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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
PROGRAMA DE PÓS
-
GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
EDSON CARVALHO GUEDES
ALTERIDADE E DIÁLOGO:
UMA META
-
ARQUEOLOGIA DA EDUCAÇÃO
A PARTIR DE EMMANUEL LÉVINAS E PAULO FREIRE
JOÃO PESSOA
2007
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A
LTERIDADE E DIÁLOGO
:
UMA META
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ARQUEOLOGIA DA EDUCAÇÃO A PARTIR DE
E
MMANUEL
L
ÉVINAS E
P
AULO
F
REIRE
1
EDSON CARVALHO GUEDES
ALTERIDADE
E DIÁLOGO:
UMA META
-
ARQUEOLOGIA DA EDUCAÇÃO
A PARTIR DE EMMANUEL LÉVINAS E PAULO FREIRE
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Educação, do Centro de
Educação da Universidade Federal da
Paraíba, como requisito parcial para
obtenção do Título d
e doutor em educação.
Orientadora: Profa. Dr
a. Edna Gusmão de Góes Brennand
JOÃO PESSOA
2007
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2
EDSON CARVALHO GUEDES
ALTERIDADE E DIÁLOGO:
UMA META
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ARQUEOLOGIA DA EDUCAÇÃO
A PARTIR DE EMMANUEL LÉVINAS E PAULO FREIRE
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Educação, do Centro de
Educação da Universidade Federal da
Paraíba, como requisito parcial para
obtenção do Título de doutor em educação.
Aprovado em: ___/___/___
______________________________________________________
Profa
. Dra.
Edna Gusmão de Góes Brennand
Orientadora
______________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Pelizzoli
Examinador externo
-
UFPE
______________________________________________________
Prof. Dr
. Henrique Antunes Cunha Júnior
Examinador externo
-
UFCE
______________________________________________________
Profa. Dra Windyz Brazão Ferreira
Examinadora
______________________________________________________
Prof. Dr.
José Francisco de Melo Neto
Examinador
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Ao meu Pai
,
que partiu
en
quan
t
o
eu
fazia es
t
a pesquisa e
à minha Filha
,
que chegou nesse mesmo período.
A
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4
Agradeço a Ana Raquel,
por sua presença amorosa e paciente.
Agradeço a Washingto
n,
por sua solidariedade e incentivo.
Agradeço
, ainda,
à
Profa. Dra. Edna
Brennand
pela orientação
,
disponibilidade
e
pela sua preciosa amizade.
A
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5
Um homem precisa viajar para lugares que não conhece
,
para queb
rar essa arrogância que nos faz ver o mundo
como
imaginamos e não simplesmente como ele é ou pode ser.
Que nos faz professores e doutores do que não vimos,
quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.
Amy Klink
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RESUMO
A meta-arqueologia da Educação, proposta neste trabalho, toma como referência
Emmanuel Lévinas e Paulo Freire e quer orientar uma reflexão filosófica sobre as
questões colocadas pela necessidade de olhar o Outro como fonte de uma aprendizagem
que possibilita o ser humano ser mais. O
problema
desta pesquisa pode ser explicitado da
seguinte maneira: Como a Filosofia de Lévinas, em diálogo com a Teoria da educação de
Paulo Freire ajudam a delinear “princípios” ou fundamentos” de relações intersubjetivas
presentes na educação? Consideramos que as relações intersubjetivas, no universo
educacional, são construídas sobre dois grandes “fundamentos” ou sobre um fundamento
propriamente dito e sobre algo que está para além do fundamento. Uma contribuição que
esta pesquisa traz e que revela uma possível originalidade no campo educacional refere-
se
à desconstrução da categoria que se convencionou chamar de
fundamento
ou
princípio
.
Ancorados na filosofia de Emmanuel Lévinas, apresentamos uma perspectiva acerca da
filosofia ocidental que constituiu, na maioria das vezes, fundamentos totalitários,
preocupados com a unidade, coerência e síntese, destituindo, por conta disso, as
singularidades, as contradições e as diversidades. Propomos o termo
meta
-
arqueologia
para designar uma realidade que principia, mas que permanece aberta à diversidade, à
diferença, resistente a se apresentar como paradigma. A
hipótese
que marcou o início de
nossos trabalhos, já influenciados pela filosofia de Emmanuel Lévinas e pela
epistemologia da educação de Paulo Freire, traz como resposta ao nosso problema de tese
a seguinte afirmação: A relação de alteridade e o exercício do diálogo permitem e marcam
uma meta-arqueologia da educação emancipatória, para além dos limites identitários. Por
outro lado, é a racionalidade autológica que principia e sustenta, no interior dos processos
educativos, as relações interpessoais excludentes e resistentes à diversidade. Para construir
uma metodologia que
organizasse
a abordagem de um sujeito acerca de um fenômeno e,
ao mesmo tempo, oferecesse elementos suficientes para
[des]
arrumar e
[re]
organizar o
discurso em vista de futuras construções teóricas e práticas, julgamos mais conveniente
abordar as questões postas pela hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur. A tese
alicerçou
-se em quatro categorias centrais:
saber
e
autologia
, de um lado, e
alteridade
e
diálogo
, de outro. São dois cortes que se tensionam reciprocamente. A compreensão do
primeiro grupo de categorias favorece a compreensão do segundo e vice
-
versa. O primeiro
grupo é compreendido como
fundamento
ou
princípio
para
a
educação; o segundo, como
uma
meta
-
arqueologia
, algo que está para além do princípio (
arché
). O conjunto de
categorias levinasianas tem
alteridade
como categoria central e articuladora das outras:
ética e filosofia primeira, linguagem, subjetividade,
autrement
(de outro modo que ser). O
conjunto das categorias freireanas tem
diálogo
como categoria central e articula as outras:
liberdade, social e político, justiça, cultura. Com essas categorias
,
busc
amos
construir
uma
teoria educacional que possa viabilizar processos de aprendizagens éticos de
acolhimento
e
compromisso
com o outrem e ainda propiciadora de uma aprendizagem para a
suspeita
,
refratária à vontade de poder.
Palavras
-
chave:
Meta
-arqueologia. Alteridade. Diálogo. Ética. Filosofia da E
ducação
. E
mmanuel
Lévinas.
Paulo
Freire.
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7
ABSTRACT
The meta-archeology of Education, suggested in this work, refers to Emmanuel Lévinas
and Paulo Freire and wants to orientate a philosophical reflection about the questions
rai
sed by the necessity of looking at the Other as a source of learning that enables the
human being to be more. The
problem
concerning this research may be explained as
follows: How can Lévinas’ Philosophy, in a dialog with the educational Theory by Paulo
Fr
eire, help defining “principles” or “bases” of intersubjective relationships present in
education? We consider that the intersubjective relationships, within the educational
universe, are built over two great “bases” or over a basis properly defined and ov
er
something that is beyond the basis. A contribution that this research brings and that
reveals a possible originality within the educational field refers to the deconstruction of
the category that is conveniently referred to as
basis
or
principle.
Suppor
ted by the
philosophy of Emmanuel Lévinas, we present a perspective concerning the Western
philosophy that comprised, most of the times, totalitarian bases, concerned about the unit,
coherence and synthesis, dismissing, because of that, the singularities, the contradictions
and the diversities. We suggest the term
meta
-
archeology
to indicate a reality that begins,
but that is open to diversity, the difference, resistant to presenting itself as a paradigm.
The
hypothesis
that determined the beginning of our works, already influenced by the
philosophy of Emmanuel Lévinas and by the epistemology of the education of Paulo
Freire, brings as an answer to our thesis problem the following statement: The relationship
between the
alterity
and the exercise of the dialog enable and emphasize a meta-
archeology of the emancipative education, beyond the identity limits. On the other hand, it
is the autological rationality that begins and sustains, within the educational processes, the
interpersonal relationships excluding and resistant to diversity. In order to build a
methodology that would
organize
the approach of a subject in regards to a phenomenon
and, at the same time, offer sufficient elements to [dis]organize and [re]organize the
speech in view of future theoretical and practical constructions, we considered it is more
convenient to approach the questions raised by the phenomenological hermeneutics
of
Paul Ricoeur. The thesis was grounded on four main categories:
knowledge
and
autology,
on the one hand, and
alterity
a
nd
dialog
on the other hand. These are two cuts that tension
each other reciprocally. The comprehension of the first group of categories favors the
comprehension of the second one and vice-versa. The first group is understood as the
basis
or
principle
for
the education; the second one, as
meta
-
archeology,
something that is
beyond the principle (
arché
). The set of Lévinas categories has
alterity
as its central
category and articulator of the others: ethics and philosophy first, language, subjectivity,
autrem
ent
(different than being). The set of Freire categories has
dialog
as its central
category and articulates the others: freedom, social and political, justice, culture. With
these categories, we tried to build an educational theory that may enable ethical
learning
processes of
reception
and
commitment
with others and even enable learning for the
suspicion,
refractory to the will of power.
Key words:
Meta
-
archeology.
Alterity
. Dialog. Ethics. Education Philosophy. Emmanuel Lévinas.
Paulo Freire.
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S U M Á
R I O
INTRODUÇÃO
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
11
1
A DEMARCAÇÃO DE UM ITINERÁRIO
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
16
1.1
ACERCA DA PESQUISA .
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
.
16
1.1.1
Um perguntar sobre a educação. . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . .
16
1.1.2
O problema e as hipóteses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . .
20
1.2
A CONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA . .
. .
.
. . . . . . . . . .
. . . . .
23
1.2.1
O humano, criador de sentido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
26
1.2.2
Por uma ontologia do texto e do leitor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
32
1.3 UMA EPISTEMOLOG
IA AUTOL
ÓGICA . . .. . . . .
. . . . . . . . . .
. . .
38
1.3.1
Ontologia e verdade platônica . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .
1.3.2
A racionalidade moderno
-
cartesiana . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
1.3.3
A ontologia de Martin Heidegger . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
1.4 A TENSÃO PEDAGÓ
GICA: ENTRE O PODER
E O CUIDADO. . .
43
49
53
59
2
ALTERIDADE: UMA REFLEXÃO A PARTIR DE EMMANUEL
LÉVINAS
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . .
68
2.1 EMMANUEL LÉVIN
AS
UMA BREVE APRESENTA
ÇÃO . . . . . .
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2.2 A ÉTICA COMO F
ILOSOFIA PRIMEIRA .
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . .
73
2.3 A LINGUAGEM EN
QUANTO EXPRESSÃO AO/
DO OUTRO . . . .
80
2.4. A SUBJETIVIDAD
E
EM FAVOR DO OUTRO .
. . . . . . . . . .
. . . . . .
87
2.4.1
O problema do eu e do existir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
87
2.4.2
A subjetividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
98
2.5 ALTERIDADE: AP
ELO E RESPOSTA . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
103
2.6 DE OUTRO MODO
QUE SER:
AUTREMENT
. . . . . . . . .
. . . . . .
115
3
UMA HERMENÊUTICA ACERCA DO
DIÁLOGO
EM
PAULO FREIRE
. .
.
. .
.
. . . . .
.
. . . . . . . . .
.
.
.
. . . . . .
.
. . . . . . . . .
.
.
.
.
118
3.1
O DIÁLOGO COMO ED
UCAÇÃO E PRÁTI
CA DA LIBERDADE . .
122
3.2 O DIÁLOGO COM
O RELAÇÃO SOCIAL E P
OLÍTICA . . . . . .
. . .
127
3.3
A JUSTIÇA COMO CONCR
ETIZAÇÃO DO DIÁLOGO
. . . . . . . . .
133
3.4
O DIÁLOGO COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA
CONSTRUÇÕES INTERCULTURAIS
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
138
4
EDUCAÇÃO:
AUTREMENT
E
DIALOGANTE
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
148
4.1
OUTRAMENTE QUE SER
EDUCACIONAL . . . . . . . . . . . . . . . . .
4.1
.1
O movimento em favor do
idêntico
na educação
. . . . . . . . . . . . .
4.1.2
O movimento em favor da
alteridade
na educação . . . . . . . . . . .
150
153
155
4.2
E
DUCAÇÃO E ETICIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
157
4.3
UMA EDUCAÇÃO
OUTRAMENTE QUE SER
E DIALOGANTE . .
4.2.1
O
acolhimento
do outrem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
161
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10
4.2.2
O
compromisso
com o outrem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
4.2.3
Uma aprendizagem para a
suspeita
. . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.
163
165
CONCLUSÃO
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . .
170
REFERÊNCIAS
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . .
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INTRODUÇÃO
Foram muitas as vozes que se levantaram ao longo do estágio civilizatório que
chamamos de Modernidade para falar das possibilidades e dos limites da humanidade
a
fim
resolver seus próprios problemas.
Nu
ma delas, o sociólogo Max Weber discute esse
estágio da civilização como uma época que marcada por um grande “desencantamento”
do mundo, isto é, pela perda da fé nas metanarrativas que a construíram. Esse
desencantamento foi tratado de diferentes formas no âmbito das Ciências Humanas e
Sociais por pensadores renomados, como Nietzsche, Heidegger, Foucault, Habermas e
outros. Apesar das peculiaridades de cada um, encontramos, entre eles, um ponto em
comum: a desconfiança quanto aos seus fundamentos, ou seja, suas metanarrativas
fundadoras. A realidade não nos oferece a possibilidade de construção dos fundamentos
de forma imediata, essa é uma tarefa realizada por seres humanos e, nesse sentido,
podemos dizer que não apenas o mundo foi desencantado, mas o nosso olhar em relação a
ele.
A partir da segunda metade do século XX, foram ricas as possibilidades de
identificação das crises pelas quais passa a humanidade, seja de ordem social, política,
econômica, ambiental ou educacional. As “visões de mundo”, entendidas aqui como a
trama de representações, conceitos e valores, que dominaram o século passado, parecem
estar esgarçadas. O século XXI inicia-se com um forte apelo, vindo dos mais variados
recônditos do planeta, explicitados por textos acadêmicos, documentos de órgãos estatais
e organismos internaci
o
nais para análise dess
as crises. Todos eles chamam a atenção para
a necessidade de reexaminar, repensar e [re]fundar nosso processo civilizatório. Em outras
palavras, é preciso [re]encantar o nosso olhar.
Nesse processo, a educação desempenha um papel privilegiado. o se trata de
depositar na educação a responsabilidade da construção dessa revisão dos fundamentos,
mas contribuir para formar um novo olhar e criar alternativas de superação das crises.
Contudo, como bem lembra o Relatório Jacques Delors (1996, p. 11), “a educação surge
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como um trunfo indispensável à humanidade na sua construção dois ideais da paz, da
liberdade e da justiça social”. O que os cientistas sociais enfatizam é que não se
transforma uma sociedade e não se constró
em
novos horizontes culturais sem processos
pedagógicos, sem educação das gerações de hoje e de amanhã.
Estamos sendo desafiados continuamente a repensar as metanarrativas sobre a
educação, seus modelos, seus fins e meios. Dispomos, hoje, de um saber científico-
tecnológico extraordinário, como nunca se viu na história da humanidade. Todavia, é
possível constatar, tanto através das leituras proporcionadas pelos meios de comunicação
quanto pelas experiências do nosso cotidiano, que o “saber conviver com o outro” ainda
carece de
incentivo, “fundamentos” e perspectivas.
Assim, nossa pesquisa nasceu da seguinte inquietação: como a educação pode
contribuir para repensar e reconstruir as relações entre as pessoas, numa perspectiva mais
solidária, de maior respeito às diferenças, de ma
ior cooperação, com mais justiça e paz?
Perguntando sobre as causas das dificuldades dessa reconstrução, iniciamos uma
investigação filosófica acerca de referencias teóricos que fundamentam o agir
educacional, de modo especial, no que toca às relações intersubjetivas. Reorganizando
estudos e experiências, encontramos dois autores que, de certo modo, partilharam d
essa
mesma inquietação: o filósofo Emmanuel Lévinas e o educador Paulo Freire. O primeiro,
inquieto com o “esquecimento do outro” na tradição filosófica; o segundo, inquieto diante
dos mecanismos sociais, políticos e educacionais causadores de inúmeras formas de
opressão. Em diálogo com esses Autores, iniciamos a nossa pesquisa. E o problema que
orientou nossa investigação foi: Como a Filosofia de vinas, em diálogo com a Teoria
da educação, de Paulo Freire, ajuda a delinear “princípios” ou “fundamentos” e
transcend
ê-
los nas relações intersubjetivas presentes na educação?
Optamos por desenvolver uma reflexão que, ao tempo
em
que contemplasse a
import
ância dos fundamentos, também pudesse indicar os seus limites. Trabalhamos com
a
hipótese
de que as relações intersubjetivas, no universo educacional, são construídas
sobre dois grandes movimentos: um, que chamamos de ontológico, preso aos
fundamentos; out
ro
, que denominamos “meta-arqueológico”, que transcende a qualquer
princípio. O primeiro movimento aponta para o fortalecimento do próprio, da identidade;
o segundo, para o desenvolvimento de relações dialógicas e de alteridade.
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Acreditamos que esta pesquisa vem somar esforços no sentido de buscar uma
maior e melhor compreensão do que seja uma ação pedagógica atenta aos saberes
acumulados pela humanidade, aos que ainda estão em construção e, ao mesmo tempo,
esteja
m sensíve
is
às demandas sociais e consciente de sua responsabilidade em promover
relações de solidariedade e de justiça.
Os textos de Lévinas e Freire foram trabalhados mediante a hermenêutica sugerida
por Paul Ricoeur. Assim, nosso trabalho foi o de descobrir o sentido que esses Autores
buscaram imprimir aos textos escritos sem, contudo, deixarmo-nos aprisionar por eles.
Seguindo as suas pegadas, construímos novos sentidos, em vista de tratar o problema
levantado.
Tanto o problema
quanto
a hipótese demandaram argumentações e justificativas,
que procuramos desenvolver ao longo dos três primeiros capítulos. O primeiro foi
subdividido em quatro partes: um esclarecimento acerca do problema e
da
hipótese da
pesquisa e uma exposição acerca da hermenêutica ricoeuriana. A terceira, mais
importante, apresenta o que nós chamamos de epistemologia autológica, responsável pela
construção de discursos totalizantes. Por fim, ainda no final do
primeiro
capítulo, fazemos
uma breve digressão histórica,
para
situar como o movimento em favor do próprio e de
cuidado com
o outrem adquiri
u
feições pedagógicas.
O segundo capítulo trata de uma categoria central em nossa pesquisa:
a
alteridade
.
A reflexão que construímos acerca da alteridade ancorou-se na filosofia de Emmanuel
Lévinas. Nesse sentido, acabamos desenvolvendo, ta
mbém, uma crítica aos fundamentos e
à ontologia, nos moldes da filosofia levinasiana. A concepção de ética apresentada por
Lévinas é original e foi e
la
que nos serviu ao longo da tese. De modo que, para a
compreensão do conjunto de nosso discurso, tal categoria é imprescindível. Lévinas
desenvolve um humanismo, enquanto subjetividade aberta e em favor do outro. Talvez
seja essa a contribuição mais rica de sua filosofia.
A alteridade inaugura uma modalidade metafísica que permite ao sujeito
transcender a própria identidade sem cair numa realidade imaterial ou sobrenatural. E
sse
movimento transcendente remeterá o sujeito ao encontro com o outrem, numa relação de
acolhida e responsabilidade. Lévinas acaba construindo uma filosofia que subverte o
movimento ontológico de apropriação da diversidade. O movimento que ele chamou de
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autrement
(outramente), entendido como “outro modo que ser”, reflete a busca incansável
de fugir de uma filosofia que a todo tempo procura aprisionar o Outro no discurso. A
relação de alteridade constitui uma relação ética, de relação comprometida com o outrem,
que não tem origem numa certeza objetiva ou verdade demonstrada. A responsabilidade
para com o outrem é, nesse sentido, anterior a toda verdade e toda certeza.
O terceiro capítulo foi dedicado à hermenêutica acerca do
diálogo
em Paulo Freire.
Resgatar um sentido oferecido por esse educador acerca do diálogo não foi tarefa fácil. O
contexto social, político, cultural e filosófico em que os textos foram escritos coloca, para
o estudioso
de Freire, um desafio de grande monta. Nossa preocupação foi a de buscar um
sentido que não se limitasse aos contextos históricos específicos, onde os textos foram
produzidos e, tampouco, situá-lo nessa ou naquela corrente filosófica. Qualquer tentativa
de categorizar o pensamento de Paulo Freire implicaria em reducionismos inapropriados.
Buscamos, então, uma compreensão da teoria freireana a partir da perspectiva prática. A
questão a ser posta não devia ser mais “o que é educação?” ou, “o que é diálogo?”. A
pergunta a ser feita é: “Para que educação?” ou, “para que dialogar?”. A partir dessa
hipótese, de que os textos freireanos poderiam ser compreendidos a partir do mundo
prático, de homens e mulheres vocacionados ao compromisso de uns para com os outros,
nos contextos históricos em que se encontram, foi possível avançar e adentrar na obra
freireana, transcendendo, inclusive, os contextos específicos com os quais ele esteve
envolvido.
A partir daí, a categoria
diálogo
foi desdobrada em quatro outras catego
rias:
educação e prática de liberdade; relação social e política; promoção da justiça e, por
último, construção intercultural. Tais categorias não foram construídas em separado. O
leitor terá oportunidade de perceber que, na reflexão que construímos, a ped
agogia
freireana dialoga com a filosofia de E. Lévinas.
Encerramos nossa pesquisa arriscando apresentar uma teoria educacional a partir
de aprendizagens que superem o limite identitário dos modelos tradicionais, marcados
pela busca de fundamentos e pela racionalidade autológica. A educação que julgamos
necessária para o nosso tempo é aquela que fomente relações dialógicas, que promovam
responsabilidades singulares e coletivas, que propiciem experiências inclusivas e
interculturais. Nesse sentido, apresentamos três aprendizagens que, a nosso ver, podem
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desencadear processos dialógicos de compromisso com o outrem: aprender a
acolher
,
aprender a se
comprometer
com o outrem e, finalmente, aprender a
suspeitar
dos
conhecimentos que se apresentam como totalizantes
, resistentes à diversidade.
Esperamos que esta investigação seja propiciadora de reflexões, debates,
inquietaçõ
es e críticas. Que possa servir para repensar projetos e políticas educacionais,
em vista do comprometimento por aqueles e aquelas que se encontram em situação de
vulnerabilidade social, sob o risco de serem excluídos da possibilidade de uma
vida
digna
e boa devido à
ausência
de responsabilidade dos(as) que partilham
esse
mesmo mundo e
dão sentido a ele.
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CAPÍTULO 1
A DEMARCAÇÃO DE UM ITINERÁRI
O
1.1
ACERCA DA PESQUISA
1.1.1
Um perguntar sobre a educação
Ao longo das últimas duas décadas, temos presenciado uma preocupação
constante
, por parte de vários países, em conceber a educação como espaço para o
aprendizado/construção de saberes que possibilitem uma vida digna e justa. O relatório
para a UNESCO, coordenado por Jacques Delors, um dos mais importantes documentos
sobre a educação,
no final do século XX
, enfatiza o papel fundamental da educação para a
superação das crises contemporâneas e para a construção dos ideais de paz, liberdade e
justiça social.
Nesse relatório, a educação é vista, mais uma vez, como aquela capaz de conduzir
um desenvolvimento de consciências e sociedades mais sensíveis e mais aptas a fazer
em
recuar a pobreza, a exclusão social, as opressões, as guerras... Num mundo complexo e
constantemente agitado, caberá à educação fornecer, de algum modo, os mapas e a
bússola que permitam navegar através dele, em vista de um tempo
em
que homens e
mulheres possam compreender melhor o outro, construindo uma “aldeia global” mais
solidária.
Delors (1986, p. 87) salienta que a educação do futuro dever
ia
estar assentada
sobre quatro pilares para ser capaz de responder a esses desafios.
Portanto,
educação
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d
everia
se organizar em torno de quatro apren
dizagens fundamentais. A Comissão,
1
autora
do documento, deu mais importância a um dos quatro pilares, considerados por ela as
bases da educação. A ênfase foi dada ao “aprender a viver juntos”, desenvolvendo o
conhecimento acerca dos outros, da sua históri
a,
de
tradições e espiritualidade, de modo a
possibilitar projetos comuns apaziguadores. Os outros três pilares “aprender a conhecer”,
que diz respeito às capacidades e aptidões para a aquisição dos saberes codificados;
“aprender a fazer”, uma aprendizagem que faz do ser humano um contínuo aprendiz; e,
por último, “aprender a ser”, que visa a “realização completa do homem, em toda a sua
riqueza e na complexidade das suas expressões e dos seus compromissos”, enquanto
“indivíduo, membro duma família, duma coletividade, cidadão e produtor, inventor de
técnicas e criador de sonhos”. São quatro aprendizagens
interdependentes
umas das
outra
s. Entre esses quatro pilares, é possível estabelecer múltiplos pontos de contato, de
relacionamento e de permuta.
Não como passar por despercebida para o filósofo da educação a
correspondência desses pilares com as lebres questões kantianas: O que posso saber? O
que devo fazer? O que me é permitido esperar? O que é o homem? Com exceção da
terceira, as outras questões estão intimamente ligadas aos quatro pilares da educação
afirmados pelo Relatório J. Delors. O último pilar, assim como a última questão kantiana,
é central para a filosofia e para a educação. O ser humano, nesse sentido, pode ser
compreendido como aquele que está em processo de conhecer, de fazer, de esperar e, por
último, resumindo os três processos anteriores,
de
ser
.
que se perguntar sobre os fundamentos desses processos,
que
a nosso ver,
constituem
o papel da Filosofia da Educação. É um esforço teórico de tentar responder
sobre o lugar do ser humano na formação de referências intelectuais que permitam aos
aprendentes compreenderem o mundo onde estão inseridos e a se
comportarem
nele como
atores responsáveis e justos, com liberdade de pensamento, discernimento, sentimentos e
imaginação.
Do ponto de vista conceitual, a educação é, aqui, entendida como sendo
um
conjunto de processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
1
Utilizamos, ao longo de nossa pesquisa, as expressões “Comissão”, “Delors” e “Relatório”
para nos
referir
mos
ao texto encomendado pela UNESCO, intitulado
Educação, um tesouro a descobrir
.
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organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Sua característica principal
é a de ser um fenômeno intersubjetivo, permeado por relações de ensino-
aprendizagem,
por meio da qual
o diálogo encontra sua expressão maior.
A
educação põe o sujeito em relação com o conhecimento, com o mundo social e
com o mundo subjetivo, com suas potencialidades individuais para a aprendizagem, para o
trabalho, para o exercício da cidadania e para as relações entre os outros seres humanos
.
Nos
so propósito,
então
, é proceder a uma reflexão filosófica acerca da alteridade e
do diálogo no campo educacional. Num sentido amplo, podemos compreender a Filosofia
da Educação como um saber que interroga, desenvolve críticas e desperta inquietações no
int
erior do campo educacional. Trata-se de buscar e construir fundamentos que possam
legitimar os valores, os objetivos e a ações educacionais. E é nessa perspectiva que
empreendemos a tarefa de pensar a alteridade e diálogo, enquanto realidades
indispensávei
s às ações educativas.
Entendemos a filosofia como a reflexão do ser humano, através da análise e da
crítica, sobre o significado e os fundamentos de conceitos, crenças, convicções e
pressuposições básicas, aceitos por ele próprio ou por outros seres humanos. É comum,
para muitos autores da teoria da educação,
concebê
-
la
reduzida à ação escolar. Nossa
compreensão é de que a educação é algo que transcende os limites da escola e no
sso
propósito ao defender essa transcendência é contribuir para a elucidação e a clarificação
dos principais conceitos de educação, que busca o aprender a conhecer, a viver com o
outro
e a
,
ainda, aprender, como já ensinara Paulo Freire, a
ser humano.
A meta-arqueologia (termo que será esclarecido mais adiante) da Educação
proposta
neste trabalho, tomando como referência Emmanuel Lévinas e Paulo Freire,
objetiva
orientar uma reflexão filosófica sobre as questões colocadas pela necessidade de
olhar o Outro como fonte de uma aprendizagem que possibilita o ser humano a
ser mais.
Tentare
mos dialogar a filosofia de Emmanuel Lévinas com a Teoria da educação e
,
por que não dizer, visto que Freire desenvolveu uma reflexão de caráter sociológico,
didático, político, antropológico, relacionando-a sempre aos processos de ensino-
aprendizagem. Da conveniência de chamar de Teoria freireana, pois esta, apesar de
incluir a reflexão filosófica, incluiu outros saberes constituídos.
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Contudo, é apenas no contexto de discussões acadêmicas acerca do
conceito
de
Filosofia da Educação que faz alguma diferença designar posições que tratam da teoria da
educação e da Filosofia da Educação. É bastante problemático estabelecer os liames entre
esses dois saberes. Mesmo assim, consideramos importante e singular que indiquemos
claramente em que sentido um filóso
fo pode contribuir para es
s
e debate.
Entendemos que a "educação" é um vasto processo através do qual indivíduos
adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos considerados significativos para
sua existência
, e que todo processo educacional implica, por definição, a aprendizagem de
algum conteúdo, ou seja, envolve, necessariamente, alguma forma de aprendizagem. Mas
es
sa compreensão está fortemente ancorada à defesa de que a tarefa principal da Filosofia
da Educação seria munir o teórico da educação, independente de qual seja a área,
de
instrumentos conceituais primordiais para que a teoria que está sendo construída não deixe
de ignorar questões fundamentais relativas ao mundo educacional.
Quando
nos referi
mos
à Filosofia da Educação, não estamos
aludindo
àquele menu
de correntes filosóficas, associadas às outras tantas tendências pedagógicas, apresentadas
como conteúdos prontos e acabados, ligados a um passado distante, como se fosse um
museu de conceitos e teorias.
O nosso fazer Filosofia da Educação não tem a pretensão de apresentar um
conhecimento enciclopédico e, tampouco, de responder a todas as perguntas que brotam
no campo educacional. Nosso propósito é o de
pensar
a educação. Um pensar radical (que
busque a raiz) acerca de problemas presentes nas d
iversas práticas pedagógicas.
Temos consciência
de
que o pensar questionante não se faz fora da história da
educação, portanto não podemos ignorar perguntas e respostas de pensadores que nos
antecederam. Contudo, o recorte que fazemos das filosofias passadas é no sentido de
ajudar a compreender as causas, os fundamentos de problemas presentes e atuais, dos
problemas que emergem das práticas educacionais
.
Nosso interesse, ao tratar das relações intersubjetivas, em direção ao aprender a
viver juntos, é o de identificar alguns dos elementos ou “princípiosque promovem o
reconhecimento e o compromisso com o diferente, com o outrem, e quais os princípios
que promovem relações intersubjetivas, mas, ao invés de se voltarem para o outrem,
voltam
-
se e centram
-
se no
próprio Eu e no
conhecimento afirmado por ele.
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De modo que as relações intersubjetivas, poderão ser dialógic
as
e abert
as
às
diferenças ou autológic
as
, resistentes a qualquer racionalidade que se apresente como
outra. O nosso objeto, portanto, refere-se às relações intersubjetivas presentes no
universo da educação formal que ora se fundam no exercício do saber e de
“empoderamento”
2
do próprio, ora se “fundam” no exercício de compromisso e
solidariedade para com o outrem, em outras palavras, no exercício da
alteridade.
A perspectiva aqui trabalhada compreende a realidade de forma dinâmica. Nossa
pretensão não é de criar uma dicotomia ou dualismo entre dois fundamentos (uma meta-
arqueologia da educação, de um lado, e uma teoria da educação, de outro), mas indi
car
uma antinomia. Por antinomia queremos dizer que o exercício do saber, atrelado ao poder,
e o exercício da alteridade não estão sempre em oposição, como se um excluísse o outro.
Eles revelam movimentos distintos e que precisam ser identificados no processo de
ensino-
aprendizagem.
1.1.2
O problema e as hipóteses
O
problema
de uma pesquisa científica
é
a exposição clara de uma pergunta acerca
de um objeto.
Nesta
pesquisa o problema foi apresentado partindo da seguinte pergunta
:
Como a Filosofia de Lévin
as
, em diálogo com a Teoria da educação de Paulo Freire,
ajuda a delinear princípios” ou “fundamentos” e transcendê-los nas relações
intersubjetivas
presentes na educação?
Trabalhamos com a hipótese de que as relações intersubjetivas, no universo
educaci
onal, são construídas sobre dois grandes “fundamentos” ou sobre um fundamento
propriamente dito e sobre algo que está para além do fundamento. As aspas presentes nos
termos “princípios” e “fundamentos” indicam uma particularidade. Tais termos, como
veremos
mais adiante, não esgotam a realidade que promove relações de alteridade. É
2
Empregamos o termo
empoderamento
no sentido de “dotar de poder”. É utilizado numa perspectiva crítica de
revestimento de poder do sujeito sobre o outrem. Não ignoramos o significado dado, na década de 70, pelos
movimentos sociais e, posteriormente, pelas ONGs no sentido de superação das injustiças e das várias formas
de tiranias. Esse mesmo termo tem sido utilizado pelas agências de coorperação e organizações financeiras, a
exemplo do Banco Mundial, no sentido de uma racionalidade instrumental a ser ensinada para a superação de
situações limites. Sobre esta categoria no âmbito dos movimentos sociais vale a pena consultar o artigo de
Jorge O. Romano, “Empoderamento: recuperando a questão do poder no combate à pobreza”, In:
Empoderamento e direitos no combate à pobreza
. Rio de Janeiro: ActionAid Brasil, 2002.
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preciso outro
,
que indique esse algo que é anterior ao princípio. Como dirá Lévinas, algo
an
-
árquico, no sentido de se referir ao que está para além do princípio.
Acreditamos que esta pesquisa vem somar esforços no sentido de buscar maior e
melhor compreensão do que seja uma ação pedagógica atenta aos saberes acumulados
pela humanidade, aos que ainda estão em construção e, ao mesmo tempo, sensíveis às
demandas
sociais, consciente de sua responsabilidade em promover relações de
solidariedade e de justiça.
Uma contribuição que esta pesquisa traz e que revela uma possível originalidade
no campo educacional refere
-
se à desconstrução da categoria que se convencionou chamar
de
fundamento
ou
princípio
.
Ancorados na filosofia de Emmanuel vinas, apresentamos uma perspectiva
acerca da filosofia ocidental que constituiu, na maioria das vezes, fundamentos
totalitários, preocupados com a unidade, coerência e síntese, destituindo, por conta diss
o,
as singularidades, as contradições e as diversidades.
Portanto,
seguindo as pegadas deixadas por Lévinas, julgamos que os termos
fundamento
e
princípio
revelam-se inapropriados para se referir à realidade que sustenta a
ação pedagógica promotora de relações de alteridade. Isso porque todo o esforço teórico
de se buscarem os princípios de alguma coisa se instalará como
modelo
,
paradigma
e,
por isso
, refratário à diferença.
Propomos o termo
meta
-
arqueologia
para designar uma realidade que principia,
mas
que permanece aberta à diversidade, à diferença, resistente a se apresentar como
paradigma. Tal
meta
-
arqueologia
não poderá ser, pelo limite do discurso, um evento
teórico, mas prático. Melhor dizendo,
ético
. O evento ético, e aqui nos reportamos mais
uma
vez à filosofia levinasiana, é esse ir além ou aquém do fundamento que prima pela
identidade.
Preferimos o termo
meta
-
arqueologia
, e não,
arqueologia
porque o prefixo
meta
detém
um sentido que aponta para uma realidade que está para além
,
transcendente
. N
ão
o utilizamos aqui com o sentido, apenas, que aparece, por exemplo, em
meta
-ética, meta-
linguagem
, entendendo-o como uma reflexão crítica acerca do discurso que se construiu a
partir desses saberes. Queremos conservar o caráter transcendental desse prefixo, mas no
sentido de ir além da ontologia, dos fundamentos ou dos princípios. A partir da filosofia
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de E. Lévinas, é possível vislumbrar um
além
que, mesmo que sinalize uma referência ao
Infinito, não se perde num idealismo.
Esse
Infinito se manifesta no presente, no rosto do
outrem.
Então
, esse ir além não é apenas uma crítica aos fundamentos, embora também
seja
assim como a
arqueologia
, no sentido foucaultiano. Queremos enfatizar que o
ontológico, de afirmação dos fundamentos, é próprio da filosofia, portanto, mesmo que os
fundamentos possam se encontrar em crise,
e se
apresentar de forma polivalente ou plural,
a filosofia continuará sendo, em última análise, uma reflexão crítica acerca dos
fundamentos.
A filosofia levinasiana não nega, ao contrário, afirma, o caráter próprio da filosofia
e, nesse sentido, seu caráter ontológico. Contudo,
alerta
que é possível um ir além desse
movimento ontológico, além dos fundamentos. A intencionalidade desse ir além não se
constitui na construção de um
discurso
crítico a esses fundamentos pois, assim,
continuaria no âmbito ontológico. A proposta levinasiana é transcender à ontologia,
ir
além do discurso
.
O
que
, na perspectiva levinas
iana,
significa uma relação
de
responsabilidade entre o Eu e
o outrem
. Um evento, eminen
temente,
ético
.
Ao aproximar o prefixo
meta
do substantivo
arqueologia
, queremos ter
em
evidência
tanto a crítica aos princípios e fundamentos, presente na filosofia levinasiana,
como também a intencionalidade de ir além do próprio, ao encontro do outrem,
um
movimento não mais ontológico, mas ético. Portanto, ao conceber uma
meta
-
arqueologia
da educação
,
propomo
-nos a elaborar uma crítica aos seus fundamentos e, nessa mesma
reflexão, apontar uma possibilidade de fazer educação, de ir além dos princípios e d
as
identidades (sem ter que negá-las), construindo relações de compromisso e
responsabilidade social. A pedagogia freireana, nesse sentido, apresenta-se, aqui, como
uma dessas possibilidades.
A hipótese que marcou o início de nossos trabalhos, influenciados pela filosofia
de Emmanuel Lévinas e pela epistemologia da educação de Paulo Freire, traz como
resposta ao nosso problema de tese a seguinte afirmação: A relação de alteridade e o
exercício do diálogo permitem e marcam uma meta-arqueologia da educação
emancipatória, para além dos limites identitários. Por outro lado, é a racionalidade
autológica que principia e sustenta, no interior dos processos educativos, as relações
interpessoais excludentes e resistentes à diversidade.
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Apesar da existência dessa oposição, não é nossa pretensão construir uma teoria
que classifique a educação emancipatória, de um lado, e a excludente, de outro. Essa
oposição é compreendida enquanto antinomia, própria do agir humano e educacional.
Nosso objetivo é trazer elementos teóricos no sentido de construir projetos e ações
educativas que incluam o diferente, que instiguem ao diálogo e ao compromisso com o
outro.
Pretendemos, sobretudo, contribuir para que o
evento ético
, na perspectiva de Freire
e de Lévinas
, possa ser uma realidade mais comum em nossas práticas pedagógicas.
De modo que o que está em jogo na trama de construção de sentidos para a
educação não é apenas a sociabilidade, a transmissão/construção de saberes ou culturas. É
preciso que dotemos tais elementos de uma intencionalidade voltada para o compromisso
e
a
solidariedade, para a justiça e
a
promoção humana, razão por que não é
suficiente
qualquer sociabilidade, saber ou cultura. O nosso tempo nos desafia a ser com o outro,
responsabilizando
-
nos
por ele; desafia-
nos
a criar um saber que promova a vida de todos,
e não, a de alguns apenas; desafia-nos a construir uma cultura que seja acolhedora às
diferenças, dialeticamente marcada pela justiça e pela paz.
1.2
A CONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA
Para construir uma metodologia que
organize
a abordagem de um sujeito acerca de
um fenômeno e, ao mesmo tempo, ofereça elementos suficientes para
[des]
arrumar e
[
re
]or
ganizar o discurso em vista de futuras construções teóricas e práticas, julgamos mais
conveniente abordar as questões postas pela hermenêutica fenomenológica de Paul
Ricoeur.
A escolha se justifica pelas seguintes razões: primeiro, porque Ricoeur é herdeiro
da tradição fenomenológica, iniciada por Husserl e Heidegger. Sua forma de conceber o
termo
fenômeno
muito se aproxima da compreensão que fazemos acerca do fenômeno
educacional, enquanto realidade que, ora se mostra, ora se oculta, sujeita a uma
explicitação, a uma interpretação (RICOEUR, 1989, p. 71). Segundo, porque, apesar de
reconhecer a validade e
a
importância da fenomenologia, Ricoeur não se recusa a apontar
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os seus limites. Chama a interpretação husserliana de interpretação idealista (RICOEUR,
1989, p. 49).
Outra riqueza que enxergamos na teoria hermenêutica de Ricoeur diz respeito à
possibilidade de construir uma ontologia do texto, distinta de uma ontologia do leitor. O
texto, para Ricoeur, “é todo discurso fixado pela escrita” (RICOEUR, 1989, p. 141), ou
seja, antes de ser texto, existiu enquanto fala de um sujeito, situado historicamente, com
intenções e interess
es
, o qual imprime um sentido particular. O leitor, ao tomar um texto
nas mãos, encontra-se em um outro contexto histórico e, possivelmente, com outras
intenções e interesses, com outro sentido. Por isso “não poder dizer que a leitura é um
diálogo com o au
tor através da sua obra; é preciso dizer que a relação do leitor com o livro
é de uma natureza completamente diferente” (RICOEUR, 1989, p. 141). Essa dupla
ontologia do texto e do leitor permitiu
-
nos uma leitura dos textos
(
de Emmanuel Lévinas e
de Paulo F
reire
)
sem
que ignorássemos sua importância exegética
, possibilitando
-
nos
uma
perspectiva mais voltada para o nosso problema de tese.
Por último, uma outra razão que permite justificar o uso da hermenêutica
ricoeuriana como método da atual pesquisa é a
po
ssibilidade posta por Ricoeur
de
uma
hermenêutica da ação. Essa possibilidade, embora não tenhamos explorado, visto que
nossa pesquisa é de natureza teórica, sem um campo concreto a ser analisado, permitiu-
nos olhar para o universo educacional, mais especi
ficamente
, para as relações
intersubjetivas no processo pedagógico, e elaborar uma interpretação que permitisse
identificar alguns sentidos que se afixaram no agir educativo, fazendo parecer que, sem
eles, em vão seria o esforço pedagógico. Referimo-
nos
ao
caráter epistêmico de
exploração e construção do saber, no processo de educação formal. Assim,
teremos
oportunidade de expor
a interpretação que fazemos dessa “razão de agir” educacional
, que
está, na maioria das vezes, ancorada a um princípio que não acolhe o diferente nem se
responsabiliza pelo outro. Isso porque, apesar de o diálogo, enquanto encontro entre
falantes
, fazer parte de todos os processos educacionais, o diálogo acaba, muitas vezes,
servindo de instrumento de dominação do outro, daquilo que
ele é, pensa e sente.
A tese alicerçou-se em quatro categorias centrais:
saber
e
autologia
, de um lado, e
alteridade
e
diálogo
, de outro. São dois cortes que se tensionam reciprocamente. A
compreensão do primeiro grupo de categorias favorece a compreensão do segundo e vice-
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versa. O primeiro grupo é compreendido como fundamento
ou
princípio
para a educação;
o segundo, como uma
meta
-
arqueologia
, algo que está para além do princípio (
arché
).
Trata
-se de uma antinomia, cujo fundamento revela um movimento de volta a si, evento
ontológico; e a meta-arqueologia indica um movimento de saída de si, em favor do outro,
um evento ético.
A reflexão construída a partir das categorias
saber
e
autologia
teve outro objetivo:
o de situar o leitor menos familiarizado com a filosofia levinasiana acerca da crítica feita
por Lévinas à filosofia ocidental.
A pesquisa centrou-se, mais propriamente, no segundo grupo de categorias, que
tem
alteridade
e
diálogo
como bases que sustentam e articulam, a exemplo de um leque,
um conjunto d
e categorias levinasianas
,
e outro conjunto de categorias freireanas
.
O conjunto de categorias levinasianas tem a
alteridade
como categoria central e
articuladora das outras: ética e filosofia primeira, linguagem, subjetividade,
autrement
(de
outro modo que ser). O conjunto de categorias freireanas tem, por sua vez, o
diálogo
como categoria central, que também articula as demais categorias freireanas: liberdade,
social é político, justiça, cultura
.
Tais conjuntos de categorias são organizados na presente pesquisa, em princípio,
separadamente. Trabalharemos as categorias levinasianas num primeiro momento e, em
seguida, as categorias freireanas, sem uma articulação direta entre elas, o que se fará
somente ao final de nossa reflexão, permitindo ao leitor uma compreensão mais apurada
da tese que defendemos.
1.2.1
O humano, criador de sentido
O drama humano acerca do sentido da vida conta dos primórdios da sua existência.
Se nos reportarmos a alguns dos mitos da criação, veremos que, em grande maioria, o ser
hu
mano buscou dar sentido à própria vida e ao mundo que o cerca. Esse sentido estava
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fora. Ora, presente numa divindade, ora presente na força da natureza, ambas vistas com
poderes ocultos e extraordinários.
3
A novidade da modernidade foi situar esse sentido, não mais fora, mas na própria
humanidade. O advento do que se convencionou chamar tout court de modernidade pode
ser datado de 1629, ano em que Descartes escreveu as Regulae ad directionem ingenii
(Regras para a direção do espírito), ainda que viessem a ser publicadas somente depois da
morte do filósofo.
4
Nessa obra, encontram-se as premissas do que entendemos de
modernidade. Descartes, a partir da estrutura do “Eu penso”, instala o sujeito como
fundamento de toda realidade. O fundamento
onto
-
teológico
da metafísica clássica é
transformado em onto-antropológico, inaugurando um novo tempo filosófico, de
compreensão da realidade. Manfredo A. de Oliveira (1993, p. 73), citando Hegel, dirá que
“tudo na modernidade é concretização do princípio da subjetividade e passa pela
mediação subjetiva. Assim, todas as dimensões da vida do homem a religião, a
economia, a política, a moral e a arte foram radicalmente transfiguradas a partir do
princípio da subjetividade, horizonte fundante da cultura moderna”.
A partir daí, o homem já não precisava buscar o sentido da vida num deus
transcendente ou ficar amedrontado diante da fúria da natureza. A modernidade exilou as
divindades num panteão transempírico e acreditou ter subjugado a natureza, controlada
pela ciência a par
tir de então.
A ciência moderna fez questão de afirmar o seu poder em desvelar os segredos da
vida e do universo. O encanto parecia ter se quebrado. não havia segredos, mistérios,
poderes ocultos, tudo estava sob a lente crítica e impiedosa do poder ci
entífico.
O homem moderno, quando se instaura como princípio fundante, assume sobre os
próprios ombros o poder de dar sentido à própria existência. O sentido da vida não viria
mais do exterior, mas do próprio esforço. Sua mente, suas mãos, seus olhos e todo o seu
ser assumiam o poder de
[
re
I]
encantar
o mundo, a história.
3
A título de exemplos, cito o mito do Gigante do Gelo, Ymir
, da Escandinávia;
Num
, mito da Sibéria;
Os astros
do quinto mundo, da América Central; Muluku e os homens-
macacos
da África, e até mesmo o mito adâmico
dos judeus (Cf. RAGCHE, Claude-Catherine; LAVERDET, Marcel. A Criação do Mundo: Mitos e Lendas.
São Paulo: Ática, 1989.
4
Hegel reconheceu o s
urgimento da filosofia moderna a partir de Descartes (HEGEL,
Lições sobre a história
da
filosofia
. Col. Os Pensadores, III, 2). Também Heidegger, nas suas lições sobre Nietzsche (HEIDEGGER, M.
Nietzsche
), reafirmou o pensamento cartesiano como aquele que d
á início ao pensamento moderno.
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27
Não faltaram vozes, como a de David Hume
5
, para denunciar o caráter metafísico
do projeto moderno. Segundo Hume, tal racionalidade não repousava sobre um
fundamento empírico, o entendimento humano fazia, mais uma vez, um ato de numa
realidade não matematizável. A modernidade criara uma nova crença, carente de ser
demonstrada em seus fundamentos.
De qualquer forma, o projeto moderno, apesar de continuar com fundamentos
metafísicos, foi capaz de criar, no presente, os próprios fundamentos. Não precisava mais
recorrer às crenças herdadas de tradições passadas. A modernidade, desse modo, não se
livrou do mito, mas teve o orgulho de ter um mito criado por ela mesma. L. Feuerbach foi
um desses autores que conseguiu, com o uso da pena, deixar registrado esse novo
idealismo.
6
O projeto racionalista permitiu-nos muitos avanços: foi capaz de salvar muitas
vidas com o desenvolvimento das ciências, sobretudo as biológicas; trouxe mais
segurança com a capacidade tecnológica de calcular a realidade presente em vista de
inferir sobre o futuro; o iluminismo conseguiu derrubar os regimes absolutistas, ancorados
no poder religioso; as ciências humanas e sociais conseguiram revelar muitas das
artimanhas que n
os deixavam acorrentados, impossibilitados de agir por conta própria.
Se um legado deixado pela razão moderna, do qual não podemos nos livrar, é a
consciência de que somos criadores de sentido. Não somos dos que caracterizam a
modernidade tardia de niilista, mas acredit
amos
na capacidade humana de criação
ex
-
nihilo,
a partir do caos.
O esforço humano de dotar de um novo sentido o mundo, num projeto de
reecantamento da realidade, visto que não conta mais com o encanto oferecido pela
tradição religiosa, le
va
-
lo
a desenvolver um olhar sobre o mundo, que permita construir
interpretações que dêem sentido à vida humana. Esse olhar e essas interpretações estarão
sustentados pelo poder do
cogito
, pela própria subjetividade.
O Eu instala na realidade um sentido, posto por ele próprio. O exercício de
filosofar se atrela ao exercício hermenêutico e dele não conseguirá mais se afastar. A
filosofia moderna, nas teias do
cogito
cartesiano, revela-se, assim, como um enorme
5
Ver
Sobre o Entendimento Humano
, Seção IV.
6
Ver L. FEUERBACH, A
Essência do Cristianismo.
A
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movimento de interpretação do mundo pelo sujeito. Contudo, esse movimento
hermenêutico não foi uniforme. É mais apropriado falar de
hermenêuticas
(no plural).
Podemos identificar uma hermenêutica romântica, em Schleirmacher, uma histórica de
Dilthey, uma ontologia hermenêutica de Heidegger, uma hermenêutica filosófica de
Gadamer, uma hermenêutica crítica de Apel e Habermas e também uma hermenêutica
fenomenológica de Paul Ricoeur, com a qual trabalhamos nesta pesquisa.
Esses esforços ou movimentos interpretativos da realidade têm por finalidade
compreen
der o sentido oculto ou revelado existente nos seres ou, até mesmo, alterar ou
dotar de sentido algo que se apresenta ao sujeito. Daí poder ser possível dizer que o ser
humano é criador de sentido. Ele organiza, articula, separa, classifica, responde, perg
unta,
sintetiza, do modo como mais lhe convém, para encontrar ou dotar de sentido uma
realidade
.
O exercício de leitura do mundo é um exercício hermenêutico, interessado no
sentido, no significado das coisas. Não se trata apenas de compreender os sentidos, os
processos e as razões que nos levaram às crises atuais, mas, e, sobretudo, de erigir um
sentido que seja novo. Trata-se de perguntar: que sentido podemos criar a partir da crise
em que nos encontramos, a partir do caos que muitas vezes se revela?
O panorama político, educacional, social, econômico, ecológico e antropológico
revela
-se, aos nossos olhos, carregado de desilusões. Ficamos, muitas vezes, atordoados
diante de tamanha desordem. Porém, uma hermenêutica que nos faça mergulhar no
sentido de tal c
rise poderá nos ajudar a compreender as suas causas, mas pode nos sujeitar
à mesma ordem ou lógica que deu origem à tal crise.
A tese que desenvolvemos aqui faz uso da hermenêutica fenomenológica de Paul
Ric
oe
ur, pela qual optamos, devido ao modo como ele relaciona o sentido do
texto
(oferecido pelo autor) e o sentido da
leitura
(construído pelo leitor). Para Ricoeur,
a
interpretação é um caso particular de compreensão
,
é a compreensão aplicada às
expressões escritas da vida. A vida se expressa também através da escrita, e o discurso é
entendido como um
evento
(manifestação do ser), portador de sentido.
Sua hermenêutica, no entanto, o se limita a um vasculhar do texto em busca de
um sentido que lhe é inerente, embora isso também seja necessário. Ricoeur chama a
atenção para o sentido que brota do outro que faz a leitura do texto. Compreender,
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portanto, não é apenas repetir o
evento
(o da escrita) por um outro
evento
(o da leitura)
com o mesmo significado. Trata-se, sim, de
gerar
um
novo
acontecimento (ou
evento),
um novo
sentido
(RICOEUR, 2000, p. 83ss).
Para construir uma hermenêutica
sobre
o fenômeno de
sta
pesquisa, servimo-nos de
várias obras de Paul Ricoeur, contudo, vale destacar duas: Teoria da Interpretação
(original de 1976), tida como a que oferece uma explicação da unidade da linguagem
humana, não apenas a discursiva, como também Do Texto à Ação
(originalmente
publicada em 1986), obra que melhor recolhe o seu pensamento sobre hermenêutica.
A teoria hermenêutica ricoeuriana permite-nos uma leitura dos textos e da
realidade em vista da criação de sentido, e não, apenas, no aprisionamento de um sentido
oculto do texto ou do fenômeno analisado. Não que o sentido do texto não
tenha
sua
importância, mas porque tal sentido não é suficiente para responder aos desafios que se
descortinam em meio à crise de nosso tempo, entre eles, a crise dos fundamentos da
educação. É mister uma criação de sentido em meio ao caos que, muitas vezes, emblema o
nosso presente.
O mundo educacional contemporâneo impõe sobre as populações uma gama
enorme de problemas. No século XXI, ainda nos deparamos com o drama do
analfabetismo
, o acesso das crianças e dos adolescentes brasileiros ao ensino público e
gratuito de qualidade é uma reivindicação antiga, a natureza e a
intencionali
dade dos
currículos
escolares
continuam sujeitas às lógicas dominantes da economia, e a gestão,
desencontrada da educação pública nos âmbitos municipais, estaduais e federais. Essas e
tantas outras demandas revelam a amplitude e gravidade da crise na educa
ção.
Diante de tantos problemas, nossa opção foi nos concentrarmos num problema que,
a nosso ver, é fundamental. T
rata
-
se
das relações intersubjetivas e da relação interpessoal
entre educa
dor
-educando, educando-educando e educador-educador, o que nos leva
a
tratar do fenômeno educacional a partir de uma perspectiva ética. Acreditamos que a
educação não pode ser dissociada da esfera ética. Isso porque toda ação pedagógica é
teleológica, tem em vista um
fim
, um objetivo, que, em última análise, refere-se à
fo
rmação e/ou transformação do ser humano, um dever ser, enquanto indivíduo e como
ser social. O ser humano cresce e se desenvolve na relação com o outro. Trata-
se,
portanto, de um fenômeno eminentemente ético. De modo que, qualquer que seja a crise
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ética,
e
stará
ela
intimamente associada a uma crise educacional; uma crise que se refere
não apenas aos elementos operacionais, transitórios ou secundários, mas que se encontra
no cerne da educação. A nosso ver, a educação padece de um equívoco ético fundamental,
que
consiste numa dialética que põe o conhecimento como elemento determinante e
fundante da relação humana. O Bem, supostamente objetivo ou objetivado, impôs ao
sujeito uma ordem ética universal que nega as responsabilidades e peculiaridades do
sujeito ético, em sua singularidade. Na nobre intenção de relações intersubjetivas justas,
construímos uma objetividade que oprime as subjetividades.
Não queremos, com isso, defender o anarquismo enquanto ausência de princípio
objetivo. Contudo, julgamos que esse bem objetivo precisa passar pelo crivo da
responsabilidade ética do sujeito diante do outro. Nossa tese é de que o “bem” que afasta
o sujeito do compromisso com o outro é suspeito. É mister uma nova leitura acerca do
outro (ou uma releitura) na dialética educacional. A educação terá que conceber uma
dialética triangular entre
subjetividade
-
conhecimento
-
alteridade,
sendo que a relação
desses elementos, assim como procuraremos demonstrar, a partir da filosofia levinasiana,
não é simétrica. O outro assume lugar de preponderância. A ética, nesse caso, não é
apenas o desdobramento do Bem em normas, leis ou interditos, mas os transcende. O
Bem, aqui, transforma-se em responsabilidade, em bondade, em compromisso com o
outro.
Assim como foi dito, a teoria hermenêut
ica
, utilizada para trabalhar as fontes
textuais de Lévinas e de Freire, não teve como pretensão apenas compreender o
significado de categorias presas a textos passados. Nosso propósito foi estudar algumas
obras de Emmanuel Lévinas e de Paulo Freire com os olhos, mãos e pés e por que não
também o coração, presos no presente, em vista de arriscar um novo sentido que nos
permita enxergar e responder, de modo original, ao desafio ético-educacional que o nosso
tempo nos impõe. Para tanto, algumas categorias assumem maior relevância: A
lteridade,
Ética e Filosofia Primeira,
Linguagem, Subjetividade,
Autrement
(de outro modo que ser),
na filosofia de Lévinas; e D
iálogo,
Liberdade, Social e Político, Justiça, Cultura, na teoria
de Paulo Freire.
Estamos convencidos de que a filosofia levinasiana e a pedagogia freireana podem
nos ajudar no projeto de teorização de uma educação mais comprometida com o outro.
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Primeiro, porque a filosofia erigida por Emmanuel Lévinas nos ajuda a vislumbrar o
problema ético de uma nova per
spectiva.
Ao questionar a filosofia clássica, põe em
dúvida o primado e o poder da filosofia do Ser, ou seja, da Ontologia. Para
ele
, o Outro se
manifesta anterior a qualquer discurso ou conhecimento e, desse modo, será o evento ético
o elemento fundamental. A primazia encontra-se, portanto, no Outro, e não, no Ser. É
sobre essa alteração de princípio que se construirá toda a filosofia levinasiana.
A pedagogia de Paulo Freire exigiu de nós um cuidado especial, visto que, ao se
apresentar espaçosa e historicamente mais próxima, concorria com hermenêuticas mais
historiográficas, com cortes que não se conformavam com a leitura que nos interessa.
Procuramos, com todo o risco que isso implica, pôr entre parênteses os
acontecimentos
sócio
-políticos que cercam a pedagogia freireana para que pudéssemos resgatar um
sentido de educação, política e sociedade que atravessasse as várias fases de sua vida e de
suas obras. Com esse propósito, servimo-nos da categoria
diálogo
para construir nossa
hermenêutica e alinhavar os textos separados pelo tempo. E, apesar da distância temporal
entre
Pedagogia do Oprimido (1970) e Pedagogia da Esperança (1992), por exemplo,
elas conservam um núcleo que, a nosso ver, refere-se ao problema ético de cuidado e
responsabilidade do sujeito diante do outro, e desse, com os demais. A concepção de
coletividade e sociedade esfundada num humanismo ainda pouco cultivado entre nós:
do humano que se ocupa de seu semelhante e se responsabiliza por ele. Defendemos a tese
de que o diálogo, na pedagogia freireana, não é simplesmente uma troca de idéias,
conhecimentos e projetos, mas, antes de tudo, um compromisso com o outro e, mais
especificamente, com o outro “oprimido”, vulnerável humana, sócio e politicamente.
A filosofia de Emmanuel Lévinas e a pedagogia de Paulo Freire, apesar de um
passado próximo, não nos habilitam a responder aos problemas de hoje se ficarmos presos
às letras que eles nos deixaram. A riqueza de ambos os autores consiste em nos permitir
vislumbrar um novo horizonte a partir do s
entido que pudermos dar à vida de hoje, a partir
do texto de ontem. Como bem adverte Paul Ricœur, “o texto é mudo” (1976, p. 87). A
resposta que o presente nos cobra depende do sentido que nós formos capazes de criar
hoje, da compreensão do problema que hoje nos aflige e da resposta que hoje formos
capazes de dar.
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O texto que o leitor tem em mãos traz a ousadia de apresentar uma compreensão e
uma resposta nova. Não tem a pretensão de ser a única nem a melhor compreensão.
Contudo arrisca-se a oferecer um estudo aprofundado e crítico acerca do problema das
relações intersubjetivas, no seu desdobramento ético-educacional. Caberá, pois, ao leitor
avaliar se tal propósito foi alcançado a contento.
1.2.2
Por uma ontologia do texto e do leitor
Emmanuel Lévinas,
em
Ética e Infinito, levanta uma questão que pouco foi
explorada pela Filosofia, a ontologia do livro ou do texto. Ele concebe que o livro está
longe de se limitar a uma fonte de informações, a um “utensílio” para aprender e, muito
menos, a um manual. O livro é, na sua concepção, “uma modalidade do nosso ser”
(LÉVINAS, 1988, p. 15), ou seja, o ser humano se revela, manifesta
-
se e atualiza o seu ser
também
pela escrita e pela leitura.
É evidente que essa ontologia não está dissociada de uma ontologia da ling
uagem.
O iletrado ou analfabeto revela-se, atualiza-se enquanto ser humano por meio da
linguagem, não exclusivamente por meio da linguagem escrita. Como afirmava
Aristóteles, “o ser se
diz
de muitas maneiras”. Nesse caso, a escrita e a leitura são uma
mane
ira
, dentre outras, de
dizer do ser
.
Se a leitura é um modo de ser, é preciso compreender o que isso significa. Daí a
importância de uma ontologia do leitor que está intimamente associada à ontologia da
escrita ou do texto. Afinal, em que consiste esse rev
elar
-se por meio da leitura? E, mais
concretamente, a leitura que nos propomos a fazer para a realização desta pesquisa
poderá, de fato, revelar o nosso ser? Acreditamos que sim. Mas não como um exercício
narcíseo
, que nos levaria a um relativismo científico sem limite. É preciso não se
desprender do problema que instiga a nossa tese. O modo de ver o problema e de buscar
uma resposta, sim, revela a nossa originalidade, o nosso modo de ser diante do fenômeno
em questão.
O
posiciona
mento
diante do problema e a hermenêutica que sustenta a
respost
a transformam-se em conjectura. Apesar de não haver regras para fazer boas
conjecturas, métodos para validar as conjecturas que fazemos. Ricoeur busca, através
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da dialética entre
explicação
e
compreensão
construir um método de validação de
conjecturas.
De qualquer modo, tal processo hermenêutico continuará sendo um procedimento
argumentativo, o que não deixa de ser científico. Uma cientificidade passível de ser
criticada e até falseabilizada. A hermenêutica que fizemo
s acerca dos textos levinasianos e
freireianos constitui uma conjectura, um argumento. Para a construção dessa
argumentação, nos servimos de Paul Ricoeur no que diz respeito às ontologias da
escrita
e
da
leitura
. Vejamos, primeiramente, o que significa ess
a ontologia da escrita.
Na hermenêutica ricoeuriana, a idéia de
autor
está intimamente associada à idéia
de
texto
. O autor é aquele que transpõe para a escrita um
dizer
, uma fala. Ele transforma
um discurso, pronunciado física ou mentalmente, em texto. Uma análise preliminar
poderia nos levar a conceber a função da escrita apenas em dois sentidos: da conservação
do discurso, fazendo dele um “arquivo disponível para a memória individual e coletiva”
(RICOEUR, 1989, p. 143), e a
eficácia
, uma vez que, por meio da escrita, é possível uma
tradução analítica e distintiva, própria de uma análise do discurso.
Contudo, Ricoeur chama a atenção para o fato de que a
escrita
opera uma
“verdadeira transformação tanto da relação entre a linguagem e o mundo como da relação
entre a linguagem e as diversas subjetividades envolvidas, a do autor e a do leitor”
(RICOEUR, 1989, p. 143).
A relação entre autor e leitor é bastante diferente da relação dialógica, em que os
falantes encontram-se no mesmo tempo e numa mesma relação referencial. Por
relação
referencial
, Ricoeur entende a realidade a que se refere o discurso, de modo que, ao falar,
falamos de algo, indicamos algo, miramos um alvo do mundo. O nosso interlocutor,
aquele que participa do diálogo, tem presente, portanto, o mesmo alvo. Essa referência
comum entre os falantes não se verifica na relação autor-leitor. O diálogo é quebrado pelo
texto. Sem um interlocutor preciso, o texto fica suspenso, sem um mundo concreto e
circunstancial.
O texto, nesse sentido, adquire certa autonomia em relação ao autor. Quando leio,
o me encontro diante de um Tu, como ocorre no diálogo. Diante desse
acontecimento, Ricoeur
(1989, p. 149).
Identifica
duas possibilidades:
primeiro “po
demos,
enquanto leitor, permanecer na expectativa do texto,
tratá
-
lo como texto sem mundo e sem
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autor; explicamo-lo, então, pelas suas relações internas, pela sua estrutura”. Segundo
“podemos levantar o suspense do texto, consumar o texto em falas, restituindo-o à
comunicação viva; nesse caso, interpreta
mo
-lo” E Ricoeur acrescenta: “Estas duas
possibilidades pertencem ambas à leitura, e a leitura é a
dialética destas duas atitudes”.
É esse duplo movimento que constitui a hermenêutica ricoeuriana. Se nos
fixássemos
no primeiro plano (a do texto) corre
ríamos
o risco de ficar numa exegese
distante do nosso mundo. Em compensação, se nos fech
ássemos
no plano do leitor,
cairíamos num subjetivismo ou relativismo sem fundamentos epistemológicos.
A primeira possibilidade leva a um modo de leitura
pedindo
para nos transferirm
os
para o mundo do autor. Trata-se de uma busca da mesma referência tida pelo autor. O
leitor faz a opção de colocar-se na situação, no ambiente e nas circunstâncias em que a
escrita foi realizada. Ricoeur (2000, p. 85) chama a atenção de que tal projeto é possível
,
l
egítimo
e necessário, pois é desse esforço que é possível uma
explicação
do texto que,
segundo Ricoeur, refere-se, justamente, ao tratamento de um texto, inserido num tempo e
numa língua determinada, obedecendo a regras que a lingüística impõe, ou seja, a
explicação visa mais
à
estrutura anal
ítica do texto.
A outra atitude em relação ao texto é o que Ricoeur chama de
interpretação
.
Enquanto na explicação é o leitor que se transfere para o mundo do texto, na
interpretação, o que acontece é o texto que se transporta ou se
atualiza
para
o mundo do
leitor
e, nesse sentido, adquire um caráter de abertura e de originalidade, mediante a
leitura. A interpretação recupera a dinamicidade do texto, ganha nova referência, a do
leitor. O texto torna-se, mais uma vez, acontecimento, rompendo os limites estruturais de
uma língua.
Tal ruptura, no entanto, na perspectiva de Ricoeur, não é excludente, ou seja, a
interpretação não se furta às regras lingüísticas. Uma interpretação não pode subverter a
língua e as regras lingüísticas de um texto, e não se fixa aí. Para Ricoeur, a interpretação
pressupõe um primeiro momento, uma
explicação
aproximativa que nos permite
identificar não apenas um sentido que está afixado no texto, mas uma análise que nos
permite identificar o seu oriente, ou seja, o norte, o horizonte que ele aponta. Um
horizonte indicado pelo texto, mas possível de ser percorrido, não mais reproduzindo as
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pegadas do autor, mas com os passos, muitas vezes titubeantes, do leitor (RICOEUR,
1989, p. 159).
O exercício hermenêutico refere-se a um
re
-
dizer
do que fora
dito
(escrito). O
hermeneuta recupera o movimento do texto (RICOEUR, 1989, p. 159). E é nesse sentido
que o texto se imortaliza, pois é revitalizado pelo hermeneuta.
A hermenêutica ricoeuriana desen
volve
-se, assim, através de uma dialética.
Ricoeur considera que o
explicar
e o
compreender
não constituem pólos de uma relação
de exclusão, “mas momentos relativos de um processo complexo a que se pode chamar de
interpretação” (RICOEUR, 1989, p. 164).
A concepção de
ser,
presente na obra de Paul Ricoeur, vincula sua hermenêutica,
ainda que com afastamentos e críticas, à fenomenologia husserliana. O ser é um evento,
algo em movimento, um constante vir-a-ser. Apesar de abandonar a subjetividade e o
idealismo
presentes na fenomenologia de Husserl, Ricoeur conjuga uma ontologia da
compreensão
, que concebe a verdade como desvelamento, com a exigência metódica e
crítica das ciências humanas, que exige
explicação
.
Para compreendermos a ontologia do texto, desenvolvida por Ricoeur, é preciso
inicialmente nos ater à
linguagem
enquanto fenômeno que comporta um sentido aberto e
dinâmico. E o evento da linguagem é o discurso, o
dizer
. Contudo, se limitarmos esse
dizer
a um tempo e a uma ambiência específica, acabamos retirando o caráter de abertura
do discurso e, ao invés de o
dizer
nos trazer um horizonte, ficamos com a sombra da
parede da montanha que nos impede de ver mais além.
Poderíamos nos perguntar: Será a
escrita
a instância capaz de apresentar um
horizonte, de salvar a significação do discurso? Para Ricoeur, “o que escrevemos, o que
inscrevemos é o
noema
do ato de falar, a significação do evento lingüístico, e não, o
evento enquanto evento” (RICOEUR, 2000, p. 39). A escrita, assim, conserva o sentido
que, caso se limitasse na fala, se desvaneceria. “As palavras voam”, como diz a poetisa.
7
Contudo, o que a escrita conserva não é apenas o que a voz humana, a expressão facial e
os gestos exteriorizam. O texto vai além, ele alarga o sentido da oralidade, extrapola o
horizonte vivido pelo autor. A ambiência do falante não é tatuado no texto, de modo que o
7
O
provérbio popular que diz que “A
s palavras voam” é o título de um livro da poetisa Cecília
Meireles, pela editora Moderna.
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que se conserva não é mais apenas o que o locutor quis dizer, o texto adquire
autonomia.
A autonomia semântica do texto torna a relação do evento e significação
mais complexa e, nesse sentido, revela-a como uma relação dialéctica. O
significado autoral torna-se justamente uma dimensão do texto na medida
em que o autor não está disponível para ser interrogado. Quando o texto
não responde, então tem um autor, e não já um locutor. O significado autoral
é a contrapartida dialéctica da significação verbal e tem de construir-se em
termos de reciprocidade. Os conceitos de autor e de significado autoral
suscitam um problema hermenêutico contemporâneo do de autonomia
sem
ântica (RICOEUR, 2000, p. 42).
O texto expõe uma outra relação, diferente daquela que encontramos no diálogo. Já
não é mais um falante diante de um ouvinte. O texto possibilita uma relação entre
autor
e
leitor
. “Enquanto o discurso falado se dirige a alguém que é previamente determinado
pela situação dialógica
é dirigido a ti, à segunda pessoa
um texto escrito dirige
-
se a um
leitor desconhecido e, potencialmente, a quem quer que saiba ler” (RICOEUR, 2000, p.
42).
A distinção entre uma ontologia do texto (autor) e a do leitor pode ser
compreendida, também, a partir da distinção entre
sentido
e
referência.
Enquanto que,
num discurso falado, podemos mostrar a coisa referida, quando o meu interlocutor
encontra
-se na mesma situação que o falante, o mesmo não ocorre com a linguagem
escrita.
Entre autor e leitor, não verificamos uma situação comum espaço-temporal; a voz,
a face e o corpo de ambos não se encontram no mesmo ambiente. Essa mudança de
referência impõe a necessidade de uma interpretação. “A hermenêutica começa onde o
diálogo acaba” (RICOEUR, 2000, p. 43).
Quebrada a ambiência comum, própria da situação dialógica, o texto permite
descortinar um horizonte de referências, capaz de “ler” e compreender o mundo a partir de
vários sentidos. Ricoeur lembra H
eidegger
, ao dizer que o que o discurso revela não é
uma pessoa, mas um projeto. No caso do texto escrito, o que está sendo revelado não é um
autor, mas um
projeto aberto
de compreensão e construção do mundo.
A importância da hermenêutica ricoeuriana para a nossa pesquisa consiste nessa
autonomia semântica. O leitor, ao se debruçar sobre um texto, abrir-se diante dos seus
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olhos um horizonte de sentido que, nem sempre, o autor do texto teve a intenção de
indicar. Os textos levinasianos, bem como os de Paulo Freire, abrem-nos, hoje, um novo
horizonte de sentido. Aliás, o próprio Freire chama a atenção em O Ato de Ler
de
que um
dos propósitos da leitura é essa construção de sentido: “ler é, em última instância, não
uma ponte para a tomada de consciência, mas também um modo de existir no qual o
indivíduo compreende e interpreta a expressão registrada pela escrita e passa a
compreender
-
se
no mundo” (FREIRE, 1996, p. 45).
Mesmo atento à semântica dos textos desses autores, percebemos que eles nos
permitem vislumbrar um sentido original para o problema da alteridade e do diálogo no
contexto educacional. Nesse sentido, mais do que nos fixar no sentido que Emmanuel
Lévinas e Paulo Freire tiveram ao registrar as suas idéias, estamos preocupados em
descobrir como esses autores podem nos ajudar a descortinar um novo olhar acerca das
relações intersubjetivas nos processos educativos.
1.3
UMA EPISTEMOLOGIA AU
TOLÓGICA
Lembramos que ao traçar nosso itinerário metodológico, dissemos que nossa
reflexão repousava sobre dois grupos de categorias. A primeira referindo-se às categorias
saber
e
autologia
e, as outras,
alteridade
e diálogo. Damos início, nesse tópico, ao
primeiro grupo. Nosso objetivo, nesse momento, além de refletir sobre o caráter
fundamental exercido pela razão epistêmica, procura introduzir o
leitor
, menos
familiarizado com a filosofia levinasiana, acerca da crítica que ele faz sobre a filosofia.
A atenção ao problema de nossa pesquisa nos levou à hipótese de que a falta de
cuidado e de compromisso com o ou
tro está associada a um modo de pensar, de sentir e de
agir, enraizado em nossas práticas pedagógicas. Tal prática revela-se mais resistente ao
diálogo e mais propensa ao que chamamos aqui de
autologia
. Um termo emprestado da
lingüística
,
que diz respeito
à proposição circular que afirma algo que já afirmara, também
denominada de
tautologia.
A
autologia
é entendida aqui como movimento de uma lógica que se envolve com
a própria razão de ser; uma lógica que desencadeia um movimento de retorno a si
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constante;
uma lógica que toma como sentido válido apenas o que tem origem e fim em si
mesma. A essa lógica chamamos de
autologia
ou epistemologia autológica, assunto deste
terceiro tópico.
Apesar de Aristóteles ter definido o ser humano como animal racional (
zôon
lo
gikón
), ser
ético
-
político
e como ser de paixão e de desejo (LIMA VAZ, 1991, p. 38-
43), foi a primeira definição que mais se difundiu na cultura ocidental. Se pedirmos para
uma criança da primeira fase do Ensino Fundamental uma definição de ser humano,
pro
vavelmente dirá: “animal racional”. Essa definição aristotélica tornou-se muito mais
popular. A dimensão ético-
política
(embora pressuponha o ser racional) e o lado
apaixonante, visto por Aristóteles como “irracional” (
alógôs
), ficaram em segundo plano
e,
muitas vezes, esquecidos.
O caráter racional do ser humano tornou-se seu distintivo, aquilo que o diferencia
dos demais seres vivos. Os sentidos, comum a todos os animais, ganham um significado
extraordinário quando estruturados pelo entendimento, já diri
a Kant. Com o uso da Razão,
o ser humano ultrapassa os limites da sua animalidade e é capaz de transformar o que
existe e construir um novo mundo. O resultado dessa operação é o que chamamos de
conhecimento
.
A razão duela com a ingenuidade. Enquanto o saber ingênuo não tem consciência
do seu fim, o saber racional é intencional, têm propósitos, interesses. O interesse
primordial do conhecimento é manter-se enquanto tal. A razão não admite ser
inverossímil. Ela luta para ser válida, verdadeira. Em outras palavras, o conhecimento
busca a auto
-
justificação pelo próprio exercício da razão.
A esse exercício que o conhecimento tem de se justificar por meio da razão,
chamamos de
epistemologia
: discurso racional acerca do conhecimento ou, como alguns
preferem, filosofia da ciência. Ora, se a justificativa do conhecimento é possível pela
razão, ela se volta sobre si mesma. O que sustenta, então, a razão que justifica? A própria
razão.
Os positivistas discordarão, afirmando que é a experiência que sustenta a teoria.
Isso é verdade até certo ponto. Um conjunto de experiências confirma
uma
teoria, contudo
é a teoria que seleciona as experiências válidas, considerando algumas e excluindo outras.
Tanto a teoria como as experiências são desenvolvidas de dentro de uma lógica, de uma
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concepção de mundo, de ser humano, a partir de uma determinada perspectiva. Thomas
Kuhn chamou esse conjunto coerente de princípios, proposições e experiências de
paradigma
(KUHN, 2003, p.
217
-
257
).
O paradigma nada mais é do que a relação coerente entre teoria e experiência para
afirmar e justificar algo. Para tanto, serve-se de
métodos
que validam o processo de
construção do conhecimento, os quais o também coerentes com a teoria e as
experiências. O
método
também faz parte do todo coerente do paradigma.
É nesse sentido que podemos dizer que, com exceção do que o mesmo Thomas
Kuhn chamou de Revolução Científica, a epistemologia tende a ser
autológica
, ou seja,
seguir a própria lógica. As justificativas que sustentam um determinado conhecimento
estão ancoradas na mesma racionalidade. Uma vez longe do porto seguro da razão, o
conhecimento dilui
-
se, volubiliza
-
se, perde o seu sentido.
É importante que se diga que não é o nosso propósito, aqui, fazer nenhum juízo
moral acerca do conhecimento. Não se faz ciência de outro modo. É preciso delimitar o
universo, definir métodos, construir conceitos. É assim que o conhecimento tem avançado
para o bem-mal da humanidade. A ambivalência do ser humano, apontada por Aristóteles
entre
zôon logikón
e
zôon alogikón
,
estende
-
se à sua obra.
Contudo é importante desvelar esse caráter autológico do conhecimento científico
e também da filosofia e suas implicações no campo educacional. A crítica feita por
Emmanuel Lévinas à racionalidade herdada da filosofia grega refere-se justamente ao
aspecto autológico de ver, pensar e falar da realidade. Paulo Freire enfatizou esse caráter
epistemológico da educação: “A educação dialógica é uma posição epistemológica e não
uma invenção bizarra ou uma prática estranha vinda de uma parte exótica do mundo [...]
Isto é um debate sobre epistemologia” (SHOR; FREIRE, 1986, p. 125).
Segundo Lévinas, a epistemologia que tem dominado a racionalidade ocidental
revela uma atitude filosófica narcisista, pois o diferente, o outro, como obstáculo e,
para superá-lo, sua estratégia será neutralizá-lo ou integrá-lo no Mesmo. A verdade, nesse
caso, “é precisamente essa vitória e essa integração” (LÉVINAS, 2001, p. 231), em outras
palavras, a sua inserção no interior do paradigma.
Nessa perspectiva, toda realidade passa a ser
compreendida
no movimento
dialético que reduz todas as coisas, todos os seres ao Mesmo, a uma mesma Totalidade.
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Descarta
-se, assim, qualquer realidade que seja outra,
desconhecida,
impossível de ser
inserida no sistema. Trata-se de uma relação de poder sobre a realidade, em que tudo
passa a ser identificado no interior da alma socrática ou do cogito cartesiano, como
veremos mais adiante.
Os projetos pedagógicos desenvolvidos a partir dessa epistemologia autológica
tende
m a construir relações interpessoais voltadas para uma mesma racionalidade ou para
um mesmo modo de ser, agir e sentir. As diferenças, ao longo dos processos, são
neutralizadas em vista de uma unidade ou modelo.
Porém, essa postura filosófica e pedagógica não é uma at
itude inocente ou ingênua.
Essa redução da diversidade à unidade, do Outro ao Mesmo, é fruto da liberdade e
significa o poder da filosofia e da educação de domesticar, possuir o diverso, em
apropriar
-se do Outro. E isso é, de algum modo, traduzido historicamente através de
regimes totalitários, de políticas de dominação.
8
Acreditamos que a falta de diálogo e de compromisso com o outro tem suas raízes
nesse modo de construir o conhecimento que, por sua vez, está em íntima relação com a
educação. A ação pedagógica, nas suas mais variadas formas, justifica-se pela
epistemologia. Freire não ignora esse caráter epistemológico da educação, deixa isso
muito claro, por exemplo, na entrevista que concede a Lígia Leite:
A educação, qualquer que seja ela, é sempre uma certa teoria do
conhecimento posta em prática, o que coloca o problema de perguntar o que
é conhecer, como conhecer, em favor de quem, contra quem conhecer; em
favor do que, contra que conhecer. Nesta séria de perguntas se revela a
impossibilidade da neutralidade do ato de conhecer, portanto, da educação
(LEITE, 1979, p. 59).
Se a educação tem como principal função social a passagem ou “entrega” do
conhecimento de uma geração para outra mais jovem, não podemos ignorar o modo como
esse conhecimento se for
mou ao longo dos séculos.
A epistemologia, que se plasmou no mundo ocidental, tem raízes na Grécia Antiga,
na construção do discurso filosófico, com o primado da razão epistêmica. O cristianismo
8
Para Lévinas, essa postura filosófica passa a estabelecer uma equivalência entre
coisas
e
idéias.
“As coisas
serão idéias e, ao longo de uma história econômica e política na qual esse pensamento se terá desenvolvido,
serão dominadas, conquistadas, po
ssuídas” (LÉVINAS, 2001, p. 232).
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absorveu tal racionalidade e, quando se tornou religião do Império Romano, difundiu-
se
pelo
O
cidente e, sobretudo, pela Europa.
A Idade Média forjou inúmeras tentativas de conciliação de duas lógicas: a grega e
a
judaica
-cristã, entre razão e fé. Uma das tentativas de separação dessas duas lógicas e
que acabou sendo mais difundida no campo filosófico, ocorreu apenas no início da Idade
Moderna, com René Descartes (1596-
1650)
, c
om
quem
a racionalidade grega ganha
fôlego e consegue, em grande parte, desvencilhar
-
se das amarras religiosas.
Com novo fôlego, a filosofia ganha impulso e passa por um período de grandes
produções e de brilhantes pensadores. Os debates entre racionalistas e empiristas provoca
uma riqueza filosófica e bibliográfica imensurável. Outro impulso é provocado pelo
idealismo alemão, que nos lança numa pluralidade de idéias, concepções de mundo e de
homem,
provocando o surgimento de mentes como as de Nietzsche e de Heidegger,
expoentes da filosofia contemporânea
.
Apesar da extensão da linha do tempo, das correntes filosóficas que mais se
destacaram, optamos por trazer três exemplos, por assim dizer, paradigmáticos, da
racionalidade ocidental: a ontologia grega, na perspectiva platônica; a racionalidade
moderna, a partir do
cogito
cartesiano e, por último, a ontologia heideggeriana, a que, ao
mesmo tempo em que serviu de inspiração a Lévinas, foi também vítima de duras críticas.
Acreditamos que esses exemplos sejam suficientes para ilustrar as raízes da
epistemologia que moldam grande parte da ação educativa de nossos dias, permitindo
compreender os pressupostos ou as raízes epistemológicas que configuram o pensar e o
agir pedagógico, resistentes ao diálogo e à atenção ao diferente, à responsabilidade para
com o outro.
Veremos, mais adiante, que a filosofia de Emmanuel Lévinas nos é importante, não
apenas por conta da crítica que elabora a racionalidade autológica, mas é, sobretudo, por
nos indicar um outro modo de ser e agir no mundo. Lévinas nos apresenta uma lógica que
não se conforma com a volta a si mesma. A lógica levinasiana nos empurra para o
encontr
o com o outro. E, nesse sentido, deixa de ser
autológica
para ser
dialógica.
A Epistemologia diz respeito à teoria ou filosofia acerca da ciência. Trata-se de
uma reflexão crítica sobre os fundamentos da ciência. É por essa razão que a pedagogia ou
ciênci
a da educação se ocupa dela. Um conhecimento que se proponha erigir como
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discurso ou como reflexão nos moldes científicos não poderá deixar de perguntar sobre
seus fundamentos epistemológicos. Aqui, importa-nos perguntar: Quais os fundamentos
epistemológic
os de uma pedagogia que se lança na aventura de construir uma ciência
acerca da educação?
É sabido que a fundamentação da educação não se restringe ao campo filosófico.
As ciências humanas e as biológicas oferecem à educação um conjunto de elementos que
pe
rmitem explicar, compreender e justificar as mais diversas ações educativas. Contudo,
nesta pesquisa, o que nos importa é construir uma reflexão filosófica desse
saber
-
fazer
educação, da práxis educativa.
1.3.1
Ontologia e verdade platônica
É muito comum a afirmação de que a filosofia platônica é uma das que mais
exerce
ram
influência na cultura ocidental. Somos da opinião de que, para desenvolver
uma reflexão filosófica a respeito dos fundamentos da educação, é imprescindível nos
reportar à cultura grega. Como não é nosso interesse fazer um estudo da educação antiga,
e sim, buscar alguns elementos que nos permitam compreender os fundamentos da práxis
educativa contemporânea, optamos, devido a questões metodológicas, por nos reportar
apenas à filosofia platônica e, mais especificamente, a um dos seus textos:
Teeteto
ou
Sobre o Conhecimento.
O leitor poderia se perguntar, por que não analisar o
Menon
que trata do problema
acerca do ensino-aprendizagem da virtude. Ou até mesmo a
República
, obra que poderia
te
r mais conexões com a educação. Queremos esclarecer que nossa opção por
Teeteto
foi
porque estamos trabalhando com a hipótese de que muitos dos limites éticos da educação
encontram
-se alicerçados numa epistemologia que estamos chamando de
autológica
. É
jus
tamente dessa epistemologia ou teoria acerca da verdade que trata o texto platônico
intitulado
Teeteto.
O problema que aparece no texto platônico diz respeito ao
conhecimento
ou à
ciência.
Trata
, mais precisamente, da oposição ou conformidade entre
conheci
mento
e
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sensação
, um problema que será também o tema do texto De Anima III 4-5, de
Aristóteles.
Sócrates é o personagem que carrega as palavras de Platão, e Teeteto é o seu
opositor, um sofista. A primeira questão que Sócrates dirige a Teeteto e que, a
nos
so
ver,
merece atenção, é o significado de “aprender”: “aprender não significa tornar-se sábio a
respeito do que se aprende?” (II, 145 d).
9
Imediatamente após es
s
a questão, Sócrates faz uma primeira provocação através da
afirmação “é pela sabedoria que os sábios ficam sábios”. E continua, em seguida, com a
pergunta: “É
a mesma coisa conhecimento e sabedoria?”
Como podemos ver, o problema tem início com uma série de termos que parecem
deter os mesmos significados: aprender, sabedoria, conhecimento. A questão central,
entretanto, refere
-
se ao “que é conhecimento”.
Teeteto começa a responder, dizendo que conhecimento é a geometria,
a
astronomia, o cálculo, a música (145 a), assim também como a arte dos sapateiros e a dos
demais artesãos (146 d). Todas essas podem ser consideradas, na opinião de Teeteto,
como conhecimento, separado ou particularmente.
Diante da resposta de Teeteto, Sócrates chama a atenção de que a sua pergunta não
se refere ao que é possível de ser
objeto
do conhecimento, mas ao que é conhecimento em
si mesmo
(146 e).
Ele
faz uma correspondência entre o
nome
e a sua
natureza
(147 b).
Depois de uma série de considerações a respeito da arte obstétrica que Sócrates faz
a seu respeito, volta à questão original, e Teeteto, convencido de que pode trazer à luz
uma verdade, responde que
conhecimento não é mais do que sensação
(151 e).
10
9
Para as citações do texto
Teeteto
, de Platão, utilizaremos a numeração marginal da edição elaborada pela
Editora da Universidade Federal do Pará (
EDUFPA).
10
Como sabemos, essa afirmação vai de encontro à filosofia pla
tônica. Citamos um trecho do
Fédon
(66 a), que
trata desse assunto:
“E por acaso não é verdade que poderá fazer isto da maneira mais pura aquele que, na máxima medida
possível, avizinha-se de cada uma das realidades unicamente com a razão sem apoiar-se, no seu
raciocinar, na visão ou em qualquer outro sentido e sem tomar nenhum outro para companheiro do
pensamento, mas usando a pura razão em si mesma e por si mesma, busca alcançar cada um dos seres
na sua pureza em si e por si, separando-se o mais que puder dos olhos e dos ouvidos e enfim, de todo o
corpo, na medida em que ele pertuba a alma e não a deixa, quando está em comunhão com ela, adquirir
a verdade e a sabedoria? E não é acaso esse, Símias, aquele que, mais do que qualquer outro, poderá
atingir a v
erdade?”
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Respondendo Teeteto, Sócrates apresenta uma citação de Protágoras, quando diz
que “o homem é a medida de todas as coisas” (152 a) e assemelha esta afirmação à
resposta fornecida por Teeteto. Isso porque o conhecimento equivale à aparência das
coisas, não ao que as coisas são em si, segundo a sua natureza, como antes afirmara
Sócrates.
Se aceitarmos a proposição de que “aparência e sensação se eqüivalem”, e se
admitimos que “conhecimento é o mesmo que sensação”, teremos que concordar que
nenhuma coisa é una em si mesma”, tudo devémnum constante movimento (152 d).
Sabemos que se trata de um raciocínio que não se conforma com a
Idéia
platônica;
11
ess
a
é
imutável
e
estável
. As
Idéias
12
têm uma realidade que não é arrastada no
vir
-a-
ser
e não
é relativa ao sujeito. Se assim não fosse, todos os nossos conhecimentos e as nossas
avaliações
(em particular, nossas avaliações morais) estariam carentes de qualquer
significado, e o n
osso falar não teria sentido algum (C
rátilo,
385e
-
386e).
Mas as palavras que Platão põe na boca de Sócrates revelam que também existe
uma realidade mutável. Sócrates apresenta a Teeteto três postulados, a saber: 1. Jamais
alguma coisa ficou maior, seja em volume seja em quantidade, enquanto se manteve igual
a si mesma; 2. Uma coisa a que nada se acrescente e de que nada se tire não aumentará
nem desaparecerá, porém continuará sempre igual. 3. O que não existia antes, não poderia
ter existido sem formar
-s
e ou ter sido formado.
Todas essas afirmações (T
eeteto
, 155 a-b) confirmam a
Idéia
enquanto imutável e
estável. Porém, Sócrates apresenta o caso dele, apesar de ser atualmente maior que
Teeteto
; após um ano, virá a ser menor. Não porque ele mesmo mudara, mas porque
11
Vale citar, ainda, a passagem do Fédon (78 c):
“- A realidade em cujo ser damos razão, formulando perguntas e dando respostas, mantém-
se sempre de
modo idêntico ou ora de uma maneira ora de outra? O Igual em si, o Belo em si e qualquer outra coisa
que
é em si, enfim o
ser
pode acaso sofrer qualquer mudança de qualquer tipo que seja? Ou então cada
uma dessas coisas que é, segundo a sua forma, é por si, sempre se mantém idêntica a si mesma e não
suporta alteração alguma de qualquer natureza que seja?
[ ... ]
- Se queres, estabelecemos portanto, acrescentou ele, duas espécies de
seres
:
uma
visível, outra invisível.
-
Estabeleçamos, respondeu.
-
E que o invisível se mantenha sempre idêntico a si mesmo, e o visível não.”
12
O vocábulo “Idéia” é a tradução dos termos gregos
idéa
e
eidos.
Segundo Reale, a tradução exata do termo
seria “forma”. Reale identifica seis características metafísico-ontológicas das Idéias platônicas:
inteligibilidade, incorporeidade, o ser no sentido pleno, imutabilidade, perseidade e unidade (REALE,
1994,
p. 64).
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Teeteto mudou. Portanto, houve uma alteração: o que antes fora maior, agora é menor.
Como explicar essa alteração?
A realidade, na filosofia platônica, é compreendida na existência de dois planos do
ser
(o ser visível, sensível) e o do ser supra-
físico
ou
metafísico
(o ser não-visível, não-
sensível). O ser sensível diz respeito ao mundo do
vir
-a-
ser
; enquanto o mundo do
ser
e
do imóvel é o mundo inteligível. Em outras palavras, o mundo das coisas sensíveis é que
possui as características que Heráclito e, sobretudo, os heraclitianos atribuíam a todo o
ser; enquanto é o mundo das Idéias que possui as características que Parmênides e os
eleatas atribuíram a todo o real (REALE,
1994, pp. 69
-
70).
E Sócrates dirige uma forte crítica aos primeiros, dizendo: “aqueles que só
acreditam na existência daquilo que eles são capazes de segurar com as duas mãos [...] são
gente de cabeça dura” (155 e 156 a), dentre eles, Protágoras. “Se a verdade para cada
indivíduo é o que ele alcança pela sensação; se as impressões de alguém não encontram
melhor juiz senão ele mesmo, e se ninguém tem autoridade para dizer se as opiniões de
outra pessoa são verdadeiras ou falsas, formando, ao invés disso, cada um de nós, sozinho,
suas opiniões, que em todos os casos serão justas e verdadeiras” (161 d), onde eso
mérito de Protágoras?
P
ois o que cada um diz é tão verdade quanto o que afirma.
Porém, apesar das críticas, o problema permanece presente no diálogo. Sócrates,
assumindo o discurso como se fosse Protágoras, afirma: “C
ada
um de nós é a medida do
que é e do que não é(166 d). Entretanto, cabe à educação passar os homens do estado
pior para o melhor, assim como o médico modifica o estado dos homens do pior para o
melhor, através de drogas. Mas a alteração, no que se refere ao conhecimento das coisas,
do pior para o melhor, não implica conhecimento verdadeiro, pois ninguém pôde levar
quem pensa erradamente a ter representações verdadeiras, pois nem é possível ter
representação do que não existe nem receber outras impressões além das do momento,
que são sempre verdadeiras
”. (167 b).
se coloca um outro lado do problema. Sócrates, falando no lugar de Protágoras
estabelece uma relação entre
representação
coisa existente. De acordo com esse
raciocínio,
não é possível ter conhecimento verdadeiro (representação) a respeito de algo
que não existe.
Por essa razão, a respeito de algo que não existe, o que irá ocorrer é que os
indivíduos detenham modos de pensar que sejam melhores que outros, porém jamais
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opiniões verdadeiras. Mas os que são capazes de apresentar e ensinar os outros a
emitirem opiniões verdadeiras. Esses são os sábios que
fazem
ser e parecer benéfico o
que até então lhes era pernicioso” (16
7 d).
Novamente, a relação entre
ser
e
parecer
. A alteração, conforme Protágoras, não se
apenas na
representação
, mas também no
ser
, pois é o indivíduo a medida de todas as
coisas, não apenas a sua representação, mas, numa relação de total correspondência ao
ser
.
O problema, ao que parece, não está na relação entre
representação
(conhecimento) e
ser
, mas no indivíduo que se afirma como medida do ser. “O que
aparece
para cada pessoa
é
,
realmente
,
como lhe aparece” (170 a).
A crítica de Sócrates é feita da
seguinte forma: as opiniões são facilmente possíveis
de ser contestadas por outras opiniões. Para uns, parecerão verdadeiras, para outros,
falsas, posto que “depende do critério pessoal a existência ou não existência de alguma
coisa” (171 a). O mesmo se aplica à posição de Protágoras, que pode ser declarada falsa
por qualquer outro indivíduo. Trata-se, portanto, de uma verdade para
ele
, mas, não
necessariamente
, para os demais que os ouvem. Sócrates conclui que essa verdade não é
verdadeira para ninguém,
nem para o próprio Protágor
as
(171c).
E, mesmo tomando o
movimento
como princípio de tudo (181 c), a resposta de
Sócrates será que “se tudo tem de mover-se e em nada imobilidade, tudo se move
sempre com todos os movimentos” (182 a). Se nada é imóvel, nenhum conhecimento
também poderá ser estável. De forma que não é possível afirmar algo que é, pois, ao estar
em constante movimento, virá a não ser e vice-versa. “Tanto faz dizer que uma coisa é
desse jeito com
o
o
daquele” (183 a).
O contrário é afirmar que “existe em nós um
princípio
, sempre o mesmo” (184 d),
com o qual é possível convergir todas as sensações. Trata-se, justamente, da
alma
que
apreende o que em todas as coisas é, examinando o ser. E somente ela pode atingir a
verdade de alguma coisa, em sua essência (186 b-
c).
O conhecimento, portanto, não se
encontra nas impressões, mas no raciocínio a seu respeito (186 d), e este se encontra
exclusivamente na alma.
E o diálogo prossegue. Platão coloca nos lábios de Sócrates um conjunto de
argumentos que visam desconstruir os argumentos dos seus adversários. O fundamento da
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sua argumentação é a sua ontologia, e a ontologia platônica é marcada por um forte
idealismo. A
idéia
(
eidos
) refere-se a uma realidade essencial, imaterial, modelar,
acessível apenas pel
o
intelectus,
o olhar interior da alma.
A
alegoria desenvolvida por Platão no Livro VII da
República
é conhecida. Ele
considera enganosa toda realidade sensível. Essas são apenas sombras de uma realidade
ideal, essencial, situada em outro nível, o ontológi
co. A verdade dos seres só é possível de
ser captada pela alma, desprendida de qualquer sensação. O Bem é apresentado na
Alegoria da Caverna como realidade suprema, capaz de ordenar tanto o mundo ideal
como também ser referencial para o mundo físico.
Qualq
uer reflexão, discurso ou epistemologia que se contraponham a essa
ontologia revelam-se como falsos, opinião sem fundamento. Platão põe as bases
ontológicas da sua epistemologia e, uma vez aceitas, não é mais possível fazer ciência
de outro modo. Isso é
o que chamamos de
epistemologia autológica
. A construção de uma
lógica própria para fundamentar o próprio conhecimento. Os adversários são obrigados a
assumir os mesmos fundamentos, caso contrário, estarão condenados a viver no erro. A
opinião singular, mesmo justificada racionalmente, é rejeitada porque não
detém
o mesmo
fundamento
. Tal construção não passou despercebida por Paulo Freire (1981, 55). Em
Ação cultural para a liberdade
, afirma:
O intelectualismo socrático que tomava a definição do conceito como o
verdadeiro da coisa definida e o conhecimento mesmo como virtude, não
constituía uma verdadeira pedagogia do conhecimento, mesmo que fosse
dialógica. A teoria platônica do diálogo não conseguiu ir muito além de
Sócrates, ainda que, para Platão, a “prise de consciente” fosse uma das
condições necessárias ao ato de conhecimento e que alcançar a verdade
implicasse na superação da “doxa” pelo “logos”.
O diferente será sempre rejeitado ou integrado no próprio sistema. O movimento
de integração é, no fundo, um processo de negação da diferença. Trata-se de um
movimento dialético de purificação, em que os elementos que se contradizem aos
princípios ontológicos são alterados ou negados. O sucesso de uma integração revela-
se
na magnitude da síntese que se faz.
Não faltaram correntes filosóficas, mesmo na filosofia antiga, que se opuseram a
essa ontologia e a esse modo de produzir conhecimento. Contudo, essa forma de
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fundamentar, nos moldes autológicos, exerceu, de algum modo, forte influência sobre a
educaçã
o. Uma educação que concebe o conhecimento como aquisição (ou construção) de
uma realidade unívoca e que, ao associar o
erro
ao que está em
movimento
ou ao que é
plural
ou simplesmente ao que difere de uma verdade que se mostra
una
, acaba
construindo projetos que dificultam e até mesmo impedem o surgimento da pluralidade e
da diferença, descuidada ou descomprometida com relações de alteridade. Tal educação
procurará desenvolver uma racionalidade
autológica
, voltada para as próprias razões,
resistente a qual
quer racionalidade, projeto ou método dialógico.
1.3.
2
A racionalidade moderno
-
cartesiana
O filosofar acerca e a partir da educação permite inúmeras abordagens e recortes.
Assim como assinalamos, o recorte metodológico pelo qual optamos para compre
ender
e testar nossa hipótese tomou três abordagens filosóficas que, a nosso ver, exerceram
fortes influências sobre a educação.
O primeiro recorte permitiu uma aproximação da teoria do conhecimento platônica
que, como vimos, revela uma racionalidade autológica. O segundo recorte que fazemos
diz respeito à racionalidade cartesiana que, do ponto de vista metodológico, tornou-
se
paradigmática para as construções científicas modernas e ainda na contemporaneidade. A
pedagogia ou ciência da educação não foi um caso à parte. Enquanto a lógica platônica se
alicerçava na concepção de
idéia
(
eidos
)
,
situação modelar de verdade pura, única e
absoluta, a razão cartesiana firmou seu fundamento no
sujeito pensante
.
René Descartes (1596
-
1650) viveu no epicentro do que se convencionou chamar de
Revolução Científica. O paradigma greco-medieval, marcado por questões metafísicas,
encontrava
-
se em crise. A Revolução Científica teve início com Nicolau Copérnico (1473
-
1543), com a publicação do De revolutionibus (1543), onde expunha a sua teoria
heliocêntrica. Tal revolução ganha maior consistência com Galileu (1564
-
1642). O caráter
revolucionário do pensamento galileano não se deve apenas às descobertas científicas que
ele fizera. A questão central não se limita às novas teorias concernentes ao universo
astronômico, sobre a dinâmica, sobre o corpo humano ou sobre a composição da Terra. O
que estava em jogo era a concepção de
saber
e de
ciência.
A ciência deixa de ser
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privilégio do teólogo, filósofo, mago ou astrólogo, para ser fruto de toda mente disposta a
investigar
e
discursar
sobre o mundo da natureza (REALE; ANTISERI, 1990, p. 186
-
87).
O método científico demanda observação da natureza, e as conclusões que daí
resultam não precisam se conformar com as proposições filosóficas e, tampouco,
teológicas. A ciência torna-se experimental e autônoma. O conhecimento antigo pretendia
ser sobre
essências
, com teorias e conceitos definitivos. A ciência moderna volta-
se
, pois,
para os fenômenos físicos, possíveis de ser mensurados publicame
nte.
Descartes encontra-se na encruzilhada desses dois paradigmas. E, a exemplo de
Arquimedes, que pedia apenas um ponto que fosse fixo e seguro para mover o globo
terrestre de seu lugar, ele inicia a sua busca de encontrar, ao menos, uma coisa que fosse
c
erta e indubitável.
O método utilizado para iniciar esse empreendimento tem origem na matemática. E
o que mais chamara
a
atenção de Descartes, na matemática, não foram tanto os números e
figuras, limitados às operações aritméticas e geométricas, pois tinham, na opinião de
Descartes, pouca utilidade para o conhecimento da totalidade do mundo (SILVA, s.d, p.
30). A maior contribuição da matemática para o método cartesiano refere-se à idéia de
ordem
e de
medida
que, apesar de se constituírem como características básicas do
pensamento matemático, estas não são específicas desse tipo de racionalidade.
A partir desses elementos do pensar matemático, Descartes (
2005
, p. 11
)
desenvolve quatro regras básicas: clareza e distinção, análise, ordem e
enumeração
. Um
conhe
cimento verdadeiro, portanto, só é possível mediante a observância dessas regras, do
contrário, tudo é passível de dúvida. Por esse motivo, por pura questão metodológica é
que Descartes inicia as suas Meditações Metafísicas duvidando de tudo o que existe,
inclusive dele próprio.
As primeiras linhas de
Meditações Metafísicas
trazem as seguintes palavras:
algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos,
recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que
depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui
duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma
vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera
crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse
estabelecer algo de firme e de constante nas ciências (DESCARTES, 1999,
p. 249)
.
A
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Descartes passa, então, de dúvida em dúvida, até chegar à dúvida mais radical:
sobre a própria existência.
Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me de
que jamais existiu de tudo quanto minha memória referta de mentiras me
representa; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a
extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções de meu espírito. O que
poderá,
pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não
ser que nada há no mundo de certo.
Mas que sei eu, não nenhuma outra coisa diferente das que acabo de
julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum
Deus, ou
alguma outra potência, que me ponha no espírito tais pensamentos?
Isso não é necessário; pois talvez seja eu capaz de produzi-los por mim
mesmo. Eu, então, pelo menos, não serei alguma coisa? Mas neguei que
tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito, no entanto, pois que se
segue daí? Serei de tal modo dependente do meu corpo e dos sentidos que
não possam existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no
mundo que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem
corpos alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu não existia?
Certamente não, eu existia, sem dúvida, se é que me persuadi, ou, apenas,
pensei alguma coisa. Mas algum, não sei qual, enganador mui poderoso e
mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em
enganar
-me sempre. Não
há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me
engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar
ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisso e de
examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por
constante que esta proposição, eu, eu existo, é necessariamente verdadeira
todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito
(
DESCARTES,
1999, p.
257
-
258
).
O leitor terá notado, a partir dessas linhas, que, diante da encruzilhada em que se
encontrava, Descartes resolve tomar um caminho totalmente original. Recusa
-
se a seguir o
caminho da racionalidade antiga e medieval, marcadamente presa às tradições e em busca
de realidades essenciais, embora tal racionalidade não esteja de todo ignorada na filosofia
cartesiana. Também não se curva à racionalidade do seu tempo, alicerçada na investigação
empírica, marcada pelo cálculo e
pela
observação.
Entre o idealismo greco-medieval e o cientificismo moderno, Descartes inicia uma
terceira via, o subjetivismo. A verdade não está fora de si, numa realidade transempírica,
tampouco no mundo captado pelos sentidos. A verdade reside no interior do sujeito, e esse
emerge como critério de verdade.
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A lógica cartesiana, explicitada através do seu
método
, reinaugura a racionalidade
autológica, em que os fundamentos do conhecimento acabam repousando sobre si
mesmo
s. Dessa vez, não é mais um macro-
sistema
(um mudo ideal) que permite a
coerência das proposições verdadeiras, a exemplo da filosofia platônica. Em Descartes,
encontramos um micro
-
sistema. A veracidade das proposições encontra sentido no interior
do sujeito pensante. Não é mais a idéia de
Bem
que ordena a realidade e serve como
modelo para a perfeição e verdade de todos os entes. A idéia de perfeição depende da
fidelidade à razão subjetiva, ordenada pelo método que ela mesma criara.
A pretensa Revolução Científica, assim, carece de justificativas. Apesar de haver
uma reviravolta no modo de erigir conhecimentos, estes continuaram circunscritos no
mesmo processo autológico. Os fundamentos metafísicos foram abalados e entraram em
crise, contudo a “nova” racionalidade permaneceu se desenvolvendo de acordo com os
próprios princípios. O idealismo, dessa vez, não se
refere a uma realidade de outro mundo,
a exemplo da alma socrática ou do espírito cristão. O idealismo inaugurado por Descartes
refere
-se à capacidade que o sujeito pensante tem de representar, no seu próprio interior, o
mundo que o cerca. O mundo empírico, então, não é modelado por uma realidade para
além do mundo físico, como fizera a filosofia platônica, mas definido, regulado e
demonstrado pelo exercício do pensamento.
Isso, sem dúvida alguma, deu origem a uma séria de críticas. A filosofia anglo-
sax
ônica, a exemplo de John Locke, foi resistente ao caráter subjetivista inaugurado por
Descartes. Contudo, tal filosofia cartesiana, sobretudo por conta do seu método, acabou
por influenciar enormemente a ciência moderna e foi decisiva para a física newtoni
ana,
porquanto ofereceu uma visão matemática e mecanicista do mundo (SANTOS, 1989, p.
17
-
30).
O método cartesiano, quando aplicado ao processo pedagógico, passa a se
desenvolver não apenas a partir de uma única matriz, o eu pensante, mas assume como
princí
pio a
suspeita
. Todo saber é suspeito até que não se demonstre o contrário. E essa
demonstração se
da
rá mediante a fragmentação e classificação.
A filosofia grega, apesar de a matriz platônica insistir na idéia de unidade e
realidade, tem origem na perplexidade, na admiração, no espanto. Karl Jaspers, ao se
referir à atitude de
admiração
, chamava
a
atenção para a disposição de
abertura
, de
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ausência de preconceitos diante da realidade, tão importante para o filosofar (JARSPER,
1998, p. 23
-
24).
Descartes toma como ponto de partida o inverso; ao invés da abertura, o que
encontramos é a
suspeita
, a desconfiança, a dúvida. Ao invés de acolher o saber que vem
de fora do sujeito, o ser pensante se distancia e retalha o outro, classifica-o, pois assim
é possível ser assimilado no seu interior, em condições de obter um conhecimento seguro.
Fragmentado, o ser estranho é possível de ser controlado e assimilado no interior do
cogito.
Esse movimento de suspeita e de fragmentação tem por finalidade a integração do
real
no interior da subjetividade pensante. O seu método, o seu trajeto e o modo de abrir
caminho serão à custa da desconfiança e da suspeita.
Um projeto pedagógico construído nessas bases continuará por repelir ao invés de
acolher a opinião do outro. Ao invés de se abrir ao outro, passamos a suspeitar dele. É
preciso, pois, um outro princípio, ou melhor, uma
meta
-
arqueologia
que indique algo que
esteja anterior ao próprio princípio.
1.3.
3
A ontologia de Martin Heidegger
A ação educativa, por mais ingênua que possa parecer, carrega concepções de
mundo, de sociedade, de ser humano. Ora coerentes, ora contraditórias, estas concepções
moldam as práticas pedagógicas.
Compete à Filosofia da Educação perguntar pelos fundamentos dessas práticas,
buscando desvelar seus princípios implícitos ou explícitos. Para tanto, serve-
se
de duas
fontes: a primeira
são
os escritos deixados pelos filósofos, instrumentos valiosos para
fundamentar o perguntar e o responder filosóficos; a segunda fonte é a própria ação
educativa
,
q
ue se desenvolve ou se atrofia.
Como tivemos oportunidade de explicitar, por razões metodológicas, a fonte
relativa à ação educativa é genérica, sem um
lócus
específico, visto que a pesquisa que
desenvolvemos é de caráter teórico. A hermenêutica que fazemos da ação genérica nos
permitiu elaborar hipóteses acerca do problema das relações intersubjetivas na educação
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formal. Cabe à comunidade científica avaliar se essas hipóteses podem ser erigidas ao
nível de teses válidas, justificando seu parecer através de argumentos consolidados pela
comunidade de cientistas que tratam do assunto.
Is
so posto, trazemos ao leitor mais uma fonte ou reflexão filosófica que, a nosso
ver, indica-
nos
um movimento de auto-regulação do sujeito diante do mundo e de seus
semelhant
es. Trata-se, mais uma vez, de uma
autologia
com desdobramentos para as
práticas educacionais.
A reflexão
a
que nos referimos nesse momento é aquela desenvolvida pela
ontologia de Martin Heidegger (1889-1976). O movimento de compreensão, tão
importante para a educação, é, mais uma vez, visto como um prender a si a diversidade, a
diferença, o outro. Com Heidegger, esse movimento ganha maior envergadura e novos
contornos. O ser humano assume a condição e
a
tarefa de atrair e tornar cativo em si
mesmo todo o mundo circundante.
Importa
-nos, nesse momento, uma aproximação com a
ontologia de Heidegger, para compreender quais os contornos que a racionalidade
autológica assumiu desde então.
Nesse sentido, a obra de Heidegger que nos interessa aqui é Ser e Tempo, a
qual
está divida em duas partes: a primeira trata de uma analítica do
Dasein
, marcada pela
temporalidade
, como horizonte da pergunta ontológica; a segunda busca uma
“desconstrução” fenomenológica da história da ontologia. Compreender o projeto
heideggerian
o não é tarefa fácil. A leitura que aqui fazemos da primeira parte de Ser e
Tempo
passa pela lente interpretativa de Lévinas, presente em sua obra Descobrindo a
Existência em Husserl e Heidegger, mesmo consciente que tal interpretação tenha sido
alvo de cr
íticas de alguns comentadores de Heidegger.
Es
se nosso comentário restringe-se à concepção heideggeriana de
sujeito
,
é a
escolha dessa categoria justifica-se por dois motivos: primeiro, por se tratar de uma
categoria central em Ser e Tempo e, segundo, por servir de fundamento para a
epistemologia que, aqui, denominamos de
autológica.
Enquanto Kant operou uma revolução copernicana na filosofia, pondo o
sujeito
como centro de sua investigação e não mais o
objeto
, Heidegger desenvolveu uma
revolução na ontolog
ia
, que se estende também à epistemologia. O que se busca em Ser e
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Tempo
é o fundamento ontológico do conhecimento, s
ua
preocupa
ção
refere-se a
os
fundamentos lógicos do ser. O centro da investigação em
Ser e Tempo
é o
ser.
As ciências, segundo Heidegger, investigam os
entes
, ou seja, o ser dos entes
,
como se fosse uma espécie de fragmentos do real, visto que as ciências se ocupam de
regiões ou campos de investigação do real
,
e não
,
da realidade em sua totalidade.
Quando os conceitos fundamentais de alguma dessas ciências entram em crise,
voltam
-
se a perguntar sobre os fundamentos da própria ciência. Nesse momento, a questão
ontológica volta à tona. Trata de investigar sobre o princípio, no sentido grego de
arché
. A
pergunta pelo fundamento ou princípio leva a
ciência a superar o seu caráter positivo e, ao
invés de responder acerca dos entes específicos, passa a perguntar pela origem e pelo
sentido da compreensão desses entes. Nesse momento, ela cruza a fronteira do
estritamente científico (da ciência positiva) e passa a filosofar, inicia
ndo
-se uma reflexão
ontológica sobre os
fundamentos do
ente
e das condições de possibilidades de conhecê
-
lo.
Para melhor esclarecer esse movimento de busca dos fundamentos, Heidegger faz
uma distinção entre
ser
e
ente.
O
ser
,
para ele é, sobretudo,
verbo
; enquanto o
ente
é
substantivo, objeto. Daí as ciências
se
ocuparem com os
entes
, e não, com o ser, pois o
verbo indica movimento. O
ser
, nesse caso, está em constante movimento de
vir
-a-
ser
, é
um constante
sendo
.
Heidegger rec
usa
-se a considerar o problema acerca do
ser
como se fosse uma
questão impossível de ser respondida, como se fosse pura e estéril especulação. Ele
essa
questão como sendo fundamental, inclusive, para as ciências positivas. Lévinas irá
dizer:
Para Heidegger, a compreensão do ser não é um ato puramente teórico, mas,
como veremos, um acontecimento fundamental em que hipoteca todo o seu
destino; e, desde logo, a diferença entre os modos, explícito e implícito, de
compreender não é uma simples diferença entre conhecimento claro e
obscuro: ela diz respeito ao próprio ser do homem. A passagem da
compreensão implícita e não-autêntica à compreensão explícita e autêntica,
com as suas esperanças e os seus fracassos, é o drama da existência humana
(LÉVINAS, s.d, p.
74).
Apesar d
e
o ser dos entes se manifestar na variedade dos entes, há um lugar
privilegiado onde o ser se revela: a existência humana, pois o ser humano é
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essencialmente “compreensão do ser”,
Dasein
. A compreensão do mundo, portanto, não é
fruto de uma observação pura e objetiva, mas sempre, e de modo privilegiado, um evento
que prende o mundo ao ser humano. O drama humano consiste nesse movimento de
prender a si o mundo que o cerca. O ser dos entes está, em última análise, preso ao
Dasein.
Não há, nesse sentido, distinção entre
essência
e
existência
. O ser humano é
,
existe
, nesse movimento de
compreender.
Lévinas relata que o grande aprendizado que teve com as aulas de Heidegger
refere
-se ao caráter verbal do termo
ser
. A filosofia tinha se acostumado a tratar do
ser
como uma realidade ôntica, como objeto
.
Ora, se o ser humano é o evento privilegiado de manifestação do ser ou, em outras
palavras,
se
o ser humano é essência e existencialmente um “ser que compreende”, faz-
se
necessário perguntar em que consiste esse movimento ontológico (poderíamos dizer,
também, epistemológico) de
compreender
.
A compreensão do ser não significa uma contemplação de algo que está fora.
Nesse caso, continuaríamos na dualidade entre existência e conhecimento ou entre sujeito
e
objeto. O movimento de existir humanamente consiste no movimento de compreender-
se e recolher, no seu ser, a compreensão de todos os entes disponíveis no mundo.
Outra característica da dinâmica de
compreender
, própria do
Dasein
, refere-se ao
caráter espaço-temporal. O termo utilizado por Heidegger, para se referir a essa dimensão
espaço
-
temporal do
Dasein
, foi de “mundo ambiente” (
Umwelt
). Contudo, tal ambiência é
referida ao
Dasein
, ao existir aqui e agora, e não, a um espaço e tempo abstrato. O ser-
no
-
mun
do é o horizonte em que o existir humano se encontra, enquanto movimento de
compreensão (
Dasein
).
Heidegger, em Ser e Tempo (p. 34), advertira que a questão do ser só seria
esclarecida quando defin
íssemos
a sua
função
, seu
propósito
e seus
motivos
.
A mesma
advertência vale para o ser humano, enquanto ser-
no
-mundo, e para os demais entes
disponíveis no mundo. É preciso perguntar acerca da função,
do
propósito e dos motivos
desse ou daquele ente e que tipo de relação e
l
es estabelecem com o
Dasein.
Para Heideg
ger
, o sentido e
a
intencionalidade do mundo ambiente
são
o próprio
Dasein
. Lévinas esclarece:
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A existência do
Dasein
consiste em existir com vista a si mesmo. Isso quer
dizer também que o
Dasein
compreende a sua existência. O
Dasein
compreende, pois, desde já, esse “com vista a si mesmo”, que constitui a sua
existência. É em relação a esse “com vista a” incial que o “com vista a” dos
utensílios, a sua maneabilidade, pode surgir ao
Dasein
. O Mundo não é mais
do que esse “com vista a si mesmo” em que o
Dase
in
está integrado na sua
existência e em relação ao qual se pode encontrar o manejável (LÉVINAS,
s.d, p. 83).
O mundo está à disposição do
Dasein
, para possibilitar a sua existência. A
existência, nesse sentido, é possibilidade. “Ser-
no
-mundo é ser as suas possibilidades [...]
O que é ser as suas possibilidades? Ser as suas possibilidades é compreendê-
las
(LÉVINAS, s.d, p. 85-
86).
Contudo, a idéia de
compreensão
aqui não se conforma à idéia
de
conhecimento
. “A compreensão não é uma faculdade cognitiva que se juntaria à
existência para lhe permitir tomar conhecimento das suas possibilidades” (LÉVINAS, s.d,
p. 85
-
86).
O
compreender
-
se
não se restringe, portanto, ao movimento de conhecer. A esse
respeito afirma:
O
Dasein
compreende-se numa certa disposição afetiva (
Befindlichkeit
). [...]
Trata
-se desse fenômeno, a primeira vista banal, que a psicologia clássica
visa ao insistir na tonalidade ou na cor afetiva que se mistura a qualquer
estado da consciência: o bom ou o mau humor, a alegria, o tédio, o medo,
et
c. Para Heidegger, estas disposições não são estados, mas modos de se
compreender
,
quer dizer, de ser nesse mundo, o que é a mesma coisa
(LÉVINAS, s.d, p. 87).
O ser humano é um ser jogado no mundo de possibilidades, abandonado ao seu
próprio movimento de existir. Cabe a ele compreender, prender e efetivar em si as
possibilidades que o cercam. Trata-se, em última análise, de um exercício hermenêutico
do próprio existir. “O
Dasein
que compreende as suas possibilidades de existência é
simultaneamente o
Dasei
n que se compreende a si mesmo e descobre os utensílios no
mundo” (LÉVINAS, s.d, p. 88).
Heidegger agrava o caráter autológico de que estamos tratando ao longo dest
e
capítulo. O movimento, agora, não é mais de uma lógica sistêmica, a exemplo da filosofia
platônica, nem subjetivista, conforme Descartes. A analítica do
Dasein
imprime na
existência humana um movimento que extrapola e amplia a lógica do próprio. Estamos
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diante
, não apenas, de uma racionalidade autológica, senão de um modo de existir
radicalment
e antropocêntrico. O ser humano revela-se mais uma vez, na analítica do
Dasein
, como senhor do mundo ou, como dirá Heidegger, “pastor do ser”. Um pastor
atento ao próprio sustento, à própria existência.
O movimento autológico que antes se restringia à dimensão racional, pensante, na
ontologia de Heidegger, estende-
se
para outras dimensões humanas: afetiva, biológica e
lingüística. A lógica do ser (de modo privilegiado, do ser humano) é a de ocupar-se de si,
de compreender a si e de prender a si o mundo circundante. Tal lógica, como dissemos,
não se restringe
a
operações cognitivas, mas à totalidade do ser humano.
À
Fi
losofia da Educação não compete
mensurar
em que me
di
da essa filosofia
influenciou ou influencia as práticas pedagógicas. Contudo, podemos afirmar que tal
movimento do
Dasein
não passou desapercebido pelos projetos pedagógicos.
Este capítulo teve por objetivo reunir três exemplos ou fontes filosóficas que
permitissem situar nossas hipóteses e tese de pesquisa, no âmbito da verossimilhança,
passível de validez científica. Quisemos demonstrar que o que denominamos de
epistemologia autológica repercute diretamente na pedagogia, visto que esta toma como
objeto central o conhecimento humano. Ao se debruçar sobre o conhecimento, a maior
ia
das pedagogias tomou para si concepções e reflexões filosóficas que priorizaram a
unidade
,
em detrimento do plural, do próprio
,
com prejuízo do outro.
Entendemos que essa postura pedagógica não foi a única a se fazer presente na
história. A prática pedagógica desenvolvida e teorizada por Paulo Freire nos remete a
algumas dessas exceções. A sua sensibilidade, perspicaz ao sofrimento do outro, e sua
delicada firmeza ao tratar da opressão, levaram-no a suspeitar e a romper muitas vezes
com a epistemologia autológica d
ominante.
Ao tomar o diálogo como uma das categorias centrais para seu projeto pedagógico,
subverteu a lógica que punha o próprio como sujeito do conhecimento. O diálogo
imprimira nas ações pedagógicas freireanas a abertura e o compromisso pelo outro, em
s
ituação de opressão e exclusão.
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Tal pedagogia exigiu e exige uma fundamentação que permita uma reconstrução
acerca de algumas categorias centrais para a educação, a saber: ética, subjetividade,
alteridade, sociabilidade.
Julgamos que uma fonte válida e importante para essa re-construção é a filosofia
de Emmanuel Lévinas, com a qual podemos contrapor uma outra epistemologia, não mais
autológica, mas
dialógica
. Esse é o assunto de próximo capítulo.
1.4
A TENSÃO PEDAGÓGICA
:
ENTRE O PODER E O CU
IDADO
Apesar
d
e
a ação pedagógica ser um evento social, não pode ser reduzida a isto. O
modo como os seres humanos desenvolvem essa prática está sujeito a uma lógica, a um
saber
-fazer, a uma práxis pedagógica. A incursão que fizemos na história da filosofia,
mesmo que breve e elegendo apenas três pensadores, objetivou situar uma racionalidade
que tem predominado nas lógicas que sustentam a nossa prática educativa, mais propensa
ao exercício do poder sobre o outro do que ao cuidado.
As possibilidades de estabelecer conexões entre os dois processos, o da reflexão
filosófica e a da ação pedagógica, são múltiplas. Os manuais de pedagogia insistem na
classificação de tendências pedagógicas, associando-as a esse ou àquele filósofo ou
corrente filosófica.
Es
sa classificação, por mais didática que possa ser, oculta o caráter
dinâmico do fenômeno humano e educacional. Podemos identificar princípios e
fundamentos teóricos, contudo tais princípios serão sempre frutos da nossa abstração. O
mundo prático revela
-
se complexo e cheio de
contradições. A ação humana, em sociedade
ou individualmente, não carrega a coerência dos discursos.
Nosso esforço em descortinar e caracterizar a tensão existente no interior da ação
pedagógica é
mais
fruto de uma exigência especulativa do que propriamente prática. Na
prática, encontramos no interior de uma mesma ação pedagógica características que
tendem
tanto
para o uno quanto para o plural; para a autologia, como para o diálogo; para
o poder próprio, como para o cuidado e o serviço solidário. Ao afirmar a existência de
pedagogias opressoras, de um lado, e emancipatórias, de outro, não queremos negar ou
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ignorar que, no interior dessas mesmas pedagogias, encontramos movimentos diversos e
contraditórios.
O ser humano se revela de muitos modos, é um ser ambivalente e contraditório.
Contudo, essa contradição, quando assumida por instituições, tende a ser superada, pelo
menos no âmbito teórico. As instituições são históricas e procuram permanecer na
história. Para isso
,
precisam se justifi
car
de forma coerent
e e mostr
ar
, no jogo das relações
sociais e políticas, a razão do seu existir.
A história da educação e, conseqüentemente, das correntes pedagógicas, refletem
práticas que se institucionalizaram. As incertezas, as dúvidas, os impasses, pouco fo
ram
registra
do
s
.
Ao fazer um recorte epistemológico das correntes pedagógicas, temos consciência
de
que as exceções existiram no interior dos sistemas educacionais, contudo, pouca
atenção foi dada àqueles e àquelas que aventuraram outras práticas educativas, distintas
do sistema hegemônico. Somente quando estas exceções se avolumavam e ganhavam
maior evidência social é que as instituições reconheciam tais práticas como legítimas.
Parafraseando Thomas Kuhn, as “revoluções pedagógicas” tiveram início como casos
isolados,
como uma peça de um quebra-cabeça que não se encaixava no jogo dominante.
Somente quando surgiam outras peças, com a mesma estranheza, é que se começava a
forjar um novo paradigma educacional.
Bogdan Suchodolski (
1978
) identifica dois grandes paradigmas do pensamento
pedagógico: o da essência e o da existência. Reconhece a falta de homogeneidade no
interior desses paradigmas, no entanto permite abstrair um traço comum. A pedagogia
produzida a partir do paradigma da essência adota a função de realizar o que o homem
deve ser. Trata-se de uma concepção idealista, em que o ser humano é formado a partir de
um modelo. Por modelo, entendemos um conjunto de princípios, de ões, que organizam
e sincronizam, de forma coerente, os sujeitos envolvidos na ação educati
va
, e não, apenas
como um molde ou alguma coisa a copiar.
A pedagogia da essência, por se referir a uma realidade
trans
-
empírica
, alcança
maior consistência, visto que o seu referencial é um absoluto transcendental. A origem
dessa pedagogia, no mundo ocidental, pode ser situada na Grécia Antiga, entre os séculos
V e
IV
a.C. O
Poema
de Parmênides, presente no diálogo platônico intitulado
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Parmênides,
marca o movimento de racionalização que desvincula o discurso filosófico
do mitológico e do religioso. A busca da verdade, na perspectiva platônica, supõe um
afastamento do mundo dos hábitos, das ilusões oriundas dos sentidos, da crença, dando ao
filósofo uma função crítica. Essa busca inscreve-se na ordem do ser, um ser lógico
(
logos
), homogêneo à razão que deriva dele. As ações humanas, o pensamento e toda
realidade
, para ter sentido, terão que estar coerentes ao
logos
demonstrativo e racional.
Nesse sentido, podemos dizer, que as origens de nossa educação ocidental
são
marcadas
por
uma
lógica, aquela capaz de s
er demonstrada racionalmente.
Suchodolski
(1978, p. 28) chama a atenção para o caráter fundante da filosofia
platônica. Sua importância não deve apenas
para
servir como ponto de partida para as
várias correntes filosóficas e tendências pedagógicas, desde a época helenista ao
Renascimento, “mas também de algumas teses desta filosofia terem entrado por vezes no
domínio público quase geral, tornando-se expressão da posição idealista mais vulgar em
relação à realidade”. O mundo no qual estamos mergulhados, na p
erspectiva platônica, é o
mundo das sombras, imperfeito, inconstante, irreal.
O cristianismo reforçou ainda mais essa concepção platônica acerca da realidade:
um mundo verdadeiro e eterno, de um lado, e aparente e temporal, do outro. Assim como
na filosofi
a platônica, a educação cristã consistia em levar os seres humanos a conhecer
em
as verdades eternas e a rejeitar
em
os apelos do mundo. A educação cristã medieval
assume um papel imperialista, de dominação do estrangeiro, da diferença, da
uniformização da c
ultura.
No Renascimento
13
, a idéia de “natureza humana” reforça os traços platônicos por
conceber o ser humano como ser racional. Contudo, foi nesse período que a autoridade da
Igreja é questionada. Como vimos, o
cogito
cartesiano faz com que o ser humano seja
13
O termo Renascimento é comumente aplicado à civilização européia que se desenvolveu entre
1300 e 1650. Além de reviver a antiga cultura greco-romana, ocorreram nesse período muitos
progressos e incontáveis realizações no campo das artes, da literatura e das ciências, que
superaram a herança clássica. O ideal do humanismo foi sem duvida o móvel desse progresso e
tornou
-se o próprio espírito do Renascimento. Trata-se de uma volta deliberada, que propunha a
ressurreição consciente (o re-nascimento) do passado, considerado agora como fonte de
inspiração e modelo de civilização. Num sentido amplo, esse ideal pode ser entendido como a
valorização do homem (Humanismo) e da natureza, em oposição ao divino e ao sobrenatural,
conceitos que haviam impregnado a cultura da Idade Média. (Ver
Histór
ia da Arte, in:
http://www.historiadaarte.com.br/renascimento.html
).
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considerado como fonte de sentido. Um sentido que não está para além do mundo
empírico, inclusive o sentido da sua fé.
Nesse contexto, surgem uma teologia e uma prática que se tornam exceç
ões
.
Martin Lutero (1483-
1546)
rompe com o poderio da igreja romana e ensaia uma nova
proposta de educação da fé, longe das estruturas eclesiais de sua época. Foi uma exceção
que ganhou adesão e reconhecimento social e, por conta disso, ficou registrada nos livros
de história.
Esse rompimento com a religião hegemônica é emblemático, visto que o que é
quebrado
não é apenas uma doutrina, mas uma lógica que prevalecia, desde os gregos,
marcada por princípios unificantes e totalizantes. Entram em choque os conteúdos
coerentes e consolidados pelas academias e a miséria social. Lutero percebe que a
superação da pobreza teque ser mediante outro fundamento. A salvação não provém do
discurso epistêmico, do domínio de um saber, mas do compromisso com o
s excluídos
. É a
evidência de um novo paradigma na educação, a do cuidado com o outro.
Esse olhar sobre a realidade histórica do ser humano sinaliza o que Suchodolski
denominou de “pedagogia da existência”. Trata
-
se de um movimento em que as condições
exist
e
ncia
is do ser humano passam a ser mais valorizadas. Segundo esse paradigma, o
processo de educação assume, como ponto de partida, a realidade concreta em que se
encontra o ser humano e, a partir daí, sugere um processo de formação. A pedagogia da
existência volta-se para o ser humano na sua materialidade e, nesse sentido, o olhar do
educador sobre o educando sofre uma transformação. Ao invés de começar pela busca de
um modelo ideal que possa servir de “molde” para a formação do ser humano, a
pedagogia da existência toma como ponto de partida esse ser humano, nas condições
hi
stóricas, psicológicas
e materiais em que se encontra e, a partir d
e então, d
esenvolve um
processo de formação.
Vittorino de Feltre (1378-1446), na Giocosa di Mantova, na Itália, foi quem
primeiro construiu um processo pedagógico adaptado às características psíquicas da
criança. Foi nesse período que nasce
u,
na cultura européia, um “sentimento da infância”,
um
movimento de atenção voltada ao mundo infantil, no desejo de “brincar com as
crianças”, de “jogar com elas”, de conhecê-
las e preservar sua original
pureza e imaculada
inocência. Como tantas outras experiências embrionárias, Vit
to
rino não deixou escritos
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2
pedagógicos. Sua pedagogia acabou difundindo-se pelo seu reconhecimento social e por
algumas poucas cartas pessoais (CAMBI, 1999, p. 237).
O exemplo de Vittorino de Feltre ilustra o que dizíamos anteriormente sobre as
exceções ocorridas dentro de um modelo hegemônico e evidencia a tensão entre o poder e
o cuidado com o outro. Apesar de ter conservado o ideal religioso do cristianismo, foi
capaz de superar e subverter internamente o processo pedagógico, tomando como ponto
de partida a realidade atual dos educandos, acolhendo as diferenças, valorizando-as e
enriquecendo
-
as.
É preciso, entretanto, cuidado para não associar a pedagogia da existência ao que
temos chamado de “pedagogia dialógica” ou para a alteridade. Uma pedagogia que
valorize a realidade concreta, em oposição à realidade ideal, não oferece nenhuma
garantia de que seja emancipatória. O que está em questão não é o princípio ou o
fundamento que uma pedagogia pode assumir, mas a sua capacidade de transcender a
esses princípios e fundamentos para abrir ao diferente e para cuidar do outro.
Comênio (
1593
-
1670) revela claramente ess
a tensão entre o poder e o cuidado com
o outro nos processos educativo
s.
Ele
é o primeiro sistematizador do que hoje chamamos
de ‘projeto político pedagógico”. Sua Didática Mágna (1657) não poupa esforços em
esclarecer os fundamentos da sua proposta educativa. Ao mesmo tempo, evidencia uma
preocupação extraordinária e original para a sua época de educação universal, defendendo
a importância da escola para todos. Nas linhas da Didática Magna,
misturam
-se palavras
de ordem, duras e severas, com expressões carinhosas e de cuidado para com as crianças.
Essa mesma tensão é possível de ser encontrada na pedagogia de Rousseau (1712-
1778), mas com uma sutileza. Todo o
seu
projeto pedagógico está centrado no cuidado
que o educador deve ter em relação ao seu educando, desde os primeiros anos de vida até
chegar à idade da moralidade, quando estará apto a participar da vida social e política.
Porém, o projeto de Rousseau está preocupado com a formação do ser humano na sua
individualidade. O Emílio, idealizado por Rousseau, é um homem que vive segundo a
razão. Os critérios de decisão têm origem, pura e exclusivamente, no próprio eu racional
(talvez esteja o motivo de o
Emílio
ter sido tão admirado por Kant). O Eu
rousseauniano é um ser marcado pela individualidade e pela razão própria, autônomo. A
tensão, aqui, não se refere à relação edu
cador
-educando, mas ao próprio e ao outro. A
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razão de Emílio é solidamente formada para afirmar a sua autonomia e individualidade.
Uma vez formado, a vida social não é mais capaz de alterar a sua identidade. Emílio
tornou-se livre dos imperativos sociais que, na opinião de Rousseau, corromperiam sua
natureza.
É curioso que é essa mesma racionalidade valorizada por Rousseau que justificará
a crítica à sociedade de seu tempo. Em seu Discurso sobre a origem das desigualdades
entre os homens, ele elabora um discurso em defesa daqueles que sofrem com as
desigualdades: o pobre, o fraco, o escravo, vítimas das leis que garantem os diretos
daqueles que têm e que podem. As desigualdades sociais são frutos de uma sociedade que
se corrompeu. Rousseau proclama um novo c
ontrato social, não apenas como um conjunto
de leis a serem seguidas, mas como princípios fundamentais, internalizados e vivenciados,
que reconhecem o direito do outro, impedindo o uso da violência para com o seu
semelhante. As idéias de Rousseau estão na
base da Revolução Francesa.
Seguindo as pegadas de Rousseau, encontramos Pestalozzi (1746-1827), para
quem
a educação deveria fazer com que as crianças, pelo uso da razão, formassem
espíritos livres. Entretanto, o ideal rousseauniano de desenvolver a educação da criança,
distante da sociedade corrompida, não é levado adiante por Pestalozzi que, diante da
pobreza e do grande número de crianças órfãs, desenvolve uma pedagogia fundada sobre
o amor e a confiança, introduzindo as crianças no mundo do conhecimento e do trabalho,
através de técnicas agrícolas e comerciais. Procura fazer com que seus alunos possam ter
contato com a realidade
trata
-se das primeiras experiências do que mais tarde passaria a
se chamar de “escola ativa” dando grande importância às atividades experimentais,
relacionando
-
as com a vida prática.
É também no século XIX que encontramos Herbart (1776-1841), sucessor de Kant
na cátedra de Königsberg, um dos primeiros a tentar elevar a pedagogia ao nível de
ciência sobre uma dupla base especulativa e experimental. Ele associa o princípio de
educabilidade à moral e à psicologia para construir uma sistematização do processo de
ensino-aprendizagem. O que se espera de um processo pedagógico eficaz é o “governo da
criança”. A filosofia, a moral e a psicologia tornam-se aliadas para construir um saber
pedagógico que seja capaz de domar o “selvagem desregramento”, as “rudes tendências”
dos educandos. Nesse processo, na tensão entre o poder e o cuidado, o poder prevalece.
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Herbart é um expoente da educação que se convencionou chamar de “tradicional”, que
mais tarde viria a sofrer fortes críticas de John Dewey (1859
-
1952).
Dewey estabelece uma clara oposição: “uma [a da Educação Nova] sustenta que
ela [a educação] é um desenvolvimento que procede de dentro; a outra [a educação
tradicional]
, que é uma formação que se faz de fora; uma, que se funda sobre os dons
naturais, a outra
,
que domina as inclinações naturais e tende a substituí
-
las por hábitos que
uma longa pressão externa permitiu inculcar” (DEWEY, 1
976, p. 38).
A pedagogia pragmatista desenvolvida por Dewey defende uma educação voltada
para a experiência. O processo de ensino-aprendizagem alcança sua eficácia à medida que
aproxima os conteúdos das experiências de vida do educando. A escola seria, poi
s,
uma
oficina para aprender viver.
A pedagogia de Dewey, apesar do avanço que significou para a educação moderna,
acabou caindo nas teias do que Habermas chamou de “ação instrumental”, ou seja, uma
ação técnica que busca, racionalmente, aplicar os meios adequados para a obtenção de
determinados fins. De modo que a pedagogia deweyana pode servir tanto à educação
emancipatória
quanto à opressora. Diante da fragilidade dos Estados e das instituições
democráticas, sobretudo na América Latina, nos anos 1960, ta
l pedagogia acabou servindo
ao tecnicismo industrial e capitalista.
Uma alternativa a essa razão instrumental foi possível de ser encontrada na
chamada “pedagogia crítica”. Assim como buscou Dewey, a pedagogia crítica também
buscou aproximar a vida da escola. Contudo a vida que é levada para dentro da escola é
aquela carregada de contradições, com base econômica e com conflitos de classe, cheia de
relações de poder, seja por conta da questão econômica, mas também de gênero e étnica.
Uma vida que carrega ideologias e, a partir delas, determina-
lhe
o sentido e o mundo da
educação.
Apesar d
e
a pedagogia crítica não
se
constituir num conjunto homogêneo de idéias,
é possível identificar um sentido ou objeto comum, o de “fortalecer aqueles(as) sem poder
e transfo
rmar desigualdades e injustiças existentes” (McLAREN, 1997, p. 192).
A pedagogia crítica surge como uma possibilidade de outra lógica na educação. Ela
traz uma visão da realidade a partir de outro fundamento: o do poder econômico e o da
desigualdade social. Essa nova racionalidade parte da análise e da convivência com
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situações de exclusão social. Procura compreender as causas profundas que deixam com
que milhares de pessoas permaneçam à margem das sociedades, sem condições de
sobrevivência. Os conceitos e as teorias, construídos pela pedagogia crítica, são frutos das
análises
e
procuram ter como ponto de partida a realidade concreta
,
e não
,
o inverso.
A grande riqueza da pedagogia crítica revelou-se, também o seu ponto mais
vulnerável. Ao se preocupar com
o social, caiu na armadilha de relativizar, em demasia, as
subjetividades e as singularidades. Os problemas relativos às relações interpessoais foram,
na maioria das vezes, esvaziado de sentido, pois o sentido de qualquer relação, a partir da
teoria crítica, estava posto, a priori, pela dialética materialista. E, mais uma vez, a
tensão entre o singular e o coletivo, entre o pessoal e o social se evidenciava.
Esses recortes filosófico-pedagógicos nos levam ao grande risco de cair em
interpretações reducionistas acerca dos problemas educacionais. Entretanto, apesar dos
riscos, trilhamos esse caminho para demonstrar as dificuldades existentes nas tentativas de
rotular correntes filosóficas e tendências pedagógicas, como se essas fossem, na prática,
carentes
de ambigüidade, contradição e incoerências.
O problema torna-se ainda mais agudo quando nos propomos a fazer uma leitura
da pedagogia dos dias atuais. A complexidade do presente se evidencia não apenas no
nível prático, mas também no teórico. A cultura contemporânea, chamada por alguns de
“pós
-
modernidade”
, e por outros, de “modernidade tardia” ainda, como afirmou Lévinas,
carece de uma identidade.
Vivemos em meio a uma crise que reconhece os limites da razão iluminista, mas
ainda está ensaiando outras lógicas ou outras racionalidades que dotem de sentido o tempo
presente. Essa carência de sentido criou uma dificuldade sem precedentes na história e na
filosofia da educação. Uma dificuldade de, até mesmo, precisar o problema.
Não somos da opinião de que devemos abrir mão dos fundamentos que a história
nos legou. É preciso revisitá-los e
re
-
analisá
-los. Mas, a partir de que olhar, de que
critérios? A proposta desta pesquisa é que façamos uma “meta-arqueologia”. Que
passemos pelos princípios e fundamentos, sem nos fixarmos neles. Que possamos nos
aventurar em algo que esteja para além dos fundamentos. Nos
so
propósito, seguindo as
pegadas de Lévinas e
de
Freire,
é
abrir mão de nosso desejo de segurança e nos lançar na
aventura do encontro com o outrem, com o diferente, com a pluralidade e nos
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comprometer
mos
com ele. A filosofia que Emmanuel Lévinas nos apresenta pode ser um
caminho teórico para nos ajudar nessa aventura. O próximo capítulo é um início de uma
tentativa de compreender esse princípio, que tem origem em algo que espara além dos
fundamentos.
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CAPÍTULO 2
ALTERIDADE: UMA REFLEXÃO A PARTIR DE EMMANUEL LÉVINAS
Emmanuel Lévinas é um crítico da filosofia clássica. Nisso não difere de outros
filósofos contemporâneos. O último tópico do capítulo anterior (
Uma
e
pistemologia
a
utológica
) teve a intenção de preparar o leitor para a compreensão dessa crítica
levinasiana, que não é feita de outro lugar do que aquele próprio da reflexão filosófica, ou
seja, o cus herdado da racionalidade grega. Sabemos que a tradição judaica exerceu
sobre o seu pensamento uma forte influência. Contudo, ao fazer filosofia, Lévinas não
dispõe de outra linguagem que seja a racional e demonstrativa. O presente capítulo tem
por objetivo apresentar alguns elementos da reflexão crítica construída por Lévinas. Para
tanto
, tratará das categorias que, a nosso ver, são fundamentais para compreender sua
crítica
. São elas: ética e filosofia primeira,
linguagem,
subjetividade, alteridade, de outro
modo que ser (
Autrement
)
.
Sua crítica não segue um percurso histórico. Sua preocupação é identificar os
elementos que mais contribuíram para a negação da alteridade. E por esse motivo é que
trouxemos, no capítulo anterior, três exemplos do que denominamos de “epistemologia
autológica”. A crítica levinasiana teve como orientação e meta esse caráter autológico de
filosofias que se aprisionaram no movimento de
retorno
e ocupa
ção
com o próprio, com o
uno, com o mesmo. As correntes ou assim chamadas “tendências pedagógicas” se
desenvolveram com os braços dados a essas filosofias. Desse modo, os processos
educativos acabaram por difundir e reproduzir uma cultura marcada pelo individualismo,
pela exacerbação do que é próprio, relegando o cuidado com o outro a tímidos discursos
na esfera religiosa e a algumas poucas ideologias humanistas. Contudo, é na ética
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contemporânea que tem início um movimento de crítica à sociedade individualista,
acenando para a importância de uma ética do cuidado.
Acreditamos que esse nosso esforço em filosofar através da lente levinasiana
permitirá reunir elementos para uma re-visão do fazer pedagógico, em vista de uma
educação mais propensa à alteridade, mais disposta ao cuidado do outro. Mas, antes
mesmo de nos debruçar
mos
sobre a filosofia levinasiana,
faremos
uma breve apre
sentação
desse filósofo.
2.1
EMMANUEL LÉVINAS
UMA BREVE APRESENTA
ÇÃO
Emmanuel Lévinas, judeu, natural da Lituânia, viveu entre os anos de 1906 e 1995.
Com a Primeira Guerra Mundial (1914), sua família refugiou-se na Ucrânia, retornando à
Lituânia em 1920. Em 1923, emigrou para a França, onde estudou latim e filosofia. Em
1928, mudou-se para a Alemanha e continuou seus estudos com Husserl, por meio
de
quem
, conheceu Heidegger, aos 22 anos. Aos 34 anos (1940) foi preso e levado para um
campo de concentração em Hannover, saindo somente com o fim da guerra, em 1945. De
volta à França, reencontrou sua esposa
,
que se refugiara num convento vicentino
,
e passou
a se dedicar ao estudo do Talmude e da filosofia. Aos poucos, construiu uma densa
reflexão filosófica. Faleceu em 1995. Seu pensamento pode ser compreendido em três
períodos:
14
Primeiro Período (1929-
1951)
- Estudos sobre a fenomenologia de E. Husserl
(1859
-1938) e a ontologia de M. Heidegger
(1889
-1976), reunidos em En découvrant
l'existence avec Husserl et Heidegger
(1
a
. edição de 1949). Nesse período, Lévinas
elabora
, inclusive, sua tese sobre a teoria da intuição, publicada em 1930. Dessa época,
datam ainda os primeiros escritos de cunho mais pessoal, como
De
l’évasion
(1935
), De
l'exIstence à l'exi
stant
(1947
grande parte escrita durante a Guerra) e
Le Temps et l'autre
(1948).
14
Divisão feita por U. Vázques. "A teologia interrompida, para urna interpretação de E. Lévinas",
in
Perspectiva Teológica,
14(1982)52, pp. 51
-
73.
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O Segundo Período (1952-
1964)
caracteriza-se por um maior distanciamento das
teses de Husserl e, sobretudo, de Heidegger, e abrange os estudos que redundarão em
Totalité et
lnfini
(1961), publicados em Em découvrant l’existence avec Husserl et
Heidegger
(2
a
. edição de 1967).
O Terceiro Período (1965-1979) é representado pelas obras mais importantes:
Humanisme de l'autre Homme
(1972) e
Autrement quêtre ou au
-
delà de l’essence
(1974).
O pensamento filosófico de Lévinas foi influenciado por muitos autores, mas dois,
dentre eles
,
ocuparam
-
no durante todo o seu itinerário filosófico: Heidegger e Husserl. É o
próprio Lévinas que diz: “É sem dúvida Husserl que está na origem de meus escritos”
(LÉVINAS, 1997, p. 165). O seu método, portanto, terá muito da fenomenologia, embora,
mais maduro, venha a superá-la. Mais tarde, ele dirá: “começo com Husserl ou em
Husserl, mas o que digo já não está em Husserl” (LÉVINAS, 1984, p. 31).
A feno
menologia
, para Lévinas, não era apenas um método, mas um modo de
filosofar.
Ele
concorda com a crítica de Husserl ao psicologismo de sua época, que
pretendia explicar o conhecimento humano apenas a partir da relação sujeito
objeto.
A razão profunda pela qual Husserl se volta contra o psicologismo, razão
que explica todas as outras, é que o psicologismo pressupõe uma teoria do
ser. Sem sabê-lo, talvez, o próprio psicologismo es fundado sobre uma
filosofia mais geral, sobre uma filosofia que interpreta de uma determinada
maneira a estrutura do ser; resumindo, está fundado sobre uma ontologia, e
esta ontologia é o naturalismo. [E mais adiante acrescenta:] Mas, para
Husserl, as ciências da natureza e as ontologias regionais não esgotam o
estudo do ser (LÉVIN
AS, 1930, p. 18).
De fato, segundo Husserl, a cultura ocidental encontrava
-
se numa profunda crise
por causa do naturalismo” e do “objetivismo” nas ciências, pois a interpretação que
faziam do real reduzia-se às coisas materiais. O Real seria aquilo que podia ser medido
e calculado. O problema do naturalismo foi achar que as ciências da natureza poderiam
compreender o Real, o ser enquanto ser. Para Husserl, o naturalismo tratava de regiões
do ser, sendo, portanto, uma ontologia regional
,
e não
,
uma ontolog
ia geral.
Apesar d
e
a tese doutoral de Lévinas ter buscado enfatizar o caráter intuitivo do
pensamento de Husserl, o que mais
lhe
interessará será essa diversidade de regiões do
ser na ontologia husserliana, ou seja, a possibilidade de ontologias regionais
.
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A ontologia regional revela que ser
,
numa determinada região não significa não
-
ser ou cair no vazio. E se há regiões, há diferença entre uma e outra região. Cada região
do ser, desse modo, implica a essência do ser e de ser nes
s
a região ou, ainda, de ser
de
modo peculiar nes
s
a região.
[...] as regiões do ser diferem entre si não somente por suas essências e pelas
categorias que delimitam suas essências, mas também por sua existência. O
próprio fato de ser, de encontrar-se aqui, não é uma característica vazia e
uniforme que se sobreacrescentará às essências que, sozinhas, teriam o
privilégio de poder se diferenciar entre si. Existir não significa a mesma
coisa em todos os lugares” (LÉVINAS, 1930, p. 22
-
23).
O fato de o ser existir de diferentes maneiras em diferentes regiões revela a
necessidade de uma ontologia que se interrogue sobre a existência do ser, sobre a
significação do fato de o objeto ser e sobre o modo de existir das diferentes regiões do
ser.
Não podemos aqui mais que mencionar esse novo pr
oblema da ontologia que
consiste em tomar como objeto de investigação o somente a essência do
ser, mas também a sua existência, e perguntar o que significa o fato de o
objeto ser. Qual é o modo de existir das diferentes regiões do ser?
(LÉVINAS, 1930, p.
22)
Tais questionamentos aproximarão Lévinas do pensamento de Heidegger. Mas,
antes de passar à influência de Heidegger sobre o pensamento de Lévinas, é importante
destacar o papel exercido pela “redução fenomenológica” husserliana na filosofia
levinasia
na.
Para Lévinas, “a redução é um ato pelo qual o filósofo reflete sobre si próprio e,
por assim dizer, neutraliza em si o homem que está vivendo num mundo, o homem que
está considerando esse mundo como existente, o homem que está fazendo escolhas
nesse mu
ndo. A redução consiste em olhar
e
viver.” (LÉVINAS,
19
29
, p. 221)
A partir da fenomenologia, Lévinas postula a necessidade de uma ontologia que
conta dos modos de existência do ser, em suas diferentes regiões, e que não seja
vazia ou apenas formal. Tal ontologia deverá dar conta também do humanamente
vivido como condição de possibilidade da existência, da consciência, da redução, etc.
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Est
a foi, originariamente, a intenção de Husserl: buscar na vida concreta o lugar do ser.
“Ao afirmar o primado da teoria em Husserl, vamos, ao mesmo tempo, sublinhar que
sua tese essencial consiste em pesquisar, na vida concreta, o lugar do ser” (LÉVINAS,
1929, p. 223).
A influência da fenomenologia de Husserl demonstra o quanto o pensamento de
Lévinas, num primeiro momento, ocupa-
se
da questão ontológica, sem ainda se
importar com o problema ético. E será a partir dessa ontologia e, também, da de
Heidegger, que Lévinas tomará fôlego e impulso para ir mais além da própria
ontologia.
Assim como Husserl, Heidegger influenciou decisivamente o pensamento de
Lévinas
, cuja obra filosófica, segundo René Bucks, pode ser vista como uma tentativa
de repensar as idéias básicas de Heidegger (BUCKS, 1997
).
Enquanto Husserl identifica a perda do contato com a realidade concreta de
onde
surge o sentido como sendo a causa da crise européia, propondo uma
fenomenologia que esclareça as essências dos vários objetos científicos e proporcione
às ciências um fundamento para o mundo em que vivemos, Heidegger identifica a crise
da cultura ocidental na entificação ou no “esquecimento do ser”. Para ele, a superação
da crise não está numa fenomenologia eidética dos entes, mas numa investigação
fenomenológica do
ser
enquanto tal, âmbito em que os entes originalmente adquirem
sentido
. É o próprio Lévinas que lembra, com admiração do modo como era tratado o
problema referente ao
ser
em
Ser e Tempo
, como mostra o fragmento abaixo:
Habitualmente, fala-se da palavra ser como se fosse um substantivo, embora
seja, por excelência, um verbo. Em francês, diz-
se
l’être
(o ser), ou
un
être
(um ser). Com Heidegger, na palavra ser revelou-se a sua
‘versatilidade’, o que nele é acontecimento, o ‘passar-se’ do ser. Como se as
coisas e tudo o que existe se ‘ocupassem em estar a ser’. Foi a esta
sonoridade verbal que Heidegger nos habituou.
[...]
A ontologia, nesse
contexto, significa precisamente, a compreensão do verbo ‘ser’” (LÉVINAS,
1982, p. 30).
Segundo Lévinas, a intuição mais importante de Heidegger foi a descoberta da
diferença ontológica, isto é, a diferença entre
ser
e
ente
, fundamental para toda a sua
filosofia. A filosofia ocidental, em sua versão ontoteológica, caiu no esquecimento do
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ser, tratando o ser, inclusive Deus, como se fosse um ente. O ser, para Heidegger, é o
próprio evento do ser de todos os entes. Onde, então, se verifica esse evento? Em todo
lugar onde há entes, porém há um lugar privilegiado no qual o ser se mostra: na
existência humana. O ser humano existe de tal maneira que, “ao existir, sempre se
preocupa com sua própria existência” (LÉV
INAS, 2001, p. 61). Is
s
o significa dizer que
o ser humano, ao
ser
humano revela o ser e a sua existência (de ser humano),
permitindo compreender o ser. Um exemplo, nesse sentido, encontra-se no estado de
angústia. Tal situação não é apenas um estado psicológico, mas um modo de o ser se
revelar, possibilitando, assim, a sua compreensão. O ser não é uma realidade fixa no
tempo, trata
-
se de um verbo no gerúndio, sempre vindo a ser. O
ser
é
sendo.
Lévinas
,todavia,
irá distanciar-se cada vez mais de Heidegger, c
riticando
-o por
ter ficado preso na finitude. Ademais, se a compreensão do Ser é o próprio existir
humano, como explicar os atos ou efeitos irracionais do ser humano? Para Lévinas,
esses fatos põem em xeque a compreensão ontológica sugerida por Heidegger.
No
entender de Lévinas, para a filosofia heideggeriana, a existência humana está
totalmente a serviço do ser neutro que se ilumina nela. Inclusive a relação com o outro
encontra sua orientação na luz do ser.
2.2
A ÉTICA COMO
FILOSOFIA PRIMEIRA
Um problema que se apresenta ao estudo sobre a filosofia de Emmanuel Lévinas
são as suas noções de “ética” e “metafísica”. Ao estabelecer uma correspondência entre
ética e metafísica, logo percebemos que existe uma abordagem diferenciada daquela
elaborada pela tradição filosófica ocidental. Diante de uma nova compreensão, logo se
instaura uma questão: Que originalidade em tais
noções
em relação à filosofia que as
antecedeu? Ora, nosso tempo é marcado pelas grandes inovações,
pelas transformações
culturais e
pe
las
novidades tecnológicas. Apesar disso, o “novo” acabou perdendo a sua
originalidade. Noções do tipo “modernidade” e “pós-modernidade” soam, muitas vezes,
como expressões desgastadas, sem que se refiram a um fenômeno realmente novo.
Desse modo, restará à filosofia algo além do que pensar e refletir tudo o que nos foi
posto pela tradição? Lévinas situa
-
se entre os pensadores que ensaiaram uma ruptura.
A
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Sendo
um filósofo contemporâneo, que jamais abandonou o modo próprio do
philosophos
de duvidar, perguntar e criticar, Lévinas não nega a importância da tradição
filosófica ocidental, até porque, em filosofia, qualquer crítica é possível a partir do seu
legado filosófico. Como grande filósofo, também não se contentou apenas com o que
fora
dito
, mesmo diante do seu mestre Martin Heidegger, cuja crítica não foi menor do
que a sua admiração. Mas, afinal, qual foi a originalidade de Lévinas ou em que sua
filosofia pode nos ajudar a descortinar novos horizontes?
O pensamento de E. Lévinas é marcado pel
o problema
ético
. Porém, a ética que
ele
procura construir passa pela desconstrução da ontologia. Não se trata de uma negação,
mas de um olhar de dentro da própria ontologia a fim de mostrar qual é o seu sentido e o
que ela pode fundamentar, para não incorrer no erro de considerá-la como fundamento de
algo que ela não abarca. A ética, na filosofia levinasiana, é esse algo que se encontra para
além da ontologia.
É exatamente esse fora da ontologia que constitui a originalidade da concepção
levinasiana de ética. Como bem lembra Henrique de Lima Vaz, “a concepção platônica
do
ethos
repousa sobre essa relação originária e originante entre o homem e o ser, que se
exprime no
logos
do ser (Ontologia)” (LIMA VAZ, 1993, p. 51). A Ética ocidental,
herdeira da filosofia platônica, tem como princípio o logos do ser, portanto é subordinada
à Ontologia. Lévinas, ao instituir uma nova noção de ética, não quer se opor a essa ou
àquela concepção de ética especificamente, mas a toda ética que tem como fundamento
uma matriz
ontológica.
O problema levantado por Lévinas diz respeito à relação entre “ontologia” e
“ética”.
E concebe que
a ontologia refere
-
se ao ser, à totalidade, ao uno, e nisso ele está de
acordo com a tradição. Porém, nega-se a aceitar que a metafísica seja correspondente à
ontologia. Para
ele
, a ontologia trata do “ser” ou da “essência”,
e
a metafísica, “do outro
modo que ser” ou “para além da essência”. Enquanto a ontologia diz respeito ao
“Mesmo”, a metafísica refere
-
se ao “Outro”.
A aproximação entre “ontologia” e “metafísica” foi uma constante na filosofia
ocidental. Tomemos, por exemplo, Aristóteles, do qual herdamos a expressão “filosofia
primeira”.
A
filosofia primeira aristotélica
encontrava
-se justamente em oposição à
filosofia segunda que se ocupava da
physis
. No sentido grego,
physis
referia
-
se
à natureza
A
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sujeita
a mudança, que nascia e morria, que aparecia e desaparecia. A filosofia primeira
trata das realidades transfísicas ou suprafísicas.
15
Seu projeto, portanto, consistia em
ultrapassar o mundo empírico para alcançar uma realidade meta-empírica. É o próprio
Aristóteles que estabelece os objetos dos quais irá tratar a filosofia primeira. Ela irá
indagar sobre as causas e os princípios primeiros ou supremos
16
; o ser enquanto ser
17
; a
substância
18
; Deus e a substância supra-
sensível
19
. Essa forma de estruturar a
filosofia
primeira
de Aristóteles segue, de certo modo, a tradição que o precedera. Os primeiros
filósofos gregos, os chamados pré-socráticos, já refletiam sobre o
princípio
(
arché
).
Platão,
da mesma forma, com sua teoria das Idéias, buscava as “causas primeiras”. Antes
dele, Parmênides já indagava sobre o
ser
, o
ser puro
.
Esse tipo de filosofia ou esse modo de filosofar, sem o propósito de simplificar e
ignorar as variantes e as sutilezas que cada pensador apresentara, tende para
uma
verdade.
Em geral, a metafísica caminhou em busca da verdade que fosse
una,
excluindo a
possibilidade de um terceiro caso ou terceira via
,
fundamentando, portanto, a
racionalidade autológica a que nos referimos no capítulo anterior. A verdade referia-se a
uma realidade
transcendental
. Entendendo-se, aqui, transcendental como algo essencial,
relativo ao ser das coisas, acompanhando todas as suas modificações ou modos, mesmo
que estejam circunscritos a um setor do ente, transcendendo a todas as ordens particulares
limitadas.
A metafísica é, na maioria dos casos, compreendida também como
ontologia,
uma
vez que sua questão principal era concernente ao
ser.
Trata-se de uma investigação, um
perguntar, uma tentativa de elaborar um discurso sobre essa verdade através do exercício
15
Em Ética como Filosofia Primeira, na primeira nota, Lévinas cita Aristóteles. Fazemos aqui uma tradução de
suas palavras para o português.
Metafísica,
G, 2, 10005a: “Portanto, pertence a uma ciência única estudar o
Ser enquanto ser, isto é evidente.” E esta ciência pode ser designada ( G,2, 1004a): “E a Filosofia trata
exatamente das partes em que há substâncias; há portanto necessariamente, ao nome destas partes, uma
Filosofia primeira e, depois, uma Filosofia segunda. O Ser e o Uno se dividem, com efeito, imediatamente,
em certos gêneros, e esta divisão levará a uma divisão correspondente de gêneros”. A, 1, 1069a-
1069b:
“Existem três tipos de substâncias. Uma é sensível, e se divide em substância eterna e uma substância
corruptível [...] A outra substância é imóvel [...] As duas substâncias sensíveis são o objeto da
Psysique
,
porque elas implicam o movimento; mas a substância imóvel é o objeto de uma ciência diferente, pois ela não
tem nenhum princípio comum com as outras espécies de substâncias.” Estas “ciências separadas” como é a
realidade da qual ela se ocupa é nesse sentido Metafísica ou Filosofia Primeira. E é desta que se ocupará o
livro A
,
em particular
,
a parte do capítulo 6. (LÉVINAS, 1998, p. 111
-
112).
16
Metafísica
, livros, A, a, B.
17
Metafísica
, livro G (assim como os livros E 2
-
4; K 3).
18
Metafísica
, livro Z, H, Q.
19
Metafísica
, livro E 1 e todo o livro L.
A
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teórico (para Aristóteles, a filosofia primeira,
a
física e a
matemática
eram consideradas
ciências teoréticas)
20
. A
meta
-
física
postula essa possibilidade do acesso à realidade
transcendental (se n
ão
, por completo, pelo menos em parte) pelo intelecto humano, ou
seja, concebendo o homem como o único ser capaz de ter acesso à verdade.
Contra essa filosofia ou metafísica, Lévinas irá se insurgir. O além (ou o
metafísico) não se situa no essencial, mas para além dele. O autor postula a possibilidade
de um
terceiro,
algo que se encontra para além da essência. A verdade, sentido da
filosofia, revela-se no pensamento levinasiano, não como uma busca do
uno
, mas um
encontro com o
outro
. E é nesse sentido que a metafísica corresponde à ética, e não, à
ontologia. Por ser um encontro com o outro, para além da essência, a metafísica terá que
ser ética
,
e não
,
ontologia, pois esta se ocupa “apenas” do ser ou da essência.
Aqui encontramos os pilares para a construção de uma epistemologia
dialógica
,
para além da epistemologia autológica. Trata-se, como dissemos, de uma desconstrução
da ontologia e daquilo que constitui o seu âmbito: a Totalidade, o Mesmo, o Uno, a
Essência. Ora, se a ontologia trata do Mesmo, o Outro terá que se encontrar para além
dele, portanto, para além da ontologia. Esse é o raciocínio de Lévinas. Toda oposição que
seja capaz de inserir-se ou conformar-se na Totalidade deixa de ser um termo outro e
passa a fazer parte do Mesmo. Nesse movimento de síntese ou unificação, não há
possibilidade para o Outro. Esse movimento
essencial
de captar e dominar, próprio da
ontologia, elimina qualquer relação genuína de alteridade. O projeto de Lévinas consiste
em chamar a atenção para a presença do Outro que se manifesta, independentemente de
o
Eu afirmá-lo ou não. O Outro não provém de mim, do Eu. Ele vem a mim, sem que eu o
tenha chamado ou afirmado. O Outro é um evento ético-metafísico, pois
se
encontra num
movimento que está para “além da essência”, isto é,
refere
-se a “outro modo que ser”,
totalmente diverso do
Dasein
heideggeriano, um existir voltado para si.
Os esforços educacionais, caso opt
ássemos
por assumir um projeto com bases
nesse evento ético-metafísico, ao invés de
se
fixar
na dimensão cognitiva do ser humano
ou priorizá-
la
, passaria desenvolver e privilegiar o sujeito em seu movimento de ir além
de si mesmo, em favor do outro,
dando,
portanto ênfase às habilidades sociais e
20
Metafísica,
E 1
ss.
A
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atitudinais, priorizando a dimensão intersubjetiva. Trata-se de outro mov
imento
educacional
,
que privilegia o cuidado, a acolhida e
o
compromisso com o outro.
A ética elaborada por Lévinas não se configura a partir de um fundamento
ontológico.
Ele
não procura construir uma ética enquanto projeto normativo. A ética
levinasiana
coloca em relação termos absolutamente separados, razão pela qual não é
possível ter como fundamento a ontologia que tende a
mesmificar”
e sintetizar o que é
plural. É necessário, portanto, um outro caminho. É preciso sair do
ser
, e não, ir em sua
direçã
o. A ética (assim como a metafísica levinasiana) é esse sair do ser em direção ao
além do ser, é uma saída da essência para além da essência, não para o não
-
ser nem para o
ser de outro modo, pois, em todos esses casos, continuaria o regime do ser. Lévinas
procura algo que atua de modo diferente do vigor do ser, um acontecer “de outro modo
que ser”. E é para além do ser que Lévinas situa o outro. A ética será esse “outro modo
que ser”, um ocupar
-
se do outro
,
e não
, do
próprio ser.
Assim,
é possível perceber que a compreensão da ética levinasiana não é possível
sem ter presente a ontologia, embora não esteja nesta o seu fundamento. Se a ética é um
além da essência, é preciso compreender o que Lévinas entende por essência, para assim
podermos saber o que sig
nifica esse “ir mais além”.
Lévinas procura, então, esclarecer o significado do termo essência numa “nota
preliminar”
, no início da obra Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, que destacamos
a seguir
:
O termo
essência
significa aqui o
ser
distinto d
o
ente
, o
Sein
alemão, distinto
do
Seiendes
, o
esse
latino como distinto do
ens
escolástico. Não tivemos a
ousadia de escrever “essance” (em francês), como teria a história da língua
na qual o sufixo
ance
(em francês), procedente de
antia
ou de
entia
, tem
dado lugar a nomes abstratos de ação. Evitar-
se
cuidadosamente usar o
termo
essência
e seus derivados em seu modo habitual em que é empregado.
No que toca a
essência
,
essencial, essencialmente, se entenderá eidos,
eidético, eideticamente ou natureza, qüididade, fundamental e semelhantes
(LÉVINAS, 1999, p. 41).
A preferência de Lévinas por
essance”
, com “a”, quer chamar
a
atenção para
o
caráter
verbal
da palavra
ser
, procura exprimir o ato ou o acontecimento ou o processo
do
esse
, o ato do verbo
ser
, assim como
“insistance”
(LÉVINAS, 2002, nota 2 da p. 142
e p. 154). Nesse aspecto, Lévinas segue as pegadas do seu mestre Heidegger. A essência
A
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diz respeito ao ser, ao movimento de ocupar-se consigo, numa busca incessante de
com
-
preender
a si e
a
o mund
o circundante.
O “ir mais além” da essência é inserir-se num movimento de transcendência da
própria existência, é ocupar-se não mais apenas de si próprio, com uma compreensão em
favor de si, mas
de
outrem, uma existência voltada e em favor do outrem. E é n
esse
sentido que podemos compreender o termo
metafísica
na filosofia levinasiana.
Lévinas
(1980, p. 21) compreende a metafísica como uma realidade outra, distinta
da realidade em que nos encontramos. A metafísica “está voltada para o ‘outro lado’, para
o ‘
doutro modo’, para o ‘outro’”
.
O pensamento
o
cidental, em suas origens, compreendeu
a metafísica nessa perspectiva, ou seja, de uma outra realidade que o ser humano deseja e
que se encontra fora
-
de
-
si, um além. Esse desejo não é como uma necessidade de al
go que
conheço, como se, em algum tempo, estivesse comigo, e a sua busca fosse algo que
faltasse ao meu ser, “incompleto ou decaído da sua antiga grandeza”. Esse desejo,
chamado por Lévinas de “desejo metafísico” refe
re
-se a algo que não se conhece e a sua
realidade “está para além de tudo o que pode simplesmente completá-lo” (LÉVINAS,
1980, p. 22).
Essa realidade desejada não pode absolutamente ser integrada na identidade, pois
é
algo absolutamente outro. Não existe correlação entre a Identidade e o Outro, como se
fosse possível integrá-los em um mesmo sistema. Essa outra realidade é metafísica, é
necessariamente uma “trans-ascendência”. Uma transcendência que fosse possível de
integrar
-se à unidade do sistema não seria mais transcendência, pois
se
reduziria ao
Mesmo, deixaria de ser Outro.
O termo transcendência poderia nos indicar uma realidade de absoluta perfeição
frente à situação de imperfeição. Se assim
o
fosse, a transcendência seria uma pura
negação que a colocaria numa única totalidade. Lévinas emprega o termo
Infinito
a essa
realidade que está além, uma realidade outra, absolutamente outra.
A metafísica tem a preocupação crítica da ontologia, pondo em questão o exercício
dogmático e arbitrário da liberdade que tende a reduzir o Outro ao Mesmo (termo geral,
termo terceiro). A crítica à metafísica ou a essa teoria (a ética, como filosofia primeira),
que se ocupa da exterioridade, deve ser feita, segundo Lévinas, além da ontologia, pois é
esta que é criticada. Essa “crítica não reduz o Outro ao Mesmo como a ontologia o faz,
A
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mas põe em questão o exercício do Mesmo” (LÉVINAS, 1980, p. 30). Qualquer crítica,
portanto, a essa metafísica terá que ser
dialógica
, no encontro com outra lógica. A
epistemologia autológica, nesse sentido, encontra o seu
limite.
A ontologia, compreendida aqui também como epistemologia autológica, usa os
termos “médio e neutro” para reduzir o Outro ao Mesmo. Nesse sentido, Sócrates é visto
por Lévinas como o primeiro a realizar essa redução e assevera: “Nada deve receber de
Outrem a não ser o que está em mim,
21
como se, desde a eternidade, eu possuísse o
que me vem de fora. A filosofia é uma egologia.” (LÉVINAS, 1980, p. 31)
Para Lévinas, a Razão
detém
uma intencionalidade, fruto da liberdade. A Razão
move
-
se no sentido
de reduzir o Outro ao conceito, a um elemento neutro, transformando-
o em tema, objeto.
Nesse sentido,
“conhecer equivale a captar o ser
[...]
e reduzi
-
lo a nada,
arrebatar
-lhe a sua alteridade” (LÉVINAS, 1980, p. 31). Uma vez transformado em
objeto, o ser
é privado de sua resistência.
Entretanto, é a partir da ontologia do
ser
que encontramos condições para uma
verdadeira metafísica, pois, do contrário, tudo permaneceria no Mesmo, tudo estaria
sujeito ao ser dos entes. Todos os entes estariam, de algum modo, unidos num mesmo
fundamento, o ser. Trata-
se
, pois, de um constante exercício de ser. A essência, como dirá
Lévinas, é interesse (inter + esse
inter-
essência
), no sentido de haver uma relação, não
de pólos distintos, mas de termos que se complementam, que procuram absorver um ao
outro no mesmo exercício de ser. O termo “interesse”, utilizado por Lévinas, traz esse
duplo sentido: relação não gratuita, e sim, interessada. Nas palavras desse autor: “O
interesse do ser se dramatiza nos egoísmos que lutam uns contra os outros, todos contra
todos, na multiplicidade de egoísmos alérgicos que estão em guerra uns com os outros e,
ao mesmo tempo, em conjunto” (LÉVINAS, 1999, p. 46).
Podemos afirmar que é um comércio, um jogo de interesses, em que os seres se
ocup
am com o seu próprio ser (ou do seu ser próprio). Porém, não é um jogo qualquer,
mas
um jogo construído a partir da Razão, da paciência, do cálculo, da política.
21
Teeteto, 148
a
150 c.
A
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2.3
A LINGUAGEM ENQUANTO
EXPRESSÃO AO/DO OUT
RO
Diante de todo esse jogo da Razão, restará a
lguma possibilidade de fazer
filosofia
a
respeito desse outro modo que ser? Não corremos o risco de, ao
falar
sobre o Outro, cair
numa teoria semelhante à ontologia, criando um termo outro, mas, ainda assim, neutro?
No interior do problema metafísico e ontológico, desdobra-se o problema da
linguagem.
Porém, a linguagem, para Lévinas, não é apenas um meio para
indicar
e mostrar a
verdade.
Ela é a própria manifestação da verdade, sem que, nessa manifestação, tudo
tenha que ser revelado. A linguagem jamais p
oderá dizer o
indizível
, haverá sempre algo a
ser dito sobre o Infinito,
cuja
manifestação acontece no tempo, situação que impõe limite
até mesmo para a ontologia que se refere à essência, a algo que está constantemente vindo
a ser. Muito mais limite haverá a respeito do outro modo que ser, sobre o qual não
discurso, e sim, manifestação. Enquanto a linguagem, na ontologia, é um discurso a
respeito do
ser;
na metafísica, o que encontramos é a expressão do Outro, manifestação de
outro modo que ser.
Mas, de qualquer forma, não como fazer filosofia sem o discurso ontológico,
pois é ele que diz sobre o que é, mesmo que esse discurso seja constantemente
re
-
feito
.
Lévinas trabalhará com duas categorias: o
Dito
e o Dizer, para tratar do problema da
linguagem
na Ontologia e na Metafísica. A ontologia destina-se ao
Dito
; a metafísica, ao
Dizer.
O autor compreende que o outro modo que ser encontra-se, a partir da ontologia,
aprisionado na supremacia do
dito
sobre o
dizer
. A força do
dito
encontra-se no peso d
os
signos verbais, nos sistemas lingüísticos. Anterior a todo esse jogo (racional), encontra-
se
o outro, destinatário do meu
dizer
. A linguagem tem sentido enquanto dirigida a outro;
anterior a qualquer regra semântica ou sistema lingüístico, encontramos o outro. O
encontro com o outro já é linguagem, no sentido de
dizer
.
Nesse sentido, o
dizer
é anterior a qualquer
dito
. A presença do outro é anterior a
qualquer enunciado. Nesse encontro, ao invés de interesse, o que existe é desinteresse,
gratuidade.
É um outro modo que ser, que não
tende
ao ser próprio, senão ao outro ser
,
ser
-
para
-outro. O
esse
do ser, na sua
posição
mais radical, mais original. O
esse
do ser,
muito além do ser-
para
-si, é para-outro, não no sentido piedoso de uma benevolência em
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vist
a de uma paz interior ou na esperança da vida eterna, pois, nesse caso, permaneceria o
jogo de interesse. O
dizer
remete a um princípio (
arché
),
anterior a qualquer
dito
,
e
à
presença do outro.
Lévinas não quer, ao indicar esse modo original de ser ou de linguagem, relegar o
dito
a uma posição secundária, como algo sem importância. Ele reconhece a sua
importância, até porque, sem o
dito
, não haveria sequer como tratar do problema a partir
de um ponto de vista filosófico. Porém, o mais original é o
dizer
, o encontro
desinteressado com o outro.
Existe, pois, uma correlação entre o
dizer
e o
dito
, “onde o dizer acaba
subordinando
-se ao dito, ao sistema lingüístico e à ontologia” (LÉVINAS, 1999, p. 48-
49). A linguagem, enquanto
dito,
é como um “mal necessári
o”
e, nas palavras de Lévinas,
uma
“linguagem escrava, porém, indispensável. [
...
] Linguagem que permite dizer ainda
que de modo traiçoeiro
esse
fora de si
” (LÉVINAS, 1999, p. 49).
Lévinas considera essa traição do
dizer
pelo
dito
como um problema meto
dológico.
Poderá o
dito
traduzir o
dizer
? Em outras palavras, poderá o
dizer
ser tematizado? Esse
princípio original do encontro com o Outro poderá ser enunciado em proposição? Mesmo
quando se referir a um ser “indizível”, “an
-
árquico”?
Estamos,
evidentem
ente,
diante
de um problema filosófico.
22
Sobre outro modo
que ser formam-se enunciados que afirmam, porém não esgotam esse outro modo de ser
,
que se referem a algo que esmais além. Assim, o enunciado indica algo que ele
mesmo não pode conter, uma es
pécie de
dizer
e
desdizer
. O problema se coloca no sentido
de exigir uma simultaneidade do
dizer
e do
desdizer
, o que significaria uma referência
ao outro
que não o
ser
ou o
não
-
ser
, o que, para a lógica formal, não teria sentido. Resta à
linguagem, portanto, sem cair no ceticismo, assumir o seu caráter ambíguo ou enigmático,
em que “a significação significa mais além da sincronia, mais além da essência”
(LÉVINAS, 1999, p. 51).
Isso porque descobrir a verdade do
ente
só é possível à luz da
essência.
Enqu
anto a
essência
, é na ambivalência do tempo (desprendimento da essência e retorno a si), o
ente
,
as coisas, descobrem
-
se no vivido, no temporal, na sensação. Porém, também na sensação
,
22
Compreendo que esse problema
,
chamado por Lévinas de
metodológico
,
é, na sua raiz, um problema
filosófico
.
A
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encontramos ambivalência, em que se revelam o senciente e o sentido, e, mais uma vez,
encontramos um movimento de saída do ser do ente e de retorno a si. O ser do ente segue
as pegadas do ser, percorrendo o tempo em movimento,
23
por isso a dificuldade de fazer
da consciência algo absoluto ou hegemônico, pois ela jamais seria capaz de ter a verdade
como objeto. A verdade do ser não se objetiva, mas se realiza sem parar. Qualquer
verdade objetivada estará em defasagem em relação à verdade do ser. Aqui, vale a
metáfora heraclitiana do movimento das águas do rio. A verdade não se fixa, ela flui, e
essa fluência é a própria temporalidade do tempo,
que
não pode ser reduzido a
acontecimentos temporais, como se fosse uma sucessão de fatos possíveis de ser retidos e
por meio dos qua
is
se manifesta a sensação, sente-se, modifica-se sem alterar sua
identidade. “A modificação temporal não é um acontecimento nem a ação ou o efeito de
uma causa, é o verbo ser” (LÉVINAS, 1999, p. 83).
O verbo indica um acontecimento no tempo, um evento do ser referido a um ente, a
um acontecimento, a uma ação. Porém, não é apenas esse o alcance do verbo.
Ele
pode,
também
, não indicar, não nomear. Aqui o verbo permanece em sua própria verbalidade,
sem simbolização ou nomeação. E é justamente no
ser
que o verbo recupera sua função de
verbo, deixando de ser um nome ou uma ação apenas. Assim como o ser, o verbo
apresenta uma realidade em movimento, por isso não serve como nome, que tem a função
de designar, de nomear.
A verdade, como vimos, pertence ao ser que é, por excelência, essência, “ir sendo”,
modificando
-
se
sem perder a identidade. A verdade sobre os entes terá que comportar esse
movimento da essência, pois, do contrário, a verdade do ente seria a verdade em um ponto
do tempo, ou seja, temporal, e uma verdade temporal tem validade em seu tempo. Mas
que tempo? O sujeito que inicia um enunciado encontra-se num tempo distinto de quando
termina esse enunciado. O que nos resta? Ficaremos sujeitos ao puro ceticismo? Lévinas
quer chamar a atenção para o uso da linguagem que fala da verdade, inclusive a verdade
dos
entes, a qual não poderá ter a função de nomear, mas sim, de revelar o caráter
dinâmico do
ente
, o que só é possível dizer pelo
verbo.
23
Esse modo de pensar coloca em xeque qualquer possibilidade de uma consciência absoluta ou hegemônica
(objetivad
ora ou objetiva), visto que jamais dominará o ser no seu movimento.
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Assumir o verbo enquanto signo, mascarando-o de um simples nome, significa
adotar uma ontologia que compreende a verdade dos entes enquanto substância, enquanto
fato acabado.
O verbo revela o caráter dinâmico da essência e da verdade do ente. Os termos
Dito
e
Dizer
, utilizados por Lévinas, representam essa reflexão. O
Dito,
independente
mente
das formas de enunciados, indica
, designa uma “verdade”, porém uma
“verdade congelada”, que já não revela o
ser
. O
Dizer
não indica, pois é a própria
expressão do ser que não cessa de ser. Na língua portuguesa, encontramos a expressão
“tenho dito”, que tem o significado de uma sentença, uma conclusão, o término de uma
discussão. A verdade do ser expressa justamente o contrário dessa idéia,
porquanto
o ser
não se congela, não é estático, e sim, dinâmico. O ser é constantemente, sem ter término.
E, nesse sentido, o
Dizer
, enquanto verbo, ap
resenta
-se como manifestação da verdade, da
essência e do ente.
Afirmar que ser é verbo não significa, pois, simplesmente ou, ao menos, não
significa tão-somente, que uma certa palavra, realidade sonora ou gráfica, da
realidade cultural, classificada pelos gramáticos entre os verbos, é o signo
que designa um processo e uma ação fundamental que, enquanto tais,
poderiam passar-se sem a linguagem; no mesmo grau em que sucede com a
linguagem em tanto que denominação ao dublar o ente significado, essa
linguagem
não é indiferente a esse ente e não se limita a deixá-lo ver.
Afirmar que o ser é verbo tampouco significa, pois, que a linguagem, como
se fosse uma denominação exterior, permanece estranha à essência que
nomeia e somente permite ver essa
essência.
O nome, que dubla ao
ente
que
nomeia, é necessário para sua identidade. O mesmo sucede com o verbo: não
somente não é o nome do ser, senão que na proposição predicativa é a
ressonância mesma do ser entendido como ser. A temporalização ressoa
como
essência
na apo
fansis (LÉVINAS, 1999, p. 90).
O
Dito
fala da essência, na sua ambigüidade, na “anfibiologia em que o ser e o ente
podem entender-se e identificar-se, onde o nome pode ressoar como verbo e o verbo da
apofansis
pode nominalizar-
se”.
Porém, de qualquer forma, o verbo
ser
, que oculta ou
expõe a essência, acaba se nominalizando, pois, no
Dito
, o verbo se converte em palavra
que designa e consagra identidade, situando
-
as no tempo. Desse modo, o verbo
ser
passa a
ser considerado como um ente. A anfibiologia entre o ser e o ente permanece. A
identificação, independente da sua forma, aprisiona a
essência
no tempo, na palavra, no
logos
.
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No âmbito do
logos
, toda vivência (
Erlebnis)
equivale a um desgarramento da
essência
, possível à nomeação e identificação. E, desse modo, o verbo ser, ao invés de
ressoar
,
designa
. E é aqui que se encontra a crítica de Lévinas à ontologia, pois o seu
ponto de partida encontra
-
se no Dito e fala do
ser
como um ente identificado.
Lévinas não ignora o papel e o valor do Dito na filosofia.
O discurso ontológico é o
discurso eminentemente filosófico, pois se refere à verdade do ser. Porém, em vista
mesmo do projeto filosófico de busca da verdade, é que o Dito não pode ser assumido
como primordial e prioritário, pois, anterior a ele, encontramos o
Dizer
, eco da essência,
do ser; antes de o
nome
indicar, o
verbo
fala.
Enquanto ocorre a anfibiologia entre o ser e o ente no Dito, o Dizer caminhará à
margem do Dito. Porém, antes dessa anfibiologia, o Dizer refere-se ao Dito. Anterior à
tematização
, o Dizer refere-se ao outro próximo que se apresenta na relação. Esse poderia
ser chamado, segundo Lévinas, de humanidade, subjetividade ou
si mesmo
. A questão que
se coloca é a seguinte: “O que significa o Dizer antes de significar algo Dito? Para
Lévin
as, o Dizer não é apenas um apresentador de essências e entes.
Não no Dizer um significado ontológico ou ôntico; ele caminha à margem da
ontologia. Apesar de o Dizer ser apreendido pelo Dito, ao ser “nomeado”, esse será
apenas uma modalidade do Dizer. No Dito, não
rosto,
e sim, enunciados. O Dizer
revela
-se na fala de um para o outro. Não apenas um “dizer anterior”, um pensamento
consigo mesmo, um si mesmo que fala a outrem, ou melhor, que fala, não a partir do Dito
que equivale a falar de si próprio,
mas do “responder do outro”, ou seja, o Dizer tem como
princípio o Outro, e o, o si mesmo. Existe uma relação, mas ela se revela de forma
assimétrica, visto que o motivo do Dizer encontra-se no outro; sem o outro, não haveria o
Dizer, restaria apenas o Dito. O Dizer, nessa perspectiva, está longe de equiparar
-
se a uma
subjetividade soberana e ativa.
Lévinas procura construir o seu discurso sobre o
ser
e de outro modo que ser
ou
mais além da essência fora das categorias ontológicas. Esse “fora” da ontologia significa
uma busca de compreensão do
outro
, sem lhe atribuir uma série de títulos e definições,
seja como obstáculo à liberdade, ao princípio de inteligibilidade ou à perfeição; o
outro
tampouco é compreendido como ser finito, mortal e inseguro, nem mesmo como
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colaborador ou como Deus caridoso. Para Lévinas, em todos esses casos, pensa-
se o
outro
ontologicamente, enquanto algo passível de se atribuir uma identidade.
O
outro modo que ser está fora de toda e qualquer qualificação ontológica, esà
margem
de todo atributo. Não se quer, com isso, desconhecer o ser, “nem tratá-lo na
ridícula pretensão de um modo desdenhoso, como o desfalecimento de uma ordem ou de
uma desordem superior”. Porém, diante do que não é nominável, a filosofia não pode
permanecer muda. “É preciso uma comparação entre os incomparáveis e uma sinopse;
necessita
-se de tematização, pensamento, história e escritura. Porém, precisa-
se
compreender o ser a partir de o outro que o ser(LÉVINAS, 1999, p. 61). Aqui reside o
projeto levinasiano
: filosofar a partir de
outro que o ser
,
além da essência
, que significará,
antes de tudo, um evento ético.
Para Lévinas, “dizer significa aproximar-se do próximo” (LÉVINAS, 1999, p.
100). Trata-se de uma abertura à significação do outro. Não é o Mesmo que encontra
significado no Outro, mas
é
a significação do Outro que se apresenta ao Mesmo.
É
uma
comunicação primeira, visto que é a própria condição de qualquer comunicação. Sem um
outro, o Mesmo movimenta-se sobre si mesmo, sendo sempre
re
-
flexão
. Mas a
co
municação não se reduz a uma mensagem, e sim à própria aparição do Outro. É aqui
que encontramos o caráter ético da filosofia. Todavia, esta não se apresenta como uma
face prática da verdade teórica, mas como evento primeiro, anterior até mesmo ao
logos
(
Dito).
Esse encontro ou comunicação não é, de forma
alguma, um modo de conhecimento
nem de tematização, pois a sua origem não se encontra num Eu ou na consciência, mas no
Outro. A nudez do Outro, da qual fala Lévinas, refere-se justamente a essa carência d
e
conteúdo, de tema. O Outro não se manifesta como objeto do
conhecimento do sujeito.
A
nudez
revela também a fragilidade presente na comunicação. O Outro expõe-
se
sem defesa, sem proteção, como algo vulnerável. Isso revela uma expressão sem
mediação, sem o véu do signo, em que a linguagem é a própria significação. Lévinas
apresenta uma nota, referindo-se ao mito platônico do juízo final narrado no Górgias (523
c-
e), em que se encontra o seguinte texto:
A
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[...] Disse, então, Zeus: ‘Pois bem; eu vou pôr fim a isso. Atualmente’,
acrescentou, ‘saem desencontradas as sentenças, por estarem vestidas as
pessoas em julgamento, julgadas que são em vida. Muitos homens de alma
ruim’, prosseguiu, ‘ estão revestidos de corpo bonito, de nobre linhagem e de
riqueza; outrossim, por ocasião do julgamento, ocorrem testemunhas suas
em grande número a depor que viveram em justiça; os judicantes deixam-
se
impressionar por estas; além disso, eles próprios, quando julgam, estão
revestidos e têm a alma coberta pelos olhos, ouvidos e todo o corpo. Todos
esses revestimentos, os seus e os dos julgados, os atrapalham. A primeira
providência, pois’, disse, ‘é abolir o conhecimento prévio da hora da morte,
pois atualmente a conhecem de antemão. Quanto a isso, Prometeu tem
ordens para abolir. Depois, devem ser julgados despidos de todos esses
empeços, pois têm de ser julgados na morte. Igualmente, o juiz deve estar
despido, morto, contemplado com a sua alma a alma de cada um
imediatamente após a morte, longe de todos os parentes, abandonado sobre a
Terra todo aquele aparato, para sair justa a sentença.
A
respeito desse texto,
Lévinas
faz o seguinte comentário:
A aproximação absoluta do outro, exigido pelo ‘juízo final’ para Platão,
modalidade fundamental da aproximação é uma relação de morte a morte.
O outro seja homem de qualidade ou homem nulo é desnudado ali de
toda vestidura que qualifica, ‘de toda qualidade’, até chegar à nudez daquele
que passa de vivo a morto, que é surpreendido por uma morte imprevisível.
Por sua parte, o juiz deve acercar-se como morto, nu de ‘olhos e ouvidos’,
solidário do conjunto de seu corpo, o qual, além de fazer possível o
acercamento pela visão e a escuta, só serve de separação. A representação do
outro não será uma relação de retidão. A proximidade não depende de
nenhuma imagem, de nada que
apareça
. A proximidade vai de alma a alma,
à margem de qualquer manifestação fenomênica, à margem de qualquer
dado. Que pode importar, então, o plano ontológico – para Platão ainda mais
real que a realidade onde se desenvolve um juízo de alma a alma, isto é,
um ato de conhecimento? Porém há razões para perguntar, em efeito, em que
consiste um juízo que não é a priori que não tem dados, que não é de
experiência
, senão se trata do contato mesmo do Dizer à margem de todas as
proposições do Dito. Deve recordar-se também que a proximidade não é de
entrada juízo de justiça, senão previamente responsabilidade para com o
outro, que só se muda em juízo com a entrada do terceiro. Segue sendo certo
que, para Platão, a apro
ximação ao outro está mais além da experiência, mais
além da consciência, como um morrer” (Lévinas, 1999, p. 102-
103
nota
35).
Haverá algum sentido nessa nudez? O
para
-
outro
(ou o sentido) chega pelo-
outro
.
O
Dizer
carrega uma ambigüidade: é
ab
-
soluto,
independente
e, também,
indigente.
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2.4
A SUBJETIVIDADE EM
FAVOR DO OUTRO
2.4.1 O problema do Eu e do existir
O problema da
subjetividade,
na filosofia levinasiana, desenvolveu-se ao longo do
seu itinerário filosófico. Aqui, tomaremos como referência, basicamente, três obras:
Le
Temps et l´Autre, Totalité et Infini e Autrement qu’être ou au-
delà de l’essence
. A questão
que permeia todas essas obras, embora com abordagens diferenciadas e cada vez mais
aprofundadas, é o problema do Mesmo e do Outro, do Ser e do Outro modo que ser.
Em
Le Temps et l´Autre
,
Lévinas insiste sobre o caráter solitário do existir. Apesar
de estarmos rodeados de seres e de coisas com as quais mantemos relações, nenhuma
delas determina nossa existência. O meu ser constitui, segundo Lévinas, algo
absolutamente intransitivo, sem relação. “Ser é isolar
-
se pelo existir” (LÉVINAS, 1979, p.
81).
Lévinas afasta-se claramente da concepção heideggeriana, que concebe a solidão
no interior de uma relação.
Repudiamos pois, de saída, a concepção heideggeriana que encara a solidão
no seio de uma relação prévia com o outro. Antropologicamente
incontestável, essa concepção nos parece ontologicamente obscura. A
relação com o outro certamente é colocada por Heidegger como uma
estrutura ontológica do
Dasein
, mas praticamente não desempenha nenhum
papel nem no drama do ser, nem na analítica existencial. Todas as análises
de
Sein und Zeit se realizam ou pela impessoalidade da vida cotidiana, ou
pelo
Dasein
isolado. Por outra parte, a solidão adquire seu caráter trágico do
nada ou da privação do outro que a morte sublinha? Existe aí, pelo menos,
uma ambigüidade. Encontramos aí um apelo para superar a definição da
solidão pela socialidade e da socialidade pela solidão. Enfim, o outro, em
Heidegger, aparece na situação essencial do
Miteinandersein
(ser
-
reciprocamente
-
um
-
com
-o-outro). A preposição
mit
(com) descreve aqui a
relação. Trata-se assim de uma relação de lado a lado, em volta de alguma
coisa, em volta de um termo comum e, mais precisamente, para He
idegger,
em volta da verdade. Não se trata da relação face-a-face. Nela cada um traz
tudo, salvo o fato privado de sua existência (LÉVINAS, 1979, p. 82).
Assim, o projeto de Lévinas consiste em mostrar que não é a preposição
mit,
que
deve descrever a rel
ação original com o outro.
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Embora a solidão da qual
ele
fala
seja empiricamente insustentável,
ontologicamente não como não ser diferente. O verbo
ser
é intransitivo,
dispensa
qualquer
complemento
. O existir não diz respeito a mais ninguém, senão ao
próprio
existente. “Conceber uma situação onde a solidão seja superável significaria experimentar
o princípio mesmo do laço de união entre o existente e o seu existir. Significaria ir em
direção do evento ontológico no qual o existente contrai seu existir” (LÉVINAS, 1979, p.
82).
24
Referindo
-
se a Heidegger, Lévinas acrescenta:
Heidegger distingue entre os sujeitos e os objetos (os seres que são, os
existentes) e a sua obra de existir. Uns se traduzem por substantivos ou
particípios substantivados, o outro por um verbo. Essa distinção, colocada
desde o início de Sein und Zeit, permite dissipar alguns equívocos da
filosofia ao longo da sua história, na qual
se
tomava com
o ponto de partida o
existir para chegar ao existente que possui o existir de maneira plena: Deus
(LÉVINAS, 1979, p. 82
-
83).
Lévinas considera essa distinção como a mais profunda em Ser e Tempo. Porém,
em Heidegger, existe uma distinção, e não, uma separação. Para
ele
, o existir é sempre
captado no existente e, no caso específico do existente, que é o homem, Heidegger usa o
termo
Jemeinigkeit,
que expressa exatamente o fato de que o existir é sempre possuído por
alguém.
Assim, ele concebe que
a hipótese de existir sem existente seria absurda.
O autor, entretanto, faz referência à noção heideggeriana de
Geworfenheit
, que é
traduzida por “o-
fato
-
de
-
ser
-
jogado
-em”, ou seja, de ser jogado na existência. Vejamos o
comentário de Lévinas a esse respeito:
[...] seria como se o existente aparecesse numa existência que o precede,
como se a existência fosse independente do existente e o existente que nela
se encontra jogado nunca pudesse se tornar dono da existência. É por isso
precisamente que há desamparo e abandono. E é assim que vai aparecendo a
idéia de um existir que existe sem nós, sem sujeito, de um existir sem
existente
. [grifo nosso] J. Wahl diria sem dúvida que o existir sem existente
não é mais do que uma palavra. O termo palavra é certamente incômodo,
porque é pejorativo. Mas eu estou finalmente de acordo com J. Wahl. Seria
necessário som
ente determinar antes o lugar da palavra na economia geral do
ser. Eu também diria sem problemas que o existir não existe. Quem existe é
24
Lévinas traduz, em
Le Temps et l´Autre
,
os termos
Sein
e
Seiendes
, ser e ente, por
existir
e
existente
, embora
não num sentido especificamente existencialista.
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o existente. E o fato de recorrer aquilo que não existe para compreender o
que existe, não constitui absolutamente nenhuma revolução filosófica. A
filosofia idealista foi em suma uma maneira de fundamentar o ser sobre algo
que não é o ser (LÉVINAS, 1979, p. 83
-
84).
Como seria então esse existir sem existente? Lévinas sugere que imaginemos a
volta ao nada de todas as coisas, seres e pessoas. Após essa destruição imaginária, ainda
assim
, não encontraríamos o nada, mas sim, o
(il y a), ou seja, “a ausência de todas as
coisas volta como uma presença: como o lugar onde tudo sumiu, [...] como uma plenitude
de vazio ou como o murmúrio do silêncio” (LÉVINAS, 1979, p. 84). Nesse caso, resta
algo impessoal, sem sujeito nem substantivo, um existir sem nenhuma existência. Um
existir puro, apenas o “Há” (il y a), anônimo, situação em que não encontramos
ente
algum, substantivo algum, pois, no seu interior, verbo sem sujeito, impessoal. Uma
impessoalidade radical, “não como o Deus impessoal de Espinosa, ou o mundo e as coisas
inanimadas, ou o objeto por oposição ao sujeito, ou a extensão por oposição ao
pensamento, ou a matéria por oposição ao espírito. Todos esses seres são pessoais, pois
são existentes, p
orque
supõem a categoria do substantivo na qual eles se colocam”
(LÉVINAS, 1998, p. 99).
A contração do existir pelo existente -se nesse “Há” (il y a), nesse existir sem
existente. Lévinas chama
de
hipóstase
o evento pelo qual a existência contrai seu existir.
E, para indicar essa aparição, retomamos o termo
hipóstase
que, na história
da filosofia, designa o evento pelo qual o ato expresso por um verbo torna-
se
um ser designado por um substantivo. A hipóstase, a aparição do
substantivo, não é somente a aparição de uma categoria gramatical nova, ela
significa a suspensão do
anônimo, a aparição de um domínio privado, de
um nome. Sobre o fundo do
surge um ente. A significação ontológica do
ente
na economia geral do ser que Heidegger coloca simplesmente ao lado
do ser por uma distinção encontra-se, assim, deduzida. Pela hipóstase, o
ser anônimo perde seu caráter de
. O ente o que é é sujeito do verbo
ser
e, por isso mesmo, exerce um domínio sobre a fatalidade do ser que se
tornou um atributo. Existe alguém que assume o ser, de agora em diante,
seu
ser (LÉVINAS, 1998, p. 99
-
100).
A hipóstase é a aparição de “algo que é” no interior do ser anônimo. Esse “al
go”
toma o existir para si e passa a exercer um domínio sobre o existir. Nesse sentido, esse
“algo” é existente
,
e um existente solitário, fechado sobre si mesmo, uma solidão.
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Enquanto no existir sem existente não tempo, não início nem fim, no evento
da hipóstase, dá-se o presente. aqui uma saída do existir, uma ruptura com o existir. O
presente é o começo que possui um passado, tem uma história, uma lembrança do existir.
Essa história pertence ao presente, e não, ao existir, mas nesse evento do pr
esente
, houve
uma ruptura. Lévinas insiste nessa idéia para deixar claro que ele não quer introduzir o
tempo no ser. Em função do existir, o presente transforma-se em existente. Trata-se de
uma saída do existir de si mesmo para o existente; ele é agora
pre
sença
.
E
sse
presente
, no
entanto, em que
o existente contrai o seu existir, não é uma posse
ou algo do tipo “direito adquirido”, sem que tenha relação com o existir. A
presença
revela esse aspecto de existir enquanto existente. É um sair de si e voltar a si. Não
existente sem existir, pois o existente é na
presença
. Lévinas dirá: na “forma essencial de
começo, o presente sempre é evanescência” (LÉVINAS, 1979, p. 90).
Essa evanescência ganhará consistência no “eu”. E é aqui que chegamos ao ponto
cume de n
ossa reflexão. Lévinas dirá que essa evanescência ganha consistência no “eu”.
Os filósofos sempre reconheceram no “eu” um caráter anfíbico: ele não é
uma substância, é, porém, um existente por excelência. Defini-lo pela
espiritualidade significaria não dizer nada, se, por espiritualidade, se
entende
m propriedades. Significaria não dizer nada sobre seu modo de
existência, sobre o absoluto que no eu não exclui um poder de renovação
total. Dizer que esse poder tem uma existência absoluta significaria, ao
meno
s, transformar esse poder em substância. Pelo contrário, captado no
limite do existir e do existente, como função de hipóstase, o eu se situa
imediatamente fora das oposições do mutável e do permanente, como
também fora das categorias do ser e do nada. O paradoxo cessa quando se
compreende que o “eu” não é inicialmente um existente (LÉVINAS, 1979,
p. 90).
O Eu, por ter origem na hipóstase, não possui nenhum tipo de relação, ele é único,
é só. E isso é necessário para que o existente possa exercer seu domín
io sobre o existir. “A
solidão não é, pois, somente um desespero ou abandono, mas também uma virilidade, um
orgulho, uma soberania” (LÉVINAS, 1979, p. 92). A liberdade do Eu é própria nessa
perspectiva. Ele é um, só e com poder.
Mas essa liberdade, antes, sem limites, depara-se com uma responsabilidade, a
responsabilidade de ocupar-se de si. Enquanto existente, ele não pode deixar de ocupar-
se
de si. Para Lévinas, essa ocupação de si é a materialidade do sujeito
e
não se dá a partir de
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um passado ou em função do futuro. O existente tem que se ocupar de si
agora
, no
presente. A liberdade do sujeito, desse modo, “está imediatamente limitada pela sua
responsabilidade. Esse é o seu grande paradoxo: um ser livre já não é mais livre porque é
responsável de si mesm
o” (LÉVINAS, 1979, p. 93).
A materialidade do sujeito significa que a existência de si não se na forma de
um “espírito, como um sorriso ou como um vento que sopra, Eu não existo sem
responsabilidade. Meu eu se desdobra em um ter: estou carregado de mim mesmo. A
existência material consiste nisso” (LÉVINAS, 1979, p. 94).
O corpo não é a prisão de um espírito decaído, mas a própria dominação do
existente sobre o existir, uma mistura de liberdade e responsabilidade. “A primeira
liberdade que consiste no fato de que, no existir anônimo, surge um existente, comporta
como que um preço a pagar: o definitivo do eu colocado a si mesmo” (LÉVINAS, 1979,
p. 94). É aí que se encontra o trágico da solidão, não pela privação do outro, mas porque o
indivíduo está preso a
si mesmo, em sua própria identidade que é matéria.
A materialidade do Eu dá-se no mundo. E é nele que o Eu age e procura ocupar-
se
da própria existência. As coisas do mundo, nesse sentido, passam a ser vistas
materialmente pelo Eu, que existe também materialmente. As coisas do mundo são
objetos.
Lévinas faz uso do termo
fruição
para explicar o movimento do Eu que toma para
si as coisas do mundo. Trata-se de uma economia na qual o Eu assume para si a
norma
(medida) das coisas que o mundo oferece: ar, luz, trabalho, repouso etc.
Na fruição, os objetos não são representações, são tão-somente objetos que
possibilitam a vida concreta. Mas essa possibilidade dos objetos não é entendida como
“meio de vida” e, tampouco, como ferramentas ou utensílios.
25
A fruição é marcada por
uma independência do eu. Um eu que toma para si realidades outras para que ele mesmo
possa ser. A fruição significa ser efetivamente, não apenas como interioridade, mas viver
25
Lévinas refere-se aqui ao sentido heideggeriano do termo “utensílio”. “Heidegger mantém uma idéia do
instrumento (
Zeug
) como aquilo com que
nos
deparamos em nossas ‘ocupações’. O instrumento (ou
utensílio) não é uma ‘coisa isolada’, senão um complexo (Zeugganzes). O utensílio é fundamentalmente
‘algo para...’ e as distintas formas do ‘ser para’ (Um-zu) são distintas formas de ‘instrumentalidade’. O
utensílio é, assim, algo que se usa, se aplica, se toma, se manuseia. O modo do ser do ente que chamamos
‘utensílio’ é o ‘estar
a mão’ ou, como às vezes se tem falado, a ‘manualidade’ (Zuhandenheit).” (
Diccionario
de Filosofia
, verbete “utensílio”, referindo a
Ser Tempo
§ 15).
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economicamente, materialmente falando. Não se trata de uma existência
nua
, mas,
possessivamente, tornando
-
se
conteúdo do seu próprio existir, os objetos o satisfazem. É o
que permite o viver “satisfeito”. Segundo Lévinas, “a vida é uma existência que não
precede a essência” (LÉVINAS, 1980, p. 98). A existência se realiza na fruição, em tomar
para si “conteúdos que não são o meu ser, mas mais caros do que o meu ser: pensar,
comer, dormir, ler, trabalhar, aquecer-se ao sol.
[...]
Vivemos de ato e do próprio ato de
ser
tal como vivemos de idéias e de sentimentos. Aquilo que faço e aquilo que sou é, ao
mesmo tempo, aquilo de que vivo(LÉVINAS, 1980, p. 98). Em linguagem aristotélica,
fruição é viver em ato.
A relação entre o Eu e os objetos da fruição não é de dependência, mas, antes, de
soberania. Trata-se de uma situação de domínio da própria dependência. A fruição é uma
soberba felicidade, pela qual a vida “vale a pena ser vivida”. Para Lévinas, “viver é fruir
da vida” (LÉVINAS, 1980, p. 100). Na linguagem comum, usa-se uma expressão que
muito se aproxima dessa afirmação levinasiana. Diz-se “viver é ‘curtir’ a vida”. O termo
curtir,
no sentido da ria, refere-se a uma situação de grande prazer, a uma situação de
desfrute. A felicidade consiste em satisfazer
a
todas as necessidades de um ser que não se
compreende
pela privação, mas pela fruição, que significa a apropriação do que não é
próprio. A fruição, marcada por uma soberba necessidade, “é o primeiro movimento do
Mesmo” (LÉVINAS, 1980, p. 101), um movimento de exploração. O Mesmo, nesse
sentido, é marcado pelo movimento em favor de si, em favor da felicidade do próprio Eu.
Aqui se encontra a substancialidade do Eu, “não como sujeito do verbo ser, mas
como implicada na felicidade não tendo a ver com a ontologia, mas com a axiologia é
a exaltação do
ente
, sem mais. O ente não estaria, portanto, sujeito à jurisdição da
‘compreensão do ser’ ou da ontologia. Tornamo-nos sujeitos do ser, não assumindo o ser,
mas gozando da felicidade, pela interiorização da fruição, que é também uma exaltação,
um ‘acima do ser’. O ente é ‘autônomo’ em relação ao ser. Não indica uma participação
no ser, mas a felicidade. O ente, por excelência, é o homem” (LÉVINAS, 1980, p. 104).
A situação do Eu é, de certo modo, paradoxal. Ao mesmo tempo em que é auto-
suficiente, a não suficiência perma
nece no não
-eu. A fruição é sempre em relação a “outra
coisa”, nunca ao próprio eu. Mas essa “outra coisa”, pela qual o Eu vive, não é o Outrem.
Os elementos da fruição são
escolhidos
pelo Eu, e o Eu é o sujeito da fruição. Não são os
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objetos que se aprese
ntam ao Eu para satisfazê
-lo. A fruição se efetiva pelo movimento de
estender “a mão” para apanhar
aquilo
de
que se precisa. As coisas, nessa perspectiva da
fruição, encontram-se ao alcance do Eu, mas não se oferecem ao mesmo. O movimento é
sempre de tomar posse, de agarrar o “não-eu”, as coisas do mundo, e nisso consiste a
felicidade. É que encontramos o paradoxo, pois, na medida em que a felicidade (não o
ser) do Eu está associada às coisas do mundo, o Eu podeser sem ser feliz, uma vez que
o que o torna feliz é o outro, que não ele próprio. Tudo se passa como se a fruição
encontrasse um limite nessa relação.
O Eu, que é por si próprio, mas que “vive de...” tudo que está ao seu alcance,
reforça a idéia de ser único. Através da fruição, as coisas que se apresentam como outro
são passivas e possíveis de serem absorvidas no Eu. Não existe, nesse sentido, qualquer
alteridade
, que é possível num ser único, que não depende de outro. A alteridade é a
possibilidade de relação do ser separado e finito com o Outrem, a partir do Desejo
metafísico. O Outrem não se apresenta ao Eu
,
como objeto de sua fruição, pois es
t
e já está
satisfeito pela fruição. O Outrem é uma presença do que não fora chamado nem se
encontrava ao alcance do Eu. O Outrem “revela” a idéia de
Infinito.
Lévinas recusa-se a compreender os dois termos da relação (Eu e Infinito) como
movimento dialético, no qual os termos se apresentam como produções antitéticas,
opostas, como se existisse a dependência de um em relação ao outro, de modo que,
des
aparecendo um termo, o outro também desapareceria.
A fruição, por sua vez, remete a um modo de ser do eu que, embora separado, não
está totalmente fechado em si mesmo, como se fosse uma mônada. O Eu conserva a
ambivalência de ser fechado e aberto: “é preciso que, no ser separado, a porta sobre o
exterior esteja a um tempo aberta e fechada” (LÉVINAS, 1980, p. 132).
O Eu, embora seja separado, depende das coisas do mundo, numa ambivalência de
independência
-dependência. Ele toma para si as coisas do mundo como se
pertencessem a si. O Eu, enquanto corpo, garante sua singularidade entre os objetos e o
distingue entre os outros corpos. Porém, todo esse movimento (que Lévinas chama de
fruição) está centrado no Eu, tudo converge para o Eu. Não há, nem mesmo ness
e
movimento, nenhuma presença do Outro, não há ainda linguagem alguma.
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A alteridade, porém, é possível num ser único, que não depende de outro. A
alteridade é a possibilidade de relação do ser separado e finito com o Outrem, a partir do
Desejo metafísi
co. O Outrem não se apresenta ao Eu como objeto de sua fruição, pois esse
está satisfeito pela fruição; o Outrem é uma presença do que não fora chamado nem se
encontrava ao alcance do Eu
,
“revela” a idéia de Infinito.
Nossa reflexão, até aqui, procurou demonstrar o caráter essencial da solidão
humana. O homem é só. O “outro” objeto que aparece ao alcance do Eu perde sua
alteridade no instante da dominação. Deixa de ser “outro”, mesmo como objeto, e passa a
fazer parte do Eu próprio. O Eu, enquanto existente que a todo instante é responsável por
si,
necessita
exercer domínio sobre as coisas do mundo para continuar sendo
presença
,
para continuar existindo, a cada instante.
Esse caráter essencial da solidão humana nos indica que a presença do
outro
, não
co
mo objeto, mas de fato, como
outro,
não é essencial. Se o
outro
aparece no horizonte
humano, não será por uma questão ontológica ou como parte do Eu, ou como presença na
essência do ser existente. O
outro,
se é que ele existe, será de outro modo, pois exi
ste
além ou aquém da essência ou de outro modo que ser, pois, conforme vimos até aqui, o
existente, o eu, apossou
-
se do ser, do existir, sem espaço para outro. O eu é só.
Esse é um problema central para a compreensão da subjetividade levinasiana. A
alteri
dade, a ética, a socialidade não são um evento ontológico, pois fazem parte de outro
modo que ser, entendendo, aqui, a ontologia como aquela teoria que se ocupa do ser e do
existente. A questão ética, portanto, será um problema de outra ordem, nem mais nem
menos perfeita, mas outra. É no “outro modo que ser” ou “para além da essência” que
Lévinas situa a
metafísica
. Houve, ao longo da história da Filosofia, uma equiparação da
metafísica à ontologia, como se ambas tratassem da mesma realidade. Lévinas pensa de
outro modo. Para ele, metafísica refere-se a uma outra realidade, “outro modo que ser”,
“para além da essência”. Eis o sentido verídico da
meta
-
fisica
, e isso vale ainda mais para
a filosofia pós-heideggeriana, quando o ente se apossou do Ser ou o sensível apossara-
se
do supra
-
sensível.
Resta saber como Lévinas elabora seu discurso sobre esse outro modo que ser ou
para além da essência e, ainda, como a
subjetividade
situa-se entre o
ser
e o
outro modo
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que ser. Mas, antes disso, resta ainda esclarecer o que Lévinas chama de
luz
, interior ao
Eu.
Com Heidegger, o mundo é tomado como um conjunto de instrumentos.
Existir
no mundo significa agir, mas agir de tal maneira que, no final das contas, a ação tem por
objeto a nossa própria existência” (LÉVINAS, 1979, p. 102). As coisas no mundo estão
para o existir do Eu. Essa relação com o objeto é caracterizada por Lévinas como
gozo
(
jouissance
). Segundo o autor, “todo gozo é uma maneira de ser, mas também uma
sensação, isto é, luz e conhecimento.
[...]
Ao goz
ar
, pertence essencialmente um saber,
uma luminosidade” (LÉVINAS, 1979, p.103).
No horizonte da luz, todo objeto pode ser assimilado pela consciência, tudo no
mundo pode ser trazido à luz, tudo pode ser objetivado. A subjetividade vê-se presa à sua
própr
ia imanência. Todo movimento da consciência de transcendência, de saída de si,
volta para si mesmo.
Nesse sentido, Lévinas recusa-se a buscar qualquer possibilidade de manifestação
do outro, enquanto o Eu estiver preso à luz, ao próprio conhecimento. A possibilidade da
alteridade e de uma transcendência terá que surgir a partir de outro evento, que não seja o
ser ou a Razão mesmificante. O caminho que ele utiliza para tal evento encontra-se na
própria existência material.
A existência material remete o existente à própria manutenção, ao seu próprio peso
de existente. Manter-se existindo exige trabalho, esforço, pois, como vimos, as coisas do
mundo não se oferecem, mesmo que estejam ao alcance do Eu; é preciso que o Eu ao
seu encontro. E é exatamente nesse esforço, nesse penar, nessa dor que o sujeito
permanece e existe. Entre as coisas do mundo, o Eu vive só, sujeito a existir, a dar conta
de sua existência. É aqui que Lévinas descortina o caráter trágico da solidão. A solidão
revela ao Eu o seu limite de ser apenas existindo. Não é na angústia do nada que o Eu
adquire e compreende sua existência. Sua existência e sua solidão são experimentadas no
mundo,
no
qual ele precisa se manter, existir materialmente. Ele não pode existir de outro
modo. Não pode existir sem matéria, sem mundo, sem economia, mesmo que essa
matéria, esse mundo e essa economia sejam seus. A materialidade é, pois, a sua
existência.
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A dor, o sofrimento, o penar é, nesse caso, físico, porque material, e não uma dor
ou um penar moral ou interior. Isso remete o sujeito a uma situação paradoxal. Por um
lado, ele vê
-
se preso à sua existência, pela impossibilidade do nada.
O conteúdo do sofrimento se confunde com a impossibilidade de distanciar-
se do sofrimento. E isso não significa definir o sofrimento pelo sofrimento,
mas insistir na implicação sui generis que constitui a sua essência. no
sofrimento uma ausência de todo refúgio. O sofrimento é o fato de estar
diretamente exposto ao ser, na impossibilidade de fugir ou recuar. Toda a
acuid
ade do sofrimento consiste nessa impossibilidade de recuar, no fato de
estar forçado à vida e ao ser. Nesse sentido, o sofrimento é a impossibilidade
do nada (LÉVINAS, 1979, pp. 109
-
110).
Por outro lado, o sofrimento apresenta a possibilidade da morte. Nã
o se trata de um
saber sobre o porvir, mas de perceber que, no sofrimento, algo mais dilacerante pode
ocorrer, como se o sofrimento presente escondesse algo ainda mais doloroso. O sujeito
encontra
-se, dessa forma, entre a impossibilidade do nada e o desconhecido, algo que ele
não pode absorver no mundo da luz, incapaz de ser captado pela experiência, pelo
conhecimento, pois esse algo além do sofrimento ainda não é.
O desconhecido da morte que não se oferece imediatamente como nada, mas
que é correlativo de uma experiência da impossibilidade do nada, não
significa que a morte seja uma região da qual ninguém voltou e que
conseqüentemente permanece, de fato, desconhecida; o desconhecido da
morte significa que a mesma relação com a morte não pode ser feita na l
uz;
que o sujeito está em relação com alquilo que não vem dele. Poderíamos
dizer que o sujeito está em relação com o mistério (LÉVINAS, 1979, p.
110).
A morte é mistério porque não se deixa conhecer. Ela se anuncia, mas não se faz
presente
; o sujeito não tem como assimilá-la no interior da luz. A morte atesta o limite do
conhecimento
e revela ao sujeito um modo outro de ser. O Eu, até então, não havia
enfrentado nada que fosse possível de ser absorvido pelo seu conhecimento, nada que ele
não dominasse. Toda relação com as coisas do mundo tinha o Eu como sujeito. Diante da
morte, o Eu se depara com algo que cessa o seu poder. O Eu já não é mais sujeito. Diante
da morte, ele torna
-
se passivo.
Nesse sentido, a análise levinasiana afasta-se completamente da
concepção
heideggeriana a respeito da morte. Em Heidegger, o ser, diante da morte, faz uma
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experiência de lucidez suprema, aquela em que o existente faz a mais radical e completa
experiência da sua existência. Entretanto, é curioso que também, em Heidegger, essa
experiência radical da existência humana revela nossa solidão existencial. Diante da
morte, a partir da concepção heideggeriana, o homem faz a experiência da solidão, o peso
da sua existência é assumido única e exclusivamente por si mesmo.
26
A morte jamais é
presença. “A morte nunca é um agora. Eu não estou mais aí, não porque eu sou nada, mas
porque não sou mesmo capaz de captar” (LÉVINAS, 1979, p. 113).
2.4.2
A subjetividade
O evento da morte anunciada põe o sujeito diante de algo que cessa todo
o
movimento de fruição, de domínio, de poder. Esse m
ovimento
, iniciado na hipóstase e
que
, até o sofrimento, no anúncio da morte, o sujeito não conhecia outra forma de ser. A
morte coloca o Sujeito diante de outro modo que ser, coloca o Eu diante do Outro. A
morte de si não é algo que o ser alcança, ela vem sem que o Eu tenha chamado.
Essa aproximação da morte indica-nos que nós estamos em relação com algo
que é absolutamente outro, algo que possui a alteridade, não como uma
determinação provisória, algo que nós podemos assimilar pelo gozo, mas
algo cuja existência mesma é feita de alteridade. É assim que a minha
solidão não é confirmada pela morte, mas pela morte quebrada (LÉVINAS,
1979, p. 116).
26
A análise da morte em Ser e Tempo (§§ 46-53) se faz, em primeiro lugar, para estabelecer a autenticidade da
existência humana e
,
finalmente
,
para descobrir o acesso ao ser. Para
Heidegger, a morte não é nunca um
fato
puramente extrínseco que sobrevenha a uma existência já realizada e estabelecida. A inevitabilidade da morte
se inscreve, desde o princípio, na estrutura ontológica da existência. Todas as crianças que nascem estão a
caminho da morte. A existência humana pode definir-se essencialmente como um “ser para a morte”. A
estrutura da morte está enraizada no fato de que a existência é fundamentalme
nte
preocupação e angústia. A
angústia fundamental e profunda que se manifesta na experiência humana não é realmente mais que angústia
diante da morte. A autenticidade se realiza unicamente quando o homem se enfrenta, fria e realisticamente,
com a irreversível necessidade da morte, isto é, a própria morte. Nesse enfrentamento, o indivíduo
se
converte em homem livre e autêntico. Nada pode morrer em lugar de outro. Morre-se por conta própria, em
meio à mais perfeita solidão. Diante disso, podemos dizer que a vida é absurda? Heidegger não fala de que
seja absurda. E recusa categoricamente o suicídio. É necessário esperar a morte, isto é, antecipar, na mente, a
morte inevitável e compreender à luz dessa morte a possibilidade do momento. Somente na grandeza trági
ca
e solitária frente à morte, pode-se encontrar cada um durante uns breves momentos, algo de si mesmo, uma
autenticidade provisória. Sua liberdade se converte, desse modo, em liberdade para a morte (
GEVAERT,
Joseph. 1983, pp. 295
-
353).
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A socialidade, a pluralidade não significa a multiplicidade de existentes, mas se
revela como um evento no próprio existir do existente. É como se o existir se alienasse
diante da morte, diante da qual ele não tem mais poder. Porém, esse Outro que se anuncia
não possui esse existir no modo como é próprio de o sujeito possuir. Esse Outro revela-
se
fora do meu conhecimento; sobre ele, o Eu não tem gozo (conhecimento). A alteridade
não é o encontro com um outro Eu, semelhante a si. A alteridade é exterior ao eu e é
justamente essa absoluta exterioridade que possibilita a alteridade, a relação com Outro,
não um diferente que é assimilado no Mesmo. O Outro não tem correspondência com o
Eu, não são correlativos. Esse é o evento da total alteridade.
Porém, resta ainda um problema: se a morte é o evento em que o Outro se
manifesta
ou, ainda, se a morte jamais é presença, como o Eu poderá pôr-se diante do
Outro sem aniquilar-se? O Outro seria sempre anúncio, jamais presença no existir do
sujeito. Seria apenas
por
-
vir.
Porém, no presente, o Eu permaneceria só, e sua solidão
ainda não teria sido quebrada. Na relação com a morte, ou o Eu assumiria o evento que a
morte anuncia ou es
ta
assumiria o Eu. Em ambas as possibilidades, o Mesmo prevaleceria.
A relação com esse evento que a morte anuncia terá que se constituir numa outr
a
perspectiva, em que ambos os termos não se excluam, nem mesmo como participação.
Lévinas trata, então, da “relação com o Outro (
autrui
), o face
-a-
face com o outro, o
encontro de um rosto que, ao mesmo tempo, e tira o outro. O outro (
autre
) assumido é
outrem
(
autrui
)” (LÉVINAS, 1979, p. 120).
Independentemente da resposta que Lévinas da a esse problema, convém
salientar que surge uma questão no evento da morte que se anuncia: a possibilidade de o
Eu existir sem poder, um outro modo de existir, sem que seja essencial, ou seja, sem que
tenha que dominar, lutar pela existência. Existir sem
interesse
, sem que tenha de tomar
para si tudo o que está à sua volta. O ser humano, nessa perspectiva, pode, a partir do
Outro
, que é anunciado na morte, ser além da essência, sem domínio, sem poder. Porém,
tal possibilidade não é arrancada do próprio Eu, mas suscitada por Outro. O Eu que é
possível existir, não em função de si, mas voltado para o Outro. Uma conversão que não
foi provocada por sua própria vontade,
mas por um evento do qual ele não tem domínio. A
conversão (de voltar
-
se para o Outro e deixar de viver para si) tem origem no Outro.
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O evento que a morte anuncia provoca excedência ao Sujeito. O Eu diante do
Outro excede a sua natureza, dá um salto para além da essência, passa à “outra margem”.
E é aqui que começa a ser forjada a
subjetividade
na concepção levinasiana. O sujeito não
é apenas o movimento essencial de ser próprio. Através do seu poder, nele encontramos
algo que está além da essência, mas que não tem origem em si, e sim, no Outro. A e
ssa
relação com o Outro, Lévinas irá chamar de
ética
.
Nós chamamos ética uma relação entre termos onde um e outro não estão
unidos nem por uma síntese de entendimento, nem por uma relação de
sujeito e objeto e onde, no entanto, um pesa ou importa ou é significante em
relação ao outro, onde estão ligados por uma intriga que o saber não podia
esgotar, nem desdobrar (LÉVINAS, 2001, p. 225).
A relação ética não é proveniente da ontologia, não tem como referência o ser. A
intenção de Lévinas, com o seu discurso sobre o Eu e a subjetividade é a de mostrar que o
outro ser humano não pode ser compreendido pela preposição
mit
, tal como ele, aliás,
mencionara
isso
no início de O Tempo e o Outro (LÉVINAS, 1979, p. 79). O
autor
concebe que a situação essencial do
Miteinandersein
(estar-
reciprocamente
-
um
-
com
-
outro) remete à idéia de uma associação de igualdade a propósito de algo, de algum termo
comum, como se fossem termos iguais voltados para uma mesma direção, mas não
vol
tados um para o outro. A relação do Eu com o Outro, para Lévinas, é um face-a-
face.
Assim, por exemplo, o Eu se depara com o evento que a morte anuncia, de frente. E, mais
ainda, a relação que se instaura entre o Eu e o Outro não é simétrica. Existe uma
desproporcionalidade, visto que ambos são de natureza diferente, sem correspondência na
ordem da natureza ou da essência. O ser humano não é
com
o outro, mas “outramente”, no
face
-a-
face diante do outro.
A reflexão de Lévinas nos permite conceber a possibilidade de o Eu “ser
outramente” (
autrement
) ou “de outro modo que ser”, num movimento inverso do ser,
enquanto esse está centrado em si, em existir; o “outramente” que ser implica um
movimento de saída de si em direção ao outro. Ao invés de ocupar-
se
de si mesmo, o Eu
passa a ocupar
-
se
do
Outro.
A respeito da Subjetividade, devemos esclarecer que o Eu levinasiano adquire um
outro movimento, para além da sua essência, para além do
poder
de existir. O Eu, na
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perspectiva levinasiana, além de existir para si,
é também um
“sujeito” passivo
, para além
da essência, sem poder.
Lévinas situa o cruzamento do
ser
com o além do
ser
na subjetividade. Uma
espécie de sincronia entre a essência e o “outro modo que ser”, um
épos
27
unificante no
tempo e na história. A subje
tividade é justamente esse
épos que se realiza na
subjetividade
ou humanidade
.
Haverá que mostrar desde agora que ex-ceção de “o outro modo que o
ser”
mais além do não-
ser
significa a subjetividade ou a humanidade, o
si
-
mesmo
que repudia as anexações da essência. Eu, como unicidade, fora de
toda comparação, que, à margem da comunidade, do gênero e da forma,
ao não encontrar mais repouso em si mesmo, in-quieta desde o momento em
que não coincide consigo mesmo. Unicidade da qual o à margem de si
mesmo, a diferença com respeito a si é a não-diferença propriamente tal e a
extra
-ordinária recorrência do pronominal ou do reflexivo, o
se
que, não
obstante, já não assombra a nada porque entrou na linguagem vulgar e
corrente em que as coisas
se
mostram e as idéias se compreendem
.
Unicidade sem lugar, sem a identidade ideal que um ser toma do querigma
que identifica os aspectos inomináveis de sua manifestação, sem a identidade
do eu coincidindo consigo mesmo, unicidade que se retira da essência;
enfim, ho
mem (LÉVINAS, 1999, pp. 51
-
52).
Lévinas chama de “momento de lucidez”, na história da filosofia, a ruptura da
essência pela subjetividade. O metafísico, nessa perspectiva, encontra-se fora do ser.
Para
Lévinas, parece ser algo cruza a imanência, sem estar preso a ela. Uma espécie de
“relâmpago” que corta o histórico, o dito. Porém, ao cortar a história, ele se “historiciza”,
mesmo que, no ser “historicizado”, não se fixe. E, ao efetuar um corte no dito, ele acaba
também, por um instante, possível de ser dito, mesmo que, ao dizê-lo, sua significação
não po
ssa
abarcá
-
lo.
Nesse sentido, podemos responder a questão que antes ficara sem resposta. Esse
Outro que se anunciara na morte não é uma espécie de
(il y a), sem existência, mas
também não é pura exis
tência.
Ele
aparece
, mas não se fixa. Esse de outro modo que ser
se no tempo e não, fora dele. A essência e o seu além não significam um corte para
outra realidade extra-mundo, atemporal. Assim como a essência, o “outro modo que ser”
realiza
-
se no tempo
.
27
Acontecimento extraordinário e maravilhoso (var.
epopéia
), uma significação que se anuncia, evento
extraordinário (sem mediação), um
querigma
, e não, apenas, um
enunciado,
entendendo
-
se
aqui “enunciado”
como sentença que “indica” algo. O “
épos
” ao qual se refere Lévinas é
o próprio “algo” que se manifesta.
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Porém, a relação que esse outro modo que ser estabelece com o tempo possibilita
um outro modo de temporalização, capaz de condensar qualitativamente o “outro modo
que ser”, mais além da essência e do dito, anacrônico e enigmático, “uma diacronia
refratá
ria a toda sincronização, uma diacronia transcendente” (LÉVINAS, 1999, p. 53). O
outro modo que ser não é a-histórico ou fora do tempo. Embora ocorra no tempo e na
história,
opera um corte no curso do ser, por isso
diacrônico,
assim como explica René
B
ucks:
Trata
-se de uma transcendência do ser na imanência, uma superação da
história que, no entanto, ocorre no interior da história e nela se reflete. O
tempo diacrônico escapa definitivamente ao discurso ontológico, que
sincroniza tudo, inclusive o passado e o futuro, representando-os. O tempo
diacrônico é o tempo não sincronizável (BUCKS, 1987, p. 83).
O Dizer, ou esse além da essência, Lévinas considera como “a modalidade da
transcendência”. A subjetividade é justamente esse enlaçamento e desenlaçamento da
essência e o outro que a essência no tempo, sem, contudo, prender-se a ele. A concepção
levinasiana de subjetividade não é pura finitude, mas carrega a idéia de Infinito, a
possibilidade de existir para além da essência. Na subjetividade, está incrustado o desejo
do Outro, nela se encontra a possibilidade de ocupar
-
se não apenas com o ser próprio, mas
com o de outrem que será, como veremos no próximo capítulo, expressão, manifestação
do Infinito no tempo.
Contudo, a manifestação do Infinito no tempo precisa ser pontuada, mesmo sem
termos a pretensão de achar que, nesse ponto, o tema estaria esgotado. Ao falar sobre a
possibilidade de outro modo que ser no tempo precisamos identificar um evento
“diacrônico” em que se o “enlace” entre o
ser
e
outr
o modo que ser. Para Lévinas, o
modo como a subjetividade tem de acolher o Outro (Infinito, transcendente) na história é a
responsabilidade
para com o outro alguém,
o
outrem.
Uma responsabilidade que é
incutida pela idéia de Infinito, pelo desejo metafísico de ser para além da essência,
portanto, uma responsabilidade que não tem como origem o próprio Eu, mas que provém
do Infinito.
A subjetividade traduz um humanismo em que o
ser”
humano implica também
em
ser mais além do que a sua essência. A essência, poderíamos dizer, é o “em si”, o ser
voltado para si, interessado, fruição; enquanto o “mais além da essência” ou
autrement
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indica a responsabilidade, o voltar-se para outrem, a flexão diante do outrem, o
desinteresse.
O outrem é a expressão do Dizer, apresenta o Infinito, mas não se reduz a ele. O
outrem apresenta-se como linguagem. Um dizer a espera de resposta, um dizer que
arranca o ser para além, para outro modo que ser. A responsabilidade é o evento em que o
Dizer acontece, não como um grito no deserto, mas como um encontro, como diálogo. A
responsabilidade é a resposta do ser ao Dizer proveniente de outro modo que ser.
2.5
Alteridade: apelo e resposta
Lévinas concebia duas atitudes filosóficas: a primeira seria a busca da verdade em
que se procurava integrar na Totalidade tudo o que se apresentava; a outra atitude seria
aquela que conservava a relação com o Outro, ao qual Lévinas chama de Infinito.
Essa segunda atitude carrega uma dificuldade que lhe é inerente. Refere-se à
linguagem herdada da tradição filosófica, a qual se baseia na ontologia, no discurso ou
desvelamento do Ser, que é já uma realidade totalizante. Todavia, como
falar
de
outro que
está para além do ser, assumindo essa linguagem. Ou seja, como elaborar um discurso a
respeito do outro que não se deixa captar pela Ontologia ou pelo Dito? O problema é que
não dispomos de outra linguagem filosófica que não seja essa, racional e demonstrativa.
Essa problemática, em Lévinas, atesta um limite do Dito ou do discurso
ontológico. É necessário abrir-se a uma outra linguagem que não esteja fundamentada
apenas no Dito ou no Ser. É preciso uma linguagem a partir do outro modo que ser, na
terminologia levinasiana, a linguagem do Dizer, uma abertura à linguagem
metafísica
.
Esse
algo
ao qual n
os referimos anteriormente, que cruza o tempo e a história, mas não se
esgota nela, está presente no Eu, enquanto idéia, noção, mas o Eu não é capaz de
compreendê
-lo totalmente. Aqui se a presença do Infinito no finito, em que o
ideatum
ultrapassa a idéia que dela se tem. A linguagem que servirá para abordar ou falar do
Infinito no finito será a
ética
, compreendida não como um conjunto de critérios ou
normas morais, mas como relação com o Outro. A
ética
não é um discurso que eu
construo, e sim, a minha abertura a algo que se manifestou a mim, enquanto idéia, uma
A
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abertura ao Infinito. A linguagem
metafísica
(
ética
), ou o Dizer, não é o meio pelo qual o
Sujeito
indica
a verdade. A ética é a própria manifestação da verdade, sem que nessa
manifestação
tudo tenha que ser revelado.
A idéia do Outro “não parte de Mim, nem de uma necessidade do Eu”, como se
esse fosse incapaz de ser só. O Outro não é “objeto” de um conhecimento ou esforço da
inteligência, mas o “desejável, o que suscita o Desejo, isto é, o que é abordável por um
pensamento que a todo instante
pensa mais do que pensa” (LÉVINAS, 1980, p. 49).
A idéia de Desejo em Lévinas é compreendida em oposição à idéia de
necessidade.
Enquanto a necessidade é entendida como busca de algo que falta, algo necessário à
existência do Eu, portanto centrado no Sujeito, o Desejo é algo que provém do Desejável,
parte do Outro, não para manter a existência do Eu, mas para r o Eu em movimento de
transcendência, de ser além de si, sem, com isso, perder
-
se ou disso
lver
-
se no Infinito.
O Eu é autônomo, porém procura o Outro. A essa situação, Lévinas chama de
linguagem.
A busca pela verdade se no encontro do Eu com o Outro. A verdade surge
na linguagem, na fala. Um encontro que não significa união, mas relação de r
ealidades
autônomas.
Trata
-se de uma manifestação autônoma
,
a partir da qual o Outro diz-se a nós,
exprime
-
se
. Em última análise, a
revelação
do Outro se dá pelo rosto. Rosto, não enquanto
imagem, mas enquanto significação, expressão, fala. Lévinas irá di
zer: “a manifestação do
rosto é já discurso” (LÉVINAS, 1980, p. 53).
Em seu discurso, o autor introduz um termo que será central em sua filosofia, o
rosto.
Para ele, o
fato
que manifesta a idéia do Outro em mim é o
rosto do outrem
. O rosto
remete a um acontecimento que não tem como sujeito o Eu. Trata-se de um
“acontecimento sem que tenhamos absolutamente nenhum a priori(LÉVINAS, 1979, p.
116).
28
O rosto é, antes, realidade em si mesma, ele
exprime
-
se.
Não se trata apenas de
um conjunto de qualidades que formam uma imagem. O acesso ao rosto não se faz pela
percepção de nariz, olhos, testa, queixo, que se podem descrever como se estivéssemos
diante de um objeto. “O rosto é significação” (LÉVINAS, 1982, p. 78). O rosto é o que
não se pode transformar em conteúdo do pensamento, é o que nos leva para além. O rosto
é a idéia de Infinito, cuja manifestação transcende a da capacidade do Eu.
28
Ver também
Ética e Infinito
, p. 77ss.
A
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É importante repetir que o rosto não é uma significação de uma “essência ideal ou
uma relação oferecida à intuição intelectual, análoga ainda nisso à sensação oferecida ao
olho. Ela é, por excelência, a presença da exterioridade”. O discurso, portanto, não é uma
“re
-flexão” do Eu sobre si mesmo, mas “uma relação original com o seu exterior”
(LÉVINAS, 1980, p. 53). A linguagem, nesse sentido, não é um exercício intelectual da
palavra do Eu a si próprio. Pelo contrário, trata-se de uma presença significativa exterior,
independente da intuição ou pensar do Eu.
Porém, nem todo discurso é relação com a exterioridade. Lévinas chama a atenção
para as formas de negar a relação com o Outro, usando para isso o próprio discurso,
melhor dizendo, o discurso próprio, proveniente do Eu, e não, do Outro. Nesse caso, não
existe linguagem (no sentido levinasiano, acolhida do Outro que se manifes
ta na palavra).
A forma desse discurso que não é linguagem (reconhecimento do outro), Lévinas
identifica como
retórica
ou
Dito.
29
Na retórica, não se aborda o Outro de frente. Trata-
se
de um exercício que visa suprimir a liberdade do outro, de forma violenta. Aqui se
encontra a distinção entre o discurso filosófico e o discurso sofista. O primeiro abre-se à
verdade manifestada pelo Outro através da linguagem. O segundo apresenta um discurso,
na tentativa de convencer o outrem da sua verdade, corrompendo sua liberdade.
30
Ao
contrário do discurso, encontramos a linguagem que é acolhimento, de frente do Outro,
não mais violência, mas justiça. Não uma união de sujeitos lado-a-lado ao redor de uma
verdade, mas do sujeito único diante da própria verdade.
A linguagem traduz a relação do Eu com o Outro, entendido como Infinito. Vimos
também que o rosto é concebido como significação, linguagem, na relação entre o Eu e o
Infinito. Uma relação que é fundamental e, ao mesmo tempo livre, visto que não é
necessária, pois ambos são autônomos, radicalmente independentes. A linguagem é um
encontro entre o Eu e o Outro, ambos reconhecendo o caráter único de cada um. O
fundamento do discurso, nesse sentido, é a existência de dois seres distintos e
independentes entre si.
Se a Razão fosse universal, não haveria linguagem, pois os termos seriam um
receptáculo de uma verdade, que restaria aos indivíduos apenas assimilar. Um exercício
29
Em
De Outro modo de ser ou mais além da essência
, Lévinas usará os termos
Dizer
e
Dito
, correspondentes a
linguagem
e
retórica
, respectivamente. Cf. p 48ss.
30
“A retórica perm
anece discurso”, mas não é linguagem.
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de contemplação de uma verdade fora de si ou da qual ele é partícipe. Nesse caso, também
não haveria linguagem, pois não haveria alteridade, mas monólogo da Razão consigo
mesma, simples movimento autológico. A isso, Lévinas o chamaria de linguagem. A
linguagem não consiste em suprimir o Outro, pondo-o de acordo com uma Razão Una e
Universal. “A lingu
agem mantém precisamente o outro a quem se dirige, que interpela ou
invoca” (LÉVINAS, 1980, p. 60). Na linguagem, não se estabelece uma relação
sujeito
-
objeto
. Na linguagem, dá
-
se a
revelação do Outro.
Esse Outro, porém, não pode ser “representado” pelo pensamento pois, desse
modo, continuaria sendo um monólogo, uma autologia, uma
re
-
flexão
subjetiva. O Outro
é um ser estranho, impossível de ser reproduzido por mim, algo radicalmente separado do
Eu. A relação com o Outro se efetiva na manifestação do Outro, não por um espaço do
Eu em captá-lo ou compreende-lo (etimologicamente falando). A verdade outra só é
possível a partir do Outro.
E é aqui que Lévinas um passo adiante em sua reflexão. Ele assevera: “só o
homem me pode ser absolutamente estranho refratário a toda a tipologia, a todo o
gênero, a toda a caracteriologia, a toda a classificação” (LÉVINAS, 1980, p. 60).
31
O Eu
faz uma experiência radical do Outrem.
Lévinas, nesse momento, traz à luz a realidade metafórica, compreendida enquanto
Infinit
o, e a instaura numa realidade contingente que é o ser humano. Aqui se encontra,
talvez, a originalidade do pensamento levinasiano que nem sempre foi percebida pelos
seus leitores. O homem que participa da linguagem “não queima os olhos que a ele se
dirige
m” (LÉVINAS, 1980, p. 63). O Outrem não tem o formato mítico, impossível de ser
abordado diretamente, frente a frente. O Outrem “não é numinoso: o eu que o aborda não
é nem aniquilado ao seu contato nem transportado para fora de si, mas permanece
separado
e conserva a sua autonomia” (LÉVINAS, 1980, p. 63). A presença do Outrem é
uma
presença absoluta, pois em si não depende de qualquer relação, é em si mesmo.
A
linguagem, portanto, é um evento entre homens livres e autônomos. Trata-se, em última
análise, d
e uma “experiência radical de relação social” (LÉVINAS, 1980, p. 64).
A relação entre o Eu e o Outrem em nenhum momento pode ser reduzida a uma
simples relação Sujeito1 Sujeito
2
, como se fossem los equivalentes. No Outrem se
31
Ver a noção de
humanidade
em
Autrement qu’être ou au
-
delà de l’essence
, pp. 113
-
115.
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conserva a idéia de Infinito diante do Eu. A “relação com o Infinito respeita a
transcendência total do Outro
[...]
porque a nossa possibilidade de O acolher no homem
vai mais longe. Mais longe, precisamente porque vai assim em direção ao Infinito”
(LÉVINAS, 1980, p. 64). Permanece, portanto, a relação metafísica no interior da
linguagem, na relação ética de abertura e manifestação do Outrem.
A manifestação do Infinito no Outrem se revela
emblemática
na noção de rosto.
Lévinas irá dizer: “o modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a idéia do Outro em
mim, chamamo
-
lo, de fato, rosto” (LÉVINAS, 1980, p. 37).
Ele concebe que a expressão ocorre, antes de tudo, quando se pergunta a respeito
do “quem”, e não, a “que”, pois a pergunta sobre “o que” faz-se a alguém. O rosto do
Outro não é resposta à pergunta “o quê?”, mas já traduz uma expressão, anterior a
qualquer pergunta. “O que é anterior a toda pergunta não é, por sua vez, uma pergunta,
nem um conhecimento possuído a priori, mas Desejo. O
quem
correlativo do Desejo, o
quem
ao qual a pergunta se faz é, em metafísica, uma ‘noção’ tão fundamental e tão
universal como a qüididade, o ente e as categorias” (LÉVINAS, 1980, P. 159). Esse
“quem”, em Lévinas, é revelado no rosto. O rosto é exterioridade do Eu, não apenas
símbolo. O rosto é manifestação do que é fundamento, do que é princípio, anterior a
qualquer pergunta ou conteúdo.
O eu aparece realmente, sem “máscaras” ou mbolos, diante de Outrem. A
pergunta diante de Outrem está formulada, implicitamente, pela sua presença. O seu
rosto responde,
responsável
por expressar
-
se a Outrem.
Essa idéia de responsabilidade nasce, não no Mesmo, mas tem origem no Outro. A
responsabilidade da resposta está posta para o Eu. Responder ou não, permanecer mudo,
não nega a responsabilidade diante
do Outrem, pois tal responsabilidade não provém de si,
mas é posta por ele. A presença do rosto impõe uma pergunta, estabelece, independente
de mim, uma relação de responsabilidade.
A pergunta que o rosto traz não é uma pergunta retórica, como se já soubé
ssemos a
resposta. O Outrem manifesta-se, antes de tudo, numa situação de imposição (impõe uma
pergunta) e de carência (carente de resposta). A responsabilidade instaura-se na
manifestação do Outrem que impõe e, ao mesmo tempo, é carente. A manifestação do
rosto põe em xeque a soberania do Eu.
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O fato de o Eu poder dizer, expressar-se, possibilita-o a ser além (ou aquém) do
fenômeno, que é sempre uma realidade que se refere ao que é. O fenômeno é a aparência
do ser. A palavra do Eu é a própria expressão do Eu e não se equivale à obra ou ao
símbolo por ele construído. O dizer do Eu revela a si próprio, sem mediação. A palavra
revela o próprio significante. A linguagem, portanto, é a situação em que o Eu, ao acolher
Outrem, expressa-se a si mesmo. Nesse sentido, o Eu adquire uma nova forma. Não é
somente em-si e para-si, também não é fenômeno, mas é, agora, expressão. O Eu rompe
com a sua interioridade, é arrancado do seu mundo de fruição pela linguagem, pela
relação com o Outrem.
[...]
A linguagem pela qual um ser existe para um outro é a sua
única possibilidade de existir com uma existência que é mais que a sua existência
interior.” (LÉVINAS, 1980, p. 164).
A linguagem possibilita ao Eu ultrapassar a existência fenomenal ou interior, não
apenas no reconhecer do Outrem, mas, sobretudo, exprimindo-se a Outrem. Lévinas dirá,
“ser em si é exprimir-se, quer dizer, servir outrem. O fundo da expressão é a bondade”
(LÉVINAS, 1980, p. 164).
O Eu que se depara com o Outrem vê-se diante de uma realidade totalmente
ori
ginal e outra. Encontra-se com uma exterioridade que o arranca da sua interioridade. O
Outrem não é um “não-eu”. Se assim o fosse, permaneceria no âmbito da totalidade. A
presença do rosto instaura um evento que transcende os termos da relação. O rosto é a
presença da idéia de Infinito já presente no Eu, mas até então não manifestada.
Nesse sentido, o rosto não equivale a um objeto, sujeito à visão. O rosto não está
ao alcance da fruição.
Ver
(sensivelmente) o rosto é, de algum modo, objetivá-
lo,
apreendê
-lo em minha consciência. O rosto manifesta o que está além da contemplação e
da prática. Para Lévinas, a revelação do rosto é palavra. Não se deixando reduzir à
sensibilidade, o rosto fala, e o seu dizer me afeta, me atinge.
O rosto recusa-se a ser conteúdo da consciência. Porém, não nega o Eu, mas
estabelece com ele uma relação, possibilita a linguagem realmente, pois somente entre
seres separados é possível haver linguagem. E, mesmo “em relação”, os termos não se
reduzem ao Mesmo, que, na exterioridade do rosto, encontra-se a idéia de Infinito,
aquela realidade outra que já aparecera no Eu, enquanto desejo, mas que o rosto foi
possível de efetivá
-
la.
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A idéia de Infinito efetiva-se na
oposição
do discurso, na socialidade”
(LÉVINAS, 1980, p. 176). O
sensível do rosto recusa
-
se a ser apreendido, a ser dominado.
O rosto transforma-se em expressão da idéia do Infinito. A isso Lévinas chama de
“epifania do rosto”, expressão do supra-sensível ou, na terminologia aristotélica,
metafísica.
Em última análise
, a experiência do Outro é impossível de ser apreendida pela
fruição ou pela consciência como objeto do conhecimento. A epifania do rosto é a
expressão do Outro aberta na aparência sensível da alteridade, do Infinito.
Diante de tal manifestação, o Eu não tem poder, aliás, resta-lhe apenas um, que é o
de “negá-lo”. Mas tal poder não significa uma negação que apreende a alteridade, pois
essa é, essencialmente, exterioridade.
32
A única “negação” que resta é o homicício, a
eliminação total do dado sensível. “O homicício exerce um poder sobre aquilo que escapa
ao poder. Ainda poder, porque o rosto exprime
-
se no sensível.” (LÉVINAS, 1980, p. 177)
A resistência que o Outro oferece ao Eu não é de ordem física, mas
meta
-
fisica
,
transcendente. Trata-se de uma resistência ética. Portanto, apesar da possibilidade de
aniquilamento do rosto, a idéia de Infinito perdura.
O contrário do homicídio é a responsabilidade. Uma vez que o Eu recusa-se ao
homicício, a única alternativa que lhe resta é o acolhimento à expressão do Outrem. A
linguagem, essa relação entre o Mesmo e o Outro, transforma-se, antes de tudo, em
relação ética, relação de afirmação dos termos da relação, Eu e Outro. A linguagem, nesse
sentido, tem uma função que é anterior ao dizer
sobre
um ser preexistente, necessário de
ser traduzido. A linguagem é, antes, expressão do Outro ao Eu. O rosto, expressão do
Outrem, impõe uma relação, obrigando a interioridade a entrar no discurso, mesmo
quando esta não quer ouvir. Lévinas vê, nessa situação, o fundamento e a verd
adeira
universalidade da razão.
Porém, essa razão universalizada não se refere a um ser inteligível, o qual compete
à linguagem dizer. A razão universalizada refere-se ao próprio evento da linguagem
enquanto relação do Eu com o Outrem. Não se trata do discurso de um terceiro sobre um
evento
primordial. O primordial é o próprio
evento
da linguagem, entre termos que se
relacionam.
32
Lévinas, ao falar da relação do Mesmo com o Outro, afirma a exterioridade como sendo inerente à idéia de
Infinito, fazendo uma analogia ao argumento ontológico em que “a exterioridade de um ser inscreve-se na
sua essência” (LÉVINAS, 1980, p. 175).
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A alteridade indica a presença de um Outrem que não se anula na relação.
Independentemente da verdade ou mentira que ele venha a dizer, o seu rosto é
expressão. Lévinas compreende que a alteridade, enquanto relação ética, é anterior a
qualquer afirmação, seja ela verdadeira ou falsa. O signo verbal é posterior à expressão do
rosto.
33
Uma vez que a idéia de Infinito não é própria do Eu, a não ser enquanto desejo, a
expressão do rosto adquire um caráter magistral para o Eu, que
recebe
de Outrem a idéia
de Infinito. O rosto é mestre, ensinamento de uma idéia de Infinito, do qual ele é
manifestação. O ensino aqui, longe de ser maiêutic
o, é alteridade.
Ensinar, nesse sentido, não significa recorrer a um sistema de signos para
transmitir uma mensagem ou anunciar uma verdade, pois não há, nesse momento, um
conceito ou uma realidade inteligível a ser comunicada. Anterior a qualquer conteúdo,
uma inteligência, o Outrem. Ensinar significa expressão de Outrem.
Para Lévinas, “o pensamento racional refere-se a esse ensino. Pensar é ter a idéia
do Infinito ou ser ensinado” (LÉVINAS, 1980, p. 182). A primeira idéia a ser
aprendida”
é a idéia d
e Infinito, manifestada no rosto de quem fala.
A significação, nesse caso, é o Infinito, significação que não se apresenta em
conjunto de signos e nem mesmo à atividade sensível, mas na presença de Outrem. A
linguagem é o evento da significação, a significação como idéia do Infinito no Outrem. O
Outrem como significação da idéia de Infinito, será sempre uma presença inesgotável,
pois o rosto expressa, mas não esgota a expressão. A linguagem permanece, não como
mera serva da razão, mas como sendo a própria razão. Porém, não uma razão
una
ou
circunscrita na consciência individual. A razão, presente na linguagem, tampouco é um
sistema de leis ou a coerência interna de uma ordem ideal, na qual a singularidade do
indivíduo se dissolveria, uma autologia. Numa razão desse tipo, não há relação, somente o
Mesmo.
A razão a que Lévinas se refere vive na linguagem, na oposição do frente a frente.
Nela encontramos a racionalidade primeira.
33
A linguagem não é ato, atividade ou trabalho, é
expressão.
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[...] se o primeiro inteligível, a primeira significação, é o infinito da
inteligência que se apresenta (ou seja, que me fala) no rosto; se a razão se
define pela significação, em vez de a significação se definir pelas impessoais
estruturas da razão, se a sociedade precede o aparecimento das estruturas
impessoais, se a universalidade reina como a presença da humanidade nos
olhos que me observam, se, enfim, se recordar que esse olhar apela para a
minha responsabilidade e consagra a minha liberdade enquanto
responsabilidade e dom de si, o pluralismo da sociedade não poderia
desaparecer n
a elevação à razão. Seria a sua condição. Não é o impessoal em
mim que a Razão instauraria, mas um Eu-mesmo capaz de sociedade,
surgido na fruição, como separado, mas cuja separação foi também
necessária para que o infinito e a sua infinitude realiza-
se
como o ‘em
frente’
possa
ser
(LÉVINAS, 1980, p. 157).
O mundo, a partir da relação com o Outrem, adquire um sentido para além da
fruição do Eu, passa a ser um tema com uma significação, pois o mundo, agora, torna-
se
compreendido na relação com o Outrem e, portanto, refere-se a um movimento de
significação. Ao designar uma coisa, designo-a a outrem. O que antes era tido como coisa
ao meu alcance, a ser usufruída egoisticamente, agora passa a ser visto, também, sob a
perspectiva do outrem. As coisas não deixam de fazer parte do mundo do Eu, mas agora
passam a fazer parte também do mundo de outrem. O mundo deixa de ser apenas meu,
torna
-
se
tema,
o que na perspectiva de Lévinas significa “oferecer o mundo a Outrem pela
palavra” (LÉVINAS, 1980, p.187).
As coisas no mundo adquirem
objetividade,
não como afirmação ou conforme o
Eu, mas se apresentado na relação com o Outrem. A objetivação ocorre na linguagem e
significa separar as coisas do mundo que, até então, estavam sob o domínio do Eu, como
se estas fizesse
m parte do Eu pela fruição.
Essa separação ocorre no encontro com Outrem, pois é que o Eu é arrancado da
sua solidão. As coisas do mundo passam a adquirir significados através da relação. As
coisas que são diante do Eu e do Outrem tornam
-
se
objetivas
.
Ao se separar do
seu
mundo, o Eu, de certo modo, assume uma “distância” em
relação ao seu próprio ser. Porém, esse distanciamento não significa deixar de ser, pois
mesmo o “distanciar-se” é realizado pela própria distância, portanto ainda é ser. Lévinas
co
nsidera esse “distanciamento”, enquanto condição primeira para a objetividade, como
sendo o
tempo
. O tempo é a consciência do objeto – a tematização – assentada na
distância em relação a si. Tempo é essa “distância de si a si”, na consciência de si.
A
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O afastamento do ser em relação a si próprio não significa um “ser menos” ou
“ainda não-ser”. Esse distanciamento, movimento contrário ao da fruição, ocorre na
relação com o Outrem, diante do qual o Eu encontra e instaura um novo sentido no mundo
e no próprio ser, pois nesse encontro ele fala a outro. As coisas não são, agora, apenas
para mim, mas também para Outrem. Por essa razão, torna-se correto afirmar que “a
linguagem torna possível a objetividade dos objetos e sua tematização” (LÉVINAS, 1980,
p. 188).
O distanciamento do eu em relação a si próprio dá-se na epifania do Outrem, pela
idéia de Infinito que ele traz. Afastar-se de si significa abrir-se ao desejo, não de algo que
lhe falta, “mas de um excedente da idéia de Infinito” (LÉVINAS, 1980, p. 188). Ao
en
contro do Eu com uma idéia que o transcende, no mesmo movimento de distanciamento
de si, é que Lévinas chama de
tempo.
O conhecimento objetivo significa pensar algo em relação com Outrem. A
objetividade não é fruto de uma ação subjetiva, uma afirmação pura da subjetividade, mas
sim, da comunicação, quando digo algo a Outrem. O objetivo ser torna objetivo pela
linguagem (LÉVINAS, 1980, p. 188).
A insistência da filosofia de Lévinas em afirmar o evento da linguagem, a relação
do Eu com o Outrem não significa defender uma relação de cumplicidade ou intimista,
fechada na relação “Eu-Tu”. Daí porque não podemos considerar a linguagem como
simples relação
intersubjetiva
, compreendida como relação entre sujeitos (Sujeito1 –
Sujeito
2). A linguagem implica relação com Outro e não apenas um outro Eu (Tu).
Lévinas não reconhece essa simetria.
A expressão do rosto não se esgota na sensibilidade do Outrem. A nudez do rosto
me remete a uma realidade que transcende a mim e ao próprio Outrem. A expressão do
rosto incl
ui um terceiro, se quiser, remete
-
me a um
estrangeiro
(LÉVINAS, 1980, p. 191).
A relação entre o Eu e o Outrem detém um caráter social e não intimista, pois o
rosto do Outrem revela muito mais que a presença de
uma
pessoa. O rosto é manifestação
do Infin
ito, rompendo a relação fechada Eu
-
Tu.
Tudo o que se passa aqui ‘entre nós’ diz respeito a toda gente, o rosto que o
observa coloca-se em pleno dia da ordem pública, mesmo que dela me
separe ao procurar com o interlocutor a cumplicidade de uma relação p
rivada
A
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e de uma clandestinidade.
[...]
O terceiro observa-me no olhar do outrem a
linguagem é justiça (LÉVINAS, 1980, p. 190).
A presença desse terceiro expande a relação entre o Eu e o Outrem, rompe com
qualquer tentativa de compreender a alteridade pura e simplesmente, como relação Eu-
Tu.
No olhar do Outrem, encontro outros; o que eu encontro aqui e agora são outros que não
se fazem presentes sensivelmente.
O encontro com o Outro é uma relação social. Não pelo fato de ser um encontro de
seres do mesmo gênero ou uma união de indivíduos semelhantes, mas sobretudo pela
responsabilidade do Eu diante da nudez do rosto. Uma expressão que espera uma resposta
do Eu, a espera de ser acolhida.
A relação ente o Eu e o Outrem, como vimos, é uma relação de seres separados,
autônomos. Entretanto, tal independência não nega a possibilidade de acolhimento e de
intencionalidade. Pelo contrário, por serem autônomos é que possibilidade da idéia de
Infinito; o desejo é pelo que excede, não, pelo que falta.
O
acolhimento do Outro pelo Eu e mesmo a relação entre os termos não se
realizam num espaço etéreo, abstrato. O Eu, termo da relação, é marcado pela fruição, o
que significa dizer ser satisfeito, que usufrui materialmente das coisas do mundo. Faz
parte da identidade do Eu (não do Outrem) a fruição. Por outro lado, o outro termo da
relação, o Outrem, é “apenas” o que expressa o Infinito, justamente o excedente desejado
pelo Eu.
Lévinas concebe tal relação como uma espécie de
comércio”
(LÉVINAS, 1980,
p. 205ss). O Eu tem matéria, o Outrem é expressão do Infinito desejado. A relação é o
evento em que a liberdade do Eu decide por acolher o Outrem, na esperança de
“satisfazer” o seu desejo
34
. Em troca, o Eu coloca ao
dispor
do Outrem o mundo que até
34
A idéia de desejo (metafísico), em Lévinas, pode ser compreendida em contrapartida à idéia de
necessidade.
Enquanto a necessidade é entendida como busca de algo que falta, algo necessário à existência do Eu,
portanto centrado no Sujeito, o desejo é algo que provém do desejável, parte do Outro, mas não para manter a
existên
cia do Eu, mas para pôr o Eu em movimento de transcendência, de ser além de si, sem, com
isso,
perder
-se ou dissolver-se no Infinito (LÉVINAS, 1980, p. 49). A idéia de Infinito é, de certo modo, a
presença do Infinito no finito. A presença do Infinito no finito é compreendida enquanto Desejo. Desejo
suscitado pelo próprio Desejável, porém que não o satisfaz, mas o instiga. Trata-se de um desejo
desinteressado, sem a pretensão de possuir ou dominar, sem reduzir o Desejável a objeto ou a conceito. A
esse tipo de Desejo desinteressado, Lévinas chama de Bondade (LÉVINAS, 1980, p. 37). O pensamento
Ocidental, em suas origens, compreendeu a metafísica nessa perspectiva, uma outra realidade que o ser
humano deseja e que se encontra fora-
de
-si, um além. Esse desejo não é como uma necessidade de algo que
já conheço, como se em algum tempo já estivesse comigo e a sua busca fosse algo que me faltasse ao meu ser
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então lhe pertencia pela fruição. Ele rompe com o seu egoísmo e abre-se para o Infinito,
manifestado na nudez do rosto do Outrem, a qual revela a situação de carência do Outrem.
A acolhida do Eu ao Outrem faz-se numa perspectiva
econômica
. O Outro, por sua vez,
oferece
ao Eu a possibilidade de transcendência, uma relação metafísica, para além de si
ou de sua essência.
A relação ético-metafísica apresentada por Lévinas instaura no tempo (sem que
esteja restrito a ele) a possibilidade de uma relação para além da essência, portanto
metafísica, sem eliminar o caráter material da existência. Lévinas inicia sua
argumentação, procurando “desconstruir” a ontologia enquanto discurso e evento
fundamental, não para negar a sua importância ou validade, mas para colocá-la no seu
lug
ar, ou seja, como fundamento do Mesmo ou da Totalidade, mas jamais como
fundamento do que espara além. O “para além” é próprio da
metafísica
, pois somente
esta é apropriada para tratar do Outro e do Infinito. Uma filosofia, portanto, que esteja
disposta
a tratar “do outro modo que ser” terá que ser ética e não ontologia.
2.6
De outro modo que ser:
Autrement
Temos insistido em afirmar que a relação ética não é simplesmente uma relação
entre dois sujeitos (S
1
S2). Lévinas não reconhece essa simetria. A relação ética não se
refere a uma intencionalidade do eu em relação ao “outro eu”. A ética, nesse sentido, não
se reduz a uma relação intersubjetiva, do “eu” com o “alter ego”, uma relação em que o
outro é apreendido como
reflexo
de minha natureza humana
racional.
Na relação ética, a minha intencionalidade e todo o meu movimento de domínio
encontra uma barreira, recebem uma resposta: “não”. O “não” significa a recusa do
outrem à “suspensão” (
epoqué
) ou ao domínio da consciência do Eu. O “não” é a
afirmaçã
o da alteridade. Alteridade, desse modo, corresponde ao limite do Eu, em que sua
liberdade e todo o seu movimento de querer “ser mais”, vêem-se questionados. Enquanto
movimento da razão, tudo no mundo se figura como um termo neutro, inclusive o Ser. As
“incompleto ou decaído da sua antiga grandeza” (LÉVINAS, 1980p. 21). Entretanto, esse desejo, chamado
por Lévinas de “desejo metafísico” (LÉVINAS, 1980, p. 21), refere-se a algo que não se conhece, a sua
realidade “está para além de tudo o que pode simplesmente completá
-
lo” (LÉVINAS, 1980, p. 22).
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coi
sas encontram-se ao redor do Ser e ao seu alcance, à sua disposição, para serem “com-
preendidas” e assimiladas.
A relação ética é uma relação entre o Eu, que tem o desejo do Infinito com o
Outro que se mostra no Rosto. Não existem termos neutros, não há intencionalidade, mas
responsabilidade. O outrem que se apresenta diante de mim espera uma resposta. O
Infinito que se manifesta no rosto me tira de qualquer forma de subjetivismo, ele me
arranca de mim mesmo, leva-me para além de minha essência, além do meu movimento
de ser. Na relação ética, nesse movimento de saída de si, o eu é passivo, ele é arrancado de
si por outrem. Estamos diante de uma relação assimétrica. O outrem oferece-se com
sentido. Diante dele, tomo consciência de que não sou dono exclusivo das coisas e que o
meu movimento de fruição é um movimento egoísta. As coisas adquirem objetividade a
partir do outrem, pois, até então, todas as coisas do mundo se apresentavam como uma
extensão de mim, num movimento de fruir, de usar e de compreender. Todo o movimento
ontológico, essencial e solitário de reunir em mim a realidade vê-se questionado. O
mundo não está aí para que o ser possa ir sendo, o mundo é onde encontro o outrem, onde
me vejo responsável por ele, para que ele possa existir.
A relação ética entre mim e outrem não é de natureza ontológica. O Eu e o Outro
são termos separados. Contudo, no Eu se encontra o desejo do Infinito, o desejo de
encontrar o Outro. A subjetividade levinasiana reconhece o caráter próprio do Eu, porém
reconhece nele um desejo que o ultrapassa, que não tem origem em si mesmo. A relação
ética, no sentido levinasiano, refere-se à relação dessa subjetividade com o Outro,
manifestado no outrem. Embora seja uma relação marcada pela gratuidade, não é livre,
pois o Eu, mesmo que negue o outrem (através do homicício), não consegue eliminar a
idéia de Infinito que o outrem manifestara. D poder dizer que a relação ética é
linguagem, pois o outrem fala, é expressão sem mediação. O Outro não é tema, mas
expressão. Ele manifesta
o Infinito que não se reduz nele.
O sentido dessa relação e, portanto, dessa linguagem, não se encontra no Eu, mas
no outrem. “A significação é o Infinito, mas Infinito não se apresenta a um pensamento
transcendental, nem mesmo à atividade sensorial, mas em outrem”, nesse caso, “o
inteligível não é um conceito, mas uma inteligência” (LÉVINAS, 1980, p. 185).
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A relação ética instaura uma linguagem inter-pessoal, e não, impessoal e neutra.
Então, para que haja comunicação entre o Eu e o Outrem (relação ética), é preciso que se
acolha o outrem, não apenas um enunciado, mas a sua expressão, é preciso
“reconhecimento”. A relação consiste em abrir-se ao outrem, mas não como se abrem as
cortinas de um espetáculo, como espectador; o reconhecimento ético do outrem imp
lica
responsabilidade em relação a ele.
A tese levinasiana consiste em afirmar que a responsabilidade em relação ao outro
significa um desvelamento de si para o outro, convertendo-se em um “ser para o outro”
(LÉVINAS, 1999, p. 190). A situação da subjetividade na relação ética é distinta daquela
em que o eu procura afirmar-se. Trata-se de um movimento de insegurança, de dúvida e
não de certeza. A relação ética instala uma comunicação incerta em que, ao abrir-se ao
outro e responsabilizando-se por ele, o Eu vivencia o risco e a incerteza. A relação ética é
uma relação de risco. “A comunicação com o outro pode ser transcendência enquanto
vida perigosa, como um belo risco a correr” (LÉVINAS, 1999, p. 191). Segurança se
encontra no Mesmo, no próprio. A ext
erioridade, a alteridade revelam
-
se como incerteza.
Meu compromisso para com o outrem não tem origem numa certeza objetiva ou
verdade demonstrada, traduzida em normas. Minha responsabilidade para com ele é
anterior a toda verdade e a toda certeza (LÉVINAS, 1999, p. 191). A ética levinasiana da
responsabilidade não se compreende a partir da ética normativa, que tem como princípio o
ser.
Enquanto Heidegger acusa a filosofia de ter caído no “esquecimento do ser”,
Lévinas chama a atenção para o “esquecimento do Outro” em que incorreu o pensamento
ontológico da filosofia ocidental. Para ele, a relação ética não é do tipo essencial, do “ser-
reciprocamente
-
um
-com-o-outro” (
Miteinandersein
), uma relação de lado a lado, ao redor
da verdade. A relação ética, na concepção levinasiana, é uma relação face-a-face, relação
de reconhecimento e responsabilidade para com o outrem.
O mesmo poderíamos afirmar acerca das teorias que construíram o saber
pedagógico. A educação caiu, com raras exceções, num esquecimento do outro ao longo
de sua história. A educação, assim como defende a ética levinasiana, precisa ter presente
não somente a preocupação com o desenvolvimento cognitivo, mas, e sobretudo, para o
encontro com o outro, numa atitude de respeito e cuidado.
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Acreditamos que a pedagogia de Paulo Freire forjou uma educação nesse sentido.
Apesar de beber de outras fontes, a antropologia freireana, construída a partir de teorias
variadas e da sua própria intuição, foi capaz de conceber o diálogo, não apenas como uma
mera troca de conhecimentos. O diálogo, na perspectiva freireana, tem como fundamento
antropológico a idéia de seres autônomos, dispostos a se comprometerem mutuamente, em
favor de relações solidárias e por uma ordem social mais justa. É o que procuraremos
demonstrar n
o próximo capítulo.
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CAPÍTULO 3
UMA HERMENÊUTICA ACERCA DO DIÁLOGO EM FREIRE
Paulo Freire é um pensador e um educador que se insere no rol daqueles que
arriscaram uma práxis pedagógica de superação da racionalidade autológica. Podemos
dizer que o sentido que põe em movimento a pedagogia freireana é o
diálogo
. Sem a
experiência dialógica, a pedagogia freireana se cristaliza, instrumentaliza-se e acaba se
tornando um baú de conceitos e práticas autológicas e, para os dias de hoje, anacrônicas.
A hermenêutica que fazemos dos textos de Freire tem esse ponto de partida e esse
horizonte: o
diálogo
. Não queremos, com isso, ignorar a importância de outras categorias,
pelo contrário, nossa intenção é demonstrar que as várias categorias possíveis de ser
identifica
das na pedagogia freireana adquirem um significado mais profundo, quando são
compreendidas a partir desse referencial. Os escritos de Paulo Freire nos permitem tomar
a categoria
diálogo
como central e articuladora de tantas outras categorias freireanas.
Es
sa hermenêutica, assim como propunha P. Ricoeur, não se restringe apenas a
uma exigência semântica. Além d
e
os textos nos indicar
em
a relevância
d
o
diálogo
, soma
-
se a isso o contexto educacional, social e político em que vivemos, onde o exercício do
diálog
o se faz tão necessário. Nossa hermenêutica visa, portanto, não apenas compreender
os escritos freireanos, mas também nos indicar um sentido que nos permita superar a crise
ética em que estamos submersos.
Uma primeira aproximação aos textos freireanos pode nos levar (e levou muitos
comentadores) a compreender os textos de Paulo Freire retidos nos contextos históricos
específicos em que ele viveu e associá-
lo
s a esta ou aquela corrente filosófica. Tal
interpretação é válida e até mesmo necessária, no entanto
,
insuficiente para compreender a
complexidade e a genialidade do seu pensamento.
É preciso chegar à terceira margem, em busca de um horizonte de sentido que nos
permita uma leitura que considere a complexidade do seu pensamento e do seu tempo,
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sem apreciações fragmentadas, sejam de ordem ideológica, historiográfica ou filosófica.
Acreditamos que a atualidade da pedagogia freireana consiste justamente nos elementos
que foram capazes de transcender a sua historicidade, apontando-nos um horizonte onde
possam
ser vislumbradas possibilidades de respostas aos problemas do nosso tempo.
Os filósofos que se debruçam sobre as obras de Paulo Freire encontram uma
dificuldade gigantesca ao tentar enquadrá-lo em determinadas correntes ou matrízes
filosóficas. Gerhardt (1996, p. 154) fala de ecletismo filosófico. Outros chamam de
“fenomenólogo dialético” (TORRES, 2006), no sentido de reconhecer, em seus escritos,
elementos da fenomenologia e da dialética materialista. Para os marxistas mais ortodoxos,
tal classificação soaria, no mínimo, bizarra. Paulo Freire não cansa de trair e superar os
pressupostos determinados pelas correntes filosóficas, mais presas à coerência dos seus
sistemas do que ao compromisso com a humanidade.
Gerhardt (1996) chama
a
atenção para o mosaico de pensadores que influenciaram
Paulo Freire nos anos 50 e início da década de 60. Dentre os intelectuais reunidos no
Instituto de Estudos Brasileiros (ISEB), destaca Hélio Jaguaribe, Anísio Teixeira, Roland
Corbisier e Álvaro Vieira Pinto, que se inspiravam em filósofos e sociólogos europeus,
tais como Karl Mannheim, Karl Jaspers, Gunnar Myrdal e Gabriel Marcel. Ainda nesse
período, por influência católica, teve contato com Jacques Maritain, Thomas Cardonnel,
Emmanuel Mounier, interpretados por brasileiros como Alceu de Amoroso Lima,
Henrique de Lima Vaz, Herbert José de Souza e outros.
A esse mosaico,
35
soma-se ainda o velho Marx. Tal postura eclética o deixa de
transparecer, desde já, uma postura revolucionária, uma resistência a se enquadrar nessa
ou naquela tendência ou corrente de pensamento, seja ela dominante ou não. Uma reação
ao academicismo, muito próprio das
universidades
daquele tempo e também do nosso.
35
O conjunto de pensadores que compõem o mosaico das fontes freireanas é de difícil conclusão. Alder Júlio
(2001, p. 9) apresenta vários autores que aparecem, não raramente, nos escritos freireanos, uns mais e com
maior densidade do que outros - a autores tais como
Sócrates
, Aristóteles, Hegel,
Marx
, Lênin, Mao Tsé-
Tung,
Jaspers, Makarenko, Gramsci, Ivan Illich,
Fromm
,
Niebuhr
, Lukács, Goldman, Marcuse,
Sartre,
Beauvoir
,
Jacques Maritain, Emanuel Mounier, Piaget, Tristão de Athayde
,
Elza Freire, Guerreiro Ramos,
Álvaro Vieira Pinto, Fernando de Azevedo, Guerreiro Ramos, Anísio Teixeira, Caio Prado Júnior, Florestan
Fernandes, Lauro de Oliveira Lima, Celso de Rui Beisiegel, Carlos Rodrigues Brandão, Francisco Weffort, C.
Wright Mills, Amílcar Cabral, Samora Machel, Zevedei Barbu, Camilo Torres, Che Guevara,
Georges
Snyders,
Karel Kosik, Adam Schaff, Fiori, Clodomir Moraes, entre tantas outras personagens.
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Sincretismo, ecletismo e pluralismo são expressões que ilustram a dificuldade de
classificar a pedagogia freireana e encarcerá-la num sistema. A leitura dos escritos
freireanos nos obriga
a uma hermenêutica livre de rótulos, esquemas e classificações.
Será possível, então, uma leitura que nos permita uma aproximação desse conjunto
de abordagens filosóficas? Existirá um amálgama para esse mosaico? Acreditamos que o
elemento que nos permite uma sincronia das idéias de Freire não se encontra no nível
teórico, mas prático. E aí
é
que a pedagogia freireana encontra consistência e durabilidade.
É no campo prático e, portanto, ético que a teoria construída por Freire, com tantos
recortes
,
po
de
encontrar um sentido e um horizonte coerente.
A compreensão da teoria pedagógica de Freire, construída sob tantos pilares, é
possível de alcançar equilíbrio e harmonia quando voltada para o mundo prático, para o
compromisso existencial dos homens entre si. Trata-se de uma relação ética. A pedagogia
de Paulo Freire é uma educação para o encontro e
o
compromisso social. Na perspectiva
de Freire, o existir humano carrega a vocação do compromisso com o outro, de
responsabilidade não apenas pelo próprio existir, mas também com o existir do outro.
Uma abordagem prática nesses moldes nos permite uma melhor compreensão do
significado e das possibilidades da pedagogia freireana. É preciso, sobretudo, disposição
para se
arriscar a trilhar o mesmo caminho percorrido por Freire. Do contrário, poderemos
fazer excelentes reflexões e interpretações acerca da pedagogia freireana, sem, contudo,
ter o mínimo de eficácia educacional, social ou política. Então, a pedagogia freireana,
antes mesmo de estar fundada num princípio teórico, funda-se e se reinaugura a todo
tempo a partir da atitude e da disposição do(a) educador(a)
para
desenvolver, na prática,
um projeto político
-
pedagógico
que
contemple os postulados
freireano
s
.
Quando
, no primeiro capítulo, falávamos de
meta
-
arqueologia
, referíamos-
nos
justamente a essa realidade. A pedagogia freireana,
assim
como a filosofia de E. Lévinas,
constitui
-
se
não a partir de uma série de pressupostos teóricos, por melhor
es
que sejam
,
mas
de um
princípio
(
arché
) que ao invés de firmar identidade, modelos e paradigmas,
possibilita a pluralidade, a emergência e a manifestação da diferença. O contrário disso
seria um princípio
baseado
nos moldes da racionalidade autológica, marcado pela
coerência identitária, de totalidade e unidade, o que nos permitiria construir um
A
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fundamento para uma brilhante teoria, sem, contudo, alavancar as mudanças que o tempo
nos impõe.
A meta-arqueologia freireana é algo que transcende o presente através do risco
humano de vislumbrar e se pôr em movimento para um horizonte que é utópico e
diacrônico, que cruza o nosso presente, sem se fixar nele
(LÉVINAS, 1999, p. 53).
Isso
é possível para os homens e
as
mulheres que estão convictos de que o seu existir no
mundo está marcado por uma vocação de ser com o outro, num movimento de ser mais,
por pessoas incomodadas
devido à
mediocridade de viver em função apenas de si mesmas.
Na perspectiva de Freire, o existir humano carrega a vocação do compromisso com o
outro, de responsabilidade não com o próprio existir, mas também com o existir do
outro.
Esse apelo existencial ao cuidado
com
o outro, na pedagogia freireana, expressa
-
se
através do compromisso social e político em favor do oprimido, daquele que se encontra
com a sua existência mais ameaçada. A concepção de responsabilidade freireana não se
conforma
com a idéia de uma responsabilidade intimista ou exclusiva
da
vida privada. A
intimidade de pessoas entre si não é desprezada e constitui, sem dúvida, um significado e
um
valor existencial. Contudo, a responsabilidade social, na perspectiva freireana, está
para além dessa relação, embora nela possa se nutrir, e é expressa de várias formas: em
defesa da justiça, na luta por regimes políticos e econômicos mais democráticos e
igualitários, na construção de uma cultura de paz e tantas outras formas de interação social
responsável.
Entretanto, tal vocação para o outro não é fruto do acaso ou da natureza do ser
humano. O desejo de ser com outro, numa relação de responsabilidade, é fruto de um
processo educacional. Cabe à educação desenvolver no espírito humano o desejo de
ser
mais
e em favor do outro.
O
ser mais freireano é esse movimento do ser humano de ir além de si mesmo e de
se compro
meter com o outro, no mundo
em
que se encontra, no contexto histórico em que
está inserido
, razão pela qual pode
mos dizer que o cerne da educação freireana é a
ética
,
e
não outra, é o outro que se encontra no horizontre de sentido do pensar e agir pedagógi
co.
É justamente nesse encontro ético, do sujeito diante do outro, mediatizado pelo
mundo, que se efetiva o diálogo freireano
, em que a
relação dialógica é muito mais do que
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o simples uso da palavra por homens e mulheres que se interagem. O diálogo é a
exp
ressão do humano, que se encontra diante do outro, presente no mundo, construin
do
relações de responsabilidade; é a efetivação de um processo em que os seres humanos
se
disponibilizam uns para os outros o seu ser sem, contudo, esvaziar-se ou alienar o seu
existir. Trata-se de um dispor ao outro o próprio ser sem, com isso, negar a si próprio. No
diálogo, o Eu se expressa, mostra
-
se
, manifesta
-
se
, mas não se aniquila.
O diálogo, contudo, não é pura expressão, sem mais. A relação dialógica é
intencional, tende para o outro, num movimento de ajudá-lo a “ser mais”, de auto-
superação do outro e de si próprio. Por meio do diálogo, construimos responsabilidades
sociais e reconstru
í
mos o mundo.
Nesse sentido, o diálogo adquire significados distintos e complementares, de
acordo com o contexto histórico
-
existencial dos sujeitos
, podendo
, portanto
,
ser concebido
como processo educacional e prática da liberdade, como construção cultural, como
relação social e política, como concretização da justiça. Um movimento que tem como
pressuposto e intencionalidade e como princípio e fim o compromisso com o outro.
Vejamos, nas linhas que seguem, quando e como Freire nos permite essa hermenêutica
acerca do diálogo.
3.1
O DIÁLOGO COMO EDUCAÇÃO E PRÁTICA DA LIBERDADE
O mundo não é uma realidade apenas para ser conhecida e contemplada, mas
para
ser humanizada e, também, de humanização do próprio ser humano. Esse duplo processo
de humanização, na pedagogia freireana, está ancorado no diálogo. É uma enunciação
acerca do mundo, em vista de transformá-lo, humanizando-o e humanizando-se. Como
dirá Freire,
“existir humanamente é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo
pronunciado
, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos
pronunciantes
, a exigir deles novo
pronunciar
. Não é no silêncio que os
temas se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE,
1987, p. 78).
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Diferente dos animais, que se encontram totalmente submersos no movimento dos
sentidos que os arrastam para comportamentos predeterminados, o ser humano, pelo
menos em certa medida - que varia indubitavelmente de pessoa para pessoa, de um ato
para outro, de uma cultura a outra - tem uma disposição para tomar, em suas mãos, a sua
própria existência, estabelecendo metas, objetivos, fins para a própria vida. Ao ser
humano compete
, pois,
o sentido de sua vida.
Is
so significa dizer que o agir humano não é simplesmente o resultado de fatores
externos e internos. Embora esses fatores o condicionem, não chegam a determinar de
forma definitiva a sua existência. De modo que, na relação de ser humano com o mundo e
com os seus semelhantes, o homem constrói história e culturas diferenciadas.
É nessa perspectiva que devemos compreender a
liberdade
sob a ótica da
pedagogia freireana, em que a luta contra a opressão é possível porque uma crença de
que a liberdade é possível. A criticidade é uma expressão da reação humana ao
determinismo e ao fatalismo, que tantas vezes assombram a existência humana. O
pronunciar o mundo, na perspectiva freireana, é esse olhar crítico acerca dos elementos
culturais, religiosos, políticos, econômicos, sociais, educacionais e psicológicos. Um olhar
que não visa apenas compreender o poder que exerce sobre as vidas humanas, mas e,
sobretudo, transformar tais realidades em favor de uma existência mais humanizada e
humanizante.
Agir humanamente é, pois, um agir consciente do sentido da própria ação. Na
linguagem filosófica, empregamos o termo “vontade” para indicar a capacidade, própria
do ser humano, de agir em vista de um fim, dotando de sentido e significado a sua ação.
Lévinas adverte que “a vontade é livre de assumir a responsabilidade no sentido que
quiser, mas não tem a liberdade de rejeitar essa mesma responsabilidade” (LÉVINAS,
1980, p. 196).
Nesse sentido
,
é muito pertinente o que diz Do
ndeyne:
O que é então o comportamento voluntário livre? Agir livremente, segundo o
parecer de todos, é agir sabendo o que se faz e porque se faz; é dar um
sentido
à vida e assumir pessoalmente esse sentido. Pois bem, nossas ações
adquirem um
sentido
na medida em que percebem valores ou contribuem a
promover esses valores no mundo. Por conseguinte, podemos dizer que o
comportamento voluntário livre é no fundo um juízo de valor que se encarna
em uma ação concreta (DONDEYNE, 1951 p. 45).
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Isso não significa
dizer
que
a atividade humana concreta é movida unicamente por
valores formulados pela razão ou que se referem sempre a questões de ordem espiritual ou
racional
. Sabemos que agimos também por instintos ou condicionantes biofísicos,
próprio
s de todo ser vivo. Porém, são as ações oriundas dos processos racionais e
espirituais que fazem do ser humano um ser diferente dos outros animais.
Agir humanamente não se refere apenas à capacidade de julgar, de discernir
valores ou de decidir por essa ou aquela direção, m
as e, sobretudo, pôr
-se a serviço desses
valores, promovendo-
os
na própria vida e na vida dos demais, por meio da razão e de
ações concretas. Aç
ões
que, ao mesmo tempo em que indicam um sentido para as coisas
do mundo, revelam um sentido da própria existên
cia humana.
O agir humanamente não é, portanto, uma atividade puramente espiritual, que se
desenvolve no interior de uma consciência voltada para si. Trata-se de um compromisso
de concretizar valores na própria vida, na relação com os demais no mundo. Diálogo e
alteridade não podem, portanto, ser reduzidos a construções racionais. Diálogo e
compromisso com o outro
constituem
valores a serem postos em prática, em vista de uma
realização humana e do mundo.
A educação, diferentemente do adestramento, é um fenômeno eminentemente
humano e como tal
,
deve ser compreendida.
P
or ser humana
, a prática educativa,
é sempre
teleológica, indica um fim. É um movimento racional e prático, ontológico e ético. Não se
restringe à dimensão intelectual, de afirmação de princípios, mas também de efetivação
desses princípios através de ações concretas. Um processo de ensino-aprendizagem sem
reflexão
, como afirma Freire, é alienado e alienante. E não menos alienante será a
educação centrada apenas na
ação,
que
sucumbirá ao ativismo
estéril e sem sentido.
A educação, enquanto prática da liberdade
,
implica esse duplo movimento de
ação
-
reflexão
na relação entre os humanos, mediatizados pelo mundo. A liberdade, apesar
dos vários condicionantes sócio-
econômico
-
cultura
is
e políticos, é possível de se efetivar
por meio de um processo pedagógico axiológico. Entretanto, rep
etimos:
os valores postos
em pauta no processo educativo não são meros conteúdos mentais, frutos de uma
subjetividade intimista, mas um compromisso concreto entre seres huma
nos
. no mundo,
em vista de um fim, delinea
n
do e confirmando sentidos para o próprio existir no mundo.
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Tal liberdade, contudo, não pode ser abstraída do seu contexto histórico, das
possibilidades e limites que a história apresenta. É essa consciência da pró
pria
historicidade, do princípio e
do
fim da sua ação que faz com que o ser humano se distinga
dos outros seres. O exercício da liberdade é o movimento prático-teórico de identificação
das situações
-
limite vividas e a “percepção
-
ação” dos possíveis caminho
s de superação.
Freire, ao contrapor a existência humana à dos animais
,
dirá que
os homens, ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que estão,
ao atuarem em função de finalidades que propõem e se propõem, ao terem o
ponto de decisão de sua busca em si e em suas relações com o mundo e com
os outros, ao impregarem o mundo de sua presença criadora através da
transformação que realizam nele, na medida em que dele podem separar-
se
e, separando-se, podem com ele ficar; os homens, ao contrário do ani
mal,
não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica (FREIRE,
1987, p. 89).
Es
sa dialética entre a consciência dos condicionamentos históricos e a liberdade
possibilita a superação das “situações-limite”, de reação ao que está dado. Freire af
irma
que
esta é a razão pela qual não são as “situações-limite”, em si mesmas,
geradoras de um clima de desesperança, mas a percepção que os homens
tenham delas num dado momento histórico, como um freio a eles, como algo
que eles não podem ultrapassar. No momento em que a percepção crítica se
instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança
que leva os homens a se empenharem na superação das “situações-
limite”.
Esta superação, que não existe fora das relações homens-mundo, somente
pode verificar-se através da ação dos homens sobre a realidade concreta em
que se dão as “situações
-
limite” (FREIRE, 1987, p. 90
-
91).
A superação das “situações-limite” e da auto-superação não se faz sem
intencionalidade. O movimento de libertação não ocorre apenas no sentido de se ver
livre
de
, livre das mais variadas formas de opressão. O processo emancipatório tende para um
fim. O movimento de
libertar
-se de implica um movimento de
libertar
-se para. Tal
processo, na pedagogia freireana, é fruto de um movimento dialógico, de
intercomunicação de homens e mulheres, mediatizados pela realidade.
A dimensão axiológica do movimento dialógico nos revela que os valores não são
construtos individuais, mas intersubjetivos. Os valores adquirem significado social por
que
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os seres humanos impõem à sua existência um sentido comum ao outros seres humanos. A
liberdade passa a ser compreendida não apenas a partir do próprio “eu penso”, “eu posso”,
mas também da perspectiva do outrem: o outro também acredita, quer e precisa.
Os valores entendidos como realidades concretas, para além do movimento
egológico e intimista, implicam compromisso com o outrem, revertem-se em favor
também do outro,
da
s suas necessidades. O que significa dizer que não diz respeito a
valores espirituais, pura e simplesmente, mas e, sobretudo, aos bens materiais
elementares: o pão, a água, a terra, a casa etc. E, mesmo quando, em algum momento, não
necessite pessoalmente, tais valores são sociais, pois permitem dar de comer ao que tem
fome, beber ao que t
em sede, moradia ao que está na rua.
Em outras palavras, “a liberdade em vista de” ou “a liberdade para” visa não
apenas
ao próprio, mas também ao outro, num processo de comunicação, de diálogo, de
comprometimento responsável com o existir do outro. Como dirá Freire, “o diálogo, que é
sempre comunicação, funda a co
-
laboração” (FREIRE, 1987, p. 166).
O diálogo, na perspectiva freireana, ao mesmo tempo em que nasce de uma matriz
crítica, geradora de criticidade, nutre-se do “amor, da humildade, da esperança, da fé, da
confiança” (FREIRE, 1983, p. 107). Somente assim o diálogo é capaz de efetivar uma
comunicação comprometida. Lembrando Karl Jaspers, Freire dirá que o diálogo não é
apenas um instrumento ou forma de comunicação, mas um modo de existir, de dar sen
tido
à
própria vida (FREIRE, 1983, p. 108).
A educação, entendida como processo de formação/construção do ser humano, da
sociedade, mediatizada pelo mundo, confunde-se e se imbrica com o movimento de
construção de liberdades intencionalmente voltadas para o outrem, para o cuidado e
compromisso com o outro. Percebemos, aqui, mais uma vez, a sintonia entre a categoria
diálogo
freireana e
a
alteridade
levinasiana.
3.2
O DIÁLOGO COMO RELAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA
aludimos, assim como defendera E. Lévinas, ao fato de que o outro se revela e
se impõe diante do Eu. O outrem se apresenta a mim não por eu tê-lo chamado, ao
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contrário, ele impõe a mim a sua presença. De modo que não compete à subjetividade a
decisão de reconhecer o outrem, ela não tem esse poder. O out
ro não existe pelo fato de eu
poder pensá-lo ou por fruto da minha demonstração. O outro está aí, diante de mim,
cobrando uma resposta
, e s
ua presença é uma exigência de reconhecimento, apelo a minha
responsabilidade. O Eu não pode se privar de uma resposta, mesmo que esta seja a
negação do outro. O virar as costas já é uma resposta.
A relação social, portanto, é um fato que independe da liberdade ou da vontade do
eu ou do outrem. A dimensão social da existência humana carrega um paradoxo. Ainda
que o ser humano não dependa do outro para existir, por um movimento autopoiético ou
hipostático, como diria Lévinas em temps et l’autre, o humano não poderá ser no
mundo sem responder ao outrem que se apresenta. Dpoder
emos
dizer que o ser social
não se refere a um evento ontológico, preso à existência do eu próprio, mas a um evento
ético, que tem origem no outro.
A relação
intersubjetiva,
nesse sentido, adquire conotações diferenciadas e pode se
efetivar no
âmbito privado e de intimidade a exemplo dos encontros afetivos e amorosos
e
no âmbito público e político. A relação social, portanto, é fato da existência humana.
Porém, dizer que a sociabilidade faz parte da vida humana não significa negar a
pluralidade de intenções e propósitos que es
s
a mesma sociabilidad
e comporta.
O ser humano é um ser ambivalente. Movimenta-se a partir de uma rede complexa
de dinamismos de ordem psicológica, social, econômica, política, religiosa, cultural,
biológica; entre dúvidas e certezas, conflitos e consolações, vivenciados interna e
externamente, ele acaba dotando de sentido a sua presença no mundo. Sabemos que tal
sentido carrega ambigüidades, é atualizado numa constante tensão entre o cuidar de si e o
cuidar do outro.
Isso significa dizer que, apesar d
e
a relação social ser um dado empírico inegável,
o mesmo não pode ser dito em relação ao
diálogo
. O diálogo, enquanto relação de
alteridade, de compromisso com o outrem, não é algo tão fácil de ser demonstrado.
Implica consentimento, desejo, vontade do ser humano pôr-se em movimento de
ser mais,
de ir além de si mesmo.
Freire não admite uma concepção de diálogo que não seja essa de
comprometimento de uns com os outros em vista da promoção da vida.
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Ser dialógico é não invadir, é o manipular, é não sloganizar. Ser dialógico
é empe
nhar
-se na transformação constante da realidade. [...] O diálogo é o
encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o
‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para
a humanização de todos (FREIRE, 1977, p. 43).
O contrário disso será sempre
antidiálogo
, marcado pela instrumentalização do
outro. O antidiálogo também constitui uma relação social, uma relação de opressão. E a
relação social implica encontro, interação entre falantes. C
ontudo
, tal interatividade não
exige
abertura, acolhimento. A relação social pode se dar entre o Eu-
Tu
-Ele, mas não
necessariamente em favor do Nós. Sem essa co-responsabilidade entre os sujeitos, a
sociabilidade não passará de uma arena de interesses, um jogo de astúcia, durante o qual
os sujeitos maquiam suas intenções espúrias, com pseudobenefícios para a coletividade
,
ficando, então,
longe da relação dialógica, de alteridade.
A sociabilidade gerada a partir
do
exercício do diálogo gera solidariedade. Freire,
ao comentar sobre sua experiênc
ia numa de suas cartas a Guiné
-
Bissau (5
a
. carta), ressalta
o caráter solidário, presente na comunidade de Tachai:
Realizada esta [a reforma agrária], os camponeses se defrontam com uma
nova necessidade, que emerge agora de maneira clara, destacada, no
dinamismo da própria transformação, a necessidade do trabalho baseado na
ajuda mútua, somente como poderiam, juntando suas forças, superar as
limitações individuais na atividade produtiva. Indo mais além dos interesses
individuais
, poderiam aumentar a produção e consolidar as vitórias
alcançadas. Acompanhando o novo momento, a educação se orienta na
mesma direção, a do estímulo ao trabalho solidário, de ajuda mútua, que
termina por levar Tachai a constituir-se numa “Brigada de Produção”
(FREIRE, 1978, p. 147
) [grifos nosso
s
].
Tal experiência revela o esforço de pessoas que se encontram num movimento de
superação de si mesmas, indo além dos cuidados pessoais e comprometendo-se com o
bem da comunidade. Contudo,
se
esse movimento não for constantemente revitalizado, se
os seus sujeitos não continuarem a se ocupar uns dos outros, superando os seus próprios
interesses, a solidariedade acaba, o diálogo se esvai.
Essa observação que fazemos, aparentemente primária, quer
chamar
a
atenção para
o fato de que não é uma situação social e política estrutural que garante as relações de
solidariedade. A revolução não funciona como a lei da inércia, em que um corpo em
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movimento uniforme permanecerá nessa condição até que outra força seja exercida sobre
ele. De modo que o problema da solidariedade não se resolve com uma única decisão, em
assembléia de cidadãos ou não, muito menos por lei ou por decreto. A sociabilidade
marcada pela alteridade é fruto da vontade de sujeitos singulares, a cada momento do seu
existir
;
são e
les
que promovem condições sociais e políticas geradoras de justiça e
promoção humana.
Não quer
emos
, com isso, minimizar a importância da estrutura só
cio
-
político
-
econômica sobre a prática individual dos sujeitos. O gregos reforçavam a importância
de uma
poli
s justa para a formação de cidadãos virtuosos e vice-versa. A dialética entre o
particular
-universal ou do local-global, nesse caso, também se faz notar. Contudo, seria
uma simplificação conceber a solidariedade como resultado de um processo que, uma vez
instalado, dificilmente mudaria de curso. O sentido da sociabilidade é construído pelos
sujeitos, no dia
-a-
dia de suas ações.
A educação dialógica é um processo constante de
vir
-a-
ser.
Segundo Freire, uma
“duração”
. Na contradição
permanência
-
mudança
, encontramos o caráter dinâmico da
educação, algo que está
sendo
e não o que
é,
pronto e acabado. “A educação que não se
transformasse ao ritmo da realidade não ‘duraria’, porque não estaria sendo. Essa é a
razão por que, ‘durando’ na medida em que se transforma, a educação pode também ser
força de transformação” (FREIRE, 1977, p. 84).
Um processo pedagógico que queira ser transformador e construtor de uma nova
sociedade, marcada pelo “aprender a viver juntos”, como enfatiza o documento da
UNESCO, organizado por J. Delors, não poderá abrir mão do esforço de promover
relações dialógicas. Não basta para os tempos de hoje e também para o de ontem, uma
educação que promova sociabilidade, pura e simplesmente. É preciso que a educação
promova relações sociais de solida
riedade, de compromisso
entre o
s sujeitos.
Nesse sentido, não como negar o caráter
político
da ação educativa. O termo
político
, aqui, entendido na acepção mais democrática: da promoção da vida e do bem
estar da coletividade. Paulo Freire, em vários textos, reforça essa idéia do caráter político
da educação. Lembramos, aqui, um texto de Alfabetização: leitura do mundo leitura da
palavra,
quando
,
em entrevista com Donaldo Macedo,
Freire
identifica tanto o caráter
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político da educação como também o epistemológico. Fiquemos, nesse momento, apenas
no primeiro aspecto:
Em primeiro lugar, a educação é um ato político, quer na universidade, no
curso secundário, na escola primária ou numa classe de alfabetização de
adultos. Por quê? Porque a natureza mesma da educação possui as
qualidades inerentes para ser política, como a política tem aspectos
educacionais. Em outras palavras, o ato educativo tem natureza política e o
ato político tem natureza educativa. Se assim é, de maneira geral, é incorreto
dizer que apenas a educação latino-americana tem natureza política. A
educação no mundo todo é política por natureza. Em termos metafísicos, a
política é a alma da educação, seu próprio ser, quer no Primeiro Mundo, quer
no Terceiro [...]. A natureza política não é um exotismo de Paulo Freire
vindo do Terceiro Mundo (FREIRE, 1990, p. 125
-
126).
Freire nos adverte
, no entanto, para o risco de achar que
apenas
a educação é capaz
de transformar a sociedade. Esse é um otimismo ingênuo, que ele mesmo confessa ter
vivenciado (
SH
OR; FREIRE, 1986, p. 44, 157ss). A educação tem um grande poder, é
política, mas tem limites, tais como foram postos pela ditadura militar na América Latina.
Mesmo reconhecendo os limites da educação para a transformação do mundo e das
relações sociais, é necessário reconhecer também as suas possibilidades para
re
-
fundar
uma nova ordem política, fundada no diálogo. Uma educação que reinvente o
poder
(FREIRE, 1990
,
p. 114). Eis aí, talvez, a tarefa mais árdua de um projeto político-
pedagógico. Que poder seria esse? Como reinventá-la num contexto de conflito, marcado
pelo poder de uns poucos sobre uma grande maioria? Paulo Freire não responde de forma
precisa: “O que existe mesmo universalmente é a luta, é o conflito de classes, com
diferenças, porém de contexto a contexto, na forma como se . E a forma orienta a ação
político
-educativa que procura viabilizar o sonho”. E continua: “Estas formas de ação
política não podem, porém, ser decretadas nem impostas, nem transplantadas, nem
importadas. Têm de ser historicamente inventadas e reinventadas” (FREIRE, 1985, p. 72).
Ou seja, o sonho é uma construção a ser desenvolvida em diálogo, numa relação de
compromisso mútuo, tecendo malhas de responsabilidade por aqueles e aquelas que se
encontram em condições existência
s mais vulneráveis.
A sociabilidade, pautada pelo diálogo, exige reconhecer que o conflito original
encontra
-se na dimensão ontológica do sujeito, e dele não é possível se livrar. O Eu
existe afirmando
-
se e, nesse sentido, é um exercício de poder. Contu
do, há que se crer que
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o ser humano não se restringe a isso. uma esperança, defendida por Freire e Lévinas,
de
que o ser humano pode ir além de si mesmo, de ser mais do que a sua própria natureza
o obriga. E, nesse sentido, abre-se uma possibilidade de superação, não somente no
âmbito do projeto político e/ou pedagógico, enquanto construção teórica, mas no nível
prático. Ao se referir ao trabalho dos intelectuais, Freire os adverte de que não é a partir
da sua posição ou de seu sonho que poderá haver transformação. É preciso que eles
mergulhem nas águas culturais e históricas e deixem-se encharcar pelas aspirações,
dúvidas,
pelos
anseios
e medos dos que se encontram à margem, continuamente
ameaçados de ser excluídos que o mundo oferece e as são produzidas pelas sociedades
(FREIRE, 1985, p. 68).
O poder, nesse sentido, adquire um novo significado. O exemplo que trazemos,
apresentado por Freire, revela uma nova concepção de poder. O conhecimento, que
sempre esteve atrelado à dominação de uns sobre os outros, vai sendo transfigurado a
partir
do que se envolve com o universo existencial do outro. O intelectual, nesse caso,
não se relaciona com os das classes populares por interesse de saber, de teorizar apenas.
Sua preocupação primordial é
dialogar
, “conhecer
” o outro
em vista da realização dos
sonhos que
ele
carrega. O saber, ao invés de poder, transforma-
se
em serviço. Aí, talvez,
reside a grande reinvenção da política, possível de ser realizada por meio do diálogo.
Napoleão
, ao comparar a tragédia grega com a política moderna, buscava associar a força
do
destino
presente na tragédia à lógica astuciosa do poder, presente na política moderna.
Ambas
as forças agindo sobre as liberdades humanas, segundo uma ordem casual e
eficiente.
Na perspectiva de Lima Vaz (1983b, p. 258ss), as teorias políticas clássicas, de
Platão a Cícero, propõem-
se
como teorias da melhor constituição, no sentido de garantir a
prática da justiça, e não, o exercício do poder. A ação política, nesse caso, é guiada por
uma
teleologia marcada
pela
busca do Bem. Nos tempos modernos, contudo, essa
teleologia é subvertida em favor da vontade de poder e esta passa a constituir a ação
política, centrada na força soberana daquele que detém o poder. Um movimento traduzido
com maestria
em
o
Príncipe
d
e Maquiavel.
É contra essa concepção de política, vista como o exercício do poder atrelado aos
interesses de uns poucos, detentores das condições de se impor sobre os outros, que Paulo
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Freire irá se insurgir. Sua teoria pedagógica se construiu no sentido de negar qualquer
relação dessa ordem política com a
moira
(destino) grega, pré-estabelecida e fatalista da
tragédia grega. E, nesse sentido, será preciso reinventar a política, recriá-la, reconst
ruí
-
la
com outras bases, sejam teóricas, éticas
ou
educacionais. Daí a necessidade de uma nova
ordem política, que seja capaz de vislumbrar uma nova comunidade e formas de
sociabilidade em favor da justiça, entendida como promoção da vida e do bem-
es
tar das
singularidades e da coletividade. Para tanto, é preciso redescobrir o valor do diálogo e da
alteridade.
3.3
A JUSTIÇA COMO CONCRETIZAÇÃO DO DIÁLOGO
O outro desdobramento da categoria
diálogo,
na pedagogia freireana, é a
justiça
.
Nossa intenção é demonstrar que o diálogo freireano, quando levado a bom termo,
efetiv
a-se como
justiça.
Todavia, é preciso
atentar
que, ao estabelecermos uma correlação
entre justiça e diálogo, pelo menos aqui em nossa pesquisa, teremos que compreendê-
la,
também, como uma realidade
meta
-
arqueológica,
ou seja, nossa reflexão terá que ir alé
m
dos debates promovidos para construir uma noção de justiça a partir desse ou daquele
fundamento ou princípio.
Todavia
, mesmo com a intenção de ir além dos discursos que fundamentam a idéia
de justiça, é preciso, antes, ir ao encontro dos seus princípios
e
fundamentos
. A partir daí,
veremos quais as condições de possibilidade que o
diálogo
freireano traz para
sua
concretização.
O esforço e a dificuldade de definir
justiça
vêm de muito longe. No Livro I da
República
(331e, 332b
-
c)
, Platão
apresenta a seg
uinte definição: “uma ação é justa quando
a cada um o que merece”.
36
Aristóteles compreendia a justiça como situação de
equilíbrio moral e jurídico (Ética a Nicomaco, 1131a1s). A idéia de
merecimento
, aí,
refere
-se às situações em que a necessidade de uma
compensação
(justiça distributiva)
e de uma
pena
(justiça correitva). A imagem da justiça como alguém que segura uma
36
A definição platônica, no original, é a seguinte:
justo é
to proshekon hekasto apodidonai”
, traduzido
por Ulpiano na fórmula:
suun cuique tribuere
. Apesar da discussão
em torno dessa definição,
preferimos a tradução de Ernst Tugendhar.
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balança na mão e com os olhos vendados ilustra essa idéia de equilíbrio e da necessidade
de uma ação distributiva e corretiva imparcial. Tugendhar (1996, p. 397)
considera
que a
“decisão justa sobre a reparação ou a distribuição pressupõe sempre um pano de fundo
moral, isto é, regras morais existentes ou fatos moralmente relevantes em consideração
aos quais a decisão possa ser justa,
isto é, adequada”. Contudo, antes de julgar o mérito da
ação
, é preciso avaliar se aquele(a) que causou desequilíbrio é um sujeito livre, imputável
a qualquer gratificação ou pena. A partir da reflexão que construímos, até aqui, podemos
identificar dois fu
ndamentos: o da
adequação moral
e o da
liberdade
. A
adequação moral
diz respeito a algum código de condut
a
, lei ou norma, pretensamente objetiva. A
liberdade
refere
-
se à subjetividade humana.
As teorias da justiça, sejam do Direito ou da Sociologia, estão mais preocupadas
com a
justiça distributiva
. A questão que se coloca é a seguinte: Todos merecem a mesma
quantidade dos bens a serem distribuídos, ou não? Esse é o ponto sobre o qual muitos
autores modernos, como Rawls e Ackerman, estão debruçados. Alguns dirão que tal
di
stribuição deva ser igualitária; outros defenderão a tese de que deva ser por
merecimento,
pois
seria injusto distribuir igualmente aos que merecem o desigual.
Ao focar o problema da justiça da distribuição de bens materiais, ficamos a mei
o
passo da compreensão e solução do problema. A justiça distributiva não pode ignorar a
forma como são gerenciados e distribuídos o direito e o poder. O merecimento de
gratificações ou penas deverá estar intimamente relacionado às condições sociais de uso
dos direitos e do exercício do poder, pois este estará sempre em relação à possibilidade de
ação de uns e o limite da liberdade de outros. É preciso, pois, que à questão acerca da
justiça distributiva, seja acrescida também o problema acerca dos direitos e
dos poderes.
O problema de uma fundamentação da justiça apresenta-se bastante complexo. O
conceito de justiça mostra-
se em acordo com a racionalidade, os interesses e os problemas
com os quais os estudiosos resolvem trabalhar. O título do livro de Alasdair MacIntyre é
muito sugestivo: Justiça de quem? Qual racionalidade? Para ele, as sociedades
contemporâneas propõem respostas alternativas e, muitas vezes, incompatíveis, para as
mais variadas questões relativas à justiça.
Se se prestar atenção às razões apresentadas para se propor
em
respostas
diferentes e conflitantes a tais questões, fica claro que, subjacente a esta
grande diversidade de julgamentos sobre tipos particulares de assuntos, está
um conjunto de concepções conflitantes de justiça, concepções
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su
rpreendentemente em desacordo umas com as outras, de vários modos.
Algumas concepções de justiça consideram central o conceito de mérito,
enquanto outras não lhe atribuem relevância alguma. Algumas concepções
apelam para os direitos humanos inalienáveis; o
utras
, para alguma noção de
contrato social, e ainda outras para algum padrão de utilidade
(MACINTYRE, 1991, p. 11).
A arena de concepções acerca de justiça revela não apenas perspectivas jurídicas
ou hermenêuticas discordantes, como se fosse um exercício teórico, sem tanta relevância
no mundo prático. Os conflitos teóricos mostram o quanto a sociedade está dividida e em
conflito. Um conflito que se encontra também presente nas consciências dos indivíduos.
Através da educação, os seres humanos constroem racionalidades que permitem
compreender
, de forma coerente, o mundo em que est
ão
inseridos, de modo a pensar e
agir conforme a formação que tiveram. Diante da variedade de cosmovisões e
racionalidades, a noção de justiça, internalizada pelos sujeitos através dos mais variados
mecanismos de educação e formação de opinião, acaba sendo fragmentada e geradora de
conflitos internos, na própria consciência. A questão apontada por MacIntyre que acaba
fi
can
do é: Como devemos escolher entre visões opostas e incompatíveis de justiça que
disputam por nossa adesão moral, social e política? Em outras palavras, como nos
posicionar em favor da justiça no cotidiano de nossas ações (sejam individuais ou
sociais)?
Uma solução seria nos ater a uma determinada racionalidade ou teoria, mas
vimos que a teoria que tende para a unidade e se recusa a se abrir para outras lógicas
revela
-se dominadora. Também não se trata de construir foros institucionalizados nos
quais as discordâncias fundamentais (não apenas legais) fossem debatidas. Embora isso
seja necessário, devemos ter cuidado diante das retóricas do consenso que camufla os
conflitos.
Diante do impasse, os cidadãos são abandonados e obrigados a chegar às respostas
de
que precisam pelos próprios esforços. Nesse caso, é comum encontrarem dois
caminhos: a busca por argumentações acadêmicas, provenientes dos debates filosóficos e
jurídicos, ou a busca de respostas em comunidades mais ou menos organizadas em torno
de crenças comuns, tais como igrejas ou associações políticas. O primeiro caminho
frustra, de certa forma, porque os professores acabam por discordar entre si tão
radicalmente e de maneiras tão variadas sobre as questões de justiça que acabam se
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assemelhando a qualquer outra pessoa quando se trata de questões da prática da justiça. O
segundo caminho leva as pessoas a aderirem a pessoas, carismáticas ou não e, nesse caso,
sem as construções argumentativas necessárias, abrindo espaço para grandes doses de
arbitrariedade.
De qualquer forma, a opção por uma meta-arqueologia não se justifica pela
dificuldade de construirmos fundamentos sólidos e universalmente válidos. O debate em
torno da(s) racionalidade(s) da justiça é necessário que prossiga. Contudo, é preciso
transcender esse esforço de construir fundamentos. Acreditamos que
a pedagogia de Paulo
Freire pode nos ajudar no sentido de ir além das discussões acerca das racionalidades que
sustenta
m essa ou aquela concepção de justiça. O movimento dialógico de formação de
consciências e de relação social, presente na sua teoria educacional, permite uma
compreensão de justiça que se encontra anterior aos próprios fundamentos. O diálogo
implica abertura à racionalidade do outro, ao modo como o outro significa a sua vida,
mesmo quando sua significação não segue uma lógica linear.
O que está em questão não é se e
ss
a ou aquela concepção de justiça é mais válida,
mas
a acolhida e a responsabilidade pelo outrem, independente do seu merecimento ou
não. A existência do outro não se reduz às palavras que ele profere ou à lógica de que ele
se
utiliza. A linguagem mais radical é aquela em que o Eu se responsabiliza pelo outrem,
independente de qualquer lógica.
Responsabilidade e compromisso, portanto, na perspectiva freireana, não são
concebidos como um jogo de disputas ontológicas, mas como prática em favor da
existência do outro. Esforçar-se por uma educação dialógica é o mesmo que construir
relações de responsabilidade social e econômica. Trata
-
se de estabelecer formas concretas,
materiais, sociais e culturais
de promoção e de reconhecimento d
e uns para com os outros.
É justamente nesse ponto que Freire um salto e supera muitos dos discursos
metafísicos de que ele mesmo se serviu. O diálogo com a alteridade não se prende nas
teias do
discurso
racional, construído pelo Eu, individual ou colet
ivamente. O Outro não é
uma transcendência sem nome, um Infinito sem rosto, um Ser sem história ou um Deus
que jaz morto.
A alteridade com a qual o diálogo é estabelecido não se refere a um conceito ou a
uma teoria, presente na consciência, mas a alguém, pessoa de carne e osso, com história,
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com alegrias e dores, que se impõe à presença do Eu à espera de uma resposta, não apenas
no nível do discurso (isso é secundário), mas em toda a sua dimensão existencial. O
Outrem esaqui e agora, diz a mim que existe e que eu sou responsável por ele. Esta é a
palavra do outro: a sua presença. Se eu quero estabelecer
diálogo
, não restará a mim outra
alternativa senão acolhê-lo, comprometendo-me com ele. Do contrário, não haverá
diálogo, pois estaremos um diante do outro como seres neutros, sem a identidade do Eu e,
muito menos, do Outrem. Nossa existência cai no limbo dos conceitos, na esterilidade da
especulação sem compromisso, na teoria sem história, na palavra sem sujeito.
Freire, ao falar sobre o compromisso profissional, faz uma clara advertência:
A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores,
reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo
quase sempre resulta de um “compromisso” contra os homens, contra sua
hum
anização, por parte dos que se dizem neutros. Estão comprometidos”
consigo mesmos, com seus interesses ou com os interesses dos grupos aos
quais pertencem. E como este não é um compromisso verdadeiro, assumem a
neutralidade impossível.
O verdadeiro compromisso é a solidariedade [grifo nosso], e não, a
solidariedade com os que negam o compromisso solidário, mas com aqueles
que, na situação concreta, se encontram convertidos em “coisas” (FREIRE,
1983b, p. 19).
A efetivação do diálogo freireano se pela prática da justiça, quando nos
comprometemos reciprocamente com o bem dos outros. O diálogo, nessa perspectiva, não
pode ignorar o fato de que todo ser humano é um ser corpóreo, carente, chamado a
realizar
-se junto com os demais no mundo. O diálogo revela-
se
como promoção concreta
e prática que exige, também, a construção de estruturas sociais e políticas dinâmicas e
flexíveis, sempre em favor da justiça, da oferta de condições físicas e materiais dos
sujeitos entre si.
É evidente que tal processo dialógico não se faz na ausência do conflito. O
conflito, na história humana, revela a ambivalência do desejo de cuidar de si e do desejo
de cuidar do outro, explicita a tensão entre o próprio e o outro. A filosofia contemporânea
traz inúmeros pensadores que deram ênfase às relações de conflito, como formas
primordiais da relação humana. A título de exemplo, podemos citar Hegel, Marx e Sartre.
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Seja na relação senhor-escravo de Hegel, da classe dominante e da classe
explorada de Marx, do olhar do Eu que reduz o outro a objeto de Sartre, em todas essas
relações, o outro aparece como ameaça, como aquele que diz
não
ao poder do Eu, do
próprio.
O diálogo freireano não nega a possibilidade do conflito, porquanto, humana e
historicamente, isso seria impossível. Contudo, para além ou aquém do conflito, é o
cuidado com o outro que constitui e efetiva a justiça entre os sujeitos. A justiça, assim
entendida, não é apenas fruto de um contrato social ou resultado de uma construção
teórica. Mesmo reconhecendo o valor de tais princípios, a justiça dialógica instaura uma
responsabilidade dinâmica e em constante movimento de atualização, reconhecedora das
singularidades e carências que se manifestam no
rosto
daquele(a) que se impõe diante da
liberdade do sujeito.
A superação das desigualdades sociais e econômicas, nesse sentido, encontra-
se
além do que uma sociedade, em determinado momento histórico, considerou como
equânime e de
direito
. A responsabilidade social revela-se, assim,
assimétrica
. Não é em
função de um princípio universal un
ificador de direitos e deveres que a justiça dialógica se
efetiva, mas para algo que está para além (ou aquém), um meta
-
princípio singular que leva
a marca da diferença. O outrem, em situação de risco e de vulnerabilidade social, interpela
a superação do d
ireito
e a transcendência dos princípios em favor do seu existir. A justiça
se reveste de
cuidado
e de responsabilidade pela vida do
oprimido
, na linguagem
freireana. E aqui,
oprimido
,
não como uma categoria universal, mas como um
rosto
que se
revela
nu
, sem condições de, por si (naquele momento histórico), dar conta da sua
exi
stência. É um
oprimido
que
fala
(expressa) sua fragilidade à espera de uma resposta
solidária, à espera de
justiça
. O diálogo, na perspectiva freireana, é esse movimento de
dizer
s
em pretensão de
poder
e essa
resposta
efetiva de solidariedade.
3.4
O DIÁLOGO COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA CONSTRUÇÕES
INTERCULTURAIS
Dizer o que vem a ser
cultura
é uma tarefa árdua, mas necessária. Mesmo que
nosso objetivo seja o de conceber o
diál
ogo
como meta-arqueologia e, nesse tópico
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especificamente, como possibilidade para construções interculturais, somos obrigados a
esclarecer o que é essa realidade além do qual o diálogo propõe ir. Em outras palavras,
somos obrigados a construir uma
ontolog
ia da cultura para, em seguida, ver como é
possível vislumbrar um dizer acerca da cultura que não se feche em seus próprios
fundamentos.
Quando nos propomos a tal empreendimento, logo desponta um problema. Ao falar
de cultura, falamos de uma cultura determinada. Por mais universal que queiramos ser,
estamos sujeitos às exigências
a
que o discurso racional nos obriga. Nossa pesquisa é um
discurso crítico racional e, nesse sentido, se encontra instalada numa cultura
determinada. Nossa construção conceitual acerca do que
é
cultura
está circunscrita a
uma determinada cultura, no nosso caso, Ocidental, de tradição grega. O fato de a
racionalidade grega pretender ser um discurso universal não lhe tira a sua matriz original,
que é o de dizer sobre a realidade a partir do lógos epistêmico. Uma racionalidade que
acusamos de ser
autológica.
Apesar de a filosofia buscar fundamentos para a inteligibilidade do objeto
denominado
cultura
, em busca de uma unidade ontológica, tal empreendimento se
ameaçado mediante a pluralidade de expressões culturais. A partir do fim do século
XVIII, as ciências empíricas relacionadas à cultura (as chamadas ciências humanas e
sociais) coloc
aram
em xeque qualquer tentativa de a filosofia compreender a cultura numa
perspectiva uní
voca e universal, a exemplo de um modelo ideal, do tipo platônico.
Diante da pluralidade das culturas históricas, não quantitativa no espaço e no
tempo, mas qualitativamente
,
interior a cada paradigma cultural, o termo cultura mostra
-
se
tremendamente amplo para se referir à tamanha diversidade de suas expressões. E, mais
uma vez, a filosofia esbarra com o problema do
uno
e do
múltiplo
. Haverá alguma
categoria capaz de permitir pensar a unidade da cultura na multiplicidade das suas
formas? Mesmo que encontremos algumas, na raiz desse problema teremos que
nos
deparar com o
criador
da cultura ou das culturas. De modo que uma ontologia da cultura
terá que estar associada, de algum modo, à ontologia do ser humano, à antropologia
filosófica. que se perguntar, portanto: que ser humano é esse que constrói culturas?
Para
essa pergunta, mais uma vez, encontramos uma variedade de respostas, de acordo
com o tempo e o espaço em que foram formuladas.
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Diante de tal aporia, é mister encontrar um caminho que nos permita construir um
conceito de cultura, mesmo entendendo que tal conceito se refere a realidades plurais. Um
caminho razoável para iniciar nossa investigação é pesquisar a raiz etimológica da palavra
“cultura”. Vejamos:
A palavra
cultura
provém do verbo latin
o
col
ere
. Tem sua origem na raiz grega
(
col
) que significa originariamente
podar
. A partir dessa origem, encontramos as
palavras
col
ono
(aquele que
cul
tiva
a terra) e
cul
to
, no sentido de relação com algo
transcendental ou sagrado. É possível perceber, assim, que a palavra cultura, em sua
origem, indica dois movimentos humanos: do cultivo da terra, da ação do homem sobre o
mundo
,
e do cultivo do próprio ser humano em relação com algo que o transcende.
Essa primeira aproximação nos permite compreender a
cultura
como um
capital
cognitivo e técnico, envolvendo práticas, saberes e experiências acumuladas e também
como
capital simbólico, constituído de crenças, cosmovisões, valores e normas. Tanto um
capital quanto o outro referem-se ao ser humano situado no tempo e no espaço, inserido
em comunidades ou sociedades específicas. A preservação ou continuidade desse capital
acontece através de vários mecanismos de socialização: família, escola, religião, meios de
comunicação, organizações comunitárias e várias outras formas de instituições civis e
estatais.
Por esse motivo, a cultura é compreendida como um fenômeno possível de ser
estudado pelas várias ciências humanas e sociais. Cada uma delas apresentando uma
contribuição específica, conforme seus pressupostos teóricos e abordagens empíricas.
Apesar de não ser nosso interesse fazer uma relação de conceitos, elaborados pela
variedade de abordagens, apresentamos outro conceito que achamos pertinente para a
nossa pesquisa: é a da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (UNESCO,
1982)
. A Conferência afirma que “a cultura deve ser considerada como o conjunto dos
traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos, que caracterizam uma
sociedade ou um grupo social, e que ela inclua, além disso, as artes, os modos de vida, as
maneiras de viver juntos, os sistemas de valor, as tradições e as crenças”. Atrelado a ess
a
definição, Canclini (UNESCO, 2002) define
desenvolvimento
como “um processo
complexo, holístico e multidimensional, que vai além do crescimento econômico e integra
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todas as energias da comunidade
[...]
deve estar fundado no desejo de cada sociedade de
expressar sua profunda identidade”.
Poderíamos dizer, então, que as
culturas
(no plural) buscam, a partir das próprias
tradições e riquezas acumuladas, garantir e perpetuar sua identidade. Encontramos, assim,
uma diversidade cultural extraordinária, variando de lugar para lugar, de um tempo para
outro. As riquezas produzidas por essa variedade de culturas acabam, muitas vezes,
tornando
-
se
patrimônios públicos, reconhecidos e transformados em várias culturas. A
humanidade possui hoje um conjunto de patrimônios históricos e culturais que não
pertencem a essa ou aquela sociedade específica. A filosofia, a literatura, a arte, a ciência
e a
tecnologia tornaram-se parte integrante da identidade de numerosas culturas
espalhadas pelo mundo.
Assim, é possível falar não apenas de
culturas
(no plural) determinadas, mas
também de
multiculturalidade
, enquanto confluência de várias culturas, muitas vez
es
conflitantes em função dos interesses econômicos, políticos e sociais subjacentes.
A multiculturalidade, em função dos avanços tecnológicos e dos processos de
globalização das últimas décadas, tornou-se um fenômeno de dimensões ainda mais
complexas. É cada vez mais difícil estabelecer os limites e a identidade de uma
determinada cultura. Montiel (2003, p. 19) chama a atenção para o fato de a circunscrição
geográfica e temporal das culturas est
ar
cada vez mais rarefeita, em virtude da cultura
virtual, isto é, pelas manifestações culturais e pelos modos de vida oriundos dos meios de
comunicação de massa e do ciberespaço.
As novas tecnologias da informação conectaram, como nunca, comunidades
e organizações além das fronteiras nacionais e possibilitaram que milhões de
pessoas em todo o mundo pudessem interagir entre si. Esses processos
contradizem de algum modo o sentido de pertença a uma determinada
sociedade, localizada e vinculada por um idioma, uma história e um destino
comum, e provocam novas combinações de espaço/tempo, fazendo do
mundo uma realidade e uma experiência mais interconectada (MONTIEL,
2003, p. 19).
Essa desterritorialização e
esse
descentramento provocam um processo de
reconfiguração das identidades culturais, mostrando-se carregadas de sincretismos e sem
uma face definida. O resultado dessas hibridações é a construção de perfis culturais sem
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referenciais tradicionais, desatrelados dos costumes,
da
crenças,
das
visões de mundo e
das
experiências de uma determinada comunidade ou sociedade. Nesse sentido, as
identidades tendem a diluir-se, fazendo surgir novas formas de identificaç
ão
, com
elementos de diversas culturas. O risco desse processo de desenraizameto local e temporal
é provocar uma cisão entre o indivíduo e o contexto histórico imediato, de interação face-
a-face, colocando em risco as interações sociais presentes em seu cotidiano. O indivíduo
passa a viver na tensão entre uma cultura virtual, tremendamente plural e marcada por
descontinuidades com as exigências familiares, escolares e de tantas outras instituições
pertencente
s ao seu cotidiano, interpelando-o a pensar e a agir conforme os modelos
tradicionalmente estabelecidos.
Construir identidades pessoais, sociais e culturais, nesse contexto, é um desafio. É
sabido que a identidade de um grupo social é dinâmica e construída através de um
contínuo processo de interação. É um processo criativo, complexo e interativo. O encontro
com a cultura alheia ajuda a reconstruir e reformular a própria identidade, em vista de
responder aos desafio
s vividos em cada tempo. Todavia, quando essa interação é realizada
por meio de rupturas com a tradição, com os costumes, crenças e todo
o
conteúdo
simbólico do grupo social
de
que o indivíduo faz parte, ocorre uma fragilização de
identidades individuais e coletivas, pondo em risco a própria interação. O resultado desse
processo acaba sendo uma homogeneização cultural, uma uniformização que em nada
contribui para o conjunto das sociedades e das culturas.
Nesse sentido, será necessário buscar uma outra categoria, que não apenas ponha
em relação as culturas específicas, mas que permita reconhecer e promover as
diversidades e identidades culturais próprias de cada grupo social. Preferimos usar, então,
o termo
interculturalidade
, entendida como diálogo de culturas que se reconhecem como
“iguais”.
Para
Fleuri (2003)
,
a
intercultura
refere
-se a um complexo campo de debate entre as variadas
concepções e propostas que enfrentam a questão da relação entre processos
identitários socioculturais diferentes, focalizando especificamente a
possibilidade de respeitar as diferenças e de
integrá
-las em uma unidade
que não as anule. A
intercultura
vem se configurando como uma nova
perspectiva epistemológica, ao mesmo tempo que um objeto de estudo
interdisciplinar e transversal, no sentido de tematizar e teorizar a
complexidade (para além da pluralidade ou da diversidade) e a ambivalência
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ou o hibridismo (para além da reciprocidade ou da evolução linear) dos
processos de elaboração de significados nas relações intergrupais e
int
ersubjetivas, constitutivos de campos identitários em termos de etnias, de
gerações, de gênero, de ação social.
Ness
a perspectiva, podemos dizer que o diálogo, na perspectiva freireana,
enquanto processo de aproximação do próprio com o diferente, na construção de relações
solidárias, passa a constituir-se como condição de possibilidade para os esforços de
interculturalidade. A educação
,
para Freire
,
é um processo de afirmação da subjetividade e
da identidade na relação dialógica com o outrem. O diálogo com as diferenças, no
cotidiano pedagógico, abre possibilidades para a solidariedade
,
não apenas dos sujeitos
entre si, mas das culturas que se mostram carregadas de riquezas e também de
fragilidades.
Entra em jogo, nesse processo, uma nova epistemologia ou uma nova forma de se
relacionar com o conhecimento. A solidariedade entre as identidades exige um
conhecimento que reconheça a diversidade e
a
pluralidade. Trata-se de uma resistência às
propostas epistemológicas que tendem para a unidade e a totalidade. O conhecimento,
bem como a posição dos sujeitos em relação à dele, será plural. As certezas e os
fundamentos universais, nessa perspectiva, estarão cada vez mais sujeitos a críticas e a
contestações.
Paulo Freire descortina em Ação cultural para a liberdade um problema central da
ética e da epistemologia contemporânea:
[...] É que o processo dos seres humanos no mundo envolve não apenas a
associação de imagens sensoriais, como entre os animais, mas, sobretudo,
pensamento
-linguagem; envolve desejo, trabalho-ação transformadora sobre
o mundo, de que resulta o conhecimento do mundo transformado. Este
processo de orientação dos seres humanos no mundo não pode ser
compreendido, de um lado, de um ponto de vista puramente subjetivista; de
outro, de um ângulo objetivista mecanicista. Na verdade, esta orientação no
mundo pode ser realmente compreendida na unidade dialética entre
subjetividade e objetividade. Assim entendida, a orientação no mundo põe a
questão das finalidades da ação ao nível da percepção crítica da realidade
(FREIRE, 1981, p. 42).
A dialética entre o objetivo e o subjetivo passa pelo crivo de uma análise
teleológica, das finalidades da ação, portanto no âmbito da ética. A idéia clássica de ética
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(vista como um conjunto de regras e preceitos orientadores da conduta moral) esteve
marcada, segundo Almeida (2000, p. 19), por dois equívocos: o primeiro, devido à busca
incessante de universalidade dos valores humanos, em vista de uma homogeneização
cultural; o segundo equívoco se refere à defesa radical dos particularismos e de uma
hipervalorização da diferença.
O diálogo, enquanto acolhida do outro, não se sustenta em nenhum desses
movimentos. A universalização, já vimos pela crítica levinasiana, é uma negação da
alteridade. Por outro lado, a afirmação da diferença sem relação com o que lhe é próprio
acaba negando ao ser humano a própria identidade.
É preciso, portanto, uma dialeticidade que assuma o que é próprio, mas aberto e
responsável pelas diferenças. A dialética entre a objetividade e
a
subjetivida
de proposta
por Freire se insere nesse movimento. Seria uma violência se, em um processo educativo
com trabalhadores rurais, por exemplo, fosse negado a eles o direito de conhecer as
riquezas produzidas pela cultura urbana. Contudo, não se trata de uma valorização da
diferença sem uma intencionalidade. “Daí que a ação humana, ingênua ou crítica, envolva
finalidades, sem o que não seria práxis, ainda que fosse orientação no mundo” (FREIRE,
1981, p. 43). A ação humana e, mais ainda, a ação pedagógica
são
in
tenciona
is
, tendem
para determinados valores, concepç
ões
de mundo e de ser humano. No caso da educação
rural, por exemplo, que se buscar uma valorização da própria cultura, mas procurando
também identificar, naquilo que lhe é próprio, os elementos que dificultam ou entravam a
promoção da vida humana, no movimento de constante auto
-
superação.
Para Freire,
a multiculturalidade não se constitui na justaposição de culturas, muito
menos no poder exacerbado de uma sobre as outras, mas na liberdade
conquistad
a,
no direito
assegurado
de mover-se cada cultura no respeito
uma da outra, correndo o risco livremente de ser diferente, sem medo de ser
diferente, ser cada uma “para si”, somente como se faz possível crescerem
juntas
, e o, na experiência da tensão permanente, provocada pelo todo-
poderosismo de uma sobre as demais, proibidas de ser (FREIRE, 1992, p.
156).
O encontro entre a cultura que lhe é própria e o que lhe é alheio é uma nova
construção cultural. A interculturalidade é um diálogo entre culturas, não no sentido de
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ca
da uma permanecer firme e segura em sua cultura, voltando-se para a outra por uma
mera curiosidade, classificando-a como exótica. Brennand (2003, p. 85), ao analisar o
conceito de cultura em Freire, chama a atenção de que, “pela herança cultural e pela
experiência adquirida através da linguagem, os indivíduos criam, recriam, integram-se ao
seu contexto, respondem aos desafios, transcendem e dominam sua história e sua cultura”.
A cultura contemporânea vive o desafio de promover a relação entre as
singularidades, aberta e acolhedora às diferenças, sem que, com isso, as identidades
próprias se esvaziem. Tal dialética não visa a uma síntese que seja universal. O todo aqui
não é a soma das partes, mas a sua relação. E, no singular, é possível encontrar sinais da
presença da alteridade. “Daí, mais uma vez, a necessidade da invenção da unidade na
diversidade. Por isso é que o fato mesmo da busca da unidade na diferença, a luta por ela,
como processo, significa o começo da criação da multiculturalidade” (FREIRE, 1992,
p. 157).
Um diálogo cultural, nessa perspectiva, não está livre de riscos e conflitos. É
o
próprio Freire que nos alerta: “é fundamental que eu saiba não haver existência humana
sem risco, de maior ou de menor perigo. Enquanto ob
jetividade
, o risco implica a
subjetividade de quem o corre” (FREIRE, 2000, p. 30
-
31).
A construção de uma cultura dialógica, disposta a abrir mão da segurança de um
saber consolidado, de crenças e costumes “apaziguadores” ou de uma epistemologia
engloban
te
, é um processo arriscado. Seguir em direção ao novo é estar disposto a trilhar
por caminhos incertos. O outro esconde verdades e mentiras, certezas e dúvidas. Abrir-
se
a ao diferente é lançar
-
se num jogo de sedução,
em que
sujeito se mostra e se oculta,
fala e
silencia. A postura de uma cultura pôr-se em diálogo com a outra significa abrir-
se
a
mudanças, a sair de si mesma e transformar-se com o risco de desestabilizar-se. Dirá
Freire (1999, 39): “ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de
discriminação”. É essa abertura que põe em movimento sujeitos dispostos a construir uma
cultura dialógica.
A originalidade freireana é, justamente, situar essa intencionalidade, não no nível
teórico, mas no prático, no cotidiano dos seres humanos que buscam ser mais,
mediatizados pelo mundo. A cultura construída através do diálogo aponta para a
possibilidade de uma nova cultura, marcada pela acolhida e pelo compromisso com a
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alteridade sem, contudo, negar a própria identidade. Por isso que
o di
álogo, na perspectiva
freireana, não é a construção de uma cultura qualquer. A educação dialógica não pode ser
vista, por exemplo, como geradora de uma cultura de violência e discriminação. O
diálogo, nesse sentido, é uma abertura para o que está além ou aquém da própria
identidade ou daquilo que fundamenta uma cultura, por isso, chamamos de
meta
-
arqueologia.
A identidade ou o que é fundamental em uma cultura não pode ser abolido, visto
que
,
se isso acontecesse
,
haveria a eliminação do próprio. E, nesse ca
so, não seria possível
uma
relação de alteridade, pois essa implica relação do que é
próprio
com o que é
outro
.
Na relação de alteridade, o Outro não aniquila o Eu.
O risco seria buscar uma dialética em que o encontro entre as diferenças resultasse
numa síntese homogeneizadora, que suprimisse as propriedades de uma ou de outra. O
diálogo intercultural torna-se insolúvel quando nos propomos
a
resolvê
-lo no âmbito do
discurso. A linguagem racionalista que herdamos, desde os gregos, impede-
nos
de chegar
a uma síntese ou a um conceito que contemple a pluralidade e a diversidade. A lógica nos
exige coerência, premissas bem postas, capazes de nos levar a conclusões unificantes ou
totalizantes. Daí a necessidade de uma outra epistemologia para falar da alteridade, ou
melhor, de uma outra linguagem, capaz de pôr em relação seres diferentes que interagem e
se acolhem, sem a exigência de unificação. É preciso uma linguagem que navegue para
além ou aquém dos fundamentos, sem que se preten
da
compree
-
la
, de prendê-la n
o
discurso racional. Trata-se, como afirmou Lévinas, de um evento diacrônico:
“uma
diacronia refratária a toda sincronização, uma diacronia transcendente” (LÉVINAS, 1999,
p. 53), uma espécie de modalidade de transcendência.
Acreditamos que tal projeto é possível no âmbito prático, na situação concreta
em que os sujeitos se interagem. Contudo, embora haja essa possibilidade, o início de tal
prática não é a garantia da sua efetivação ao longo do tempo. A relação dialógica é
dinâmica, exige perseverança e compromisso constante. Não é como o discurso objetivo
que, uma vez
dito
e, mais ainda
escrito,
pode se perpetuar ao longo da história, mesmo
que o seu(sua) autor(a) já não concorde com o que antes afirmara.
Essa exigência prática do diálogo é desenvolvida c
om maestria por Paulo Freire em
Pedagogia do Oprimido, tanto que a considerou como essência da educação como prática
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da liberdade. A
palavra
, no sentido freireano, não dissocia a reflexão sem a ação, e sua
intencionalidade é a realização do ser humano e a
transformação do mundo.
Assim
, Freire tem a coragem de apelar para realidades pouco discutidas e até
mesmo pouco exploradas cientificamente, nos ambientes acadêmicos.
Ele
fala de
amor
, de
humildade
, de
confiança
, de
esperança,
pressupostos para uma educaçã
o que visa ajudar o
ser humano a
ser mais
, a transcender a si próprio, na relação com o outro, transformando a
sua história.
A pedagogia freireana continua atual porque o ser humano
está
inserido numa
cultura que o valoriza, mas que, ao mesmo tempo, sente-se inquieto,
deseja
o Outro,
arriscar
-se no encontro com o outrem, muitas vezes oriundo de uma outra cultura, com
outros referenciais e fundamentos.
As categorias levinasianas e freireanas desenvolvidas nos últimos capítulos
permitem
-nos vislumbrar uma terceira margem na educação. Os processos de ensino-
aprendizagem poderão sem compreendidos não apenas pela aquisição de saberes que
promovem a formação do sujeito e da sociedade, mas também como processo de abertura
do sujeito para uma experiência que o transcende, que
lje
permite
ser
além de si mesmo.
Aqui confluem dois movimentos que se tencionam entre si: o de
empoderamento
do
próprio e a da
responsabilidade
pelo outrem. É preciso, pois, uma teoria educacional que
apresente outras aprendizagens, em vista do
cuidado
do outro. Esse é o assunto do
próximo capítulo.
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CAPÍTULO 4
EDUCAÇÃO:
AUTREMENT
E
DIALOGANTE
A educação, enquanto processo de formação do ser humano, como defend
ia
Kant,
não pode estar dissociada da antropologia. A educação acontece em vista de um fim: a
humanização contínua do humano. O ser humano não é um ser acabado. Nesse mundo, ele
está em movimento de um constante vir
-a-
ser.
Entretanto, a antropologia que está em jogo, na reflexão que estamos
desenvolvendo
, não tem a pretensão,
apenas,
de afirmar uma realidade essencial, própria
do ser humano, para onde devesse orientar todos os esforços da educação. A afirmação da
essencialidade, mesmo reconhecendo sua dinamicidade, não é possível nem tem porque
dela se livrar. O ser humano é um ser em si mesmo, e isso é um dado essencial, uma
responsabilidade primordial, que somos obrigados a carregar. Trata-se do peso de nossa
existência, da própria identidade.
Qualquer antropologia, portanto, terá que ser uma reflexão ontológica do ser
humano. Contudo, o que defendemos, aqui, é a possibilidade de forjar uma antropologia
para além do limite identitário. E, nesse sentido, julgamos que a filosofia de Emmanuel
Lévinas e a pedagogia de Paulo Freire dão suportes para tal empreendimento.
A construção de
ssa
antropologia passa a constituir-se, também, como projeto
educacional. A concepção de ser humano proveniente desse processo teórico-
prático
indicará um movimento possível de ser trilhado por todo homem e toda mulher que se
inquietam com a própria
mesmice,
desejosos de ser mais. Por essa razão, tal projeto
antropológico se reveste, também, de um projeto pedagógico. A ética da alteridade
levinasiana e a pedagogia dialógica freireana constituem uma meta-arqueologia teórico-
prática para a construção de
sse
projeto
.
A
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-
ARQUEOLOGIA DA EDUCAÇÃO A PARTIR DE
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Por adquirir feições pedagógicas, essa antropologia terá a função de acompanhar o
desenvolvimento humano, discernindo os caminhos, nos contextos concretos onde vive,
atenta aos movimentos
existenciais
, de ocupação de si (
eidéticos
) e de
cuidado
com
o
out
rem
(
éticos
). Nesse sentido é que podemos falar da tensão antropo-pedagógica do
cuidado de si e do outrem.
É preciso lembrar, contudo, que
o
topos
da ética levinasiana é outro. A ética, aqui,
não significa “ciência do ethos”, fundamentada na ontologia. A a
titude primeira não é a da
pergunta
o que se deve fazer?” Uma resposta a ser encontrada na idéia do Bem
ontológico. O ponto de partida é a
escuta do Outro que se mostra no rosto
,
e a
resposta ao
outrem é responsabilidade e justiça. A justificação da
ação
ética não está dada por conta
dos princípios ontológicos, mas pelo emergir do rosto diante de mim, na temporalidade
em
que nos encontramos.
Paulo Freire, ao chamar a atenção para a importância da formação para a
autonomia
, reconhece o caráter fundamental e ontológico do ser humano, enquanto
ser
para si. Contudo, reconhece também que, no interior da subjetividade humana, rompe um
desejo de ir além de si mesmo, um movimento de ser mais, um processo desenvolvido
através de um agir e pensar dialógico.
Ele
intui
u,
com profundidade
,
que as relações ético
-
pedagógicas se fazem no encontro com o outrem. A partir desse encontro
é
que a ética se
ergue e é possível construir um processo educativo emancipatório.
Nes
te capítulo, procuramos construir, a partir do que dissemos acerca dos dois
A
utores,
37
uma
meta
-arqueologia da educação que, sem negar os fundamentos
necessários para a formação do sujeito, é capaz de ir mais além
.
Mas
esse ir além não
se
refere a um acontecimento místico, artístico ou de consolação consigo mesmo. Sem negar
o valor de tais experiências, a educação que se descortina com Freire e Lévinas concebe
esse
ir mais além como movimento intencional de cuidado
com
o outrem e desse com os
demais, nas condições históricas e materiais
em
que se encontram.
Ne
sse sentido, trabalharemos com a expressão outramente que ser educacional,
para indicar essa educação dialógica, marcada pela alteridade, de responsabilidade e
cuidado.
37
De agora em diante, quando utilizarmos a palavra “
Autores
,
” estaremos nos referindo a Emmanuel Lévinas e
a
Paulo Freire.
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147
4.1
UM
OUTRAMENTE QUE SER
EDUCACIONAL
Outramente
é a tradução do termo
autrement
, utilizado por Lévinas na clássica
obra
Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Trata-se de um advérbio que não existe
na língua portuguesa. Contudo, tivemos a liberdade de fazer uso desse neologismo, assim
como fora utilizado na tradução do comentário de Paul Ricouer,
Autrement
Lecture
d’Autrement qu’être ou au-delà de l’essence d’Emmanuel Lévinas. No Brasil, o texto de
Ricouer foi traduzido por Pergentino S. Pivatto, utilizando o termo
outramente.
O
autrement qu’être (ou
outramente
que ser), na filosofia levinasiana, significa
uma resistência radical aos princípios e fundamentos presos
às
amarras ontológicas da
identidade. A crítica que fizemos à educação (que se desenvolveu ao longo de tantos
séculos, desde o início de nossa civilização nas ilhas gregas) foi pelo fato de nos ter
conformado com uma epistemologia que, aqui, denominamos de
autológica.
Mesmo
reconhecendo o desenvolvimento de outros processos pedagógicos, o que mais
predominou na história da educação fo
ram
a busca, o fortalecimento e o primado da
identidade
.
O
outramente que ser refere-se a um outro movimento necessário à educação: o da
alteridade.
A história da Filosofia, infelizmente, não oferece um leque tão amplo de
alternativas teóricas que permitam a construção de uma teoria da educação ness
a
perspectiva. Os pensadores que ousaram criticar a tradição, construindo uma outra
logicidade, e ainda tendo reconhecimento nos círculos filosóficos, datam da segunda
metade do século XX. Citamos, por exemplo
,
Nietzsche
, Foucault
,
Deleuze, Derrida
e
,
em
certo sentido
,
Haber
mas.
A Filosofia da Educação que propomos pretende desenvolver teorias que estejam
para além do limite identitário. Para isso, terá que ir em busca de outras fontes, diferentes
daquelas tradicionalmente consultadas. A teoria educacional que estamos construindo, a
partir da hermenêutica que fizemos dos textos de Lévinas e
de
Freire
, permitiu-
nos
uma
compreensão da educação enquanto processo
dialogante
, de superação da autologicidade.
Ao dizer acerca da construção de uma teoria, logo se pode perguntar sobre os seus
fundamentos.
Tal questionamento é legítimo e necessário, contudo insuficiente, e isso,
por dois motivos: primeiro porque o filosofar contemporâneo é marcado por
grandes
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suspeitas aos fundamentos, e segundo (a nosso ver, m
ais
importante) porque a ontologia é
geradora de discursos autológicos, incapaz
ez
de compreender processos diferenciados de
ver, sentir e pensar a realidade.
Nossa proposta é, justamente, transpor a idéia dos fundamentos. A ética
levinasiana nos adverte sobre a violência de não
nos
abrir
mos
às diferenças. A idéia do
que é
fundamental
se conforma com a idéia do que é
idêntico
. Falar de fundamento é
,
portanto
,
falar de identidade.
Assim
, para construir uma teoria que justifique uma prática dialógica na educa
ção
,
é preciso ir além dos fundamentos, da dimensão ontológica, da essência, do ser. É preciso
se referir a uma
meta
-
arqueologia
. O prefixo
meta
, relativo ao substantivo
arqueologia
,
significa um movimento de ir além, sem, contudo, negar o princípio. Enquanto a
arqueologia
se refere aos princípios da educação para a identidade e para a autonomia, a
meta
-
arqueologia
aponta para um movimento para além da identidade.
A educação, assim, terá que se desenvolver na tensão de dois movimentos: o de
afirmação do ser próprio, da identidade e o da acolhida do outro, numa relação de
alteridade. Terá que ser
lógica
e
dialógica.
Enquanto o movimento
identitário
, a exemplo
do
Dasein
heideggeriano, busca “com-preender” (prender a si) o mundo que o cerca,
através da lógica q
ue
, continuamente, volta-se sobre si; o movimento de
alteridade
faz da
subjetividade uma oferta de si para o outro, no mundo.
O Relatório Jacques Delors
, que citamos no início de
sta
pesquisa, retrata
bem
essa
antinomia
nos processos educativos. Delors (1996, p. 14-15), no prefácio do Documento,
elenca uma série de tensões que, em sua opinião, constituem o cerne da problemática do
séc. XXI. A educação não poderá se eximir de tratar da tensão entre o global e o local, o
universal e o singular, a tradição e a modernidade, a solução
em
curto prazo e
em
longo
prazo, a competição e o cuidado, o desenvolvimento dos conhecimentos e as capacidades
de assimilação por parte do ser humano e, finalmente, entre o espiritual e o material.
O enfrentamento dessas tensões pela educação não significa o desenvolvimento de
processos sintéticos, pelo contrário, a educação terá que desenvolver processos de
formação do ser humano, no sentido de não ignorar tais antinomias, propiciando aos
homens e às mulheres experiências e teorias que permitam vivenciá-las de forma a
contribuir para o bem individual e coletivo.
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Os
quatro pilares da educação, apresentados no Relatório e tão amplamente
difundido
s nos contextos da educação formal, sinalizam uma preocupação com a
construção de saberes ou processos de ensino-aprendizagem que não estejam voltados
apenas para o emponderamento do próprio.
Os esforços com o aprender a conhecer, aprender a fazer e aprender a ser não
poder
ão
estar dissociados do empenho em aprender a viver juntos que, na opinião da
Comissão, é a aprendizagem mais importante para o século que há pouco teve início.
A filosofia de E. Lévinas bem como a pedagogia de Paulo Freire permitem a
construção de uma teoria educacional que não apenas contemple, mas enfatize a
necessidade desse duplo movimento, traduzidos aqui por movimentos em favor da
identidade e
/ou
da
alteridade.
Trata
-
se de um
a espécie de antropologia, em que, quase que
ao mesmo tempo, afirma-
se
a importância de
ser
(de se afirmar) e de se abrir à
possibilidade de
ser ma
is
, na responsabilidade social.
Essa tensão antropo-pedagógica se evidencia em toda
a
obra freireana. A educação
terá que formar para a autonomia do sujeito, mas este é interpelado a ser mais e, portanto,
caberá à educação não negar essa vocação, pelo contrário, terá que considerá-
la
efetivamente nas práticas educativas.
Uma tentativa de distinguir esses dois movimentos presentes no ser humano,
apresentando
-os separadamente, resultaria, mais uma vez, numa antropologia dualista. O
movimento ao
idem
e ao
alte
r
são possibilidades humanas. O ser humano é ambivalente
,
e
qualquer tentativa de defini-lo ou caracterizá-lo correrá o risco de cair em reducionismos.
Contudo, mesmo consciente desse risco, faz-se necessário, para efeitos didáticos,
esclarecer como os movimentos de fortalecimento da
identidade
e da
alteridade
se
apresentam na educação.
4.1.1
O movimento em favor do
idêntico
na educação
No capítulo primeiro, ao tratar da racionalidade autológica, afirmamos que a
educação caminha de braços dados com a epistemologia. Fizemos uma análise, mesmo
que breve, de três exemplos de filosofias que se desenvolveram com vieses totalizantes e
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150
unificantes. Acreditamos que o movimento em favor do idêntico na filosofia tenha sido
explorado de forma suficiente para a compreensão de nossa tese. Seria interessante,
contudo, uma análise acerca de práticas pedagógicas que tanto formam para o
empoderamento do sujeito como as formam para relações de alteridade.
Todavia, por questões metodológicas, não optamos por fazer, nesse momento,
nenhuma pesquisa de campo. E, mesmo com a impossibilidade de uma pesquisa empírica,
achamos que seria pertinente um olhar mais próximo das práticas educacionais que
pudessem mostrar uma face mais concreta do que estamos dizendo acerca da antino
mia
entre o próprio e o outro.
Um meio caminho que encontramos foi o de analisar o texto da
Comissão
internacional sobre educação para o século XXI, a que já fizemos referência, sob a
presidência de Jacques Delors. O texto em questão é especificamente o ca
pítulo que leva o
título
Os Quatro pilares da educação
.
Segundo o Relatório, os quatro pilares são: aprender a conhecer
,
aprender a fazer,
aprender a viver juntos e, por último, numa tentativa de integrar os três anteriores,
aprender a ser
.
Temos consciência de que a educação abrange os processos formativos que se
desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de
ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais. Contudo, nossa preocupação e também do Relatório se pauta
,
mais especificamente, na educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por
meio do ensino, em instituições próprias.
O Relatório avalia que o ensino formal
se
orienta quase que exclusivamen
te
,
para o
aprender a conhecer e, em menor escala, para
o
aprender a fazer. O conhecimento é o
meio mais comum que os humanos encontram para ter domínio sobre a própria vida,
sobre o mundo e a vida em sociedade. Livres das determinações mitológicas e relig
iosas,
o homem e a mulher modernos buscam dotar de sentido a própria vida com base não mais
em realidades externas, mas a partir da própria consciência. Nesse sentido, conhecer é
preciso
, para ser no mundo, humanizando
-
se e transformando
a natureza.
O
apre
nder a fazer se insere nesse mesmo movimento de empoderamento do Eu.
Viver é também uma relação com o mundo e, mesmo que essa relação seja de
fruição
,
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como afirmara Lévinas, tal movimento empurra o ser humano para
o
nível prático da sua
existência. Não basta que o sujeito exista enquanto consciência, é preciso que cuide, pelo
menos, do próprio corpo. Sobreviver significa, assim, ter domínio sobre saberes práticos
que permitem a perman
ên
cia do indivíduo no mundo.
Esse
saber fazer, associado ao saber conhecer, permitiu aos homens e
às
mulheres
do nosso tempo um domínio sobre a natureza e com possibilidades tecnológicas
imensuráveis, possibilitando, em muitos casos, uma elevação da qualidade de vida de
várias populações. O século XXI desfruta de uma rede de conhecimentos extraordinários,
em favor da humanidade. Todavia, esses mesmos conhecimentos m se
mostrado
ineficaz
es para resolver problemas básicos da existência humana. Segundo o último
Relatório do Programa das Nações Unidas (PNUD, 2006), quase cinco mil
crianças
morrem todos os dias, no mundo,
por causa da diarr
éia;
21% da população mundial vivem
com 1
dólar
por dia, e 40%, com 2
dólares
; 115 milhões de crianças não vão à escola; 1,
em cada
5
pessoas no mundo em desenvolvimento
,
não tem água tratada.
A ciência mostrou outra face, nas últimas décadas, desde a explosão da bomba
atômica
, em Hiroshima e Nagasaki, até às previsões apocalípticas dos ambientalistas. As
pesquisas científicas e o avanço tecnológico foram, muitas vezes, desenvolvidos de forma
predat
ória, colocando em risco a vida da humanidade de hoje e, mais ainda, das gerações
futuras.
Um processo de ensino-aprendizagem que se ocupa com o saber conhecer é
necessário, pois é condição de possibilidade para superar os problemas que assolam o
nosso tempo. Contudo, tal processo não poderá ignorar o poder de destruição que esse
mesmo saber comporta.
4.1.2
O movimento em favor da
alteridade
na educação
:
um recorte
As teorias,
os
projetos e as ações pedagógicas não se constituem exclusivamente
em favor do robustecimento do sujeito ou de racionalidades unificantes. Encontramos,
muitas vezes, no interior de sistemas totalizantes, elementos que contradizem o próprio
sistema. São movimentos frutos da subjetividade que resiste à mesmice. O texto acerca
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dos
Qua
tro Pilares não foge à exceção. Um dos pilares, “aprender a viver junto, aprender
a viver com os outros”, aponta
para
essa direção.
Ao dar ênfase a essa aprendizagem, a Comissão chamou a atenção para a
antecedência dada à
relação
intersubjetiva
. O que está em questão é a precedência
exercida pela relação interpessoal. Não se trata de ignorar as contribuições de autores
como J. Piaget, Vygotsky e Wallon, que concebem a construção dos conhecimentos em
situações de interação social. Mesmo com enfoques diferenciados, esses autores
concentraram
-se no processo de construção do conhecimento, a que é mediatizada pela
relação com o outro. A educação em favor da alteridade desenvolve um movimento
inverso: trata-se de construção de relações interpessoais, mediatizadas pela produção de
conhecimentos.
Alguém poderia questionar tal análise, afirmando que
esse
processo acontece de
forma dialética, que não é possível separar os dois movimentos. Concordamos com tal
questionamento, contudo resta perguntar pela intencionalidade do processo. Mesmo que
es
sa intencionalidade permaneça subjacente, implícita ao longo do processo, ela se
evidencia por ocasião da avaliação do processo de ensino-aprendizagem. Nesse momento,
o objetivo aparece com mais transparência. O que é cobrado na avaliação de um processo
que tem o fortalecimento da
identidade
como fim é a demonstração de aquisição de
conhecimentos, nas habilidades de interação com ele. Nesse processo, não são avaliadas
as atitudes que revelam a ac
olhida ou resistência ao outrem.
Elas
são ignoradas e serventia
alguma têm para a promoção ou retenção do educando, numa série ou estágio da vida
escolar.
A aprendizagem com o cuidado e com a relação interpessoal é uma tônica na
Educação Infantil. Nesse primeiro estágio da vida escolar, o que é valorizado é o
cuidado
por parte do(a) educador(a) com a criança e desta em relação a si e às demais. O sucesso
de uma educação infantil se mostra nas habilidades que as crianças revelam no cuidado
consigo mesmo e com o outro.
A aprendizagem de abe
rtura à alteridade desencadeia relações de cuidado,
um fazer
outramente que ser educacional. Trata-se de um processo de formação para a alteridade,
sem negar o cuidado com o próprio. Esse processo de interação social se desenvolve
mediante estratégias que propiciem situações de diálogo, as quais possibilitem
que
os
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educandos
se comuni
quem
, expressando seus modos de agir, de pensar e de sentir, em
ambiente acolhedor, que propicie a confiança em si e no outro. E, mesmo na existência de
conflitos, comu
ns
nas interações sociais, e
les
serão administrados, não a partir de idéias
ou pensamentos que apontem uma norma, lei ou fundamento que existem a priori, mas a
partir do diálogo, na relação de alteridade construída no interior do grupo e nas relações
de compromiss
o e
de
solidariedade.
O movimento em favor da
alteridade
na educação terá que estar atento às
diversidades e singularidades, relativas às raízes socioculturais do(a) educando(a) como
também às capacidades afetivas, cognitivas, relacionais, motoras, visuais e auditivas.
Trata
-
se de propiciar condições de interação e
de
aprendizagens que respeitem a variedade
de necessidades e
os
ritmos individuais. que se valorizar o ser e o saber que cada
educando(a) traz para o grupo aprendente, cada um(a) com uma contribuição especial a
ser socializada.
Nesse sentido, a educação, cujo objetivo seja o de promover relações de alteridade,
terá que se servir de outra epistemologia, diferente daquela
de
que se serviu ao longo de
tantos séculos. A epistemologia clássica repousa no
objetivismo,
no
ser
. O conhecimento
era uma espécie de reflexo da realidade externa e objetiva, uma captação da realidade
ontológica.
O conhecimento verdadeiro era atestado pela correspondência entre a mente e
a realidade objetiva. A relação pedagógica consistia em propiciar mecanismos de
apropriação dessa realidade, como se o ser humano fosse uma máquina regular, capaz de
captar, por meio dos sentidos, a realidade externa, processando esses dados de forma
estruturada na mente.
As ciências da educação demonstraram a problematicidade dessa postura
epistemológica. A ciência cognitiva atual, por exemplo, revela a complexidade dos
proces
sos de apropriação do mundo externo. A interação do sujeito com o mundo que o
cerca é de uma complexidade imensurável. Não basta o acúmulo de saberes, é preciso
haver uma solidariedade de inteligências. Trata-se de construir uma educação, servindo-
se
de epistemologias abertas, intersubjetivas, dialogantes, de modo a propiciar situações de
cuidados com o outro, através de processos interativos que promovam a solidariedade,
desenvolvendo atitudes de acolhida, respeito e confiança.
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Ness
a perspectiva, a necessidade urgente de uma revisão epistemológica não é em
função apenas de construir processos de domínio da realidade mais apropriados. Essa
revisão é uma exigência ético-pedagógica. Como dirá Assmann (1998, p. 111), “trata-
se
do enraizamento da sensibilidade solidária no cerne da própria visão epistemológica.
Aprender é construir mundos onde caibam todos. Mundos onde caibam outros mundos”.
A epistemologia de que precisamos terá a função de oferecer suportes teóricos em vista de
relações intersubjetivas inclusivas
,
e não
,
excludentes.
A educação para a alteridade exigirá uma nova postura teorizante. Theoriar,
portanto, não significaria apenas a construção de discursos acerca do ser ou da realidade
objetiva, mas um processo de conversão de inteligências, não para o objeto externo, mas
para as inteligências entre si. Educar, nesse processo, significa pôr os envolvidos no
processo
de ensino-aprendizagem numa relação face-a-face solidária, e não, apenas,
posicionar
-se um ao lado do outro, contemplando e conhecendo um objeto. A educação se
reveste
, portanto, de um processo que transcende o nível epistemológico e assume,
também, um ca
ráter ético.
38
4.2
EDUCAÇÃO E ETICIDADE
Respiramos uma insatisfação no que diz respeito à educação. Pais, mães,
pedagogos(as), professores(as), psicólogos(as), assistentes sociais, enfim, os(as)
educadores(as) de modo geral confessam as frustrações que têm vivido no labor
educativo. Há um desejo de mudança, de superação dos modelos que herdamos das
gerações passadas. Parece que, por mais que nos esforcemos (teórica e praticamente), as
escolas continuam caducas nos seus métodos, estruturas, currículos etc. Muitas famílias
vêem
-se impotentes diante da necessidade de promover relações de afeto e
responsabilidade. Diante de tantos desafios, recorremos à palavra “crise” como uma
tentativa de aprisionar no discurso uma experiência de aflição e de descaminhos.
A
palavra “crise” vem do grego
Krínein
, momento de discernimento, momento de
decisão. Compreender e assumir a crise, portanto, pode significar a possibilidade de ir ao
38
Voltamos a esclarecer que o termo
ético
, no sentido levinasian
o, assim como é empregado aqui, não é apenas o
desdobramento do Bem em normas, leis ou interditos. O Bem, aqui, transforma-se em responsabilidade, em
bondade, em compromisso com o outro.
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encontro de respostas aos problemas que nos afligem. Contudo, as respostas possíveis não
nascem de uma única compreensão da realidade e, ta
mpouco
, de uma única decisão. O
que está em jogo é uma trama em que se misturam fios de inúmeras cores. A
perplexidade
39
que muitos de nós experimentamos nos dias atuais é resultante do
envolvimento que fazemos na teia de sentidos que o presente nos oferece. Portanto, a
superação dessa crise (mesmo que seja uma superação provisória, pois a história é um
contínuo devir) terá que ser a partir da pluralidade, daquilo que Brennand
(2007)
chamou
de “identidades co
mpartilhadas”
, um processo dialógico de fundamentos e princípios, em
vista da construção de realidades intercambiantes, de enriquecimento do próprio e
de
solidariedade com o diferente.
A relação que queremos sugerir entre
educação
e
ética
pretende se erguer a partir
da perspectiva de que a alteridade não é vista como uma ameaça, mas como um apelo ao
acolhimento, à responsabilidade. A educação, nesse sentido, terá que ser compreendida
enquanto encontro com o outro. Maturana (1998, p. 34), ao falar sobre o sentido da
educação,
chama a atenção para a busca de uma harmonia
que não destrói, que não explora, que não abusa, que não pretende dominar o
mundo natural, mas que deseja conhecê-lo na aceitação e respeito para que o
bem
-estar humano se no bem-estar da natureza em que se vive. Para isso
é preciso aprender a olhar e escutar sem medo de deixar de ser
[próprio],
sem medo de deixar o outro ser em harmonia, sem submissão [grifo nosso].
Podemos dizer que tal concepção acerca da educação não está distante do sentido
da ética levinasiana, enquanto relação com o Infinito que se manifesta no rosto, numa
atitude de acolhimento e responsabilidade. Se preferir, um processo de ser mais em favor
do oprimido, na linguagem freireana. Isso significa dizer que o sentido da educação e da
ética com a qual estamos trabalhando situa-se para além de uma fundamentação racional,
pois estas, assim como concebe Maturana (1998, p. 72), dizem respeito a um conjunto de
premissas fundamentais, aceitas a priori, que o determinam: “O qu
e não t
ê
m estas mesmas
pre
missas fundamentais m outras, e ele gera, também de maneira impecável, um
39
A palavra perplexidade provém etimologicamente do verbo
plectere
,
plexus
: tecer, tramar, e do advérbio
per
,
que indica perfeição, completude. Per
-
plexo está aquele que se abre à estranheza do presente, aquele que ama a
trama. Nessa entrega, aquele que tece é também tecido na rede de um real em constante mutação (UNGER,
1
991, p 33)
.
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discurso racional diferente, que constitui outro domínio de coerências operacionais e
discursivas, e, portanto, outro domínio racional”. A ética,
então
, deverá se situar numa
perspectiva que transcenda o discurso e, segundo a reflexão que estamos construindo, es
s
a
perspectiva é a da alteridade.
Uma tentação que nos ocorre, nesse momento, é a de
identificar
quais os
saberes
necessários para o desenvolvimento de processos pedagógicos em que o diálogo e
o
compromisso com o outro sejam vivenciados. Mas isso seria uma traição à reflexão que
estamos construindo, como
se
um fundamento viesse sorrateiramente ocupar um lugar que
não lhe pertence. O saber refere-se a uma realidade
de
que o sujeito se apropriou, em
termos de conteúdos, habilidades ou competências. Ora, se o saber, mesmo sendo outro,
passa a ser integrado no Mesmo, como que por um processo sintético, a alteridade é
eliminada. Nesse caso, encontramos, mais uma vez, um processo
autológico,
uma vitória
da mesmidade.
Portanto, ao nos referir
mos
a essa realidade que se encontra aquém ou além do
fundamental, teremos que recorrer a algo que, embora se apresente na subjetividade, por
ela
não se deixe aprisionar. Um evento
anacrônico
e enigmático, como preferiu chamar
Lévinas. Trata-se de um corte que faz abrir a subjetividade para uma realidade que se
encontra para além de si mesma. O diálogo e o acolhimento do outrem, nessa perspectiva,
opera
m no sujeito um movimento de transcendência, de ir mais além de si, de ser mais
.
Como tivemos oportunidade de dizer no segundo capítulo, trata-se de um
épos
, um
evento extraordinário
de
que o sujeito não é mais sujeito, mas também não é passividade.
A subjetividade passa a ser aprendente, e o outrem, mestre. Contudo, o conteúdo dessa
aprendizagem nem mesmo o outrem consegue explicar, posto que se refere a
um
ideatum
sem medida, que excede a capacidade do
cogito
em apreender, uma idéia que está além,
que supera o sujeito. Essa realidade extraordinária que se manifesta no r
osto
atravessa a
relação, deixa vestígios, mas não se deixa dominar.
A meta-arqueologia da educação que procura
mos
desenvolver nesta pesquisa
diz
respeito a esse evento, a essa idéia que se faz presente na subjetividade, mas que não se
deixa dominar. É um evento que se manifesta no rosto do outrem, colocando o sujeito em
movimento de auto-superação, de transcendência, mas que permanece enigmático,
refratário ao discurso, resistente à lógica e a qualquer movim
ento de síntese.
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UMA META
-
ARQUEOLOGIA DA EDUCAÇÃO A PARTIR DE
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Um leitor de Lévinas e de Freire, precipitado, logo recorreria à noção do Deus
judaico e/ou cristão para se referir a essa realidade enigmática. Apesar das raízes judaicas
de Emmanuel Lévinas, e
das
cristãs
, de Paulo Freire, e
les
não construíram um discurso
acerca de um fenômeno sobrenatural, para além do mundo empírico. As teorias
desenvolvidas por esses Autores, pelo menos nas obras de que
nos
servimos (pois Lévinas
também escreveu textos religiosos), ao contrário, remetem-
nos
a uma idéia de
transcendência marcadamente histórica: o outrem, na filosofia levinasiana, é aquele que se
encontra diante do sujeito, nas condições históricas
em
que este se encontra. O
oprimido,
na perspectiva freireana, é a pessoa que se encontra em situação
de
ris
co de exclusão
social, política, cultural, econômica, educacional, enfim, em risco de continuar existindo,
materialmente falando. O fato de esses Autores assinalarem a possibilidade d
e
o ser
humano se envolver num movimento de transcendência não significa que estejam
sugerindo um movimento trans-histórico. Ao contrário, a teoria que nossos Autores
constroem é, exatamente, a de afirmação da justiça, entendida como processo coletivo de
promoção das condições de vidas concretas dos seres humanos. Se os religiosos tomam
esses Autores, sobretudo Lévinas, para construir discursos teológicos
sobre
Deus, poderão
fazê
-
lo, mas
,
para tanto
,
terão que se servir, também, de outras obras.
Feit
o esse esclarecimento, voltemos ao nosso problema de tese: o da meta-
arqueologia
da educação. Falávamos de um evento que cruza a subjetividade, quando do
encontro com o outrem, mas que não se deixa dominar. E ainda, para uma educação
dialógica e para
a
alteridade
, eram necessári
as
algumas aprendizagens, não enquanto
saberes possíveis de serem dominados, mas enquanto movimentos que humanizam e que
permitem ao humano
ser mais
.
Tais aprendizagens, portanto, não se far
ão
a partir do discurso, mas do encontro do
outrem. O mestre, nesse caso, é o outrem. É no encontro e no compromisso do Eu com o
outrem e deste com os demais, que essa aprendizagem
acontecerá
, não de forma
sistemática. Um projeto pedagógico, aqui, não nos daria garantia alguma dos resultados. O
que importa, nesse caso, é iniciar o processo, discernindo movimentos
subjetivo
s e
intersubjetivos
, atentos aos movimentos de fortalecimento de si próprio e da
responsabilidade
com o outrem. Como dissemos, um processo carregado de
contradições, ambigüidades, sem negação da ambivalência humana, ao qual chamaremos
de educação
outram
ente que ser e dialogante.
A
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158
4.3
UMA EDUCAÇÃO
OUTRAMENTE QUE SER
E
DIALOGANTE
G
ostaríamos
de iniciar esse tópico,
recorre
ndo
a
uma metáfora, uma imagem
que
nos ajuda a compreender a relação entre a educação dialógica e a ética da alteridade. O
enlaçamen
to desses processos é feito
com
vários fios
,
que se entrelaçam reciprocamente, a
exemplo de uma mandala tridimensional.
Trata
-se de uma realidade dinâmica, possível de
assumir formas variadas. Para que a mandala não se desmanche, os fios precisam estar
pre
sos e tencionados um em relação ao outro.
A partir dessa metáfora, sugerimos conceber os fios que constituem a mandala
como algumas
aprendizagens
necessárias para a construção de uma educação
outramente
que ser e
dialogante
ou para além do ser ou, ainda, p
ara
ser mais. Tais aprendizagens
estão intimamente relacionadas umas com as outras, exercendo uma tensão entre si. O
aprimoramento de uma potencializa o aprendizado da outra. Assim, elegemos três
aprendizagens (ou
três
movimentos), mesmo sabendo que tantas outras são necessárias e
que se envolvem na trama de uma educação dialógica e solidária.
4.2.1
O
acolhimento
do outrem
Um dos movimentos necessários para o diálogo é a confiança no outro. Como
lembrará Paulo Freire (1987, p. 81), não há diálogo “se não há u
ma intensa fé nos homens.
no seu poder de fazer e de refazer. De criar e recriar. na sua vocação de ser mais
”.
A no outro, nessa perspectiva, mesmo sendo crítica, revela um movimento de abertura
ao seu ser, ao que ele nos traz.
Acolher o outro, num processo dialógico, implica abrir-se a outra lógica, a outros
referenciais, outros parâmetros, outros fundamentos. O diálogo é o encontro de
linguagens
diferenciadas, entendendo-se, aqui, linguagem como toda e qualquer forma de expressão
humana. Contudo, apesar d
e
o ser humano poder ser definido enquanto ser de linguagem
,
ele não pode ser reduzido à sua expressão. A linguagem é um
dizer
que mostra algo do
ser. Todavia, o
ser
ou
ser mais
não se esgota na linguagem.
A
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A educação para o
acolhimento
terá que valorizar o outrem que se mostra por meio
da linguagem, sem reduzi-lo a ela. E aqui percebemos uma tensão entre o conteúdo da
linguagem, aquilo que foi condensado pela expressão e o outrem, propriamente.
Um acolhimento que relativizasse a expressão
do outro
acabaria impondo a própria
linguagem na relação. Por outro lado, também não seria possível estabelecer um diálogo,
considerando
apenas
a linguagem, visto que o que esem relação não são conteúdos
lingüísticos, mas pessoas que não se reduzem ao que expre
ssam.
Falamos aqui de uma
aporia, de difícil solução. Acolher a expressão do outrem significa reconhecer a sua
cultura, a sua condição social, política, ideológica, econômica, artística etc. O diálogo se
dá, como dissemos, no encontro de lógicas (linguagens) diferenciadas. Contudo, tais
lógicas nos remetem a realidades principiantes e fundantes dos discursos envolvidos.
Enquanto processo lógico intercambiante, a relação dialógica se restringirá ao âmbito dos
fundamentos, sem dar o salto que nos interessa, para uma relação de alteridade, de
compromisso com outrem. É preciso, portanto, ir além dos fundamentos, acolher a
expressão, sem se fixar nela.
O ir além da expressão carrega, já, uma intencionalidade. Esse ir além dos
fundamentos ou da linguagem terá q
ue estar voltado para outrem, em sua materialidade. O
justo acolhimento implica compromisso com as condições histórico-
existenciais
em que o
outrem se encontra. O acolhimento se reveste em compromisso com a justiça, com a
promoção das condições de viver be
m, materialmente falando, do outrem.
Para se constituir enquanto processos dialógicos, os debates políticos,
interculturais, sociais, educacionais e tantos outros terão que estar comprometidos com a
justiça, com a promoção do outrem. Por mais fecundos que possam ser nossos debates, do
ponto de vista científico, se eles não promover
em
o bem-estar do outro e a
responsabilidade social, continuar
ão
sendo um capricho intelectual marcado pela
racionalidade autológica. Mais uma vez, a aporia se resolve no mundo prático, nas
decisões e nas ações que o ser humano desenvolve no cotidiano de sua vida, diante do
outrem.
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160
4.2.2
O
compromisso
com o outrem
Outro fio que compõe a nossa mandala é o compromisso com o outrem, um fio
importante na rede dinâmica de movimentos que se fazem presentes na subjetividade,
humanizando
-a sempre mais. A educação que pretende ser dialogante, como dito
anteriormente, não poderá se restringir ao nível do discurso ou da linguagem, é preciso
que seja prática.
Ao longo de nossa reflexão, temos insistido em dizer que a alteridade, na
concepção levinasiana, não significa apenas uma relação com o outro, pura e
simplesmente. Não estamos falando de qualquer tipo de sociabilidade. A relação social
que se pretende no encontro com o outro é a de responsabilidade, nas condições concretas
em
que ele se encontra, e não, apenas, uma adesão no âmbito das idéias. Nesse nível,
inclusive
, poderá haver discordância. Para haver compromisso com o outro, o Eu não
precisa estar de acordo com ele. O compromisso é com a vida que forma e se desenvolve
na
sua
relação com o outrem
e
deste com os demais.
Nesse sentido, o compromisso não é fruto de uma reflexão ou de uma adesão a
uma ideologia. O outrem antecede o discurso. A alteridade é [
des
]
interessada
,
posto que
não está em jogo uma troca de qualquer natureza. O diálogo com o outrem não se faz
mediante um acordo ou contrato em que as partes prometem e fazem garantias acerca do
compromisso firmado. Na relação de alteridade, não existe garantia alguma, o
compromisso com o outrem é sempre um risco, e não é garantia de mais justiça social, o
outrem pode nos frustrar. A relação de alteridade não é, pois, um investimento, mas
gratuidade.
A educação ético-antropológica que brota da relação dialógica e de alteridade é
possibilidade de justiça, mas não garantia. O outrem não se deixa apanhar na rede de
racionalizações construídas pelo sujeito, portanto carrega uma imprevisibilidade e uma
indeterminação que não poder
em
ser
apreendidas pela razão.
Para algumas pedagogias, tal empreendimento pode soar estranho. Como
desenvolver um processo político-pedagógico com esse viés sem uma fundamentação
teórica que o sustente? Como desenvolver um processo educativo para a alteridade sem
cair no voluntarismo ou ativismo irresponsáveis? O sentido de educação não tem origem
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no próprio, mas no outrem. É na relação que o sentido se manifesta, vem à tona. Isso
significa dizer que tal projeto não nega a necessidade do saber objetivo. Acolher e
responder ao outrem, no diálogo, é uma forma de solidariedade. Reconhecer o dizer do
outro já é uma tomada de consciência de que o Eu não é o que detém o poder de
determinar o sentido das coisas e do mundo.
A construção de temas geradores,
40
brilhantemente desenvolvidos na pedagogia
freireana, é uma alternativa enri
quecedora de construção de projetos político
-
pedagógicos
,
numa perspectiva dialógica de reconhecimento e comprometimento com o outro. O dizer
do outro é anterior a qualquer objetivação. A estratégia de construção do
universo
temático, desenvolvida por Freire, consiste num processo dialógico em que o outrem tem
a primeira palavra.
A responsabilidade social, nesse sentido, é construída através do diálogo
comprometido (não tanto com a coerência formal e discursiva, embora esta também seja
importante) com o out
rem nas condições existenciais em que ele se encontra.
A educação, nessa perspectiva, deverá desenvolver, junto à comunidade
educativa,
um movimento de escuta e de acolhimento do outro, tematizando e recriando o mundo,
construindo relações de solidariedade.
Um
termo que tem a ver com esse movimento e
que é muito empregado na educação é o
cuidado
.
No contexto educacional, c
uidar
significa valorizar e ajudar a desenvolver capacidades. Para tanto, é preciso uma atitude
de comprometimento com o outro, com sua singularidade, sendo solidário com suas
necessidades, confiando em suas capacidades.
Nesse processo, as inteligências individuais e coletivas desenvolvem saberes
diversos e variados. Contudo, tais teorias estarão atentas ao movimento dialógico que
permeia todo o processo. Por conta disso, os saberes estarão sempre em construção e
aberto a novas contribuições. Uma abertura, inclusive, para acolher o que não é possível
de ser apreendido no discurso, consciente de que, enquanto as
fundamentações
e as
ontologias
estão circunscritas no âmbito do discurso, o
Dizer
do outro as antecede e as
40
Os
temas geradores, aqui, referem-
se
ao processo pedagógico de construção do conteúdo programático
tratado por Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido e em outras obras. Tal processo é desenvolvido através
do diálogo entre os sujeitos do processo de ensino-aprendizagem, a partir da situação presente, existencial,
concreta, refletindo o conjunto de aspirações dos educandos. Portanto, trata-se de um tema
gerado
no interior
da comunidade educativa, a partir da provocação do educador.
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transcende. Tal postura instala no âmago do discurso uma desconfiança acerca das
próprias construções teóricas. Passamos a duvidar (uma dúvida sadia) do poder do nosso
saber e da razão humana. Iniciamos, assim, a construção de uma sabedoria desatrelada d
a
vontade de poder, mas com o desejo de
ser mais
, se outramente.
4.2.3
Uma aprendizagem para a
suspeita
No início de nossa pesquisa, discorremos sobre o poder que as epistemologias
construí
das ao longo dos séculos, desde as origens gregas, têm
de
oprimir e subverter tudo
aquilo que se mostra como outro, como diferente. A epistemologia, como dissemos, é
autológica.
A teoria, na perspectiva tradicional, é uma tentativa de construir
um
discurso
coerente acerca da realidade que se mostra plural e complexa. Nesse sentido, ela acaba
caindo em reducionismos ou em ontologias regionais, perfeitamente admissíveis pelas
ciências.
Apesar de a ciência ser um evento epocal na história da humanidade, não como
negar a crítica desenvolvida, sobretudo no pós-guerra dos anos quarenta, que apontava o
limite da ciência e a sua conivência com muitas das desgraças humanas. A crença de que a
ciência
tem o poder de resolver todos os problemas da humanidade não goza, hoje, de
tantos adeptos. A ciência se mostrou, nas últimas décadas, portadora de carências,
contradições e intencionalidades aentão ignoradas. Até mesmo as chamadas “ciências
duras” não ficaram imunes às ideologias e aos caprichos da subjetividade
.
Nesse contexto, não soa como novidade o anúncio do limite da ciência para dar
conta da realidade e dos problemas que têm origem. A epistemologia passa a conceber
o projeto científico como um esforço de compreensão da realidade, mas consciente
de
que
tal
apropriação é provisória e, em muitos casos, estéril, visto que não basta processos
teóricos para a solução dos problemas, é preciso que haja também processos e ações
ético
-
políticos
.
A ciência, todos sabemos, tem início justamente na ignorância. O saber
científico é
um esforço de oferecer respostas aos problemas que desenvolvemos a partir da percepção
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dos fenômenos pela nossa mente. A aprendizagem para a
suspeita
não pretende por entre
parênteses o saber epistêmico, mas dele suspeitar. Não se trata de uma reflexão crítica em
busca de fundamentos mais sólidos ou de discursos mais coerentes. Embora isso seja
necessário, a aprendizagem para a
suspeita
quer enfatizar a idéia de que todo saber é
suspeito quando
se
propõe um discurso acerca do outro.
O conhecimento, enquanto esforço da consciência de apreender o real, é um
processo de aproximação do sujeito diante de uma experiência ou fenômeno.
Nesse
processo
, em que a consciência se põe em relação com o desconhecido,
aproximando
-
se
numa tentativa de reformular
e reconstruir
as suas idéias
, haverá sempre a possibilidade de
dizer algo. Quando isso acontece, dizemos que houve conhecimento. A experiência da
exterioridade passou, de algum modo, a ser interiorizada. O conhecimento é
um
conteúdo
mental, pertencente ao
sujeito.
São
elucidativas as palavras de Miriam Cardoso (1978, p.
26)
,
quando diz que
O objeto do conhecimento é uma “representação” feita pela teoria, tentando
reproduzir o real, numa visão sempre mais aprofundada, sempre mais
simples e mais geral, buscando nexos e relações, interpretando as aparências,
tratando
-as como sinais ou indícios parciais a que confere significado ao
encontrar para eles um lugar em construção mais ampla
, teórica
.
Miriam Cardoso s
ugere a imagem de luz e
de
sombra.
Por maior que seja o controle exercido na experiência, sempre há uma
brecha para que um elemento não esperado, ou fora de controle, se
manifeste, interfira indiretamente, desde que a experiência é constru
ída.
[...] O desconhecido como tal é plena escuridão. O conhecimento é a
iluminação que desvenda os mistérios desta escuridão.
A iluminação das áreas obscurecidas é feita através de sucessivos processos de
investigação. Um foco de luz não é suficiente para iluminar a face desconhecida do
objeto. É preciso o maior mero de inteligências que permita focar o objeto, de
perspectivas diferenciadas. Nesse sentido, a relação dialógica se faz necessária. É
importante para o processo de construção do conhecimento que o saber outro possa se
expressar,
com
o intuito de trazer à luz
uma realidade antes obscurecida.
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A educação outramente que ser dialogante procura participar desse diálogo com a
epistemologia, justamente oferecendo um outro olhar, uma outra perspectiva. Nesse
sentido, o ontológico e o
meta
-
aqueológico
estão
de
acordo em entender que existem
pontos cegos na produção do conhecimento, realidades que a consciência ainda não é
capaz de compreender. O que distingue um movimento do outro é que o primeiro (o
ontológico) existe com a pretensão de
com
-
preender
, de prender a si (na consciência) a
realidade, enquanto o movimento outramente que ser (meta-
arqueológico)
é o de
des
-
preender
do próprio e ir em direção àquilo que se mostra obscuro.
A
suspeita
, nesse
sentido, torna
-se ocasião para perceber que o outrem é muito mais do que as suas opiniões
e conhecimentos. A suspeita suspende, de certo modo, nossos juízos acerca da realidade
para acolher o outrem
na sua nudez,
sem a vestidura da teoria.
Enquanto a relação epistemológica é compreendida como tentativa de resgatar
a
exterioridad
e do seu lugar
,
buscando
traz
ê-
la
à consciência, e
limina
ndo
, portanto, a
relação, a
relação
ética
, de outramente que ser,
é
a preservação da relação, pois não tem a
pretensão de apreender na consciência a exterioridade. O desconhecido preserva o seu
direito
de existir enquanto realidade outra, diferenciada do próprio, aprisionada na
consciência.
A eliminação de um dos pontos dessa antinomia é bastante problemática. Se
elimin
ássemos
o movimento epistemológico, de empoderamento do próprio, acabaríamos
numa relação de contínua transcendência, correndo o risco de esvaziamento do sujeito.
Negando o movimento ético, da possibilidade d
e
a exterioridade continuar existindo
enquanto tal, eliminamos o outro e caímos numa postura científica opressora e narcisista,
que nega o
direito e a beleza da diferença.
Tanto numa como noutra eliminação, quebra-se a relação de alteridade. À
educação não é permitida a fuga dessa antinomia. A formação do homem e da mulher terá
que contemplar esse duplo movimento. Entendemos que a tradição nos legou um volume
significativo de teorias e experiências que reforçam o movimento em favor do
conhecimento, em favor do empoderamento do próprio. Acreditamos, contudo, que o
mesmo não ocorreu com o movimento de abertura e compromisso com a existência do
outro, da diferença. Nesse sentido, não basta reforçamos atitudes de
acolhimento
e
compromisso
para construirmos processos educativos ético-dialógicos. É preciso
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denunciar o caráter opressor e identitário dos processos epistemológicos construídos ao
longo
dos séculos que nos antecederam. Se a denúncia for por critérios lógicos e
científicos apenas, acabamos sendo sugados pelo movimento ontológico, de unificação do
real.
Um caminho possível para conservar a relação, sem se aprisionar pelas teias da
epistemo
logia autológica, é o da
suspeita.
Tal postura também repousa numa crença.
Enquanto a ontologia clássica baseou-se na crença de que a verdade é
uma
e
inteligível
, a
educação
outramente que ser postula a idéia de que a verdade é
plural
e, muitas vezes,
refra
tária ao discurso racional.
A aprendizagem para a
suspeita
é, de certo modo, uma formação para a resistência
de discursos e movimentos totalizantes e unificantes. Não se trata de um exercício de
suspeitar da subjetividade
do
outrem
. A perspectiva da ética da alteridade o é a de
redução do ser humano às suas razões, discursos e amesmo práticas. O humanismo
subjacente nessa pedagogia é o de que o ser humano transcende a qualquer tipo de
categorização. Tal transcendência se justifica pelo fato de o seu existir ser dinâmico, em
movimento de constante vir-a-ser e, ainda, marcado pela ambivalência do ser para si e o
de
ser com/para o outrem
.
A educação que promove esse movimento de
suspeita
propicia aos aprend
entes
uma ocasião para perceber o limite da razão e do pensar. Educador e educando fazem a
experiência da heteronomia. O mundo pode, então, ser compreendido como uma realidade
a ser
cuidada
, não dominada, controlada ou subjugada. O outrem se ergue da sua posição
de
objeto
científico e se manifesta em to
da sua dignidade de
gente
.
Paulo Freire (1987, p. 80), ao tratar dos pressupostos da educação dialógica,
referiu
-se, dentre outras atitudes, à
humildade
: “não há diálogo se não humildade”.
Essa consciência de a razão ter limites, não apenas por sua temporalidade, mas por ela
mesma constituir-se enquanto autologia, permite
desenvolver
, no interior do espírito
humano
, a humildade de pensamento, ajudá-lo a perceber que a razão não pode se atrever
a abarcar realidades que se encontram para além do seu ser,
n
o rosto do outrem.
A aprendizagem para a
suspeita
põe no interior da subjetividade um desejo
metafísico de ir além do próprio ser. Põe o sujeito em movimento de ser mais, de
superação da sua ipseidade. A educação se reveste, portanto, de um movimento ético-
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metafísico de construção de um humanismo, não mais centrado no
cogito
ou no
próprio
,
mas aberto ao outrem e comprometido com o
ele
, um humano em movimento de ser
outramente
e
dialogante.
Essas três aprendizagens, embora não suficientes para um fazer outr
amente
educacional, permitem vislumbrar um outro movimento, em favor do outrem, do diálogo e
da responsabilidade social. Nesse sentido, o aprender a fazer, indicados pelo Relatório J.
Delors
,
precisa
ser revisto
. O
aprender a fazer
não poderá ficar circu
nscrito aos esforços
de transpor para o mundo prático os conhecimentos adquiridos. O
aprender a fazer
terá
de
constituir
-se, também, numa espécie
de
know
-
how
em
acolher
o outrem,
comprometer
-
se
com ele e de
suspeitar
dos discursos totalizantes
.
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CONCLUSÃO
Em filosofia, qualquer intenção de concluir uma reflexão será sempre questionada.
O filósofo é aquele que está a caminho, em busca de uma verdade que jamais se
totalmente explicitada ou apreendida pelo discurso. Portanto, não é nossa intenção dar por
en
cerradas a problematização e a tese que apresentamos nesta pesquisa. Ao filósofo da
educação cabe o papel de perguntar pelos fundamentos do pensar e fazer educativo. Aqui,
esse perguntar foi radical a ponto de sugerir a necessidade de superação de qualquer
fundamento para a educação.
que se continuar perguntando. E uma pergunta que brota do interior desse
filosofar é sobre os desdobramentos práticos que uma pesquisa como esta pode provocar.
Afinal, para que perguntar sobre os fundamentos? Para que pôr os fundamentos da
educação sob o olhar crítico da filosofia, num contexto educacional carregado de urgentes
demandas e com certo esgotamento das teorias? É enganoso dizer que a filosofia não se
preocupa com os problemas cotidianos e que procura construir discursos distantes do
mundo prático.
A intenção que orientou este trabalho foi, justamente, a de compreender um
problema prático: por que o saber conviver com o outro é uma aprendizagem tão
desafiadora? Por que palavras como confiança, humildade, solidariedade e justiça soam
como realidades de um romantismo utópico, que não tem mais lugar entre nós? Por que
passamos tantos anos sendo educados numa instituição de ensino de formação básica e
superior e ainda assim não conseguimos formar uma cultura de respeito às diferenças e de
responsabilidade social?
Estamos convencidos de que as respostas a essas perguntas não são possíveis
apenas a partir de um olhar, nem mesmo, do olhar da filosofia, simbolizada muitas vezes
pelo olhar da coruja, aquela que se achava capaz de enxergar na escuridão e em várias
A
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direções. Se compararmos com outros tempos, quando nos encontrávamos sujeitos ao
poder religioso ou quando a razão instrumental ditava os modelos científicos ou, até
mesmo, quando a práxis social e
a
política nos impediam de considerar outro fundamento
que não fosse o próprio, após esses períodos de racionalidades “inquestionáveis”,
passamos a ter maior liberdade e criticidade diante dos modelos epistemológicos e, por
isso, mais responsabilidade para tratar dos fundamentos, sejam estes filosóficos,
sociológicos, psicológicos, políticos, econômicos ou morais. A ciência da educação não
pode se privar de perguntar sobre esses fundamentos, mesmo que as urgências
pedagógicas
a
pressionem
para um pragmatismo desarraigado.
Contem
plar esses vários saberes na construção de
uma
fundamentação teórica
ainda é um desafio atual. Não tivemos a pretensão de abordar o problema educacional em
sua amplitude. Nossa preocupação, nesse momento, restringiu-se a investigar através de
um viés que permitisse compreender o
sentido
das relações intersubjetivas no interior do
fazer educativo. Ao perguntar sobre os fundamentos de tais relações, consideramos dois
movimentos antinômicos: o ontológico, que procura consolidar fundamentos, e o ético-
metafísico
, denominado aqui de
meta
-
arqueológico,
propenso à prática da alteridade e do
diálogo. Acusamos o primeiro movimento de ser a causa de uma educação promotora da
identidade e
de
singularidades, de empoderamento do próprio e de negação da diferença.
Defendemos
a tese de que a educação contemporânea padece da falta de uma superação
ontológica, de um exercício de ir além dos fundamentos. A meta-arqueologia que
defendemos pretendeu chamar a atenção para os limites de uma educação marcada pelo
idêntico, por uma raci
onalidade autológica.
Para sustentar nossa tese, servimo-nos da filosofia de Emmanuel Lévinas e a da
teoria pedagógica de Paulo Freire. A leitura desses autores não foi despretensiosa. A
hermenêutica sugerida por Paul Ricoeur nos instigou a levantar vôo e construir um
discurso que não ficasse preso às páginas que eles escreveram, arriscando uma crítica à
tradição educacional e, mais ainda, arrojando uma teoria pedagógica em vista de
aprendizagens pouco desenvolvidas e valorizadas no cotidiano das instituiçõe
s educativas,
relacionadas ao saber viver juntos do Relatório J. Delors. Tal empreendimento foi
possível pela possibilidade, posta por Ricoeur, acerca do sentido que o leitor pode
construir em parceria com o sentido do autor. Lévinas e Freire apontaram um horizonte
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em seu tempo. O que foi registrado pode ser lido em vista de um novo horizonte de
sentido, em vista de compreender e solucionar problemas postos por nós hoje.
Os textos levinasianos trabalhados são unânimes na crítica à racionalidade
ocidental
, de tradição grega. A compreensão do significado dessa crítica obrigou-nos a
desenvolver uma reflexão acerca do que denominamos de racionalidade autológica e a
íntima relação que esta estabeleceu com os processo pedagógicos ao longo da história da
educaçã
o. Nesse sentido, o recorte que fizemos sobre algumas filosofias que sustentaram a
matriz autológica nos permite compreender muito dos problemas educacionais relativos à
exclusão, seja de ordem social, cultural, étnica, econômica, religiosa, de gênero e da
s mais
variadas formas de preconceito e discriminação.
É evidente que se trata, como dissemos, de uma perspectiva filosófica e que
precisa ser complementada pelo olhar da
História, da Economia, da Sociologia, da
Política e de tantas outras ciências humanas e sociais. De qualquer forma, julgamos que
seja pertinente e, até certo ponto, original. O início do século XXI tornou-se um palco
profícuo de produções científicas que buscam uma avaliação das conquistas e das misérias
produzidas ao longo do séc. XX. Enquanto o avanço da tecnologia comunicativa avança
numa velocidade exponencial, as questões éticas, de direitos humanos, de saúde e de
tantas formas de inclusão, parecem avançar em passos lentos. Diante de tantas formas de
exclusão e de tantas demandas sociais, ficamos, muitas vezes, com a sensação de que o
nosso esforço é irrisório. Nossa pesquisa não é uma exceção. Todavia, o imobilismo ou o
ativismo não seriam atitudes aceitáveis.
Uma contribuição que julgamos ser enriquecedora refere-se à concepção com que
trabalhamos as categorias
alteridade
e
diálogo
. A
alteridade
tem sido uma categoria
central em muitas das pesquisas que buscam construir discursos e práticas inclusivas.
Contudo, em muitos desses processos, a alteridade é entendida apenas como
respeito
às
diferenças, quase como que uma “tolerância” inglesa, do final do séc. XVII. A
Carta
acerca da tolerância de John Locke, em 1689, é um tratado em que a tolerância é vista
como um contrato de convivência das diferenças, em vista de assegurar a liberdade d
e
expressão.
A filosofia de Emmanuel Lévinas, nesse sentido, permitiu-nos um passo adiante.
Lévinas não apenas afirmou uma nova concepção de alteridade, como também se
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preocupou em identificar as raízes filosóficas que promoveram
su
a negação. Não basta,
portanto,
afirmar a alteridade, que se buscar
em
as causas da sua negação, em vista de
uma transformação.
41
Nesse sentido, a educação não poderá ficar alheia a esse processo.
A categoria alteridade, na concepção levinasiana, como foi amplamente
desenvolvida em nossa pesquisa, refere
-se a um movimento da subjetividade de superação
ontológica. Por ser um movimento para além da ontologia, Lévinas reconstrói a noção de
ética
numa outra perspectiva, diferente daquela que assume um bem objetivo como
fu
ndamento das ações humanas. A ética se reveste de um caráter metafísico, entendido
como algo que se encontra para além do
ser
ou do essencial. A ética levinasiana coloca
em relação termos absolutamente separados, daí não ser possível ter como fundamento a
ontologia que tende a “mesmificar” e sintetizar o que é plural. A ética, assim, será esse
“outro modo que ser”, um ocupar
-
se do outro
,
e não
,
com o próprio existir.
A relação com o outro, nesse sentido, não se limita ao respeito ou à tolerância. O
ocupar
-
se
do outro, portanto, é a relação de responsabilidade do sujeito com a existência
do outro. Não basta que as subjetividades se relacionem, é preciso que tal relação seja de
comprometimento de uns para com os outros.
As conseqüências dessa filosofia para a educação seriam revolucionárias. O saber,
a razão, não gozaria mais do privilégio de ser o
fim
do agir pedagógico. O sentido da
educação seria a responsabilidade para com o outrem. O saber acumulado pela
humanidade, ao longo de tantas gerações, constituiria
o
meio,
um meio necessário, mas
apenas
meio
. Os critérios para deliberar sobre os objetivos, os conteúdos e todas as
demais práticas educativas seriam o da responsabilidade social, de compromisso dos
sujeitos entre si. E, nesse processo, a autonomia e a identidade do sujeito iriam se
formando, numa relação de alteridade.
Tal reflexão pode soar como uma utopia, mas foi uma utopia dessa envergadura
que Paulo Freire construiu com a sua teoria acerca do diálogo na educação. A tese com
que trabalhamos foi a de que a categoria
alteridade
, da filosofia levinasiana, pode ser
compreendida enquanto equivalente à categoria
diálogo
,
da pedagogia freireana.
41
Uma reflex
ão
sociol
ógica
muito pertinente, no sentido de identificar algumas das causas da negação da
alteridad
e, pode ser encontrada nas obras de Zygmunt Bauman:
O
m
al
-estar na pós-m
ode
rnidade
,
Modernidade l
íquida
e
Amor l
íquido
, dentre outras.
A
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O diálogo, segundo Freire, não é apenas a troca de mensagens entre sujeitos. O
diálogo inaugura uma relação de responsabilidades entre os falantes, em defesa da justiça,
na luta por regimes políticos e econômicos mais democráticos e igualitários, na
construção de uma cultura de paz e de tantas outras formas de interação social
responsável. Tal postura dialógica é fruto do desejo metafísico que todo homem e toda
mulher
m
de
ser mais
,
de
superar a própria “mesmidade” e ir além de si mesmo e das
condições históricas em que se encontram.
Esse diálogo se reveste de inúmeras roupagens,
exterioriza
-
se
e se concretiza
historicamen
te de várias formas. Elegemos, em nossa pesquisa, quatro expressões, o
diálogo como: educação e prática da liberdade, relação social e política, prática da justiça
e, por último, como condição de possibilidade para a interculturalidade.
Não é nossa intenção nestas últimas páginas, denominadas de conclusão, por
exigência normativa, comentar cada uma des
s
as categorias. Contudo, convém lembrar que
uma educação, construída através desses dinamismos, respondeu e ainda responde a
muitos dos desafios que as sociedades enfrentam nos dias de hoje. Não se trata de tomar a
pedagogia freireana como uma tábula capaz de resolver todos os males da humanidade. O
que está em jogo, aqui, é a resposta
poss
ível
de ser formulada, que contrapunha às lógicas
dominantes que, ao longo dos séculos, têm fomentado a exclusão e a opressão.
Questões relativas ao empoderamento dos sujeitos precisam ser revistas à luz da
noção da liberdade freireana. Cabe à educação formar para o educando, de modo a
habilitá
-lo a superar os desafios, assumindo a responsabilidade da própria vida, ou seja,
formar para a autonomia. Contudo, isso não basta. É preciso perguntar: autonomia para
quê? Para se encher do poder? Paulo Freire dirá que a liberdade é intencional. A educação
que pretender ser emancipatória compre
ende que o ser humano não é apenas
livre de
, mas
,
e sobretudo, livre para. E num processo dialógico,
livre
para
comprometer-se com o
outrem
,
num movimento de ser mais,
de superação da própria identidade.
As ações educacionais são processos eminentemente dialógicos e interativos. Não
precisa ser progressista para compreender o valor do diálogo, tampouco, o aspecto social
nos processos pedagógicos. E mais uma vez, Freire oferece uma resposta. Não basta uma
sociabilidade qualquer, simplesmente como um encontro entre sujeitos em vista de algo
comum. Há que se reconhecer e valorizar as singularidades. Contudo, tal reconhecimento
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e valorização se concretizam através da rede de solidariedade que os sujeitos constroem
entre si, no exercício do poder compartilhado e em favor da superação dos limites
existenciais vivenciados na coletividade e nas singularidades. A prática da justiça,
portanto, é a prática do compromisso dos sujeitos entre si, em vista de garantir a
materialidade do existir do outrem. Tal empreendimento exigirá também a reconstrução
das estruturas sociais e políticas que vigoram na contemporaneidade.
O diálogo, enquanto condição de possibilidade da interculturalidade, põe em
evidência uma das questões mais pertinentes e delicadas do nosso tempo. Ao mes
mo
tempo em que a humanidade avança nas pesquisas científicas, proliferam também os
fundamentalismos culturais e mercadológicos. Os conteúdos simbólicos e culturais
tornaram
-se, em muitos casos, “mercadorias globais” a serem manipuladas e negociadas
em troca do enriquecimento de algumas minorias. Definir o que é próprio de uma cultura
tornou-
se um desafio. Ao mesmo tempo em que é necessário um processo de afirmação da
identidade, de recuperação das riquezas culturais que a diversidade dos povos construiu,
urge
também o imperativo do diálogo entre as culturas. Não apenas como uma atitude de
admiração da diferença, mas como processos interativos de responsabilidades recíprocas.
A hermenêutica que fizemos do
diálogo
freireano, nesse sentido, aproxima-
se
, e
muito,
da concepção levinasiana de
alteridade
. Se nos propusermos a construir uma
pedagogia que não se conforme apenas com o que é fundamental, voltado para o saber
universal, para o idêntico e para o empoderamento do próprio, talvez possamos propi
ciar
às novas gerações
ideais, valores e práticas mais propens
o
s ao
acolhimento
das diferenças,
mais
comprometidas
com
a
superação dos limites do outrem e, ainda, mais
suspeitas
dos
discursos que pregam verdades e lógicas coerentes.
Nossa esperança é
de
que a presente pesquisa possa servir para instigar o pensar,
questionar os saberes que herdamos, rever as relações que construímos em nossas práticas
pedagógicas e, quem sabe, subsidiar debates e práticas em favor de uma sociedade mais
solidária.
Sem pretensão alguma de concluir as questões aqui postas, continuaremos
pesquisando no sentido de contribuir para processos educativos mais includentes, de
maior responsabilidade para com o outrem. Estamos convencidos de que tais estudos não
podem se restringir ao âmbito de uma pesquisa. Será preciso maior aproximação e
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envolvimento com os projetos comunitários, educacionais e políticos que buscam
construir condições de vida mais favoráveis para tantas pessoas que experimentam, no
dia
-a-
dia, a vulnerabilidade da própria exi
stência.
* * *
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