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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LINDEMBERG MEDEIROS DE ARAÚJO
DA PRÁTICA MÉDICA À PRÁXIS MÉDICA:
possibilidades pela Estratégia Saúde da Família
JOÃO PESSOA
2007
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LINDEMBERG MEDEIROS DE ARAÚJO
DA PRÁTICA MÉDICA À PRÁXIS MÉDICA:
possibilidades pela Estratégia Saúde da Família
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Educação, do Centro de
Educação da Universidade Federal da
Paraíba (PPGE/UFPB), como exigência
para obtenção do grau de Doutor em
Educação.
Orientador: Professor Doutor José Francisco de Melo Neto
JOÃO PESSOA
2007
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A663d Araújo, Lindemberg Medeiros de
Da prática médica à práxis médica: possi-
bilidades pela Estratégia Saúde da Família /Lin-
demberg Medeiros de Araújo. – João Pessoa,
2007.
292p.
Orientador: José Francisco de Melo Neto
Tese (doutorado) UFPB/CE
1. Educação para prática médica 2. Práxis
médica 3. Atenção básica 4. Saúde-doença
UFPB/BC C.D.U: 37(043)
LINDEMBERG MEDEIROS DE ARAÚJO
DA PRÁTICA MÉDICA À PRÁXIS MÉDICA:
possibilidades pela Estratégia Saúde da Família
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Educação, do Centro de
Educação da Universidade Federal da
Paraíba (PPGE/UFPB), como exigência
para obtenção do grau de Doutor em
Educação.
Aprovada em 19/10/2007
Comissão Examinadora:
Orientador: Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto
Universidade Federal da Paraíba – UFPB
Examinadora: Profa. Dra. Carmen Fontes de Souza Teixeira
Universidade Federal da Bahia – UFBA
Examinador: Prof. Dr. Roberto Veras de Oliveira
Universidade Federal de Campina Grande – UFCG
Examinador: Prof. Dr. Artur Fragoso de Albuquerque Perrusi
Universidade Federal da Paraíba – UFPB
Examinadora: Profa. Dra. Emília Maria da Trindade Prestes
Universidade Federal da Paraíba – UFPB
À população usuária da Estratégia Saúde da
Família e aos médicos e médicas que nela se
descobrem e, assim, descobrindo-se, nela
inauguram uma relação dialógica que abre a
possibilidade de construção de uma práxis
médica educativa e popular.
Dedico.
EXERCITANDO O ATO DE AGRADECER
A demonstração de gratidão é, talvez, o momento ímpar do ser humano. A
mais nobre e recompensadora das suas ações. É o momento da afirmação do outro e da
confirmação teleológica desse outro em nós. O agradecimento tem o condão de
enaltecer o benfeitor, mas, também, de elevar o agradecido, na medida em que lhe é
oferecida a chance de exercitar a reciprocidade da humildade, do respeito, da
generosidade, da consideração e do desvelo. Tenho que agradecer a muitos ao concluir
esta pesquisa.
À minha família de origem. Agradecimento nas figuras dos meus pais e dos
meus avós, cujos ensinamentos e exemplos colocaram-me diante da empiria da vida e
definiram os marcos fundamentais do meu caráter;
À família que constituí. Sustentáculo maior, fonte de afirmação e inspiração
mais profunda. O celeiro incessante de amor, de compreensão e de carinho. Nas horas
mais difíceis e tormentosas, foi em Zezinha, João Rodolfo e Pedro Felipe que encontrei
o porto seguro e a calmaria;
Ao meu orientador. O professor José Francisco de Melo Neto foi um
timoneiro tranqüilo e firme, obstinado e terno; paciente e disponível, acima de tudo.
Soube guiar e, ao mesmo tempo, esperar pelo amadurecimento do trabalho que ora é
apresentado;
Aos professores Roberto Veras de Oliveira e Artur Fragoso de Albuquerque
Perrusi. As orientações, na ocasião da Comissão Examinadora do Seminário de Tese,
foram fundamentais para o fortalecimento da consistência do texto da tese;
Ao PPGE. À sua coordenadora, professora Adelaide Dias, dureza de
diamante e delicadeza de orquídea. Aos professores da jornada dos créditos
regulamentares: Roberto Jarry, Edna Brennand, José Neto, Eymard Mourão, Afonso
Scocuglia e Wojciech Kulesza, grandes colaboradores. Aos funcionários, representados
nas pessoas sempre disponíveis e companheiras de Rosilene e Cleomar;
Aos colegas da primeira turma de Doutorado do PPGE. Solidariedade,
amizade, companheirismo foram marcas indeléveis. Impossível esquecer cada uma das
pessoas e do compartilhamento das agruras do pioneirismo. Agradecimentos especiais à
Patrícia, pela disponibilidade na discussão e na crítica colaboradora de algumas partes
dos escritos desta tese, e a Washington, pela criação da capa do texto a ser entregue à
Comissão Examinadora;
Às companheiras tutoras do Programa de Interiorização do Trabalho em
Saúde – PITS/MS/SES-PB/NESC/CCS/UFPB, Maria de Fátima Ávila Paz Castelo
Branco, Edilene Araújo Monteiro e Tânia Maria Ribeiro Monteiro de Figueiredo. A
parceria, o aprendizado, o diálogo, a convivência profissional e afetiva, junto com o
trabalho bem feito, foram o grande incentivo para que a prática de acompanhamento das
equipes de saúde se transformasse em material de pesquisa para a tese;
À Claudia Luciana Sousa Macena Veras e André Luís Bonifácio de
Carvalho. A convivência na SES-PB, principalmente no Grupo de Condução da ABS,
trouxe lições e experiências importantes para esta pesquisa;
À Ana Fábia da Mota Rocha Farias, colaboradora fundamental para a
pesquisa sobre a prática médica na Atenção Básica à Saúde realizada pela Estratégia
Saúde da Família. Os documentos e textos disponibilizados confirmaram a contribuição
das equipes de Campina Grande na construção da práxis em saúde, que se revela em
muitas das equipes dessa Estratégia, naquele município;
À equipe de Saúde da Família Grotão II. Convivência frutífera através da
inserção de alunos de graduação em Nutrição no dia-a-dia da equipe, ao cumprirem um
dos estágios curriculares do Curso. Imagino um reencontro em breve, retomando o
trabalho temporariamente suspenso;
Aos companheiros do EXTELAR – Grupo de Pesquisa em Extensão
Popular. O esforço em promover a pesquisa no campo da extensão popular, mantendo o
debate conceitual e, ao mesmo tempo, destacando as metodologias de pesquisa
possíveis nas ações de extensão, tem sido um combustível essencial para reflexões e
produções neste campo específico;
Ao DN/CCS/UFPB. A liberação e a solidariedade dos colegas que ficaram
segurando o fardo, enquanto dedicava tempo integral ao Doutorado, não podem ser
esquecidas.
Aos demais aqui não nomeados diretamente. Certamente há, ainda, muitas
pessoas ou estruturas que não estão sendo lembradas, apesar de terem apoiado e, direta
ou indiretamente, contribuído para a realização e para a consistência desta pesquisa. A
esses, também a minha gratidão.
FREIREANAMENTE
Lindemberg Medeiros de Araújo
O diálogo devora o silêncio...
Aproxima, iguala as pessoas
tece as palavras.
Revela, recria o outro
extrai o sentido da vida
constrói utopias
seduz.
confronta
educa
disputa
liberta
compartilha.
Gera sonhos de autonomia
produz cisões
...e reproduz experiências humanas.
RESUMO
A possibilidade de a prática médica transformar-se em práxis médica, no interior da
Estratégia Saúde da Família, constitui o fulcro desta pesquisa. Nela, o diálogo é
definido como categoria básica e ferramenta para a construção da práxis. Diálogo
inspirado na tradição herdada da sociedade grega antiga e da medicina hipocrática, bem
como, no redimensionamento dessa categoria, proporcionado pela filosofia e pedagogia
freireanas. No corpo do texto, a prática médica é compreendida como algo inserido num
contexto de disputas filosóficas, éticas, científicas, políticas e técnicas, desde o passado
mais remoto, sendo, portanto, algo repleto de contradições. São dissecados os conceitos
de saúde-doença, de medicina e de prática médica, a partir de suas características em
diferentes contextos da trajetória humana. Recupera-se a história das políticas e das
práticas em saúde, no Brasil, colocando-se em relevo a prática médica nos diversos
períodos da República. Mostra-se que o diálogo esteve ausente ou foi deixado de lado
na prática médica dominante. Entretanto, a sua presença vem sendo recuperada e
defendida desde a construção do movimento de Reforma Sanitária brasileira que, num
amálgama com os demais movimentos sociais e populares, passou a influir nos rumos
das últimas conferências nacionais de saúde, no processo constituinte que reformou a
Constituição Federal, na legislação ordinária da saúde e demais documentos legais que
deram base a que, no presente, se chegasse à prescrição da Política Nacional de Atenção
Básica, construída de forma democrática e paritária pelas instâncias do SUS. Analisa-se
a prática médica da Estratégia Saúde da Família e ressaltam-se as experiências ora
negativas ora exitosas dessa prática no interior desse modelo de atenção, em municípios
do Estado da Paraíba. Conclui-se que a transformação da prática médica em práxis
médica, apesar de todos os obstáculos existentes, é uma possibilidade concreta.
Palavras-chave: Educação. Saúde-doença. Política de saúde. Atenção básica. Práxis
médica.
ABSTRACT
The possibility that medical practice becomes transformed into medical praxis, within
Strategic Family Health, constitutes the kernel of this research. In it, dialogue is defined
as the basic element and tool for the formation of praxis. This dialogue is inspired by
the traditional inheritance of ancient Greek society and Hippocratic medical practice, as
well as the reformulating of this category as determined by philosophical and Freiran
teaching. In the body of the text medical practice is understood as something
incorporated into contextual philosophical, scientific, political and technical disputes
since remotest times, being however, full of contradictions. Prejudices in relation to
health/sickness, medicinal and medical practice have been dissected beginning with
characteristics in different contexts of the human organism. It restores the history of
politics and health practice in Brazil giving distinction to medical practice during
various periods of the Republic. It points out that dialogue was absent or put aside in
dominant medical practice. Nevertheless, its presence is being revived and defined
since the establishment of the Brazilian Sanitarian Reform which, in amalgamation with
other social and popular movements, has influenced the direction of National
Conferences on Health, in the constitutional process which reformed the Federal
Constitution on ordinary health legislation and other legal documents, which have
foundations in the present, and whose directives come from the National Political
Care Base, made in a democratic and egalitarian way within the norms of SUS.
It analyses the medical practice of Strategic Family Health and recuperates experience,
albeit negative, but nonetheless effective in practice, within this care model, in boroughs
in the state of Paraíba. Finally, it concludes that in spite of existent obstacles, a
transformation of medical practice into medical praxis is a concrete possibility.
Key words: educação – education, saúde-doença – health-sickness, política de saúde –
health politics, atenção básica – basic care, praxis médica – medical praxis
RÉSUMÉ
La possibilité de la pratique médicale peut se transformer en une praxis médicale, à
l’intérieur de la stratégie santé de la famille, compose le principal but de cette recherche.
En elle, le dialogue est défini comme une catégorie basique et un outil essenciel pour la
constituicion de la práxis. Ce dialogue inspire dans une tradition hérité de la société
gueque antique et de la médicine chez hycrocrate, ainsi que, auprès de la redimension de
cette catégorie établie par la philosophie et la pédagogie freieanne. Dans le corpus du
texte, la pratique médicale est comprise comme quelque chose qui se trouve inclus dans
un contexte de disputes phylosophiques, éthiques, scientifiques, politiques et
techniques, depuis le plus lointain passé, étant, donc, quelque chose pleine de
contradicions. On a analysé les concepts de santé-melodie, de médicine et de pratique
médicale à partir de leurs caractéristiques dans les contextes de l’histoire de l’humanité.
Ainsi, on a l’intention de récuperer l’histoire des politiques et des pratiques de la santé
au Brésil, en mettant comme relief la pratique en nombreuses périodes de la
République. On démontre que le dialogue était absent ou il a été laissé de côté de la
pratique médicale du moment. Pourtant, sa présence commence à être recuperée et
définie depuis la construction des mouvements de la Reforme Sanitaire Brésilienne qui
réuni un groupe avec d’autres mouvements sociaux et populaires qui a influencé les
destins des dermières conférences nationelle de santé, dans un processus constituant qui
a reformulé la Constituicion Fédérale, dans la législation ordinaire de la santé et de
plusieurs documents légaux qui ont soutenu, au présent, la prescription de la politique
Nationale d’attention Basique, élaborée d’une mamière démocratique et paritaire pour
les organismes du S.U.S. On analyse la pratique médicale de la stratégie Santé de la
Famille et on abserve les expériences qui se présentent dans un moment négatif et
parfois exitoses de cette pratique, à l’intérirur de ce modèle d’attention, dans les
municipes de l’État de Paraíba. En quise de conclusion, on constate que la
transformation de la pratique médicale dans la praxis médicale, malgré toutes les
obstacles existentes, c’est une possibilité concrète.
Mots-clés: Éducation, Santé-Maladie. Politique de santé. Attention basique. Práxis
médicale
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS
ABRANGE – Associação Brasileira de Medicina de Grupo
ABRASCO – Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva
ACD – Auxiliar de Consultório Dentário
ACS – Agente Comunitário de Saúde
AIH – Autorização de Internação Hospitalar
AIDS – Imuno-Deficiência Adquirida
AIS – Ações Integradas de Saúde
APS – Atenção Primária em Saúde
CAP´s – Caixas de Aposentadorias e Pensões
CCHLA – Centro de Ciências Humanas Letras e Artes
CCS – Centro de Ciências da Saúde
CE – Estado do Ceará
CEBES – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde
CEB´s – Comunidades Eclesiais de Base
CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina
CENEPI – Centro Nacional de Epidemiologia
CERESAT – Centro de Referência em Saúde do Trabalhador
CES – Conselho Estadual de Saúde
CF – Constituição Federal
CFM – Conselho Federal de Medicina
CIB – Comissão Intergestores Bipartite
CIMS – Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde
CIPLAN – Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação
CIS – Comissão Interinstitucional de Saúde
CISAT – Comissão Intersindical de Saúde do Trabalhador
CIT – Comissão Intergestores Tripartite
CLIS – Comissão Local Interinstitucional de Saúde
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNRS – Comissão Nacional da Reforma Sanitária
CNS – Conselho Nacional de Saúde
CONASEMS – Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde
CONASP – Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária
CONASS – Conselho Nacional de Secretários de Saúde
COSAC – Coordenação de Saúde da Comunidade
COSEMS – Conselho de Secretários Municipais de Saúde
CPC – Centros Populares de Cultura
CRIS – Comissão Regional Interinstitucional de Saúde
CUT – Central Única dos Trabalhadores
CUTV – Central Única de los Trabajadores Venezolanos
DAB – Departamento de Atenção Básica
DAD – Departamento de Apoio à Descentralização
DATASUS – Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde
DIESAT – Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos
Ambientes de Trabalho
DNERu – Departamento Nacional de Endemias Rurais
DOU – Diário Oficial da União
DPS – Departamento de Promoção da Saúde
EC – Emenda Constitucional
ECEM – Encontro dos Estudantes de Medicina
ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública
ESB – Equipe de Saúde Bucal
ESF – Estratégia Saúde da Família
ESF – Equipe de Saúde da Família
EUA – Estados Unidos da América
FAS – Fundo de Assistência Social
FBH – Federação Brasileira de Hospitais
FGV – Fundação Getúlio Vargas
FHC – Fernando Henrique Cardoso
FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz
FMI – Fundo Monetário Internacional
FNS – Fundo Nacional de Saúde
FPM – Fundo de Participação dos Municípios
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
FUNDACENTRO – Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do
Trabalho
GERUS/UBS – Projeto de Desenvolvimento Gerencial de Unidades Básicas de Saúde
GM – Gabinete do Ministro
IAPAS – Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social
IAP´s – Institutos de Aposentadorias e Pensões
IBASE – Instituto Brasileiro de Análise Sociais e Econômicas
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFES – Instituição Federal de Ensino Superior
IMS – Instituto de Medicina Social
IN – Instrução Normativa
INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INPS – Instituto Nacional de Previdência Social
INSS – Instituto Nacional do Seguro Social
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
JAC – Juventude Agrária Católica
JEC – Juventude Estudantil Católica
JOC – Juventude Operária Católica
JUC – Juventude Universitária Católica
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação
LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social
LRS – Lei de Responsabilidade Sanitária
MAPP – Método Altadir de Planificação Popular
MCS – Mestrado em Ciências Sociais
MCP – Movimento de Cultura Popular
MEB – Movimento de Educação de Base
MEC – Ministério da Educação
MG – Estado de Minas Gerais
MI – Ministério do Interior
MOPS – Movimento Popular de Saúde
MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social
MS – Ministério da Saúde
NESC – Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva
NOAS – Norma Operacional de Assistência à Saúde
NOB – Norma Operacional Básica
OIT – Organização Internacional do Trabalho
OMS – Organização Mundial da Saúde
OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde
PAB – Piso de Atenção Básica
PACS – Programa Agentes Comunitários de Saúde
PAIS – Programa de Ações Integradas de Saúde
PB – Estado da Paraíba
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PCI – Partido Comunista Italiano
PES – Planejamento Estratégico Situacional
PIASS – Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento
PITS – Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde
PNAB – Política Nacional de Atenção Básica
PNH – Política Nacional de Humanização
PPA – Plano de Pronta Ação
PPI – Programação Pactuada Integrada
PR – Estado do Paraná
PREV-SAÚDE – Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde
PRÓ-SAÚDE – Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em
Saúde
PPÓ-RURAL – Plano de Assistência ao Trabalhador Rural
PROESF- Projeto de Expansão do Programa de Saúde da Família
PRMI – Projeto de Redução da Mortalidade Infantil
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PSF – Programa de Saúde da Família
RADIS – Reunião, Análise e Difusão de Informações sobre Saúde
REFORSUS – Reforço à Reorganização do Sistema Único de Saúde
REME – Movimento de Renovação Médica
RJ – Estado do Rio de Janeiro
RMPS – Residência em Medicina Preventiva e Social
RS – Estado do Rio Grande do Sul
SALTE (Plano) – Saúde, Alimentação, Transporte e Segurança
SAS – Secretaria de Atenção à Saúde (até 2003, SAS – Secretaria de Assistência à
Saúde)
SADT – Serviços Auxiliares de Diagnóstico e Tratamento
SC – Estado de Santa Catarina
SE – Estado de Sergipe
SEAMPO – Setor de Estudos e Apoio a Movimentos Populares
SEMSAT – Semana de Saúde do Trabalhador
SENAI – Serviço Nacional da Indústria
SEPLAN – Secretaria de Planejamento da Presidência da República
SES – Secretaria Estadual de Saúde
SESAC – Semana de Estudos de Saúde Comunitária
SESP– Serviço Especial de Saúde Pública
SESU – Secretaria de Ensino Superior
SGETS – Secretaria da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde
SIA/SUS – Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde
SIH – Sistema de Informações Hospitalares
SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação
SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social
SIRENA – Serviço Rádio-Educativo Nacional
SIREPA – Serviço de Rádio-Difusão da Paraíba
SIS – Sistema de Informações em Saúde
SMS – Secretaria Municipal de Saúde
SP – Estado de São Paulo
SUCAM – Superintendência de Campanhas de Saúde Pública
SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
SUDS – Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
UBS – Unidade Básica de Saúde
UBSF – Unidade Básica de Saúde da Família
UDN – União Democrática Nacional
UEL – Universidade Estadual de Londrina
UEPB – Universidade Estadual da Paraíba
UF – Unidade Federativa
UFBA – Universidade Federal da Bahia
UFCG – Universidade Federal de Campina Grande
UFPB – Universidade Federal da Paraíba
UNE – União Nacional dos Estudantes
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância
USP – Universidade de São Paulo
USP – Unidade Setorial de Planejamento
VII CNS – Sétima Conferência Nacional de Saúde
VIII CNS – Oitava Conferência Nacional de Saúde
SUMÁRIO
1 A PANORÂMICA DA TESE ................................................................................. 21
2 ELEMENTOS PARA A PRÁXIS MÉDICA ........................................................ 24
2.1 A pergunta inicial ................................................................................................... 28
2.2 A prática médica ..................................................................................................... 30
2.3 A práxis como categoria teórica ............................................................................. 32
2.4 A teoria da práxis na saúde ..................................................................................... 33
2.5 A práxis em saúde: diálogo .................................................................................... 38
2.6 O território como espaço do diálogo na práxis médica .......................................... 41
2.7 A práxis médica como popular ............................................................................... 47
2.8 A metodologia e os procedimentos técnicos da pesquisa ...................................... 50
3 A SAÚDE-DOENÇA, A MEDICINA, A PRÁTICA MÉDICA .......................... 54
3.1 A saúde-doença nos povos primitivos ................................................................... 56
3.2 A saúde-doença na antiguidade clássica ................................................................ 59
3.3 A saúde-doença entre a fé e a razão ....................................................................... 63
3.4 A medicina como prática pagã ............................................................................... 68
3.5 A saúde-doença com base científica ...................................................................... 70
3.6 A experiência clínica como medicina científica ..................................................... 75
3.7 A Medicina do Trabalho ......................................................................................... 79
3.8 Da unicausalidade à multicausalidade .................................................................... 81
3.9 Da Medicina do Trabalho à Saúde Ocupacional .................................................... 83
3.10 A sociologia médica ............................................................................................. 86
3.11 A perspectiva de uma prática médica renovada ................................................... 93
4 DAS POLÍTICAS DE SAÚDE À REFORMA SANITÁRIA: BRASIL
REPÚBLICA ............................................................................................................. 100
4.1 A crise na saúde pública e os rudimentos do modelo de previdência social ........ 101
4.2 A República Velha e o Estado Novo .................................................................... 115
4.3 A intervenção do governo Vargas na economia, na saúde, na educação ............. 118
4.4 O Serviço Especial de Saúde Pública ................................................................... 121
4.5 A onda hospitalocentrista de inspiração flexneriana ............................................ 123
4.6 A saúde na redemocratização do país ................................................................... 125
4.7 A saúde no segundo governo de Getúlio Vargas .................................................. 128
4.8 A política e a saúde: do pós Getúlio à ditadura militar ....................................... 132
4.9 A Reforma Sanitária na redemocratização do país ............................................... 154
5 A REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA: UMA CONSTRUÇÃO TEÓRICO-
POLÍTICA ................................................................................................................ 160
5.1 A invenção do SUS: representação de interesses na ampliação do Estado .......... 161
5.2 Os fundamentos teórico-políticos da Reforma Sanitária brasileira ...................... 165
5.3 A municipalização das ações de saúde: avanços, contradições ............................ 177
6 A ATENÇÃO BÁSICA, A SAÚDE DA FAMÍLIA: UM ESBOÇO DA PRÁTICA
À PRÁXIS MÉDICA ............................................................................................... 182
6.1 A organização da Atenção Básica no Brasil: caminhos para a práxis médica ..... 184
6.2 Os documentos oficiais: a organização da Estratégia Saúde da Família .............. 201
6.3 A Atenção Básica como política nacional ............................................................ 212
6.4 A Política Nacional de Atenção Básica: seus fundamentos, sua organização ...... 217
7 A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA: CONTRADIÇÕES, CONFLITOS,
EM RELAÇÃO À PRÁTICA MÉDICA – UMA VIVÊNCIA ............................. 229
7.1 A Estratégia Saúde da Família na Paraíba ............................................................ 230
7.2 A Saúde da Família como práxis: ecos de uma experiência exitosa .................... 234
7.3 A Paraíba na atenção à saúde do PSF/PITS ......................................................... 238
7.4 A relação gestões municipais x atenção à saúde na vigência do PSF/PITS ......... 241
7.5 O comportamento ético, a prática médica nas equipes do PSF/PITS ................... 251
8 SABERES PARA A MEDICINA, PARA A PRÁTICA MÉDICA ................... 262
8.1 O exercício da Medicina exige humildade, consciência de inacabamento ........... 265
8.2 O exercício da Medicina carece de conhecimento, de competência profissional,
de ética .................................................................................................................. 268
8.3 O exercício da Medicina se estabelece pela apreensão da realidade e pela
possibilidade de mudanças ....................................................................................... 269
8.4 O exercício da Medicina exige criticidade, reflexão sobre a prática .................... 270
9 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 274
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 279
ANEXO A – Saúde da Família: uma estratégia de organização dos serviços de saúde
Documento Preliminar – Março/1996 ........................................................................ 292
ANEXO B – Portaria n.º 648, de 28 de março de 2006 ............................................. 303
ANEXO C – Mapas e Gráficos da Evolução da Implantação e Implementação da
Estratégia Saúde da Família no Brasil ........................................................................ 325
21
1 A PANORÂMICA DA TESE
O exercício de problematização que compõe esta tese coloca no centro da
análise a possibilidade de a prática médica elevar-se à categoria de uma práxis médica, a
partir da Estratégia Saúde da Família. Nesse sentido, elege-se o diálogo como
ferramenta para a sua construção, tentando-se compreender a prática médica como algo
inserido num contexto repleto de contradições por conta de disputas filosóficas, éticas,
científicas, políticas e técnicas. Disseca-se a prática médica, a partir das suas
características em diferentes contextos. Mostra-se que o diálogo esteve ausente ou foi
deixado de lado na prática médica dominante. Entretanto, observa-se a sua presença em
experiências mais particulares, podendo indicar que a transformação da prática médica
em práxis médica, no âmbito da Estratégia Saúde da Família, é uma possibilidade
concreta.
Considerando-se a organização do texto, o texto introdutório, que
corresponde ao segundo capítulo, apresenta as inquietações primeiras do autor e o seu
percurso por dentro da medicina, no campo da saúde coletiva, uma trajetória que
ofereceu o substrato para a conformação do problema, expresso através de uma
pergunta fundamental que norteia a pesquisa: É possível a transformação da prática
médica em práxis médica, a partir da Estratégia Saúde da Família? A resposta a essa
questão foi positiva e procurará mostrar que a práxis médica se realiza através do
princípio ético do diálogo. Nessa seção, são explicitados, também, os elementos teóricos
e metodológicos norteadores da construção do trabalho.
O capítulo 3 reconstitui a evolução do conceito de saúde-doença, partindo
dos povos primitivos e da Antiguidade Clássica, da Idade Média e da Era Moderna, até
a contemporaneidade. Nessa reconstituição, é contemplada a evolução da medicina e da
prática médica, parametrizadas pelos elementos que entraram na composição do
conceito em cada período histórico. Ao mesmo tempo, é evidenciado que o diálogo,
presente na sociedade grega antiga, onde nasceu a medicina hipocrática, foi, pouco a
pouco, sendo deixado de lado, a partir da queda do Império Romano do Ocidente, e se
fez ausente nos outros períodos históricos, sobretudo durante a Idade Média.
O capítulo 4 apresenta uma reconstituição das questões e dos contextos que
marcaram a história das políticas de saúde no país, no último século. Aqui, também se
procurou demarcar um conjunto de elementos compositores de um cenário que findou
22
por condicionar a evolução da saúde, como prática e como política no país. Foi dada
atenção à República Velha, período em que o Brasil começou a fazer a transição lenta e
gradual de um modelo econômico e político, fincado na produção agrária e rural, para
outro baseado na industrialização e na urbanização da sua produção econômica e social,
a tônica do Estado Novo getulista. O capítulo trata, ainda, da evolução da saúde
pública, do nascimento da previdência social e da assistência médico-previdenciária
brasileira, do processo de redemocratização do país, do salto desenvolvimentista e da
consolidação do Brasil como país industrial. Além disso, foi feita uma abordagem sobre
o momento de instabilidade política do início da década de 60, que culminou com o
golpe militar, seus reflexos em todos os campos da vida brasileira e, posteriormente, no
processo de distensão política da ditadura, onde teve início o processo denominado de
Reforma Sanitária brasileira.
O capítulo 5 caracteriza a Reforma Sanitária como uma construção teórico-
política do movimento sanitário nacional. São recuperados os elementos teóricos,
metodológicos e políticos, alimentadores do movimento político e ideológico que
redundou na criação do Sistema Único de Saúde – SUS. Trata da evolução do
arcabouço jurídico-político e da composição dos elementos constituintes da sua prática
em direção à descentralização político-administrativa representada pela municipalização
das ações de saúde, com seus rebatimentos sobre o modelo de atenção e sobre as
práticas em saúde, tendo em perspectiva a sua transformação numa práxis em saúde.
No capítulo 6, constam considerações acerca do Programa de Atenção
Básica à Saúde, como política nacional resultante da construção do movimento da
Reforma Sanitária Brasileira, lócus privilegiado de disputas políticas e ideológicas que
transformaram a face da saúde como política pública no país e do seu potencial crítico e
prático e sua possibilidade concreta de transformar a prática médica. Aponta que é
principalmente via Estratégia Saúde da Família que se dá esse tipo de atenção, e onde
são reveladas as contradições fundamentais da prática médica tradicional, colocada em
xeque pelas concepções do SUS. Além disso, mostra que a Estratégia Saúde da Família,
como modelo de atenção básica à saúde, assume um sentido doutrinário e, ao mesmo,
tempo prático, que possibilita uma reorientação da atenção à saúde e da prática médica,
no sentido de uma práxis médica que educa, sendo popular, e discute as possibilidades
do diálogo como atitude ética na realização da práxis que se deseja para essa estratégia
de atenção.
O Capítulo 7 coloca em evidência os avanços, os conflitos e as contradições
da prática médica na sua trajetória de transformação em práxis médica, em experiências
23
da Estratégia Saúde da Família, na Paraíba, a partir da discussão de elementos extraídos
da experiência direta do pesquisador na supervisão e tutoria de profissionais de saúde
(médicos e enfermeiros) durante a implementação do Programa de Interiorização do
Trabalho em Saúde (PITS), uma iniciativa de reforço à Estratégia Saúde da Família
levada a efeito pelo Ministério da Saúde. É também aproveitada a experiência do
pesquisador como gestor público de saúde, momento em que, coordenando a
implementação do SUS na Paraíba, acompanhou, mesmo que de forma indireta, a
atuação da Estratégia Saúde da Família, em Campina Grande (PB). Essa experiência é
resgatada na recuperação de textos oficiais e ilustrada por testemunhos escritos de
profissionais de saúde, gestores e população, recolhidos de publicações da Secretaria
Municipal de Saúde.
O Capítulo 8, ao contemplar a tese proposta, transforma-se numa
especulação filosófica que retoma a pergunta inicial e a tese defendida, constatando que
ela retorna plena de novas interrogações, que precisam ser pesquisadas,
problematizadas, respondidas, abrindo perspectivas para novos desdobramentos. A
especulação se desenvolve, sugerindo-se que a pedagogia freireana é fonte de inspiração
para a transformação da prática médica em práxis médica e que a sua inserção no
desenvolvimento dessa prática possibilita novos sentidos a todo o cabedal de
conhecimentos técnicos adquiridos pelo médico, redirecionando a sua atitude ética,
através da formação da consciência de que a medicina e a prática médica são formas de
intervenção no mundo. Que tudo o que foi aprendido pelo médico pode ser ensinado, e
que ele muito ainda poderá aprender ao intervir, desde que reconheça naqueles que
necessitam dos seus serviços um sujeito de conhecimento, alguém capaz de aprender e
de lhe ensinar algo.
O capítulo das Considerações, que encerra o texto da tese, mas não, as
discussões por ela suscitadas, reafirma as principais questões que estão implicadas na
transformação da prática médica em práxis médica, reconhecendo que estas estão
refletidas na tensa relação entre estrutura e sujeito. Esclarece que a tradução dessa
tensão na práxis médica da atenção básica, promovida pela Estratégia Saúde da Família,
representa um salto de qualidade tanto para a compreensão da prática do médico quanto
para a estrutura dos serviços de saúde, na medida em que novos espaços são abertos
para a transformação das relações interprofissionais e comunitárias. Entretanto, esse é
um processo ainda atravessado por muitas contradições.
24
2 ELEMENTOS PARA A PRÁXIS MÉDICA
A história e as experiências teóricas e práticas vividas por qualquer
pesquisador jogam um papel importante na construção de sua pesquisa. Explicam e
justificam a escolha do tema, o desenvolvimento do trabalho e as reflexões feitas a
partir dele. Com esta pesquisa, não acontece diferente. O seu ponto de partida recupera
inquietações que remontam vivências do autor na graduação em Medicina, num período
entre o final dos anos setenta e o início dos oitenta, do século passado, em Campina
Grande (PB). Essas inquietações seguiram reverberando na sua prática, desde lá, para se
expressar numa dada concretude da realidade atual.
Mesmo ainda não tão precisas, aquelas inquietações conformavam: a) uma
preocupação com o conteúdo da formação em medicina; b) o sentimento de que ser
médico implicava a formação da consciência, o exercício da responsabilidade e do
compromisso em relação ao outro e c) a percepção de que a participação livre e
democrática da sociedade na problematização da questão saúde seria o caminho mais
adequado para a síntese e implementação de políticas públicas abrangentes, na
perspectiva do acesso à qualidade de vida.
No centro dessas inquietações, pode-se dizer que havia uma especulação
teórico-prática sobre a possibilidade de construção de uma práxis médica que se
orientasse pela perspectiva da produção da saúde
1
, nas suas dimensões individual e
coletiva. Três ordens de questões redobravam essas preocupações: o poder nas
instituições médicas, públicas e privadas; o sentido mercadológico preponderante na
organização da prática médica; e o potencial desumanizador que se explicitava nessa
prática, nos modelos de assistência vigentes.
Essas discussões, que derivavam do contexto sócio-econômico, político e
ideológico, atingiam a educação médica e, assim, produziam o combustível fundamental
para os embates internos e externos aos movimentos sociais, entre eles, o estudantil,
particularmente, o movimento dos estudantes de medicina. Parte significativa desse
1
A medicina tradicional, dominante no mundo ocidental contemporâneo, sempre orientou a sua prática
no sentido da intervenção assistencial sobre a doença. E mesmo quando se volta ao indivíduo doente, este
é absorvido do ponto de vista de um organismo humano avariado; uma espécie de máquina, como sugere
a metáfora cartesiana, que precisa ser reparada, medicalizada, curada. Um indivíduo descontextualizado e
desprovido de quaisquer qualificativos que não os puramente biológicos, ainda que o seu reconhecimento
social seja possível. Um reconhecimento, na maioria das vezes, feito de forma não integrada. Ou seja, o
ser social e o ser biológico não são percebidos como uma unidade, mas como coisas estanques e
separadas, do ponto de vista do processo saúde-doença.
25
movimento denunciava, rejeitava e resistia ao modelo flexneriano
2
de educação médica,
que privilegia uma prática médica curativa, individual, tecnificada, especializada e
centrada no atendimento hospitalar.
A denúncia, a rejeição e a resistência guardavam relação com a dificuldade
de acesso da maioria da população a essa modalidade de atenção médica, dado o seu
custo alto e crescente. Há de se reconhecerem, entretanto, os limites práticos e objetivos
do movimento dos estudantes que, além do mais, expressava-se em meio a uma
conjuntura muito desfavorável, em função da situação política e social do país. Depois,
cabe reconhecer que a sensibilidade para questões sociais e econômicas e, portanto, de
cunho mais ideológico, não era, como não é ainda hoje, um traço comum dos estudantes
de Medicina, quase todos pertencentes às camadas mais abastadas e afeitas a valores
materiais, hábitos e tradições convencionais. Apenas as lideranças mais combativas e
atuantes desse movimento detinham uma identidade política e social mais ampla, que se
expressava em outros coletivos que não aqueles mais comuns nas faculdades de
Medicina.
A construção da consciência sanitária impelia aqueles que participavam dos
movimentos sociais da época a um raciocínio de integração dessas três questões. O
espaço dessa integração era a Saúde Coletiva
3
que, naquele momento, construía-se
como campo teórico interdisciplinar e como espaço de práticas de resistência e crítica à
mercantilização da medicina e a forma de organização do Sistema Nacional de Saúde.
Para esse campo, a formação em saúde, a prática médica e as políticas de saúde
formavam uma unidade, uma totalidade na realidade e na consciência, enquanto
concreto pensado. Restava, pois, o trabalho de disputar espaços na sociedade, no sentido
de se passar do mundo concreto a uma realidade transformada.
A formação teórica buscada no universo da Saúde Coletiva vinha reforçar
conhecimentos, expandir a visão de mundo e a capacidade crítica, oferecendo os
fundamentos para um repensar do próprio mundo, a partir da realidade em que se estava
2
Referência à filosofia de Abraham Flexner, profissional da educação, contratado no início do século XX
pelos governos americano e canadense para enfrentar a crise da formação médica naqueles dois países.
3
Saúde Coletiva é uma expressão que designa um campo de saber e de práticas referido à saúde como
fenômeno social e, portanto, de interesse público. As origens do movimento de constituição desse campo
remontam ao trabalho teórico e político empreendido pelos docentes e pesquisadores de departamentos de
instituições universitárias e de escolas de Saúde Pública da América Latina e do Brasil, ao longo das
últimas décadas. Esse campo nasceu da crítica aos sucessivos movimentos de reforma em saúde –
originários da Europa e dos Estados Unidos – a saber: Saúde Pública e Higiene, Medicina Preventiva,
Medicina Comunitária, Medicina de Família, Atenção Primária à Saúde. O movimento dessa crítica é que
delineou, de forma progressiva, o objeto de investigação e as práticas em Saúde Coletiva.
26
imerso. A formação prática nos seus campos de treinamento, representada pelos
municípios associados ao programa de pós-graduação, oferecia o substrato para a
organização e operação de sistemas locais de saúde e para a prática médica em atenção
primária
4
. Nesses municípios, favorecidos pelas experiências vividas nos movimentos
mais gerais durante a graduação, podia-se reconverter parte do conhecimento
acumulado nas experiências práticas de saúde. Era privilegiado o contato com a
população que, nas suas necessidades conscientes ou inconscientes, cobrava ou esperava
soluções para os seus males, os nossos males. Lá se exercitavam os conflitos próprios
da organização do sistema de saúde, da formação e das próprias práticas em saúde,
porém, com um diferencial: a liberdade de exercitar neles a implementação de algumas
mudanças na sua condução e nas suas práticas
5
, mesmo que apenas temporariamente e
por um período curto.
A entrada para a Universidade, como docente, tornou-se conseqüência
lógica dessa trajetória inicial. Atuando no Centro de Ciências da Saúde da Universidade
Federal da Paraíba (CCS/UFPB) voltado para a saúde coletiva, passava-se a conviver
com outros atores no ensino, na pesquisa e na extensão (graduação e pós) e com o ofício
de desvendar com eles as particularidades e singularidades envolvidas nas contraditórias
relações sociais que resultam no processo saúde-doença, no adoecer e morrer da
população e nas políticas de saúde que, em tese, são levadas a efeito para fazer frente
aos problemas de saúde. Esse contato renovava a compreensão de que a vida só nos leva
a caminhos, possibilidades e circunstâncias que nós mesmos construímos.
4
A opção por esse campo foi oportuna em vários sentidos. Primeiro, porque abriu espaço à pós-
graduação em Medicina Preventiva e Social, um lócus de resistência ao modelo tradicional de medicina e
sua prática médica. Depois, pôde-se recusar o modelo médico-assistencial formal, privatista ou público e
evitar a submissão tanto ao esquema de assalariamento proposto pelo regime hospitalocêntrico quanto ao
caos da atenção primária praticada nos municípios, que também levava ao assalariamento, só que de
natureza estatal. Recusava-se, igualmente, a prática médica baseada no poder médico centralizado,
autoritário e antidialogal.
5
A Residência em Medicina Preventiva e Social da UFPB, operada a partir do Departamento de
Promoção da Saúde, do Centro de Ciências da Saúde, do ponto de vista legal, selecionava apenas
médicos, por ser credenciada pela Comissão Nacional de Residência Médica da SESU/MEC. Porém,
como funcionava conjuntamente com outro programa, aberto para as demais profissões da saúde e que
formava especialistas em Saúde Pública sob a forma de residência, financiado pelo INAMPS/MPAS,
éramos, na prática, uma Residência Multiprofissional. Isso foi fundamental para a construção de saberes
coletivos com bases não só multiprofissionais mas também interdisciplinares, o que enriquecia a
compreensão crítica do processo saúde-doença e, ao mesmo tempo, a produção e execução de propostas
de atuação junto às comunidades em que exercíamos as nossas práticas. A idéia da saúde, enquanto práxis
social, poderia não apenas ser teorizada, mas, sobretudo, construída, partilhada, vivenciada, num
movimento tenso e, por vezes, complicado, ainda que dialógico.
27
No campo da pesquisa, vale destacar uma experiência vivida na Construção
Civil
6
, a partir de um trabalho de intervenção e assessoria ao sindicato de trabalhadores
daquela categoria. Naquela oportunidade, desenvolveu-se, entre várias iniciativas, uma
prática médica ambulatorial baseada na proposta de atenção à saúde do trabalhador e
pesquisou-se a relação trabalho e saúde-doença, em que foi empregada a metodologia
do modelo operário
7
, conjugando a experiência e o saber científico da academia com o
saber e a experiência dos operários.
Talvez tenha sido essa uma experiência basilar em termos de prática
médica, por meio da qual se pode - com base em aprendizagens anteriores e na
acumulação de novos saberes aprendidos com colegas médicos, profissionais da área de
saúde e de fora dela, pesquisadores e trabalhadores - articular os elementos que viriam a
fomentar a reflexão sobre a possibilidade concreta de se poder exercer uma prática
médica horizontalizada, democrática, participativa, dialógica, capaz de elevar-se à
categoria de uma práxis médica e, ainda, ajudar a construir o campo da saúde do
trabalhador, na Paraíba.
O acúmulo e a vivência dessa experiência implicaram a aproximação com o
Projeto Escola Zé Peão
8
, onde foi travado um diálogo, ora com a coordenação do
projeto e seus alunos/educadores, na formação de competências para o trabalho
educativo com os operários das indústrias da Construção Civil e do Mobiliário de João
Pessoa, ora com os próprios trabalhadores com quem foi mantido contato em visitas aos
canteiros/salas de aula para diálogos sobre temas específicos da saúde e da atenção em
saúde, numa tentativa de desenvolver estratégias de compreensão do processo
saúde/doença no contexto do trabalho na construção civil e das suas próprias vidas, uma
6
Essa experiência envolveu docentes, estudantes de graduação e de pós-graduação, reunidos em torno do
NESC/CCS/UFPB e do SEAMPO/CCHLA/UFPB. Conferir em: ARAÚJO, L.M. – Trabalho e Saúde-
Doença nas Indústrias da Construção Civil de João Pessoa (PB). Dissertação de Mestrado.
MCS/CCHLA/UFPB, João Pessoa, 1995.
7
Metodologia forjada pelo movimento operário italiano, em contato interdisciplinar com técnicos e
pesquisadores de várias áreas do conhecimento. Essa metodologia firmava-se nos seguintes princípios:
valorização da experiência e da subjetividade dos operários; não delegação da produção de conhecimento;
na formação de grupos homogêneos de trabalhadores para reflexão; e na validação consensual das
informações e análises. Ver: ODDONE, I. et al. – Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela
saúde. São Paulo, CEBES/HUCITEC, 1978.
8
Trata-se de uma experiência de Educação de Jovens e Adultos, desenvolvida conjuntamente pelo
Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil e do Mobiliário de João Pessoa –
SINTRICOM – e pelo Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba – CE/UFPB. A Escola Zé
Peão funciona nos canteiros de obras da construção civil, desde 1991, tendo uma metodologia de trabalho
inspirada na filosofia e pedagogia freireanas.
28
oportunidade em que todos, de certa forma, reorganizaram o próprio conhecimento, na
perspectiva de construção da cidadania
9
.
Complementa a trajetória de experiências a atuação na gestão do Sistema
Único de Saúde, nas suas esferas estadual e federal, e na gestão das práticas
profissionais de saúde na atenção primária da Estratégia Saúde da Família
10
. Através
dessas atividades, foi possível sentir as contradições existentes entre a utopia e a
realidade do ofício de pensar e fazer saúde num país tão complexo, desigual e
multifacetado como o Brasil. Trabalhando de forma direta e indireta, com as
contradições das políticas de saúde e da prática médica no interior das equipes de saúde
e mesmo fora delas, foi possível pesquisar as dificuldades desses profissionais num
trabalho que exige integração e parcerias multiprofissionais, interdisciplinares e
comunitárias.
2.1 A pergunta inicial
A área da Saúde Coletiva é um espaço privilegiado no desenvolvimento de
análises e reflexões sobre as práticas em saúde, em particular, sobre a prática médica,
entendida para além das técnicas ou procedimentos de atendimento ao paciente
11
ou à
9
Para uma noção mais exata da experiência, sugere-se a leitura do ensaio que versa sobre a construção do
currículo relativo à saúde no Projeto Escola Zé Peão, em que se analisa como alguns elementos da
pedagogia freireana entram na discussão da saúde e são introduzidos no currículo específico do projeto,
com a finalidade de reorganizar o conhecimento dos seus educadores e educandos. Na discussão, a saúde
é entendida como síntese de múltiplas determinações e trabalhada como uma das questões nodais na
construção da cidadania de educadores e educandos. ARAÚJO, L.M. – Saúde e educação popular: a
organização do conhecimento a partir das experiências e do “mundo da vida”. João Pessoa, mimeo sd.
10
A Estratégia Saúde da Família é a política do Ministério da Saúde para a atenção básica à saúde da
população, desde 1994, quando começou a ser implantada. Apesar do batismo inicial dessa política como
Programa de Saúde da Família (PSF), designação que se mantém no uso geral e, muitas vezes, nos
próprios documentos oficiais, o próprio Ministério da Saúde, posteriormente, adotou em documentos
onde explicita de forma mais profunda a sua metodologia de trabalho nessa área de atenção à saúde, o
termo Estratégia, querendo afirmar o potencial reorganizador e transformador que essa iniciativa pode
encerrar, na medida em que aprofunde o seu caráter de horizontalidade e inclua, em efetiva construção,
todos os personagens que fazem parte da sua cena: população, profissionais, gestores e fazedores de
políticas, motivo pelo qual adotaremos neste trabalho a mesma expressão.
11
O termo paciente ficou consagrado na linguagem médica como pessoa doente, que está sob cuidados
médicos ou que se submete ou espera o resultado de um exame. Entretanto, há outras palavras que, na
área da saúde, designam a mesma condição, como é o caso do termo cliente, mais comum na linguagem
da medicina privada ou liberal. Há ainda o termo usuário, cunhado mais recentemente para designar
aquele que interage com uma ação ou serviço de uma política pública (a política de saúde, por exemplo).
É o termo mais utilizado hoje, nos documentos oficiais da saúde e na linguagem dos movimentos sociais,
até para tentar fugir de outros significados que o termo paciente adquiriu na língua portuguesa e que, no
29
uma comunidade. O uso crítico desse espaço tem permitido que se chegue ao
convencimento de que a Medicina, como área de conhecimento e campo específico de
práticas, não é capaz de, sozinha, dar respostas para a maioria das perguntas que a
realidade de vida e saúde do povo impõe.
Uma dessas evidências está no desenvolvimento da Estratégia Saúde da
Família (ESF) como política de atenção básica à saúde, derivada do Sistema Único de
Saúde (SUS). Essa Estratégia, que já superou as vinte e sete mil equipes de saúde
implantadas no país, vem incorporando o planejamento na gestão, execução e avaliação
das suas ações e serviços. Mas, por mais que se tenha avançado e produzido com esse
modelo de atenção, tanto do ponto de vista da extensão de cobertura com a medicina
clínica quanto da compreensão social do fenômeno saúde-doença, velhas e novas
perguntas se multiplicam, cobrando respostas e promessas até então não cumpridas por
esse campo da atenção primária de saúde.
Essas perguntas reclamam novas formas de abordagem, novas técnicas e
novos olhares sobre situações que compõem o processo saúde-doença da população,
talvez ainda não resolvidas por conta de insuficiências nas práticas profissionais – a
prática médica em particular – que resultam dos modelos de formação, atenção e gestão,
empregados, até então, no âmbito das políticas conformadoras do setor de saúde.
A realidade de trabalho da ESF coloca o médico diante de novas relações
interprofissionais, sociais e comunitárias, reclamando dele, como dos demais
profissionais de saúde ali inseridos, novas formas de abordagem e novos olhares sobre
situações que compõem o processo saúde-doença da população. Coloca o médico numa
arena que exige a transformação da sua prática, pois o processo de trabalho tradicional
não se coaduna com as exigências feitas pelo PSF, mas oferece um terreno fértil para
que novas possibilidades possam florescer e gerar acumulação para a prática
profissional do médico e para a vida dos que o rodeiam.
A preocupação com essa problemática leva à compreensão de que avanços
foram conseguidos, porém o inconformismo em relação à prática médica tende a
continuar. As respostas práticas e, sobretudo, as frustrações diante de obstáculos
insuperáveis, pelo menos em curto prazo, trazem novas interrogações que brotam em
caso da afirmação dos direitos de cidadania, são tidos como pejorativos, por conotarem o seu não
exercício. É que o termo paciente também é denotativo daquele que sofre ou é objeto de uma ação, ou
daquele que recebe a ação praticada por um agente ou que é vítima de abuso ou de ilegalidade do poder.
Define o padecente, o resignado, o conformado. Considerando o exposto, os vários termos serão
utilizados, cada um dentro do seu contexto e significação.
30
forma de incertezas e dificuldades, impulsionando os pesquisadores para a tarefa de
pensar e levar em frente reflexões e questionamentos sobre as possibilidades da prática
médica. Nesse sentido, faz-se um questionamento inicial: É possível para a prática
médica transformar-se em práxis médica, na Estratégia Saúde da Família?
A resposta a esse questionamento será afirmativa, mesmo que uma série de
reflexões ainda possa ser feita, expondo as contradições, as fragilidades e a tensão
vivida pela prática médica no interior da ESF. Afinal, a prática médica não se encerra
numa estratégia ministerial nem nos sistemas locais de saúde, ainda que ali esteja o seu
lócus. A saúde também não se encerra na atenção. É uma construção social, sendo a
dinâmica sociedade o condicionante por excelência da sua produção.
2.2 A prática médica
Historicamente reconhecida como procedimento da atenção à saúde, a
prática médica tem a sua referência original na medicina hipocrática, nascida e
desenvolvida no contexto da Grécia Antiga – sociedade onde o diálogo era privilegiado
como método para a elevação do conhecimento e dos valores éticos humanos. O diálogo
estava inserido na prática médica grega e constituiu muito do que se apreendeu da
medicina hipocrática. Mas, ao longo da história humana, a medicina e a sua prática
foram afastando-se desse valor ético ao assumir outras atitudes. Por conta disso, o que
se tem, na era contemporânea, é uma prática que quase esqueceu aquele ensinamento ao
ser aprisionada pela técnica e pelo exercício de um saber centrado no profissional de
saúde, ou seja, no médico e nas tecnologias que são postas ao seu serviço.
Considerando-se as reflexões produzidas por Fernandes (1993), pode-se
dizer que, de certa forma, o desenvolvimento da medicina, ao tomar o caminho definido
pela ciência, produziu rebatimentos negativos na relação dialógica do médico com o seu
outro, especialmente com os usuários dos seus serviços.
Com o desenvolvimento da anatomia patológica, o interesse médico foi se
voltando cada vez mais para as estruturas internas do organismo, à busca de
lesões que justificassem as doenças e, com isso, a importância do sujeito foi
se tornando cada vez mais secundária. Construiu-se uma nosologia baseada
na generalização dos achados anatômicos, sem lugar para o que não possa ser
referido ao corpo doente ou, mais especificamente, a órgãos doentes. O lugar
31
do indivíduo passou a ser de portador de lesões, estas sim, vistas com
interesse e positividade pelo médico. (FERNANDES, 1993, p. 3)
A constatação de tal realidade revela uma contradição, porquanto a prática
médica supõe a existência, a presença e a participação do outro, e não, o seu alijamento.
A idéia da alteridade é inerente às relações humanas, às relações sociais e, por
conseqüência, à prática médica. O distanciamento ou a anulação do diálogo na relação
médico-paciente deixa de ser, pois, apenas uma contradição para se constituir em algo
desumanizador. À verificação e à compreensão de que a prática médica é uma expressão
da própria sociedade, coube o esforço de buscar as contradições, assim como as
possibilidades implicadas nos “quefazeres” da saúde, resultantes da prática médica, tal
qual esta se apresenta nos dias atuais.
A prática médica insere-se no âmbito do trabalho em saúde. É uma prática
reflexiva, porque as decisões a serem tomadas têm implicação na vida e na saúde das
pessoas. Exige, portanto, uma atitude ético-política e uma composição de saberes que
provêm da formação geral (social e humana) do médico, da sua formação técnica
específica e das experiências acumuladas por ele nesses dois âmbitos. Por sua
especificidade, mesmo que não escape à lógica da produção material – responsável, em
última análise, pelas relações humanas – sua normatização técnica nem sempre pode ser
rígida, o que impõe certos limites e dificuldades para uma avaliação mais objetiva da
sua produção. (DELUIZ, 2001, p. 08)
Sendo uma prática social, pois resulta da interação entre os homens, essa
interação é mediada por um conjunto de condições e regras instituídas (ou construídas)
socialmente. Essas situações estão condicionadas pelos aspectos econômicos,
filosóficos, éticos, científicos e técnicos que as envolvem. Assim, reafirmar o caráter
social da prática médica implica ressaltar o seu potencial transformador. A realidade,
entretanto, parece indicar que esse potencial anda esquecido ou, pelo menos, não
aproveitado de modo efetivo
12
pelos atores envolvidos nas relações que se dão a partir
dela. Essa constatação revela um primeiro óbice à sua elevação à categoria de práxis.
12
A efetividade deve ser entendida, aqui, como um conceito que resulta de uma síntese de dois outros:
eficiência e eficácia. Eficiência, enquanto capacidade de manejar integralmente o conjunto de recursos
existentes e presentes numa determinada ação; e eficácia, como a capacidade de auferir resultados
positivos a partir de uma ou de um conjunto de ações.
32
2.3 A práxis como categoria teórica
A práxis, como ação individual ou social, é uma problemática central na
Filosofia e na Sociologia. E o é, particularmente, para a filosofia marxiana, sobretudo
quando esta aborda a produção material e intelectual do homem, tal qual está exposto
nos Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844. Marx afirma que, assim como a
sociedade produz o homem, esta é, ao mesmo tempo, produzida por ele. Essa produção
resulta da práxis humana e engloba o trabalho propriamente dito, mas, também, as
demais atividades que se objetivam em relações sociais, institucionais, científicas e
artísticas. A práxis é, portanto, a consciência humana objetivada a partir da sua visão de
mundo.
Na tradição marxista, ela pode ser entendida, sob o ponto de vista de
Vázquez (1977), como algo que se traduz na produção e autocriação do homem. Para
esse autor, falar de práxis significa falar da capacidade criadora e transformadora do
homem, da capacidade que ele detém de estar, a partir da sua ação/reflexão/ação,
criando e enfrentando novas necessidades, novas situações e soluções, recriando, nesse
movimento, a si próprio e aos que estão ao seu redor.
A discussão sobre práxis aparece com destaque em Gramsci (1978). Ele
utiliza o termo filosofia da práxis numa concepção em que assimila a unidade teoria-
prática
13
. Um momento importante dessa discussão é a crítica à décima primeira tese de
Marx sobre Feuerbach, onde está escrito que o papel do homem é mudar o mundo, e
não, apenas interpretá-lo. Escreve nos Cadernos do Cárcere que essa tese não deve ser
tomada como um gesto de repúdio a qualquer espécie de filosofia, mas como afirmação
da unidade teoria-prática. Gramsci concebe que o indivíduo não pode ser separado do
pensamento, o homem, da natureza, a atividade, da matéria nem o sujeito, do objeto.
Enveredar por essas separações pode implicar um conjunto de abstrações estéreis ou
uma das formas de religião.
Considerando as várias atividades humanas, esse pensador define o homem
como um ser em permanente processo. Na sua concepção, o homem não entra em
13
A unidade teoria-prática em Gramsci deu lugar a um conjunto de discussões que fogem ao objetivo
central deste trabalho, mas que, sendo da maior importância para a Sociologia contemporânea, abriu
espaço para que esse pensador definisse uma série de conceitos capazes de interpretar o mundo com suas
estruturas e seus diversos sujeitos: hegemonia, bloco histórico, intelectual orgânico, aparelho de
hegemonia, revolução passiva, novo senso comum, conformismo de massa, são alguns desses conceitos.
33
relação com a natureza simplesmente por ser ele mesmo natureza, mas por meio do
trabalho e da técnica. Entendido individualmente, ou como um todo social, não só
compreende as contradições da sociedade, mas põe a si mesmo como elemento da
contradição e eleva esse elemento a princípio de conhecimento e de ação.
Entendido dessa forma, o homem é síntese das relações existentes e da
história dessas relações. Isso o remete ao passado. Entretanto essa relação com o
passado não compromete a sua possibilidade de mudar o mundo, uma vez que esse
homem pode se associar aos demais, desejosos da mesma mudança. E caso essa
mudança seja racional, poderá ser obtida uma mudança bem mais radical do que aquela
que, à primeira vista, pode parecer possível.
A práxis, no pensamento gramsciano, é construção de vontade coletiva. E
esta corresponde às necessidades que emergem das forças produtivas objetivadas ou em
processo de objetivação, bem como da contradição entre essas forças e o grau de cultura
e de civilização expresso pelas relações sociais. Está implícito nela, que aparece como
uma concepção filosófica, uma série de ciências da natureza e do homem. Tomadas
isoladamente, tais ciências podem ser consideradas como independentes, porém,
consideradas como expressão da possível contradição entre atividades criativas e
relações comunicativas de tipo social, passam a fazer parte da filosofia da práxis e,
desse modo, podem influir sobre a política, isto é, aquelas mudanças que tornam um
indivíduo ou um grupo capaz de entrever um novo modo de viver e níveis superiores de
civilização.
2.4 A teoria da práxis na saúde
Considerando-se a especificidade da práxis em saúde, o seu estudo convida
à utilização de algumas categorias básicas, presentes nas teorias sociológicas. Dentre
essas categorias, duas aparecem, devido à repercussão filosófica que têm tido e às
implicações teóricas e práticas que têm gerado a partir do viés da saúde coletiva:
estrutura e sujeito. Para Minayo (2001), utilizar esses conceitos constitui-se uma
necessidade, porquanto eles poderão possibilitar um duplo movimento, ora de alargar,
ora de estreitar a compreensão, sobretudo em face das teorias que enfatizam o
determinismo do social como exigência para se compreender o objeto saúde; das
34
correntes que conferem um papel ativo à subjetividade; do debate atual inspirado nas
teorias complexas e das repercussões dessa tensão teórico-prática no campo da saúde.
Originário do pensamento das ciências exatas, o termo estrutura data da
transição entre os séculos XVI e XVII e traduz o conjunto de elementos e o modo como
um edifício é construído. Diz da inter-relação das partes constituintes do todo de uma
construção. Mas o conceito de estrutura, mesmo tendo nascido nas ciências exatas, não
se circunscreveu apenas a elas e invadiu as ciências sociais. Durkheim (1985), Marx e
Engels (1986) e Radcliffe-Brown (1973) foram alguns dos pensadores que, em
diferentes perspectivas, serviram-se da idéia de estrutura, no seu sentido figurado, para
o desenvolvimento de suas teorias.
Lévi-Strauss (1974) introduziu o pensamento estruturalista na antropologia,
e Althusser (1980) trouxe para o marxismo toda a força da idéia de estrutura,
constituindo o que se convencionou chamar de marxismo-estruturalista. Ambos
tentaram compreender o homem e a sua ação na sociedade a partir desse conceito, que
Merton (1970) também adota ao desenvolver sua teoria, aproximando-o do conceito de
função, de análise funcional, para entender os tipos ideais de papéis sociais
desempenhados pelos sujeitos dentro das intrincadas redes de relações em que vivem.
Spencer (1885) foi o primeiro a utilizar esse conceito nos seus estudos.
Fazia uma associação direta entre estrutura e função, em analogia com o desempenho
anatômico do corpo humano, para indicar aquilo que se constitui como aspectos estáveis
e conformadores da realidade e os elementos de sua constante atualização. Essa
transferência dos termos das ciências biológicas está presente durante todo o
desenvolvimento da Sociologia de forma problemática, pois, como o mostram vários
críticos sociais, entre a realidade social e o mundo biológico existem profundas
diferenças qualitativas.
A noção de sujeito, da mesma forma que o conceito de estrutura, não é
consensual nas teorias sociológicas. Ela aparece nas ciências sociais em contraposição
às correntes estruturalistas. As teorias compreensivas enfatizam o lugar do sujeito e da
subjetividade na construção social e, a partir daí, analisam as estruturas sociais. É o caso
das teorias fenomenológicas, interacionistas e da ação, estas explicitamente. Sujeito
individual, sujeito coletivo, sujeito histórico e sujeito cultural são alguns termos que as
diversas abordagens sociológicas marxistas utilizam, quando tratam dessa questão.
Pode-se dizer que o papel do sujeito está bem definido no Manifesto
Comunista, quando Marx e Engels definem os elementos da transição de uma formação
35
socioeconômica para outra e colocam o homem como sujeito dessa transformação
histórica. Para eles, o papel do homem (sujeito) na história nem é espontâneo nem
automático, mas resultante do desenvolvimento da sua consciência na relação com os
outros homens. Por isso, a afirmação de que a história não faz, não realiza lutas, não
possui. O homem é que faz, luta, realiza e possui tudo. A história não é senão a
atividade do homem que persegue seus fins. Nessa atividade, estão em jogo as questões
do ser humano, da liberdade, da alienação, das forças da luta de classes na história e das
forças subjetivas em conflito e confronto pelo domínio dos processos sociais.
Talvez, por isso, a questão do papel do sujeito na história tenha ocupado
tanto os marxistas, a partir da segunda parte dos anos 70, como comenta Anderson
(1984), ao afirmar que a importância dessa questão para o marxismo reside na natureza
das relações entre estrutura e sujeito na história e nas sociedades humanas. O autor
refere que esse é um tema central no materialismo histórico como explicação de seu
desenvolvimento, sempre com permanente oscilação da compreensão das contradições
entre forças produtivas e relações de produção no papel de motor primário de
transformação histórica. Essa é uma discussão que, de tão importante, ocupou espaço
considerável na obra de autores importantes, como Lukács, Sartre, Gramsci, Thompson,
Kosic, Schaff, dentre outros.
Thompson, que está entre os mais importantes marxistas do século XX,
empenhou-se, nas suas pesquisas, em fazer uma releitura do marxismo. Uma releitura
que apresenta discussões inovadoras referentes à questão do determinismo econômico e
a aspectos considerados fundamentais no materialismo histórico. Seus estudos, dando
ênfase à questão da cultura, proporcionaram um novo vigor à forma de pensar acerca da
experiência da classe trabalhadora, ressaltando a sua resistência
14
.
O percurso teórico de Thompson, em oposição à tradição stalinista e à visão
althusseriana, traz contribuições importantes para a compreensão das transformações
ocorridas no mundo contemporâneo. Com acuidade e intensa investigação histórica, foi
empreendendo um novo modelo de pesquisa dos fenômenos históricos, mantendo o
rigor teórico, dialogando com a empiria e mostrando que a experiência de homens e
mulheres, na produção de sua vida material, está relacionada à cultura e seu uso no
cotidiano das lutas travadas. Nesse sentido, aproxima-se de Paulo Freire, que considera
14
Thompson é considerado um dos mais significativos teóricos da contemporaneidade. Tem influenciado
os estudos no campo da história desde os anos 80. Mais recentemente, a partir do final da década de 90 e
início deste século, sua abordagem teórica tem sido inserida no campo da educação, com significativa
recepção, embora ainda não tenha alcançado o patamar e a relevância que a sua teoria comporta.
36
o ser humano um ser inacabado e em construção. Um ser em relação, mediado pela
leitura do mundo, pela pronúncia da palavra e pela expressão da cultura, um domínio
em que suas experiências sociais se constituem enquanto posicionamento responsável e
ético. Freire (1996) afirma que não se podem negar os condicionamentos genéticos,
culturais e sociais a que estamos submetidos, mas, em nenhum momento, isso significa
que somos determinados. Nas suas palavras,
[...] Significa reconhecer que somos seres condicionados, mas não
determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de
determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático, e não,
inexorável. [...] seria incompreensível se a consciência de minha presença no
mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção
da própria presença. Como presença consciente no mundo, não posso escapar
à responsabilidade ética no meu mover-se no mundo. Se sou puro produto da
determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que
faço no mover-se no mundo, e se careço de responsabilidade, não posso falar
em ética [...] (FREIRE, 1996, p. 19).
Para Thompson, essa relação do ser humano com a cultura também é
primordial. Ele entende que é pela cultura que os hábitos, os valores, os costumes, as
tradições e os modos de ser dos atores sociais comuns se consubstanciam em suas
formas de produzir, de se relacionar entre si e de participar de um contexto social, num
dado período histórico
15
.
Em Formação da classe operária inglesa (1987), faz uma história social do
trabalho, tendo como lócus de análise o operariado inglês. Para ele, essa classe não
surgiu por acaso ou de um conjunto de reações em cadeia: “A classe operária não
surgiu tal como o sol numa hora determinada, ela estava presente no seu próprio fazer-
se” (THOMPSON, 1987, p. 89). Em Costumes em comum (1998), ele faz uma
abordagem a partir de uma história da cultura popular, voltando suas lentes para a
experiência cultural dos trabalhadores rurais ingleses pela via de suas tradições e
vivências diárias.
A noção de experiência adquire significado na constituição de suas obras,
tanto em Formação da Classe operária inglesa (1987) quanto em Costumes em comum
(1998) porque nela se vai delineando seu arcabouço teórico-metodológico e
empreendendo dimensionalidade a essa categoria. Na sua visão, foi na luta constante
15
No âmbito da tradição marxista, Thompson deu um novo enfoque para os homens e as mulheres
comuns, colocando-os no cenário, e não, nos bastidores, focando-os como protagonistas de sua própria
história, pois, ao fazer essa re-elaboração, empreende uma história que pode ser “vista a partir de baixo”,
ou seja, daqueles que, tendo participado do processo histórico, ficaram à margem dos seus holofotes.
37
travada nas experiências cotidianas que a classe operária inglesa foi-se constituindo
enquanto tal.
Observe-se, porém, que, diferente do que foi construído na obra Formação
da classe operária inglesa, na qual o foco analítico do autor repousou sobre o
operariado, em Costumes em comum, Thompson retrata a experiência cultural de
trabalhadores rurais, salientando seus hábitos e costumes, objetivando que, a partir de
suas experiências e vivências diárias, esses atores sociais se constituíram e, nesse
sentido, sua vida e consciência social foram se delineando. Especificamente quando
chama a atenção à experiência dos trabalhadores rurais, Thompson sublinha que
[...] experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses
sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco,
e reciprocidades, como valores ou (através de formas elaboradas) na arte ou
nas convicções religiosas (THOMPSON, 1998, p.189).
O conceito thompsiano de experiência pode ser um fio condutor interessante
na presente pesquisa, onde se procura articular a discussão do exercício da medicina e
sua aproximação com o campo da educação, ressaltando a possibilidade de elevação da
prática médica a uma práxis médica, cuja experiência se realizaria na Estratégia Saúde
da Família. O conceito pode ser tomado como referência para se pensar a questão da
saúde-doença e para que se analise o modo pelo qual a saúde da família tem sido uma
estratégia viável na experiência vivenciada por médicos, demais profissionais, gestores
e usuários participantes desse projeto.
Mais presentemente, Habermas (1989) ocupou-se da relação entre a
estrutura e o sujeito na perspectiva da sociologia crítica da Escola de Frankfurt. Em
Consciência moral e agir comunicativo, mostra a validade de se exumarem as
dimensões da racionalidade, as quais compreendem os conteúdos ético-normativos e
estético-subjetivos humanos. Na sua teoria, defende a necessidade de descolonização do
mundo vital submetido à razão prático-instrumental, dominada pela técnica e pela
tecnocracia.
Quando mira o sujeito, Habermas põe em relevo a concepção instrumental
que o mantém à margem e que olha os outros e o mundo como realização do
conhecimento e do poder. Em contrapartida a essa realidade, propõe a idéia de um
sujeito, em cujo desenvolvimento histórico se situe junto com os outros, e não, sobre os
outros, com o objetivo de compreender-se (a si e ao outro), entendendo o significado
das coisas sensíveis e do agir sobre e através delas no ato de prevalecer sobre elas.
38
Reconhece nos sujeitos a capacidade e a possibilidade da ação e vê nessa ação a
possibilidade da crítica capaz de produzir novas ações realimentadoras da sua
capacidade de julgar e definir um agir que busque a transformação.
Ao explicitar o sentido da filosofia de ação comunicativa, sustenta o
conceito de mundo da vida, um espaço social onde se dá o processo cooperativo
hermenêutico, em que os participantes de uma dada realidade se referem ao mundo
objetivo, ao mundo social e ao mundo subjetivo. Essa troca intersubjetiva se apóia,
segundo o autor, no tripé: a) crença nas verdades compartilhadas; b) acordo sobre regras
e normas reconhecidas; c) entendimento das manifestações de vivências subjetivas.
O elemento comum que parece unificar todas as abordagens é a concepção
do ser humano como criador das estruturas, embora estas, em alguma medida, passem a
condicioná-lo. A história figura como produto humano, e a transformação, como ação
humana sobre a história. Estrutura e sujeito constituem conceitos fundamentais
organizadores e diferenciadores de teorias, denotando uma visão particular a respeito
dos processos recorrentes e estáveis da sociedade e das situações de mudança
qualitativa, em particular, do papel produtivo e criativo da subjetividade na construção
do mundo social. Ademais, dentro de posições e premissas diferentes, consciente ou
inconscientemente, muitos pensadores sociais trabalharam/trabalham a temática da
estrutura e do sujeito, ou seja, das permanências e das transformações.
2.5 A práxis em saúde: diálogo
Esta pesquisa propõe a análise das possibilidades de acumulação
16
da prática
médica, na perspectiva da práxis – vale dizer enquanto atividade educativa, dialógica –
num contexto, de partida, já contraditório, se considerados os registros relativos aos
modelos de sociedade, de escola e de política social vigentes no país. Ambas
16
O conceito de acumulação, aqui, é emprestado do Planejamento Estratégico Situacional (PES) e do
Método ALTADIR de Planificação Popular (MAPP), no sentido de salto de qualidade, de ganho
individual e coletivo, auferido a partir da construção coletiva de atores sociais que discutem, planejam,
avaliam e redefinem, de forma pactuada, a sua prática. Para maiores detalhes, ver: MATUS, C.
Planificacion, Política y Gobierno. OPS, Washington D.C. 1987.
39
condicionam as práticas sociais, em geral, e a prática médica, em particular, como
expressão da atenção à saúde.
Nesse sentido, é importante reconhecer que se vive numa sociedade
globalizada, antidialogal e autoritária, conforme já criticava Freire (1987) em
Pedagogia do Oprimido. E, nesse caso, é preciso que não se confunda diálogo com
comunicação e com informação pura e simples, mesmo que esses dois elementos sejam
fundamentais para que ele aconteça. O diálogo pressupõe a comunicação e a
informação, mas, antes de tudo, pressupõe entrega, troca, confiança, fraternidade e
honestidade de propósitos humanos.
O fato de se ter avançado sob o ponto de vista da democracia e da afirmação
de conquistas sociais no terreno da cidadania, em vários setores, entre os quais se
podem incluir as conquistas do setor saúde
17
, não é suficiente para que se deixe de
reconhecer que se vive, ainda, numa sociedade autoritária. Isso pode ser constatado nos
serviços e nas ações de saúde, mas, também, nos demais serviços e ações ligados às
políticas sociais, inclusive os de educação, quando resistem à partilha, à participação, à
discussão e ao controle social (controle externo). O autoritarismo é avesso ao diálogo.
O homem traz da sua ontologia (LUCÁKS, 1979) e ontogenia
(MATURANA; VARELA, 2001) traços de individualidade
18
e competição que, a
depender das condições histórico-sociais, econômicas e culturais, poderão levá-lo a uma
ética da retração, da evitação e da escusa ao diálogo
19
. Isso aparecerá de forma mais
enfática, no capitalismo, como filosofia e como prática econômica que, resultando
desses traços dos seres humanos, aprofundou neles uma ética fundada no
17
O fim da ditadura militar, o processo de redemocratização do país e o ascenso dos movimentos sociais,
populares e sindicais resultaram na chamada Nova República e num processo constituinte que introduziu
na Constituição Federal um sem-número de direitos de cidadania, a ponto de essa carta constitucional ter
sido apelidada de Constituição Cidadã. Foi exatamente nesse processo constituinte que se conseguiu a
criação do Sistema Único de Saúde.
18
Lembrar que “A individualidade é uma categoria social e, por isso, sua explicação não se contrapõe
antinomicamente à sociabilidade, antes exige uma interação cada vez mais intensa entre a totalidade
social e o indivíduo singular [...] Essa exigência no seu patamar mais elevado é a ética; é esta que ata os
fios entre o gênero humano e o indivíduo que supera sua própria particularidade” (LUKÁCS, 1981, v. II,
p. 328).
19
No sentido de Lukács (1979), a distinção entre o gênero humano em-si e o gênero humano para-si
explica a qualidade das ações dos indivíduos. Há aquelas ações que asseguram a conservação do status
quo social (gênero humano em-si), em que o peso da heteronomia é particularmente forte; e aquelas ações
que têm como objetivo uma auto-afirmação humana, ou o desenvolvimento de uma personalidade
autêntica e livre (gênero humano para-si). Nessa distinção, a ação ética foi considerada por Lukács como
momento privilegiado da práxis social, locus onde se realiza a autodeterminação do gênero humano para-
si, livre e autônomo.
40
individualismo, uma ética que os transforma, antes de tudo, em seres da competição ao
invés de seres do diálogo. Essa competição é, muitas vezes, predatória, astuta, manhosa,
planejada, para que cada um dos competidores se esmere no alijamento do outro, no
sentido de tirá-lo do seu caminho com o fito de alcançar seus objetivos
20
. A ética
capitalista é, na sua essência, antidialógica.
O que se vive no dia-a-dia das relações familiares, das relações em saúde,
das relações sociais, em geral, produtoras da vida cotidiana, envolvendo pessoas das
diversas classes sociais, povos, nações e etnias, pode dar essa medida. Há uma aura de
aparthaid em diversas dessas relações. Há beligerância explícita, declarada e recusa ao
diálogo e à paz. E isso tem feito prosperar sentimentos e atitudes que denotam, cada vez
mais, o ceticismo de que os homens possam construir ou transformar as suas estruturas
e as suas relações.
É uma das idéias mobilizadoras desta pesquisa a busca da possibilidade de
contração de relações sociais, interpessoais, interprofissionais e comunitárias, com força
para criar prospectivas para uma pedagogia capaz de formular elementos para a
construção coletiva de estratégias educacionais, com potencial para responder
socialmente às insuficiências da capacitação formal dos profissionais médicos. Essas
possibilidades estariam no exercício de uma práxis social educativa, dialógica e popular
capaz de reforçar a população e os profissionais como sujeitos das ações e dos serviços
de saúde.
Quando se está falando de uma práxis médica com esses qualificativos, não
se está falando apenas do médico, mas da relação que se constrói a partir da prática
médica. Isso dá sentido a uma discussão que se quer fazer na linha da quebra da
distância na relação do médico com os seus outros, sejam eles os usuários do seu ato, os
seus parceiros de trabalho na equipe de saúde, sejam os gestores das estruturas de saúde.
20
A se tirar pelas guerras e pelas intervenções militares ou políticas, parece haver em frações muito bem
definidas da sociedade mundial uma necessidade, quase que doentia, de dominar o outro, de subjugar
determinados grupos, povos ou nações para lhes impor idéias, ideologias ou interesses, sejam eles quais
forem. Por isso essas frações são cada vez mais arrogantes e narcisistas, fundamentalistas mesmo. E como
se vive num grande processo de globalização, também constituído historicamente, essas atitudes vão, aos
poucos, reproduzindo-se para outros campos e povos, o que representa uma ameaça à humanidade e,
conseqüentemente, às relações dialógicas, as quais dão sentido ao nosso caráter de humanos. As relações
sociais na saúde não fogem a esse comportamento e constituem o exemplo mais importante em se
tratando deste trabalho.
41
2.6 O território como espaço do diálogo na práxis médica
Para ser educativa, dialógica e popular, a práxis médica precisa avançar no
sentido da criação e da transformação. Nesse sentido, pode-se dizer que a noção de
território, fundamental para a organização das atividades de saúde, revela-se pedagógica
para a prática médica e para a sua inserção nas equipes de saúde. É a partir da
operacionalização desse conceito que a organização do trabalho médico pode
experimentar um salto de qualidade, notadamente no âmbito das equipes de saúde da
família (ESF). O sentido de território aqui é o definido como
[...] cenário estabelecido por atores sociais no desenrolar de um processo em
que os problemas de saúde se confrontam com serviços prestados e onde
necessidades cobram ações. Representa muito mais que uma superfície
geográfica, tendo um perfil demográfico, epidemiológico, administrativo,
tecnológico, político e social que o caracteriza e se expressa num território
em permanente construção. (UNGLERT
21
, 1999, p. 222)
O território é algo dinâmico e está sempre se transformando ao sabor das
ações que lhe são endereçadas ou mesmo dos seus movimentos intrínsecos. Do ponto de
vista das unidades de saúde, ele é um espelho permanente para a atuação das equipes
nele inseridas. Da mesma forma, reflete, ininterruptamente, a imagem das necessidades
de ação ou reivindicação dos diversos atores que o constituem. Do ponto de vista dos
médicos e demais profissionais, pode ser o princípio crítico norteador e educador da
prática, mostrando os limites a serem superados e as possibilidades a serem assumidas.
O território é, pois, um dos conceitos-chave para a organização das ações de saúde e
para a transformação da prática profissional num processo democrático, dialógico,
educativo e popular.
Unglert (1999) sustenta que o processo de territorialização é um passo
importante para a caracterização da população e de seus problemas de saúde. É através
dele que as equipes de saúde podem acessar, de forma mais abrangente e contundente, a
população sob sua responsabilidade e, assim, dimensionar o impacto da sua ação no
sistema, alimentando o processo de trabalho de cada equipe de saúde e de cada
profissional. A aplicação prática desse conceito aproxima realidade (sujeitos e
21
Mais detalhes, ver: UNGLERT, C.V.S. – TERRITORIALIZAÇÃO EM SISTEMAS DE SAÚDE. In:
MENDES, E.V. (Org.) Distrito Sanitário – o processo social de mudança das práticas sanitárias do
Sistema Único de Saúde. HUCITEC-ABRASCO, 4ª Edição. São Paulo/Rio de Janeiro, 1999.
42
estruturas) e teoria e estimula o protagonismo do médico e seus outros (demais médicos,
enfermeiros, dentistas, técnicos e auxiliares da área da saúde e comunidade em geral).
O processo de territorialização estabelece um vínculo de responsabilidade
entre a população e os profissionais das equipes. É progressivo, em termos do seu
detalhamento e de sua penetração, passando por todos os equipamentos sociais
componentes do espaço-território social, chegando até o domicílio, um lugar a partir do
qual as famílias são nucleadas e onde é realizado o processo de adscrição da clientela às
Unidades Básicas de Saúde (UBS).
[...] a territorialização se apresenta como a grande contradição entre a
proposta de reforma democrática e a do projeto neoliberal. Para este último, o
direito a usufruir do sistema está vinculado à capacidade de pagamento,
que a sua lógica é a do retorno econômico, priorizando a atenção à demanda
individual. No caso da reforma democrática, a base territorial é fundamental,
constituindo-se num dos princípios organizativo-assistenciais do sistema de
saúde. (UNGLERT, 1999, p. 222)
Ao assumir como uma de suas diretrizes a vinculação com uma população,
o PSF assume, na prática, o princípio da universalização da ação de saúde. E mais do
que isso, abre espaço para que o profissional de saúde - e aqui se considere o médico na
sua prática - desenvolva um vínculo efetivo com a sua população, o qual só se faz
através do diálogo da troca de informações e de saberes, próprios dos sujeitos em
relação, consignados no território, no contexto mesmo onde essa relação se dá: na
comunidade, no domicílio, na Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF).
O PSF se preocupa com a garantia da integralidade na atenção à saúde. E,
nisso, estabelece um diferencial filosófico e prático em relação ao modelo da prática
médica tradicional, vez que está preocupado com a integralidade física e moral do ser
humano no seu contexto mesmo de vida. Está preocupado com o acesso e o provimento
de assistência ao usuário, mormente num instante em que se acusa um custo financeiro
progressivo que tende a barrar o acesso da atenção à saúde para os segmentos populares.
Outra característica demarcatória do princípio pedagógico desse modelo em
relação ao modelo tradicional é que ele nasce com o trabalho em equipe, com enfoque
interdisciplinar. Isso provoca uma diferença de qualidade fundamental na atenção à
saúde, com um rebatimento positivo para a educação da prática médica. O médico é
chamado a discutir a sua ação dentro de um processo que pode horizontalizar a sua
relação com os seus outros, revelando positividade para as relações interprofissionais e
para a ação junto à comunidade adscrita. Assim, a integralidade vê-se reforçada.
43
A cultura e a política, insumos para a conformação das relações de poder,
quando tratadas numa pedagogia para a autonomia, poderão estar a serviço da produção
da saúde, tarefas do médico e do seu outro na relação profissional/usuário. Mas, ao
mesmo tempo, num contexto da sociedade, como um todo, é tarefa de ambos como
cidadãos, transcendendo o simples tratamento de doenças, num movimento que tende a
vencer os processos de conservação do status quo ou de retardamento ou mesmo
obstaculização da mudança ou da transformação da realidade.
Ao assumir uma atitude dialógica na sua relação com o seu outro,
quebrando a atitude antidialogal assumida pelo médico tradicional, essa nova atitude
pode propiciar a abertura de outro tipo de encontro entre as culturas de ambos. Ao
compreender melhor os termos do seu usuário e ao explicar melhor os seus termos,
ambos expandirão o seu conhecimento sobre o mundo e compreenderão melhor a
situação criada a partir do encontro que promovem. Ao entender melhor o seu outro e ao
se fazer entender, médico e usuário estarão transformando a si próprios e, ao mesmo
tempo, criando possibilidades de transformação do universo social em que estão
inseridos.
Nesse sentido, vale a pena lembrar Maturana e Varela, quando afirmam:
[...] vivemos com os outros seres vivos [pensemos nos seres humanos] e,
portanto, compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo
em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez, ele também nos
constrói ao longo dessa viagem comum. Assim, se vivemos e nos
comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de vida,
a responsabilidade cabe a nós [...] se a vida é um processo de conhecimento,
os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude
passiva e sim pela interação [pode-se dizer pelo diálogo]. Essa posição é
estranha a quase tudo o que nos chega por meio da educação formal.
(MATURANA; VARELA 2001, p. 10-12)
A tradição da prática médica é aquela que distancia o profissional do seu
outro. Uma distância que se dá pela falsa consciência desenvolvida na sociedade de que
o conhecimento sobre o que ocorre no corpo do outro, num dado momento no papel de
paciente, é uma prerrogativa exclusiva do médico. Na relação médico/paciente
tradicional, o médico é aquele que detém o conhecimento; o paciente, não. Ou, pelo
menos, o seu conhecimento não é absorvido senão como queixa, problema bruto,
portanto, livre de qualquer abstração ou interpretação. É aqui, nesse ponto, que a
medicina, dita moderna, tem descartado o diálogo proposto pela medicina hipocrática
como a arte de perguntar e responder.
44
O que ensina a escola médica moderna, cartesiana e representacionista é que
o médico não deve se envolver com o senso comum do paciente. Assim, ele apenas
pergunta e anota, tentando fazer um cotejamento comparativo com a literatura
científica. Devido a isso, muitas vezes, deixa de perscrutar, esquadrinhar, indagar com
escrúpulo, perquirir o seu usuário. Não penetra no seu universo, aquele que vai muito
além do biológico e onde, muitas vezes, tem início o seu adoecer. Aliás, essa postura
não é reflexo de uma característica apenas da escola médica, mas, da escola tradicional,
bancária – aquela que vê no outro, na condição de aluno, um recipiente vazio, que
precisa ser preenchido pelo conhecimento emanado dos seus mestres e educadores.
Nessa escola, o currículo é construído a priori e independe do universo do educando.
No campo da medicina, isso equivale a tornar a anamnese
22
, construída a
partir do problema trazido pelo paciente, em algo que passa, como que por passe de
mágica, a pertencer ao médico. Este se transforma em senhor e protagonista da história
que, na verdade, é do seu outro, nesse momento transformado em mero figurante. A
realização da medicina parece ser algo que se realiza apenas para os profissionais dessa
área do conhecimento. Talvez, aí resida o primeiro “nó” da relação antidialógica e
desumanizadora que se exprime no encontro médico-paciente tradicional.
O desenvolvimento científico e tecnológico tem trazido uma série de
benefícios para o cuidado em saúde, mas, por outro lado, tem provocado um conjunto
de atitudes que distanciam os profissionais de saúde - o médico, particularmente - dos
seus outros. E essa parece ser uma das chaves que promovem a desumanização da
atenção. Talvez seja a hora de uma reflexão: A pretensa objetividade da ciência e a
eliminação da condição humana da palavra, reduzida à mera informação no exame
clínico, justificam-se, do ponto de vista ético?
Quando o médico preenche a ficha de exame clínico, está, muitas vezes,
apenas recolhendo informações que fazem parte do seu ato técnico. Não
necessariamente escutando, no sentido de uma escuta qualificada, a palavra do paciente
que se encontra a sua frente. Nesse ponto, a relação verdadeiramente humana está
22
A anamnese é o primeiro momento de uma consulta médica. Geralmente parte de uma pergunta que
quer revelar a queixa, o sintoma ou o problema trazido pelo paciente É a reminiscência, a informação
acerca do princípio e da evolução daquilo que fez com que uma pessoa procurasse o médico ou um
serviço de saúde. É quando o paciente, guiado pelo repertório de perguntas do médico, recorda e conta a
história da sua doença ou problema atual. Tradicionalmente, é também o momento em que o paciente
pode, com tranqüilidade, falar do seu padecimento e ser perscrutado pacientemente pelo médico,
recebendo deste, ao final da consulta, as informações sobre o seu estado de saúde e os aconselhamentos
sobre a melhor forma de agir diante do seu estado. Como se restringiu muito e quase se anulou o saudável
diálogo médico-paciente, a anamnese tem cumprido cada vez menos o seu papel.
45
presente? A resposta para essas questões pode ser encontrada nas palavras que estão a
seguir:
[...] O ato técnico, por definição, elimina a dignidade ética da palavra, pois
esta é necessariamente pessoal, subjetiva, e precisa do reconhecimento na
palavra do outro. A dimensão desumanizante da ciência e tecnologia se dá,
portanto, na medida em que ficamos reduzidos a objetos de nossa própria
técnica e objetos despersonalizados de uma investigação que se propõe fria e
objetiva. (BETTS, [2002?])
A medicina tradicional trata, geralmente, de descartar, de não levar em
conta, em nome da cientificidade, a história original do seu usuário. Não que se queira
afirmar que tudo o que é dito por ele deva ser tomado ao pé da letra ou como algo
relevante para o encadeamento do raciocínio clínico. Mas não há como deixar de
considerar que, ao colher a história clínica, o médico deve estar atento para os sinais e
mensagens diretas ou subliminares que podem estar vindo com a comunicação feita pelo
usuário. Ela denota, antes de tudo, a sua cultura, o seu conhecimento, a sua maneira de
ver e de fazer andar a sua vida, não devendo ser desprezada. Isso, no entanto,
demandaria do médico um conhecimento para além do saber da clínica, do saber
científico que lhe é exigido.
O exercício de qualquer profissão, especialmente aquelas de grande
superfície de contato com pessoas, exige noções básicas de Antropologia, Sociologia,
Psicologia, Economia e de História da Humanidade. O médico precisa ser alguém com
um conhecimento amplo da sociedade e do contexto onde estão inseridos os seus outros.
Essa perspectiva pouco está presente na forma de disciplinas do currículo dos cursos de
Medicina. E quando isso acontece, aparece em disciplinas optativas, geralmente não
inseridas ou pensadas na perspectiva da formação do médico ou de uma
reflexão/conexão específica. Às vezes, fato raro, isso acontece por obra de docentes que,
detendo uma perspectiva dialógica, tentam complementar o conhecimento dos seus
alunos chamando-os a uma reflexão mais aprofundada do sentido da prática médica.
Certos projetos de extensão
23
, na área da saúde, são exemplos dessa raridade tão
oportuna.
23
O Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba tem tradição na organização de
Projetos de Extensão Universitária. Há projetos curriculares, como é o caso do Estágio Rural Integrado,
que estende serviços e ações à comunidade em dezenas de municípios paraibanos, no caso, interiorizando
alunos concluintes das graduações em saúde – os graduandos em Medicina dedicam pelo menos dois
meses do seu internato nos Sistemas Locais de Saúde – assim como há projetos extracurriculares,
devidamente reconhecidos pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, como é o caso do
Projeto Educação Popular e Atenção à Saúde da Família e do Projeto Valentina – Apoio Social, Saúde e
Educação Popular. Em ambos os projetos, há alunos de graduação em Medicina, assim como de outros
cursos da área da saúde, e mesmo de outras áreas do conhecimento que mantêm intersecção com a saúde.
46
Aqui reside um segundo problema: o conhecimento, nas suas diversas
formas, tem sido visto pela ciência moderna como a representação fiel de uma
realidade, geralmente fragmentada, que se desenvolve independente do conhecedor. Ao
olhar o mundo, ao explicar o mundo e ao agir no mundo, o homem constrói
representações, toma o mundo como um objeto e o explora para dele tirar benefícios. O
representacionismo e a fragmentação são marcos epistemológicos prevalentes na cultura
contemporânea. Aí repousa a base do nosso modelo científico de cunho extrativista
(MATURANA; VARELA, 2001).
Como seres da cultura – em cuja essência é construída a pretensa
objetividade humana – os homens têm dificuldade de lidar com tudo aquilo que é
subjetivo e qualitativo. Em outras palavras, porque produzem cultura são humanos e,
em sendo seres da cultura, por vezes, esquecem que são humanos. O homem tem
dificuldade de compreender que objetividade e subjetividade, quantitativo e qualitativo,
geral e particular mantêm entre si uma relação complementar, dialética - qualidades
indispensáveis ao conhecimento e, portanto, à ciência.
Assim, o processo educativo desejado para a relação médico-usuário é
aquele em que os sujeitos dessa realidade se encontrem, em primeiro lugar, como seres
humanos para, depois, reconhecerem-se como tal. Havendo esse reconhecimento
humano, as diferenças que pode haver entre eles – sociais, econômicas, políticas,
filosóficas, culturais – poderão ser o caminho que leva à descoberta de que, sendo
diferentes uns dos outros, não precisam negar-se, mutuamente, como seres da
convivência.
Esse reconhecimento constitui o elemento, o qualificativo da sua identidade,
sendo esta a base primordial sob a qual um se apresenta e se reconhece diante do outro.
Estabelecido esse primeiro estágio, a relação educativa inaugura um segundo momento
de reconhecimento, o da consciência de que o outro detém um conhecimento, uma
experiência, um saber que, por distinto, pode ser trocado, ampliando o horizonte de
conhecimento, de experiência e de saber de ambos.
O desenvolvimento dessa consciência pode ser construído através do
diálogo. O diálogo como abertura respeitosa ao outro e no outro. Outro que se funda e
Esses projetos praticam a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, estão voltados para a
atenção primária em saúde, desenvolvem uma metodologia de trabalho, cujo eixo principal é a educação
popular, trabalham com um conceito ampliado de processo saúde/doença, fazem uma articulação orgânica
com os movimentos sociais e populares e desenvolvem uma consciência crítica em relação à organização
dos cuidados em saúde.
47
se reflete, ao mesmo tempo, no eu e no tu da consciência humana. Um só é no outro, na
disponibilidade curiosa à vida, no ser mais. Nesse ponto, situa-se a base onde se firma o
ato educativo verdadeiro, criativo, solidário, esperançoso, transformador, libertador.
Essa é uma educação que conduz à autonomia e à liberdade dos sujeitos.
Para realçar a categoria fundamental que muito poderá ajudar no processo
de construção de uma práxis médica voltada para a educação popular, é importante a
recorrência à Freire (1987), num trecho que reforça o poder indispensável do diálogo na
construção de uma práxis com potencialidade para produzir soluções para os problemas
humanos, aqui representados pelos que interferem na consecução do direito à saúde.
Assim se expressa Freire:
[...] não há diálogo verdadeiro se não há nos sujeitos um pensar verdadeiro.
Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens,
reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade. [...] Se o diálogo é o
encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os
sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não pode haver diálogo.
O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso (Freire, 1987, p.
82).
Ao se chegar à conclusão de que diálogo é tudo isso e exige tudo isso dos
dialogantes, precisa-se mostrar capacidade para mantê-lo mesmo entre pensares
diversos, entre sonhos opostos e, ainda assim, concorrer para o crescimento entre
diferentes, para o acrescentamento de saberes.
2.7 A práxis médica como popular
Um aspecto importante a ser aqui enfatizado é que a relação do médico com
os seus outros, além de educativa, também precisa ser popular. Isso requer uma breve
abordagem acerca do conceito do vocábulo popular e em que sentido deve ser
empregado em relação à prática médica, tendo em vista sua polissemia. O popular
esteve presente em todos os momentos da história da humanidade, desde a antiga
Grécia. Naquela sociedade, o popular apareceu de uma forma lírica na poesia de
Hesíodo, quando este falava e decantava, em versos, a vida e as lutas dos camponeses.
O popular estava ligado a terra, aos homens do campo e às suas lutas. Mas a poesia de
Hesíodo, segundo Jaeger (1995), mantinha, para além da exaltação aos campesinos,
uma forte ligação com o trabalho e com a justiça. Pelas suas características e oposição à
48
cultura da nobreza, revelava um outro lado da educação do homem grego: o popular
como uma identidade do homem. Daí uma das heranças do conceito: o popular como
identidade do homem rural frente ao homem grego aristocrático.
Na poesia de Hesíodo, consuma-se diante dos nossos olhos a formação
independente de uma classe
popular (grifo nosso), excluída até então de
qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura
das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas
cria a sua própria forma e o seu
ethos (grifo nosso) exclusivamente a partir
das profundezas da sua própria vida (JAEGER, 1995, p. 103).
Para Melo Neto (2004), a procura por justiça e pela afirmação de um povo,
de uma comunidade ou de uma maioria, ou mesmo de um tipo comunitário, através do
processo educativo, tornou-se traço constitutivo dos movimentos de contestação, desde
os povos antigos até os nossos dias. Servindo-se de diversos exemplos, afirma estar o
popular presente, como uma marca dos movimentos sociais populares, um grande
esforço no sentido da construção da identidade dos grupos sociais em movimento, como
forma de definição de seu campo de ação política e educativa
24
.
É esse mesmo autor quem afirma que, na contemporaneidade, o popular
responde pelos processos de organização dos setores proletarizados da sociedade,
através de várias experiências de grupos e partidos políticos que trazem o termo popular
nos seus projetos ou nas suas formulações políticas. Nesse sentido, apresenta uma série
de experiências atuais ou que já fazem parte da história recente da América Latina
25
em
que o popular assume diferentes concepções e conseqüências, embora todas elas sejam
unânimes na questão de bandeiras de luta, cujo pano de fundo constitui a igualdade, a
justiça, a cidadania, a democracia, a independência, a autonomia, a liberdade e a
fraternidade entre os homens.
Em síntese, seguindo as pistas de Melo Neto (2004), algo é popular quando
traz consigo uma metodologia, um procedimento, um mecanismo que possibilite,
24
Esse autor, citando vários outros pesquisadores, oferece exemplos da atividade de formação da
identidade dos movimentos populares, enquanto afirmação e resistência contra os desmandos da Igreja
Católica na Idade Média (CALADO, 1999; HOONAERT, 1986). Na Modernidade, ressalta os freqüentes
movimentos que marcaram as lutas pela superação da situação política dominante. Contudo, fixa-se no
Marx de “O manifesto comunista”, quando este aponta o encaminhamento à classe proletária (classes
trabalhadoras, classes humildes, classes populares): a necessidade de luta e de criação de uma alternativa
popular ao apresentar como necessária “a conquista do poder político pelo proletariado” (Marx, 1999, p.
30), fecundando os movimentos de libertação em todo o século XX com a sua célebre conclamação:
Proletários de todos os países, uni-vos.
25
Para uma visão mais completa do que acaba de ser dito, sugerimos a leitura do texto no qual nos
referenciamos assim como uma obra sugerida pelo próprio Melo Neto: LÖWY, M. O Marxismo na
América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. Editora Fundação Perseu Abramo. São Paulo,
1999.
49
incentive e amplie a participação das pessoas, ou seja, um meio de veiculação e
promoção para a busca da cidadania. Popular, assim, torna-se sinônimo da própria
prática ou de algo promotor de novas formas de intervenção das massas populares.
Algo é popular se expressa um cristalino posicionamento político e filosófico diante do
mundo, trazendo consigo uma dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das
maiorias. Ser popular é tomar consciência e posicionar-se diante do mundo, assumindo
uma posição promotora de mudanças.
Na lauda do próprio autor,
[...] Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões
que se apresentam; o componente político essencial e norteador das ações; as
metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os
aspectos éticos e utópicos que, para os dias de hoje, se tornam uma exigência
social. (MELO NETO, 2004, p. 157-158)
Essa perspectiva elege um elemento fundamental com força para embasar
essa práxis humana: o diálogo, como imperativo ético, entendido como abertura
respeitosa ao outro e no outro, como disponibilidade curiosa para a vida e o
acrescentamento de saberes necessários ao enfrentamento dos seus desafios. Consoante
a essas idéias, abre-se a tese de que a prática médica pode elevar-se à categoria de
práxis médica, pelo princípio ético do diálogo. O suporte teórico dá destaque para Marx
e Engels, Gramsci e Vázquez sem, no entanto, perder-se de vista a sua crítica em
autores de dentro e de fora do marxismo. A inspiração de Paulo Freire
26
foi o elemento
fundamental da problematização sobre diálogo. Diálogo como categoria fundamental
para a construção de uma práxis médica comprometida com o seu quefazer; com a
compreensão social do processo saúde-doença, com a educação da população usuária
dos serviços e ações produzidos pelo SUS.
Saúde e doença formam parte do processo social, constituem uma realidade
historicamente determinada. Estão envolvidas numa contradição que não permite que
sejam consideradas como um complexo de coisas acabadas. Exigem processos em que a
realidade e os seus reflexos na consciência estejam no incessante movimento gerado
26
Apesar de praticamente toda a obra de Paulo Freire se encontrar perpassada pela discussão da categoria
diálogo, as principais referências que serviram de guia a esta pesquisa foram:
FREIRE, P. – Educação e
mudança. Prefácio de Moacir Gadotti e Tradução de Lilian Lopes Martin. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1981. (16ª edição, 1990); FREIRE, P. – Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à
prática educativa. 14ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1996 – (Coleção Leitura); FREIRE, P. – Educação
Como Prática da Liberdade. 7ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; FREIRE, P. – Pedagogia do
Oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
50
pelas mudanças qualitativas decorrentes do aumento da quantidade de possibilidades,
criadas por essa mesma realidade.
Historicamente condicionado, o ser humano vive o processo saúde/doença
dentro de um mundo cindido em classes sociais. Essas classes representam as distintas
inserções desse homem na sociedade e, por sua vez, condicionam as distintas formas de
adoecer e morrer dos integrantes dessas mesmas classes e o conjunto de todos os
processos da vida social, política e cultural da humanidade (LAURELL, 1983; MARX,
1988).
Destarte, saúde-doença e prática médica estão envolvidas num fenômeno
concreto que possui um lócus na vida e nas relações contraídas pelas pessoas nos
diversos âmbitos das suas vidas e não apenas nas unidades de saúde quando, em contato
com profissionais da área, tornam-se sujeitos ou objetos de alguma intervenção. Um
fenômeno detentor de propriedades específicas que, devido ao seu caráter social,
reproduz-se continuamente no tempo e no espaço, gerando reflexos positivos ou
negativos sobre a saúde da população e na própria prática médica, a depender da sua
direcionalidade e qualidade.
Refletir sobre essa problemática, considerando os pressupostos expostos,
parece conduzir para um pensar crítico e uma abertura constante ao diálogo. Esses são
combustíveis fundamentais para uma relação solidária capaz de conduzir profissionais e
população à conquista da sua tão desejada autonomia e emancipação. São elementos
indispensáveis, que dão suporte a uma práxis transformadora de relações sociais capazes
de construir e proporcionar uma vida saudável.
2.8 A metodologia e os procedimentos técnicos da pesquisa
Para a elaboração deste trabalho, assumiu-se uma abordagem dialética,
acompanhando a idéia de que o mundo não pode ser considerado como um complexo de
coisas acabadas, mas de processos através dos quais as coisas e os seus reflexos na
consciência, ou seja, os conceitos produzidos, as idéias mobilizadas, as coisas criadas
ou transformadas estão no incessante movimento gerado pelas mudanças qualitativas
decorrentes do modo de produção da vida material, que se encontra condicionado pelo
51
conjunto de todos os processos da vida social (inclusive os mentais), política e
econômica.
A metodologia desenvolvida é composta de três movimentos: a) um
primeiro movimento de síntese; b) um movimento seguinte de análise; e, c) e um novo
movimento de síntese. A primeira síntese corresponde à recuperação histórica dos
conceitos de saúde-doença, de medicina e prática médica – partindo dos povos
primitivos até os nossos dias – acompanhados das práticas sociais e políticas inerentes a
cada um desses conceitos. Destaca-se o levantamento das políticas de saúde do período
republicano, no Brasil, onde serão explicitadas as tensões e contradições existentes nas
formulações, mostrando a negligência ou ausência do diálogo. Essa fase de síntese, em
sua parte final, prepara para o momento seguinte da análise.
O momento de análise se constitui na explicitação da prática do Sistema
Único de Saúde e da Estratégia Saúde da Família. Revela os três focos principais e os
procedimentos técnicos da pesquisa. O primeiro foco de análise diz respeito à
construção teórico-prática do PSF e a sua transformação em Estratégia de Saúde da
Família, por dentro do Sistema Único de Saúde. Para esta parte da pesquisa, buscou-se,
além do material empírico relativo aos dados da implantação e implementação da
Estratégia Saúde da Família, como política de atenção básica do próprio SUS (Anexo
C), o levantamento, a leitura e a interpretação dos principais documentos oficiais do
SUS e do PSF e da produção teórica a respeito da evolução da atenção básica à saúde no
Brasil
27
.
Toda essa parte, que corresponde ao capítulo 6 do texto, é enriquecida pelas
reflexões, em contraponto, do próprio autor, retratando a experiência adquirida quando
gestor público, na organização e gestão das políticas de saúde em nível de Secretaria
Estadual de Saúde da Paraíba (SES-PB) – período 1996-2001 – oportunidade em que
assumiu a Unidade Setorial de Planejamento
28
daquela instância gestora estadual do
SUS.
27
Entre os textos oficiais, podem ser destacados: o capítulo da saúde no texto constitucional de 1988; as
leis orgânicas (8.080/90 e 8142/90), os documentos do PSF – Saúde da Família: uma estratégia para a
reorientação do modelo assistencial (1994); Saúde da Família: uma estratégia de organização dos
serviços de saúde (1996); a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde – NOB/SUS (Portaria
GM n.º 2.203/96); o documento 1997 – O ano da saúde no Brasil:ações e metas prioritárias (1997); a
Portaria Ministerial, MS/GM n.º 1.886 (D.O.U. 22/12/1997); o Manual para organização da Atenção
Básica (Portaria GM n.º 3.925/1998); e a Política Nacional de Atenção Básica (Portaria GM n.º
648/2006).
28
A Unidade Setorial de Planejamento da SES-PB (USP/SES-PB) é o setor que assume todo o processo
de planejamento voltado para a organização das ações e serviços que compõem o Sistema Único de
Saúde, no estado da Paraíba. Atua diretamente no processo de assessoramento ao gabinete do Secretário
52
O segundo foco de análise corresponde ao desenvolvimento do PSF no
município de Campina Grande, pioneiro na implantação desse modelo de atenção na
Paraíba. Nesse caso, os dados empíricos resultaram: do acompanhamento indireto do
município durante o período 1996-2001, da pesquisa e interpretação de documentos
oficiais e da produção teórica a respeito do modelo de atenção municipal nesse período,
e da coleta de depoimentos de profissionais do PSF em publicações municipais da
experiência. Anotações pessoais do pesquisador, dando conta da sua experiência na
gestão estadual, também foram utilizadas.
O último foco da pesquisa contempla a prática médica do PSF/PITS em 15
municípios da Paraíba – período 2001 – 2003 – e diz respeito à atuação do autor como
médico-tutor do Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS), uma
iniciativa de reforço à Estratégia Saúde da Família, que contou com a participação
quadrangular do Ministério da Saúde, via Secretaria de Atenção Básica daquele órgão;
do Ministério de Ciência e Tecnologia, via Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq); da Secretaria Estadual de Saúde, pela Coordenação
de Atenção Básica e da Universidade Federal da Paraíba, através do Núcleo de Estudos
em Saúde Coletiva (NESC/UFPB).
Os dados dão conta do acompanhamento das ESF/PITS em momentos de
supervisão nas suas respectivas áreas de abrangência e durante a capacitação, sob a
forma de especialização em Saúde da Família, a organização do material empírico
composto de relatórios das visitas às ESF/PITS e anotações pessoais do pesquisador
refletindo as seguintes dimensões: a) caracterização do Programa e sua contextualização
(SUS e PSF); b) normas gerais e critérios de elegibilidade; c) caracterização dos
municípios incluídos no PSF/PITS da Paraíba; d) posicionamento ético das
administrações municipais; e) problemas relativos ao processo de trabalho; f) questões
políticas gerais e sua interferência no Programa; e g) posicionamento ético dos
profissionais nas suas equipes. As análises sobre os últimos dois focos da pesquisa se
encontram desenvolvidas no capítulo 7 do trabalho.
Servirão ainda de contraponto, para o exercício desta análise, os dados da
experiência vivida em nível do Ministério da Saúde (MS), quando, em 2004, assumiu o
Estadual de Saúde, assim como às Coordenações que atuam diretamente no processo de execução das
políticas. Dentro da USP/SES-PB, funciona um órgão responsável pela capacitação pedagógica dos
recursos humanos daquela Secretaria.
53
cargo de Coordenador Geral de Gestão da Informação em Saúde, junto ao DATASUS
29
,
e em 2005, o cargo de Coordenador Geral de Apoio à implementação de Políticas de
Saúde do Departamento de Apoio à Descentralização
30
, ambas as estruturas
pertencentes à Secretaria Executiva daquele Ministério. Todas essas experiências, no
conjunto, perfazendo uma década de atuação na gestão e execução do SUS e de
acompanhamento da implementação da Estratégia Saúde da Família.
No terceiro movimento, o da nova síntese, constituída de elementos da
primeira síntese e elementos da análise, será apresentada a possibilidade de acumulação
do diálogo como atitude ética capaz de transformar a prática médica tradicional
antidialogal, numa práxis educativa e popular. Nesse momento particular do trabalho, a
teoria sobre práxis e diálogo, que permeou os capítulos relativos à primeira síntese e à
análise, reaparece aprofundando a discussão do diálogo como constituinte da prática que
se transforma em práxis. Assim, o diálogo, como categoria teórica, será apresentado
como a ferramenta da práxis, conferindo materialidade a esta, que, em geral, tem um
sentido abstrato.
Portanto, tenta-se conjugar os dados da experiência, até então vivida, com
questões históricas e teóricas que afloram do exercício da prática médica, em condição
de lançar luz sobre alguns aspectos dessa prática e de suas implicações sociais -
aspectos, talvez, ainda não suficientemente resolvidos no processo de implementação da
Estratégia Saúde da Família. Um desejo de promoção da saúde como um processo
social de educação coletiva e solidária.
29
O Departamento de Informação e Informática do SUS (DATASUS) é o órgão da Secretaria Executiva
do Ministério da Saúde, cuja responsabilidade é a de coletar, processar e disseminar informações sobre
saúde. Sendo um órgão de informática de âmbito nacional, representa papel importante como centro
tecnológico de suporte técnico e normativo para a montagem dos sistemas de informática e informação da
Saúde. Suas extensões estaduais constituem a linha de frente no suporte técnico às Secretarias Estaduais e
Municipais de Saúde. Sua missão é prover os órgãos do SUS de sistemas de informação e suporte de
informática, necessários ao processo de planejamento, operação e controle do Sistema Único de Saúde.
30
O Departamento de Apoio à Descentralização é uma estrutura da Secretaria Executiva do Ministério da
Saúde, com as seguintes atribuições: articular os órgãos do Ministério no processo de avaliação de
políticas no âmbito do SUS; subsidiar os processos de elaboração, implantação e implementação de
normas, instrumentos e métodos necessários ao fortalecimento do modelo de gestão do SUS, nas três
esferas de governo; promover, articular e integrar as atividades e ações de cooperação técnica a Estados,
Municípios e ao Distrito Federal, visando a fortalecer a gestão descentralizada do SUS; formular e propor
a adoção de diretrizes necessárias para o fortalecimento dos sistemas estaduais e municipais de saúde;
planejar, coordenar e articular o processo de negociação e de contratualização, visando ao fortalecimento
das instâncias de pactuação nas três esferas de gestão do SUS; promover a articulação e a integração de
ações entre os órgãos e unidades do Ministério e os gestores estaduais e municipais do SUS; e participar
do processo de negociação e da definição de critérios para a alocação de recursos físicos e financeiros,
nas três esferas de gestão do SUS.
54
3 A SAÚDE-DOENÇA, A MEDICINA, A PRÁTICA MÉDICA
Os sistemas filosóficos com os quais se tentou, desde a antiguidade até os
nossos dias, explicar o mundo, suas circunstâncias e eventos fundamentais, influem na
produção social e no direcionamento da ciência e do conhecimento. Isso inclui a
abordagem do processo saúde-doença, da medicina e da prática médica. Desse modo, a
recuperação da história tem mostrado que saúde-doença, medicina e prática médica
sempre resultaram, de um lado, da evolução do conhecimento e, de outro, da realidade
social, econômica e política – e suas relações com o poder – em cada contexto. Isso
conduziu a medicina e sua prática a formarem parte de um intenso debate, em cujo
centro se encontrava uma produção derivada da observação, da experiência, da perícia,
do raciocínio e, portanto, da cultura e da inteligência humana
31
, condicionada àquelas
realidades.
A saúde e a doença têm sido abordadas como conceitos distintos e
articulados, compreendendo um processo. Porém, qualquer que seja a forma de
abordagem, tratar dessas duas questões sempre significou enfrentar uma equação
recheada de variáveis que se imbricam a todo instante, o que talvez ocorra porque tal
enfrentamento implica o reconhecimento das suas relações com a cultura, com as
ideologias e com os sistemas dominantes de crenças de cada sociedade, em cada período
histórico. Implica compreendê-las no âmbito das diferentes formas de organização da
sociedade, suas instituições político-jurídicas, suas estruturas econômico-sociais e seus
estágios de desenvolvimento do conhecimento, da ciência e da técnica.
A complexidade das diversas relações possíveis se aprofunda à medida que
se avança na compreensão de que saúde e doença não são antônimos nem conceitos
independentes entre si, posto que compõem um processo dialético cujo deslindamento é
fundamental, contribuindo para o entendimento da sociedade e das instituições que as
mantêm. O mesmo raciocínio pode ser estendido à medicina e à prática médica que,
resultantes e, ao mesmo tempo, estruturantes do processo histórico-social, são
31
Há uma série de observações empíricas muito antigas relativas às enfermidades. Os hindus, por
exemplo, já indicavam a presença de açúcar na urina de certas pessoas, hoje sabidas como diabéticas, pelo
menos dois mil anos antes de ser cientificamente comprovado. Isso também é válido para a relação entre
malária e algumas linhagens de mosquitos, assim como a descoberta de sinais clínicos que denotavam a
ocorrência de fraturas em pessoas acidentadas ou que haviam sofrido traumas. Todos esses exemplos
demonstram que a observação, a experiência e o raciocínio eram os elementos fundamentais de definição
de saúde e doença.
55
indissociáveis e sempre tiveram a tarefa histórica de responder pelo processo saúde-
doença das populações. São produtos do conhecimento e das políticas vigentes em cada
contexto, podendo se constituir em práxis
32
contínua, capaz de transformar o homem e
as relações humanas.
A tentativa de compreensão do processo saúde-doença precisa ser tratada no
contexto do desenvolvimento da medicina e da prática médica. Apreendendo-se os
movimentos
33
desses processos e a inserção de cada um deles na história das sociedades
é que se poderá revelar a convergência que sempre existiu entre eles. Nessa perspectiva,
revela-se útil a pista oferecida abaixo:
A análise histórica torna possível penetrar nas estruturas sociais do passado e
nas mudanças que elas sofreram, aumentando nossa compreensão do
processo de desenvolvimento que nos conduziu ao presente, dando
conseqüentemente um significado, um sentido que um estudo limitado do
segmento contemporâneo não poderia fornecer (ROSEN, 1979, p. 59).
Com a identificação desses movimentos e a articulação existente entre eles,
podem-se perceber: a) as condições de emergência e as configurações específicas
assumidas por essa articulação na sociedade, historicamente; b) suas implicações na
realidade de vida, trabalho e saúde das pessoas e das populações, nos diversos contextos
históricos; e, c) a importância de se buscarem, nas origens dos processos sociais, a
origem de suas instituições, sua organização, idéias e funcionamento, para melhor
compreender os significados dessa equação, nos dias de hoje.
A sociologia médica não é recente, e o estudo das relações entre os
fenômenos da saúde e os fatores e contextos sociais, ao contrário do que enfatizaram
durante muito tempo os cientistas sociais, têm profundas raízes históricas.
Muito antes dos cientistas sociais terem identificado a sociologia médica
como uma especialidade, homens interessados nos assuntos de Estado
economistas, médicos, reformadores sociais, historiadores e administradores
32
O sentido que se quer dar aqui à práxis é o do clássico conceito de ação/criação/produção consciente do
homem a partir da apreensão da realidade que o rodeia e o envolve; o que implica uma síntese que inclui
questões objetivas e subjetivas, internas e externas a ele, enquanto sujeito criador e, que, portanto, produz
a história e a vida social sua e de seus semelhantes. No dizer de Marx e Engels, recuperado por Vázquez,
“as circunstâncias fazem o homem na medida em que este faz as circunstâncias [...] Ao produzir seus
meios de vida, o homem produz indiretamente a sua própria vida material [...] Tal e como os indivíduos
manifestam sua vida, assim são. O que são coincide, portanto, tanto com o que produzem quanto com o
modo como produzem. O que os indivíduos são depende, por conseguinte, das condições materiais de sua
produção” (MARX & ENGELS, 1959, apud VAZQUEZ, 1977, p. 165-166)
33
Movimento aqui tem o sentido produzido por Heráclito, na longínqua e ao mesmo tempo tão presente
antiguidade grega, pré-socrática e cosmológica. Movimento enquanto exercício teórico-prático de
apreender a realidade que nos acompanha e da qual somos parte ativa, consciente ou inconscientemente,
desde os primórdios, quando passamos a nos interessar pela dinâmica das coisas.
56
– estiveram preocupados com problemas médicos e ofereceram significantes
contribuições para a sua solução (ROSEN, 1983, p. 27).
Essas contribuições estiveram sempre fundamentadas em determinada visão
do processo saúde-doença. Derivam das condições de desenvolvimento do
conhecimento e das relações sociais que produzem a cultura, o poder e a ciência em
cada contexto, ou seja, as visões de mundo dos diversos atores sociais.
Isso é importante, na medida em que, mesmo depois de uma história que
remonta milênios, ainda nos dias de hoje, sente-se a presença, por vezes marcante, de
idéias, hábitos, costumes ou mesmo preceitos que dominaram uma época passada e, em
virtude da conservação de fortes tradições culturais, subsistiram e continuaram no
imaginário e nas práticas populares ou mesmo científicas. Por isso, não é raro haver
alusões ao clima, à religiosidade, aos astros e a outras forças do homem e da natureza
para explicar e justificar crenças e atitudes humanas, diante de eventos relacionados à
saúde-doença.
3.1 A saúde-doença nos povos primitivos
A historiografia médico-antropológica, ao retratar os povos primitivos,
mostra os seus conceitos de saúde e de doença, medicina e prática médica perpassados
pelo sentimento mágico-religioso. As idéias que sustentavam a medicina da época
estavam intimamente relacionadas à natureza, ao sobrenatural e às crenças religiosas
que esses povos detinham acerca da conformação do mundo e do processo saúde-
doença. A relação que mantinham com a natureza, com o mágico e com o religioso os
colocava numa espécie de camisa de força, quando se tratava de explicar eventos
ligados à morbi-mortalidade das populações. O medo do desconhecido e da
possibilidade de violação de uma crença ou regra cultural religiosa gerava superstições e
maus presságios. Um acidente ou qualquer coisa externa que atingisse o homem era
tomado como algo desencadeado pela influência de forças sobrenaturais e pelo
lançamento de maus agouros. Os astros, o clima, os insetos e outros animais ligados às
doenças também eram justificadores diretos de doenças em indivíduos ou comunidades
inteiras (BARATA, 1985).
57
As doenças eram sempre interpretadas como uma ameaça externa
34
, física
ou mental. Nessas condições, a chave do poder curativo do médico primitivo residia na
sua capacidade de liberar as forças físicas ou psíquicas do indivíduo enfermo. Para
tanto, esse médico que, naquela conjuntura, assemelhava-se mais a um mago ou a um
xamã, exercia a sua atividade através da preparação e administração de remédios
extraídos da própria natureza. Esses remédios eram, muitas vezes, administrados menos
pelas suas qualidades naturais e mais pela crença do próprio ministrante de que eles o
ajudariam no controle das forças ocultas causadoras da enfermidade. Assim, a coleta de
ervas, a preparação dos remédios e a sua administração eram quase sempre
acompanhadas de rituais secretos só conhecidos por ele mesmo e pelo seu paciente.
Enquanto o pensamento primitivo apontava que as doenças se deviam a
possíveis desvios das regras religiosas estabelecidas ou a ataques sobrenaturais, o
médico primitivo poderia contar, durante esses rituais, com poderosos recursos
terapêuticos, inclusive de ordem psíquica. A confissão do enfermo, por exemplo, era um
recurso muito utilizado. Entendia-se que, se admitisse ou confessasse faltas morais, o
enfermo se livraria de sentimentos de culpa, de ansiedade e de angústias que sofresse e
que, no mais das vezes, estavam na base do seu adoecer.
Isso explica, inclusive, os ritos de purificação prescritos e administrados
através da água
35
, dos jejuns, das dietas, dos vomitórios e purgantes. Essas condutas
eram direcionadas à cura do enfermo, mas não se pode perder de vista que, por vezes,
também atendessem a um outro objetivo: o de alimentar o inconsciente coletivo e
manter a ordem estabelecida. Aquele que confessava uma falta estava se colocando à
margem das regras ou crenças, o que poderia muito bem ser entendido como uma
violação que transcendia o individual, influindo no coletivo.
Igualmente, não se pode esquecer que aqueles que exerciam a medicina
estavam investidos de um poder conferido e reconhecido pela própria comunidade e,
principalmente, pelos seus dirigentes. É plausível que não estivessem imunes à lógica
de manutenção ou perpetuação desse poder a partir de atitudes fraudulentas ou
desviantes, forjadas através do controle e da manipulação da própria sociedade. Nada
34
Os assírios, egípcios, caldeus e hebreus podem ser arrolados nessa concepção. Eles acreditavam que o
corpo humano funcionava como um receptáculo passível de ser penetrado por elementos externos,
naturais ou sobrenaturais, com potencialidade tanto para causar doenças em indivíduos sãos quanto para
restabelecerem a saúde de pessoas doentes (BARATA, 1985).
35
Os incas tinham, a cada ano, um dia de purificação nos rios. Acreditavam que lavavam naquelas águas
os seus pecados e impurezas que, depois, eram levados ao mar. Ainda hoje são conhecidos os rituais
hindus nas águas do rio Ganges. É também conhecido o uso de banhos de vapor pelos índios pré-
colombianos como parte de um ritual religioso e higiênico para a cura das enfermidades.
58
pode garantir que a relação médico-paciente primitiva não fosse utilizada para outros
fins.
Os egípcios consideravam a saúde como o estado natural do ser humano. A
doença podia ser classificada em dois grupos: a) o daquelas cujos sinais e sintomas
eram evidentes e para as quais não se apelava para explicações sobrenaturais ou
mágico-religiosas – os traumatismos, feridas, fraturas e queimaduras podem ser
arrolados neste grupo; e, b) as doenças cujas causas eram desconhecidas ou não
perceptíveis e que abriam espaço para as explicações do tipo mágico-religiosas.
Como havia uma relação de dependência considerável com o rio Nilo, a
tradição egípcia relacionava estágios do rio a saúde e a enfermidade. Os momentos de
subida do nível das águas significavam abundantes colheitas e saúde, enquanto os de
baixos níveis acarretavam fome e epidemias. Os egípcios acreditavam que alimentos
bem ou mal combinados podiam manter a saúde ou causar doenças. Faziam uso
freqüente de banhos e abluções, razão por que eram conhecidos como povos
extremamente higiênicos (PUERTO SARMIENTO, 1997).
A civilização egípcia antiga ficou conhecida pela sua intensa atividade
laboral, em especial, no que concerne ao trabalho relacionado às construções de seus
imponentes palácios, das belas e intrigantes pirâmides e dos túmulos dos faraós. Todo
esse trabalho, bastante intenso e pesado, era reservado aos escravos daquela sociedade.
Na verdade, a maioria deles era formada por povos conquistados nas guerras de
expansão dos domínios territoriais das dinastias dirigentes do Egito antigo. Em termos
de saúde-doença, mesmo que não se pesquisasse naquela época a relação entre
ocupação e saúde, é possível encontrar, num papiro egípcio, comentários sobre a vida
difícil daqueles trabalhadores e os efeitos do trabalho sobre os seus corpos e a sua
vitalidade (ROSEN, 1983, p. 27).
Os povos hindus e chineses, por seu turno, concebiam saúde-doença dentro
de uma dicotomia que ora resultava em equilíbrio, ora em desequilíbrio entre os
elementos e humores constituintes do organismo humano. A explicação para esse
movimento oscilatório estaria na influência positiva ou negativa que os astros, animais,
insetos e o próprio clima causavam à energia vital animadora dos seres humanos. Mas,
diferente de outros povos, eles acreditavam que o homem desempenhava um papel ativo
nas causas do adoecimento e, mesmo que fossem naturalizadas, não tinham o caráter
mágico-religioso imperante em outras concepções. Portanto, aprofundaram-se na
concepção do corpo como um complexo de energia vital susceptível de momentos de
59
equilíbrio e desequilíbrio e desenvolveram um extenso e variado conjunto de técnicas e
práticas para a manutenção ou o restabelecimento do equilíbrio entre a energia vital e os
humores orgânicos (BARATA, 1985, p. 13-14).
O saber anátomo-fisiológico da China antiga era parametrizado pela
cosmologia e presidido pelo número 5, fazendo a correspondência entre cinco elementos
básicos da natureza (terra, ar, água, madeira e metal) e cinco órgãos principais do corpo
(coração, pulmão, rim, fígado e baço) e cinco órgãos secundários (intestino delgado,
intestino grosso, uretra, vesícula biliar e estômago). Todos, por sua vez, estavam em
correspondência com os planetas e as estações do ano. O desequilíbrio entre o Yin
(energia positiva) e o Yang (energia negativa) levava a desordem entre os cinco
elementos, caracterizando a enfermidade. A causa última dessa desordem que resultava
nas enfermidades poderia estar nas mudanças excessivas do clima, da dieta, das relações
afetivas, da umidade, do frio excessivo, dos venenos e dos espíritos malignos. Para o
diagnóstico, empregavam-se os cinco sentidos, mas o pulso era considerado elemento
de maior importância nesse processo. Como métodos terapêuticos, destacavam-se a
acupuntura e a moxabustão (PUERTO SARMIENTO, 1997).
3.2 A saúde-doença na antiguidade clássica
Considerada como o berço da mais tradicional e bem sucedida expressão da
medicina da antiguidade, a Grécia desenvolveu uma compreensão do processo saúde-
doença que tem a ver com a experiência oriental hindu e a chinesa, pois trabalhava com
conceitos de isonomia e disnomia para indicar harmonia ou desarmonia em relação aos
quatro elementos que entravam na composição do corpo humano: terra, ar, água e fogo.
Na visão grega, fatores externos agiriam no organismo, causando desequilíbrios entre
esses componentes, expressando doenças. Barata (1985) faz referência a uma passagem
atribuída a Platão que bem retrata a maneira como os gregos encaravam a doença:
[...] a maneira pela qual elas (as doenças) se formam pode ser clara a
qualquer um. O corpo é composto da mistura de quatro elementos: terra,
fogo, água e ar. A abundância ou falta desses elementos, fora do natural; a
mudança de lugar, fazendo com que eles saiam de sua posição natural para
outra que não lhes seja bem adaptada; ou o fato de que um deles é forçado a
receber uma quantidade que não é própria para ele, mais conveniente para
60
outra espécie, todos esses fatores e outros similares são as causas que
produzem distúrbios e moléstias (PLATÃO, apud BARATA, 1985, p. 15).
Jaeger (1995) comenta que foi a tradição hipocrática que enriqueceu e deu o
peso definitivo aos fundamentos gregos da medicina, válidos até os dias hoje, e
informantes da prática clínica e da cuidadosa observação da realidade circundante das
pessoas necessitadas de cuidados para a sua saúde. Basta observar a riqueza de detalhes
de um trecho da introdução do escrito de Hipócrates, Dos Ventos, Águas e Regiões,
onde está descrito o bom procedimento para quem se aventura pela arte da medicina:
Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em
primeiro lugar, há de ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois
nem todas são iguais, mas diferem radicalmente quanto à sua essência
específica e quanto às suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes
e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando
pelos característicos de cada região. Deve ter presentes também os diversos
gêneros de águas. Estas se distinguem não só pela densidade e pelo sabor,
mas ainda por suas virtudes. Quando um médico (que é considerado, como
era habitual naquela época, médico ambulante) chegar a uma cidade
desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais, a posição que ela
ocupa quanto às várias correntes de ar e quanto ao curso do Sol... assim como
anotar o que se refere às águas... e à qualidade do solo... Se conhecer o que
diz respeito à mudança das estações e do clima, e o nascimento e o ocaso dos
astros... conhecerá antecipadamente a qualidade do ano... Pode ser que
alguém julgue isto demasiadamente orientado para a ciência, mas quem tal
pensar pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a
Astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança
nas doenças do homem está relacionada com a mudança do clima. (JAEGER,
1995, p. 944-45)
O trecho atribuído a Hipócrates, pode-se notar, incorpora uma variedade de
raciocínios que traduzem a observação e o senso prático presentes nos conhecimentos e
na formação do médico grego. Há um esforço da inteligência grega em articular os
eventos da natureza com sinais e sintomas manifestados no organismo humano. Com
essa leitura, as enfermidades orgânicas ganham uma dimensão que ultrapassa o próprio
corpo biológico. As doenças e afecções diagnosticáveis nas pessoas e nas coletividades
passam a ter um outro sentido, uma outra dimensão. Passam a ser perscrutadas nas
interferências positivas ou negativas para a saúde, dos hábitos, costumes e atitudes
cotidianas, em função de problemas com o ambiente natural e suas relações.
Na correspondência que os grupos faziam entre saúde-doença e o
equilíbrio/desequilíbrio com o ambiente natural, é possível perceber como havia toda
uma preocupação dos médicos da época com a regulamentação de uma dieta e de um
conjunto de exercícios adequados ao clima e às estações do ano, numa espécie de
política medicinal de equilíbrio que envolvia a prescrição de muitos alimentos sólidos e
61
poucos líquidos nas estações frias e poucos alimentos sólidos e muitos líquidos nas
estações quentes, com o intuito de se buscar o equilíbrio do organismo com as
condições de umidade e secura predominantes em cada uma das estações (JAEGER,
1995, p. 978-79). Nessa perspectiva, o médico é, antes de tudo, alguém dotado de
grande sensibilidade e inteligência prática para perceber a harmonia ou desarmonia
homem/natureza e quando isso significa realmente ruptura de uma relação de isonomia.
Segundo Gonçalves
36
(2003), a medicina grega
[...] se constitui naquela ciência da prática cujo saber enfrenta o confronto
entre necessidades e acaso. Em outras palavras, ela precisa se aproximar da
ordem necessária das coisas do movimento, que incorporam também o
casual, o aleatório, o imponderável. Assim, para saber como intervir, o
médico precisa contar com a técnica, imaginação engenhosa e iniciativa que,
entre os gregos, dizem respeito à deusa Métis, ou às qualidades desta deusa: a
inteligência prática. (GONÇALVES 2003, p. 47)
Ainda que a antiguidade clássica não estivesse preocupada com a saúde dos
trabalhadores ou com a relação entre trabalho e saúde-doença, nem com a forma de
distribuição dos cuidados médicos às diferentes classes sociais, a influência de certas
ocupações não deixou de ser observada por médicos e leigos do mundo greco-romano.
Rosen (1983, p. 27) faz referência aos escritos hipocráticos, a Plínio, o velho; a
Lucrécio, Juvenal, Martial, Lucan, Galeno, Silius, Itálicus e Statius, como alguns que
registraram, nas suas obras e discursos, essa preocupação. Segundo o mesmo autor, no
século V a.C, Platão verificou a grande diferença entre o cuidado médico dispensado ao
trabalhador manual e aquele dispensado ao homem rico. Ao mesmo tempo, fez a mesma
comparação entre o escravo e o homem livre.
A ilustração de um diálogo entre Sócrates e Glauco, retirado dos fragmentos
406a-e e 407a-e da obra A República
37
, oferece elementos para que se entendam as
diferentes concepções de cuidado à saúde e a diferença de tratamento que se dispensava
36
Esse autor, citando Marilena Chauí, esclarece, numa nota de rodapé da sua obra, que Mètis, na
mitologia grega, é mulher de Zeus, rei dos deuses do Olimpo, e tem três filhos: Skótus (sombra, treva,
ausência de luz), Poros (o estratagema, o que sabe encontrar um caminho onde não há caminho, onde
aporia) e Tecmar (o que produz sinais e indícios para percorrer um caminho e chegar ao final do
percurso). Esclarece, também, que Mètis dá origem à oposição primordial que define a técnica: a
oposição entre a treva ou a aporia e o estratagema astucioso, que se vale de sinais e índices para resolver
dificuldades. Contemplando essa alegoria, parece não haver síntese mais feliz sobre o sentido da medicina
e do ser médico.
37
Dentro desse diálogo, o tradutor da obra faz duas observações para esclarecimento dos leitores, que
julgamos importante repassar. A primeira diz respeito à palavra barrete, uma espécie de chapéu de feltro
que os médicos antigos, por vezes, mandavam usar e que para o leitor moderno seria mais sugestiva,
mesmo que menos exata, a equivalência com “emplastos”. A segunda trata-se de uma explicação sobre
quem foi Focílides, um poeta gnômico grego do século VI a.C, muito apreciado pelos antigos, mas de
quem só se conhecem citações como a utilizada por Glauco no fragmento exposto.
62
às diferentes classes sociais gregas. O diálogo é intercalado e começa com Glauco, que
diz para Sócrates:
Um carpinteiro, quando está doente, pretende do médico que lhe dê a
beber um remédio que o faça vomitar a causa da doença, ou que o liberte,
purgando-o ou usando de cautérios ou praticando uma incisão. Mas, se
alguém lhe prescrever uma dieta a longo prazo, pondo-lhe um barrete na
cabeça e o mais que se segue, em breve lhe diz que não tem tempo para ficar
doente nem lhe serve de nada viver assim, com o espírito entregue às
doenças, descurando o trabalho que tem na frente. E depois disso, manda
embora um médico desses, entra na sua dieta normal, e fica são, vivendo para
o seu trabalho. E se o seu corpo não é capaz de resistir, a morte liberta-o de
dificuldades.
É realmente essa a terapêutica que parece servir a um homem assim.
Acaso porque tinha uma ocupação que, se não a exercesse, não lhe valia a
pena viver?
– É evidente.
– Ao passo que quem é rico, como dizíamos, não tem nenhuma ocupação
premente desta espécie, de que possa ser forçado a abster-se, sem que a vida
se lhe torne impossível.
– É o que se diz.
– Nunca ouviste o dito de Focílides, de que quando se tem com que viver, se
deve praticar a virtude?
– E antes disso também, entendo eu. (PLATÃO, 2001, p. 100)
Esse diálogo indica que o melhor cuidado médico requeria tempo e
circunstâncias favoráveis que não estavam apenas no tirocínio dos médicos. Poucas
pessoas poderiam cuidar da sua saúde levando em conta os recursos que seriam
necessários em face das recomendações formais de então. Isso reforça o vínculo da
saúde-doença sofrendo influência do poder, da economia, da política e da cultura, o que
não deixou de acontecer no caso da Grécia antiga, possivelmente em função da forma
de organização da pólis grega. Como antes, isso continua a acontecer na sociedade
atual, revelando, talvez, certa pedagogia. Uma pedagogia que distingue diferentes
cidadanias, em que uns parecem fadados a sua própria sorte, enquanto outros podem
usufruir da condição ocupada, em face do poder conquistado ou herdado.
Rosen (1983), referindo-se ao comentarista de Sobre a Dieta, trabalho
atribuído a Hipócrates, afirma que este concordou que a massa do povo, devido à
pobreza, levava uma vida ao sabor da sorte e, negligenciando tudo, não podia cuidar da
sua saúde. Plutarco, em um ensaio sobre como conservar a saúde, 500 anos mais tarde,
enfatizou que estava escrevendo para eruditos e homens públicos, e não, para homens
engajados nos trabalhosos negócios de colher e cuidar de plantações
38
.
38
As referências utilizadas pelo autor estão assim grafadas, pela ordem: Hipócrates, Diet. Littré, VI, pp.
594-604; Plutarco, “Advice about Kepping Well”, Moralia. Trad. Frank Cole Babbit. London, William
Heinemann, Ltd., 1928, II, p. 291.
63
As sociedades primitivas e as que formaram a Antigüidade Clássica, em
termos de saúde-doença, medicina e prática médica, eram baseadas num conhecimento
construído a partir da observação e da experiência vivida no contato com a natureza -
caso específico dos gregos - mas, também, pela construção mitológica acerca daquilo
que a experiência e o conhecimento da época não eram capazes de explicar - caso dos
próprios gregos e dos povos que lhes antecederam.
Tem-se que os médicos ou aqueles que, por suas qualidades específicas,
tinham a tarefa de cuidar da saúde dos cidadãos, não eram pessoas comuns. Eram
detentoras do poder e do reconhecimento dos demais pelo seu conhecimento sobre a
relação homem/natureza, pelas suas posses e relação com os dirigentes da sociedade ou
mesmo por outros critérios próprios da cultura de cada povo, como a tradição e a
religião.
A tradição histórica mostra que eram sociedades autoritárias, arbitrárias e,
não raro, antidialogais. A possibilidade de diálogo era restrita àqueles que podiam ser
considerados cidadãos, uma minoria, em se tratando da Grécia antiga e do Império
greco-romano. Era uma sociedade onde reinava uma profunda desigualdade em todos os
aspectos. Isso incluía o cuidado com a saúde, que obedecia à posição ocupada por cada
classe de pessoas naquelas sociedades e, em sendo a maioria composta de escravos,
restavam-lhes a servidão, o trabalho pesado e nenhum cuidado.
3.3 A saúde-doença entre a fé e a razão
Longe de poder ser considerado um período homogêneo, até por conta da
sua longa duração, a Idade Média
39
representou, para a Europa, um período de transição
39
A Era Medieval pode ser subdividida em períodos históricos. Num dos modos de classificação, ela é
separada em dois períodos: Alta Idade Média, que decorre do século V ao X, e Baixa Idade Média, que se
estende do século XI ao XV. Outra classificação divide-a em três períodos: Idade Média Antiga (ou Alta
Idade Média ou Antigüidade Tardia), que decorre do século V ao X; Idade Média Plena (ou Idade Média
Clássica), que se estende do século XI ao XIII, e Idade Média Tardia (ou Baixa Idade Média),
correspondente aos séculos XIV e XV. Certas sociedades, fora da Europa, como o Japão, por exemplo,
atravessaram períodos históricos "de transição" que chegam a ser denominados também como Idade
Média, porém o período medieval é um evento estritamente europeu. Para uma boa retrospectiva da
historiografia desse e de outros períodos da trajetória da humanidade, há uma infinidade de obras à
disposição dos interessados. Particularmente, sugerimos: VICENTINO, C. História Geral: Idade Média,
Moderna e Contemporânea, incluindo Pré-História, Grécia e Roma. 5ª edição. São Paulo: Scipione,
1994.
64
e adaptações até se chegar ao Renascimento e à Modernidade. Com a invasão dos povos
bárbaros e a implosão do Império Romano, os grandes proprietários construíram
castelos medievais a fim de se proteger, e a maior parte das pessoas optou pela vida no
campo, onde julgavam estar mais seguras. Disso decorreu que o europeu ocidental foi
perdendo contato com o Oriente, e a língua grega acabou por ser esquecida. Isso é
importante para se compreender como o acesso aos tratados originais dos filósofos
clássicos se perdeu, ficando apenas versões desse conhecimento. As traduções, segundo
consta, eram de má qualidade. Algumas haviam sido truncadas ou, em alguns casos,
deturpadas pelos romanos, quando da sua passagem para o latim (RONAN, 1983;
VICENTINO, 1994).
A Igreja Católica resistiu à desintegração do Império Romano e manteve o
que restou da força intelectual do período anterior, enclausurando-a nas bibliotecas da
vida monástica. Os homens instruídos desses séculos eram quase sempre clérigos ou
pessoas que gravitavam em torno dos conventos, para quem o estudo dos
conhecimentos naturais era uma pequena parte de sua escolaridade. Esses estudiosos
viviam numa atmosfera que dava prioridade à fé e tinham a mente mais voltada para a
salvação das almas do que para o questionamento de detalhes do universo físico
40
.
Os pensadores cristãos, principalmente a partir do século V, perceberam a
necessidade de aprofundar a fé que estava amadurecendo e evoluíram, com o intuito de
harmonizá-la com as exigências do pensamento filosófico. A Filosofia que, até então,
detinha traços marcadamente clássicos e helenísticos, passa a receber influências da
cultura judaica e cristã. E alguns temas, antes ausentes do universo do pensamento
grego, como: providência, revelação divina e criação, passaram a fazer parte das
temáticas filosóficas (RONAN, 1983).
A questão-chave que vai atravessar todo o pensamento filosófico medieval é
a harmonização de duas esferas: a fé e a razão. O pensamento de Santo Agostinho
(Século V) reconhecia a importância do conhecimento, mas defendia uma subordinação
maior da razão em relação à fé, por crer que esta última vinha restaurar a condição
decaída da razão humana. Já Santo Tomás de Aquino (Século XIII) defendia uma maior
40
Há várias referências históricas ao comportamento da igreja nesse período da vida humana, em cuja
recuperação os compêndios de História Geral são pródigos. Porém, há uma trama histórico-policial do
escritor, filósofo e lingüista italiano Umberto Eco, O Nome da Rosa (Il nome della Rosa, 1980), obra
depois passada para o cinema. Mesmo se tratando de uma ficção, merece aqui alusão por retratar o
ambiente monástico da Idade Média, o pensamento e as ações da Igreja Católica em relação à Ciência e
ao Conhecimento, no contexto da Inquisição.
65
autonomia da razão na obtenção de respostas, apesar de não negar tal subordinação da
razão à fé (RONAN, 1983). A partir do século IX, desenvolve-se a principal linha
filosófica do período, a Escolástica. Essa filosofia ganhou acentos notadamente cristãos
surgidos da necessidade de responder às exigências de fé, ensinada pela Igreja Católica,
considerada, então, como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a
cristandade e responsável pela unidade de toda a Europa. A Escolástica combinava
elementos do pensamento platônico com valores de ordem espiritual reinterpretados
pelo Ocidente cristão. No século XIII, Santo Tomás de Aquino introduz elementos da
filosofia de Aristóteles no pensamento escolástico (RONAN, 1983).
A forte influência religiosa na Idade Média limitou a criatividade e o
desenvolvimento de novos conhecimentos devido ao controle imposto pela Igreja
Católica que, temendo perder sua autoridade, reprimia toda idéia que pudesse traçar
novos caminhos para a ciência e tentava impedir o seu livre desenvolvimento. Isso não
quer dizer que a ciência deixou de seguir o seu desiderato, mas é fato reconhecido que o
obscurantismo do clero combateu a ciência que se manifestava baseada na experiência e
na razão. Quem se interessasse pelos segredos da natureza e ousasse investigar por meio
de experiências, ficava comprometido em perigosa associação com os mágicos,
feiticeiros e alquimistas. Estes seriam os conspiradores dedicados a descobrir os
segredos que Deus velara de mistérios (KOSMINSKY, 1960).
Para Ronan (1983), no entanto, apesar desse posicionamento da Igreja
Católica, entre os cristãos havia divergências no que diz respeito ao estudo do mundo
natural criado por Deus. Existiam aqueles que ignoravam os estudos científicos para se
concentrar no tema da salvação da alma, temendo que a ciência, ao se dedicar aos
escritos gregos pagãos, acabasse por contaminar as almas cristãs com idéias perigosas.
E havia cristãos cuja crença era de que, estudando o trabalho de Deus, através da
ciência, seria permitido aos homens um aumento da consciência em relação à
onipotência e à sabedoria divina.
Heer (1968) descreve que o padrão de desenvolvimento das idéias
medievais quanto à ciência era composto de numerosos elementos contraditórios e
diversos. Seus métodos eram uma combinação de empirismo e especulação, mas o peso
de pressões religiosas era tal que, embora essas atividades satisfizessem o indivíduo, o
que emergia delas não era de certeza científica. Os diferentes assuntos estavam tão
intimamente ligados que se tornavam híbridos – química com alquimia, astronomia com
astrologia, tecnologia com magia, medicina com filosofia. A mentalidade básica na
66
Idade Média relacionava-se com a visão racionalista do universo, produto da conjunção
da filosofia grega com a concepção cristã de Deus. Aceitando a existência de uma
unidade cosmológica, o homem medieval via todas as coisas ligadas entre si (FRANCO
JÚNIOR, 1992).
Em relação ao processo saúde-doença, a imposição da filosofia cristã, ao
longo da Idade Média, resultou numa espécie de estagnação do desenvolvimento da sua
visão. A concepção grega, que perdurara durante vários séculos – até a desintegração do
Império Romano do Ocidente, por volta do século V da era cristã – aos poucos foi
sendo deixada de lado em favor de uma visão de mundo teológico-cristã, que se refletiu
na prática médica. As causas das doenças continuaram sendo atribuídas à variabilidade
dos humores corporais e à natureza, mas a fé e a religiosidade passaram a ser
consideradas como elementos imprescindíveis ao tratamento, e a cura ficava a cargo da
igreja e dos sacerdotes, confundindo-se em muitos momentos com as práticas religiosas
(FRANCO JÚNIOR, 1992).
Coincidentemente, ou não, essa foi uma era de grandes epidemias e pestes
que dizimaram uma parte significativa da população, chegando a colocar em perigo a
continuidade do homem na face da terra. Para se ter uma visão mais clara do
retardamento que significou esse período da humanidade, para esse conhecimento
específico, basta que se veja que, por volta dos séculos XIV e XV, ou seja, já no final da
Idade Média, a causa das doenças continuava sendo atribuída à mesma variabilidade dos
humores corporais. Segundo as crenças disseminadas pela Igreja Católica, as doenças
atingiam, principalmente, as pessoas que estavam em pecado (GUTIERREZ;
OBERDIEK, 2001).
Ao contrário da veneração pela saúde corporal, típica do classicismo greco-
romano, com suas academias e dietas, nos primeiros séculos da Idade Média, o
tratamento das doenças, aos poucos, fora transferido para os monastérios onde se
pregava o aperfeiçoamento do espírito em detrimento do corpo físico. A doença era
explorada como uma forma de purificação da alma e expiação dos pecados e tratável
pelo arrependimento, pela mortificação, pela penitência, pelas orações e súplicas, pela
busca dos milagres ou mesmo pela compra de indulgências às autoridades religiosas
(GUTIERREZ; OBERDIEK, 2001).
E como se vivia em um estado cristão no Ocidente, os inimigos da coroa e
da fé eram considerados pagãos, hereges e foras-da-lei, sendo perseguidos, presos,
acorrentados e, dependendo da situação, submetidos a exorcismos, porquanto se
67
acreditava que, por não serem cristãos, muitos eram possuídos por espíritos imundos ou
praticavam bruxarias e viviam sob seu efeito
41
. Como se pode notar, esse era um
verdadeiro retrocesso e aprisionamento, em se tratando das conquistas que o
conhecimento e a filosofia já houveram operado na sociedade, com implicações para as
práticas em saúde, em particular, a prática médica, e para a medicina ocidental européia
que, nessas condições, pouco ou quase nada tinha de dialogal.
Havia, entretanto, outras variáveis, além da político-ideológica, que
contribuíam para a situação de indigência em relação à saúde-doença. E uma delas eram
os grandes deslocamentos de pessoas provocados, de um lado, pelas cruzadas e, de
outro, pelas aglomerações nas cidades que nasciam sem a mínima estrutura sanitária e
sem planejamento, o que fazia aumentar ainda mais o risco e a ocorrência de grandes
epidemias. Em meados do século XIV, a peste negra
42
devastou a população européia.
Os historiadores calculam que aproximadamente um terço dos habitantes morreram
dessa doença (BARATA, 1985; MCNEIL, 1976).
Além do mais, os conventos e monastérios atribuíam a esse mal fatores
comportamentais, ambientais ou religiosos, retomando a teoria do contágio já
encontrada no Velho Testamento. Essa situação, inclusive, foi uma das propulsoras para
que outras teorias sobre a causação das doenças aparecessem ou fossem retomadas.
Continuava-se acreditando no poder dos astros e sua influência na causação das
doenças. As explicações culpabilizavam os leprosos, os judeus, ou mesmo os
endemoninhados pelo envenenamento de mananciais, utensílios e objetos.
É famosa uma passagem citada em Barata (1985), recolhida dos escritos de
um monge franciscano italiano, que se refere à epidemia de peste ocorrida em 1374,
naquele país:
41
Impossível, nesse contexto, não se fazer uma alusão aos processos e aos tribunais inquisitórios da Igreja
Católica. A Inquisição, cuja instituição remonta ao Concílio de Verona, ocorrido em 1183, foi talvez a
marca indelével de um período histórico em que o poder eclesiástico, ao se confundir com o poder real,
aliou a força da fé à força da lei, da coação e da violência; torturou e eliminou aqueles que eram
entendidos como inimigos do Estado e, conseqüentemente, da Igreja. Assim, sufocava-se qualquer anseio
de liberdade, de autonomia e de afirmação do elemento humano comum, como alguém capaz de conhecer
e fazer conhecida a sua criação. Era um estado de absoluta censura e total controle sobre os corações e
mentes que naquela época ousassem afirmar o homem do povo como capaz de fazer andar a sua própria
vida.
42
A peste negra era transmitida através da picada de pulgas de ratos doentes. Esses ratos chegavam à
Europa nos porões dos navios vindos do Oriente. Como as cidades medievais não tinham condições
higiênicas adequadas, os ratos se espalharam facilmente. Após o contato com a doença, a pessoa tinha
poucos dias de vida. Febre, mal-estar e bulbos (bolhas) de sangue e pus espalhavam-se pelo corpo do
doente, principalmente nas axilas e virilhas. Como os conhecimentos médicos eram pouco desenvolvidos,
a morte era certa. (MCNEIL, 1976)
68
Devido a uma infecção do hálito que se espalhou em torno deles, enquanto
falavam, um infectava o outro... e não só faziam morrer quem quer que
falasse com eles como, também, quem quer que comprasse, tocasse ou tirasse
alguma coisa que lhes pertencesse (MICHELE PIAZZA, monge franciscano,
1374. Apud. BARATA, 1985, p. 16).
Ao admitir o contágio das doenças e relacioná-lo a locais miasmáticos, o
conhecimento da época recuperava a tradição hipocrática e a sistematização galênica
que dava ênfase aos fatores físicos do ambiente como produtores de doenças. Os
miasmas advinham de lugares onde, de alguma forma, existiam águas pútridas, matéria
orgânica em decomposição ou algo que infestasse o ar. Aceitava-se, ainda, que se
processavam nesses lugares alterações atmosféricas a partir de uma conjugação maligna
dos astros. Esse ar, ao ser inalado, provocava alteração na natureza dos corpos,
evidenciando a doença. Porém, um fato se confrontava com a realidade: era o de que
nem todos que estavam submetidos a essas circunstâncias ficavam doentes. Isso levava
a concluir que havia alguma predisposição individual envolvida no adoecimento. E,
nesse caso, a desconfiança se voltava para os aspectos ligados à higiene dos lugares e
dos corpos das pessoas.
Assim, faz-se necessário reconhecer que, embora o cristianismo desse maior
importância às coisas do espírito – retratadas na punição ou salvação da alma no outro
mundo – em detrimento do corpo físico e da vida terrena, o homem medieval - e aqui se
entendam os clérigos e as classes mais abastadas, que viviam sob sua orientação - era
educado no sentido da higiene pessoal e dos bons hábitos de alimentação. Isso
prolongaria a vida na terra e as possibilidades de praticar boas obras, aspecto
fundamental para se ter um bom julgamento no Juízo Final, razão por que os conventos
incentivavam o consumo de frutas e legumes, mesmo em refeições muito simples.
3.4 A medicina como prática pagã
Heer (1968) revela que, ao largo da Igreja Católica, desenvolveu-se, na
Idade Média, uma medicina “pagã”, relacionada com uma visão particular do mundo.
Essa medicina era fruto da absorção dos ensinamentos da medicina clássica e da
filosofia médica concebidas por médicos árabes e judeus. A formação dos médicos
69
dessa tendência indicava que o aprendiz ou praticante em formação precisava viver pelo
menos um período no Mediterrâneo, onde haveria uma atmosfera livre-pensadora
esclarecida. Nessa formação, relata o autor, a teoria e a prática da medicina cresciam
lado a lado
43
e, de forma ousada, investigava-se o corpo humano. A ousadia firmava-se
numa espécie de desafio às crenças católicas, em que dissecar
44
o homem era como
dissecar a Deus, visto que o corpo do homem, segundo a Igreja Católica, representava a
imagem do corpo de Cristo. Assim, dedicavam-se ao estudo da anatomia, prática
considerada pagã e inumana por essa religião.
Apesar de algumas análises históricas, principalmente em face de a ação da
Igreja Católica exagerar a influência do catolicismo nesse período, chegando a
caracterizá-lo como uma idade das trevas, para o conhecimento, isso deve ser
relativizado. Os períodos de retrocessos causados pelas migrações e pelas ondas de
invasões estrangeiras foram, ao longo do tempo, vencidos, propiciando o renascimento
urbano e comercial, a ampliação de culturas e fronteiras agrícolas, o crescimento
econômico, o desenvolvimento científico e grandes evoluções tecnológicas.
Por volta dos séculos XII e XIII, são fundadas as primeiras universidades –
Paris, Coimbra, Bologna e Oxford – e, em 1500, já seriam mais de 70. Começa, então,
um forte movimento de tradução de documentos árabes e gregos, que tornam o
conhecimento do mundo antigo novamente disponível para os eruditos europeus. Tudo
isso possibilitou um grande progresso em conhecimentos como os da Astronomia, da
Matemática, da Biologia e da Medicina. O fim da Idade Média está relacionado a
grandes transformações, dentre elas, podem-se destacar: a ascensão das
monarquias
européias, o início da recuperação demográfica e econômica, os descobrimentos
marítimos e o movimento de
redescoberta da cultura clássica, por volta do século XV
(RONAN, 1983).
43
Mesmo que isso não seja categoricamente assumido ou dito pelo autor, pode-se inferir que a abordagem
da Medicina, aqui caracterizada como pagã, tenha sido, pela sua característica de associar, já na formação
médica, teoria e prática, uma medicina mais voltada para o diálogo.
44
Apesar de a medicina dever seu avanço à prática das cirurgias feitas pelos cirurgiões do exército, os
professores universitários desprezavam seus trabalhos, pois, nas universidades, “a medicina era
inteiramente um assunto de sabedoria de livros, com particular referência aos textos clássicos” (HEER,
1968, p.322). A partir de então, a prática da medicina (clínica) passou a ser uma carreira de família. Essa
continuidade era importante, pois formava uma tradição e dava segurança aos profissionais.
70
3.5 A saúde-doença com base científica
A Idade Moderna foi palco da transição do feudalismo para o capitalismo.
Assistiu a uma época de renascimento quando o mundo experimentou grandes avanços
em todos os campos, notadamente nas ciências, que deram um grande salto qualitativo.
E mesmo que continuasse e até evoluísse a teoria do contágio que sustentava e
reforçava a doença como algo externo ao homem, colocando-o na condição de um quase
impotente receptáculo de doenças e agravos – a reforma protestante, o questionamento
da verdade absoluta representada pela Igreja Católica e a queda paulatina de sua forte
influência nas cortes da Europa, foram, aos poucos, deslocando o eixo das discussões
sobre causalidade, fazendo com que a discussão assumisse posições mais científicas.
Nessas condições, a medicina voltou ao laicismo e foram retomados e
mesmo revelados os experimentos clínicos que, mesmo proscritos pela igreja, foram
feitos, muitos na clandestinidade. Os relatos desses experimentos passaram a ter grande
influência e credibilidade, mesmo que continuassem hegemônicas as idéias do contágio
que, a essa altura, evoluíra para a teoria dos miasmas. A teoria miasmática afirmava que
a origem das doenças situava-se na má qualidade do ar proveniente das emanações
resultantes da decomposição de animais e plantas. Essa teoria, como a do contágio que,
em si, já denotava uma determinada linha de “raciocínio epidemiológico” e que
dominou o pensamento médico oficial até metade do século XIX, pode ser assim
caracterizada:
Há diferentes constituições em diferentes épocas. Elas não se originam nem
do calor, nem do frio, nem da umidade, nem da secura, elas dependem de
certas misteriosas e inexplicáveis alterações nas entranhas da terra. Pelos seus
eflúvios, a atmosfera torna-se contaminada e os organismos dos homens são
predispostos e determinados (SYDEHAM, apud. BARATA, 1985, p. 18).
O empirismo, entretanto, baseado na observação e na explicação racional
para os fenômenos naturais, inaugurara uma era de descobertas científicas em todos os
campos. Na saúde, os estudos se voltaram para o desenvolvimento da clínica e das
teorias acerca da causalidade das doenças. Um conjunto de estudos que merece destaque
é o desenvolvido por Bernardino Ramazzini
45
, primeiro trabalho de que se tem notícia a
45
A obra desse autor, De Morbis Artificum Diatriba, foi publicada pela primeira vez em 1713. O texto
original em latim teve uma revisão e tradução para o inglês pela Universidade de Chicago em 1940. Foi
traduzida e publicada no Brasil pela FUNDACENTRO, órgão da estrutura do Ministério do Trabalho, em
1971. Há também uma tradução impressa e publicada pela mesma Fundação, na década de oitenta do
71
relatar a preocupação com relação à saúde da população e dos trabalhadores, em
particular, considerando-a do ponto de vista dos diversos ofícios existentes àquela
época. Nos seus estudos baseados na observação, chegou a descrever os padecimentos
relacionados a cinqüenta e quatro ocupações distintas. Suas conjecturas normalmente
levavam em conta o contato laboral com substâncias manipuladas, odores, poeiras e
emanações tóxicas e irritantes para o organismo. Também faziam referência à violência
do trabalho sobre o corpo, às posições forçadas e inadequadas que, assumidas durante a
jornada laboral, aos poucos iam adoecendo e produzindo graves enfermidades nos
trabalhadores.
Sobre os agricultores italianos, Ramazzini escreveu:
As doenças que costumam atacar a população agrícola, pelo menos na Itália,
e especialmente às margens do rio Pó, o pleurisia, inflamação dos pulmões,
asma, cólica, erisipelas, aftalmia, amigdalite, dor de dentes e cárie dentária...
Os erros que observei no tratamento desta classe de homens são muitos, e
surgem do fato de se supor que a classe camponesa, por causa de sua
constituição forte, é capaz de tolerar remédios fortes melhor do que o povo da
cidade (RAMAZZINI, 1940, apud. ROSEN, 1983, p. 30).
Já sobre os oleiros, observou:
Trabalhadores desta espécie vêm principalmente da classe camponesa: assim,
quando são atacados pela febre, dirigem-se para suas choupanas e deixam o
caso inteiramente à natureza, ou senão são levados para o hospital e lá são
tratados, como toda gente, com remédios comuns, purgantes e sangria. Os
médicos nada sabem do modo de vida destes trabalhadores, que estão
exaustos e prostrados pelo incessante trabalho [...] Para estes desgraçados
trabalhadores, o melhor remédio seria um banho de água fresca, no estágio
inicial, quando começam a ter febre, pois seus corpos estão descuidados e
ásperos de imundície e, umedecendo a pele e abrindo os poros, seria dado
passagem à febre (RAMAZZINI, 1940, apud. ROSEN, 1983, p. 30).
Os dois fragmentos transcritos permitem, pelo menos, duas observações: a
primeira expressa uma posição que indica, já naquela época, ser possível se analisar a
doença segundo um perfil de classe social, que poderia assumir características diferentes
de acordo com as ocupações, os tipos de trabalho e a forma de prescrição das tarefas,
considerando a própria constituição do trabalhador frente às cargas laborais e ao
processo de desgaste determinado pelo trabalho
46
. A segunda observação diz respeito à
século passado. A referência completa da publicação mais recente é a seguinte: RAMAZZINI, B. – As
doenças dos trabalhadores. São Paulo: FUNDACENTRO, 1985;
46
O conceito de carga de trabalho é mais ou menos recente e diz respeito aos elementos do processo de
trabalho que interatuam dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador, gerando os processos de
adaptação e desgaste. As cargas podem ser divididas em vários tipos: físicas, químicas, biológicas,
ergonômicas ou fisiológicas e psíquicas. Já o conceito de desgaste diz respeito à perda de capacidade
potencial ou efetiva, corporal e psíquica do trabalhador. Para um aprofundamento desses dois conceitos e
72
constatação em relação à visão de saúde-doença predominante na medicina da época,
que não considerava, nos seus diagnósticos e tratamentos, as condições de vida e de
trabalho das pessoas.
Isso foi de suma importância para aquela época, da mesma forma como
ainda o é hoje, visto que, em muitos casos, a Medicina, por questões ideológicas ou por
sua tradição reducionista marcada pela biologia, não se permitia ao diálogo com outras
formas de conhecimento para explicar a saúde e a doença, optando, no mais das vezes,
por uma visão representacionista e marcadamente cartesiana. A essa altura, já por volta
do século XVIII, evoluíam os estudos sobre anatomia, fisiologia e patologia,
informados por experimentos precursores que já datavam de séculos anteriores
47
.
Evoluía, ainda, a linguagem dos sinais e sintomas e a relação das doenças com órgãos
do corpo, estudos que deram base empírica para novos avanços da Medicina.
No plano político-ideológico, a Idade Moderna foi a era das grandes
revoluções. A Revolução Inglesa do século XVII representou a primeira manifestação
de crise do sistema moderno, identificado com o absolutismo. O poder monárquico,
severamente limitado, cedeu a maior parte de suas prerrogativas ao Parlamento e
instaurou-se o regime parlamentarista que permanece até hoje. O processo começou
com a Revolução Puritana, de 1640, e terminou com a Revolução Gloriosa de 1688. As
duas fazem parte de um mesmo processo revolucionário, daí a denominação de
Revolução Inglesa do século XVII. Esse movimento revolucionário criou as condições
indispensáveis para a Revolução Industrial do século XVIII, limpando o terreno para o
avanço do capitalismo. Nesse sentido, deve ser considerada a primeira revolução
burguesa da história da Europa (AQUINO, 1999; ARRUDA, 1978).
A Revolução Americana de 1776, conhecida como a Guerra da
Independência dos Estados Unidos da América, foi a segunda delas. Desfechada contra
o domínio inglês, constituiu-se um movimento de ampla base popular, cujo principal
sua relação com a saúde dos trabalhadores, indicamos a leitura de LAURELL, A.C & NORIEGA, M.
Processo de Produção e Saúde: Trabalho e Desgaste Operário. São Paulo, Hucitec, 1989.
47
Datam dos séculos XVI e XVII os estudos de William Harvey (1578-1657), que retomou estudos
anteriores de Miguel Servet (1511-1553) e avançou sobre a circulação sangüínea, inicialmente nas
ovelhas e depois no próprio homem, iniciando e dando força aos estudos posteriores de anatomia
comparada. Os estudos de André Vesálio (1514-1590), Ambroise Paré (1509-1564), Pierre Franco (1500-
1561), Gabriele Fallópio (1523-1563) e Tagliacozzi (1546-1599), impulsionaram, por outro lado, a área
da anatomia e da cirurgia, inclusive a cirurgia plástica, que tem seu início nesse período. Para uma
recuperação consistente da história da saúde pública, nesse e noutros períodos, sugerimos um texto de
GUTIERREZ, P. R. e OBERDIEK, H. I. – Concepções sobre a Saúde e a Doença. In: Selma Maffei de
Andrade, Darli Antônio Soares, Luiz Cordoni Júnior (orgs.). Bases da Saúde Coletiva. Londrina:
EDUEL, 2001.
73
motor foi a burguesia colonial. Essa revolução foi particularmente importante porque,
pela primeira vez na História da expansão européia, uma colônia
48
tornava-se
independente por meio de um processo revolucionário. O seu pioneirismo pode ser
constatado no fato de organizar uma Constituição que definia uma federação de estados
dotados de grande autonomia, consignava os direitos individuais dos cidadãos, definia
os limites dos poderes dos diversos estados e do governo federal e estabelecia um
sistema de equilíbrio entre os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, de modo a
impedir a supremacia de qualquer deles, além de outras disposições inovadoras
(AQUINO, 1999; ARRUDA, 1978).
Falcon e Moura (1989), entretanto, relativizam o caráter revolucionário da
independência porque o saldo do movimento foi a tomada do poder das mãos da
oligarquia metropolitana pela burguesia colonial, como expressa o fragmento seguinte:
Ideologicamente identificada com a burguesia européia dessa época, e talvez
até mais ainda com as idéias da Revolução Inglesa do século XVII, a
Revolução Americana conduziu à formação de uma República em que se
procurou eliminar o excesso de autonomia dos Estados, antigas colônias, em
benefício da autoridade federal. Nada melhor do que os debates que
presidiram a elaboração da Constituição Americana em seus aspectos
econômicos, sociais, políticos e ideológicos. O seu caráter revolucionário
talvez só possa ser entendido e aceito adotando-se uma perspectiva bem mais
ampla, que nos permita abranger também a ‘guerra civil americana’, já na
segunda metade do século XIX (FALCON; MOURA, 1989, p. 301).
A Revolução Americana, assim como as idéias iluministas, influenciou
outra revolução: a Revolução Francesa (1789). Considerada como o acontecimento que
deu início à Idade Contemporânea, essa revolução aboliu a servidão e os direitos feudais
na França e proclamou os princípios universais de liberdade, igualdade e fraternidade.
Alterou o quadro político e social da França ao provocar a derrocada do Ancien Régime,
representado pelo absolutismo e pelo capitalismo comercial. Acabou com os privilégios
e a autoridade do clero e da nobreza, ainda que, sob Luís XVIII, de certa forma, tenha
sido derrotada pela tentativa de retornar aos padrões políticos, sociais e institucionais do
Antigo Regime, através de um movimento denominado de Restauração. Mas é
importante lembrar que a Revolução Francesa semeou novas ideologias na Europa,
conduziu guerras e foi inspiração para novos movimentos libertários.
48
Na verdade, em relação aos Estados Unidos, o correto seria falar-se de colônias, já que a revolução
envolveu treze colônias britânicas do hoje território americano. A proclamação da independencia, em 04
de julho de 1776, deu-se num documento histórico que defendia o direito à independência e à livre
escolha de cada povo e de cada pessoa, e que o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade era
inalienável e de origem divina.
74
Para Hobsbawm (1989), o legado da Revolução Francesa deixou frutos que
vão além do tempo e do espaço.
A Revolução Francesa dominou a história, a própria linguagem e o
simbolismo político ocidental desde a sua irrupção até o período que se
seguiu à Primeira Guerra Mundial [...] Assim, por quase um século e meio, a
bandeira tricolor francesa forneceu abertamente o modelo para as bandeiras
da maioria dos Estados recém-independentes ou unificados no mundo: a
Alemanha escolheu o preto, o branco e o vermelho; a Itália, verde, branco e
vermelho [...] Mesmo na América, as bandeiras que mostram a influência
tricolor superam o número das que mostram influência do Norte
(HOBSBAUM, 1989. Apud. MOTA, 1997, p. 210).
Outro acontecimento importante, na Europa, foi a revolução industrial
49
inglesa, que organizou o trabalho fabril. Inicialmente, essa revolução baseou-se nas
indústrias têxteis para, logo depois, ir se diversificando e se alastrando por toda a
Europa assim como pelas Américas que, seguindo os passos do que acontecia no velho
continente, tiveram que fazer os seus movimentos de independência e depois, aos
poucos, se alinharem, não sem traumas, ao contexto das nações modernas
consolidadoras do Estado liberal que impulsionou o início da Idade Contemporânea. Os
Estados Unidos, primeiro, e o Brasil, cinqüenta anos depois, são os exemplos mais
importantes, na América do Norte e na América do Sul, dessa expansão política e
ideológica, até mesmo por suas grandes dimensões geográficas e populacionais.
Mota (1997) entende que a revolução industrial foi muito mais que uma
revolução técnica e científica. Defende que ela representou uma mudança social
profunda na medida em que transformou a vida dos homens, sem se preocupar com os
custos sociais e ambientais dessa mudança. Para a autora, uma das primeiras
transformações diz respeito ao significado da palavra trabalho. Este que, na ideologia de
até então, significara dor, humilhação e pobreza, passou a ser fonte de propriedade,
riqueza, produtividade e até mesmo expressão da condição humana. Com a ideologia
capitalista industrial, o trabalho passou a dignificar o homem e a qualificá-lo, tornando-
se um indicador de posição social. Adquiriu, portanto, uma posição de centralidade na
sociedade, passando a organizar a vida das pessoas. A mudança mais relevante é que o
controle técnico do trabalho passou para as mãos do capitalista que, nessa situação,
passava a definir o processo de produção. A evolução desse processo é que instituiu a
49
A Revolução Industrial aconteceu na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII (entre 1760 e
1850), para depois se alastrar pela Europa, América e Ásia. Encerrou a transição entre feudalismo e
capitalismo, a fase de acumulação primitiva de capitais e de preponderância do capital mercantil sobre a
produção. Completou ainda o movimento da revolução burguesa iniciada na Inglaterra no século XVII,
por volta de 1670.
75
divisão e o parcelamento do trabalho, resultando na alienação
50
do trabalhador, do
produto do seu esforço laboral. Ele perdia a noção global do processo de produção.
3.6 A experiência clínica como medicina científica
A partir dos conceitos de saúde-doença da época contemporânea, pode-se
dizer que foram vividas, nesse período histórico, profundas e complexas disputas
político-ideológicas, que se deveram, em grande parte, ao fenômeno social da revolução
industrial a que foi feito referência no final da secção anterior e aos reflexos desse
evento na sociedade ocidental e nas condições objetivas de vida do povo dessa mesma
sociedade. A consolidação dos estudos sobre anatomia, fisiologia e patologia, por outro
lado, jogou um papel importante nessa conjuntura, como fenômeno científico, bastando
ver o que revela Foucault (1980), ao afirmar que o grande corte na história da medicina
ocidental data, precisamente, do momento em que a experiência clínica se tornou o
olhar anátomo-clínico.
Há, no entanto, outras interpretações mais rigorosas e cientificistas que
assinalam que o estatuto científico da Medicina só pode ser considerado a partir do dado
concreto da revolução bacteriológica, com a descoberta dos microorganismos feita por
Pasteur. Para muitos, só a partir dela a Medicina teria passado a ser cientificamente
praticada. A bacteriologia poderia explicar todas as epidemias que castigaram as
populações humanas, notadamente na Idade Média. Explicaria, ainda, grande parte dos
adoecimentos humanos e impulsionaria uma convincente teoria das epidemias.
A revolução bacteriológica foi particularmente importante porque deu um
substrato material, biológico, à explicação do evento doença. Mas essa não se constituiu
numa unanimidade. Havia outras explicações para o evento saúde-doença e para os
conflitos sociais nessa época marcada por disputas acirradas entre duas alas: uma,
baseada numa visão higienista
51
da organização das cidades, e outra, que encontrava nas
50
Segundo Giddens (1994), por alienação deve ser entendida a noção de que nossas próprias
potencialidades, enquanto seres humanos, são realizadas ou assumidas por outras entidades. O termo foi
utilizado, pela primeira vez, por Marx querendo indicar a projeção de poderes humanos nos deuses.
Depois, ele o empregou para referir-se à perda de controle do trabalhador sobre a natureza e o produto do
seu trabalho.
51
O higienismo diz respeito à intervenção estatal, num primeiro momento em que este passa a olhar com
mais atenção para a saúde das cidades e de seus habitantes. Evolui do conhecimento da Higiene um ramo
76
questões sociais resultantes da urbanização e da produção econômica a causa do adoecer
e morrer da população. As duas visões, entretanto, detinham um limite: o de se
expressar pelo prisma da unicausalidade.
A centralidade do trabalho, na vida humana, e a organização econômica
capitalista, com suas repercussões na sociedade, formaram o motor desses grandes
conflitos, inicialmente, entre o que podemos chamar de socialistas utópicos
52
, de um
lado, e de liberais, do outro, em pleno alvorecer do século XIX. Os socialistas utópicos
desejavam reformar o capitalismo nascente na Europa, mais precisamente na Inglaterra.
Tiveram papel importante junto aos movimentos que faziam oposição aos condutores da
revolução industrial inglesa. Mas o grupo mais efetivo contra os capitalistas foi mesmo
o dos socialistas científicos, cujos representantes foram Fredrich Engels e Karl Marx
que, com a sua teoria sócio-econômica da história, representada pelo materialismo
histórico, produziram uma filosofia e uma sociologia consistentes e com uma força
explicativa sem precedentes na história contemporânea.
Inspirada na filosofia marxiana e na realidade concreta de vida e trabalho do
operariado europeu, evoluíra uma corrente da medicina denominada de medicina social,
que denunciava o reducionismo da teoria biologicista do processo saúde-doença. A
medicina social questionava os supostos avanços da economia liberal resultante da
revolução industrial em marcha e acusava o novo sistema produtivo de explorar e ceifar
da medicina que busca a origem das enfermidades em fatores ambientais e visa à prevenção da doença a
partir da educação em relação a hábitos de limpeza e de asseio. Data dos séculos XVIII e XIX e advém da
necessidade de se manterem determinadas condições de saúde, nos ambientes das cidades, mediante a
instalação de água corrente, esgotos e iluminação das ruas, e de se poderem controlar as epidemias. Até
meados do século XIX, predominava por esforços individuais, sobretudo de médicos desejosos de cuidar
da saúde urbana. Na sua concepção, era necessário proteger três elementos básicos: o ar, a água e o solo.
Protegidos e mantidos em quantidades e qualidades adequadas, poder-se-iam defender as cidades dos
miasmas e dos vapores malignos que se desprendiam dos corpos enfermos ou substâncias em
decomposição e colocavam em perigo os habitantes das cidades. Punha em prática algumas estratégias
urbanas como: aterrar monturos e retirar indústrias, matadouros e cemitérios de áreas centrais das cidades.
Numa segunda etapa, o movimento higienista saiu do âmbito público e estendeu-se à vida privada nas
residências, proclamando-se a necessidade de construção de banheiros, regulamentando-se a altura
mínima dos tetos, uma adequada ventilação dos ambientes e recomendando-se a limpeza periódica das
casas. Com as investigações de Koch e, principalmente, de Louis Pasteur – quando se descobre que as
enfermidades se relacionam com microorganismos, e não, com emanações de substâncias em
decomposição – a higiene passa a ser uma questão social mais ampla e tecnificada. Passa a fazer uso de
analises bacteriológicas das águas e mananciais e utiliza o cloro para tratamento da água e para desinfetar
os ambientes.
52
Os socialistas utópicos eram teóricos idealistas, normalmente vindos das classes burguesas. Procuravam
conciliar, numa sociedade ideal, os princípios liberais em voga com as necessidades emergentes do
operariado fabril, resultante da revolução industrial. Pela atuação destacada junto aos socialistas
científicos e anarquistas, ao lutarem em favor do operariado inglês, tiveram importância histórica.
77
vidas e de levar à exaustão homens, mulheres e até crianças, sem a necessária
retribuição econômica e social
53
, além de tolher a liberdade e a autonomia humanas.
A partir da leitura de Barata (1985) e Rosen (1983), é possível ilustrar o
presente texto com alguns posicionamentos de dois importantes defensores dessa
corrente da medicina que, mesmo contra-hegemônicos, deram base para as lutas que,
hoje, são travadas sobre a interpretação do processo saúde-doença.
Se a doença é uma expressão da vida individual sob determinadas condições
desfavoráveis, a epidemia deve ser indicativa de distúrbio, em maior escala
da vida das massas [...] As epidemias não apontarão sempre para as
deficiências da sociedade? Podem-se apontar como causas as condições
atmosféricas, as mudanças cósmicas gerais e coisas parecidas, mas, em si e
por si, estes problemas nunca causam epidemias. Só podem produzi-las onde,
devido às condições sociais de pobreza, o povo viveu durante muito tempo
em uma situação anormal (VIRCHOW, 1848, apud BARATA, 1985, p. 19).
A ciência médica é intrínseca e essencialmente uma ciência social; enquanto
isso não for reconhecido na prática, não seremos capazes de desfrutar de seus
benefícios e teremos que nos satisfazer com um vazio e uma mistificação.
(NEUMANN, 1847, apud ROSEN, 1983, p. 51).
A força do argumento da Biologia e as suas comprovações empíricas, numa
discussão dominada pela interpretação unicausal e pelo cartesianismo, deram a
hegemonia da explicação do processo saúde-doença às conclusões de Louis Pasteur. A
Biologia, ao dar materialidade e comprovação empírica às epidemias de então e de
épocas passadas, reforçava a tendência higienista das instituições do Estado e o discurso
liberal que, fazendo uso ideológico do conhecimento científico, defendia-se dos
contestadores da organização capitalista da produção. Munida da comprovação
científica, a medicina, por seu turno, trabalhava a idéia generalizadora de que existiria
para cada doença um microorganismo, e que estes deveriam ser combatidos por vacinas
e medicamentos ou prevenidos por medidas de higiene.
Mas o discurso médico-científico, baseado na teoria microbiana e no
higienismo, com o tempo, demonstrou insuficiência ao ser aplicado no contexto da
53
Nesse período da revolução industrial, foram produzidos muitos relatórios. Eles denunciavam a
situação de penúria, de miséria e de exploração em que viviam as grandes massas da população, e pelo
menos um, produzido enquanto essa realidade se dava, merece ser lembrado: A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels (1845), por sua riqueza monumental, seu estilo vibrante,
erudito e sua extrema lucidez, imprimindo a essa obra um valor histórico inesgotável. Há ainda uma obra
de uma historiadora brasileira da atualidade, retratando essa mesma época, cujo título é Londres e Paris
no século XIX: o espetáculo da pobreza. A autora é Maria Stella M. Bresciani. A referência completa das
duas obras é: ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução de Rosa Camargo
Artigas & Reinaldo Forti, Global Editora, 1985; e BRESCIANI, M.S.M. Londres e Paris no século XIX:
o espetáculo da pobreza. Editora Brasiliense, 6ª edição, (Coleção Tudo é História, n.º 52) São Paulo,
1990.
78
crescente urbanização dos países europeus e da consolidação do sistema fabril. Ao
imprimir à produção ritmos intensos com jornadas extensas e absorver
indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, o sistema acelerava e desgastava os
trabalhadores, trazendo como conseqüência um aumento exagerado no consumo da
força de trabalho. Isso se traduzia em estatísticas alarmantes de acidentes e mortes
(ENGELS, 1985; MARX, 1982).
Essa realidade, à medida que gerava momentos de intenso conflito na
relação capital-trabalho, propiciava o surgimento de movimentos reivindicatórios que,
apoiados pelas correntes socialistas da época, vinculavam a situação reinante – de
miséria, doença e morte – ao novo modo de produção (ROSEN, 1983; SILVA, 1985).
Era a análise das condições objetivas de existência e a força crescente da concepção da
causação social abrindo espaço para a construção de uma teoria social da Medicina, que
relacionava às condições de vida e trabalho das populações o aparecimento das doenças.
O ambiente, antes, origem e explicação para praticamente todas as doenças, deixava,
momentaneamente, de ser natural para revestir-se de social. As causas das doenças
passavam a ser buscadas também nas condições de vida e de trabalho da população.
As tensões provocadas pela disputa de duas visões distintas de explicação
do processo saúde-doença e a necessidade de regulação do conflito resultaram, por volta
da metade do século XIX, num conjunto de ações do Estado que, absorvendo a
efervescência política da época, foi forçado a responder com medidas legislativas
regulamentadoras do trabalho fabril no que dizia respeito, entre outras coisas, à
diminuição da jornada de trabalho e ao trabalho da mulher e das crianças (ENGELS,
1985; MARX, 1982; ROSEN, 1983). Todo um processo de reforma sanitária foi
implantado dando, evidentes sinais de que a problemática da saúde e sua interface com
o processo de trabalho já estavam colocadas.
Todas as medidas baixadas pelo Estado contavam com a resistência da
burguesia industrial, que se opunha a qualquer regulação que não fosse a do mercado e a
qualquer intervenção que não fosse a sua própria. Mas isso não quer dizer que não
estivessem preocupados com os problemas de saúde da força de trabalho. Estavam e
buscavam alternativas para resolvê-los, porém dentro de um horizonte de visibilidade
próprio da burguesia, àquela época, influenciada pela ciência positivista (SILVA, 1985).
Resguardando a prática liberal, essa burguesia entendia ser esse um problema
eminentemente médico. E é sob esse pressuposto que nasce, no interior da fábrica,
centrada no médico e na ciência médica, a Medicina do Trabalho, abordada a seguir.
79
3.7 A Medicina do Trabalho
Mendes e Dias (1991) ilustram como surge a Medicina do Trabalho,
enquanto especialidade médica, e o primeiro serviço de Medicina do Trabalho, em
1830, na Inglaterra. Um industrial têxtil, preocupado com a debilidade da saúde e da
assistência médica dispensada aos seus empregados, a qual, àquela época, resumia-se às
instituições filantrópicas, buscou auxílio junto ao seu médico particular, Dr. Robert
Baker, que lhe deu o seguinte conselho:
Coloque no interior da sua fábrica o seu próprio médico, que servirá de
intermediário entre você, os seus trabalhadores e o público. Deixe-o visitar a
fábrica, sala por sala, sempre que existam pessoas trabalhando, de maneira
que ele possa verificar o efeito do trabalho sobre as pessoas. E se ele verificar
que qualquer dos trabalhadores está sofrendo a influência de causas que
possam ser prevenidas, a ele competirá fazer tal prevenção. Dessa forma,
você poderá dizer: meu médico é a minha defesa, pois a ele dei toda a minha
autoridade no que diz respeito à proteção da saúde e das condições físicas dos
meus operários; se algum deles vier a sofrer qualquer alteração da saúde, o
médico unicamente é que deve ser responsabilizado (MENDES; DIAS, 1991,
p. 341).
De tão eficiente, o conselho valeu ao médico uma contratação e o
reconhecimento da história como o fundador da Medicina do Trabalho. Essa
especialidade rapidamente se expandiu na Inglaterra, depois, junto com a
industrialização, nos países vizinhos, para finalmente chegar até os países periféricos,
acompanhando o movimento de expansão e reprodução do sistema e a
transnacionalização da economia.
A instituição do médico do trabalho, com tais poderes e prerrogativas,
operava o milagre de transferir a responsabilidade do adoecimento, do processo e das
condições de trabalho para o médico e para a medicina, desviando-se, portanto, a
discussão do problema do seu foco real. O que se tinha, mais uma vez, era o reforço da
prática médica como uma medicina que se afastava do seu desiderato, assumindo uma
atitude nada ética, considerando-se os princípios hipocráticos. Uma medicina alienada e
antidialogal. Uma medicina do capital
54
. Algo que se instalava no interior das fábricas,
54
Um estudo nessa perspectiva é referido por Garcia (1983), quando lembra a obra de Jean-Claude
Polack: La Medicine del Capital. Madrid, Editorial Fundamentos, 1974. Esse autor, um militante sindical
na juventude, depois médico graduado em Psiquiatria e Psicanálise e diretor do Cahiers Pour la Folie,
afirmava que uma medicina a serviço do povo e, portanto, científica, só poderia se dar com o
desaparecimento do capitalismo. “a prevenção supõe uma inversão das finalidades sociais da produção;
o mercado capitalista impõe à medicina o caminho de uma economia da morte. A utilização honesta dos
80
não com a perspectiva de atender, em primeiro plano, à saúde dos trabalhadores, mas de
selecionar os mais aptos, os mais saudáveis, para a produção capitalista.
A assistência promovida pela Medicina do Trabalho, desde o seu início,
além de não se constituir uma simples dádiva dos patrões, redundava no aumento da
dependência dos operários e no controle das empresas sobre a sua força de trabalho.
Perdurou por todo o restante do século XIX e primeira parte do século XX, período em
que permaneceu praticamente inalterada e em mãos exclusivamente privadas, sendo
apenas atualizada pela ciência médica. Esse tipo de assistência significou, na prática, a
vitória do liberalismo sobre as correntes socialistas e os defensores da assistência à
saúde de natureza pública, já que, em face da debilidade dos sistemas de atenção à
saúde, a Medicina do Trabalho acabou sendo, em muitos casos, a única assistência
existente para os trabalhadores, e, não raro, para as suas famílias
55
.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, o Serviço de Medicina
do Trabalho designa um serviço organizado nos locais de trabalho ou em suas
imediações, destinado a: a) assegurar a proteção dos trabalhadores contra todo o risco
que prejudique a sua saúde e que possa resultar de seu trabalho ou das condições em que
este se efetue; b) contribuir para a adaptação física e mental dos trabalhadores, em
particular, para a adequação do trabalho e sua colocação em lugares correspondentes às
suas aptidões; c) contribuir com o estabelecimento e a manutenção do nível mais
elevado possível do bem-estar físico e mental dos trabalhadores (MENDES; DIAS,
1991, p. 342).
As recomendações da OIT vinham sintonizadas com um conjunto de idéias
e princípios formulados pelo Taylorismo
56
e pelo Fordismo
57
a respeito da
conhecimentos médicos em uma prática terapêutica desalienada requer a morte desta economia da
exploração” (POLACK, 1974, apud GARCIA, 1983, p. 118).
55
Somente no final da segunda década do século XX é que a problemática da saúde do trabalhador volta à
cena mundial, dessa vez, por obra de um organismo internacional, recém-criado, a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), que passa a incluir, no espectro das suas preocupações específicas, a
questão da assistência à saúde dos trabalhadores. Porém, é só com o final da segunda grande guerra e
seguindo todo o esforço de reconstrução da Europa e a reestruturação do capitalismo em escala mundial
que esse organismo internacional se torna mais insistente em relação à questão específica da proteção à
saúde dos trabalhadores. Tanto que a Conferência Internacional do Trabalho, realizada em 1959, aprovou
um documento que define, nos seus vários aspectos, os Serviços de Medicina do Trabalho.
56
Sistema de organização do trabalho derivado das idéias de F. W. Taylor (1856-1915). Recomendava a
adoção de métodos e normas, visando à maximização do rendimento da mão-de-obra, com base numa
análise minuciosa de cada tarefa a ser executada, não comunicação entre os trabalhadores, criação da
gerência científica, separação sistemática entre concepção e execução das tarefas e criação das linhas de
montagem, com controle absoluto do ritmo do trabalho.
57
Doutrina econômica desenvolvida por Henry Ford (1863-1947) baseada na fabricação em massa de
bens padronizados (como os automóveis), uso de máquinas especializadas e trabalhadores semi-
qualificados.
81
administração científica do trabalho, princípios que já se encontravam bastante em voga
àquela época. Portanto, a tentativa de assimilação daqueles princípios ao ideal de defesa
da saúde dos trabalhadores e à constituição dos Serviços de Medicina do Trabalho era
algo natural e respondia às suas principais preocupações: a seleção cuidadosa dos mais
aptos e com maior capacidade produtiva, a diminuição do absenteísmo e dos gastos com
obrigações sociais, em favor de uma melhor relação custo/benefício e, portanto, de uma
maior lucratividade.
Oliveira e Teixeira, estudando as relações entre trabalho, saúde e
previdência, no caso específico do Brasil, retratam o que acabamos de afirmar e
acrescentam:
Outro aspecto é a possibilidade de obter um retorno mais rápido da força de
trabalho à produção, na medida em que um serviço próprio tem a
possibilidade de um funcionamento mais eficaz 'nesse sentido', do que as
habitualmente 'morosas' e 'deficientes' (nesse sentido, repetimos) redes
previdenciárias e estatais, ou mesmo a prática liberal sem articulação com a
empresa. Um último elemento a apontar é a política de pessoal mais 'atraente'
que a posse de serviços médicos próprios possibilita, ao afastar os
empregados tanto dos gastos individuais com saúde quanto das filas e outros
empecilhos freqüentes nas Previdências Sociais e outros órgãos assistenciais.
Os resultados desse último aspecto são coisas tais como melhor desempenho
na competição interempresarial por mão-de-obra qualificada, ‘paz social’ no
interior da empresa etc. (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986, p. 223).
Aqui se tem o raciocínio dominante da medicina, compondo uma sinérgica
relação com a nova administração do trabalho, na busca dos seus fins básicos: o
aumento da produtividade e do lucro. Mas, sobretudo, podemos sentir a primazia do
privado sobre o público começando a se esboçar. Já mais adiante, com a consolidação e
expansão do capitalismo e os avanços da tecnologia, inclusive no campo da medicina,
esse setor se torna uma excelente via de acumulação de capital. Isso, abrindo espaço
para a constituição de empresas de serviços médicos e empresas de seguros, embriões
dos convênios médicos da medicina de grupo e das previdências privadas custeadas
direta ou indiretamente pelos trabalhadores.
3.8 Da unicausalidade à multicausalidade
O século XX veio trazer ao campo da saúde outra disputa político-
ideológica, só que, agora, não mais em termos da unicausalidade, mas da
82
multicausalidade. Como no século anterior, duas posições antagônicas: uma, centrada
no ambiente, tido como origem de todas as doenças; e outra, com foco na própria
sociedade e na sua organização social, política, econômica e cultural, como responsável
pelo processo saúde-doença. Os defensores da primeira visão, inicialmente, partiam de
um modelo através do qual a saúde representava um estado de equilíbrio entre fatores,
diversos e múltiplos, e a doença, um estado de desequilíbrio a partir de um ou mais de
um deles; uma visão ecológica multifatorial que, em determinado momento, chegava até
a incorporar o social como um dos fatores da causação.
Os defensores da visão fundada na determinação social do processo saúde-
doença, por outro lado, centravam a sua posição nas condições de vida e de trabalho das
pessoas. Essa é uma concepção multicausal, que rejeitava a utilização de fatores
puramente biológicos, para assumir que a determinação social poderia ser expressa na
dialética relação de determinantes e condicionantes da vida social, que interferem na
forma de viver, de adoecer e de morrer das pessoas
58
.
No modelo tido como biologicista, eram reconhecidos três grupos de
fatores: os ligados a um agente agressor, normalmente um microorganismo; os ligados
ao hospedeiro, ou seja, às condições orgânicas internas de cada indivíduo, e os ligados
ao meio-ambiente externo. Esses grupos de fatores teriam o mesmo potencial para
provocar doença e morte no homem. A saída contra o adoecimento estaria, pois, no
conhecimento e na observância de medidas preventivas, de cunho individual, que
manteriam o equilíbrio entre os fatores. Esse modelo, no decorrer do tempo, sofreu uma
alteração com a introdução de um quarto grupo de fatores: os psico-sociais,
conseqüência do movimento da medicina integral norte-americana, que passava a
58
Quando se fala de determinantes, faz-se referência aos elementos econômicos que estão no nível da
infra-estrutura da sociedade capitalista. Ao passo que, quando se fala de condicionantes, a referência é
para a superestrutura político-jurídica e ideológica dessa mesma sociedade. Porém, quer-se deixar claro
que infra-estrutura e superestrutura são uma produção humana e não existem ou agem separadamente,
mas em contínua relação e é o resultado (ou resultados) dessa relação que determina e condiciona a
sociedade, ou seja, a produção social dos homens: “na produção social da vida, os homens constroem
determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que
correspondem a uma etapa de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas
relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência”.
MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política, São Paulo, Ed. Flama, 1946 in IANNI, O.
(Org.) Marx - Sociologia INTRODUÇÃO, 1. A produção da sociedade capitalista, 6. ed., São Paulo,
Editora Ática, 1988.
Trazendo isso para a especificidade da saúde, o capitalismo expressa as relações
econômicas de produção travadas na infra-estrutura da sociedade. E o modo como os homens organizam-
se no processo produtivo (que está na razão da superestrutura) condiciona a saúde e a doença na
população.
83
definir o homem como um ser bio-psico-social
59
, sendo que, nessa visão, o social era
definido como um atributo do homem, e não, da existência humana; uma redução
ideológica que escamoteava o social como elemento de determinação (BARATA,
1985).
A multicausalidade fundada no ambiente biológico exprimir-se-ia por mais
uma evolução desse modelo, que admitia a existência de uma rede de causalidade
60
,
onde nem todas as causas precisavam ser conhecidas. Bastava a atuação de medidas
preventivas sobre elos visíveis da cadeia para se evitar a doença. Para os defensores da
teoria da causação social, isso representava mais uma manobra para escamotear o social
como determinante, uma vez que as causas não visíveis seriam justamente as que
encontravam explicação na sociedade e suas organizações.
Um último refinamento dessa concepção de saúde-doença pode ser
representado pelo modelo ecológico, em que as inter-relações entre os diversos fatores
são apresentadas na forma de um sistema triangular fechado, com um feedback
regulador, que controlaria a atividade e a sobrevivência de agentes e hospedeiros através
do ambiente. Nessa inter-relação, os diversos fatores se alterariam mutuamente,
provocando desequilíbrios (doença) e reequilíbrios (saúde). Os desequilíbrios desse
sistema permitiriam a evolução do processo até a cura, óbito ou outros estados
intermediários. O modelo da História Natural da Doença
61
era a representação mais
típica dessa visão que destacava a saúde-doença como um processo dinâmico
condicionado pela inter-relação entre fatores.
3.9 Da Medicina do Trabalho à Saúde Ocupacional
A segunda guerra trouxera mais que catástrofes e esforços de reconstrução.
59
A Organização Mundial de Saúde (OMS), na Carta Magna de 07 de abril de 1948, possivelmente
influenciada por esse movimento, estabeleceu o conceito de saúde como: “um estado de completo bem-
estar físico, mental e social e não apenas a ausência de afecção ou doença”. Mesmo sendo o mais
difundido nos últimos cinqüenta anos, esse conceito encerra uma visão subjetiva e abstrata de saúde, que
precisa ser traduzida do ponto de vista da riqueza de detalhes da realidade social em que vivem as
populações humanas.
60
O modelo em questão, em todos os seus detalhes, pode ser encontrado em MACMAHON, B. & PUGH,
T.F. Princípios e métodos da epidemiologia. Rio de Janeiro, McGraw-Hill do Brasil, 1978.
61
Conferir em LEAVELL, H. & CLARK, E. G. Medicina Preventiva. Rio de Janeiro, McGraw-Hill do
Brasil, 1976.
84
Na verdade, estabelecera uma nova ordem industrial – não se deve esquecer todo o
processo de substituição de importações e a expansão do capitalismo periférico que
caracterizou esse período – assim como uma nova divisão internacional do trabalho. O
período bélico fora um momento incomum de progresso da ciência. Afinal, para
sustentar o conflito, de parte a parte, a pesquisa e a síntese de novos materiais e
equipamentos alcançaram um impulso tecnológico e industrial nunca visto. Com o
armistício, toda a tecnologia pôde ser reconvertida em novos produtos, insumos
químicos, máquinas pesadas e equipamentos, com avanços significativos do ponto de
vista do capitalismo. Principalmente na Europa, onde houvera a maior destruição, essa
nova realidade trouxe muita confusão ao mundo do trabalho, fazendo-se sentir a
insatisfação de trabalhadores e empresários.
Os primeiros, porque arcaram dentro e fora da guerra com o maior ônus – a
produção, nesse período, além de tudo, acelerara, ainda mais, o desgaste da mão-de-
obra e multiplicara as doenças do trabalho e os acidentes com invalidez e morte de
milhares de trabalhadores. Os empresários, por seu turno, reclamavam dos aumentos
dos custos da produção, inclusive, por conta das elevadas despesas diretas e indiretas
relativas à saúde dos trabalhadores.
É diante desse novo contexto de reestruturação política e econômica, em
que o sistema de relações de trabalho, até então em voga, demonstra a sua
obsolescência, que a racionalidade da administração científica do trabalho se vê com a
incumbência urgente e necessária de introduzir modificações profundas nas relações de
trabalho, intervindo com novas políticas na área da gerência de recursos humanos e na
modificação ou introdução de novos processos técnicos.
As medidas tomadas, embora prometessem promover o tão sonhado
reequilíbrio da relação capital-trabalho, considerando inclusive as questões ligadas à
saúde dos trabalhadores, que advinham de todas as transformações processadas no
interior do processo produtivo, não conseguiam esconder o disfarce de que, antes de
qualquer coisa, serviam às estratégias do empresariado na perspectiva da garantia e da
ampliação da capacidade de reprodução do capital. Daí, até a avaliação de que a
Medicina do Trabalho não era mais capaz de sozinha dar uma resposta satisfatória aos
problemas colocados pelo novo tempo e pela nova organização do trabalho industrial,
foi um passo previsível.
Principalmente nas grandes empresas, ampliava-se a necessidade de se
acoplar ao conhecimento médico o instrumental de outras áreas do conhecimento, como
85
a engenharia e as ciências sociais, e de se deslocar o eixo de intervenção do trabalhador
para o meio ambiente. Essa intervenção se fez instituindo-se a Saúde Ocupacional, uma
nova prática de atenção à saúde dos trabalhadores que, deixando de ser centrada
exclusivamente na medicina, continuaria, entretanto, hegemonizada por esta – na figura
do médico, que reuniria progressivamente em seu entorno diversos outros profissionais
e seus conhecimentos específicos – agora sob o signo da interdisciplinaridade e da
multiprofissionalidade.
A evolução da Medicina do Trabalho para a Saúde Ocupacional assentou-se
num movimento que teve seu epicentro na academia, onde se destacaram, de um lado,
as escolas de saúde pública, americanas e inglesas, sobretudo, com um enfoque centrado
na higiene ocupacional, em detrimento de uma relativa desqualificação do enfoque
médico e epidemiológico da relação trabalho-saúde; e, de outro, na sociologia médica,
que se consolidava como um campo teórico específico das ciências sociais. Ambas
tentavam responder, tardiamente, a todo um movimento que vinha na esteira das
transformações ocorridas no mundo do trabalho.
Nesse período, a visão da medicina mantinha-se consubstanciada na teoria
multicausal do processo saúde-doença – que vinha dominando, até então, todo o século
XX – através da construção de vários modelos sucessivos que se caracterizavam pela
intensificação da medicalização da sociedade, numa tendência de redução do social e
sua descaracterização através de construções a-históricas e biologicistas já descritas.
Mas, a verdade é que a Saúde Ocupacional, em que pesem todos os avanços
prometidos, evidenciou muito rapidamente a sua insuficiência. Não se mostrou capaz de
dar conta das grandes transformações por que passava a sociedade industrial no seu
movimento de expansão, tanto nos países centrais, quanto nos países periféricos,
transformando-se num festival de promessas não cumpridas
62
dentre as quais, podem ser
ressaltadas:
a) a não superação do paradigma mecanicista da Medicina do Trabalho:
tanto na abordagem teórico-causal como nas ações concretas, que continuaram
centradas no plano do individual e do caso clínico, mesmo que, agora, a atenção fosse
multiprofissional;
62
Quer-se aqui afirmar tão somente a insuficiência do modelo frente aos avanços do processo produtivo,
o que não quer dizer que mudanças superficiais ou condizentes com o modelo ideológico dominante tanto
no campo das ciências sociais como no da saúde não tenham ocorrido. Como é o caso, por exemplo, da
criação de Institutos de Saúde Ocupacional, nos principais centros do mundo e mudanças na legislação
sobre o trabalho.
86
b) a não concretização da interdisciplinaridade: não havia uma real
integração dos diversos corpos do conhecimento, ficando cada profissional da equipe
multiprofissional a trabalhar de forma isolada sobre o mesmo objeto: o trabalhador;
c) a não adequação da produção do conhecimento e da formação dos
recursos humanos: não se imprimiram, nessas áreas, modificações suficientes para
fazerem frente às transformações que se operaram na indústria e, portanto, não se
reorientou o perfil dos recursos humanos que atuariam na nova realidade; e,
d) a inadequação da atuação sobre o ambiente: apesar da promessa, o que
deveria significar a tentativa de abolição dos riscos do trabalho, ou seja, a atuação sobre
o processo de trabalho, privilegiou-se a monetização dos riscos e danos.
3.10 A sociologia médica
Garcia (1983) observa que, até os anos 60, predominavam, entre as
correntes do pensamento da sociologia médica, as concepções positivistas da
efetividade da medicina, do poder de transformação social das instituições médicas e do
efeito positivo do desenvolvimento sobre a saúde
63
. Porém, o final da década de 60
trouxe consigo o início do declínio do pensamento ecológico, matriz por onde se
expressavam as concepções relativas à saúde. Assim, questões concretas, como os
efeitos negativos da medicalização e o desvelamento de todo o poder e controle
representado pela Medicina e pelas instituições médicas são denunciados e questionados
nos seus resultados teóricos e práticos, ao mesmo tempo em que ganha corpo a proposta
de desmedicalização da sociedade.
Nesse sentido, os principais questionamentos se firmavam: na denúncia do
caráter ideológico do saber e da prática médica, que colocava em dúvida se a atenção
médica seria, necessariamente, a causa do melhoramento da saúde das populações; na
afirmação de que a prática médica conteria, em si mesma, um potencial iatrogênico, ou
seja, seria perigosa para a saúde e, portanto, geradora de novas doenças; que a prática
médica ampliava cada vez mais o seu campo de atividade ao definir um maior número
de condições humanas como doença, processo designado como medicalização; que o
63
Na sociologia médica, segundo Garcia (op.cit.), essa visão estava representada por autores como:
Sigerist (1946) e Stern (1941, 1948 e 1949), entre outros.
87
profissionalismo representava constantemente uma defesa de privilégios ocupacionais e
de classe, em lugar de um mecanismo para manter altos níveis de atenção; e, finalmente
que, do ponto de vista do conhecimento epidemiológico, o processo de mudança de um
grupo, do trabalho na agricultura para o trabalho industrial, ou de um ambiente rural
para um ambiente urbano, estava associado a mudanças negativas no nível de sua
saúde
64
.
Essas conclusões representavam correntes materialistas
65
, hegemonizadas
pelo Marxismo, para as quais
[...] o estudo da medicina, definida como um conjunto de práticas e saberes
específicos, deve realizar-se em sua relação com a totalidade social e com
cada uma das instâncias que a integram e que consistem em: uma estrutura
econômica composta de forças produtivas e relações de produção, e uma
superestrutura que compreende uma instância jurídico-política e uma
ideológica. (GARCIA, 1983, p. 109)
Esses teóricos, embora frontais ao positivismo
66
, divergiam bastante em suas
posições, dependendo dos pressupostos de onde partiam. Havia os que, como Sigerist
(1946) e Stern (1941, 1948 e 1949), defendiam que o desenvolvimento da medicina e
sua articulação com a sociedade estavam na razão direta do desenvolvimento das forças
produtivas. Por outro lado, havia outros tantos, entre os quais se destacavam os ligados
à Escola de Frankfurt, que estavam convencidos de que as relações de produção é que
constituíam a base desse processo. Essa corrente dava especial relevância às instâncias
da ideologia, da consciência e da legitimidade e ao papel mediador das instituições e das
idéias. Foram os seus integrantes os iniciadores, durante a década de 60, dos estudos
sobre a relação da medicina com a sociedade, principalmente a partir dos
acontecimentos de maio de 68, na França.
Para eles, a sociedade industrial contemporânea superara a hipótese
64
Tais conclusões estão discutidas e detalhadas nos trabalhos de Brown, 1973; Cassel, Jenkins, e Patrick
1960; Cassel e Tyroler, 1961; Cochrane, 1973; Ehrenreich e Ehrenreich, 1975; Ehrenreich, 1978; Eyer,
1975; Illich, 1976; McKeown, 1965; Powles, 1973; Spieler, 1972; Zola, 1978. Todos citados por Garcia,
(1983, p. 120-122).
65
A referência aqui é ao materialismo histórico, que Marx define assim: “Na produção social da
existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; essas
relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas
materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a base real sobre a qual se eleva uma
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O
modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual.” MARX,
K. Contribuição à crítica da economia política. In: IANNI, O. (Org.) Marx – Sociologia. 6. ed., São
Paulo: Ática, 1988.
66
Na verdade, ao tratar das correntes de pensamento no campo da saúde, Garcia (1983) não se refere
apenas e de forma genérica ao positivismo, mas o distingue em termos de duas correntes idealistas – a
neokantiana e a neopositivista, que tiveram como seus representantes máximos, especialmente nos países
ibero-americanos, respectivamente, Lain Entralgo e Talcott Parsons.
88
marxiana sobre a potencialidade explosiva e revolucionária das forças produtivas a
partir do instante em que as relações de produção, domesticando o desenvolvimento das
forças produtivas, assumiram a essência do processo em sua totalidade. E a dialética
clássica entre as forças produtivas e as relações de produção é interpretada como
variante terminológica de um conflito redutível à esfera única das relações de produção
(GARCIA, 1983, p. 115).
O conjunto das abordagens referidas pode ser completado com, pelo menos,
mais duas correntes que também obtiveram destaque no combate às posturas
mecanicistas, que dominaram por longo tempo o campo da sociologia e da prática
médica. Trata-se do Estruturalismo e da Fenomenologia.
O estruturalismo ganhara notoriedade no interior das ciências humanas,
durante as décadas de 60 e 70, como uma orientação metodológica importante para
fração considerável da corrente marxista. Esse construto teórico coloca em primeiro
lugar a análise da estrutura do objeto investigado e tem permitido delinear e solucionar
importantes problemas relativos à criação de um sistema geral de métodos para o
conhecimento científico-natural e social. Michel Foucault, um dos mais reconhecidos
pensadores dessa corrente, fez da medicina um dos seus mais importantes objetos de
estudo
67
.
A Fenomenologia, como corrente de pensamento, ocupou um espaço
próprio e importante no campo da sociologia médica durante a década de 70. Atuando
com idéias, em muitos momentos, próximas ao Marxismo, vinha engrossar o corpo
teórico do movimento contrário às posturas positivistas, especialmente na crítica ao viés
ideológico e reprodutor do saber médico, enquanto que, no campo da prática médica,
destacava-se no surgimento dos programas alternativos de auto-cuidado e na atenção
primária, principalmente no que diz respeito à organização da participação popular.
No campo da saúde, os fenomenólogos acreditavam que são valores,
símbolos e sistemas de significados compartilhados que dão sustentação à cura e que
isso seria exatamente o inverso do que ocorreria com a medicina moderna, já que,
quanto mais se tornava científica, mais se afastava da experiência da vida cotidiana.
Acreditavam, ainda, que, somente na vida privada, o indivíduo experimentaria um
67
As obras de Michel Foucault exerceram, e têm exercido ainda, uma grande influência na medicina
social latino-americana e, particularmente, no Brasil. Suas obras mais importantes sobre a História da
Medicina são: Enfermedad Mental y Personalidad. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1964; História da
loucura em la Época Clássica. México: Fondo de Cultura Econômica, 1967; O Nascimento da Clínica,
Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1977; Medicina e História. Washington, D. C., 1978 e Microfísica
do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1981.
89
sólido sentido de identidade – nos pequenos grupos como a família, grupos religiosos,
associações voluntárias e na vizinhança. Essas seriam estruturas mediadoras – que se
daria uma estabilidade à vida privada capaz de proteger o indivíduo da influência
negativa das grandes estruturas sociais ou das megaestruturas (GARCIA, 1983, p.124).
Ainda segundo Garcia (1983), apoiados nessas posições, e criticando o
Estado e as instituições médicas, os fenomenologistas adquiriam uma forte aura radical
e se identificavam claramente com os grupos minoritários. Mas uma análise mais
apurada – e principalmente feita a posteriori – das posições difundidas pela
Fenomenologia, não desmerecendo a sua contribuição na resistência às posições
positivistas, revela que elas vinham contaminadas de elementos potencialmente
reacionários, como a religiosidade, o misticismo, o naturalismo, o humanismo
exacerbado, que conformam uma atitude holística e dão certo caráter messiânico à ação
comunitária.
Inteligentemente apropriada e legitimada pelo Estado, a experiência da
Fenomenologia, no campo da saúde, resultou no estímulo a um comunitarismo radical,
em que as iniciativas e as perspectivas de solução acabaram sendo controladas pelas
instituições ou reduzidas à fragmentação, ao senso comum e ao voluntarismo dos seus
participantes, trazendo, por conseguinte, face à sua diluição, poucos resultados
concretos ou visíveis. Entretanto, a apropriação e o reconhecimento, por parte da
maioria, do fracasso dessa corrente, naquele momento, não deve obscurecer que esta
cumpriu, na América Latina, um papel fundamental no reordenamento da discussão
teórica sobre a articulação do campo da saúde na sociedade.
Em termos de Brasil, a Fenomenologia influenciou sobremaneira os
programas de Medicina Comunitária que formaram parte dos médicos nas décadas de
70 e 80 do século passado. Esses programas se firmavam no princípio de que o
conhecimento biológico precisava fazer conexão com o conhecimento das ciências
humanas. E como faziam a crítica da especialização precoce e estavam voltados para a
Atenção Primária em Saúde, acreditavam que o caminho para a transformação do setor
era a aproximação do médico com a comunidade. Ou seja, era preciso formar novos
médicos e uma nova mentalidade de prática médica.
Por isso, apostavam na formação do médico generalista, isto é, um
profissional com consistente formação nas cínicas básicas: Pediatria, Ginecologia e
Obstetrícia e Clínica Médica (Geral) e que atuasse numa rede de postos e de serviços
ambulatoriais de saúde, ficando mais próximos da população e da sua vida cotidiana. A
90
Fenomenologia baseava essa conexão nos conhecimentos da Antropologia, da
Psicologia e da Educação.
Por outro lado, havia também os programas de Medicina Preventiva e
Social, que encampavam os aspectos gerais da visão crítica desenvolvida pelos
seguidores da Fenomenologia, porém com uma orientação epistemológica diferente,
embasada mais na Ciência Política, na Economia e na Sociologia. Havia, nesse grupo,
nuances relativamente fortes do Estruturalismo na sua relação com o Marxismo. Eles
foram particularmente importantes na formação de médicos que, depois, transformaram-
se em quadros de destaque dentro de Universidades no contexto nacional
68
, onde foram
formar os departamentos de Medicina Preventiva, lócus privilegiado de onde emanaram
as formulações do movimento sanitário e a construção da Saúde Coletiva, como campo
de conhecimento da área da saúde.
Essas duas correntes distintas de visão da medicina e da prática médica
materializaram aproximações e distanciamentos típicos da divisão ideológica das várias
esquerdas que se formavam em face da estratégia de resistência ao regime autoritário.
Sofriam influência das várias experiências da social democracia européia e,
principalmente, das experiências do socialismo que se encontrava em marcha em Cuba,
na China e na União Soviética.
Cabe, agora, entender qual o papel assumido por essas teorias e sua
repercussão na denúncia das insuficiências e promessas não cumpridas pela prática
médica que se explicitava nos Serviços de Medicina do Trabalho, de Saúde Ocupacional
ou mesmo na assistência médico-previdenciária que era endereçada àqueles que se
constituíram na real força produtiva, nos diretamente afetados pelas relações sociais de
trabalho, sobre as quais se erigiram as teorias e propostas de atenção à saúde – os
trabalhadores.
A explicação para o fracasso da Medicina do Trabalho, da Saúde
Ocupacional, assim como da assistência médico-previdenciária, não se resumiu única e
exclusivamente às transformações operadas no capitalismo e tampouco às evoluções da
academia no terreno da sociologia médica. Existiu outro elemento que, subjacente a essa
conjuntura, evidenciou-se de forma inconteste: a reconstituição da classe operária como
força ativa social e politicamente - um novo sujeito coletivo surgido da reflexão dentro
68
Universidade Estadual de Campinas; Escola Paulista de Medicina; Universidade de São Paulo (capital e
Ribeirão Preto); Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade Federal de Minas Gerais;
Universidade Federal da Bahia; Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade Nacional de
Brasília, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entre outras.
91
dos ambientes de trabalho e de uma articulação forte com os intelectuais de dentro e de
fora da academia.
Um movimento social renovado, revigorado e redirecionado surge nos países
industrializados do mundo ocidental – notadamente Alemanha, França,
Inglaterra, Estados Unidos e Itália – mas que se espraia mundo afora. São os
anos da segunda metade da década de 60 (maio de 68 tipifica a exteriorização
desse fenômeno) marcados pelo questionamento do sentido da vida, o valor
da liberdade, o significado do trabalho na vida, o uso do corpo e a denúncia
do obsoletismo de valores já sem significado para a nova geração. Esses
questionamentos abalaram a confiança no Estado e puseram em xeque o lado
‘sagrado’ e ‘místico’ do trabalho – cultivado no pensamento cristão e
necessário na sociedade capitalista (MENDES; DIAS, 1991 p. 344-45).
Um salto de qualidade importante no nível de consciência dos trabalhadores
e a conquista de vários direitos
69
, inseridos na legislação do trabalho de diversos países
da Europa e da América do Norte: Itália e Estados Unidos, (1970), Inglaterra e Suécia
(1974), França (1976), Noruega (1977), Canadá (1978), foi a resultante desse
movimento, que voltou a denunciar os males e a exploração do capitalismo, e a exigir
participação na discussão de soluções para problemas de saúde e segurança ligados a
processos de trabalho considerados inadequados e ofensivos aos trabalhadores
70
.
Neste novo quadro, Mendes e Dias (1991, p. 346) identificam uma série de
mudanças que abalam, de forma definitiva, a hegemonia do modelo da Saúde
Ocupacional. Essas mudanças estão relacionadas à nova atitude dos trabalhadores, a
alterações sensíveis nos processos de trabalho, à introdução de novas tecnologias, e,
finalmente, à evolução das pesquisas sobre saúde e trabalho. Nesse contexto:
a) os trabalhadores explicitam sua desconfiança nos procedimentos técnicos
e éticos dos profissionais da Saúde Ocupacional, no que diz respeito aos exames pré-
admissionais, periódicos e demissionais, denunciando o seu uso para práticas
discriminatórias;
b) estudos confirmam os efeitos nocivos de doses - até então tidas como
69
Entre esses direitos, podemos citar o direito à informação: os trabalhadores deverão ser informados
quanto a riscos, medidas de controle e saneamento dos ambientes de trabalho tomadas pelas empresas,
resultados de exames médicos e avaliações ambientais periódicas; direito à recusa ao trabalho: os
trabalhadores poderão recusar o trabalho em situações de risco iminente, tanto para a saúde como para a
sua vida; direito à consulta prévia: os empregadores consultarão os trabalhadores sempre que tencionarem
promover mudanças na tecnologia, métodos, técnicas e novas formas de organização do trabalho; direito
à participação: os trabalhadores participarão da formulação de critérios e da escolha de tecnologias e até
da escolha dos profissionais que atuarão nos serviços de vigilância à saúde do trabalhador.
70
Para uma descrição e análise mais circunstanciada desse processo, ver: MENDES, R. A prática da
integração da saúde ocupacional no setor saúde: análise de alguns modelos estrangeiros. In: Revista
Brasileira de saúde ocupacional. 17 (65): 07-15. São Paulo, 1988; PARMEGGIANI, L. A nova legislação
de segurança e saúde dos trabalhadores. In: Revista Brasileira de saúde ocupacional. 15 (50): 19-27. São
Paulo, 1985; e ROUSTANG, G. Os trabalhadores e a higiene e segurança na França. In: Revista
Brasileira de saúde ocupacional. 13 (05): 40-46. São Paulo, 1988; além de MENDES e DIAS (1991) e
BERLINGUER (1978).
92
baixas, de chumbo e de outros compostos orgânicos - desmontam a lógica do conceito
de exposição segura, fazem desmoronar o mito dos limites de tolerância e jogam por
terra os critérios, até então vigentes, de proteção à saúde;
c) a organização do trabalho amplia sua superfície de contato com a questão
da saúde, e novas estratégias para a modificação de condições de trabalho são
requeridas, rompendo com a lógica ambiental instituída pelo modelo ecológico da
Saúde Ocupacional;
d) a utilização de novas tecnologias como a automação e a informatização,
se em alguns casos melhoraram as condições de trabalho, em outros introduziram novos
riscos e doenças ligadas aos novos processos de trabalho;
e) modificações do processo de trabalho, decorrentes da terceirização da
economia e dos processos de automação e informatização, acrescentados à eliminação
de antigas condições de trabalho, levam a um deslocamento do perfil de morbidade
ligada ao trabalho e, assim, doenças profissionais clássicas tendem a desaparecer,
enquanto novas condições passam a ser valorizadas, como por exemplo, as doenças
cardiovasculares – hipertensão arterial e doença coronariana – os distúrbios mentais, o
stress e o câncer.
Essas mudanças não foram uniformes. Mesmo no mundo desenvolvido e em
termos de países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, como era o caso do
Brasil, assistiu-se a uma superposição de problemas clássicos e graves com novas
condições de risco, adoecimento e morte. Mas, de qualquer forma, a interferência dos
trabalhadores alterou de forma sensível a prática médica, fazendo surgirem novas
formas de atuação sobre a saúde da população com a participação dos próprios usuários
desses serviços
71
. E, mesmo que a maioria dessas novas práticas não tenha vingado – e,
talvez até por isso mesmo – elas trouxeram novos questionamentos para a discussão
teórico-metodológica da relação saúde-trabalho-sociedade.
Berlinguer (1978) e Ruzzenenti (1990), exemplificando o caso da Itália,
consideram que iniciativas como o inquérito A Saúde nas Fábricas (1967/68), realizado
com a participação dos trabalhadores, assim como o Encontro de Gênova (1967) sobre
o mesmo tema, promovido pelo Partido Comunista Italiano (PCI), foram alguns dos
muitos episódios que incubaram a explosão de um grande movimento pela saúde do
71
Essas novas formas de atuação se deram tanto pela iniciativa dos próprios trabalhadores quanto das
instituições governamentais e se constituíram em várias direções como programas alternativos de auto-
cuidado, de assistência primária e extensão de cobertura em saúde com tecnologia simplificada, todas
com apelo à participação comunitária.
93
trabalho.
O amadurecimento cultural e político dessas experiências é ainda penoso,
tortuoso, combatido, mas certamente foi ajudado na Itália a partir de 1967-
1968, pelo aparecimento do tema exploração = doença e pelo crescimento
gradual de sua antítese ação coletiva = saúde. Nada disso aconteceu
espontaneamente. Mesmo o 'outono quente' de 1969, no qual os novos
objetivos contratuais mobilizaram massas operárias e conquistaram um vasto
consenso do povo, foi longamente preparado (BERLINGUER, 1978, p. 17).
Essa foi uma iniciativa fundada no princípio da valorização da experiência e
da subjetividade dos operários e na formação de grupos homogêneos de trabalhadores,
para reflexão e validação consensual das informações produzidas como ferramentas
para a sua intervenção, na não delegação da produção de conhecimento e da vigilância à
saúde dos trabalhadores e na recusa a qualquer tipo de monetização dos riscos e danos
produzidos pelo trabalho.
Contando com o auxílio dos instrumentais da tecnologia, da epidemiologia e
das ciências humanas, elegeram ainda para a sua atuação os seguintes pressupostos
básicos: a) conhecer o ambiente de trabalho; b) estabelecer um novo patamar no
relacionamento entre operários e técnicos; e, finalmente, c) exigir a constituição de um
sistema de saúde, público, descentralizado, eficiente, eficaz e voltado para a prevenção
da saúde dos trabalhadores, como única forma de, coletivamente, negociar melhorias e
avanços na relação capital-trabalho.
A prática desses princípios e pressupostos resultou na formulação de uma
metodologia operária de intervenção sobre os ambientes de trabalho, que ficou
conhecida como modelo operário italiano
72
. Essa metodologia funcionou como um
reforço importante para o processo de contratação coletiva no interior das fábricas e
como um instrumento de conquistas legislativas para os trabalhadores italianos.
3.11 A perspectiva de uma prática médica renovada
O ressurgimento dos movimentos sociais e os avanços consubstanciados na
legislação relativa ao trabalho, nos países capitalistas centrais, aliado à crise do petróleo,
em escala mundial, e a uma conjuntura particular de recessão e desemprego nos países
72
Para um conhecimento detalhado da teoria e da prática do modelo operário italiano, ver ODDONE, I.
et. al. – Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo, CEBES/HUCITEC, 1978.
94
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, inauguram uma nova etapa de profundas
modificações na economia e nos processos de trabalho.
Nos países desenvolvidos, com os avanços sociais, o capital passou a
investir numa nova tendência, a da terceirização da economia, fazendo declinar o setor
industrial em detrimento do setor de serviços, com uma evidente mudança no perfil da
mão-de-obra ocupada. Esse movimento foi seguido de uma transferência, para os países
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, das empresas intensivas de mão-de-obra,
especialmente aquelas produtoras de eletro-eletrônicos, que vão formar os paraísos das
zonas francas do continente latino-americano. Por outro lado, face às enormes barreiras
para a instalação e a continuidade de operação, naqueles países, das indústrias
consideradas sujas
73
, há todo um processo de exportação dessas empresas para os países
subdesenvolvidos que, sequiosos de resolver os seus problemas cruciais com relação à
geração de empregos, aquecimento da economia e acúmulo de divisas, aceitam o
desenvolvimento a qualquer preço.
Considerando esse contexto e retomando a questão da atenção à saúde dos
trabalhadores, especificamente, na América Latina, pode-se notar que, num primeiro
momento, ela se resumia à continuidade de ações com caráter eminentemente clínico,
comandado pelos serviços médicos de empresa e órgãos de seguridade social, para, num
momento seguinte, investir na criação de instituições governamentais com finalidades
específicas para essa área. Essas instituições
74
, como é o caso, no Brasil, da Fundação
Centro Nacional de Segurança, Higiene e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO),
instituída pela Lei nº 5.161, de 21 de outubro de 1966, tinham, entre outras finalidades,
a função de desenvolver pesquisas sobre acidentes e doenças profissionais e do trabalho,
estudos sobre a produtividade e o bem-estar da mão-de-obra, formação e treinamento de
trabalhadores, assessoramento e assistência técnica na formulação de políticas
específicas para a área.
Mas é somente nos anos 70, longe das ações estritamente governamentais,
ainda que não totalmente fora do aparelho estatal, que as investigações sobre a saúde do
trabalhador vão adquirir um caráter sistemático, envolvendo os diversos atores sociais e
73
As indústrias consideradas sujas são aquelas que lançam resíduos tóxicos no ambiente, poluindo o ar,
ou solo e mananciais, trazendo repercussões negativas aos ecossistemas e à saúde da população; ou ainda,
aquelas que põem em risco a vida e a saúde dos trabalhadores em função dos processos de trabalho
insalubres (agrotóxicos, chumbo, mercúrio, asbesto, além de diversos outros produtos químicos, gases e
poeiras).
74
Foram criadas, em algumas capitais latino-americanas, como Lima, Santiago e Brasília, por iniciativa
dos governos desses países, versões dos Institutos de Saúde Ocupacional, tal qual acontecera nos
principais centros da Europa, a partir da década de 50.
95
as diversas áreas do conhecimento, inclusive as Ciências Sociais. Isso se dará,
principalmente, a partir da criação e do redirecionamento dos departamentos de
Medicina Preventiva e Social no interior das Universidades e dos centros de pesquisa e
a sua articulação com os movimentos sociais, então em franco ressurgimento nos
diversos países latino-americanos
75
.
Este interesse tardio pelo estudo da saúde do trabalhador não é um fato
fortuito, mas sim, relacionado com o processo econômico, político e social do
continente. Processo que, também, explica porque, uma vez assumida a
problemática, esta é abordada simultaneamente na sua forma mínima e
máxima. Ou seja, ao mesmo tempo em que se torna urgente a aplicação e
socialização do corpo de conhecimentos da medicina ocupacional dominante,
inicia-se a elaboração de delineamentos globais de interpretação da relação
trabalho-saúde que implicam a superação do suporte teórico-metodológico da
Medicina do Trabalho. [...] O fato é que se começa a especificar a saúde do
trabalhador como objeto de estudo e as formas que assume sua exploração
estão vinculadas ao processo de maturação industrial e à modalidade
particular pela qual este processo se estrutura nos países latino-americanos.
Assim, é necessário destacar a rapidez do processo de industrialização, a
grande heterogeneidade dos processos de trabalho concretos, as implicações
da nova divisão internacional do trabalho, o caráter efêmero dos ‘milagres
econômicos’ e a profunda transformação da estrutura de classes que, frente a
tais fatos, conduz à emergência de uma classe operária industrial jovem
(LAURELL, 1985 p. 255).
A autora em questão, analisando o surgimento da pesquisa nesse campo
específico, destaca que a investigação em saúde do trabalhador se origina em pelo
menos três diferentes disciplinas: a medicina ocupacional, a epidemiologia crítica e as
ciências sociais. Essas três disciplinas implicam, obviamente, caminhos distintos, tanto
do ponto de vista da escolha e construção do objeto como da abordagem teórico-
metodológica empregada.
Nessa perspectiva, a medicina ocupacional estudaria as doenças originadas
75
“Em 1974, na Argentina, a faculdade de Buenos Aires desenvolveu um trabalho junto aos militantes
sindicais; no México, os trabalhadores eletricistas, protagonistas das mobilizações operárias mais
importantes de 1972-75, realizaram, junto com a organização sindical dos médicos residentes, um estudo
das condições de saúde; no Brasil, em 1979, a Semana de Saúde do Trabalhador foi implementada pelos
sindicatos do ABC e pelo sindicato médico; na Colômbia, hoje confluem profissionais de diferentes
origens à Escola Nacional Sindical, para abordar, junto com os sindicalistas, os problemas de saúde no
trabalho; na Venezuela, a CUTV (Central Única de los Trabajadores Venezolanos) estabeleceu um
departamento especial encarregado do estudo da saúde operária, assessorada pelos universitários”
(LAURELL, 1985, p. 257). Complementando a autora e retomando o dado da iniciativa da Semana de
Saúde do Trabalhador (SEMSAT), realizada no ABCD paulista, é preciso registrar o trabalho da
Comissão Intersindical de Saúde do Trabalhador (CISAT) que, em 1979, realizou as SEMSAT I e II. Essa
comissão, em Agosto de 1980, transformar-se-ia no Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de
Saúde e dos Ambientes de Trabalho (DIESAT), entidade mantida pelo movimento sindical, com a
finalidade de estudar e assessorar o movimento sindical em questões específicas relacionadas ao binômio
trabalho-saúde, que teve uma atuação fundamental na discussão da atenção à saúde relacionada ao
trabalho com repercussões importantes para a organização da prática médica a ser exercida junto aos
trabalhadores.
96
no trabalho. A epidemiologia crítica, inserida na medicina social latino-americana,
transformaria as ciências sociais no elemento explicativo central da relação processo de
trabalho e processo saúde-doença. E as ciências sociais, com uma grande
heterogeneidade de enfoques, provenientes da Sociologia, da Antropologia e da
Psicologia, abordam, sob os mais diversos aspectos, a complexa questão da condição
operária.
A observação de que a posição de classe explica muito melhor que qualquer
outro fator biológico a distribuição da doença na população, o equívoco da suposição
desenvolvimentista de que as condições de saúde melhorariam como resultado
automático do crescimento econômico, a percepção de que o desenvolvimento da
atenção médico-hospitalar não implicou um avanço substancial na saúde dos grupos
cobertos por ela e a noção de que a distribuição desses serviços entre os diferentes
grupos e classes sociais – que está em relação inversa às necessidades de cada um – não
depende de considerações técnicas e científicas, mas, principalmente, de considerações
econômicas, políticas e ideológicas, vieram embasar todo o movimento contrário às
posturas até então adotadas pela Medicina do Trabalho e pela Saúde Ocupacional
(DIAS, 1991; LAURELL, 1976, 1983, 1985; LAURELL; MARQUEZ, 1983;
LAURELL; NORIEGA, 1989; NUNES, 1983, 1985; TAMBELLINI, 1987).
É daí que surge, a partir de um enfoque centrado no trabalho e no processo
produtivo, como organizadores da sociedade e produtores potenciais de doenças, a
reconceituação de processo saúde-doença e a concepção da determinação social das
doenças, com um forte poder explicativo e uma grande potencialidade transformadora
das práticas médico-epidemiológicas e sociais.
É importante ressaltar o surgimento e a consolidação da corrente da
medicina social que, através de suas inúmeras investigações
76
, tem se constituído a
principal referência teórica para as questões relacionadas ao processo saúde-doença e
trabalho, e a corrente responsável, nas últimas três décadas, na América Latina, pela
transformação da saúde dos operários num objeto de estudo específico. Sua abordagem
incorporou elementos importantes das ciências sociais, especialmente da sociologia
médica e da sociologia do trabalho, evidenciando o caráter social dos processos saúde-
doença e trabalho-saúde, e a necessidade de se entenderem esses dois conceitos na sua
articulação com o processo produtivo.
76
Laurell (1989), no capítulo I: A investigação latino-americana sobre trabalho e saúde relaciona uma
série de investigações desenvolvidas por autores latino-americanos em seus diversos países.
97
Também contribuiu para integrar a experiência operária no processo de
produção de conhecimento, ou seja, propiciou o diálogo entre dois mundos
aparentemente distintos e distantes. Por último, favoreceu à geração de conhecimento, a
partir do horizonte da classe operária, reflexões que induziram a mudanças na prática
médica exercida sobre os trabalhadores, fazendo-a, em alguma medida, ser
transformada numa prática médica exercida com a participação dos trabalhadores
77
.
A década de 70 veio trazer concepções mais globalizantes sobre a questão
da saúde. A divulgação do Relatório Lalonde
78
(1974), retratando as experiências
canadenses no campo da saúde, representou uma primeira amostra dessas novas
concepções. O relatório procurava articular quatro dimensões explicativas para o
processo saúde-doença: biologia humana, estilos de vida, meio ambiente e serviços de
saúde. Pode-se ver, nesse relatório, a articulação da noção de saúde com a da melhoria
das condições de vida. Lá se defendia que o ambiente pode ter papel curativo
importante, assim como a existência de serviços confiáveis de saúde pode exercer
função preventiva pelo sentimento de confiança que cria na população. Essa visão trazia
para um mesmo plano de discussão e intervenção algo que sempre tendia a ser tratado
separadamente: ações curativas e preventivas.
Essa década se caracterizou por intensos debates e intercambio de idéias, no
plano internacional, e pode ser caracterizada pela confluência de varias posições
próximas à visão da determinação social do processo saúde-doença, constituindo no
continente americano um forte movimento que reeditou, mesmo que num outro
patamar, os elementos fundamentais que estavam nas discussões travadas na Europa dos
séculos anteriores, que conformaram a medicina social como o processo histórico
conhecido.
77
Fruto da evolução, do amadurecimento e da consolidação de todas as lutas que foram travadas a partir
da emergência da Saúde do Trabalhador, enquanto teoria e enquanto prática, o país já realizou, nas
últimas décadas, três conferências nacionais – sempre acompanhadas de rodadas de conferências
estaduais e municipais que lhes dão legitimidade e consistência – e possui, formalmente, uma Política
Nacional de Saúde do Trabalhador e uma rede, hoje já considerável, de serviços municipais e Centros de
Referência em Saúde do Trabalhador. Aqui na Paraíba, por exemplo, a UFPB constituiu, no início da
década de noventa do século passado, o seu Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CERESAT),
ligado ao Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/CCS/UFPB), como uma rede formada por
profissionais de diferentes campos de conhecimento. O CERESAT está organizado em quatro programas:
a) investigação; b) implementação e desenvolvimento de ações e serviços; c) formação de recursos
humanos e trabalhadores; e, d) desenvolvimento e cooperação técnica. Ou seja, ao longo dessa mais de
uma década, tem articulado práticas de ensino, pesquisa e extensão que já impulsionaram inúmeras
iniciativas exitosas no Estado e na região nordestina.
78
A referência original dessa publicação é: LALONDE, M. – A New Perspective on the Health of
Canadians. Ottawa: Health and Welfare Canadá, 1974.
98
Esse movimento, trabalhando dentro de uma visão marxista do processo
produtivo e das relações sociais de produção, defendia que é no modo como o homem
se apropria da natureza, em um dado momento, uma apropriação que se realiza por meio
do processo de trabalho, baseado em determinado desenvolvimento das forças
produtivas e relações sociais de produção, que deve ser compreendido o processo saúde-
doença. Esse processo social tem raízes históricas e detém determinantes e
condicionantes econômicos, político-jurídicos, sócio-culturais e ambientais.
A evolução da teoria social da medicina na América Latina resultou numa
definição, talvez a mais acabada, em que consta:
Por processo saúde-doença da coletividade entendemos o modo específico
pelo qual ocorre, nos grupos, o processo biológico de desgaste e reprodução,
destacando como momentos particulares a presença de um funcionamento
biológico diferente, com conseqüências para o desenvolvimento regular das
atividades cotidianas, isto é, o surgimento da doença. [...] O processo saúde-
doença é determinado pelo modo como o homem se apropria da natureza em
um dado momento, apropriação que se realiza por meio do processo de
trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e
relações sociais de produção. [...] o padrão social de desgaste e reprodução
biológica determina o marco dentro do qual a doença é gerada. É nesse
contexto que se deverá recuperar a não especificidade etiológica do social e,
inclusive, do padrão de desgaste e reprodução biológica relativo à doença,
pois não se expressa em entidades patológicas específicas, mas no que
chamamos de perfil patológico, que é uma ampla gama de padecimentos
específicos, mais ou menos bem definidos (LAURELL, 1983a p. 151-158)
79
.
Compreendendo-se assim, os homens são, a um só tempo, corpos biológicos e corpos
sociais, e a dupla determinação biológica e social da saúde-doença tem um caráter
histórico de reprodução, em que o padrão social de reprodução biológica determina o
viver/adoecer/morrer das pessoas e da coletividade.
Nas últimas décadas, a concepção do processo saúde-doença, enquanto uma
relação dinâmica entre determinantes e condicionantes econômicos, políticos, sociais,
biológicos, psicológicos e culturais, tem evoluído consideravelmente. Hoje, entende-se
que o meio familiar e profissional do indivíduo, assim como o grau de satisfação e
produtividade são importantes variáveis na definição do gradiente de sanidade. É sabido
que as situações de trabalho são dinâmicas e conduzem tanto ao prazer quanto ao
sofrimento e, a depender da prescrição e da psicodinâmica que se imprima ao trabalho,
este pode relacionar-se tanto com saúde quanto com doença. Em seu sentido mais
abrangente, alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente e ecossistema,
79
A leitura completa do artigo onde se encontra essa definição está em: LAURELL, A. C. A saúde-
doença como processo social. In: Nunes, E.D. Medicina Social: aspectos históricos e teóricos. Coleção
Textos n.º 3, Global Editora, 1983.
99
trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, paz, acesso e posse de terra e acesso a
serviços de saúde, assim como a conservação e utilização racional dos recursos, da
justiça social e da eqüidade, são requisitos fundamentais para a saúde.
Saúde e doença resultam, pois, das formas de organização social da
produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. Na
sociedade, existem comunidades, famílias e indivíduos com maior probabilidade do que
outros de apresentar problemas de saúde, acidentes, mortes prematuras. Em
contrapartida, há aqueles com maior probabilidade de apresentarem boas condições de
saúde. Portanto, saúde e doença não são conceitos abstratos, mas, antes, definem-se no
contexto mesmo da sociedade, num dado momento de seu desenvolvimento. A saúde,
no sentido da sua conquista, constitui-se um dos objetos impulsionadores das lutas
cotidianas da população. E a atuação dos profissionais de saúde, aqui incluídos os
médicos com a sua prática, deverá se caracterizar pela produção/ação do conhecimento,
de forma que lhe propicie sempre a melhor e mais adequada intervenção sobre as
variáveis que constituem as condições sobre as quais ela possa ser alterada em favor dos
seres humanos.
Contudo, cabe uma pergunta: Como essa discussão vem ocorrendo aqui no
Brasil?
100
4 DAS POLÍTICAS DE SAÚDE À REFORMA SANITÁRIA – BRASIL
REPÚBLICA
O Brasil do início da república era um país que tentava se consolidar numa
nova ordem estatal
80
, apesar de nos planos interno e externo, desde a sua proclamação,
enfrentar relações econômicas, políticas e sociais conturbadas. Os historiadores,
segundo Nunes (2000), marcam esse período como sendo o momento em que se
estabeleceu uma contraditória aliança entre os militares e os cafeicultores paulistas. Os
primeiros, influenciados pelo positivismo, pretendiam dar um caráter mais ideológico à
República
81
. Os cafeicultores queriam o federalismo, o liberalismo econômico e
político, uma nova Constituição. Foi uma época de crises, com sucessivas rebeliões
militares e trocas de ministros nessa pasta. O Exército defendia a centralização político-
administrativa, enquanto os cafeicultores apostavam na descentralização como solução
para os problemas. Conseqüência: ocorre logo cedo uma ruptura da aliança.
Rompida essa aliança, que vai de 1889 a 1894, os cafeicultores aliam-se às
oligarquias regionais dominantes, em São Paulo e Minas Gerais, com predomínio dos
interesses da exploração do café sobre o conjunto da sociedade nacional. Essa
conjuntura se estende de 1894 a 1914, momento em que o Brasil se vê atingido pelo
seguinte efeito da Primeira Guerra Mundial: a diminuição das importações de café e de
borracha.
80
A República (Santos et. all, 1964) resultara de lutas travadas pelos grandes contingentes urbanos das
camadas médias apoiados por todos os setores populares da nação, da burguesia nascente e da fração do
latifúndio do café que abandonara o trabalho escravo. O operariado, mesmo na sua incipiência, em face
da estrutura industrial daquele momento, também deu a sua contribuição. O Exército, representando a
vanguarda da classe média e de todas as classes sociais que apoiavam a mudança do regime, fora o
artífice direto da Proclamação da República.
81
Para além da aliança entre os militares e os cafeicultores, Carvalho (1990) faz referência a pelo menos
três tendências ideológicas civis que disputavam a definição do regime republicano: o liberalismo de
influência norte-americana, o jacobinismo e o positivismo. Assim se expressa o autor: “No jacobinismo,
por exemplo, havia a idealização da democracia clássica, a utopia da democracia direta do governo por
intermédio da participação direta de todos os cidadãos. No caso do liberalismo, a utopia era outra, era a
de uma sociedade composta por indivíduos autônomos, cujos interesses eram compatibilizados pela mão
invisível do mercado. Nessa versão, cabia ao governo interferir o menos possível na vida dos cidadãos.
O positivismo possuía ingredientes utópicos ainda mais salientes. A República era vista dentro de uma
perspectiva mais ampla que postulava uma futura idade de ouro em que os seres humanos se realizavam
plenamente no seio de uma humanidade mitificada” Mas esse acirramento ideológico se dava entre
grupos pequenos que participavam dos círculos do poder, em detrimento de uma massa enorme da
população que estava excluída das discussões e que assistiu, bestializada, aos desfechos com a
Proclamação da República, como conta o autor, fazendo referência à frustração de Aristides Lobo,
considerado o grande propagandista da República.
101
4.1 A crise na saúde pública e os rudimentos do modelo de previdência social
A crise do modelo econômico agrário-exportador será a principal
característica da conjuntura de 1914 a 1930. Com ela, não apenas se instala um forte
controle social e institucional das camadas médias e do operariado, como também há
um crescente aumento do custo de vida e baixa salarial. Rebeliões e conflitos irão
eclodir a cada instante, fruto da instabilidade e das profundas mudanças e rupturas, com
a crescente complexificação da vida urbana
82
(MEHRY, 1985).
Olhando-se as primeiras décadas da República, do ponto de vista da
articulação da economia e da política, com a saúde, tem-se que o modelo agrário
exportador, apesar de ainda vigente, começava a sentir os seus primeiros sinais de
fraqueza, por conta do baque resultante da abolição da escravatura e da necessidade de
substituição da mão-de-obra negra por uma legião de trabalhadores livres, formada em
grande parte por homens e mulheres que para aqui emigraram vindos do continente
europeu em busca de vida melhor.
Os preços dos produtos brasileiros aos poucos se tornavam menos
competitivos, pois, além de sofrer com as exigências específicas do mercado,
acumulavam queixas sanitárias decorrentes da necessidade de saneamento do sistema
portuário. Não se conseguiam esconder as mazelas brasileiras no campo da Saúde
Pública. O problema chegou a ponto de o país quase ver inviabilizadas operações de
exportação, a partir dos seus portos principais. Os navios estrangeiros e os parceiros
comerciais ameaçavam aqui não mais atracar, alarmados pela situação de doenças
endêmicas que a todo instante explodiam em surtos epidêmicos como os da peste, da
varíola e da febre amarela (NUNES, 2000).
A situação grave da saúde pública não era uma questão que se resumia aos
portos nem era perturbadora apenas para os interessados nas transações comerciais. Era
apenas uma extensão, uma mostra do que acontecia em grande escala nas cidades, nos
lares, na vida do povo. Por isso, além dos reclames dos interessados nos negócios da
economia e da exportação, movimentos sociais formados pelas camadas médias
82
Para Mehry (1985), as relações entre capital industrial e agrário, entre burguesia e revolução
democrática, obedecem a padrões próprios de desenvolvimento para cada país, daí o fato de o processo de
instauração da República no Brasil ter refletido as especificações próprias do desenvolvimento capitalista
da nossa sociedade, sem ter que reproduzir os mesmos passos do desenvolvimento econômico social dos
países centrais.
102
urbanas, apoiadas por setores populares nos grandes centros do país, também exerciam
pressão e denúncia das condições sociais e sanitárias. A situação se agravava por conta
do crescente da carestia e da baixa relativa dos salários, ampliando a penúria e a
degradação das condições de saúde.
Desde o Brasil Colônia, o povo se sentia desassistido. Não havia uma
preocupação sistemática com a higiene pública, com a prevenção de doenças ou uma
atuação social e educativa na saúde. Os médicos, raríssimos, como destaca Serrano
(1986), posto que as condições da Colônia não eram atrativas, realizavam o
atendimento em domicílio, em caráter individual, mediante pagamento direto de seus
abastados pacientes. Praticavam uma medicina elitista, baseada em aconselhamentos e
em fármacos que vinham da Europa ou eram manipulados pelo próprio médico ou
boticários, a partir de princípios ativos importados ou extraídos da flora. A população
procurava a medicina popular desenvolvida pelos jesuítas, boticários e práticos. Na sua
atenção, eles davam um sentido mágico-religioso à cura ou apenas conforto ao enfermo.
A feitiçaria e a pajelança, realçadas por seus rituais e simpatias, atraíam uma fração
importante dos mais pobres que, assim, encontravam guarida para os seus males nas
mãos de seus curandeiros.
Até fins do século XVIII, não se vão encontrar significativas mudanças
nesse panorama. E mesmo com a vinda da família real para o Brasil, no início do século
XIX, e os avanços em vários dos setores sociais daí decorrentes, as atividades sanitárias
limitavam-se ao controle de navios e portos, principalmente na cidade do Rio de
Janeiro. Até o começo do século XX, não havia assistência médica de caráter público. A
Medicina, como no Império, era exercida como uma prática liberal (MACHADO,
1978).
Era uma medicina para ricos. O atendimento era, geralmente, domiciliar,
principalmente quando se tratava das zonas rurais. Mas os médicos também montavam
seus consultórios nas cidades, sobretudo nas maiores, onde prestavam atendimento
mediante consulta para os não acamados, para quem o tratamento era sempre domiciliar,
pois não havia hospitais, senão nos grandes centros.
A medicina liberal assumia um caráter familiar. O médico, por ser um
generalista, estava em condições de atender a todos os membros de uma família,
independente da posição em que cada componente se encontrasse no ciclo de vida. O
médico era alguém muito próximo do núcleo familiar que atendia. Isso lhe permitia, por
vezes, participar da intimidade da família, onde se colocava na posição de alguém com
103
capacidade para entender mais de perto a natureza humana. Isso lhe dava uma série de
elementos a mais, para cuidar daquelas pessoas ou mesmo influir em decisões da
família, quer os assuntos estivessem conectados ou não com a saúde.
Porém, a proximidade do médico com a família não era uma garantia de
uma prática médica dialógica. O médico do início do século, pela posição que ocupava
no seio da sociedade, era alguém que detinha um poder incomensurável, conferido
historicamente pela própria sociedade. Na verdade, um duplo poder
83
representado, de
um lado, pelo prestígio social de ser filho da burguesia rica e tradicionalmente poderosa,
e, de outro, devido ao saber científico acumulado depois de anos de formação. Isso o
colocava em tal posição de verticalidade em relação aos seus semelhantes que obstruía a
possibilidade do diálogo.
Fora da oportunidade de participar desse tipo de medicina, a maioria da
população, pobre, dependia do atendimento filantrópico representado pelas Santas
Casas de Misericórdia, hospitais mantidos pela Igreja Católica ou entidades laicas de
caráter religioso. E como, em geral, o atendimento da filantropia nem de longe dava
conta das necessidades de atenção à população, esta tentava socorrer-se com o que ao
final lhe restava: as benzedeiras e os curiosos e curiosas que exerciam a medicina laica,
baseada no conhecimento popular, nas ervas e nas plantas medicinais.
A situação de desassistência da população e a sua estratégia de buscar
socorro na medicina popular desagradavam à classe médica, que abria confronto com
essa modalidade de assistência. As instituições médicas de então mantinham boas
relações com as esferas do poder estatal, inclusive prestando-lhes serviços relacionados
à organização da atenção médico-social. Assim, valendo-se dessa condição, colocavam
como ponto central na sua relação com os aparelhos do Estado, o combate, sem tréguas,
a que classificavam como práticas de charlatanismo.
Sobre essa questão, Machado (1978) faz-nos concluir que essas instituições
se preocupavam com a saúde pública, mas estabeleciam como moeda de troca a defesa
83
Essa questão do poder e da relação entre poder e saber está retratada na obra de Michel Foucault,
Microfísica do Poder, quando esse pensador afirma que o poder está disseminado na estrutura social e se
exerce de forma variada nas relações de pontos da rede social. Nessa perspectiva, o poder se transforma
em algo que se constrói historicamente dentro das relações sociais. Foucault também discute as relações
entre saber e poder ao esclarecer que o saber tem a sua gênese em relações de poder. Saber e poder
estariam, assim, implicados mutuamente, não havendo relações de poder sem a constituição de um campo
de saber e, reciprocamente, relações de saber que não estejam constituídas também enquanto relações de
poder. FOUCAULT, M. – Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Editora Graal, 5ª edição, 1985.
104
do saber médico e sua legitimação pelo Estado frente ao charlatanismo. A proscrição do
charlatanismo
84
, como se pode ver, era ponto de honra.
Ao mesmo tempo em que a medicina enquanto medicina social oferece ao
Estado seus préstimos no combate às epidemias, na elaboração da legislação,
distribuição da justiça, urbanização, cobra dele a luta contra o charlatanismo
e o reconhecimento da exclusividade do saber sobre a saúde (MACHADO,
1978, p. 199).
A classe média e a burguesia, mesmo estando, teoricamente, numa situação
menos desconfortável, já que tinham condições de custear os seus tratamentos de saúde,
também se rebelavam contra a situação sanitária, pelo fato de se sentirem desprotegidas
em relação às condições sanitárias inadequadas em que eram obrigadas a viver. A
burguesia industrial e comercial em expansão entendia que as epidemias manchavam o
nome do país e atrapalhavam os seus negócios. Naquela época, dependiam da mão-de-
obra imigrante, que era atraída para o país e, em boa parte, destinava-se ao trabalho
fabril e ao comércio. Como se vê, motivos não faltavam aos diversos movimentos para
o questionamento da atuação do governo da República no encaminhamento das
soluções dos problemas sócio-sanitários.
O setor saúde sofreu e sofre forte influência, um condicionamento mesmo
do capitalismo nacional e internacional. A história das políticas de saúde e da prática
médica na República Velha, como nos demais períodos republicanos, está diretamente
relacionada à evolução das políticas sociais e econômicas do Estado brasileiro, não
sendo possível uma dissociação entre elas. As lutas sociais por saúde sofreram a
influência dos movimentos e dos contextos sócio-políticos e econômicos, mas, em
vários momentos, também influenciaram a construção social e política do Estado
Brasileiro (CARVALHO LIMA, 2006).
Naquele tempo, para fazer frente às pressões específicas da saúde, a
estratégia do governo da República se assentava numa visão que articulava as questões
da saúde com o saneamento das cidades, principalmente, as maiores e de maior
importância econômica. Por isso, destacou Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e Emílio
Ribas, em São Paulo, centros que estavam entre os de maior aglomeração e maior
importância econômica, para deflagrarem campanhas de saúde pública com o fim de
combater as endemias e epidemias que assolavam a vida do povo. As campanhas de
84
O charlatanismo a que se referiam as organizações médicas estaria configurado no exercício ilegal da
medicina e da farmácia por pessoas da população, religiosos e boticários que ofereciam consultas,
tratamentos de saúde e manipulavam e comercializavam substâncias, sem a devida formação ou
autorização sanitária.
105
saúde pública eram organizadas como campanhas militares, dividindo a cidade em
distritos, encarcerando os doentes de moléstias contagiosas e obrigando, pela força, o
emprego de práticas higiênico-sanitárias
85
.
O traço autoritário, policialesco e controlador do governo da República, na
relação com a população, no mais das vezes, gerava protestos e verdadeiras guerras
entre autoridades sanitárias e as organizações da população, especialmente na capital
federal, centro nervoso do poder. Tornou-se emblemático e conhecido o episódio da
revolta da vacina, na primeira década do século passado, no Rio de Janeiro
86
. Durante
quase uma semana, para fazer frente a uma campanha de vacinação contra a varíola, em
que os agentes de saúde tentaram usar a polícia para obrigar a adesão da população,
ergueram-se barricadas, e o povo lutou bravamente contra o modo como a estrutura de
saúde comandada por Oswaldo Cruz organizou e fez executar o processo de vacinação.
A atitude do governo era considerada como uma invasão da privacidade dos lares e dos
costumes.
A capital da República ficou, então, dividida. De um lado, os movimentos
populares, defendendo a participação popular na definição das ações para a sua
proteção, afirmavam que ninguém poderia obrigá-los e por isso não poderiam permitir a
campanha. Nisso contavam com o apoio dos militares que, auto-definindo-se como
positivistas, afirmavam reconhecer a ciência, mas a imposição de campanhas era
contrária aos direitos dos cidadãos. De outro lado, a administração sanitária
considerava a revolta absurda e defendia que a saúde era um caso de polícia e, como tal,
85
O cuidado para com as epidemias nas cidades, principalmente as portuárias, como Santos e Rio de
Janeiro, esteve na origem da criação das duas maiores instituições de pesquisa biomédica e de saúde no
Brasil: O Instituto Soroterápico Federal (atual Fundação Oswaldo Cruz), no Rio de Janeiro, e o Instituto
Butantan, em São Paulo. Nessas instituições, uma nova geração de médicos formados, segundo o
paradigma da bacteriologia e influenciados pela pesquisa científica praticada na França e na Alemanha,
começaria a exercer forte influência nas concepções sobre as doenças transmissíveis e nas propostas de
ações em saúde pública
(CARVALHO LIMA, 2006).
86
O episódio da revolta da vacina é uma das referências mais constantes quando se faz menção à história
da saúde pública brasileira e fluminense, do início do século XX. Há inúmeras referências e citações do
fato. Particularmente, indicamos três obras, entre tantas: SEVCENKO, N. – A revolta da vacina: mentes
insanas em corpos rebeldes. Brasiliense, São Paulo, 1984; COSTA, N. R. – Lutas urbanas e controle
sanitário: origens das políticas de saúde no Brasil. Vozes-Abrasco, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1985;
CARVALHO, J. M. – Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi.o Paulo,
Companhia das Letras, 1987. Também são citados Meihy e Bertolli Filho (1990) quando assinalam que a
história da saúde pública se coloca como uma variação ou ramo da história social, espaço útil para se
refletir sobre a continuidade e/ou ruptura das relações entre o poder, as atitudes médicas vinculadas à
população em geral e as implicações íntimas, constantes na prática da ética política. Trata-se de uma
história da circulação da vontade governante manifestada nos cuidados médicos e nas aceitações
populares.
106
deveria ser tratada. A não cooperação com as campanhas deveria ser entendida como
atos de rebeldia e desobediência civil de inimigos da Saúde Pública.
Pode-se ver que a Revolta da Vacina assumiu um conteúdo de luta pelo
respeito e pela participação autônoma, livre e esclarecida da população na definição das
medidas que deveriam ser tomadas para sua proteção. Por parte do governo, havia todo
um interesse em desenvolver assistência e proteção à saúde da população, ficando
evidente a dificuldade política e prática da sua formulação ao não incluir nela elementos
pedagógicos que permitissem dialogar com a vida comunitária, seus costumes, modos
de vida, conhecimento, cultura e formas de sociabilidade.
O modelo campanhista vinha de uma inspiração pasteuriana, que organizava
ações de saúde nos moldes científicos da bacteriologia e da microbiologia. A maior
parte de suas ações eram voltadas para a imunização e prescrição de medidas sanitárias
focadas em hábitos de higiene
87
. As suas práticas visavam atingir algumas das doenças
infecto-contagiosas que grassavam na população. Tecnicamente, e bem articuladas, elas
tinham o poder de conferir uma razoável resposta pontual contra surtos epidêmicos,
porém a grande crítica feita, no caso, com absoluta pertinência, era que essas medidas
não detinham o condão de interferir no mais importante: os determinantes da
deterioração das condições objetivas de vida e de trabalho da população. Por outro lado,
já que esse modelo não conseguia ser eficaz, desacreditava a própria Saúde Pública.
Insistindo na questão dos determinantes das condições de vida e trabalho,
pode-se buscar o apoio de Moraes (1983). O autor atesta que, apesar de ausente em boa
parte da bibliografia histórica brasileira, o debate sobre condições de vida e de trabalho
era muito presente nas manifestações políticas e culturais. Indica que basta se
observarem os jornais, as peças teatrais, músicas e os textos produzidos nas primeiras
décadas daquele século, para se concluir que artistas e militantes políticos, ligados
principalmente aos anarquistas e aos socialistas, faziam o nexo entre as condições de
existência e o estado de saúde da população. Eram esses meios de comunicação e de
mobilização da cultura fontes de informação, educação e politização dos movimentos
reivindicatórios da época.
87
As políticas de saúde, que tiveram início efetivo em fins da década de 1910, estavam associadas aos
problemas de integração nacional e à consciência da interdependência gerada pelas doenças
transmissíveis. São, segundo Hochman (1998), os resultados do encontro de um movimento sanitarista,
organizado em torno de políticas de saúde e saneamento, com a crescente consciência, por parte das
elites, quanto aos problemas de saúde. É importante destacar, ainda, que as políticas de saúde e
saneamento propostas pelos sanitaristas não eram viáveis sem o fortalecimento da autoridade Estatal e do
papel do governo federal (CARVALHO LIMA, 2006).
107
As sociedades médicas eram outro ator importante nesse processo por causa
da sua atuação em face do Estado e dos movimentos reivindicatórios. Há alguns
trabalhos
88
que fazem referências ao papel dessas sociedades, algumas vindas da época
do Império, como era o caso da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro e
da Academia Imperial de Medicina que, durante a República, transformou-se em
Academia Nacional de Medicina, ou mesmo analisam a fundo seu discurso e prática.
Essas instituições definiam seus objetivos na defesa da ciência médica e do
saber médico e demonstravam preocupação com a saúde pública. Tinham um corte
liberal e, na sua relação com o Estado, ofereciam os seus préstimos no combate às
epidemias, na elaboração da legislação, distribuição da justiça, urbanização, mas
cobravam dele o reconhecimento da exclusividade do saber sobre a saúde, como pode
ser conferido em Machado (1978).
Moraes (1983) constata que a Academia Nacional de Medicina não
consegue impor seu projeto médico em face da sociedade. A pista oferecida pelo autor é
de que, mesmo falando em universalização da atenção médica, a proposta da Academia,
ao invés de indicar um projeto de medicina de massa, apontava para uma prática clínica
baseada na especialidade, com um modelo de intervenção individual que implicava em
vultosos custos. Por outro lado, analisa que, em um Estado, cuja ideologia é liberal, a
medicina se identifica com ele, em sua prática e no seu modelo de medicina social.
Porém, outras questões, além dessas, definem a escolha e a ação do Estado que, nesse
período da República, representavam outros setores e alianças sociais que não estavam
na Academia Nacional de Saúde.
O Estado brasileiro houvera feito a escolha do Higienismo
89
como o seu
projeto médico-social dominante, e o sanitarismo campanhista exprimia-se como braço
operacional do próprio Higienismo, que diz respeito a um conjunto de idéias
desenvolvidas pelo campo da saúde e da medicina, que defende a possibilidade de se
melhorar a qualidade de vida e a saúde física e mental da população, através do
88
MACHADO, R.; LOUREIRO, A.; LUZ, R. & MURICY, K. – Danação da norma: medicina social e
constituição da psiquiatria no Brasil. Graal, Rio de Janeiro, 1978; MORAES, N. A. – Saúde e poder na
República Velha: 1914-1930. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1983; OLIVEIRA, C. R.Medicina e Estado - origem e
desenvolvimento da medicina social - Bahia: 1866-1896. Dissertação de Mestrado. Instituto de Medicina
Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 1983; CARVALHO, M. A. R & LIMA, N. T. O
argumento histórico nas análises de saúde coletiva, pp. 117-242. In Fleury (org.). Saúde Coletiva:
questionando a onipotência do social. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1992;
89
Um fato marcante que demonstra a escolha higienista do Estado brasileiro foi a sua atuação decisiva na
criação da Sociedade Brasileira de Higiene, em 1923. Essa sociedade médica tinha a sua sede no Rio de
Janeiro.
108
desenvolvimento de ações higiênicas e de prevenção de doenças ligadas a algumas
situações da vida humana, tais como: habitação, saneamento, alimentação, hábitos e
educação. Nesse sentido, estavam informadas pelos mecanismos de contaminação e
transmissão de doenças.
Pesquisando o Higienismo, Mendonça e Boarini (2004) fazem uma
associação dele com o Eugenismo
90
, professado pela Liga Brasileira de Hygiene Mental.
Defendem que essa associação acabava por cumprir outros papéis como o de, em nome
do Estado, exercer o controle sobre a organização da vida em sociedade. Nessa
perspectiva, as autoras afirmam:
O higienismo/eugenismo no Brasil fizeram sua história a partir do
movimento social que instituiu a Liga Brasileira de Hygiene Mental. A Liga
foi criada em 1923, pelo médico Gustavo Riedel, que, juntamente com outros
intelectuais da época, estavam interessados [sic] em realizar no Brasil o
aprimoramento da raça em prol do desenvolvimento da nação. Dentro da
perspectiva positivista, que compreende o funcionamento social a partir de
leis naturais de desenvolvimento e organização, as dificuldades pelas quais a
nação passava se deviam à natureza multirracial de seu povo. Essa natureza
conjugava aspectos hereditários negativos, tais como a indolência, a preguiça,
o gosto pelo ostracismo, a tendência à criminalidade etc. (MENDONÇA;
BOARINI, 2004, p. 49).
E no parágrafo seguinte, concluem o seu raciocínio:
A partir dessa compreensão da natureza da organização social, a Liga
Brasileira de Hygiene Mental visava defender a mentalidade da raça,
combatendo o alcoolismo e os vícios sociais”, selecionando a imigração,
controlando os casamentos, esterilizando compulsoriamente os degenerados,
fazendo seleção e orientação profissional, dando atendimento à infância com
vistas a um desenvolvimento mental sadio e eugênico
(MENDONÇA;
BOARINI, 2004, p. 49-50).
Com isso, pode-se dizer que a filosofia higienista encerrava uma pedagogia
e uma visão de educação autoritária, positivista e antidialogal, que se aproximava do
debate educacional correspondente ao período pós-Primeira Guerra Mundial, quando o
país foi sacudido por uma onda nacionalista que terminou por influenciar as discussões
e as demandas por educação. Essa tal onda nacionalista tinha um caráter de reação ao
próprio projeto educativo autônomo das famílias de imigrantes que se situavam no
90
Eugenia, tal qual se encontra definido no Dicionário Aurélio, é a ciência que estuda as condições mais
propícias à reprodução e melhoramento da espécie humana. Segundo Boarini (2003), as idéias eugenistas
datam da antiga Grécia e estão presentes, por exemplo, em A República, de Platão. Na modernidade,
Francis Galton publicou, em 1869, Hereditary Genius. Atualmente, ainda para esta autora, o avanço da
genética e da biologia celular tem tornado a eugenia uma possibilidade cada vez mais real. Na história do
Brasil, a eugenia se desenvolveu envolvida por outra disciplina que lhe é próxima, o higienismo.
109
centro sul e não esperavam pelas iniciativas governamentais e, como viés, um forte
entusiasmo pela educação
91
.
Esse entusiasmo perpassava a própria categoria médica e pode ser ilustrado
pela posição do médico Miguel Couto
92
, ligado ao Higienismo e para quem o grande
mal do país seria o analfabetismo, algo que precisava ser extirpado do organismo
nacional. Paiva (1983) reproduz o núcleo do discurso desse profissional, bem carregado
no jargão médico:
O analfabetismo não é só um fator considerável da etiologia geral das
doenças, senão uma verdadeira doença, e das mais graves”. Vencido na luta
pela vida, nem necessidades nem ambições, o analfabeto contrapõe o peso
morto de sua indolência ou o peso vivo de sua rebelião a toda idéia de
progresso, entrevendo sempre, na prosperidade dos que vencem pela
inteligência cultivada, um roubo, uma extorsão, uma injustiça. Tal a saúde da
alma, assim a do corpo; sofre e faz sofrer; pela incúria contrai doenças e pelo
abandono as contagia e perpetua. [...] o analfabeto é um microcéfalo: a sua
visão física é estreitada, porque, embora veja claro, a enorme massa de
noções escritas lhe escapa; pelos ouvidos passam palavras e idéias como se
não passassem; o seu campo de percepção é uma linha, a inteligência, o
vácuo; não raciocina, não entende, não prevê, não imagina, não cria (PAIVA,
1983, p. 99).
A despeito do nacionalismo e da sua influência nas questões sociais e nos
posicionamentos éticos repletos de higienismo/eugenismo, Santos (1985) identifica,
91
O entusiasmo pela educação, na visão de Paiva (1983), parte de perspectivas externas ao campo. TTem
no seu cerne a idéia do progresso, do domínio da técnica da leitura e da escrita, pelo maior número
possível de pessoas, e da ascensão social. Datando do já distante século XIX, essa visão entusiástica da
educação foi assumida tanto pela igreja, com cujo humanitarismo pretendia expandir os seus serviços
religiosos e educacionais, como pelos ideais capitalistas que, a partir do evento da revolução industrial,
queriam, a todo custo, o desenvolvimento do seu modo de produção. Os socialistas, por seu turno,
também podem ser considerados como adeptos dessa posição, uma vez que viam na educação um
instrumento de conscientização das massas na sua luta pelo poder político e elevação do padrão de vida
das sociedades socialistas. Fica evidente, em qualquer das ideologias que se considere que tenham essa
posição, a preocupação quantitativa.
92
A partir da Academia Brasileira de Letras (www.academia.org.br), tem-se que o médico e professor
Miguel Couto era poliglota e profundo conhecedor da língua portuguesa. Participou de vários congressos
de Medicina, nos quais se destacou pela sua competência profissional, sendo considerado um dos mais
notáveis clínicos de sua época. Envolvido nas questões da educação nacional, combateu a imigração
japonesa, que considerava poder vir a constituir sério perigo para o Brasil. Ainda antes da Revolução de
1930, em 1927, proferiu, na Associação Brasileira de Educação, uma conferência em que apresentou um
projeto sobre Educação, depois largamente distribuído em todas as escolas normais e institutos
profissionais da então Capital Federal. Nesse documento, sugeria a criação do Ministério da Educação,
com "dois departamentos: o do ensino e o da higiene". A 14 de novembro de 1930, um decreto do Chefe
do Governo Provisório da República criava "uma Secretaria de Estado, com a denominação de
Ministério da Educação e Saúde Pública, sem aumento de despesa". O apelo de Miguel Couto na
Associação Brasileira de Educação dera o seu fruto. O "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova",
lançado em 1932, reproduziu o que já pregara Miguel Couto cinco anos antes: "Na hierarquia dos
problemas nacionais, nenhum subleva em importância e gravidade o da educação". Eleito deputado
federal na Constituinte, que elaboraria a Constituição de 16 de julho de 1934, continuou a defender suas
idéias sobre educação e problemas da imigração japonesa. Presidiu a Academia Nacional de Medicina
durante 21 anos consecutivos. Deixou, entre suas mais notáveis obras - as "Lições de Clínica Médica";
"Só há um problema: a Educação"; a tese de concurso "Dos espasmos nas afecções dos centros nervosos"
e, também, uma seleção de discursos pronunciados em diversas cerimônias.
110
nesse período, duas correntes de pensamento nacionalista. Para uma corrente, o
crescimento e progresso das cidades eram sinais da conquista civilizatória. Um Brasil
moderno significava um Brasil europeizado
93
.
Só a imigração branca e européia poderia limpar os brasileiros da nódoa do
passado escravocrata e dos efeitos perniciosos da miscigenação. O sangue
novo – ‘sangue bom’ – permitiria ao brasileiro redimir-se e purificar-se da
contaminação de raças supostamente inferiores (SANTOS, 1985, p. 02).
Posicionamentos dessa natureza não apenas firmavam o pensamento da elite
intelectual participante dos ciclos de poder da época como davam uma idéia de como a
Medicina, a partir das suas organizações, assim como os médicos, individualmente,
enquanto intelectuais, viam a população que supostamente deveria ser destinatária dos
seus cuidados. Essas personalidades eram formadoras de opinião e mestres nas escolas
médicas da época, portanto, mestres das gerações de mestres e profissionais que
consolidaram a medicina tradicional brasileira do último século, hegemônica nos dias
atuais.
A outra corrente estava preocupada em recuperar, no interior do país, as
raízes da nacionalidade e buscava integrar o sertanejo ao projeto de construção nacional.
A essa corrente do pensamento social da época, afiliou-se boa parte dos médicos
sanitaristas, concorrendo para a mudança do modo de pensar o Brasil e os problemas da
população, especialmente a rural. Tal mudança se dá a partir de uma revisão das teses
enfatizadoras da inferioridade racial do brasileiro, colocando o foco no tema do
abandono pelo poder público como principal obstáculo para os projetos civilizatórios.
Seguindo os passos de Santos (1985), vale a pena destacar o papel dos
médicos sanitaristas na conformação desse pensamento, cujo trabalho
94
permitiu às
elites urbanas uma visão contundente das condições médico-sanitárias e sociais no
grande sertão. Indo além das questões estritamente sanitárias, denunciaram vários
aspectos da organização social dos sertões: a família não existia legalmente por falta de
registro civil, os filhos quase nunca eram registrados, o trabalho forçado em vastas áreas
de maniçobais no Piauí e na Bahia era prática corrente, assim como o aliciamento de
mão-de-obra infantil nos vilarejos ao longo do rio São Francisco.
93
A crença nesse posicionamento era tão firme que levou o médico Gouvêa de Barros, deputado federal
por Pernambuco e ex-diretor do serviço sanitário de seu Estado, a proclamar, na Câmara dos Deputados,
que o Brasil tinha uma população fraca, sem resistência às doenças dos trópicos (Santos, 1985).
94
Dois deles, Artur Neiva e Belisário Pena, após empreender viagem pelos estados do Nordeste e de
Goiás, denunciaram em seus relatórios as péssimas condições de vida no interior do País.
111
Santos (1985) destaca a obra de Belisário Pena, denominada Saneamento do
Brasil, onde a questão sanitária aparece como um tema essencialmente político.
Segundo o documento, o Brasil cuidava apenas das suas capitais e de algumas cidades.
As populações rurais permaneciam no mais completo abandono. As
estatísticas sobre as endemias rurais refletiam tal situação: o amarelão
atacava 70% da população; 40% eram vítimas da malária; a doença de
Chagas atingia 15% da população rural. Estas eram as endemias mais sérias
em todo o País, às quais o governo central deveria dar combate através de
uma política integrada de saneamento. Para Belisário, pouco poderia ser feito
em favor das populações desassistidas sem que se unificassem e
centralizassem os serviços de saúde pública. Só o poder central possuía os
instrumentos necessários para sobrepor-se à inação ou à resistência
oligárquica e promover campanhas pelo saneamento em todo o território
nacional. Entretanto, a mudança nas regras do jogo político era considerada
por Belisário Pena uma condição necessária para que o governo central
pudesse assumir o controle do sistema de saúde pública em todo o País
(SANTOS, 1985, p. 09).
Os anos vinte foram de efervescência tanto cultural quanto política. Basta
lembrar a Semana de Arte Moderna e o fortalecimento da esquerda que, já contando
com os anarquistas, ampliou-se com o surgimento do Partido Comunista do Brasil
(PCB). O país assiste a um confronto de idéias que coloca no debate, além dos
entusiastas pela educação, os otimistas pedagógicos
95
, representados pelos profissionais
da educação, que começam a aparecer dentro e fora do governo da República, e com os
realistas em educação
96
que, em geral, ligados à esquerda e ao comunismo,
reivindicavam uma atitude mais efetiva do governo nesse campo.
95
O otimismo pedagógico finca-se numa perspectiva interna e numa visão qualitativa da educação. Para
os adeptos dessa posição, a educação se finda num evento unilateral e técnico, que se preocupa
unicamente com aspectos ligados à eficiência e à qualidade dos sistemas educativos. A educação não é
vista do ponto de vista social, econômico e político. Apenas se preocupa com os seus próprios aspectos
administrativos, com a formação técnica dos professores e o aperfeiçoamento dos currículos e métodos de
ensino. Resume-se no professor bem formado e eficiente, no pedagogo atento às questões da escola e da
escolarização como um serviço de qualidade a ser colocado à disposição da sociedade. Negligenciando os
aspectos práticos do dia-a-dia da política, da economia e da vida social, em geral, o otimismo pedagógico
acaba, no mais das vezes, por servir de braço da ordem estabelecida, justificando-a e conformando-a. Ao
não articular as questões da pedagogia e da educação com os ingredientes que fazem a vida do país, cai
no diletantismo e se torna ineficaz.
96
A terceira posição, a do realismo em educação, é uma síntese crítica das duas anteriores e conjuga as
perspectivas interna e externa para compor uma educação que seja vista sem unilateralismos, integrada à
vida econômica, política e social, preocupada com a qualidade do ensino, com a sua expansão a todas as
camadas sociais e com o seu desenvolvimento enquanto sistemas educativos que respondam aos anseios
da sociedade. Profundamente penetrados pelas ideologias, os adeptos dessa posição estão longe de formar
um bloco monolítico e homogêneo. Ao contrário, conservadores, mudancistas e revolucionários formam
um complexo jogo na abordagem e no tratamento dos fenômenos educacionais e pedagógicos.
112
Paiva (1983) identifica, no Brasil dos primeiros trinta anos do século XX
97
,
pelo menos duas correntes dessa última posição. Em primeiro lugar, uma corrente
liberal, que pode ser representada na figura de Anísio Teixeira, educador escolanovista,
aluno e discípulo de Dewey
98
, e um dos nossos maiores expoentes em termos de luta
pela reforma e construção de um sistema educação nacional democrático, forte e
qualificado. A seriedade e o trabalho desse educador e o seu esforço para que o país
tivesse uma escola e um sistema educativo de qualidade, em todos os seus aspectos,
podem levar a uma falsa impressão de ligação com a posição do otimismo pedagógico,
o que, numa análise mais profunda, não deve ser considerado. A atuação desse grupo
deu-se especialmente a partir dos anos 20.
A segunda corrente dessa posição é a da esquerda marxista, que tomou
corpo também na década de 20. Esse grupo nasce do Partido Comunista e se diferencia
do ecletismo e de certa confusão ideológica representada pelo movimento modernista e
suas repercussões, depois da Semana de Arte Moderna de 1922. Está preocupado com a
instrução do povo e vê nessa instrução um instrumento para a tomada de consciência da
situação política, econômica e social vivida à época. Tinham, assim, preocupações tanto
quantitativas como qualitativas, ao contrário de algumas posições ditas socialistas ou
humanitárias, ligadas ao entusiasmo pela educação, que viam na própria educação o
grande problema nacional, o mal a ser atacado, em cuja resolução residiria a solução de
todos os outros. Entendiam que era preciso formar cidadãos conscientes e instruídos,
capazes de revolucionar as nossas estruturas, de modificar a base produtiva do nosso
sistema econômico - o grande responsável pela desigualdade e pela miséria material e
intelectual do povo. Nesse caso, a educação poderia ser um combustível importante para
a tomada de posição rumo a uma revolução proletária.
Nesse grande mosaico, destaca-se a discussão acerca da Educação dentro do
Estado brasileiro. A fortaleza, a pertinácia e a intransigência - podendo-se falar mesmo
de prepotência e arrogância - das posições higienistas é que não se deixavam oxigenar
97
A autora identifica figuras do último período do Império, como é o caso de Rui Barbosa, no seu célebre
parecer-projeto sobre a reforma proposta por Leôncio de Carvalho, ligadas ao debate da política
educacional. No caso, o parecer do político e intelectual baiano trazia componentes muito claros ligados
ao realismo em educação, mesmo que calcado na idéia do progresso, normalmente ligado aos
classificados como adeptos do entusiasmo pela educação.
98
John Dewey (1859-1952), filósofo e pedagogo norte-americano, é reconhecido como um dos
fundadores da escola filosófica de Pragmatismo. Foi ainda um pioneiro em psicologia funcional e
representante principal do movimento da educação progressiva norte-americana durante a primeira
metade do século XX. A idéia básica do seu pensamento sobre a educação está centrada no
desenvolvimento da capacidade de raciocínio e espírito crítico do aluno.
113
pelas outras idéias em discussão, que propunham alternativas no tratamento dos
problemas sociais que eram muitos e que iam muito além da saúde. Aliás, a situação de
saúde das maiorias era apenas uma das conseqüências da forma como estava organizada
a sociedade.
A ideologia sanitarista dos anos vinte desempenhou um papel de
mobilização política. Apesar de ser um movimento de elite, tomou grande impulso
atraindo setores das classes médias, formando correntes favoráveis às teses sanitaristas
dentro do Congresso Nacional e agitando a imprensa. Em torno da idéia de saneamento
do Brasil, deu-se a politização da questão saúde durante o primeiro período republicano.
Observe-se, contudo, que o movimento esteve focado principalmente nos aspectos
ideológicos do problema, e não, em suas realizações práticas. Talvez aí resida parte da
explicação da causa de não haverem logrado a erradicação das endemias urbano-rurais.
Voltando à caracterização desse período e mantendo a articulação com as
questões econômico-políticas e ideológicas da Velha República, pode-se agora fazer
referência ao processo de industrialização que, aos poucos, firmava-se no país
99
. E à
constituição do movimento operário, a organização de suas lutas em face do trabalho, da
saúde e da proteção social
100
. E, nesse caso, é preciso reconhecer que os imigrantes
tiveram uma importância fundamental no processo, notadamente os alemães e os
anarquistas italianos, espanhóis e portugueses que para aqui vieram e se destacaram na
composição do movimento operário e na formação da consciência operária como classe
em si e para si
101
.
99
Considerando-se os estudos de Dreifuss (1981), entre 1890 e 1920, o país passou de 600 para
aproximadamente 14.000 estabelecimentos industriais. Havia nesse crescimento uma forte participação
do capital estrangeiro, no caso britânico e no americano, com supremacia dos britânicos que respondiam,
em torno de 1930, por cerca da metade do capital estrangeiro no Brasil, ficando os americanos com
aproximadamente 25%, tendência que se inverteria durante os períodos seguintes quando os britânicos
praticamente se retiraram, e os americanos cresceram.
100
O processo de industrialização brasileiro vinha afirmando-se a partir da segunda metade do século
XIX com os primeiros ensaios de substituição de importações. Junto com esse processo também se dá
início às movimentações operárias, inicialmente através das Organizações de Socorro Mútuo. Segundo
Simão (1966), as primeiras três mútuas surgem por volta de 1872/3 e congregam membros da colônia
alemã, artífices gráficos e assalariados de diversas categorias profissionais, respectivamente. Na cidade de
São Paulo, foram criadas 19 mútuas entre esse período e 1900. Partes dessas organizações mais tarde
foram transformadas em ligas operárias e passaram a compor o movimento sindical propriamente dito,
durante a República.
101
Há uma farta bibliografia dando conta da formação inicial do operariado brasileiro e dos primórdios do
sindicalismo no país. Mas, especificamente sobre o sindicalismo amarelo, que é como ficou conhecido o
anarco-sindicalismo, e para uma maior fundamentação do leitor, citamos: HARDMAN, F. F.– Nem pátria
nem patrão: vida operária e cultura anarquista no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1983; VIANA, L. W. –
Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; HARDMAN, F. F. & LEONARDI,
V. – História da indústria e do trabalho no Brasil: das origens aos anos vinte. São Paulo, Kairós, 1982;
SIMÃO, A. – Sindicato e Estado. São Paulo, Dominus, 1966.
114
Nas primeiras duas décadas, a produção industrial crescera no Brasil,
sobretudo com o início da política de substituição de importações, quando a importação
de diversos produtos – tecidos, calçados e chapéus, principalmente – fora impedida pelo
acontecimento da primeira guerra mundial, o que gerou a necessidade de sua fabricação
no próprio país. Mas uma questão preocupava os industriais: eram as constantes revoltas
dos trabalhadores contra as condições de trabalho. Em 1917, essas relações se agravam
com o estouro de greves por fábrica culminando, em São Paulo, com a primeira greve
geral de trabalhadores, obrigando os patrões a negociarem, retomando-se as atividades
fabris.
Por volta desse mesmo período, acontece a epidemia da gripe espanhola.
Sofre, mais uma vez, a população paulistana, que assiste a milhares de mortes. Sofre a
saúde pública, atingida no seu cientificismo e, mais uma vez, batida pela epidemia.
Nova onda de protestos acontece contra o governo e contra os dirigentes da Saúde
Pública, acusados de nada fazerem em defesa da população. Há o aproveitamento
religioso, por parte da Igreja Católica, que começa a pregar que os médicos não
conseguiriam fazer nada contra a moléstia porque a gripe seria um castigo dos céus
contra os pecadores. Todos iriam perecer. Um flagrante desrespeito ao conhecimento,
mostrando a alienação e o uso ideológico da religião numa espécie de pedagogia da
ignorância.
Vale aqui ressaltar a atitude ideológica, positivista e antidialógica, do
Estado e da ciência médica a seu serviço. Juntos, não conseguiam enxergar os
condicionantes e determinantes do processo saúde-doença, ainda que toda a discussão
sobre o papel da organização social na produção da doença e da saúde já houvesse sido
posta há mais de setenta anos na Europa onde, inclusive, continuava sendo formada boa
parte dos nossos médicos. Ambos, Estado e Medicina, não conseguiam enxergar que os
seus quefazeres encerravam uma pedagogia e uma educação autoritárias.
É compreensível o papel dos anarquistas, imigrantes europeus, na
constituição do movimento sindical e dos movimentos sociais em geral em função da
luta por direitos básicos de cidadania no trabalho, e mesmo por condições objetivas de
vida e, entre outras coisas, pela constatação da inexistência de uma assistência médica
pública, capaz de fornecer a devida cobertura aos cidadãos e à classe trabalhadora. O
início e a continuidade dessa movimentação foi o que possibilitou o aparecimento de
organizações mutuais ainda durante o Império. Elas, agora, já na República, serviram
como uma espécie de modelo para a composição das Caixas de Aposentadorias e
115
Pensões
102
(CAP´s). Era a primeira vez que o Estado interferia para criar um mecanismo
destinado a garantir ao trabalhador algum tipo de assistência. Os operários passavam a
ter a possibilidade de assistência médica para si e seus dependentes. Porém, apenas as
grandes fábricas conseguiram sucesso com essa política. As pequenas ficaram de fora
103
.
Considerando o específico da saúde, o período da República Velha, aqui
caracterizado como o período em que se priorizou a saúde pela via do saneamento, foi
um momento de crescimento da consciência das elites em relação à situação sanitária do
país e da percepção de que o Estado nacional deveria assumir a responsabilidade pelas
questões relativas à saúde. Nesse período, foram assentadas as bases para a criação de
um incipiente Sistema Nacional de Saúde, caracterizado pela concentração e
verticalização no governo federal, situação, de certa forma, ainda mantida nos dias de
hoje, mesmo com o impressionante processo de descentralização conseguido pela
criação e implementação do Sistema Único de Saúde.
4.2 A República Velha e o Estado Novo
Voltando ao plano mais geral e às questões relativas ao poder político que
dava sustentação ao governo, à economia e aos mecanismos que tentavam segurar as
tensões sociais, tem-se que o final da década dos anos 20 foi bastante conturbado,
colocando em xeque a República Velha, a essa altura já apresentando sinais de exaustão.
Abria-se espaço para um novo ciclo do Estado brasileiro, iniciado com a Revolução de
102
Essas Caixas eram um sistema de arrecadação financeira voltado para a prestação de serviços e
benefícios, tais como: pensões, aposentadorias e assistência médica aos filiados e seus dependentes. Eram
organizadas por empresa e contavam com as contribuições dos trabalhadores e empregadores. A evolução
desse tipo de associação levou a que acabassem regulamentadas através da Lei Elói Chaves, em 1923.
103
A Lei Elói Chaves regulamentou as CAP´s apenas para os estabelecimentos acima de 50 empregados,
para os quais, além de assistência médica também ficava assegurado o direito de aposentadoria. Os
marítimos, os ferroviários e os empregados nos ramos da exportação foram os primeiros a conseguir o
benefício, comprovando que a legislação fora fruto da pressão, principalmente desses setores, que eram os
que estavam intimamente ligados à economia de maior desempenho. Tanto que os têxteis, num primeiro
momento, até ficaram de fora. Ficava claro que além da lei era preciso pujança econômica, organização e
força sindical. As CAP´s se constituíram num embrião da previdência social brasileira. Para um
aprofundamento sobre o significado dessa legislação para a constituição da previdência social no Brasil
indicamos, entre tantas, três interessantes obras: OLIVEIRA, J. A. A. e TEIXEIRA, S. M. F.
(Im)previdencia Social: 60 anos de história da previdência no Brasil, Petrópolis, Vozes/ABRASCO,
1986; MALLOY, J. – Política de Previdência Social no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1986; BRAGA, J.
C. S. & PAULA, S. G. Saúde e previdência: estudos de política social. CEBES-Hucitec, São Paulo,
1981.
116
30, que colocou Getúlio Vargas no poder. Para se compreender essa revolução, convém
explicitar alguns elementos econômicos e políticos da conjuntura que a antecedeu e, de
certa forma, determinou-a. Esses elementos, como se poderá ver, produzirão
rebatimentos importantes sobre as políticas sociais do período, particularmente na saúde
e na educação.
Do ponto de vista econômico, diversos setores, tais como charqueadores,
produtores de açúcar, de cacau, de borracha, de arroz e mesmo os segmentos industriais,
não viam com bons olhos a política de priorização do café. Sentiam-se discriminados
pelo governo, sem incentivos. Depois, não se pode esquecer o outubro de 1929, quando
aconteceu o "crack" da Bolsa de Valores de Nova York, cujas conseqüências se fizeram
sentir no mundo inteiro, inclusive no Brasil, tendo em vista a grande carteira de
exportação de café brasileiro para aquele país.
Além dessas questões, no quadro conjuntural mais geral, é importante
considerar: a) a emergência de uma classe média que, aos poucos, ampliava-se como
fruto do desenvolvimento urbano, passando a reclamar direitos que entendiam não estar
sendo garantidos pela República; b) o tenentismo, movimento formado por militares
radicais oriundos, em sua maioria, das dissidências oligárquicas, o qual estivera
presente nos levantes da década de 1920 e que agora se articulava mais uma vez,
visando desencadear um novo movimento revolucionário; c) uma burguesia que, mesmo
incipiente, encontrava-se sequiosa por ocupar mais espaços nas rodas do poder; e d) o
movimento operário que, apesar de algumas conquistas, sentia-se oprimido pelos seus
patrões e pelo governo, que não encaminhava soluções, no sentido das suas
reivindicações. Todos esses segmentos, insatisfeitos com a República Velha,
contribuíram para a derrocada do status quo. A Revolução de 30 foi, portanto,
impulsionada pelos setores das classes dominantes que não estavam ligados à
exportação do café, tendo o apoio das camadas médias urbanas, de intelectuais,
profissionais liberais e demais setores descontentes.
A Revolução de 1930 colocou na ordem do dia a necessidade de se pôr em
prática uma nova política social no país. A criação do Ministério do Trabalho, Indústria
e Comércio, e o de Educação e Saúde, logo depois da vitória do movimento
revolucionário, indicou a disposição do Governo Provisório de alterar os rumos das
políticas sociais até então adotadas pelos governos da República Velha. Com o novo
arcabouço jurídico-legal e administrativo, o governo pretendeu atacar praticamente toda
117
a agenda que estava implícita nas reivindicações dos diversos setores presentes na
Revolução de 30.
Como controlava os Estados, o governo tinha tranqüilidade e apoio para agir
e fazer as mudanças pretendidas. Passava a ter um ministério forte, que concentrava as
questões relativas ao confronto capital x trabalho e comércio interno e externo, que
acumulava, talvez, a maior fonte de crise política, posto que representava um nervo
exposto diante das oligarquias rurais e da burguesia industrial urbana, assim como
diante do sindicalismo, com evidentes rebatimentos nas relações internas e externas do
país e na ordem vigente. O governo partia do pressuposto de que apenas com a
intervenção direta do poder público seria possível amortecer os conflitos entre capital e
trabalho, que já se faziam presentes no mundo da produção que se modernizava
104
.
Para Santos (1998), o conceito-chave para compreender a política
econômico-social pós-30 é o conceito de cidadania regulada. Em relação à cidadania
regulada, o autor entende que as raízes do conceito de cidadania encontram-se não em
um código de valores políticos, mas, em um sistema de estratificação da sociedade.
Assim, a partir da década de 1930, a cidadania regulada estará na base de tudo. Sem ela,
o sistema de controle sindical e de distribuição de benefícios previdenciários e de
assistência médica, de caráter compensatório, perde em eficácia. O Estado passava a
regular tudo, ou quase tudo, sempre que o conflito ameaçasse ultrapassar os limites que
a elite considerasse apropriados. Nessa idéia, as lutas por saúde, as de caráter
corporativo, estarão atreladas a essa engenharia, em que a burocracia estatal e a
burocracia sindical desempenham papel importante.
Por fim, ao dar status de ministério a duas questões cruciais da agenda
política: a saúde e a educação, que tantas preocupações geraram para os governos
anteriores da chamada Velha República, o governo, além de dar uma resposta direta aos
setores médios, populares e sindicais, conseguia igualmente acenar para o capital
interno e externo que propugnava por uma mão-de-obra mais sadia e qualificada.
104
Essa intervenção ganhou expressão concreta em março de 1931, quando, pelo Decreto n° 19.770, foi
estabelecida a Lei de Sindicalização. A nova lei tinha como objetivo geral fazer com que as organizações
sindicais de empresários e trabalhadores se voltassem para a sua função precípua de órgãos de
colaboração do Estado.
118
4.3 A intervenção do governo Vargas na economia, na saúde, na educação
Partindo-se para o plano das políticas sociais e econômicas, pode-se dizer
que o governo Vargas era de tendência nacionalista, posto que controlava ao máximo a
entrada de capital estrangeiro no país. No seu governo, aumentou sobremaneira a
intervenção estatal na economia, inicialmente como planejamento econômico, para
depois, durante o Estado Novo, passar à participação direta com o investimento na
montagem de grandes empresas estatais. Utilizava, para isso, o grande bolo de recursos
da previdência social, que teve um avanço sem precedentes no seu governo.
Sodré (1982) concebe que o governo Getúlio, malgrado os efeitos da
depressão de 1929, que se estenderam por muito tempo, obteve relativo sucesso no
controle da economia no que diz respeito ao crescimento do mercado de outros
produtos, aliás, uma das reivindicações dos demais setores que compunham a economia,
que não as atividades do cultivo do café. O algodão foi um dos produtos que se destacou
na carteira de exportações durante declínio relativo das exportações de café.
O que o autor destaca, no entanto, é o crescimento que foi proporcionado ao
mercado interno, que passou a crescer em função da produção de itens produzidos no
interior do Brasil e que antes eram importados. Esse crescimento permitiu que se
fizessem baixar em até 60% as importações desses produtos. Ele acrescenta, no caso
amparado nos estudos de Celso Furtado
105
, que o fator dinâmico principal dos anos que
seguem à crise passa ser o mercado interno. E completa: “... qualquer teoria ou
planejamento que esqueça a importância a que já atingira o mercado interno brasileiro
está condenada ao descrédito”
(SODRÉ, 1982, p. 324).
Getúlio Vargas colocou em prática uma política inspirada no New Deal,
106
proposta por Keynes para os Estados Unidos, pós-depressão. Uma política que visava
ao equilíbrio entre o custo de produção e o preço, entre a cidade e o campo, entre os
105
A referência do autor está na página 230 da obra: FURTADO, C. – Formação Econômica do Brasil.
Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1959.
106
Série de programas implementados nos Estados Unidos, entre 1933 e 1937, sob o governo do
Presidente Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia e assistir os prejudicados pela
depressão de 1929. Através dessa política, o Estado indenizou os agricultores, que reduziram as suas
áreas de cultivo para diminuir a produção, e concedeu créditos para pagamento de dívidas. Foram fixados
limites à produção industrial e tabelaram-se os preços dos produtos, de modo a se evitarem as crises de
superprodução e concorrências. Foi criada uma legislação financeira para controlar a atividade da Bolsa e
do setor bancário. Em relação aos trabalhadores, foi estabelecido o salário mínimo, reduzido o horário de
trabalho e foram introduzidas medidas de proteção: auxílios desemprego, doença, velhice e invalidez.
119
preços agrícolas e os preços industriais, reativação do mercado interno pelo controle dos
preços e da produção pela valorização dos salários e do poder aquisitivo das massas,
isto é, dos lavradores e operários, pela regulamentação do emprego com alta dos
salários e redução do dia de trabalho, entre outras medidas. Toda a legislação
trabalhista, regulamentando o trabalho, assim como a instituição do salário mínimo e o
incentivo aos diversos setores agrícolas e industriais da época, confirma a intenção
governamental desse presidente.
Em termos das políticas de saúde, logo no início do seu período de governo
provisório, por meio de decreto, foi uniformizada e centralizada a estrutura dos serviços
de saúde. O Estado getulista queria ter o controle das ações para depois levá-las para o
interior. Foram criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões, os IAP´s, que viriam
substituir as CAP´s. A visão do governo era de que estas eram poucas e ineficientes, o
que, do ângulo da sua cobertura e resultados, não deixava de ser verdade.
Os Institutos criados por Getúlio, diferentemente das CAP´s, passaram a ter
a participação do Estado na sua administração e a ser financiados pela contribuição dos
trabalhadores, das empresas e do governo. Tinham um caráter de seguro social: um
desconto era feito no salário do trabalhador, das empresas e do governo, e o fundo assim
formado era investido para gerar a massa de recursos necessários para pagar
aposentadorias e pensões. Eram organizadas por categoria profissional e havia
representação tripartite (trabalhadores, empresas e governo) nas suas decisões
(BRAGA; PAULA, 1981; MALLOY, 1986; OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).
Os recursos dos IAP´s foram, desde a sua criação, aplicados pelo governo
no financiamento da industrialização do país. Na compreensão do governo, era uma
soma de recursos muito alta para ficar parada, o que tinha razão de ser, desde que a sua
administração fosse transparente e socialmente justa. Porém, com os IAP´s, continuou
acontecendo mais ou menos a mesma coisa que com as CAP´s, ou seja, manteve-se a
existência de institutos mais fortes e pujantes em detrimento de outros mais fracos. Os
bancários, ferroviários e marítimos, por exemplo, eram mais combativos, ganhavam
mais e, portanto, contribuíam com mais recursos, dando poder ao seu instituto e,
conseqüentemente, oferecendo uma gama de serviços maior. Essas categorias estavam
ligadas à indústria, à exportação e ao comércio, atividades que, na época, eram
fundamentais para o desenvolvimento do país (BRAGA; PAULA, 1981; MALLOY,
1986; OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).
120
Assim, o sistema cobria apenas o universo de trabalhadores formalmente no
mercado de trabalho, naquele momento menor do que a metade da população
economicamente ativa. A estratégia de criação dos IAP´s foi, portanto, mais uma
sagacidade de Getúlio
107
, uma vez que unia os trabalhadores nas suas corporações e os
desunia em termos das diferenças que passavam a existir entre eles como classe. As
categorias, forçosamente, tinham salários, benefícios e assistência médica de qualidades
distintas. E a maioria não tinha absolutamente nada.
Mas os IAP´s não eram a única estratégia de atenção à saúde dos
trabalhadores. A formação do capitalismo brasileiro, a partir do início do século XX, e o
seu processo de desenvolvimento e consolidação, materializado nas ações e políticas do
governo Vargas, trouxeram para o universo da industrialização brasileira a discussão e a
prática de uma medicina que articulava trabalho com saúde-doença. Uma estratégia de
atenção à saúde que evoluíra na Europa desde o século XIX e que aqui conquistou
espaço, na esteira do desenvolvimento do capitalismo industrial.
O Governo getulista tinha um objetivo prioritário: o de desenvolver e
consolidar a industrialização brasileira. O próprio momento político e econômico
nacional e internacional colocava a necessidade de uma indústria de base para o país. Só
que esse ramo da indústria, para ser alavancado, exigia pesados financiamentos, que os
capitalistas industriais não estavam dispostos a arcar. A par disso, o Estado foi
gradativamente assumindo a responsabilidade pela produção de alguns insumos básicos,
de um lado, como parte do esforço de guerra, e de outro, movido por uma visão mais
estratégica acerca do futuro desenvolvimento do país (DREIFUSS, 1981).
Getúlio investe na indústria a partir de 1940. Nesse ano, cria a Companhia
Siderúrgica Nacional de Volta Redonda, produtora de ferro e aço. A maior parte do
financiamento da Usina sai dos recursos da previdência social (IAP´s). Na continuidade
dos primeiros anos da década de quarenta, foram sendo criadas as demais grandes
empresas estatais brasileiras
108
. A previdência, recursos dos trabalhadores ou destinado
107
Getúlio criou toda uma legislação trabalhista fundada na Consolidação das Leis do Trabalho e na
criação de um sistema previdenciário fundado nos IAP´s que formava um sistema de proteção ao
trabalhador. Esta legislação imposta por Getúlio fora toda inspirada na “Carta del Lavoro” italiana e
constituía uma estrutura corporativista próxima da existente no regime fascista, cujos traços perduraram
até a Constituição de 1988.
108
Em 1942, foi criada a Companhia Vale do Rio Doce, para a exploração das jazidas de ferro de Minas
Gerais. Em 1943, foi a vez da Companhia Nacional de Álcalis, para a produção de soda e barrilha, e da
Fábrica Nacional de Motores. Por fim, em 1945, foi constituída a Companhia Hidrelétrica do São
Francisco, com vistas ao abastecimento de energia elétrica para o Nordeste do país. Boa parte das
iniciativas governamentais mencionadas só teria sua completa realização em períodos bem posteriores.
Assim, a produção de petróleo só experimentaria um real crescimento após 1946, e a primeira refinaria
121
a eles, é quem financia a produção capitalista travestida de capitalismo de Estado. E a
assistência médica previdenciária, baseada nos IAP´s, segue o seu curso (BRAGA;
PAULA, 1981; MALLOY, 1986; OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).
4.4 O Serviço Especial de Saúde Pública
Os anos trinta foram de muitas e profundas mudanças em vários setores da
vida social, econômica e política do país. Importante fazer-se referência à política
educacional do Estado Novo getulista, onde, em que pese a quebra da normalidade
democrática e da participação livre dos diversos segmentos sociais, várias iniciativas
foram tomadas em função da ampliação do ensino elementar e da educação de adultos.
Tem-se um primeiro ciclo real de industrialização e urbanização, a trazer consigo o
crescimento do comércio e do setor de serviços que, aos poucos, exige uma
reformulação completa do sistema educativo com expansão do ensino elementar e
médio e do profissional.
Era necessário que o sistema educativo se preocupasse com a questão da
mão-de-obra adequada para os diversos tipos de postos de trabalho. Emerge o ensino
técnico com escolas organizadas pelos ramos da indústria (SENAI) e as academias do
comércio e mesmo os colégios adotando cursos ginasiais que introduziam disciplinas
como prática de comércio e prática de escritório (PAIVA, 1983).
Logo com o início do período, em 1937, foram instituídas as Conferências
Nacionais de Educação que, juntamente com as Conferências Nacionais de Saúde,
constituíam-se importantes momentos de diagnóstico, reflexão e planejamento dessas
duas políticas tão fundamentais para o desenvolvimento social. Nesse aspecto, tem-se
um governo com políticas sociais mais integradas, uma diferença em relação à
República Velha, quando as discussões e os avanços da Educação ficavam confinados
àquele setor, que não dialogava com o restante das políticas sociais.
Por outro lado, esforçando-se para valorizar a vida rural e manter o homem
no campo, o setor rural agrário exportador e os grandes fazendeiros passam a exigir e
somente entraria em operação em 1947-48. A Companhia Nacional de Álcalis teria de esperar o final dos
anos 50 para iniciar operação efetiva. Já a Fábrica Nacional de Motores não sobreviveu como projeto
empresarial. Entretanto, o sentido das transformações esboçadas - forte participação estatal no estímulo ao
crescimento industrial - iria marcar o desenvolvimento do país nas décadas seguintes.
122
organizar, junto com o governo Vargas, as escolas rurais. Era uma forma de manutenção
do poder agrário e suas oligarquias, que não aceitavam perder poder para o
industrialismo urbano e para o setor de serviços. Tratava-se, pelo lado do governo,
naquele momento, de manter o necessário equilíbrio entre esses dois mundos (o rural e
o urbano) que davam sustentação ao governo nacional.
É um período, portanto, de crescimento da Educação tanto nas grandes
cidades industriais quanto nas pequenas cidades quase rurais. Importante não esquecer o
quanto de cargos públicos para professores e o quanto de poder político era mobilizado
nas distribuições desses cargos, sem contar com a velha e antiga máxima estabelecida
com o final do império e o início da república: cada alfabetizado, um eleitor, cada
eleitor, um voto. Era o sentimento do quantitativismo dos entusiastas da educação em
ação, mesmo que, na esteira do ensino técnico, houvesse o momento e o crescimento do
otimismo pedagógico com as suas preocupações relativas a currículo, a eficiência
administrativa e certa neutralidade, muito conveniente naquele momento político
(PAIVA, 1983).
Mesmo não participando, formalmente, do primeiro período da segunda
guerra mundial, o país passa a trabalhar com a sua perspectiva. O esforço da guerra
exigia uma grande quantidade de borracha, e o país possuía uma das maiores reservas
mundiais dessa matéria-prima. O Brasil passa, então, a comercializar esse produto com
os EUA, que aqui financia a sua extração. As questões ligadas ao comércio de
exportação da borracha, a necessidade de abertura de novas frentes de trabalho nesse
ramo extrativista, e, ao mesmo tempo, a ameaça da eclosão de epidemias de malária, em
face da mobilização de milhares de trabalhadores em áreas de floresta, levam o governo
a criar, em 1942, o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Isso foi feito através de
um contrato de financiamento com a Fundação Rockfeller, norte-americana, que já
detinha uma tradição de trabalho, no país, na área de saúde.
O SESP foi criado para combater a malária e proteger os soldados da
borracha, mas logo passou a organizar grandes campanhas de vacinação, fazer
educação sanitária, pequenas obras de saneamento e assistência médica das populações
pobres e ribeirinhas que passaram a se estabelecer ao longo da bacia hidrográfica
amazônica. Esse Serviço Especial de Saúde Publica, assim como a Superintendência de
Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), criada anos depois, concentravam a
preocupação sócio-sanitária do governo central e assumiram a coordenação das ações de
saúde pública, mormente quando se criou o Ministério da Saúde. Essas duas instituições
123
teriam uma grande repercussão sobre a saúde das pessoas que estavam e,
principalmente, que entravam no caminho da borracha, rumo ao norte do país. Porém as
ações educativas e de prevenção de doenças eram carregadas da mesma aura autoritária
do modelo campanhista.
A ação do Estado no setor de saúde dividia-se em dois braços: um, ligado à
Saúde Pública, de caráter preventivo, conduzido por campanhas sanitárias e por uma
rede de unidades de saúde que desenvolvia atenção primária de saúde para determinadas
populações, tidas como de risco. Possuía um financiamento específico do governo. E
outro ligado à Assistência Médica Previdenciária, de caráter curativo, conduzido através
da ação dos IAP´s, que compunham o sistema de previdência social (BRAGA; PAULA,
1981).
4.5 A onda hospitalocentrista de inspiração flexneriana
O Estado Novo teve o seu fim com a deposição de Getúlio Vargas em
outubro de 1945. O regime comandado pelo presidente ditador já vinha se esgarçando
desde os primeiros anos da década, principalmente depois da entrada do país na
Segunda Guerra Mundial. Com o final da beligerância, o mundo voltava a respirar ares
democráticos e, nesse contexto, o anacronismo do regime do Estado Novo era flagrante.
Enfrentando fortes resistências de vários setores, o presidente vê-se compelido a realizar
eleições gerais.
O período entendido como da redemocratização do país, pós-Estado Novo,
durou quase duas décadas e se estendeu até 1964, quando então sobreveio o golpe de
Estado que jogou o país numa ditadura militar. Mas é a promulgação da Constituição de
1946 que demarca esse período relativamente curto da historiografia brasileira. O
retorno da democracia, o mandato presidencial de cinco anos, eleições diretas em todos
os níveis e a manutenção dos direitos trabalhistas conquistados ao longo da era Vargas
foram os traços principais e mais relevantes dessa Carta Magna promulgada sob o
governo Dutra.
O país conseguia, depois de um período de governo revolucionário que se
transformou num golpe de Estado e instalação de uma ditadura civil com apoio militar,
manter, não sem sobressaltos, períodos tensos e tentativas frustradas de golpes à ordem
124
estatal, eleger, de forma direta e democrática, quatro presidentes e garantir a posse de
um vice-presidente, numa circunstância de renúncia do titular. O país cresce, consolida-
se como país industrial, desenvolve-se, moderniza-se, realizando sua transição rural-
urbana. Contudo, mantêm uma produção e uma atividade agrário-exportadora
importante, fruto da mecanização do trabalho agrícola. Essa política de crescimento e
modernização jogou para as periferias urbanas centenas de milhares de trabalhadores
que, expulsos das suas terras pela monocultura e pela pecuária, não tiveram outra
alternativa senão a do êxodo para tentar sobreviver.
Com todas essas movimentações e transformações, o populismo foi a forma
encontrada pelos governantes desse período para tentarem conciliar diferentes interesses
de classe. E mesmo que a liderança de um bloco de poder oligárquico-industrial tenha
pontificado, quase todo o tempo, o populismo possibilitou, em várias situações agudas,
um espaço político no qual a classe trabalhadora foi capaz de colocar suas
reivindicações e fazer valerem direitos conquistados no período do Estado Novo. Nesse
particular, o desenvolvimento das organizações de trabalhadores foi tamanho que, em
alguns momentos, ameaçou quebrar a camisa de força ideológica e política imposta pelo
próprio populismo.
Caracterizou-se o governo Dutra, nos seus primeiros dois anos, por uma
política econômica liberal tipo laissez-faire
109
, com redução da intervenção do Estado,
de forma a facilitar o acúmulo de capital à custa de baixos salários e expansão das
empresas estrangeiras, uma política que, para as características brasileiras de país
exportador de matérias-primas e produtos agrícolas, e de considerável importação de
manufaturados, esgotaram as divisas acumuladas no período varguista, notadamente no
período correspondente à Segunda Guerra Mundial (DREIFUSS, 1981).
O fracasso inicial da economia levou a que medidas de controle cambial,
associadas ao controle das importações, com priorização da compra de máquinas e
equipamentos industriais, elevassem o desempenho desse ramo da economia. A
atividade produziu impacto na região Sudeste, a mais desenvolvida nessa área. O
109
A expressão refere-se a uma ideologia econômica surgida no século XVIII, através de Montesquieu.
Ele defendia a existência de mercado livre nas trocas comerciais internacionais, ao contrário do forte
protecionismo baseado em elevadas tarifas alfandegárias, típicas do período do mescantilismo. Segundo
esta teoria, que teve em Adam Smith um dos seus principais defensores – é dele a famosa teoria da mão
invisível do mercado – o comércio internacional isento de impostos alfandegários traria maiores
benefícios para as nações envolvidas do que a protecção da produção nacional. Autorizar a livre troca de
mercadorias entre países, por permitir uma maior especialização da produção e o aumento das economias
de escala, favoreceriam o melhor aproveitamento das vantagens comparativas de cada país e a economia
mundial.
125
governo investiu ainda num plano que previa o aperfeiçoamento da assistência estatal
nos setores de saúde, alimentação, transporte e energia.
Esse plano ficou conhecido pela sigla SALTE, numa alusão às letras iniciais
dos setores que queria atingir. Pode-se dizer que, no plano interno, o presidente
pretendeu acatar os objetivos de interesse da classe dominante. A burguesia nacional,
beneficiada pelo período getulista, fizera a sua acumulação primitiva de capital e
passara a querer participar mais de perto das decisões governamentais, obrigando o
governo a investir em questões que eram cruciais para o seu desenvolvimento e
proteção da sua mão-de-obra.
Abriram-se as portas da economia brasileira a inúmeras importações norte-
americanas de bens supérfluos e obsoletos, e a moeda foi desvalorizada, para tentar
evitar o crescimento excessivo das importações. A ala nacionalista do PCB fez cerrada
campanha contra o governo, obrigando-o a recuar, em algumas situações, no seu
entreguismo
110
. Por outro lado, as oligarquias industriais, a fim de garantir o acúmulo de
capitais, exigiram o congelamento do salário-mínimo, provocando seguidas greves.
Mais de 100 sindicatos sofreram intervenção governamental, com o intuito de encurralar
o movimento sindical e popular. Parte dessas intervenções era justificada ou imputada à
contaminação comunista naquelas instituições (DREIFUSS, 1981).
4.6 A saúde na redemocratização do país
Durante esse período em que se amplia a influência norte-americana no
país, o Brasil passa a copiar seus modelos. A educação e a formação técnica na área da
saúde podem ilustrar essa influência através da absorção do modelo flexneriano de
ensino médico e prática médica. Esse modelo prescrevia uma educação mecanicista e
biologicista, através da qual o organismo humano era concebido como uma máquina
biológica a ser decomposta em partes (órgãos e sistemas) para ser estudada e
110
Em termos da política externa, o general Dutra alinhou-se com os norte-americanos na Guerra Fria,
enquadrando-se na divisão mundial entre os blocos capitalista e socialista. Isso levou ao rompimento das
relações do país com a URSS, o que gerou como conseqüência a cassação do registro do PCB, sendo
cassados os mandatos dos representantes eleitos pela sigla. Os comunistas, com essa medida, voltaram a
agir novamente na ilegalidade.
126
medicalizada. Fazia parte dessa concepção uma visão de saúde-doença que não
reconhecia outras causas que não as estritamente biológicas.
A atenção à saúde, por sua vez, era vista como um modelo assistencial de
caráter individual voltado para a medicalização crescente de novas situações
compreendidas, agora, como doença. Nessa linha de pensamento e ação, a assistência
individual deixava de lado aspectos da saúde-doença que tinham um caráter coletivo. O
hospital era o local de atendimento, e o especialista era o profissional que atendia nesse
estabelecimento, preocupando-se única e exclusivamente com os problemas da esfera
clínica. Era o modelo representacionista cartesiano e positivista dominando, cada vez
mais, as ciências biológicas.
Vivia-se o pós-armistício e, com ele, uma intensa reconstrução das nações
européias destruídas pela guerra. Havia uma intensa geração de novos conhecimentos
derivados das pesquisas científicas que sustentaram a guerra e que agora, em tempos de
paz, poderiam ser reconvertidos para os mais diversos campos de atuação da sociedade.
A área da saúde foi, assim, a destinatária de grande parte desse esforço, que
impulsionava e expandia o setor, servindo ao aumento cada vez maior da participação e
acumulação de capital na área da saúde
111
.
Durante o período acima mencionado, ganha corpo um intenso debate sobre
os custos econômicos das doenças como obstáculo ao desenvolvimento dos países. A
expansão agrícola e a produtividade do trabalho seriam as áreas mais afetadas pelas
doenças. A partir dessa idéia, institui-se que a saúde é um bem de valor econômico e
que investir no capital humano seria fundamental para o desenvolvimento e o
progresso, especialmente dos países subdesenvolvidos.
As idéias desenvolvimentistas tinham o seu foco voltado para a
industrialização, a modernização e a racionalidade do cálculo econômico. As discussões
sobre as relações entre doença e subdesenvolvimento ganham força, mesmo que a saúde
não ocupe mais o mesmo lugar no discurso civilizador quanto ocupara nas três
primeiras décadas do século XX. Para Lima, Fonseca e Hochman (2005), a visão da
doença como um limitante do desenvolvimento social era uma expressão do que se
111
Os países centrais que faziam o núcleo da guerra precisavam investir em novos medicamentos, novas
técnicas de diagnóstico e tratamento. A guerra produzira feridos que precisavam ser recuperados
rapidamente para os seus exércitos. Depois, durante a própria guerra e, especialmente depois com o seu
final, restou uma grande quantidade de mutilados que precisava de alguma forma ser reabilitada tanto no
sentido da sua saúde física, como mental e social. Era a inauguração e expansão de uma parte da indústria
de artefatos e equipamentos médicos que passava a permitir procedimentos de substituição de partes do
corpo perdidas ou deterioradas, por órteses e próteses.
127
convencionou chamar otimismo sanitário vigente no cenário internacional do pós-
guerra.
Propugnava-se o poder da ciência e da medicina em combater e mesmo
erradicar, mediante novos recursos tecnológicos e terapêuticos
especialmente os inseticidas de ação residual, como o DDT, e os antibióticos
e antimaláricos – as doenças infecto-contagiosas em todo o mundo (LIMA;
FONSECA; HOCHMAN, 2005, p. 47).
Eles
citam a mensagem do Presidente Eurico Gaspar Dutra, enviada ao
Congresso Nacional em 1949, para exemplificar a importância econômica da saúde e o
seu significado nos projetos de desenvolvimento.
As condições sanitárias de um País circunscrevem-lhe rigidamente o
desenvolvimento econômico-social. No caso do Brasil – onde talvez se
processe, como já foi assinalado por inúmeros estudiosos, a maior
experiência de adaptação da civilização européia a um ambiente tropical – a
melhoria geral das condições sanitárias e o desenvolvimento econômico-
social são, verdadeiramente, termos co-extensivos do mesmo problema, isto
é, asseguração da possibilidade de progresso (LIMA; FONSECA;
HOCHMAN, 2005, p. 48).
Nessa época, parte dos profissionais de saúde brasileiros – os médicos, em
particular – passaram a fazer formação nos EUA e na Europa, voltando especializados.
Assim, surgem novas especialidades e, depois, novas profissões, que vão resultar na
divisão social do trabalho na área da saúde. Tudo isso representava a tecnificação
precoce e crescente do ato médico, assim como toda uma ênfase na medicina curativa e
na sua potencialidade na acumulação de capital.
Já do ponto de vista da relação médico-paciente, o ato médico continuava a
sua tradição disciplinadora, autoritária e antidialogal. Os médicos concentravam-se nos
centros maiores e mais desenvolvidos, e a grande massa da população que estava fora
do mercado formal de trabalho – isso representava mais de 50% da população
economicamente ativa – mantinha-se fora do escopo de qualquer assistência medica
qualificada. Ou seja, fora do circuito produtivo, poucas mudanças haviam ocorrido na
atenção à saúde dos mais necessitados, que se espalhavam pelo interior do país. A
medicina mantinha-se como uma prática liberal, à disposição daqueles que pudessem
consumi-la, ou então era organizada em instituições filantrópicas nem sempre de grande
expressão ou alcance.
Nos grandes centros, o hospital de médio ou grande porte era o lócus por
excelência dos médicos especialistas, concentrando o atendimento de uma região e
colocando em segundo plano a organização de uma rede de saúde baseada em postos,
consultórios e ambulatórios, que poderiam funcionar com bem mais baixo custo. O
128
hospital passa a ser um estabelecimento que concentra muitos equipamentos e diversas
especialidades médicas que exigem um consumo cada vez maior de medicamentos e
artefatos médicos. A estrutura e o funcionamento dos grandes hospitais atendem, assim,
às necessidades crescentes de uma florescente indústria farmacêutica e de equipamentos
médicos. É o chamado complexo médico-assistencial de natureza hospitalocêntrica, que
vai dominar a atenção à saúde durante quase todo o século XX.
A ideologia e a pedagogia que estavam implícitas na formulação flexneriana
eram adequadas para o momento mundial de guerra ideológica entre os mundos
capitalista e socialista ou mesmo para os ciclos de crise e dependência existentes nas
relações internas que envolviam o capitalismo central e o capitalismo periférico. O
modelo flexneriano servia bem aos interesses e mecanismos de controle e
disciplinamento social e da reprodução e manutenção da força de trabalho, tão
necessária numa sociedade em transição, de uma situação agrário-rural para uma outra
urbano-industrial
112
.
4.7 A saúde no segundo governo de Getúlio Vargas
Na sua volta ao poder, Vargas retoma as grandes obras do período do
Estado Novo. Segundo Dreifuss (1981), nessa segunda fase getulista, foi tentada uma
política nacionalista de desenvolvimento, que combinava empresas industriais estatais e
privadas. Pretendia o governo combinar crescimento econômico com democracia social,
em que interesses agrários, industriais e operários pudessem, de alguma forma,
conviver
113
. Isso significava um aparelho administrativo formulador de diretrizes
políticas livre da influência exclusiva das classes dominantes, capaz de apoiar a empresa
112
Mas, o modelo flexneriano por si só não dava conta das modificações que estavam se operando na
prática médica, enquanto prática assistencial. É preciso entender o movimento da saúde pública que criou
o modelo dos Serviços Especiais de Saúde Pública (SESP). Vale a pena ainda fazer-se menção ao
desenvolvimento da sociologia médica que analisava a conexão entre prática médica e trabalho, no
contexto de desenvolvimento do capitalismo e ao modelo da Saúde Ocupacional, questões já
apresentadas.
113
Nesse segundo governo, de certa forma repetindo uma linha já assumida no primeiro governo, Getúlio
Vargas concebe a Educação como um dos motores do desenvolvimento urbano e rural. Neste sentido, já a
partir de 1951 são criados “Centros de Iniciação Profissional na zona urbana e no ano seguinte (1952) a
Campanha Nacional e Educação Rural (CNER) que desenvolveu uma metodologia toda voltada para a
educação comunitária.
129
nacional e limitar os interesses multinacionais. Na esteira das grandes obras, vale a pena
ressaltar a controvertida criação da Petrobrás, depois de uma grande campanha
nacionalista que envolveu praticamente todos os setores sociais, ficando conhecida pelo
slogan o petróleo é nosso.
Esse novo governo de Getúlio Vargas pode ser caracterizado por três
períodos mais ou menos distintos: a primeira fase, que vai até o meio de 1953, quando o
governo admite uma forte presença industrial, leva a cabo uma política de controle da
inflação que fracassa e procura, de forma entusiasmada, a ajuda financeira do capital
americano, que não se concretiza.
A segunda fase começou na segunda metade desse mesmo ano, após uma
reforma ministerial. Vargas tenta atrair com relativo sucesso os diversos setores da
classe trabalhadora, numa polarização político-ideológica em torno de assuntos
nacionalistas e trabalhistas. Nesse movimento, passa a contar com a antipatia do
exército, do empresariado e de setores conservadores, especialmente os ligados à UDN.
A terceira fase diz respeito à forte pressão militar, empresarial e americana,
sofrida pelo governo, as quais tiveram como palco a imprensa, principalmente a do Rio
de Janeiro, centro nervoso e capital da República, e o Congresso Nacional, locus onde
passaram a se expressar com veemência todas as forças de oposição comandadas por
Carlos Lacerda, liderança da UDN.
Nessas condições, o país passa por uma grande efervescência política, com a
oposição exigindo a renúncia de Getúlio, fundamentada em seguidos fatos políticos,
criados com o intuito de incriminar o presidente e o seu governo em casos de desvios de
verbas e atos de corrupção. A pressão é enorme, a ponto de um golpe ser engendrado, e
o presidente, sob forte pressão e emoção, suicidar-se, dando uma resposta ambígua para
a continuidade política brasileira. O país passa por um período relativamente longo de
dezesseis meses de instabilidade política, só vencida com a posse de Juscelino
Kubitschek, em 1956, a partir de eleições realizadas em 1955.
Convém destacar, nesse segundo mandato de Getúlio, a criação do
Ministério da Saúde, visto que a estrutura de saúde se complexificava com a criação de
várias estruturas de campanhas de saúde pública, uma para cada endemia importante.
Essas estruturas geravam um aumento exorbitante dos custos que sustentavam o
sanitarismo campanhista e a necessidade de se reverem os conhecimentos e métodos de
atuação nessa área de atenção. É nessa conjuntura que as ações do SESP passaram a ser
130
ampliadas, perdendo aquela característica original de apenas fazer o caminho da
borracha, próprio do período da segunda guerra mundial.
As ações de saúde pública do SESP se expandem bastante em relação aos
seus métodos de trabalho, passando esse órgão a adotar práticas mais voltadas para o
estudo dos modos de transmissão das doenças, ações de vigilância epidemiológica e
incorporação do social como um dos fatores condicionantes das doenças. Essa mudança
de eixo, mais compatível com a ideologia desenvolvimentista que começava a ser
introduzida na América Latina, seria responsável futuramente por uma troca não apenas
semântica na designação do sanitarismo praticado. Ao invés de campanhista, a
designação de sanitarismo desenvolvimentista passou a ser mais adequada.
Para Lima, Fonseca e Hochman (2005), isso não quer dizer que houvesse
consenso nos debates internos desse novo sanitarismo. Ao contrário, havia diferentes
abordagens na análise das relações entre saúde e bem-estar econômico no sanitarismo
desenvolvimentista. A primeira tensão era relativa à causa do subdesenvolvimento.
Havia um grupo hegemônico que acreditava no controle ou na erradicação das doenças
infecciosas como pré-requisito para o desenvolvimento e outro defensor da idéia de que,
embora o controle das doenças fosse necessário, era o desenvolvimento econômico-
social que criaria as condições definitivas para a melhoria da saúde. Esse grupo
apresentava uma premissa bastante sedutora, do ponto de vista da racionalidade
econômica, ao sustentar que a doença e a miséria não seriam controladas por meio de
maiores gastos em serviços de saúde, mas sim, com um maior desenvolvimento
econômico que levasse à melhoria das suas condições de vida.
Havia outra questão que dividia esses dois grupos: a forma de organização
dos processos de controle das doenças. A corrente hegemônica era da concepção de que
as campanhas deveriam ser dirigidas verticalmente contra cada doença específica e
imposta de fora a moda da tradição. Já a corrente contra-hegemônica concebia que as
campanhas contra as doenças deveriam ser organizadas horizontalmente, em relação ao
conjunto das doenças, e envolver a promoção de condições básicas de infra-estrutura
sanitária.
Esses autores defendem que a dinâmica da sociedade brasileira,
principalmente na década de 50, possibilitou o desenvolvimento dessas visões distintas
131
da relação saúde-desenvolvimento e a formulação de novas propostas de mudanças nas
políticas de saúde, feitas pelos sanitaristas desenvolvimentistas
114
.
Em discursos de 1955, por exemplo, o ministro da saúde do governo Café
Filho, Aramys Athayde, já defendia abertamente a idéia da saúde como
questão de superestrutura, isto é, não como causa do desenvolvimento
econômico e social, mas uma conseqüência dele (LIMA; FONSECA;
HOCHMAN, 2005, p. 54).
Pelo lado da assistência médico-previdenciária, os IAP´s passaram a ter
cada vez mais contribuintes, frutos do reforço de novos institutos criados por conta da
expansão econômica e da organização dos trabalhadores em busca de proteção e
assistência médica. Continuava e se aprofundava, entretanto, a diversidade de poder
econômico e político dos IAP´s, sendo que a maioria deles não prestava serviços de
qualidade para os seus contribuintes, enquanto uma minoria, mais organizada
politicamente e mais poderosa economicamente, oferecia serviços melhores, chegando
ao ponto de construírem os seus próprios hospitais, seguindo o receituário flexneriano.
Essa situação, como já comentado na análise do primeiro período getulista, era um fator
de dissensão entre os próprios trabalhadores, que assumiam um viés cada vez mais
corporativo. Porém, mesmo com tudo isso, as ações de saúde pública continuavam
predominando sobre a assistência médica individual.
O governo, que cada vez mais aumentava o seu poder na administração dos
IAP´s, começava a acenar para a possibilidade de unificação desses num único Instituto,
como forma de vencer as insatisfações dos trabalhadores que, por sua vez, temiam,
principalmente aqueles mais organizados e com melhores serviços, que as ações do
novo órgão de assistência médica previdenciária fossem niveladas por baixo. Muitas
empresas não estavam satisfeitas com a assistência dos IAP´s. Essa insatisfação fez
surgir mais uma idéia que facilitava a intervenção capitalista no setor: a da criação de
empresas especializadas na prestação de serviços privados para trabalhadores e
empresas. Eram as empresas de Medicina de Grupo chegando com o embrião da
assistência e previdência privadas.
114
Há vários exemplos da coexistência das duas correntes no seio do movimento sanitário e até mesmo
dentro de uma mesma instituição. Um deles foi protagonizado por dois médicos do SESP, Marcolino
Candau e Ernani Braga, que durante do VII Congresso Brasileiro de Higiene de 1948, defenderam a
posição de não separação entre ações preventivas e curativas nas ações de saúde. Outras críticas podem
ser exemplificadas, principalmente as referentes à centralização das ações de saúde e a defesa da
ampliação dos municípios e a necessidade de melhor aparelhar os serviços sanitários, especialmente nas
áreas rurais.
132
4.8 A política e a saúde: do pós-Getúlio à ditadura militar
Segundo D´Araújo (2002), ao fim do segundo governo de Getúlio Vargas, o
país havia experimentado um conjunto de mudanças estruturais, que ocorreram com
maior velocidade a partir dos anos trinta. Essas mudanças diziam respeito às bases do
desenvolvimento, ao modelo econômico adotado, à ênfase na industrialização orientada
pelo Estado, à liberalização política e ao controle social e sindical. Nos anos 30 e 40, o
país fez a passagem do mundo rural para o mundo urbano industrial, trazendo profundas
repercussões em vários aspectos da vida do país. Uma das mais importantes, do ponto
de vista político, foi a emergência do populismo como recurso de poder, tanto para
grupos ou tendências conservadoras e autoritárias, quanto para tendências
revolucionárias ou democráticas, e a incorporação ao processo político de toda a
população alfabetizada maior de 18 anos. A urbanização cresceu de forma acelerada,
facilitando a expansão desordenada das cidades. O Brasil vivia o seu chamado processo
de modernização política e econômica e sofria todos os impactos, positivos e negativos,
daí decorrentes.
O governo Kubitschek
115
, o primeiro eleito pelo voto após o suicídio de
Getúlio Vargas, caracterizou-se pela consolidação da industrialização brasileira, pelos
avanços no desenvolvimento nacional e por uma boa dose de negociação política para
manter o poder. O seu programa de governo tinha como estratégia o desenvolvimento e
o progresso nacionais, retratados num lema triunfalista que prometia cinqüenta anos de
progresso em cinco anos de governo. O Plano de Metas
116
lançado abrangia os setores
115
O governo de Juscelino Kubitschek foi beneficiado por um aparato tecno-burocrático estatal, que veio
sendo montado desde os governos anteriores, principalmente nos dois governos Vargas; isso foi
fundamental para o desenvolvimento do seu governo. Assim, valeu-se do planejamento que já vinha
sendo implantado na administração governamental desde os anos 30 e da estrutura técnica que o país
formou e acumulou nesse período. Juntando-se o aparato herdado à grande capacidade de diálogo e
negociação política do presidente, e mais uma equipe coesa, o governo soube construir a devida
legitimidade política para as suas ações ao prestigiar as instituições representativas da sociedade brasileira
de sua época, inclusive as instituições militares, que, desde o início da República, de uma forma ou de
outra, estiveram na cena política. Especificamente em relação aos militares, Germano (1993) destaca na
sua obra: Estado militar e educação no Brasil (1964-1985) que são raros os momentos da história
republicana brasileira em que estes não estiveram no centro das decisões políticas, quer seja como
protagonistas, casos da própria proclamação da República, primeiros governos republicanos e durante o
golpe e ditadura militar ou como coadjuvante, ora dando sustentação a movimentos políticos e governos
civis, ora conspirando e agindo em levantes e processos de natureza revolucionária ou golpista contra
esses mesmo governos.
116
Na visão de Dreifuss (1981), o resultado das diretrizes políticas do Plano de Metas de Juscelino foi
extraordinário, pois indústrias que em 1949 importavam mais da metade de seu estoque tornaram-se
centros-chave de crescimento para os setores industriais. Considerando-se o crescimento entre 1949 e
133
de energia, transporte, alimentação, indústria de base e educação. Era composto por uma
lista de diretrizes – trinta ao todo, se excetuada a construção da nova capital federal,
eleita como diretriz síntese – que detalhava os setores já citados e se inspirava, entre
outros, nos estudos sócio-econômicos da CEPAL – Comissão Econômica para a
América Latina
117
.
Ainda no plano da economia, criou-se a SUDENE
118
– Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste - para combater o flagelo das secas nordestinas numa
área denominada de polígono das secas, que abrangia, além dos nove estados
nordestinos, parte do território do estado de Minas Gerais (norte de Minas) e o
Território de Fernando de Noronha. Por outro lado, ao eleger como meta síntese do seu
Plano de Metas a construção de Brasília, deu o passo decisivo para a integração da
região central do Brasil ao contexto nacional.
Na perspectiva da Educação, uma das prioridades do Plano de Metas, é
criado o SIRENA (Serviço Rádio-Educativo Nacional), em 1957. Assinalam-se os
congressos e encontros sobre educação, que jogaram um papel importante na discussão
e avaliação das políticas educacionais postas em prática, especialmente com os ventos
desenvolvimentistas que caracterizaram o governo Kubitscheck, em que eram travadas
discussões para o delineamento de lutas por uma política educacional que resgatasse a
dívida histórica com a cultura e a educação do povo, mas que desse conta da conjuntura
vivida e das repercussões das políticas de desenvolvimento sobre a população. Um
exemplo disso foi o IIº Congresso Nacional de Educação de Adultos, em 1958, que
buscou novas diretrizes para a educação de adultos. Lá foram discutidas questões como
1962, e lembrando-se de que a segunda metade desse período corresponde ao governo de Juscelino, o
setor das indústrias químicas respondeu por 14,8% do crescimento total do período, o setor de transportes,
por 14,4%, o de metais, por 11,3%, a industrialização de alimentos, por 10,8% e a indústria têxtil, por
com 8,9%. A quota de crescimento total da produção das multinacionais foi estimada em 35,5%,
considerando-se a expansão da indústria manufatureira e 42% do crescimento das indústrias de
substituição de importações.
117
A CEPAL foi criada pela Organização das Nações Unidas em 1948 para, entre outros objetivos,
analisar as diversas políticas econômicas implantadas pelos governos latino-americanos, com o intuito de
obter financiamentos públicos externos junto a estabelecimentos bancários dos Estados Unidos. Mas, aos
poucos, tornou-se o grande pólo de uma importante reflexão sobre as estruturas econômicas e sociais do
continente. A CEPAL foi uma grande “usina” de estudos e pesquisas impulsionadoras de políticas
públicas para o conjunto dos países da América Latina.
118
Além dos objetivos diretamente relacionados com o combate à seca e o desenvolvimento do Nordeste,
a Sudene também acabou tendo como propósito o esvaziamento das Ligas Camponesas, um movimento
não governamental que tinha como objetivos a luta pela posse da terra e a reforma agrária, numa resposta
a situação de opressão vivida pelos agricultores nordestinos que trabalhavam na agricultura de
subsistência e que vinham sendo expulsos da terra que, aos poucos, dava lugar às monoculturas,
principalmente da cana-de-açúcar, e a pecuária para criação de gado de leite e de corte.
134
a importância do ler e do escrever, mas, também, a formação técnica profissional bem
como a compreensão dos valores espirituais, políticos e morais da cultura brasileira.
Fez-se toda uma discussão sobre a necessidade de se superar um grande
preconceito que o país desenvolvia contra os analfabetos. É nessa época em que começa
o movimento em favor do voto do analfabeto e movimentos voltados para a cultura e o
saber popular e a valorização das expressões artísticas do povo. Ganha relevo o sistema
de educação concebido por Paulo Freire, desenvolvido a partir do conceito
antropológico de cultura, cuja difusão será de fundamental importância para formar uma
nova imagem do analfabeto e da sua contribuição como homem culto, produtivo e
responsável por grande parte da riqueza do país.
A valorização das formas de expressão cultural do homem do povo e o
estímulo ao desenvolvimento de sua capacidade de criação funcionava no
MCP, como a própria condição de diálogo entre a intelectualidade e o povo;
partia-se da arte para chegar à análise e à crítica da realidade social [...]
tratava-se de integrar o educando à vida cultural e política do país e de
apresentar a ele uma perspectiva de melhoria de vida, organizando programas
de formação profissional. [...] Os meios informais de educação eram, por isso
mesmo, essenciais ao trabalho do movimento. (PAIVA, 1983, p. 237-238)
Entre as iniciativas de grande peso do sistema Paulo Freire, pode-se falar do
potencial alfabetizador representado pela campanha “De pé no chão também se aprende
a ler”, grande oficina que lançou e consolidou o método Paulo Freire. Ainda na
perspectiva da cultura, é importante fazer menção ao trabalho não apenas de Paulo
Freire e dos seus círculos de cultura, que integrava e conscientizava o pobre e as
camadas populares da população, mas, e sobretudo, a um grande trabalho dos estudantes
secundaristas e universitários em torno da União Nacional dos Estudantes (UNE),
através dos Centros Populares de Cultura (os famosos CPC´s da UNE), interiorizando a
discussão e as expressões da cultura popular, através do teatro, da dança, do cinema, da
literatura, do rádio e da televisão. Esses dois movimentos tiveram o seu auge no período
conturbado do governo Jango (62-64), que caracterizou o pré e pós-imediato do Golpe
Militar, no Brasil. Os CPC´s, assim como o Movimento de Cultura Popular (MCP),
formaram um contingente muito grande de pessoas e contribuíram sobremaneira para
evolução da consciência política dos brasileiros com as suas movimentações e pela
participação ativa em todos os eventos que discutiam e avaliavam a educação e a cultura
do povo brasileiro.
O governo Kubitschek, segundo Dreifuss (1981), soube capitalizar os
recursos que o país possuía para, dentro de uma visão estadocêntrica de
135
desenvolvimento, predominante na época, fazer progredirem praticamente todas as
regiões do país. Mas, pelo seu pioneirismo e arrojo e, principalmente, pelo elevado
número de frentes e contingentes populacionais que mobilizou, abriu espaço para um
contraditório processo de improvisação no nível da programação que o fez descuidar de
uma pauta estratégica que elevasse o Brasil a um patamar de desenvolvimento humano
compatível com o dinamismo e a efetividade da máquina estatal, do parque industrial e
da expansão de serviços que pretendeu empreender. O país, sob Juscelino, acumulou
avanços no seu desenvolvimento industrial e econômico inequívocos, fez, inclusive,
crescer o emprego, mas não atentou o suficiente para a injustiça social plasmada por
uma política, em cujas bases fundamentais ampliou a desigualdade ao não prever uma
política que introduzisse metas e mecanismos seguros de redistribuição da riqueza
119
.
O final do governo Kubitschek, segundo o mesmo autor, deixou claro o
esgotamento do modelo desenvolvimentista empregado. Colocava-se em prática uma
política de adiamento dos problemas, ou seja, deixava-se taticamente para a
administração seguinte os problemas que se acumulavam sem ser resolvidos. Dreifuss
(1981) confirma essa assertiva nas seguintes palavras:
O adiamento estratégico consistia em ter conseguido uma trégua com os
setores rurais reacionários enquanto permitia um crescente desequilíbrio entre
os sistemas urbano-industrial e rural-agrícola, aumentando a desigualdade no
resto do país. O adiamento estratégico permitia também que as instituições
políticas continuassem a funcionar, principalmente através da política de
clientela, obscurecendo o próprio sentido dos partidos políticos e deixando-os
inoperantes e incapazes de obter uma coerência em seus programas
(DREIFUSS, 1981, p. 37)
O governo seguinte, o de Jânio Quadros, herdara um país em acelerado
processo de concentração de renda e de alta da inflação, crescentes demandas
nacionalistas e reformistas pressionando o executivo, e um congresso dividido, em
parte, representando interesses regionais e locais, em contraposição a crescentes
interesses do capital multinacional instalados no parlamento, que pretendiam o controle
119
Há na obra deste autor, a reprodução de um depoimento de Roberto Campos onde ele expõe, ainda em
1955, o que seria a encruzilhada em que envolveria a base lógica do período de Juscelino Kubitschek:
“optar pelo desenvolvimento implica a aceitação da idéia de que é mais importante maximizar o índice de
desenvolvimento econômico do que corrigir desigualdades sociais. Se o ritmo de desenvolvimento for
rápido, a desigualdade pode ser tolerada e controlada com o tempo. Se o ritmo de desenvolvimento cair
em decorrência de incentivos inadequados, praticar a justiça distributiva transforma-se em participação na
pobreza. Obviamente isso não quer dizer que se deva deixar sem controle os instintos predatórios que
ocasionalmente se acham presentes em certos setores capitalistas. Isso significa meramente, dentro do
nosso estágio de evolução cultural, que a preservação de incentivos para o crescimento da produção deve
ter prioridade sobre medidas que visem a sua redistribuição” (SKIDMORE, 1967, apud DREIFUSS,
1981, p. 46).
136
das ações estatais. Nessa constelação de problemas políticos e econômicos, para tentar
um equilíbrio que lhe permitisse governar, o presidente assumiu, cedendo aos interesses
internacionais e, numa manobra de tipo bonapartista civil
120
, adotou uma política
econômica de austeridade ditada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que
restringia o crédito e congelava os salários (DREIFUSS, 1981; JAGUARIBE, 1969).
Assim, obteve novos empréstimos internacionais e passou a tomar uma série de medidas
no plano interno e externo, todas controversas, que mais serviram de chacotas do que
tiveram efeito prático. Além do mais, a inflação não foi vencida. O conjunto de todas as
medidas tomadas desagradou e trouxe insatisfação a todos os setores da política
nacional, levando o presidente à renúncia, movido por “forças terríveis”, como escreve
em sua carta renúncia. Essa renúncia causou pronta reação de setores reacionários,
especialmente das organizações militares, que não desejavam a posse do seu vice, João
Goulart, tido como um político esquerdista
121
.
O governo de João Goulart foi marcado pelo confronto entre diferentes
políticas econômicas, conflitos sociais e greves urbanas e rurais. Em função da primeira
fase parlamentarista, é normalmente dividido em dois períodos: o parlamentarista, que
vai da posse em 1961 até janeiro de 1963, e o presidencialista, que vai de janeiro de
1963 ao Golpe de 1964. O período parlamentarista foi marcado pela luta do presidente
para derrubar o parlamentarismo
122
, visto que o regime tinha sido adotado de maneira
completamente casuística para evitar que tomasse posse com plenos poderes de
presidente.
Analisando-se do ponto de vista da economia e do planejamento, João
Goulart realizou um governo pleno de contradições e que refletiu as dificuldades de
composição política que enfrentava. Propôs um Plano Trienal de Desenvolvimento
120
Uma análise do bonapartismo janista pode ser vista em JAGUARIBE, H. – Desenvolvimento
econômico e desenvolvimento político: uma abordagem teórica e um estudo do caso brasileiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1969;
121
A crise só foi contornada graças às movimentações de setores sociais e políticos que defenderam com
rigor a democracia. E às negociações no congresso nacional que, via emenda constitucional, mudaram o
regime de governo de presidencialista para parlamentarista, o que pelo menos preservava o jogo
democrático. Considerando-se as movimentações sociais e políticas, Leonel Brisola, então governador do
Rio Grande do Sul, teve um papel de destaque no episódio quando atuou nos meios de comunicação
liderando o que ficou conhecido como a cadeia da legalidade, uma rede de emissoras de radio que
conclamava a sociedade a se manifestar em favor da manutenção da ordem jurídica que significava a
normalidade democrática e a assunção do vice-presidente João Goulart ao poder, em função da renúncia
de Jânio Quadros.
122
Jango era visto pelos militares como um esquerdista perigoso. O veto militar funcionou e o
parlamentarismo foi adotado. Porém, em seu primeiro discurso perante o Congresso, afirmou que iria
trabalhar para o retorno do presidencialismo. Conseguiu o seu intento através de um plebiscito que
restaurou o presidencialismo com aproximadamente 80% de votos que lhe deram os plenos poderes de
presidente, a partir de 1963.
137
Econômico e Social, elaborado pelo ministro do planejamento, Celso Furtado, que
explicitava o projeto de Goulart no poder. O Plano defendia a realização das chamadas
reformas de base. Isso incluía as reformas agrária, fiscal, educacional, bancária e
eleitoral, mas patinou praticamente durante todo o período em que Goulart permaneceu
no poder e não chegou a se efetivar, mesmo que essas reformas fossem necessárias ao
desenvolvimento do capitalismo nacional e progressista, que pretendeu empreender no
seu governo.
O anúncio dessas reformas, depois de restituído o presidencialismo,
aumentou a oposição ao governo e acentuou a polarização da sociedade brasileira. O
governo perdeu suas bases na burguesia. Diante desse fato, procurou estreitar alianças
com o movimento sindical e setores nacional-reformistas e, paralelamente, tentou
implementar uma política de estabilização baseada na contenção salarial. O Plano
Trienal, que tinha por objetivo manter as taxas de crescimento da economia e reduzir a
inflação - condições exigidas pelo FMI e que seriam indispensáveis para a obtenção de
novos empréstimos para a renegociação da dívida externa e para a elevação do nível de
investimento - fez água, dada a instabilidade das alianças conseguidas e das concessões
que o presidente terminou fazendo, colocando em conflito os seus próprios ministros,
ou seja, o seu próprio governo.
Perdendo o apoio da burguesia nacionalista e reformista e tentando evitar o
isolamento político, reforçou alianças com correntes à esquerda, lideradas por Leonel
Brizola, então deputado federal, e Miguel Arraes, governador de Pernambuco, que
também desejavam as reformas. Buscou os estudantes, através da União Nacional dos
Estudantes – UNE – que, naquele momento histórico, participavam ativamente da
política nacional e tinham uma boa capacidade de mobilização de setores populares e
médios do país, e o Partido Comunista Brasileiro que, embora na ilegalidade, mantinha
forte atuação nos movimentos popular e sindical. Mas, mesmo com todos esses apoios
e, talvez, devido a eles, teve que abandonar o seu Plano Trienal em meados de 1963,
ainda que continuasse a implementar medidas de caráter nacionalista, tais como: a
limitação da remessa de capital para o exterior, a nacionalização de empresas de
comunicação e a revisão das concessões para exploração de minérios
123
.
123
As alianças à esquerda e as medidas tomadas pelo governo, provocaram retaliações estrangeiras quase
que imediatas. A partir delas, o governo e empresas privadas norte-americanas cortaram o crédito para o
Brasil e interromperam a negociação da dívida externa que estava em andamento, fazendo naufragar os
planos do governo, que dependiam em grande parte desses financiamentos.
138
Considerando-se a questão da Educação, é importante fazer menção à
experiência do MEB
124
(Movimento de Educação de Base), proposta pela CNBB e
executada em convênio com o governo federal já a partir de 1961, com a eleição de
Jânio Quadros. O MEB teria a função de atuar usando sistemas radiofônicos
endereçados principalmente à população rural. Foi nesse período em que se deu a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), depois de 13 anos de
discussões, e a organização do Plano Nacional de Educação.
É importante registrar que, após o seu primeiro ano de funcionamento, o
MEB passou a ter uma forte influência da esquerda católica, principalmente
representada pela Juventude Universitária Católica (JUC). Por esse motivo, perdeu um
pouco do seu modelo inicial mais técnico para se tornar uma estratégia político-
ideológica mais ampla. Esse se assume, portanto, como movimento de cultura popular e
adota uma metodologia que transcende a mera organização de escolas radiofônicas.
Mas a educação no governo João Goulart não pode ser discutida sem se
levar em consideração aquele que, talvez, seja a síntese de uma pedagogia/filosofia que
traz a possibilidade de libertação do homem do ser objeto da educação para transformá-
lo no ser sujeito da sua própria educação, através da tomada de consciência de que,
como homem, é criador e ao mesmo tempo criatura de/do conhecimento e, como tal,
assimilador/disseminador desse mesmo conhecimento: o educador Paulo Freire. A sua
pedagogia centrou-se especialmente na alfabetização e educação de adultos e percorreu
o Brasil e toda a América Latina para, depois, ganhar o mundo. A máxima da sua
filosofia educativa era de que todo ato educativo é, antes de tudo, um ato político e foi
justamente essa a idéia que pretendeu universalizar.
Apesar de muito se falar de um método Paulo Freire e de se alardearem os
itens que compõem esse método, o próprio educador não reconhece ter criado um
método de ensino ou de alfabetização. Reconhece que sistematizou uma filosofia da
educação que, absorvendo conteúdos de várias áreas de conhecimento, como a
comunicação, a psicologia, a antropologia e a didática, caracteriza-se por partir do
universo do educando, suas experiências e conhecimentos adquiridos na trajetória de
vida.
124
O MEB torna-se importante, particularmente para o Nordeste, para onde foi direcionado, e
especialmente para a Paraíba que respondeu de forma muito afirmativa com o SIREPA (Serviço de
Rádio-difusão da Paraíba), uma iniciativa do governo do estado inspirada pelo Sistema SIRENA. Este
sistema funcionava com professores, supervisores, locutores e pessoal de apoio e tinha a cooperação das
rádios ligadas às dioceses. Havia ainda monitores nas comunidades que acompanhavam as atividades
presenciais do programa. Todo o pessoal recebia treinamento para o desempenho de suas funções.
139
Por isso, sua metodologia dispensa as tradicionais cartilhas ou livros
didáticos para se transformar num exercício dialógico em que o material didático é co-
produzido na relação educador/educando, registrando o conhecimento por ambos
mobilizado. O ambiente do início da década de 1960 foi propício ao seu
desenvolvimento, e o governo Goulart, um absorvedor dessa metodologia. O golpe de
1964 levou Paulo Freire ao exílio e à proibição da reprodução da sua metodologia no
país, apesar de seus livros continuarem a ser editados e vendidos livremente.
A situação de desorganização da economia, a decretação da nacionalização
das refinarias de petróleo, que se encontrava em mãos privadas e de grupos
multinacionais, e a desapropriação, para efeito de reforma agrária, de propriedades às
margens de ferrovias, rodovias e zonas de irrigação de açudes públicos, num comício
que juntou em torno de 300 mil pessoas, no Rio de Janeiro, em apoio ao governo,
acendeu o estopim de uma crise definitiva. O país ficou dividido, e o enfrentamento
reduzido a questões ideológicas do tipo esquerda/direita ou comunistas/anticomunistas,
situação meticulosamente trabalhada pelos setores conservadores da Igreja Católica e
demais setores reacionários organizados que, a essa altura, satanizavam os setores
progressistas e nacionalistas e espalhavam o terror no meio da população, prevendo uma
suposta e iminente revolução comunista no país.
Essa movimentação produziu a Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, manifestação que reuniu cerca de 400 mil pessoas em São Paulo e que
forneceu o apoio político necessário para a derrubada do Presidente. Tanto que, no dia
31 de março de 1964, iniciou-se o verdadeiro movimento para o golpe que, no dia
seguinte, depois de se fortalecer com o apoio dos diversos comandos militares
regionais, perpetrou o ato de deposição de João Goulart e o mergulho do país na maior
ditadura militar que já se conheceu.
Estudiosos como Lima, Fonseca e Hochman (2005) afirmam que, apesar da
hegemonia de um dado modelo sanitarista, durante as décadas de 40 e 50, que evoluiu
em face do desenvolvimentismo, havia, no final dos anos 50, uma disputa de projetos
político-sanitários bem diversos. Essa disputa foi se acirrando à medida que avançou o
período democrático, com a radicalização das lutas por reformas sociais de base. Nesse
sentido, consideram a 3ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1963, um evento
definitivo da saúde na experiência democrática e apresentam um fragmento do discurso
de João Goulart na abertura da 3ªCNS, como revelador das mudanças que se iniciavam:
140
[...] a política que o Ministério da Saúde deseja implementar na orientação
das atividades médico-sanitárias do País se enquadra precisamente dentro da
filosofia de que a saúde da população brasileira será uma conseqüência do
processo de desenvolvimento econômico nacional, mas que para ajudar nesse
processo o Ministério da Saúde deve dar uma grande contribuição,
incorporando os municípios do País em uma rede básica de serviços médico-
sanitários (LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005, p. 54).
Labra (1988), caminhando na mesma direção, confirma a posição desses
autores e acrescenta que o Plano Trienal do Governo Goulart e o XV Congresso
Brasileiro de Higiene de 1962, em que sanitaristas desenvolvimentistas conquistaram o
comando da Sociedade Brasileira de Higiene, pautaram o evento e conseguiram colocar
em discussão questões polêmicas, como as responsabilidades dos entes federativos, a
avaliação crítica da realidade sanitária do País e uma posição favorável à
municipalização de ações.
Os parágrafos acima expressam as mudanças de concepção e de estratégia
política que se iniciavam no âmbito da saúde pública, orientada pela descentralização,
pela horizontalização das ações, pela integração das ações de saúde, pela ampliação dos
serviços e pela articulação com reformas sociais. De tal forma que, nos primeiros anos
da década de sessenta, conformaram-se pelo menos dois grandes campos no âmbito da
saúde pública: um conservador modernizador e outro transformador. O Golpe de 64
silenciou este último.
Saindo do âmbito da Saúde Pública e indo para a assistência médico-
previdenciária, temos que esta experimentou, a partir dos anos quarenta, fruto da
realidade social do país, um aumento significativo da participação na economia da
Previdência Social, pela progressiva demanda por atenção médica que incidiu sobre
todos os IAP´s. Isso pode ser explicado pelo desenvolvimento industrial, pela
conseqüente aceleração da urbanização e o assalariamento de parcelas cada vez
crescentes da população, maior número de pessoas contribuindo e, conseqüentemente,
maior pressão pela assistência médica via atenção médico-previdenciária. Esse período
foi marcado pela tensão entre a manutenção de uma estrutura de privilégios e a
necessidade de extensão dos direitos sociais. Essa tensão ocorreu não apenas entre as
categorias profissionais privilegiadas – bancários, industriários, comerciários,
funcionários públicos – que apresentavam diferenças entre si, mas também entre elas e o
restante da população que estava à margem dos direitos de cidadania.
O debate em torno da necessidade ou não de se unificarem os benefícios da
previdência foi uma constante nesse período, mas os movimentos pela unificação,
141
esboçados pela burocracia estatal, sempre sofreram forte resistência por parte dos
representantes da classe trabalhadora privilegiada e da própria burocracia dos IAPs, que
já se constituíra num poder paralelo com força política e eleitoral. Dessa forma, somente
em 1960 é promulgada a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), versão bastante
modificada do Projeto original apresentado em 1947, no Congresso Nacional. Essa
promulgação unificou os benefícios dos previdenciários dos IAP´s.
Segundo Santos (1998), dessa forma, a política social fica mais
explicitamente vinculada à política de acumulação, pois todo o problema governamental
consistia em conciliar uma política de acumulação que não exacerbasse as iniqüidades
sociais a ponto de torná-las ameaçadoras e uma política voltada para o ideal de eqüidade
que não comprometesse – e se possível ajudasse – o esforço de acumulação. Foi devido
a essa estratégia que, mesmo com a Lei, permaneceram desassistidos de qualquer
atenção pública os contingentes de trabalhadores rurais, de autônomos e de empregadas
domésticas, pois, além da diferenciação social e do peso no processo acumulativo de
uma categoria profissional, era necessário algum grau de mobilização social, o que não
era o caso, naquele momento, dessas categorias.
Assim, pensando o campo da saúde no seu conjunto, os movimentos pela
melhoria da qualidade de vida e saúde, nas décadas de 1940, 1950 e no início dos anos
1960, foram marcados pelo acirramento da pressão por expansão dos benefícios, em
função do crescimento da massa de assalariados urbanos e da sua organização e força
política, e pela tensão gerada em torno da isonomia de direitos dos beneficiários, as
quais não foram plenamente equalizadas pelo governo, como bem analisa o autor.
Já do ponto de vista institucional, um importante evento marcou esse
período: a criação do MS em 1953. No entanto, esse fato significativo conviveu já no
seu nascedouro com uma contradição: o sistema de saúde aprofundava-se numa política
em que prevalecia a dicotomia entre assistência médica e saúde pública, com uma
crescente inversão dos gastos em favor da primeira que, inclusive, continuaria sob os
auspícios de outro ministério.
Foi esse um período quando se começou a exigir outra postura do
profissional médico ao assimilá-lo como mão-de-obra assalariada dos Institutos ou da
Medicina de Grupo e seus planos de saúde, que emergiram de forma intensa no período
seguinte. A massificação do trabalho médico e a sua especialização serviram à extensão
de cobertura de cuidados de saúde, mas, paradoxalmente ao que se pretendia, contribuiu
para maior distanciamento da relação médico-paciente. Mas, por que isso aconteceu e
142
quais as conseqüências desse movimento para a população usuária dos serviços e para
os médicos e sua prática?
A extensão da cobertura assistencial fez-se dentro de uma lógica
empresarial. Os Institutos, verdadeiras empresas estatais, organizavam os serviços
médicos dentro da lógica da oferta e da procura, dentro dos seus limites financeiros. E a
depender do momento econômico, trabalhava-se, inclusive, com repressão da demanda
de serviços e racionalização da oferta. Os mais saudáveis econômica e
administrativamente, ou seja, os mais organizados, conseguiam alguma eficiência, mas,
por outro lado, apresentavam pouca eficácia em termos da saúde dos usuários. Essa
mecânica assistencial constituiu a base do assalariamento da classe médica e trouxe
repercussões negativas para a prática médica.
O assalariamento impôs a diminuição relativa dos seus honorários ao
mesmo tempo em que passou a cobrar-lhes produtividade na forma de uma quota
mínima diária de consultas em função do aumento da demanda de pacientes
125
, para
quem a conseqüência foi a diminuição do tempo de consulta e a sua contração em nome
da objetividade assistencial, com evidente perda na comunicação, no registro e no
aprofundamento das queixas e na necessária troca de informações que pudessem
construir um diagnóstico mais ou menos preciso do seu padecimento. Para ambos, o ato
médico passou a ser um evento contingente, fortuito, a fazer parte de uma prática
médica centrada na produtividade e desprovida da necessária personalidade que lhe é
própria.
O profissional tornara-se um simples consultante, e o paciente, um número,
uma matrícula, alguém desprovido de identidade e de história, transformado em mera
circunstância. Nessa situação, várias contradições. O paciente tinha a garantia da
acessibilidade ao serviço e ao médico, mas não necessariamente o acesso a uma relação
médico-paciente em outros padrões que não as formas clássicas desse relacionamento.
A organização dos serviços e a contração do tempo de atendimento impossibilitavam a
abertura entre os dois, como sujeitos em relação. Não oferecia possibilidade ao paciente
para expor os seus problemas, tampouco de o médico entender melhor o seu paciente ou
mesmo fazer-se entender. Médico e paciente, ao ser constrangidos na sua possibilidade
125
Pode-se dizer que a gênese das intermináveis filas nas portas dos serviços de saúde, públicos ou
privados contratados, datam exatamente deste período; quando os segurados passaram a constituir uma
demanda que aos poucos crescia na medida em que os profissionais relativamente diminuíam. E com o
avanço das tecnologias e dos Serviços Auxiliares de Diagnóstico e Tratamento (SADT) estas tenderam a
se multiplicar.
143
de diálogo, desperdiçavam a oportunidade de transformação do universo social em que
estavam inseridos.
O pré-64 era um momento de ebulição dos setores populares da sociedade
brasileira, e tudo repercutia no campo das políticas públicas, notadamente nos da
educação e da cultura. Campanhas e movimentos de educação popular despontavam em
vários pontos do país, principalmente no Nordeste, trazendo em seu cerne idéias de
conscientização política e social. Esses movimentos tiveram uma efetiva contribuição
da UNE, da ala progressista da Igreja Católica – através dos movimentos da Juventude
Agrária Católica (JAC), Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Universitária
Católica (JUC) e Juventude Operária Católica (JOC), de intelectuais e dos partidos de
esquerda, notadamente o Partido Comunista Brasileiro. Nesse período, é importante
fazer-se menção também às Ligas Camponesas, que intensificavam a luta pela reforma
agrária e cobravam justiça social no campo.
Perpetrado o Golpe Militar
126
, a Ditadura no poder usa de todos os artifícios
legais e ilegais e dos mecanismos estatais disponíveis, para despolitizar, controlar e
manobrar, à base de seus interesses, os mais diversos segmentos, instituições e
instrumentos públicos. Nessa perspectiva, amplia gradativamente os seus poderes e se
robustece diante do Legislativo e do Judiciário, que se tornam alvo de suas manobras
para consolidar o poder. São assim promulgados em seqüência, e de acordo com as
conveniências, Atos Institucionais que imprimem os mecanismos de controle social,
político e cultural do povo brasileiro
127
.
As políticas públicas se transformam em ferramentas de controle ideológico,
estratégico e organizativo da população. Uma nova Constituição é outorgada em 1967,
criando um Estado que violava o princípio republicano da separação dos poderes e que
tornava o Executivo quase absoluto no processo de tomada de decisões, além de
126
O Golpe de 64 representou uma solução arbitral de cunho cesarista sem César, visto que, diferente do
cesarismo clássico, não tivemos uma figura heróica e carismática que, reconhecida pela maioria,
assumisse todos os poderes. Nas palavras de Germano (1983) “[...] Isso significa que, entre nós, no
período em apreço, esteve presente outro traço fundamental do cesarismo, que é a ausência do controle
social sobre o poder político, consubstanciado na notável autonomia das Forças Armadas que exerceram o
comando do Estado brasileiro entre 1964 e 1985” (GERMANO, 1993 p. 18).
127
Mas, mesmo com todo o aparato criado, havia quem acreditasse nas intenções do presidente Castelo
Branco em devolver o país aos civis, o que efetivamente não aconteceu. Para Germano (1993), entre os
militares havia uma ala sectária, a Linha Dura, e a supremacia interna dessa ala é que levou o regime a
endurecer e mergulhar o país num regime de exceção truculento e feroz nos seus aparatos, com prisões
arbitrárias, tortura e controle total sobre a vida das pessoas, fechamento dos sindicatos e organizações da
sociedade e proibição de qualquer reunião que não fosse, antes, permitida pelos militares, numa total
destruição das liberdades democráticas.
144
conceder total autonomia às Forças Armadas. É esse o início do período mais escuro do
regime ditatorial. Prisões arbitrárias, tortura e assassinato de presos políticos, cassação
de mandatos, exílios compulsórios e perseguições políticas passam a fazer parte da cena
cotidiana da política brasileira. Cessam os direitos individuais e coletivos. É o período
em que começa a ser travada uma guerra subterrânea contra os vários grupos que, na
clandestinidade, tentam reagir à ditadura (DREIFUSS, 1981; FAUSTO, 1995;
GERMANO, 1993).
Pelo lado da economia, na visão desses mesmos autores, o corte liberal do
governo da ditadura acelera a acumulação de capital através de uma gestão da força de
trabalho que regulamenta o preço da mão de obra, disciplina sua ação e traz insegurança
ao emprego. A Justiça do Trabalho é esvaziada, as lideranças sindicais são presas, e os
sindicatos ocupados e proibidos de fazer greve. O Estado amplia sua ação empresarial,
criando cerca de duzentas e dez empresas estatais.
O Golpe de 64 teve um caráter eminentemente burguês, uma vez que tentou
conter, com relativo sucesso, as manifestações populares em favor das reformas na
estrutura da sociedade brasileira, os conflitos entre capital e trabalho, a crise de direção
política do Estado, a crise econômica manifestada na redução dos índices de
crescimento e na diminuição da entrada de capital estrangeiro, bem como a queda das
taxas de lucro, com a conseqüente elevação da inflação. Em 1974, chegou-se ao ponto
de desacelerar o crescimento devido a uma grave crise de acumulação, provocada pela
crise do Petróleo (DREIFUSS, 1981; FAUSTO 1995; GERMANO, 1993).
Entretanto, a elite empresarial não estava de todo satisfeita e sentia-se à
margem dos centros de tomada de decisões na sua luta contra os excessos estatizantes. E
isso acabou por conduzir uma parte da burguesia para a oposição conservadora ao
Regime. Demonstrando fraqueza, o governo começa a se perder em negociatas e
processos ilícitos, e o Estado é invadido por grupos privados. Há uma crescente
degeneração da administração pública regada a escândalos financeiros, corrupção
generalizada, tráfico de influência e operações fraudulentas. A pretensa rigidez do
governo militar estava minada
128
(GERMANO, 1993).
128
Há que se fazer menção ainda a um forte arrocho salarial. Depois de uma década no poder, a Ditadura
foi obrigada a empreender, de forma lenta, gradual e segura, uma abertura política capaz de trazer o país
de volta à democracia civil, o que efetivamente só viria a ocorrer a partir de 1985.
145
Na era Geisel, tem-se o lançamento do II Plano Nacional de
Desenvolvimento que, se de um lado, define um papel ainda mais destacado para as
estatais, de outro lado, concede apoio à reprodução de capitais nominais ao doar
vultosas quantias ao capital privado sob a forma de incentivos fiscais e creditícios. É
nesse período em que se cria o Fundo de Assistência Social (FAS), que permite a
acumulação privada na área da saúde. Sob a batuta de um comando monetarista, a
dívida pública (interna e externa) sofre uma súbita elevação com o chamado Choque do
Petróleo. O Estado repassa recursos para as empresas privadas com a finalidade de
salvá-las e aparece como devedor do referido setor. As estatais, nessa conjuntura,
passam a ser taxadas de ineficientes (MENDES, 1999).
Para conter a dívida e evitar a quebradeira, no início dos 80, mesmo sob
forte movimentação popular – já se vivia em plena abertura democrática – o governo
militar recorre ao FMI e, em pouco tempo, a dívida brasileira triplica, mostrando a
ineficiência e ineficácia da política econômica. Na tentativa de reverter o quadro, o
Estado define e executa um conjunto de políticas sociais com vistas a compensar as
carências provocadas pelos excessos da acumulação. Mas, pouco a pouco, os recursos
destinados à saúde, à educação e à habitação vão ficando comprometidos com o capital
privado, a título de bolsas de estudos, de compensações e de isenções fiscais
(MENDES, 1999).
A derrota das propostas transformadoras geradas no pré-64 pela corrente
sanitarista desenvolvimentista de cunho transformador – que, dentre outras coisas,
propunha o rompimento da dicotomia entre saúde pública e assistência curativa – abriu
outro capítulo no pós-64, pois confirmou a corrente conservadora e modernizadora
como estruturadora de um modelo de atenção à saúde centrado na assistência médica,
mercantilizada, e que passava pelo setor previdenciário, tendo a saúde pública como
braço auxiliar.
A ênfase na medicina previdenciária, de cunho individual e assistencialista,
foi acompanhada por um franco menosprezo pelas medidas de saúde coletiva
tanto as tradicionalmente executadas pelo Ministério da Saúde quanto as
inovações propostas pelos sanitaristas identificados com o projeto nacional
desenvolvimentista que surgiu no período anterior, como uma alternativa
para a política nacional de saúde. Prova mais evidente do descaso com a
saúde coletiva é o decréscimo do orçamento do Ministério da Saúde neste
período [...] vindo a ter um ligeiro aumento a partir de 1974 (OLIVEIRA;
TEIXEIRA, 1986, p. 207).
Até o início do regime militar, a saúde pública sempre tivera mais recursos
que a assistência médica previdenciária. Os militares, no poder, inverteram essa relação
146
diminuindo muito os gastos em saúde pública. Para dar uma idéia da participação dos
gastos com saúde nos gastos totais da União, Oliveira e Teixeira (1986), citando Santos
(1979), afirmam que estes diminuíram em quase três vezes na primeira década da
ditadura, passando de 3,42%, em 1963, sob João Goulart, para 1,07%, em 1973, sob
Médici. Por outro lado, os Institutos (IAP´s) são, finalmente, unificados, passando a ser
o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), a partir de 1967, concentrando e
gerindo todas as contribuições e oferecendo benefícios de previdência e assistência
médica aos seus contribuintes. A unificação transforma o novo orçamento da
previdência num montante equivalente ao orçamento da nação
129
.
O caráter liberal, travestido de estatismo, da economia e das políticas
públicas da ditadura, o aceleramento da acumulação de capital e a gestão da força de
trabalho mantida sob permanente arrocho salarial, somada à ausência de políticas
sociais voltadas para a maioria da população, especialmente a mais pobre, permitiu uma
enorme deterioração das condições de vida e de saúde da população, tanto pelo aumento
da miséria nas cidades, agora inchando as suas periferias em função do êxodo rural,
quanto pela mudança de ênfase nos investimentos em saúde (BRAGA; PAULA, 1981;
OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).
A unificação dos institutos inseriu-se numa perspectiva de modernização da
máquina estatal e concorreu para o aumento do poder regulatório sobre a sociedade.
Significou, por outra parte, um esforço de desmobilização das forças políticas
progressistas, que atuaram no sentido das reformas do período populista e a conseqüente
exclusão da classe trabalhadora organizada como força política. Para operacionalizar o
seu projeto de modernização, enquanto reprimia e desmantelava as organizações
populares, o regime militar criou uma casta tecnocrática constituída de profissionais
alçados da sociedade civil. Colocados sob a tutela do Estado, passaram a construir
políticas alinhadas com os dogmas e postulados do novo regime militar (MERHY,
1997).
Foi essa tecnoburocracia estatal que desempenhou um papel fundamental
durante o período de poder da ditadura, a partir da década de 70, marcada pela
ampliação crescente da cobertura do sistema, principalmente pela inclusão de vários
segmentos antes não beneficiários do sistema de previdência e assistência médica. Foi o
129
O governo, com o controle desses dois orçamentos e seguindo uma filosofia de governos anteriores,
pôs em execução um forte programa de investimentos em grandes obras. Os recursos da previdência mais
uma vez eram carreados para ajudar no financiamento dessas obras. São desse período a rodovia
Transamazônica, a ponte Rio-Niterói e a Hidrelétrica Itaipu Bi-Nacional (Brasil-Paraguai).
147
caso da instituição do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Pró-Rural), em
1971, e da inclusão, em 1972, dos empregados domésticos e dos autônomos que
passassem a contribuir. Da mesma forma, em 1974 é lançado o Plano de Pronta Ação
(PPA), que torna universal o direito de atendimento nas emergências dos hospitais
credenciados ao sistema de assistência médico-previdenciário.
Para Carvalho (s/d) e Merhy (1997), o regime ditatorial usou a expansão da
cobertura do sistema previdenciário, ou seja, a incorporação de novas categorias e a
extensão da oferta de serviços à população não previdenciária como um importante
legitimador do regime repressivo por ele implantado. Contudo, Costa (1998) afirma que
não se pode deixar de compreender que as mudanças na política de saúde, efetivadas
pelos militares, produziram uma incorporação maciça da população brasileira até então
fora do mercado consumidor de cuidados médicos. A conseqüência dessa incorporação
foi o rompimento com o modelo restrito do período corporativo, instituído pelo período
varguista e mantido pelos governos subseqüentes.
A política de saúde, durante as décadas em que os militares estiveram no
poder, foi impulsionada pela expansão dos serviços médico-hospitalares dentro de uma
estratégia crescente de contratação de produtores privados de serviços de saúde. Essa
contratação, concomitantemente, tendia a promover o sucateamento dos serviços
hospitalares próprios. Assim, as ações do INPS se deram de forma a assegurar o
privilegiamento da empresa privada
130
. A esse respeito, Braga e Paula (1981) afirmam
que a solução adotada, de expansão via setor privado, foi a solução que fez prevalecer
os interesses capitalistas em geral, assim como os particulares da saúde já bem
acomodados no setor, em função da expansão da rede hospitalar privada
131
, iniciada
desde a década de 50 e continuada em seguidos governos.
Seguindo um caminho contrário ao até então trilhado por governos
anteriores, as verbas para a saúde pública foram paulatinamente diminuídas, e em
conseqüência, serviços abandonados, assim como obras de saneamento. O
130
Na verdade, as ações do INPS apenas vinham apenas consolidar a opção preferencial que o próprio
regime fizera pela compra de serviços médicos aos produtores privados, opção definida, inclusive,
constitucionalmente nas Cartas de 67 e 69 (artigos 163 e 170 respectivamente) grafados com o mesmo
teor: “Às empresas privadas compete, preferencialmente, com apoio do Estado, organizar e explorar as
atividades econômicas. Parágrafo Único: Apenas em caráter suplementar da iniciativa privada o Estado
organizará e explorará diretamente a atividade econômica”.
131
Mendes (1999), tratando especificamente da expansão durante o regime militar, afirma que em 1969
havia 74.543 leitos privados no País e em 1984 esse número já era quase cinco vezes maior, chegando a
348.255. Por outro lado, em se tratando da expansão em termos do número de unidades hospitalares com
fins lucrativos, financiadas com recursos públicos, elas representavam 14,4% em 1960, 44% em 1971 e
45,2% em 1975 (Mendes, 1999, p. 24 e110).
148
desfinanciamento estatal para a saúde passa a ser substituído pelo estímulo
governamental à iniciativa privada, que já vinha se inserindo de maneira insidiosa na
saúde. Nesse sentido, foram criadas linhas de crédito, com recursos a fundo perdido,
para quem quisesse investir no setor. Os recursos para isso eram do FAS – Fundo de
Assistência Social. Dessa forma, qualquer pessoa jurídica ou entidade passava a
concorrer a esse financiamento, bastando, para tanto, fazer aprovar o seu projeto de
construção e equipamento, principalmente de hospitais. Pronta a obra e equipado o
estabelecimento, o governo, através do INPS, credenciava o estabelecimento, e seus
profissionais ficavam aptos a atender os segurados da previdência social,
Percebe-se, portanto, que havia, além dessa expansão numérica, uma clara
hegemonia dos interesses privatistas dentro do setor, levando à realização do lucro e da
acumulação capitalista. As pressões feitas junto à gestão do sistema forçavam uma
seleção tácita baseada na especialização, cabendo aos hospitais públicos, em geral,
melhor equipados, o atendimento dos casos mais graves e de tratamento mais longo e,
conseqüentemente, mais custoso, enquanto ao setor privado eram enviados os casos
mais simples, bem mais freqüentes e de rápido atendimento. Isso aumentava a
rotatividade e a ocupação dos leitos que, por terem custo mais baixo, tornavam-se bem
mais lucrativos.
Outra característica desenvolvida por esse sistema foi a sua concentração
nos grandes centros, maiores mobilizadores de capital. Essa situação perpetrou, ao
longo do tempo, uma grande desigualdade na distribuição geográfica dos serviços de
saúde, que assim se concentravam nas regiões Sul e Sudeste, em detrimento das regiões
Norte e Nordeste e do Centro-Oeste, áreas bem menos aquinhoadas. O alcance negativo
dessa política foi tamanho que, ainda nos dias de hoje, observam-se grandes deficiências
de leitos e unidades hospitalares em vários bolsões dessas regiões, o que pode ser
creditado, em grande parte, àquela política de expansão do setor privado durante o
período ditatorial.
Mendes (1999) define esse modelo gestado na estabilidade autoritária como
uma ação conjunta que envolveu a tecnoburocracia estatal, os produtores de serviços
médico-hospitalares privados e a indústria farmacêutica e de equipamentos médico-
hospitalares. Na sua visão, foi a aliança desses atores dentro do aparelho de estado,
somada à contínua expansão da clientela previdenciária e dos serviços, que consolidou o
que se convencionou chamar modelo médico-assistencial privatista. Dessa forma, pode-
149
se dizer que, após a centralização dos institutos e a exclusão dos trabalhadores do
processo decisório, foram esses interesses os definidores da política de saúde.
As principais características desse modelo, reproduzidas pelo autor a partir
da leitura de Oliveira e Teixeira (1986), são as seguintes:
a) extensão da cobertura previdenciária à quase totalidade da população;
b) inspiração flexneriana, filosofia que privilegiava a prática médica
curativa, individual, tecnificada, especializada e centrada no atendimento
hospitalar, em detrimento da saúde pública;
c) conformação de um complexo médico-industrial;
d) pagamento dos serviços contratados e conveniados por unidades de
serviços;
e) desenvolvimento de um padrão de organização da prática médica
orientada em termos de lucratividade, proporcionando a capitalização da
medicina.
O país viveu, principalmente durante a primeira década da ditadura, um
grande crescimento econômico – os anos do chamado milagre econômico brasileiro
sem que os produtores da riqueza tivessem acesso aos frutos do seu trabalho. Ao
contrário, assistiu-se à continuidade da política de arrocho salarial e total descontrole da
saúde pública, com aumento da mortalidade infantil e de casos, ou mesmo surtos
epidêmicos de poliomielite, varíola e hanseníase, além de um grande aumento dos
acidentes de trabalho, sem que nenhuma política fosse adotada para fazer frente a esses
problemas.
A partir do início da década de setenta, a previdência social conheceu sua
maior expansão em número de leitos disponíveis, em cobertura e em massa de recursos
arrecadados. Enquanto isso, os serviços de saúde pública viviam a duras penas, e muitas
ações simplesmente deixavam de ser executadas por absoluta falta de recursos. Nessas
condições, doenças antes controladas recrudesceram, e o país passou por epidemias
como a de meningite, em São Paulo. Nesse episódio, o governo, acuado diante da
denúncia de estudiosos e de pesquisadores, através da imprensa, manipulou os dados
epidemiológicos e escondeu a realidade da população, afirmando tudo não passar de
uma campanha subversiva dos inimigos da democracia, que espalhavam boatos
alarmistas, com a finalidade de desestabilizar o regime. Porém, rendido pelas
evidências, teve que realizar uma campanha nacional de imunização contra a meningite
meningocócica.
150
Em 1978, já tentando conter a crise da previdência, o governo federal cria o
SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, que passa a reunir
todos os órgãos da previdência: o INAMPS – Instituto Nacional Assistência Médica da
Previdência Social, coordenador da assistência médica previdenciária; o IAPAS –
Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social, o órgão que comanda
todo o sistema de administração dos recursos do sistema; e o INPS que, nessa reforma,
tem o seu papel redefinido, passando à coordenação das aposentadorias e pensões do
sistema previdenciário.
Nesse período, como já se viviam os ventos da distensão política, as
organizações populares, mesmo reprimidas em algumas situações, passam a multiplicar
e diversificar o seu papel de resistência ao regime ditatorial. E nessa onda, a saúde passa
a ser discutida na sociedade, através de inúmeras iniciativas que tentam retomar a
tradição dos movimentos sociais que haviam sido abafados. A aglutinação dessas
inúmeras iniciativas setoriais é que, aos poucos, foi se unificando, não sem conflitos
ideológicos, o que ficou conhecido como o Movimento Popular de Saúde (MOPS).
O Movimento Popular de Saúde constituiu-se a partir de uma articulação
nacional dos movimentos populares locais, que centravam sua luta na busca da
transformação do sistema de saúde
132
. Propugnava mudanças no modelo de atenção à
saúde e exigia a democratização dos serviços e a adoção de medidas legislativas que
permitissem e garantissem a participação da sociedade civil nas decisões.
Considerando-se Carvalho (1998), pode-se dizer que esse movimento expressava desejo
de institucionalização de um processo amplo de reordenamento das relações
Estado/Sociedade. Uma das suas principais reivindicações foi a criação de conselhos de
saúde, nos vários níveis do sistema de saúde, desde as unidades básicas até os centros de
saúde, que seriam instâncias consultivas e deliberativas, em cuja composição estava
prevista a representação da comunidade por meio de suas lideranças.
Ganhou visibilidade na Zona Leste de São Paulo onde, organizado, centrou
sua ação nos objetivos de: levantar as condições de vida, os problemas de saúde do
bairro e os serviços de saúde existentes; buscar as causas dos problemas encontrados,
132
Na visão do MOPS, não era mais possível admitir a situação de abandono da saúde pública e a
tentativa de manipulação dos dados epidemiológicos feita pelo governo da ditadura, quando populações
inteiras eram abandonadas a sua própria sorte, adquirindo doenças que deveriam estar controladas ou
erradicadas. Por isso, centrava a sua luta na busca da transformação do sistema de saúde. Além dos seus
próprios encontros orgânicos, como era comum aos movimentos populares da época, sempre que
possível, apresentava suas formulações nos eventos estudantis e acadêmicos que marcaram a época. Dada
a articulação com o movimento estudantil, os Encontros dos Estudantes de Medicina (ECEM) e as
Semanas de Saúde Comunitária (SESAC) foram exemplos de palcos de expressão desse movimento.
151
refletindo sobre a política social e econômica do município, estado e país; fazer
propostas para o plano de trabalho das Unidades Básicas de Saúde (UBS) – tipo de
atendimento, programas de saúde, organização dos serviços e coisas do gênero; prestar
informações aos usuários e à população, em geral, sobre a Unidade (UBS) e a saúde,
contribuindo para a formação da mesma; fazer a ligação entre a população e as UBS´s
(os serviços), incentivando o uso das mesmas; fiscalizar o atendimento de saúde,
zelando por sua qualidade; organizar e conscientizar a população, incentivando-a à
participação; levar as lutas de saúde locais específicas e outras reivindicações do bairro;
fazer a ligação com o movimento de saúde e outros movimentos populares, participando
das lutas gerais da saúde (SADER, 1988).
Outros movimentos engrossavam as lutas populares por mudanças na área
da saúde, entre eles, o movimento estudantil da área da Medicina. Desempenharam um
papel importante nessas lutas os Encontros dos Estudantes de Medicina (ECEM), no
final da década de 70. Esses fóruns anuais eram da maior importância para a formação
crítica dos estudantes de Medicina, tradicionalmente vindos de frações da classe média.
Os ECEM´s se constituíam verdadeiros encontros de diagnóstico e formação política
para aqueles estudantes. Eram precedidos e sucedidos de frutíferos seminários e ciclos
de debates internos, em que se discutiam e se encaminhavam as políticas gerais e
específicas que embalavam as lutas dentro e fora da Universidade. Todas essas
movimentações contribuíam para a transformação dos seus integrantes em verdadeiros
agentes políticos do seu tempo.
Lá se faziam análises da conjuntura política geral e específica da educação
médica e se criticavam a política e a prática médica hegemônicas, diagnosticadas como
alheias à realidade da população necessitada de cuidados de saúde e controladoras,
autoritárias e avessas ao diálogo, uma vez que não davam voz aos usuários para que
expressassem as suas reivindicações e os seus sentimentos, como destinatários das
ações. Com os encontros, aos poucos, ia-se, na base do diálogo, entendendo melhor o
país, os seus problemas e os desafios que precisavam ser enfrentados. Iam-se tecendo as
respostas individuais e coletivas e as atitudes que precisavam ser assumidas por cada
um e pelos grupos para a transformação da saúde e do próprio país.
Mas a ação estudantil não se dava apenas nesses encontros. Havia, no dia-a-
dia, o comprometimento real dos estudantes
133
com ações efetivas junto à população,
133
É importante esclarecer que se está falando de uma minoria de estudantes. A maioria não tinha
sensibilidade para as questões que eram discutidas ou até faziam oposição ideológica à ação do
152
que se davam fora do horário escolar, geralmente à noite, nos bairros de periferia,
quando se tratava de reuniões e discussões sobre a realidade vivida, e nos finais de
semana, quando as reuniões eram substituídas por ações concretas de atenção à saúde,
que contavam com o apoio logístico das associações de moradores e das paróquias
comandadas por padres e religiosos ligados à ala progressista da Igreja católica e seus
movimentos pastorais, ou mesmo se confundia com eles
134
.
As Semanas de Estudos de Saúde Comunitária (SESAC), assim como os
ECEM´s, eram verdadeiros encontros de formação política e técnica. Porém, as
SESAC´s tinham a vantagem de ser encontros mais diversificados de que participavam
diferentes atores sociais e profissionais que atuavam na área da saúde. Lá se
encontravam estudantes de várias áreas, profissionais da saúde, pesquisadores e demais
pessoas envolvidas com experiências inovadoras na área da saúde, todas engrossando o
movimento de resistência à ditadura e lutando por espaços democráticos e livres de
discussão e ação
135
. Nesses eventos, tomava-se ciência das diversas experiências que
estavam sendo realizadas na área da saúde, em que pese a aridez do momento político, e
se tinha a confirmação de que outra organização das políticas e da prática médica era
possível.
Por seu turno, as instituições de ensino da área, eram um espaço importante
onde se reproduziam as discussões que eram travadas no cotidiano da saúde. Alguns
professores, comprometidos com a crítica e a transformação do status quo,
aproveitavam as suas disciplinas para discutir diferentes aspectos da prática médica e do
sistema de saúde. Temas como mercantilização da medicina, assalariamento dos
profissionais médicos, racionalização dos serviços médico-previdenciários, tecnificação
do ato médico e humanização da prática médica eram recorrentes nessas disciplinas e,
movimento. Havia, ainda, uma parcela que, em tese, considerava justas a movimentação e as ações
comunitárias, mas não se comprometia com elas. Esses eram importantes aliados circunstanciais, quando
se precisava travar ou legitimar ações, principalmente dentro da Universidade.
134
Havia casos em que os próprios alunos também pertenciam, nos seus bairros ou bairros vizinhos, a
esses movimentos. Parte deles participava de um consistente processo de formação e treinamento de
lideranças que acontecia nessas organizações, o que os fazia verdadeiros intelectuais orgânicos no meio
da massa. Nesse período, era muito difundida uma metodologia utilizada pelos integrantes da Teologia da
Libertação, o método Ver, Julgar e Agir, com o qual eram acompanhadas as células das famosas CEB’s,
as Comunidades Eclesiais de Base, nos locais de moradia. Também se participava de programações e
tarefas de apoio aos diversos movimentos políticos, populares ou classistas. Era um período de intenso
aprendizado, fundamental para direcionar a vida futura de profissionais médicos conscientes da sua
função social.
135
As Semanas de Estudos sobre Saúde Comunitária, realizadas pela primeira vez em 1974, assim como
os Encontros Científicos dos Estudantes de Medicina, em especial, os realizados entre 1976 e 1978, foram
importantes nesse sentido, por serem espaços de diálogo e construção de alternativas políticas gerais e
específicas, praticamente ignorados pela repressão militar, que não identificara o caráter político de suas
discussões.
153
depois, nos debates estudantis
136
, e jogavam um papel importante na construção das
formulações contra-hegemônicas.
Grande parte dessas iniciativas aglutinava, além de movimentos populares
organizados, movimentos classistas da área da saúde, como o REME
137
, que reunia os
médicos, e os demais movimentos reivindicatórios de outras categorias profissionais da
saúde. Havia uma entidade acadêmica do movimento da Saúde Coletiva, a
ABRASCO
138
, que coordenava as discussões da academia nesse campo. Mas, nenhum
desses movimentos se assemelhava a uma entidade símbolo da luta e da resistência
dessa época na área da saúde: o CEBES
139
– Centro Brasileiro de Estudos em Saúde
que, principalmente no Sudeste, mas não apenas nessa região, contribuiu muito para
essas lutas, inclusive mantendo um periódico, a revista Saúde em Debate, verdadeiro
órgão de divulgação das idéias do movimento sanitário
140
nacional.
Todos os movimentos e segmentos que foram arrolados como atuantes na
discussão das políticas de saúde e suas práticas: tecno-burocracia governamental,
136
Nessas disciplinas e nesses debates, aos poucos, se ia tomando contato com autores como Carlos
Gentile de Melo e Jaime Landman, que escreviam sobre o complexo médico-assistencial privatista,
prática médica assalariada e a acumulação capitalista via introdução de novas tecnologias diagnósticas, e
sucateamento e substituição da rede pública. Reinaldo Guimarães e Hésio Cordeiro, que escreviam sobre
ciência e tecnologia e indústria farmacêutica, Sérgio Arouca, que escrevera sobre o dilema preventivista
da prática médica, Alfredo Moffat e Franco Basaglia, que escreviam sobre a questão da saúde mental e o
poder nas instituições psiquiátricas, Madel Luz, sobre o poder nas instituições médicas. Porém, há de se
reconhecer que a sensibilidade para essas questões não passava apenas pela identidade estudantil, mas por
uma identidade política e social, individual, que era pouco comum nas faculdades de Medicina.
137
Movimento de Renovação Médica (REME), articulado em 1976, a partir dos estados do Rio de Janeiro
e de São Paulo, mas que depois se espraiou pelos quatro cantos do país. Priorizava a defesa dos médicos
assalariados, através de mobilizações de massa, greves e outras atividades próprias do sindicalismo. Foi
também muito importante na luta pela abertura política do país, especialmente quando visava ao
direcionamento das atividades médicas para as necessidades da saúde pública brasileira e o combate às
políticas de saúde da ditadura militar.
138
A Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva é uma sociedade civil, de âmbito
nacional, fundada em setembro de 1979. O Artigo 3º do seu estatuto reza que a mesma destina-se a atuar
como mecanismo de apoio e articulação entre os centros de treinamento, ensino e pesquisa em saúde
coletiva para fortalecimento mútuo das entidades-membro e para ampliação do diálogo com a
comunidade técnica, científica e desta com os serviços de saúde, organizações governamentais e não
governamentais e com a sociedade civil. Durante os anos finais da ditadura, atuou fortemente com as
demais entidades que compunham o que ficou conhecido como o movimento sanitário nacional.
139
O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), desde sua criação em 1976, centrou o seu objetivo
na luta pela Reforma Sanitária brasileira. Sempre foi um espaço democrático e suprapartidário e que luta
pela democracia na saúde e na sociedade Talvez porque, desde a sua fundação, reúne pessoas que já
pensavam dessa forma e realizavam projetos inovadores. Mesmo hoje, depois de 30 anos como um centro
de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço continua assegurado como produtor de
conhecimentos e como demonstração de uma prática política concreta, seja em nível dos movimentos
sociais, das instituições ou do parlamento.
140
O termo movimento sanitário foi utilizado, pela primeira vez, na dissertação de Mestrado da
professora Sara Escorel, em 1986, num trabalho orientado pelo Professor Antônio Sérgio da Silva
Arouca. O termo definia uma ampla mobilização que se constituíra aos poucos, desde, pelo menos, uma
década antes –segunda parte da década de setenta, do século passado – assumindo ares de uma ação social
que lutava por democracia e saúde. O movimento sanitário se estruturou de forma consistente a partir da
academia, dos movimentos sindicais e populares e do movimento estudantil, fazendo oposição à ditadura.
154
movimentos sociais de cunho classista ou não, movimentos populares, academia,
associações e centros de pesquisa, de uma forma ou de outra, estavam informados pela
evolução do conhecimento geral e específico construído pelas instituições da sociedade.
3.9 A Reforma Sanitária na redemocratização do país
A década de oitenta se iniciava como um período de grandes dificuldades,
pois, além da saúde da população ir mal, havia a grave crise da previdência social. Essa
crise, porém, tinha explicação: a fraude que, insidiosa, corroia os seus recursos, o grave
momento da economia vivido pelo país e a estrutura da previdência, a mesma desde o
início dos IAP´s; ou seja, uma estrutura de seguro-saúde
141
. Com a crise econômica, que
significava, entre outras coisas, queda no emprego e, portanto, das contribuições, havia
menos receitas sem que isso implicasse necessariamente diminuição de gastos. Aliás,
estes só aumentavam dada a longevidade do sistema e da própria população que vinha
contribuindo com a previdência. Tinha-se uma situação sustentada de uma soma maior
de dinheiro saindo para pagar aposentadoria e serviços de saúde, do que entrando, o que
gerava o desequilíbrio de caixa, ou seja, déficit (BRAGA; PAULA, 1981; OLIVEIRA;
TEIXEIRA, 1986).
Outros problemas se articulavam fazendo com que essa crise se ampliasse
quase numa progressão geométrica, dentre eles, destacam-se: a) inflação galopante
corroendo os salários e agravando os problemas de arrecadação e financiamento de
benefícios e da assistência médica; b) aplicação em papéis e projetos do governo,
sempre deficitários, fazendo com que esse dinheiro nunca retornasse, além do que os
investimentos em projetos eram deficitários porque subsidiava as tarifas públicas; c)
custos crescentes pela privatização da rede. O governo financiara a fundo perdido os
empresários da saúde por vinte anos, e quando estes estavam agora suficientemente
capitalizados, simplesmente pediam descredenciamento da previdência, provocando
diminuição dos leitos disponíveis e, portanto, desassistência, filas, clientelismo e
corrupção.
141
O problema desse tipo de estrutura é que ela é baseada na contribuição dos trabalhadores que estão
formalmente no mercado de trabalho e, portanto, dependem de uma economia constantemente aquecida.
Por outro lado, cresce paulatinamente a massa de trabalhadores aposentados que deixavam de contribuir,
mas não de receber os seus benefícios de aposentadoria e consumir serviços de saúde.
155
À crise do sistema previdenciário se somava a crise da saúde pública,
tradicionalmente responsável pelo cuidado relativo a problemas - os quais, na sua
essência, são de caráter coletivo - mas que fora deixada de lado durante toda a ditadura
militar, em detrimento da assistência médica individual. O país passou a sofrer com o
recrudescimento de epidemias que haviam sido controladas depois das primeiras
décadas do século. Doenças antigas como a malária e a febre amarela, o dengue e o
cólera estavam agora de volta, e novas doenças, como a Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida, a AIDS, vinham encontrar a saúde pública em situação de abandono. E o
governo continuava, sem sucesso, fazendo reformas pontuais para tentar resolver a
questão da previdência. E porque eram pontuais, não mexiam na estrutura que, na
essência, era a mesma desde a sua constituição no primeiro governo Vargas.
Diante da grave crise e caminhando o país para um processo de
redemocratização, mesmo ainda sob a ditadura, os movimentos sociais, em geral, e dos
trabalhadores da saúde, em particular, sob o fogo cruzado dos militares e dos
empresários da saúde e suas instituições, passam a produzir propostas concretas para
mudar o sistema. Essas propostas, de um modo geral, retomavam questões gestadas nas
discussões do final do período democrático da década de 60 e que, agora, eram
atualizadas pelas discussões internas do movimento sanitário. Elas estavam pautadas
nos seguintes termos: a) avaliação crítica da realidade sanitária do país; b) rediscussão
das responsabilidades dos entes federativos; c) descentralização, horizontalização e
integração das ações de saúde; d) ampliação dos serviços e articulação das políticas de
saúde com reformas sociais; e) incorporação dos municípios numa rede básica de
serviços médico-sanitários.
As propostas, até pelo viés ideológico de que estavam revestidas, eram
rechaçadas pelo governo, para depois, sob nova roupagem, reaparecer despidas do
essencial: da possibilidade de participação política da população e dos movimentos
sociais organizados, os verdadeiros destinatários das diretrizes políticas propostas no
diagnóstico e na definição das prioridades e ações a serem levadas a efeito. As
propostas do PIASS – Plano de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento –
instituído em 1976, e do PREV-Saúde – Programa Nacional de Serviços Básicos de
Saúde – proposto em 1979, são dois exemplos, da segunda parte da década de 70, que
podem aqui ser arrolados como políticas que propunham extensão de cobertura das
ações de saúde, ainda que não tenham constituído mudanças estruturais importantes
156
para o setor saúde. Aliás, o PREV-Saúde, mesmo instituído em lei, não chegou a sair do
papel.
O PIASS, lançado em 1976, especialmente nos estados nordestinos
142
, tinha
como princípios básicos a utilização ampla de pessoal de nível auxiliar, ênfase nas
atividades preventivas, participação comunitária e previsão de integração em nível local
dos diferentes serviços de saúde sob a responsabilidade das Secretarias Estaduais.
Montado em cima de duas premissas básicas: a) máxima extensão de cobertura dos
serviços de saúde, com prioridade na atenção das zonas rurais e pequenas comunidades;
e b) regionalização da assistência, considerando as premissas da desconcentração dos
serviços, da descentralização das decisões e da hierarquização da rede de unidades, o
programa estava endereçado a municípios interioranos com população abaixo de 20.000
habitantes.
Centrado em unidades de saúde com uma tipologia que ia do Mini-Posto à
Unidade Mista, estabelecimentos com ambulatório e leitos para clínica médica,
passando por Postos de Saúde e Centros de Saúde de diferentes complexidades técnica e
tecnológica. A proposta conformava módulos assistenciais e possibilitava um sistema de
referência e de contra-referência, de modo a garantir o acesso da população aos serviços
mais especializados, hospitais locais, regionais e especializados. Porém, o programa não
conseguiu avançar, entre outros motivos, por seu caráter verticalizante e pelo confronto
entre a proposta de regionalização e a persistência da centralização típica dos programas
ministeriais, além do caráter meramente instrumentalizador e cooptador da participação
comunitária.
O PREV-SAÚDE tinha, como característica principal, ser uma estratégia de
integração de maior abrangência, envolvendo o Ministério da Saúde (MS), o Ministério
da Previdência e Assistência Social (MPAS), o Ministério do Interior (MI) e a
Secretaria de Planejamento da Presidência da República (SEPLAN). Detinha objetivos
bastante ambiciosos, como os de estender a cobertura dos serviços básicos de saúde a
toda a população, de reorganizar o setor público de saúde, articulando as várias
instituições, de reordenar a oferta dos serviços, além de promover a melhoria das
condições gerais do ambiente. A oposição criada pelas entidades privadas e instituições
públicas ligadas ao INAMPS e pelos próprios técnicos dos Ministérios levaram a
142
A partir de 1979, o PIASS expandiu-se para o Norte, Centro-Oeste, Espírito Santo e Minas Gerais,
enfatizando inicialmente as zonas de maior concentração de pobreza e adaptando o modelo às
características regionais, de modo a privilegiar a integração das unidades PIASS em nível federal,
estadual e municipal.
157
modificações substanciais do projeto original, restringindo tanto o programa, que este
acabou constituindo-se apenas em uma proposta de reordenação do setor público
prestador de serviços de saúde. (TANAKA et. all, 1992)
Simultaneamente às discussões acerca da implantação do PREV-SAÚDE,
duas questões merecem ser realçadas. Primeiro, uma forte reação ao PIASS, que toma
corpo num movimento de oposição, exigindo que se aponte para a efetiva
descentralização dos serviços, com a inclusão dos usuários na definição das políticas.
Ao mesmo tempo, exigiam-se uma posição firme de combate à mercantilização na
saúde e o fortalecimento do setor público, em função de ações de maior qualidade,
vinculadas às necessidades da população. A outra questão dizia respeito ao
posicionamento do movimento sanitário diante da crise do custeio da assistência
médico-hospitalar, a qual se agrava, corroborada pela política econômica recessiva do
Governo Federal, adotada a partir de 1980. A crise fazia com que houvesse necessidade
de medidas administrativas para que se recompusesse o equilíbrio do sistema.
O governo, tentando responder às pressões sofridas pelos desdobramentos
desse conjunto de discussões, criou em 1981 o Conselho Consultivo de Administração
de Saúde Previdenciária (CONASP), com o objetivo de estudar e propor normas mais
adequadas à prestação de assistência à saúde da população previdenciária, assim como
indicar a necessária alocação de recursos financeiros ou de qualquer outra natureza,
indispensáveis à operação da rede de serviços. O CONASP absorveu, em postos de
importância, alguns técnicos progressistas e alinhados com o movimento sanitário. Essa
absorção deu início à ruptura dos anéis burocráticos criados pela tecnocracia da ditadura
que dominou o setor nos anos 1960 e 1970 e abriu espaço para a colocação em disputa
de projetos de cunho contra-hegemônico.
Nesse contexto, é apresentado e aprovado, em 1982, o Plano de
Reorientação da Assistência à Saúde no âmbito da Previdência Social, que tinha, entre
os seus objetivos principais: a) a melhoria da qualidade da assistência à saúde; b) a
cobertura desses serviços da forma igualitária para a população rural e urbana; c) o
planejamento da assistência à saúde de acordo com parâmetros definidos; e, d) o
aumento da produtividade com a racionalização de serviços. O Plano do CONASP,
como ficou conhecido o Plano de Reorientação da Assistência à Saúde, era composto
por 17 propostas, destacando-se, no meio delas, o Programa de Ações Integradas de
158
Saúde (PAIS), que preconizava a regionalização progressiva do sistema de saúde,
planejado e coordenado por comissão paritária.
Esse Programa foi transformado na estratégia Ações Integradas de Saúde
(AIS) e propunha modificações substanciais no setor por meio da otimização dos
serviços públicos de saúde, a fim de atender a uma demanda crescente por assistência
médica. As AIS tinham como objetivo integrar e racionalizar o atendimento médico,
tornando os serviços de diferentes níveis de complexidade mais acessíveis à população e
propunham como instâncias de planejamento e gestão: a Comissão Interministerial de
Planejamento (CIPLAN), as Comissões Interinstitucionais de Saúde (CIS), em nível
estadual; as Comissões Regionais Interinstitucionais de Saúde (CRIS), em nível
regional sub-estadual, e as Comissões Locais ou Municipais de Saúde (CLIS ou CIMS),
em nível dos municípios.
Segundo Mendes (1999), o plano elaborado pelo CONASP operava uma
gradual reversão do modelo médico previdenciário, através de uma série de medidas
para aumentar a produtividade e a qualidade do sistema, eliminar a capacidade ociosa
do setor público, controlar as contas médicas para combater as fraudes, hierarquizar os
equipamentos, revisar a forma de pagamento dos serviços prestados pelo setor privado,
dentre outros. O plano, em função dos seus objetivos, teve o apoio do movimento
sanitário, mas enfrentou forte resistência da Federação Brasileira de Hospitais (FBH),
assim como da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (ABRAMGE) que via, nas
medidas propostas pelo CONASP, a possibilidade de perda da sua hegemonia dentro do
sistema de saúde.
A instituição das Ações Integradas de Saúde coincidiu com o movimento de
transição democrática, iniciado com as eleições diretas para governadores, e a vitória
esmagadora de oposição em quase todos os estados (1982). Esse fato, associado à
descentralização das ações de saúde, via Ações Integradas de Saúde, favoreceu a
entrada em jogo de outro ator relevante no campo da saúde, que irá se alinhar aos
preceitos colocados pelo movimento de Reforma Sanitária. Trata-se dos grupos de
interesse subnacionais emergentes da conjuntura de transição, em especial, os
secretários municipais e estaduais de saúde.
A partir do início da década de 80, com o processo de redemocratização em
curso, o setor saúde assiste a um processo contínuo de organização dos secretários
estaduais e dos secretários municipais de saúde. Os secretários estaduais criaram, já em
1982, o seu Conselho Nacional dos Secretários de Saúde – CONASS, enquanto que os
159
secretários municipais, a partir de 1981, começaram a promover periodicamente os seus
Encontros Nacionais de Secretários Municipais de Saúde para, finalmente, em 1988,
fundar a sua entidade nacional, O Conselho Nacional de Secretários Municipais de
Saúde – CONASEMS.
O advento da Nova República, em 1985, representou a derrota da solução
ortodoxa privatista para a administração da crise da previdência e o predomínio de uma
visão publicista, comprometida com a Reforma Sanitária. O comando do INAMPS foi
assumido pelo grupo progressista, que disseminou os convênios das Ações Integradas
de Saúde pelo Brasil, aprofundando seus aspectos inovadores. Estavam dadas as bases
para o aprofundamento da proposta do movimento pela Reforma Sanitária Brasileira,
que iria desembocar na criação do SUS, na Assembléia Constituinte de 1988.
160
5 A REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA: UMA CONSTRUÇÃO TEÓRICO-
POLÍTICA
143
A recuperação dos elementos teórico-políticos da Reforma Sanitária
brasileira, movimento que redundou na criação e implantação do Sistema Único de
Saúde – SUS – e na composição dos elementos constituintes da sua práxis sistêmica
144
assim como da lógica de suas intervenções, precisa considerar a relação com os
movimentos sociais nos aspectos ideológicos, políticos e econômicos, que a
contextualizaram nas últimas décadas do século passado. Essa busca pela compreensão
teórico-prática da saúde passa pelas disputas internas do estado brasileiro a partir da
institucionalização da República.
Fazer esse exercício implica tomar a saúde e suas políticas como um objeto
concreto que compreende um campo onde se expressam necessidades geradas pelo
fenômeno saúde-doença. Um espaço específico de produção, circulação e consumo de
mercadorias, bens e serviços/ações de saúde com base técnico-material, agentes e
instituições organizadas para enfrentar e tentar satisfazer necessidades e demandas. Um
espaço de densidade ideológica e de luta pela hegemonia onde se expressam conflitos
de classe redundantes em diferentes pressões por políticas sociais, que têm a ver com a
produção social e a potência tecnológica específica que busca solucionar problemas
tanto no nível do individual quanto no coletivo (TEIXEIRA, 1989).
A Reforma Sanitária brasileira é uma construção teórico-política. Nascida
da confluência e do sinergismo entre a academia e os movimentos sociais e populares,
constituiu-se, especialmente, a partir da segunda metade da década de setenta do século
passado, numa práxis com um forte viés crítico e transformador do setor saúde no país.
Capaz de acumular forças num momento difícil da conjuntura política brasileira, esse
movimento conseguiu articular diversos segmentos, intra e extra setor saúde, e fazer
143
Segundo a biblioteca virtual Sérgio Arouca: http://bvsarouca.cict.fiocruz.br/sanitarista05.html, “o
termo “Reforma Sanitária” foi usado pela primeira vez no país em função da Reforma Sanitária italiana.
A expressão ficou esquecida por um tempo, até ser recuperada nos debates prévios à 8ª Conferência
Nacional de Saúde, quando foi usada para se referir ao conjunto de idéias construídas em relação às
mudanças e transformações necessárias na área da saúde. Essas mudanças não abarcavam apenas o
sistema, mas todo o setor saúde, introduzindo uma nova idéia na qual o resultado final era entendido
como a melhoria das condições de vida da população”.
144
Por práxis sistêmica do SUS, entendam-se a concepção doutrinária, os modelos de organização, as
relações intra e interinstitucionais, o financiamento, a gestão da atenção, as estratégias de formação e
absorção da força de trabalho e a permeabilidade do próprio SUS à participação popular.
161
valerem propostas com potencial para reformar a política pública de saúde, num
processo inacabado, mas que vem cumprir várias etapas numa trajetória não linear
145
,
mormente pelas conjunturas e estruturas que teve de enfrentar.
5.1 A invenção do SUS: representação de interesses na ampliação do Estado
brasileiro
O movimento pela Reforma Sanitária nasceu francamente contra-
hegemônico. Evoluiu com consistência, inventou o Sistema Único de Saúde (SUS) e no
processo constituinte conseguiu transformá-lo em política pública de Estado, ou seja, a
sua força lhe permitiu, num dado momento de redefinição do poder e da superestrutura
político-jurídica do Estado brasileiro, representar interesses da maioria da sociedade. A
representação de interesses é própria das sociedades humanas e pode ser entendida no
contexto da noção de Estado Ampliado, na visão de Gramsci
146
.
Quando não há uma sociedade civil forte e atuante, a relação entre Estado e
sociedade se caracteriza pela representação de interesses de uma única classe. O Estado
usa a coerção para impor os interesses dessa classe ao conjunto da sociedade. Na
relação entre Estado e sociedade, numa sociedade democrática, em que há uma forte
presença da sociedade civil, e os atores são constituídos a partir de múltiplos interesses
sempre postos em discussão e em confronto, assume peso cada vez maior a busca de
relações de consenso, o qual confere legitimidade aos interesses em disputa. Talvez seja
por isso que, em Cadernos do Cárcere, Gramsci se refira à necessidade de uma base
material para o consenso, ainda que lá essa base material tenha uma conotação
ideológica. O consenso, elemento fundamental para a consecução dessa base material,
está ligado à obtenção de apoio (legitimidade) para um conjunto de normas e valores de
ação (COUTINHO, 1989). É o que parece ter acontecido em relação à Reforma
145
Sobre a questão da não linearidade da Reforma Sanitária brasileira há que se considerar, para além da
conjuntura política difícil, a própria estrutura estatal que veio se conformando desde os primórdios da
República.
146
“O Estado é o complexo das atividades práticas e teóricas com o qual a classe dominante não somente
justifica e mantém a dominação como procura conquistar o consentimento ativo daqueles sobre os quais
ela governa (...) [O] Estado inclui elementos que também são comuns na noção de sociedade civil. Neste
sentido poder-se-ia dizer que Estado = sociedade política + sociedade civil, em outras palavras,
hegemonia garantida pela couraça da coerção”. (GRAMSCI, 1978)
162
Sanitária brasileira, que criou o SUS. Buscando uma base material para a manutenção
do consenso sobre seus interesses mais profundos, a classe dominante, através do
Estado, viu-se obrigada a fazer concessões à classe contra-hegemônica que assim obteve
conquistas, fazendo valer interesses na estrutura estatal e influência na definição das
políticas públicas de saúde. Foi a partir da pressão exercida pelos movimentos sociais e
populares que a legislação básica que suportava a política nacional de saúde foi
reformada a partir do processo constituinte, abrindo espaço para um novo ciclo de lutas
pela reforma do setor saúde.
O contexto do processo constituinte permitiu a incorporação das demandas
sanitárias por meio de um conjunto de dispositivos legais e institucionais que apontaram
para um sistema único de serviços e ações de saúde. No texto constitucional, o conteúdo
relativo à saúde encontra-se no Título VIII – Da ordem Social. Seção II – Da saúde. Ao
todo, congrega cinco artigos (do 196 ao 200), que definem, respectivamente: o direito à
saúde e o dever do estado; a relevância pública das ações e dos serviços de saúde e a
necessidade de sua regulamentação em lei, inclusive no que concerne a sua execução,
fiscalização e controle; seu caráter de ser regionalizado e hierarquizado, assim como
suas diretrizes de descentralização, de atendimento integral com prioridade para as
ações preventivas e a participação da comunidade; seu financiamento nos termos do
Art. 195, com recursos da seguridade social da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos municípios; a livre participação da iniciativa privada na assistência à saúde e as
competências do próprio SUS.
Logo em seguida ao processo constituinte e já no governo Collor, o
movimento manteve-se ativo e, mesmo numa conjuntura mais difícil, foi possível levar
o Congresso Nacional a fazer com que as leis 8.080 de 19/09/1990 e 8.142 de
28/12/1990, que regulamentaram o texto constitucional e o regramento básico para o
funcionamento do SUS, fossem votadas. Porém, aprovado o conjunto de leis do SUS, a
correlação de forças oscilou bastante ao longo das últimas duas décadas, não
permitindo, ainda, a consecução integral do direito universal e igualitário à saúde em
todo o território nacional.
Isso significa que os avanços legais não têm sido convertidos em avanços
sociais homogêneos. O que há são distintas cidadanias em relação ao acesso às ações e
aos serviços de saúde. Os avanços práticos confirmam que se vive num processo
democrático crescente, mas que têm ficado ao sabor da conformação das identidades
163
políticas e sociais de cada região, dando ao movimento um desenvolvimento
heterogêneo do ponto de vista das diferentes esferas de poder.
Mesmo assim, pode-se afirmar que o SUS, como um processo social,
adquiriu, a partir da sua constituição, uma dimensão ética e política fundada na
democracia e no desejo do seu alargamento, da sua radicalização. Por isso permitiu,
como permite ainda hoje, que diferentes atores sociais, dentro da arena sanitária,
expressem projetos diversificados e, por vezes, contraditórios.
Para além da dimensão ético-política, o processo social que fundou o SUS e
o mantém como pauta constante se expressa por dimensões ideológicas bem marcadas,
haja vista a participação, no movimento sanitário, de um leque variado de forças. Nesse
leque, porém, três forças bem distintas e contraditórias devem ser destacadas pela sua
atuação e tentativa de autonomia frente às esferas governamentais: o movimento
popular de saúde, inspirado na perspectiva da educação popular, o movimento dos
trabalhadores da saúde, desejoso de manter e aprofundar conquistas corporativas, e o
movimento dos prestadores privados conveniados ao sistema, mobilizado e em luta
constante por mais recursos, asseguradores da realização dos lucros do seu
empreendimento. Todos, ao fim, demonstram a sua força e jogam um papel
fundamental na defesa dos seus interesses dentro do setor saúde e no âmbito do Estado
brasileiro
147
.
Considerando as idéias de Minayo (2001), pode-se dizer que a proposta do
Sistema Único de Saúde foi/é a resposta de um dos mais exitosos movimentos sociais
brasileiros que chegou a transformar em ordem social constituída a universalização do
direito à saúde, fazendo-o dever do Estado. O SUS é uma contra-hegemonia em relação
à dinâmica das políticas de saúde da era republicana, quando a oferta de serviços de
saúde se pautou muito mais pela lógica de acumulação de capital do que pelas
necessidades de saúde da população brasileira. Nas palavras da autora,
[...] o Sistema Único de Saúde (SUS) é, ao mesmo tempo, um fato e um
sentimento, uma retórica e uma prática, uma realização e uma utopia. Esse
conjunto de construções imaginárias e reais simultâneas, que passam pelas
subjetividades em busca de objetivação, tem atores, tem propostas e metas,
assim como representa interesses. Por isso, na dinâmica do provisório e na
incompletude que separa a realidade das intenções, a implantação desse
147
Ainda em relação ao leque de forças que compõe o movimento sanitário, não se deve esquecer o papel
desempenhado pela academia, talvez o grande sustentáculo desse movimento, principalmente nos seus
primórdios, como se verá na seqüência deste texto. Com a sua crítica e o seu poder, a academia municiou,
como de resto continua municiando hoje as distintas partes desse leque.
164
sistema é um processo complexo de construção e desconstrução de práticas,
de protagonistas e de um novo ethos [...] A implementação dos preceitos
constitucionais de universalização da atenção à saúde, de eqüidade no acesso
aos serviços e de participação da sociedade nas definições das políticas, no
acompanhamento de sua implementação e na sua fiscalização do uso dos
recursos, é o próprio processo em construção do SUS (MINAYO, 2001, p.
27).
Teixeira (1989) observa que a saúde tem um caráter dual, podendo ser
tomada, ao mesmo tempo, como valor universal e como núcleo subversivo na luta pela
reforma da estrutura social. É, portanto, um campo privilegiado para a construção de
alianças políticas suprapartidárias e poli-classistas. No caso da Reforma Sanitária
brasileira, mesmo que tenha sido possível, em várias situações, a construção de um arco
de alianças políticas, na luta pelo direito à saúde, com capacidade de consignar um
arcabouço jurídico legal, sua sustentação e funcionamento adequados estará na
dependência da atuação crítica e firme das diversas partes envolvidas e na redefinição
dos objetivos em cada momento.
Precisa-se ponderar que reformar a lei não significa reformar a realidade.
Portanto, o processo de Reforma Sanitária é algo muito maior e mais profundo do que a
simples – mesmo que custosa e penosa – luta por escrever nos diplomas legais que o
SUS é universal, integral, equânime e construído, inclusive, a partir do princípio da
participação popular. Portanto, a construção do SUS é um movimento contínuo, que
necessita ser alimentado e sustentado constantemente. Nesse sentido, terá sempre um
forte viés contra-hegemônico em face do Estado.
A democracia é o processo de reconhecimento dos trabalhadores como
sujeito político a partir de suas lutas, em um processo mútuo de auto e hetero-
reconhecimento de identidades sócio-políticas entre diferentes sujeitos; [...]
As perspectivas da Reforma Sanitária decorrerão da capacidade apresentada
pela coalizão reformadora de imprimir mudanças efetivas e no tempo certo
nas estruturas institucionais, de forma a evitar que sejam filtrados pelos
Estados apenas os aspectos racionalizantes dessa proposta, minando a sua
base política (TEIXEIRA, 1989, p. 38-45).
Desde o período em que o texto acima citado foi escrito, pode-se dizer
que o processo democrático brasileiro evoluiu, atingiu um patamar sem precedentes na
sua história. Mesmo assim, os prognósticos da autora, em relação à Reforma Sanitária,
continuam atuais. Aliás, o movimento sanitário tem-se deparado, quase em todo
momento, com situações em que os aspectos racionalizantes tendem a preponderar
sobre os aspectos políticos das propostas que lhe deram origem e base de sustentação.
165
5.2 Os fundamentos teórico-políticos da Reforma Sanitária brasileira
Teixeira (1989) ressalta alguns elementos decisivos que estiveram e
permanecem presentes no movimento de Reforma Sanitária que formou parte da base
que corporificou os interesses representados, sobretudo, no processo constituinte. Nesse
sentido, elenca: a ampliação da consciência sanitária; a construção de um paradigma
analítico, oriundo do campo da Medicina Social ou Saúde Coletiva, organizado a partir
das noções de determinação social do processo saúde-doença e sua organização; o
desenvolvimento de uma nova ética profissional; a construção de um arco de alianças na
luta política pelo direito à saúde e a criação de instrumentos de gestão democrática e
controle social do sistema de saúde.
Decorridas quase duas décadas da pronúncia desses elementos, é possível
tecer algumas considerações sobre sua atualidade no contexto presente da Reforma
Sanitária. O primeiro deles, a ampliação da consciência sanitária, experimentou
razoável evolução, resultado do esforço teórico e metodológico da academia brasileira e
latino-americana, traduzido com sucesso para os movimentos sociais e populares. Fruto
dessa articulação, há, hoje, um paradigma oriundo do campo disciplinar da Saúde
Coletiva, organizado a partir da noção de determinação social do processo saúde-
doença que tem influído positivamente na organização de práticas de saúde próximas do
ideário da Reforma Sanitária.
A instituição do Sistema Único de Saúde foi, talvez, a maior conquista da
Reforma Sanitária, ainda que o movimento constante e dialético de criar, satisfazer e
recriar novas necessidades demonstre que, a cada passo dado na evolução desse sistema,
os horizontes ora se alargam e se aproximam ora se distanciam e se estreitam em
relação à imagem-objetivo estipulada – saúde como direito de todos e dever do
Estado
148
– sempre ao sabor dos tempos e de variáveis técnicas, tecnológicas,
econômicas e políticas assim como dos fluxos e refluxos dos movimentos sociais que
funcionam como o termômetro da Reforma Sanitária.
148
Esse lema, que já embalara os movimentos sociais do período pré-64, presidiu também as lutas dos
movimentos sociais e populares durante os tempos difíceis da ditadura militar. Foi decisivo para a vitória
da estratégia do movimento sanitário no antes e no durante do processo constituinte. Tanto isso é verdade,
que acabou por abrir a Secção II – Da Saúde, do Título VIII – Da Ordem Social, da Constituição de 1988.
Lá está escrito: “Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para a sua promoção, produção e recuperação”.
166
O modelo da determinação social do processo saúde-doença resultou da
articulação entre as Ciências Sociais, a Epidemiologia e as Políticas de Saúde. Teve o
mérito de buscar a superação das orientações funcionalistas das ciências do
comportamento e das visões tecnocráticas de determinadas perspectivas de
planejamento e da administração de saúde, que olhavam para a doença como o resultado
multicausal e anistórico de fatores bio-psico-sociais (CORDEIRO, 2004). Esse modelo
ancorou-se num conjunto de categorias explicativas, entre as quais ganham relevo
processo de trabalho e classe social. Através dessas duas categorias é que tem sido
exercida a crítica às abordagens puramente biologicistas de explicação do processo
saúde-doença.
Um dos problemas das abordagens fundadas unicamente na natureza
biológica do ser é que essas categorias não distinguem a população com base na sua
heterogeneidade social, gerada pela posição de diferentes sujeitos ou grupos sociais
diante dos meios e das relações de produção que definem o lugar de cada um no
trabalho de transformar a natureza. É pela relação de trabalho, pela definição do lugar
de cada classe social no processo produtivo e pela forma como cada classe participa da
apropriação e transformação da natureza por meio de determinada forma de organização
social que o homem tem determinada a sua forma de adoecer e morrer (LAURELL,
1983; MARX, 1988; POSSAS, 1989).
A visão biológica reduz o homem à sua mais elementar condição animal,
biológica, em que sua condição de produtor, expressa pelos padrões de consumo de que
desfruta, como conseqüência de sua inserção na produção, é transferida para o meio
ambiente onde ele (homem) é decomposto em variáveis quantitativas ditadas por
critérios naturais como sexo, idade, raça, renda, grau de instrução e outros. Essa redução
naturalizadora, segundo a crítica da medicina social, confere ao modelo ecológico uma
racionalidade duplamente útil ao sistema capitalista. De um lado, esconde as profundas
diferenças de classe que resultam dessa organização produtiva e, de outro, dificulta a
atuação frente ao problema da saúde, que é visto e atacado sob um ângulo puramente
biologicista. A conseqüência dessa visão é o obscurecimento da origem social da sua
produção e a decretação de uma ruptura entre os sujeitos sociais e seus produtos
culturais, envolvidos numa manobra ideológica compatível com a dominação sutil e
tecnificada do capitalismo (BARATA, 1985, p. 23-24).
A ampliação da consciência sanitária permitiu ao movimento de Reforma
Sanitária propugnar por uma nova visão ética profissional fundada numa relação social
167
em que a qualidade de humano se coloca como atributo fundamental desses seres em
relação, passando a mediar o encontro entre o profissional de saúde e o seu outro, o
destinatário de sua ação ou serviço de saúde. Nessa relação, ambos se apropriam dos
produtos da relação construída e, ao mesmo tempo, socializam-nos, constituindo, talvez,
o desafio mais difícil em se tratando da Reforma Sanitária: o florescimento de novas
atitudes que, para além de ideais e de lutas sociais, transformem o cotidiano de sujeitos
em relação.
Novas atitudes revelam e refletem conflitos no que tange ao posicionamento
ético. E, tendo em vista que a ética não se constrói apenas no plano teórico, a ética da
Reforma Sanitária se constituiu como uma ética de resistência contra outra ética
hegemônica, moldada pela economia, pela política partidária de cunho fisiológico e pela
administração, no seu sentido burocrático, que, não raro, contradiz o concreto e o
pensamento, no limite, degradando relações humanas saudáveis quando estas tentam se
constituir. Portanto, a ética de resistência da Reforma Sanitária se constrói num terreno
pantanoso de contradições, onde os grupos que sustentam o seu movimento precisam
estar atentos e vigilantes à sua crítica, para que as formulações não enveredem nem para
o refúgio de um credo de negação de tudo que está a sua volta e, tampouco, caia na
atitude hipócrita de confirmar-se apenas como retórica vazia – ainda que bem
intencionada – e plena de falsa consciência.
Quanto à questão do arco de alianças políticas pelo direito à saúde, pode-se
avaliar que foi possível avançar, mesmo dentro dos marcos da ditadura militar.
Sufocado pelo regime militar nos primeiros dez anos, manteve-se latente um
movimento, principalmente no âmbito das IFES, que não parou de pensar e refletir a
situação social e política do país e, portanto, a problemática relativa à saúde da
população. Decorrida a primeira parte dos anos setenta, a nova conjuntura política
propiciada pela distensão no interior do governo militar, que caracterizaria os dez anos
seguintes, permitiu um maior investimento na área social. Essa realidade trouxe
condições para o fortalecimento das instituições de ensino e pesquisa e, assim, o
desenvolvimento da Saúde Coletiva como um novo campo de conhecimento. Essa
mesma conjuntura provocou um afrouxamento relativo dos controles da ditadura sobre
os movimentos sociais que experimentaram um ascenso.
É justamente a partir desse momento que o movimento sanitário ganha
visibilidade, passando a se articular, ainda que controlado, à luz do dia. Primeiro, as
alianças se deram dentro do próprio campo da esquerda e da centro-esquerda, mesmo
168
com diferenças ideológicas em torno da estratégia ou das táticas de enfrentamento do
Estado Militar e das transformações que deveriam ser levadas a cabo para a sua
superação. Mesmo na divergência, souberam convergir numa série de pontos relativos à
Reforma Sanitária.
Já no processo de redemocratização orientado pela Nova República, que
inclui o período do processo constituinte – quando esse arco experimentou um razoável
alargamento – até os dias atuais, o que se tem é um campo da saúde que congrega vários
partidos e correntes de pensamento no parlamento e nos movimentos sociais. Eles vão
da esquerda mais ortodoxa, ao conservadorismo, por vezes, recalcitrante. Essa
composição difícil constituiu-se arena de embates intermináveis que dão certa lentidão,
às vezes mesmo, uma sensação de paralisia ao movimento sanitário. Não raro, tem-se a
impressão de que não seria mais possível avançar com as reformas.
Quanto à criação de instrumentos de gestão democrática e controle social do
sistema de saúde, as propostas que foram gestadas, durante o primeiro momento de
maturação do movimento de Reforma Sanitária, sob a Ditadura Militar, desaguaram na
VIII Conferência Nacional de Saúde e, depois, na Comissão Nacional de Reforma
Sanitária
149
, em que passaram por um amplo processo de aperfeiçoamento para,
finalmente, serem confirmadas em lei, no processo constituinte, compondo o capítulo
relativo à saúde na Constituição Federal de 1988
150
. O capítulo da Constituição e,
depois, as Leis 8.080/90
151
e 8.142/90
152
definiram os instrumentos de organização,
gestão e controle social do SUS.
Por esses documentos legais, o SUS agrega, como instâncias deliberativas
das políticas de saúde, a Conferência Nacional de Saúde, as Conferências Estaduais de
Saúde e as Conferências Municipais de Saúde e, como instâncias de controle social, o
149
A Comissão Nacional da Reforma Sanitária foi deliberada na Plenária Final da VIII Conferência
Nacional de Saúde. Era formada por um amplo arco de representações que envolvia praticamente todos os
segmentos da sociedade brasileira, conservadores ou progressistas, através de suas entidades. Além de
transformar as deliberações da VIII CNS na proposta do movimento sanitário para o capítulo da saúde na
Constituição de 1988, teve a incumbência de preparar a proposta desse mesmo movimento para a Lei
Orgânica da saúde (Lei 8.080/90), a partir do texto da Constituição Federal.
150
O Título VIII – Da ordem Social, Seção II – Da Saúde, a C.F. reza que os serviços de saúde são de
relevância pública e integram uma rede regionalizada e hierarquizada que constitui um sistema único que
é público, mas, ao mesmo tempo, é livre à assistência privada, que o compõe de forma complementar,
segundo diretrizes do SUS e mediante contrato de direito público ou convênio.
151
É uma lei orgânica da saúde que regulamenta a C.F., dispondo sobre as condições para a promoção,
proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dando
outras providências.
152
É uma segunda lei orgânica da saúde, que dispõe sobre a participação da comunidade, na gestão do
Sistema Único de Saúde, e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área de
saúde, dando também outras providências.
169
Conselho Nacional de Saúde, os Conselhos Estaduais de Saúde e os Conselhos
Municipais de Saúde. Todas essas instâncias funcionam com paridade de representação
entre população (50%) e gestores e prestadores de serviços de saúde (50%) e
representam, talvez, o grande avanço democrático do sistema, ainda que seja permeável
a práticas capazes de corromper os seus princípios, principalmente onde não se tenha
avançado no que diz respeito à ética pública e à cidadania.
Levcovitz (1997), tentando dar conta do movimento de Reforma Sanitária,
propõe uma esquematização para abranger as últimas décadas correspondentes às lutas
do movimento sanitário em busca da reforma do setor saúde. Na sua esquematização, o
autor vê cinco fases ou períodos e tenta captar, em cada um deles, o objetivo central da
política de saúde e os seus marcos concretos em termos político-sociais, legislativos e
administrativos. Mesmo compreendendo que a esquematização, como de resto qualquer
tentativa esquema ou modelo, é limitada, por não conseguir abarcar a dialética e a
riqueza do real, ela será tomada em alguns momentos como aproximação dos principais
movimentos que ocorreram no âmbito da Reforma Sanitária brasileira.
O primeiro período que corresponde aos anos de 1974-1979 é caracterizado
como teórico-conceitual da Reforma Sanitária, quando a investigação sobre os
determinantes econômicos, políticos e sociais da conformação do sistema de saúde e a
formulação de alternativas da reforma se sobressaem. Desse período, entre vários
trabalhos importantes, na literatura que problematizou o que viriam a ser os marcos
teóricos da Reforma Sanitária brasileira, dois merecem destaque: O dilema
preventivista
153
, de Sérgio Arouca, e Medicina e sociedade
154
, de Cecília Donnângelo,
ambos de 1975.
O dilema preventivista mescla elementos conceituais do pensamento
marxista com a formulação foucaultiana da arqueologia do saber. Utilizando-se dessa
perspectiva teórica, critica a concepção liberal e individualista que dera sustentação à
medicina preventiva brasileira, até então. Ao expor suas limitações, abre caminho para
uma nova construção teórica que elege a abordagem histórica como caminho
fundamental para se colocar o campo da saúdeblica no interior dos conflitos sociais.
Medicina e sociedade é considerada fundamental, paradigmática mesmo,
para a área da saúde, porque, ao trazer a profissão médica, sua inserção no mercado e
153
AROUCA, A. S. S. – O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina
preventiva. Tese de Doutorado, FCM/UNICAMP, 1975, mimeo.
154
DONNANGELO, M. C.F.Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo,
Pioneira, 1975.
170
seus dilemas frente às políticas públicas, para o centro do debate, contribui para
reorganizar o pensamento médico. Entretanto, o recorte de sua pesquisa, ao eleger o
médico, não perde de vista as relações travadas por esse profissional com os demais
profissionais da área. Assim, acaba por analisar as formas ideológicas apresentadas
pelos vários profissionais de saúde, no mercado de trabalho e nos seus órgãos
formadores, e suas contribuições incorporaram novas demandas sociais à saúde, à
educação médica e viabilizaram discussões teóricas e práticas no âmbito das políticas
públicas a serem implementadas.
Esses dois trabalhos são importantes porque refletem, para dentro do
ambiente de prospecção, questionamentos e novas proposições em torno da prática
médica e uma crítica tanto ao modelo médico-assistencial privatista quanto à teoria
preventivista até então hegemônica na análise teórica dos problemas de saúde. Portanto,
impulsionam a delimitação do campo teórico da saúde coletiva, onde a análise do
processo saúde-doença não teria mais como objeto o indivíduo isoladamente ou o seu
somatório, mas sim, a coletividade (classes sociais e suas frações) e a distribuição
demográfica da saúde e da doença.
Escorel (1998) analisa que a produção desses dois autores introduziu uma
nova interpretação da ciência em relação à saúde, que deixava de ser percebida como
algo neutro. Assim, a teoria que se cria a partir dela passa a ser vista como um
instrumento de luta política, ou seja, a realidade sanitária passa, ao mesmo tempo, a ser
objeto de estudo e de luta e intervenção política.
A luta e a intervenção política se davam interna e externamente ao próprio
movimento sanitário. Nesse aspecto, parece importante fazer menção a três propostas do
governo da ditadura que foram, ao mesmo tempo, apoiadas, quando se tratava da
discussão do que fazer, e duramente criticadas, quando se referia ao como fazer,
mostrando as diferenças ideológicas e práticas que estavam subsumidas nas tentativas
de influenciar e efetivar mudanças no sistema de atenção à saúde. O primeiro foi o
Programa de Pronta Ação (PPA) que, como já foi visto, buscava universalizar o
atendimento às emergências nas unidades hospitalares credenciadas ao sistema
previdenciário. Em seguida, veio o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e
Saneamento (PIASS), que tentava avançar no campo da extensão de cobertura da
atenção ambulatorial, principalmente nas cidades com menos de 20.000 habitantes, e o
PREV-Saúde, uma proposta com a pretensão de universalizar as ações básicas de saúde,
reorganizar as instituições de saúde e promover melhoras ambientais.
171
Nessa primeira fase do movimento mais visível da Reforma Sanitária, ficou
como destaque o posicionamento crítico do movimento à Lei N.º 6.229 de 17 de Julho
de 1975, que instituiu o Sistema Nacional de Saúde, e o apoio e aproveitamento das
reflexões e do relatório da Conferência Mundial de Saúde de Alma-Ata, realizada em
setembro de 1978. A crítica mostra que a lei expressava um caráter ordenador de
funções para vários ministérios: Saúde, Previdência e Assistência Social, Educação e
Interior, constituindo uma política fragmentada, plena de duplicações e superposições
que, ao fim, não ofereciam um plano estratégico e integrado de ação da saúde.
A impressão deixada por essa lei é a de que a soma das partes não
compunha um todo articulado no sentido do diagnóstico, planejamento, execução e
avaliação das ações que deveriam ter como produto final a saúde da população. A
crítica mostrava a contradição da dicotomia plasmada entre as ações preventivas a cargo
do Ministério da Saúde e as ações de assistência assumidas pelo Ministério da
Previdência e Assistência Social.
A Conferência de Alma-Ata
155
constituiu-se um marco histórico da saúde
mundial ao inaugurar um novo paradigma para a discussão da saúde. Foi nela que se
legitimou um amplo debate no qual o contexto social, econômico e político passou a
tomar o lugar de construções biologicistas na explicação do fenômeno saúde/doença.
Nessa ocasião, o mundo voltou-se para a questão da Atenção Primária em Saúde (APS)
e apontou a meta de Saúde para Todos no ano 2000, assumida pelas autoridades
mundiais (ministros e representantes de chefes de Estado) presentes no evento.
Desde esse fórum, entidades governamentais e não-governamentais,
profissionais de saúde, em geral, e usuários, a partir de suas organizações, vêm
desenvolvendo a idéia de que a visão clássica de atenção à saúde voltada para o
assistencial, para o processo curativo, para o atendimento individual sustentado por uma
tecnologia, quase sempre centrada no hospital e no médico, não mais se justifica por não
ser capaz de fazer frente aos reais problemas de saúde de uma população. A visão
flexneriana de atenção à saúde começava então a ser questionada com alguma
155
A Conferência de Alma-Ata foi promovida pela Organização Mundial de Saúde e realizada na antiga
União Soviética, entre 06 e 12 de setembro de 1978. Independente do idealismo e otimismo quase
ingênuo da sua meta, Saúde para Todos no ano 2000, que envolvia mundos tão distintos e heterogêneos
como Europa, Américas, África, Ásia e Oceania, desempenhou um importante papel ao chamar a atenção
para as mudanças paradigmáticas que precisavam acontecer naqueles continentes e, em particular, em
diferentes áreas do conhecimento que integravam a discussão e a atuação na saúde. Isso significou uma
proposta de mudança de eixo nas práticas em saúde, em particular, na prática médica. A idéia é que se
deveria passar da assistência pura e simples, para a perspectiva da promoção da saúde.
172
veemência. E o significativo é que isso acontecia num dos berços onde foi implantado o
modelo proposto por Flexner: o Canadá
156
.
Por isso, faz-se necessário precisar essa conferência mundial como uma
culminância, e não, como um início da discussão da Atenção Primária em Saúde. Seus
elementos teóricos poderão ser encontrados nos movimentos contra-hegemônicos ao
modelo de atenção à saúde prestada pelo Estado, os quais já se fortaleciam no Brasil e
em amplas partes do mundo, desde os anos 60, em alguns casos, nos anos 50. Foi nesse
período em que começaram a surgir modelos inovadores para se pensar a atenção à
saúde. Esses modelos, colados na idéia de saúde como um estado de completo bem-
estar físico, mental e social, passavam a nortear a discussão sobre a definição de
políticas para o setor.
Com essa conotação, promover saúde passou a significar promover
condições de vida digna, ou seja, direito à moradia, à educação, ao atendimento integral
em saúde e à participação e intervenção popular. Esses princípios eram divulgados pela
Organização Pan-americana de Saúde, nos anos 50 e início dos anos 60, principalmente,
e serviram de indicativos para a construção dos modelos de Medicina Comunitária e de
Medicina Preventiva no Brasil dos anos 60. Porém, esses princípios só ganharam maior
intensidade quando, na segunda parte dos anos 70, foram resgatados pelo movimento
reformista da saúde.
A idéia da promoção da saúde e da busca da qualidade de vida foi então
colocada como um fim a ser perseguido, mediante a formalização de planos, com a
participação dos mais diversos atores, numa perspectiva de largo espectro, que
articulava quase sempre questões como educação, alimentação, saneamento básico,
prevenção de endemias, assistência materno-infantil, medicamentos e demais questões
típicas do cuidado à saúde. Outro ponto importante dizia respeito ao uso de uma
tecnologia social que incluísse ação comunitária, autodeterminação e auto-
responsabilidade, significando o que depois foi designado de empoderamento social
157
(BUSS, 2001; FERREIRA; BUSS, 2001).
156
A referência, no caso, é o relatório Lalonde, do qual já nos ocupamos num dos capítulos anteriores.
Esse relatório alterava a visão de saúde tradicional, ao articular dimensões como: biologia humana, estilos
de vida, meio ambiente e serviços de saúde. Essa visão trazia para um mesmo plano a discussão e
intervenção sobre os problemas de saúde, vencendo a dicotomia: ações curativas x ações preventivas.
157
Apesar de ser um neologismo, empoderamento é um conceito já largamente empregado na língua
portuguesa para traduzir o termo original do inglês empowerment, que surgiu no contexto das
conferências internacionais de saúde. Designa um processo contínuo de fortalecimento da autoconfiança
dos grupos populacionais desfavorecidos, capacitando-os para a articulação de seus interesses e para a
173
Esse momento da discussão, em nível internacional, da saúde como política
pública, e o seu rebatimento sobre a política nacional de saúde pode ser considerado
como um divisor de águas para o que Levcovitz (1997) denomina de segunda fase da
Reforma Sanitária, caracterizando o seu momento político-ideológico (1980-1986),
correspondente à disseminação das propostas de reforma e aglutinação da coalizão
sócio-política de sustentação da própria reforma.
Favorecido pela correlação de forças no Congresso Nacional, pela eleição
de uma grande bancada de deputados ligados à oposição, o movimento sanitário
pressionou e conseguiu um importante fórum de debate para as suas idéias: o I
Simpósio sobre Política Nacional de Saúde da Câmara dos Deputados, que alargou as
bases de apoio ao movimento de reforma do setor saúde e jogou um importante papel
como subsídio para eventos seguintes, entre eles, os debates referentes à VII
Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1980
158
.
Esse evento foi fundamental para a constituição de uma agenda preliminar
da Reforma Sanitária, onde foram incluídos temas como: integração, unificação,
universalização, descentralização, regionalização, hierarquização e relação público-
privado. Houve todo um esforço da intelectualidade orgânica representada pela
academia, por partidos, inclusive os clandestinos, entidades sindicais e de profissionais
de saúde, além de movimentos populares, para sintetizar e unificar propostas debatidas
inicialmente naqueles segmentos. Foi nesse simpósio que o Centro Brasileiro de
Estudos em Saúde – CEBES - apresentou um documento tido como um marco
fundamental para a Reforma Sanitária, cujo título era A questão democrática na área da
saúde.
Nesse documento, ficou claro o posicionamento do movimento sanitário
quanto à crítica ao sistema de saúde em execução. Essa crítica transcendia o limite
específico do setor e buscava a unificação com outras lutas gerais da sociedade, pois, no
fundo, o que estava sendo contestado, sobretudo, eram a ideologia e os métodos da
ditadura militar e a sua perspectiva de controlar a sociedade, evitando que esta se
participação na comunidade. O que lhes facilita o acesso aos recursos disponíveis é o controle sobre eles,
a fim de que possam exercitar a autodeterminação, a auto-responsabilidade e a participação nos processos
políticos. Nesse sentido, assume importância central a modificação das instituições sociais, econômicas,
jurídicas e políticas, que representam os lugares e as relações de poder.
158
Essa Conferência foi constituída quase que exclusivamente de técnicos da área da saúde – MS e
secretarias estaduais – e teve como temática principal a Política de Extensão de Cobertura dos Serviços de
Saúde. Durante ela, foi feita uma releitura do PIASS e proposta a sua extensão para todo o território
nacional. A proposta ganhou corpo com a configuração formal da proposta do PREV-Saúde, apresentada
no âmbito da discussão da VII Conferência Nacional de Saúde (1980).
174
expressasse livremente sobre as questões que definiam políticas públicas, todas com um
viés empresarial e mercantilista, e, naquele momento, entregues aos círculos
burocráticos que serviam ao poder. O movimento contestava essa atitude e
responsabilizava o regime militar pelas conseqüências nefastas desse controle sobre a
política de saúde,
[...] que substitui a voz da população pela sabedoria dos tecnocratas e pelas
pressões dos diversos setores empresariais; política de saúde que acompanha
em seu traçado as linhas gerais do posicionamento sócio-econômico do
governo – privatizante, empresarial e concentrada em renda, marginalizando
cerca de 70% da população dos benefícios materiais e culturais do
crescimento econômico [...] Política de saúde, enfim, que esquece as
necessidades reais da população e se norteia exclusivamente pelos interesses
da minoria constituída e confirmada pelos donos das empresas médicas e
gestores da indústria da saúde em geral (CENTRO BRASILEIRO DE
ESTUDOS EM SAÚDE, 1980, p. 47).
O posicionamento do movimento sanitário e a sua capacidade de se aliançar
com outros movimentos mais gerais da sociedade foram importantes nesse momento,
pois, de um lado, foi capaz de ir, aos poucos, minando o poder do regime militar e, de
outro, legitimando-se junto à população e aos demais movimentos sociais e populares. E
essa questão da legitimidade era importante, na medida em que, segundo Escorel
(1998), o movimento, inicialmente, não se encontrava articulado com o sujeito social a
quem se destinava, porque esse sujeito estava silenciado pelo regime autoritário.
O movimento sanitário, em sua conformação, falava de uma classe operária
que não aparecia no cenário político nem geral nem setorial. Por ser um
movimento e não um partido, e por falar de uma classe ausente, o discurso
médico-social de transformação continha esse outro ponto de tensão: sem
contar com a participação direta da classe trabalhadora, o discurso e a prática
do movimento sanitário era feito [sic] para ela (em direção a ela) ou por ela
(no lugar dela) [...] Em sua configuração, o movimento sanitário
caracterizou-se por buscar – e ainda busca – seus sujeitos sociais. Mas é um
movimento coletiva e organicamente ligado às classes populares e à proposta
de melhoria de suas condições de saúde (ESCOREL, 1998, p. 182).
A acumulação do movimento sanitário, na visão de Teixeira (1997),
caracterizou-se pela construção de um saber e pela expressão de uma prática que lhe
dava materialidade. Um movimento ideológico e uma prática política que tinham como
base inspiradora a realidade, a vida, o trabalho e a saúde das pessoas. O saber pode ser
representado na transformação de um produto ideológico em conhecimento teórico, a
partir de um determinado trabalho conceitual; o movimento ideológico pode ser
percebido na construção de uma consciência produzida a partir da consciência de si
175
mesmo, e a prática política se expressa através da transformação das relações sociais
produzidas a partir da utilização de instrumentos políticos.
Enfim, o movimento sanitário exprimia a possibilidade de a prática médica
ser traduzida como uma práxis que buscasse o diálogo com o Estado, com os seus pares,
com a realidade social e política do país e com os usuários dos serviços de saúde.
Portanto, com os destinatários diretos e indiretos do seu quefazer.
O fato é que esse movimento foi capaz de aproveitar a confluência entre a
Academia e a práxis dos movimentos sociais e populares, produzir as devidas críticas ao
complexo médico-empresarial e exercitar propostas de descentralização,
municipalização e mudanças na relação entre os profissionais de saúde e a população,
ou seja, mudanças nas práticas de saúde, mudanças nas relações médico-sociais. Desses
exercícios é que brotaram alternativas que se traduziram em novas bases para a
discussão e construção de outro projeto para o setor. Foi particularmente importante
para este momento a recuperação de todo um conjunto de teorias do campo da
sociologia médica que, concomitante aos movimentos sociais, constituía-se nas
academias da Europa, da América do Norte e da América Latina.
A esse respeito, parece importante reproduzir aqui um depoimento do
sanitarista Sérgio Arouca, dado à RADIS
159
, quando perguntado sobre o sentido do
movimento de Reforma Sanitária, os avanços conseguidos por ela e a sua atualidade, ao
que ele respondeu:
O movimento da Reforma Sanitária nasceu dentro da perspectiva da luta
contra a ditadura, da frente democrática, de realizar trabalhos onde existiam
espaços institucionais.
Na área da saúde, existia a idéia clara de que não
poderíamos fazer disso uma esquizofrenia, ser médico e lutar contra a
ditadura. Era preciso integrar essas duas dimensões. (grifo nosso) O espaço
para essa integração era o da Medicina Preventiva, movimento recém-criado
no Brasil, que começou na Escola Paulista de Medicina, em Ribeirão Preto, e
na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A idéia era que o Sistema
de Saúde não precisava mudar em nada, que se poderiam deixar as clínicas
privadas e planos de saúde como estavam e que
bastava mudar a mentalidade
do médico. (grifo nosso) O movimento da Reforma Sanitária cria uma
alternativa, que se abria para uma análise de esquerda marxista da saúde, na
qual se rediscutem o conceito saúde/doença e o processo de trabalho, em vez
de se tratar apenas da relação médico/paciente. Discute-se a determinação
social da doença e se introduz a noção de estrutura de sistema.
Começamos a
fazer projetos de saúde comunitária, como clínica de família e pesquisas
159
Segundo o seu portal na internet, RADIS (Reunião, Análise e Difusão de Informações sobre Saúde) é
um programa nacional de jornalismo em Saúde Pública, ligado à Escola Nacional de Saúde Pública
(ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), órgão do Ministério da Saúde. Criado em 1982 na
ENSP, o Programa RADIS publicou, durante vinte anos, as revistas Súmula, Tema e Dados. De 86 a 93,
publicou também o jornal tablóide Proposta - Jornal da Reforma Sanitária, renomeado, em 1994, como
Jornal do RADIS.
176
comunitárias, e fizemos treinamento do pessoal que fazia política em todo
Brasil. (grifo nosso) No PCB, havia uma dinâmica para o debate sobre saúde.
Quando a Ditadura chegou ao seu esgotamento, o movimento já tinha
propostas.
Não só criou quadros de profissionais, mas também meios de
comunicação, espaço acadêmico consolidado, movimento sindical
estruturado e muitas práticas. (grifo nosso) Assim, esse movimento
conseguiu se articular em um documento chamado Saúde e Democracia, que
foi um grande marco, e enviá-lo para aprovação do Legislativo.
Nós
queríamos conquistar a democracia para então começar a mudar o sistema de
saúde, porque tínhamos muito claro que ditadura e saúde são incompatíveis.
(grifo nosso) Nosso primeiro movimento era, portanto, no sentido de derrubar
a ditadura, e não, de melhorar a saúde. Tudo isso aconteceu antes da
constituinte (AROUCA..., 2002).
As bases definitivas do movimento por um novo sistema de saúde
desaguaram com o fim do regime militar e o advento da Nova República, num evento
histórico e emblemático para o setor, a VIII Conferência Nacional de Saúde
160
, marco
fundamental que detonou o movimento político-institucional da Reforma Sanitária
brasileira, o terceiro momento da reforma, no esquema de análise de Levcovitz (1997).
Foi lá que, pela primeira vez, em várias décadas, pôde-se discutir, em escala nacional,
com as diversas representações da sociedade, a proposta de criação de um novo sistema
de saúde, o SUS. Foi, enfim, chancelado e fortalecido por essa importante conferência
que novas lutas puderam ser travadas no interior dos diversos setores da sociedade e do
Estado brasileiro.
Essas lutas, influenciando o processo constituinte, inscreveram na Carta
Magna as diretrizes mais gerais do Sistema Único de Saúde
161
. O SUS pretendeu, na sua
essência, promover a descentralização, a democratização e a participação popular,
premissas entendidas como básicas para uma nova prática, para uma nova visão do fazer
e do promover saúde.
160
A VIII CNS reuniu cerca de cinco mil pessoas. Dessas, mil e quinhentos eram delegados qualificados,
para discutir e votar a reforma sanitária a ser implantada na Nova República: mudança político-
institucional que colocou o país de volta nos trilhos da democracia. Importantes setores da sociedade
civil, antes marginalizados e excluídos da tomada de decisão sobre as questões relativas à saúde e às
demais políticas públicas, completaram o público que constituiu esse evento. Sindicatos e organizações
populares e comunitárias participaram em massa da VIII CNS, exercendo com a sua voz ou com a voz e o
voto de seus representantes, qualificados como delegados, o direito de afirmar os seus projetos
específicos para a saúde.
161
As diretrizes gerais do SUS estão definidas no Artigo 198 da Constituição Federal e dizem respeito: I)
à descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II) ao atendimento integral, com
prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e, III) à participação da
comunidade (Brasil, 1988, C.F. Art. 198).
177
5.3 A municipalização das ações de saúde: avanços, contradições
A Reforma Sanitária, ao longo dos últimos trinta anos, pretendeu ser um
processo de transformação da norma legal e do aparelho institucional na
regulamentação e responsabilização do Estado, no que tange à proteção e à saúde dos
cidadãos. A expressão material dessa regulamentação se concretizou na adoção do
direito universal à saúde e na criação de um sistema único de serviços, sob a égide do
Estado. A esse movimento, correspondeu o deslocamento do poder político em direção
às camadas populares, via processo de desconcentração financeira e descentralização
política da gestão, da atenção e do controle social do sistema, processo que pode ser
sintetizado no que ficou conhecido como municipalização da saúde.
O SUS, na teoria, apresenta-se como um sistema centrado no município,
território real onde as coisas efetivamente acontecem. Mas, ao mesmo tempo, incentiva
a solidariedade e o compartilhamento da sua gestão com as demais esferas de governo.
Por isso a sua construção caminhou para a municipalização, resultado de um processo
político que permitiu a gradual descentralização da política de saúde. Essa
descentralização definiu o papel das três esferas de governo na gestão do SUS, um
avanço que deve ser creditado à consolidação do processo democrático e à confirmação
de princípios republicanos de base federativa, em última instância, sustentadora do
Estado brasileiro.
Mesmo sendo, nas atuais condições, quase que irreversível, a
municipalização não tem sido um processo tranqüilo e linear. A transferência
progressiva de responsabilidades, atribuições e recursos do nível federal para estados e
municípios tem se dado à custa de mecanismos de negociação e relacionamento entre
gestores, na maioria das vezes, dificultosos. As dificuldades parecem residir no
funcionamento do modelo federativo trino. Em cada esfera, existe autonomia de poder,
ainda que relativa, competências concorrentes e mecanismos de cooperação,
coordenação e regulamentação, frágeis. Em decorrência dessas dificuldades, há
conflitos acentuados e competitividade nas relações entre os gestores nos diversos
níveis: federal-estadual, federal-municipal, estadual-estadual, estadual-municipal e
municipal-municipal.
Vários elementos, entre eles, a desigualdade social e econômica e a
heterogeneidade territorial, plasma uma tendência à fragmentação do sistema de saúde.
178
Um dado importante é que mais de dois terços dos municípios brasileiros têm menos de
20.000 habitantes. Isso confere dificuldades técnicas e tecnológicas para que cumpram a
sua responsabilidade sanitária frente à população, principalmente no que tange à
integralidade da atenção. Por conta do perfil sócio-econômico, tornam-se dependentes
das transferências federais, via Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e dos
mecanismos de pactuação entre esferas governamentais (Bipartites e Tripartites),
criadas e fortalecidas no SUS.
Percebe-se que há uma relação paradoxal entre as unidades federadas. A
autonomia federativa coexiste com práticas político-administrativas centralizadoras.
Isso enfraquece os pactos de gestão que, muitas vezes, transformam-se em meros
instrumentos burocráticos, ao invés de assumirem o seu valor jurídico-legal. Um
agravante dessa realidade de enfraquecimento é o de que esses pactos, mesmo se
realizando entre os gestores do sistema, são pouco permeáveis ao controle social, o que
faculta a desresponsabilização com o cumprimento das metas pactuadas, que findam
tendo um caráter apenas formal.
Entretanto, pode-se dizer que, com o processo de municipalização e a
conseqüente desconcentração e expansão da oferta de serviços, o sistema público de
saúde fortaleceu a sua capacidade de gestão e organização. Nesse particular, foi
favorecido por movimentos pela adequação da oferta às necessidades da população.
Essa adequação teve como fim a hierarquização e regionalização dos serviços e
provocou uma expansão efetiva desses serviços para áreas até então desassistidas.
Assim, a rede de serviços básicos de saúde, capitaneada pela Estratégia de Saúde da
Família, desempenhou um papel fundamental.
A expansão da rede de serviços básicos propiciou o aumento da necessidade
de serviços especializados e o incremento tecnológico conseqüente, gerando gargalos e
fragilidades assistenciais. Mas também propiciou o aumento da capacidade assistencial
e gestora e a adoção de experiências inovadoras de gestão e organização da rede em
diversos estados e municípios
162
. Porém não se pode deixar de ressaltar a
heterogeneidade estrutural reinante entre os diversos entes federados, o que termina
influindo nessa capacidade gestora, fazendo persistirem distorções, superposições e
162
Os consórcios de saúde são um dos exemplos de experiência inovadora. Várias modalidades de
consórcios intermunicipais, e até mesmo interestaduais, surgiram em vários estados e regiões da
federação. Eles tentam responder às demandas assistenciais e de gestão do sistema. A importância dessas
iniciativas foi um impulso para que o governo fizesse aprovar no Congresso Nacional uma lei
regulamentando os consórcios de saúde. (Ver Lei N.º 11.107 de 06/04/2005).
179
excessos de oferta de algumas ações, insuficiência de outras e uma baixa integração
entre os serviços, coisas que guardam relação com a filosofia e com a memória da
atenção médico-previdenciária do sistema anterior.
Analisando-se a municipalização por outro prisma, o da sua força de
trabalho, é possível afirmar que houve investimentos na constituição de quadros
técnicos municipais, tanto na gestão quanto na assistência. Há uma distribuição mais
eqüitativa de profissionais de saúde em todo o país e tem-se um aumento concreto da
capacidade técnica, acompanhando a evolução da atenção e da gestão. Do ponto de vista
da formação e capacitação dessa força de trabalho, frente às necessidades e definições
relativas ao modelo de atenção e de gestão, vem se dando uma evolução. Isso se deveu a
iniciativas governamentais, num primeiro momento, durante os governos FHC, que
incrementaram a relação do MS com as SES e as Universidades, financiando, no
interior destas últimas, iniciativas como a do GERUS/UBS – Projeto de
Desenvolvimento Gerencial de Unidades Básicas de Saúde, uma cooperação técnica
entre o MS e a OPAS voltada para a formação de gestores locais de saúde, objetivando
torná-los capazes de compreender o novo momento institucional da política de saúde
para produzir nela os necessários ajustes.
Os Pólos de Capacitação, Formação e Educação Permanente em Saúde da
Família constituíram-se outra iniciativa porque trouxeram a alternativa da formação em
serviço. Através deles, foram montados e executados Cursos Introdutórios ao PSF,
Módulos Clínicos, capacitações em Sistemas de Informação em Saúde (SIS), Vigilância
em Saúde e capacitações pedagógicas. Os pólos ainda passaram a operar na área da pós-
graduação latu sensu, assegurando especializações em Saúde da Família e em
Planejamento e Gestão de Sistemas de Saúde, além de Residências em Saúde da
Família. Além disso, produziram pesquisas e montaram avaliações da Atenção à Saúde.
A partir de 2003, com o governo Lula, as iniciativas relativas à formação e
capacitação de pessoal para o SUS foram reorientadas do ponto de vista filosófico,
teórico metodológico e técnico. O MS passou a contar com uma secretaria específica
para tratar da questão: a SGETS
163
– Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na
163
A SGETS/MS é composta por dois departamentos: o Departamento de Gestão e da Regulação do
Trabalho em Saúde - DEGERTS - e o Departamento de Gestão da Educação na Saúde – DEGES. O
DEGERTS é responsável pela proposição de incentivo, acompanhamento e elaboração de políticas de
gestão e planejamento e regulação do trabalho em saúde, em todo o território nacional. Cabe-lhe a
negociação do trabalho em saúde junto aos segmentos do governo e dos trabalhadores, no que se refere à
gestão, à regulação e à regulamentação do trabalho. Objetiva estruturar a política de gestão do trabalho
nas esferas federal, estadual e municipal. Envolve os setores público e privado do SUS e contribui para a
180
Saúde. Essa decisão proporcionou maior investimento, diversificação e abrangência das
ações e ainda potencializou a articulação interna e externa ao sistema e ao próprio
Ministério. Porém, por mais que se tenha avançado na formação e na capacitação da
força de trabalho do SUS, esta ainda constitui um problema dos mais críticos. Há,
também, dificuldades na constituição de equipes técnicas das secretarias de saúde,
situação agravada pela dificuldade de contratação de profissionais, numa conjuntura em
que a pressão para a redução de gastos com pessoal já se tornou uma constante.
Tendo ainda em perspectiva a municipalização das ações de saúde, uma
questão importante precisa ser trazida para o debate: a participação do controle social,
via conselhos de saúde ou mesmo de movimentos comunitários mais localizados. Essa
participação é chave tanto no momento da formulação política quanto do
acompanhamento da execução e apreciação dos resultados da atenção e da gestão da
política. A instituição dos conselhos de saúde representou um dos avanços fundamentais
na política de saúde que instituiu o SUS. No entanto, a realidade demonstra que, mesmo
estando criados em praticamente todos os municípios brasileiros, o seu modus operandi
tem assumido um caráter meramente cartorial, visto que, em muitos casos, esses
conselhos ou não cumprem o seu papel ou estão hegemonizados pelo poder executivo
municipal.
A burocratização e a manipulação têm dominado as práticas de controle
social, especialmente, no nível local
164
. Os conselhos deixam de ser conseqüência da
atuação de movimentos comunitários genuínos para, cooptados, descolarem-se das suas
bases. Há uma verdadeira crise de representação. São legais, mas nem sempre têm a
necessária legitimidade junto aos seus representados. Com isso, entra em crise o
potencial deliberativo e fiscalizador – idéia que presidiu a sua criação e regulamentação
em lei – dos 50% de usuários que entram na composição dos conselhos.
Mas, todos esses problemas do processo de municipalização, longe de
significar retrocessos da política de saúde, revelam apenas as contradições da
melhoria e humanização do atendimento de seus usuários. O DEGES é responsável pela proposição e
formulação das políticas relativas à formação, ao desenvolvimento profissional e à educação permanente
dos trabalhadores da saúde nos níveis técnico e superior. Suas atividades englobam a capacitação de
profissionais da área da saúde e a busca da integração dos setores da saúde e da educação para o
fortalecimento das instituições formadoras, no interesse do SUS, e para a adequação da formação
profissional às necessidades da saúde.
164
A realidade tem mostrado que, nos pequenos municípios, maioria em todos os estados brasileiros, há
grande dificuldade de se obterem conselhos de saúde que se imponham diante do poder executivo
municipal. A educação política, os índices de instrução e informação, as práticas autoritárias arraigadas e
a tradição conservadora são o maior entrave para que perdure essa situação.
181
implementação de qualquer processo político. Nesse sentido, pode-se dizer que o direito
à saúde, rezado na Constituição Federal como algo a ser garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, e o
acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e
recuperação, de alguma forma, foi assimilado e encontra-se introjetado no inconsciente
popular. Assim, o conceito ampliado de saúde, reconhecido como um direito subsumido
no conjunto dos direitos constitucionais que definem as condições e a qualidade de uma
vida saudável, continua atual e reverberante.
Associados a esse conceito, evoluem os princípios da integralidade e da
eqüidade na sua organização, e da participação popular na discussão dos rumos da
operação de ações e serviços. A busca da concretização desses princípios, ao longo da
última década, tem servido de terreno fértil para iniciativas que, mesmo longe de
significar uma adoção plena do modelo constitucional, trazem para a arena das
discussões a reflexão sobre as práticas em saúde orientadas pelo SUS, com relevo para a
prática médica na atenção básica executada pela Estratégia Saúde da Família. Há a
indicação de que se vive um processo de transição para um modelo que, para além da
assistência pura e simples, poderá chegar num novo patamar: o da atenção e do cuidado
com as pessoas
165
.
Considerando-se essa evolução, cabe perguntar: Para onde aponta a prática
médica na Estratégia Saúde da Família? Que elementos passam a ser nela incorporados,
na perspectiva de transformá-la numa práxis médica?
165
É justo ressaltar o papel importante de várias iniciativas acadêmicas e não acadêmicas que vêm
sustentando uma discussão interessada na mudança da formação dos profissionais de saúde e na
consolidação de um sistema de saúde integral, eqüitativo e eficaz, com forte participação social. E nesse
aspecto não se pode deixar de citar o trabalho desenvolvido pela REDE UNIDA. No caso, aqui se faz
referência a um texto que trata das mudanças curriculares necessárias aos cursos de graduação da área da
saúde. REDE UNIDA – Contribuição para as novas diretrizes curriculares dos cursos de graduação da
área da saúde. OLHO MÁGICO . Ano 5. Número especial, novembro de 1999. Já do ponto de vista
oficial, deve ser ressaltado o trabalho do Ministério da Saúde, através da SGETS e de toda a rede de
relações que são tecidas com o MEC, as Universidades e as escolas e estruturas que tratam da formação,
capacitação e educação permanente em saúde. Desde 2004, vêm sendo colocadas em prática ações que
visam à reorientação dos cursos da área da saúde. Disso resultou, no final de 2005, a emissão de três
portarias interministeriais, envolvendo o MS e o MEC (as 2.011/2005; 2.017/2005 e 2.018/2005) e que,
respectivamente, instituíram o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde –
PRÓ-SAÚDE – para os cursos de graduação em Medicina, Enfermagem e Odontologia; a Residência
Multiprofissional em Saúde, no âmbito dos Ministérios da Saúde e da Educação; e uma parceria entre os
dois ministérios, para cooperação técnica na formação e no desenvolvimento de recursos humanos na área
da saúde.
182
6 A ATENÇÃO BÁSICA E A SAÚDE DA FAMÍLIA: UM ESBOÇO DA
PRÁTICA À PRÁXIS MÉDICA
Apresentados os antecedentes teórico-metodológicos e histórico-políticos
que dão conta da evolução do conceito de processo saúde-doença, da medicina e da
prática médica, bem como do desenrolar das políticas de saúde do contexto brasileiro do
último século, segue a questão central deste trabalho: a possibilidade de a prática
médica ser elevada à categoria de práxis, no âmbito da Estratégia Saúde da Família.
Tratar dessa questão significa considerar um conjunto de mudanças que
vieram ocorrendo, dentro e fora do Brasil, desde a década de 70, impulsionadas pela
evolução das discussões e teorias sobre organização de sistemas de saúde, comandadas
pela Organização Mundial de Saúde. Aqui a atuação exitosa do movimento de Reforma
Sanitária foi o fator mais importante para a abertura de perspectivas de mudanças no
sistema de saúde. O fato é que se constatava que o modelo tradicional de medicina não
mais se justificava por não ser capaz de fazer frente aos reais problemas de saúde da
população.
Um impulso importante em direção a um novo modelo de atenção deu-se
com a divulgação feita pela OMS de relatórios dando conta do que se observara em
missões realizadas junto à China. Aquele país vinha desenvolvendo, desde 1965, um
conjunto de processos relativos ao cuidado com a saúde que, em muito, extrapolavam a
tradicional abordagem acerca da saúde. Isso reforçava a idéia de que outras práticas em
saúde eram possíveis e podiam ser mais amplas e totalizadoras
166
.
As idéias colhidas da realidade chinesa formaram parte de uma base na qual
os países que compunham a Organização Mundial de Saúde puderam discutir e aprovar
a Declaração de Alma-Ata, cujo tema central: Saúde para todos no ano 2000 instituiu
166
As atividades em questão eram desenvolvidas pelos Comitês Comunais, que envolviam, num clima de
autoconfiança, os mais distintos segmentos da população: jubilados, soldados, jovens escolarizados e
pessoas da comunidade. Esses Comitês abrangem, ainda, ativistas da saúde, associações de mulheres e
demais movimentos, todos sob a coordenação dos barefoot doctors, os médicos de pés descalços. A
abordagem chinesa comportava: a) organização da comunidade; b) atenção aos anciãos, mais além do
Estado; c) promoção do desenvolvimento de indústrias caseiras; d) ajuda às escolas e serviços em geral;
e) organização do povo para cuidar da saúde ambiental; f) realização de cuidados preventivos e
tratamentos, incluindo o uso de ervas medicinais; g) apoio à manutenção da ordem social no tráfego,
policiamento e nos incêndios; h) promoção de campanhas em todos os níveis, a fim de substituir velhos
costumes e mobilizar a comunidade para: movimentos de massa contra as quatro pestes, limpeza das
casas, quintais e ruas, orientação de hábitos higiênicos, manutenção e uso da água potável, construção de
unidades rurais de saúde, preparação de insumos simples (utensílios, pílulas, poções) e controle da
limpeza de locais públicos (FERREIRA; BUSS, 2001, p. 255-56).
183
um novo paradigma - o da Atenção Primária em Saúde. O documento final da
conferência oferece os elementos fundamentais desse novo paradigma de atenção, a
saber:
I – A conquista do mais alto grau de saúde exige intervenção de muitos
outros setores sociais e econômicos além do setor saúde; [...]
III – A promoção e proteção da saúde da população são indispensáveis para o
desenvolvimento econômico e social sustentado e contribui para melhorar a
qualidade de vida e alcançar a paz mundial;
IV – A população tem o direito e o dever de participar individual e
coletivamente na planificação e na aplicação das ações de saúde; [...]
VII.1 – A atenção primária de saúde é, ao mesmo tempo, um reflexo e uma
conseqüência das condições econômicas e das características socioculturais e
políticas do país e de suas comunidades; [...]
VII.3 – Compreende, pelo menos, as seguintes áreas: educação sobre os
principais problemas de saúde e sobre os métodos de prevenção e de luta
correspondentes; a promoção do aportamento de alimentos e de uma nutrição
apropriada; um abastecimento adequado de água potável e saneamento
básico; assistência materno-infantil, com inclusão da planificação familiar; a
imunização contra as principais enfermidades infecciosas; a prevenção e luta
contra enfermidades endêmicas locais; o tratamento apropriado das
enfermidades e traumatismos comuns; e a disponibilidade de medicamentos
essenciais;
VII.4 – Inclui a participação, ademais do setor saúde, de todos os setores e
campos de atividade conexos do desenvolvimento nacional e comunitário, em
particular o agropecuário, a alimentação, a indústria, a educação, a habitação,
as obras públicas, as comunicações e outras, exigindo os esforços
coordenados de todos estes setores;
VII.5 – Exige e fomenta, em grau máximo, a auto-responsabilidade e a
participação da comunidade e do indivíduo na planificação, organização,
funcionamento e controle da atenção primária de saúde (FERREIRA; BUSS,
2001, p. 257).
Os consensos produzidos pelos países-membros da Organização Mundial de
Saúde em Alma-Ata e nas demais conferências internacionais
167
que se sucederam –
mesmo sendo eles majoritariamente capitalistas – apontaram para um novo modelo de
atenção que se constituísse como alternativa para o paradigma dominante. Vislumbrava-
se a possibilidade de mudar a face das políticas setoriais em saúde, transformando o
exercício da medicina e da prática médica, a partir da Atenção Primária em Saúde.
É preciso, no entanto, convir que as declarações dessas conferências, apesar
de assinadas por todos, sustentavam uma filosofia de atenção que contrastava com as
práticas de saúde em vigor. Não faziam parte da cultura, do universo científico, político
e econômico dos países capitalistas e da sua perspectiva de atenção à saúde que, no
mundo ocidental, não era trabalhada como uma conquista social e econômica da
humanidade. Era exercitada na sua dimensão individual e concebida como o oposto de
167
À Conferência de Alma-Ata, sucederam-se várias outras nas últimas duas décadas – Ottawa (1986);
Adelaide (1988); Sundsvall (1991); Jakarta (1997) e México (1999), que tiveram abrangência
intercontinental; e Bogotá (1992); Port of Spain (1993), subcontinental.
184
doença. A atenção, vista como assistência pura e simples, não estava voltada para a
promoção da saúde, mas, para o enfrentamento da doença.
Mesmo assim, os grandes fóruns internacionais seguiram trabalhando
parametrados por Alma-Ata e mobilizando temas como: capacitação da comunidade
para melhoria da qualidade de vida; participação decisória; políticas saudáveis;
abordagem intersetorial; ambientes favoráveis e habilidades pessoais. A reconversão
dos sistemas de saúde, com ênfase na eqüidade, na atenção sobre os determinantes do
processo saúde-doença e na expansão da promoção e da prevenção, como alternativas
para a diminuição da necessidade de tratamento e reabilitação, foram também temas
recorrentes, assim como a questão da sustentabilidade social com base em macro-
funções sociais de trabalho e renda, infra-estrutura, desenvolvimento social, saúde e
nutrição (FERREIRA; BUSS, 2001).
Todos esses aportes, desenvolvidos nas últimas décadas e colocados em
prática em muitas realidades do país, suscitaram mudanças qualitativas na organização
dos serviços, nas práticas profissionais em saúde, na gestão dos serviços de saúde e dos
sistemas municipais e nos indicadores de saúde. Porém, não se pode afirmar que o
impacto deles seja sentido ou medido, a ponto de ser possível dizer que houve
transformação da realidade. Mudanças ocorreram, mas não com a densidade e
generalização necessárias. Para que isso acontecesse, uma série de outras mudanças
estruturais seria necessária. Uma delas seria o impacto na educação das massas; outra,
na educação dos profissionais de saúde, em especial, dos médicos que, socialmente,
desde muito tempo, ocuparam, devido à sua prática e legitimidade conseguida, uma
posição central no setor e na sociedade.
6.1 A organização da Atenção Básica no Brasil: caminhos para a práxis médica
Enquanto se desenvolviam as discussões acerca da Atenção Primária de
Saúde, o Brasil, mesmo enfrentando todo um quadro de conflitos ideológicos internos,
crises e contradições na trajetória política geral e setorial, por conta do regime militar e
do processo de redemocratização, seguiu a trilha das discussões internacionais
168
. Tanto
168
Enquanto esteve sob o regime militar, o Brasil participava, formalmente, dos eventos internacionais,
mesmo que, na volta, esvaziasse todo o conteúdo político das discussões e realçasse apenas os seus
185
que o país pôde comemorar, especialmente nas duas últimas décadas, avanços na sua
política de saúde. Esses avanços estão representados na construção e consolidação de
um grande movimento social, que conseguiu aglutinar força e poder capazes de instituir
o Sistema Único de Saúde. Fundado em quatro princípios doutrinários: universalidade,
integralidade, eqüidade e participação popular, além de três premissas básicas: saúde
como direito; reorganização do modelo assistencial e financiamento público solidário, o
SUS vem se consolidando como a política pública de saúde brasileira.
Porém, apesar de todos os avanços teóricos e práticos desse período, a
organização da Atenção Básica no país foi lenta e caracterizou-se como um processo
assimétrico, mesmo que tenha tendido à multiplicação e à generalização que, motivadas
por experiências, saberes e práticas que se desenvolveram em determinados lugares do
país
169
, produziram diagnósticos e formularamões que reinventaram as práticas de
atenção à saúde.
As experiências vividas pelos programas de saúde comunitária e de
medicina preventiva, ligados a algumas escolas de medicina, o fortalecimento das
estruturas estaduais, com o processo de desconcentração de recursos, e o retorno
paulatino à democracia, ensejaram para que essas experiências, aos poucos, pudessem
ser, de alguma forma, absorvidas pelas estruturas estaduais e municipais. Assim,
fortaleceu-se um jeito novo de se organizarem serviços e ações de saúde, com
rebatimentos positivos para a própria prática médica.
Do ponto de vista sistêmico, o fator fundamental talvez tenha sido mesmo o
grande ascenso dos movimentos sociais, aliado ao compromisso de setores profissionais
e acadêmicos. A pressão de ambos (profissionais/acadêmicos e movimentos sociais)
pela construção do Sistema Único de Saúde funcionou, na lei
170
e na prática, avançando
na descentralização e na redefinição dos papéis dos estados e municípios na organização
e execução das políticas de saúde.
aspectos técnicos, numa manobra ideológica reducionista. O papel de politização dessas discussões ficava
sempre a cargo de parte da academia e dos movimentos profissionais e populares. Estes participavam ou
contavam com pessoas ligadas a organizações de esquerda, partidárias ou não, que, mesmo vivendo na
clandestinidade, desempenhavam esse papel tanto antes como depois quando, com a distensão política, os
movimentos passaram a ser “tolerados”.
169
Muitas experiências interessantes se desenvolveram em inúmeros municípios por todo o país. Ficaram
conhecidas aquelas que tiveram o apoio incisivo ora das Secretarias Estaduais de Saúde, ora das
Universidades e seus programas de treinamento. Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Rio de
Janeiro, Santa Catarina, Paraná, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte são exemplos de estados que
ficaram conhecidos por terem municípios com experiências pioneiras na organização da atenção básica.
170
Do ponto de vista legal, o Título VIII – Da Ordem Social – Seção II – Da Saúde, da Constituição
Federal, e as Leis Orgânicas da Saúde (8.080/90 e 8.142/90), aprovadas pelo Congresso Nacional, bem
como a legislação infra-ordinária, deram as bases formais para o funcionamento do sistema.
186
Um exemplo dessa transformação foi a criação, pelo Ministério da Saúde,
do Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS), em 1991, a partir da absorção de
um conjunto de experiências que se expressavam em vários recantos do país
171
. O PACS
foi a primeiro esboço oficial de um programa de atenção básica no país. Desenvolvia
suas atividades por meio de visitas domiciliares e reuniões educativas, supervisionadas
por um profissional enfermeiro (instrutor/supervisor).
Uma das diretrizes operacionais do Programa era o estímulo à participação
social. O ACS era considerado o principal elo entre os serviços de saúde e a
comunidade. Residia na área onde trabalhava. Era, portanto, um membro da
comunidade e envolvido com ela. Em cada equipe, havia até 30 agentes comunitários
sob a coordenação do profissional enfermeiro, que organizava o trabalho desses
profissionais a partir de uma UBS e dos problemas da comunidade. A referência era a
UBS, mas o trabalho se dava, majoritariamente, nos domicílios e nos equipamentos
sociais que formavam a comunidade e onde se encontravam as famílias ou os seus
membros.
Assumindo essa configuração, o PACS teve um papel importante na atenção
materno-infantil, notadamente no que se refere ao enfrentamento dos graves índices de
morbi-mortalidade materna e infantil na Região Nordeste. Já na Região Norte, foi de
grande valia no combate à epidemia do Cólera. Os resultados positivos dessas
experiências iniciais foram fundamentais para a sua generalização por um conjunto
expressivo de estados de outras regiões, provocando um avanço importante na atenção
básica.
Paralelamente, outro modelo de atenção também vinha se gestando, fruto de
administrações democráticas em vários municípios. Essas experiências incorporavam
profissionais de nível superior e centravam a sua atenção no aspecto assistencial, sem,
no entanto, descuidar-se do aspecto educativo, tanto dos profissionais quanto da
população assistida. Não eram homogêneas, mas tinham uma característica básica:
voltavam-se para a comunidade e, mais especificamente, para a família. Essa
característica chamou a atenção de um grupo em situação estratégica no Ministério da
Saúde, naquele momento, e deu o ponto de partida para a instituição do Programa de
Saúde da Família, a partir de 1994.
171
Entre as experiências consideradas pelo Ministério da Saúde, a mais expressiva e consolidada e,
portanto, que mais concorreu para o desenho do programa oficial, foi a do estado do Ceará, iniciada ainda
na década de 80 com o apoio do UNICEF.
187
Silva (2003) relata as primeiras reuniões acontecidas no Ministério da
Saúde, no final de 1993, envolvendo secretarias estaduais e municipais e órgãos como a
OPAS e a UNICEF, no sentido de se tentar assimilar experiências vividas em Niterói e
Porto Alegre
172
que, àquela altura, já haviam implantado programas de atenção básica
centrados nas dimensões comunidade e família.
[do] produto final dessas reuniões, emergiu a proposta do Programa de Saúde
da Família, calcada nos princípios de territorialização, vinculação com a
população, garantia de integralidade na atenção, trabalho em equipe com
enfoque interdisciplinar, ênfase na promoção da saúde com fortalecimento
das ações intersetoriais e de estímulo à participação da comunidade. [...] o
PSF seria a porta de entrada do sistema local de saúde com a função de
desenvolver ações básicas no primeiro nível de atenção de forma integral,
resolutiva e de boa qualidade, buscando, além de extensão de cobertura e
ampliação do acesso, numa lógica de substituição das práticas tradicionais,
provocar uma reestruturação do sistema como um todo (SILVA, 2003, p. 12-
13).
O Programa de Saúde da Família (PSF) era, portanto, a primeira proposta
mais abrangente de atenção básica e vinha preencher um vazio assistencial que, na
prática, até então, o SUS não preenchera. É preciso, entretanto, admitir que não se
organizou, ainda, uma rede de serviços ambulatoriais e mesmo hospitalares suficiente
para a assistência materno-infantil, de adultos, em geral, e dos trabalhadores, em
particular, compatível com as necessidades de saúde. Porém, em parte, vai-se vencendo
a negligência em relação à prevenção contra as endemias, à imunização contra as
enfermidades infecto-contagiosas e ao provisionamento de medicamentos para os
adoecimentos mais freqüentes da maioria da população. Ainda se está longe do que
pode ser considerado ideal, mas há uma alternativa em processo de que, antes, a atenção
era caótica ou mesmo inexistente.
A atenção básica do PSF, ao dar ênfase à promoção da saúde e ao
fortalecimento das ações intersetoriais e de estímulo à participação da comunidade,
começa por vencer a inércia e partir para uma ação que antes sequer era defendida ou
172
Considerando-se Silva e Souza (2001), a experiência de Niterói (RJ) era inspirada no modelo cubano
do Médico de Família, cuja característica era a centralização do serviço na figura do médico. As equipes,
compostas por médico, auxiliares de enfermagem e supervisores clínicos, por áreas - clínica médica,
pediatria, ginecologia/obstetrícia, cirurgia geral, saúde mental, epidemiologia, enfermagem e serviço
social - compunham uma estrutura paralela à rede municipal. Cada equipe se responsabilizava por
duzentos e cinqüenta famílias e trabalhava em horário integral. A experiência gaúcha, situada no
município de Porto Alegre, vinha do Grupo Hospitalar Conceição e se configurava como um serviço
dentro dos moldes da Medicina Geral Comunitária. Tinha uma perspectiva assistencial, mas também um,
programa de educação continuada para profissionais de saúde da área de medicina geral, medicina
interna, psicologia, serviço social, odontologia, técnico de higiene dental e agente comunitário de saúde; e
era organizado para o treinamento e desenvolvimento de práticas clínicas ambulatoriais, hospitalares e
domiciliares. No programa, existia uma área geográfica delimitada, porém não havia número de famílias
por equipe ou obrigatoriedade de moradia no bairro para os trabalhadores do projeto.
188
divulgada. A saúde não era considerada pelos formuladores de políticas e,
principalmente, pela prática médica como algo que representasse um direito e uma
responsabilidade individual e coletiva com a qualidade de vida de todos e do próprio
país. Não havia um pensamento e, principalmente, ações que combinassem a abordagem
clínica com uma percepção de que a atenção à saúde guarda relação de conseqüência,
ou é reflexo das condições sociais e econômicas em que vive uma população.
Considere-se, porém, que, no início da década de noventa, os sistemas de
serviços de saúde passavam por uma crise, em escala mundial, manifestada em quatro
dimensões principais: iniqüidade, ineficiência, ineficácia e insatisfação dos cidadãos.
Havia, ainda, divergência sobre como explicar ou o que fazer para superar esse
momento difícil. Assim, a perspectiva de se buscarem novas opções para a atenção à
saúde, que pudessem ser generalizadas, produzindo uma reorientação do modelo
assistencial e, portanto, das práticas profissionais, era necessário. E uma proposta com
as características da do PSF que surgia, trazia alento e esperança na medida em que
prometia preencher o vazio assistencial dos primeiros anos pós a criação do SUS
(MENDES, 1996). Todavia, se a proposta era correta e necessária, revelava-se também
heterodoxa, se olhada do ponto de vista da configuração do Estado e do governo
brasileiro, devido à contradição do momento político e econômico mundial, com
reflexos cruéis para o povo brasileiro. Pode-se dizer que havia uma série de outras
motivações que estavam no cerne da ação governamental, que não apenas as meramente
assistenciais buscadas pela extensão de cobertura serviços de saúde e de acesso da
população a esses serviços.
Como se vivia o período pós impedimento do presidente Collor, promessas
eram renovadas, e as expectativas por políticas mais abrangentes que, de alguma forma,
fossem descoladas da política de Estado mínimo, decorrente do receituário do Consenso
de Washington
173
, colocado em prática no país sob o governo Collor, eram esperadas
174
.
173
O economista John Williamson, do International Institute for Economy, foi o responsável pela criação
da expressão "Consenso de Washington", em 1990, originalmente, para significar: "o mínimo
denominador comum de recomendações de políticas econômicas que estavam sendo cogitadas pelas
instituições financeiras baseadas em Washington e que deveriam ser aplicadas nos países da América
Latina, tais como eram suas economias em 1989." (tradução livre do texto original em inglês a partir do
site http://www.cid.havard.edu/cidtrade/issues/wsahington.html). Porém, o termo extrapolou o sentido
dado por seu criador e passou a representar um conjunto de medidas - dez regras básicas - para justificar
políticas neoliberais, com as quais nem mesmo Williamson concorda: "Claro que eu nunca tive a
intenção que meu termo fosse usado para justificar liberalizações de contas de capital externo [...)
monetarismo, supply side economics, ou minarquia (que tira do Estado a função de prover bem-estar e
distribuição de renda), que entendo serem a quintessência do pensamento neoliberal". (idem). A
popularização dessas políticas econômicas criadas (ou "ressuscitadas") em 1990 foi muito facilitada pelo
189
Mas o presidente Itamar Franco não conseguiu se desvencilhar do fato concreto de ser
um governo de continuidade e, portanto, zelador dos compromissos já assumidos com o
capitalismo internacional, no seu e em governos anteriores.
Havia, é verdade, toda uma discussão sobre a questão da pobreza, da
desigualdade e da exclusão social, principalmente porque o IPEA acabara de publicar
mais uma atualização do Mapa da Fome no Brasil
175
, onde era destacado que o país
possuía, naquele momento, algo como trinta e dois milhões de pessoas sem renda
suficiente para prover o seu sustento em termos mesmo de alimentação. Essas pessoas,
antes de qualquer coisa, precisavam de atenção, cuidado e políticas sociais que
estivessem focadas na redenção desse quadro desalentador.
Contraditoriamente, no entanto, o que imperava era uma política de ajuste
econômico com contenção dos gastos públicos ditada pelos controles dos organismos
internacionais capitaneados pelo FMI. Isso pesava sobre o orçamento de políticas
públicas como a de saúde, contrariando a construção política do SUS e dos seus
princípios, especialmente no que tange à universalidade e à equidade. Mas pesava,
principalmente, como um dificultador da implantação do novo processo de atenção e
sua generalização como política de governo.
Mesmo nessa conjuntura, o Ministério da Saúde explicitava, no primeiro
documento do PSF
176
, que desejava contribuir para a organização do Sistema Local de
Saúde. O PSF era assim apresentado como “parte de uma estratégia desenvolvida para
promover mudanças no atual modelo de assistência à saúde do país, que dá mais
atenção à cura do que à prevenção das doenças” (BRASIL, 1994, p. 5).
E nesse diapasão, foi absorvido, no curto período de Itamar Franco e nos
primeiros dois anos do primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso,
entusiasmo que gerou a queda do muro de Berlim. No que foi ajudada pela decadência do socialismo
soviético, numa época de Glasnost e Perestroika, em que os países que seguiam o planejamento central
passaram por reformas (PEREIRA, 2006, p. 47). As dez regras do receituário neoliberal do Consenso de
Washington são: disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; reforma tributária; juros de mercado;
câmbio de mercado; abertura comercial; investimento estrangeiro direto com eliminação de restrições;
privatização das estatais; desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas) e direito à
propriedade.
174
Goulart (2002) dá conta de que, no período de governo do presidente Collor, foi operada uma redução
do gasto médio com saúde até um patamar mínimo de US$ 40 per capita (em 1992) contra um gasto de
US$ 80 em 1987.
175
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mantém uma tradição de estudar questões como
exclusão social, desigualdade, fome e pobreza. No caso específico, a referencia é: PELIANO, A. M. T.
M. (coord.) – O Mapa da fome: indicadores sobre a indigência no Brasil (classificação absoluta e
relativa por municípios). Documento de política, 17. Brasília: IPEA, 1993.
176
Esse documento foi divulgado formalmente em setembro de 1994, com o intuito de orientar os
municípios que pretendiam implantá-lo. Denomina-se Programa de Saúde da Família: saúde dentro de
casa.
190
com uma formulação teórica que apontava para uma estratégia, mas com uma atitude de
definição que o confinava a um programa
177
, dadas as restrições financeiras que a ele
eram impostas, as quais denunciavam a falta de um objetivo político-estratégico com a
definição concreta da atenção básica como política de governo. A política,
principalmente a econômica, viabilizadora, em grande parte, de um projeto nacional,
estava carimbada com a tinta dos compromissos internacionais assumidos e com o signo
do descompromisso com as mudanças que precisavam ser operadas na atenção à saúde e
na prática médica.
A despeito da utilização do PACS/PSF, como programa vertical implantado
mediante um convênio governo federal/governo municipal, o que plasmava um bypass
da instância estadual, Silva (2003) reconhece que, no início, havia a consciência de
dificuldades para a implantação do programa, entre elas: insuficiência de recursos
humanos com perfil adequado para o modelo proposto; resistência, nos diversos níveis
de gestão do SUS, à proposta de mudança do modelo assistencial voltado para a atenção
primária em saúde; indecisão da Secretaria de Assistência à Saúde – SAS/MS, em
relação à revisão financeira dos procedimentos relativos ao PACS e ao PSF; e
insuficiência qualitativa e quantitativa da própria equipe da COSAC/MS. Porém, expõe
um aspecto que dá conta do posicionamento tático e estratégico da equipe nacional para
poder lograr a evolução do PSF dentro do Ministério da Saúde.
A autora afirma, ainda, que, apesar do reconhecimento dessas dificuldades,
o grupo assumiu a luta pela proposta no interior da institucionalidade do SUS, interna e
externamente ao Ministério da Saúde, no sentido de torná-la viável. Nessa perspectiva
de construção, foram buscadas alianças no movimento dos Secretários Municipais de
Saúde e nas comissões intergestores tripartites (nacional) e bipartites (estaduais). A luta
177
Para confirmar o que é afirmado, segue-se uma rápida cronologia do Programa entre o final do período
Itamar Franco e o final do primeiro governo FHC: 1994 – Formalizado enquanto proposta institucional
situada na Coordenação de Saúde da Comunidade (COSAC) da Fundação Nacional de Saúde. Definido
como parte de uma estratégia para promover mudança no modelo de atenção. Meta definida: 2.500
equipes, com prioridade para as áreas consideradas de risco pelo Mapa da Fome do IPEA. 1995 – Entra
no Plano de Ação do Ministério da Saúde-1995/1999 e é relacionado entre as demais ações desenvolvidas
pela Fundação Nacional de Saúde, para implementar o SUS, sem articulação com outras áreas do
ministério. Já dentro do governo FHC, é identificado como programa que deve compor a Agenda Básica
do Programa Comunidade Solidária para ser prioritariamente implantado nos 1.369 municípios
selecionados. Com a criação do PRMI – Projeto de Redução da Mortalidade na Infância - em consonância
com o Projeto Comunidade Solidária, é inserido prioritariamente nos municípios participantes desse
projeto. 1996 – Inserido no Plano Plurianual do Ministério da Saúde 1996/1999, o PSF e o PACS são
colocados como instrumentos imprescindíveis à transformação do modelo de atenção à saúde,
considerando-se a prática da integralidade das ações exercitadas por esses programas. Uma das diretrizes
centrais do plano propugnava por um Novo modelo de assistência. Meta: 5 mil equipes e 50 mil ACS. A
COSAC é transformada em Coordenação de Atenção Básica, dentro da Secretaria de Assistência à Saúde.
O PSF inicia sua trajetória de fortalecimento institucional (SILVA, 2003).
191
contou, num segundo momento, com o apoio crescente do próprio Ministério da
Saúde
178
e de boa parte dos secretários estaduais de saúde que a ela foi se juntando na
medida do seu crescimento
179
.
A estratégia começou a produzir frutos a partir de 1996, com a publicação
dos Cadernos de Saúde da Família: construindo novos caminhos. A divulgação das
experiências municipais era uma oportunidade de se contarem e confrontarem os
desafios enfrentados e os resultados obtidos onde o Programa era implantado e
implementado. Essa divulgação atendia, ainda, à necessidade da expansão da discussão
e do diálogo sobre a atenção básica e da divulgação do PSF como um instrumento que
necessitava de aperfeiçoamento para cumprir o seu desiderato.
O Prêmio Saúde Brasil: o retrato da Saúde na Família, realizado pelo
Ministério da Saúde no segundo semestre de 1999, foi um evento formal de divulgação
das experiências exitosas da Estratégia Saúde da Família, até aquele momento. Dez
municípios brasileiros foram premiados pelos seus progressos na estratégia: cinco na
categoria Excelência-destaque, e cinco na categoria Excelência. Abaixo, os dois
quadros demonstrativos dos avanços conseguidos por esses municípios.
Município População/cobertura
com a estratégia PSF
Destaques da
experiência
Alguns resultados
Camaragibe
(PE)
118. 968 hab. (70%)
Participação do
movimento popular e
da representação dos
trabalhadores em saúde
no processo de
reorientação do modelo
Redução acentuada do
índice de mortalidade
infantil.
Queda drástica da
mortalidade infantil por
diarréia;
178
É preciso compreender o Ministério da Saúde como uma mega-estrutura complexa, lenta e plena de
labirintos que conformam uma rede de micro-poderes, de ilhas de incomunicabilidade que tendem a agir
individualmente, autonomamente. Essa fragmentação induz disputas, conflitos e jogos de poder que, em
muitos casos, mais atrapalham que ajudam a conformação e a execução de políticas de saúde.
179
Para ilustrar o que está sendo afirmado, pode-se oferecer o exemplo do Estado da Paraíba. Seus
municípios aderiram, desde a primeira hora, ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde e às
primeiras equipes de Saúde da Família, ainda em 1994, em Campina Grande. Como esses programas não
dependiam da estrutura estadual, visto que representavam convênios diretos do gestor federal do SUS
(Ministério da Saúde), via Fundação Nacional de Saúde, com os municípios, estes puderam progredir
mesmo numa conjuntura adversa no Estado, onde o Secretário de Saúde de então se recusava a
implementar o Sistema Único de Saúde. A mudança de governo e de secretário estadual reverteu o
processo, e a Paraíba transformou-se, rapidamente, num dos estados de linha de frente na implementação
da atenção básica, no período 1996-2002, quando alcançou 100% dos municípios com cobertura (mesmo
que esta não fosse integral) com PACS e 94% dos municípios com ESF implantadas (pelo menos uma
equipe). Ao mesmo tempo, o Estado evoluiu consideravelmente em relação à efetivação do modelo de
atenção básica, a ponto de municípios como Campina Grande, Esperança e Pedras de Fogo serem alçados
à condição de vitrines nacionais da Estratégia Saúde da Família, recebendo, inclusive, prêmios e
reconhecimento.
192
assistencial;
Assistência integral à
saúde da criança;
Equipes, gerentes e
técnicos
comprometidos com o
SUS;
Cobertura Pré-natal de
92%.
59% de aleitamento
materno exclusivo entre
as crianças menores de
quatro meses;
Sobral (CE)
146.005 hab. (87%)
Universalização do
acesso aos serviços de
saúde;
Participação da
população na gestão
dos serviços de saúde,
com a formação de 22
Conselhos locais em
todas as áreas
descentralizadas de
saúde;
Capacitação
continuada das equipes;
Implantação da
Central de Marcação de
Consultas;
Excelente cobertura
vacinal;
100% de cobertura do
Pré-natal;
Ibiá (MG)
21.216 hab. (100%)
Atuação das ESFs em
função de um
planejamento de ações
e avaliação sistemática;
Reestruturação da
rede, com a
organização do sistema
de referência e contra-
referência;
Garantia de
atendimento ao
paciente nos diversos
níveis de
complexidade;
Acesso da população ao
sistema de saúde, com
atendimento resolutivo,
humanizado e
comprometido.
Satisfação da
população coma a
atuação do PSF.
Integração das equipes
do PSF à comunidade;
Cobertura vacinal de
95% em menos de um
ano;
Cobertura vacinal de
adolescentes grávidas em
80%;
Acompanhamento de
87% dos diabéticos do
município, 80% dos
hipertensos e 100% dos
portadores de
Tuberculose e
Hanseníase
(independente da classe
social);
90% de cobertura do
Pré-natal;
193
Mauá (SP)
375.055 hab. (20%)
Participação de
representações
populares na definição
das primeiras áreas
cobertas pelo
Programa;
Implantação do PSF
com o suporte de ações
específicas de
saneamento básico,
transporte e educação;
Identificação e
acompanhamento dos
grupos de risco de
gestantes, crianças
menores de um ano,
diabéticos, hipertensos,
DST e AIDS,
tuberculosos, outros;
Saúde bucal para o
bebê.
Redução de 40% da
taxa de mortalidade
infantil;
54% de crianças de até
um ano recebendo
aleitamento materno;
44% dos bebês com
orientação em Saúde
bucal;
Cobertura vacinal de
100%;
Redução do número de
pacientes encaminhados
a hospitais e
especialidades.
Mandaguari
(PR)
29.009 hab. (31,6%)
Rede hierarquizada
de serviços de saúde
dentro do município e
consórcio
intermunicipal na
macrorregião de
Maringá, para
atendimento;
Trabalho com a
educação, a cultura, o
esporte, os clubes de
serviço e as pastorais
na busca do resgate da
cidadania;
Planejamento das
ações a partir da
discussão e avaliação
dos dados do Sistema
de Informação da
Atenção Básica pelas
equipes do PSF, a
Secretaria de Saúde e o
Conselho Municipal de
Saúde;
Qualificação dos
Recursos Humanos,
através da oferta e do
estímulo à participação
Solução de mais de
80% dos problemas de
saúde encontrados na
comunidade;
Redução da
mortalidade infantil; de
30,3 em 1996, para 11,9,
em 1998;
Co-responsabilidade
das famílias com a saúde
e o amadurecimento do
conceito de saúde pela
população;
Humanização do
atendimento à saúde.
194
em cursos de formação;
Implantação de
recursos de apoio
diagnóstico (laboratório
de análises clínicas,
aparelhos de raio-X).
Quadro 1 – Categoria: Experiência-destaque
Fonte: Prêmio Saúde Brasil – O RETRATO DA SAÚDE DA FAMÍLIA (Encarte MS, 1999)
Município População/cobertura
com a estratégia PSF
Destaques da
experiência
Alguns resultados
Aracaju
445.555 hab. (9,3%)
Participação
acentuada da
comunidade na
implantação de ações;
Contratação dos
profissionais de Saúde
da família através de
ONG, com o
cumprimento de todas
as exigências da
legislação trabalhista e
composição do salário
estabelecido por decreto
municipal;
Saúde mental
comunitária sistêmica
como modelo
complementar de
assistência nos bairros
Lamarão e Veneza;
Formação de equipes
de multiplicadores
adolescentes em
prevenção e promoção à
saúde para atuação
junto aos seus pares;
Parcerias com
organizações
governamentais e não-
governamentais;
Abordagem
multiprofissional do
paciente hipertenso;
Impacto na gestão,
refletindo o
deslocamento do
poder decisivo do
nível central para o
local: as equipes
identificam
problemas, definem
prioridades e sua
forma de
enfrentamento. Cria-se
uma demanda para as
áreas de
gerenciamento
intermediária e
central, e as respostas
chegam mais rápido;
Cobertura vacinal de
93%;
Incremento do
aleitamento materno
exclusivo em 30%;
Redução de gestação
em adolescentes na
área de Mosqueiro, de
29,6% para 13,6%;
Reversão no quadro
de desigualdade no
acesso e na qualidade da
100% de cobertura a
pacientes acamados;
Recuperação de 53%
das crianças com
desnutrição grave;
195
Criciúma
(SC)
167.661 hab. (35%)
assistência à saúde
oferecida à população;
Implantação de
unidade de referência
para os problemas de
saúde da mulher;
Formação de equipe
multidisciplinar para o
apoio à Saúde da
Família, composta de
psicólogo,
epidemiologista e
técnico de vigilância
sanitária.
Trabalho com 151
grupos de hipertensos
e 51 grupos de
diabéticos;
Mudanças
significativas no perfil
epidemiológico do
município, com
redução da morbidade
hospitalar por doenças
virais, infecciosas, do
aparelho circulatório,
de câncer de colo
uterino e de mama,
dos aparelhos
respiratório e
geniturinário;
Redução da
mortalidade materna
em 95,8%;
Redução da
mortalidade em < de 5
anos em 48%;
Curitiba
(PR)
1.584.232 (21%)
Articulação de
parcerias e grande
investimento em
capacitação de recursos
humanos;
Valorização da
intersetorialidade como
estratégia de promoção
da melhoria da
qualidade de vida da
comunidade;
Estímulo ao controle
social, através de
parceria com a
associação de
moradores e os
conselhos locais de
saúde;
Aperfeiçoamento
técnico-científico
continuado das equipes
de PSF;
Trabalho diferenciado
no atendimento à saúde
da mulher;
Solução na atenção
clínica;
Alto nível de
satisfação da equipe e
de usuários;
Legitimidade da
USF pela comunidade;
Gestão mais
participativa, com
Redução da
mortalidade infantil de
196
C. Grande
(PB)
352.497 (12%)
descentralização das
ações de planejamento e
avaliação, garantindo a
adequação das ações à
realidade local.
Democratização da
gestão administrativa,
com rodízio dos
profissionais,
proporcionando a todos
a oportunidade de
experimentar a função
de gerente da UBSF;
Boletim da Saúde da
Família como veículo
de divulgação e
fortalecimento do
modelo;
Identificação dos
principais problemas da
comunidade;
Grupos organizados
de gestantes, idosos e
saúde mental e
formação de grupos
sócio-educativos, em
função das
características
epidemiológicas e
demográficas;
69,5, em 1995, para
26,0, em 1998.
Acesso às
informações e aos
insumos de
planejamento familiar;
Cobertura de pré-
natal com mais de três
consultas de 89%;
Coeficiente de
mortalidade materna 0
(zero);
Aumento do
percentual de
gestantes imunizadas
contra o tétano
neonatal de 43,4%, em
1995, para 95%, em
1999;
Três Arroios
(RS)
3.203 hab. (100%)
Atuação decisiva da
população junto ao
Poder Legislativo, para
implantação do
PACS/PSF;
Empenho e
comprometimento de
todos os profissionais
envolvidos, tanto pela
história de liderança dos
agentes em suas
comunidades quanto
pelo fato de os
profissionais manterem
vínculo empregatício
estável com o serviço
público. Isso vem
conferindo maior
segurança à
continuidade das
Cobertura vacinal de
100% das crianças de
0 a 05 anos;
Índice de 90% de
resolução dos
197
atividades, mesmo com
troca de gestores;
A população busca e
recebe um atendimento
diferenciado e com
qualidade;
Introdução de
psicóloga na equipe de
Saúde da Família.
problemas de saúde no
município.
Quadro 2 – Categoria - Excelência
Fonte: Prêmio Saúde Brasil – O RETRATO DA SAÚDE DA FAMÍLIA (Encarte MS, 1999)
Os quadros mostram o quanto a Estratégia contribuiu para a melhoria do
desempenho da saúde nos municípios em que já houvera sido implantada. Os avanços
foram significativos em termos da melhoria dos indicadores epidemiológicos, mas não
se limitaram a esse aspecto. Destacam que: a) aumentou a participação popular na
organização e nas definições das ações; b) a relação entre equipes de saúde/população
se estreitou, favorecendo o diálogo; c) as equipes melhoraram, do ponto de vista da
qualificação técnica e humana, fruto do investimento das gestões municipais; d) houve
melhoria na gestão das ações, tanto por conta do trabalho interdisciplinar quanto pelo
avanços das relações interprofissionais e comunitárias. Houve avanços quanto ao
trabalho intersetorial, indicador importante para se avaliar o grau de prioridade e de
convergência democrática das equipes dos governos municipais. Todas essas mudanças
vieram em favor de uma prática médica mais próxima da doutrina da Estratégia,
indicando uma caminhada que coloca, no centro da sua preocupação, o diálogo e a
educação popular.
Mas, muito em função dos seus dois primeiros anos de implantação da
conjuntura política e econômica, e mesmo pelo formato de programa verticalizado que
pontificou no PACS, o PSF inquietava diversos pesquisadores e militantes da Reforma
Sanitária. Um deles, Paim (2002), registrava sua preocupação com a possibilidade de
esse programa, enquanto continuação do PACS, expressar políticas de focalização
propostas pelo Banco Mundial, caracterizando pacotes básicos de atenção médica para
pobres, o que seria uma contradição em relação aos princípios do SUS, especialmente
em relação à universalidade. Inquietações nesse mesmo sentido podem ser encontradas,
ainda, em autores como: CONILL (2002); MARQUES; MENDES (2002); MERHY
(1999, 2001).
Não se pode dizer que as preocupações desses vários pesquisadores não se
justificavam, dado que a formulação e a implantação do Programa de Saúde da Família
198
aconteciam num período em que era meta prioritária da política do governo federal a
contenção do gasto público. Essa meta era monitorada pela área econômica nas demais
instâncias de governo, sob pressão de organismos econômicos internacionais. Até
porque o trabalho com a atenção básica é por demais complexo e exige uma quantidade
de recursos técnicos e financeiros bastante razoáveis, o que, naquele momento, era
impensável, tanto por conta dos compromissos internacionais, quanto pela estrutura de
gastos já estabelecida no setor, quase que totalmente orientada para a medicina
hospitalar, a maior parte dela privada.
A interpretação da Atenção Primária à Saúde como programa e, portanto,
com objetivos restritos voltados especificamente à satisfação de necessidades mínimas
de grupos populacionais em situação de extrema pobreza ou marginalizados, rompia a
universalidade como princípio ético básico, pois se deixava de garantir a todos os
cidadãos, independentemente de gênero, etnia, nível de renda, vinculação de trabalho ou
nível de risco, os direitos sociais fundamentais, em quantidade e qualidade compatíveis
com o grau de desenvolvimento da sociedade.
A universalização não é contrária ao estabelecimento de critérios de
seletividade ou focalização, desde que a seletividade ou a focalização estejam
subordinadas a uma política geral de universalização. Em outras palavras, a seletividade
pode ser utilizada como um instrumento de política social, desde que não se converta na
própria política social, neste caso, de fundo compensatório (MENDES, 1996).
Ainda sobre essa mesma questão, Viana e Dal Poz têm posição semelhante e
afirmam:
[...] Essas experiências de focalização dentro do universalismo evidenciam
que se podem ter práticas focalizadas dentro de uma política universal e não
há necessariamente conflito entre focalização e universalização, isto é, os
dois conceitos não precisam ser excludentes (VIANA; DAL POZ, 2005, p.
238-39).
Souza (2000) também manifestava discordância em relação à estratégia de
reorganização de assistência pelo fato de ela se restringir, no geral, aos pequenos
municípios
180
. A questão aí dizia respeito à sua abrangência, em termos populacionais,
diante da magnitude da desassistência. Os grandes contingentes populacionais, aqueles
que representam os grandes bolsões de miséria, estão incrustados nos grandes centros, e
nestes, as coberturas eram insignificantes. Havia ainda o agravante de se instituírem
180
Ainda que o desenvolvimento da Estratégia Saúde da Família nos pequenos municípios, em especial
quando sua implantação rapidamente chegava aos 100% de cobertura, tenha sido fundamental para
demonstrar o salto de qualidade na atenção que era conseguido. Isso estimulava cada vez mais os
defensores desse modelo, a reforçarem a pressão para a sua generalização nos centros maiores.
199
nesses municípios dois modelos, tendo o PSF uma cobertura baixa. E essa seria uma
postura antipedagógica, pois concorria para gerar confusão na população e no meio
profissional e ainda enfraquecia a proposta de mudança das práticas profissionais.
Argumentações desse tipo foram fundamentais para que o DAB/SAS revisse a sua
estratégia de implantação da Estratégia nos grandes municípios. Isso foi feito através da
instituição do Programa de Expansão da Saúde da Família (PROESF) para os grandes
centros urbanos e áreas metropolitanas.
Outro aspecto importante no processo de crítica da Estratégia e de sua
implantação dizia respeito à reorganização da atenção básica, entendida não apenas
como o nível primário de atenção, mas na sua complexidade e na sua articulação com os
outros níveis de atenção, sob a forma de uma rede integrada que garantisse a
substituição do modelo tradicional pela lógica do PSF (SOUSA, 2002). Era importante
que se evoluísse para um processo de transformação que levasse o setor saúde a vencer
o modelo hegemônico centrado na organização hospitalar, na tecnologia de ponta e na
cultura da subespecialidade (ALVES SOBRINHO, et al., 2002).
O exercício da crítica foi um ponto relevante no processo de implantação e
implementação do PACS e do PSF. Ela concorreu para a firmeza do propósito de se
montar a Estratégia Saúde da Família, fazendo-a evoluir e se firmar não apenas do
ponto de vista assistencial, confirmando e consolidando o SUS, mas, também, do ponto
de vista conceitual. A leitura de Gil (2006)
181
evidencia a análise do confronto de três
conceitos: atenção primária, atenção básica e saúde da família. Esses conceitos ora
convergem, ora se excluem, demonstrando a singularidade da produção teórico-prática
brasileira no campo da atenção à saúde e da busca de consolidação do Sistema Único de
Saúde.
Considerando-se o campo teórico, as divergências dizem respeito ao
significado da atenção primária e se explicam pela trajetória histórica de como esse
conceito foi gerado e de como evoluiu por conta da ambigüidade de definições que
ficaram estabelecidas nos fóruns internacionais em relação aos fins da Atenção
Primária. As dissensões se referem, principalmente, à conotação que esse conceito
assumiu em países considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Essas interpretações variam de: (1) Atenção Primária à Saúde como
estratégia de reordenamento do setor saúde; (2) Atenção Primária à Saúde
181
GIL, C. R. R. – Atenção primária, atenção básica e saúde da família: sinergias e singularidades do
contexto brasileiro. Cadernos de Saúde Pública., Rio de Janeiro, v. 22, n. 6, 1171-1181, 2006.
200
como estratégia de organização do primeiro nível de atenção do sistema de
saúde e (3) Atenção Primária à Saúde como programa com objetivos restritos
e voltados especificamente à satisfação de algumas necessidades mínimas de
grupos populacionais em situação de extrema pobreza e marginalidade. Nos
países do terceiro mundo, predomina a interpretação da Atenção Primária à
Saúde como um programa específico para os marginalizados e excluídos e
materializada na proposta político-ideológica da atenção primária seletiva
destinada às populações pobres (GIL, 2006, p. 1.177).
Fruto das distorções e interpretações acerca do que seria a Atenção Primária
em Saúde, várias opiniões orientaram o debate em torno do processo de implantação e
implementação desse tipo de atenção no Brasil. Até o início da década de noventa, as
referências eram mais homogêneas e diziam respeito à atenção primária, ainda que esta
já fosse identificada com uma conotação de programas diferenciados em se tratando de
países com situações internas de exclusão social e desigualdade sócio-econômica. E, como
essas questões estavam na ordem do dia, tencionando as agendas de ajuste econômico dos
países latino-americanos, o que incluía o Brasil, o governo federal era instado a dar
respostas aos seus problemas na forma de políticas sociais. O PACS/PSF, então, fora
direcionado prioritariamente para os grupos sociais mais vulneráveis, com o “compromisso
imediato de superar as iniqüidades” (SOUSA, 2001), promovendo acesso à saúde para os
setores excluídos.
Havia um desencontro entre os objetivos práticos do governo central do país e
os objetivos estratégicos dos que faziam o movimento sanitário e mesmo de parte do grupo
gestor das políticas de saúde do Ministério da Saúde, ou seja, aqueles voltados para o
processo de descentralização da saúde, para
as tecnologias de gestão do sistema, a
organização da rede de serviços e as transformações no processo de trabalho dos
profissionais envolvidos especialmente com a atenção às pessoas.
O desencontro ficava patente nos documentos oficiais e na bibliografia sobre o
assunto. Gil (2006) percebe essa realidade quando afirma:
O diálogo proporcionado pela leitura e análise desses documentos e artigos
permitiu identificar que, no contexto brasileiro, a Atenção Primária à Saúde
traz consigo as seqüelas do debate travado nos anos 70, decorrentes do
caráter racionalizador defendido por alguns atores das agências financeiras
que preconizavam a redução do financiamento e gastos em saúde, em
detrimento das reais necessidades de saúde das populações dos países
periféricos. Mesmo não tendo sido essa a racionalidade de muitos dos
formuladores das políticas de saúde da época, que defendiam, inclusive, o
aumento de recursos para o setor, a Atenção Primária à Saúde, por ter sido
implementada num contexto no qual a expansão da cobertura veio
acompanhada das propostas de contenção do financiamento, teve seus
pressupostos estruturantes de um novo modelo (universal, equânime,
inclusivo, integral) obscurecidos pelo ideário neoliberal racionalizador
(focalização, baixo custo, pacote básico, excludente). Mesmo assim, esse
debate tem sido salutar por manter alertas e vigilantes os diferentes
201
segmentos sociais da reforma sanitária brasileira em relação aos rumos da
política de saúde, do próprio SUS e da concepção de política setorial que se
quer imprimir no país (GIL, 2006, p. 1.179).
Talvez por isso é que se registre nos documentos oficiais do Ministério da
Saúde, a partir de meados da década de noventa, o conceito de atenção básica significando
ora estratégia de reordenamento do setor saúde ora estratégia de organização do
primeiro nível de atenção do sistema de saúde, sinônimos de duas das interpretações
possíveis da polissemia em que se transformou a utilização do conceito de atenção
primária. Os elementos contidos no debate dessas diferentes interpretações têm dado as
condições essenciais para que se prospere na transformação da atenção à saúde no país.
6.2 Os documentos oficiais: a organização da Estratégia Saúde da Família
Um marco importante para a perspectiva da atenção básica e o
fortalecimento do conceito representado pelas iniciativas PACS e PSF, sustentados
como programas especiais do Ministério da Saúde, na segunda metade da década de
noventa, foi o realce obtido por ela na Norma Operacional Básica do Sistema Único de
Saúde – NOB/SUS 01/96
182
– publicada com base na Portaria GM nº 2.203/96. Essa
norma, conforme reza no seu item 2, teve por finalidade primordial:
[...] promover e consolidar o pleno exercício, por parte do poder público
municipal e do Distrito Federal, da função de gestor da atenção à saúde dos
seus munícipes (Artigo 30, incisos V e VII, e Artigo 32, parágrafo 1º, da
Constituição Federal), com a conseqüente redefinição das responsabilidades
182
As Normas Operacionais Básicas representaram uma tradição da primeira década de implementação do
SUS e se constituíram instrumentos de regulação do processo de descentralização. Discutidas e
negociadas entre os gestores das três esferas do SUS, para depois serem formalmente transformadas em
portarias do Ministro da Saúde, tiveram o condão de reforçar a regulamentação da direção nacional do
SUS. Como a própria denominação já indica, tratavam de operacionalizar os aspectos relativos aos
fundamentos do sistema de saúde, a divisão das responsabilidades e as relações entre gestores e os
critérios de transferência de recursos federais para estados e municípios. Na prática, essas normas tiveram
um caráter transitório, ao todo foram três (91, 93 e 96), visto que manifestavam o ritmo processual da
descentralização, permitindo a atualização das regras nos diferentes estágios da implementação do SUS.
Foi através da NOB/SUS 01/96 que se instituíram as condições para a gestão do SUS pelos sistemas
municipal, estadual e federal. Nesse aspecto, especificamente em relação aos municípios, foram
instituídas duas condições de gestão: a Gestão Plena da Atenção Básica e a Gestão Plena do Sistema
Municipal de Saúde. Para assumir qualquer uma das duas condições de gestão, os municípios deveriam
habilitar-se com bases no preenchimento de requisitos que definiam as suas respectivas responsabilidades.
Essa norma, apesar de publicada em 1996, só veio ser colocada em prática, produzir efeitos na gestão do
SUS e alterar a perspectiva do modelo de atenção e de prática médica por volta de 1998.
202
dos Estados, do Distrito Federal e da União, avançando na consolidação dos
princípios do SUS (BRASIL, 2001, p. 40).
A prescrição sobre o que seriam essas responsabilidades municipais e do
Distrito Federal, no que diz respeito à Atenção à Saúde, por sua vez, ficava definida no
item 3, Campos da Atenção à Saúde – que considerava três campos específicos, a saber:
a) o da assistência em que as atividades são dirigidas às pessoas, individual
ou coletivamente, e que é prestada nos âmbitos ambulatorial e hospitalar,
bem como em outros espaços, especialmente no domiciliar;
b) o das intervenções ambientais, no seu sentido mais amplo, incluindo as
relações e as condições sanitárias nos ambientes de vida e de trabalho, o
controle de vetores e hospedeiros e a operação de sistemas de saneamento
ambiental (mediante pacto de interesses, as normalizações as fiscalizações e
outros); e
c) o das políticas externas ao setor saúde, que interferem nos determinantes
sociais do processo saúde-doença das coletividades, de que são partes
importantes questões relativas às políticas macroeconômicas, ao emprego, à
habitação, à educação, ao lazer e à disponibilidade e qualidade dos alimentos
(BRASIL, 2001, p. 42).
Como é possível notar, tanto na formulação do Programa de Saúde da
Família como na definição dos campos da atenção à saúde definidos pela NOB 01/96
estão inteiramente parametrizados pelas definições derivadas da Declaração de Alma-
Ata, o que, por si, já define a linha de atenção e de prática de saúde que se desejava para
os profissionais médicos e para a população, enquanto sujeitos diretamente implicados
na produção da saúde, como seus sujeitos concretos.
As ações estavam endereçadas às pessoas e à comunidade, nos seus diversos
âmbitos, e poderiam ser proporcionadas em qualquer desses âmbitos (unidade de saúde,
trabalho, domicílio). Havia a preocupação com os vários ambientes de vida e trabalho
da população, assim como com as demais políticas que representam o cuidado com os
problemas que determinam e condicionam o processo saúde-doença (economia,
emprego, renda, habitação, educação, lazer e alimento).
Entretanto, é preciso ter presente que, se a NOB/SUS 01/96 representava um
avanço na operacionalização dos princípios do SUS e dava um norte político para a
organização da atenção à saúde e para a organização do Ministério da Saúde, do Distrito
Federal, dos estados e municípios – as estruturas gestoras do SUS – na prática, também
gerava novas contradições a serem enfrentadas. Essas estruturas de gestão continuavam,
majoritariamente, voltadas para uma visão tradicional de atenção à saúde, baseada na
assistência pura e simples e com um forte viés financeiro. Tinha-se um único ministério
para gerir a saúde, mas persistia a velha dicotomia entre ações assistências curativas e
ações de saúde pública.
203
E não por acaso, iniciativas como PACS e PSF encontravam-se dentro da
estrutura da Fundação Nacional de Saúde que, sendo uma instituição vinculada ao
Ministério da Saúde, representava as ações de saúde pública que eram, na sua maioria,
executadas através de programas e convênios. Por seu turno, essa forma de implantação
dos programas e ações do Ministério da Saúde reforçava a surrada estratégia da indução
financeira sempre tão presente nos programas verticais, prática que acabava por
desvirtuar a sua implantação como política municipal. Ou seja, como tudo se reduzia a
uma relação convenial, os aspectos burocráticos e cartoriais eram os mais ressaltados,
ficando de lado os aspectos fundamentais da política, sua ética, sua pedagogia e o seu
conteúdo educativo e filosófico, com possibilidade de transformar a prática médica,
movendo-a para o campo de uma práxis educativa e popular fincada no diálogo e na
construção da autonomia, da cidadania e da emancipação dos atores nela implicados.
Considerando-se, no entanto, a escalada institucional do Programa de Saúde
da Família, a perspectiva de transformação do programa, numa estratégia concreta,
continuou o seu curso. Tanto que o ano de 1997 foi particularmente importante por
quatro aspectos. Primeiro, por ser considerado o PSF uma das ações prioritárias dentro
do documento que sintetizava o plano ministerial para aquele ano
183
. Lá se propunha
uma meta ousada de 3.500 equipes, porém sem definir orçamento. Mesmo com esse
fato esdrúxulo, era importante a afirmação do programa perante o governo e o próprio
Ministério da Saúde. O segundo aspecto ficou por conta da publicação do segundo
documento oficial do PSF – Programa de Saúde da Família: uma estratégia para
reorientação do modelo assistencial
184
. O documento continha as diretrizes
operacionais, as etapas de implantação e as responsabilidades dos três níveis de governo
em relação ao programa, destacando sua inserção no plano de ações e metas prioritárias
do Ministério da Saúde para aquele ano.
O terceiro aspecto importante foi a constituição dos Pólos de Capacitação,
Formação e Educação Continuada para o pessoal do Programa de Saúde da Família. E
aqui se pode perceber uma inflexão importante do programa rumo a sua adoção como
estratégia de estruturação de política capaz de desafiar a promoção de mudanças no
183
O documento denominava-se 1997 – O ano da saúde no Brasil – ações e metas prioritárias. E
prometia a implementação de medidas consideradas vitais para a consolidação do Sistema Único de
Saúde e para o desenvolvimento social do país.
184
A referência completa é: BRASIL, Ministério da Saúde. – Programa de Saúde da Família: uma
estratégia para reorientação do modelo assistencial. Brasília, 1996.
204
perfil dos profissionais do PSF. Inicialmente, foram criados 10 pólos
185
que, depois,
foram expandidos para todos os estados.
O quarto aspecto diz respeito à regulamentação do PSF através da Portaria
Ministerial, MS/GM nº 1.886 (DOU 22/12/1997). Por meio desse instrumento
normativo, o PSF é dado como importante estratégia para contribuir com o
aprimoramento do SUS. São aprovadas suas normas e diretrizes e definidas as
responsabilidades para as três esferas de governo. Essa regulamentação foi
particularmente importante porque colocou o PSF na agenda dos governos estaduais. Já
nos anos de 1997 e 1998, as estatísticas do programa dobraram, e o número de
municípios com equipes passou de 567 para 1.134; as equipes implantadas evoluíram de
1.600 para 3.100; a população coberta, de 5,6 para 10,6 milhões de pessoas, e o número
de ACS, fundamentais para o funcionamento do programa, passou de 54.900 para
79.700 agentes de saúde
186
. A evolução no número de ACS é relativamente menor, visto
que grande parte foi simplesmente absorvida pelas ESFs.
Algo importante em 1998 foi emblemático para se poder aquilatar a pujança
do movimento que estava por trás do compromisso de fazer a saúde da Família se
transformar numa estratégia de reorientação do modelo de atenção e de práticas
profissionais em saúde orientadas para uma idéia de práxis. Foi a realização, em junho
de 1998, do I Seminário de Experiências Internacionais em Saúde da Família
187
, evento
que se prestou para troca de experiências e reflexão sobre os desafios do modelo
brasileiro. Programado para algo em torno de setecentas pessoas, superou os mil
participantes, devido ao entusiasmo e ao interesse que provocou no movimento sanitário
brasileiro.
185
O Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Paraíba, por sua tradição e
reconhecimento do trabalho que vinha executando, principalmente na discussão e formação de recursos
humanos voltados para as áreas de Planejamento e Gestão, Epidemiologia, Saúde do Trabalhador e
Educação em Saúde, conteúdos fundamentais para o desenvolvimento dos Sistemas Locais de Saúde e
para a Atenção Básica, fez parte da primeira leva de Pólos de Capacitação. Um aspecto interessante que
vale a pena ser ressaltado é que, nos primeiros anos de implantação do PSF, a UFPB, através do
NESC/CCS, foi um grande exportador de profissionais para outros estados, especialmente para o Ceará,
estado nordestino que rapidamente avançou na Estratégia de Saúde da Família. Isso ocorria, naquele
momento, devido ao fato já afirmado de que, até 1996, a SES-PB, enquanto gestora do SUS no estado,
deixava muito a desejar no que tange à implementação do SUS e da atenção básica.
186
Na secção de anexos deste trabalho, o leitor pode acompanhar, através de mapas e gráficos, toda a
evolução da Estratégia Saúde da família em termos de municípios cobertos, número de agentes de saúde
implantados, número de ESF e ESB, total de recursos invertidos, percentual de população coberta e
percentual por porte municipal.
187
O evento contou com a participação do Brasil, Reino Unido, de Cuba, do Canadá, dos Estados Unidos,
da Colômbia e do Equador, todos expondo a sua experiência em relação ao desenvolvimento de ações
tangentes à Atenção Primária em Saúde. O evento contou com o apoio da Organização Pan-Americana de
Saúde, do Projeto Comunidade Solidária e da Casa Civil da Presidência da República.
205
Por sua importância, pelo potencial revelador do movimento em prol da
sustentabilidade da Estratégia Saúde da Família, no Brasil, pela paciência e obstinação
desse movimento em lograr conseguir a mudança de enfoque de programa vertical para
estratégia estruturante de uma atenção à saúde, com potência para transformar a prática
médica, mesmo dentro de um governo de perspectiva neoliberal, como se apresentava o
governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, vale a pena aqui reproduzir as falas
da mesa de abertura desse seminário internacional.
A primeira intervenção, a da Coordenadora de Atenção Básica do Ministério
da Saúde, Heloíza Machado, tenta traduzir a contradição intrínseca existente dentro do
processo de implantação da atenção básica no país e, ao mesmo tempo, celebrar a
tenacidade e o compromisso quase obsessivos dos que vinham fazendo o movimento de
Reforma Sanitária no país – que, naquele momento, tinha como uma de suas lutas a
implantação e implementação da Atenção Básica como forma de reorientar o modelo de
atenção à saúde e as práticas sanitárias em busca da sua práxis – fazendo uma reflexão e
uma síntese em torno da gnosiologia dos filósofos gregos Platão e Aristóteles.
Além de serem dois filósofos maiores, são [a] expressão de dois modos de
ser, de duas filosofias de vida, o realismo e o idealismo. Platão aponta, com
uma das mãos, para cima, para o ideal, para o céu. Com a outra, segura o
livro Timeu, onde expõe a primazia das idéias sobre a realidade sensível. É o
homem do mundo ideal, da essência perfeita de cada ser, da utopia, dos
grandes sonhos, da abertura infinita do ser humano. Aristóteles, ao contrário,
aponta para baixo, para a realidade empírica, para a terra. Segura o livro
Ética, no qual apresenta os princípios orientadores para a prática humana,
rumo à felicidade. É o homem do realismo, dos projetos visíveis, do caminho
bem definido, da prática concreta. Ambos têm sua razão de ser. Somente
integrados, Platão e Aristóteles, céu e terra, real e ideal, a vida poderá
caminhar com os dois pés. Um no chão, e o outro elevado, como quem anda
para a frente, na direção certa (BRASIL, 1999, p. 5).
Nessas primeiras palavras da alegoria filosófica da coordenadora, ficavam
patentes a tensão e a contradição que caracterizavam a construção do novo modelo de
atenção, em termos da sua concepção platônica voltada para o ideal de ser de uma
estratégia de atenção, à elevação do humano no sentido de uma práxis. E, ao mesmo
tempo, a sua prática aristotélica, fundada na realidade sensível, concreta e palpável sob
o ponto de vista empírico. A chamada para uma nova síntese, que fosse capaz de unir
dialeticamente essas duas perspectivas, era o desejo. Por isso completa:
E esse tem sido o princípio que conduz esse projeto no Ministério da Saúde,
com o pé no chão, mas olhando para frente, entendendo que nenhum
processo de transformação precede de várias etapas de mudanças. Essas
mudanças exigem assumir, fundamentalmente, as estratégias de acumulação,
de confiança e legitimidade. E nessa perspectiva, ao longo desses anos, essa
206
equipe aqui representada, nos mais diferentes recantos desse imenso país, tem
caminhado na direção de assumir firmemente o sentido dessas mudanças.
Sentido esse traduzido na reconstrução do modelo de assistência à saúde, na
valorização, num engajamento a um movimento que já tem história, porque,
ao longo dessas últimas décadas, possibilitou pelo compromisso de muita
gente no processo de construção do SUS, acumulação de saberes e de
práticas inovadoras, que agora represento o referencial, para implantação de
estratégia de saúde da família no Brasil (BRASIL, 1999, p. 5-6).
Essa personagem tinha a consciência de que o SUS, o PSF e a prática
médica estavam inseridos num complexo jogo pleno de nuanças, cuja solução estaria
nas disputas que deveriam se travar nas arenas armadas nas diversas pontas do sistema -
aqui entendidas como o próprio Ministério, as estruturas estaduais, as municipais - mas,
principalmente, nas UBSF e nas estratégias de formação, dentro e fora da Universidade,
e dos aparelhos formadores. Naquelas que fossem capazes de refletir as múltiplas
facetas da realidade em que os distintos atores estão inseridos, e o processo de
consciência que cada um é capaz de produzir para confrontar, colocar em disputa, em
diálogo, para conceber uma pedagogia geradora de autonomia e compartilhamento: uma
práxis educativa e popular.
A segunda intervenção, a da então secretária-executiva do Programa
Comunidade Solidária, Anna Peliano, ressalta as qualidades do PSF como eixo de
reestruturação da atenção primária de saúde e exalta os avanços que significavam a
adoção da metodologia e o processo de trabalho interdisciplinar da Estratégia, que
incorporava a vigilância à saúde, a intersetorialidade e a educação para a qualidade de
vida, bem como o compromisso ético representado pela práxis dos diversos
profissionais de cada equipe e a solidariedade e parceria entre as três esferas de
governo. Realçava, ainda, a prioridade que vinha sendo dada pelo Ministério da Saúde
àquele Programa.
O Programa de Saúde da Família hoje representa um eixo de reestruturação
da atenção primária de saúde, a partir da reestruturação do modelo de
assistência. Ele muda o enfoque da atenção, que passa a ser a família e o
meio em que ela vive. Ele se propõe a trabalhar com o princípio da vigilância
da saúde, apresentando uma característica do trabalho inter e multi-setorial. A
questão da intersetorialidade, que é difícil de trabalhar, cada vez se torna
mais importante, cada vez temos mais consciência de que a educação não se
resolve dentro da sala de aula, que saúde não se resolve apenas dentro do
posto de saúde, que a questão da renda, ocupação e qualidade de vida tem
implicações muito mais amplas e que todas essas áreas estão intrinsecamente
inter-relacionadas e que quem quer trabalhar saúde tem que trabalhar
qualidade de vida, tem que estar trabalhando com a questão da
intersetorialidade (BRASIL, 1999, p. 6-7).
Essa locução dava a noção do completo entendimento do PSF como
estratégia de atenção, inclusive avançando na perspectiva da vigilância da saúde, ou
207
seja, do trabalho centrado na comunidade, no território e nas suas dimensões laboral,
econômica, geográfica, ambiental, política, epidemiológica, enfim, intersetorial e
educativa. Mas, por outro lado, também deixava de revelar uma realidade que ficava
oculta, encoberta. Os fins do Projeto Comunidade Solidária entravam em conflito com a
estratégia que estava sendo exaltada, quando esta era entendida como uma prioridade
apenas para algumas áreas que representavam bolsões de miséria. Caía-se na
contradição de confirmar a Saúde da Família como uma medicina para pobres,
miseráveis e desvalidos, como uma política social compensatória.
E a representante da Presidência da República continuou:
Uma segunda grande ênfase que o Programa de Saúde da Família vem dando
é o
envolvimento ou o comprometimento dos agentes da saúde, tanto os
médicos, os enfermeiros, como os agentes comunitários, ou seja, os
prestadores de serviço com as próprias comunidades. Eles deixam de cumprir
apenas o seu dever de trabalho, o seu dever de ofício, mas
passam a trabalhar
com o comprometimento ético com as comunidades. Esse compromisso
ético, que podemos chamar de
solidariedade, é uma terceira ênfase que o
Programa vem dando e envolve parceria entre governos federal, estaduais,
municipais e sociedade civil (grifos nossos). Hoje temos certeza de que,
isoladamente, o governo federal ou nenhuma instância de governo pode
equacionar os problemas sociais, de qualidade de vida, e os problemas de
saúde da população. É preciso estarmos juntos, é preciso darmos a mão e em
todos os princípios, na própria lógica do Programa de Saúde da Família está
implícita essa ampla parceria. E é por todos esses princípios, por toda essa
lógica que vem regendo o Programa de Saúde da Família, que nós da
Comunidade Solidária temos dado uma grande prioridade ao Programa.
Estamos acompanhando o Programa de Agentes Comunitários de Saúde, que
foi o embrião do Programa de Saúde da Família, e temos observado que os
agentes da saúde, hoje, são muito mais do que apenas agentes de saúde, são
agentes de desenvolvimento, são agentes que estão construindo comunidades
mais solidárias, e que tem dado mais esse grande número de exemplos para
todos os profissionais, não só da área de saúde, mas para todos os
profissionais, para todos os servidores públicos de um modo geral
(BRASIL,
1999, p. 6-7).
Importante se faz, no reconhecimento da representante da Comunidade
Solidária, o envolvimento e o comprometimento dos médicos e dos demais profissionais
de saúde atuantes no PSF. A compreensão da prática médica, como uma ética da
solidariedade, confirma o reconhecimento do diferencial do modelo de atenção à saúde,
em termos da sua preocupação com o equacionamento de problemas sociais e com a
qualidade de vida das populações adscritas. Uma perspectiva que põe a Estratégia Saúde
da Família como caminho e como cus de expressão de uma prática médica convertida
numa práxis.
Na última intervenção, em nome do Ministro da Saúde, o secretário de
Assistência à Saúde, Renilson Rehém, destacou que o evento representava o
208
reconhecimento e um desafio, no sentido de consolidar a proposta de Saúde da Família.
Esse reconhecimento dizia respeito à luta incansável da COSAC, mesmo diante das
dificuldades que eram enfrentadas dentro do próprio ministério, no governo, como um
todo, e na sociedade. Quanto ao desafio, apontava para a necessidade de se vencer a
questão nevrálgica da formação de recursos humanos compatíveis com a proposta,
aprofundando as parcerias com a Universidade. Afirmava, finalmente, o compromisso
do Ministério da Saúde de levar adiante a tarefa de transformação da proposta com a sua
efetivação enquanto Estratégia Saúde da Família.
É preciso que se diga que isso [a Estratégia Saúde da Família] é um grande
desafio, particularmente no que diz respeito a recursos humanos, e esse é um
desafio que temos [e] só poderemos vencer se conseguirmos aprofundar as
parcerias que temos conseguido desenvolver, ao longo desses anos, com os
governos estaduais e municipais, mas particularmente com os pólos
universitários, que têm [...] uma grande tarefa de responder a essa demanda e
viabilizar que consigamos vencer esse desafio. Não cabe, nesse momento,
colocar o que significa essa estratégia, que tenho feito questão de colocar
como estratégia mais do que um programa, porque o programa sempre passa
uma idéia de provisoriedade, de início, meio e fim, mas na verdade, esta é
uma estratégia de reconstrução, de revisão, de reordenamento do modelo
assistencial vigente no país. Então, não há necessidade [...] de falar de toda
[a] importância e [de] como isso vai nos levar a reordenar, a reorganizar o
modelo assistencial no Brasil. [...]disse antes, mais do que um programa,
se trata de uma estratégia plenamente adotada pelo Ministério da Saúde e que
temos certeza irá contribuir para uma radical transformação nas difíceis
condições que temos hoje, no funcionamento do sistema de saúde (BRASIL,
1999, p. 7-8).
Considerando-se o discurso oficial do Ministério da Saúde, pode-se
confirmar uma série de iniciativas práticas que demonstravam o interesse em torná-lo
realidade, notadamente no contexto do segundo governo do presidente Fernando
Henrique Cardoso. O Ministério da Saúde, agora sob a direção do então senador José
Serra, declarava que o Programa de Saúde da Família era uma estratégia para o Brasil
inteiro, não devendo ser visto como atividade tipicamente rural ou voltado para a
pobreza. Afirmava que, por não se tratar de uma proposta paralela ao sistema, ele seria o
próprio sistema. E o novo discurso vinha acompanhado de uma meta de implantação
ousada que anunciava 20 mil equipes até 2002.
Nesse sentido, aqui são citadas algumas iniciativas da Coordenação de
Atenção Básica do Ministério da Saúde, a partir da leitura de Silva (2003), dos
documentos oficiais e do acompanhamento do dia-a-dia da execução do próprio PSF, no
momento em que compunha a equipe gestora do SUS-PB, postado no órgão de
planejamento da SES-PB:
209
a) Implantação do Piso de Atenção Básica – PAB (fixo) e dos incentivos
para os Programas de Agentes comunitários e Saúde da Família (PAB
variável);
b) Publicação do Plano de Ações Estratégicas da COSAC para o período
1999/2002;
c) Definição, pela primeira vez, de um orçamento próprio para a Saúde da
Família;
d) Sistematização de todas as ações que já estavam sendo desenvolvidas pela
gerência nacional do PSF para dar visibilidade interna e externa ao
Ministério da Saúde;
e) Realização da I Mostra de Produção em Saúde da Família e o Prêmio
Saúde Brasil. O evento contou com mais de três mil participantes,
considerando-se gestores, representantes de instituições de ensino,
profissionais e estudantes da área da saúde. Iniciativa fundamental para o
intercâmbio de experiências e reflexões sobre a Saúde da Família e para
o aumento da visibilidade da estratégia;
f) Criação do Departamento de Atenção Básica (DAB) na estrutura da
Secretaria de Políticas de Saúde do Ministério da Saúde. Nessa nova
conformação institucional, o PSF é fortalecido na medida em que passa a
ser a estratégia prioritária para organizar a atenção básica
188
;
g) Campanha de divulgação do PSF e da atenção básica: Abra as portas para
Dona Saúde entrar;
h) Sensibilização dos gestores estaduais
189
e municipais para a implantação
da Estratégia Saúde da Família. Distribuição para os prefeitos do país de
um kit (fita de vídeo, cartilha explicativa e encarte com indicadores de
saúde), apresentando os avanços alcançados pelos municípios que
estavam implementando o PSF;
i) Ampliação do apoio financeiro aos municípios, a partir do estabelecimento
do critério de cobertura populacional para definição do valor de incentivo
188
O novo Departamento de Atenção Básica se organiza em coordenações e grupos de trabalho e
gerenciamento. Ampliado na sua missão e na organização das ações específicas, chega a contar com um
quadro de aproximadamente 100 técnicos.
189
O estado da Paraíba foi um dos que atenderam ao processo de sensibilização, colocando como meta a
efetivação da Estratégia no seu território. Na prática, evoluiu de um quadro de 178 municípios cobertos
com o PACS (3.674 ACS) e 21 municípios com PSF (39 equipes) para 223 municípios (100%) com
PACS (5.960 ACS) e 210 (94%), com PSF (777 ESF) em 2002.
210
ao PSF além do repasse de R$ 10.000 (dez mil reais) por cada nova
equipe implantada.
j) Publicação do Manual para a Organização da Atenção Básica. O PSF é
destacado como a estratégia prioritária do Ministério da Saúde para a
organização da atenção básica;
k) Publicação da Revista Brasileira Saúde da Família
190
(números de 1 a 7 ).
As publicações divulgam a estratégia e o PSF, a partir de relato de
experiências, artigos e entrevistas com formadores de opinião;
l) Regulamentação do Pacto de Indicadores da Atenção Básica. O pacto teria
o objetivo de acompanhar e avaliar os resultados e o impacto da atenção
básica.
Num primeiro momento, a condução do pacto de indicadores da atenção
básica ficou sob a responsabilidade do Centro Nacional de Epidemiologia,
CENEPI/FUNASA/MS, sendo que, a partir de 2000, passou a ser coordenado pelo
Departamento de Atenção Básica. Segundo Silva (2003), sob a coordenação do
Departamento de Atenção Básica, o Pacto possibilitou agregar, em torno de um mesmo
objetivo, as práticas e percepções das diferentes áreas técnicas do Ministério da Saúde e
das secretarias estaduais e municipais de saúde.
Considerando ainda a autora, o Departamento de Atenção Básica
desenvolveu todo um conjunto de pesquisas que permitiram vários diagnósticos no
sentido de identificar avanços e limitações da estratégia em execução. Entre elas,
destacam-se: a) a avaliação da implantação e do funcionamento do PSF; b) o
diagnóstico da força de trabalho do PSF, envolvendo médicos e enfermeiros de todas as
equipes implantadas no momento da pesquisa; c) a pesquisa de avaliação dos Pólos de
Capacitação; d) a criação da Comissão de Acompanhamento e Avaliação dos Cursos de
Especialização e Residência Multiprofissional em Saúde da Família; e) a realização do
monitoramento da implantação e do funcionamento das equipes Saúde da Família; e f) o
desenvolvimento do PROESF – Projeto de Expansão do Programa de Saúde da Família.
Tem-se, em dados do Ministério da Saúde, o crescimento da Estratégia
Saúde da Família no período de 1998-2002. Quase quadruplicou o número de
municípios, passando de 1.134, em 1998, para 4.161 municípios, implantando o PSF
190
O número 06 da Revista (junho/2002) constituiu-se uma edição especial comemorativa da marca dos
50 milhões de pessoas acompanhadas pelo Programa de Saúde da Família.
211
como estratégia de organização da atenção básica em 2002. O número de ESF foi
multiplicado em mais de cinco vezes no mesmo período, numa evolução de 3.100 para
16.700 equipes. A implantação de ACS evoluiu de 79.700 agentes, em 1998, para
175.500, em 2002, ou seja, praticamente duplicou. A partir de 2001, o Ministério da
Saúde instituiu a odontologia na atenção básica, com Equipes de Saúde Bucal (ESB).
Foram implantadas, até o final de 2002, 4.261 ESBs. Finalmente, em termos de
cobertura total da população com a estratégia, houve uma evolução de 10,6 milhões de
habitantes, para 54,9 milhões, aproximadamente um terço de toda a população
brasileira
191
.
Todos os avanços enumerados tiveram, no entanto, uma relação muito
próxima com um fato que, por conta da sua relevância política, deve ser considerado:
foi a instituição do Manual da Atenção Básica. Esse documento legal foi o passo
decisivo do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso e da administração José
Serra, no sentido de uma virada para a adoção de uma política estratégica
192
voltada
para a implementação dos princípios do Sistema Único de Saúde. Com essa norma, o
governo tentava vencer a perspectiva de uma formulação focal para responder a
problemas que já haviam sido, de muito, diagnosticados como universais.
Logo, na apresentação do Manual, está escrito:
A prioridade dada à Atenção Básica representa um grande esforço para que o
sistema de saúde torne-se mais eficiente, consolide vínculos entre os serviços
e a população e contribua para a universalização do acesso e a garantia da
integralidade da assistência (BRASIL, 2001, p. 86).
Por outro lado, a introdução do mesmo documento expressava a
contribuição dada no sentido de regular, no âmbito do SUS, com a participação dos
vários setores do Ministério da Saúde, do CONASS e do CONASEMS, a atenção
191
Vejam-se os gráficos e mapas detalhando a evolução das coberturas com a Estratégia Saúde da Família
na secção de anexos deste trabalho.
192
Como os caminhos que conduzem a implementação das políticas setoriais não estão dissociados dos
caminhos da formulação política mais geral, de cunho partidário e de preservação ou acumulação de
poder político, Goulart (2002) interpreta o grande avanço da Estratégia Saúde da Família, no segundo
governo Fernando Henrique, também como uma política estratégica para tentar fazer de José Serra
Presidente da República, dando seqüência ao projeto de poder do PSDB. Assim se expressa o autor: “[...]
esse talvez tenha sido o fator mais notável para ascensão do PACS e do PSF. Ao que se diz, Serra já tinha
pretensões próprias e incentivo do presidente para ser o candidato à sucessão de 2002 e procurou pautar a
sua ação de modo a conferir visibilidade ao ministério e a sua pessoa. Sem impedimento de outros
projetos desenvolvidos, pode-se dizer que o PSF caiu como uma luva para os desejos de Serra”
(GOULART, 2002, p. 105). Aqueles que foram testemunhas e atores privilegiados em todos esses
acontecimentos da história recente da saúde brasileira e que representaram as tentativas de levar a cabo a
consolidação do Sistema Único de Saúde e da Estratégia Saúde da Família e mesmo as parcelas
significativas da população brasileira sintonizada com os movimentos políticos da República brasileira
tendem a compartilhar com a opinião desse autor.
212
básica, espelhando-se na NOB/01/96. Nesse sentido, o documento apresentava: a) o
conceito de atenção básica; b) as responsabilidades dos municípios como gestores desse
tipo de atenção; c) um elenco de ações, atividades, resultados e impactos esperados, que
traduziam as responsabilidades descritas; e d) as orientações sobre os repasses,
aplicações e mecanismos de acompanhamento e controle dos recursos financeiros que
compõem o Piso da Atenção Básica (PAB).
E deixava explícito o seu conceito de atenção básica como:
[...] um conjunto de ações, de caráter individual ou coletivo, situadas no
primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para a promoção da
saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação. [...] A ampliação
desse conceito se torna necessária para avançar na direção de um sistema de
saúde centrado na qualidade de vida das pessoas e de seu meio ambiente
(BRASIL, 2001, p. 87-88).
Acentuava, ainda, que a organização da atenção básica, sustentada no
conceito exposto, combinava-se com a Lei 8.080/90, cujo fundamento são os princípios
do SUS, e se baseia na saúde como direito, na integralidade da assistência, na
universalidade, na eqüidade, na resolutividade, na intersetorialidade, na humanização do
atendimento e na participação popular.
6.3 A Atenção Básica como política nacional
Fruto de progressos anteriores, em outros governos, o primeiro governo
Lula foi marcado pela consolidação da atenção básica como política nacional. A
Estratégia Saúde da Família já está presente em 91% dos municípios brasileiros.
Considerando-se apenas o PACS, já atingiu 95%, cobrindo uma população de
aproximadamente 60%
193
. Já se chegou a vinte sete mil ESF e a quinze mil ESB. Pode-
se dizer que, do ponto de vista de metas físicas, a Estratégia encontra-se consolidada.
Mas os principais avanços desse período não são as metas físicas
enumeradas. O significativo, realmente, é o avanço legal que conforma uma política
global de atenção à saúde e à estrutura ministerial que foi organizada para dar suporte
aos avanços normativos. No caso, a referência é à Portaria Ministerial MS/GM N.º 648,
193
A discrepância entre a alta cobertura de municípios e a cobertura populacional se dá pelo fato de a
adoção da Estratégia ser parcial em boa parte dos municípios, especialmente nos maiores.
213
de 28 de Março de 2006, que aprova a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB),
estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica
para o Programa de Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de
Saúde (PACS). Essa legislação é resultante de uma ampla pactuação entre as três esferas
de governo em nível da Comissão Intergestores Tripartite
194
. A portaria GM 648/2006
unifica, revisa e revoga um conjunto de 28 portarias que tratavam de aspectos vários da
atenção básica (Ver, na íntegra, esse documento, na secção de anexos deste trabalho).
Considerando-se o Anexo dessa portaria, no seu Capítulo I – Da Atenção
Básica – item 1, que trata dos princípios gerais dessa modalidade de atenção, temos que
A Atenção Básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no
âmbito
individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da
saúde, a
prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a
manutenção da saúde. É desenvolvida por meio do
exercício de práticas
gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho
em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais
assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente
no território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de elevada
complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas de saúde
de maior freqüência e relevância em seu território. É o contato preferencial
dos usuários com os sistemas de saúde. Orienta-se pelos princípios da
universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo e
continuidade, da integralidade, da responsabilização, da humanização, da
eqüidade e da participação social (BRASIL, 2006, p. 3. Grifos nossos).
O fragmento do item em destaque apresenta-se como algo paradigmático,
como uma ruptura com a prática médica tradicional, pois, além de caracterizar a
Atenção Básica como algo que abrange os domínios individual e coletivo com ações de
promoção, prevenção e reabilitação, o que amplia o escopo da atenção em relação à
medicina tradicional, elucida que essas práticas (gerenciais ou sanitárias) se
desenvolverão com base num exercício democrático e participativo. A ruptura se
aprofunda, ainda mais, quando prescreve o trabalho em equipe e estipula que esse
trabalho em equipe, portanto solidário, dá-se num território bem delimitado e dinâmico,
pelo qual a equipe assume a devida responsabilidade sanitária. Essa perspectiva
chancela o encaminhamento da prática médica no sentido de uma práxis médica.
194
A ampla pactuação aqui referida diz respeito aos princípios e às diretrizes propostos nos Pactos pela
Vida, em Defesa do SUS e de Gestão, entre as esferas de governo na consolidação do SUS que, entre
outras coisas, inclui a desfragmentação do financiamento da Atenção Básica.
214
Percebe-se, então, que há um novo modelo de ação/intervenção em
andamento
195
, que exige relações horizontais, formação de novas competências
196
e nova
compreensão do fazer saúde; uma perspectiva problematizadora e participativa; um
fazer e um saber fazer que não desconsideram a alteridade; um modelo que ajuda a
descortinar a complexa rede de relações e de informações que compõem a vida e a
saúde dos cidadãos usuários das ações e dos serviços de saúde; há uma perspectiva de
ação dialógica, no sentido freireano
197
, nas ações da Atenção Básica proporcionada pelo
PSF; há a vontade de um agir comunicativo, no sentido habermasiano
198
da locução, nas
prescrições da Estratégia
199
; um conjunto de atitudes para uma assimilação dos sentidos
contidos nos princípios doutrinários e organizativos do SUS
200
e na visão inovadora da
vigilância à saúde
201
, na sua prática cotidiana da atenção à saúde. Uma caminhada de
renovação da prática médica, apontando para outras bases praxiológicas.
É necessário, porém, ter-se em mente que, se os princípios doutrinários do
SUS e a visão inovadora da vigilância à saúde oferecem elementos importantes para a
195
Um modelo de atenção que “faz referência não apenas a programas específicos, mas ao modo como se
constrói a gestão de processos políticos, organizacionais e de trabalho que estejam comprometidos com a
produção dos atos de cuidar: do individual, do coletivo, do social, dos meios, das coisas e dos lugares, na
promessa de construir a saúde. O que será sempre, e, ao mesmo tempo, tarefa tecnológica, isto é, um certo
modo técnico de produzir o cuidar enquanto ato de saúde, comprometida com um jogo social implicado
com certas formas de se produzirem as necessidades de saúde, enquanto valores de uso, utilidades para
indivíduos e grupos” (MERHY, 2003, p. 16).
196
A temática das competências muito em voga, no momento, é extremamente complexa, vasta,
abrangente e polêmica e vem sendo trabalhada por diferentes autores em diferentes sentidos e campos.
Deseja-se aqui fazer referência a uma pedagogia das competências que discute a integração, a
interdisciplinaridade e a globalização do conhecimento. Essa abordagem se encontra-se em: RAMOS, M.
N. – A Pedagogia das Competências: autonomia ou adaptação?o Paulo, Cortez Editora, 2001,
particularmente no capítulo 5, que trata da noção de competências como ordenadoras das relações
educativas. Considerando-se a obra, como um todo, a autora faz uma verdadeira exegese da polissemia
que esse conceito encerra.
197
A dialogicidade, termo forjado pelo próprio autor, para além de um neologismo, constitui-se uma
atitude metodológica que perpassa toda a obra de Freire, que a define como a essência da educação
enquanto prática da liberdade. Na dialogicidade, ação e reflexão são indissociáveis.
198
O agir comunicativo proposto por Habermas se dá na comunicação cotidiana através de interações,
lingüisticamente mediatizadas, entre sujeitos. A obra do autor que trata dessa problemática é:
HABERMAS, J. – Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989.
199
A estratégia Saúde da Família, por ser um projeto estruturante, deve provocar uma transformação
interna do sistema, com vistas à reorganização das ações e dos serviços de saúde. Essa mudança implica
ruptura da dicotomia entre as ações de saúde pública e a atenção médica individual, assim como, entre as
práticas educacionais e assistenciais (SOUSA, 2000, p. 26).
200
A Constituição Federal e a Lei Orgânica da Saúde (8.080/90) definem que o SUS funcionará com um
comando único por esfera de governo, tendo como princípios doutrinários: a universalidade, a
integralidade e a eqüidade; e como princípios organizativos: a descentralização, a regionalização, a
hierarquização e a participação popular;
201
Teixeira, Paim e Vilasbôas (1999) resumem a Vigilância à Saúde em sete características básicas:
intervenção sobre problemas de saúde (danos, riscos e/ou determinantes); ênfase em problemas que
requerem acompanhamentos contínuos; operacionalização do conceito de risco; articulação de ações
promocionais, preventivas e curativas; atuação intersetorial; ações sobre o território e intervenção sob
forma de operações.
215
possibilidade de eficácia política e social da Estratégia Saúde da Família, também
apontam para a necessidade de criação de novas competências profissionais, sociais e
éticas. Os princípios, por si sós, não respondem, em que pese todos os avanços
conseguidos, à questão de como construí-las na prática, enfrentando os limites, as
tensões e contradições da própria prática médica, resultantes de um modelo de
sociedade baseado cada vez mais no individualismo, na competição, na desigualdade e
na exclusão das maiorias.
A prescrição ministerial é fruto de avanços teóricos e práticos do próprio
SUS e da Estratégia Saúde da Família. Porém o crescimento exponencial, em termos de
equipes e de profissionais absorvidos, dá-se ainda num contexto em que a escola - a
escola médica, em particular - ainda continua pedagogicamente autoritária,
comprometida com a transmissão do conhecimento, condicionadora, controladora e
acrítica em termos do seu papel social e, por isso mesmo, descomprometida com a
transformação da realidade social onde atuam/atuarão os seus educandos. Ressalte-se,
entretanto, que as demais políticas sociais não estão distantes desse perfil. Não faz uma
leitura correta das necessidades reais da população. E, na medida em que a leitura é
incorreta, as medidas tomadas não são capazes de enfrentar essas necessidades.
Percebe-se que as políticas, em geral, não têm apostado no desenvolvimento da
comunidade e na construção de sujeitos autônomos e emancipados
202
.
Outra questão importante para a Estratégia Saúde da Família é a necessidade
de se utilizar uma tecnologia de complexidade alta e de baixa densidade. Isso significa
uma atenção e atuação que considere os diversos ângulos do problema que está sendo
enfrentado e a possibilidade de ser resolvido no próprio nível em que se dá e onde se
encontra o usuário do serviço, o que não quer dizer que não deva estar atenta (a atenção
202
O Bolsa Família, o maior e mais ambicioso programa de transferência de renda da história do Brasil,
uma política social emblemática do atual governo, serve bem como exemplo para o que se quer afirmar.
Foi criado para enfrentar o maior desafio da sociedade brasileira, que é combater a fome e a miséria para,
a partir disso, promover a emancipação das famílias mais pobres do país. É um programa que associa a
transferência do benefício financeiro ao acesso a direitos sociais básicos – saúde, alimentação, educação e
assistência social. Um programa com essa envergadura pressupõe a ação de todas as esferas de governo
articuladas com a sociedade e as famílias beneficiárias, e esse, talvez, seja o maior dos seus óbices. Pouco
adianta o setor saúde tentar efetivar o compromisso de garantir as ações básicas de saúde em conjunto
com as famílias, porquanto outras condicionalidades precisam ser cumpridas. É verdade que melhorou a
capacidade de consumo de milhões de famílias, mas ainda não se avançou, de forma concisa, no sentido
do combate à desigualdade, o verdadeiro problema da sociedade brasileira.
216
básica) para a necessidade e possibilidade do seu uso, de forma mais densa, num nível
de atenção hierarquicamente superior do sistema
203
.
O princípio geral dessa modalidade de atenção está centrado nas
necessidades decorrentes do processo saúde-doença de cada comunidade. A unidade de
saúde e o domicílio são considerados como o lócus de contato preferencial dos usuários
com o sistema de saúde. Essa posição é, pois, de rompimento com o modelo flexneriano
que coloca o hospital como centro irradiador da atenção à saúde. Depois, orienta-se
ainda pela universalidade, acessibilidade e pela coordenação do cuidado, da
continuidade da integralidade, da responsabilização, da humanização, da eqüidade e da
participação social, o que a distancia, de forma cabal, do modelo tradicional já
caracterizado.
Quando se faz referência às necessidades geradas pelo fenômeno saúde-
doença, quer-se falar, na verdade, de um conjunto de atributos mais ou menos objetivos
que, presentes na vida das pessoas e das coletividades ou ausentes dela, influenciam
direta e indiretamente no seu estado de saúde. Nessa perspectiva, as necessidades de
saúde dependem, primeiramente, das condições de vida das pessoas ou das
coletividades para quem são produzidas ou estão endereçadas as políticas de saúde,
depois, do acesso destas às tecnologias que melhoram ou prolongam a vida, do vínculo
afetivo efetivo existente entre os usuários de ações e de serviços e as equipes ou
profissionais de saúde, executores diretos das políticas e, finalmente, do grau de
autonomia construído pela população no seu modo de conduzir a vida
204
.
Quando se faz referência às condições de vida, deseja-se argumentar que
essas condições podem ser, e normalmente o são, muito diversas. Essa diversidade gera
distintos modos de vida que, por sua vez, traduzem-se em diferentes necessidades de
saúde. Isso tem rebatimento, por exemplo, sobre a necessidade de acesso a serviços e
ações de saúde e, assim, às tecnologias que melhoram a saúde e prolongam a vida.
203
Essa distinção é importante para que não se caia no erro que já se caiu no passado - de achar que a
atenção básica ou atenção primária significa uma medicina de segunda categoria ou pouco resolutivo. Ao
contrário, nessa concepção, fica descartada qualquer possibilidade de se interpretar a atenção básica como
algo simples ou simplificado, como medicina para pobre ou para pessoas que devam ser encaradas
segundo sua capacidade de consumo. A Atenção Básica não é uma modalidade de atenção com carimbo
sócio-econômico. Ela é a porta de entrada do usuário do SUS no sistema de atenção à saúde e, portanto,
deve ser universal, integral, equânime e resolutiva. Deve, ainda, ser permeável, o tempo todo, à
participação popular e ao controle social.
204
Esses elementos todos, que compõem a equação da atenção à saúde, estão definidos em CECÍLIO
L.C.O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e eqüidade na
atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA (organizadores). Os sentidos da integralidade na atenção e
no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de
Janeiro/ABRASCO; 2001. p. 113-26.
217
Nesse caso, é importante reconhecer que o valor de uso de cada tecnologia é
determinado pela necessidade de cada pessoa, em cada momento.
As tecnologias aqui referidas podem ser tanto as duras, ou seja, as que se
baseiam nos processos técnicos específicos das ciências físicas e naturais – que
produzem máquinas e equipamentos que são utilizados na assistência direta a quem
delas necessitar em algum momento ou lugar do sistema de saúde – quanto as
tecnologias ditas leves, aquelas produzidas através dos processos sociais protagonizados
por expressões das ciências humanas (CECÍLIO, 2001).
Convém enfatizar que o vínculo afetivo efetivo é aquele que se baseia
sempre na relação contínua, pessoal e calorosa entre os atores que se encontram na cena
própria dos cuidados em saúde, na convivência e na sensibilidade que, juntas, são
capazes de construir relações críticas construídas através do diálogo que gera
solidariedade, partilha e construção de conhecimento, atitudes éticas e fraternas entre os
homens e compromisso com a esperança e a emancipação.
Quanto à questão da autonomia no modo de fazer andar a vida, é muito
importante considerar o papel da informação e da educação para a vida das pessoas, mas
é igualmente imperioso reconhecer que educação e informação são condições
necessárias, mas não suficientes para a construção da autonomia. A autonomia efetiva
vai além desses dois atributos e não se realiza apenas por seu intermédio. Ela se
configura na liberdade e na efetivação do direito de fazer-se sujeito, de escolher
caminhos próprios e exercer em plenitude a sua integridade física e moral. Dito de outra
forma, de exercer a sua cidadania, única condição em que as necessidades de saúde
podem se converter em demandas efetivas pela melhoria da saúde.
6.4 A Política Nacional de Atenção Básica: seus fundamentos, sua organização
A Atenção Básica tem, na Saúde da Família, sua estratégia prioritária de
organização, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde. Considera o
sujeito em sua singularidade, complexidade, integralidade e inserção sócio-cultural, para
buscar a promoção de sua saúde, a prevenção e o tratamento de doenças e a redução de
danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo
saudável. Assumindo essa atitude, aproxima-se de uma atenção horizontal, educativa e
218
popular, posto que abre espaço para que se volte às maiorias, ao diálogo e a uma
perspectiva de práxis.
Nesse diapasão, a Atenção Básica define como seus fundamentos:
I - Possibilitar o acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade
e resolutivos, caracterizados como a porta de entrada preferencial do sistema
de saúde, com território adscrito de forma a permitir o planejamento e a
programação descentralizada e em consonância com o princípio da eqüidade;
II efetivar a integralidade em seus vários aspectos, a saber: integração de
ações programáticas e demanda espontânea; articulação das ações de
promoção à saúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde, tratamento e
reabilitação, trabalho de forma interdisciplinar e em equipe e coordenação do
cuidado na rede de serviços;
III - desenvolver relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a
população adscrita, garantindo a continuidade das ações de saúde e a
longitudinalidade do cuidado;
IV - valorizar os profissionais de saúde por meio do estímulo e do
acompanhamento constante de sua formação e capacitação;
V - realizar avaliação e acompanhamento sistemático dos resultados
alcançados, como parte do processo de planejamento e programação; e
VI - estimular a participação popular e o controle social” (BRASIL, 2006, p.
3-4).
A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), no item 02 do mesmo
anexo, define também as responsabilidades de cada esfera de governo, disciplinando as
competências de cada uma delas no cumprimento dos princípios da Atenção Básica, na
organização e execução das ações, assim como na avaliação dos seus resultados em todo
o território nacional. Define, ainda, no item 03, a infra-estrutura mínima e os recursos
necessários à realização das ações de atenção básica nos municípios e no distrito
federal. Nessa estrutura, é imprescindível:
a) a Unidade Básica de Saúde (UBS) com ou sem Saúde da Família inscrita
no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da
Saúde, de acordo com as normas sanitárias vigentes;
b) UBS com ou sem Saúde da Família, contando com equipe
multiprofissional composta por médico, enfermeiro, cirurgião-dentista,
auxiliar de consultório dentário ou técnico em higiene dental, auxiliar de
enfermagem ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde,
entre outros, de acordo com o desenvolvimento de suas ações,
disponibilizadas;
c) consultório médico, consultório odontológico e consultório de
enfermagem para os profissionais da Atenção Básica;
d) área de recepção, local para arquivos e registros, uma sala de cuidados
básicos de enfermagem, uma sala de vacina e sanitários, por unidade;
219
e) equipamentos e materiais adequados ao elenco de ações propostas, de
forma a garantir a resolutividade da Atenção Básica;
f) garantia dos fluxos de referência e contra-referência aos serviços
especializados, de apoio diagnóstico e terapêutico, ambulatorial e
hospitalar; e
g) existência e manutenção regular de estoque dos insumos necessários para
o funcionamento das unidades básicas de saúde, incluindo dispensação
de medicamentos pactuados nacionalmente.
Para Unidade Básica de Saúde (UBS) sem Saúde da Família em grandes
centros urbanos, recomenda-se o parâmetro de uma UBS para até 30 mil habitantes,
localizada dentro do território pelo qual tem responsabilidade sanitária, garantindo os
princípios da Atenção Básica. Em cada UBS, conforme o item 04 do anexo da mesma
Portaria N.º 648, deverá existir um cadastro junto ao Ministério da Saúde para poder
funcionar. Sendo que o cadastramento será feito pelos gestores municipais e do Distrito
Federal em consonância com as normas do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de
Saúde.
É importante enfatizar que é de grande relevância, na prescrição dessa
política, a definição do processo de trabalho das equipes de Atenção Básica, item 06 do
capítulo I do anexo da PNAB, sendo características fundamentais:
I - Definição do território de atuação das UBS;
II - programação e implementação das atividades, com a priorização de
solução dos problemas de saúde mais freqüentes, considerando a
responsabilidade da assistência resolutiva à demanda espontânea;
III -
desenvolvimento de ações educativas que possam interferir no processo
de saúde-doença da população e ampliar o controle social na defesa da
qualidade de vida;
IV - desenvolvimento de ações focalizadas sobre os grupos de risco e fatores
de risco comportamentais, alimentares e/ou ambientais, com a finalidade de
prevenir o aparecimento ou a manutenção de doenças e danos evitáveis;
V - assistência básica integral e contínua, organizada à população adscrita,
com garantia de acesso ao apoio diagnóstico e laboratorial;
VI -
implementação das diretrizes da Política Nacional de Humanização,
incluindo o acolhimento;
VII - realização de primeiro atendimento às urgências médicas e
odontológicas;
VIII -
participação das equipes no planejamento e na avaliação das ações;
IX - desenvolvimento de ações intersetoriais, integrando projetos sociais e
setores afins, voltados para a promoção da saúde; e
X - apoio a estratégias de fortalecimento da gestão local e do controle social
(BRASIL, 2006, p. 7-8. Grifos nossos).
Dentre esses aspectos orientadoras do processo de trabalho das equipes de
atenção básica, todos fundamentais para um trabalho eficiente e eficaz na atenção à
220
saúde, três são particularmente importantes para o processo de trabalho do médico e
merecem aqui ser ressaltados, até mesmo em função do foco da nossa pesquisa. São as
que envolvem: a) ações educativas com o fito de ampliar a atuação da população na
defesa da sua qualidade de vida; b) as que dizem respeito ao acolhimento e ao trabalho
humanizado; e c) a participação no planejamento e avaliação das ações de saúde. Elas
exigem, antes de tudo, que a atuação desse profissional esteja pautada numa perspectiva
e numa atitude dialógica.
A ação educativa do médico, capaz de interferir no processo de saúde-
doença da população e de ampliar a possibilidade de participação dela no controle social
e na defesa da qualidade de vida, não acontecerá na ausência do diálogo. Presente, o
diálogo será uma ferramenta fundamental, capaz de promover a elevação da eficácia da
ação de saúde, e de valor inestimável para a participação do próprio médico, no interior
das equipes ou fora delas (no território), no planejamento e na avaliação das ações em
que está inserido, como ator social de destaque. Mas a dialogicidade que se quer
presente na práxis médica talvez atinja o seu ápice no processo de acolhimento e
humanização das ações de saúde.
Há uma ética da responsabilidade nas políticas de saúde, nas políticas
sociais em geral, que exige a participação e a democracia, fios condutores da
implementação das políticas sociais e que, quando exercitadas em conjunto,
proporcionam a partilha das decisões. Do contrário, quando ausentes, poderão levar a
uma compreensão errônea de que essas políticas são dádivas dos administradores ou dos
governantes do momento. Nesse sentido, o diálogo é essencial. É ele que aproxima os
seres humanos e abre caminho para a partilha das decisões, capaz de propiciar a
autonomia dos indivíduos e da coletividade. Ele se torna fundamental e dá sentido à
política do próprio Ministério da Saúde
que, nos seus documentos, tem trabalhado a
humanização como uma política transversal tradutora dos princípios do SUS,
construtora de trocas solidárias e comprometidas com a dupla tarefa de produção de
saúde e produção de sujeitos, articuladora das práticas em saúde, destacando o aspecto
subjetivo nelas presente
205
.
205
Nas suas publicações formais, explicitadoras da Política Nacional de Humanização – PNH, o MS
assume que visa valorizar os diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários,
trabalhadores e gestores; fomentar a autonomia e o protagonismo desses sujeitos; aumentar o grau de co-
responsabilidade na produção de saúde e dos sujeitos, estabelecendo vínculos solidários e de participação
coletiva no processo de gestão. Também promete identificar as necessidades sociais de saúde, mudar os
modelos de atenção e gestão dos processos de trabalho, tendo como foco as necessidades dos cidadãos e a
produção de saúde.
221
O sentido da humanização desejada pelo Ministério da Saúde para as ações
do SUS pode ser encontrado em Fortes e Martins (2000), que concebem o ato de
humanizar como ação concreta, como explicitação prática do reconhecimento das
pessoas, aquelas que buscam os serviços de saúde para a resolução de suas necessidades
de saúde, como sujeitos de direitos. Essa ação humanizadora ganha maior relevância na
Estratégia Saúde da Família, montada dentro de uma perspectiva acolhedora de cada
pessoa e de cada família na sua singularidade, nas suas necessidades específicas, com
seus valores, crenças e desejos, ampliando as possibilidades para que possam exercer
sua autonomia.
A PNABS preceitua, ainda, no seu item 6 (p.8), as atribuições dos membros
das equipes de Atenção Básica, sendo que as atribuições específicas dos profissionais
que trabalham nesse programa deverão constar de normatização do município e do
Distrito Federal, de acordo com as prioridades definidas pela respectiva gestão e as
prioridades nacionais e estaduais pactuadas. No item 7 (idem), o processo de educação
permanente das equipes é de responsabilidade conjunta das SMS e das SES, nos
estados, e da Secretaria de Saúde do Distrito Federal.
De acordo com a política, os conteúdos mínimos da Educação Permanente
devem priorizar as áreas estratégicas da Atenção Básica, acordadas na CIT, acrescidos
das prioridades estaduais, municipais e do Distrito Federal. Devem compor o
financiamento da Educação Permanente recursos das três esferas de governo acordados
na CIT e nas CIBs. Os serviços de Atenção Básica deverão adequar-se à integração
ensino-aprendizagem de acordo com processos acordados na CIT e nas CIBs.
A implementação da Atenção Básica é, pois, uma experiência que, aos
poucos, vai se sedimentando na medida em que se desvincula da visão clássica de
atenção à saúde voltada para o puramente assistencial/curativo, sustentado por uma
tecnologia quase sempre centrada no hospital. Quando funcionam adequadamente,
dentro do modelo da Saúde da Família, as unidades básicas de saúde (UBS) têm
mostrado que são capazes de resolver boa parte dos problemas de saúde de uma
comunidade, prestando um atendimento de bom nível, prevenindo doenças, evitando
internações desnecessárias e melhorando a qualidade de vida da população.
As equipes da Estratégia Saúde da Família incorporam e reafirmam os
princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS) – universalidade,
222
integralidade, eqüidade e participação da comunidade – e estão estruturadas a partir da
Unidade Básica de Saúde da Família. E quando organizadas a partir do conceito de
equipe mínima, proposto pela Estratégia, incluem profissionais de nível superior – casos
do médico e do enfermeiro – e um profissional de nível médio, o auxiliar de
enfermagem. Incorporam, ainda, nas áreas onde ele já esteja implantado, uma equipe de
quatro a seis agentes comunitários de saúde (ACS) – lideranças selecionadas a partir de
indicação das próprias comunidades assistidas, que passam a desenvolver o importante
trabalho de elo permanente entre a comunidade e a equipe de saúde
206
(BRASIL, 2001).
Desde a sua implantação, a partir de 1994, com a implementação das
primeiras equipes de saúde, a Estratégia Saúde da Família tem se firmado como uma
iniciativa para reorganizar as práticas de atenção primária em saúde. Substitui o modelo
tradicional de atenção, onde este exista, por um novo modelo que, chegando mais perto
da família, pode ajudar a melhorar a sua qualidade de vida. Entretanto, como a rede de
serviços de atenção básica tem um histórico caótico, pode-se dizer que a Estratégia, na
verdade, tem funcionado como impulsionadora de uma universalização que herda a
maioria dos problemas relativos à implementação das políticas de saúde e da prática
médica no país.
Esse é um processo recente e ainda em construção. O novo modelo de
atenção que a Estratégia Saúde da Família está universalizando ainda está em processo,
em gestação. E, em se tratando da prática médica, as quase vinte e sete mil ESFs ainda
não são a expressão do novo, enquanto um exercício consolidado de transformação da
prática médica. Os profissionais descentralizados representam, majoritariamente, ainda,
o modelo tradicional de natureza disciplinar, biomédica; de comportamento individual
coercitivo (não dialógico), centrado na recuperação da saúde. Um conjunto ainda preso
a uma tecnologia de intervenção assistencial formatada num modelo de atenção que
privilegia o curativo que vem da estrutura organizacional de tendência centrípeta –
voltada para o serviço de saúde, para o profissional médico e ainda pouco permeável à
206
As equipes também podem ser formadas a partir de outros desenhos alternativos à equipe mínima
inicial. No município de João Pessoa, considerando-se a atual administração, todas as equipes são
formadas com a inclusão do odontólogo e do auxiliar de consultório dentário (ACD). Há ainda a
possibilidade, a depender do modelo assistencial empregado, de se absorver o técnico de higiene dental
(THD). Porém, há uma recomendação (não há obrigação) do Ministério da Saúde de que essas equipes
nasçam incorporando o profissional dentista e o auxiliar de consultório dentário (ACD). Há liberdade,
também, para os municípios organizarem as suas equipes da melhor forma que lhes aprouver, desde que
respeitem o módulo mínimo para composição das equipes. Ainda se tratando da Paraíba, Campina Grande
incorporou o assistente social em boa parte das suas equipes. Cabedelo, por seu turno, incorporou o
profissional nutricionista.
223
participação popular. Porém, espera-se que esse conjunto de equipes em atividade se
junte às que ainda virão e sejam os parteiros do novo modelo de atenção que se quer
consolidar.
A Estratégia Saúde da Família, implantada e implementada em conjunto
com estados e municípios, tem a finalidade de promover um amplo processo de
reorganização da atenção à saúde no país. Por isso encara os seus integrantes não apenas
como profissionais que se responsabilizam pela promoção, prevenção e recuperação da
saúde dos usuários dos serviços e ações de saúde, mas também como educadores que
devem compartilhar e discutir com eles e com a população em geral os problemas do
cotidiano do seu território e a interferência desses problemas no seu estado de saúde
(BRASIL, 2001).
Convém destacar, também, a importância, nessa concepção de atenção à
saúde, do processo de hierarquização dos problemas e a sua classificação como
passíveis ou não de resolução no próprio território, através de uma atuação conjunta da
equipe de saúde com a comunidade, na busca de possíveis pistas e estratégias de
atuação que visem à superação dos problemas, mesmo quando estes estejam, em
princípio, fora de sua governabilidade.
A Estratégia Saúde da Família, na medida em que se consolida por dentro
do Sistema Único de Saúde, provoca um conjunto de rupturas que, de certa forma, põem
em cheque os modelos anteriores de formação e de prática médica. A referência aqui é
à visão de saúde-doença e de prática médica que, historicamente, preponderou no
modelo médico clássico, agora colocado frente a frente com as concepções que vêm
sendo construídas nas últimas décadas e que são assumidas pelo PSF enquanto visão e
perfil profissional a serem exigidos das equipes de saúde que compõem seu modelo de
atenção.
Segundo Paim (2000), a idéia de que saúde da família representa uma
possibilidade de reestruturar práticas em saúde ou, quem sabe, o próprio sistema, foi
construída não só a partir de uma sistematização de concepções que estavam na
literatura mas, sobretudo, com o trabalho militante que se faz no cotidiano dos serviços
de saúde. Por mais que se explicite, no nível do discurso, o que é a Saúde da Família ou
o que não deve ser a Saúde da Família, ela será aquilo que os sujeitos sociais, nos seus
espaços de trabalho, nos seus espaços de vida, conseguem produzir, ao se confrontarem
com projetos distintos, que disputam um mesmo espaço político-social. Não basta
declarar que a proposta de Saúde da Família é uma estratégia capaz de reestruturar as
224
práticas e o sistema de saúde porque, ao mesmo tempo, diferentes atores constroem um
projeto de Saúde da Família muito mais vinculado, por exemplo, a uma idéia de serviço
especial ou de um programa especial. A idéia da estratégia tem a ver com a
possibilidade de, com base em uma determinada direcionalidade, dar determinados
passos à frente, dar uma segurada estratégica ou mesmo dar passos para trás (PAIM,
2000, p. 31).
As ESFs organizam o seu processo de trabalho a partir da realidade das
famílias pelas quais é responsável. Entre as suas tarefas primordiais, estão as de:
a) Manter atualizado o cadastramento das famílias e dos indivíduos e utilizar,
de forma sistemática, os dados para a análise da situação de saúde,
considerando as características sociais, econômicas, culturais, demográficas e
epidemiológicas do território;
b) Definir precisamente o território de atuação, mapeamento e
reconhecimento da área adstrita, que compreenda o segmento populacional
determinado, com atualização contínua;
c) Diagnosticar, programar e implementar as atividades, segundo critérios de
risco à saúde, priorizando a solução dos problemas de saúde mais freqüentes;
d)
Praticar o cuidado familiar ampliado, efetivado por meio do conhecimento
da estrutura e da funcionalidade das famílias que visa propor intervenções
que influenciem os processos de saúde-doença dos indivíduos, das famílias e
da própria comunidade;
e) Realizar trabalho interdisciplinar e em equipe, integrando áreas técnicas e
profissionais de diferentes formações;
f) Promover e desenvolver ações intersetoriais, buscando parcerias e
integrando projetos sociais e setores afins, voltados para a promoção da
saúde, de acordo com prioridades e sob a coordenação da gestão municipal;
g) Valorizar os diversos saberes e práticas na perspectiva de uma abordagem
integral e resolutiva, possibilitando a criação de vínculos de confiança com
ética, compromisso e respeito;
h) Promover e estimular a participação da comunidade no controle social, no
planejamento, na execução e na avaliação das ações; e
i) Acompanhar e avaliar sistematicamente as ações implementadas, visando à
readequação do processo de trabalho (BRASIL, 2006, p. 11-12. grifos
nossos).
Essas tarefas definem a própria essência da Saúde da Família, em que a
questão do cuidado é central, pois a família é, antes de tudo, uma estrutura complexa. E
entender essa complexidade é tarefa do médico assim como de toda a equipe. O segredo
disso está em tentar compreender cada pessoa no seio do seu núcleo familiar e cada
família no contexto mesmo em que está inserida. Essa é uma chave importante e de
grande ajuda na perspectiva do cuidado ampliado.
Devido às condições econômicas e financeiras das últimas décadas, a
família contemporânea tornou-se diferente da de outrora e passou a agregar várias
gerações. Ou seja, é cada vez mais comum a existência de domicílios que agregam ao
seu núcleo (pais e filhos) os idosos de um ou até dos dois lados do casal. Da mesma
225
forma, também pode ocorrer que filhos adultos constituam sua própria família,
continuando sobre o teto dos pais. O conhecimento e, mais que isso, o reconhecimento
dessas novas possibilidades de estrutura familiar é um fator a mais a ser considerado
dentro do cuidado ampliado às famílias.
A visão de processo de produção da saúde e o cuidado com o adoecimento
ganharam outra complexidade com a convivência de vários ciclos de vida sob um
mesmo teto. Ganha relevo, então, o trabalho interdisciplinar e em equipe, integrando
áreas técnicas e profissionais de diferentes formações. Mas sempre caberão ao médico e
à equipe a proposição e execução de intervenções que influenciem positivamente o
processo de saúde-doença dos indivíduos, das famílias e, por extensão, da própria
comunidade.
O olhar e o agir exigem de cada profissional das equipes interdisciplinares a
valorização dos diversos saberes e práticas que estão incrustados na tradição das
famílias e da comunidade. Isso observado, amplia-se a perspectiva de uma abordagem
integral e resolutiva que possibilite a criação de vínculos de confiança capazes de
propiciar uma relação fundada na ética do diálogo, do compromisso e do respeito
mútuos. Essa atitude abre espaço para que a promoção e o desenvolvimento de ações
intersetoriais possam ser pensados e executados dentro do próprio território de adscrição
de uma equipe.
Poe essa razão, é importante a produção de parcerias que integrem projetos
sociais e iniciativas já existentes ou que possam reunir setores afins voltados para a
promoção da saúde, ali mesmo onde as necessidades são geradas. Tudo isso,
respeitando-se as prioridades definidas no planejamento integrado equipe/comunidade,
coordenado de forma democrática pelas instâncias gestoras criadas e sob a coordenação
da gestão municipal.
Considerando-se ainda a Portaria GM/Nº. 648 de 23/03/2006, que aprovou a
Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e de normas
para a organização da Atenção Básica para o Programa de Saúde da Família (PSF) e o
Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS), são atribuições comuns a todos os
profissionais ( incluindo-se o médico):
a) Participar do processo de territorialização e mapeamento da área de
atuação da equipe, identificando grupos, famílias e indivíduos expostos a
riscos, inclusive aqueles relativos ao trabalho, e da atualização contínua
dessas informações, priorizando as situações a serem acompanhadas no
planejamento local;
226
b) Realizar o cuidado em saúde da população adscrita, prioritariamente no
âmbito da unidade de saúde, no domicílio e nos demais espaços comunitários
(escolas, associações, entre outros), quando necessário;
c) Realizar ações de atenção integral conforme a necessidade de saúde da
população local, bem como as previstas nas prioridades e protocolos da
gestão local;
d) Garantir a integralidade da atenção por meio da realização de ações de
promoção da saúde, prevenção de agravos e curativas e da garantia de
atendimento da demanda espontânea, da realização das ações programáticas e
de vigilância à saúde;
e) Realizar busca ativa e notificação de doenças e agravos de notificação
compulsória e de outros agravos e situações de importância local;
f)
Realizar a escuta qualificada das necessidades dos usuários em todas as
ações, proporcionando atendimento humanizado e viabilizando o
estabelecimento do vínculo;
g) Responsabilizar-se pela população adscrita, mantendo a coordenação do
cuidado mesmo quando esta necessita de atenção em outros serviços do
sistema de saúde;
h) Participar das atividades de planejamento e avaliação das ações da equipe,
a partir da utilização dos dados disponíveis;
i) Promover a mobilização e a participação da comunidade, buscando efetivar
o controle social;
j) Identificar parceiros e recursos na comunidade, que possam potencializar
ações intersetoriais com a equipe, sob coordenação da SMS;
k) Garantir a qualidade do registro das atividades nos sistemas nacionais de
informação na Atenção Básica;
l)
Participar das atividades de educação permanente; e
m) Realizar outras ações e atividades a serem definidas de acordo com as
prioridades locais (BRASIL, 2001 p. 21).
Todas as atribuições descritas acima exigem dos profissionais que se
coloquem numa atitude de horizontalidade e diálogo. Que estejam atentos para que o
encontro que promovem com o seu outro seja, antes de tudo, um encontro de saberes e
culturas que podem ser diversas, mas sempre voltadas para a criação e a transformação
do espaço (território) que, juntos, conhecem e compartilham e que, ao mesmo tempo,
querem diverso, voltado para a produção da saúde e para a qualidade de vida. E como
chegar a esse ponto sem o conhecimento mútuo que o diálogo e o vínculo afetivo
efetivo propiciam? Como chegar ao nível do cuidado, senão pela entrega e pela troca de
saberes que só a relação de confiança proporciona e que o vínculo efetiva? Essa é uma
troca de saberes que só se faz pela pronúncia das palavras que dizem do horizonte onde
cada um se encontra e de onde cada um lê o mundo, suas possibilidades e
circunstâncias. Troca de saberes que só se faz pela escuta, que revela o sentido e a
perspectiva do outro, uma perspectiva que poderá estar abrindo o espaço que produz ou
define os elementos para as atividades de educação permanente de ambos - profissionais
e população.
Talvez, seja essa perspectiva que ofereça o substrato para as atividades
específicas definidas para o profissional médico, quais sejam:
227
a) Realizar assistência integral (promoção e proteção da saúde, prevenção de
agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde) aos
indivíduos e famílias em todas as fases do desenvolvimento humano:
infância, adolescência, idade adulta e terceira idade;
b) Realizar consultas clínicas e procedimentos na USF e, quando indicado ou
necessário, no domicílio e/ou nos demais espaços comunitários (escolas,
associações etc);
c) Realizar atividades de demanda espontânea e programada em clínica
médica, pediatria, gineco-obstetrícia, cirurgias ambulatoriais, pequenas
urgências clínico-cirúrgicas e procedimentos para fins de diagnósticos;
d) Encaminhar, quando necessário, usuários a serviços de média e alta
complexidade, respeitando fluxos de referência e contra-referência locais,
mantendo sua responsabilidade pelo acompanhamento do plano terapêutico
do usuário, proposto pela referência;
e) Indicar a necessidade de internação hospitalar ou domiciliar, mantendo a
responsabilização pelo acompanhamento do usuário;
f) Contribuir e participar das atividades de Educação Permanente dos ACS,
Auxiliares de Enfermagem, ACD e THD; e
g) Participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado
funcionamento da USF (BRASIL, 2001, p. 23).
Como se pode ver, o conceito de assistência do PSF se amplia no horizonte
de uma atenção à saúde, que extrapola a UBS e se estende à comunidade, ao domicílio e
ao acompanhamento do atendimento nos serviços de referência ambulatorial ou
hospitalar. O desenvolvimento de ações educativas e intersetoriais se coloca como uma
estratégia de eleição para enfrentar os problemas de saúde identificados. O médico não
está sozinho, mas apoiado por uma equipe de profissionais e auxiliares que, como ele, é
co-responsável pela ação no território. O diálogo, então, torna-se ferramenta
fundamental no processo, pois expande, dá sentido e materialidade a sua práxis
profissional, que é um dos pontos nevrálgicos da Estratégia.
Pode-se dizer que, depois de pouco mais de uma década de experiência da
Estratégia, desde a implantação das primeiras equipes até o momento atual em que elas
estão espalhadas por todo o território nacional, seguindo a tendência observada em
diferentes países
207
e continentes, foram experimentadas importantes conquistas tanto no
plano teórico-metodológico quanto no campo prático-político da saúde
208
. Isso, de tal
forma que se torna fácil o reconhecimento da evolução da saúde no país, especialmente
207
Cuba, Canadá, Inglaterra e países escandinavos como Suécia, são bons exemplos de reformas
sanitárias positivas que serviram de base para a montagem da estratégia de reorganização da atenção
primária de saúde e do Programa de Saúde da Família. Para aprofundar o assunto, ver, VIANA, A.L.D. &
DALPOZ, M.R. – A Reforma do Sistema de Saúde no Brasil e o Programa de Saúde da Família.
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 8(2): 11-48. 1998;
208
Esses avanços se devem, em grande medida, às propostas e reflexões consubstanciadas em trabalhos
de diversos e importantes autores latino-americanos, entre eles, vários brasileiros. Não podemos deixar de
citar: Juan César Garcia, Vicente Navarro, Asa Cristina Laurell, Jaime Breilh, Carlos Gentile de Melo,
Cecília Donnângelo, Sérgio Arouca, Hésio Cordeiro, David Capistrano, Anamaria Tambellini, Jairnilson
Paim, Gastão Wagner de Sousa Campos, Emerson Merhy, Lílian Schraiber, Victor Vicent Valla e Cecília
Minayo, entre tantos.
228
a relativa à atenção básica. Essa evolução se deu – é preciso que seja reafirmado sempre
– fruto de uma intervenção eficiente e eficaz de um amplo movimento pró-Reforma
Sanitária que, malgrado os tempos difíceis, soube unificar, mesmo na diversidade de
propostas, os diversos movimentos, partidários ou não, que faziam oposição política e
ideológica à ditadura militar; e que, depois, com a volta da normalidade institucional e
da democracia, soube galvanizar na sociedade um movimento ainda maior que logrou
transformar em políticas e conquistas o que antes era apenas sonho. Um sonho que
ainda não acabou.
229
7 A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA: CONTRADIÇÕES, CONFLITOS EM
RELAÇÃO À PRÁTICA MÉDICA – UMA VIVÊNCIA
A implementação da Estratégia Saúde da Família (PSF), como forma
viabilizadora da inversão e transformação do modelo tradicional de atenção, insere-se
no contexto de um movimento maior de fortalecimento do Sistema Único de Saúde
(SUS), sua estrutura e resultados. Esse processo depende, dentre outras coisas: a) do
aprofundamento da descentralização das ações e dos serviços de saúde; b) do
investimento na qualificação dos recursos humanos e das gestões locais; c) da
reorganização da prática médica e das práticas de saúde dos demais profissionais das
equipes; d) do aprimoramento dos mecanismos de negociação entre as diversas esferas
do sistema e de seus governos; e e) do alargamento da participação popular e da
organização dos usuários, via mecanismos de controle social do Sistema de Saúde.
A grande expansão da Estratégia Saúde da Família se deu, no país inteiro, a
partir de 1998, com a implementação da Norma Operacional Básica do Sistema Único
de Saúde – NOB-SUS 01/96, cuja implementação institucionalizou a autonomia da
gestão da saúde no nível municipal, alavancou o processo de descentralização da gestão
e fomentou a atenção básica à saúde, além de contribuir para a democratização das
relações entre as três esferas de governo, aí incluída a relação com os usuários do
sistema de saúde. No entanto, é inevitável reconhecer que essa expansão, apesar de
muito importante e relativamente homogênea em termos dos estados brasileiros
209
, faz-
se, ainda, à custa de problemas e contradições.
Deve ser considerado, aqui, todo o processo de indução, principalmente
financeira, que presidiu o esforço ministerial para tornar atrativa a adoção da política. E
esse elemento, não há como negar, precipitou distorções em relação ao modelo
prescrito. Frente aos dados concretos de implantação da Estratégia e, principalmente,
por esta se tratar de uma mudança radical na concepção e implementação da ação de
209
Para se ter uma idéia dos dados dessa grande expansão, considere-se que o número de municípios
adotando a estratégia com ESF, entre 1998 e 2006, pulou de 1.134 para 5.106 (20,6% para 91,8 dos
municípios brasileiros). A distribuição de equipes evoluiu de 3.062 para 26.729 equipes de saúde, já tendo
ultrapassado a barreira das vinte e sete mil em 2007. A população total coberta com a Estratégia, passou
de aproximadamente 10,5 milhões (6,6%) para 86,0 milhões (46,2%) da população brasileira. O
cotejamento dos dados oficiais poderá ser feito nos gráficos e tabelas constantes dos anexos deste texto.
Capturados do portal do Ministério da Saúde na internet. (www.saude.gov.br)
230
saúde, é fundamental que se faça uma distinção entre implantar equipes de saúde,
consoante a política, e implementá-la na sua plenitude.
Apesar de todos os avanços, tanto na assistência quanto na gestão, há um
descompasso entre a aspiração do movimento sanitário nacional e dos gestores de
saúde, impressos na legislação do SUS, e a realidade do modelo de atenção. Uma
adequada formação social, técnica e humana dos profissionais e um processo de
promoção social da população, para que se contemple minimamente ou se possibilite a
colocação em prática da Estratégia Saúde da Família, ainda está por ser oferecido à
maioria das realidades locais, ainda que se reconheça que esforços estão sendo feitos
nesse sentido.
A maioria das equipes descentralizadas ainda é montada com profissionais
formados dentro de uma tradição que pouco tem a ver com a filosofia da Saúde da
Família. E aí reside a contradição primordial dessa política e da prática médica nela
inserida. A interiorização dos profissionais de saúde nas comunidades - e eles chegam
mesmo aos domicílios - universalizou a assistência à saúde. Porém reproduzem-se em
escala nacional todos os problemas já levantados em relação à prática médica. A
descentralização da Atenção Básica, via Saúde da Família, faz-se sem que os
municípios e os atores que neles atuam estejam efetivamente preparados e voltados para
a nova realidade de atenção.
7.1 A Estratégia Saúde da Família na Paraíba
Apesar de ter começado a implementar o Programa de Agentes
Comunitários de Saúde (PACS) desde o seu início, em 1991, o Estado da Paraíba teve
uma trajetória de implantação e implementação sui generis, em relação ao Programa
Saúde da Família (PSF), que só veio a ser adotado, na prática, por volta de 1998,
quando virou estratégia de reorganização da Atenção Básica nacional. A partir daí, num
pequeno período, até 2001, conseguiram-se implantar aproximadamente setecentas
ESFs no Estado
210
.
210
A concepção da reorganização da Atenção Básica, conduzida pela gestão estadual de saúde, firmava-se
em três diretrizes: o fortalecimento e a universalização do PACS, a implantação da Estratégia Saúde da
Família (PACS+PSF) e a divulgação e realização do Pacto dos Indicadores da Atenção Básica e sua
231
Mas a história da implantação do PSF, na Paraíba, não começou em 1998. O
município de Campina Grande foi pioneiro com a montagem de cinco equipes em
1994/1995. Compôs, junto com outras municipalidades, o quadro das primeiras
experiências brasileiras, tendo em vista a Saúde da Família as quais, como já foi
descrito, foram engendradas em municípios isolados, e tinham em comum o
desenvolvimento de uma visão crítica em relação à forma de organização da atenção
primária de saúde no país. Inspirava-se em programas de saúde de administrações
progressistas e democráticas, nacionais, e mesmo em experiências internacionais. Tanto
é que os primeiros passos do município se deram de forma autônoma, através do
intercâmbio e da ajuda de experiências como a de Cuba e a de Niterói (RJ). Só depois é
que houve todo um trabalho de parceria com o Ministério da Saúde
211
.
O início da trajetória do PSF, em Campina Grande, associou duas
qualidades fundamentais dos seres humanos: razão e sensibilidade. Razão, o município
teve ao reunir, na proposta para Atenção Básica, a decisão política, baseada num
razoável exercício do conhecimento e do planejamento da realidade transformada. A
sensibilidade também foi impressa no processo, na forma de seleção de um grupo de
profissionais que aliava ao seu perfil técnico e humano um profundo compromisso
social, como requeria a proposta. Desejava-se a construção do novo, ao se objetivar a
mudança na qualidade de vida da população.
A maioria dos profissionais das primeiras equipes eram egressos da
Residência em Medicina Preventiva e Social (RMPS/UFPB) e tinham uma visão crítica
do modelo de atenção até então vigente no país. Cheios de incertezas, mas com o
entusiasmo dos que ansiavam pela oportunidade de fazer algo que fosse diferente do
instituído, participavam de uma proposta de trabalho montada a partir de premissas que
denotavam um investimento na dimensão política do PSF. Entre essas premissas,
podem-se destacar: a) forte relação com a comunidade; b) a valorização da promoção da
saúde com a adoção radical do seu conceito ampliado; c) uma relação democrática entre
coordenação e trabalhadores do programa; e d) a prática da reflexão sobre o processo de
trabalho.
utilização enquanto instrumento de avaliação (FRANÇA; ARAÚJO; CARVALHO, 2000; VERAS,
2007). Considerando-se Veras et al. (2000), os critérios para essa reorganização se resumiram em ações
que se caracterizaram por um período de divulgação e sensibilização dos gestores municipais de saúde,
pela intensificação da assessoria aos municípios e pelo estabelecimento de parcerias entre as diferentes
instâncias do SUS e as instituições formadoras, iniciadas em 1998.
211
A iniciativa ministerial de reunir as várias experiências de Saúde da Família criou um núcleo
conceitual que constituiu o então Programa Saúde da Família, o mesmo que, mais tarde, fazendo uma
intersecção com o PACS, transformar-se-ia numa estratégia de atenção do próprio MS.
232
Ao observar o município de Campina Grande, dentro do contexto dos
demais municípios paraibanos
212
, vê-se com nitidez que a ação do PSF, nessa cidade,
exprimia outra ética, outra atitude, humana, política e mesmo técnica. Os envolvidos
não só buscavam dominar o saber sobre as coisas que precisavam ser feitas como
também corporificavam essas mesmas coisas, tão necessárias ao enfrentamento do novo
na sua prática diária, nas suas relações interprofissionais e comunitárias. Via-se que
estavam dispostos a fundar outras experiências, outros aprendizados; a contribuir com a
mudança da situação de vida e de saúde das populações encampadas pelo projeto.
Havia, nessa iniciativa, outro sentido de prática médica. Esse outro sentido se baseava
na avaliação da realidade, num posicionamento crítico frente a essa realidade, na
perspectiva de sua transformação
213
. Enfim, numa práxis médica.
Em razão do ineditismo da proposta, havia dificuldades que revelavam, aqui
e ali, despreparo técnico e político dos profissionais, da coordenação e da administração
municipal. Não existiam referências teóricas e práticas consistentes que
consubstanciassem uma proposta concreta de organização. Mesmo assim, não havia
desânimo entre eles. Em lugar deste, pulsava o desafio à criatividade e à inovação. Algo
que se construía no aprendizado do trabalho em equipe, no convívio com a própria
população e na percepção de que ela (a população) também era dona de um saber.
(MENDONÇA; SOUSA, 2004, p. 38). Um saber retirado da vida, dos seus sofrimentos,
mas, um saber. Trabalhava-se na desconstução de relações interprofissionais e
comunitárias hierarquizadas e sua transformação em novas relações mais horizontais,
com a gestão, com os usuários e a comunidade
como um todo. Relações presididas pelo
diálogo, pelo respeito, pelo acolhimento e cuidado com o outro. Pela humanização da
prática médica.
Essa postura revelou resultados positivos provenientes da identificação
conjunta (população, profissionais e técnicos) dos principais problemas da comunidade;
da descentralização das ações de planejamento e avaliação, garantindo uma gestão
participativa, e adequação das ações à realidade local; da democratização da gestão
administrativa local, com rodízio dos profissionais na gerência das UBSFs. Todos
212
O fato de o autor deste trabalho ter estado na gestão estadual no momento específico em que o PSF
tentava se consolidar no município, abria-lhe a possibilidade de uma visão crítica em relação ao conjunto
dos municípios paraibanos. Essa visão privilegiada era proporcionada pela vivência direta com todos os
municípios paraibanos.
213
A experiência desse município, assim como dos demais pioneiros e daqueles que vieram na esteira
deles, foi fundamental para balizar a composição e afirmação dos elementos que deveriam fazer parte,
mais tarde, do modelo de Atenção Básica a ser adotado no país.
233
tinham a oportunidade de experimentar a função de gerente. Esses avanços
proporcionaram, ainda, a criação e veiculação do Boletim da Saúde da Família, que
favorecia a divulgação e o fortalecimento do modelo. Também se organizaram grupos
de gestantes e idosos e grupos sócio-educativos, em função de características
epidemiológicas e demográficas de cada área de abrangência, inclusive com a criação
de grupos comunitários terapêuticos para pessoas com sofrimento mental. Houve, ainda,
uma melhora considerável dos principais indicadores de saúde-doença do município
214
.
Nem tudo, no entanto, foi conjuntura favorável o tempo todo. Vencidos os
primeiros anos da experiência, sobreveio uma mudança na administração municipal. A
nova gestão da saúde, não demonstrando a mesma sensibilidade em relação ao projeto
da Saúde da Família, tirou-lhe o apoio político e técnico. Foi nesse momento, em meio à
dificuldade, que o PSF de Campina Grande demonstrou sua força, sua inserção, seu
vínculo e enraizamento nas comunidades em que atuava. Fora do escopo da
administração municipal, mas com apoio da sociedade civil e acadêmica de Campina
Grande, além de outros apoios externos, transformou-se numa organização não-
governamental (ONG), com a finalidade de defender o modelo de atenção e sua
continuidade
215
.
Com todas as adversidades em relação ao projeto ou, quem sabe, motivado
exatamente por elas, o trabalho prosseguiu e tornou-se ainda mais radical e apurado, do
ponto de vista social e humano, a ponto de uma das equipes, a do Mutirão, obter, em
1998, o reconhecimento nacional através de um prêmio da Fundação Getúlio Vargas,
que destacou o trabalho como uma das dez melhores experiências nacionais de combate
à pobreza e à exclusão. O prêmio revelava a contradição vivida naquele instante nas
relações PSF/gestão municipal de Campina Grande.
Isso ficaria mais nítido nos anos seguintes. O que ocorria eram divergências
e resistências de lado a lado quanto à dimensão que queriam conferir à Saúde da Família
214
Os resultados dos primeiros anos da implementação da Saúde da Família, em Campina Grande, já
foram relatados, em parte, no capítulo anterior, quando se fez referência às experiências exitosas da
Estratégia Saúde da Família classificadas pelo Prêmio Saúde Brasil: o retrato da Saúde na Família,
realizado pelo Ministério da Saúde no segundo semestre de 1999.
215
Ana Fábia da Mota Rocha Farias, que viria a ser, dois anos depois, a partir de 1999, coordenadora do
PSF campinense, num depoimento em Mendonça e Sousa (2004), retrata o quadro vivido: “Houve choro,
desesperança, indignação, que só fizeram nos levar mais para cima e para frente. O que mais nos
sustentava eram as inúmeras histórias que afirmavam o valor do que estávamos construindo. Inúmeras
histórias como a de dona Maria José, de Lindalva, de dona Luzia, acometidas de câncer e que, sem o
PSF, teriam morrido isoladas no hospital ou de forma indigna com dor e fome em casa. Casos como o de
Lindomar e tantas outras que escaparam da violência dos hospitais psiquiátricos graças ao trabalho
corajoso de profissionais e ao potencial do modelo” (MENDONÇA; SOUSA, 2004, p. 39).
234
e ao seu processo de institucionalização. A gestão municipal, na sua visão fragmentária
da ação de saúde, desejava apenas uma ampliação normativa e assistencial da atenção
básica. Um modelo que não vislumbrava promover o desenvolvimento social e humano
das pessoas assistidas, algo que era o carro-chefe da visão dos profissionais e da
coordenação do PSF local.
Aliás, um dos fatores que não propiciou a evolução do PSF, num período
anterior a 1998, na Paraíba, foi a visão retrógrada das administrações estadual e
municipais. Devido às características da nossa federação e sua memória centralizadora e
autoritária, especialmente do ponto de vista administrativo e financeiro, os municípios
sempre tenderam a ficar a reboque de políticas centrais (estaduais ou federais),
exercendo, apenas quando lhes convinha, a autonomia política e administrativa
garantida na Constituição Federal. No plano da saúde, mesmo que, a partir de meados
de 1996, a saúde contasse com uma administração progressista e antenada com os
princípios do SUS e da Saúde da Família, os resultados da sua ação técnica e política só
geraram frutos concretos com os efeitos financeiros da NOB-SUS 96, a partir de 1998.
7.2 A Saúde da Família como práxis: ecos de uma experiência exitosa
As possibilidades de uma práxis médica na Estratégia Saúde da Família
podem ser ilustradas com experiências concretas. São exemplos que mostram o quanto a
filosofia e a relação teoria/prática constituíram-se um amálgama nos corações e nas
mentes de profissionais de saúde e comunidade a tal ponto que os próprios profissionais
passaram a expressar com todas as letras a sua vivência
216
.
Sensível à carência, ao abandono, às relações sociais discriminatórias que
transformam seres humanos em seres da desigualdade, o PSF do Pedregal
217
, a partir de
uma negociação da Coordenação Municipal com um dos Shopping Centers da cidade,
proporcionou uma espécie de presente de natal para 103 crianças da sua área de
216
Os relatos que seguem nesta secção resultaram de pesquisa documental realizada nos arquivos da
médica Ana Fábia da Mota Rocha Farias, uma das pioneiras nas ESFs de Campina Grande que, no
período 1999-2004, foi coordenadora municipal do PSF. Uma seleção desses relatos até foi reunida pela
própria coordenação e publicada em forma de cartilha pela Secretaria Municipal de Saúde em duas
pequenas publicações: Saúde da Família em contos (2002) e Saúde da Família em contos e poesias
(2004).
217
Bairro periférico de Campina Grande (PB), onde se instalou uma das equipes pioneiras do PSF
municipal.
235
abrangência. Dezenas de crianças, muitas das quais talvez nunca tivessem ganhado um
presente de natal, de repente se viram, numa manhã inteira, em meio a jogos eletrônicos,
brinquedos, sorteios e lanches, recebendo um afeto do qual eram merecedoras, mas que,
ao mesmo tempo, era escasso ou mesmo inexistente para elas. A médica Lucieuda
Rodrigues, que os acompanhou, junto com a sua equipe, relata a experiência:
[...] O brilho no olhar destas crianças é indescritível e, com certeza, este dia
será inesquecível tanto para elas, tão desprovidas de lazer, quanto para nós,
profissionais da Saúde da Família, que tivemos a oportunidade de pôr em
prática um pouco do conceito mais amplo de saúde como qualidade de vida.
E para aqueles que não entenderam o que é que médicos, enfermeiros,
assistente social e agentes comunitários de saúde faziam na bela manhã de
domingo do penúltimo natal do milênio, afirmamos: estávamos cumprindo o
nosso dever, PROMOVENDO SAÚDE [sic] porque acreditamos que esta só
se faz com compromisso, sensibilidade e parcerias [...] (CAMPINA
GRANDE, 2004, p. 41).
Essa mesma postura é perceptível noutro relato da mesma médica, ao dar
conta da atenção dispensada a uma mulher com surto psicótico e que, consciente e ao
mesmo tempo aterrorizada com o tratamento que a família e a sociedade dispensam às
pessoas com esse tipo de padecimento, propunha-lhe um pacto: não mandá-la para um
hospital psiquiátrico. Alegava que já havia acertado com a mãe para construir um
quartinho nos fundos da casa, onde seria enclausurada nos períodos de crise e tratada
pela sua doutora, pois o que queria era não voltar para aquele lugar.
[...] Fiquei perplexa com a história de vida, seu sofrimento psíquico e seu
apelo, a ponto de minha despreparação [sic] nesta especialidade e minha
responsabilidade não serem suficientes para eu não tentar. Evidentemente que
não fiz um pacto incondicional, mas disse-lhe que íamos tentar e vi que,
naquele momento, um vínculo terapêutico havia se estabelecido. [...]
Lindomar, como pioneira, é hoje uma das mulheres mais atuantes do grupo
de Saúde Mental que reunimos semanalmente. Tornou-se uma liderança,
despertou aptidões surpreendentes em trabalhos manuais, participa de
passeios, organiza festas, dança, vive. E se vocês pudessem ver, através dos
meus olhos, veriam um belo processo de resgate da auto-estima e de
construção de cidadania, enfim, uma bela lição de vida. E o melhor de tudo é
que não construímos um quarto, mas abrimos as portas para o mundo. Mundo
este ainda muito restrito pelas desigualdades sociais, mas que permite
enxergarmos um horizonte imenso (CAMPINA GRANDE, 2004, p. 42).
O vínculo profissional/população usuária é uma das pedras de toque da
Estratégia Saúde da Família, porquanto não se constrói automaticamente. Para que ele
exista, é necessária uma relação afetiva efetiva, algo que só se explicita num processo
de confiança mútua, de reconhecimento recíproco da importância do outro na nossa
vida; na entrega, no carinho e na amorosidade de quem cuida ou se sente cuidado pelo
outro. A confirmação prática da existência do vínculo profissional/usuário, como foi o
236
caso daquela senhora com sua médica, às vezes se dá também de forma singela e
inusitada, como foi a experiência aqui relatada, reconhecida por uma vendedora de
amendoins, sua usuária, numa grande festa da cidade, ou seja, longe da área de
abrangência, onde as duas normalmente se encontravam.
[...] Era nossa usuária, dona Júlia, uma senhora de cabelos grisalhos que, feliz
da vida, exibia um largo sorriso e acenava efusivamente gritando: ‘minha
dotôra, minha dotôra’, com o entusiasmo inerente às pessoas que estão diante
de alguém muito querido. Percebi que estava embutido em tão feliz gesto
muito carinho e orgulho. [...] senti uma satisfação ímpar, pois estava ali
diante de mim [...] o reconhecimento de um trabalho e a confirmação da
importância do saber cuidar, redobrando em mim a responsabilidade de
cuidar de quem a vida tem descuidado tanto. Voltei pra casa relembrando a
história desta vendedora de amendoins, que não é mais uma simples
vendedora, mas uma mulher com nome e identidade e quem, apesar de não
ter certeza de vender todos os seus amendoins, tinha certeza de ter ‘sua
dotôra’ (CAMPINA GRANDE, 2004, p. 35).
A interação da Estratégia Saúde da Família com a comunidade e a correta
apreensão do sentido da prática profissional dela decorrente, aparece ainda noutro relato
da médica da área do Pedregal. Como se poderá entender, o trabalho da equipe era
absorvido de forma tão natural pelos usuários mais atentos que, durante uma das
reuniões do Conselho Comunitário de Saúde do bairro, numa oportunidade em que se
discutia a evolução dos indicadores de morbimortalidade infantil e de cobertura de pré-
natal, resultantes do trabalho do PSF, o presidente da Associação de Moradores e
fundador do bairro expressou uma análise assim captada pela médica:
Há alguns anos atrás, a Associação havia conseguido importante aquisição
para o bairro: uma carreta mortuária. Era uma imagem corriqueira o transitar
da carreta, ladeira acima e ladeira abaixo transportando os mortos, em sua
grande maioria crianças, os chamados anjinhos. Porém, nos últimos anos,
com a implantação do PSF no bairro, a carreta estava ficando enferrujada
pelo desuso e tomara, dizia ele, que ela se aposente de vez, principalmente de
anjinhos e de vítimas de mortes evitáveis (CAMPINA GRANDE, 2004, p.
28).
A avaliação do líder comunitário pode ser tomada como uma autêntica
versão popular de uma análise epidemiológica sem números. Isso é a expressão de que a
população está sempre atenta para o que acontece ao seu redor e é capaz de produzir
inferências muito precisas sobre a realidade em que vive, razão pela qual é importante
se ter, sempre, junto aos serviços de saúde e das práticas sanitárias, a avaliação dos
destinatários dessas ações e desses serviços. Mas os testemunhos da assertividade da
Estratégia Saúde da Família e do conteúdo transformador da sua prática também são
capazes de aparecer em relatos escritos de outros profissionais da Saúde da Família,
237
como é o caso da ACS Maria Lúcia, também do Pedregal, calejada e formada, na sua
sabedoria, pela vida e pelo sofrimento de quem, já na infância, acompanhando a sua
família, enfrentou a polícia para poder ver garantido um pedaço de chão e dele fazer sua
moradia. Seu relato é límpido, pois expressa que as virtudes que adquiriu e que fizeram
dela uma ACS foram apreendidas, forjadas, nas lutas da comunidade onde ela mesma
reconhece que foi crescendo, nos vários sentidos, e onde as pessoas, apesar das
dificuldades, ajudam-se umas às outras e são solidárias.
Sobre o seu trabalho, fala com orgulho de uma criança de nove meses,
encontrada numa rede, com desnutrição profunda. O trabalho dela e da equipe de saúde,
junto à mãe, conseguira salvar essa criança que recobrou a vida, quase perdida, para
hoje, nem de longe, lembrar o bebê que foi. Quando fala do seu trabalho, quase sempre
arremata, afirmando a importância da formação da consciência, do sensibilizar-se e do
partilhar conhecimento, na perspectiva da solução de problemas coletivos.
Trabalhar diretamente com o povo, para mim, é muito importante e um
trabalho gratificante. Porque vemos cara a cara a realidade de um povo tão
sofrido, que quase não tem direito e só conhece deveres. E o mais gratificante
de ser ACS é ter o nosso trabalho reconhecido pela população. [...] Ser ACS é
dar o melhor de si e poder partilhar os nossos conhecimentos com a
população e se conscientizar e sensibilizar com os problemas da comunidade.
É mais que isso, é ajudar as pessoas na educação e prevenção na saúde
(CAMPINA GRANDE, 2004, p. 31).
Outro relato que mostra a importância do trabalho conjunto de uma equipe
de Saúde da Família, numa área paupérrima e totalmente desprovida de infra-estrutura,
onde pessoas vivem em condições desumanas, é feito pela enfermeira Maria Núbia, de
uma equipe incrustada numa área alagada do bairro do Catolé. Tudo se deu, segundo o
seu relato, numa invernada que destruiu praticamente todos os barracos em que viviam
aproximadamente 600 famílias. A descrição do infortúnio é dramática:
[...] chovia torrencialmente. Eu acabara de chegar à unidade quando Dona
Guia, uma usuária, entrou na minha sala com seus dois filhos chorando e
disse: Doutora, meu barraco caiu. Me ajude pelo amor de Deus! Quando saí à
porta da unidade, vi inúmeras famílias que acabavam de ficar desabrigadas
pedindo ajuda. Nos dirigimos [sic] à lagoa e nos deparamos com uma cena
triste: barracos sendo levados pela chuva, gestantes, crianças, idosos e
homens desesperados tentando proteger seus móveis, seus pertences pessoais
e suas vidas. No semblante dessas pessoas, pairava o medo, a angústia, a
aflição e a tristeza. Prantos, gritos e apelos se faziam mais alto que a chuva.
[...] A situação era chocante, eu estava ali no meio do temporal com aquelas
famílias, compartilhando da sua dor, que também era minha. Abrimos as
portas da unidade e abrigamos as pessoas (CAMPINA GRANDE, 2004, p.
38).
238
Diante de toda aquela situação, a equipe, através da coordenação municipal,
mobilizou várias secretarias municipais, instituições e a Defesa Civil. Foi localizado um
grande galpão que, depois de limpo e dotado, de emergência, com água, energia,
colchões, cobertores, alimentação e segurança, pôde receber todos os desabrigados.
deixaram a área depois da meia noite, quando as 132 famílias atingidas pela catástrofe
estavam abrigadas, alimentadas e aquecidas.
Conclui Maria Núbia:
Nunca tinha vivido situação semelhante. Senti uma angústia profunda e uma
sensação de perda e de impotência. [...] Ao chegar em casa me invadiu um
sentimento de dever cumprido. Sei que fiz minha parte, cumpri meu papel de
profissional de saúde da família e me senti vitoriosa [...] Essas famílias não
estavam sós, elas eram uma parte importante do meu trabalho e da minha
vida. Através de um trabalho de intersetorialidade, conseguimos contribuir
para a melhoria das condições de vida e saúde da nossa população
(CAMPINA GRANDE, 2004, p. 38).
A atuação da enfermeira e de sua equipe não seria possível num modelo
tradicional de práticas de saúde, naquele que se limita à assistência a casos de doença
manifesta. É uma outra prática em saúde, que se expressa na Estratégia Saúde da
Família, aproximando-se do que se quer como uma práxis médica educativa, popular e
comprometida com a transformação da qualidade de vida e da saúde da população.
7.3 A Paraíba na atenção à saúde do PSF/PITS
O grande esforço da Coordenação de Atenção Básica do Ministério da
Saúde, seguido pela maioria das coordenações estaduais, não foi capaz, com honrosas
exceções, de traduzir o gigantismo dos dados da implantação do PSF em mudança
efetiva do modelo, com a qualificação da Atenção à Saúde. A maioria dos municípios
implantou administrativamente o PSF, mas não procedeu à transmutação desejada do
assistencial para um efetivo modelo de atenção que fosse capaz de mudar as práticas,
transformando-se num fator estruturante dos outros níveis no trabalho com a saúde.
A emergência da Saúde da Família colocou, na ordem do dia, e alvoroçou,
no sentido mercadológico, as profissões e os profissionais que compõem a equipe básica
do PSF. E um desses profissionais, o médico, passou a ser buscado em especial.
Contudo essa busca não se fez, necessariamente, em favor ou pelo fervor da
239
implementação da Estratégia Saúde da Família tal e qual. A implementação da Atenção
Básica e a sua definição como estruturante da atenção, como um todo, trazia à baila o
debate da responsabilidade sanitária dos gestores e a necessidade de preencherem os
requisitos globais da sua competência na atenção à saúde.
Se, de um lado, essa nova situação da política de saúde apontava a
possibilidade da extensão da cobertura populacional, de outro, fazia aflorarem vícios já
cristalizados em relação à compreensão do papel do médico na sociedade e nas práticas
de saúde. Assim, em muitos casos, esse profissional era contratado para a ESF, mas,
dentro de um cálculo financeiro e de atribuições que desvirtuavam a sua integração à
equipe. Havia quase sempre um plantão hospitalar no mesmo município ou num
município próximo ou, ainda, a contratação do profissional com um número de horas
inferior ao resto da equipe. De sorte que o médico era absorvido dentro da filosofia
tradicional, o que corrompia a Estratégia
218
, ainda que o município estivesse estendendo
a cobertura de atenção à saúde em relação à sua população.
Além disso, constatou-se a existência de um conjunto de municípios
refratários à incorporação de equipes, quer pelas dificuldades do seu próprio sistema
municipal, quer pela dificuldade de interiorizar, por motivos diversos, profissionais de
nível superior, ou mesmo pela incapacidade ou a falta de vontade política dos seus
gestores. Um elemento que piorava, ainda mais, o quadro dessas dificuldades, é que,
não por acaso, esses municípios eram tidos como aqueles que apresentavam os piores
indicadores de saúde e os problemas mais acentuados em relação à gestão municipal - aí
incluída a gestão da saúde.
Vislumbrando essa realidade e, consoante a sua diretriz de descentralizar o
sistema de saúde reforçando e reorientando a Atenção Básica, o Ministério da Saúde
(MS) propôs o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde
219
(PSF/PITS), que
oferecia aos municípios profissionais de nível superior – médicos e enfermeiros – da
218
As modalidades corrupção da Estratégia não se restringiam aos médicos - ainda que esses profissionais
respondessem por algo em torno de 90% dos abusos relativos à força de trabalho - nem apenas à
contratação e ao processo de trabalho dos profissionais das equipes. Muitas das irregularidades diziam
respeito às unidades de saúde inadequadas, equipes sem unidade, ausência dos equipamentos e insumos
indispensáveis e coisas do gênero. Ciente dessas e de outras distorções e para auxiliar e tentar corrigir
rumos, o Ministério da Saúde, em conjunto com as Coordenações Estaduais de Atenção Básica, procedeu
a uma avaliação nacional da Estratégia entre 2000 e 2001. Na Paraíba, constatou-se um número tão alto
de irregularidades em relação às suas equipes que aproximadamente 10% das equipes então implantadas
foram desqualificadas.
219
O Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS) foi instituído pelo Decreto Presidencial nº
3.745 de 05/02/2001 e regulamentado pela Portaria Ministerial 227 GM/MS de 16/02/2001 e tinha por
finalidade a interiorização de médicos e enfermeiros para a atuação na Atenção Básica à Saúde, por
dentro da Estratégia Saúde da Família.
240
equipe mínima do PSF, e exigia, em contrapartida, que os municípios
complementassem a equipe com os agentes comunitários de saúde (ACS) e o auxiliar de
enfermagem, além da instalação física dessa equipe numa Unidade Básica de Saúde da
Família (UBSF). O MS apoiaria, ainda, com uma cesta de medicamentos básicos e
financiamento para a compra de equipamentos mínimos necessários à implantação da
UBSF. A idéia era apresentar a esses municípios as vantagens do PSF, estimulando-os a
implantá-lo e mantê-lo nos seus sistemas municipais de saúde
220
.
A invenção do PSF/PITS trouxe novas possibilidades para a Atenção Básica
no Estado. A SES-PB usou mais essa possibilidade para incentivar os municípios que se
adequavam às suas normas. Com isso, vislumbrava constituir o PSF/PITS num reforço
importante para a Estratégia Saúde da Família, com a perspectiva de consolidar e
transformar o modelo de atenção e de gestão das ações e dos serviços de saúde,
também, nesses municípios
221
.
Inserido na estratégia nacional de implantação do PSF/PITS, o Estado da
Paraíba instalou, nos anos de 2001 e 2002, nada menos que 28 equipes do programa em
15 municípios que, nesse período, habilitaram-se a recebê-las. Nessa empreitada, contou
com o apoio do MS e com a parceria do Ministério da Educação, via Universidade
Federal da Paraíba, que organizou e ofereceu o Curso de Especialização em Saúde da
Família para os Profissionais do PSF/PITS, e do Ministério da Ciência e Tecnologia
que, através do CNPq, financiou o curso, a infra-estrutura de informática e os recursos
para o pagamento das bolsas/salário dos profissionais. O CNPq financiou, ainda, bolsas
de pesquisa para a contratação do sistema de tutoria do Programa que, no caso da
Paraíba, representou a seleção e a contratação de quatro tutores
222
.
Do ponto de vista da sua força de trabalho, o PSF/PITS revelou-se um
variegado, um mosaico, um caleidoscópio. A equipe selecionada pode ser dividida em
dois grandes grupos, com bifurcações. A maior parte dos profissionais do primeiro
grupo já era experiente em Saúde da Família. Alguns destes, devido à sua boa formação
técnica e humana, estavam fugindo de administrações municipais em que não havia
220
Àquela altura, o autor desta pesquisa se encontrava, ainda, na Coordenação da Unidade Setorial de
Planejamento da SES-PB e participou, junto com a Coordenação Estadual da Atenção Básica, do
processo de organização dos primeiros movimentos para instalação desse Programa no Estado.
221
Os municípios que acabaram adotando o PSF/PITS foram: Caldas Brandão, Cacimba de Dentro,
Carrapateira, Casserengue, Curral Velho, Diamante, Juarez Távora, Monte Horebe, Nazarezinho,
Tavares, Santa Inês, São José de Princesa, Manaíra, São Domingos do Cariri e Coxixola.
222
A equipe de tutores do PSF/PITS/PB foi composta, nos primeiros dois anos, pelos médicos
Lindemberg Medeiros de Araújo e Maria de Fátima Ávila Paz Castelo Branco, e pelas enfermeiras
Edilene de Araújo Monteiro e Tânia Maria Ribeiro de Figueiredo.
241
sensibilidade para a filosofia da atenção básica, mesmo que tivessem aceitado a indução
do MS ou das SES dos seus estados. Buscavam um processo de trabalho e um campo de
práticas onde pudessem, com apoio adequado, desenvolver suas potencialidades. Outros
componentes desse grupo, apesar de já terem trabalhado no projeto Saúde da Família,
mantinham um perfil profissional tradicional e fugiam da sua experiência anterior em
busca de uma situação talvez mais confortável e estável financeiramente.
Havia um segundo grupo, igualmente bifurcado, que era formado, de um
lado, por profissionais mais jovens, recém-formados, que buscavam na Saúde da
Família a sua primeira oportunidade de trabalho ou um trabalho com a perspectiva de
ser menos rotativo. A outra parte compunha-se de profissionais mais maduros, sem
experiência nesse programa, no qual ingressaram em busca de uma aventura
profissional.
Os dois grupos e suas variações convergiam para um mesmo objetivo em
relação a um ponto: a formação especialista em Saúde da Família. A possibilidade de
entrar, de forma tranqüila, numa especialização, que lhes abria novas chances
profissionais, parece ter sido um forte atrativo para os que concorreram a uma vaga no
PITS. Aqueles cujo perfil se adequava ao Saúde da Família viam no Programa e no
curso um atalho importante para o aperfeiçoamento da sua formação como profissional
do PSF. Afinal, não se sentiam suficientemente preparados para um desempenho
aceitável, considerando-se a política de Atenção Básica centrada na Saúde da Família.
Depois, a exigência de tempo integral praticamente inviabilizava ou, pelo menos,
dificultava bastante o acesso a uma especialização nessa área específica, ainda mais
quando o curso em questão se acoplava a um sistema de acompanhamento e tutoria.
7.4 A relação gestões municipais x atenção à saúde na vigência do PSF/PITS
Os municípios paraibanos que se enquadraram nos critérios do Programa e
se habilitaram a receber as equipes do PSF/PITS estavam na faixa populacional de
pequenos municípios. Apenas em três deles havia mais de dez mil habitantes. Cinco
municípios ficavam entre os cinco e os dez mil, e os sete restantes ficavam abaixo dos
cinco mil habitantes, sendo que quatro deles não chegavam aos três mil. Excetuando-se
242
os três maiores, isso os caracterizava como municípios de baixa infra-estrutura e de
pouquíssima capacidade técnica e tecnológica.
Excetuando-se nos maiores, esse perfil ensejava outra característica: a falta
de assistência regular à saúde. Na maioria deles, quando muito, contratava-se um
médico, que atendia uma vez por semana à demanda municipal. Num desses
municípios, o atendimento era mensal, e nas ocasiões de atendimento, não era incomum
que o profissional produzisse, num turno de seis horas de trabalho, às vezes, até menos,
em torno de 100 consultas.
Como se pode ver, o atendimento dispensado à demanda não permitia a
cada paciente mais que três ou quatro minutos com o médico, o que, em termos de um
atendimento minimamente humano e conseqüente, é inadmissível. Constatava-se, nesse
caso, um flagrante desrespeito ao direito à saúde dessas populações. Os pacientes se
acotovelavam na frente dos serviços de saúde – alguns improvisados – para, no
máximo, receber uma receita de medicamentos. Não existiam prontuários clínicos, pois
não havia organização formal de uma Unidade de Saúde. Outro aspecto negativo era
que não se registrava a história clínica dos pacientes, que servisse de referência para um
próximo atendimento de retorno ou segmento. A atenção se resumia a uma rápida
entrevista com o médico e à emissão de uma receita de remédios sintomáticos ou
mesmo uma solicitação de exames
223
.
A precariedade do atendimento, na maior parte dos casos, trazia novos
problemas para as pessoas atendidas, pois elas não tinham a garantia dos medicamentos
prescritos. E quando eram solicitados exames complementares, sua realização não era
garantida. Quanto aos medicamentos, o que lhes restava, quando não havia condições de
custeá-los, era o constrangimento da tentativa de aviamento da receita na conta do
município, em uma farmácia da localidade ou de um município vizinho. Mesmo assim,
essa era uma situação que não abrangia a todos, visto que o aviamento estava preso a
um critério político-partidário do poder municipal.
Em relação aos exames, ocorria algo parecido, pois ficavam também na
dependência de um favor do governante ou de seus prepostos. Nesse caso, com bem
menos chance de ser atendido, dado o custo financeiro ou o cálculo político da
autoridade, o que poderia humilhar ainda mais a quem dele necessitava. Portanto, a
223
Esta situação que está sendo descrita não deve ser tomada como exceção, pois, era relativamente
comum, pelo menos nos municípios menores e menos populosos. A adoção da Estratégia Saúde da
Família veio minimizar esta situação, limitando-a aos municípios mais resistentes e menos organizados.
243
atenção à saúde se transformava em favor do governante local ou de seus
correligionários, vereadores e cabos eleitorais. Ou seja, o paciente precisava ser uma
pessoa reconhecidamente eleitora ou potencialmente eleitora dos Poderes Legislativo e
Executivo para receber como favor ou benesse aquilo que, por direito, era-lhe
assegurado.
A instalação das equipes do PSF/PITS nos municípios habilitados
representou um avanço substancial para os moradores daquelas localidades. Eles
passavam a ter assegurado o direito ao atendimento médico e de enfermagem, regular e
diário. Era o início de uma nova etapa na saúde dos municípios que revelava, por sua
vez, novos problemas e justificava o diagnóstico inicial que informava os critérios de
eleição para o PSF/PITS. Aqueles municípios não estavam minimamente preparados, no
que concerne à sua administração e ao seu planejamento setorial, para receber o
Programa.
As novas condições oferecidas evidenciaram, na maior parte dos
municípios, os mais diversos problemas em relação à contrapartida que deveria ser
disponibilizada. Dois terços deles (10 municípios) tiveram, durante todo o período em
que se estendeu o Programa
224
, dificuldades em garantir exames de rotina para os
pacientes atendidos
225
. Essas dificuldades revelavam o estorvo administrativo interno de
cada município, mas também evidenciavam outras dificuldades de natureza política,
entre elas, a de se fazer valer a própria pactuação intermunicipal existente para
atendimento a exames, consultas especializadas e internação hospitalar.
Depois, como o Programa fora pensado para abranger a totalidade dos
moradores do território municipal, outro problema implicava, ainda, pelo menos dois
terços dos municípios: a incapacidade do órgão de saúde municipal de prover transporte
para as atividades de saúde a serem prestadas na zona rural. Muitas vezes, a
programação da equipe envolvendo o médico e a enfermeira, um deles, ou mesmo o
pessoal auxiliar, era descumprida, ensejando descrédito para o Programa junto à
224
O Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde foi mantido nacionalmente até Julho de 2004,
tendo funcionado na Paraíba desde o seu início, em Julho de 2001.
225
Os exames de rotina da Atenção Básica, geralmente, incluem: parasitológico de fezes; sumário de
urina; hemograma completo; bioquímica básica do sangue (dosagem da glicemia de jejum, colesterol total
e frações e triglicérides); rotina pré-natal e raio x simples. No caso dos municípios menores, sem infra-
estrutura laboratorial, a indicação da Secretaria Estadual de Saúde (SES-PB) era de que esses exames
fossem realizados no município vizinho mais próximo, a partir da Programação Pactuada e Integrada
(PPI) por ela realizada, em conjunto com os municípios de cada Região de Saúde.
244
população
226
, ou mesmo repercussões negativas para o perfil patológico e o padrão
epidemiológico dos adoecimentos.
Outro problema se apresentou, ainda, em dez municípios integrantes da
experiência: a ingerência político-partidária nas questões relativas ao funcionamento do
programa e os vários aspectos da sua atenção, inclusive a prática profissional. Essa
ingerência, de acordo com o grau de intolerância da administração, manifestava-se ora
de forma explícita, pela tentativa de interferência nas normas de organização e decisões
do Programa e proibição do desenvolvimento da atenção para populações inteiras, ora
como uma tentativa de forçar veniaga no sentido do privilegiamento de grupos ou
pessoas
227
.
Na linha da interferência direta, talvez o caso mais agudo de ingerência
tenha sido o veto à participação, no Programa, de um médico, por incompatibilidade
política. O profissional era filho da terra e já vinha exercendo o seu ofício no próprio
município e em municípios vizinhos, sendo profissional bem conceituado junto à
população. Mas o fato é que, mesmo selecionado nacionalmente pelo programa, foi
recusado pela administração municipal por ser irmão do ex-prefeito da cidade. A
situação tornava-se mais grave pelo fato de que o administrador em questão havia sido
cassado recentemente e lutava na justiça para retornar ao cargo. Nesse caso, até pelo
grau de beligerância explícita, o bom senso indicou a permuta de profissionais como a
escolha mais adequada.
Na maioria dos casos, entretanto, a ingerência não era exercida diretamente,
mas, percebida através de atitudes ardilosas, dissimuladas ou mitigadas por explicações
ou argumentos de natureza econômica, geográfica ou outra alegação qualquer que se
desviava do verdadeiro foco ou objetivo do governante. Para caracterizar essa
interferência danosa, pode-se fazer referência à realidade concreta de um dos
226
Essa programação tanto dizia respeito às atividades assistenciais propriamente ditas, quanto a outras de
cunho educativo com grupos específicos – gestantes, crianças e adolescentes ou idosos, por exemplo – ou
preventivas, como era o caso das aplicações de vacinas de rotina, fundamentais para o enfrentamento das
viroses comuns da infância e suas repercussões em comunidades mais vulneráveis social e
economicamente.
227
A ingerência política é um traço marcante da cultura política brasileira, quiçá universal. Aqui, ela se dá
principalmente nos interiores do país, onde, infelizmente, ainda prevalecem o autoritarismo, o culto à
personalidade governante e a aceitação do poder exercido com arrogância e prepotência, coisas próprias
das oligarquias. Essa ingerência, como não poderia deixar de ser, dado o contexto antidemocrático onde
prosperam as oligarquias, materializa-se, quase que naturalmente, nas políticas públicas. E a experiência
tem demonstrado que, nessas situações políticas, a escolha do médico do PSF, principalmente este, e a
sua manutenção nos municípios, obedece a esse tipo de código político. Essa situação se constitui, ainda,
em mais um obstáculo ao exercício da prática médica livre e desimpedida.
245
municípios que tinha um distrito com aproximadamente quatrocentas famílias, que era
território de influência de um vereador oposicionista. No caso, houve toda uma tentativa
de se evitar que o determinado distrito entrasse na programação da Atenção.
Houve também outra realidade em que um Distrito era mais desenvolvido
que a própria sede da municipalidade, sendo, inclusive, mais populoso e bem localizado
do ponto de vista estratégico. A própria sede da Prefeitura era lá instalada. Nesse caso, o
prefeito tentou boicotar, de várias maneiras, o desenvolvimento do atendimento da
UBSF da sede municipal que, por causa do seu ostracismo, era de maioria oposicionista.
Em outras situações, a ingerência também acontecia pelo fato de o próprio prefeito,
vereadores ou prepostos insistirem em ter o monopólio da farmácia como forma de
controlar o aviamento de receitas.
Nessas circunstâncias, a ingerência tornava-se até mais grave, pois essas
autoridades desrespeitavam a prescrição médica, fracionando-a, modificando-a ou
mesmo prescrevendo e distribuindo medicamentos, ao arrepio da lei, para seus
apaniguados. O confronto partidário era outro elemento que contribuía para que o
controle da farmácia funcionasse como exclusão ou afugentamento de possíveis
desafetos políticos, que tinham o seu direito ao recebimento de medicamentos
obstruído.
Havia um conjunto razoável de municípios, algo em torno de cinqüenta por
cento deles, que apresentava situação crítica em relação à infra-estrutura física e de
insumos para o atendimento à população, mesmo que houvesse a liberação de
incentivos financeiros das esferas federal e estadual para a montagem e o
funcionamento das UBS. Eram Unidades que não ofereciam condições adequadas de
trabalho para os profissionais, tampouco acomodações confortáveis para os usuários do
serviço de saúde.
É importante lembrar que cada prefeitura é responsável pela infra-estrutura
de serviços do seu município. No caso da saúde, além do percentual que cada município
é obrigado, por lei, a dispensar para as ações setoriais, ainda contavam com o Piso de
Atenção Básica (PAB) que, na época, correspondia a um per capita mínimo de doze
reais por habitante/ano, que poderia chegar a dezoito reais
228
. Havia, ainda, outros
228
O Piso da Atenção Básica (PAB) foi definido em R$ 12,00 por habitante/ano, pela Comissão
Intergestores tripartite (CIT/MS/SUS), depois de longas discussões, considerando-se cálculos sobre as
séries históricas do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS), sistema a partir do qual o
Ministério da Saúde remunerava os municípios por serviços prestados, no âmbito da Atenção Básica.
246
incentivos federais para os quais os municípios poderiam se habilitar. Por fim, quando
da implantação da equipe, um incentivo especial de dez mil reais, em parcela única, era
disponibilizado a cada município para a montagem da UBS/PSF/PITS.
Além da precariedade das Unidades, ainda não eram disponibilizados os
medicamentos básicos e os insumos necessários ao ato médico e aos procedimentos de
enfermagem. Quanto aos medicamentos, não é demais lembrar o benefício da Farmácia
Básica
229
oferecido pelo Ministério da Saúde às ESFs, o que incluía as equipes do
PSF/PITS. Além disso, havia uma política de medicamentos que, junto com as três
esferas de governo, poderia financiar a compra de medicamentos básicos para aquele
nível de atenção
230
. A política consistia num per capita de dois reais por habitante/ano,
dividida em duodécimos, em que o governo federal entrava com cinqüenta por cento, e
os estados e os municípios dividiam, em igual parcela, os outros cinqüenta por cento. O
que ocorria é que os municípios a que aqui se faz referência ou não depositavam sua
parte, inviabilizando a obtenção dos insumos para o Programa, ou o faziam, mas
desviavam os medicamentos para uso político, quando lhes aprouvesse
231
.
Outro problema que revelava o estorvo das gestões municipais era a sua
dificuldade de lidar com a informação para a saúde, mesmo que o MS sustentasse um
conjunto razoável de sistemas de informação em saúde (SIS) e cobrasse o
preenchimento desses sistemas como contrapartida para a disponibilização de incentivos
e repasses financeiros. O fato é que esses sistemas, quando isso era realmente uma
preocupação para a gestão, eram considerados apenas do ponto de vista administrativo-
financeiro e entregues a empresas de serviço que os preenchiam em nome do município,
para que respondessem aos requisitos formais do Ministério da Saúde. Nesse tipo de
Como esse sistema era utilizado quase que exclusivamente para pagamento, tinha um percentual alto de
distorção e fraude. Mesmo assim, na ausência de outra referência contábil, foi mantido com o limite
mínimo de R$ 12,00, que correspondia ao PAB fixo e máximo de R$ 18,00, referente ao PAB fixo + um
conjunto dos incentivos que caracterizavam as ações da Atenção Básica como um todo (ações
assistenciais e ações de prevenção/promoção).
229
A Farmácia Básica é uma cesta de medicamentos que cobre os procedimentos considerados de
responsabilidade da Atenção Básica. É dispensada a cada ESF a partir da sua implantação num município.
A cesta de medicamentos é enviada trimestralmente para os municípios.
230
A política referida era a Assistência Farmacêutica Básica, uma modalidade de gestão e financiamento
da Atenção Básica em Saúde instituída pela Secretaria de Políticas de Saúde – SPS/MS, através da
Portaria n.º 176/GM/MS de 08/03/1999. Regulamentada pela Comissão Intergestores Tripartite (esfera
federal) e pelas Comissões Intergestores Bipartites (esfera estadual), visava assegurar à esfera municipal
de gestão do SUS a devida assistência farmacêutica. Na Paraíba, a regulamentação se deu através da
Resolução No 044/2000, de 16/10/2000, da Comissão Intergestores Bipartite (CIB-PB).
231
Essa era uma prática que não se circunscrevia apenas aos municípios do PSF/PITS, mas também a uma
quantidade razoável de municípios com ou sem a implantação da estratégia Saúde da Família.
247
operação é que se plasmavam a esperteza e a astúcia que geravam a distorção da
informação, tornando-a inverossímil.
O que se quer ressaltar, no entanto, em relação a essa situação, para além do
fato de a informação não ser reconhecida e tratada como um insumo estratégico para a
gestão da saúde das pessoas, é que sequer havia, da parte desses municípios, a
preocupação com o cumprimento da formalidade que poderia trazer outros recursos para
o custeio de novas ações. Ou seja, perdiam-se, por absoluto desconhecimento ou mesmo
descaso com as condições de vida e saúde da população, recursos que poderiam estar
sendo investidos na saúde municipal.
Por último, não em ordem de importância, aparecia o problema da ausência
ou da falência do sistema de referência e contra-referência intermunicipal. Os gestores
municipais, apesar de presentes nas reuniões da Programação Pactuada e Integrada
(PPI) e estabelecerem formalmente os seus pactos de atenção, no caso, para a atenção
secundária e terciária, não estavam realmente sensibilizados com a necessidade de se
cumprirem os princípios doutrinários e organizativos do SUS, inseridos no PSF/PITS e
na Atenção Básica, de maneira geral. A universalidade e a integralidade, assim como a
descentralização político-administrativa que regionalizava e hierarquizava as ações e os
procedimentos de média e alta complexidade não eram respeitadas. Mais uma vez,
sofria a população que tinha o seu direito à saúde constrangido e vilipendiado.
Todas essas situações, como se pode perceber, têm um rebatimento direto
sobre as práticas em saúde, notadamente sobre a prática médica. Ressalte-se, ainda,
nesse caso, que é difícil para qualquer profissional exercer livremente a sua ação quando
as condições básicas para assegurar o seu ato não estão dadas ou ficam embaraçadas por
ingerências externas. Assim, na perspectiva de implantar a Estratégia Saúde da Família,
como motivar profissionais a exercerem boas práticas em condições tão áridas? Como
garantir que outras necessidades humanas, que não apenas as profissionais, não
interfiram no sentido da acomodação, do desânimo, da frustração e do desgaste,
sobretudo quando a força de trabalho médica se transformou – devido às condições de
assalariamento direto propiciadas pela lógica neoliberal - em mais uma mercadoria a ser
consumida dentro da girândola da produção capitalista?
A implementação do PSF/PITS/PB também ensejou a que se pudesse
observar o posicionamento ético dos diversos atores envolvidos no processo. Os
prefeitos, nas suas intervenções públicas e nas reuniões, reconheciam em uníssono a
248
importância do Programa para os municípios que administravam, porém, no dia-a-dia e
em conversas informais, não conseguiam disfarçar certo incômodo com situações que
colocavam em xeque procedimentos arraigados e que exprimiam vícios administrativos
ou formas particulares de relação entre o poder municipal e a população, nas questões
relativas à saúde.
Antes da implantação das equipes, os municípios - quando eram solicitados
pela população - por não terem serviços organizados, enviavam os seus doentes para
outros com serviços estruturados. Os próprios pacientes e suas famílias, nesse caso,
tinham uma relativa liberdade ou poder de escolha de e para onde se encaminhar,
ficando como tarefa da prefeitura o transporte e as despesas com medicamentos e
exames. A responsabilidade sobre o resultado do tratamento era, então, transferida aos
próprios pacientes e aos serviços para onde eram encaminhados. Pelo lado da
população, as viagens, além de significar a busca pela saúde, momentaneamente
comprometida, também significavam a saída da rotina daquele lugar ou mesmo a
oportunidade para a solução de outros problemas e interesses. Ou seja, o
assistencialismo da prefeitura cumpria, também, com outras funções sociais.
Tentando analisar o que estava por trás dessas relações, pode-se dizer que se
engendrava um jogo por meio do qual se modelava uma relação de certo parasitismo
político combinado em que todos - população e políticos - tentavam auferir vantagens,
mesmo que, no caso da população, isso se desse à custa da sua própria condição de
adoecimento. Portanto, saúde funcionava como moeda de troca e estratégia de
sobrevivência. Para uns, sobrevivência política; para outros, sobrevivência no seu
sentido estrito. O fato é que dessa relação promíscua se valiam todos, acumulando poder
aqueles que mais possibilidades mobilizavam no jogo social.
A implantação do PSF/PITS ensejou uma tendência de diminuir a
dependência dos habitantes em relação aos seus governantes e representantes ou, pelo
menos, que esta tivesse que ser reciclada. Esses atores, temendo a diminuição ou
mesmo a perda de poder, consciente ou inconscientemente, passaram a desenvolver
certas resistências ou mecanismos de defesa no sentido de se manterem influentes e
próximos à população. Disso decorria que se punham atentos aos movimentos das
equipes e, assim, prontos para, em nome da população, mas não necessariamente com o
249
mandato dela, fazer críticas ao desempenho das equipes e, notadamente, aos
profissionais médicos
232
.
O modelo de atenção baseado na atenção primária na UBS ou no domicílio
– no caso de acamados, pessoas idosas ou com alguma deficiência impeditiva de
deslocamento até o serviço de saúde dentro do horário estipulado – pelo menos no
início, não foi entendido corretamente, e a população, tentando usufruir, ao máximo, da
nova situação e, ao mesmo tempo, insegura da sua continuidade, passou a ir buscar
atendimento na própria residência da equipe, nos seus horários de repouso. Isso, mesmo
quando se tratava de queixas que pudessem ser aguardadas para o dia seguinte no
horário normal de atendimento da UBSF. Até que todos se acostumassem e se
acomodassem à nova lógica de atenção, muitas reclamações foram registradas
diretamente à administração, que as trazia nos momentos de supervisão da tutoria do
Programa.
Com a continuidade do Programa, o Poder Legislativo municipal pareceu o
mais sensível à mudança, talvez por ser o que mais agenciava serviços médicos para
fora do município, tentando assistir os seus eleitores e correligionários, com o auxílio ou
sob os auspícios da edilidade. Por essa razão, em vários municípios, a insatisfação dos
vereadores com o que, para eles, representava o atendimento da Equipe do PSF/PITS,
revelava-se, talvez, num cálculo mais político do que econômico – mesmo que o
econômico fosse o que estrategicamente aparecesse – discutível e inadequado.
Não era incomum, portanto, reclamações do tipo: a) “a comunidade está
insatisfeita com (o) a médico (a)”; b) “está havendo um aumento exagerado nas
despesas com medicação”; c) “há falta de bom senso dos profissionais quando passam
muitos remédios”; d) “depois que a equipe chegou, dobrou as despesas com transporte,
para levar pessoas para atendimento médico em outros municípios – no caso para
municípios pólo, a fim de fazerem consultas especializadas ou mesmo exames”; e) “o
Programa não está resolvendo os problemas de saúde da comunidade”.
Queixavam-se, ainda, da perda de poder ou de constrangimento em relação
aos profissionais da equipe, especialmente os médicos, que tentavam coibir a entrega de
232
As manifestações da população, talvez por influência do tipo de tratamento que tradicionalmente
recebera, mostravam-se contraditórias. Manifestavam satisfação por nunca terem tido sistema de saúde
organizado no município, como agora; mas, por outro lado, diziam-se insatisfeitos com o modelo de
atenção em implantação. Alguns até justificavam que não estavam acostumados com um modelo que
privilegiava ações preventivas e a educação em saúde. Posição nem tão surpreendente, em se pensando o
fundamento pedagógico dentro do qual sempre foram tratados, que sustentava o modelo clássico,
curativo, medicalizador, controlador, pontual e centrado no médico.
250
medicamentos fora do horário de atendimento e sem receita médica. Alguns até eram de
posição que o prefeito devia optar pela desistência do Programa, voltando ao sistema de
contratação de médicos para o atendimento pontual no município, mesmo que, com as
novas necessidades geradas, a freqüência fosse aumentada para, por exemplo, duas
vezes por semana. Em alguns municípios, foram sugeridas até mesmo a extinção do
Programa e a contratação dos próprios médicos que neles atuavam.
Tratando a problemática do ponto de vista das relações de poder que se
expressam no jogo social, pode-se dizer, relembrando Foucault (1985), que a introdução
do PSF/PITS, nos sistemas locais de saúde, e a chegada das equipes mexeram com as
redes de micro-poderes de cada município. Havia um poder que estava arraigado em
cada um deles e que se exercia de formas variadas, sem maiores questionamentos ou
dentro de certa homeóstase.
A chegada das equipes impôs uma recomposição dessa rede de micro-
poderes na base de um saber/poder médico que, legitimado pela academia e pela prática
social, passou a ser exercido. Esse exercício provocou reações e disputas internas nos
municípios
233
. Nesse ponto, e com esse quadro de problemas, parece importante o
retorno a uma discussão aberta no capítulo introdutório, quando se fez menção às
categorias estrutura e sujeito e suas implicações práticas nos processos sociais e,
portanto, na atenção à saúde.
Lá se chegou à conclusão de que as estruturas são criações do homem,
independente do fato de que depois elas tendam a regular e condicionar suas ações e
atitudes que nem são espontâneas nem automáticas, mas resultantes do desenvolvimento
da consciência na relação com os outros homens. Nesse jogo social, quando os homens
se fazem sujeitos, as questões do ser humano, da liberdade, da alienação, das classes e
da subjetividade podem entrar em confronto pelo domínio dos processos sociais,
geralmente baseados em estruturas sociais. Caso isso não aconteça no processo, aquele
que está no domínio da estrutura, por não ser questionado, acaba por interferir nas
decisões e vontades dos outros, entrando em conflito com a possibilidade de sua
liberdade e autonomia.
233
Em uma das experiências municipais, um dos vereadores, habituado a interferir nas questões
administrativas municipais, entrou em conflito com a enfermeira da equipe, que proibira a distribuição de
cafezinho para a comunidade, na sala de espera da Unidade de Saúde. A cortesia estaria interferindo no
funcionamento da Unidade, pois a sala de espera que, na UBS, é uma área para o desenvolvimento de
ações de educação em saúde, transformava-se num salão de bate-papo, que desviava o curso dos objetivos
programados. O mesmo vereador também tentou interferir em outras situações da organização da UBSF.
251
7.5 O comportamento ético: a prática médica nas equipes do PSF/PITS
Como o PSF/PITS foi uma experiência relativamente controlada, em face do
seu acompanhamento por uma equipe de tutoria e pelo oferecimento de um curso de
especialização, numa modalidade que comportava momentos de concentração e de
dispersão, essas duas formas de controle e acompanhamento, de per si, já garantiram
certa densidade ao modelo de atenção. Favoreceram o desenvolvimento de um processo
de trabalho que induzia um comportamento ético e uma prática profissional crítica em
relação ao modelo tradicional. Nessa linha, a experiência teve o objetivo pedagógico de
aproximar conhecimento e prática no exercício profissional, com a perspectiva de
implementar a Estratégia Saúde da Família.
No campo da prática, o primeiro diferencial. Os profissionais se envolveram
com o esquadrinhamento do território, com vistas à apropriação das suas várias
dimensões. Isso foi fundamental para a compreensão e organização da Atenção à Saúde
que deviam promover, com base no atendimento clínico individual e numa abordagem
coletiva que considerasse o contexto familiar e comunitário. A organização da Atenção
considerou o princípio da vigilância à saúde e centrou a sua ação na descoberta das
doenças prevalentes em cada segmento da população, distribuída em cada uma das fases
do ciclo de vida: criança, adolescente, adulto (jovem e maduro) e idoso. Essa
organização e divisão tinham o fito de ampliar e distinguir as perspectivas de cuidado e
possibilitar uma abordagem aos problemas prevalentes em cada segmento da população.
Esse primeiro movimento, de saída, já criava um novo arcabouço para a
discussão e a compreensão do processo saúde-doença da população e representava um
salto de qualidade na implementação da estratégia e organização do cuidado. Abria
espaço para o diálogo interprofissional e definia o papel individual e coletivo da equipe.
Mas isso não que dizer que o objetivo foi sempre alcançado, posto que as experiências
das equipes, além de vicejarem em terreno inóspito, como já ficou caracterizado na
secção anterior, nem sempre contaram com o adequado preparo dos profissionais.
Porém, as equipes formadas por profissionais que já mantinham uma ligação mais
estreita e orgânica com a proposta Saúde da Família, quando das discussões em espaços
coletivos, protagonizavam experiências práticas as mais profícuas.
Especificamente em relação ao comportamento ético, a maioria dos
profissionais mostrou uma interação saudável com a comunidade. E isso deve ser
252
realçado, principalmente, considerando-se o contexto inóspito, contraditório e
dificultoso para uma prática médica educativa e dialógica. A comunicação e a
informação com a comunidade, intra-equipe e mesmo com as gestões municipais,
apesar de tudo, fluíram. Ficaram demonstradas a entrega e a vontade de interferir na
realidade de saúde das populações cobertas com o programa, enfrentando-se, em muitos
casos, as resistências das administrações e da própria população, já desgastada com
outros tipos de conduta, que faziam dela objeto de uma ação de saúde descontínua e
inadequada. Foi necessário um trabalho adicional e relativamente longo, para que se
possibilitassem a troca e a confiança entre as equipe e a comunidade; para que ficassem
entendidos o sentido fraterno e a honestidade de propósitos
234
da equipe de saúde que ali
organizava a sua atenção.
A interação saudável com a comunidade, a prática dialógica, o sentido
fraterno, a preocupação, o cuidado e, principalmente, a perspectiva de transformação da
realidade de vida e saúde da população ficavam claros em muitas das ações dos
profissionais das equipes. Para exemplificar o que está sendo afirmado, seguem alguns
exemplos que dão conta do posicionamento dos profissionais, com realce para a prática
médica.
O primeiro é um caso ocorrido numa das equipes de saúde de um dos
municípios mais problemáticos, do ponto de vista administrativo e da estrutura social,
econômica e sanitária. Ele dá conta de uma realidade cruel de abandono e de maus
tratos de uma mãe, alcoólatra e desocupada, em relação a sua filha recém-nascida.
Devido a sua condição social, a mulher em questão perambulava pelas ruas, ora com a
criança nos braços, expondo-a às mais vexatórias situações, ora sem ela, que ficava
abandonada, em casa, à própria sorte (ou ao azar), uma atitude de afronta aos direitos da
criança e do adolescente.
Essa situação só ficou exposta por causa da presença, da proximidade, da
sintonia e da confiança que existiu na relação equipe de saúde/comunidade. A situação,
ao ser captada pela sensibilidade da médica e enfrentada, com cuidado, pela equipe, foi
levada de volta para reverberar na comunidade, abrindo espaço para que se discutissem
as diversas situações de abandono, voluntário ou involuntário, que acontecem no dia-a-
234
Na grande maioria dos casos, principalmente naquelas comunidades em que antes não se contava com
serviços regulares de saúde, sentiu-se a população ressabiada, desconfiada da investida de atenção do
PSF/PITS. Aos poucos, à medida que se abriam o diálogo e a troca é que ela se convencia de que aquele
novo serviço na comunidade era estável e duradouro e não apenas mais uma
investida político-eleitoreira
do poder municipal.
253
dia das famílias, principalmente as de baixa renda e sem acesso à informação e à
educação adequada.
A grande surpresa é que se descobriu que outras situações, de certa forma,
parecidas ou equivalentes, mesmo que mitigadas, ocorriam na comunidade. Dessa
mobilização, várias questões foram apreendidas e debatidas, proporcionando à equipe
de saúde e à população a abordagem da questão do abandono e da falta de cuidado
materno ou familiar com as suas crianças. A questão propiciou uma pesquisa, na própria
comunidade, cujos dados coletados revelaram uma realidade velada: a do trauma
infantil domiciliar
235
.
Outra situação recolhida da prática médica de outras equipes demonstrou o
cuidado e o respeito com o idoso. As transformações sociais, econômicas, sanitárias e
demográficas têm modificado o perfil da família brasileira
236
. Cada vez mais, tem-se
tornado comum a co-existência de várias gerações numa mesma família/domicílio. Isso
tem inspirado um trabalho profissional específico, a partir da abordagem da vigilância à
saúde do idoso. O trabalho consiste no levantamento dos dados relativos aos
padecimentos do sistema circulatório (cardiopatias e hipertensão), do sistema ósteo-
locomotor (artroses, osteoporose e artrites) e distúrbios endócrinos, como obesidade e
diabetes, e o tratamento dessas questões para além do tratamento usual medicamentoso.
Numa das equipes em que essa situação transcendeu o atendimento usual,
foi formado um grupo de idosos que se organizou, do ponto de vista da discussão e do
tratamento coletivo das suas patologias, como também do ponto de vista da convivência
comunitária. Do diálogo equipe/comunidade, resultou um grupo de caminhada
sistemática, que evoluiu, com a melhora dos problemas clínicos da maioria, e, ao
mesmo tempo, a organização de estratégias comunitárias de sociabilidade. Festas,
comemorações, passeios e outras iniciativas passaram a ser programadas, reeducando o
235
TARGINO, R. A.; BARROS, M. A. A. – A face oculta do trauma: avaliação dos acidentes
domésticos na infância na comunidade de Vila Nova – Cajá (PB). Monografia apresentada ao I
CESF/PSF/PITS. Orientador: Prof. Severino Ramos de Lima. João Pessoa, 2002.
236
É importante ressaltar esses aspectos, pois eles estão diretamente interligados entre si, em termos de
condicionamento. Do ponto de vista econômico, têm-se cada vez mais, com a evolução e extensão da
previdência social, de um lado, a carestia e o aviltamento dos salários; de outro, a importância dos idosos
no financiamento da família. Isso só tem sido possível graças às mudanças demográficas, com o aumento
da expectativa de vida da população, que traz como conseqüência as mudanças na estrutura familiar e a
necessidade da inclusão de cuidados de saúde, específicos para essa população.
254
modo de vida dessas pessoas e oferecendo-lhes outras possibilidades e novos sentidos
de vida social e familiar
237
.
A problemática ambiental, numa área de abrangência urbano-rural, foi mais
uma situação que demonstrou o trabalho diferenciado da equipe e a participação
decisiva da profissional médica. Nesse caso, a questão foi induzida tendo em vista o
destino dado ao lixo, que acabava sendo jogado numa área próxima à UBSF,
ocasionando a proliferação de insetos, roedores e a contaminação do ambiente (ar e
solo). Diante da realidade desagradável, a médica da equipe, auxiliada pela enfermeira,
levou o problema à discussão em reuniões na comunidade. Decidiu-se que o caminho
era o fortalecimento da capacidade de gestão ambiental da comunidade, através do
conhecimento da problemática da produção e destinação dos resíduos sólidos
domésticos.
O trabalho concentrou-se na observação direta e conjunta da realidade; no
mapeamento das zonas negras de descarte de lixo a céu aberto; no levantamento de
dados e informações do adoecimento da população local, decorrente da má gestão dos
resíduos domésticos, e na aplicação de um questionário com a finalidade de recolher a
opinião da população a respeito da problemática do lixo doméstico.
Questões a respeito do lixo produzido em cada domicílio, o incômodo que
este causava para cada um, nos vizinhos e na comunidade em geral; a relação entre lixo
e doença; os tipos de lixo doméstico produzido bem como as suas possibilidades de
destino final foram amplamente discutidos. Dessa pedagógica movimentação, resultou
um conjunto de definições que, analisadas em conjunto com a comunidade,
transformaram-se em propostas alternativas para o correto manejo do lixo domiciliar e
puderam ser colocadas em prática, no sentido de se melhorar o ambiente e,
conseqüentemente, a vida dos moradores da localidade. Outras propostas mais
abrangentes também foram produzidas e oferecidas à gestão municipal como sugestão
para um tratamento mais adequado da questão dos rejeitos humanos em escala
municipal, especialmente no que tange à coleta e ao destino final desses resíduos
238
.
A mudança no perfil da prática médica também foi capaz de modificar
comportamentos preconceituosos ou mesmo quebrar tabus arraigados no seio da
237
SILVA, E. G.; PEREIRA, J. A. – Atividade física: avaliação de seus benefícios para um grupo de
idosos. Monografia apresentada ao I CESF/PSF/PITS. Orientadora: Profª. Maria das Graças Melo
Fernandes. João Pessoa, 2002.
238
MONTEIRO, M. G.; COELHO, A. A. – Proposta para o manejo de resíduos sólidos na área rural de
Barreiros, município de Cacimba de Dentro/PB. Monografia apresentada ao I CESF/PSF/PITS.
Orientador: Prof. Lindemberg Medeiros de Araújo. João Pessoa, 2002.
255
população masculina, um deles relativo a um dos problemas médicos que mais
acometem os homens a partir da meia idade: os problemas genito-urinários. Essa
discussão, ao ser introduzida em uma comunidade rural, num dos municípios, trouxe à
baila os problemas relativos à próstata, possibilitando o diagnóstico e o tratamento de
um grupo de homens que já apresentavam, de forma silenciosa, problemas nessa área.
A discussão aberta e sincera, a troca de informações e o aconselhamento
médico adequado foram o ponto de entrada para uma aproximação maior dos homens
do serviço de saúde, abrindo espaço para o rompimento de uma série de dificuldades no
trato de questões da saúde do homem. A população não afetada e mesmo esta pode
evoluir na sua educação sanitária e assim modificarem hábitos em favor da sua
integridade física e moral
239
.
O mais importante é que, com essas experiências, podem-se constatar
exemplos múltiplos de médicos dialogantes tanto no aspecto individual, durante a
consulta na UBSF, quanto no atendimento domiciliar/familiar ou mesmo na
comunidade, nos momentos de ações que envolviam as populações das micro-áreas.
Essa atitude ética dos médicos e das médicas do PSF/PITS e de centenas e milhares de
outros distribuídos por inúmeras equipes da Estratégia Saúde da Família, pelo país
afora, abre uma nova tendência e possibilidades de uma práxis médica educativa e
popular.
Esses avanços justificam a aposta do SUS, no redirecionamento da Atenção
Básica, via Estratégia Saúde da Família. Avanços que animam os que acreditam e
lutam, na perspectiva de transformar os problemas encontrados, em reflexão, novas
práticas, estudos, pesquisas ou algo que contribua com maior riqueza para o processo de
organização do cuidado e da consolidação de iniciativas que concorram para a
humanização do sistema de saúde brasileiro.
Mas o PSF/PITS não revelou apenas boas práticas profissionais e
dificuldades em relação às administrações. Outras situações também demonstraram um
relacionamento difícil dos médicos com a gestão, com os colegas de trabalho e,
principalmente, com a comunidade. Alguns casos, de tão graves, redundaram no
desligamento de profissionais do programa, dado o constrangimento imposto por eles
aos demais atores sociais em cena nos municípios. Várias queixas se referiam ao
239
SILVA FILHO, A. R. – Fatores de risco e prevenção do câncer de próstata: conhecimento de um
grupo de homens. Monografia apresentada ao I CESF/PSF/PITS. Orientador: Prof. Severino Ramos de
Lima. João Pessoa, 2002.
256
comportamento ético inadequado, intolerante e antidialogal dos profissionais, mesmo
que os queixosos deixassem claro que nada tinham a reparar à conduta técnica
240
dos
profissionais.
A conduta inadequada aparecia durante as reuniões, as discussões, na
convivência durante o curso de especialização e, principalmente, no campo de práticas
das equipes. Via-se que faltava aos profissionais em questão uma atitude ética relativa a
valores próprios do humano, tão necessários ao modelo da Estratégia Saúde da Família.
Ou seja, uma conduta voltada para o diálogo, para o respeito ao outro, aos
procedimentos democráticos, à cooperação, à solidariedade, à tolerância e à convivência
coletiva pacífica, ainda que crítica e questionadora.
Num dado município, o secretário de saúde, em face de dificuldades
relativas ao deslocamento de uma equipe para atendimento na área rural, por conta de
uma invernada, e para que a população adscrita àquela equipe não ficasse sem
atendimento, solicitou que outra equipe que atuava numa área urbana relativamente
próxima passasse a atender, emergencialmente, à população da unidade com problema,
enquanto perdurasse o impedimento de deslocamento.
O médico da equipe solicitada não interpôs objeção e, apenas, para não se
sentir sobrecarregado com o fluxo dos novos usuários para a sua UBSF, negociou com a
gestão que a equipe com problema de deslocamento dividisse o atendimento. A
enfermeira, prontamente, atendeu à solicitação, enquanto a médica se negou a cooperar,
alegando que isso quebrava o princípio da adscrição de clientela e que não atenderia
fora da Unidade para a qual estava designada e onde a dita população estava adscrita.
Aqui chama a atenção a falta de compreensão da profissional que, escudada numa
avaliação equivocada e numa visão inflexível de um item da filosofia de atenção da
Estratégia Saúde da Família, não entendia que certas situações caracterizavam o
emergencial de qualquer sistema de saúde que quer proteger o destinatário da atenção.
Por outro lado, ficou evidente o desencontro, em termos do posicionamento
ético e afetivo, entre enfermeira e médica que, aliás, desenvolviam um histórico de
desentendimentos desde o processo de implantação da equipe. Isso motivara
240
Essa atitude acrítica, em relação à competência técnica dos profissionais, compreensível tanto pela
representação social do médico na sociedade quanto pelo desconhecimento sobre o que fazer do trabalho
médico deve ser relativizada. O acompanhamento das equipes demonstrou deficiência técnica em alguns
deles, especialmente daqueles que, logo cedo, na sua carreira, haviam optado por uma especialização e
agora eram exigidos enquanto médicos generalistas. A formação especialista em Saúde da Família, nesse
caso, foi o recurso disponível para tentar fazer um nivelamento técnico dos profissionais, já que tratava
dos conteúdos clínicos fundamentais necessários à atenção básica, além dos princípios, valores, da
filosofia e das competências necessárias à Estratégia Saúde da Família.
257
intervenções da tutoria para tentar amenizar o desgaste no relacionamento da equipe.
Tentava-se argumentar, inclusive, que esse tipo de problema não só repercutia mal na
qualidade de assistência à comunidade e no desenvolvimento das demais atividades
profissionais como era prejudicial à relação com a comunidade, por caracterizar um
comportamento antipedagógico.
Havia ainda situações em que ficavam demonstradas a arrogância, a
grosseria e a falta de sensibilidade humana e social para o exercício profissional, como
no caso de uma profissional que, atendendo numa comunidade rural e estando a UBS
superlotada de usuários e sem lugar para as pessoas se sentarem, tratou grosseiramente e
de forma desrespeitosa uma usuária idosa que, por dificuldade de espaço, postara-se de
pé à porta do consultório. Ao invés de compreender a dificuldade física da UBS e até
mesmo da usuária, por tratar-se de uma anciã, a profissional preferiu inferir um
julgamento malicioso à atitude da usuária.
Ainda na linha da falta de sensibilidade social e humana, nessa mesma
unidade, foi relatado que a mesma médica, em outra oportunidade, discutiu com o
auxiliar de enfermagem da UBS e recusou-se a continuar atendendo à demanda de
usuários, pois já completara a cota de dezesseis atendimentos do turno, numa alusão a
uma antiga portaria do extinto INAMPS, que disciplinava o tempo médio de quinze
minutos para cada consulta, o que perfazia realmente dezesseis consultas num turno de
quatro horas de trabalho.
Ela não entendia que esse era apenas um parâmetro para que se garantisse
um atendimento minimante decente, humano, eficiente e eficaz. Nesse dia, com a
unidade lotada, várias pessoas ficaram sem atendimento e tiveram que voltar para as
suas localidades. Algumas haviam se deslocado de logradouros relativamente distantes
da UBSF.
O procedimento descrito é injustificável, do ponto de vista ético e humano,
mas há de se compreender que, numa comunidade, quando se tem alta repressão de
demanda, não há solução fora de uma triagem para consultas médicas e atendimentos de
enfermagem colocados em ordem de magnitude e transcendência. O estabelecimento de
um agendamento para consultas e atendimentos eletivos seria a conduta mais adequada.
Há que se considerar que, quando isso não acontece, uma natural pressão sobre o
profissional sobrevém. E quando ele não tem o devido preparo psicológico, social e
humano, para o enfrentamento dessas situações, chega a cometer despautérios.
258
O despreparo profissional, em outros momentos, aparecia pela falta de
compreensão social do processo saúde-doença e pela visão puramente biológica do
significado do adoecer. Numa consulta de puericultura (verificação do crescimento e
desenvolvimento infantil), o médico diagnosticou, corretamente, a desnutrição de uma
criança. Porém, imputou à mãe a causa do estado nutricional do infante. Ou seja, não foi
capaz de compreender as razões sociais e econômicas que estão implicadas na
incidência e prevalência da desnutrição. A culpabilização da vítima, nesses casos, é
típica da visão biologicista do adoecer e da falta de sensibilidade para investigar as
demais razões, além das puramente biológicas, que entram no adoecimento.
Um último caso pode ilustrar a crueza, a insensibilidade, o desprezo pelo
outro, a indiferença e o caráter desumano que pode assumir a prática médica,
principalmente quando exercida como uma atividade puramente disciplinar e fria. Uma
usuária, grávida de sete meses, moradora da zona rural e adscrita a uma unidade
âncora
241
de uma das áreas de abrangência do Programa, agendada no atendimento pré-
natal, enganou-se em relação ao dia de seu atendimento e, após andar nove quilômetros
da sua casa até a referida UBSF, foi recusada para atendimento sob a alegação da
profissional médica de que aquele dia estava destinado ao atendimento pediátrico.
O mais cruel dessa situação é que a usuária partira de casa ao raiar do dia,
em jejum. E se não tivesse tido o cuidado de outros profissionais da equipe, que
procuraram saber se houvera se alimentado antes de sair, teria voltado na mesma
condição. O fato é que, depois de alimentada por auxiliares da UBSF, foi aconselhada a
retornar para a sua residência com a indicação de voltar dois dias depois, quando, no
planejamento da UBSF, estava previsto atividades de acompanhamento médico de
gestantes. Esse caso, retirado da realidade vivenciada junto a uma equipe do PSF/PITS,
não é único, pois se repete em circunstâncias parecidas em muitas equipes e municípios
com usuários de diversos ciclos de vida, dentro ou fora do âmbito da Atenção Básica.
Ele é a representação exata da execução intransigente e inflexível de um planejamento
normativo que, prepotente e arrogante, só consegue se enxergar como um fim em si
mesmo, incapaz, portanto, de dialogar com a realidade circundante.
241
O termo unidade-âncora designa um local, um prédio, não necessariamente uma unidade de saúde,
onde se organiza a atenção à saúde fora da UBSF de uma área de abrangência. Num sistema de saúde
organizado e equipado, corresponde a uma unidade que dá suporte à atenção de uma micro-área distante,
geralmente na zona rural. As unidades-âncora, normalmente desenvolvem ações de assistência que são
sistemáticas, mesmo que não diárias.
259
O acompanhamento de atividades de equipes e profissionais do PSF/PITS,
na Paraíba, apresentou-se como uma experiência espinhosa, difícil, desgastante e
conflituosa
242
, mesmo que extremamente rica e cheia de significados e aprendizados.
Implementar o PSF/PITS e enfrentar os casos aqui relatados foi um desafio constante,
uma provocação, no sentido de se vencer a inação, a resistência à mudança, a ignorância
da realidade, o poder exercido com arrogância, prepotência, truculência, indiferença e
intolerância. Foi uma aposta para se tentar construir o SUS e o seu modelo de atenção
em municípios que, pelas suas características geopolíticas e administrativas, parecia
uma tarefa irrealizável.
A elaboração deste trabalho representa um exercício pedagógico, com todas
as conotações e sentidos que possam advir do termo e da prática pedagógica. Seguir em
frente, continuar foi, em muitos momentos, um ato de rebeldia, de obstinação,
resistência mesmo, pois era preciso caminhar, continuar acreditando que é possível
mudar concepções, inventar novas práticas. Por isso é impossível esconder as
frustrações de muitos momentos em função de posicionamentos equivocados e de
posições incongruentes, ora dos gestores municipais, com sua cruel crise de
competência administrativa, na sua falta de compromisso social e de cuidado com a
coisa pública, ora dos profissionais, devido à inconsistência da sua formação técnica e
humana ou à clara escolha profissional, segundo um viés financeiro e mercantilista
243
;
ora com as inconsistências e dissonâncias do próprio PITS e sua forma vertical
244
de
tratar coisas que deveriam ser horizontais em face da doutrina legislativa do SUS.
242
A experiência tornou-se espinhosa, difícil, desgastante e conflituosa porque, em alguns casos, foi
necessário se recorrer ao desligamento de profissionais ou mesmo de municípios, dada a impossibilidade
momentânea de superação das contradições. E a cada momento em que isso se tornou necessário, do
ponto de vista da implementação de uma atenção à saúde pautada no respeito aos princípios éticos
acabava gerando novas contradições e problemas. O mais complicado deles: Como superar o dilema de
desligar um município, quando os únicos profissionais de saúde em ação eram os do PSF/PITS e a
retirada do Programa significava abandonar a população à própria sorte, vez que os gestores não
cumpriam com a sua responsabilidade sanitária? Por outro lado, como manter esse mesmo programa que
não garantia a mínima estrutura para que ele pudesse funcionar sem aviltar profissionais e população?
243
Necessário se faz reconhecer a fragilidade das relações de trabalho e os baixos salários que
caracterizam a contratação dos recursos humanos, para a saúde, pelo setor público. O PSF não se exclui
dessa condição. Não tendo vínculo empregatício formal e estável, o profissional é enredado numa
situação de alta rotatividade, que acaba por transformá-lo num nômade, condicionado que fica por um
viés puramente econômico que o restringe à escolha do empregador pelo critério de quem lhe paga mais,
mesmo que a relação contratual seja precária. O PSF/PITS mostrou claramente esse viés quando muitos
profissionais de equipes de PSF abandonaram seus municípios pelo canto da sereia da bolsa/salário
oferecida pelo CNPq, que era mais sedutora que grande parte dos salários oferecidos pelos gestores
municipais.
244
Apesar do lado positivo da preocupação do Ministério da Saúde em abranger, com a Estratégia Saúde
da Família, algumas centenas de municípios recalcitrantes, estimulando-os do ponto de vista financeiro,
de recursos humanos de nível superior e de assessoria na gestão, com o PSF/PITS, não há como não se
260
Mas, quando se afirma que a experiência foi um exercício pedagógico, com
todas as conotações e sentidos que possam advir do termo e da prática pedagógica,
quer-se dizer, também, que todos - tutores, profissionais, gestores e população -
aprenderam muito com a experiência prática. Foi com ela que se firmou a convicção de
que, num certo sentido, é preciso insistir muito mais na educação dos profissionais e dos
gestores do que na dos usuários. A educação, aqui, não deve ser entendida só e
necessariamente no seu sentido da formação regular, formal e técnica, sustentada em
cursos ou algo do gênero, mas, como capacitação social para o enfrentamento dos
problemas de saúde que, em geral, advêm da própria realidade em que estão inseridas as
famílias e a população.
Educação como uma reflexão coletiva e profunda sobre o sentido de uma
atenção primária que supere a sua organização puramente assistencial, o seu caráter
marcadamente curativo, algo que vem da prática de saúde tradicional. Educação
enquanto
Fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por
um sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituído de uma teoria de
conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia)
incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com
conteúdos e técnicas de avaliação processuais, permeados por uma base
política estimuladora de transformações sociais e orientados por anseios
humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade.
245
Foi esse sentido de educação que ficou patente nas inúmeras experiências
vividas ou nos relatos colhidos dos médicos e dos demais profissionais da Saúde da
Família, que revelaram sua competência técnica e humana; sua sensibilidade social e
disponibilidade para o diálogo; humildade, tolerância e generosidade; comprometimento
com o outro; consciência do seu inacabamento. Esses são elementos que, antes de tudo,
criticarem incongruências e vícios de origem da proposta, como a sua forma de recrutamento, seleção e
gestão de profissionais. Muitos dos seus profissionais eram experientes, alguns até aposentados, com
muitos vícios ou pouco compromisso e movidos pelo simples interesse econômico. Outro aspecto era que
o processo de capacitação retirava constantemente os profissionais dos municípios, quando o mais lógico
seria se organizarem propostas de treinamento em serviço, como residências multiprofissionais ou algo
parecido. Outro aspecto a enfatizar era a coordenação (nacional, estadual, municipal) com superposições,
confusões e embaraços, além de perda de agilidade e inadequação de algumas decisões. A
descentralização da estratégia, com maior autonomia da coordenação estadual junto aos municípios,
poderia ter gerado maior eficiência e eficácia da proposta de inversão do modelo de atenção.
245
Aproximação conceitual construída pelas turmas Teoria em Educação Popular, História e Filosofia da
Educação Popular, do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFPB), em João Pessoa-PB e
durante o Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária), com
participação de educadores populares de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, na cidade do Rio de
Janeiro. As disciplinas foram coordenadas pelos professores José Francisco de Melo Neto, Maria do
Socorro Batista e Eymard Mourão Vasconcelos, tendo sido desenvolvidas durante o primeiro semestre
letivo do ano de 2003.
261
revelaram sua humanidade e a reiteração de que a prática médica pode elevar-se à
categoria de uma práxis, na Estratégia Saúde da Família.
Leidson Oliveira Adelino de Lima, médico do PSF da Cachoeira, uma das
áreas mais desassistidas e de maior miserabilidade em Campina Grande (PB), apresenta,
por meio de sua poesia, as contradições da sociedade, a condição humana, sua
consciência de mundo, a consciência reproduzida nas equipes de PSF e nos territórios
onde elas estão incrustadas, constituindo-se o combustível fundamental para a virada
paradigmática da prática médica da Saúde da Família numa práxis médica:
Falar de saúde da família é andar além, sem parar.
Sair da nau e, de mar em mar, de lua em lua, mudar de idade e da banal
linearidade, sem saudade, sem farsa.
Essa dualidade de ser fã e mirar além da simples saúde.
E saber de Maria, de Bia, de Ana, de Lia, de Laura, de Déa, de Amanda, de
Lula, de Bira, pai de Eudes, de Raí, de Duda e Bem mais. Dá pra lembrar de
Deus e de sua imensa família. Para uns, pães e ruas limpas. Ali, a menina
sem pais e pães.
A fama, a lira, anéis, mesas e bebidas.
A lama, a lida, a ira.
Ruas fúrias, de bares, de balas, de malas e adeuses.
Ruas de miasmas, sem ar, sem ida e nem saída.
Sei das meninas mães, meninas pílulas, saem de lar em lar arruinadas,
esfaimadas, desprezadas.
Ninfas, deusas, nem param e nem pensam, apenas, saem de seus lares. Riem
e nem sabem, esperam seus bebês e nem falam.
Meninas nenéns mamam em suas mamães meninas.
Aí a fama das fêmeas é serem da ala de Maria. Mães da surdina, das mamas
plenas de mel.
Deusas ilibadas da lida diária.
Li das fadas mal amadas, amarradas, insanas, presas de seus Pares.
Bebem fel, parem e, ainda assim, amam sem nada esperar.
Bebês falam nas salas surdas, mudas, sem brisa.
Almas pálidas desfilam em ladeiras áridas. Findam seus dias sem abrirem-se
para seu País.
A miséria impera em derribada de idéias e ideais.
Dia a dia massas desesperadas rumam em pluralidade de barreiras sem fim.
Mas, nada dura para sempre.
Fala-se de sinais de um SUS a mirar além. Ramas de uma fase ímpar em
saúde, a saúde da família, premissa base para nadar pelas marés da lida, sanar
males, mas, vê-se bem mais além da íris.
É sair a semear, surdir sempre.
262
8 SABERES PARA A MEDICINA, PARA A PRÁTICA MÉDICA
Procurou-se mostrar que é possível a prática médica transformar-se em
práxis médica na Estratégia Saúde da Família. Médicos dialogantes, que têm
consciência da sua ação no mundo e que acreditam que é possível transformar a
realidade com base numa postura aberta e democrática foram encontrados. Mas a
resposta afirmativa para a questão proposta na tese não encerra a discussão inicial. Ela
desvela novos problemas, novas interrogações, abrindo perspectivas para novos
desdobramentos.
O acompanhamento da prática médica no interior da Estratégia Saúde da
Família, em municípios da Paraíba, revelou suas virtudes doutrinárias e suas
possibilidades práticas e desnudou dificuldades e conflitos quando foi preciso transpor
os seus aspectos doutrinários para a prática, num objetivo de massificação do modelo de
atenção. A concretização da Saúde da Família demanda profissionais capazes de
trabalhar outro conceito de saúde-doença, de atenção à saúde e de práticas profissionais,
com competência para trabalhar a saúde como conquista social, e não, simplesmente,
como enfrentamento da doença, no plano individual ou mesmo familiar. Por isso, nem
sempre se encontrou, na prática, um profissional cujo perfil seja adequado ao contexto
exigido para atuar no Programa Estratégia Saúde da Família.
Por outro lado, não se pode perder de vista que a teoria da Saúde da Família
surgiu da própria prática médica, da experiência reflexiva de médicos e de outros
profissionais que, com suas experiências particulares, foram capazes de, pouco a pouco,
projetar outra modalidade de atenção, que quebrava a verticalidade e a frieza da relação
com o outro e se dispunha a trabalhar de forma parceira com os colegas da sua equipe
de saúde, com outros profissionais, com a gestão e com a população. A seqüência e a
sistematização dessas experiências é que permitiu que elas pudessem ir conformando o
modelo que se tornou estratégia de atenção básica no Brasil.
As virtudes, tanto quanto as dificuldades e os conflitos que permeiam o
processo de desenvolvimento do Programa Saúde da Família e a prática médica nela
inserida, trazem à tona novas e velhas questões que precisam ser analisadas,
problematizadas, respondidas. É preciso investigar mais profundamente por que a Saúde
da Família vinga em uns municípios e, em outros, não avança; por que logra êxito no
263
trabalho de algumas equipes e não obtém o mesmo resultado em outras, dentro de um
mesmo município.
Com base nessas considerações, surgem mais outras perguntas: Por que, em
certas equipes, a prática médica se eleva a uma práxis médica e, em outras, ela acontece,
ainda, nos moldes tradicionais? Seria possível se pensar num alargamento do horizonte
da práxis médica? É possível generalizar essa práxis para a atenção especializada, assim
como para a atenção hospitalar, abrangendo todo o SUS? Que obstáculos precisam ser
removidos para que a práxis médica possa prosperar produzindo saúde? Como fazer
para se deixar de lado o modelo tradicional de prática médica, que se propõe apenas a
confrontar a doença? Como enfrentar o complexo médico-industrial todo direcionado
para manter o status quo, este que apenas se recicla em face de propostas inovadoras
para manter-se e até ampliar os seus objetivos?
As respostas para essas e tantas outras inquietações possíveis em torno dessa
temática não poderão aqui ser respondidas, posto que exigem um esforço teórico e de
pesquisa que está fora do escopo deste trabalho. Entretanto, contribuir com algumas
pistas ou reflexões sobre algumas das questões levantadas ainda é possível, mesmo no
ocaso do esforço desta pesquisa.
A experiência tem mostrado que a estratégia de massificação da Saúde da
Família logrou êxito no aspecto quantitativo, garantindo a universalização do PSF para
praticamente todos os municípios brasileiros. Mas, não garantiu ainda a qualificação e a
efetivação do modelo. A debilidade das gestões municipais, o arraigado conceito de
saúde como contrário de doença e a crença de que a saúde da população pode ser
conseguida simplesmente com médicos e medicamentos aparecem implicados nesta
equação. Isso, entretanto, carece ser melhor estudado para que se possam interpor
enfrentamentos eficientes e eficazes. Outra questão que precisa ser aprofundada é a
representação mítica do médico e da medicina na sociedade, conferindo-lhes um poder
quase irrefutável. Vale, enfim, perguntar como tudo isso tem se coadunado com a
Estratégia Saúde da Família.
Por mais que o conhecimento tenha avançado, e o conceito de saúde-doença
se alargado, as novas visões desse conhecimento não parecem disseminadas o
suficiente, principalmente entre as camadas mais ameaçadas da população, aquelas que
menos acesso têm ao processo educativo. Mesmo que, mais recentemente,
experimentem-se, aqui e ali, movimentos no sentido de se refletir sobre a questão da
educação e que comece a existir algum esforço de investimento oficial para apoiar essas
264
iniciativas, a educação, numa perspectiva popular, é quase que completamente marginal.
Há, ainda, um longo caminho a ser trilhado e um descompasso gritante nas escolas
médicas. O conhecimento social da medicina, fundamental para encorpar a educação
médica, embora tenha avançado muito nas últimas décadas
246
, é marginalizado nos
currículos escolares, em detrimento do cientismo da biologia e da tecnologia, que tudo
pode, no diagnóstico e no tratamento das doenças, embora se torne cada vez mais
distante da maioria que dela necessita.
A necessidade de uma medicina compromissada com a educação popular
ainda está aquém da pedagogia assumida pelas escolas médicas. Não se trabalha a
capacitação do médico na perspectiva de ser um educador e aprendiz, num processo
dialético de educação popular. A falta de reflexão e de criticidade sobre o conhecimento
da medicina e sobre o papel da prática médica acaba por fazer sinergismo com o senso
comum que reina nas relações população/gestão/profissionais de saúde/escolas médicas,
fiadoras do continuísmo da prática médica tradicional. E nesse diapasão, fica uma
lacuna no que concerne à concretização da Atenção Básica à Saúde.
Todavia, o contrário também aparece, mesmo de forma minoritária. Onde há
a consciência da força e da necessidade da educação popular, no processo de trabalho
em saúde, quando os dois pólos principais (gestão municipais e profissionais médicos)
se tornam conscientes do seu papel educativo, tende a haver um ambiente mais
favorável à implementação da Saúde da Família, abrindo-se a possibilidade de uma
atenção à saúde baseada na práxis médica. E, em havendo consciência da práxis e
transitividade dessa práxis com a população, poder-se-á entrar no círculo virtuoso da
produção da saúde e da educação popular na saúde.
É importante, todavia, enfatizar que o papel indutor da Saúde da Família,
enquanto prática concreta, não é e não pode ser apenas algo que acontece devido ao
encontro fortuito e à reciprocidade de consciências da gestão e dos profissionais de
saúde que se descubram sensíveis o suficiente para buscar e envolver a população como
sujeito do processo. Um profissional deve ser capaz, também, de iniciar um movimento
que redunde num ato educativo popular que reverbere e sensibilize a própria equipe,
atingindo a comunidade sob sua responsabilidade, chegando até a gestão municipal e,
246
Alguns frutos desse esforço já começam a ser colhidos. Já existem cursos de medicina em vários locais
do país que desde o seu início foram formatados dentro de uma pedagogia problematizadora e onde os
estudantes começam a sua vida acadêmica de graduação na prática comunitária, aprendendo e atuando em
face dos problemas de saúde da população. Começam também a se concretizarem reformas curriculares
que melhoram a perspectiva para uma discussão crítica sobre os saberes necessários à medicina e à
prática médica, no interior das Universidades.
265
quem sabe, à sociedade e à educação médica. Apesar de ser essa uma tarefa difícil, não
é impossível de se realizar. É esse movimento que pode explicar porque algumas
equipes mudam a si próprias e, concomitantemente, a realidade a sua volta, enquanto
outras permanecem na prática médica tradicional, dentro de um mesmo município.
Quais seriam, então, os elementos que, presentes na prática médica,
poderiam ser capazes de promover a transformação da prática em práxis, ou que, por
estarem ausentes, favoreceriam a reprodução do status quo? Um conjunto de raciocínios
pode ser desenvolvido para servirem de linha de apoio e condução de uma especulação.
8.1 O exercício da medicina exige humildade, consciência de inacabamento
A medicina exercida por médicos dispostos a uma convivência horizontal
com seus pares, na sua área, ou mesmo em áreas indiretamente ligadas à saúde; por
médicos docentes, com experiências de ensino/aprendizagem mais abrangentes, aí
incluídas experiências de extensão universitária, numa perspectiva de educação popular,
tem influenciado na formação de profissionais críticos em relação a sua prática. O
acompanhamento de profissionais inseridos em equipes de saúde, inclusive em equipes
de Saúde da Família, o acúmulo e a troca de conhecimento da medicina na sua relação
com a filosofia, com a sociologia, com a educação e com os movimentos sociais
populares, têm apontado para uma certa direção e sugerem uma conclusão: a filosofia e
a pedagogia freireanas podem ser fontes de inspiração para a transformação da prática
médica em práxis médica.
Em sendo assim, parece plausível que todos aqueles que estão envolvidos
ou pretendem se envolver com a medicina, querendo extrair dela uma prática que se
justifique como escolha ética, em favor do humano e da hominização, tenham
oportunidade de conhecer os ensinamentos presentes na pedagogia legada por Paulo
Freire. Os que já o fizeram estão tendo a chance de descobrir, nas entrelinhas desses
ensinamentos, que a medicina encerra uma pedagogia e que o médico é, antes de tudo,
um educador. Isso, porém, não elimina que os que não leram não tenham a chance da
mesma descoberta. Afinal, nem a educação é uma invenção freireana nem se é educador
apenas pelo fato de ter lido Freire.
266
E por que seria importante para o médico e para os envolvidos na medicina
conhecerem a filosofia e a pedagogia freireana? Qual o sentido dessa pedagogia e a sua
utilidade para a medicina e para os médicos? O principal é a distinção entre educação
bancária e educação libertadora. Essa distinção, e mais que isso, o exercício profissional
com base nela, pode constituir-se um divisor de águas para se compreender a medicina
como um saber, como uma prática e como uma política. Quando compreende que o ser
humano não é um recipiente vazio, destituído de qualquer conhecimento, alguém que
precisa ser preenchido pelo conhecimento de outrem, o médico poderá se descobrir um
educador, no sentido freireano. Não seria, portanto, possível uma medicina libertadora?
E em se assumindo um educador freireano, o médico descobriria que a
consciência humana é uma construção e, assim sendo, teria a chance de direcionar,
redirecionar e transformar a sua prática em práxis médica, práxis em saúde. Poderia
possibilitar novos sentidos a todo o cabedal de conhecimentos técnicos adquiridos. Com
esse redirecionamento, compreenderia que a medicina e a prática médica são formas de
intervenção no mundo, que se dá pela integração de conhecimentos. Que toda
intervenção no mundo se dá dentro de um conjunto de relações derivadas de
fundamentos ou princípios nem sempre explícitos ou especificados, mas aprendidos ao
sabor da experiência feita, curiosa, reflexiva, epistemológica. A educação de Freire
conduz ao quefazer da medicina como práxis, que pode propiciar um processo
educacional horizontal fraterno, pleno, livre e autônomo.
O diálogo talvez tenha sido o principal desses fundamentos. Nada mais
significativo e oportuno à prática médica, já que o exercício da medicina exige do
médico que saiba escutar. Saber escutar, exercitar uma escuta qualificada, carregada de
sentimentos próprios do humano e de sua humanidade pode ser um caminho que
confirme e concretize a disponibilidade para o diálogo. Diálogo não apenas como
ferramenta ou estratégia de trabalho da prática médica, mas como o próprio objetivo da
educação para a práxis, posto que a experiência educativa é, ela própria, diálogo.
Diálogo como essência mesma das trocas humanas no sentido de compreender e
integrar conhecimentos.
A partilha é outro fundamento. As trocas que na relação pedagógica mais
localizada do médico se dêem pelo diálogo – pensem-se as relações interpessoais, as
relações médico/usuário ou as relações interprofissionais – quando possibilitadoras de
novas aprendizagens para aqueles seres humanos em relação dialógica, podem ter um
potencial disseminador dessas aprendizagens em novos diálogos e novas partilhas,
267
universalizando saberes em situações mais macro. A universalização das trocas geraria
o processo educativo, dada a identidade antropológica que existe entre as culturas
humanas.
O exercício desse fundamento valorizaria e produziria o reconhecimento
recíproco dos seres humanos em relação educativa, posto que tenderia a rejeitar
qualquer forma de discriminação e a respeitar plenamente os saberes que estão sendo
trocados e legitimados. E à medida que a educação se conforma como um processo
político e dialógico, o seu exercício tende a se tornar participativo, aberto, democrático.
A participação é outro fundamento da pedagogia freireana com capacidade
para influir na educação das relações dialógicas da medicina e da prática médica. Na
medida em que a participação seja tomada como princípio ético de conduta nas relações
dialógicas da medicina e dos médicos com os demais seres humanos, gerando processos
educativos, abrir-se-á espaço para engajamento e produção de mudanças. E como toda
participação implica um encontro de culturas, pelo diálogo e pela partilha, no
desenvolvimento da Estratégia Saúde da Família – para ficarmos circunscritos ao fulcro
desta tese – o processo de participação poderia colocar a cultura popular no centro do
processo de educação para a transformação, problematizando-a, valorizando-a. Essa
atitude seria fundamental, posto que, numa sociedade baseada em uma ética informada
pelo elitismo, pela prepotência, pelo autoritarismo, pela segregação e pela opressão das
maiorias dos padrões sociais que, em muitos casos, contaminam a formação médica, a
cultura popular é desprezada, relegada à periferia, aniquilada.
A confluência e a operação conjunta desses fundamentos concorrem para a
libertação, que surgiria como resultado do processo educativo recíproco, fundado na
tomada de consciência de mundo, no diálogo, na partilha do que há de comum a partir
das diferenças existentes entre os seres humanos em educação, na participação para a
transformação da realidade dos que estão em situação desfavorável. A prática desses
fundamentos promoveria a afirmação dos sujeitos em educação como sujeitos de direito,
como cidadãos. Embora isso seja o avesso do que se tem na contemporaneidade como
prática médica, a internalização, e mais que isso, as interações da medicina e dos
médicos, com base nesses fundamentos, imprimiriam outro sentido aos seus
conhecimentos e a sua ação educativa no mundo.
268
8.2 O exercício da medicina exige conhecimento, competência profissional, atitude
ética
O ser humano é a fonte da atividade direta ou indireta de qualquer profissão
ou profissional. Na medicina e na prática médica, pela intimidade com que as relações
precisam se dar, o humano e as relações humanas precisam ser percebidos e caminhar
sempre no sentido da preservação da inteireza física e moral. O agir, tendo por base a
elevação do humano, demanda, portanto, conhecimento do humano. Não qualquer
conhecimento, mas um que leve em conta os aspectos biológicos – somáticos e mentais,
salubres ou patológicos – e suas várias complexidades anatômicas, fisiológicas,
fisiopatológicas e epidemiológicas. Mas esse conhecimento não pode se limitar ao
biológico.
O médico carece entender aquele ser humano, são ou enfermo, no seu
contexto social. Precisa conhecer particularidades dele, penetrar no seu mundo, na sua
individualidade e na singularidade de suas queixas. Essas queixas, no mais das vezes,
remete-os (médico e usuário) a outras dimensões do adoecer humano, as quais em muito
transcende a esfera do biológico. O médico precisa conhecer bem para poder
esquadrinhar, perscrutar, indagar e responder com escrúpulo, perquirir o usuário da sua
ação.
Por isso, além de conhecimento médico específico, o profissional da
medicina precisará demonstrar outras competências que não apenas as que aliam as
questões do usuário dos seus serviços com o conhecimento próprio da medicina. Uma
medicina por vezes desencarnada do mundo. Para cuidar de alguém que a procura ou
que necessita dos seus cuidados, a competência médica não pode ser apenas aquela
faculdade concedida por lei ou por uma graduação acadêmica que assevera capacidade,
habilidade, aptidão, idoneidade para apreciar, julgar e resolver questões relativas à
doença, em si, ou sua prevenção.
A competência médica precisa fazer-se, antes, competência de uma
medicina encarnada no mundo, capaz de entender os aspectos humanos e ético-sociais
do sofrimento físico e mental de um corpo que é biológico e social a um só tempo. Por
isso, tanto quanto ou até mais que qualquer outra profissão, a medicina exige, além de
conhecimento e competência, um comportamento ético daqueles que abraçam o seu
quefazer. Uma ética não apenas como um código de postura e de proteção corporativa,
269
irretorquível, irrecusável, incontestável. A ética que se busca e que se quer encontrar no
médico é algo que declare a sua conduta humana, esta sim, irrepreensível, humilde,
amorosa, aberta, democrática e, por isso mesmo, suscetível de avaliação e qualificação,
submetida aos valores próprios do humano e guiada pela solidariedade, pela
fraternidade e pelo compromisso inquebrantável com a liberdade e a autonomia dos
seres humanos.
8.3 O exercício da medicina exige apreensão da realidade, convicção de que mudar
é possível
A prática médica se faz como intervenção num mundo que, quase sempre, é
inóspito para o médico e para a população que depende de sua intervenção. Por isso o
médico que conheça uma perspectiva freireana sentirá sempre necessidade de trocar
conhecimentos com os sujeitos da sua relação, sejam eles a equipe de saúde que integra,
as instâncias tecno-burocráticas ou gestoras que prescrevem ou controlam o seu
trabalho, os usuários das suas ações, ou a comunidade em que atua. Juntos, precisam
construir a consciência coletiva do mundo em que estão inseridos e da realidade que
precisam enfrentar/transformar. É provável que nem sempre isso seja possível in totum,
o que não deverá ser impedimento suficiente para que esmoreça, desista ou se entregue
à inércia do sistema de saúde que critica e que, em muitos casos, oprime-o.
O início de qualquer construção relativa à sua práxis, na medida em que
comece da análise da situação de saúde-doença que enfrenta com os seus parceiros, no
território de trabalho e convivência, estará direcionado para o acerto. A situação de
saúde-doença bem analisada e o território devidamente mapeado ajudam a explicar a
maior parte dos adoecimentos ou estranhamentos do dia-a-dia. Mais isso só não basta.
Ao penetrar na realidade da sua prática, o médico que comunga com os preceitos
freireanos tenderá a fazê-lo colocando a sua consciência ética em relação, em diálogo
com os seus parceiros imediatos: os demais profissionais da equipe de saúde e a
população usuária. São esses que, em primeira instância, com ele estarão juntos,
construindo a consciência dos limites e das possibilidades da sua atuação.
Nessa relação respeitosa, amorosa, fraterna e recíproca, a postura do médico
com perspectiva freireana, em nenhum momento, será de transferência de
270
responsabilidades individuais, as que lhes são próprias, na realidade que divide, para
outrem. O médico continuará responsável pelo acolhimento, pelo cuidado e pela busca
de solução dos problemas colocados ou reconhecidos no diálogo com o usuário da sua
ação ou com a comunidade, ainda que tenha ciência dos limites que porventura se
interponham no caminho do seu desiderato. E nesse caso, tenderá a ser límpido e
sincero na apuração e solução dos seus limites pessoais, tanto quanto na separação, na
discussão e na análise dos limites que deverá levar para negociação nas instâncias
interprofissionais, nas comunitárias e nas demais que se fizerem necessárias, em busca
das possíveis soluções.
Essas instâncias se necessitam mutuamente. O médico, assim como os
sujeitos da sua relação, faz parte de uma cena social que está condicionada pelas
estruturas criadas pelos homens. Elas (as estruturas) produzem situações favoráveis e
desfavoráveis e é em face delas que precisam intervir. Portanto, precisarão estar sempre
vigilantes e dispostos a enfrentar com as armas que lhes forem possíveis – em alguns
momentos é possível que tenham que construí-las, encontrá-las na luta cotidiana – os
obstáculos que se interponham ao exercício da medicina e do direito de estendê-la aos
que dela necessitem. A atitude humana do médico, na medida em que se dê dentro de
uma ética que reforce os valores de humanidade, honestidade, liberdade e autonomia
individual e grupal, poderá ser a chave para um vínculo de confiança estável com os
seus semelhantes.
8.4 O exercício da medicina exige criticidade e reflexão sobre a prática
Pense-se em um médico situado numa equipe de Saúde da Família de um
bairro de periferia, com centenas de famílias sob sua responsabilidade. Essas famílias
vivendo de salário mínimo e, portanto, em situação de pobreza. Pense-se que, além de
pobres, não tiveram o devido acesso à educação escolar, ainda que hoje, com esforço,
tentem manter os filhos na escola, pois muitos reconhecem o que não tiveram ou o que
perderam. Padecem de várias doenças e estão submetidos às mais diversas situações que
põem em xeque a sua condição de cidadãos de direito, principalmente no que tange à
infra-estrutura da área em que vivem. Enfim, um quadro que se multiplica por inúmeros
recantos do país.
271
Pense-se numa UBSF que dispõe de uma estrutura física precária, beirando
a insuficiência para uma abordagem mínima à população adscrita. Onde as pessoas da
comunidade que procuram o serviço e os profissionais que nela atuam se acotovelam
pelos pequenos e apertados corredores e salas da Unidade. Há medicamentos básicos
para as principais patologias que se distribuem na população, mas, de vez em quando,
também há falhas no estoque. Nessa situação, usuários que dependem de medicamentos,
alguns de uso contínuo, ficam a descoberto.
Há possibilidade de prescrição de exames e encaminhamentos para
especialistas dentro de cotas que nem sempre cobrem, no tempo que seria necessário, as
necessidades da atenção ao usuário. Não há vagas suficientes nos hospitais, quando
alguém da comunidade necessita de internação. A população reclama, mostra a sua
indignação, e alguns até agridem verbal e moralmente a equipe de saúde, que naquela
situação é a cara mais próxima do sistema de saúde. Pense-se agora que essa situação se
repete em boa parte das UBSF dos municípios, da Paraíba e do Brasil afora.
O que esperar dos médicos e dos demais profissionais de saúde numa
situação dessas? Dois tipos de postura, pelo menos, podem predominar e emergir dessa
realidade, a depender da compreensão e da ação desenvolvida pelas equipes e por seus
profissionais. Equipes compostas por profissionais acríticos, conformados e atuando
conforme a tradição tenderão a considerar esse cenário um retrato da sociedade em que
se vive. Uma sociedade desigual, com uma minoria rica – da qual gostariam de
participar – uma parte maior que a anterior, formada por pessoas que levam uma vida
economicamente estável, remediada; e uma imensa maioria de pobres, da qual a
população adscrita à unidade em que trabalham é uma representação, tão somente.
Diante dos reclames da população, essas equipes assumem uma atitude
reativa, no sentido de se desculpar, colocando que não depende delas aquela situação e
que, na medida do possível, serão feitas demandas aos setores tecno-burocráticos, na
tentativa de sanar o problema. E a depender do calor das discussões, poderão até revidar
algumas agressões verbais que lhes forem feitas. É possível, porém, internamente, que
essas equipes até tenham interesse na demanda da população e pressionem os setores
que tratam da gestão dos insumos para as unidades de saúde, afinal, são pessoas muito
necessitadas. Mas é possível também que não tenham muita esperança de que a situação
se reverta integralmente.
As equipes formadas por profissionais críticos, atentos e inconformados
reconhecem a condição de pobreza e de iniqüidade que grassa na população e a relação
272
dessa situação com o tipo de políticas sociais que, no geral, são emanadas do Estado.
Consideram a Saúde da Família, mesmo com as falhas relatadas, uma oportunidade para
se montar um serviço solidário e justo socialmente junto à população. Apostam numa
perspectiva educativa que enseje a passagem do compromisso social que tentam assumir
em conjunto com a população, à consciência política da condição social em que se vive.
A desigualdade social, assim, transforma-se num tema gerador de
discussões da condição humana, numa postura educativa, dialógica de aproximação
contínua com a comunidade e de formação de consciência coletiva. O cenário daquele
momento, representado pelas falhas em relação aos insumos assistenciais, é o exemplo
de uma situação que precisa ser transformada para que se continue caminhando rumo ao
aperfeiçoamento do sistema de saúde, elemento importante para a construção de uma
sociedade que se quer igualitária, ainda que isso seja, por enquanto, uma quimera, uma
utopia.
Em nenhum momento a equipe, junto com a sua população, abrirá mão de
reconhecer que parte da solução, mesmo a das falhas de estoque da farmácia, de
exames, de especialistas e de vagas para internação, está sob sua responsabilidade. Que
a organização do território e o processo de educação que sustenta equipe e população
serão capazes de atenuar muitos dos problemas da comunidade, diminuindo mesmo o
consumo de fármacos, de exames, de especialistas e de internações. Até porque o
exercício da medicina, baseado no cientismo, não o exime do respeito à autonomia do
ser humano em relação à própria medicina. A população, independente ou apesar da
medicina, tem os seus saberes de cura. E há uma série de saberes populares que, sendo
aproveitados e legitimados como tratamentos alternativos, poderão amenizar, retardar
ou até evitar as repercussões das possíveis panes do sistema municipal, na equipe e na
comunidade.
Os diversos problemas que surgirem poderão ser tratados conjuntamente
como demanda direta da população organizada. E a busca da gestão, cobrando-lhe as
soluções devidas, significará a demonstração da consciência de que a integridade física
e moral dos usuários, daqueles que necessitam dessa ou daquela atenção, fora ou dentro
da sua área de abrangência, não pode ser negligenciada, pois são cidadãos de direito, e o
direito à saúde não lhes pode ser negado parcial ou integralmente.
A situação apresentada e as diferentes posturas diante dela demonstram
diferentes pensares sobre a ação do médico e da medicina. A primeira, tendo ou não a
necessária consciência de si própria, reforça a medicina tradicional, aquela que continua
273
sustentada no conhecimento científico acumulado ao longo do tempo. Um
conhecimento que é repassado para os currículos e para as formações da área médica,
cada vez mais baseadas em tecnologias próprias do complexo médico-industrial. Essas
tecnologias, por vezes sofisticadas, são produzidas numa visão de sociedade e de
atuação profissional, incapaz de ver que essa medicina e sua prática, por estarem
condicionadas pelos humores e definições do mercado, da economia, da estrutura social
e dos sistemas de saúde, ficam cada vez mais distantes de quem dela mais necessita.
A segunda postura tem consciência do que foi afirmado no parágrafo
anterior e confirma que o aprendizado e a formação do médico nem sempre consideram
as desigualdades sociais, as contradições e as especificidades do mundo que se abre
como campo para sua prática. Que as escolas médicas não preparam adequadamente o
médico para a maioria das situações que ele virá a enfrentar e que ele só descobrirá
quando se atirar às suas experiências concretas e nelas conseguir agir criticamente.
E é exatamente nesse ponto que o médico que trabalha com os pressupostos
teóricos de Paulo Freire demonstra sensibilidade, preparo, competência e atitude ética
com base no humano e na sua integridade física e moral. Poderá exercitar o diálogo, a
partilha, o discernimento e a capacidade crítica em relação a sua prática para poder
compatibilizar as exigências sociais da sua profissão com as necessidades daqueles que
buscam os seus serviços. Ao exercer tal criticidade, descobrirá que as dimensões do
adoecer humano e o seu compromisso solene de promover a saúde dos seus semelhantes
estão, quase sempre, em desarmonia, desafiando-o peremptoriamente.
Por isso, sua tendência é empregar, com o maior rigor possível, os
conhecimentos adquiridos na academia, renovando-os e atualizando-os constantemente.
E, ao mesmo tempo, abrir-se-á na partilha para ensinar o que aprendeu e que pode ser
utilizado por todos a sua volta, sejam eles agentes de saúde, auxiliares de nível médio,
colegas de trabalho ou a população, mesmo leiga, tem faculdade para aprender e
transformar sua situação pessoal e contribuir para a transformação geral.
O médico com perspectiva freireana tenderá a desenvolver a consciência
que o exercício da medicina exige: querer bem ao ser humano, ser amoroso, solidário,
esperançoso, comprometido com a luta pela saúde e pelo direito à saúde de todos. Que a
sua intervenção profissional e a sua educação crítica, liberadora, libertadora,
conscientizadora, cria um caminho alternativo para a transformação social.
Transformação que é síntese de uma participação popular protagônica e confirmação de
uma prática médica dialógica elevada à categoria de práxis médica.
274
9 CONSIDERAÇÕES
A filosofia da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família está talhada
num conjunto de princípios que pregam uma organização que, além de
multiprofissional, seja interdisciplinar e dialógica. Algo que exige novas práticas
profissionais, comunitárias e administrativas, tanto setoriais quanto gerais. Por isso,
como se constatou ao longo desta pesquisa, esse é um objetivo ainda a ser alcançado de
forma plena. A Estratégia Saúde da Família só tirará proveito da sua empreitada quando
as gestões municipais entenderem o seu verdadeiro papel, e profissionais e população se
dispuserem a trocar saberes aprendendo a aprender uns com os outros e refletindo,
continuamente, os objetivos e os resultados das suas práticas.
E um dos passos que poderá aproximar a Saúde da Família do seu
desiderato é o desenvolvimento do raciocínio de que a atenção à saúde necessita de uma
ação/intervenção intersetorial, baseada em critérios definidos pela biologia, pelo
ambiente, pela infra-estrutura, pela economia mas, também, pela educação e pela
cultura - pela educação popular. Outro passo importante diz respeito ao
desenvolvimento, por parte dos profissionais – este trabalho pontuou a prática médica –
de um comportamento ao mesmo tempo coletivo e individual, frente à população e à
família, aqui entendida pelo espectro dos seus vários problemas de vida e saúde, um
comportamento dialógico, centrado em políticas saudáveis e em estratégias que
problematizem a situação de saúde e definam ações que considerem a informação e a
educação para o autocuidado. A educação, enquanto uma reflexão coletiva e profunda
sobre o sentido de uma atenção básica que supere a sua organização puramente
assistencial e o seu caráter marcadamente curativo, que vem da prática de saúde
tradicional.
Esse comportamento deve ser assumido dentro de um modelo de atenção
que, para além da recuperação e da prevenção, esteja compromissado com a promoção
da saúde, com a integralidade das ações, com a discriminação positiva representada pela
prática da eqüidade e da descentralização do poder, através de uma soberana e
pedagógica participação popular, traduzida na incorporação dos usuários como atores
sociais envolvidos no processo e, portanto, com responsabilidades políticas e sanitárias
em relação ao que está ao seu redor.
275
Apesar da constatação de ilhas de excelência nessa perspectiva, na Paraíba,
não foi esse o sentido que presidiu a maioria das equipes, acompanhadas direta ou
indiretamente. Mas isso não invalida a tese de que a prática médica pode se transformar
numa práxis médica.
A afirmação de que seguir em frente, continuar, em muitos momentos,
significou um ato de rebeldia, de resistência, de acreditar mesmo que é preciso
caminhar, continuar tecendo a esperança de que é possível mudar concepções,
reinventar práticas a partir de um diálogo aberto e sincero com o nosso outro, e pode ser
reiterada no ensinamento de Paulo Freire: “O sujeito que se abre ao mundo e aos outros
inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e
curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história” (FREIRE, 1996,
p. 136).
A propósito da idéia de diálogo, será necessário superar as muitas
frustrações dos usuários dos serviços de saúde devido aos posicionamentos inadequados
e incongruentes tanto dos profissionais de saúde quanto das gestões municipais.
Especificamente em relação aos primeiros, a experiência confirma aquilo já explicitado
nos documentos oficiais do próprio PSF e da atenção básica em saúde. Ou seja, que,
[...] para lidar com a dinâmica da vida social das famílias assistidas e da
própria comunidade, além de procedimentos tecnológicos específicos da área
da saúde, a valorização dos diversos saberes e práticas contribui para uma
abordagem mais integral e resolutiva (BRASIL. 2001).
Do ponto de vista técnico, é mister reconhecer que os cursos universitários
não formam profissionais com um perfil adequado ou que respondam às necessidades
da atenção primária e da equipe mínima da Saúde da Família. Continuam com um
modelo de formação que aliena os formandos, evitando que enxerguem os problemas da
população. Privilegiam o enfoque assistencial curativo centrado no hospital, na
especialização precoce e na alta tecnologia como um recurso diagnóstico ou terapêutico.
Com isso, deixam de lado uma série de questões que poderiam ser problematizadas
durante o processo de capacitação profissional, alargando a visão dos futuros
profissionais na direção dos condicionantes do processo saúde/doença.
Nada de contrário em relação à tecnologia. Esta será sempre bem vinda e
deve ser utilizada em todos os níveis de atenção. Mas não se pode esquecer de que seu
276
uso abusivo
247
, como se tem comprovado na realidade brasileira e na internacional,
encarece cada vez mais o ato médico, tornando-o inacessível para a maioria da
população, especialmente a mais carente, que utiliza apenas o setor público que, como é
sabido, pelos mais variados motivos
248
, não disponibiliza essa tecnologia na proporção
das necessidades dos usuários dos serviços, forçando artificialmente que esses serviços
sejam consumidos na rede privada.
A grande expansão da Estratégia Saúde da Família tem proporcionado
importantes benefícios para parcelas significativas da população. Grosso modo, há
significativa extensão de cobertura para grandes contingentes populacionais,
especialmente os mais ameaçados, sob o ponto de vista sanitário, em função da
realidade econômico-social e educacional. Há uma tendência de aumento da
resolutividade da atenção à saúde, em função da diversidade de ações individuais e
coletivas. E mesmo que haja problemas na qualidade do preenchimento e da
alimentação do Sistema de Informação Hospitalar (SIH/SUS), no que tange às
internações e à morbidade hospitalar, é possível perceber que começa a mudar o perfil
desses eventos, especialmente onde os sistemas de informação em saúde (SIS) são
preenchidos de forma mais cuidadosa. A clientela tem demonstrado satisfação e impacto
positivo nos indicadores de saúde. Porém, isso não quer dizer que a implementação da
Estratégia esteja isenta de críticas, e que muitos desafios ainda tenham que ser
enfrentados e vencidos para que funcione na perspectiva da reversão do modelo
tradicional de assistência à saúde.
Para que se possa caracterizar um processo de trabalho e uma prática médica
sintonizados ou parametrizados pela Saúde da Família, ainda é necessário que a família
seja tomada, no seu espaço social, como núcleo básico da abordagem, evitando-se o
tratamento que é dado aos indivíduos como se fossem seres isolados. Igualmente, o
reconhecimento prático da Estratégia tem que se dar pela expressão de uma atenção que
envolva assistência integral, resolutiva, contínua e de boa qualidade e uma intervenção
247
O processo de globalização e a situação da nossa economia no concerto do neoliberalismo só
aprofundam esse problema e trazem novas contradições e conflitos para o interior da prática médica, dado
que as pressões se tornam-se, insuportáveis mesmo, no sentido do consumo tecnológico, muitas vezes, em
detrimento da inteligência clínica e do próprio estatuto científico.
248
É importante arrolar as iniciativas “racionalizadoras” baseadas num raciocínio puramente econômico e
financeiro, e não, no custo/benefício social. Por outro lado, são indisfarçáveis, até por razões históricas, o
corte privatista e a promiscuidade de relações administrativas que permitem, ao arrepio da lei, que
dirigentes e gestores do setor público sejam tirados, em muitas situações, do próprio setor privado, num
claro conflito de interesses que só traz prejuízos para o setor público e benesses para o setor privado. Não
podemos esquecer, também, o processo de corrupção, de fraudes e de desvio de verbas que fazem parte
da história no setor e minam os recursos, já exíguos, que caracterizam os orçamentos reais do setor saúde.
277
interdisciplinar e intersetorial que garanta à população proteção contra fatores de risco e
exposição de natureza biológica, econômica ou social. Isso exige democratização do
conhecimento sobre o processo saúde-doença, reconhecimento da população como
sujeito de direito à saúde e organização de serviços que estejam voltados para a sua
produção. Para isso, é pertinente a organização da comunidade, no sentido do efetivo
exercício do controle social, observando-se a humanização das práticas de saúde, cuja
avaliação poderá se dar pelo grau de interação e respeito ao humano e sua cultura, pela
criação de vínculos que plasmem compromissos e de co-responsabilidades entre
profissionais de saúde e comunidade e, ainda, pelo desenvolvimento de ações
intersetoriais através de parcerias internas e externas ao setor público.
A experiência vivida previamente à confecção deste trabalho, no
acompanhamento de ESF e na gestão das coisas da saúde, nas três esferas de governo,
tem demonstrado, na maioria dos casos, que os médicos e suas equipes simplesmente
cumprem de forma burocrática as normatizações da Estratégia Saúde da Família, sem
que isso signifique necessariamente maior aproximação e diálogo com a família.
Procedimentos são executados com os diversos integrantes da família, como se eles
fossem pessoas isoladas e não integrantes de um núcleo familiar que está constituído
por indivíduos em ciclos de vida distintos e com histórias de vida particulares, mesmo
no âmbito familiar.
A expansão quantitativa não tem gerado a necessária mudança de qualidade
das ações e da abordagem. Há, ainda, uma tendência, como assinala Vasconcelos
(1999), a se passar a denominar de Saúde da Família práticas tradicionais de abordagem
individual ou de grupos comunitários. Nessa circunstância, qualquer tipo de intervenção
da ESF é considerada de cunho familiar, quando, nem sempre, está devidamente
caracterizada como tal. É preciso também esclarecer um problema, abrindo, talvez, um
campo inteiro de pesquisa: a invasão de privacidade e a violação de garantias
individuais ou coletivas.
A Saúde da Família provoca uma intimidade sem precedentes com pessoas e
núcleos familiares e poderá, em certas circunstâncias, criar ou permitir que se criem
intervenções nefastas sobre a população e visões de mundo diferentes e diferenciadas,
favorecendo práticas de disciplinamento, de dominação ou de constrangimento para fins
outros, que não o da melhoria da saúde e da qualidade de vida dos abrangidos. A tarefa
da Saúde da Família é acolher, interagir, construir algo em comum, descobrir e
278
descobrir-se na humanidade mais profunda da relação fraterna com os outros e com o
mundo.
Nesse particular, será necessário compreender o verdadeiro sentido da ação
de acolhimento. Acolher é encontrar formas de lidar com as diferenças. Mas não se
trata de simplesmente respeitar as diferenças visto que isso pode se transformar em
indiferença. Também não se trata de suportá-las, porquanto, não raras vezes, esse ato se
transforma em arrogância e preconceito. O contato e a lida com o diferente dão a
possibilidade de se aprender algo novo, é a possibilidade real de se expandirem mundos,
o que, mais que respeitar, tolerar, suportar, leva a valorizá-lo (SÃO PAULO, 2002).
Conseguido esse intento, a organização da atenção poderá ser assumida de
forma integral, colaborando para que a prática de um profissional se reconstrua na do
outro, transformando ambas no contexto em que está inserida, como almeja a teoria que
encerra a Estratégia Saúde da Família. Igualmente se faz necessário que as gestões
municipais compreendam e colaborem para que esse processo se dê da melhor maneira
possível. Isso assegurado, parece ser possível pensar num processo semelhante e
simultâneo em relação à população usuária, até então encarada apenas como objeto da
prática do Programa.
A atitude dialogal, que define a prática médica educativa e popular, provoca
uma mudança qualitativa na relação médico/paciente. Quando assumida, transforma o
ser profissional e, nesse compasso, gera conseqüências que vão do nível interpessoal, ao
comunitário, definindo uma nova sociabilidade interprofissional.
A reflexão que aqui se produziu esteve referenciada no conceito de práxis
representada na tensa relação entre estrutura e sujeito. A tradução dessa tensão na práxis
médica da atenção básica, promovida pela Estratégia Saúde da Família, representa um
grande salto de qualidade para a compreensão da prática do médico, sujeito importante
desse processo, e para a estrutura dos serviços de saúde, na medida em que novos
espaços são abertos para a transformação das relações interprofissionais e comunitárias,
contraídas por cada equipe interdisciplinar no seu território de atuação.
279
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292
ANEXO ASaúde da Família: uma estratégia de organização dos serviços
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Documento Preliminar – Março/1996
MINISTÉRIO DA SAÚDE
SECRETARIA DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE
DEPARTAMENTO DE ASSISTÊNCIA E PROMOÇÃO À SAÚDE
COORDENAÇÃO DE SAÚDE DA COMUNIDADE
SAÚDE DA FAMÍLIA: UMA ESTRATÉGIA DE
ORGANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE
DOCUMENTO PRELIMINAR
MARÇO/96
293
1- A crise do modelo de assistência à Saúde
A crise do setor Saúde não é uma condição particular do Brasil, mas uma situação
que perpassa hoje sistemas de Saúde de todo o mundo. Essa crise pode ser compreendida a
partir de vários elementos, sobretudo aqueles relativos à ineficiência do setor, traduzidos em
insatisfação da população e desqualificação profissional. Mas, tomada na sua dimensão social,
além da prestação de serviços, a crise se aprofunda e deixa marcas de iniqüidade em um setor
que tem, como vocação o sentido de existir, a diminuição das desigualdades e a busca de
melhoria de condições de vida.
Mesmo sendo constituída por causas comuns, afinal trata-se de uma crise mais
ampla, as explicações precisam ser relacionadas com as condições sócio-históricas de cada
país. No caso do Brasil, ela se relaciona diretamente com a definição do modelo de assistência
à saúde inaugurado no início deste século. Mesmo com uma constituição relativamente
recente, este modelo já se configura hoje bastante sedimentado: ele tem sua forma de atuação
marcada pelo serviço de natureza hospitalar, focalizado nos atendimentos médicos e tem uma
visão biologicista do processo saúde-doença, voltando-se prioritariamente para ações
curativas. Completa este modelo a consideração dos problemas de saúde (mais propriamente
dos problemas de doença) sob uma ótica individual ou mesmo subindividual, transformando o
corpo em um objeto divisível, segmentado em partes cada vez menores, passíveis de
intervenção também progressivamente mais especializadas e minudentes. A conseqüência
disso é o abuso da especialização, o uso cada vez maior de procedimentos de alta densidade
tecnológica e o correspondente encarecimento da função de prover saúde a toda a população.
A hegemonia de um modelo como esse não se deu no vazio social. Concorreram
para esse processo forças relacionadas com o mercado, com a organização dos interesses da
corporações envolvidas, com a ação da sociedade civil, entre outras. Por isso, compreender o
modelo hoje em crise é exercitar o debate com todos esses setores, em busca de novos
consensos, que respondam de forma mais adequada às necessidades de saúde da população
brasileira.
Em países como o Brasil, estes elementos que compõem o modelo de assistência
à saúde tornam-se, eles mesmos, instrumentos de ineficácia, de exclusão e de iniqüidade.
Sentida hoje pela população usuária dos serviços, profissionais de saúde, instituições
prestadoras e governo como uma unanimidade, a crise do setor, ancorada no modelo
inadequado de atenção à saúde, se configura como um imperativo para mudanças.
Mesmo essa percepção comum de crise abriga no seu interior as divergências que
fazem com que seja esse, e não outro, o modelo assistencial ainda hegemônico no país. As
tentativas de alteração também têm sua história, seus campos de atuação, desde as definições
legais até a realidade do dia-a-dia dos serviços.
2-
Caminhos para a superação da crise no Brasil
Na história recente das reforma setorial, a realização da VIII Conferência Nacional
de Saúde, em 1986, é um marco que traz de forma mais sistematizada as diretrizes e o ideário
do novo sistema de saúde: um sistema único, embaçado nos princípios de universalidade,
integralidade, eqüidade, descentralização, hierarquização e participação popular.
Mais fundamentalmente, ampliava-se o conceito de saúde e se revestia este
conceito de relevância pública.
Estes princípios foram depois reafirmados na Constituição Federal de 1988 e nas
leis 8.080 e 8.142. Estava dado o substrato de legitimidade e legalidade do modelo, mas não
estavam estabelecidas na prática as condições para as transformações necessárias.
Duas ordens de fatores contribuem para essa situação paradoxal, ou seja, para o
fato de se possuir uma legislação considerada avançada e caudatária de um processo de
construção social que levou muitos anos para ser efetivado, ao lado de um sistemático
descumprimento das normas dela emanadas. Em primeiro lugar, o fato de continuar existindo
um significativo grupo de forças que não quer modificações no modelo assistencial, uma vez
que, apesar dos efeitos danosos visíveis, este modelo lhes atende em seus interesses
políticos, ideológicos e de mercado. Soma-se a isso, como uma segunda causa do
294
descompasso entre a legislação e a realidade, que é a grande inércia que acompanha uma
proposta que exige uma completa reorganização das práticas e da própria racionalidade de
todo o sistema de saúde.
Uma primeira transformação inerente ao novo modelo assistencial que se busca
implementar, está na noção de responsabilidade e autoridade sanitária: a saúde, em toda a sua
dimensão ampliada, passa a ter um comando definido. Isso significa tanto a organização
política do setor, como a responsabilização por formas de atenção à saúde e mesmo de grupos
populacionais, ainda não cobertos de forma adequada pelos serviços de saúde. O setor, ao
mesmo tempo em que define internamente do ponto de vista político e administrativo, aponta
para o alargamento de seu campo de atuação e, conseqüentemente, para novas atribuições
que passa a assumir.
A segunda grande mudança que este novo entendimento traz para o setor saúde
é o rompimento com as práticas que fundamentavam as antigas organizações, quais sejam, o
gigantismo e a centralização. Em vez de megaestruturas com planejamento e um suposto
controle centralizados, o novo modelo elege o espaço estratégico do domicílio/comunidade.
Com isso são valorizadas várias dimensões que se perdiam na centralização, como os
horizontes históricos e geográficos dos diversos grupos, a cultura e tudo aquilo que torna
significativa uma relação social.
Na relação direta com o contexto sanitário, esta re-visão do espaço pode significar
uma apropriação pelos vários atores que nele interagem - profissionais de saúde, dirigentes,
lideranças-, dos verdadeiros condicionantes e determinantes do processo saúde-doença. A
saúde pode ser concebida, nesta visão, como um retrato das condições de vida e de trabalho
das diversas populações.
3-
Programa de Saúde da Família (PSF): uma medida operacional para a construção de
um novo modelo
Em primeiro lugar, é preciso distinguir o PSF dos antigos programas tradicionais
do setor saúde. Estes, quase sempre se constituíram em ações paralelas, muitas vezes
competindo com a lógica mais geral do sistema de saúde. No caso do PSF, por suas
características estratégicas de reestruturação do modelo assistencial dominante, ele é parte
integrante do Sistema de Saúde Local. Ou seja, ele se constitui como uma unidade prestadora
de serviços atuando numa lógica de transformação das práticas de saúde.
Por isso a compreensão do PSF só é possível em contraposição ao modelo atual,
o qual busca transformar e superar, através da mudança do objeto de atenção, da forma de
atuação e da organização geral dos serviços. Este quadro configura o que se chama de um
novo modelo estruturante, porque organiza sua prática em novas bases e critérios.
A família passa a ser o objeto de atuação e é entendida a partir do espaço em que
vive, chamado de espaço/domicílio. É importante salientar que o caráter de objeto de atuação
não significa uma reificação da família, pelo contrário, sendo o foco de atuação da política de
saúde, a família traz a dimensão mais presente do contexto social e histórico. O indivíduo, no
contexto de sua integração à família e à comunidade pode, desta forma, assumir a posição
efetiva de sujeito do processo. Mais do que uma delimitação de lugares geográficos, este
espaço deve ser entendido como espaço-âncora, ou seja, onde se constroem as relações intra
e extra-familiares, onde se dá a luta pela sobrevivência, pela reprodução e pela melhoria das
condições de vida. Em resumo, um espaço vital.
Este espaço comporta também , de forma destacada, os fatos relativos ao
processo de saúde e doença, como os conflitos, a renda, o saneamento, as instalações físicas
e outras. Mas ele não se fecha sobre si mesmo, pelo contrário, esse espaço se expande,
ampliando-se sobre novos cenários. Como círculos concêntricos, atinge âmbitos cada vez mais
ampliados, e torna a compreensão do processo de saúde-doença também alargada pela
entrada de novos fatores determinantes, como o acesso a serviços, o sistema viário, o lazer e
outros.
Além desses elementos concretos, o espaço/domicílio se abre às relações sociais,
que acontecem nos clubes, escolas, igrejas e bares, compondo o tecido de sociabilidade que
repercute na vida das pessoas como comportamento de tensão, felicidade, expectativa, etc.
Estes são também elementos que compõem o quadro, cada vez mais complexo, do que se
chama de processo saúde/doença.
295
Um espaço que se abre, se desdobra, se complexifica. Uma compreensão do
processo saúde/doença que se amplia e permite intervenções de maior significação social.
A ação sobre esse espaço é um desafio a um olhar técnico e político mais ousado,
que abandona a área delimitada pelos muros dos serviços de saúde, enraizando-se na vida
social a partir do espaço/domicílio.
A exigência de um novo modelo se faz também pela necessidade de impacto
sobre a saúde da população. O PSF tem este objetivo e elege como estratégia, além da já
referida ampliação de horizonte de compreensão dos vários elementos relacionados ao
processo saúde/doença, o aprofundamento dos laços de compromisso e co-responsabilidade
entre instituições, profissionais de saúde e população.
O modelo do PSF se direciona para a promoção da eqüidade, ou seja, da
diminuição das injustiças. Por isso, através de uma operação de discriminação positiva, são
eleitos públicos e formas de atuação. Mas é importante destacar que não se fere, neste
processo, a idéia da integralidade, preservada na idéia de racionalização de recursos, mas sem
abrir mão, quando necessário e justificável, da utilização de tecnologia de última geração.
Não se constituindo, portanto, em um modelo simplificado, de pobre para pobre, o
PSF também não recorta a população em fatias (mulher e criança), nem a atenção em níveis
(primário). Integralidade significa também articulação, integração e planejamento unificado de
atuação intersetorial. Estas idéias subsidiam o modelo do PSF.
Como se vê, as diferenças entre o modelo atual e o preconizado pelo PSF são
marcantes. O quadro a seguir compara os dois modelos, a partir de alguns aspectos centrais. A
comparação deixa claro que a mudança de um modelo para outro significa, na maioria das
vezes, um processo de transformação cultural das práticas sanitárias, o que releva o caráter de
construção que deve estar presente nessa transição.
A análise do atual modelo assistencial deixa claro que, apesar de sua eficiência
em responder alguns aspectos relativos à área curativa individual, existem limites estruturais e
sociais na sua forma de intervenção. Trata-se de um modelo que aponta para um incremento
continuado de gastos relativos à incorporação de tecnologias cada vez mais caras, da
concentração de atendimentos no aparelho também mais oneroso, o hospital, e,
principalmente, o baixo impacto dessas ações na melhoria das condições de vida da população
como um todo. Os indicadores epidemiológicos e econômicos se juntam no diagnóstico de
esgotamento do modelo. A eles se somam outros indicativos sensíveis de insatisfação do
usuário, penalizado por atendimentos cada vez mais desumanos e impessoais.
Desta forma, a proposta de modelo de atenção voltado para a família pressupõe:
o reconhecimento da saúde como um direito de cidadania e que expressa a qualidade de
vida;
a eleição da família e de seu espaço social como núcleo básico de abordagem no
atendimento à saúde;
a democratização do conhecimento do processo saúde/doença, da organização dos
serviços e da produção da saúde;
a intervenção sobre os fatores de risco aos quais a população está exposta;
Modelo Atual Saúde da Família
Centra a atenção na doença Centra a atenção na saúde
Atua exclusivamente sobre a demanda
espontânea
Responde à demanda espontânea de forma
contínua e racionalizada
Ênfase na medicina curativa Ênfase na integralidade da assistência
Trata o indivíduo como objeto de ação Trata o indivíduo como sujeito integrado à
família, ao domicílio à comunidade
Baixa capacidade de resolver os
problemas de saúde
Otimização da capacidade de resolver os
problemas de saúde
Saber e poder centrado no médico Saber e poder centrado na equipe
Geralmente limitada à ação setorial Promove a ação intersetorial
Desvinculação dos profissionais e
serviços com a comunidade
Vinculação dos profissionais e serviços com a
comunidade
Relação custo-benefício desvantajosa Relação custo-benefício otimizada
296
a prestação de atenção integral, contínua e de boa qualidade nas especialidades básicas de
saúde à população adstrita, no domicílio, ambulatório e hospital;
a humanização das práticas de saúde e a busca da satisfação do usuário através do estreito
relacionamento da equipe de saúde com a comunidade;
o estímulo à organização da comunidade para o efetivo exercício do controle social;
o estabelecimento de parcerias buscando desenvolver ações intersetoriais.
4-
Diretrizes operacionais do PSF
4.1- Adscrição da clientela
A equipe de saúde deve se responsabilizar por uma área geográfica onde habitam
cerca de 600 a 1.000 famílias.
Este critério geral deve ser flexibilizado de modo a atender os fatores regionais, a
diversidade sócio-política, as características econômicas, a densidade populacional , a
acessibilidade aos serviços e outros aspectos relevantes, definidos localmente.
A definição do universo a ser atendido, a partir destes critérios, permite uma
programação mais realista em termos quantitativos e de qualidade e especificidade da atenção
à saúde. É o serviço que deve se adequar às necessidades da clientela, e não o contrário.
4.2- Reorganização das práticas de trabalho
4.2.1- Planejamento local
Para planejar localmente é preciso considerar tanto quem planeja, como para que
e para quem se planeja. Em primeiro lugar, é preciso se conhecer as necessidades da
população, identificadas a partir da análise da situação de saúde local e de seus
determinantes.
O pressuposto do PSF é o de que quem planeja deve estar imerso na realidade
sobre a qual se planeja. Além disso, o processo de planejamento deve ser pensado como um
todo, sem momentos isolados dos demais. O planejamento deve estar voltado para os
problemas de saúde de um determinado grupo populacional bem especificado e ser realizado
de forma contínua e dinâmica.
Esta forma de planejamento se contrapõe ao planejamento centralizado, habitual
na administração clássica, por várias razões, como:
a abertura à democratização;
a concentração em problemas;
o dinamismo;
e por aproximar os objetivos do planejamento da vida das pessoas.
4.2.2- Abordagem multiprofissional
O atendimento no PSF deve sempre ser feito por uma equipe multiprofissional. A
constituição da equipe deve ser planejada levando-se em consideração alguns princípios
básicos:
o enfrentamento dos determinantes do processo de saúde doença;
a integralidade da atenção;
a ênfase na prevenção, sem descuidar do atendimento curativo;
o atendimento nas clínicas básicas de pediatria, ginecologia-obstetrícia, clínica médica e
clínica cirúrgica;
a parceria com a comunidade;
as possibilidades locais.
Propõe-se que a equipe básica seja composta por um médico generalista, um
enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde. Os integrantes
da equipe devem residir no município onde atuam, trabalhando em período integral (oito horas
297
diárias). O agente comunitário de saúde deve residir na comunidade sob a sua
responsabilidade.
Além da capacidade técnica profissional específica de sua área de atuação, os
participantes das equipes do PSF precisam estar identificados com uma proposta de trabalho
que, muitas vezes, exige criatividade, iniciativa e vocação para trabalhos comunitários e em
grupo.
Os profissionais da equipe devem ser objeto de uma política salarial diferenciada,
compatível com o as especificidades do PSF e com o digno exercício profissional.
4.2.3- Estímulo à ação intersetorial
A busca de uma mobilização mais integrada dos vários setores da administração
pública pode ser um elemento importante no trabalho das equipes do Saúde da Família. Como
uma conseqüência de sua análise ampliada do processo de saúde/doença, os profissionais do
PSF deverão atuar como catalisadores de várias políticas setoriais, buscando uma ação
sinérgica. Saneamento, educação, habitação e segurança são algumas das áreas que devem
estar integradas às ações do PSF, sempre que possível.
A parceria e a ação tecnicamente integrada com os diversos órgãos do poder
público que atuam no âmbito das políticas sociais é um objetivo a ser perseguido. Não se
resolve a questão social apenas pelo esforço setorial isolado da saúde. Tampouco se interfere
na própria situação sanitária, sem que haja a interligação com os vários responsáveis pelas
políticas sociais.
4.2.4- Complementaridade
A Unidade de Saúde da Família deve ser a porta de entrada do sistema local de
saúde. A mudança no modelo tradicional exige a integração entre os vários níveis de atenção
e, neste sentido, o PSF é um dos componentes de uma política de complementaridade, não
devendo se isolar do sistema local.
Como um projeto estruturante, o Saúde da Família deve provocar internamente ao
próprio sistema, uma transformação no sentido da reorganização das ações e serviços de
saúde. Esta mudança implica na colaboração entre as áreas de promoção e assistência à
saúde, rompendo com a dicotomia entre as ações de saúde pública e a atenção médica
individual.
O papel da Unidade de Saúde da Família é fundamental. Estruturada a partir das
necessidades identificadas no planejamento local, a unidade é o núcleo de suporte do trabalho
das equipes, além de responder pela necessidade específica de serviços, próprias do sistema
local de saúde. Mesmo com uma configuração diferenciada dos centros e postos de saúde
habituais, a unidade é parte integrante do sistema local e deve estar integrada a ele. A atuação
do PSF na comunidade, com atividades e atendimentos extra-muros, não desvaloriza o papel
da unidade, mas dá a ela um novo papel. Este papel é, inclusive, mais ampliado, já que
responde às demandas colocadas pela realidade sanitária, além de incorporar as novas
atribuições inauguradas pela ação dos profissionais do PSF.
4.2.5- Educação continuada
A equipe do PSF precisa ser acompanhada de um processo de formação e
informação que seja contínuo, atendendo a necessidade que o dinamismo dos problemas traz
até a equipe. Além de possibilitar o aperfeiçoamento profissional, a educação continuada é um
mecanismo importante no desenvolvimento da própria concepção de equipe, que fundamenta
todo o trabalho do Saúde da Família.
Da mesma forma que o planejamento local das ações de saúde responde ao
princípio de participação ampliada, o planejamento das ações educativas deve ser baseado
nessa percepção. Ou seja, adequação às peculiaridades locais e regionais, utilização dos
recursos técnicos disponíveis e integração com as universidades e instituições de ensino e
capacitação de recursos humanos.
A formação em serviço deve ser priorizada, uma vez que ela permite a melhor
adequação entre os requisitos da formação e as necessidades de saúde da população
atendida pela equipe. A educação permanente deve se iniciar desde o treinamento introdutório
da equipe, e atuar através de todos os meios pedagógicos e comunicacionais disponíveis, de
298
acordo com as realidades de cada contexto. A educação à distância deve ser incluída entre
estas alternativas.
4.3- Controle Social
O controle social do sistema de saúde é um princípio e uma garantia
constitucional, regulamentada na Lei Orgânica de Saúde.
As ações desenvolvidas pelo Saúde da Família devem, portanto, seguir
estritamente as diretrizes estabelecidas pela legislação, no que se refere à participação
popular. Mas muito mais do que apenas seguí-las, o PSF tem uma profunda identidade de
propósitos com a defesa da participação popular em saúde, no que se refere a aproximação
das ações de saúde da necessidade e da vigilância da população.
A lei 8.142 definiu alguns fóruns próprios para o exercício do controle social, as
conferências e os conselhos de saúde, a serem efetivados nas três esferas de governo. Mas a
participação da população não se restringe apenas a eles. Através de outras instâncias formais
(como Câmaras de vereadores e de deputados) e informais, a população deve buscar exercer
o seu direito de participar da definição, execução, acompanhamento e fiscalização das políticas
públicas.
O Saúde da Família, por suas características de incentivo à intersetorialidade tem
no controle social um elemento importante de sua ação social.
5-
Etapas de implantação do PSF
A implantação do PSF é operacionalizada no município, com a co-participação dos
níveis federal e estadual. O processo consta de várias etapas, não necessariamente
seqüenciais, ou seja, podem ser realizadas de forma simultânea, de acordo com as diferentes
realidades dos sistemas municipais de saúde. Estas etapas serão descritas separadamente a
seguir, para uma melhor compreensão dos vários passos que envolvem a implantação do
Saúde da Família nos municípios.
5.1- Sensibilização/ Divulgação
A primeira etapa compreende a “venda da idéia”. Ou seja, a preocupação em ser o
mais claro possível em todos os instrumentos de divulgação da verdadeira proposta do PSF.
Este trabalho de divulgação envolve a clareza na definição do público a ser atingido e da
mensagem a ser veiculada. Além disso, é preciso programar a divulgação/sensibilização em
abrangência local, regional e estadual, já que se trata de constituir, desde este momento, as
alianças e as articulações que serão necessárias para o desenvolvimento da proposta.
Alguns aspectos podem ser salientados nesse trabalho de divulgação:
a ênfase na missão do PSF enquanto uma proposta de reorganização do modelo
assistencial, e não como mais uma programa imposto pelos níveis centrais;
a utilização de diferentes canais de informação e mobilização, como associações de
prefeitos, de secretários municipais e estaduais de saúde, entidades da sociedade civil,
escolas, sindicatos, associações comunitárias, etc. Ou seja, identificação de possíveis
aliados tanto para a implantação, quanto para a operacionalização do PSF.
envolvimento dos aparelhos formadores. O Saúde da Família significa a criação de um novo
mercado de trabalho, que precisa se afinar com as oportunidades de formação e, quando
necessário, com a reordenação das escolas, para o atendimento desse mercado potencial.
uso dos meios de comunicação de massa, atento as características próprias desses canais.
Comunicação através da mídia é um processo caro e que precisa ser bem planejado e
realizado. Definida sua utilização, a mensagem deve ser inequívoca, objetiva e centrada nas
propostas basilares do PSF. Atentar para o uso de espaços editoriais, através de
informações de interesse público, com o uso de matérias jornalísticas e entrevistas aos
meios de comunicação de abrangência à área de implantação do PSF.
ênfase na divulgação junto aos profissionais do sistema local de saúde. É preciso
estabelecer estratégias de envolvimento e esclarecimento junto a esses profissionais, com
299
relação a complementaridade da proposta e de sua inserção nos princípios do Sistema
Único de Saúde. Os trabalhadores da saúde é um público diferenciado, com informações e
avaliações técnicas que precisam ser consideradas ao se programar a divulgação.
5.2- Adesão
Município
O município interessado elabora projeto para implantação da(s) equipe(s) nas
unidades básicas de saúde, observando sempre os elementos fundamentais do modelo de
Saúde da Família e submete-o à apreciação do Conselho Municipal de Saúde para aprovação.
Após a aprovação, pelo CMS, o município anexa ao projeto a documentação
exigida e o encaminha para a Secretaria de Estado da Saúde, que confere a documentação,
analisa o projeto e emite parecer em reunião da Comissão Intergestores Bipartite Estadual
(CIBE).
Considerado apto nessas fases, o município faz o cadastramento das Unidades de
Saúde da Família no Sistema de Informações Ambulatórias- SIA-SUS.
Estado
A Secretaria de Estado da Saúde submete à apreciação da CIBE o seu projeto de
Saúde da Família, para análise e estudo de viabilidade na programação do teto financeiro do
Estado.
Cabe à Secretaria de Estado da Saúde assumir a co-responsabilidade com a
implantação do PSF, através de assessorias às atividades de planejamento, capacitação,
educação continuada, acompanhamento e avaliação das unidades de saúde da família.
5.3- Recrutamento, seleção e contratação de recursos humanos
O município deve planejar, a partir da definição da composição de suas equipes, e
executar o processo de recrutamento e seleção dos profissionais, contando com a assessoria
da Secretaria de Estado e do Ministério da Saúde. Como todo processo seletivo, deve ser dada
atenção a identificação do perfil profissional, não apenas em termos de exigências legais, mas
de proximidade com o campo de atuação específico do PSF. Os critérios para identificação
dessas habilidades devem ser, na medida do possível justos, comunicáveis e compreensíveis
pelos candidatos.
Existem várias formas de seleção que podem ser utilizadas, isoladamente ou
associadas, entre elas:
prova escrita ou de múltipla escolha, contemplando o aspecto de assistência integral à
família (do recém-nascido ao idoso), com enfoque epidemiológico;
prova prática de atendimento integral à saúde familiar e comunitária;
prova teórico-prática de descrição do atendimento a uma situação simulada;
entrevista, com caráter classificatório, atendendo a necessidade de selecionar profissionais
com perfil adequado;
análise de currículo, sobretudo referente as atividades afins às propostas pelo PSF, também
com o intuito de avaliar experiência e perfil para a função.
Especial atenção deve ser dada a composição das bancas, que devem estar
afinadas com os princípios éticos da função de selecionar profissionais e para os objetivos e
concepção que animam o PSF.
A situação local irá definir o melhor critério de seleção, que seja ao mesmo tempo
viável e competente. A assessoria externa (Secretaria e Ministério da Saúde) pode ajudar a
dirimir conflitos de interesses locais. Alternativas para contratação de equipes com processos
diferenciados devem ser considerados, levando-se em conta a peculiaridade do trabalho das
equipes e a características locais.
300
5.4 -Treinamento introdutório
O período introdutório deve ser programado para que ocorra a integração das
equipes. Neste programa devem ser trabalhados os aspectos gerais das atividades que serão
desenvolvidas pelas equipes, em seus aspectos assistências, gerências e administrativos. É
um primeiro contato com o trabalho. É também uma fase importante de sensibilização da
equipe.
O conteúdo do treinamento introdutório deve estar adaptado às necessidades
locais, tanto dos serviços quanto da característica de formação dos profissionais de uma
determinada região. O grupo responsável pela organização do treinamento introdutório deve ter
a capacidade de compatibilizar as necessidades locais, as características dos profissionais e o
perfil epidemiológico da região.
O conhecimento prévio da realidade sobre a qual irão atuar os profissionais é
imprescindível na definição de métodos e conteúdos destes treinamentos. É importante estar
consciente do caráter introdutório deste programa, sem a preocupação de esgotamento de
todas as carências já na primeira capacitação. A metodologia de treinamento em serviço deve
ser considerada a melhor alternativa. Estima-se que um período de duas semanas seria
suficiente para este trabalho.
Outro aspecto a ser considerado é a inauguração do processo de educação
continuada que o treinamento introdutório traz, já que será o primeiro momento de sondagem
das necessidades de informação e formação da equipe, identificados de forma mais
sistemática.
5.5- Diagnóstico da saúde da comunidade
Para planejar e organizar as ações de saúde, a equipe deve proceder o
cadastramento das famílias da área de abrangência, levantando indicadores epidemiológicos e
sócio-econômicos. Deverão ser utilizadas diversas fontes de informação, sobretudo as oficiais,
como o IBGE, cartórios e secretarias de saúde, que permitem melhor acompanhamento e
controle. Fontes qualitativas não devem ser desprezadas.
5.6- Referência e contra-referência
O atendimento no PSF, seguindo o princípio da integralidade vai, em situações
específicas, indicar o encaminhamento do paciente para as referências ambulatoriais e
hospitalares estabelecidas no município. Estes encaminhamentos não se constituem numa
exceção, mas em uma continuidade previsível e que deve ser seguida também com critérios
bem conhecidos por toda a equipe do PSF e das outras áreas do sistema de saúde.
Existem algumas modalidades de atendimentos desta natureza:
consultas especializadas
A equipe encaminha e responsabiliza-se pelo agendamento na rede do SUS,
registrando estas providências nas fichas de referência e contra-referência utilizadas no
sistema local.
serviços de apoio diagnóstico e terapêutico
Os pacientes são também agendados. A equipe deve articular-se com estes
serviços no sentido de viabilizar o retorno rápido dos resultados de exames à unidade de
saúde.
internação hospitalar
Os pacientes que necessitam de internação são encaminhados aos hospitais de
referência da rede do SUS. A equipe deve acompanhar a evolução dos casos internados de
sua área de abrangência.
301
6- Atividades da equipe
Visita domiciliar
Tem como finalidade monitorar a situação de saúde das famílias. A equipe deve
realizar visitas programadas segundo critérios epidemiológicos e quando solicitadas. Apesar de
ser um modelo pró-ativo, o Saúde da Família se adequa também as solicitações de demandas
espontâneas ou provocadas pela própria convivência com as equipes.
Internação domiciliar
Não se trata de uma substituição da internação hospitalar tradicional. Deve ser
utilizada sempre no intuito de humanizar e garantir maior qualidade e conforto ao paciente. Por
isso só deve ser realizada quando as condições clínicas do paciente permitir. A realização dos
cuidados domésticos também deve ser considerada na indicação desta modalidade de
internação. A hospitalização deve ser feita sempre que necessária, com o acompanhamento
por parte da equipe.
Participação em grupos comunitários
A equipe deve estimular e participar de reuniões de grupos, discutindo os temas
relativos ao controle social e ao diagnóstico e alternativas para a resolução dos problemas
identificados pelas comunidades.
7- Característica da unidade
Atendimento na unidade
Deve ser prestado tanto à demanda espontânea como à programada.
Informação
A organização do sistema de informação deve permitir:
tomada de decisões, alimentada pelo planejamento, acompanhamento e avaliação das ações
e serviços;
a democratização da gestão, definição de prioridades e controle das ações de saúde.
O PSF possui alguns instrumentos de informação próprios, que se somam às
demais fontes de informação existentes, melhorando o conhecimento da situação de saúde e
do impacto das ações desenvolvidas. Entre eles: cadastro familiar; cartão de identificação;
cartão da criança; cartão da gestante; prontuário familiar; fichas de registro de atendimentos.
Planejamento
A equipe deve elaborar o planejamento e a programação das atividades por ela
desempenhadas, com a participação da população da área de abrangência, em consonância
com as diretrizes estabelecidas pela Secretaria Municipal de Saúde.
Acompanhamento
O monitoramento do trabalho da equipe deve ser feito de forma continuada pela
Secretaria Municipal de Saúde. Periodicamente a Secretaria de Estado da Saúde deve
desenvolver ações junto aos municípios para aprimoramento do trabalho das equipes de
Saúde da Família. Trata-se de uma função própria do nível estadual, em seu papel de
assessoramento e gestão de sistemas de abrangência supra-municipal.
302
Avaliação
A avaliação deve possuir instrumentos e sensibilidade para aferir:
alterações efetivas do modelo assistencial;
satisfação do usuário;
satisfação dos profissionais;
qualidade do atendimento;
desempenho da equipe;
impacto nos indicadores de Saúde.
A avaliação, assim como todas as etapas do PSF, deve considerar a realidade e
as necessidades locais, a participação popular e o caráter dinâmico e perfectível da proposta.
A avaliação traz elementos importantes para a definição de programas de educação
continuada, aprimoramento gerencial e aplicação de recursos, entre outros.
O resultado das avaliações não deve ser considerado como um dado
exclusivamente técnico, mas sim como uma informação de interesse de todos os profissionais
e mesmo da população. Por isso, devem ser desenvolvidas formas de se ampliar a divulgação
e discussão dos dados obtidos no processo de avaliação.
8- Financiamento:
Sendo redefinido pela Norma Operacional Básica / 96
303
ANEXO B Portaria n.º 648, de 28 de março de 2006
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
IMPRENSA NACIONAL – SEÇÃO 1
Edição Número 61 de 29/03/2006
Ministério da Saúde - Gabinete do Ministro
PORTARIA No 648, DE 28 DE MARÇO DE 2006
Aprova a Política Nacional de Atenção Básica,
estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a
organização da Atenção Básica para o Programa Saúde
da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de
Saúde (PACS).
O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso de suas atribuições, e
Considerando a necessidade de revisar e adequar as normas nacionais ao atual momento do
desenvolvimento da atenção básica no Brasil;
Considerando a expansão do Programa Saúde da Família (PSF) que se consolidou como a
estratégia prioritária para reorganização da atenção básica no Brasil;
Considerando a transformação do PSF em uma estratégia de abrangência nacional que
demonstra necessidade de adequação de suas normas, em virtude da experiência acumulada
nos diversos estados e municípios brasileiros;
Considerando os princípios e as diretrizes propostos nos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS
e de Gestão, entre as esferas de governo na consolidação do SUS, que inclui a
desfragmentação do financiamento da Atenção Básica;
Considerando a diretriz do Governo Federal de executar a gestão pública por resultados
mensuráveis; e
Considerando a pactuação na Reunião da Comissão Intergestores Tripartite do dia 23 de
março de 2006, resolve:
Art. 1º Aprovar a Política Nacional de Atenção Básica, com vistas à revisão da
regulamentação de implantação e operacionalização vigentes, nos termos constantes do
Anexo a esta Portaria.
Parágrafo único. A Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde (SAS/MS) publicará
manuais e guias com detalhamento operacional e orientações específicas desta Política.
Art. 2º Definir que os recursos orçamentários de que trata a presente Portaria corram por conta
do orçamento do Ministério da Saúde, devendo onerar os seguintes Programas de Trabalho:
I - 10.301.1214.0589 - Incentivo Financeiro a Municípios Habilitados à Parte Variável do Piso
de Atenção Básica;
II - 10.301.1214.8577 Atendimento Assistencial Básico nos Municípios Brasileiros; e
III 10.301.1214.8581 Estruturação da Rede de Serviços de Atenção Básica de Saúde.
Art. 3º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
304
Art. 4º Ficando revogadas as Portarias nº 1.882/GM, de 18 de dezembro de 1997, publicada
no Diário Oficial da União nº 247, de 22 de dezembro de 1997, Seção 1, página 10,
1.884/GM, de 18 de dezembro de 1997, publicada no Diário Oficial da União nº 247, de 22 de
dezembro de 1997, Seção 1, página 11, nº 1.885/GM, de 18 de dezembro de 1997, publicada
no Diário Oficial da União, nº 247, de 22 de dezembro de 1997, Seção 1, página 11,
1.886/GM, de 18 de dezembro de 1997, publicada no Diário Oficial da União nº 247, de 22 de
dezembro de 1997, Seção 1, página 11, nº 59/GM, de 16 de janeiro de 1998, publicada no
Diário Oficial da União, nº 14-E, de 21 de janeiro de 1998, Seção 1, página 2, 157/GM, de 19
de fevereiro de 1998, publicada no Diário Oficial da União nº 58, de 26 de março de 1998,
Seção 1, página 104, nº 2.101/GM, de 27 de fevereiro de 1998, publicada no Diário Oficial da
União nº 42, de 4 de março de 1998, Seção 1, página 70, nº 3.476/GM, de 20 de agosto de
1998, publicada no Diário Oficial da União nº 160, de 21 de agosto de 1998, Seção 1, página
55, nº 3.925/GM, de 13 de novembro de 1998, publicada no Diário Oficial da União nº 22-E, 2
de fevereiro de 1999, Seção 1, página 23, nº 223/GM, de 24 de março de 1999, publicada no
Diário Oficial da União nº 57, de 25 de março de 1999, Seção 1, página 15, nº 1.348/GM, de 18
de novembro de 1999, publicada no Diário Oficial da União nº 221, de 19 de novembro de
1999, Seção 1, página 29, nº 1.013/GM, de 8 de setembro de 2000, publicada no Diário Oficial
da União nº 175-E, de 11 de setembro de 2000, Seção 1, página 33, nº 267/GM, de 6 de março
de 2001, publicada no Diário Oficial da União nº 46, de 7 de março de 2001, Seção 1, página
67, nº 1.502/GM, de 22 de agosto de 2002, publicada no Diário Oficial da União nº 163, de 23
de agosto de 2002, Seção 1, página 39, nº 396/GM, de 4 de abril de 2003, publicada no Diário
Oficial da União nº 104, de 2 de junho de 2003, Seção 1, página 21, nº 673/GM, de 3 de junho
de 2003, publicada no Diário Oficial da União nº 106, de 4 de junho de 2003, Seção 1, página
44, nº 674/GM, de 3 de junho de 2003, publicada no Diário Oficial da União nº 106, de 4 de
junho de 2003, Seção 1, página 44, nº 675/GM, de 3 de junho de 2003, publicada no Diário
Oficial da União nº 106, de 4 de junho de 2003, Seção 1, página 45, nº 2.081/GM, de 31 de
outubro de 2003, publicada no Diário Oficial da União nº 214, de 4 de novembro de 2003,
Seção 1, página 46, nº 74/GM, de 20 de janeiro de 2004, publicada no Diário Oficial da União
nº 15, de 23 de janeiro de 2004, Seção 1, página 55, nº 1.432/GM, de 14 de julho de 2004,
publicada no Diário Oficial da União nº 157, de 16 de agosto de 2004, Seção 1, página 35,
1.434/GM, de 14 de julho de 2004, publicada no Diário Oficial da União nº 135, de 15 de julho
de 2004, Seção 1, página 36, nº 2.023/GM, de 23 de setembro de 2004, publicada no Diário
Oficial da União nº 185, de 24 de setembro de 2004, Seção 1, página 44, nº 2.024/GM, de 23
de setembro de 2004, publicada no Diário Oficial da União nº 185, de 24 de setembro de 2004,
Seção 1, página 44, nº 2.025/GM, de 23 de setembro de 2004, publicada no Diário Oficial da
União nº 185, de 24 de setembro de 2004, Seção 1, página 45, nº 619/GM, de 25 de abril de
2005, publicada no Diário Oficial da União nº 78, de 26 de abril de 2005, Seção 1, página 56,
873/GM, de 8 de junho de 2005. publicada no Diário Oficial da União nº 110, de 10 de junho de
2005, Seção 1, página 74 e nº 82/SAS, de 7 de julho de 1998, publicada no Diário Oficial da
União nº 128, de 8 de julho de 1998, Seção 1, página 62.
SARAIVA FELIPE
305
ANEXO
POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO BÁSICA
CAPÍTULO I
Da Atenção Básica
1 - DOS PRINCÍPIOS GERAIS
A Atenção Básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e
coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o
diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É desenvolvida por meio do
exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de
trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume
a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem
essas populações. Utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem
resolver os problemas de saúde de maior freqüência e relevância em seu território. É o contato
preferencial dos usuários com os sistemas de saúde. Orienta-se pelos princípios da
universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo e continuidade, da
integralidade, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social.
A Atenção Básica considera o sujeito em sua singularidade, na complexidade, na integralidade
e na inserção sócio-cultural e busca a promoção de sua saúde, a prevenção e tratamento de
doenças e a redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas
possibilidades de viver de modo saudável.
A Atenção Básica tem a Saúde da Família como estratégia prioritária para sua organização de
acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde.
A Atenção Básica tem como fundamentos:
I - possibilitar o acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade e resolutivos,
caracterizados como a porta de entrada preferencial do sistema de saúde, com território
adscrito de forma a permitir o planejamento e a programação descentralizada, e em
consonância com o princípio da eqüidade;
II efetivar a integralidade em seus vários aspectos, a saber: integração de ações programáticas
e demanda espontânea; articulação das ações de promoção à saúde, prevenção de agravos,
vigilância à saúde, tratamento e reabilitação, trabalho de forma interdisciplinar e em equipe, e
coordenação do cuidado na rede de serviços;
III - desenvolver relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a população
adscrita garantindo a continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado;
IV - valorizar os profissionais de saúde por meio do estímulo e do acompanhamento constante
de sua formação e capacitação;
V - realizar avaliação e acompanhamento sistemático dos resultados alcançados, como parte
do processo de planejamento e programação; e
VI - estimular a participação popular e o controle social.
Visando à operacionalização da Atenção Básica, definem-se como áreas estratégicas para
atuação em todo o território nacional a eliminação da hanseníase, o controle da tuberculose, o
controle da hipertensão arterial, o controle do diabetes mellitus, a eliminação da desnutrição
infantil, a saúde da criança, a saúde da mulher, a saúde do idoso, a saúde bucal e a promoção
da saúde. Outras áreas serão definidas regionalmente de acordo com prioridades e pactuações
definidas nas CIBs.
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Para o processo de pactuação da atenção básica será realizado e firmado o Pacto de
Indicadores da Atenção Básica, tomando como objeto as metas anuais a serem alcançadas em
relação a indicadores de saúde acordados. O processo de pactuação da Atenção Básica
seguirá regulamentação específica do Pacto de Gestão. Os gestores poderão acordar nas
CIBs indicadores estaduais de Atenção Básica a serem acompanhados em seus respectivos
territórios.
2 - DAS RESPONSABILIDADES DE CADA ESFERA DE GOVERNO
Os municípios e o Distrito Federal, como gestores dos sistemas locais de saúde, são
responsáveis pelo cumprimento dos princípios da Atenção Básica, pela organização e
execução das ações em seu território.
2.1 Compete às Secretarias Municipais de Saúde e ao Distrito Federal:
I - organizar, executar e gerenciar os serviços e ações de Atenção Básica, de forma universal,
dentro do seu território, incluindo as unidades próprias e as cedidas pelo estado e pela União;
II - incluir a proposta de organização da Atenção Básica e da forma de utilização dos recursos
do PAB fixo e variável, nos Planos de Saúde municipais e do Distrito Federal;
III - inserir preferencialmente, de acordo com sua capacidade institucional, a estratégia de
saúde da Família em sua rede de serviços, visando à organização sistêmica da atenção à
saúde;
IV - organizar o fluxo de usuários, visando a garantia das referências a serviços e ações de
saúde fora do âmbito da Atenção Básica;
V - garantir infra-estrutura necessária ao funcionamento das Unidades Básicas de Saúde,
dotando-as de recursos materiais, equipamentos e insumos suficientes para o conjunto de
ações propostas;
VI - selecionar, contratar e remunerar os profissionais que compõem as equipes
multiprofissionais de Atenção Básica, inclusive os da Saúde da Família, em conformidade com
a legislação vigente;
VII - programar as ações da Atenção Básica a partir de sua base territorial, utilizando
instrumento de programação nacional ou correspondente local;
VIII - alimentar as bases de dados nacionais com os dados produzidos pelo sistema de saúde
municipal, mantendo atualizado o cadastro de profissionais, de serviços e de estabelecimentos
ambulatoriais, públicos e privados, sob sua gestão;
IX - elaborar metodologias e instrumentos de monitoramento e avaliação da Atenção Básica na
esfera municipal;
X - desenvolver mecanismos técnicos e estratégias or ganizacionais de qualificação de
recursos humanos para gestão, planejamento, monitoramento e avaliação da Atenção Básica;
XI - definir estratégias de articulação com os serviços de saúde com vistas à institucionalização
da avaliação da Atenção Básica;
XII - firmar, monitorar e avaliar os indicadores do Pacto da Atenção Básica no seu território,
divulgando anualmente os resultados alcançados;
XIII - verificar a qualidade e a consistência dos dados alimentados nos sistemas nacionais de
informação a serem enviados às outras esferas de gestão;
XIV - consolidar e analisar os dados de interesse das equipes locais, das equipes regionais e
da gestão municipal, disponíveis nos sistemas de informação, divulgando os resultados
obtidos;
XV - acompanhar e avaliar o trabalho da Atenção Básica com ou sem Saúde da Família,
divulgando as informações e os resultados alcançados;
XVI - estimular e viabilizar a capacitação e a educação permanente dos profissionais das
equipes; e
XVII - buscar a viabilização de parcerias com organizações governamentais, não
governamentais e com o setor privado para fortalecimento da Atenção Básica no âmbito do seu
território.
2.2 - Compete às Secretarias Estaduais de Saúde e ao Distrito Federal:
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I - contribuir para a reorientação do modelo de atenção à saúde por meio do apoio à Atenção
Básica e estímulo à adoção da estratégia Saúde da Família pelos serviços municipais de saúde
em caráter substitutivo às práticas atualmente vigentes para a Atenção Básica;
II - pactuar, com a Comissão Intergestores Bipartite, estratégias, diretrizes e normas de
implementação da Atenção Básica no Estado, mantidos os princípios gerais regulamentados
nesta Portaria;
III - estabelecer, no Plano de Saúde Estadual e do Distrito Federal, metas e prioridades para a
organização da Atenção Básica no seu território;
IV - destinar recursos estaduais para compor o financiamento tripartite da Atenção Básica;
V - pactuar com a Comissão Intergestores Bipartite e informar à Comissão Intergestores
Tripartite a definição da utilização dos recursos para Compensação de Especificidades
Regionais;
VI - prestar assessoria técnica aos municípios no processo de qualificação da Atenção Básica
e de ampliação e consolidação da estratégia Saúde da Família, com orientação para
organização dos serviços que considere a incorporação de novos cenários epidemiológicos;
VII - elaborar metodologias e instrumentos de monitoramento e avaliação da Atenção Básica
na esfera estadual;
VIII - desenvolver mecanismos técnicos e estratégias or ganizacionais de qualificação de
recursos humanos para gestão, planejamento, monitoramento e avaliação da Atenção Básica;
IX - definir estratégias de articulação com as gestões municipais do SUS com vistas à
institucionalização da avaliação da Atenção Básica;
X - firmar, monitorar e avaliar os indicadores do Pacto da Atenção Básica no território estadual,
divulgando anualmente os resultados alcançados;
XI - estabelecer outros mecanismos de controle e regulação, monitoramento e avaliação das
ações da Atenção Básica e da estratégia Saúde da Família no âmbito estadual ou do Distrito
Federal;
XII ser co-responsável, junto ao Ministério da Saúde, pelo monitoramento da utilização dos
recursos da Atenção Básica feridos aos municípios e ao Distrito Federal;
XIII - submeter à CIB, para resolução acerca das irregularidades constatadas na execução do
PAB fixo e variável, visando:
a) aprazamento para que o gestor municipal corrija as irregularidades;
b) comunicação ao Ministério da Saúde; e
c) bloqueio do repasse de recursos ou demais providências consideradas necessárias e
regulamentadas pela CIB;
XIV - assessorar os municípios para implantação dos sistemas de informação da Atenção
Básica, como instrumentos para monitorar as ações desenvolvidas;
XV - consolidar, analisar e transferir os arquivos dos sistemas de informação enviados pelos
municípios para o Ministério da Saúde, de acordo com os fluxos e prazos estabelecidos para
cada sistema;
XVI - verificar a qualidade e a consistência dos dados enviados pelos municípios por meio dos
sistemas informatizados, retornando informações aos gestores municipais;
XVII - analisar os dados de interesse estadual, gerados pelos sistemas de informação, divulgar
os resultados obtidos e utilizá-los no planejamento;
XVIII - assessorar municípios na análise e gestão dos sistemas de informação, com vistas ao
fortalecimento da capacidade de planejamento municipal;
XIX - disponibilizar aos municípios instrumentos técnicos e pedagógicos que facilitem o
processo de formação e educação permanente dos membros das equipes;
XX - articular instituições, em parceria com as Secretarias Municipais de Saúde, para
capacitação e garantia de educação permanente aos profissionais de saúde das equipes de
Atenção Básica e das equipes de saúde da família;
XXI - promover o intercâmbio de experiências entre os diversos municípios, para disseminar
tecnologias e conhecimentos voltados à melhoria dos serviços da Atenção Básica; e
XXII - viabilizar parcerias com organismos internacionais, com organizações governamentais,
não-governamentais e do setor privado para fortalecimento da Atenção Básica no âmbito do
estado e do Distrito Federal.
2.3 - Compete ao Ministério da Saúde:
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I - contribuir para a reorientação do modelo de atenção à saúde no País, por meio do apoio à
Atenção Básica e do estímulo à adoção da estratégia de Saúde da Família como estruturante
para a organização dos sistemas municipais de saúde;
II - garantir fontes de recursos federais para compor o financiamento do Piso da Atenção
Básica - PAB fixo e variável;
III - prestar assessoria técnica aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios no processo
de qualificação e de consolidação da Atenção Básica e da estratégia de Saúde da Família;
IV - estabelecer diretrizes nacionais e disponibilizar instrumentos técnicos e pedagógicos que
facilitem o processo de capacitação e educação permanente dos profissionais da Atenção
Básica;
V - apoiar a articulação de instituições, em parceria com as Secretarias de Saúde Estaduais,
Municipais e do Distrito Federal, para capacitação e garantia de educação permanente para os
profissionais de saúde da Atenção Básica;
VI - articular com o Ministério da Educação estratégias de indução às mudanças curriculares
nos cursos de graduação na área da saúde, em especial de medicina, enfermagem e
odontologia, visando à formação de profissionais com perfil adequado à Atenção Básica;
VII - assessorar estados, municípios e o Distrito Federal na implantação dos sistemas de
informação da Atenção Básica;
VIII - analisar dados de interesse nacional, relacionados com a Atenção Básica, gerados pelos
sistemas de informação em saúde, divulgando os resultados obtidos;
IX - elaborar metodologias e instrumentos de monitoramento e avaliação da Atenção Básica de
âmbito nacional;
X - desenvolver mecanismos técnicos e estratégias organizacionais de qualificação de recursos
humanos para gestão, planejamento, monitoramento e avaliação da Atenção Básica;
XI - definir estratégias de articulação com as gestões estaduais e municipais do SUS com
vistas à institucionalização da avaliação da Atenção Básica;
XII - monitorar e avaliar os indicadores do Pacto da Atenção Básica, no âmbito nacional,
divulgando anualmente os resultados alcançados, de acordo com o processo de pactuação
acordado na Comissão Intergestores Tripartite;
XIII - estabelecer outros mecanismos de controle e regulação, de monitoramento e de
avaliação das ações da Atenção Básica e da estratégia de Saúde da Família no âmbito
nacional;
XIV - promover o intercâmbio de experiências e estimular o desenvolvimento de estudos e
pesquisas que busquem o aperfeiçoamento e a disseminação de tecnologias e conhecimentos
voltados à Atenção Básica; e
XV - viabilizar parcerias com organismos internacionais, com organizações governamentais,
não governamentais e do setor privado, para fortalecimento da Atenção Básica e da estratégia
de saúde da família no País.
3 - DA INFRA-ESTRUTURA E DOS RECURSOS NECESSÁRIOS
São itens necessários à realização das ações de Atenção Básica nos municípios e no Distrito
Federal:
I - Unidade(s) Básica(s) de Saúde (UBS) com ou sem Saúde da Família inscrita(s) no Cadastro
Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde, de acordo com as normas
sanitárias vigentes;
II - UBS com ou sem Saúde da Família que, de acordo com o desenvolvimento de suas ações,
disponibilizem:
III - equipe multiprofissional composta por médico, enfermeiro, cirurgião dentista, auxiliar de
consultório dentário ou técnico em higiene dental, auxiliar de enfermagem ou técnico de
enfermagem e agente comunitário de saúde, entre outros;
IV - consultório médico, consultório odontológico e consultório de enfermagem para os
profissionais da Atenção Básica;
V - área de recepção, local para arquivos e registros, uma sala de cuidados básicos de
enfermagem, uma sala de vacina e sanitários, por unidade;
VI - equipamentos e materiais adequados ao elenco de ações propostas, de forma a garantir a
resolutividade da Atenção Básica;
VII - garantia dos fluxos de referência e contra-referência aos serviços especializados, de apoio
diagnóstico e terapêutico, ambulatorial e hospitalar; e
309
VIII - existência e manutenção regular de estoque dos insumos necessários para o
funcionamento das unidades básicas de saúde, incluindo dispensação de medicamentos
pactuados nacionalmente.
Para Unidade Básica de Saúde (UBS) sem Saúde da Família em grandes centros urbanos,
recomenda-se o parâmetro de uma UBS para até 30 mil habitantes, localizada dentro do
território pelo qual tem responsabilidade sanitária, garantindo os princípios da Atenção Básica.
Para UBS com Saúde da Família em grandes centros urbanos, recomenda-se o parâmetro de
uma UBS para até 12 mil habitantes, localizada dentro do território pelo qual tem
responsabilidade sanitária, garantindo os princípios da Atenção Básica.
4 - DO CADASTRAMENTO DAS UNIDADES QUE PRESTAM SERVIÇOS BÁSICOS DE
SAÚDE
O cadastramento das Unidades Básicas de Saúde será feito pelos gestores municipais e do
Distrito Federal em consonância com as normas do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de
Saúde.
5 - DO PROCESSO DE TRABALHO DAS EQUIPES DE ATENÇÃO BÁSICA
São características do processo de trabalho das equipes de Atenção Básica:
I - definição do território de atuação das UBS;
II - programação e implementação das atividades, com a priorização de solução dos problemas
de saúde mais freqüentes, considerando a responsabilidade da assistência resolutiva à
demanda espontânea;
III - desenvolvimento de ações educativas que possam interferir no processo de saúde-doença
da população e ampliar o controle social na defesa da qualidade de vida;
IV - desenvolvimento de ações focalizadas sobre os grupos de risco e fatores de risco
comportamentais, alimentares e/ou ambientais, com a finalidade de prevenir o aparecimento ou
a manutenção de doenças e danos evitáveis;
V - assistência básica integral e contínua, organizada à população adscrita, com garantia de
acesso ao apoio diagnóstico e laboratorial;
VI - implementação das diretrizes da Política Nacional de Humanização, incluindo o
acolhimento;
VII - realização de primeiro atendimento às urgências médicas e odontológicas;
VIII - participação das equipes no planejamento e na avaliação das ações;
IX - desenvolvimento de ações intersetoriais, integrando projetos sociais e setores afins,
voltados para a promoção da saúde; e
X - apoio a estratégias de fortalecimento da gestão local e do controle social.
6 - DAS ATRIBUIÇÕES DOS MEMBROS DAS EQUIPES DE ATENÇÃO BÁSICA
As atribuições específicas dos profissionais da Atenção Básica deverão constar de
normatização do município e do Distrito Federal, de acordo com as prioridades definidas pela
respectiva gestão e as prioridades nacionais e estaduais pactuadas.
7 - DO PROCESSO DE EDUCAÇÃO PERMANENTE
A educação permanente dos profissionais da Atenção Básica é de responsabilidade conjunta
das SMS e das SES, nos estados, e da Secretaria de Saúde do Distrito Federal.
Os conteúdos mínimos da Educação Permanente devem priorizar as áreas estratégicas da
Atenção Básica, acordadas na CIT, acrescidos das prioridades estaduais, municipais e do
Distrito Federal.
Devem compor o financiamento da Educação Permanente recursos das três esferas de
governo acordados na CIT e nas CIBs.
310
Os serviços de atenção básica deverão adequar-se à integração ensino-aprendizagem de
acordo com processos acordados na CIT e nas CIBs.
CAPÍTULO II
Das Especificidades da Estratégia de Saúde da Família
1 - PRINCÍPIOS GERAIS
A estratégia de Saúde da Família visa à reorganização da Atenção Básica no País, de acordo
com os preceitos do Sistema Único de Saúde. Além dos princípios gerais da Atenção Básica, a
estratégia Saúde da Família deve:
I - ter caráter substitutivo em relação à rede de Atenção Básica tradicional nos territórios em
que as Equipes Saúde da Família atuam;
II - atuar no território, realizando cadastramento domiciliar, diagnóstico situacional, ações
dirigidas aos problemas de saúde de maneira pactuada com a comunidade onde atua,
buscando o cuidado dos indivíduos e das famílias ao longo do tempo, mantendo sempre
postura pró-ativa frente aos problemas de saúde-doença da população;
III - desenvolver atividades de acordo com o planejamento e a programação realizados com
base no diagnóstico situacional e tendo como foco a família e a comunidade;
IV - buscar a integração com instituições e organizações sociais, em especial em sua área de
abrangência, para o desenvolvimento de parcerias; e
V - ser um espaço de construção de cidadania.
2 - DAS RESPONSABILIDADES DE CADA NÍVEL DE GOVERNO
Além das responsabilidades propostas para a Atenção Básica, em relação à estratégia Saúde
da Família, os diversos entes federados têm as seguintes responsabilidades:
2.1 Compete às Secretarias Municipais de Saúde e ao Distrito Federal:
I - inserir a estratégia de Saúde da Família em sua rede de serviços visando à organização do
sistema local de saúde;
II - definir, no Plano de Saúde, as características, os objetivos, as metas e os mecanismos de
acompanhamento da estratégia Saúde da Família;
III - garantir infra-estrutura necessária ao funcionamento das equipes de Saúde da Família, de
Saúde Bucal e das unidades básicas de referência dos Agentes Comunitários de Saúde,
dotando-as de recursos materiais, equipamentos e insumos suficientes para o conjunto de
ações propostas;
IV - assegurar o cumprimento de horário integral - jornada de 40 horas semanais – de todos os
profissionais nas equipes de saúde da família, de saúde bucal e de agentes comunitários de
saúde, com exceção daqueles que devem dedicar ao menos 32 horas de sua carga horária
para atividades na equipe de SF e até 8 horas do total de sua carga horária para atividades de
residência multiprofissional e/ou de medicina de família e de comunidade, ou trabalho em
hospitais de pequeno porte, conforme regulamentação específica da Política Nacional dos
Hospitais de Pequeno Porte;
V - realizar e manter atualizado o cadastro dos ACS, dos enfermeiros da equipe PACS e dos
profissionais das equipes de Saúde da Família e de Saúde Bucal, bem como da população
residente na área de abrangência das equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e ACS,
nos Sistemas Nacionais de Informação em Saúde definidos para esse fim; e
VI - estimular e viabilizar a capacitação específica dos profissionais das equipes de Saúde da
Família.
2.2 Compete às Secretarias Estaduais de Saúde:
311
I - pactuar com a Comissão Intergestores Bipartite estratégias, diretrizes e normas de
implementação e gestão da Saúde da Família no Estado, mantidos os princípios gerais
regulamentados nesta Portaria;
II - estabelecer no Plano de Saúde estadual metas e prioridades para a Saúde da Família;
III - submeter à Comissão Intergestores Bipartite (CIB), no prazo máximo de 30 dias após a
data do protocolo de entrada do processo, a proposta de implantação ou expansão de ESF,
ESB e ACS elaborada pelos municípios e aprovada pelos Conselhos de Saúde dos municípios;
IV - submeter à CIB, para resolução, o fluxo de acompanhamento do cadastramento dos
profissionais das Equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e ACS nos sistemas de
informação nacionais, definidos para esse fim;
V - submeter à CIB, para resolução, o fluxo de descredenciamento e/ou o bloqueio de recursos
diante de irregularidades constatadas na implantação e no funcionamento das Equipes de
Saúde da Família, de Saúde Bucal e ACS, a ser publicado como portaria de resolução da CIB,
visando à regularização das equipes que atuam de forma inadequada;
VI - analisar e consolidar as informações enviadas pelos municípios, referentes à implantação e
ao funcionamento das Equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e ACS;
VII - enviar, mensalmente, ao Ministério da Saúde o consolidado das informações
encaminhadas pelos municípios, autorizando a transferência dos incentivos financeiros federais
aos municípios;
VIII - responsabilizar-se perante o Ministério da Saúde pelo monitoramento, o controle e a
avaliação da utilização dos recursos de incentivo da Saúde da Família transferidos aos
municípios no território estadual;
IX - prestar assessoria técnica aos municípios no processo de implantação e ampliação da SF;
X - articular com as instituições formadoras de recursos humanos do estado estratégias de
expansão e qualificação de cursos de pósgraduação, residências médicas e multiprofissionais
em Saúde da Família e educação permanente, de acordo com demandas e necessidades
identificadas nos municípios e pactuadas nas CIBs; e
XI - acompanhar, monitorar e avaliar o desenvolvimento da estratégia Saúde da Família nos
municípios, identificando situações em desacordo com a regulamentação, garantindo suporte
às adequações necessárias e divulgando os resultados alcançados.
2.3. Compete ao Distrito Federal:
I - estabelecer, no Plano de Saúde do Distrito Federal, metas e prioridades para a Saúde da
Família;
II - analisar e consolidar as informações referentes à implantação e ao funcionamento das
equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e ACS;
III - responsabilizar-se junto ao Ministério da Saúde pelo monitoramento, o controle e a
avaliação da utilização dos recursos de incentivo da Saúde da Família transferidos ao Distrito
Federal; e
IV - acompanhar, monitorar e avaliar o desenvolvimento da estratégia Saúde da Família no
Distrito Federal, identificando e adequando situações em desacordo com a regulamentação e
divulgando os resultados alcançados.
2.4 Compete ao Ministério da Saúde:
I - definir e rever, de forma pactuada, na Comissão Intergestores Tripartite, as diretrizes e as
normas da Saúde da Família;
II - garantir fontes de recursos federais para compor o financiamento da Atenção Básica
organizada por meio da estratégia Saúde da Família;
III - apoiar a articulação de instituições, em parceria com Secretarias de Saúde Estaduais,
Municipais e do Distrito Federal, para capacitação e garantia de educação permanente
específica aos profissionais da Saúde da Família;
IV - articular com o Ministério da Educação estratégias de expansão e de qualificação de
cursos de pós-graduação, residências médicas e multiprofissionais em Saúde da Família e em
educação permanente;
V - analisar dados de interesse nacional relacionados com a estratégia Saúde da Família,
gerados pelos sistemas de informação em saúde, divulgando os resultados obtidos; e
312
VI - para a análise de indicadores, de índices de valorização de resultados e de outros
parâmetros, o cálculo da cobertura populacional pelas ESF, ESB e ACS será realizado a partir
da população cadastrada no sistema de informação vigente.
3 - DA INFRA-ESTRUTURA E DOS RECURSOS NECESSÁRIOS
São itens necessários à implantação das Equipes de Saúde da Família:
I - existência de equipe multiprofissional responsável por, no máximo, 4.000 habitantes, sendo
a média recomendada de 3.000 habitantes, com jornada de trabalho de 40 horas semanais
para todos os seus integrantes e composta por, no mínimo, médico, enfermeiro, auxiliar de
enfermagem ou técnico de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde;
II - número de ACS suficiente para cobrir 100% da população cadastrada, com um máximo de
750 pessoas por ACS e de 12 ACS por equipe de Saúde da Família;
III - existência de Unidade Básica de Saúde inscrita no Cadastro Geral de Estabelecimentos de
Saúde do Ministério da Saúde, dentro da área para o atendimento das Equipes de Saúde da
Família que possua minimamente:
a) consultório médico e de enfermagem para a Equipe de Saúde da Família, de acordo com as
necessidades de desenvolvimento do conjunto de ações de sua competência;
b) área/sala de recepção, local para arquivos e registros, uma sala de cuidados básicos de
enfermagem, uma sala de vacina e sanitários, por unidade;
c) equipamentos e materiais adequados ao elenco de ações programadas, de forma a garantir
a resolutividade da Atenção Básica à saúde;
IV - garantia dos fluxos de referência e contra-referência aos serviços especializados, de apoio
diagnóstico e terapêutico, ambulatorial e hospitalar; e
V - existência e manutenção regular de estoque dos insumos necessários para o
funcionamento da UBS.
São itens necessários à incorporação de profissionais de saúde bucal nas Equipes de Saúde
da Família:
I - no caso das Equipes de Saúde Bucal (ESB), modalidade 1: existência de equipe
multiprofissional, com composição básica de cirurgião dentista e auxiliar de consultório
dentário, com trabalho integrado a uma ou duas ESF, com responsabilidade sanitária pela
mesma população e território que as ESF às quais está vinculada, e com jornada de trabalho
de 40 horas semanais para todos os seus componentes;
II - no caso das ESB, modalidade 2: existência de equipe multiprofissional, com composição
básica de cirurgião dentista, auxiliar de consultório dentário e técnico de higiene dental, com
trabalho integrado a uma ou duas ESFs, com responsabilidade sanitária pela mesma
população e território que as ESFs, às quais está vinculada, e com jornada de trabalho de 40
horas semanais para todos os seus componentes;
III - existência de Unidade de Saúde inscrita no Cadastro Geral de Estabelecimentos de Saúde
do Ministério da Saúde, dentro da área para atendimento das equipes de Saúde Bucal, que
possua minimamente:
a) consultório odontológico para a Equipe de Saúde Bucal, de acordo com as necessidades de
desenvolvimento do conjunto de ações de sua competência; e
b) equipamentos e materiais adequados ao elenco de ações programadas, de forma a garantir
a resolutividade da Atenção Básica à saúde.
É prevista a implantação da estratégia de Agentes Comunitários de Saúde nas Unidades
Básicas de Saúde como uma possibilidade para a reorganização inicial da Atenção Básica.
São itens necessários à organização da implantação dessa estratégia:
I - a existência de uma Unidade Básica de Saúde, inscrita no Cadastro Geral de
estabelecimentos de saúde do Ministério da Saúde, de referência para os ACS e o enfermeiro
supervisor;
II - a existência de um enfermeiro para até 30 ACS, o que constitui uma equipe de ACS;
III - o cumprimento da carga horária de 40 horas semanais dedicadas à equipe de ACS pelo
enfermeiro supervisor e pelos ACS;
313
IV - definição das micro-áreas sob responsabilidade de cada ACS, cuja população não deve
ser superior a 750 pessoas; e
V - o exercício da profissão de Agente Comunitário de Saúde regulamentado pela Lei nº
10.507/2002.
4. DO PROCESSO DE TRABALHO DA SAÚDE DA F AMÍLIA
Além das características do processo de trabalho das equipes de Atenção Básica, são
características do processo de trabalho da Saúde da Família:
I - manter atualizado o cadastramento das famílias e dos indivíduos e utilizar, de forma
sistemática, os dados para a análise da situação de saúde considerando as características
sociais, econômicas, culturais, demográficas e epidemiológicas do território;
II - definição precisa do território de atuação, mapeamento e reconhecimento da área adstrita,
que compreenda o segmento populacional determinado, com atualização contínua;
III - diagnóstico, programação e implementação das atividades segundo critérios de risco à
saúde, priorizando solução dos problemas de saúde mais freqüentes;
IV - prática do cuidado familiar ampliado, efetivada por meio do conhecimento da estrutura e da
funcionalidade das famílias que visa propor intervenções que influenciem os processos de
saúde-doença dos indivíduos, das famílias e da própria comunidade;
V - trabalho interdisciplinar e em equipe, integrando áreas técnicas e profissionais de diferentes
formações;
VI - promoção e desenvolvimento de ações intersetoriais, buscando parcerias e integrando
projetos sociais e setores afins, voltados para a promoção da saúde, de acordo com
prioridades e sob a coordenação da gestão municipal;
VII - valorização dos diversos saberes e práticas na perspectiva de uma abordagem integral e
resolutiva, possibilitando a criação de vínculos de confiança com ética, compromisso e
respeito;
VIII - promoção e estímulo à participação da comunidade no controle social, no planejamento,
na execução e na avaliação das ações; e
IX - acompanhamento e avaliação sistemática das ações implementadas, visando à
readequação do processo de trabalho.
As atribuições dos diversos profissionais das Equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal,
ACS e enfermeiros das equipes PACS estão descritas no Anexo I.
5 - DA CAPACITAÇÃO E EDUCAÇÃO PERMANENTE DAS EQUIPES
O processo de capacitação deve iniciar-se concomitantemente ao início do trabalho das ESF
por meio do Curso Introdutório para toda a equipe.
Recomenda-se que:
I - o Curso Introdutório seja realizado em até 3 meses após a implantação da ESF;
II - a responsabilidade da realização do curso introdutório e/ou dos cursos para educação
permanente das equipes, em municípios com população inferior a 100 mil habitantes, seja da
Secretaria de Estado da Saúde em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde; e
III - a responsabilidade da realização do curso introdutório e/ou dos cursos para educação
permanente das equipes, em municípios com população superior a 100 mil habitantes, e da
Secretaria Municipal de Saúde, que poderá realizar parceria com a Secretaria de Estado da
Saúde. No Distrito Federal, a sua Secretaria de Saúde é responsável pela realização do curso
introdutório e/ou dos cursos para educação permanente das equipes.
Os conteúdos mínimos do Curso Introdutório e da Educação Permanente para as ESFs serão
objeto de regulamentação específica editada pelo Ministério da Saúde.
6 - DO PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO
I - O município e o Distrito Federal deverão elaborar a proposta de implantação ou expansão
de ESF, ESB e ACS e em conformidade com a regulamentação estadual aprovada pela CIB.
Na ausência de regulamentação específica, poderão ser utilizados os quadros constantes no
Anexo II a esta Portaria. A proposta deve definir:
a) território a ser coberto, com estimativa da população residente, definição do número de
equipes que deverão atuar e com o mapeamento das áreas e micro-áreas;
314
b) infra-estrutura incluindo área física, equipamentos e materiais disponíveis nas UBS onde
atuarão as equipes, explicitando o número e o local das unidades onde irão atuar cada uma
das equipes;
c) ações a serem desenvolvidas pelas equipes no âmbito da Atenção Básica, especialmente
nas áreas prioritárias definidas no âmbito nacional;
d) processo de gerenciamento e supervisão do trabalho das equipes;
e) forma de recrutamento, seleção e contratação dos profissionais das equipes, contemplando
o cumprimento da carga horária de 40 horas semanais;
f) implantação do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), incluindo recursos
humanos e materiais para operá-lo;
g) processo de avaliação do trabalho das equipes, da forma de acompanhamento do Pacto dos
Indicadores da Atenção Básica e da utilização dos dados dos sistemas nacionais de
informação;
h) a contrapartida de recursos do município e do Distrito Federal.
II - A proposta elaborada deverá ser aprovada pelos Conselhos de Saúde dos Municípios e
encaminhada à Secretaria Estadual de Saúde ou sua instância regional para análise. O Distrito
Federal, após a aprovação por seu Conselho de Saúde, deverá encaminhar sua proposta para
o Ministério da Saúde;
III - A Secretaria Estadual de Saúde ou sua instância regional terá o prazo máximo de 30 dias
após a data do protocolo de entrada do processo para sua análise e encaminhamento à
Comissão Intergestores Bipartite (CIB);
IV - Após aprovação na CIB, cabe à Secretaria de Saúde dos Estados e do Distrito Federal
informar ao Ministério da Saúde, até o dia 15 de cada mês, o número de ESF, de ESB e de
ACS que fazem jus ao recebimento de incentivos financeiros do PAB variável;
V - O município, com as equipes previamente credenciadas pelo estado, conforme decisão da
CIB, passará a receber o incentivo correspondente às equipes efetivamente implantadas, a
partir do cadastro de profissionais no sistema nacional de informação definido para esse fim, e
da alimentação de dados no sistema que comprovem o início de suas atividades;
VI - O Ministério da Saúde, os estados e os municípios terão o prazo de até 180 dias para
implantação do novo fluxo de credenciamento e implantação de ESF, de ESB e de ACS; e
VII - O fluxo dos usuários para garantia da referência e contra-referência à atenção
especializada, nos serviços assistenciais de média complexidade ambulatorial, incluindo apoio
diagnóstico laboratorial e de imagem - RX e ultra-som, saúde mental e internação hospitalar,
levando em conta os padrões mínimos de oferta de serviços de acordo com os protocolos
estabelecidos pelo Ministério da Saúde e a proposta para garantia da assistência farmacêutica
básica devem constar no Plano Municipal de Saúde.
CAPÍTULO III
Do Financiamento da Atenção Básica
1 - CONSIDERAÇÕES GERAIS
O financiamento da Atenção Básica se dará em composição tripartite.
O Piso da Atenção Básica (PAB) constitui-se no componente federal para o financiamento da
Atenção Básica, sendo composto de uma fração fixa e outra variável.
O somatório das partes fixa e variável do Piso da Atenção Básica (PAB) comporá o Teto
Financeiro do Bloco Atenção Básica conforme estabelecido nas diretrizes dos Pactos pela
Vida, em Defesa do SUS e de Gestão.
Os recursos do Teto Financeiro do Bloco Atenção Básica deverão ser utilizados para
financiamento das ações de Atenção Básica descritas nos Planos de Saúde do município e do
Distrito Federal.
315
2 - DO PISO DE ATENÇÃO BÁSICA
O Piso da Atenção Básica - PAB consiste em um montante de recursos financeiros federais
destinados à viabilização de ações de Atenção Básica à saúde e compõe o Teto Financeiro do
Bloco Atenção Básica.
O PAB é composto de uma parte fixa (PAB fixo) destinada a todos os municípios e de uma
parte variável (PAB variável) que consiste em montante de recursos financeiros destinados a
estimular a implantação das seguintes estratégias nacionais de reorganização do modelo de
atenção à saúde: Saúde da Família - SF; Agentes Comunitários de Saúde - ACS; Saúde Bucal
- SB; Compensação de Especificidades Regionais; Saúde Indígena - SI; e Saúde no Sistema
Penitenciário.
Os repasses dos recursos dos PABs fixo e variável aos municípios são efetuados em conta
aberta especificamente para essa finalidade, com o objetivo de facilitar o acompanhamento
pelos Conselhos de Saúde no âmbito dos municípios, dos estados e do Distrito Federal.
Os recursos serão repassados em conta específica denominada "FMS - nome do município -
PAB" de acordo com a normatização geral de transferências fundo a fundo do Ministério da
Saúde.
O Ministério da Saúde definirá os códigos de lançamentos, assim como seus identificadores
literais, que constarão nos respectivos avisos de crédito, para tornar claro o objeto de cada
lançamento em conta. O aviso de crédito deverá ser enviado ao Secretário de Saúde, ao
Fundo de Saúde, ao Conselho de Saúde, ao Poder Legislativo e ao Ministério Público dos
respectivos níveis de governo.
Os registros contábeis e os demonstrativos gerenciais mensais devidamente atualizados
relativos aos recursos repassados a essas contas, ficarão, permanentemente, à disposição dos
Conselhos responsáveis pelo acompanhamento, e a fiscalização, no âmbito dos Municípios,
dos Estados, do Distrito Federal e dos órgãos de fiscalização federais, estaduais e municipais,
de controle interno e terno.
Os municípios deverão remeter por via eletrônica o processamento da produção de serviços
referentes ao PAB à Secretaria Estadual de Saúde, de acordo com cronograma por ela
estabelecido. As Secretarias de Saúde dos Estados e do Distrito Federal devem enviar as
informações ao DATASUS, observando cronograma estabelecido pelo Ministério da Saúde.
Os municípios e o Distrito Federal deverão efetuar suas despesas segundo as exigências
legais requeridas a quaisquer outras despesas da administração pública (processamento,
empenho, liquidação e efetivação do pagamento).
De acordo com o artigo 6º, do Decreto nº 1.651/95, a comprovação da aplicação dos recursos
transferidos do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde, na
forma do Decreto nº 1.232/94, que trata das transferências, fundo a fundo, deve ser
apresentada ao Ministério da Saúde e ao Estado, por meio de relatório de gestão, aprovado
pelo respectivo Conselho de Saúde.
Da mesma forma, a prestação de contas dos valores recebidos e aplicados no período deve
ser aprovada no Conselho Municipal de Saúde e encaminhada ao Tribunal de Contas do
Estado ou Município e à Câmara Municipal.
A demonstração da movimentação dos recursos de cada conta deverá ser efetuada, seja na
Prestação de Contas, seja quando solicitada pelos órgãos de controle, mediante a
apresentação de:
I - relatórios mensais da origem e da aplicação dos recursos;
II - demonstrativo sintético de execução orçamentária;
III - demonstrativo detalhado das principais despesas; e
IV - relatório de gestão.
O Relatório de Gestão deverá demonstrar como a aplicação dos recursos financeiros resultou
em ações de saúde para a população, incluindo quantitativos mensais e anuais de produção de
serviços de Atenção Básica.
316
2.1. Da parte fixa do Piso da Atenção Básica
Os recursos do PAB serão transferidos mensalmente, de forma regular e automática, do Fundo
Nacional de Saúde aos Fundos Municipais de Saúde e do Distrito Federal.
Excepcionalmente, os recursos do PAB correspondentes à população de municípios que não
cumprirem com os requisitos mínimos regulamentados nesta Portaria podem ser transferidos,
transitoriamente, aos Fundos Estaduais de Saúde, conforme resolução das Comissões
Intergestores Bipartites.
A parte fixa do PAB será calculada pela multiplicação de um valor per capita fixado pelo
Ministério da Saúde pela população de cada município e do Distrito Federal e seu valor será
publicado em portaria específica. Nos municípios cujos valores referentes já são superiores ao
mínimo valor per capita proposto, será mantido o maior valor.
A população de cada município e do Distrito Federal será a população definida pelo IBGE e
publicada em portaria específica pelo Ministério da Saúde.
Os municípios que já recebem incentivos referentes a equipes de projetos similares ao PSF, de
acordo com a Portaria nº 1.348/GM, de 18 de novembro de 1999, e Incentivos de
Descentralização de Unidades de Saúde da FUNASA, de acordo com Portaria nº 1.502/GM, de
22 de agosto de 2002, terão os valores correspondentes incorporados a seu PAB fixo a partir
da publicação do teto financeiro do Bloco da Atenção Básica.
Ficam mantidas as ações descritas nos Grupos dos Procedimentos da Atenção Básica, na
Tabela do Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde que
permanecem como referência para a alimentação dos bancos de dados nacionais.
2.2. Do Piso da Atenção Básica Variável
Os recursos do PAB variável são parte integrante do Bloco da Atenção Básica e terão sua
utilização definida nos planos municipais de saúde, dentro do escopo das ações previstas
nesta Política.
O PAB variável representa a fração de recursos federais para o financiamento de estratégias
nacionais de organização da Atenção Básica, cujo financiamento global se dá em composição
tripartite.
Para fazer jus ao financiamento específico do PAB variável, o Distrito Federal e os municípios
devem aderir às estratégias nacionais:
I - Saúde da Família (SF);
II - Agentes Comunitários de Saúde (ACS);
III - Saúde Bucal (SB);
IV - Compensação de Especificidades Regionais;
V - Saúde Indígena (SI); e
VI - Saúde no Sistema Penitenciário.
A transferência dos recursos financeiros que compõem os incentivos relacionados ao PAB
variável da Saúde Indígena SI será regulamentada em portaria específica.
A transferência dos recursos financeiros que compõem os incentivos relacionados ao PAB
variável da Saúde no Sistema Penitenciário se dará em conformidade ao disposto na Portaria
Interministerial nº 1.777, de 9 de setembro de 2003.
A efetivação da transferência dos recursos financeiros que compõem os incentivos
relacionados ao PAB variável da SF, dos ACS e da SB tem por base os dados de alimentação
obrigatória do SIAB, cuja responsabilidade de manutenção e atualização é dos gestores do
Distrito Federal e dos municípios:
317
I - os dados serão transferidos, pelas Secretarias Estaduais de Saúde e do Distrito Federal
para o Departamento de Informática do SUS - DATASUS, por via magnética, até o dia 15 de
cada mês;
II - os dados a serem transferidos referem-se ao período de 1º a 30 do mês imediatamente
anterior ao do seu envio;
III - a transferência dos dados para a Base Nacional do SIAB se dará por meio do BBS/MS, da
Internet, ou por disquete;
IV - o DATASUS remeterá à Secretaria Estadual de Saúde o recibo de entrada dos dados na
Base Nacional do SIAB; e
V - O DATASUS atualizará a Base Nacional do SIAB, localizada no Departamento de Atenção
Básica, da Secretaria de Atenção à Saúde, até o dia 20 de cada mês.
O número máximo de equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e de ACS a serem
financiadas pelo Ministério da Saúde, a cada ano, será definido em portaria específica,
respeitando os limites orçamentários.
Os valores dos componentes do PAB variável serão definidos em portaria específica pelo
Ministério da Saúde.
Equipe de Saúde da Família (ESF)
Os valores dos incentivos financeiros para as Equipes de Saúde da Família implantadas serão
transferidos a cada mês, tendo como base o número de Equipe de Saúde da Família (ESF)
registrados no cadastro de equipes e profissionais do Sistema de Informação de Atenção
Básica - SIAB, no mês anterior ao da respectiva competência financeira.
O número máximo de ESF pelas quais o município e o Distrito Federal podem fazer jus ao
recebimento de recursos financeiros específicos será calculado pela fórmula: população/2400.
A fonte de dados populacionais a ser utilizada para o cálculo será a mesma vigente para
cálculo da parte fixa do PAB.
São estabelecidas duas modalidades de financiamento para as ESF:
1. ESF Modalidade 1: são as ESF que atendem aos seguintes critérios:
I - estiverem implantadas em municípios com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) igual
ou inferior a 0,7 e população de até 50 mil habitantes nos Estados da Amazônia Legal e até 30
mil habitantes nos demais Estados do País; ou
II - estiverem implantadas em municípios que integraram o Programa de Interiorização do
Trabalho em Saúde (PITS) e que não estão enquadrados no estabelecido na alínea I deste
item; e
III - estiverem implantadas em municípios não incluídos no estabelecido nas alíneas I e II e
atendam a população remanescente de quilombos ou residente em assentamentos de no
mínimo 70 (setenta) pessoas, respeitado o número máximo de equipes por município,
publicado em portaria específica.
2. ESF Modalidade 2: são as ESF implantadas em todo o território nacional que não se
enquadram nos critérios da Modalidade 1.
Os valores dos componentes do PAB variável para as ESF Modalidades I e II serão definidos
em portaria específica publicada pelo Ministério da Saúde. Os municípios passarão a fazer jus
ao recebimento do incentivo após o cadastramento das Equipes de Saúde da Família
responsáveis pelo atendimento dessas populações específicas no Sistema de Informação da
Atenção Básica (SIAB).
Agentes Comunitários de Saúde (ACS)
Os valores dos incentivos financeiros para as equipes de ACS implantadas são transferidos a
cada mês, tendo como base o número de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), registrados
no cadastro de equipes e profissionais do Sistema de Informação de Atenção Básica - SIAB, na
respectiva competência financeira.
318
Será repassada uma parcela extra, no último trimestre de cada ano, cujo valor será calculado
com base no número de Agentes Comunitários de Saúde, registrados no cadastro de equipes e
profissionais do Sistema de Informação de Atenção Básica - SIAB, no mês de agosto do ano
vigente.
O número máximo de ACS pelos quais o município e o Distrito Federal podem fazer jus ao
recebimento de recursos financeiros específicos será calculado pela fórmula: população IBGE/
400.
Para municípios dos estados da Região Norte, Maranhão e Mato Grosso, a fórmula será:
população IBGE da área urbana / 400 + população da área rural IBGE/ 280.
A fonte de dados populacionais a ser utilizada para o cálculo será a mesma vigente para
cálculo da parte fixa do PAB, definida pelo IBGE e publicada pelo Ministério da Saúde.
Equipes de Saúde Bucal (ESB)
Os valores dos incentivos financeiros para as Equipes de Saúde Bucal implantadas serão
transferidos a cada mês, tendo como base o número de Equipes de Saúde Bucal (ESB)
registrados no cadastro de Equipes e profissionais do Sistema de Informação de Atenção
Básica - SIAB, na respectiva competência financeira.
Farão jus ao recebimento dos incentivos financeiros referentes a Equipes de Saúde Bucal
(ESB), quantas equipes estiverem implantadas no SIAB, desde que não ultrapassem o número
existente de Equipes de Saúde da Família, e considerem a lógica de organização da Atenção
Básica - Saúde da Família.
São estabelecidas duas modalidades de financiamento para as ESB:
I - Equipe de Saúde Bucal Modalidade 1: composta por no mínimo 1 cirurgião-dentista e 1
auxiliar de consultório dentário;
II - Equipe de Saúde Bucal Modalidade 2: composta por no mínimo 1 cirurgião-dentista, 1
auxiliar de consultório dentário e 1 técnico de higiene dental.
Compensação de Especificidades Regionais
Os valores do recurso Compensação de Especificidades Regionais serão definidos em Portaria
Ministerial especifica para este fim.
A utilização dos recursos de Compensação de Especificidades Regionais será definida
periodicamente pelas CIBs.
A CIB selecionará os municípios a serem contemplados, a partir de critérios regionais, bem
como a forma de utilização desses recursos de acordo com as especificidades regionais e/ou
municipais de cada estado, a exemplo de sazonalidade, migrações, dificuldade de fixação de
profissionais, IDH, indicadores de resultados, educação permanente, formação de ACS.
Os critérios definidos devem ser informados ao plenário da CIT. No caso do Distrito Federal, a
proposta de aplicação deste recurso deverá ser submetida à aprovação pelo Conselho de
Saúde do Distrito Federal.
As Secretarias Estaduais de Saúde enviarão a listagem de municípios com os valores e o
período de transferência dos recursos pactuados nas CIBs ao Departamento de Atenção
Básica do Ministério da Saúde, para que os valores sejam transferidos do FNS para os FMS.
3 - REQUISITOS MÍNIMOS PARA MANUTENÇÃO DA TRANSFERÊNCIA DO PAB
Os requisitos mínimos para a manutenção da transferência do PAB são aqueles definidos pela
legislação federal do SUS.
319
O Plano de Saúde municipal ou do Distrito Federal, aprovado pelo respectivo Conselho de
Saúde e atualizado a cada ano, deve especificar a proposta de organização da Atenção Básica
e explicitar como serão utilizados os recursos do Bloco da Atenção Básica. Os municípios e o
Distrito Federal devem manter a guarda desses Planos por no mínimo 10 anos, para fins de
avaliação, monitoramento e auditoria.
O Relatório de Gestão deverá demonstrar como a aplicação dos recursos financeiros resultou
em ações de saúde para a população, incluindo quantitativos mensais e anuais de produção de
serviços de Atenção Básica, e deverá ser apresentado anualmente para apreciação e
aprovação pelo Conselho Municipal de Saúde.
Os valores do PAB fixo serão corrigidos anualmente mediante cumprimento de metas
pactuadas para indicadores da Atenção Básica. Excepcionalmente o não alcance de metas
poderá ser avaliado e justificado pelas Secretarias Estaduais de Saúde e pelo Ministério da
Saúde de maneira a garantir esta correção.
Os indicadores de acompanhamento para 2006 são:
I - Cobertura firmada pelo gestor municipal e do Distrito Federal para o ano anterior no Pacto
da Atenção Básica, para:
a) média anual de consultas médicas por habitante nas especialidades básicas;
b) proporção de nascidos vivos de mães com quatro ou mais consultas de pré-natal;
c) razão entre exames citopatológico cérvico-vaginais em mulheres entre 25 e 59 anos e a
população feminina nessa faixa etária; e
II - Cobertura vacinal da terceira dose de tetravalente em menores de um ano de idade maior
ou igual a 95%;
O Ministério da Saúde publicará anualmente, em portaria específica, os indicadores de
acompanhamento para fins de reajuste do PAB fixo.
4 - DA SOLICITAÇÃO DE CRÉDITO RETROATIVO
Considerando a ocorrência de problemas na alimentação do Sistema de Informação de
Atenção Básica - SIAB, por parte dos municípios e/ou do Distrito Federal, e na transferência
dos arquivos, realizada pelos municípios, o Distrito Federal e os estados, o Fundo Nacional de
Saúde - FNS/SE/MS poderá efetuar crédito retroativo dos incentivos financeiros a equipes de
Saúde da Família, a equipes de Saúde Bucal e a de Agentes Comunitários de Saúde, com
base em solicitação da Secretaria de Atenção à Saúde - SAS/MS.
Esta retroatividade se limitará aos seis meses anteriores ao mês em curso.
Para solicitar os créditos retroativos, os municípios e o Distrito Federal deverão:
I - preencher a planilha constante do Anexo III a esta Política, para informar o tipo de incentivo
financeiro que não foi creditado no Fundo Municipal de Saúde ou do Distrito Federal,
discriminando a competência financeira correspondente e identificando a equipe, com os
respectivos profissionais que a compõem ou o agente comunitário de saúde que não gerou
crédito de incentivo;
II - imprimir o relatório de produção, no caso de equipes de Saúde da Família, referente à
equipe e ao mês trabalhado que não geraram a transferência dos recursos; e
III - enviar ofício à Secretaria de Saúde de seu estado, pleiteando a complementação de
crédito, acompanhado da planilha referida no item I e do relatório de produção correspondente.
No caso do Distrito Federal, o ofício deverá ser encaminhado ao Departamento de Atenção
Básica da SAS/MS.
As Secretarias Estaduais de Saúde, após analisarem a documentação recebida dos
municípios, deverão encaminhar ao Departamento de Atenção Básica da SAS/MS solicitação
de complementação de crédito dos incentivos tratados nesta Portaria, acompanhada dos
documentos referidos nos itens I e II.
320
A Secretaria de Atenção à Saúde - SAS/MS, por meio do Departamento de Atenção Básica,
procederá à análise das solicitações recebidas, verificando a adequação da documentação
enviada, se houve suspensão do crédito em virtude da constatação de irregularidade no
funcionamento das equipes e se a situação de qualificação do município ou do Distrito Federal,
na competência reclamada, permite o repasse dos recursos pleiteados.
5 - DA SUSPENSÃO DO REPASSE DE RECURSOS DO PAB
O Ministério da Saúde suspenderá o repasse de recursos do PAB aos municípios e ao Distrito
Federal, quando:
I - Não houver alimentação regular, por parte dos municípios e do Distrito Federal, dos bancos
de dados nacionais de informação, a saber:
a) Sistema de Informações da Atenção Básica (SIAB) - para os municípios e o Distrito Federal,
caso tenham implantado ACS e/ou ESF e/ou ESB;
b) Sistema de Informações Ambulatorial - SIA;
c) Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM;
d) Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos -SINASC;
e) Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional -SISVAN;
f) Sistema de Informações de Agravos de Notificação - SINAN; e
g) Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações SIS-PNI.
Considera-se alimentação irregular a ausência de envio de informações por 2 meses
consecutivos ou 3 meses alternados no período de um ano.
II - Forem detectados, por meio de auditoria federal ou estadual, malversação ou desvio de
finalidade na utilização dos recursos.
A suspensão será mantida até a adequação das irregularidades identificadas.
5.1. Da suspensão do repasse de recursos do PAB variável
O Ministério da Saúde suspenderá o repasse de recursos dos incentivos a equipes de Saúde
da Família ou de Saúde Bucal ao município e/ou ao Distrito Federal, nos casos em que forem
constatadas, por meio do monitoramento e/ou da supervisão direta do Ministério da Saúde ou
da Secretaria Estadual de saúde ou por auditoria do DENASUS, alguma das seguintes
situações:
I - inexistência de unidade de saúde cadastrada para o trabalho das equipes e/ou;
II - ausência de qualquer um dos profissionais da equipe por período superior a 90 (noventa)
dias, com exceção dos períodos em que a contratação de profissionais esteja impedida por
legislação específica e/ou;
III - o descumprimento da carga horária para os profissionais das Equipes de Saúde da Família
ou de Saúde Bucal estabelecida nesta Política.
O Ministério da Saúde suspenderá o repasse de recursos dos incentivos, relativos aos Agentes
Comunitários de Saúde, ao município e/ou ao Distrito Federal, nos casos em que forem
constatadas, por meio do monitoramento e/ou da supervisão direta do Ministério da Saúde ou
da Secretaria Estadual de Saúde, ou por auditoria do DENASUS, alguma das seguintes
situações:
I - inexistência de unidade de saúde cadastrada como referência para a população cadastrada
pelos ACS e/ou;
II - ausência de enfermeiro supervisor por período superior a 90 (noventa) dias, com exceção
dos períodos em que a legislação eleitoral impede a contratação de profissionais, nos quais
será considerada irregular a ausência de profissional por e/ou;
III - ausência de ACS, por período superior a 90 (noventa) dias consecutivos, e/ou;
IV - descumprimento da carga horária estabelecida nesta Política, para os profissionais.
6 - DOS RECURSOS DE ESTRUTURAÇÃO
Na implantação das Equipes de Saúde da Família e de Saúde Bucal os municípios e/ou o
Distrito Federal receberão recursos específicos para estruturação das Unidades de Saúde de
cada Equipe de Saúde da Família e para Equipes de Saúde Bucal, visando à melhoria da infra-
321
estrutura física e de equipamentos das Unidades Básicas de Saúde para o trabalho das
equipes.
Esses recursos serão repassados na competência financeira do mês posterior à implantação
das equipes.
Caso a equipe implantada seja desativada num prazo inferior a 12 (doze) meses, contados a
partir do recebimento do incentivo de estruturação, o valor recebido será descontado de futuros
valores repassados aos Fundos de Saúde do Distrito Federal, do estado ou do município.
Em caso de redução do numero de Equipes de Saúde da Família ou de Saúde Bucal, o
município ou o Distrito Federal não farão jus a novos recursos de implantação até que seja
alcançado o número de equipes já implantadas anteriormente.
O Ministério da Saúde disponibilizará, a cada ano, recursos destinados à estruturação da rede
básica de serviços de acordo com sua disponibilidade orçamentária. A CIT pactuará os critérios
para a seleção dos municípios e/ou do Distrito Federal.
Para o ano de 2006 serão disponibilizados recursos aos municípios:
I - Que realizem residência médica em medicina de família e comunidade credenciada pelo
CNRM; e
II - Que em suas Unidades Básicas de Saúde recebam alunos de Cursos de Graduação
contemplados no PROSAUDE.
O Ministério da Saúde publicará portaria especifica com o montante disponibilizado, a forma de
repasse, a listagem de contemplados e o cronograma de desembolso.
Esses recursos serão transferidos fundo a fundo aos municípios que se adequarem a esses
critérios, e depositados em conta específica.
ANEXO I
AS ATRIBUIÇÕES DOS PROFISSIONAIS DAS EQUIPES DE SAÚDE DA FAMÍLIA, DE
SAÚDE BUCAL E DE ACS
As atribuições globais abaixo descritas podem ser complementadas com diretrizes e normas
da gestão local.
1 - SÃO ATRIBUIÇÕES COMUNS A TODOS OS PROFISSIONAIS:
I - participar do processo de territorialização e mapeamento da área de atuação da equipe,
identificando grupos, famílias e indivíduos expostos a riscos, inclusive aqueles relativos
aotrabalho, e da atualização contínua dessas informações, priorizando as situações a
seremacompanhadas no planejamento local;
II - realizar o cuidado em saúde da população adscrita, prioritariamente no âmbito da unidade
de saúde, no domicílio e nos demais espaços comunitários (escolas, associações,entre outros),
quando necessário;
III - realizar ações de atenção integral conforme a necessidade de saúde da população local,
bem como as previstas nas prioridades e protocolos da gestão local;
IV - garantir a integralidade da atenção por meio da realização de ações de promoção da
saúde, prevenção de agravos e curativas; e da garantia de atendimento da demanda
espontânea, da realização das ações programáticas e de vigilância à saúde;
V - realizar busca ativa e notificação de doenças e agravos de notificação compulsória e de
outros agravos e situações de importância local;
VI - realizar a escuta qualificada das necessidades dos usuários em todas as ações,
proporcionando atendimento humanizado e viabilizando o estabelecimento do vínculo;
VII - responsabilizar-se pela população adscrita, mantendo a coordenação do cuidado mesmo
quando esta necessita de atenção em outros serviços do sistema de saúde;
322
VIII - participar das atividades de planejamento e avaliação das ações da equipe, a partir da
utilização dos dados disponíveis;
IX - promover a mobilização e a participação da comunidade, buscando efetivar o controle
social;
X - identificar parceiros e recursos na comunidade que possam potencializar ações
intersetoriais com a equipe, sob coordenação da SMS;
XI - garantir a qualidade do registro das atividades nos sistemas nacionais de informação na
Atenção Básica;
XII - participar das atividades de educação permanente; e
XIII - realizar outras ações e atividades a serem definidas de acordo com as prioridades
locais.
2 - SÃO ATRIBUIÇÕES ESPECÍFICAS
Além das atribuições definidas, são atribuições mínimas específicas de cada categoria
profissional, cabendo ao gestor municipal ou do Distrito Federal ampliá-las, de acordo com as
especificidades locais.
Do Agente Comunitário de Saúde:
I - desenvolver ações que busquem a integração entre a equipe de saúde e a população
adscrita à UBS, considerando as características e as finalidades do trabalho de
acompanhamento de indivíduos e grupos sociais ou coletividade;
II - trabalhar com adscrição de famílias em base geográfica definida, a micro-área;
III - estar em contato permanente com as famílias desenvolvendo ações educativas,
visando à promoção da saúde e a prevenção das doenças, de acordo com o planejamento da
equipe;
IV - cadastrar todas as pessoas de sua microárea e manter os cadastros atualizados;
V - orientar famílias quanto à utilização dos serviços de saúde disponíveis;
VI - desenvolver atividades de promoção da saúde, de prevenção das doenças e de agravos, e
de vigilância à saúde, por meio de visitas domiciliares e de ações educativas individuais e
coletivas nos domicílios e na comunidade, mantendo a equipe informada, principalmente a
respeito daquelas em situação de risco;
VII - acompanhar, por meio de visita domiciliar, todas as famílias e indivíduos sob sua
responsabilidade, de acordo com as necessidades definidas pela equipe; e
VIII - cumprir com as atribuições atualmente definidas para os ACS em relação à prevenção e
ao controle da malária e da dengue, conforme a Portaria nº 44/GM, de 3 de janeiro de 2002.
Nota: É permitido ao ACS desenvolver atividades nas unidades básicas de saúde, desde que
vinculadas às atribuições acima.
Do Enfermeiro do Programa Agentes Comunitários de Saúde:
I - planejar, gerenciar, coordenar e avaliar as ações desenvolvidas pelos ACS;
II - supervisionar, coordenar e realizar atividades de qualificação e educação permanente dos
ACS, com vistas ao desempenho de suas funções;
III - facilitar a relação entre os profissionais da Unidade Básica de Saúde e ACS, contribuindo
para a organização da demanda referenciada;
IV - realizar consultas e procedimentos de enfermagem na Unidade Básica de Saúde e,
quando necessário, no domicílio e na comunidade;
V - solicitar exames complementares e prescrever medicações, conforme protocolos ou outras
normativas técnicas estabelecidas pelo gestor municipal ou do Distrito Federal, observadas as
disposições legais da profissão;
VI - organizar e coordenar grupos específicos de indivíduos e famílias em situação de risco da
área de atuação dos ACS; e
VII - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da
UBS.
323
Do Enfermeiro:
I - realizar assistência integral (promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos,
diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde) aos indivíduos e famílias na USF
e, quando indicado ou necessário, no domicílio e/ou nos demais espaços comunitários
(escolas, associações etc), em todas as fases do desenvolvimento humano: infância,
adolescência, idade adulta e terceira idade;
II - conforme protocolos ou outras normativas técnicas estabelecidas pelo gestor municipal ou
do Distrito Federal, observadas as disposições legais da profissão, realizar consulta de
enfermagem, solicitar exames complementares e prescrever medicações;
III - planejar, gerenciar, coordenar e avaliar as ações desenvolvidas pelos ACS;
IV - supervisionar, coordenar e realizar atividades de educação permanente dos ACS e da
equipe de enfermagem;
V - contribuir e participar das atividades de Educação Permanente do Auxiliar de Enfermagem,
ACD e THD; e
VI - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da
USF.
Do Médico:
I - realizar assistência integral (promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos,
diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde) aos indivíduos e famílias em
todas as fases do desenvolvimento humano: infância, adolescência, idade adulta e terceira
idade;
II - realizar consultas clínicas e procedimentos na USF e, quando indicado ou necessário, no
domicílio e/ou nos demais espaços comunitários (escolas, associações etc);
III - realizar atividades de demanda espontânea e programada em clínica médica, pediatria,
gineco-obstetrícia, cirurgias ambulatoriais, pequenas urgências clínico-cirúrgicas e
procedimentos para fins de diagnósticos;
IV - encaminhar, quando necessário, usuários a serviços de média e alta complexidade,
respeitando fluxos de referência e contra-referência locais, mantendo sua responsabilidade
pelo acompanhamento do plano terapêutico do usuário, proposto pela referência;
V - indicar a necessidade de internação hospitalar ou domiciliar, mantendo a responsabilização
pelo acompanhamento do usuário;
VI - contribuir e participar das atividades de Educação Permanente dos ACS, Auxiliares de
Enfermagem, ACD e THD; e
VII - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da
USF.
Do Auxiliar e do Técnico de Enfermagem:
I - participar das atividades de assistência básica realizando procedimentos regulamentados no
exercício de sua profissão na USF e, quando indicado ou necessário, no domicílio e/ou nos
demais espaços comunitários (escolas, associações etc);
II - realizar ações de educação em saúde a grupos específicos e a famílias em situação de
risco, conforme planejamento da equipe; e
III - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da
USF.
Do Cirurgião Dentista:
I - realizar diagnóstico com a finalidade de obter o perfil epidemiológico para o planejamento e
a programação em saúde bucal;
II - realizar os procedimentos clínicos da Atenção Básica em saúde bucal, incluindo
atendimento das urgências e pequenas cirurgias ambulatoriais;
III - realizar a atenção integral em saúde bucal (promoção e proteção da saúde, prevenção de
agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde) individual e coletiva a
todas as famílias, a indivíduos e a grupos específicos, de acordo com planejamento local, com
resolubilidade;
324
IV - encaminhar e orientar usuários, quando necessário, a outros níveis de assistência,
mantendo sua responsabilização pelo acompanhamento do usuário e o segmento do
tratamento;
V - coordenar e participar de ações coletivas voltadas à promoção da saúde e à prevenção de
doenças bucais;
VI - acompanhar, apoiar e desenvolver atividades referentes à saúde bucal com os demais
membros da Equipe de Saúde da Família, buscando aproximar e integrar ações de saúde de
forma multidisciplinar.
VII - contribuir e participar das atividades de Educação Permanente do THD, ACD e ESF;
VIII - realizar supervisão técnica do THD e ACD; e
IX - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da
USF.
Do Técnico em Higiene Dental (THD):
I - realizar a atenção integral em saúde bucal (promoção, prevenção, assistência e reabilitação)
individual e coletiva a todas as famílias, a indivíduos e a grupos específicos, segundo
programação e de acordo com suas competências técnicas e legais;
II - coordenar e realizar a manutenção e a conservação dos equipamentos odontológicos;
III - acompanhar, apoiar e desenvolver atividades referentes à saúde bucal com os demais
membros da equipe de Saúde da Família, buscando aproximar e integrar ações de saúde de
forma multidisciplinar.
IV - apoiar as atividades dos ACD e dos ACS nas ações de prevenção e promoção da saúde
bucal; e
V - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento
da USF.
Do Auxiliar de Consultório Dentário (ACD):
I - realizar ações de promoção e prevenção em saúde bucal para as famílias, grupos e
indivíduos, mediante planejamento local e protocolos de atenção à saúde;
II - proceder à desinfecção e à esterilização de materiais e instrumentos utilizados;
III - preparar e organizar instrumental e materiais necessários;
IV - instrumentalizar e auxiliar o cirurgião dentista e/ou o THD nos procedimentos clínicos;
V - cuidar da manutenção e conservação dos equipamentos odontológicos;
VI - organizar a agenda clínica;
VII - acompanhar, apoiar e desenvolver atividades referentes à saúde bucal com os demais
membros da equipe de saúde da família, buscando aproximar e integrar ações de saúde de
forma multidisciplinar; e
VIII - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da
USF.
325
ANEXO C – Mapas e Gráficos da Evolução da Implantação e
Implementação da Estratégia Saúde da Família no Brasil
Evolução da Implantação das Equipes Saúde da Família BRASIL, 1998/2005
1998 1999
2000
2001
2002 2003
2004 2005
326
2006
Situação de Implantação de Equipes de Saúde da Família,
Saúde Bucal e Agentes Comunitários de Saúde
BRASIL, FEVEREIRO/2007
Evolução do Número de Municípios com Equipes de Saúde da Família
Implantadas
BRASIL - 1994 – FEVEREIRO/2007
327
Meta e Evolução do Número de Equipes de Saúde da Família Implantadas
BRASIL - 1994 – FEVEREIRO/2007
Evolução da População Coberta por Equipes de Saúde da Família Implantadas
BRASIL - 1994 – FEVEREIRO/2007
Meta e Evolução do Número de Agentes Comunitários de Saúde Implantados
BRASIL - 1994 - FEVEREIRO/2007
Evolução do Número de Municípios com Agentes Comunitários de Saúde
Implantados
BRASIL - 1994 - FEVEREIRO/2007
Evolução da População Coberta por Agentes Comunitários de Saúde Implantados
BRASIL - 1994 - FEVEREIRO/2007
328
Evolução do Número de Equipes de Saúde Bucal
BRASIL - 2001 - FEVEREIRO/2007
Evolução da População Coberta por Equipes de Saúde Bucal
BRASIL - 2001 - FEVEREIRO/2007
Evolução do Percentual de Cobertura Populacional das ESF, Distribuído por Porte
Populacional
BRASIL - FEVEREIRO/2007
Evolução da Cobertura Populacional (%) de ACS, PSF e ESB
BRASIL - 2001 a FEVEREIRO/2007
Evolução dos Recursos Financeiros da Atenção Básica
BRASIL - 2000 - 2006
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Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
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