Não dava pra
ninguém andar... vir de pé pra rua.
A criação dos filhos e ajuda destes no serviço também era uma constante entre as
feirantes. Dona Tenícia já parecia solitária em suas lembranças quando uma amiga sua chega para
ajudar na entrevista. Esta cliente veio comprar castanhas e fez com que Dona Tenícia se
recordasse:
Naquele tempo que eu vendia bem ali ó, eu comprava saco de licuri, botava de molho,
sentava na pedra quebrando e botava meus filhos pra tirar, de noite tocava vender era
o mais que eu vendia nessa época. Meus filhos eram tudo pequeno, mas eu botava tudo
pra trabalhar, tudo pra ajudar a quebrar o licuri. Era, era luta viu?
Aí é que do licuri eu passei para a castanha. No comércio da castanha eu tou até hoje.
Quando é tempo de safra eu compro o saco (menos trabalho!). Pago para assar.
aqui a gente quebra. Mas agora, que acabou a safra, eu compro é já assada pra revender.
Porque eu não dou pra ficar em casa parada. Eu não consigo ficar em casa parada. Não
tou mais agüentando trabalhar de enxada
226
e aí, me sinto feliz assim.
Eu já sou aposentada. Graças a Deus.
O seu trabalho é sinônimo de orgulho, visto que se tornou uma referência estando durante
muitos anos naquele local de vendas. Sua aposentadoria é dada enquanto trabalhadora rural,
semelhante à Dona Ester. Esta última afirma que sua profissão é a de lavradora. Aposentada pelo
“fundo da rural”, expressão que usou para definir os benefícios de uma sindicalizada do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Feira de Santana. Encara o trabalho de feirante como parte
indissociável desta labuta. Apesar da situação semelhante de trabalho e da vizinhança com
Tenícia em Maria Quitéria, as suas memórias revelam uma mulher mais próxima ao sindicato.
Espalhadas na feira, estas mulheres vendedeiras ocupam pontos diferentes de vendas e
transitaram por entre becos e praças para manterem sua forma de demarcação de lugares. As
lembranças de Ester nos levaram muito mais ao momento em que teve que enfrentar a retomada
do trabalho nas ruas após a construção do Centro de Abastecimento (1977) e suas experiências
poderão ser melhor acompanhadas no capítulo que se segue.
_____________
226
Na lavoura.
114
A noção de redes sociais vem sendo tomada como ponto de partida para abordagem de
conexões atuais no ambiente urbano entre grupos populares, não necessariamente atrelando tais
ajuntamentos às relações de trabalho
227
. Silvia Portugal, ao estudar redes de interação informais
entre famílias, buscou compreender quais seriam as normas que direcionaram empréstimos e
auxílios materiais entre parentes
228
. Baseada em noções advindas da antropologia, no estudo de
parentescos, a respeito das trocas e da reciprocidade defende que estas podem dar-se mais entre
sujeitos dos mesmos grupos sociais. Sendo assim, o que está certo ou errado, o que é devido ou
não, o que é justo ou injusto depende da natureza da relação em causa
229
e os laços sociais do
interior das redes ocorrem de maneira diferente para cada situação. As do tipo familiares
apareceram em pouca medida na nossa pesquisa, sendo mais presente os laços formulados na lida
com o trabalho. O entrelaçamento entre as pessoas, no caso desta pesquisa pode ser remetido à
indispensabilidade do uso do espaço público para realização de sua sobrevivência na urbe. Neste
caso, também o cerceamento de atuação no ambiente de uso comum com outros setores
comerciais tornou forçoso o contato entre pessoas que viveram situações semelhantes. O campo,
como a cidade, canalizou vivências diversas para a divisão social do uso do centro da cidade
pelos trabalhadores. Se é notória a situação caótica de intensa concorrência no trabalho, por outro
lado, podem ser visualizados contatos entre pessoas completamente dispares nas suas origens,
como trabalhadores do campo com pequenos distribuidores na cidade. Inseridos em organizações
política coletiva outras sindicatos rurais e de trabalhadores urbanos , neste ínterim, o de ser
feirante naquele centro, lhes trazia uma outra experiência, de laços estreitados com o cotidiano do
comércio de Feira, legitimando usos da cidade.
Para além destes elementos, os vínculos culturais dados nas festas, literaturas de cordel,
apresentações em praça pública, pontos de encontro e outras formas de aproximação com o
ambiente cultural da feira, possibilitaram redes entre consumidores, feirantes e lojistas, que
fogem ao alcance desta análise.
Como os feirantes se relacionaram com as classes dominantes neste período e vice-versa
e, como estas mediações interferiram nas suas percepções de si e do lugar que ocupam na cidade?
Mais do que perceber apenas novas versões dos fatos ocorridos procuramos apreensões da
_____________
227
SERPA, Ângelo. Cidade Popular: trama de relações sócio-espaciais. Salvador: EDUFBA, 2007.
228
PORTUGAL, Silvia. O que faz mover as redes sociais? Uma análise das normas e dos laços. Revista Crítica de Ciências
Sociais. Dezembro de 2007.
229
Idem, p. 37.
115
realidade, unidades indivisíveis sem as quais não podemos apreender novamente o sentido
230
As
entrevistas traçaram memórias e nos fizeram aprofundar os estudos sobre os processos políticos e
sociais no tempo de memória construído no universo de suas falas.
As atividades de suporte para o comércio empregavam sujeitos que historicamente foram
partícipes da rede de relações entre o fim do trabalho escravo e o trabalho encontrado nos centros
urbanos, especialmente no comércio. Muitas vezes iniciando o trabalho ainda crianças enquanto
carregadores, ajudantes de vendedores maiores ou ganhando trocados carregando sacolas de feira
como entregadores, ou carroceiros e outras ocupações. O vai e vem de carregadores nas calçadas,
dos quais dependia a feira, já era criticado em 1960.
Fato verdadeiramente digno de crítica é o que se verifica na cidade Princesa,
principalmente nos dias de feira. É o costume que adotaram os carregadores que
transitam pelos passeios da urbe, com tal imprudência que chega a causar revolta. (...)
Notamos assim que alguns carregadores conduziam camas, couro seco, feijão, etc,
exigindo mesmo andarem sobre os passeios, de nada valendo o protesto de senhoras que
conduziam crianças, obrigadas a enfrentar o risco das ruas, sempre trafegadas por
motoristas, na sua maioria, irresponsáveis. E não é somente isto, pois notamos o uso de
palavras de baixo calão, quando advertidos da maneira como se conduzem. (...)
231
.
Uma destas pessoas era o Sr. Higino Ferreira. Desde criança nos serviço daquela feira
livre, Higino envelhece na atividade sem direitos sociais de trabalhador, como acontecia com boa
parte dos sujeitos destas ocupações. A velhice daquele homem compadece edis da Câmara
Municipal de Feira de Santana, que, inspirados num exemplo ocorrido em Salvador, de
oferecimento pela Prefeitura de aposentadoria a um ex-escravo, o Sr. Donato, sugerem que o
mesmo ocorra com Higino. O texto de justificativa do Projeto de Lei argumenta:
Considerando que existe em Feira de Santana um homem com 75 anos de idade e com
60 anos de trabalho ininterruptos, como carregador. Considerando que este homem de
todos conhecidos, chama-se Higino Ferreira, homem que muito concorreu com o seu
trabalho diário para o grande êxito do nosso progresso, na nossa prosperidade.
Considerando que, o seu estado de saúde e pobreza não permitiram que ele conseguisse
adquirir uma habitação, nem tampouco pudesse ter uma aposentadoria. Considerando
que acha-se presentemente com essa idade, sem força e sem poder para carregar mais
nada, para que possa ganhar ao menos para sua manutenção, venho, em nome do meu
partido, submeter ao alto censo dos Srs. Vereadores, para que por pleito de Justiça votem
em caráter de urgência uma pensão de 2000 cruzeiros, para que o resto da sua velhice
não seja exposta aos olhos de nossa sociedade, com um prato nas mãos implorando a
caridade, depois de esgotar forças para o enriquecimento de uma terra que quase ele viu
nascer
232
.
_____________
230
ALBERTI, Verena. Ouvir contar textos em história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004 p. 84
231
Gazeta, 10 de Janeiro de 1960.
232
Câmara Municipal de Feira de Santana, Projeto de Lei: 20/1961. 10 de Outubro de 1961 (Aprovado por Unanimidade).
116
A documentação referente à pensão do carregador, em situação semelhante, em Salvador,
foi anexada ao Projeto de Lei, que é aprovado e passa a fornecer o auxílio de 2000 cruzeiros a
Higino Ferreira, segundo o autor, “levando em consideração o seu Estado de Penúria”
233
. Entre os
anexos, a reportagem intitulada “Velho carregador agora pensionista da prefeitura foi testemunha
da abolição”, do jornal A tarde, referente ao Senhor Donato, de 93 anos, carregador em Salvador.
Os pais de Donato, neste caso, foram escravos do Barão da Torre em Bacupari, o que aumentava
mais ainda a necessidade de fornecimento da pensão, segundo os autores, para Donato. E assim,
por comparação a este caso, Higino consegue, em Feira, também este benefício.
Tal situação de trabalho seria provavelmente comum em Feira, porém, apenas um caso de
fornecimento de auxílio excepcional é registrado no período. A maioria dos feirantes requeria ao
pagamento de taxas pelo uso do solo urbano como fonte de justificativa para aposentadorias, ou,
como muitos eram trabalhadores rurais, era nesta função que passaram a se aposentar.
Com a atitude municipal percebemos também preocupações em tirar das vias públicas um
trabalhador de idade não aceito pelas vistas dos modernizadores da cidade e o reconhecimento de
um tipo de trabalho sem nenhum vínculo com seguridades sociais.
Concluímos, por ora, que até o golpe militar, a feira era o cerne da realização das
atividades rurais e urbanas da cidade, sendo focalizada tanto em ações de governos como o de
Arnold Silva ou de Francisco Pinto, do PSD para controle dos preços dos produtos e acesso ao
consumo de alimentos para trabalhadores assalariados, ainda que de maneira diversa. Estas ações
se desdobravam em reorganizações que abalavam a estrutura da feira sem tirar da mesma seu
lugar central, o que gerou negociações entre os diversos grupos envolvidos com a feira. Contudo,
em 1964, uma outra política econômica foi sistematizada para o Município
234
, perdendo assim
a feira livre o seu lugar de destaque nas trocas, inclusive com o gado, como veremos.
_____________
233
idem.
234
A exemplo da montagem de comissões para debate das melhores formas de empreender a industrialização na cidade, início de
montagem de uma nova ação sobre o centro da cidade, liderada pela UDN, após deposição do prefeito Francisco Pinto.
117
CAPÍTULO III
DO PAPEL ÀS RUAS: NOVOS PROJETOS NO COTIDIANO DOS FEIRANTES (1964-
1974) E NOVAS RELAÇÕES DE TRABALHO NA FEIRINHA.
Para que a reflexão a respeito da construção das medidas para controle do mercado de
alimentos na conjuntura da ditadura militar não se resuma aos projetos oficialmente aprovados, é
preciso perceber construções destes em âmbito diverso. Os documentos da Prefeitura de Feira de
Santana nos permitiram ter um contato com a execução de planos traduzidos nos textos dos
próprios Projetos de Lei e em textos de divulgação pública dos mesmos e os arquivos da Câmara
Municipal apenas nos aproximaram mais de alguns debates curtos entre lideranças partidárias
locais durante a aprovação dos projetos e o acesso às poucas manifestações contrárias da parte de
edis feirenses, quanto à condução do recebimento de novos aparelhos urbanos. Ainda assim,
abordaremos brevemente, através destas fontes, aliadas aos jornais até aqui citados, o contexto de
construção dos posicionamentos hegemônicos em Feira com relação à maneira como se deveria
implementar na cidade a renovação do conjunto de suas atividades econômicas e como, desta
forma, o mercado de alimentos deveria estar em consonância com as novas propostas de
urbanização local.
Em monografia
235
, pude discutir alguns pontos deste processo durante o período de 1967 a
1977, selecionando assim como momento inicial da análise o Código de Posturas Municipal e o
Plano Diretor de Feira de Santana. Esta seleção foi feita pela necessidade de estabelecer um recuo
para o encontro com projetos dos quais o Projeto CABANA foi desdobramento importante. No
capítulo anterior, a necessidade de compreender intenções políticas diferentes das do período pós-
golpe, nas ações sobre a feira, nos remeteu aos governos Arnold silva e Francisco Pinto. É desde
1964 que, na Câmara Municipal, fica clara a contrariedade da postura de Joselito Amorim com
relação ao seu antecessor cassado, Francisco Pinto, nas palavras do vereador Hugo Silva
236
.
Os Projetos de Lei que lemos como pontos de partida na análise da monografia, agora são
vistos como desdobramentos de uma política iniciada em 1964. As posturas dos prefeitos de
Feira de Santana mudaram bastante antes e depois de 1964, tanto por conta da alteração da
_____________
235
A feira e a nova Feira: costumes, tradição e conflito em Feira de Santana, 19678-1977. Monografia de Especialização em
História da Bahia. UEFS, 2008.
236
118
política de alimentos em âmbito nacional, por conjunturas governistas locais. A discussão sobre o
acesso aos insumos básicos pela classe trabalhadora ganha destaque quando da criação da
Compania Nacional de Abastecimento (Conab). Muitos ministérios brasileiros envolveram-se nos
anos 1950 com a execução de atos que controlassem especialmente agentes comerciais diretos, na
dispersão dos produtos nas grandes cidades, com a finalidade de garantir a cesta básica na mesa
do trabalhador. Embasados na Lei Orgânica de Segurança Alimentar, o governo brasileiro movia-
se no sentido de adequar-se a posturas internacionais da ONU e da FAO no que diz respeito à
garantia de insumos básicos para o sustento familiar do trabalhador. Algo semelhante era feito em
Feira de Santana, nas primeiras prefeituras dos anos 1960 quando as feiras livres eram
regulamentadas como ponto de compra popular. No exemplo das políticas encabeçadas por
Francisco Pinto, havia uma tentativa de aproximar os produtores dos consumidores, através da
eliminação do encarecimento de preços por via de fiscalização dos atravessadores, fortalecendo
assim o mercado tradicional.
O monopólio do comércio de alimentos, feito cada vez mais por negociantes de maior
porte pode ser visto em Feira de Santana como causa para uma desregulamentação da
distribuição do que uma desestabilização de preços originada na própria feira livre. Ou seja, o
projeto Cabana encontra como fatores de desorganização do comércio o crescimento do número
de comerciantes que fugiam ao controle dos impostos e em defesa da necessidade de um controle
deste pequeno comércio é que o Projeto mostra mais ações. Encontramos na política do Projeto
Cabana, ao lado dos outros projetos, um conjunto mais amplo de atuação no controle da venda de
alimentos que ia desde a produção e por esta razão a discussão sobre o mercado precisava
acompanhar o debate sobre toda a economia local até a construção de um equipamento urbano
próprio, para o fim de controle da distribuição e que estivesse de acordo com modelos
urbanísticos do momento. Agora também era necessário encontrar suportes legais para agir sobre
comerciantes fora do padrão de consumo de alimentos, sem embalagens, sem inspeções
sanitárias, entre outros.
Enquanto as ações passavam ao longe de serem executadas, os usuários da cidade
percebiam aos poucos algumas mudanças. Os feirantes viam o poder de polícia sobre suas
atividades aumentar, com a processual desautorização do uso das ruas para a feira. As cobranças
tributárias também foram alteradas e percebemos os feirantes inseridos entre os contribuintes
para no uso do solo urbano.
119
À medida que ocorrem mudanças na legislação, as relações sociais dos feirantes com a
classe dominante vão se alterando e o comportamento frente à organização da feira livre também.
Muitas destas pessoas sentiram-se cada vez mais lesadas, pois obviamente recai sobre os
pequenos comerciantes a maior parte das posturas municipais. Ainda, o estreitamento das
oportunidades no mercado de trabalho e o crescimento do dito trabalho informal construíram
novas experimentações de disposição da feira nas ruas entre os comerciantes tradicionais e os
chamados forasteiros. Como os próprios feirantes disseram nas entrevistas, a facilidade em
comprar os produtos com atacadistas para vender nas ruas trouxe cada vez mais migrantes para o
trabalho na feira, oportunidade que parecia mais possível no mercado de trabalho. Por entre estas
contradições, os governos locais foram construindo lentamente a mudança mais radical na feira.
Entre o governo João Durval, contexto de elaboração do Projeto de construção do Centro
de Abastecimento e o governo de José Falcão, quando de sua execução, um intervalo de
disputas políticas, movidas, entre outros fatores, pelos problemas de relação do executivo local
com o governo estadual e pelas articulações com os deputados federais para fornecimento de
subsídios para os projetos. Algumas secretarias municipais foram veículos para ações profiláticas
na tentativa de dar resolução temporária na indisposição entre comerciantes lojistas e feirantes no
início dos anos 1970. A impressão é que as pessoas que usavam a rua para o comércio
desconheciam a transformação que vinha sendo planejada, pois medidas iam sendo, aos poucos,
implementadas como se a feira fosse permanecer em seu local tradicional. Esta pode ter sido a
causa da surpresa de muitos, em 1977.
Newton Falcão esteve à frente da prefeitura neste intervalo de divergências quanto à
condução da urbanização em Feira de Santana (1971-1973). Tendo ocorrido problemas de
oposição política com o governador da Bahia de então, Antonio Carlos Magalhães, foi preciso
que a Prefeitura nutrisse alternativas para subsidiar a infra-estrutura do centro de Feira,
canalizando seus esforços em busca de outros recursos que não do governo estadual.
Um exemplo foi a atuação da SURFEIRA neste período. Neste processo estava em jogo
se o centro Industrial do Subaé receberia empresas forâneas ou atuaria com o capital local,
subsidiando a instalação de fábricas feirenses.
Restringida e impossibilitada de atender ao mercado de mão de obra local, a instalação da
indústria em Feira ocorreu como no restante das grandes cidades nordestinas, com todo aparato
do Estado na condução do processo. O aproveitamento do potencial local por parte das empresas
120
foi o elemento disputado, além é claro, da visibilidade do grupo político que administraria as
ações. Ocorriam assim, principalmente no interior da Arena, desavenças sobre os procedimentos
da industrialização. Na coluna sobre Negócios do jornal Feira Hoje, é possível perceber a difusão
de um planejamento deste processo: era necessário que os empresários feirenses aprendessem a
se associar às indústrias do Sul do país, no discurso do jornal.
Mas não era internamente a este grupo que a concretização destes projetos era
disputada. No interior da sociedade civil, dispersa em outros aparelhos organizativos, os feirenses
das classes dominantes, comerciantes, latifundiários, empresários das novas indústrias, reuniam-
se constantemente em grupos como o Rotary Clube para debater a situação da implementação de
ações que fomentassem a indústria e o comércio feirense, como foi possível notar em textos
publicados no jornal Feira Hoje, cujo conteúdo era opiniões sobre o processo de industrialização
ou chamados para confraternizações, com estes temas.
Debates importantes ainda precisam ser realizados a respeito da composição da classe
dominante em Feira de Santana. Torna-se tarefa complicada analisar setores da classe subalterna
sem conhecer de maneira mais aprofundada as fontes que dizem respeito às ações de suas classes
antagônicas. Assim, localizar os sujeitos que construíram os projetos aqui citados ainda é tarefa
inacabada para os pesquisadores que se debruçam sobre a história feirense. É preciso ainda
encontrar os passos dados internamente entre os próprios setores dominantes para concretizar o
que fora planejado.
Os trabalhos até então desenvolvidos abordaram os grupos comerciais feirenses a partir do
pressuposto de certo consenso no trato da transformação da Princesa em prol de um progresso
comercial
237
, ou de seguimento das medidas de industrialização que notadamente acompanhavam
as metas da SUDENE.
Acreditamos na perspectiva mencionada por Guilherme Lopes e por Andrei Valente
238
em
trabalhos inacabados: a de que o Estado como veículo das transformações necessárias foi
fundamental e as ações foram ampliadas em aparelhos privados de hegemonia como a
Associação Comercial e entidades representativas dos setores dominantes como os clubes
maçônicos, sendo a disputa intraclasse feita nestes âmbitos. Seguindo estas pistas e tendo a
_____________
237
CRUZ, Rossine. A inserção de Feira de Santana no processo de integração produtiva e desconcentração econômica nacional.
Campinas: Unicamp,1999; FREITAS, Nacelice Barbosa. Urbanização em Feira de Santana. - Salvador: s.n., 1998. (Dissertação de
Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal da Bahia, 1998; SANTOS, Alane Carvalho. Feira de Santana nos
tempos da modernidade: O sonho da industrialização. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2002.
238
Os textos foram apresentados no primeiro Seminário do Laboratório de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais,
em 2006.
121
possibilidade de contar com textos de pesquisa de estudiosos da classe dominante
239
, é possível
sugerir que a imprensa se tornou instrumento importante de formulação de propostas e de opinião
pública sobre as ações desejadas e indesejadas, para retirar da feira livre a sua centralidade, bem
como foi uma arena para debate entre as partes envolvidas
240
.
Preocupados com as notícias de mudanças mais bruscas em seu trabalho, os feirantes não
acompanharam passivos todas as discussões que estavam sendo feitas na sociedade feirense e
burlaram fiscalizações, reforçaram laços e contornaram, ainda que timidamente, o cerceamento
da participação popular nas decisões sobre o mercado onde trabalhavam. Ano após ano, a
mudança do local da feira livre de local ia sendo construída, bem como, as alternativas de
resistência criadas pelos trabalhadores: a barganha, a reaproximação de grupos, a volta para a rua.
3.1 – A Feira e a conjuntura de mudanças pós-golpe militar
UDN e PSD eram, nacionalmente, partidos que se dispunham em posições contrárias com
relação ao legado do getulismo nas questões trabalhistas. Porém, ambos possuíam a mesma
composição de classe, o que teria sido o motivo pelo qual, segundo Maria Benevides, estes dois
partidos vieram a estabelecer uma aliança no Governo Dutra em anos anteriores. A preocupação
da UDN, no período precedente ao golpe, era que o PSD viesse a se aproximar do PTB em
alianças locais e fortalecesse assim uma oposição nacional ao partido
241
. Francisco Pinto, em
Feira de Santana, procurou causar um esvaziamento do PTB no que concerne a um possível
ajuntamento deste partido com organizações trabalhistas locais
242
. Esta postura foi tomada por
Francisco Pinto quando era vereador em Feira, no governo do Prefeito Arnold Silva (UDN),
viabilizando depois sua eleição por via da aproximação com sindicatos e associações.
durante o governo de Francisco Pinto, uma grande oposição da UDN se fazia contra
ele. A fragilidade destas alianças locais vem sendo pesquisada no LABELU. Na perspectiva de
Maria Benevides, até aqui, podemos dizer que a UDN na Bahia, especificamente em Feira, uma
cidade na boca do sertão
243
, no período de 1945-1964 seria um partido voltado a alianças e
coligações, semelhante ao seu rival PSD, clientelista e, como era prática nos interiores brasileiros,
_____________
239
Colegas de pesquisa do LABELU como Diego Correa e Ricardo Campos.
240
Método já tomado como referência na monografia.
241
BENEVIDES, Maria. Op. cit.
242
NADER, Ana. Op. cit.
243
Expressão usada por SODRÉ, Muniz. Op. cit.
122
ganhava um tom mais conservador nestas áreas. Como nas demais regiões, vale questionar uma
ligação importante, mas não orgânica com as classes médias e a difusão da opinião pública na
imprensa, que era extensão do partido em muitas capitais e médias cidades brasileiras. Na Bahia,
a UDN unia os antigos opositores do getulismo e egressos, como Juracy Magalhães e procurava
barrar retornos às suas políticas, especialmente no âmbito trabalhista. Além destas, características
de postura nacional da UDN como a virada em 1964 de um partido que era antiestatizante para
um partido de atuação repressiva e estatizadora, podem ser deduzidas para Feira de Santana. O
programa do partido não implica, desta maneira, necessariamente na sua conduta política e, em se
tratando de uma cidade no interior da Bahia, a disputa local pelo controle do executivo contava
com uma série de outros fatores
244
.
Por comparação, após discutir a postura da Prefeitura Chico Pinto, no capítulo anterior,
tentaremos abordar a maneira como os governos que a sucederam colocaram em pauta a
urbanização da cidade, o mercado de alimentos e o controle de preços e, por conseqüência de
ambos, o mercado das ruas de Feira.
O último projeto de Lei do governo de Francisco Pinto dispunha sobre o funcionamento
da ordem pública, matadouros, higiene dos estabelecimentos comerciais, multas, condução de
animais, cães, porcos, cavalos, trânsito nas estradas, condução de boiadas, jogos de azar, uso de
andaimes e licença para comércio.
Anos mais tarde, perceberemos que o Código de Posturas Municipal, de 1967, dispõe de
artigos para a maioria dos quesitos antes tratados por Pinto em projeto escrito a próprio punho, e
o domínio do poder municipal sobre o horário comercial vem a ser oficializado. Em 1964, Pinto
propunha que o horário para o comércio ambulante acompanhasse o das casas comerciais – o que
não acontecia, pois a feira tinha horário próprio no entanto, abria uma exceção para o comércio
de frutas e verduras que teria um horário diferenciado: o comércio ambulante, com exceção dos
vendedores de leite, verduras e frutas, funcionará no horário a ser decretado para o comércio
em geral
245
.
Tal particularidade ocorria porque estes vendedores chegavam mais cedo e saíam mais
tarde das ruas, estabelecendo na deliberação municipal, de maneira destacada, sua especificidade
_____________
244
BENEVIDES, Op. cit, p. 218 “Até que ponto haveriam diferenças realmente significativas entre esses dois partidos, se ambos
eram “partidos da ordem”, defensores da mesma política agrária, da mesma política salarial – enfim, dois partidos conservadores e
das “classes dominantes”?
245
Projeto de Lei. Código de Polícia Administrativa. 01/1964.
123
de horário aportada num costume de trabalho. O Código de Posturas Municipal, aprovado em
1967, dispunha de artigos semelhantes, como ainda veremos.
Estes marcos de transformação são perceptíveis no cotidiano do feirense em momentos
anteriores a atuação do poder público via declaração das novas regras nos projetos. As relações
de trabalho, a chegada das rodovias asfaltadas, a dimensão de centralidade de Feira de Santana
para os distritos e pequenas cidades circunvizinhas que aos poucos iam se emancipando e
também crescendo, as alterações culturais foram problematizadas por Juarez Bahia em texto
posterior, numa narrativa que mistura sua formação jornalística com a literatura e nos auxilia
nesta reflexão.
Juarez Bahia
246
, em seu romance, faz-se sensível ao momento em que uma troca mais
patente entre as relações de amizade e compadrio na cidade pela presença do operário que encara
de maneira diferente as relações sociais. O romance, escrito na década de 1980, retrata a cidade
nos idos dos anos 1950. Entre os personagens que se cruzam na narrativa está o coronel João
Farinha, um dos símbolos da sociedade patriarcal que a fazenda ajudou a construir no país
247
.
Ele comemorava, numa das passagens da narrativa, a inauguração de novas instalações para o
abate de gado e sabe que as inovações que chegam à cidade, o exigiam novo traquejo para manter
seu prestígio:
compreende o fenômeno, não foge dele e não contesta. Sabe que a aristocracia rural
tornou-se decadente e que isto coincide com estes últimos anos quarenta, que a terra
deixou de ser a unidade de medida da representação social e que na Feira a classe dos
fazendeiros, com suas prerrogativas de barões feudais, teve de ceder lugar a outras
categorias, aos comerciantes, aos liberais, a novos líderes, aos intelectuais, aos artífices,
aos trabalhadores, aos construtores da Rio-Bahia
248
.
Um dos trabalhadores que Bahia se refere é Seu Ia, porta estandarte do bloco carnavalesco
das melindrosas, morador das proximidades do abatedouro, era operário da construção da Rio-
Bahia. O personagem era assalariado e possuía desejos pequeno burgueses de ascensão social.
Assim, decidiu por afastar-se do sentimento de igualdade do ser feirense, que parecia aproximar
quem era distante. Seu Ia mantinha as aparências da amizade com os coronéis, mas, ao mesmo
tempo afirmava: Tenho orgulho de ser um trabalhador
249
. O romance traz uma reflexão sobre
_____________
246
BAHIA, Juarez. Setembro da Feira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
247
Idem, página 31.
248
Idem, página 44.
249
Idem, página 76.
124
uma realidade facilmente documentada nos anos 1950, de alterações significativas no cotidiano
da cidade e nas suas relações sociais.
Mas é somente no início dos 1960 que as ações passam a ser conjuntas no sentido de
agregar a feira a estas transformações. A seqüência de medidas, temperadas pelo sabor dos
interesses políticos que iam além da organização espacial da feira, ganha um novo marco com a
entrada em cena dos políticos da UDN na prefeitura após o golpe. Apesar de muitos vereadores,
durante o governo do PSD, concordarem com a distribuição de sementes para os pequenos
agricultores, faziam discursos contrários ao protecionismo de pequenos produtores quando o
quesito das propostas pintistas era libera-los do pagamento dos tributos municipais pelo uso do
solo urbano
250
.
Recorrendo novamente à literatura, através do personagem Antão, um mestiço feirense
que não reconhece suas origens negras, Muniz Sodré constrói uma narrativa sobre 1964.
Apresenta sutilmente ao leitor as mudanças ocorridas na década de 1960 por entre discussões
feitas pelo protagonista com autoridades locais, figuras tradicionais e nos seus percursos
cotidianos, sendo que a inserção do Capelão nas ruas e na vida social feirense é destaque no
texto.
Este, por sua vez, é baluarte do discurso da modernização e da nova moral que deveria
acompanhar os empreendimentos para uma Feira de Santana atualizada com padrões nacionais de
produção e consumo. Os modos de vida locais, a cultura do gado, a arte, a movimentação política
juvenil é renegada e condenada por este símbolo da aplicação da ideologia que deu sustento ao
regime militar.
A narrativa recorre por várias vezes ao mês de junho de 1964. O frio das noites feirenses é
o ambiente de apresentação da angustia e das incertezas da população local, após a deposição de
seu prefeito e o início da aplicação de uma série de normas comportamentais
251
. Os capítulos
intercalam o cotidiano a uma fábula sobre um bicho estranho e desconhecido que se rastejava
pela cidade, especialmente em suas áreas verdes, o que a entender que o bicho que chegou à
Feira seria o próprio Capelão.
_____________
250
Livro de Atas número 09, páginas 09 a 15, em especial os discursos de Hugo Silva (UDN), que merecem menção em outras
análises.
251
A Revolução, os milicos que dois meses tinham derrubado o governo federal com um golpe de Estado e logo depois
destituído o prefeito de Feira, estava perseguindo gente séria, prendendo menino de escola no país inteiro. (...) Sem que nem por
quê, o serviço de auto-falante de fFeira tinha sido fechado, Antão sentia falta dos boleros que amenizavam as tardes modorrentas
no centro da cidade. SODRÈ, Muniz. p.21.
125
A perseguição dos costumes locais por este sujeito é ponto importante no desenrolar de
seu texto. A boemia do centro da cidade ia sendo retaliada, ao passo em que o auto-falante
existente no centro foi fechado. A figura estrangeira do Capelão trazia até mesmo um trabalho
diferenciado dos próprios policiais da cidade, surpreendendo a todos com sua truculência discreta
e insistente. Toda a atitude dos homens que estavam agora à frente do poder é interpretada como
algo semelhante ao cacete-armado. Ali na região cacete-armado era qualquer negócio que se
empurrava para ganhar dinheiro
252
. Algo como a facilidade em se estabelecer em comercio
informal nas ruas, a colonização portuguesa ou a pressa da classe dominante local em se adequar
as mudanças na economia. Vejam o caso de Lulu do Boi, que se tornou o homem mais rico de
Feira, arrebatando terras dos pequenos lavradores, recebendo favores dos governos, pilhando
gado. Hoje se diz capitalista moderno e vive falando em transformar a cidade em zona
industrial
253
.
O novo comportamento, na análise sutil da narração de Sodré, é comparado e suas páginas
ao período de governo de Getúlio Vargas e sua visita a Feira. A lembrança construída é a de que
o poder ali era respeitado sem que houvesse forçosas situações de reconhecimento, recebendo as
autoridades locais o presidente em casa. Algo estava sendo deixado para trás.
A convivência com o cotidiano da feira sofre diretamente a interferência das normas
incorporadas pelo Capelão. Este, o Padre, Antão e seus amigos, tinham nas ruas e na feirinha, o
palco para os debates principais da narrativa de Muniz Sodré. A passeio, Antão procurou disputar
a conversa, num dia de sgunda-feira, e transita por entre as mercadorias:
De sacola na mão, optou por inspecionar primeiro a feira das caças, onde se exibiam,
moqueadas e enfiadas em espetos, carnes de teiú, juriti, jibómia, raposa. Antão era
seletivo quanto a esses bichos: nhambu, sim, que era coisa tenra; codorna, piriri de
preferência, que tinha sabor de mato fresco; mas gambá, jacaré, cobra, sariguê, isso não,
isso era comida de tabaréu, de gente grossa. Com nhambus e codornas na sacola, ele
passou pelas feiras das galinhas, dos peixes, das farinhas, das verduras, das frutas, das
louças vidradas, das palhas, chegando afinal à feira do couro, onde faziam volume e
cheiro as selas catingueiras, os jalecos de pele de carneiro, as alpargatas de couro cru, as
tacas de picar cavalo e jegue
254
.
Zuão Preto, um personagem por ele criado, vendia as caças na Feira e apresenta as
insatisfações dos feirantes com normas detalhistas e aparentemente inúteis, como a proibição da
_____________
252
SODRÉ. Op. cit. p. 36.
253
idem, p. 39.
254
SODRÉ. Op. cit. p.72.
126
venda de galinhas e outros animais vivos de cabeça para baixo para Antão, que retrucou: Onde
se vira impor a sertanejo uma bobagem dessa?
255
.
E era dessa vez que ele agora falava, contrariado, a Antão. Trouxera algumas [galinhas]
para vender na feira e havia feito como sempre fizeram, como todo mundo: as galinhas
amarradas pelos pés com palha de coqueiro, seguras pelo feirante de cabeça para baixo.
Na descida do caminhão, entretanto, topara com o Capelão, ele e a tropa, que o obrigou,
assim como todos os outros feirantes, a carregar as galinhas de cabeça para cima, sob a
alegação de que era a forma civilizada e moderna. A conseqüência era que as aves agora
sujavam as mãos e as calças dos feirantes. Uma humilhação. Um transtorno
256
.
Esta proibição era oficial e constou no Código de Posturas Municipal
257
. Até que ponto
Sodré identificou este projeto, não o sabemos, tanto quanto se a situação de transtorno com as
galinhas foi efetiva. No entanto, sabemos que esta regra não vingou.
A reflexão de Muniz Sodré, escrita em 1991, focaliza especialmente o debate sobre golpe
ou Revolução que teria percorrido as conversas entre os brasileiros imediatamente no ano de
1964. O mês de junho, pouco tempo após o golpe seria, na sua ficção, o momento de reflexão
sobre a economia, as práticas sociais estabelecidas frente a novos moldes produtivos e novos
comportamentos exigidos. Neste sentido, Muniz Sodré percebe o código de posturas num
conjunto amplo de mudanças sem Feira de Santana, em alegorias que podem dar conta da
reflexão sobre o golpe como um todo, mediante a caracterização de uma modernização
autoritária. Mas, para Sodré um grupo em específico que o incomoda no modo político de
operar tantas mudanças: os udenistas.
O autor não esconde a antipatia aos udenistas no decorrer da narrativa, o que aparece nas
falas dos personagens sobre antes e após o golpe. Ser udenista significaria assim, apoiar a
ideologia liberal da UDN ou ser filiado a ela. Se o início dos anos 1960 pode ser tratado como
marco de mudanças no cotidiano do feirense, o primeiro governo do período militar consegue
demarcar território com uma industrialização como projeto político, fundamentada na mudança
das relações empresariais, crescimento de clubes associativistas e da atuação da imprensa neste
sentido. Não necessariamente a UDN era o carro chefe da transformação, mas a escolha do
representante do projeto frente ao executivo, neste caso, seria crucial, tendo a UDN construído o
caminho mais adequado.
_____________
255
idem, p.75.
256
idem, p.74.
257
1967.
127
3.2 – A construção do Plano Diretor/PDLI, do Código de Posturas Municipal e do Projeto
Cabana.
Entre 1967 e 1969, a formulação dos projetos do Plano Diretor, do Plano de
Desenvolvimento Local Integrado (1967), do Projeto Cabana (1968) repercutia como estratégia
encontrada pelo governo da Arena para uma mudança substancial na produção econômica de
Feira de Santana e da sua organização urbana.
O papel do Governo João Durval Carneiro se impõe nas memórias sobre o planejamento
da cidade como um momento da história feirense em que foi possível aos poderes locais
articularem suas metas com as federais. Depois do governo de Joselito Amorim, as forças
políticas locais procuravam se restabelecer em mudanças de partido, novas alianças e preparação
do aparato do governo municipal, enfatizando a composição da Câmara Municipal. Assim, é no
segundo governo pós-ditadura que os grupos mais conservadores de Feira de Santana
conseguiram levantar um nome, o de João Durval, para ser prefeito de Feira, após rearticulação
política feita então na ARENA. Para Diego Carvalho, João Durval, mais que um projeto
modernizador, empreendia um projeto inter-classista de agregar os setores dominantes feirenses.
Tal objetivo se fazia sobre a memória negativa da Prefeitura liderada por Francisco Pinto
258
.
Ao assumir o governo, ações foram voltadas para a consolidação do regime e de um
padrão urbano atualizado para a cidade e de investimentos no setor industrial. Destacamos então
o período de 1967 a 1971 como um tempo de elaboração e fomentação de táticas de interferência
de caráter urbanístico em Feira, como montagem de secretarias e comissões específicas.
Com a produção do Plano Diretor da Cidade, a prefeitura de Feira de Santana dava os
primeiros passos na regulamentação das práticas econômicas, que deveriam funcionar integradas
à atividade escolhida como carro chefe: a indústria. Percebemos que o Plano Diretor inaugurava
uma série de leis para ajustar não o conjunto das atividades produtivas do Município, mas as
práticas populares no centro da cidade, como os hábitos nas vendas de alimentos, o aspecto dos
estabelecimentos comerciais, os locais de lazer permitidos ou não no centro de Feira.
citar
Competindo com a capital baiana ou ajustados a modelos de produção e circulação de
Salvador, os empresários de Feira de Santana divulgavam desde 1967 a necessidade de recepção,
_____________
258
CARVALHO, Diego. O futuro do presente: uma cidade para o progresso ou um progresso para a cidade em João Durval
Carneiro (1967-1971). Projeto de Pesquisa . Mestrado em História, UEFS, 2009.
128
por parte do Município, de empresas de maior porte. Vale ressaltar que Feira foi a primeira
cidade do país a formular um Plano de Desenvolvimento Local (1967), que se tornou exemplo
para governos de outros estados, recebendo o então prefeito a visita de autoridades públicas
interessadas em conhecer tal projeto, além, é claro de representantes da Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste. O pioneirismo de Feira fomentava curiosidades externas e
empolgava empresários locais, o que fazia crescer a fama do prefeito João Durval como
importante empreendedor no interior da Bahia
259
. Nos anos seguintes, por mais de uma vez, a
princesa do sertão foi escolhida como cidade modelo para estudos federais sobre mercado de
abastecimento alimentar, população, desenvolvimento, agricultura e indústria
260
.
Assim, o Plano de Desenvolvimento Local Integrado entra como organizador da oferta de
uma infra-estrutura que normaliza estas atividades dentro do espaço urbano, sem exterminá-las,
mas garantindo o fim de sua autonomia frente a outras atividades de maior concentração de
renda. Sobre seus fins, o PDLI indica:
que as perspectivas regionais de crescimento econômico e das relações destas com a
cidade sejam coerentes e se compatibilizem entre si, e, segundo, promover o aumento da
renda urbana, através do crescimento das atividades econômicas e de ocupação para mão
de obra, aproveitando o potencial da mão de obra marginalizada, que cresce em
intensidade maior que a oferta de emprego
261
.
O PDLI, da gestão João Durval objetivava possibilitar a criação de locais próprios para
cada atividade evitando conflitos entre setores de atividades econômicas e sociais e permitindo o
crescimento racional da cidade
262
, delimitando áreas destinadas ao lazer, ao comércio, às igrejas.
Como exemplo, podemos observar as plantas do Centro Social Urbano e da Universidade
Estadual de Feira de Santana, que possuem na sua própria arquitetura a tradução da
racionalização destes anos.
As ações fiscais eram passadas para as mãos dos agentes municipais, como a cobrança das
taxas e multas e confisco de mercadorias irregulares. Definia-se quais eram os tipos de negócios
que pagavam taxas: edifícios do centro da cidade, terrenos, produtores industriais, comerciais e
agropecuários, e, neste sentido, definia o imposto a ser pago pelo vendedor ambulante. o cadastro
_____________
259
O prefeito João Durval recebeu na última terça-feira a visita (...) do seu colega de Curitiba, capital do Paraná (...) Na
oportunidade o ilustre visitante (...) afirmou que o pioneirismo de Feira de Santana alcançou tamanha repercussão no Sul, que o
trabalho aqui poderá servir de modelo (...) Jornal Folha do Norte, 9 de Agosto de 1969.
260
Diretor da SUDENE veio conhecer Feira de Santana. Folha do Norte, 9 /08/ 1969; Entre outras cidades, Feira é a escolhida.
Jornal Feira Hoje, 13 /071974.
261
PLDI, Prefeitura Municipal de Feira de Santana, 1969.
262
Idem.
129
dos prestadores de serviços de qualquer natureza compreende as empresas ou profissionais
autônomos, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço sujeito à tributação municipal
263
. No
arquivo Público, é possível ver nas fichas de cadastro destes contribuintes, a mistura entre
sujeitos diversos do comércio que utilizavam o centro da cidade pra realização de suas atividades
econômicas na qual estavam envolvidos os feirantes. Os pontos de vendas não fixos eram
também contribuintes municipais, diga-se de passagem, responsáveis pela maior parte da
arrecadação dos impostos urbanos do município. Para os engraxates havia isenção de taxa e o
valor a ser pago era definido de acordo com o produto e quantidade a ser vendida.
A especificação da taxa de imposto para cada tipo de mercadoria nos permitiu uma
aproximação com os tipos de produtos vendidos pelo comércio ambulante em geral, ao lado da
feira de alimentos: armarinho e confecções, artigos do Norte (rendas), confecções em geral,
bijuterias, brinquedos, cereais, calçados, doces, frutas nacionais e estrangeiras, fumo, cigarro,
charutos, gêneros alimentícios em geral (tempêros, etc), louças, ferragens, artefatos de plástico,
vassouras, palhas de aço, espanadores, massas, gravatas, lenços, chapéus e muitos outros.
Ao declarar-se o pagamento do imposto, o feirante especificava se sua barraca era de
frutas, de verduras, de comida e bebida, enfim, informações que eram relatadas na ficha de
pagamento e a partir da qual se lançava o valor do imposto. Além das barracas, que eram
estabelecimentos comerciais não fixos, mas que eram permanentes, havia aqueles não fixos
considerados eventuais. Esta categoria de identificação, para a Prefeitura, dizia respeito às
pessoas que instalavam suas bancas de venda em épocas de festas, missas, micaretas e demais e
pagavam também licença pelo tipo de produto que vendiam. Os vendedores de frutas e verduras
eram os que pagavam os menores percentuais de impostos, por conta do valor de suas
mercadorias e pela necessidade do consumidor (para não encarecer os produtos).
No cadastro, a declaração do ponto de vendas que consta no campo “endereço” não
necessariamente corresponde ao local de trabalho real destas pessoas Interessante é que, algumas
pessoas declararam os seus pontos de venda como endereço e outras declararam endereço
residencial. Algumas pagavam impostos por vários estabelecimentos móveis e outras tinham
outras atividades cadastradas na Prefeitura que não a de vendedor ambulante.
Dentre os cadastrados, uma vendedora de doces possuía uma banca de jornais fixa, por
exemplo, ou um dono de bar era também vendedor ambulante. Entre os vendedores ambulantes,
_____________
263
Idem,
130
não sabemos ao certo quantos eram os feirantes de alimentos. Pouquíssimas são as pessoas que se
registraram como donos de barracas e passaram informações como as de que dono de barraca de
verduras, ou vendedor ambulante de frutas e verduras, tanto que, o trabalho com estas fontes
para delineamento de um perfil dos vendedores do centro que pagavam os impostos fora
abandonado. Estas pessoas pagavam o mesmo valor que “vendedores autônomos”, como
vendedoras de cosméticos e outras mercadorias ou representantes de vendas que se cadastravam
diante da falta de uma carteira de trabalho.
Os sentidos que estas pessoas encontravam para pagar estes impostos eram vários. Entre
1967 e 1973, anos em que encontramos alguns feirantes nestes cadastros, a feira era liberada no
centro da cidade, o que significa que tendo pago o imposto solicitado, os vendedores e
vendedoras não seriam autuados pela fiscalização ou no máximo poderiam negociar melhor a sua
retirada de um local para outro em prol da disposição das barracas encaminhada pelo poder
público.
Em 1967, o código de posturas Municipal proíbe também “batuques congados”
264
sem
autorização prévia, propagandas feitas com bombos, cornetas, com uso de fogos de artifício ou
que provocassem ruídos, o que era típico do comércio ambulante da feira. É certo que, dentro da
organização comercial, estas são medidas comuns quanto aos excessos de propaganda e poluição
sonora da cidade, mas naquele momento ficava claro o incômodo e a imputação da pecha de
ilegais para a maioria das atividades realizadas pela população que vinha da roça para a cidade
trazendo suas práticas, através da criação de animais em quintais e plantio de hortaliças no
perímetro urbano. O uso do auto-falante nas feiras livres fora igualmente proibido, como um
veículo que permitia avisos diversos aos feirantes e consumidores, sobre ofertas, propagandas de
pontos de vendas e música. Esta prática veio a retornar muitos anos após. Ocorreu também a
proibição de circulação do típico carro-de-boi, bem como do trânsito de animais bravios, que
distraíam compradores e amedrontavam senhoras e crianças com as correrias que provocavam
com suas fugas no centro da feira. Práticas de divertimento na feira foram cerceadas como
apresentação com feras, o que geralmente ocorria, quando artistas utilizavam cobras em
apresentações que agregavam muita gente em volta. A lei 518 de 6 de janeiro de 1967 proibia
queima de lixo, lavagens de roupas em chafarizes e tanques públicos da cidade, sujeiras
provocados pelo gado. Assim também, regulamentava padrões para vendas de alimentos em
_____________
131
quitandas e mercadinhos, como a necessidade da limpeza de estantes, além de estabelecer um
padrão de conduta com a alimentação nos bares e restaurantes. Para os feirantes, o Plano
pretendia que estes dispusessem suas mercadorias em lonas limpas, tabuleiros e mesas
apropriadas, e não no chão como ocorria algumas vezes
265
. As condições precárias de realização
da feira foram apresentadas na sociedade como impróprias.
A venda de alimentos nas quitandas tinha normas detalhadas e o não cumprimento
colocava os donos dos estabelecimentos em condições de apreensão de mercadorias e fechamento
das vendas. O divertimento público também passava por um sistemático controle. Sobre o
carnaval, por exemplo, ficava proibido o uso de água para borrifar nos transeuntes.
Com relação ao comércio de rua, dois pontos podem ser destacados. Primeiramente, a
relação com o trânsito, do empachamento de calçadas e impedimento da circulação dados pelas
vendas ambulantes, carga e descarga de mercadorias
266
. A tolerância máxima para descarga na
via pública era três horas, o que passou a dificultar a permanência de caminhões durante todo o
dia na feira. Também, neste quesito, se destacam as práticas das pessoas que vinham à cidade
conduzindo animais e os amarravam nos postes, o que passou a ser proibido. Conduzir cestos ou
volumes de grande porte nas calçadas também não era mais possível, de acordo com a Lei, algo
que é constante na cidade que tem milhares de trabalhadores que se mantém nas feiras de rua.
Outro ponto é a especificidade de uma seção para trato do comércio ambulante. A estas
pessoas era impedida igualmente a livre circulação nas calçadas e seu funcionamento era liberado
em horários especiais. Assim como o barbeiro poderia abrir seu ponto nos domingos, por conta
da clientela, os varejistas de frutas, legumes, ovos, verduras e aves poderiam permanecer na rua
até às 20h, “por motivo de conveniência pública”
267
, o que demonstra a necessidade por parte da
Prefeitura de controle das atividades do local e ao mesmo tempo, a manutenção de horários já
adequados ao costume feirante. Por último, vale ressaltar que os pesos e medidas passaram a ser
determinados pela fiscalização municipal e estadual e, ao invés de uso de pesos de madeira e
outros materiais (costumava-se usar até mesmo pedras na feira), era instituído o uso de pesos de
metal nas balanças.
Ficava proibido conduzir animais com a cabeça para baixo, suspensos, pelos pés ou asas,
ou em qualquer posição anormal, que lhe possa ocasionar sofrimento (sic). Apesar da medida,
_____________
265
Prefeitura Municipal de Feira de Santana, Lei nº 518/ 1967.
266
Art. 87 è proibido embaraçar ou impedir, por qualquer meio, o livre trânsito de pedestres ou veículos nas ruas, praças, passeios,
estradas e caminhos públicos, exceto para efeito de obras públicas ou quando exigências policiais o determinarem.
267
Art. 178.
132
ainda hoje é comum encontrar vendedores de galinha circulando com tais frangos de ponta-
cabeça no centro de Feira de Santana... Também as famosas apresentações com cobras na feira
livre, que chamavam a atenção dos turistas, desde então, foram proibidas.
A referência à harmonia paisagística da cidade foi o ponto nevrálgico daquele código. Se
realmente seus elaboradores estariam preocupados com o bem estar da população, após um maior
controle e planejamento do uso do espaço da cidade, não o saberemos. Mas sabemos que tais
medidas vinham acompanhadas de sistemáticos estudos sobre as formas de vida e trabalho da
população da cidade, em especial dos trabalhadores informais, da necessidade de associação entre
produtores e negociantes no mercado da cidade e na alteração de modos de venda do mercado.
O Código de Posturas Municipal é a Lei que veio a dar conta durante muitos anos da
necessidade de policiamento do espaço público diante do crescimento da população. Se os
feirantes tornaram-se grande alvo das medidas, também o comércio de mercadorias em grande
porte precisou se readequar lentamente para o desembaraçamento do trânsito no momento de
carga e descarga de mercadorias, o que o projeto denominava de empachamento das vias públicas
e obstrução da passagem, que muito eram alvos da crítica da imprensa. De maneira
interessante e, dialogando com projetos de Lei anteriores, o Código de Posturas é obrigado a
manter o horário diferenciado para o comércio de frutas e verduras da feira livre. Não
encontrando justificativa legal adequada, o texto do projeto define como conveniência pública o
motivo pelo qual os vendedores destes produtos poderiam ter um outro horário para suas vendas
de rua. Obviamente, a feira havia instituído seu horário próprio, sobre o qual a Prefeitura não
conseguiu incidir, sendo mantido dentro da própria legislação.
Apesar de agir sobre os costumes da feira livre que estiveram enraizados no cotidiano dos
bares, no jogo do piu, na venda de ervas e nas apresentações públicas de uso de facas e outros
utensílios, práticas de chamamento de clientela que provocavam barulhos ensurdecedores aos
ouvidos dos comerciantes lojistas, enfim, o código de 1967 não interferiria na realização da feira
no espaço público central. Ali eram os feirantes que protagonizavam a movimentação das
segundas-feiras e sábados.
A cobrança tributária regulamentada também ainda não dava conta de controlar a feira.
Observamos queixas na imprensa quanto ao vai e vem de carregadores nas calçadas, vindas
principalmente dos comerciantes lojistas e da população quando em geral quando dizia respeito à
descarga feita pelos caminhões nas proximidades das atuais ruas Marechal Deodoro e
133
Conselheiro Franco, mas não uma proibição do uso das ruas pela feira. sim, um
cerceamento das práticas ali enraizadas e que já incomodavam o comércio lojista.
O poder de polícia legalmente pode ser aplicado para o controle dos costumes. O zelo pela
conduta em espaços públicos faz parte de códigos municipais. A fronteira entre o permitido,
diante do legado dos anos da feira, e a chegada de uma nova regra, posta no jogo de disputa dos
espaços da cidade, se fazia clara na transcrição de uma lei para regulamentar estas relações.
Para Alexandre Fortes, uma cultura política é produzida na relação entre diferentes classes
mediante a instituição de uma lei. Tanto classe dominante como classe dominada partem do
mesmo ponto de partida para reivindicar a melhor forma de aplicação: costumes compartilhados
num terreno de relações sociais específicas. A lei passa a se proclamar imparcial e defensora de
direitos costumeiros, mas as classes pobres compreendem este direito de uma outra maneira.
É nesse sentido que Thompson advoga o uso da idéia de costume, preferencialmente a
tradição ou cultura popular. Busca assim evitar a idéia de permanência que tende a ser
associada à primeira quanto à visão de sistema ordenado (e mesmo de consenso)
sugeridos pela segunda. O costume seria antes um conjunto de recursos e um campo de
conflito (mesma definição dada para o direito em O Domínio da Lei) utilizado
correntemente à época tanto para se referir ao que hoje costuma ser designado cultura
como a Common Law (que em português recebe o triste nome de Direito
Consuetudinário)
268
.
As práticas sobre as quais a fiscalização incidiu refletem o universo dos costumes dos
feirantes no mercado. A própria lei é processo gradativamente disputado e doloroso para as partes
envolvidas. Ao estudar a criação dos delitos florestais e a sua determinação como crime nas
florestas inglesas do século XVIII, Thompson nota os motivos que incitaram o acréscimo de
vários crimes nas punições da Lei Negra, em 1723. Havia outras condutas florestais que seguiam
na maioria das vezes o ritmo dos próprios animais, plantas e curso das águas do Tamisa. As
práticas ilegais eram regulamentadas ou pelo costume ou por acordos tácitos.
(...) ou eram citas, mas perfeitamente entendidas e sancionadas pelo costume, como a
seleção de eventuais cervos para uso pessoal, total liberdade com a madeira, caça miúda
e pasto; outras ainda eram o soldo de uma corrupção tradicional (venda de veação às
escondidas por conta própria ou aceitação de propinas, como pagamento pelo silencio,
de caçadores clandestinos)
269
.
Contudo, os entendimentos entre os usuários das florestas sobre como deveriam se portar
vinham sendo cada vez mais raro. Predação indevida de cervos, colheitas de trufas, além de
_____________
268
FORTES, Alexandre. Op. cit.
269
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
134
fazerem-se clandestinamente, como sempre ocorreu, passaram a extrapolar os limites do ponto de
partida do capitalismo, a propriedade privada. Entre senhores, agricultores, caçadores, aquelas
regras tácitas se superavam frente ao cercamento de terras e novos parâmetros para a
negociação do uso de florestas eram acrescentados no entendimento da Lei.
Thompson inclusive alega que a própria guarda florestal foi sujeito diretamente envolvido
na interpretação dos costumes e condução da lei. Não há nesta análise de Thompson uma
descoberta milagrosa, pela história social do direito, de um modelo para interpretação na história
da construção de leis. Ainda mais porque o caso inglês resguardava peculiaridades especiais no
que concerne por exemplo à importância do status naquela sociedade. Encontramos sim, num
caso resgatado por Thompson, a relacional elaboração das instituições sociais como um processo
conflituoso no qual as classes subalternizadas não agem pacificamente e ainda, o fator instituição
da lei como instrumento de dominação de classe e legitimação de projetos de sociedade: enfim,
mais uma vez, em um outro texto, as pesquisas do marxista inglês são ponto de partida para a
reflexão sobre a desigual situação dos sujeitos históricos perante o avanço de formas novas de
produzir riqueza. Neste óbvio horizonte, traçam-se também meandros para pensar as relações
entre feirantes de alimentos, comerciantes lojistas, grandes comerciantes atacadistas, chefes dos
poderes públicos e fiscais tanto da prefeitura como de órgãos de controle (de peso e medidas,
órgãos de saúde, etc) durante a institucionalização de um local de permissão para a realização da
feira e a ilegalização das tradicionais atividades de rua.
A seleção de práticas condizentes com o momento planejado no governo João Durval,
teria ainda que passar pelo filtro das disputas no chão do centro da cidade e esbarrar-se com o dia
a dia da feirinha. O Código de Posturas Municipal e O Projeto Cabana, como o leitor pode ver
adiante, concomitantemente elaborados, davam conta, assim, de dimensões diferenciadas deste
processo. Agindo sobre todas as práticas de rua e atuando especialmente sobre o espaço público,
o primeiro vigiava a feira sob suas próprias condutas, como no caso do horário diferente para a
venda de frutas e verduras. Já o segundo dava o pontapé inicial para alterações que se
pretenderam mais profundas. Direta ou indiretamente, restava saber, no final do governo João
Durval Carneiro, como realizar, que implicações teria, com que forças contar e com quais verbas
fazer o Projeto de construção de um Centro de Abastecimento em Feira.
Após o Código de Posturas, a Prefeitura veio, a partir de outros estudos realizados
como o Plano de Desenvolvimento Local, o Plano para construção do Centro Industrial do Subaé,
135
programações da Ancarba (serviço de extensão rural da Bahia), além de outros estudos e
documentos não publicados e de circulação restrita
270
a sistematizar o projeto de concretização
de uma vinculação mais proveitosa entre o campo e a urbanização da cidade, que viria a ser
posto em prática na década de 1970. O projeto não elegia a feira livre como foco das atenções
desta organização, como contabilizava o crescimento do aproveitamento das terras do município
para criação e plantação não somente voltada para a subsistência. Para tanto, criaria uma
estrutura e mecanismo de comercialização dos produtos agrícolas que superassem a infra-
estrutura e equipamentos da cidade que já estariam obsoletos.
O Projeto Cabana, então, em 1968 programava várias novidades para o mercado de
alimentos da cidade. Em conjunto com os Projetos que o fomentaram, citados anteriormente,
visava garantir mudanças que beneficiavam muito mais o grande produtor do que os
comerciantes menores e os trabalhadores oriundos da agricultura familiar, como havia acontecido
no governo Arnold Silva e Francisco Pinto. Era preciso garantir um outro modelo de mercado
para Feira de Santana, baseado agora na distribuição em grande porte dos produtos alimentícios.
Também, que se considerar que, anteriormente, a Prefeitura não havia formulado uma
diferenciação de espaços internos para os trabalhos dos feirantes, interferindo diretamente nos
costumes da feira de disposição das barracas, com sua organização própria. O Projeto previa
galpões específicos para cada tipo de mercadoria vendida e direcionava uma pequena área do
espaço para a feira de alimentos oriunda da agricultura familiar e dos trabalhadores urbanos que
distribuíam em pequenas quantidades os produtos que chegavam nos caminhões à cidade. Toda a
rede de interdependência entre a grande produção, de feijão, de tomates, por exemplo, com o
comerciante menor para chegar á mesa do consumidor, foi então regulamentada através de uma
estrutura de carga e descarga para os caminhões das diversas regiões do país e de um mercado
interno agregado a esta produção.
Jacira Santos nos contou sobre a venda a retalho do feijão, experiência típica de
vendedores que trabalhavam com a distribuição do feijão que chegava em atacado na cidade.
Estas pessoas se diferenciam dos pequenos produtores no que concerne a origem dos produtos,
mas ocupam os mesmos lugares nas ruas e no Centro de Abastecimento. Normalmente nas
escadarias do local, as mulheres costumam ainda hoje debulhar o feijão de corda, sendo ele direto
da roça ou comprado ali mesmo. Espalhando-se pelas várias feiras e ao lado do comércio dos
_____________
270
Projeto Cabana. Prefeitura Municipal de Feira de Santana. 1968.
136
supermercados, outros grupos, nesta caso mais destacadamente vindo dos distritos, se instalam na
rua Marechal Deodoro, na Estação Nova, no mercado do Tomba e da cidade Nova. Geralmente
acompanhando os comerciantes e as comerciantes de farinhas.
A gente trazia o saco e começava a vender os ..., vender os molhos, eu vendia essas
coisas assim na rede, naquele tempo era mais na rede, não era na bacia, era na rede. Era
(a feira) como essa. Segunda, Sábado, Quarta e todos os dias ao mesmo tempo. O dia
mais forte era dia de hoje ( segunda) e dia de Sábado. Vendia mesmo, por mesmo.
Eu sou daqui do Tanque da Nação. O feijão vem de fora, dos interior, da roça. O saco é
quinze real, eu fico vendendo aqui. Sempre comprei o saco, sempre comprei
mercadoria, às vezes eu tou trabalhando com tempero seco, eu corto, porque eu moro
aqui mesmo no Tanque da Nação
271
.
Dia de domingo tinha a feira na estação nova, então quem tinha ponto aqui, levava para
a estação nova, como ainda hoje levam. Tinha os bairros, eles levavam, como ainda
hoje levam. Rua Nova, Tomba. Aquele povo que chegava de fora nos caminhão
272
.
Todo este comércio ia se redefinindo espacialmente, mas muito da interdependência entre
os circuitos maiores e menores de venda iam sendo mantidos.
O planejamento sistematizado no governo de João Durval Carneiro só voltou a ser
discutido nos anos de 1973 e 1974, em avaliações técnicas que projetavam a sua conclusão.
Segundo o projeto, dada a desarmonia entre as atividades econômicas tradicionais e a indústria,
mudanças no setor agropecuário e na forma de comercialização de produtos alimentícios, era
necessário visar uma maneira de interferir na transição de uma economia de subsistência para
uma economia de mercado, o que exigia a construção de terminais receptores de produção.
Assim, Feira deixaria de ser um mercado atacadista-varejista, para se tornar um mercado
expedidor rural. Em outras palavras, os bens de consumo que iam direto para a mesa da
população, pela feirinha, iam se deslocando para grandes empresas comerciais e grandes
comerciantes. Ficava aos poucos para as redes de supermercados esta função, sendo o Centro de
Abastecimento o local atacadista de trocas entre eles e os grandes centros produtores.
Um outro ponto do Projeto era o objetivo de eliminar os intermediários. Sobre a produção
do feijão, constatava que: 60 por cento da colheita vai para atacadistas e 40 por cento são
comprados por intermediários desses mesmos atacadistas
273
e vendidos nas feiras livres. O
Projeto viabilizaria que o Centro de Abastecimento fosse o local de passagem por excelência
desta produção, antes de circular no comércio e chegar à mesa do trabalhador.
_____________
271
Depoimento de Jacira Ribeiro dos Santos. Op. cit.
272
Depoimento de José Santos, Op. cit. Refere-se a relação dos feirantes do centro da cidade com as demais feiras.
273
Projeto Cabana. Prefeitura Municipal de Feira de Santana. 1968.
137
O governo da Bahia sistematizou as ações em 1974 por regiões administrativas. Neste
esquema, Feira de Santana seria a Região Administrativa número dois (RA 02), formada por
Santo Estevão, Irará, Ipecaetá, Coração de Maria, Ipirá, Antonio Cardoso, São Gonçalo dos
Campos, Conceição da Feira, Ouriçangas, Pedrão. Neste sentido, sendo esta a área de produção
de fumo mais importante da Bahia. O produto dava destaque a esta região nas exportações
primárias baianas. A lavoura para comércio do milho e do feijão enumerava a RA02 como quarta
em importância na Bahia. Trabalhando com estas regiões, o governo da Bahia visualizava as
zonas produtoras de porte superior à cultura para “subsistência”. A “Ceasa” como serviço de
comercialização da Sudene era a principal frente de atuação para melhor racionalizar os fluxos
comerciais do produtor ao consumidor. Definia-se como:
Agentes comerciantes primários: aqueles comerciantes que conseguiam reunir a produção
de pequenos e médias propriedades em carradas, ou seja, a quantidade suficiente para encher um
caminhão ou uma caminhonete até o mercado. Estes seriam conhecedores das atividades dos
lavradores e sua ação muitas vezes, responsável pela regulação de preços.
Comerciante de centros de convergência: seriam firmas que compravam dos produtores
com a possibilidade de fazer estocagem para em seguida vender a caminhoneiros, ou ainda
comerciantes atacadistas.
Caminhoneiros: operando com maior mobilidade e sob diversos tipos de atuação
274
.
No caso de produtos como o fumo, o controle das Ceasas seria dispensável e agentes de
industrias e beneficiadores atuariam para encaminhar para o exterior. A Ceasa seria uma
instituição pública de suporte no comércio, agindo sobre estocagens, padronização, embalagens.
Seus objetivos não se voltavam para a pequena produção que encaminhava os vegetais
diretamente para o mercado (hortaliças, frutas, aipim, etc.) A Ceasa visou padronizar o comércio
de produtos como o feijão, cuja circulação do produtor até a chegada no terminal envolvia uma
série de agentes. Não havia venda de feijão ou de laranjas no mercado terminal que venha direto
do produtor, por exemplo, o que ocorria com a banana e a mandioca, do contrário. Mesmo em
produções maiores, estes vegetais são comercializados por agentes que produzem e distribuem
nos mercados. Em Feira, as metas das Ceasas, sustentadas em pesquisa da Ancarba (Associação
_____________
274
Governo Antônio Carlos Magalhães. Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia, Fundação de Planejamento - CPE
Análise Global da Economia Baiana. Diagnóstico. Volume 2. 1974 Governo Antônio Carlos Magalhães. Secretaria do
Planejamento, Ciência e Tecnologia, Fundação de Planejamento - CPE
138
Nordestina de Crédito e Assistência Rural da Bahia), eram mencionadas pelo Projeto Cabana
como ponto de trabalho.
A distribuição em pequenas quantidades tornava-se motivo de preocupação dentro deste
circuito. Ao contrário do que implementavam os governos anteriores de Francisco Pinto, ou de
Arnold Silva, a política do governo João Durval Carneiro não visava nenhum tipo de
protecionismo com relação aos pequenos produtores rurais que viviam das feiras livres. A
tendência era que estas pessoas passassem a ser cada vez mais espremidas pelo avanço da
produção rural de grande porte e que no mercado o seu papel fosse diminuído. Assim também, os
vendedores e vendedoras de Feira de Santana, sede, que viviam daquela feira comprando de
atacadistas, ocupavam postos do mercado de trabalho urbano não planejados pelas políticas então
sistematizadas para a economia local. O comércio organizado e a indústria seriam os carros
chefes do Plano Diretor que chega até mesmo a mencionar que as áreas rurais de Feira não teriam
tendência a produção de alimentos e sim, a pastagens, numa clara demonstração de busca de
legitimação de uma cultura local de comércio e não de incentivo à produção rural. A
potencialização da economia local não incluía o investimento nos pequenos produtores rurais dos
distritos. Vale ressaltar que a produção de porcos, galinhas, hortaliças e outros, nos fundos de
quintal da cidade, já era controlada desde 1967.
Aos poucos, juntamente com calçamento de ruas, iluminação pública, e outros aparatos
infra-estruturais da urbanização, que acompanhava a chegada da indústria, ia sendo renegada a
Feira de Santana rural que ainda existia na sede. O trabalhador do distrito que precisava do
mercado para sobreviver veio a ser empurrado para fora da sede comercial moderna. Suas
carroças, até hoje presença cotidiana no trânsito de Feira, foram acusadas de embaralhar o
trânsito, seus modos de vida de enfeiar as calçadas que recebia consumidores ávidos pela moda e
os produtos por ele vendidos de não serem adequados.
O conjunto das pessoas que faziam a feira de alimentos, em torno da qual se agregavam as
mais diversas outras feirinhas (de utensílios para o lar, de carne, de ervas, etc), foram
denominados de ambulantes estacionados, pois cada vez mais fixavam suas bancas em locais do
centro da cidade, demarcando territórios do qual se apropriavam sem pagar os devidos impostos.
Para estes vendedores, no Projeto do Centro de Abastecimento foi direcionado o espaço da feira
livre, sem necessariamente uma demarcação de área para barracas. Um local amplo, mas pequeno
para a demande de feirantes. Assim também, havia local específico para o mercado de carne
139
verde no projeto. Mas eram os atacadistas que dispunham de maior área, proporcional no ponto
do Centro a ser construído, adquirindo barracas que mais tarde puderam ser vendidas, trocadas ou
alugadas.
3.3 – A lei e o corpo a corpo com os feirantes
Com a definição das metas, estava em jogo, assim, a tradição comercial de Feira de
Santana. Esta veio a ser a principal pauta da imprensa local, especialmente após a fundação do
jornal Feira Hoje, em 1970. Marco para o início da década, este veículo tornava-se também
instrumento de debates entre os setores comerciais da cidade. O comércio da sede crescia, com a
quantidade de vendedores, movimentação comercial. A mesma feira que gerava um fluxo grande
de pessoas nos dias de segunda-feira, incomodava o trânsito de pedestres consumidores.
Acompanhamos alguns atos do executivo e do legislativo na condução das mudanças no
conjunto da economia feirense. O debate que veio a ocorrer na imprensa a respeito da
manutenção ou não das tradições comerciais feirenses, mediante novos investimentos, revestia-se
de um tom mais retórico do que os atos da Câmara Municipal.
Logo após o governo de João Durval, o terreno de implantação do Centro Industrial do
Subaé não havia sido pago e a prefeitura solicita a Câmara Municipal a aprovação de um
empréstimo, algo que causa alguma discussão a respeito da conduta da modernização da cidade.
Havia posições contrárias quanto ao recebimento de capitais extra municipais em troca de
beneficiamento de industrias sulistas, às quais muitos empresários feirenses haviam se
associado. A dúvida era se havia possibilidade de busca de capitais no Município e no Estado em
prol de uma menor dependência com estas associações. Diante da contração de recursos no
Banco Campina (2 milhoes de Cruzeiros), o vereador Noide Cerqueira alega alguns receios.
Depois, novo parecer é apresentado pela Câmara, justificando o empréstimo.
Quanto ao mérito, é o mesmo oportunismo, uma vez que visa única e exclusivamente
assentar as bases para acelerar o desenvolvimento de Feira de Santana, que é um desejo
não somente do executivo municipal, mas de toda a comunidade feirense que aspira ver
Feira de Santana na vanguarda dos municípios baianos e quiçá do norte e nordeste do
país
275
.
_____________
275
Parecer 111/1971. Câmara Municipal de Feira de Santana. Livro de Atas n 4, página.
140
Durante o início do governo Newton Falcão, muitas foram as solicitações de verbas para
quitar com as investidas do governo João Durval, como por exemplo, despesas com empresas
como a Philips, Almeida Land e Pneus King, no pagamento de instalações elétricas para que estas
viessem a permanecer em Feira. Muitos terrenos foram comprados nas margens da BR 324 para
que fábricas selecionassem Feira de Santana como local de sua instalação.
Tudo isto nos interessa no sentido de que foi também nestes embates em busca de
investimentos, externos ou não, que o executivo municipal concretizou a construção do Centro de
Abastecimento como mais um ponto importante para os planos de mudança da economia da
cidade.
Ao iniciar uma leitura do governo Newton Falcão, Adnil Falcão menciona o princípio da
década de 70 através de uma avaliação do que a antecedeu.
Junho de 1970: Na liderança do governo do Estado, Luiz Vianna Filho e, do Município,
João Durval Carneiro. Feira de Santana, com 190.076 habitantes 127.105, na sede
vivia um surto de desenvolvimento, favorecido pela ambiência do ‘milagre economico’.
A década anterior havia sido pródiga em investimentos para a cidade Colégio
Municipal Joselito Falcão de Amorim, Colégio Industrial e oficinas do DERBA, SENAI,
Fórum desembargador Filinto Bastos, Estação Rodoviária, Parque de Exposições João
Martins da Silva, Conjunto Habitacional Cidade Nova, Plano Local de Desenvolvimento
Integrado, adutora do Paraguaçu, energia elétrica de Paulo Afonso, Faculdade Estadual
de Educação, Núcleo Piloto do Centro Industrial...
276
.
No início de 1971, ganhava destaque a necessidade de implantar o sistema integrado de
esgotos e instalações para uma faculdade Feira de Santana. As ruas mudavam constantemente de
nomes, ganhando os de sujeitos responsáveis pelas mudanças, como o empresário João Mendes
Costa Filho. O crescimento da população, principalmente por causa do número de migrantes em
busca de trabalho, levou muitos problemas urbanos a serem pauta de centros espíritas,
associações de bairro, associações protestantes, que visavam atender a demandas não
solucionadas pela prefeitura. Muitas destas associações e entidades beneficentes vieram a ser
reconhecidas neste período. O estatuto do MOC, Movimento de Organização Comunitária,
fundado desde 1967, foi pautado na Câmara Municipal em 1971.
O que ocorreu em Feira, nos anos de chegada da indústria, foi um crescimento do trabalho
em setores da construção civil e os empregos diretos não corresponderam a um número que se
equiparasse aos números do chamado mercado informal e aos empregos temporários. É sabido
que boa parte da classe trabalhadora feirense na época era composta de migrantes e que, no
_____________
276
FALCÂO, Adnil. Olhares sobre Newton Falcão, 117.
141
período, a maioria não se encontrava apta ao trabalho na indústria e no comércio moderno,
segundo algumas entidades que promoviam, na cidade, formação de mão de obra
277
.
Empresários e comerciantes articulavam-se no período junto a instituições como as Igrejas e a
outros espaços na sociedade civil feirense para organizar programas de especialização para a
população feirense, que foram desde projetos de alfabetização a processos educativos específicos
para trabalho na indústria e na construção civil. O SENAI, Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial, garantia cursos de mecânica e eletricidade, juntamente com o SESI, Serviço Social da
Indústria. O próprio Sindicato dos Comerciários forneceu cursos de vendas, para um comércio
que construía outras concepções de atendimento à clientela e de sistemas de crédito.
Mesmo após a construção do CIS e apesar do notável crescimento industrial observado
nos anos 70, o terciário continuaria sendo o setor mais importante da economia feirense
278
. De
acordo com Nacelice, nos anos 70, o volume de mão de obra empregado no setor industrial pode
ser identificado como bastante inferior ao empregado nos setores de comércio e de serviços
279
. A
densidade populacional entre 1940 e 1970 em Feira de Santana aumenta em 89 por cento
280
. Da
população ativa do Município, em 1950, 1790 teabalhavam com o comércio de mercadorias e em
1970, 8762, do total de 32.720 da população ativa.
As metas do governo de Newton Falcão eram sete e entre elas estava a urbanização da
cidade. Em seu governo, a consolidação do que havia sido pensado no PDLI e no Projeto Cabana
não ocorreu por conta de embargos políticos. Houve disputa por parte de João Durval Carneiro,
aliado a Antonio Carlos Magalhães, pela concretização dos investimentos no CIS. Terminar estas
obras era a grande propaganda almejada no executivo. A partir de 1971, os problemas entre ACM
e Newton foram tratados a partir do fato de João Falcão (do jornal da Bahia) ser opositor político
de ACM e perseguido durante muitos anos. Segundo a memória da família Falcão, Newton não
teve como instalar o CIS, mediante suposta articulação política para estadualização do centro
industrial. Os pedidos de empréstimo ao Banco do Nordeste, encaminhados à Câmara pelo
governo municipal foram todos negados. A aliança com a Arena favorecia o encaminhamento das
_____________
277
FREITAS, Nacelice. 1998.
278
CRUZ, Rossine.
279
FREITAS, NAcelice. 1998, p. 31.
280
Governo Antônio Carlos Magalhães. Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia, Fundação de Planejamento - CPE
Análise Global da Economia Baiana. Diagnóstico. Volume 2. 1974 Governo Antônio Carlos Magalhães. Secretaria do
Planejamento, Ciência e Tecnologia, Fundação de Planejamento - CPE
142
propostas, mas o poder de ACM no estado proporcionou o fechamento das portas para
investimento no CIS.
A vitória da Arena em Feira de Santana foi consagradora. Além de Newton Falcão, para
prefeito, elegeram-se dos candidatos ao Senado, Ruiy Santos e Heitor Dias. Para
Deputado Federal, Wilson Falcão e para a mara Estadual de Deputados Auusto
Mathias e Áureo Filho. Para a Câmara Municipal, foram eleitos os vereadores Jo
Manoel de Araújo Freitas, José Ferreira Pinto, Paulo Almeida Cordeiro, Alberto
Oliveira, Newton Carneiro, Orlando Leite Freitas, Dival Machado e Jorge Cerqueira
Mascarenhas
281
.
Na visão do prefeito Newton Falcão, a mudança do CIS para a órbita do Estado, a médio
e longo prazos, deixaria Feira de Santana vulnerável, sem autonomia para desenvolver
após a implantação do Centro uma política industrial própria, definindo, inclusive, os
ramos das empresas que ali se instalaram de acordo com as potencialidades do
município. Ficaria também sem autonomia para obter financiamentos próprios e para
desenvolver campanhas de promoção industrial especificas, explorando a sua condição
de “faixa A” de prioridade da SUDENE, condição que o centro de Aratu, por exemplo,
não exibia, e que tornava bem mais atraente a localização de industrias do CIS
282
.
O mandato era apenas de dois anos e a prefeitura não era um cargo muito almejado pelas
lideranças Arenistas neste contexto. Newton foi, portanto, um candidato local de conciliação. A
urbanização em seu governo deu-se, desta maneira em medidas localizadas. Esta
superintendência de urbanização surgiu em 1969 e era o vinculo da Prefeitura para apresentar
propostas e realizar pavimentações, construção de salas de aula e diversos reparos de infra-
estrutura urbana.
Cada vez mais, a feira livre passou a ser o maior foco de discussões, por se espalhar em
pleno centro da cidade, entre os motoristas que se esforçavam para conduzir seus veículos por
entre cavalos, burros, barracas, lonas e carroças, elementos da roça, do campo. Práticas que
passaram a importunar boa parte dos comerciantes lojistas da cidade e outros setores articulados
com as novas formas de concentração de riquezas que chegavam à Feira. As medidas em 1971
soavam.
Uma das primeiras medidas tomadas pelo atual chefe do governo Municipal, em que
pese não ter sido do agrado de uma minoria inexpressiva em número, foi a retirada das
dezenas e mais dezenas de barracas que se aglomeravam nos passeios de nossa cidade,
enfeando as nossas ruas e avenidas e dando uma valiosa contribuição para que
comentários, os mais diversos, negassem o conceito de cidade moderna que Feira de
Santana desfruta atualmente
283
.
_____________
281
FALCÃO, Adnil. OP. cit., p.122.
282
Idem. p. 153.
283
Barracas”. Feira Hoje, 13/02/1971.
143
Quando a prefeitura impunha tais modificações, o conflito era inevitável:
Espalhada a notícia da mudança da feira de frutas que a atualmente funciona na Avenida
Getúlio Vargas para o lado mercadinho da Rua da Aurora agora, entre vendedores de
frutas e verdureiras, uma pequena confusão. Acontece que todos querem vender sua
mercadoria nos lugares que dão acesso à referida rua, achando que, na parte do fundo
ninguém vai fazer negócio nenhum. Além disso, alegam que, com o calor do sol, o piso
que parece ser de asfalto, vai amolecer e muita gente vai ficar presa ao solo. Mas antes
que os vendedores virem a mesa e coloquem as suas bancas a seu gosto e à sua maneira,
a Prefeitura está mais ativa como nunca para acabar com essa algazarra
284
.
O texto do Jornal parecia ironizar os feirantes e deixa transparecer que os vendedores de
frutas e as verdureiras preocupavam-se com seus ganhos por estarem sendo afastados do centro
do comércio e que a Prefeitura já estava intensificando suas ações de organização da feira. Mas, é
também retrato de um momento no qual os conflitos entre formas de concepção do mercado,
organização e montagem da feira de maneira costumeiramente estabelecida entre os feirantes
entram em choque com o modelo organizacional oriundo dos novos interesses comerciais e
empreendido nas ações do poder público. A feirinha entrou numa nova fase, na qual os feirantes
precisavam então disputar os espaços centrais com a concorrência de outros negócios que
apontavam para uma outra inserção da cidade na economia regional.
O episódio de conflito de um grupo de ceboleiros e ceboleiras que entraram em embate
com fiscais retrata este quadro. O tiroteio nas ruas da cidade foi noticiado no jornal Feira Hoje;
Guardas Armados para proibir ‘feira da cebola’ : A Prefeitura destacou seis guardas
municipais para o trecho da Avenida Getúlio Vargas, onde se registrou o tiroteio na
última segunda-feira, com a finalidade de proibir a continuação da “feira das cebolas”.
Pelo que se pode apurar os seis guardas, todos armados, receberam ordens para que não
permitissem o descarregamento de cebolas, tanto assim que já havia um caminhão de
abóbora colocando mercadoria
285
.
Entre as vítimas das balas, estavam os comerciantes Francisco Araújo de Silva e seu filho
Osvaldo Alves Soares, além do guarda Antonio Santiago Maia. Os feirantes alertaram que ambos
foram atingidos por “balas partidas da guarda municipal e que a mercadoria apreendida” ainda
não havia sido “devolvida pela Prefeitura”. Sem as mercadorias, alegaram que não poderiam
pagar o que deviam ao atacadista de quem compraram as cebolas.
_____________
284
Confusão Folha do Norte. 10/07/ 1971.
285
Feira Hoje, 27 /10/ 1973.
144
Alguns dias depois, os feirantes conseguem a posse de um terreno na área, na rua
Visconde do Rio Branco, cedido pelo Sr. Arnaldo Ferreira Pimentel
286
para que eles pudessem
vender seus produtos, que foram proibidos de fazer na avenida Getúlio Vargas, desde a noite
trágica do tiroteio.
O comportamento de comerciantes tradicionais estava em jogo. Uma publicação do Jornal
Feira Hoje mediava as relações entre estes comerciantes, sejam eles feirantes ou lojistas e a
modernização comercial.
Atualmente o comércio se encontra em fase de transição, com dois tipos de comerciantes
bem definidos. Uns que buscam manter a tradição. Esses vivem presos ao passado.
Mantém o seu comércio praticamente estagnado, relacionado à velha clientela, preso a
laços de amizade. O outro tipo de comerciante acompanha bem de perto as novas
técnicas de venda, estabelece custos, monta uma administração compatível com a hora
presente e recorre aos mesmos métodos utilizados nos grandes centros
287
.
O jornal, na ocasião, trazia textos que convocavam os lojistas feirenses a se filiarem à
Associação Comercial, demonstrando um relacionamento próximo com os empresários. O que
importa aqui é verificar que, no texto do jornal, a tradição aparece como algo “velho”, arcaico,
em discrepância com a modernidade almejada. E nesta visão, o lugar da feira era sempre
citado
288
. Em tempo, fica perceptível que a relação das classes dominantes locais com as
transformações não era igualmente estabelecida.
As edições comemorativas do Jornal Feira Hoje sempre recorrem às “origens” da cidade,
para mostrar que a cidade teria passado por várias fases: cidade agropecuária, cidade comercial
e o novo caminho cidade industrial. Era preciso que se fizesse um trabalho arqueológico, de
desenterrar as velhas manifestações de sob os escombros que os novos hábitos e costumes
ajudaram a acumular, limpá-las, dar-lhe brilho
289
. A importância da feira estava no passado.
Ali, na nova Feira, ela representava a lembrança das suas origens comerciais.
Como todos os grandes e médios centros, foi possível constatar, através da imprensa do
período, um aumento significativo no número de casas à venda na área do comércio. As
conhecidas Rua do Meio e Rua de Aurora, onde moravam muitas famílias, passaram a ser ruas
_____________
286
Particular cedeu terreno para a feira de cebola. Feira Hoje, 10 de Novembro de 1973.
287
O Comércio fez História. Feira Hoje, 05 de Setembro de 1973. (grifo meu)
288
Segundo texto do Jornal Feira Hoje, após a construção do CIS, houve um choque de mentalidades entre empresários do Sul e
setores ligados à agropecuária segundo o editorial, base de uma economia do século passado. Feira: Industrialização como
Processo de Desenvolvimento, Feira Hoje, 1973.
289
Feira quer entrar na era do turismo. Com que roupa?. Feira Hoje, 05 de Setembro de 1973.
145
comerciais. Bancos
290
e lojas são erguidos onde antes havia residências que lembravam o passado
pastoril de Feira. A estruturação da Superintendência de Urbanização de Feira de Santana trouxe
consigo a grande circulação de tratores, muito comuns de serem vistos no período e relatados por
quem esteve ali naqueles anos.
Outras secretarias cumpriam a função de prestar contas à sociedade
291
sobre as mudanças.
Elas eram criadas com a demanda das transformações e, seu papel foi fundamental na realização
das modificações.
A Secretaria de serviços urbanos está planejando remover a feira livre da Avenida
Getúlio Vargas para distribuí-la de acordo com as mercadorias. A parte de frutas mudará
para a Praça da República, Miudezas em geral para a Sales Barbosa. As outras
mercadorias irão para a Marechal Deodoro. Ficarão somente na Avenida Getúlio Vargas
nos dias de segunda-feira: Cerâmica, Tábuas, confecções, esteiras, cestos e outros
materiais que não depreendam mau odor. Isso é para embelezamento e higiene de nossa
cidade
292
.
As notícias de financiamentos promovidos pelo Banco do Nordeste chegam comumente à Feira, animando
as perspectivas de ampliação dos negócios entre os empresários locais. A continuidade da busca pelos subsídios para
a construção do Centro deram destaque ao governo posterior, de José Falcão da Silva.
Com o trânsito de tratores nas ruas, o asfalto, a mudança, os feirantes e outros trabalhadores do centro
transitavam de uma esquina para outra, de uma rua para outra, pois as inovações empurravam os feirantes para
praças próximas e para becos vizinhos. Para o jornal, os feirantes tinham a mania de querer tudo junto, tudo perto
293
.
e as inovações continuam surgindo. Atingiram, agora, a Praça Bernardino Bahia, que, de
parque ou mesmo, jardim, passou a ser há poucos dias , a feira central dos camelôs, onde
dezenas e mais dezenas de bancas a destruir a grama dos canteiros
294
.
as barracas que vendem comida vão, também imitando os outros, permanecendo por ali
dois ou três dias. Daí partirão para mais quatro dias até tornarem-se imóveis (...) Mas
acreditamos que as providências virão imediatamente e, por certo, impedirão que seja
criada, numa das mais belas avenidas da cidade, mais uma feira livre diária, semelhante
à da rua Libânio de Morais, local onde reina verdadeira bagunça e imundície
295
.
O clima de mudança, a instalação de lojas modernas, vitrines e anúncios de propaganda
traduziam estes interesses. Um importante grupo de empresários anuncia: O mundo mudou, Evoluiu. A
_____________
290
EM 1970 é instalada a primeira agência do Banco do Brasil.
291
Era muito comum no Jornal Folha do Norte a publicação das ações do poder público. A maioria dos decretos Municipais
podem ali ser encontradas e o jornal tornava-se o canal de relação da sociedade organizada com atitudes do Prefeito e suas
Secretarias.
292
Folha do Norte, 7 de Fevereiro de 1970.
293
Folha do Norte, 1971.
294
A feira da Praça Bernardino Bahia. Feira Hoje, 1 de fevereiro de 1971.
295
Folha do Norte, 15 de maio de 1971.
146
juventude acompanhou. Você pensou num mundo ainda em preto e branco? Falando a mesma linguagem e
usando os mesmos costumes dos nossos avós? - Neste mundo redondo não há lugar para os quadrados
296
.
A promoção de um concurso de vitrine de Natal realizado pelo jornal Feira hoje e
Associação Comercial de Feira de Santana em 1971 foi enfático de uma tentativa árdua de
fomentar em Feira novos costumes de compra e venda para o mercado local, o que era feito em
conjunto com concursos anuais, desde então de comerciário padrão.
O número de veículos na cidade crescia desde os primeiros anos da década
297
e em 1974 e
1975, começam a se destacar as ações voltadas para o trânsito, em especial no ano de 1975. A
circulação de veículos se ampliava, juntamente com o número de atropelos, em especial nas ruas
e estradas de acesso às feiras
298
.
A cidade recebia então um plano viário, instalação de sinaleiras e, curiosamente, a feira
foi mantida dentro da planta de tráfego nas ruas principais:
Quanto da realização das feiras livres
299
, os carros trafegando em torno dela, por várias
ruas, formando um círculo, praticamente o centro da cidade ficará interditado.
estamos colocando placas que proíbem a passagem de veículos nos dias de sábado e
segunda-feira quando são realizadas as feiras livres. Estas placas de proibição
encontram-se na Avenida Senhor dos Passos, Sales Barbosa e um trecho da Marechal
Deodoro, onde os feirantes podem vender os seus produtos sem utilizar-se dos passeios
que ficarão livres para os pedestres
300
.
Posteriormente chegou a ser cogitada pela prefeitura a construção de um anel em volta da
área da feira, quando foram colocadas algumas placas proibindo a passagem de veículos no local.
Isto também acontecia porque a presença dos feirantes nas calçadas era uma preocupação dos
lojistas. Para muitos, estando as vendedoras e vendedores na rua e não na frente das vitrines, a
feira não lhes causava tamanho incômodo e entre as ruas e as calçadas, os feirantes iam buscando
suas permanências na nova Feira.
O grande número de reclamações e denúncias de assalto nas segundas-feiras era
polemizado na imprensa O Feira Hoje anunciou: segunda-feira é dia de ladrão
301
, demonstrando,
além do preconceito, uma relação de precaução nas compras de dia de feirinha. Provavelmente,
_____________
296
Anúncio da loja TITIRRANI, Feira Hoje, 08 de Dezembro de 1973.
297
O Louco trânsito de Feira. Feira Hoje, 01 de julho de 1971.
298
Ônibus mata velha de 65 anos na esquina da Av. Getúlio Vargas com Sr. Dos Passos. Seu nome era desconhecido. Feira Hoje,
05-09-1973; Mais um atropelo fatal na Getúlio Vargas idem, 26-03-1974; “Outro atropelo: a vítima contava 58 anos de idade e
residia no local conhecido como Prato Raso” idem, 30-03-1974; dois atropelos no fim de semana, idem , 02-04-1974.
299
Algumas vezes o jornal Feira Hoje falava da feira no plural, pois era comum localizar no perímetro urbano a feira da cebola, a
feira da farinha, etc.
300
Feira Hoje 20 de Maio de 1975.
301
Jornal Feira Hoje, 10/ 12/1974.
147
os consumidores das novas lojas não estariam satisfeitos com a insegurança que teriam de
enfrentar para chegar no seu destino, neste dia, em especial.
No governo de José Falcão, um conselho local, juntamente com o apoio do Governo da
Bahia retomou os estudos e elaborou uma nova regionalização, numa campanha para que se
tornassem mais eficientes os órgãos responsáveis pelos empreendimentos de modernização da
região e potencialização das economias locais. Feira de Santana é novamente avaliada como
cidade fundamental nesta articulação.
Um órgão anexo à SUDENE, o PRANE (Projetos de Abastecimento do Nordeste), sob
coordenação de Lindalvo Farias, entrega uma avaliação encomendada pela Prefeitura em 1974: o
relatório de viabilidade do Projeto CABANA, que apresenta números contestáveis. O cálculo era
da existência de 2853 estabelecimentos na feira livre, sendo 115 os vendedores de alimentos
estacionados, ou seja aqueles que estabeleceram-se no local para além dos dias de feira.
Um estudo sobre a ocupação rural também acompanhava o plano. Segundo o mesmo, em
1970, 9.442 estabelecimentos rurais se destinavam a plantação e 3.501 para pastagens, sendo que
33 eram próprias e oriundas de ocupações, 30 arrendamentos, 762 ocupadas sem propriedade
legal, 875 arrendadas. Os números mostravam no projeto um Município com predominância de
plantações de subsistência, o que, sem dúvida, tem uma relação com o pequeno comércio dos
agricultores que vinham para a cidade toda semana. Os produtos comercializados na feira,
segundo dados do projeto eram na maioria: milho, mandioca, feijão, amendoim, batata doce,
banana, laranja, abacaxi, caju e manga. Para pôr Feira num vínculo mais profundo com o
agronegócio, esta situação da zona rural não seria satisfatória. Apesar de apresentar uma estrutura
rural mais voltada para a subsistência, o governo local, juntamente com o governo da Bahia,
direcionou a implantação do Centro de Abastecimento uma função importante na inserção de
Feira de Santana como região crucial na distribuição. Seus objetivos nunca foram dar conta da
imensa feira livre feita por agricultores locais.
A facilitação da instalação do Centro de Abastecimento também se deveu ao fato de que o
governo militar visou intensificar as ações voltadas para a integração econômica do país
302
. A
_____________
302
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A modernização autoritária: do golpe militar à redemocratização 1964/1984 in
LINHARES, Maria Yedda et al (ORGS.) História Geral do Brasil. Francisco Teixeira, assim como nia Regina e Virgínia
Fontes apresentam uma leitura de que umas das frentes de atuação do governo Geisel na busca de táticas de recuperação da
economia brasileira diante das crises internacionais do preço do Petróleo que atingiram a produção industrial nacional
concentrada no Sudeste e nas mão de algumas empresas multinacionais, foi investir através de órgãos como a SUDENE numa
aposta de guinada nas economias destas áreas do país, consideradas periféricas. Estes investimentos foram acompanhados de
148
proposta de retomada do crescimento foi baseada fundamentalmente na integração produtiva do
território brasileiro, dispersando a concentração de capitais existente na região Sudeste. As ações
e investimentos, antes iniciados nas áreas periféricas, cresceram consideravelmente quando a
estratégia do governo Geisel passou a ser fomentar ainda mais a integração destas áreas. Em
Feira de Santana, os planos já existentes receberam mais financiamentos.
Com o sistema de controle dos pontos de venda e cadastro de feirantes, com a
intensificação da fiscalização, inclui-se nas relações de troca e venda a negociação das esquinas e
vielas da cidade, pechinchas políticas por votos, trocas de favores e mesmo de barganhas com
mercadorias. Este é um conjunto de vivências com o novo que promoveu novas relações sociais,
quando os feirantes perceberam o jogo de interesses na disputa pelo centro da cidade e passaram
a lidar também com o mesmo.
Porque no tempo de política é assim, eles conhecem. Depois, terminou a eleição, cinco
horas da tarde, eles não conhecem mais ninguém. Até cinco horas da tarde, todo mundo
é bacana, todo mundo é bonito, todo mundo é cheiroso, mas terminou cinco horas da
tarde, candidato nenhum conhece mais ninguém. Seja ele quem for. Não é escolhido não.
(...)
303
.
A experiência dos feirantes é acrescida de uma tarefa mais difícil em negociar a
continuidade de seu trabalho nas ruas ou de inserir os costumes de venda em novos locais, como
o CAF. A chegada de órgãos de controle de pesos e medidas trazia agentes estranhos àquele
cotidiano, como os fiscais do governo da Bahia. Fato ainda presente nos dias de feira, era comum
que os feirantes negociassem os produtos alimentícios por quilo e nisto aceitassem o choramingar
da clientela, que terminavam por levar algumas gramas a mais do que pagavam mais ou até
menos carne ou feijão. Antes, as balanças tinham como base pesos de madeira, argila, pedra e
outros materiais. Por este motivo, segundo a prefeitura, as balanças tinham que ser substituídas
por pesos de metal e mais adiante por balanças mais elaboradas
304
. Muitos anos após,
encontramos várias notícias de desvio dos olhos dos fiscais por parte dos feirantes. Em 1990, as
denúncias de burla à fiscalização eram notórias. A época era de alta dos preços e a feira livre
tomava os noticiários impressos Quando os agentes chegavam aos locais de feira, as balanças
eram escondidas, passadas para a banca vizinha, entre outros. A imprensa direcionava para o
recursos para que houvesse nestas cidades um processo de urbanização que escoltassem a indústria, objetivos traduzidos no II
PND.
303
Entrevista com José Carlos.
304
Comumente, como forma de burlar tal processo e evitar apreensões, muitos vendedores passaram a vender os produtos no litro;
vasos de óleo vegetal, onde não se sabe o peso que se está levando e quem estabelece os preços são os próprios feirantes.
149
mercado a culpa pelo desregulamento dos preços, desta vez, na alta inflacionária do governo
Collor. Desde o início da década, muitos casos de enfrentamento de policiais por açougueiros
aconteceram
305
.
As variações nos padrões costumeiros de negociação na feira foram sentidos bem depois.
Elas começavam a ficar explícitas nas medidas tomadas pela prefeitura e na recepção de normas
vindas de Secretarias Nacionais e regionais, no controle da pesagem de alimentos
306
,
tabelamentos de preços e forma de venda. Mas a notabilidade das reações dos feirantes que foram
para o Cento de Abastecimento veio a ficar clara na década seguinte, com o retorno das pessoas
para a rua e com o dia a dia modificado dentro do Centro. Para jogar, os feirantes reagiram como
negociaram, procurando obter como resultado não a realização de seu trabalho, mas que este o
fosse feito em moldes tradicionais.
3.4 – “Polícia tem que correr atrás é de ladrão”
O indicio da conduta dos vendedores de frutas e verduras, após a decisão de mudança da
feira, é buscado nas suas falas. Esta deliberação foi tomada em âmbitos que fugiram ao
reconhecimento dos feirantes. Secretarias Municipais, planejamentos estaduais e medidas
nacionais para o Nordeste estavam em jogo na construção do Centro de Abastecimento. Apesar
disto, foge ao controle desta racionalidade a construção ímpar da feira livre. Os artifícios de
vendas, as redes próprias e a cultura da feira delineiam costumes não identificados na ação do
Estado, neste sentido. E, é por meio deles que os feirantes continuaram a encontrar seu lugar no
espaço urbano, na economia local, na prática de suas vidas.
Não sabemos ao certo como o projeto repercutiu antes da construção do Centro entre os
feirantes. Entre os anos de 1974 e 1975, o projeto não é tratado na imprensa, sendo relatadas
apenas notícias de possibilidades de financiamentos do Banco do Nordeste para projetos de
Municípios Nordestinos. Podemos atribuir esta ausência nas páginas dos noticiários a uma
conjuntura na qual as reclamações pela alta de preços, por exemplo, que levava os mercados da
cidade a um destaque no intermédio da questão, estavam cerceados no período, muito devido a
intervenção do governo federal, através do ministro da Fazenda, Delfim Neto, no controle dos
_____________
305
Açougueiro preso por vender fora da tabela. Feira Hoje, 08 de Janeiro de 1974 e muitas outras noticias podem ser encontradas
sobre o assunto.
306
Pão, pescados, carnes verdes, proibição da venda de leite cru, etc.
150
preços. A feira saía um pouco da imprensa nestes anos. Tanto que, no final da década de 1980 e
início da década seguinte, o mercado de alimentos volta a ser fortemente noticiado, justamente
por conta da alta de preços, como dissemos. Somado a este fator, a reclamação de muitos donos
de boxes do Centro de Abastecimento, já em pleno funcionamento, para que o tabelamento
retornasse trazia a feira como notícia. Segundo os comerciantes do CAF, os mesmo não
conseguiam lidar sozinhos com as táticas mercadológicas de superar as concorrências diante de
circuitos mais complexos da inflação, que os feirantes não dominavam.
A Câmara recebe alguns pedidos de aprovação de verbas e, no ano de 1976, o Centro
começa a ser montado. A notícia da construção da Central de Abastecimento animava e
amedrontava os feirantes. Os recortes recolhidos por Moreira na imprensa, do ano de 1976,
retratam esta expectativa e seria redundante retomá-los
307
.
Modificada a relação destes trabalhadores com um espaço de trabalho, logo de modos de
vida, aos poucos estas pessoas iam se definindo em novas apropriações destas condições,
tateando no seu cotidiano. Assim a cidade permitida ia sendo recortada, desde que o Centro de
Abastecimento foi construído, por um novo dimensionamento das atividades de feira livre.
O julgamento de alguns feirenses compõe esta seção, como caminho de leitura das suas
maneiras de lidar com o novo. Feirantes dos mais diversos produtos começavam a mudar seus
locais de trabalho de uma rua para outra, ou mesmo a sair da rua para praças da cidade e de
bairros nos primeiros anos da década de 70, tanto por conta da fiscalização da Prefeitura que já se
fazia presente, como pela concorrência e crescimento da própria feira. Após a construção do
Centro, adiciona-se a esta prática os termos da ilegalidade de estar nas ruas. Terrenos foram
ocupados pelos feirantes no centro da cidade e a própria prefeitura precisou, ao longo de muitas
gestões, ir relocando parte das atividades do comércio de alimentos entre outros nas avenidas
principais, seja feito este negócio por comerciantes mais antigos, que viveram a transferência das
atividades para o Centro, ou por novos feirantes.
Em becos, praças, calçadas, as negociações foram variando. Nas perdas conseqüentes, o
aprendizado fomentou a formação de algumas referencias entre grupos, pessoas que se colocam
como interlocutores mediante o poder público ou mesmo privado (no caso de negociar com
donos de terrenos).
_____________
307
MOREIRA, Vicente. O fogo febril (...) Op. cit.
151
A presença da solidariedade, neste sentido, deu-se em muitas circunstâncias, como
também a inimizade foi alimentada quando formou-se um sentimento de perda por parte dos
feirantes que resolveram seguir as regras do Centro de Abastecimento, vendo com maus olhos
aqueles trabalhadores das ruas. Ao mesmo tempo, muitas destas mesmas pessoas procuram
também vender no centro da cidade, por via de ajudantes ou mercadores que pegam os produtos
por consignação, conseguindo negociar mais próximo ao consumidor, nos pontos de ônibus, nas
esquinas.
A aquisição dos boxes junto à Prefeitura, no ano de 1977 foi um processo lento que ainda
hoje deixa suas marcas. Os primeiros comerciantes revenderam, alugaram, emprestaram,
passaram para familiares a posse da banca ou boxes. Segundo o projeto CABANA, estes foram
feitos por “locação”, mediante pagamento de taxas à prefeitura. Até meados de 2000, os cadastros
eram renovados com base nos títulos conseguidos em 1977.
O interessante é que os entrevistados que mencionaram o Centro de Abastecimento como
acontecimento positivo na história da cidade, ao mesmo tempo o negaram como espaço de
trabalho, indo para outros locais.
É por que... justamente, a prefeitura achava que essa feira não podia ficar ali, por que a
feira era no centro da cidade, né? Achou que aquilo ali ia ficar muita sujeira, aquele
negócio. ele modificou pra baixo. foi o agente, veio a van que botou todo
mundo, botou a gente, cada qual no seu lugar. Mais ou menos uns 15 dias vindo direto a
vã, botando lá, o açougue do lado, a farinha do outro, a fruta pra outro lado, foi assim...O
mercado do fato que já era na Rua de Aurora, foi pra baixo também...eu achei que era
melhor por que cada qual ficava no seu lugarzinho, não fica esse negocio de um chegar e
dizer, ah aqui é meu aqui é de fulano... não. E a mesma coisa quando a gente saiu de lá,
tudo aqui é padronizado aqui. Não tem lugar pra reclamar, lugar pra tomar, nada
308
.
Apesar de mencionar positivamente a construção do local, pergunto o motivo de ele ter
resolvido sair do local e ir vender na feira da Estação Nova e ele revela: Ah, por que lá o negócio
ficou mais ruim né?
309
.
O momento da entrevista muitas vezes leva o colaborador que se dispõe a falar a imaginar
que o pesquisador pode produzir denúncias contra o poder público, com o qual os feirantes não
querem se indispor.
Mas todos os entrevistados que estavam negociando nas ruas mencionaram negativamente
o local, a exemplo de Dona Tenícia que menciona a falta da clientela no Centro.
_____________
308
Depoimento de Cláudio Araújo Santana. Op. cit.
309
Idem.
152
Não me sentia muito feliz do lado de não, como me sinto aqui não. No centro, era
muita agonia e era muito sol que a gente tomava. (...)
Eu mesmo tenho um cliente aqui que compra castanha em minha mão de quinze em
quinze dias, compra, o médico que compra castanha em minha mão. Eu tenho um bando
de clientes aqui, graças a Deus. que não é todo dia que eles vem, mas eu tenho.
Quando eu trabalhava não tinha esses clientes [ no centro] como tinha aqui não, hoje
não. Lá eu me sentia muito agoniada. Era muito sofrimento lá no centro
310
.
A justificativa de José Carlos para não ficar no Centro é bastante interessante e possui um
jargão bastante mencionado por outras pessoas em sua volta em conversas informais sobre a
feirinha antiga. Dizer que poderiam mandar buscar o dinheiro da carne, ausente na agricultura
familiar era comum.
A feira antiga é o seguinte: a gente podia deixar a panela no fogo e mandar buscar os
meninos vir buscar o dinheiro da carne que, na mesma hora que chegava vendia. Aqui
tem dia que, se eu disser a Senhora, se eu não tirar um dinheiro para almoçar, tem dias
que neguinho não descola uma banda de conto. Mas o que é que a gente vai fazer? Viva
Deus. (...)
311
A falta de clientela e a baixa venda do Centro de Abastecimento para os vendedores foi
outra questão corriqueira para que muitos vendedores preferissem as ruas.
eu resolvi sair do centro, porque se eu fico lá, eu passo fome. Porque, quando eu vendia
10 caixas de ovos, jogava 10 no mato. Neste tempo, eu trabalhava com ovos. Quer dizer,
apodrecia tudo, não tinha comércio. Aí eu subi na cara de pau. Aí eu montei.
312
.
A distribuição das mercadorias entre a roça e a rua setorizou-se no retorno das atividades
para a Senhor dos Passos, Marechal Deodoro e praças. Muitas configurações diferentes de
ocupação destas áreas se deram, de acordo com a atuação da fiscalização e a ocupação dos
feirantes. Baseado no desenho da feirinha da Marechal Deodoro de 2004, José Carlos fala um
pouco sobre as mercadorias. Os feirantes da roça fazem a feira de maneira diferente. O seu olhar
se refere muito mais às pessoas que compram no Centro de Abastecimento. após questionado
sobre as pessoas que vendiam produtos diretamente trazidos de suas próprias lavouras, ele os
menciona, destacando que costumam vender especificamente na Marechal Deodoro. Jose Carlos
usa a palavra “sempre” para se referir a presença destas mulheres e homens naquela rua, mas esta
feira foi ali retomada no entorno dos anos 1980.
Vem...do Centro. Toda vem do Centro. E ela vem, a mercadoria, vem de todo o lugar.
Vem de Cruz das Almas, vem de Juazeiro, vem de Vitória do Espírito Santo, vem de são
_____________
310
Depoimento de Tenícia. Op. cit.
311
Depoimento de José Carlos. Op. cit.
312
Depoimento de José Carlos. Op. cit.
153
Paulo,mas toda a mercadoria aqui vem é panhada e vendida aqui é toda panhada no
Centro. Até cebola vem do Ceasa, vem de toda essa parte da Bahia
313
.
Olha aqui dentro... (ar de dúvida, depois volta atrás). Vem o pessoal da roça, traz o
seu feijãozinho, um milhozinho, mas é pouca gente. Toda uma vida foi assim: o pessoal
da roça sempre vendeu na Marechal. O pessoal daqui de São José, destes povoados
daqui... da roça. é este pessoal que tem uma rocinha, quando tem o feijão. Dia de
sábado mesmo, a senhora encontra aqui mais de dez bacias, todo o pessoal da roça aí,
debulhando seu feijãozinho. entendeu? Agora é tudo, como diz a história, é daqui da
região. É de São Gonçalo para cá. É de Humildes, tudo do Limoeiro, essa turma toda é
daqui, agora é tudo daqui. Agora esta mercadoria daqui, eu compro em quantidade
maior. Mas vem de Coração de Maria, vem de santo Amaro, toda esta mercadoria, toda é
chegada de fora. Agora desta região nossa, é o feijão, é o milho, é o amendoim, mas é o
pessoal da roça mesmo que traz. Vende na Marechal. Porque dia de sábado, meio dia,
eles (os fiscais) liberam.
314
.
A Prefeitura após alguns anos autorizou a presença da feira da Marechal Deodoro, sob a
negociação que foi gerada dentre muitos conflitos, ocorridos ao longo de quase trinta anos,
incluindo-se inclusive um misterioso incêndio do terreno da feirinha, mencionado por José
Carlos. Contudo, esta feira fica nas mediações do “beco do mocó”, sendo que fora dos olhares do
rapa, ela retorna para a calçada e passa a disputar a clientela dos supermercados das proximidades
e os consumidores que transitam. Especialmente nos dias de sábado quando, segundo José
Carlos:
O rapa libera. Meio dia em ponto, o rapa libera, a feira vai para a Marechal. Fica até
seis horas, sete e pouco... (...) Tem muita gente também que vem da roça, fica nestes
passeios aí... vendendo e eles liberam não é? Hoje, agora tempo de política, é o seguinte:
quando chega o tempo de política eles ficam tudo mansinho... É a hora que eles
conhecem o pequeno. Tem hora que eu tomo até susto. Eu vou lá no passeio assim e eles
falam: Oi Sergipe, pra onde você vai?...
A dimensão da relação da negociação dos pontos e as disputas entre candidatos nas
eleições fica clara para o entrevistado. Em cada momento de organização da feira, esta política
das ruas foi difundida. Sendo a classe trabalhadora da cidade numerosamente composta por
trabalhadores da feira livre e atividades ligadas à ela, nada menos surpreendente do que perceber
que alguns políticos feirenses procuraram criar um reconhecimento entre as pessoas através da
organização da feira ou da liberação de suas atividades sem maiores controles. E o jogo das vistas
grossas fez parte da disputa política pelo executivo com a presença de muitas pessoas,
isoladamente ou em grupo por entre as ruas da cidade espacializando o seu .regresso a locais de
origem. Reconhecendo as regras deste jogo, os próprios comerciantes recorrem a este
protecionismo passageiro para apontar a própria contraditoriedade da ação política dos sujeitos
_____________
313
Idem.
314
idem. Quando diz “aí eu montei” refere-se a instalação da feira na Marechal Deodoro, já mencionada no capítulo II.
154
que se põem à frente do executivo municipal no que concerniu a feira livre e, conseqüentemente
ao retorno de suas atividades para as ruas. Não por conta da memória de uso daqueles locais,
feirantes chegavam próximo aos pontos de maior movimento comercial, para também disputar a
atenção da clientela. Como também, novos comerciantes passaram a se agregar a estes novos
pontos.
Na feira tinha os guarda, da prefeitura, era...Cada um tinha o seu pontinho, estando
naquele pedacinho de ponto, você trabalhava. Mas tudo era na amizade. No ponto que
você trabalhava, ninguém botava. Eles vinham, normalizava e acabou. um pontinho
pra aqueles que não tinham. Vamos dizer: se eu tinha um ponto la, como eu tenho aqui,
chegava aqueles pedia... fulano, deixe essa coisa aqui que a gente tira, dava um
lugarzinho e colocava. Não tinha zoada, não tinha briga, não tinha confusão. Todo
mundo trabalhava, ao ponto de trabalhar, não existia confusão, todo mundo trabalhava.
Colbert mesmo fez banquinha, localizou todo mundo, mandou os guarda da prefeitura
ver se cada um tinha sua banquinha, tudo direitinho (...). não deixou ninguem sem
trabalhar. Depois foi que Falcão fez o centro , mas nesse tempo ele ainda tava com
Colbert e Chico Pinto. Ainda era todo mundo da corrente. Toda a vida todos dois foram
meus amigos, depois ele mudou para este jogo de partido, mas ele antigamente era com
Colbert e Chico Pinto (...)
315
.
Porque a polícia tem que correr atrás é de ladrão e não de quem trabalha. Eu mesmo já
perdi muita mercadoria. Muita. Quer dizer, se eu não tivesse outro recurso, já tinha saído
até do ramo. Porque, eles tomam a mercadoria, aí...
mencionada, a fiscalização atuava, ainda na década de 1970 de maneira mais branda,
procurando adequar os feirantes nos locais do centro da cidade, até porque, ainda não havia o
Centro de Abastecimento nem a proibição da presença destes trabalhadores nas calçadas. O
interessante é que numa das falas, percebemos que o feirante retoma uma memória de que
Francisco Pinto atuaria neste sentido. Não sabemos ao certo até que ponto a intervenção dos laços
pessoais influenciariam no quesito permissão de vendas ou até que ponto esta questão se dava
mais nos objetivos de Francisco Pinto de atuação sobre a venda de alimentos e de lida com a
população trabalhadora urbana. No entanto, neste misto, percebemos que, num salto de quase
trinta anos de diferença, entre o tempo em que o Francisco Pinto diga-se de passagem,
Deputado Federal na década de 1970 – poderia ser uma referencia de trato das questões populares
e o tempo do século XXI, quando da realização da entrevista, é necessário ao vendedor
reencontrar-se com este modo de operar para produzir um discurso sobre uma possibilidade
diferente de fiscalização.
(...)mas ele [Chico Pinto] vinha, avisava ao pessoal, não tomava nada de ninguém, o
pessoal saía, numa boa, tornava voltar... você entendeu como é? Mas numa boa. E este
_____________
315
Entrevista com José Carlos.
155
não, este manda é tomar e correr atrás de quem trabalha. A polícia é pra correr atrás de
vagabundo
316
.
Se a senhora chegava aqui hoje e dizia: ô Sergipe, me arruma uma mercadoria para eu
ganhar meu pão?, eu lhe dava um carro de mão com um centro de mercadoria e
mandava, pode botar ali e pode avisar para os guardas que é meu. O guarda que
chegar, pode dizer que é meu! Diga a eles que venha conversar comigo. Chegava lá eles
diziam, a mercadoria é de Sergipe. Aí diz: Eu não quero nem conversa com ele. E ele aí
ia embora...
Hoje é que eu não tenho apoio nenhum com Zé Ronaldo. Zé Ronaldo vem para prender a
mercadoria. Eu não tenho apoio com ele de jeito nenhum. Agora, com finado Colbert e
Chico Pinto, com eles eu tinha muito apoio
317
.
Outros grupos de pessoas encontraram outros modos de estar na rua realizando seu
trabalho, em meio aos muitos trabalhadores que passaram a acrescer o número de vendedores da
feira livre, muito mais então por uso das vendas consignadas. Como veremos, as aproximações e
reaproximações foram se dando por motivos diversos, mas principalmente pelo laço que vem do
campo. Na cidade, lavradores e lavradoras reivindicaram seus espaços por entre as lojas do
comércio, ocupando becos, calçadas, praças, ruas e alcançando, pelo uso da memória, pontos de
feira hoje consolidados em Feira de Santana.
CAPÍTULO IV
SER FEIRANTE EM FEIRA DE SANTANA.
Da esquina do ginásio Santanópolis até o colo do Ponto Central, além das cercas dos
Celestinos, uma reta , em chão batido, a poeira, a feira seguindo seu curso que nem
rio, com nascente e foz, fluxos que se estendem e se reencontram, que refluem, estágios
superiores médios e inferiores, leito ora manso, ora acidentado, margens, a feira dividida
em espaços de frutas, cereais, carnes, sacaria, cerâmica, farinha, aves, marias, panos,
tecidos finos e grossos, artigos de ferro, artesanato sertanejo, talhas, porrões, potes,
resfriadores, vasos, adornos, o barro cru e queimado, seções de frutas, tamarindo,
abacaxi, fruta-pão, manga, umbu, laranja, seções de peixe, de água-doce e salgado do
mar
318
.
Numa descrição externa à feira, fica clara a existência de demarcações, zonas especiais de
trabalho de acordo com mercadorias, mas principalmente vindas de redes de aproximações
internas entre os feirantes. A feira livre apareceu em alguns textos exatamente desta maneira.
Com um desenho próprio, sendo apresentada inclusive como cerne do núcleo tradicional que
_____________
316
Idem.
317
Idem.
318
Setembro na Feira, Juarez Bahia, 1983.
156
formou no centro um tecido de sociabilidades próprias
319
. Ou então, ao visualizarmos a produção
de memórias sobre a feira, encontramos o sentimento de saudade do passado da feira antiga que
se reporta justamente ao jeito como se constituía aquele mercado
320
.
O tema da modernização de Feira de Santana faz parte desta discussão. Isto porque, a
bibliografia que questiona os termos da modernização feirense compõe-se de pesquisadores que
localizaram em diferentes conjunturas este processo. Fica difícil encontrar uma única
modernização, num sentido mais ontológico, concentrado num tempo, no Município e sim,
conjuntos de ações apresentadas por sujeitos históricos específicos na montagem do que
entendem como ações para driblar determinadas relações sociais. Um exemplo que podemos
tomar como sinal desta variação é o fato de que houve setores diferenciados na cidade
apresentando-se como agentes “modernizadores”, discurso comum no executivo desde a primeira
república. Não há como usar o conceito para datar a história da cidade. Assim, encontramos na
gestão liderada por Francisco Pinto (PSD), prefeito municipal entre 1962 e 1964, quando foi
deposto, um programa de ações que visavam direcionar a cidade à “modernização”, através de
reformas tributárias, discussão de orçamento participativo com a comunidade e mesmo, de
construção de um local de vendas mais adequado para os trabalhos dos feirantes. Seu opositor
direto da UDN, o prefeito João Durval Carneiro, tomou a frente da empreitada da construção do
Centro Industrial do Subaé, em finais dos anos 1960, mostrando-se então como articulador de
uma outra modernização, esta, voltada para a indústria
321
. Torna-se difícil a tarefa de contabilizar
ações que possam nos dar um terreno palpável de uma conjuntura de modernização e
transformação na cidade. Esta varia conforme os sujeitos que estamos analisando.
O comércio aglutina em muitas cidades a relação entre o campo e a cidade. Em Feira de
Santana, o comércio foi nodal no sentido de que foi tomado como aporte para a definição de
encontros e desencontros do campo com a cidade. Como elemento tradicional e difusor das trocas
comerciais em Feira, a feira livre tem suas especificidades locais e suas características que a
generalizam ao ser comparada com outros mercados nordestinos.
Percebemos, deste modo, que a feira, nos anos 1960, era o espaço privilegiado para
trabalho de milhares de famílias recém chegadas chamadas pelas esperanças construídas junto
_____________
319
São exemplos: OLIVEIRA, Izabel Lorene Borges de. Apolo e Dionísio da festa de feira: cantadores, cordelistas, vaqueiros...
da feira livre de Feira de Santana (Bahia), Feira de Santana, UEFS, 2000; POPPINO, Rolie. Feira de Santana. Salvador: Editora
Itapoã, 1968.
320
MOREIRA, Vicente. Op. cit.
321
Sobre esta discussão ver CORREA, Diego. Op. Cit. 2008.
157
com novas estradas, pela nova indústria, pelas suas condições de vida no campo ou mesmo pela
propaganda de toda esta avalanche decorrente do crescimento urbano capitalista.
Pequenos produtores e atravessadores atuavam na feira livre e dela retiravam o sustento
mediante a comercialização de produtos como farinha de mandioca, milho, feijão,
tapioca, galinha, porcos, fumo de corda e outros. Havia ainda os animadores, ou seja, os
cantadores, repentistas e contadores de causos, os cordelistas, os malabaristas, os
comedores de fogo, os vendedores de garrafadas e cachaças ou pingas de primeira e os
circenses que davam um colorido especial. Também se misturavam aos feirantes as
quitandeiras, bilheteiros, vendedores de pássaros, fateiras, carregadores e outros
trabalhadores, entre os quais, os aguadeiros, que se utilizavam de burros e jumentos para
prestação de serviços de abastecimento de água
322
.
A feira promovia o choque e encontros entre estas pessoas e mais muitas outras
estabelecidas na zona rural dos arredores do Município. E mais, estas tantas pessoas, apontadas
como autônomos, vendedores de rua, arraia miúda do mercado, negociavam ainda com
atacadistas e grandes comerciantes de alimentos que transitavam naquela praça de trocas e
vinham de muitos lugares do Nordeste, quiçá do país.
Poucos anos antes da construção da Central de Abastecimento a existência da feira era a
premissa fundamental de administração do centro urbano. Em outras palavras, negociava-se o
direito de uso da cidade desde o pequeno vendedor de frutas ou o transeunte que reclamava do
mau cheiro aceitando-se a condição quase consensual da existência do mercado livre nas ruas.
Desta maneira, o feirante é um agente de construção da própria cidade. O cerceamento de seus
modos de agir, imputado ao longo da história da feira, cresce na conjuntura pós-golpe militar,
com a oficial proibição de seus negócios e a destituição do uso da rua. Seu lugar é deslocado para
novo local, e no redesenho de suas relações entre eles mesmos.
É difícil, uniformizar a visão sobre o ser feirante, visto que houve um cruzamento
importante de vidas e de projetos para a cidade oriundos de diferentes classes sociais que
compuseram a feira. Ao destacarmos os feirantes de alimentos varejistas considerados de
pequeno porte, buscamos precisar a vivência da feira entre este grupo. basicamente dois
grandes grupos de feirantes de alimentos de pequeno porte: os que vêm do campo e os que vem
da cidade.
Aquele local de compra e venda, aguardado semanalmente por milhares de famílias que
dependiam deste para suprir a dispensa, vendendo ou comprando, se fazia como um circuito de
lazer e festa atrelado também às vivências dos demais usuários da urbe. No entanto, no olhar de
_____________
322
OLIVEIRA, Ana. Op. Cit. p. 47.
158
Gastão Sampaio, percebemos uma leitura da feira como ambiente particular de características
rurais e de convivência da parcela da população oriunda do campo: viver aquela tradição, aquele
ambiente acotovelado de gente, de povo, custou-lhes o sacrifício de uma semana inteira,
antegozando aquela festa, para conseguir amealhar o mínimo a fim de pagar um ‘pau-de-arara’
de ida e volta à Feira
323
.
Este indício de sociabilidade rural está claro nos trajetos de idas e vindas à feira. Toda a
rede para funcionamento da feira abrigava em si, transportes, formas diferenciadas de
carregamento
324
, e um jeito próprio de comercializar, o que se correlaciona, na leitura do
memorialista com características dos homens da roça que aqui chegavam:
Vibram os tabaréus. Eles se amontoam e se acotovelam, parecendo que nada tem a fazer
ou ver por ali. Esta, suposição, contudo, é somente através da nossa interpretação, desde
que vivemos numa outra esfera social. Mas, na realidade, no pouco que levam a vender e
no mínimo que possam vir a comprar, é naquele ambiente que eles encontram seu sonho,
sua alegria, seu bem estar
325
.
O aspecto roceiro era emblemático na tradição de feira, especialmente por conta da
presença de camponeses que traziam consigo o colorido das mercadorias e as feições rurais que a
diferenciavam das demais atividades econômicas do centro da cidade. Por mais que houvesse
outros trabalhadores, oriundos da cidade, por exemplo, a tradição da feira se sustentava
especialmente na presença dos lavradores da região. Para Ana Oliveira, os trabalhadores da roça
eram conhecidos como tabaréus por sua origem rural, por serem pobres, homens e mulheres
anônimos que entravam na cidade com seus objetos na cabeça, nos ombros, na carroça, ou na
cangalha dos animais
326
.
Este aspecto roceiro era expulso do centro de Feira desde muito tempo. A própria
forma como Gastão Sampaio caracterizou a feira, revela o olhar de um escritor dos anos 1970 que
percebe uma espécie de resquício da presença do tabaréu como elemento destacado na cidade,
mesmo após uma série de mudanças.
Consideramos o período de estudo escolhido na pesquisa um momento de mutação
significativa da relação do campo com a cidade. Um retrato deste momento foi moldado por
_____________
323
SAMPAIO, Gastão. Feira de Santana e o Vale do Jacuípe. Salvador-Bahia: 1976, p. 10.
324
O Movimento para a feira começava no sábado, quando as mercadorias iam chegando no lombo de burros, em carros de
bois, em carroças caminhões e carretas, logo preenchendo as barracas instaladas na Praça da Bandeira, João Pedreira, nas ruas
Marechal Deodoro e Sales Barbosa e em parte da Avenida Getúlio Vargas e Senhor dos Passos. (Jornal A Tarde, 11 de Janeiro de
1977 in MOREIRA, 1998).
325
SAMPAIO, Gastão. Feira de Santana e o Vale do Jacuípe. Salvador, Bahia: 1976, p. 10.
326
OLIVEIRA, Ana . Op. Cit. p. 47.
159
Juarez Bahia na produção do texto que traz como uma de suas personagens o fictício e verossímil
coronel Farinha. O romance, escrito na década de 1980, relembra a cidade nos idos dos anos
1950. João Farinha, seria um dos símbolos da sociedade patriarcal que a fazenda ajudou a
construir no país
327
. Este comemorava, numa das passagens da narrativa, a inauguração de novas
instalações para o abate de gado e, sabendo que as inovações exigiam-lhe novo traquejo para
manter seu prestígio, usa de cautela, apesar da vivência de uma revolta interna com as novidades.
Desta forma, de um jeito diferenciado, o coronel farinha encarou as perdas das relações sociais e
políticas tradicionais com resignação.
compreende o fenômeno, não foge dele e não contesta. Sabe que a aristocracia rural
tornou-se decadente e que isto coincide com estes últimos anos quarenta, que a terra
deixou de ser a unidade de medida da representação social e que na Feira a classe dos
fazendeiros, com suas prerrogativas de barões feudais, teve de ceder lugar a outras
categorias, aos comerciantes, aos liberais, a novos líderes, aos intelectuais, aos artífices,
aos trabalhadores, aos construtores da Rio-Bahia
328
.
É importante ressaltar também que o aspecto de não organização da feira era
correlacionado, no final dos anos 1960, em outros sentidos, ao inchaço urbano, resultante,
segundo as avaliações do governo, do impacto da desregulamentação do então mercado de
trabalho que não atendia, nos empregos formais, a população em crescimento
329
. São apontados
por Moreira
330
, como fatores do crescimento da Feira, a própria expansão das atividades dos
setores urbanos mais modernos, como o comércio e a indústria, que não proporcionaram os
postos de emprego para a população que igualmente crescia. No caso da construção civil foco
de atração de empregos comum em cidades em via de expansão urbana não ocorreu o
investimento suficiente para que fosse conectado um número satisfatório de trabalhadores, avalia
Moreira. Para o autor, em Feira isto não aconteceu, dando lugar a um tipo de inchaço do centro,
por conta de trabalhadores que não possuíam alternativas de emprego.
A conjuntura histórica que permitiu, portanto, este encontro dos trabalhadores migrantes
com a cidade precisa ser melhor analisada. O mercado popular e tradicional passou a se deparar
com outros postos de emprego urbano surgidos em Feira a partir do final dos anos 1950, é fato.
Os próprios feirantes constataram a mudança significativa no perfil das pessoas que realizavam a
_____________
327
Idem, página 31.
328
Idem, página 44.
329
Projeto Cabana. Prefeitura Municipal de Feira de Santana. Esta afirmação não deixa de ser verídica, no entanto, não podemos
atribuir necessariamente ao crescimento da população os problemas de emprego e de condições (ou falta de) vida das populações
de baixa renda.
330
MOREIRA, Vicente. Projeto Memória da Feira Livre de Feira de Santana Primeira Fase texto 2: A FEIRA ESTÁ
MORTA, VIVA A FEIRA! Revista Sicitientibus, UEFS, 1986.
160
feira geral. Neste ínterim, foram estabelecidos vínculos importantes no que podemos aqui
chamar de reconhecimento mútuo do ser feirante, permitindo regras de conduta em comum para o
uso do espaço de comércio. Travadas em relação a outros usuários da cidade, como os lojistas,
representantes de poderes municipais e os políticos locais, estas normas fundamentaram também
territórios próprios. Hoje, nas calçadas da cidade esta relação fica explícita. Ao contrário do que
afirmaram os autores do Projeto Cabana, os chamados atravessadores e ambulantes estacionados
nem sempre estabeleceram conflitos por conta da concorrência com os produtores que vendiam o
que a roça dava
331
, na desarrumada
332
feira central. As relações destes varejistas mais urbanos,
por assim dizer com os feirantes camponeses, não foi travada com desavenças explícitas por
conta da flutuação de preços, por exemplo. No cotidiano das ruas, tornavam-se bem mais
próximos e os conflitos foram negociados com base em uma moral própria de uso dos espaços de
cada um.
Recortando mais ainda a feirinha de alimentos, nota-se que aquela que seria o ponto mais
nevrálgico de toda aquela realização social. Juarez Bahia assim a descreve: Havia ainda uma
feira menor, em sentido horizontal, intercalada nas ruas que cruzam a Praça João Pedreira e a
Avenida Getúlio Vargas
333
. Ali sim, encontraríamos as descrições propostas por Gastão
Sampaio, bem como a circunscrição mais precisa feita pelos arquitetos e urbanistas do Projeto
CABANA. Ela naquela feira que as donas de casa mais realizavam a feira de sua semana, onde se
abasteciam dos litros de tamarindo e umbus, cordas de alho, melancias, abóboras, redes de
tomates e cebolas, cachos de temperos verdes. Alguns pontos de parada, abrigos, barracas de fôia
pôde reuniam em sua volta o encontro entre os intervalos de compras.
...mais ou menos doméstica, do povo dos subúrbios, dos pobres do Centro que trazem
suas garapas de limão, laranja, maracujá, mangaba, bordados, miudezas caseiras, baratas,
para perto dos negociantes de artefatos de couro, chinelos, alpargatas Maria Bonita,
bijuterias, redes de cabelo, armarinhos da rua Sales Barbosa, principalmente
334
.
As personagens desta feirinha popular podem nos prender melhor com reflexões sobre os
encontros ocorridos neste mercado. A cultura de venda daqueles mesmos produtos naqueles
mesmos locais manteve-se no cotidiano feirense e o desenho de suas ruas teve o colorido
_____________
331
Entrevista com Dona Tenícia. Op. Cit.
332
Projeto Cabana. Prefeitura Municipal de Feira de Santana. 1968 os atravessadores são apontados de maneira diferente em
Projetos municipais: na gestão de Francisco Pinto 1963-1964, eles foram identificados como comerciantes que compravam
diretamente do produtor e encareciam os produtos nos mercados da cidade e já no P. Cabana, eram os varejistas em geral, que
distribuíam os produtos nas ruas.
333
BAHIA, Juarez. Setembro na Feira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
334
BAHIA, Juarez. Op. cit. 1986, 151
161
daquelas barracas por muitos anos. A ela podemos atribuir a percepção de Moreira
335
, para quem
a reencarnação diária da antiga feira nos anos 80 e 90 era a prova de sua importância na
memória popular. Também, são as atividades de troca daquele espaço que se mantiveram em ruas
e becos, ou que vieram a crescer para suprir necessidades de emprego não realizadas na zona
urbana.
O modo como cresciam as aproximações entre realidades do campo com a urbe afetaram
os planos das classes dominantes, preocupadas em harmonizar as atividades do Município. Junto
com este fenômeno, emergiram apreensões mais sistemáticas, nos anos da ditadura militar, de
controle de postos de trabalho, deslocamento de focos de encontros populares e integração da
circulação nacional de alimentos. Entre os feirantes, os aspectos apreendidos e negociados no
passado (regramento de divisões internas, setorizações, formas, de peso e outras práticas) se
tornaram instrumentos de barganha para reprodução da feira. A festa, o litro de umbu, os carros
de mão, o jeito de lidar com o freguês que constituíam uma rede de costumes do feirante, foram
práticas que emergiram para tratar com as novas realidades montadas para urbanização no local.
4.1- Na margem do “formal”: a diversidade do trabalho como feirante de alimentos.
Longe dos cadastros dos organismos oficiais, a informalidade compõe uma rede de
relações e exclusões sociais. O mercado informal então não seria somente um produto da crise
econômica dos anos 80 (oitenta), a década considerada perdida, mas também um aspecto
importante das relações políticas entre a burguesia e os trabalhadores negros, que existe desde a
implantação da escravidão no Brasil
336
.
Segundo o viés aqui trazido por Nilo Rosa, o mercado informal passou a ser preocupação
do Estado quando agregou também pequenos empresários e sujeitos emergentes da classe média.
Contudo, antes dos anos 1930, quando foi setor de ocupação de trabalhadores marginalizados dos
direitos sociais, as políticas públicas não se direcionaram a resolução de problemas destas
pessoas, a não ser quando se tornavam casos de polícia. Também atenta especialmente para o fato
_____________
335
MOREIRA, Vicente Deocleciano. O fogo febril que prometeu roubou das chaminés fabris: crônica da morte anunciada, da
morte decretada e das reencarnações diárias de uma feira livre. Feira de Santana: UEFS, 2001.
336
Idem.
162
dos mercados serem feitos por pessoas de cor e de haver uma diferenciação interna no próprio
setor informal com base neste critério
337
.
Os termos da conexão com a informalidade, encontrados no trabalho de vendedores e
vendedoras de alimentos que exercem outras atividades urbanas em Feira são destacadamente
diferentes daqueles encontrados na informalidade dos trabalhadores rurais que vendem a
produção da roça.
Os primeiros possuíam outras ocupações e realizavam tarefas que não somente a de
feirante e, esta condição lhes conferia outras identidades com a cidade. Sua dispersão é bem mais
visível, sendo que muitos apenas exerceram temporariamente este tipo de trabalho.
Dos anos 1960 até a conjuntura de instituição do Centro de Abastecimento, não
encontramos nos poderes públicos a caracterização das vendas ambulantes como informais. Isto
porque mesmo com interesses em padronizar atividades comerciais, não havia intenção de retirar
o mercado por completo das avenidas principais. Aos poucos é que esta informalidade foi
adentrando o cotidiano do feirante.
Nestas redes informais foram formadas as sociabilidades urbanas de muitas cidades
nordestinas, sob experimentações culturais e relações de trabalho que fogem aos parâmetros
oficiais. Os usos próprios que as pessoas vão construindo dos espaços não permitem que haja um
completo controle de suas atividades. Assim as redes cotidianas se tornam bastante significativas.
Em Feira, assim como havia muitos feirantes que não eram diretamente trabalhadores do
campo, poderíamos notar entre 1968 e 1974
338
, um número significativo de donos de pontos
comerciais e prestadores de serviços diversos (restaurantes, pousadas, bares, vendedores dos mais
diversos produtos como trabalhadores no mesmo local). Estas pessoas se inseriam em redes de
empregabilidade que se colocavam fora dos circuitos formais da economia
339
.
_____________
337
Esta análise dos aspectos do Setor Informal está inserida no quadro teórico que refuta a existência de um setor
Econômico Informal. No Mercado Informal, os negros ocupam as posições onde é exigido o mínimo de qualificação.
Eles recebem os salários mais baixos, mas é neste setor em que os negros são a maioria, que se organiza a maior
estratificação de acordo com a cor da pele. Quer dizer que o negro, o mestiço e o branco se posicionam numa escala
de valores bem determinada. Efetivamente, este tipo de relação não é por acaso. Idem p.
338
De acordo com os cadastros dos contribuintes com os impostos Municipais e licença para trabalho autônomo
339
Conseguimos localizar estas fichas no arquivo público municipal de Feira de Santana. São pequenas fichas onde constam o
nome do contribuinte, o valor a ser pago, sua profissão (com detalhes, ex: vendedora de azeite), local de vendas e ou endereço
residencial, além de algumas observações anotadas pelos fiscais no ato da cobrança do imposto, como desistência de permanecer
pagando as taxações. Estes dados serão cuidadosamente analisados a fim de construir uma leitura social da composição da feira
no centro em relação aos outros trabalhadores urbanos que igualmente eram cobrados de pagamento pelo uso do solo urbano e
conviviam com situações semelhantes aos feirantes. Segundo informações da Prefeitura Municipal, estes cadastros eram
preenchidos pelos trabalhadores com a finalidade de mais adiante retomarem os papéis para alegarem suas respectivas
163
A sobrevivência destas pessoas é vista muitas vezes como alternativa. Maria Tereza
Haguette mostrou que as formas populares de sobreviver nas margens da economia, tidas quase
como aptidão popular para se virar nas grandes cidades brasileiras, puderam ser vistas como
focos de emprego não oficiais conectados a própria rede capitalista de exploração de mão de
obra, que abrigaria as supostas estratégias diversas de vida junto ao setor de ponta do capital.
A baixa renda familiar da população das grandes cidades nordestinas leva muitas famílias
a buscar formas de inserção no mercado de trabalho por hora-extra e colaborações intra-
familiares. Compõem assim, o setor de prestação de serviços e outros complementos da renda
340
.
O fenômeno foi atribuído, segundo Haguette, a laços populares, que promoviam um jeito de
lidar com a pobreza através da solidariedade. Porém, estes laços não podem ser tomados, segundo
o conhecido estudo da autora, como um mito de complementação extratrabalho que conta das
necessidades destas pessoas. Para a autora, na situação brasileira não temos [referindo-se a
1982] duas estruturas preexistentes [a formal e a informal] mas um e único movimento que
cria, recria e articula dois pólos em função de uma única lógica. Esta lógica é a lógica da
acumulação capitalista que é dominante e tende a invadir todas as formas não capitalistas de
produção e relações sociais.
341
Apesar disto, são redes que fogem ao controle dos dados oficiais. Encontramos um
exemplo típico desta complementação para além da venda na feira livre, agregado a ela, na
medida em que sua rotina provia de alimentos outras pessoas além do próprio trabalhador que
lidava com o comércio.
Migrante sergipano, o Sr. José Santos chegou em Feira para tentar trabalho em 1970. O
marco mais importante de relação com a cidade na trajetória por ele lembrada foi sua chegada
naquele ponto. Fixou-o na Avenida Getúlio Vargas, onde passou a vender milho assado, na época
de colheita de milho na região. Sempre comprara de atravessadores que lhe traziam a produção
da roça, em caminhões estacionados ali mesmo, no centro do comércio. Estes caminhões
passavam alimentos a serem vendidos pelos feirantes varejistas, como de costume no comércio
da feira livre até os dias atuais. Quando o milho acabava, o Sr. José Santos buscava, em seu
carrinho, outros produtos.
aposentadorias. Com este material, poderemos comparar profissões, estabelecer quantificações a respeito de sexo, ponto de
vendas, mercadorias vendidas e uma melhor configuração das pessoas em relação aquele mercado.
340
HAGGUETTE, Teresa Maria Frota. O mito das Estratégias de Sobrevivência: Um estudo sobrte o trabalhador urbano e sua
família. Fortaleza-Ceará: UFC, 1982
341
Idem, página 20.
164
Começava quinta feira, sexta sábado, domingo e segunda. (nos outros dias o senhor
permanecia aqui?) Permanecia aqui vendendo laranja, vendendo umbu, no carrinho de
mão. Comprava aqui, nos caminhões. Ficavam os caminhões aqui, aí eu comprava
aqueles dois cem quilo de laranja, ia vender até chegar o dia da feira para ir trabalhar
de carregador.
Mas algo de interessante o Sr José Carlos nos mostra no detalhamento de sua rotina diária
de trabalho naquele ambiente que está além do que sabemos. Os caminhões, que vinham de
longe fornecer estas mercadorias, abastecer mercados e este comercio miúdo feito por milhares
de trabalhadores em Feira, dependendo igualmente destes para obter sucesso na distribuição, não
voltavam carregados de produtos. Vendiam toda a produção, ou nas épocas em que as trocas
estavam em baixa, por conta de variação de preços ou por outras relações entre a lavoura e a
mesa do consumidor final, deixavam tomates, abacaxis, goiabas, melancias ali mesmo, na rua.
Quem dava sorte que vendia um caminhão de fruta... quem não vendia, tinha o resto que
ficava tudo largado no meio da rua. Eu muitas vezes levei carro de fruta para dar
aos vizinhos para dar aos meninos. Eles largavam e eu trabalhava de carregador,
via, quem era os donos que ia embora, caía um limão eu pegava e botava o menino
para empurrar, chegava no vizinho: aí vizinho! Pega aí!
Em mais de uma passagem de sua fala, ele faz referência a este tipo de prática e atribui
este laço a uma conexão local entre as famílias que moravam no mesmo bairro.
Comprava em retalho, comprava em quantidade, se vendia. Eu comprava 25, 20, 10, e eu
10, 5, vendia o caminhão do jeito que você queria, mas quando dava segunda feira duas
horas, duas, três, aqueles que vinha de fora, de caminhão, pegava a mercadoria que não
vendia e largava aí no meio da rua. Carregador como eu... meu menino é esse, ele era
pequenininho, ficava aí com as latas, eu enchia e nós empurrava lá para o Jardim
Cruzeiro. Chegava e entregava aos vizinhos: alô vizinho! Chegava doze horas da
segunda feira de noite, os vizinhos acordavam um tirava um, tirava, era jaca e era
coisa. E aquilo era bom, porque quem vem de fora não faz isso. Porque o povo, você
pode carregar água no cesto, ele não acha bom.
Portanto, estes vínculos menos explícitos nas pesquisas econômicas podem ser expressos
na remontagem de memórias destas pessoas de uma convivência com as condições de trabalho na
feira livre. Ser feirante, neste caso pode ser uma expressão de contato entre trabalhadores urbanos
em busca de sobrevivências na cidade. As alusões de suas memórias trazem aproximações entre
sujeitos que possuíam condições de vida semelhantes, em meio a carestia explícita nos anos
1970. Sobre estas recordações, estas não nos apresentam nem uma tendência popular a se virar
por conta própria, nem mesmo resistências àquelas condições de vida, mas revelam, sobretudo,
marcos importantes nas trajetórias de vidas de algumas pessoas, quando se solidarizavam no
cotidiano de moradores da cidade, tendo a feira um papel relevante nestes laços.
165
Neste caminho, se os feirantes da feirinha não estavam sozinhos naquele centro urbano, é
notório que em cada esquina, cada via, cada praça, dividiam e disputavam com outros sujeitos
sociais e outros grupos de trabalhadores, igualmente partícipes da rede de crescimento do
comércio do centro, os territórios de realização de seu labor. As condições de vida nas quais se
viam envoltos os empurrava para um misto de autonomia e subalternização, por serem seus
próprios patrões e ao mesmo tempo, não possuírem direitos sociais básicos de trabalhadores.
Estas aproximações podem ser feitas em outras atividades de trabalhadores urbanos na
cidade. Ao olharmos para as atividades do centro concomitantes com a feira em seus arredores,
percebermos serviços que supriam a indústria que não estava locada no Município, a exemplo de
redes de oficinas e vendas de peças de automóveis, para citar um dos casos nos quais era
possível perceber a expressa via de emprego não menos vinculada ao capitalismo do que o
trabalho do camponês. Isto sem falar nas vendas de produtos importados por ambulantes que, a
partir dos anos 1980 ocuparam as principais vias antes tomadas pela antiga feira, sendo
removidos para um outro local na década de 1990. Em Feira, assim como havia muitos feirantes
que não eram diretamente trabalhadores do campo, poderíamos notar entre 1968 e 1974
342
, um
número significativo de donos de pontos comerciais e prestadores de serviços diversos
(restaurantes, pousadas, bares, vendedores dos mais diversos produtos como trabalhadores no
mesmo local). Estas pessoas se inseriam em redes não menos complexas de empregabilidade,
fora dos circuitos formais da economia.
Quando a ocupação do solo do centro da cidade pelos feirantes passa a ser apresentada
como ilegal na sociedade feirense, algo passa a unir agentes comerciais diversos numa
experimentação de negociação do local. A própria heterogeneidade é elemento de intersecção e
pode ser aplicada como fator identitário do ser feirante em alguns momentos. Isto porque, na
leitura do que venha a ser legítimo para seu trabalho, aprenderam comumente a territorializar,
através da feira, o centro.
Este viés vem sendo observado por pesquisadores que procuraram entender a
territorialização da cidade do Rio de Janeiro ao longo do século, e mais incisivamente nos dias
atuais, por vendedores ambulantes. As mediações para demarcação de espaços de venda muitas
vezes são justificadas em amálgamas culturais e, o fato de que haja uma heterogeneidade e o
pertencimento a grupos étnicos distintos, fortalece uma particularização nos modos de vida de
_____________
342
de acordo com os cadastros dos contribuintes com os impostos Municipais e licença para trabalho autônomo.
166
grupos de vendedores que não são fixos para com outros grupos de trabalhadores
343
. Os sujeitos
de suas pesquisas são justamente os ambulantes, representantes dos poderes oficiais, associações
e consumidores, que tornam autênticos os espaços de vendas e cristalizam usos da cidade.
O deslocamento destas pessoas dos locais de trabalho não significou, necessariamente,
uma perda explícita dos seus lugares sociais na cidade e mesmo na feira. Eles foram
remodelados, de maneira excludente e sob padrões hegemônicos de organização da cidade.
Concordamos com Ciro Flamarion quando afirma, baseado em Milton Santos, que nas novas
condições de organização espacial da sociedade capitalista, não há necessidade de negar a
territorialidade ou a espacialidade, mas de perceber, nela, uma nova organização, que ele
denomina meio técnico-cientifico-informacional
344
. Assim, identidades são transpostas em novas
hierarquias espaciais. Isto não ocorre como permanência, mas como um transito dialeticamente
construído pelos sujeitos em relação com o espaço.
Maria Helena Almeida
discute se seria possível enfrentar as questões sobre classe social
em grupos de pessoas tão heterogêneos com os dos feirantes de rua, por exemplo. Deslocados de
referências mais centralizadas no trabalho, os vendedores ambulantes se reportam ao passado de
outras experiências para enfrentar os grupos com os quais antagonizam na cidade. Seu apego ao
espaço é mais demarcado e neste sentido, a cidade tem lugar de destaque em suas identidades.
Em cada trajetória de vida, é possível, assim, perceber referenciais de redes familiares, de
vizinhança e de coletivos que permitem a continuidade de uma condição de vida e manutenção de
suas raízes com a urbe. Não se trata aqui de celebrar estas formas de vida. Nem mais nem menos
digna do que outras formas de trabalho, a venda nas feiras se delineia entre a autonomia, a
esperança, a garantia do ganho diário, com a realidade mais recente do desemprego e da exclusão
de milhares de pessoas dos direitos sociais de trabalhador.
Num conjunto heterogêneo de informações sobre quem trabalhava na feira, a trajetória
auxilia no acompanhamento de uma somatória de experiências ao longo de uma vida, mas posta
em conexão com outras.
As pessoas da feira não eram apenas feirantes, o que traz uma dimensão mais complexa
na sua identificação enquanto trabalhador. Assim, preferimos localizar aquelas que durante suas
vidas viveram diretamente a feira. A sua articulação com o informal se faz não somente por
_____________
343
GOMES, Maria de Fátima Cabral (org.) Cidade, transformações no mundo do trabalho e políticas publicas: a questão do
comércio ambulante em tempos de globalização. Faperj:2005.
344
CARDOSO, Ciro. Um historiador fala de teoria e método. São Paulo: EDUSC, 2005.
167
aquele ambiente de trabalho. Nem assalariados, nem independentes, compõem um grupo grande e
complexo cujas identidades não podem ser localizadas na profissão
345
.
Nossos colaboradores e colaboradoras são pessoas idosas que não possuíram assistência
médica, transporte e outros benefícios de quem tem um ofício de carteira assinada. Alguns se
aposentaram, por conta da idade, outros, orgulham-se por ter que trabalhar ainda idosos, para
prover a família, quando não teriam outra opção de renda. Mas em sua maioria, os vendedores de
frutas, verduras, cana, milho (para citar alguns) e as mulheres que se desdobram entre tarefas
domésticas e outras formas de sustento em serviços gerais, não abrem mão de serem feirantes.
Sabem desde muitas gerações, seus parentes, pais, avós, tios, viveram daquele mercado, são
conhecidos na praça e interrupções nesta forma de vida não foram feitas sem traumas. Temos de
considerar neste sentido, em que medida as pessoas são empurradas para esta forma de vida ou
escolhem se inserir nela como forma de adquirir outros patamares de sobrevivência autônoma.
Como mais um dos fatores de alianças ou de diferenciações entre grupos de feirantes
podemos apresentar as origens. Feira de Santana possuía – e ainda o possui – fama de recepcionar
diversos migrantes atraídos pelos investimentos no CIS e mais anteriormente, pela construção de
estradas de rodagem que a ligavam a todo o país. Lagoas e nascentes, além da propaganda da
chegada de um centro industrial a fornecer empregos, pareciam prometer boas condições de vida
para os que aqui passavam.
Segundo José Santos, quem passa em Feira, que bebe água de Feira, até vai, mas chega
vende tudo pra vir aqui para Feira. Uma terra boa, não tem ladeira, não tem nada. Feira de
Santana era sem dúvida um grande atrativo para migrantes. Sobre este aspecto Juarez Bahia se
refere a uma promissão em seus textos, atrás da qual viriam diversos migrantes.
Resguardando vivências próximas, podemos identificar naquela feira os feirenses da terra
e os sergipanos, alagoanos, recifenses, e outros sujeitos vindouros de Juazeiro da Bahia, Chique-
Chique, Serrinha e vários outros lugares, a fim de ali se estabelecer. Inclusive, a atribuição de
apelidos de acordo com a origem dos migrantes, era prática comum na cidade.
Nas palavras de Juarez Bahia, Gente de Irará, São Gonçalo dos Campos, Cachoeira,
Serrinha e todo o mundo, dos países do mundo e dos estados dos países ao redor do mundo da
Feira vai chegando, achegando-se, entrando no esquema do Departamento
346
.
_____________
345
MALAGUTI, Manoel Luiz. Crítica à Razão Informal. A imaterialidade do salariado. Boitempo, 2001.
346
BAHIA, Juarez. Setembro na Feira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, página 58. (referindo-se ao Departamento de
Estradas e Rodagens da Bahia e abertura da Rio-Bahia, via Feira).
168
Ao olharmos para a problemática dos laços sociais montados não necessariamente pela
feira, mas nela fortalecidos, podemos considerar, numa leitura mais clássica que, os camponeses,
por sua vez, tinham nos mercados locais um elemento fundamental na reprodução da sua
existência enquanto trabalhador
347
. Esta vinculação pode ser entendida como via de autonomia,
por conta do seu sustento provido singularmente no trânsito entre a roça trazendo sua própria
produção – e o centro da cidade, de onde extraíam dinheiro para a complementaridade da
economia familiar. Mas pode ser entendida também como caminho indissolúvel da sua condição
de dependência e reprodução de um circuito maior de troca e venda de produtos alimentícios.
Vale à pena ainda, explorar os dados recolhidos pela Prefeitura como forma de apontar
para os tipos de vendas que estiveram presentes no Centro de Abastecimento nos últimos anos.
Os dados recolhidos no ano de 2000, revelaram o primeiro estudo de perfil dos vendedores do
local, através de estudo realizado em conjunto com o Clube de Diretores Lojistas e a UEFS. A
pesquisa foi encomendada pela Prefeitura Municipal, com o objetivo de solucionar em curto
prazo os problemas de controle das atividades do CAF. Encontraremos nesta pesquisa dados
gerais sobre o mercado, que serão analisados abaixo e dados específicos que nos levam a crer na
composição majoritariamente negra das atividades de feira de alimentos de pequeno porte.
Sistematicamente o Centro fora dividido em áreas de pesquisa, sendo A) comércio de
cereais, amidos, féculas, mercearias, B) carne bovina, carne do sol, secos e defumados, peixes,
aves e outros, C) comércio de artesanato e semelhantes. Na subdivisão da pesquisa, pequenos e
grandes comerciantes foram inclusos no setor A. Alem destes, dispunham-se outros três setores,
1) artigos de cautelaria ferragens, ferramentas, flora medicinal (ervas), mobílias, fumos e bebidas,
2) carne suína, ovina e caprina (em pequeno porte), castanha, amendoim, beju, puba, folha de
mandioca, ovos, miúdos e vísceras 3) hortaliças, legumes, verduras, raízes e tubérculos.
Fazendo uma comparação dos dados extraídos pela pesquisa, pudemos perceber que o
setor 2, de carnes e vísceras, dispunha de um maior número de estabelecimentos (galpões e
bancas) 524, sendo que destes, apenas 82 estariam vagos, o que demonstra uma organização
maior destes vendedores em manter-se no local de vendas. A propriedade dos boxes é muito mais
fixa neste ramo de negócios no Centro de Abastecimento do que em outras atividades. Os
negociantes de carne estiveram à frente das organizações internas do CAF durante os seus anos
de existência, até então mantendo-se como porta voz da maioria das questões buscando falar em
_____________
347
OLIVEIRA, Ildes Ferreira de. A luta pela autonomia e a participação política dos camponeses: um estudo das micro-regiões de
Feira de Santana e Serrinha no Estado da Bahia.
169
nome dos feirantes. Já o setor 3, de hortaliças, frutas e verduras, dispunha de um número
semelhante de pontos, 530, sendo que destes, 400 estariam vagos. Supomos que, devido aos
problemas de manutenção em local fico destas pessoas, recolhimento de impostos, o espaço
destinado a feira livre de alimentos de menor quantidade, revelava uma transitoriedade de
pessoas. Um dos problemas que teriam de ser solucionados pela Prefeitura, mencionado em
entrevista com o secretário do Centro de Abastecimento, Sr. Delorme, foi o fato de que o espaço
destinado à feira de hortaliças, legumes e frutas, quase sempre estavam ocupados de maneira
“irregular” pelos feirantes. A causa estaria na relação de desapego que estas pessoas possuíam
com o ponto, cadastrando-se e depois o abandonando, ou tomando-o de empréstimo, sendo que
muitas destas pessoas trabalhariam para terceiros, distribuindo os produtos de atacadistas em
carros de mão ou lonas que logo seriam retiradas do local. Além disto, podemos deduzir que
muitas pessoas circulam pelas ruas da cidade, pois o mercado destes produtos é o de maior
expressividade neste sentido.
Com relação aos pontos adquiridos, muitos não eram legalizados, aliás a grande maioria
(76 por cento). Eram comprados de terceiros, alugados ou emprestados, sendo que apenas 23 por
cento eram adquiridos junto à prefeitura, lembrando que o cadastro datava dos primeiros anos do
Centro. Apesar de ser a vendagem de frutas e legumes a que menos ocupava locais fixos no
centro, eram os produtos mais comercializados. Podemos entender que somados ao pequeno
comércio agregavam-se as trocas atacadistas e, além disto, o número de feirantes de alimentos era
muito grande. que a maioria dos pontos era cedida por terceiros ou alugados, emprestados, o
cadastro de mais de 20 anos, ou seja, das origens do Centro de Abastecimento correspondiam a
23 por cento das pessoas, demonstrando uma relação mais orgânica com o local da parte dos
comerciantes de feijão, de frutas e verduras em grande quantidade. O trabalho dos feirantes
dividia-se quase na metade, no ano de 2000, entre carregadores, empregados e donos de boxe,
entre membros da família e outros. Os maiores dias de comércio foram constatados na segunda-
feira e no sábado, sendo que a grande maioria das pessoas comercializava todos os dias.
Alguns dados como os que diziam respeito à filiação a entidade de classe vinham
acompanhados de comentários. Para a pesquisa, os dados demonstravam que a grande maioria
das pessoas não eram filiadas a entidades porque havia uma “falta de interesse pelas entidades
existentes”. De fato, o que desmotivou os pesquisadores foi a constatação de que a maioria dos
feirantes do CAF não consideravam o espaço como ponto crucial para as vendas, sendo feirantes
170
concomitantemente de outros mercados da cidade. O principal objetivo administrativo do Projeto
Cabana para gestão do local, o de transformá-lo em uma autarquia, era frustração também notada
na pesquisa. Enfim, o Centro se consagrara como local de vendas atacadista pelo qual os
pequenos feirantes pouco se interessavam.
4.2 – Trazer a roça para a rua: o feirante camponês.
Uma das questões que mais permearam os estudos sobre o mundo do trabalho até hoje foi
a forma como os camponeses passaram a lidar (entendidos como produtores individuais de
mercadorias) com as mudanças na economia que conectava-os a formas mais modernas de trato
com o político.
A maioria dos estudos dos quais falamos tem como base as referências da História Social
Inglesa de Eric Hobsbawm, Richard Hoggart e E. P. Thompson. Em geral, polemizaram sobre as
características tipicamente camponesas de lidar com a coletividade e de enfrentar as mudanças
nas relações de trabalho e nos modos de operar politicamente tais transformações na virada do
século XVIII para o XIX.
Mesmo distante no tempo, tais estudos podem ser tomados como referência para pensar os
termos nos quais puderam ser encontradas entre estes produtores em certa medida autônomos,
em certa medida explorados as noções de coletividade, produzidas internamente, pela sua
condição concorrencial e, ao mesmo tempo, promotora de importantes solidariedades. É
fundamental também percebê-los em relação a outros grupos de trabalhadores e proprietários
348
.
Na bagagem, mulheres e homens do campo traziam suas solidariedades e elementos camponeses
para a urbe feirense e trocavam informações, laços e novas experimentações com trabalhadores
urbanos que extraíam da feira livre o sustento familiar.
Se a via plural e aparentemente desconexa de aproximação permitiu solidariedades no ato
da compra e venda da feira, em sua organização, configuração dos espaços de atuação de cada
vendedor e circunscrições díspares dos grupos de feirantes nos locais de trabalho, o aspecto
festivo da feira é um outro fator de entrelaçamento entre grupos feirantes e a freguesia. Os
encontros semanais mantinham laços além do que pode ser analisado nos números do
_____________
348
HOBSBAWM, Eric. 1999: 216,217.
171
comércio
349
: ...os feirantes e compradores têm ponto certo de encontros: o Pessoal de Santo Estevão, na Rua
Conselheiro Franco, o de Tanquinho, na Praça da Bandeira, o de Anguera e Ipirá, na Praça Fróes da Mota
350
Nestes locais incidiam desde a entrega de uma carta de um parente distante à troca de
informações sobre a seca em determinada área da região ou mesmo acerto de contas e de
negócios os mais diversos
351
. Não só por esta razão, identidades outras podem, e já foram
apontadas entre as pessoas que freqüentavam o centro da cidade.
Além do seu forte caráter econômico, a feira livre apresentava características peculiares
no que diz respeito à cultura, fato comumente ignorado ou considerado de pouca
importância diante de sua representatividade econômica, afinal este comercio
representava um centro importador e exportador de produtos.
No trabalho de Izabel Oliveira
352
, fica clara a presença de cordelistas, vaqueiros,
cantadores, vendedoras de pratos típicos, cachaça, freqüentadores de bares, ente diversos
personagens, que faziam do local não somente um ambiente de trabalho e negócios, mas,
sobretudo, de lazer e trocas culturais fundamentais na identificação do feirante e do feirense.
A leitura de Milton Santos, por exemplo, sobre a relação do migrante com o lugar em que
chega é bastante delicada. Para ele, se desenraizado do campo, indo para o lugar novo no qual seu
passado não está, o migrante estaria desconectado de seus laços coletivos e obrigado a criar
novos laços experimentais.
Mas podemos questionar até que ponto o passado do qual precedeu uma experiência
social rural, por exemplo, foi abandonado em local urbano e assim, como a reaprendizagem dos
laços sociais carregam os aspectos de vivênciasexistentes trazidas para a cidade. Sua memória
mediará relacionamentos interpessoais e o munirá de leituras especificas de coletividade que se
porão em diálogo com os elementos do local que chega.
Caso contrário, correríamos o risco de dizer que as pessoas estão tão enraizadas ao espaço
no qual viveram seu passado, que em novas realidades estariam desprovidas de aspectos que os
conectassem ao novo local, às novas experiências.
Em candeias eu passei foi três dias, quando terminou o jeito foi vim pra Feira. Eu sou
Sergipano, e minha esposa é de Ribeira do Pombal. Nós dormia a aqui no passeio.
_____________
349
Observação: como este será um capítulo conclusivo, pretendo explorar as entrevistas como um todo neste quisito, perpassando
os diversos capítulos, em especial o capítulo II.
350
A Tarde, 11 de Janeiro de 1977 apud MOREIRA, 1998.
351
Idem.
352
OLIVEIRA, Izabel Lorene Borges de. Apolo e Dionísio da festa de feira: cantadores, cordelistas, vaqueiros... da feira livre de
Feira de Santana (Bahia), Feira de Santana: UEFS, 2000.
172
Agora não que ela já tá na idade, não pode ta rodando pra la´ e pra pra não pejudicar,
né?
353
.
Correlacionados às formas familiares de produção, os camponeses são referenciados
também em unidades familiares subordinadas a relações de produção mais ou menos
hierarquizadas com formas de vínculo com a terra que não a da pequena propriedade. Os
camponeses da região foram tratados como classe no estudo do sociólogo Ildes Ferreira (1987),
numa contestação de que estes foram atrelados a uma incapacidade de mobilizarem-se por si
próprios. Ele entende que para reproduzirem a unidade familiar os camponeses se mobilizaram
em busca de auxilio de órgãos que lhes fornecesse condições de melhoria na produtividade. Sem
poder de estocagem e numa relação mais umbilical com a natureza, são definidos como sujeitos
da pequena produção o necessariamente pelo tamanho de suas terras, mas na forma de uso da
mão de obra e nos resultados de seu trabalho (destino para venda para terceiros, venda nas feiras
ou para provimento próprio).
Ocorre nos anos de estudo que visualizamos uma mudança considerável no perfil dos
trabalhadores da feira livre. A quantidade de pessoas que vendiam seus produtos diretamente de
suas roças diminui e então, a visão sobre o atravessador que compra de fornecedores maiores
para distribuir na retalho se modifica. Nos anos 1980, portanto, o crescimento do número de
pessoas que, na cidade que passaram a vender alimentos como forma de vida no comércio da
cidade pode ser explicada de variadas formas.
A conjuntura dos anos 1980 foi avaliada por intelectuais de esquerda e por investidores
como uma década perdida.
De Decca (1993) relacionou esta leitura ao termino de uma conjuntura de crescimento e
da economia nos anos que a antecederam, sendo a década de 1980 um momento considerado de
crise no setor estatal, crise no formato de funcionamento da administração pública, crescimento
de desemprego estrutural e a aproximação de setores subalternos e dominantes das vias
neoliberais de atendimento das demandas sociais em privatizações e sucateamentos da coisa
pública.
Sem mencionar a crise proclamada internacionalmente, veiculada a uma reestruturação
produtiva que teve efeitos até então incontornáveis nas relações de trabalho e nas lutas sociais.
_____________
353
Depoimento de José Santos.
173
Neste ínterim, caberia, segundo De Decca, questionar como as novas formas de
organização produtiva e do trabalho emergente atuariam sobre um mercado de trabalho que
nunca teve como sua marca principal a rigidez das relações de trabalho (1993: 310). O que
decorreu foi o crescimento sem igual das formas precárias de atividades produtivas e trabalho e
mais ainda o crescimento do setor terciário no Brasil.
As perdas dadas pela virada dos centros urbanos que duplicaram a população e, em
contrapartida, a queda da população que sobrevivia de atividades agrícolas
354
fez com que
milhões de agricultores passassem a buscar formas de vida nas cidades brasileiras que os punham
nas periferias e sob a pecha da ilegalidade na maioria das vezes. Também, a queda da
participação feminina na população economicamente ativa, nos anos 1960, foi dada pela
desarticulação das atividades de economia familiar, sendo mais adiante, absorvidas pelo mercado
informal no pós anos 60, quando volta a crescer tanto a participação feminina no PEA, quanto às
atividades terciárias.
4.3 – Traços de uma feira negra e popular: práticas cotidianas
A atribuição de uma origem comercial de Feira de Santana devida aos caminhos do gado
e à sua feira livre é texto recorrente nas pesquisas sobre a cidade. Em 1873, quando Feira foi
elevada a Cidade Comercial, as atividades de troca entre o sertão e o litoral eram sem dúvida o
seu ponto de destaque econômico na Bahia e, no início do século, a cultura do gado a singulariza
neste circuito. O trabalho do vaqueiro, nestas circunstâncias ganha relevo como responsável pela
movimentação da principal mercadoria feirense. Mas a formação do Arraial de Santana, ainda no
século XVIII guarda muitas questões para os historiadores que arriscam buscar outras origens
para a população e a economia feirenses. No caso de Zélia Lima e Vicente Deocleciano Moreira,
a patente presença da escravidão africana nas redondezas vislumbra um quadro de uma região
recortada por diversas lavouras de subsistência para suprir as trocas oriundas da pecuária e
mesmo, a presença de povoados inteiros que sobreviviam da plantação de milho, mandioca,
batata e outros tubérculos, feijão, e os alimentos que alimentavam a população concentrada na
vila.
_____________
354
enquanto dois terços da PEA nacional inseria-se nas atividades agrícolas em 1940, verifica-se que menos de um terço estava
alocada nestas atividades em 1980 (DE DECCA, 1993, 312).
174
As pesquisas de Monsenhor Galvão, no início dos anos 1980, a respeito das terras que
deram origem ao povoado local, recorrem às terras de São José das Itapororocas, interior da
sesmaria dos Tocós, que se estendia até o São Francisco, para encontrar as explicações para o
povoamento das terras que vieram a dar origem a Feira de Santana. Celeste Pacheco argumentou
que o povoamento dos interiores deve muito à população indígena dizimada na fundamentação
destes territórios. As queixas de assaltos nas estradas, dirigidas à Cachoeira, levaram Zélia Lima
a supor que boa parte da população dos arredores do arraial de Santana era composta de pessoas
que viviam às margens da estrutura produtiva de pastoreio que supria Santana. É Vicente Moreira
quem indica o maior número de pontos de partida para a dedução de que a feira de Feira de
Santana era composta, desde suas origens por hábitos e pela população negra da região.
A expansão desse cenário humano e sócio-econômico possibilitou a instalação ou a
consolidação de uma feira periódica, na primeira metade do século XVIII. Mas, somente
no século XIX, a feira periódica que batizou e deu renome à cidade de Feira de Santana
experimentou apogeu econômico (...) Alguns anos depois da mudança do maior dia da
feira para segunda-feira, a terça passou a apresentar, contudo um movimento especial de
fregueses: era o dia dos restos da feira. Escravos e outros segmentos da população mais
pobre aproveitavam para catar, no lixo, produtos estragados ou comprá-los a preços mais
baixos e acessíveis
355
.
Esta dimensão sugere a presença de uma população negra de catadores que viviam em
volta da atividade mercantil feirense. Contudo, esta insinuação não dá conta da riqueza da
participação negra no trabalho e na cultura de feira livre no centro de Feira. Em outra
contribuição mais específica, Moreira apresenta um cruzamento entre o estudo de memória da
feira e pesquisas sobre a escravidão na cidade. Sem dispor de muita documentação no momento,
Moreira arriscava que
(...) refletir sobre a escravidão em Feira de Santana contribui para que compreendamos a
presença e a participação do negro nas feiras livres, seja na condição de escravo fugido –
alvo da repressão generalizada seja como negro de ganho e negro-de-ofício, ou ainda
como feirante, compondo, em quaisquer das hipóteses, elemento étnico de significativa
presença no cenário sócio-cultural e econômico dessas feiras
356
.
Vicente Moreira argumenta suas hipóteses, ensaiadas em apenas três páginas, o fato de
que havia muitas queixas contra agrupamentos de negros fugidos na comarca de Cachoeira. Além
disto, Moreira notava que muitas eram as evidências de que, uma região destacada na Bahia por
_____________
355
MOREIRA, Vicente. Projeto Memória da feira livre. Caminhos históricos da feira de Feira de Santana: origens e
secularidades. Sitientibus, n.10, jul/dez de 1992.
356
MOREIRA, Vicente. Projeto Memória da feira livre. A escravidão em Feira de Santana. Sitientibus, n. 5, 1988.
175
conta de uma feira de gado – substituindo no início do século XIX a Feira Velha do Capuame, da
região de Dias Dávila na movimentação dos negócios com o gado – deveria ter em volta de si um
número grande de plantadores. Sendo a área fartamente recortada por pequenas propriedades,
ficaria patente que Feira de Santana era não só uma área de cultura de gado como de cultura de
subsistência.
No texto do Projeto Cabana, em 1968, é possível perceber que havia uma preocupação da
parte da gestão local da prefeitura em regulamentar a maioria das terras feirenses que não tinham
escritura e advinham de empréstimos, favores e relações de troca internas às fazendas que não
passavam pelo crivo do poder público. O brasilianista Rolie Poppino correlacionou a presença do
grande número de negros na população feirense ao grande número de pequenos lavradores na
região e além disto, ressaltou que a riqueza de muitos comerciantes da cidade se vinculava
justamente a vinda destas pessoas da roça para a cidade todas as segundas-feiras. De maneira que,
a circulação comercial dos produtos alimentares em Feira, até os anos 1950, davam conta de
tornar a cidade viva em seu comércio semanal para que se instalassem ao seu redor casas
comerciais dos mais diversos produtos, hospedarias, cafés e vários estabelecimentos que aos
poucos foram dando surgimento a uma cidade voltada para aquele comércio e, ao mesmo tempo,
a economia rural era igualmente fomentada pela feira. Moradores das fazendas traziam seus
produtos para vender, numa relação de interdependência com os proprietários de terra que os
abrigavam, pois muitos deles, durante outros dias da semana, trabalhavam em outras roças, na
cultura de outros produtos, ou ajudavam a criar o gado, necessitando da feira para complementar
sua renda.
De outro modo, as pessoas que compravam produtos na cidade, principalmente a partir
dos anos 1950, que chegavam em Feira nos caminhões vindos das mais diferentes regiões da
Bahia e do país, supriam a necessidade que a grande produção de alimentos tinha de ter seus
produtos distribuídos em pequenas quantidades ate chegar ao consumidor final. Neste caso,
supomos que muitas destas pessoas que encontravam como alternativa de vida o comércio de
alimentos na cidade, eram oriundas das relações sociais de produção que rompera laços de
trabalho com a população negra, que deu conta de sobreviver nos grandes e médios centros do
comércio e dos serviços.
A despeito da presença negra no mercado livre feirense, muitas pesquisas ainda estão
sendo feitas recentemente por jovens historiadores que debruçam-se sobre arquivos do século
176
XVIII e XIX em busca de indícios das relações sociais da escravidão feirense e de sua relação
com a composição do mercado de trabalho local. Buscaremos brevemente contribuir com a
discussão na medida do possível, a partir de reflexões que foram desenvolvidas no contato com o
objeto de pesquisa feira livre.
Os sujeitos responsáveis pela alimentação da população local pouco foram mencionados
na história da cidade. Tanto estes como uma população urbana que sobrevivia de atividades
diversas no centro urbano precisam ainda ser tema de pesquisa. O ganho dos trabalhadores
instalados nas ruas principais ainda é desconhecido da história feirense. Sabemos que o período
pós-abolição resguarda na historiografia nacional a revelação de formas diversificadas de
trabalho entre a população liberta, que encontrava nas profissões do comércio e de serviços a
maior parte de suas atividades, construindo sobre estas culturas de trabalho específicas.
O caso do carregador Higino Ferreira, mencionado neste texto, demanda reflexões
sobre o tipo de trabalho que exercia e sobre o olhar dos moradores da cidade sobre o seu modo de
vida. Higino viveu toda a sua vida na labuta com os serviços de carregador na feira livre,
transitando nas calçadas de Feira durante 60 anos ininterruptos, algo que não era e não é raro na
cidade, visto que tal ocupação é iniciada ainda muito cedo por meninos que encontram alguns
trocados nesta atividade de suporte do mercado. O fato de Higino possivelmente ter sido filho de
escravos agravou, para as autoridades locais, a urgência da oferta de algum tipo de auxílio
financeiro para o carregador. Podemos supor que Higino não era sozinho na história do trabalho
urbano de suporte para a feira livre, em atividades sem as quais a feira o ocorreria e também
que muitos descendentes de uma liberdade incompleta encontraram na feira o sustento para suas
famílias ou a complementação de renda necessária para sobreviver na cidade.
Sobre o início do século e o trabalho urbano feirense, encontramos no trabalho de
Reginilde Santa Bárbara um importante ponto de partida. Lavadeiras expuseram em suas histórias
de vida exclusões e emancipações, num cotidiano que revela a labuta diária pelo sustento familiar
aliada à resistência de suas identidades culturais mediante policiamentos do controle público de
práticas populares, diante do crescimento da cidade.
Neste sentido pensamos que boa parte da proibição de práticas no centro da cidade diziam
respeito a práticas festivas do candomblé, como a suspensão de batuques congados no final dos
anos 1960, com o Código de Posturas Municipal. No cotidiano da feira de alimentos não é difícil
perceber não aspectos da cultura negra e popular de Feira como a presença de muitos feirantes
177
e consumidores negros. No conjunto das atividades, as práticas dos freqüentadores e
freqüentadoras e dos vendedores e vendedoras trazem uma riqueza de detalhes que nos reportam
para um dia a dia permeado de modos de viver enraizados na negritude feirense.
Não durante os festejos à Santa Bárbara e Iansã, mas durante todo o ano, a feira e em
seguida, o Centro de Abastecimento eram circuitos privilegiados para comprar apetrechos para
cerimônias do candomblé, havendo inclusive, casas especializadas instaladas no Centro. Em seu
entorno, os temperos, os quiabos, as farinhas, frangos, mariscos, amendoim e outros fazem parte
da mesa das festas e do dia a dia de milhares de pessoas. Assim, a feira livre desde o início do
século esteve permeada pelos símbolos da religiosidade negra. Não somente por via direta da
circulação de produtos acima citados, mas especialmente pelo comportamento e pelo modo de
vida das pessoas que a vivem diretamente. É cotidiana, na atualidade, a presença de vendedoras
usando torços em volta de suas cabeças, bem como do uso da folha de arruda atrás da orelha
como forma de proteger-se dos maus olhados e garantir a prosperidade das vendas. Cordas de
alho penduradas nas bancas também são destinadas a este fim.
A imagem da fotografia pode revelar uma série de características aqui mencionadas. Nos
permite ler que havia uma infinidade de mulheres negras utilizando o torço como encontramos
também, muitos meninos negros carregando carros de mão e caixotes, além da presença de
muitas pessoas negras circulando em volta das bancas.
A importância da cultura negra na montagem dos costumes da feira está latente em todas
as suas dimensões. A alimentação vendida no Centro de Abastecimento atualmente esteve
presente na antiga feira, como nas demais feiras livres da cidade – Estação Nova, Cidade Nova e
mercado do Tomba. Sarapatel, Caruru, Vatapá, Meninico, Maniçoba, Mocofato, Feijoada, são o
almoço de quem chega junto a uma das barracas destinadas a este fim. Aliás, a cultura de comer
na própria feira é parte fundamental do cotidiano do feirante que, sem tempo para ir em casa e
voltar, precisa ali mesmo alimentar-se. Muitos levam em suas quentinhas um pouco do cuscuz
feito em casa de manhã cedo e outros permanecem todo o dia com a alimentação da manhã,
vindo a alimentar-se novamente apenas no final da tarde. Espalhadas por toda a feira, as barracas
de comida mantiveram-se nas ruas na década de 1980, tendo em 1990 conseguido licença da
prefeitura para fixarem seus pontos numa travessa central de Feira (hoje ao lado do Arquivo
Público Municipal).
178
A venda da cachaça era a especialidade de muitas barracas da feira. As misturas de fôia
pôde geravam um sem número de bebidas que, além de revelarem sabores diversos e alimentarem
o aspecto lúdico do mercado, destinavam-se a variados fins. Cachaça para noivado, para melhoria
do desempenho sexual, para mau humor, e para muitas outros problemas eram tomados pelos
freqüentadores e dependiam da erva ou do bicho que se punha dentro da cachaça para curar. Os
erveiros e erveira também tinham suas bancas específicas para suprir estas e outras necessidades.
Como parte das crenças populares, estas pessoas ofertavam a cura para os mais diversos males da
saúde e do psicológico. Agregavam-se assim á cultura negra e á feira livre as práticas populares
dos transeuntes e freqüentadores do centro da cidade. Izabel Lorene versou sobre esta cultura,
encontrando na junção de todos estes elementos uma cultura de feira livre enraizada na vida da
maioria dos feirenses.
Algumas evidências nos aproximam ainda mais da suposição da presença da população
negra feirense em grande quantidade das atividades do mercado de alimentos, como o fato de
que, segundo o secretário Delorme, a maioria das pessoas que ganhavam a vida no Centro de
Abastecimento eram moradores do bairro da Rua Nova.
4.4 – A Associação dos Feirantes, as homenagens a Santa Bárbara e Iansã: práticas
coletivas de feirantes no Centro de Abastecimento
Duas questões ocorridas recentemente e envolvendo diretamente a história dos feirantes
merecerão menção neste texto. A primeira delas é a fundação de uma Associação por alguns
feirantes na feira do Tomba, sendo sua sede depois deslocada para dentro do Centro de
Abastecimento e a segunda é a disputada construção dos festejos à Santa Bárbara e Iansã, hoje
inserida no calendário oficial de festas populares da cidade.
Diversos sindicatos e associações podem ser apontados na história dos feirantes, visto que
esta categoria forja uma identidade urbana que agrega uma pluralidade de setores do trabalho na
cidade, comerciantes dos mais diversos produtos. Com relação aos vendedores de alimentos,
localizamos uma das associações fundadas ao longo dos anos após a construção do CAF. Trata-se
da fundação de uma nova Associação de Feirantes em 1989, já em uma outra conjuntura, passada
quase toda a década de 1980 e os primeiros anos de convivência entre feirantes do Centro de
Abastecimento e a administração municipal daquela autarquia. Além disto, esta associação foi
fundada depois de aprendizagem na lida entre esta direção e as formas de trabalho dos feirantes
179
que aos poucos iam se impondo dentro do local. É neste contexto que um grupo de feirantes,
donos de boxes no CAF, organiza-se em torno de um coletivo de vendedores interessados em
organizar o espaço. Eram em sua maioria atacadistas.
Os objetivos da Associação, de acordo com o seu estatuto era realizar estudo,
coordenação, proteção, defesa e representação da categoria, visando à manutenção e a defesa
das instituições democráticas brasileiras, melhorias nas condições de vida e trabalho de seus
representados, colaborar com os poderes blicos e demais associações no sentido de
solidariedade de classe e não tem fins lucrativos. Além destas definições mais gerais, definem
que a associação ficaria comprometida com uma colaboração para com o Estado, se posicionando
como órgão técnico e consultivo no estudo de solução de problemas dos feirantes
357
.
Na prática, o objetivo que mais movia as ações destes comerciantes era a constante
alteração dos impostos pelo uso do Centro e dirigiam as acusações ao Prefeito Colbert Martins,
que assumia pela segunda vez o mandato da Prefeitura, desde que o Centro de Abastecimento
havia sido construído. Na primeira reunião, a associação contava com cerca de 35 presentes, entre
filiados e outros membros e definiam as justificativas de suas ações: Porque nós não tínhamos
mais condições de pagar os altos impostos cobrados nesta autarquia pelo Sr. Prefeito Colbert
Martins da Silva
358
. Encontravam no poder executivo o alvo para suas reivindicações, publicando
notas de repúdio na imprensa e enviando ofícios e outras correspondências ao secretário de
Abastecimento do Município, o Sr. Sérgio Madeira, um dos nomes mais citados pela associação.
Ora como baluarte para a queixa contra as taxas consideradas indevidas, ora apontado como
solucionador dos problemas de infra-estrutura. Os membros procuraram divulgar a fundação da
associação através do convite de autoridades locais, como o comandante do 35º Batalhão, para as
reuniões, mas parece que o principal problema de reconhecimento do grupo ocorria dentro do
próprio Centro de Abastecimento, com relação aos feirantes que vendiam mercadorias em
pequenas quantidades, não possuíam locais fixos para seu trabalho e entravam em conflito
constantemente com os atacadistas. Como a associação procurava cobrir as demandas também do
matadouro municipal, exigia da Prefeitura as devidas instalações para a prática do abate de gado.
Num debate sobre a relação da associação com os demais comerciantes do Centro, o Sr.
Francisco Gilvan Expôs o que está acontecendo na área da cebola, comentários de que o presidente está se
_____________
357
Estatuto da Associação dos Feirantes do Centro de Abastecimento, Campo do Gado e Feiras Livres de Feira de Santana
Bahia.1989).
358
Livro de Atas da Associação dos Feirantes do Centro de Abastecimento, Campo do Gado e Feiras Livres de Feira de Santana,
1989, página 5.
180
preocupando com sua área, ou seja, o matadouro municipal e os ceboleiros, através da associação pedem a
abertura da rua que dá acesso a avenida canal
359
.
Para resolver a questão, a associação procurou estabelecer um representante de cada área
da feira do Centro de Abastecimento nos diálogos com o superintendente Sérgio Madeira. Mas as
contendas com a feira dos hortifrutigranjeiros as contendas pareciam não ter fim, que, sem
propriedade dos pontos de venda, não se fixavam na organização que pretendiam os comerciantes
atacadistas.
O senhor Agostinho Vieira fez um protesto em relação a feira de área livre do pavilhão
de hortifrutigranjeiros que está prejudicando os comerciantes que pagam impostos
legalmente e que esta feira deve ser removida, inclusive o Senhor Sérgio Madeira
prometeu resolver e nada o fez
360
.
Segundo a associação, o aspecto da feira ali instalada constrangia os demais negócios do
mercado e discutiam os termos dos direitos de uso conforme pagamento do espaço na Prefeitura.
Depois a associação consegue obter sucesso nesta empreitada e a pequena feira de hortigranjeiros
é removida temporariamente do ponto. Da mesma forma, conseguiram que o superintendente
pressionasse os vendedores que estavam nas ruas e criaram uma feira na Marechal Deodoro a
sair daquele espaço e vir para o Centro de Abastecimento. Desta maneira, a associação se
apresentava como colaboradora da consolidação do CAF como mercado de alimentos da cidade e
em troca negociavam a diminuição dos impostos. É importante ressaltar que foram responsáveis
pelo fornecimento de infra-estrutura diversa para o mercado, desde pontos de ônibus, abertura de
ruas e limpeza interna a controle de cadastro de vendedores e carregadores. Mobilizaram-se para
que fossem instalados postos telefônicos pra que as pessoas de fora não fiquem sem saber como
entrar em contato com os feirantes ou seus familiares ou patrões, etc.
361
. Suas cobranças á
Prefeitura e à Secretaria do Centro eram: divisão adequada do local, fornecimento de melhores
acessos para os consumidores, cobrança de transporte público até as proximidades do CAF,
abertura de novas ruas, iluminação, ampliação do espaço interno, enfim. Estas pessoas queriam
manter o Centro como o local com condições suficientes para funcionar como mercado que
concorresse inclusive com os supermercados de Feira. Como donos de boxes, alugavam,
repassavam e negociavam seus pontos, cujos preços eram estabelecidos entre eles mesmos.
_____________
359
Ata da Associação dos Feirantes do Centro de Abastecimento, Campo do Gado e Feiras Livres de Feira de Santana, 1990,
página 26.
360
Idem, página 28
361
Livro de Atas.
181
Usavam camisas padronizadas para se diferenciar dos demais comerciantes menores e tinham
diálogo direto com representantes de poderes político partidários da cidade. Havia uma
aproximação dos feirantes fundadores com deputados como José Falcão da Silva e José Ronaldo
de Carvalho, na época, opositores de Colbert Martins na disputa pela Prefeitura. No entanto, os
problemas com os inúmeros trabalhadores que circundavam o comércio atacadista do CAF,
nunca se findaram.
Os atacadistas acusavam de injustos os feirantes sem barraca ou ponto fixo.
Para Helenita, a atual situação em que se encontra o centro é vergonhosa mesmo por que
não está havendo um devido respeito para com as pessoas que tem boxes conseguido
através de muito esforço, e veem outras pessoas que não fazem nenhum esforço
chegarem com suas mercadorias e colocarem na frente dos comerciantes, que já estão a
mais tempo naquele local, pagando impostos, impossibilitadas de comercializarem
362
.
Interessado em aproximar os feirantes hortigranjeiros da associação, o senhor Francisco
Gilvan resolveu se engajar numa divulgação para atrair mais associados, distribuindo fichas de
filiação pelo Centro de Abastecimento. Sua surpresa foi que ao entregar uma cópia do acordo de
associação a um de seus colegas dono de boxe, este a rasgou alegando que os mais favorecidos
são os grandes e que, portanto, não tinha interesse em filiar-se
363
. Para os associados, a presença
de pessoas sem boxes e sem pontos fixos, circulando no CAF, era um incômodo, o que havia
gerado conflitos entre estes e os feirantes espalhados sem cadastro pelo Centro, construindo em
contrapartida, uma negativa dos feirantes menores com os membros da associação.
A associação esteve no intermédio de outras contendas com relação a apropriações do
novo espaço. Muitos feirantes participavam da realização dos festejos à padroeira dos feirantes,
Santa Bárbara e a Iansã. Importante elemento da cultura dos feirantes, a organização da festa
circunscreveu relações internas na produção dos apetrechos necessários a confecção do caruru, da
música, da missa e outras tradições e ainda demarca presença dos mercadores em relação à
comunidade feirense. Os feirantes atacadistas estreitavam laços com a Igreja, com a
administração do CAF e demarcavam um festejo que consolidava o Centro de Abastecimento no
calendário festivo e religioso da cidade. Os feirantes de alimentos, devotos de Santa Bárbara ou
de Iansã, fossem eles do campo ou da cidade, colaboravam com muito do material: quiabos,
temperos, entre outros. O aspecto festa como elemento de análise dá suporte para a percepção de
um laço de identidade entre os feirantes, visto que o fato de ser Santa Bárbara a sua padroeira,
_____________
362
Ata da Associação dos Feirantes do Centro de Abastecimento, Campo do Gado e Feiras livres de Feira de Santana, 1991, 56.
363
Livro de Atas, Agosto de 1991.
182
confere um significado ao seu labor, demarcando não somente o culto a uma entidade religiosa
entre os devotos, mas refazendo todos os anos um sentimento comum de participação nos festejos
também enquanto feirantes
364
.
A aproximação entre as comemorações, a religiosidade e a identidade destas pessoas fica
explícita em todo o evento do 4 de Dezembro, como nos seus preparativos. O tema do vínculo da
identidade na festa tem sido estudado por pesquisadores de diversas linhas (religião, festa, cultura
popular, cidade) ou que se interessam pela história social e encontram nos festejos importantes
pontos de formação de identidades
365
. Destacamos o trabalho de Edilece Couto como referência
para perceber este tipo de culto na Bahia. A chamada festa de Santa Bárbara, realizada pelos
trabalhadores dos mercados da Bahia, é um evento construído a partir de práticas coletivas
apoiadas em tradições católicas. Ela funde elementos dessa religiosidade com o culto a Iansã e às
comemorações da cultura negra.
Santa Bárbara é uma das santas mais veneradas pela população negra e, desde o século
XIX, é homenageada pelos trabalhadores do mercado de Salvador. Seu culto foi desenvolvido
na Bahia colonial por influência dos colonizadores nas orações, recitadas ou impressas
em pequenos folhetos, distribuídos pelos fiéis, são lembradas as sua funções de protetora
contra as tempestades, raios e trovões. A santa pode encorajar o devoto nos momentos
em que a vida lhe impõe tempestades e batalhas, ou seja, dificuldades
366
.
Conjugados ao culto de Iansã, estes festejos e homenagens à Santa Bárbara, oriundos de
tradições católicas e do candomblé, passaram a ser realizados pelos mercadores de carne no
Mercado Municipal de Feira de Santana em 1973 e possuíam, como na capital, práticas
sincréticas do candomblé e do catolicismo. No ano seguinte, a festa para a Rainha dos Raios
passou a fazer parte do calendário oficial das comemorações da cidade, sendo festejada no dia 04
de dezembro. O mercado guardava a imagem de Santa Bárbara e após a desativação do mercado
de carne naquele ambiente e da construção do CAF, a Prefeitura construiu um novo local para a
imagem de Santa Bárbara. A imagem permanece no altar do Centro de Abastecimento até
meados de uma semana após a festa e depois é deslocada para a Igreja Senhor dos Passos, onde
retorna às vistas dos párocos católicos. Assim também acontecia no Mercado Municipal.
_____________
364
COUTO, Edilece. Tempo de Festas: Homenagens a Santa Bárbara, N.S da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940).
Tese de doutorado. Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2004. p.86
365
CUNHA, Maria Clementina P. (Org.). Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura.Campinas-SP: Editora
da UNICAMP/Cecult. 2002.
366
COUTO, Edilece Souza. Op. Cit. p.86
183
Para além de um espaço de tradições, as festividades podem ser vistas como um lugar de
conflitos. Os significados atribuídos à festa para Iansã e Santa Bárbara, serão diferentes entre os
feirantes católicos e aqueles adeptos do candomblé, as autoridades civis e os membros do clero.
Os costumes dos feirantes, relacionados à organização da festa, vêm imbuídos de uma relação de
apropriação com as estruturas de poder da Igreja Católica.
Thompson mostrou que entre os trabalhadores ingleses do século XVIII existiu uma
necessidade de seguir a ordenação do mundo e de jogar de acordo com as regras
367
para criar
espaços de participação social próprias. No caso dos mercadores de Feira de Santana,
encontramos uma relação de tradição na necessidade de dar espaço à atuação do ritual católico,
no início das comemorações, para conferir um amálgama de legitimidade à festa frente a
comunidade feirense. Jogo este que não impedia que os feirantes disputassem a organização dos
festejos:
A programação tem início às cinco horas da manhã com uma alvorada ao som de fogos e
da batucada do Tonho; às 08:30 horas o Monsenhor Renato Galvão vai celebrar a missa
na capelinha do mercado; às 11:30 horas será oferecido caruru. Durante toda a tarde vai
ter batucada, capoeira, samba de roda, desfile das filhas de santo dirigidas por seus
chefe
368
.
O jornal Folha do Norte, fundado em 1909, teve um papel de destaque na discussão das
programações católicas em Feira de Santana. Era porta-voz das atividades da Igreja Católica e de
seus discursos, através de publicações de textos de párocos importantes e, posteriormente, “se
torna propagandista de uma perspectiva que se pretendia civilizada.”
369
Durante todo esse
período, não se referiu aos festejos que acompanhavam a festa de Santa Bárbara, limitando-se a
divulgar as missas. Já o jornal Feira Hoje, criado em 1970, divulgava não os festejos a Santa
Bárbara, como também as celebrações que ocorriam nos terreiros da cidade.
que falamos em terreiro, Zeca de Iemanjá vai tocar os atabaques e suas filhas de santo
vão dar uma demonstração de Iansã, todas vestidas de azul e branco. Vale a pena que a
sociedade esteja presente para assistir a um dos melhores Candomblés da nossa
cidade
370
.
_____________
367
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Ensaios sobre a cultura popular tradicional na Inglaterra. São Paulo: Cia das Letras,
2002, p. 20.
368
Festa para Rainha dos Raios, Jornal Feira Hoje, 28/11/1974.
369
OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana. De Empório á Princesa do Sertão: utopias civilizadoras em Feira de Santana (1893-
1937). Dissertação. (Mestrado em História) – UFBA, Salvador: 2000, p.59.
370
. Coluna Sociedade. Feira Hoje 4/12/1973.
184
E assim, encontramos alguns poucos registros do caruru de Santa Bárbara neste veículo,
mencionando apenas a data em colunas de calendário de festas. Outras fontes aproximam-nos da
dimensão da festa no cotidiano dos freqüentadores da feira. Em 1976, em algumas notas esparsas
da imprensa, recortadas por Vicente Moreira, é presente a preocupação com a continuidade da
festa de Iansã e Santa Bárbara numa cidade que não tinha muitas atrações turísticas. A apreensão,
em outra dimensão, foi registrada na fala de Zabumba, personagem conhecido no mercado na
década de 70, citado por Moreira. Nela percebemos inclusive a atribuição da feira livre à
padroeira da cidade, Senhora Santana: Não podem acabar com a feira de Nossa Senhora
Santana, não, isto é um crime! Onde eu vou chupar laranja e comer jaca? E o caruru de minha
mãe Iansã, também vai acabar? Isso não pode acabar de jeito nenhum!
371
.
No Mercado Municipal, ainda na rua, os adeptos da Mártir dos Mercadores e da Deusa
pagã dos relâmpagos eram os principais promotores da festa. Em sua maioria eram os
açougueiros do local e os feirantes do entorno, segundo o Secretário Delorme. Eles recolhiam os
donativos para a produção do caruru, cuidavam da divulgação e eram os guardadores da imagem
da Santa. com o Centro de Abastecimento, a direção toma frente no recolhimento de quiabos,
camarões, farinha de mandioca, frangos e outros ingredientes essenciais na produção da iguaria
servida na festa, bem como enfeites e adornos para a decoração do local no 04 de dezembro.
Assim é que os diretores passaram a regulamentar oficialmente os preparativos dos festejos. Até
porque, a alegação da necessidade de uma higiene na produção do caruru levou a Prefeitura a
pedir o auxílio do corpo de Bombeiros para cortar os milhares de quiabos. Estes ajudam nos
festejos gratuitamente, por ser Santa Bárbara também sua padroeira. Outros fatores, como a
própria dispersão dos grupos de feirantes após 1977, afastam ainda mais os feirantes da
organização da festa atualmente.
Na década de 70 ela fazia parte do calendário da cidade. Mas aquilo não era escrito,
aquilo não era lei, aquilo ali divulgava e as pessoas criavam as comissões pra fazer a
festa, envolvia a sociedade pra fazer a festa e hoje aqui praticamente quem o pontapé
inicial é a prefeitura, que faz tudo. A parte logística da festa é da prefeitura
372
.
O que ocorreu ao longo dos anos que se seguem à chegada do Centro é que seu
funcionamento não aconteceu enquanto autarquia. Isto, segundo discurso recorrente em várias
reportagens do jornal Feira Hoje, por descaso dos próprios feirantes. Vários são os motivos que
_____________
371
MOREIRA, Vicente. Op. cit., 1994. p. 196.
372
Depoimento de Delorme. Diretor do Centro de Abastecimento.
185
poderiam ser apontados para que os feirantes não tomassem de imediato à frente da organização
do local e que terminasse nas mãos dos comerciantes de maior porte esta tarefa. Assim, o centro
esteve sob a tutela de diretorias vinculadas ao governo municipal ao longo dos últimos 30 anos.
Sem dúvida, portanto, a festa de Santa Bárbara e Iansã, por ser fator agregador entre os feirantes,
era continuamente realizada com todo apoio do executivo municipal, interessado em consolidar o
ambiente do Centro de Abastecimento como ambiente de feira. Por outro lado, também os
feirantes que participavam dos festejos, visavam reforça-los anualmente. É bem verdade que, a
cada ano que passa, o caráter espontâneo de organização da festa pelos feirantes vem perdendo
espaço para a sistemática estrutura montada pela Prefeitura ao longo dos últimos anos, como
acontece com a maioria das festas populares da cidade.
Os membros da Associação de Feirantes, em 1989, dispuseram-se a organizar o caruru de
Iansã e as festividades para Santa Bárbara, sendo que o material recolhido para o mesmo, seria
doado pelos feirantes. Já no ano seguinte, 1990, deliberaram que não participariam do caruru
porque estava sendo divulgado, segundo seus diretores, apenas o nome da superintendência do
Centro. Isto no mês de novembro, véspera dos preparativos dos festejos. No jornal Feira Hoje, no
ano seguinte, a cena se repete. Estranhamente, a diretoria da entidade nos enviou um ofício 48 horas antes,
informando que não iria participar dos festejos por conveniência, e por isso não colaboraram em nada
373
.
Entre os pequenos feirantes, o culto à Rainha dos Raios, protetora de seus filhos e filhas
em momentos de tempestades, foi interpretado como uma tábua de salvação num contexto de
perdas significativas para aqueles trabalhadores, durante as altas de preços e diminuição do
consumo.Todos s temos que ter muita fé, pois a situação está muito ruim. Mas acredito que somente não está
pior porque Iansã vem nos protegendo diariamente em nossa luta, pois ela sabe o quanto nós somos sofredores
374
.
Desta forma, ao questionarmos quais as diferentes acepções atribuídas à festa para Santa
Bárbara e Iansã no mercado de Feira de Santana, buscamos visualizar conflitos e tensões
produzidas pelos sujeitos participantes da festa na conjuntura de mudanças do comércio de Feira.
No âmago destas mudanças, a dinâmica cultural da feira sofreu interrupções e alterações,
demarcadas por rupturas de intervenção na conduta de trabalho dos feirantes. Os episódios
correlacionados à festa de Santa Bárbara não são isolados e não estão desconectados da
problemática da inserção dos feirantes em Feira de Santana após a definição de um espaço de
trabalho novo.
_____________
373
Sérgio Madeira, Diretor do Centro de Abastecimento para o Jornal Feira Hoje, 05/12/1991.
374
Adimilson Paim do Carmo, feirante, 54 anos para o Feira Hoje, 1991.
186
Pudemos perceber que os costumes que envolviam grupos e classes sociais divergentes
passaram então por alterações significativas, que vieram a deixar seus rastros e marcas ainda hoje
indeléveis da história desta cidade. Contudo, as pessoas que deles participaram, sob condições
menos favorecidas, remodelaram sua performance e praticaram as feiras de outras formas.
187
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As expectativas, práticas e sociabilidades de sujeitos que realizavam a feira livre
foram apresentadas de maneira que fosse possível discernir os diferentes modos como se
comportaram vendedores baganeiros (homens e mulheres) com pequenas quantidades de
mercadorias e os atacadistas. Durante a construção das mudanças, as atitudes foram diversas.
Tanto quando nos referimos a elementos como a postura do sindicato dos feirantes e a vivência
dos camponeses que traziam os produtos da roça para a feira, na década de 1960, quando
tratamos das reações de feirantes estabelecidos nas ruas e de comerciantes atacadistas que
assumiram as instalações do Centro de Abastecimento, encontramos maneiras díspares de encarar
as situações postas.
Tais situações seriam, inicialmente, as próprias bases do costume feirante de Feira
de Santana. As posturas municipais na organização do mercado que lhe davam com a feirinha
como cerne do centro comercial de Feira, ainda sem cogitar a sua transferência de local, até o
governo Francisco Pinto, sugerem que a feira livre se sustentava como terreno de negociações do
espaço urbano por privilégio com relações cruciais com o mundo do trabalho feirense. Durante a
ditadura militar, estes projetos são alterados significativamente. Não porque acreditemos haver
uma ruptura radical nas estruturas sociais feirenses, nem no que diz respeito ao seu comércio,
nem no que tange as relações político-partidárias. Porém, houve neste período uma ligação
explícita dos planos governamentais para Feira com as posturas nacionais voltadas para o
mercado de alimentos por via do bipartidarismo. Além disto, a relação da ditadura militar com as
práticas populares do centro da cidade eram notoriamente disciplinarizadoras neste período e
intencionaram retirar práticas e sujeitos do ambiente urbano. Frente a estas intervenções, o
costume de uso das ruas e calçadas principais para a atividade de feira pareceu ser um passado
que criava continuidades no presente, com a finalidade de garantir a sobrevivência social e
econômica dos feirantes no centro.
Isto porque, as ações do projeto do Centro de Abastecimento não poderiam dar conta de
transferir para seu interior a feira livre. Tampouco estas ações puderam exterminá-la. Uma etapa
nova de relações entre os pequenos feirantes, os atacadistas e os comerciantes de Feira de
Santana se construiu ali. Entre negociações de uso das calçadas e doações de terrenos no centro
da cidade para pequenas feiras, alguns feirantes conseguiram permanecer com a feira de
188
alimentos nas ruas do coração do centro comercial feirense, barganhando dia a dia a fiscalização
municipal e negando a ida para o Centro de Abastecimento. Em outras feiras, muitos encontraram
outros modos de fazer a feirinha ou para levaram consigo as aprendizagens da “antiga feira”.
E, dentro daquele mesmo local que haveria de ser o local organizado sob os moldes do mercado
de alimentos, as práticas dos feirantes aparecem e deixam imcompletas as projeções para o
Centro “expedidor rural”. Ainda que projetado para receber a circulação em atacado, em suas
vias internas foi possível que os vendedores levassem para lá as formas de troca e as práticas de
relacionamento com a clientela que ainda permite que aquele Centro não seja por completo um
espaço frio e racionalizado.
Podemos inverter assim os olhares sobre a relação entre os feirantes que faziam a “antiga
feira” e o CAF. Ao mesmo tempo em que alguns feirantes negam-se a ir para aquele local para
trabalhar, outros encontram ali mesmo o seu sustento e para transportaram e adequaram o que
aprenderam no espaço de vendas tradicional.
A tradição é reconstruída em outros aspectos. Ressaltamos a dependência dos vendedores
de atacado com estes feirantes que compram suas mercadorias e que são feirenses moradores do
núcleo urbano da cidade. Rua Nova, Tanque da Nação, especialmente, o bairros de origem de
muitos vendedores do CAF. A alternativa de trabalho ali se apresenta acessível na compra de
mercadorias por regime de consignação, porém o ponto de vendas não se apresenta atrativo.
Assim, as feiras dos outros locais da urbe feirense despontam muito mais como locais de trabalho
de sujeitos que vem dos distritos e áreas próximas, como Dona Tenícia, Dona Ester, Dona
Santinha e muitos outros e outras. Neste quesito, fica clara a predominância feminina na
atividade, ainda que não dispuséssemos de dados, neste sentido, pudemos contar com a
observação durante as entrevistas e com os relatos que cada uma nos apresentou. A lida com a
roça de alimentos as aproxima da feira, como demarcadoras de espaços neste tipo de atividade. A
situação do campo também reflete no comercio da feira muitas mudanças. Como por exemplo, o
fato de que precisam comprar produtos no Centro de Abastecimento para compor o leque de
mercadorias, já que somente o que “a roça dá” não seria suficiente.
todo comércio dos caminhões vindos de outras localidades, trazendo o feijão, o tomate,
entre outras mercadorias foi reforçado no Centro de Abastecimento, o que sugere pontos de
permanência da feira tradicional em outro sentido, de reforço de relações comerciais de maior
porte.
189
Ao pensar ainda as disputas políticas que retardaram ou aceleraram os processos de
transferência da feira, projetamos entender não somente a construção das posturas municipais que
incidiram sobre a feira, mas como os próprios feirantes foram sujeitos com os quais cada uma
destas posturas teve de dialogar, sugerindo o protagonismo dos feirantes nas relações de
montagem da feira livre no centro de Feira e, conseqüentemente, da sua praça comercial.
As feiras no interior daquela “antiga feira” deixaram assim seus diferentes legados no
centro da cidade já transformada.
Na incompletude da pesquisa sobre o tema da feira livre e da infinidade de relações
sociais que abriga, esperamos ter contribuído para a história dos grupos subalternos de Feira, ao
mencionar feirantes de alimentos como sujeitos importantes no diálogo das experiências de
trabalho do campo e da cidade, bem como na importância destas experimentações nas relações
com o poder público da cidade. Esperamos que este terreno de pesquisa tragam outros frutos.
190
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“Consumidores criticam custo de vida”. Feira Hoje, 29/05/1980.
Idem. A fotografia foi tirada dentro do Centro de Abastecimento e o destaque foi dado à relação
da vendedora com o consumidor.
197
Idem. Trabalhadora da feirinha
“Donas de casa reduzem compras semanais”. Feira Hoje, 27/01/1980.
198
“Feijão poderá baixar de preço em 15 dias”. Feira Hoje, 03/02/1980
“Moradores serão removidos do Centro de Abastecimento”. Feira Hoje, 07/06/1980 Foto de
moradora de um dos barracos construídos no local.
199
Centro de Abastecimento em 1976. Fonte: Arquivo Público Municipal
Fotografia do Acervo de Antonio Magalhães. A imagem mostra a feira na região da Avenida
Getúlio Vargas
200
Fotografia do Acervo de Antonio Magalhães. Vista aérea de Feira de Santana na Avenida Getúlio
Vargas
Fotografia do acervo de Antonio Magalhães. Foto da feira livre em frente ao Mercado Municipal
201
Fotografia do Acervo de Antonio Magalhães. Foto da Feira Livre na Avenida Senhor dos Passos
Fotografia Acervo de Antonio Magalhães. Feira Livre na Avenida Senhor dos Passos
202
Gazeta do Povo, 26/07/1959. Fotografia da Primeira Sinaleira de Feira de Santana
Mapa da área urbana central de Feira de Santana onde se localizava a feira.
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