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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
DELEUZE E A HISTÓRIA: DO PENSAMENTO DO POSSÍVEL AO PENSAMENTO
DO VIRTUAL
LEONARDO DE MELO RODRIGUES
GOIÂNIA
2009
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DELEUZE E A HISTÓRIA: DO PENSAMENTO DO POSSÍVEL AO PENSAMENTO
DO VIRTUAL
Dissertação defendida no Programa de Pós-
Graduação em História da Faculdade de História
da Universidade Federal de Goiás como requisito
para obtenção do grau de Mestre em História.
Área de Concentração: Identidade, fronteira e
Culturas de Migração.
Orientador: Prof. Dr. Luis Sérgio Duarte da Silva
LEONARDO DE MELO RODRIGUES
GOIÂNIA
2009
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LEONARDO DE MELO RODRIGUES
DELEUZE E A HISTÓRIA: DO PENSAMENTO DO POSSÍVEL AO PENSAMENTO DO
VIRTUAL
Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História
da Universidade Federal de Goiás como requisito para obtenção do grau de Mestre em
História.
Área de Concentração: Identidade, fronteira e Culturas de Migração.
Orientador: Prof. Dr. Luis Sérgio Duarte da Silva
Aprovada em _______ de _______________ de ________.
Aprovada pela seguinte banca examinadora:
_________________________________________
Prof. Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva – Presidente da banca
Universidade Federal de Goiás
________________________________________
Prof. Dr. Eladio Constantino Pablo Craia
PUC-PR/ UNIOESTE-PR
________________________________________
Prof. Dr. Marlon Jeison Salomon
Universidade Federal de Goiás
Goiânia
2009
4
À Wanessa, com afeto
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao prof. Eladio Craia pela atenção e pela prontidão com a qual aceitou ao
convite de participar dessa banca de defesa.
Agradeço ao prof. Marlon, amigo desde os primeiros passos de meus estudos, que me
ensinou, entre outras coisas, a trabalhar seriamente: “nosso modo de ser na solidão da mesa de
estudos”.
Agradeço ao prof. Luis Sérgio, não somente pela [des]orientação, e sim também por
ter me ensinado, nos primeiros anos de graduação, que não estudo sem tesão, que é
trabalhando que salvamos nossa vida da “jumentice”.
Agradeço à minha família, José, Clarice, Camila e Emilia, pelo apoio nos momentos
cruciais.
Agradeço ao amigo Vinicius, companheiro de farra desde a juventude, que sempre
soube expressar uma palavra amiga. Agradeço também à família de meu compadre, Wisner,
Daniela, Kauã – meu afilhado – e o filho recém-nascido, que até hoje não conheci.
Agradeço, por fim, a todos os funcionários da E. M. Vitor Hugo Ludwig, onde
trabalho, que me proporcionam um ótimo ambiente de trabalho. Não posso deixar de
agradecer, em especial, aos meus alunos, que tanto contribuíram para meus aprendizados, ao
me fornecerem material humano de infindáveis pequenos devires.
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RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo elaborar uma relação entre o pensamento de Gilles
Deleuze e a ciência histórica. Para isso, partimos do conceito de realismo, tal como este foi
trabalhado pelo historiador Jacques Rancière. De acordo com este conceito, o plano de
pensamento da história atual é marcado por um niilismo, e, principalmente, por um
pensamento do possível. O pensamento do possível é uma determinação do acontecimento
histórico a partir de sua condição de possibilidade; uma subsunção do acontecimento ao
sistema de possibilidade de uma determinada época. É através deste pensamento do possível
que tentamos elaborar uma relação entre o pensamento de Deleuze e a ciência histórica.
que o pensamento deste autor nos fornece “linhas de fuga”, que desloca a história do
pensamento do possível. Todavia, antes dessa, um outra questão ainda requer a nossa atenção:
a crítica deleuzeana à história. Será que uma crítica radical e exclusiva à história no
pensamento deste autor? Após examinarmos esta questão, dando-lhe uma resposta negativa,
apresentamos alguns pontos da filosofia da diferença e da repetição, com o intuito de esboçar
a singular concepção de história contida nesse sistema. A hipótese que lançamos aqui é a de
que esta noção de história não está calcada num pensamento do possível, e sim num
pensamento do virtual. Nesse sentido, ao invés de estar subsumida a uma ontologia negativa
do acontecimento e a um tempo do anti-acontecimento, elementos que correspondem ao
pensamento do possível, a noção de história produzida pela filosofia da diferença e da
repetição é uma história que possui uma ontologia afirmativa do acontecimento e um tempo
que é o tempo do acontecimento.
Palavras chaves: realismo, Deleuze, devir, história e filosofia da Diferença.
7
ABSTRATC
This dissertation aims to establish a relation between the thought of Gilles Deleuze
and historical science. We started from the concept of realism, as it was worked by the
historian Jacques Rancière. According to this concept, the thought of the current story is
marked by Nihilism, and especially by the thought of the Possibility. The thought of the
possibility is a determination of the Historical event from its possibility’s, a subsumption of
the event to the possibility system of a certain time. It is through the possibility thought that
we try to elaborate a relation between the thought of Deleuze and historical science. The
thought of this author gives us "lines of flight or fight", which shifts the history of thought as
possible. However, before that, one another issue still requires our attention: the critique
Deleuzian criticism to the history. Is there a radical and exclusive critique of the history in the
thinking of this author? After examining this issue, giving a negative answer, we present some
points from the philosophy of Difference and Repetition, in order to outline the design of
singular conception of history in this system. The hypothesis here is that this notion of history
is not constructed on the thought of possibilities but in the thought possible, but in the thought
of the virtual. In this sense, rather than being subsumed in a negative ontology of the event
and a time of anti-event, elements that correspond to the thinking of the possible, the notion of
history produced by the philosophy of Difference and Repetition is a history that has an
affirmative ontology of the event and a time that is the time of the event.
Key words: realism, Deleuze, becoming, history and philosophy of difference.
8
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO............................................................................................................09
CAPÍTULO PRIMEIRO: O REALISMO E A HISTÓRIA..............................................31
O conceito de realismo como expressão do niilismo contemporâneo............................................31
Primeiro axioma: a identificação do tempo com o possível...........................................................33
Dois efeitos do pensamento do possível: os enunciados do fim e o revisionismo negacionista....34
Segundo axioma do realismo: a identificação do tempo com crença.............................................37
Terceiro axioma do realismo: a identificação do real com o realismo...........................................40
A supressão do acontecimento: o tempo do anti-acontecimento....................................................41
CAPÍTULO SEGUNDO: O DEVIR E A HISTÓRIA......................................................49
Introdução a irredutibilidade do devir à história...............................................................49
O devir...............................................................................................................................52
Da distinção entre o devir e a história...............................................................................68
Um encontro singular: reviravoltas no pensamento de Deleuze?.....................................76
CAPÍTULO TERCEIRO: A FILOSOFIA DA DIFERENÇA E DA REPETIÇÃO E A
HISTÓRIA.......................................................................................................................84
A filosofia da diferença e da repetição............................................................................86
Do pensamento do possível ao pensamento do virtual....................................................87
A ontologia afirmativa do acontecimento........................................................................92
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................101
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................102
9
APRESENTAÇÃO
Não se poderá recusar a presença de um esforço bem deleuzeano neste trabalho. Trata-
se de uma tentativa de colocar o pensamento em movimento, de instalá-lo no perpétuo
movimento de seu exercício, no movimento de seu teatro: o teatro do pensamento nômade.
Encenar este teatro é agenciar a tênue linha fronteiriça entre a criação e a não criação. Visto
que a linha que estabelece essa fronteira, está sempre em movimento. O que foi criativo
outrora, pode não mais sê-lo atualmente. Bachelard e Canguilhem nos ensinam que
devemos jogar com o erro uma relação positiva: é preciso analisá-los e valorizá-los. Para
François Delaporte, os erros possuem teratologias próprias
1
. Os monstros efetivos produzidos
pelos erros contêm uma inesgotável reserva de impensado. E esta afirmação do erro como
imanente ao pensamento, destaca uma idéia presente na filosofia francesa contemporânea. Os
erros devem ser revistos, eles não pertencem fixamente ao reino do não-pensamento.
pensamento nos erros. Através dos erros podemos construir um aprendizado, podemos extrair
uma diferença, uma novidade. Segundo o pensamento de Deleuze, é somente cruzando,
descruzando e recruzando a linha que o pensamento cria algo de novo, que se põe em
movimento, que atualiza um pouco de impensado, e que faz ver o que era invisível. E essa
atividade não deixa de ser perigosa, que, efetivamente, é capaz de construir, destruir e
reconstruir vidas, saberes, culturas e povos. Esta atividade perigosa, a aventura do
pensamento, não deixa de se mostrar um tanto apaziguada e silenciada em nossa
contemporaneidade.
A razão deste esforço para obstruir o pensamento não deve ser creditada, conforme
uma tese difundida no senso comum, ao estado atual do desenvolvimento tecnológico e
capitalístico. Para Deleuze, não a técnica é inerente aos agenciamentos coletivos e ao
pensamento, como também o capitalismo não é exclusivamente negativo. O que o capitalismo
promove é uma desterritorialização, relativa ou absoluta de acordo com o caso, dos fluxos
sociais e do desejo. Com efeito, a razão da dificuldade em trabalhar o pensamento não diz
respeito à técnica ou ao capitalismo, mas, sobretudo “porque se montou todo um sistema de
‘aculturacão’ e de anti-criação próprio aos países desenvolvidos. É bem pior que uma censura.
1
“Teratologias: os jogos entre o verdadeiro e o falso”. Mesa redonda realizada com François Delaporte, em
razão de suas conferências, no II Simpósio Internacional de História, ocorrido na Universidade Federal de Goiás,
Goiânia, outubro de 2005.
10
A censura provoca efervescências subterrâneas, mas a reação quer tornar tudo impossível
2
.
Portanto, é esta reação que procura silenciar e obstruir a emergência do pensamento na
atualidade. E nós brasileiros bem sabemos, no que concerne à criação artística em particular, o
quanto uma censura pode trazer à tona novas resistências e criações, o que já não ocorre numa
época de “liberdade de opinião” como a nossa atual.
Não obstante os entraves que cessam o movimento e as amarras que tentam impedir a
emergência do novo e do impensado, atuaremos tal como os inúmeros personagens do teatro
da diferença deleuzeano, motivados pelo élan de colocar o pensamento em movimento, ou
pelo menos, dar uma chacoalhada nele. Para tal, elaboramos uma relação positiva entre o
pensamento de Gilles Deleuze e a ciência histórica.
É certo que essa relação não se encontra dada no pensamento de Deleuze. Aliás, muito
pelo contrário, em várias passagens da sua obra, e também segundo problemas específicos que
ela enfrenta em sua démarche, ao invés de identificarmos uma adesão às coordenadas da
ciência histórica, o que vemos é uma clara pretensão de constituir um domínio singular, um
domínio que não se assemelha aos pressupostos adotados pelos historiadores no momento de
delimitar o objeto da história. Tal questão será enfatizada mais a frente, todavia podemos
sugerir de início, que este domínio singular, e os desvios que ele institui, não provocam de
modo algum destruições negativas ou castrações da história. Ao lidar com esta questão,
acreditamos que a ciência histórica sai fortalecida, enriquecida, e esse enriquecimento é o que
procuramos aqui apresentar como hipótese de trabalho. E, como um apontamento inicial para
o motivo da positividade do trabalho acreditamos que essa relação é positiva na medida em
que o pensamento deste autor deflagrará um enriquecimento do ofício do historiador. Pois, as
críticas, as reversões, enriquecem as ciências na exata medida em que não permanecem na
negatividade da exclusão, e sim quando são incorporadas no seio destas ciências, fazendo com
que algo de diferente surja, com que o pensamento coloque-se em movimento. E no nosso
caso em particular, essa atividade é enriquecedora justamente porque acrescenta à história
uma dimensão a mais, o virtual.
O primeiro problema deste trabalho é pensar de quais maneiras podemos trazer ao
corpus da história o pensamento deleuzeano. Que problemas atuais, no interior desta ciência,
o pensamento deleuzeano poderia suscitar e dar corpo? Que deslocamentos, inversões,
2
“Entrevista sobre Mille Plateaux”. In: DELEUZE, G. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1992, p. 39. Grifo nosso.
11
rupturas, descontinuidades e reversões, o pensamento de Deleuze poderia propagar na ciência
histórica? Que novas invenções historiadoras esse pensamento poderia levar a cabo na
história?
No decorrer da pesquisa, o pensamento de Deleuze apresentou-nos uma relação não
apenas crítica, mas também paradoxal com a história. Uma relação paradoxal porque é
próxima e distante ao mesmo tempo. Próxima porque noções, conceitos e temas consagrados
à história, foram inúmeras vezes objetos de estudo para Deleuze, levando-o a percorrer vários
problemas imbricados na história ou bastante próximos a ela. Distante porque o modo pelo
qual ele produzia seus conceitos, o levava a domínios pouco freqüentados por historiadores. E
não é só: a distância que Deleuze põe em jogo, não é simplesmente um diferir de olhar sobre
um mesmo objeto, um caminhar distinto para uma mesma solução, um modo semelhante de
abordar um outro objeto. Uma primeira razão da distância se porque, em sua “usina” de
pensamento, Deleuze passou por campos de saber heterogêneos como filosofia, psicanálise,
literatura, história das ciências, etnologia, geologia, biologia, pintura, cinema e outros.
Através dessas incursões, Deleuze travava com cada campo de saber alianças singulares. E,
em cada aliança feita, uma nova disposição dos materiais era requerida, e uma nova
problematização era visada. E quando eram postas problematizações de cunho histórico, estas
eram postas segundo problemas específicos, sempre em variação contínua. Ou seja, cada vez
que investia as noções, os objetos e os temas históricos, Deleuze os organizava numa nova
configuração, de acordo com o campo de saber em questão e também de acordo com os
problemas que ali colocava. Por isso, uma dificuldade na sistematização do pensamento de
Deleuze. Nele tudo é retomado, modificado, ganha ou perde dimensões. E essa dificuldade
não diz respeito apenas aos problemas históricos, ela existe devido a uma característica
própria a esse pensamento: a sistematicidade imanente ao pensamento de Deleuze é aberta,
ela quer fugir por todos os lados. É nesse sentido que podemos ver a distância que há, por
exemplo, entre seus estudos sobre duração e memória em Bergson, e sua posterior noção de
devir presente no livro Mil Platôs. Deleuze ousou ser um mestre da repetição que produz
diferenças. Mesmo retomando os “mesmos” conceitos, ele os fazia variar, havia sempre algo
de novo emergindo do retorno.
Outro aspecto dessa distância, é que sempre que este autor tratou de problemas, como
o tempo e o acontecimento, e conceitos históricos, como o nomadismo e a formação dos
Estados, o fez sem entrar em ressonância com o modelo de pensamento estabelecido pelo
12
discurso dos historiadores. Deleuze tratou de problemas e questões que recortavam o plano de
ação da ciência histórica sem submetê-los aos preceitos fundamentais da ciência histórica,
abrindo na problemática histórica um outro modo de pensar não apenas o temporal e o a-
histórico, mas de como pensar o próprio acontecimento
3
. E isso não deixa de abrir vias
insólitas, caminhos a desbravar. É como se Deleuze colocasse os pressupostos da história sob
um outro plano, como se os fizesse variar num processo de devir do pensamento,
multiplicando as dimensões do acontecimento. Eis o porquê de a relação ser próxima e
distante: mesmo quando investia sobre problemas que recortavam o saber histórico, o
caminho feito para explorá-los, o modo de pensamento implícito aí, era completamente outro.
Daí, toda uma multiplicidade de problemas abrirem-se ao historiador
4
.
Por hora, para lidar com a multiplicidade de vias abertas por essa relação paradoxal,
uma dupla hesitação inicial nos ajudará a precisarmos o recorte: por que a história? Por que
Deleuze?
Aparentemente, pôr aqui a questão “por que a história?” possui uma resposta quase
imediata: trata-se de um texto vinculado a uma instituição histórica. Entretanto, colocada de
uma perspectiva inerente ao próprio saber histórico, esta questão surge de maneira menos
simplória. Ela deve ser lida como: o que passa atualmente no discurso histórico que traz
problemas ao próprio pensamento histórico?
3
Sobre a noção de acontecimento, é preciso dizer algumas coisas para evitarmos uma confusão. O pensamento
filosófico de Deleuze nos apresenta uma singular noção de acontecimento. Inclusive, podemos dizer que sua
própria filosofia é uma filosofia do acontecimento. Como ele entende o acontecimento, e o alcance deste em sua
filosofia, veremos no decorrer deste trabalho. Por ora, salientamos isso, para dizermos que o acontecimento,
conforme é trabalhado por Deleuze, não é idêntico ao acontecimento histórico, bastante falado na disciplina
histórica. Entretanto, o conceito de acontecimento de Deleuze não exclui sua dimensão histórica. Aliás, o que
Deleuze faz é incorporar ao acontecimento histórico, na sua profunda materialidade, um efeito de superfície
imaterial. Isto é, à dimensão material de acontecimento, Deleuze acrescenta uma outra dimensão: o imaterial e o
virtual. Por este motivo, por se tratar de um acréscimo de dimensão que não deixa de introduzir um desvio de
todo o sentido desta noção e não de uma exclusão radical, não iremos diferenciar graficamente as distintas
atribuições ao acontecimento, mas prevenimos de antemão os vários usos condizentes a esta noção.
4
O pensamento de Deleuze foi muito pouco explorado por historiadores. Outras disciplinas, como a filosofia, a
psicologia, o cinema, e a pedagogia recentemente, foram mais sensíveis à singularidade deste pensamento. Mas
um historiador que foi bem sensível ao pensamento de Deleuze. Jacques Rancière, além de produzir textos
sobre a estética, sobre o conceito de literatura presente na obra deste autor e também sobre as imagens do cinema
deleuzeano, incluiu em sua economia de pensamento, conceitos oriundos de Deleuze. Sua contribuição, como
veremos, é muito relevante para a elaboração deste trabalho. Sobre a estética deleuzeana, cf. RANCIÈRE, J.
“Existe uma estética deleuzeana?”. In: ALLIEZ, E. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Trad. Ana Lúcia de
Oliveira. São Paulo: 34, 2008, p. 505-516; sobre o conceito de literatura, cf. o texto “Deleuze e a literatura”,
apresentado nos «Encontros Internacionais Gilles Deleuze», no Colégio Internacional de Estudos Filosóficos
Transdisciplinares, na UERJ, nos dias 10, 11 e 12 de Junho de 1996. Este texto está disponível em:
http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga12/matraga12ranciere.pdf. Sobre as imagens do cinema deleuzeano,
cf. RANCIÈRE, J. “De uma imagem à outra? Deleuze e as eras do cinema”. Texto disponível em
http://www.dossie_deleuze.blogger.com.br/.
13
O historiador Jacques Rancière, num texto intitulado “Os enunciados do fim e do
nada”, remete a um niilismo contemporâneo que atravessa o pensamento histórico
5
. É
comumente sabido que, ao longo do século XX, foram várias as transformações que tiveram
efeitos no campo da ciência histórica, mudanças capazes de pô-la em constante revisão de
seus pressupostos. A lista dessas mudanças é enorme: da história dos príncipes a uma história
dos anônimos, de uma história intelectual a uma história das mentalidades, de uma história
dos grandes homens a uma história serial, de uma história social a uma história cultural, de
uma história das elites a uma história das populações subalternizadas, de uma história
marxista a uma história dos grupos minoritários, isso para mencionar somente algumas das
mudanças. E essas mudanças, que reformaram o campo da história, não a conduziram no fim
do século XX a um lugar confortável no campo dos saberes. Pelo contrário, a história se
encontra marcada por um certo mal-estar. E este mal-estar não se deve às liquidações “pós-
modernas” da história, que tentaram uma investida contra ela, ao transformá-la em literatura.
Em defesa da história, vários historiadores expuseram suas convicções adversas à tese “pós-
moderna”. E um extenso debate foi travado com esta pretensão
6
. Mas não é daí que provém o
mal-estar. Este invoca, sobretudo, um determinado niilismo. O mal-estar ou o niilismo,
segundo Rancière, deriva do estatuto atual do pensamento histórico, da crença em nossa época
acerca da racionalidade constituinte da história. Uma racionalidade, um modo de pensar, que
vai a contramão da efetividade do pensamento.
Na história impregnada de niilismo, o mal-estar provém da subtil incapacidade dessa
disciplina em refutar o argumento negacionista, o argumento que afirma a inexistência do
holocausto. E para suprir esta insuficiência da história, foi preciso a intervenção da instância
do Direito, tornando proibido por lei a negação do holocausto. Em toda parte, países
aprovaram leis que proíbem afirmar a inexistência do holocausto. Estas leis até poderiam
5
RANCIÈRE, J. “Enunciados do Fim e do Nada”. IN: Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de
Janeiro: ed. 34, 1995, p. 227-252.
6
Acerca deste debate, podemos situar o pensamento de Rancière numa posição bem singular. Devido a isso, vale
mencionar uma passagem na qual ele aborda a relação entre a história (o real) e a literatura (a ficção), que
uma nova alternativa para esse debate. Segundo Rancière, “o real precisa ser ficcionado para ser pensado. Essa
proposição deve ser distinguida de todo discurso - positivo ou negativo - segundo o qual tudo seria “narrativa”,
com alternâncias entre “grandes” e “pequenas” narrativas. A noção de “narrativa” nos aprisiona nas oposições do
real e do artifício em que se perdem igualmente positivistas e desconstrucionistas. Não se trata de dizer que tudo
é ficção. Trata-se de constatar que a ficção da era estética definiu modelos de conexão entre apresentação dos
fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção (...) A
política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das
imagens, das relações entre o que se e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer”. Grifo do autor.
Ver: RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. Trad. Monica Costa Netto. São Paulo: EXO e 34, 2005, p. 58 e 59.
14
parecer um incidente insignificante para a ciência histórica. Um ínfimo fenômeno acidental no
curso de uma ciência sólida. Uma tentativa de reparação social para um genocídio em massa.
Entretanto, ao nos determos com mais atenção sobre este incidente, podemos ver que ele toca
em um ponto específico da racionalidade historiadora. Rancière mostra que a incapacidade da
história em refutar o revisionismo negacionista já que foi preciso que o Direito, um saber
exterior à história, mostrasse sua força de “persuasão” se porque, tanto o argumento
pseudocientífico dos revisionistas quanto a crença historiadora inflacionada de niilismo,
situam-se como forma de pensamento num mesmo plano-modelo de crença: o realismo.
Por ora, faremos apenas apontamentos rápidos acerca deste plano de pensamento, que
retomaremos mais adiante. De início, devemos esclarecer que o realismo, como plano
específico da história, não se confunde com o conceito de realismo literário. O realismo
literário se define como um estilo de escrita, que procura dar ênfase ao retrato fiel da
realidade. Por conseguinte, o conceito de realismo literário pode ser tomado no sentido de um
profundo apego à “realidade”, às coisas vistas. Através desse apego à realidade, ao real das
coisas, o realismo literário procura compor um estilo de escrita que visa representar, o mais
fielmente possível, os traços constitutivos do real, evidenciando seus detalhes mais
particulares. Já o realismo, tomado enquanto um conceito que remonta ao modo de
pensamento constituinte da história, é a liquidação do real. O conceito de realismo remete a
uma investida histórica que liquida o real da seguinte forma: só é real aquilo que é possível de
ser argumentado logicamente como existente. Ou seja, o realismo, como plano específico da
história, é a afirmação de que só o que é possível de ser argumentado conforme critérios
lógicos e uma lógica advinda de um pensamento representativo é que pode atingir ao
estatuto do existente, do verídico, e assim, do real. No sentido proposto por Rancière, e
utilizado aqui, o realismo é a subsunção do saber histórico ao possível. E os critérios lógicos
que atuam como fundamentos do possível querem colocar a história numa espécie de situação
comunicativa consensual, cujo sentido é o de assentar o saber histórico sob as bases do
possível. E assim, as bases do possível devem operar de maneira que regulem o que pode ser
dito como real-possível. A história-problema, nesse sentido, é a que coloca os problemas
históricos a partir do pensamento do possível.
Pode-se, de toda forma, pensar que a situação comunicativa consensual instaurada
pelo realismo fosse a ideal, porque seria mais justa e racional. Nela, os sujeitos do saber
defenderiam seus argumentos inter-subjetivamente, prevalecendo os argumentos que melhor
15
demonstram a possibilidade de solução de um determinado problema. E nessa perspectiva, os
critérios que devem estabelecer os limites do possível, mantém com o tempo uma relação
precisa. Segundo o realismo, é o tempo que deve fornecer os critérios lógicos que permitem
ou não, levantar a possibilidade de uma assertiva. Ou seja, o realismo, ao instaurar os critérios
lógicos que determinam o existente, identifica o real com o tempo. Assim, pode ser real
existente aquilo que é possível segundo o seu tempo. É isso o que está em jogo no caso
Rabelais. Rabelais não poderia ser um descrente porque seu tempo não permitia que ele
pensasse assim. Portanto, o que esta situação comunicativa racional, esta espécie de consenso
geral fundado pelo realismo consuma, é um processo de identificação do real com o tempo.
Dessa forma identificado, o real remete ao possível, ao sistema de possibilidade de uma
época. Esta subordinação da história ao sistema de possibilidade, ao pensamento do possível,
é a fundação de um modo de pensamento específico na história. O possível operará como o
modelo a ser seguido e executado, como o programa da história. A lógica realista, a
argumentação fundada no possível, é o modelo que dita o verdadeiro e o falso no interior
dessa ciência. O pensamento do possível encontra total respaldo no postulado do anacronismo
histórico, o pecado maior da história. O erro do anacronismo funda a validade do pensamento
do possível, que junto ao erro, devemos situar tudo aquilo que é impossível de ser dito em
relação aos fenômenos históricos, tudo aquilo que é impossível de ter existido segundo o seu
tempo. O anacronismo estabelece uma ontologia negativa do acontecimento, pois a prova
ontológica que ele procura demonstrar, a possibilidade de existência de um acontecimento em
conformidade com o tempo, é um raciocínio que, no limite, trata de negar o acontecimento, de
remetê-lo às estruturas de seu tempo, ao pensamento do possível.
Todavia, um problema é: será que a história se reduz a um formalismo lógico? Isto é,
será que o realismo, ao introduzir os critérios lógicos da ciência histórica a partir de uma
identificação do real com o sistema de possibilidade de uma determinada época, não estaria
deixando de lado uma relevante dimensão histórica? Será que o modelo do possível, apoiado
numa ontologia negativa, deve atuar como o modo de pensamento histórico por excelência?
Um acontecimento, o objeto da história, reduzido às suas condições de possibilidade, seria
ainda um acontecimento? Será que um pensamento do idêntico, que procede por
identificações, seria capaz de afirmar o acontecimento? Contrariando isso, Rancière mostra
que o pensamento do possível, conforme apresentado pelo conceito de realismo, é o tempo do
anti-acontecimento. Subsumido ao possível, o acontecimento é veementemente negado. Visto
16
que, reduzir o acontecimento às suas condições de possibilidade, é impedir seu advento, isto
é, torná-lo impossível.
Posto isso, pensamos ser em relação ao problema do realismo, da racionalidade
historiadora do possível e do tempo anti-acontecimento onde podemos inscrever a
positividade do pensamento de Deleuze acerca da história. A racionalidade do real-possível,
do tempo que nega o acontecimento, grosso modo, é o modo de pensamento pelo qual a
história hoje se legitima. Em termos utilizados por Deleuze, o tempo do anti-acontecimento é
a imagem de pensamento que a história não cessa de produzir de si mesma, e também, uma
imagem representativa, já que fundada sobre o pensamento do idêntico, do mesmo. Em
virtude disso, não foi senão Deleuze, quem intentou liberar o pensamento do idêntico, do
mesmo, a fim de executar um pensamento sem imagem, um pensamento da diferença? Tendo
isso em vista, após delinear o plano no qual se encontra a história, chega o momento de
respondermos àquela outra hesitação inicial: por que Deleuze?
Sobre a questão “por que Gilles Deleuze?”, permeia um aparente impasse. Toda
dificuldade reside na pretensão de relacionar à história um autor que não somente é exterior
aos discursos históricos tradicionais, mas sim um filósofo. A ciência histórica, em sua escrita
oitocentista dos mestres fundadores, buscou devir ciência se distanciando das especulações
filosóficas caras às Filosofias da História. Abstendo-se de questões ontológicas e metafísicas,
a clássica escola histórica delimitou seus objetos fundamentais nos estrondosos
acontecimentos dos grandes homens, segundo uma noção materialista do fato histórico. Ela
assinalou o domínio da história, optando pelo peso material dos documentos ligados a realeza
política e a proeminentes personagens políticos, apostando na neutralidade subjetiva do
historiador no momento de escrita da história contida nos documentos, implicando um
mecanismo explicativo do acontecimento histórico, baseado em termos de causas e de efeitos
decorrentes de um tempo linear e único. Sem dúvida, a situação atual da ciência histórica está
bem além de suas aporias condizentes ao período de sua constituição no século XIX. Todavia,
não é raro, ainda hoje, encontrarmos historiadores que afugentam as elaborações filosóficas
do interior da história. Para eles, o discurso filosófico se situa aquém ou além das incursões
históricas, pois, ou a filosofia é vista como a confecção de um sistema de pensamento,
descolado da realidade dos fatos, que não representa o espírito da época em sua ótica mais
geral, sendo assim apenas abstrações desencarnadas produzidas pelas Filosofias da História.
Ou a filosofia é vista, seguindo o filão fundado por Hegel, como o lugar da manifestação
17
direta do desenvolvimento do Espírito humano rumo a sua realização total, tal como preza a
história filosófica de Hegel
7
. A manutenção da distância entre história e filosofia foi reforçada
pela escola histórica dos Annales. Os analistas trataram de consolidar o campo da história bem
distantes das, agora então caducas, Filosofias da História e, também, das reduções temporais
realizadas pela escola histórica oitocentista. A escola dos Annales buscou edificar os
parâmetros metodológicos da história em consonância com os critérios de cientificidade
adotados pelas ciências sociais. Disciplinas como a geografia, a demografia, a estatística, a
antropologia, a psicologia e a sociologia, foram incorporadas no interior da ciência histórica.
E cada vez mais, a história assentou a racionalidade do discurso histórico em consonância
com estas disciplinas, em detrimento da filosofia.
Todavia, não foi somente a história que passou por transformações internas. A própria
filosofia mudou muito desde as antigas Filosofias da História e desde Hegel
8
. Atualmente,
com efeito, a filosofia não partilha o mesmo plano que o hegelianismo e muito menos a
história é a realização do Espírito humano. A relação entre a filosofia e a história não se
resume sob a figura da história da filosofia, pelo menos não na sua forma clássica e
tradicional, ou sob a forma da história filosófica. Estas duas disciplinas, assim entendidas,
estão comprometidas com uma noção clássica da filosofia. E foi sob estas duas formas, que os
historiadores buscaram eliminar do saber histórico a contaminação filosófica. Isto é, a história
da filosofia, entendida como a reconstituição de um sistema de pensamento via exame
categórico, e a história filosófica, entendida como a manifestação universal do Espírito
Humano, atrelam-se a uma concepção clássica da filosofia, a uma filosofia que, em certa
medida, carece de atualidade, a uma filosofia imune às atuais transformações no próprio
discurso filosófico. Tanto numa quanto na outra, coloca-se em questão uma filosofia
vinculada a programas universais e representativos: num caso, a realização universal da Razão
7
Foi o historiador Roger Chartier quem condensou sob tais rubricas a relação entre a filosofia e a história. Sobre
isso, cf. CHARTIER, Roger. A história cultural. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: DIFEL, 2002, capítulo
2, “O passado composto. Relações entre filosofia e história”, p. 69-89.
8
Devemos mencionar aqui que muitos filósofos assumiram um distanciamento profundo em relação às teses
hegelianas. Desde Nietzsche eles podem ser encontrados. E a filosofia francesa foi atravessada, no século XX,
por um anti-hegelianismo. Vale ressaltar também que são inúmeras as críticas feitas por Deleuze à Hegel. Pode-
se dizer que, mais que um anti-hegelianismo, o pensamento deleuziano é não-hegeliano; situa-se num outro
espaço que o constituído pelas figuras de Hegel. Sobre a relação de Deleuze e o anti-hegelianismo, cf. HARDT,
M. Gilles Deleuze: um aprendizado em filosofia. Trad. Sueli Cavendish. São Paulo: Ed. 34, p. 12. Devemos
ainda acrescentar que a filosofia da diferença e da repetição, aponta em Hegel um falso movimento do
pensamento, cf. DELEUZE, G. Diferença e Repetição.edição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 2006, p. 28-32.
18
humana, e no outro, a representação da história do desenvolvimento progressivo dos sistemas
filosóficos.
À margem dessa situação, é preciso situar uma determinada corrente de reflexão
historiográfica, que retomando os problemas epistemológicos da história, instalou-se na
problematização acerca dos fundamentos constitutivos da ciência histórica. Por ser uma teoria
do conhecimento histórico, o campo da teoria da história propõe um conjunto de
questionamentos que incidem sobre a constituição dos fundamentos da racionalidade dessa
ciência. Um autor que elaborou uma teoria da história altamente sistematizada foi Jörn Rüsen.
Rüsen erige um sistema racional que fundamenta, em todos os domínios, as etapas incluídas
na produção do saber histórico, desde as motivações conscientes, os interesses e as funções de
orientação existencial, às formas de apresentação dos resultados obtidos através das pesquisas
históricas, passando pelas perspectivas e regras da pesquisa empírica. A esse esforço de
sistematização, o autor atribui o nome de matriz disciplinar
9
.
No campo da teoria da história, a filosofia foi manejada no sentido de legitimar os
critérios fenomenológicos, metodológicos e epistemológicos que permitem fazer da história
uma ciência racional. Nesse campo está presente uma noção de filosofia da história, que não
atualiza diretamente o propósito especulativo comum às antigas Filosofias da História. É
consabido que até mesmo o historicismo alemão, escola crítica em franco ataque às Filosofias
especulativas da História, possuía e operava sobre uma determinada noção da filosofia da
história. E desde o movimento dos Annales, essa questão havia sido levantada. Braudel
censurava no historicismo alemão uma filosofia da história calcada por demais no tempo curto
do evento, e conseguintemente referida a uma concepção unitária do tempo social. Além
disso, o século XX produziu filosofias da história de caráter não especulativo. Para citar
somente dois exemplos, podemos aludir ao caso da filosofia materialista da história de Walter
Benjamim e ao caso da filosofia da história contingencial e imanente, tal como a elaborada
por Deleuze e Guatarri em O Anti-Édipo e continuada em Mil Platôs
10
. Todavia, se o campo
da teoria da história propõe um outro modo de pensar a filosofia da história e uma incursão à
9
RÜSEN, J. Razão Histórica. Trad. Estevão Martins. Brasília: UNB, 2001, p. 35.
10
Sobre a filosofia da história de Deleuze e Guatarri, seu caráter contingencial, imanente e múltiplo,
particularmente cf. DELEUZE, Gilles & GUATARRI Felix. O Anti-Édipo. Trad. Joana Varela e Manoel
Carrilho. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982, o capítulo “Bárbaros, Selvagens e Civilizados”; e também a análise
feita por GOLDMAN, Márcio. “O que podemos fazer com Selvagens, Bárbaros e Civilizados”. IN: ROLNIK,
Suely e PELBART, Peter Pál. Cadernos de Subjetividades (org.) por. Vol. I. São Paulo: Puc-SP, 1993. Em Mil
Platôs, particularmente, cf. DELEUZE, G. & GUATARRI Felix. Mil Platôs. Vol. V. Trad. Peter Pál Pelbart e
Janice Cafaia. São Paulo: 34, 1997, Platô 13: “Aparelho de Captura”, p. 111-178.
19
filosofia, ele o faz segundo uma pretensão de fundar os princípios epistemológicos dessa
ciência.
Pelo que foi dito acima acerca da teoria da história, aparentemente, não nos faltam
motivos para situarmos o nosso trabalho na esteira desse campo, que ele oferece uma
abordagem diferenciada da filosofia e nos permite, de acordo com sua perspectiva, pensar as
obras de Deleuze na história. Assim, segundo esse campo, utilizaríamos Deleuze para fundar
uma epistemologia da história. Isso parece fazer sentido ainda mais porque aludimos ao
problema do conceito de realismo, que aparenta ser um problema de fundamentação da
racionalidade do saber histórico. Mas, se levarmos a sério o pensamento de Deleuze, suas
teses nos colocam numa situação um pouco complexa em relação ao campo da teoria da
história. Pois, se estamos pensando o realismo histórico e seus correlatos, o real-possível e o
tempo do anti-acontecimento, tal como foi proposto por J. Rancière, não buscamos, através do
pensamento de Deleuze, fundar um outro modelo de racionalidade histórica
11
. Em Diferença e
Repetição, Deleuze insiste bastante no fato de que o fundamento é um componente do
pensamento representativo: “fundar é sempre fundar a representação”
12
. O pensamento da
diferença não pode se assentar sobre um fundamento, visto que este pertence ao pensamento
representativo, que justamente pretende anular a diferença e o pensamento da diferença, em
privilégio do idêntico e do mesmo.
Eis, então, a complexidade de verter o pensamento de Deleuze sobre este campo da
teoria da história, pois, como utilizar um autor para fundamentar os critérios racionais de uma
ciência, sendo que este autor tentou desabilitar o fundamento como instância primordial e
originária do pensamento? Para o nosso caso específico, enfrentaremos esta complexidade da
seguinte forma: não buscaremos detectar em Deleuze os fundamentos constitutivos da
racionalidade da ciência histórica, mas sim encaminharemos nossa leitura do pensamento
deleuzeano, buscando atualizar algumas de suas idéias no campo da história. E longe de
querer que estas idéias se comportem como fundamentos, elas atuam no sentido de incorporar
a este saber uma dimensão a mais: a dimensão virtual dos acontecimentos. Acrescentar esta
11
Pode-se dizer que o pensamento de Deleuze traçou uma verdadeira cruzada ao fundamento. A ontologia que
este pensamento desenvolve não vincula o ser ao fundamento, sendo o próprio ser Diferença si mesmo, ele não
requer nenhum fundamento para vir à existência. Nesse sentido, a ontologia de Deleuze é a-fundamental.
Abordaremos no terceiro capítulo a questão do fundamento. Para referências sobre este caráter não-fundamental
da ontologia e do pensamento deleuzeano, cf. CRAIA, E. A problemática ontológica em Gilles Deleuze.
Cascavel, UDUNIOSTE, 2002, p. 17 e 51-53.
12
DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 379. Sobre esta questão do fundamento como componente decisivo
do pensamento representativo, cf. Idem, p. 76-77, 283-285 e 376-379.
20
dimensão à história produz uma espécie de inflexão, que faz a teoria da história virar-se
contra si mesma, e se analisamos os fundamentos da racionalidade histórica, não é para fundar
outros fundamentos, trocar o modelo por um outro melhor, mais racional. Não é isso. A
história da idéias, a história do pensamento, ou melhor, a história dos modos de pensamento,
realizada por Deleuze, não propõe a substituição de um modelo por outro, é a história do
insubstituível no pensamento, a história do pensamento sem imagem, a história do
pensamento da diferença. E para fazer com que estas idéias adquiram consistência na ciência
histórica, é necessário que a filosofia desempenhe um papel um pouco diferente do concedido
a ela pela teoria da história. Por este motivo, o presente trabalho não pertence exclusivamente
ao campo da teoria da história – já que, no limite, este elabora uma análise acerca do modo de
racionalidade presente na ciência histórica, ainda que sob a forma do conceito de realismo
ele também pertence a uma história conceitual que aponta-nos nos próprios conceitos e
sistemas filosóficos os acontecimentos virtuais do pensamento. Por conseguinte, uma outra
noção de filosofia, além das que abordamos até o instante, é requerida.
Num texto de 1967, Foucault propõe pensar as mudanças que transformaram a
filosofia do século XX. Três, de acordo com ele, foram relevantes. A primeira foi o fato de a
filosofia ter-se desobrigado de abordar pesquisas que formaram, no século XX, o campo das
ciências humanas. A segunda foi a perda do status privilegiado da filosofia, “em relação ao
conhecimento em geral, e à ciência. Ela parou de legiferar, de julgar”
13
. Por último e mais
fundamental, a terceira mudança foi a circunstância da filosofia deixar de ser uma
especulação sobre o mundo, o conhecimento e o ser humano, para se tornar uma atividade
engajada em um determinado domínio. Nesse sentido, segundo Foucault, a filosofia procura
estabelecer atos filosóficos determinados e não especulações gerais. “Efetivamente, o filósofo
parou de querer falar do que existe eternamente. Ele tem a tarefa bem mais árdua e mais
fugidia de dizer o que se passa.”
14
Disso resulta uma situação singular da filosofia: “Pode-se
dizer que, no século XX, qualquer homem que descobre ou que inventa, qualquer homem que
muda alguma coisa no mundo, o conhecimento ou a vida dos homens, é, de alguma forma, um
filósofo.”
15
13
FOUCAULT, M. “A filosofia estruturalista permite diagnosticar o que é ‘a atualidade’”. IN: Ditos e escritos.
Vol. II. Trad. Manuel Barros (org). Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2000, p. 57.
14
Idem, p. 58.
15
Idem, p. 57. É imprescindível dizermos que Foucault não somente buscou pensar o estatuto da filosofia, mas
como ele revolucionou, para usar uma expressão de Veyne, a relação da filosofia com a história. Seus livros
atestam uma singular relação da filosofia com a história. E o pensamento de Foucault marcou de forma intensa o
21
Esta indicação de Foucault, mesmo que soe um pouco radical, nos apresenta uma
noção singular da filosofia. Desse modo, pensamos ser positiva a relação da história com a
filosofia, justamente quando a filosofia é tomada como signo de uma atividade inventiva. E
Deleuze leva esta definição da filosofia ainda mais longe. Para ele, a filosofia é criação,
fabricação e invenção de conceitos. E é essa concepção de filosofia como invenção, que
gostaríamos de estender até a história: a filosofia é inventiva no momento em que ela atua de
forma engajada num campo específico, constituindo atos filosóficos singulares, via criação de
conceitos. No nosso caso, o campo específico diz respeito ao campo da história. O último
livro publicado de Deleuze foi O que é a filosofia?. E neste livro, escrito em parceria com
Félix Guatarri, a filosofia é reiteradamente afirmada como criação de conceitos. E a razão de
estender à história essa noção de filosofia como invenção de conceitos, é porque tanto a
história quanto a filosofia incidem sobre conceitos. Em ambas, o conceito aparece como
indispensável
16
.
Após apontarmos o sentido dos termos pelos quais relacionamos a filosofia e a
história, voltemos à hesitação. A razão do “por que Deleuze? deve se apoiar sobre a
expressividade com que este autor se situa no cenário atual acerca da produção do
pensamento. Pode-se dizer que Deleuze, ao longo de sua obra, não buscou a realização do
pensamento, bem como foi o filósofo do exercício do pensamento
17
. Não é exagero dizer que
Gilles Deleuze, solo ou em suas numerosas parcerias, foi o autor que mais tentou tornar a
criação, a invenção, como imanente ao pensamento, às artes, às ciências, e, sobretudo, à vida.
Porque, segundo Deleuze, o pensamento não é uma exclusividade da filosofia e muito menos
da ciência
18
. Em todo momento, a démarche de Deleuze procurou colocar este problema:
como exercer um pensamento inventivo, um pensamento livre de qualquer imagem do
transcendente, do modelo, da representação, e assim, imanente à existência. O exercício do
pensamento não cessou de ser retomado e reinscrito de acordo com os novos projetos aos
próprio pensamento de Deleuze. Cf. “Rachar as Coisas, rachar as palavras”, “A vida como obra de arte”, “Um
retrato de Foucault”. Textos reunidos no livro: DELEUZE, G. Conversações. Trad. Peter Pal Pelbart. Rio de
Janeiro, Ed. 34, respectivamente p. 105-117, p. 118-126 e p. 127-147. Além do livro DELEUZE, G. Foucault.
Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988.
16
Obviamente, se chamamos a atenção para a comum importância do conceito tanto para a filosofia quanto para
a história, não queremos dizer que o modo como cada uma elabora seus conceitos seja igual. Aliás, como
veremos, este trabalho se dirige de toda maneira ao modo de racionalidade presente na ciência histórica. Sendo
que é conforme a esta racionalidade que os conceitos históricos são produzidos.
17
Cf. MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 3.
18
Acerca disso, entre outros textos, cf. DELEUZE & GUATARRI. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e
Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
22
quais se integrava o pensamento de Deleuze. Assim, a partir da exigência de um pensamento
livre de modelos representativos, soam compreensíveis as múltiplas frentes de atuação deste
pensamento. E é graças a tal exigência, que a filosofia do devir, o corpo sem órgãos, a
esquizoanálise, como também a filosofia da diferença e da repetição, ganham espessura
enquanto pensamento.
Com efeito, a relevante situação de Deleuze no pensamento contemporâneo conflui
com o exercício do pensar livre de modelos. E em nome dessa mobilidade, desse implacável
movimento do pensamento, várias séries e ramificações, “rizomas”, para utilizar um termo
conhecido do autor, proliferaram em todas as direções de sua obra, de modo que não
primazia de uma sobre a outra nem relação causal determinante, embora haja cruzamentos e
encontros, convergências e divergências entre elas. O pensamento de Deleuze aponta para a
exigência do pensar livre de imagem não como um fim ou meta, e sim como um meio pelo
qual esta pretensão se metamorfoseia e se desvia. Entretanto, de que maneira essa exigência,
essa pretensão, nos ajudaria a retomar e contornar o problema do realismo? De que maneira o
pensamento de Deleuze poderia liberar a história do realismo? De que maneira este
pensamento poderia liberar a história do pensamento do idêntico que suprime o tempo do
acontecimento? De que maneira a filosofia de Deleuze nos ajudaria a criar “linhas de fugas”
que contornariam o problema do realismo? De que maneira a dimensão a mais, acrescentada à
história pelo pensamento de Deleuze, pode contribuir para o saber histórico?
Peter Pál Pelbart nos uma indicação muito importante: “ao reivindicar um
pensamento sem imagem, para que possam advir outras imagens ao pensamento, Deleuze
também reclama um tempo sem imagem, para que se liberem outras imagens do tempo
19
.
Assim, ao mesmo tempo em que Deleuze propõe um pensamento sem imagem, propõe
também um tempo sem imagem. E o tempo sem imagem é o tempo segundo a fórmula de
Shakespeare: the times is out of joint!”. A qualificação do tempo segundo esta fórmula do
Príncipe do Norte encontra-se esboçada, numa primeira vez em Diferença e Repetição, ao
apontar as insuficiências da síntese temporal da memória, que conduz o tempo à forma do
círculo
20
. Para romper o círculo que a memória estabelece entre a lembrança e a percepção, o
círculo vicioso entre a imagem-lembrança e a imagem-percepção, Deleuze afirma o tempo
enlouquecido, o tempo saído dos eixos que assume a forma do eterno retorno como
19
PELBART, Peter Pál. “O tempo não-reconciliado”. IN: ALLIEZ, Éric (org). Gilles Deleuze: uma vida
filosófica. Trad, Ana Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro, 34, 2000, p. 93.
20
DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 136.
23
recurso para sair do círculo temporal. Na segunda vez, Deleuze retoma esta fórmula no artigo:
“Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana”
21
. Nele, Deleuze
propõe uma leitura da filosofia kantiana a partir de quatro fórmulas poéticas disponíveis na
literatura. Estudioso atento de Kant, mas sempre com um atrás, como quem estuda a um
inimigo, Deleuze utiliza-se de fórmulas poéticas para determinar as contribuições ao
pensamento contemporâneo da filosofia daquele autor. Para Deleuze, a noção kantiana de
tempo está em consonância com o tempo liberado dos eixos
22
. Liberar o tempo de seu eixo, de
seu cardo segundo expressão latina, é liberar o tempo das coisas que ele mede, os pontos
cardeais, e dar-lhe uma forma autônoma e própria. O tempo fora dos eixos é o tempo liberado
do movimento. E o tempo preso ao movimento, convém esclarecer, é o tempo segundo a
concepção platônica e aristotélica do termo. Deleuze situa a noção temporal de Kant em
descontinuidade com a noção pertencente à filosofia antiga. Somente para constar, neste texto
sobre Kant, além de Shakespeare, os literatos que ajudam Deleuze a expor esta filosofia são
Rimbaud e Kafka. Pensamos que o tempo fora dos gonzos é também o tempo do
acontecimento. Nesse sentido, concordamos com Éric Alliez, quando define a démarche
plurívoca de Deleuze como uma filosofia da diferença em sentido genérico ou uma filosofia
do acontecimento, em sentido rigoroso
23
. Conforme este autor, a realização filosófica singular
de Deleuze é a produção de um Pensamento-Acontecimento
24
, isto é, um pensamento que
entretém com o acontecimento uma relação imanente. É graças ao acontecimento, à filosofia
do acontecimento, que o pensamento de Deleuze efetua o movimento do pensar. E, por
ventura, não é o acontecimento aquilo que justamente é negado pelo realismo?
21
Este texto foi publicado no Brasil pela Editora 34 no livro Crítica e Clínica. Para um acesso a versão
espanhola desse livro, acessar o domínio http://www.dossie_deleuze.blogger.com.br. Nesse mesmo domínio,
uma versão traduzida para o português deste texto sobre Kant.
22
Não podemos deixar de assinalar a posição ambígua que Kant ocupa no sistema filosófico de Deleuze. O
professor Roberto Machado, em Deleuze e a filosofia, mostrou o modo como Kant desempenha nesse sistema
um papel não muito definido. Machado, inclusive, utiliza-se desta relação de Kant com a filosofia da diferença
para exemplificar a flexibilidade obtida por Deleuze ao empregar o procedimento da colagem para historiar a
filosofia. Devido a este procedimento, Deleuze pôde desconsiderar consequências lógicas dos conceitos
recortados, consequências que extravasariam suas pretensões. A ambiguidade da posição kantiana pode ser vista
de várias maneiras, menciono algumas: ora Kant fornece ao sistema da diferença engrenagens importantes, como
a noção de tempo Deleuze é incisivo ao apontar Kant como aquele que introduziu a questão do tempo no
pensamento, desarticulando o cogito cartesiano, que carecia dessa dimensão temporal da Ideia –, a própria noção
de Ideia como instância problemática, e a diferença transcendental; ora Kant está fora da diferença, sendo
rebatido sobre o pensamento da representação, como aquele que traiu a Crítica ao propor um acordo harmonioso
entre as faculdades, através de seu esquematismo categórico ou ao fundar o domínio transcendental ainda sobre o
empírico. Sobre esta ambígua posição de Kant, com a análise destes e outros pontos, cf. MACHADO, R.
Deleuze e a filosofia, p. 99-124.
23
ALLIEZ, Éric. Deleuze filosofia virtual. Trad. Heloísa B. S. Rocha. São Paulo: 34, 1996, p. 11.
24
Idem, p. 13.
24
Levando isso em consideração, para que a relação entre Deleuze e a história seja
positiva, é preciso que as duas hesitações levantadas anteriormente, “por que a história?e
“por que Deleuze?”, não permaneçam isoladas; é preciso que o pensamento de Deleuze entre
em ressonância com a racionalidade historiadora, é preciso que haja comunicação entre os
dois conjuntos. E esta comunicação será construída aqui, ela é o objeto do nosso trabalho.
Vimos que o realismo condiciona o acontecimento ao possível, o tempo à crença. E como
veremos mais a frente, a cada identificação operada pelo realismo, é o acontecimento, o
objeto da história, que é suprimido. Com efeito, é do interior dessa supressão que gostaríamos
pensar a filosofia da diferença e da repetição, a filosofia do acontecimento deleuzeana.
Desfazer a negação da razão do acontecimento, torná-lo potência de afirmação, é uma
contribuição maior de Deleuze à história. Pensamos que é através de sua ontologia afirmativa
do acontecimento, conjuntamente com a noção temporal que lhe serve de substrato, que
podemos incorporar no campo da ciência histórica os desvios e as reversões que esta obra
sugere. Sendo assim, para afirmar o tempo do acontecimento, é preciso estar atento ao novo
conceito de tempo que Deleuze apresenta. É um tempo que possui uma natureza distinta do
tempo anti-acontecimento, é o tempo sem imagem, é o tempo virtual, o tempo fora dos eixos,
como nos indica Pelbart. Contudo, o tempo do acontecimento, o tempo sem imagem, o tempo
out of joint, no pensamento de Deleuze, é um mosaico bizarro, ele assume a forma de
ramificações diversas:
O presente como ntese passiva sub-representativa, ou contemplação contraente (Plotino,
Hume); o passado como Memória Ontológica, Memória-mundo, Cone Virtual (Bergson); o
futuro como retorno seletivo que rejeita Sujeito, Memória, Hábito (Nietzsche); a oposição
Aion/Cronos (estóicos); o tempo do Acontecimento (Péguy, Blanchot); o Intempestivo
(Nietzsche); o tempo como “defasagem” (Simondon); a Cesura e um tempo que já não “rima”
(Hölderlin); o tempo perplicado, o tempo puro ou reencontrado da arte (Plotino, Proust); o
tempo liberado de sua subordinação ao movimento (Kant versus Aristóteles); o tempo como
Diferença, ou como Outro (Platão contra Platão); o tempo como Potência, não como Finitude
(Bergson versus Heidegger); o tempo como Fora (Blanchot, Foucault)
25
.
Diante disso, para que não pereçamos no interior deste labirinto, para que as
ramificações heterogêneas não se dispersem no caos, para que não nos percamos em meio às
saídas múltiplas é necessário que determinemos um recorte na multiplicidade levantada por
este pensamento. Mas devemos avisar: esta seleção não é absoluta nem única. Com certeza,
25
PELBART, Peter Pál. “O tempo não-reconciliado”, p. 88.
25
há outros recortes que muito bem poderiam ser efetuados. E mesmo os materiais selecionados,
sem dúvida, oferecem outros caminhos além daqueles que percorreremos
26
.
Partindo da indicação de Pelbart, que estipula que o pensamento de Deleuze consuma
uma nova elaboração do tempo, do tempo liberto dos modelos representativos, iremos
percorrer o pensamento de Deleuze, mais especificamente alguns aspectos de sua filosofia da
diferença e da repetição, procurando demonstrar de que maneira esta filosofia esquiva do
tempo possível, ao afirmar o tempo virtual, dando ensejo para uma ontologia afirmativa do
acontecimento. Para isso, nos reportaremos basicamente à sua obra Diferença e Repetição.
Mas sempre que for necessário, e isso será muitas vezes, utilizaremos passagens de outras
obras. Pois, de certa maneira, a filosofia da diferença e da repetição coordena, entorno de um
centro descentrado, os sentidos temporais contidos no mosaico bizarro.
Assim se enuncia nossa hipótese de trabalho: na tentativa de estabelecer uma relação
entre o pensamento de Deleuze e a ciência histórica, entrevemos ser sob a forma de um tempo
liberto dos gonzos, de um tempo virtual, do qual procede uma ontologia afirmativa do
acontecimento, onde melhor podemos dar corpo a essa relação. Isto é, nossa hipótese, longe
de querer fundar uma nova racionalidade histórica, pretende, desdobrando algumas idéias do
pensamento deleuzeano, dar ênfase a uma dimensão do tempo, contida na filosofia da
diferença, que pode contribuir para a história à medida em que a libera do pensamento
idêntico, o pensamento que identifica o tempo, o possível e o real, e a libera da negação do
acontecimento.
Por filosofia da diferença e da repetição entendemos um sistema filosófico aberto. Este
sistema é encarnado numa dupla tarefa. Em primeiro lugar, sua tarefa é retirar a diferença de
um estado de maldição. Retirar a diferença de sua maldição é desfazer a confusão segundo a
qual a própria diferença foi anulada no pensamento ocidental. Confunde-se o conceito de
diferença com uma diferença no conceito, com uma diferença conceitual
27
. Desfazer esta
26
Devemos mencionar aqui uma lamentável ausência. Deleuze construiu uma filosofia do cinema na qual a
concepção de tempo e uma decorrente noção de acontecimento desempenham um relevante papel na constituição
da imagem imanente ao cinema moderno, isto é, ao cinema pós Segunda Guerra Mundial que se inicia com o
neo-realismo italiano. Entretanto, dado a diversidade do material, e o imenso esforço que demandaria sua
inclusão aqui, tivemos que, não sem pesar, deixar de lado a abordagem desse aspecto do pensamento de Deleuze.
Sobre o regime de imagem do cinema moderno, cf. DELEUZE, G. A imagem-tempo. Trad. Eloisa de Araujo
Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.
27
Sobre esta confusão ver a seguinte passagem de Diferença e Repetição: “Talvez o engano da filosofia da
diferença, de Aristóteles a Hegel passando por Leibniz, tenha sido o de confundir o conceito da diferença com
uma diferença simplesmente conceitual, contentando-se com inscrever a diferença no conceito em geral. Na
realidade, enquanto se inscreve a diferença no conceito em geral, não se tem nenhuma Ideia singular da
diferença, permanecendo-se apenas no elemento de uma diferença já mediatizada pela representação”, p. 54.
26
confusão é dar à diferença um conceito que não a dilua na identidade do conceito em geral e
que não a aprisione no seio do pensamento representativo, mas que a afirme como elemento
diferenciador da diferença. Esta afirmação do elemento diferencial da diferença é o que
permite a Deleuze construir um conceito da diferença que não invoca a determinação
conceitual de uma diferença individual ou genérica, mas que invoca, sobretudo, a diferença
como determinação da ideia, a diferença como diferença individuante, a diferença como fator
de produção. Na esfera da diferença individual ou genérica, onde temos uma espécie
distinguindo de outra espécie ou um gênero diferindo de outro gênero, ainda estamos lidando
com uma diferença subsumida ao mesmo, pelo custo da mediação de um gênero ou de uma
espécie. Nessa primeira tarefa, a filosofia da diferença e da repetição, proposta por Deleuze,
procura relacionar a diferença à própria diferença: é preciso relacionar o diferente com o
diferente, sem mediação do mesmo. Com efeito, diz-nos Deleuze logo no começo de
Diferença e Repetição: “queremos pensar a diferença em si mesma e a relação do diferente
com o diferente, independentemente das formas da representação que as conduzem ao Mesmo
e as fazem passar pelo negativo”
28
.
A segunda tarefa desse sistema filosófico é dar à repetição uma potência afirmativa e
singular. Para Deleuze, é preciso distinguir de vários modos a repetição da generalidade, pois
em sentido algum a repetição deve ser tomada no seio do geral. Em primeiro lugar, do ponto
de vista das condutas, a repetição não é da ordem da troca ou da substituição. A substituição
de um termo por outro ou a troca de um elemento particular por outro, marca a conduta em
correspondência com a generalidade. Já a repetição é da ordem do insubstituível. Numa
repetição, não troca ou substituições, roubos. Deleuze levanta ideia de que mesmo os
gêmeos mais idênticos não podem ser substituídos. Assim, enquanto a generalidade tem por
critério a troca e a substituição, a repetição tem por critério o insubstituível. Nesse primeiro
nível da distinção, a repetição não é troca, nem semelhança e nem equivalência. A repetição
repete porque é singular. Nela, nada pode ser substituído, ela é sempre a universalidade do
singular. O poema, por exemplo, haverá sempre que ser repetido e aprendido de cor, não se
pode substituir um verso sem fazer com que o próprio poema mude. É nesse sentido, então,
que a repetição é a universalidade do singular.
Em segundo lugar, a repetição distingue-se da generalidade do ponto de vista da lei. A
lei condena os particulares que lhe estão submetidos a uma mudança, a uma variação
28
DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 16.
27
contínua. É que a lei “só determina a semelhança dos sujeitos que estão a ela submetidos e sua
equivalência aos termos que ela designa. Em vez de fundar a repetição, a lei mostra antes de
tudo como a repetição permaneceria impossível para puros sujeitos da lei os particulares”
29
.
As constantes de uma lei são as variáveis de uma lei mais geral. Mesmo as perseveranças na
natureza, não denotam a repetição. As permanências e as perseveranças o fazem repetição.
Os grandes rochedos, um dia, virarão água, eis o que nos diz a lei da natureza. O que impede a
lei de produzir uma repetição, é que a lei se aplica a termos fixos, os particulares, mas em
relação a uma lei ainda mais geral, de modo que o gesto sancionado pela lei será ver o que
de geral naquilo que é particular. Para Deleuze, a repetição é contra a lei, nem particular nem
geral, nem lei da natureza nem lei moral, ela é singular: para fazer uma repetição é preciso um
eterno retorno. O eterno retorno não é da ordem do material ou do moral, e sim da ordem da
potência, da intensidade. Retornar não é repetir uma segunda, uma terceira, uma quarta vez,
mas afirmar a enésima potência num único lance de dados. E esta noção de repetição,
principalmente sua irredutibilidade frente à generalidade, não é nova. Deleuze nos diz que ela
pode ser encontrada na história do pensamento sob a forma do grande encontro entre
Kierkegaard, Nietzsche e Péguy, segundo a tríade do pastor, do anticristo e do católico. Para
Deleuze, o termo que permite aproximar estes autores é a noção de repetição que eles
apontam como distinta à generalidade
30
.
Por fim, em terceiro lugar, a repetição distingue-se da generalidade do ponto de vista
do conceito
31
. Conforme a generalidade, a identidade está posta no conceito do seguinte
modo: um mesmo conceito para seres distintos. Desse ponto de vista, a repetição é tomada
como uma diferença sem conceito. Assim, haveria repetição entre as diferenças sem conceito
de vários existentes, em relação ao seu conceito único. Por exemplo, a repetição estaria posta
ao aplicar o conceito de mesa em diversas mesas particulares. Sob a identidade do conceito de
mesa, haveria a repetição das mesas diversas. Todavia, para Deleuze, nada compreendemos
da repetição, se a tomamos como diferença sem conceito, em virtude da identidade do
conceito. E ainda nos mostra que, sob o ponto de vista da identidade do conceito, para os
casos dos conceitos nominais, dos conceitos da natureza e dos conceitos da liberdade, a
29
Idem, p. 20-21.
30
Idem, p. 25-28.
31
Sobre o conceito, cabe-nos fazer uma consideração. A crítica que Deleuze faz aqui ao conceito, enquanto
mediação do geral através da identidade, não se iguala ao estatuto filosófico que este conceito receberá em
trabalhos posteriores, como por exemplo em O que é a filosofia? Enquanto elemento da representação, o
conceito está situado ao nível da identidade em geral.
28
repetição só acontece em termos de deficiência, falta e negação
32
. A repetição, para ser
singular e afirmativa, não pode ser produzida pela identidade ou pela generalidade. A
repetição, por natureza, é da ordem do disfarce, disfarçante e disfarçada. Ela é “o que se
disfarça ao se constituir e o que constitui ao se disfarçar”
33
. E é enquanto disfarce outro
nome para o simulacro – que a diferença afirma a repetição, e não como diferença sem
conceito, segundo o ponto de vista da generalidade.
Eis, então, as duas tarefas do sistema filosófico da diferença e da repetição: a) retirar a
diferença do estado de maldição e pensá-la como um elemento diferenciante de si mesma; b)
fazer da repetição uma potência singular e afirmativa, extraindo-lhe uma diferença. Esta dupla
tarefa, para ser realizada, exige a ação de dois planos distintos, no intuito de obter sua
consistência efetiva.
Estes planos nos foram apresentados de uma forma ainda tímida pelo jovem Deleuze
num trabalho de 1956 sobre Bergson. No texto “A concepção de diferença em Bergson”
34
,
Deleuze afirma, logo depois de assinalar que em Bergson encontramos um importante avanço
na produção de uma filosofia da diferença, que esta filosofia opera em dois planos: o
metodológico e o ontológico. O plano metodológico parte da exigência de que é preciso
reconhecer diferenças de natureza em coisas do mesmo gênero, ou seja, é preciso reconhecer
diferenças de natureza em mistos onde somente reconhecíamos diferenças de grau
35
. E essa
exigência é encontrada manifesta em toda a filosofia de Deleuze. Inclusive, é segundo essa
exigência que devemos ver a distinção elencada anteriormente entre a repetição e a
generalidade. Assim, a repetição e a generalidade não são graus extremos de uma mesma
natureza. Entre uma e outra encontramos uma diferença de natureza. Pois, uma é singular e a
outra particular, uma é contra a lei e a outra a lei, uma é disfarce sobre disfarce, máscara sobre
máscara e a outra identidade no conceito. Sendo que além dessa, encontramos inúmeras outras
diferenças de natureza animando a filosofia da diferença: entre duração e matéria, entre
memória e percepção, entre passado e presente, cópia e simulacro, corpos e incorporais,
virtual e atual etc. Além do mais, esta atenção às diferenças de natureza não irá restringir-se
32
Sobre isso, cf. Idem, p. 34-39.
33
Idem, p. 41.
34
DELEUZE, G. A concepção da diferença em Bergson”. IN: DELEUZE, G. Bergsonismo. Trad. Luiz B. L.
Orlandi. São Paulo: 34, 1999, p. 95-124.
35
Quando falamos sobre uma “metodologia” na filosofia da diferença, estamos levando em consideração a
concepção de intuitiva que Deleuze, baseado em Bergson, elaborou do método. Para Deleuze, a positividade
deste método intuitivo se deve ao fato de que “a intuição implica uma pluralidade de acepções, pontos de vistas
múltiplos irredutíveis”. DELEUZE, G. Bergsonismo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. o Paulo: 34, 1999, p. 8. Nesse
sentido, o plano metodológico pode ser lido como o plano intuitivo.
29
tão-somente ao sistema filosófico da diferença. Mesmo em suas obras mais tardias, como, por
exemplo, seus trabalhos com Félix Guatarri, que ultrapassam os limites da filosofia da
diferença, a atenção às diferenças de natureza persistem sobre a forma da diferença entre o
plano imanente e o plano transcendente, entre maioria e minoria, entre aparelho de Estado e
máquinas de guerra nômades.
O plano ontológico parte da exigência cujo sentido é o seguinte: “se o ser das coisas
está de um certo modo em suas diferenças de natureza, podemos esperar que a própria
diferença seja alguma coisa, que ela tenha uma natureza, que ela nos confiará enfim o ser”
36
.
Desde já, vemos que este plano remete a definição da natureza da diferença como vinculada
ao ser. É certo que por se tratar de um texto de 1956, a problemática ontológica da diferença
ainda não está completamente elaborada. Pois, à definição da natureza da diferença como
aquilo que difere de si mesmo, é preciso acrescentar uma proposição ontológica que Deleuze
desdobra em seus trabalhos posteriores, alcançando sua forma lapidar em Diferença e
Repetição: a univocidade do ser. Ao adotarmos a definição da natureza da diferença como
aquilo que difere de si, poderíamos ser levados a pensar que o ser é equivoco, que dito do
que difere, ele seria diferente para cada coisa. Mas não. Para Deleuze, o ser é unívoco, “o ser
se diz num único sentido de tudo aquilo que ele diz, mas aquilo de que ele se diz difere: ele se
diz da própria diferença”
37
.
Quando Deleuze entrelaça a univocidade do ser com a diferença, ele põe em cena uma
ontologia afirmativa do ser e do acontecimento. Justamente porque ao afirmar o ser, Deleuze,
ao mesmo tempo, afirma também o acontecimento. De tal modo estas noções estão
imbricadas, o ser e o acontecimento, que podemos afirmar que o ser, para Deleuze, é o
acontecimento da diferença, o acontecer disso que difere de si mesmo quando acontece
38
. E o
que, especificamente nos interessa na ontologia que o pensamento de Deleuze fornece, é essa
ontologia afirmativa do acontecimento. Pois, esta ontologia além de afirmar o acontecimento
como imanente ao ser e à diferença, também rechaça do horizonte do ser, do horizonte
ontológico, a ação do negativo.
Tendo em vista aquelas duas tarefas, e mais estes dois planos, eis a forma pela qual
compreendemos e utilizamos parte do sistema filosófico da diferença e da repetição. Dito
36
DELEUZE, G. Idem, p. 95.
37
DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 26-27.
38
Para uma análise minuciosa acerca da relação entre a diferença, o ser e o acontecimento, cf. capítulo II: “Ser e
Diferença”. In: CRAIA, Eladio. A problemática ontológica em Gilles Deleuze, p. 88-122.
30
isso, passemos à apresentação do roteiro de exposição que orienta este trabalho. No primeiro
capítulo, delinearemos com mais precisão o sentido do conceito de realismo, conforme foi
elaborado por Ranciére. Veremos quais são seus axiomas e como eles asseguram uma
determinada imagem de pensamento na história. Além disso, veremos quais são as duas
implicações que a imagem do pensamento do possível fornece à história: uma ontologia
negativa do acontecimento, confirmada pelo anacronismo histórico, e um tempo que é o
tempo do anti-acontecimento, isto é, o tempo diluído na forma da crença de uma época.
No segundo capítulo, enfrentaremos uma questão paralela, mas que se apresenta de
grande importância para a realização deste trabalho. Esta questão diz respeito a uma distinção
que Deleuze estabelece, a partir de um certo momento de sua démarche, entre o devir e a
história. Ele chega a dizer que o devir possui uma diferença de natureza em relação à história.
Assim, questionamos: será que uma exclusão radical da história nesta distinção? Como
veremos, a resposta a esta questão pensamos que é negativa. Ademais, acreditamos, inclusive,
que a história é positivamente afirmada – e também renovada – pelo pensamento deste autor.
Por fim, no terceiro capítulo, consumaremos a relação entre o pensamento de Deleuze
e a ciência histórica, a partir de sua filosofia da diferença e da repetição. Pelo fato desse
sistema filosófico ser anterior à distinção entre o devir e a história, procuraremos elaborar a
noção de história em jogo nesse sistema, privilegiando uma ontologia afirmativa do
acontecimento e um tempo do acontecimento. Nossa hipótese é a de que estes pontos são as
“linhas de fuga” que o pensamento deleuzeano do virtual fornece ao pensamento do possível.
31
Capítulo 1: O realismo e a história
Nesse primeiro momento de nosso trabalho, gostaríamos de assinalar com maior
precisão, coisa que não fizemos na apresentação, o sentido do niilismo contemporâneo em
vigor, mais especificamente, na ciência histórica. Para isso, colocamos o problema do
realismo conforme foi elaborado pelo historiador Jacques Rancière. O realismo é a
consumação do pensamento do possível no interior da história. E a partir desse problema,
procuramos desdobrar as maneiras pelas quais os axiomas fundamentais do realismo
compõem e reforçam as configurações do campo atual do discurso histórico, e como essas
configurações disponibilizam para a história uma consideração do acontecimento que o nega
em função do pensamento do possível. Soma-se a isso, o fato de que esta negação do
acontecimento faz vigorar na história um tempo que é o tempo do anti-acontecimento.
O conceito de realismo como expressão do niilismo contemporâneo
Na apresentação, falávamos rapidamente de um niilismo contemporâneo e do modo
como ele se dá na racionalidade historiadora. Para Rancière, a inscrição do niilismo no campo
da história se sob a forma específica do conceito de realismo. Nesse sentido, o conceito de
realismo que atua no campo da história é a expressão do niilismo contemporâneo. E um
niilismo bem particular. Pois, não é um niilismo que incide sobre as coisas, não é um niilismo
que simplesmente reduziria as coisas ao nada. Sua natureza é singular porque este niilismo
incide sobre o próprio exercício do pensamento. Devido a ele, o pensamento deixa de ser
efetivo; o niilismo faz cessar o movimento entre o pensado e o impensado. O niilismo
contemporâneo instala o pensamento numa zona de não-efetividade porque o pensamento
deixa de lidar com o real, com o necessário, para se ater ao possível. Ou seja, preso ao
possível, o pensamento torna-se não-efetivo, e os seus movimentos não mais produzem
efeitos, tornam-se estéreis.
Vimos que o realismo não é o partido do real. Por isso, ele não deve ser entendido
como um apego à realidade, ao real. Antes, o realismo é uma forma determinada de
subordinação do real ao possível. Sob esta perspectiva, somente pode ser tomado como real o
que for idêntico ao possível de seu tempo, ao sistema das condições de possibilidade
32
referentes a uma determinada época. Podemos, inclusive, dizer que o realismo funciona no
interior mesmo do regime de verdade que organiza a produção do discurso histórico. Já que,
segundo Rancière, “o realismo é em primeiro lugar um modo de discernimento específico
segundo o qual o que pode ser construído como um possível merece o estatuto de entidade
contável. O realismo, entendido de modo estrito, é o desvanecimento do real em possível”
39
.
O real, ao ser identificado ao possível, esvazia-se de efetividade. O necessário e o
contingente, enquanto atributos do real, sucumbem ao possível logicamente argumentado, e
desse modo, o necessário e o contingente cedem lugar ao argumento do possível. O
argumento do possível é um argumento que não leva em conta a experiência real, mas sim a
experiência possível, que é decalcada, abstraída do real. O possível pode ou não ser real, pode
ou não vir a realizar-se. Logo, o possível, por natureza, é uma abstração lógica que pode ou
não estar adequada ao real.
Adiantando bastante nossa exposição, mas com o intuito de melhor esclarecer este
pensamento do possível, gostaríamos de lançar uma citação de Deleuze que demonstra bem
como o pensamento do possível pertence a um regime que é exterior ao real. Em
Bergsonismo, Deleuze tenta mostrar o porquê que Bergson efetuara uma crítica do possível,
sobrepondo-lhe o conceito de virtual. Deleuze questiona:
Por que Bergson recusa a noção de possível em proveito da de virtual? É que (...) o possível é
uma falsa noção, fonte de falsos problemas. Supõe-se que o real se lhe assemelhe. Isto quer
dizer que damos a s mesmos um real feito, pré-formado, preexistente a si mesmo, e que
passará à existência segundo uma ordem de limitações sucessivas. estudo dado, o real
todo já está dado em imagem na pseudo-atualidade do possível. Assim, torna evidente a
mágica: se se diz que o real assemelha-se ao possível, não seria porque, de fato, esperou-se que
o real acontecesse com seus próprios meios para “retroprojetar” dele uma imagem fictícia e,
com isso, pretender que ele fosse a todo momento possível antes mesmo acontecer? Na
verdade, não é o real que se assemelha ao possível, mas o possível é que se assemelha ao real, e
isso porque nós o abstraímos do real, uma vez acontecido este; nós o extraímos arbitrariamente
do real como um duplo estéril.
40
Desse modo, o pensamento deixa de ser efetivo quando fica atrelado somente ao
possível. Isto porque, atrelado ao possível, o real deixa de ser algo da ordem do necessário, do
contingente, e passa a estar subordinado à transcendência do modelo lógico, ao possível de ser
identificado com um sistema de possibilidade que lhe serve de modelo.
A crença do possível está enunciada no seguinte pensamento: é possível o possível.
Este pensamento parece supor uma razoabilidade quase evidente. Mas o seu corolário nos
coloca uma outra proposição, que desfaz a quase evidência anterior: o impossível é
39
RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p. 237.
40
DELEUZE, G. Bergsonismo. Trad. Luiz Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 79. Grifo do autor.
33
impossível. E a impossibilidade do impossível, fundada pela crença do possível, torna
impossível a efetividade do pensamento exatamente por declará-lo impossível. Ao ser
identificado ao exercício do possível, o pensamento devém o pensamento do possível. Com
efeito, o pensamento do possível é aquele que antes de perguntar sobre a realidade disto que
está em vias de pensar, pergunta sobre a possibilidade de adequação temporal, sobre a
possibilidade material e sobre a possibilidade intelectual disto que aconteceu. Nesta
perspectiva, o movimento do pensado ao impensado, que faz ver e pensar construtos até então
invisíveis e impensáveis, deixa de operar como movimento do pensamento, para se tornar o
impossível ao qual cabe o próprio pensamento evitar. O movimento entre o pensado e o
impensado converte-se numa fundação da possibilidade do possível, pela qual o pensamento é
impossibilitado de existir. Eis, então, o sentido do niilismo contemporâneo: o pensamento
deixa de ser efetivo por estar vinculado ao possível, pois vinculado ao possível, é num mesmo
lance que o pensamento se torna impossível e o real se torna o único possível.
Primeiro axioma do realismo: a identificação do acontecimento com o possível
O pensamento do possível exige o encontro de duas possibilidades para construir um
possível. Para se adequar ao realismo, o real deve passar pela possibilidade material. O real,
designado aqui sob a forma do acontecimento histórico, deve provar a possibilidade da
sucessão e do encadeamento dos fatos, deve mostrar como o encadeamento da sucessão
entre os materiais, entre os fatos que permitem reconstruir o acontecimento como o único
possível. A segunda possibilidade é intelectual: o acontecimento deve provar sua
possibilidade de ser pensado como possível. Isto é, o acontecimento deve mostrar sua
possibilidade de ser pensado como pensável, pelo seu tempo. Estas duas possibilidades devem
se encontrar para que um acontecimento seja possível: a possibilidade material da sucessão e
do encadeamento dos fatos e a possibilidade intelectual de ser pensado como pensável
41
.
O pensamento do possível coordena o regime de produção da ciência histórica ao
submeter a razão historiadora ao jogo entre as possibilidades que tornam possível nada mais
senão que o possível. Submetida ao possível, a ideia que governa a razão historiadora é a de
que “para que um fato seja provado, é preciso que seja pensável; para que seja pensável, é
preciso que pertença àquilo que seu tempo torna pensável, que sua imputação não seja
41
Sobre este jogo entre as duas possibilidades, cf. RANCIÈRE, J. O desentendimento. Trad. Ângela Leite Lopes.
São Paulo: 34, 1996, p. 128-129.
34
anacrônica”
42
. Dessa maneira, o realismo é o condicionamento de tudo o que acontece e do
que aconteceu, ao possível e às condições de sua possibilidade. O realismo admite a
existência daquilo que for argumentável como possível. Só admite como existência passível
de ser contável aquilo que é possível existir, conforme as crenças de seu tempo. Mas, ao
declarar como contável somente o que é possível existir, ao esvaecer o real sob a forma de um
sistema de condição de possibilidade, é o real impossível quem deixa de existir. E incontável
e impossível torna-se então, tudo aquilo que não pôde provar sua possibilidade. O realismo
suprimiu tudo aquilo que era aparência, real impossível, “inexistência existente”, não-ser;
tudo aquilo que não pôde argumentar sua possibilidade; enfim, tudo aquilo que era ilusão,
utopia e mito. O realismo se gaba por ter suprimido as aparências, as ilusões. Pois, “o
realismo pretende ser a sadia atitude do espírito que se restringe às realidades observáveis”
43
.
Conforme o realismo, o observável deve provar sua possibilidade. As aparências o
convertidas em ilusões às quais cabe ao pensamento liquidar. Por isso, o realismo se declara
como o tempo em que as inexistências existentes, entenda-se, as aparências, chegaram ao fim;
o tempo “do fim de tudo aquilo cujo destino era o de acabar confessando sua inexistência”
44
.
Dois efeitos do pensamento do possível: os enunciados do fim e o revisionismo
negacionista
Daí, na história, o realismo possuir dois efeitos importantes: os enunciados do fim e o
revisionismo negacionista. Imanentes ao modelo realista, enunciados do fim - do fim das
utopias, das ilusões, das aparências, bem como também do fim da política, do fim da
história
45
-, emergiram na racionalidade historiadora. O realismo diz ter suprimido as
42
RANCIÈRE, J. O desentendimento, p. 130.
43
RANCIÈRE, J. O desentendimento, p. 131.
44
RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”. P. 228.
45
Segundo Rancière, o realismo propõe não o fim das entidades inexistentes, das aparências, como também o
fim da política e o fim da história. Por um lado, é certo que o fim da política é imanente ao próprio pensamento
do político. Quer dizer, desde a constituição da verdadeira política com Platão, o político vem suprimir a
existência de um mau princípio, de um mau começo, da anarquia pretérita à política como verdadeiro princípio
da comunidade (telos). Por isso, o fim da política é imanente a constituição da esfera do político, é o fim do
estado an-árquico, ou seja, o estado sem princípio anterior à instauração da política. Todavia, a maneira moderna
de executar o fim da política não é a platônica ou a aristotélica, é a superposição de dois processos: a política
democrática militante e a metapolítica social científica. Por outro lado, o fim da história, proposto pelo realismo,
não é o fim anunciado pela obra de Fukuyama, segundo a qual a história chegaria ao fim por atingirmos na
contemporaneidade um estágio universal do Estado democrático. Para Rancière, o moderno fim da história,
proveniente do realismo, é o fim do acontecimento como objeto da história, é a supressão da razão do
acontecimento como razão da história. Enfim, tanto o moderno fim da política quanto o moderno fim da história
são inerentes ao realismo, ligam-se a ele de forma singular. Sobre o fim da história, cf. RANCIÈRE, J.
35
aparências de tal maneira que, segundo Rancière, atravessa a história um pensamento do fim.
O fim se torna um enunciado banal. Mas, por outro lado, esta declaração de fim das
aparências, dos mitos e das ilusões, não acrescenta sentido algum àquilo que busca explicar.
Os enunciados do fim surgem numa tentativa de qualificar uma situação que se apresenta
como inqualificável. A única certeza, nesses termos, para o inqualificável de nossa época, é a
do fim. “Há certeza onde não se pode qualificar nada, mas onde sempre se pode enunciar o
inqualificável sem forma do tempo terminado: fim dos mitos, fim das ideologias, fim do
tempo qualificado”
46
. Nesse sentido, a atualidade reclama a certeza daquilo que não é mais,
e assim, a certeza se liga ao desaparecimento: só certeza daquilo que chegou ao fim, e
logo, daquilo que não é mais. A certeza declarada de nossa época é a da inexistência do não-
ser e das aparências, e as aparências são as ilusões, os mitos, as utopias. Todavia, a certeza do
desaparecimento não acresce nenhum novo sentido àquilo que desaparece, nada mais faz do
que constatar o desaparecimento.
Correlato aos enunciados do fim, cujo sentido característico é o de que o que melhor
se é o desaparecimento, o revisionismo, o outro efeito do realismo. O revisionismo é a
tese que afirma a não existência do holocausto judeu. E do revisionismo deriva aquela lei, que
tem por efeito a proibição da mentira sobre a inexistência do extermínio
47
. Estes dois efeitos,
aparentemente, são contraditórios. Um diz que o que melhor se é o desaparecimento, e o
outro diz que o extermínio, o que desapareceu, não pôde acontecer. Mas esta contrariedade é
aparente. Segundo Rancière, a força do revisionismo, a obrigação de fazer uma lei para
prevenir os cientistas contra sua própria lógica, está em sincronia com a grande tese do
realismo”
48
, da mesma forma que os enunciados do fim.
O revisionismo negacionista e os enunciados do fim são temas contemporâneos na
história e ambos situam-se num comum plano-modelo de pensamento: o realismo. Por isso,
não contrariedade. E em seu devir-ciência atual, o discurso histórico utiliza-se dos
“Enunciados do fim e do nada”, p. 235-244; sobre o moderno fim da política, de forma sucinta, cf. RANCIÈRE,
J. “Enunciados do fim e do nada”, p. 229-234, para uma análise mais detalhada cf. RANCIÈRE, J. O
desentendimento, especialmente os capítulos: “Da arqui-política à meta-política”, “Democracia ou consenso” e
“A política em sua era niilista”.
46
RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p. 228.
47
Não estamos, em absoluto, questionando a legitimidade ou a relevância, do ponto de vista da memória social e
coletiva, desta lei. O que fazemos é simplesmente levantar as consequências, no que tange ao campo da ciência
histórica, da elaboração desta lei. Enquanto historiadores, nós estamos colocando em questão a intervenção de
uma instância exterior à história, no espaço da racionalidade histórica. E esta intervenção, de fato, foi pouco
discutida, talvez devido a sua positividade aparente, nos confins da ciência histórica, e Rancière, acreditamos, foi
o primeiro a fazê-lo.
48
RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p. 238.
36
pressupostos oferecidos pelo realismo para instituir as regras que tornam uma história
legítima ou não. Por conseguinte, estamos diante a um regime do discurso histórico
constantemente investido pela noção de verdade derivada do realismo. E investido de uma
maneira singular: o discurso histórico fixou o argumentável, o provável, o dizível de um
acontecimento justamente sobre o possível. Um acontecimento só pode ser verdadeiro, nesses
termos, se suas condições, se suas prerrogativas, estiverem sido postas, colocadas pelo
possível de seu tempo. Isto é, um acontecimento é admitido como verdadeiro,
argumentável e provável, se todos os seus encadeamentos forem pensáveis como possíveis
pelo seu tempo. Nisso reside parte da dificuldade dos historiadores em refutar o
negacionismo. Nesse ponto, as duas argumentações se convergem. Pois, ambos edificam os
seus argumentos a partir desse mesmo modo de verdade. Os revisionistas dizem que para que
um acontecimento possa existir e ser argumentável enquanto real possível, ele deve se
enquadrar nas relações de causa/efeito que obedecem à gica aristotélica das quatro causas.
Deve haver a passagem da causa final à causa formal, da causa material à causa eficiente.
Sem essa passagem, afirmam eles, a argumentação não vê a possibilidade de existência de um
acontecimento. E para impossibilitar esta argumentação causal, os métodos pseudo-científicos
dos revisionistas se apóiam em paradoxos sofísticos de enunciação, a enumeração
interminável e a divisão infinita, que impedem, com efeito, o estabelecimento das conexões
necessárias para afirmar a possibilidade de existência de um acontecimento, o seu efetivo
encadeamento
49
. Pois, o encadeamento de fatos deve ser argumentado, deve ser provado, para
49
Sobre os paradoxos sofísticos de enunciação, utilizados pelos revisionistas, acompanhemos a seguinte
argumentação proposta pelo ex-deportado Paul Rassinier, de 1950, trabalhada por Rancière. De acordo com ela,
mesmo que todos os elementos fossem demonstrados, parece ser impossível responder ao jogo das
possibilidades, a material e a intelectual, a que possibilita o encadeamento dos fatos e a que possibilita provar a
consistência subjetiva do pensado como pensável: “Realmente, dizia ele, houve declarações nazistas que
pregavam o extermínio de todos os judeus. Mas declarações nunca mataram ninguém por si sós. Realmente,
houve planos de câmeras de gás. Mas um plano de mara de gás e uma câmara de gás em funcionamento são
duas coisas tão diferentes quanto cem táleres possíveis e cem táleres reais. Realmente, houve câmaras de gás
instaladas de fato num certo número de campos. Mas uma câmara de gás é apenas uma fábrica de gás com que se
pode fazer todas as espécies de coisas diversas e acerca da qual não prova de que tivesse a função específica
do extermínio em massa. Realmente, ainda, havia, em todos os campos, seleções regulares ao cabo das quais
desapareceriam prisioneiros que nunca mais foram encontrados. Mas há mil maneiras de matar pessoas ou
simplesmente deixá-las morrer e as que desapareceram nunca nos dirão como desapareceram. Realmente enfim,
houve nos campos prisioneiros mortos de fato pelo gás. Mas nada prova que tenham sido vítimas de um
sistemático plano de conjunto e não de simples torturadores sádicos.” Cf. RANCIÈRE, J. O desentendimento, p.
127-128. Rancière analisa, em outro texto, como o revisionismo utilizou dessa impossibilidade de
estabelecimento da lógica aristotélica para negar a existência da Vernichtung alemã e para fazer com que
Touvier, estadista francês durante a ocupação alemã, fosse liberado de crime de estado contra a “humanidade”,
cf. RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p 239-245. Para melhor entendermos o que está em jogo
nestes paradoxos sofísticos de enunciação, é interessante que invoquemos a Platão, no seu livro Sofista. Eis o
que ele diz a respeito dessa artimanha sofista: “a tentativa de separar tudo de tudo é prova de grosseria e de
37
admitir-se a possibilidade de um acontecimento. Mas o que não cessa de contrariar a lógica do
realismo, e ao mesmo tempo, tanto a racionalidade historiadora quanto o revisionismo, é “o
acontecimento na medida em que ele ocorre sem se importar em saber se o conjunto das
condições de sua efetuação está realizado; é o real enquanto não-possível e impensável,
enquanto efeito impensável de um pensamento”
50
. Não obedecendo, portanto, a operações
causais logicamente formalizadas de caráter possibilista. Daí a incapacidade da história de
refutar o negacionismo, mesmo quando inúmeros documentos surgiram para provar o
extermínio. Os historiadores deveriam, assim, submeter estes documentos às operações
causais, mostrando o nexo da passagem de uma causalidade à outra. Não havendo
comprovação dos encadeamentos, o acontecimento é declarado impossível, e neste caso, é o
holocausto, o acontecimento declarado impossível.
Segundo axioma do realismo: a identificação do tempo com a crença
Não é somente em relação ao possível que giram os pressupostos do realismo. Se, por
um lado, o realismo é a identificação do acontecimento ao possível, por outro, o realismo é a
coincidência do tempo com a mentalidade de uma determinada época, do tempo com a
crença. O tempo do acontecimento possível é também o tempo que identifica a crença de um
tempo com a sua verdade, isto é, identifica o tempo com a mentalidade. A verdade de um
tempo torna-se idêntica a crença que nele vigorava. O verdadeiro de um tempo torna-se o que
é adequadamente dito em relação aos utensílios mentais de seu tempo. Ou seja, o tempo é
invocado em relação à crença, à mentalidade que o molda. Eis a razão de ser do anacronismo
absoluto alheamento das Musas e da filosofia. O mais radical processo para acabar com qualquer espécie de
discurso é isolar cada coisa do seu conjunto, pois o discurso nos surge pronto pelo entrelaçamento recíproco
das partes”. IN: PLATÃO. Sofista, 259e. Além disso, o livro de Platão nos permite também entender a natureza
da incapacidade, ou melhor, da impossibilidade da história do possível em refutar ao negacionismo. Nesse livro,
Platão aponta que a única forma prender o sofista por todos os lados, para que de modo nenhum ele escape, para
encurrá-lo, é afirmando a existência do não-ser ainda que Platão ao não-ser uma existência de natureza
negativa: o não-ser como o ser do outro que não é o ser; ou ainda quando ele afirma a existência do não-ser para
autenticar que o erro existe, e dessa forma, liga o não-ser ao erro. É exatamente neste ponto que os historiadores
do possível e os revisionistas estão situados num mesmo plano. Tanto os primeiros, ao afirmarem a
impossibilidade de existência do não-ser através do erro anacrônico, quanto os segundos, ao colocarem à prova a
existência do inacreditável o inacreditável material e intelectual do genocídio, visto que é impossível, segundo
a lógica aristotélica das causas, demonstrar a possibilidade material e intelectual do holocausto –, que é
improvável por definição; ambos se apoiam na afirmação da impossibilidade de existência do não-ser, do
impossível e do inacreditável. Em suma, a história do possível e o revisionismo dividem a crença que afirma a
inexistência do não-ser. Acerca disto, o pensamento de Deleuze, como veremos no terceiro capítulo, é decisivo
em reconhecer a existência do não-ser não como negativo, tal como fez Platão, e sim como afirmativo, como
“extra-ser”, como a própria Ideia.
50
RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p. 241.
38
como o maior erro da história. Não nada mais grave para o historiador do que cometer o
erro do anacronismo. O anacrônico é o que não é possível ser dito sobre um determinado
tempo; aquilo que não participa do sistema de possível de uma determinada época, que o
faz parte do corpo de crenças de um tempo. Acerca desta identificação do tempo com a
crença, Rancière analisa o caso Rabelais, de Lucien Febvre
51
. Não devemos perguntar se
Rabelais era um incréu, se isto era exato ou não. Rancière assinala: o anacronismo “não se
refere à verdade de uma asserção, mas à possibilidade da assertiva”
52
. O problema que Febvre
levanta é o seguinte: se era possível Rabelais ser um incréu, se era possível Rabelais não ser
um cristão de acordo com as estruturas mentais do século XVI. Isto é, se havia possibilidade
para esta ruptura. Será que o século de Rabelais permitia afirmar o não-ser da crença? Será
que as condições que tornariam o não-ser crença possível, haviam sido efetuadas pelas
aparelhagens mentais de seu tempo? A resposta de Febvre, como é consabido, é a de que não,
não era possível Rabelais ser um incréu porque as aparelhagens mentais de seu tempo não o
permitiam. Não havia tempo, no tempo de Rabelais, para o não-ser da crença. Vejamos a
citação de Febvre:
Nasce uma criança. Está viva. Sem demora, é levada à igreja e batizada, enquanto soam os
sinos, eles mesmos solenemente batizados pelo bispo (...) Morre um homem. Tenha ele ou não
determinado em testamento os detalhes de seu sepultamento (...) é enterrado “como se deve
ser”, cristãmente (...) O homem come e a religião cerca sua alimentação de prescrições, ritos
e interditos (...) Grassa a peste? Procissões (...) perigo para os frutos da terra, seca ou chuva
em excesso? Procissões
53
.
Como indica esta passagem, Febvre sugere que não havia tempo, no tempo de
Rabelais, para que ele fosse um não crente. Por conseguinte, como ainda não era possível, de
acordo com as aparelhagens mentais do século XVI, ser incréu, logo, não era possível que
Rabelais o fosse. O que significa que o tempo da crença é o único tempo possível. E é próprio
da crença que se acredite nela como único tempo possível. De qual maneira podemos, então,
fugir de um tal tempo? Como escapar à crença, à mentalidade coletiva de uma época
específica. Para fugir de um tal tempo, nessa perspectiva, só há dois caminhos: a) ou há razões
para ser incréu, isto é, a possibilidade, de acordo com as aparelhagens mentais autorizadas
pelo tempo, de acordo com a mentalidade coletiva de uma determinada época, para sê-lo,
coisa que o tempo de Rabelais não possuía; b) ou não razões, isto é, impulsos sem
fundamentos e sem alcance. Sem razões para não acreditar na crença, ou Rabelais foi louco ou
51
FEBVRE, Lucien. Le problème de l’incroyance au XVI siècle. Paris, Albin Michel, 1968.
52
RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p. 246.
53
FEBVRE, L. Apud RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p. 246.
39
não existiu. Estes dois pontos deixam claro a refutação do não-ser na ciência histórica: ou
Rabelais teve razões para ser incréu, e o não-ser da crença tornou-se o ser de uma outra
crença, adequadamente correspondente às estruturas mentais das quais é um produto; ou
Rabelais não teve razões, e o não-ser não pôde existir.
Rancière toma ainda um outro exemplo para pensar a identificação do tempo com a
crença no discurso histórico. Agora, ele toma por base um historiador numa tendência crítica
aos Annales. Para isso, ele invoca o caso do Jesus de Paul Veyne
54
. Segundo Rancière, Veyne
coloca o seguinte problema: o que há de novo na moral cristã senão os preceitos da moral
judaica? Ou seja, o que de novo no acontecimento do cristianismo? O Jesus de Veyne era
judeu, porque não era possível para alguém do tempo de Jesus não ser judeu, e as ideias do
Jesus de Veyne podiam ser as ideias de um judeu de seu tempo. Por ser produto de seu
tempo, não teve como o Evangelho se esquivar da moral judaica, pois era a crença judaica, a
mentalidade que moldava o tempo de Jesus. Contudo, o que ainda não havia terminado em
Febvre, não podia começar com Veyne. Pois, tanto o Rabelais de Febvre como o Jesus de
Veyne foram produtos de seu tempo, a ele estavam visceralmente ligados. É esta identificação
do tempo com a crença, que faz do anacronismo a prova ontológica da história: adquire
existência, para a ciência histórica, aquilo que for possível pelo seu tempo. Eis a identificação
em jogo aqui: “a identificação do existir com o ser de acordo com sua possibilidade”
55
[grifo
do próprio autor].
A partir da identificação do tempo com a crença, o modo do existir é reduzido às suas
condições de possibilidade. E é reduzido sob uma forma bem precisa: o modo de existência
do histórico torna-se idêntico a sua possibilidade de existir. O que foge a esta identificação cai
no erro do anacronismo. O anacronismo opera então como a prova ontológica desse existir.
Pois, tudo que é impossível de ser pensado em relação às crenças de um determinado tempo,
tudo que não está de acordo com as possibilidades de seu tempo, torna-se não-ser negativo
para o historiador. E a natureza dessa prova ontológica gira ao redor de uma negação: a
negação do impossível. “O que não é possível segundo o seu tempo é impossível. O que é
impossível não pôde ser”
56
. Dessa forma, o anacronismo, ao funcionar como a prova
ontológica da história, estabelece uma ontologia negativa que não cessa de refutar a existência
daquilo que não tem possibilidade de existir. Tudo o que não é possível, que é anacrônico,
54
Cf. VEYNE, Paul. Le pain et le cirque. Paris, Seul, 1976.
55
RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p. 248.
56
RANCIÈRE, J. O desentendimento, p. 131.
40
deve, nessa perspectiva, participar do negativo, do que não pôde ser, do inexistente. E assim, é
o próprio não-ser que se torna negativo, impossível e inexistente. É esta a operação
deslanchada pelo anacronismo como prova ontológica negativa da história
57
.
Terceiro axioma do realismo: a identificação do real com o realismo
Enfim, há uma última operação de identificação efetuada pelo realismo, decorrente das
duas anteriores. Indiretamente, falamos dela. Aliás, este axioma é a conjunção dos outros
dois. A identificação da lógica do acontecimento com a lógica do possível e a identificação do
tempo com crença nos remetem à identificação do real com os preceitos do realismo. Segundo
este axioma, o real é identificado ao realismo. O real possível do realismo é o que diz ter
suprimido toda aparência, todo simulacro, tudo aquilo que era ilusão e não-ser em nome do
possível. Mas ao fazê-lo, é o próprio real que é suprimido pelo realismo, pois este condiciona
o real ao possível. E vimos que o possível não diz respeito a uma experiência real e sim a uma
experiência lógica, puramente abstraída do real A racionalidade do possível, ao condicionar o
real ao possível, faz com que o real deixe de ser necessário e contingente, para estar
identificado ao possível. O pensamento do possível funda a supressão do real no seio da
racionalidade historiadora, justamente porque o possível funciona como uma transcendência à
qual deve se adequar o real, para ser contado como existente e válido. A transcendência é a de
um modelo lógico que serve de imagem para a caracterização do real. Somente passando pelo
crivo dessa imagem, o real pode fundar sua possibilidade. E esta imagem é exterior ao acaso
do real, às peripécias e encontros fortuitos que estão na base do real. Com efeito, os elementos
interiores e próprios ao real, o necessário e o contingente, devem ceder lugar a elementos
exteriores ao real, e, portanto, transcendentes. O modelo a ser copiado é o pensamento do
possível argumentativamente provado. O real identificado com o realismo é o real possível, o
real no qual só o possível pode existir.
Portanto, são três os axiomas constitutivos do realismo segundo Rancière: a
identificação do acontecimento com o possível, do tempo com a crença e do real com o
57
A historiadora da antiguidade, Nicole Loraux, no texto “Elogio do anacronismo”, propôs uma prática
controlada do anacronismo, que procura desfazer este preceito do historiador que entrega ao erro tudo o que não
é possível segundo o seu tempo. Segundo ela, o anacronismo controlado é aconselhável para o estudo dos
gregos. Nesse sentido, o elogio do anacronismo deve ser positivo de modo a realizar uma história do repetitivo,
no caso “os problemas gregos da democracia moderna”. Trata-se de uma repetição que traz algo de novo, que
produz uma diferença, pois o anacronismo permite, a partir da repetição, compreender a diferença entre a
democracia grega e a moderna, cf. LORAUX, N. “Elogio do anacronismo”. IN: NOVAES, A. (org). Tempo e
história. São Paulo: Companhia das letras, 1992, p. 57-70.
41
realismo
58
. Ou seja, uma tripla identificação posta em jogo pelo realismo. E assim, o
pensamento da identidade, da identidade do acontecimento com o possível, da identidade do
tempo com a crença, da identidade do real com o realismo, expulsa da racionalidade da
história o pensamento da diferença. Além disso, o pensamento do possível também instala a
racionalidade da história na negação do acontecimento, que o tempo do possível é aquele
que nega e impede o advento do acontecimento.
Esta tripla identificação, acontecimento e possível, tempo e crença, real e realismo,
nos coloca uma rie de questionamentos: qual é, de fato, o estatuto do acontecimento no
interior do realismo? Será que o acontecimento subsumido à instância do possível, o
acontecimento como possível de seu tempo, como o pensável de uma determinada época, não
é o acontecimento esvaziado de efetividade? Não é o acontecimento tornado impossível, já
que se torna prisioneiro de suas possibilidades? Pois, não é próprio do acontecimento a
realização de um impossível? O acontecimento não é aquele que põe em relevo uma
circunstância singular, necessária e contingente, formada pelo lance de dados do acaso, que
possui uma efetividade própria? Com efeito, o acontecimento não quer saber se ele é possível
ou não, ele é encontro, diferença e não-ser.
A supressão do acontecimento: o tempo anti-acontecimento
De acordo com as teses do realismo, em cada uma de suas dimensões, encontramos
uma veemente negação do acontecimento. O acontecimento, subsumido ao possível de sua
época, é negado e declarado impossível, justamente por ser a irrupção de um impossível. O
condicionamento do tempo à crença nega o acontecimento porque a afirmação de uma
mentalidade na qual se identifica tempo e crença, na qual o tempo é idêntico ao objeto da
crença, é a afirmação de um tempo uníssono com a crença, não podendo assim, existir o
tempo do acontecimento, pois o único tempo possível de existir é o tempo da crença, e a
mentalidade nada mais é senão uma crença desacontecimentalizada. Por fim, o real idêntico
ao realismo, nega o acontecimento porque o realismo é o partido do possível, deixando
escapar a dimensão real que é a do necessário e do contingente, sempre forjado por um lance
de dados do acaso. Graças a essa tripla negação, no atual regime de produção da ciência
histórica, vigora o discurso do tempo do anti-acontecimento.
58
RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p. 252.
42
O tempo anti-acontecimento defini-se como o tempo em que, diluído e esvaecido no
possível, o acontecimento torna-se impossível como objeto de pensamento da história, de
forma que o contingente e o necessário deixam de funcionar como o objeto da história. Logo,
o acontecimento deixa de ser o objeto da história, e passa a ser negado em razão do possível.
E é nessa negação do acontecimento, onde melhor se vê a incapacidade de resposta ao
revisionismo. Tanto a racionalidade da ciência história quanto o revisionismo, ancoram suas
teses na impossibilidade do acontecimento; nos dois casos, é a própria razão do
acontecimento que é negada
59
. Segundo a racionalidade da história, a razão do acontecimento
é negada em função do possível, pois só o que é possível conforme seu tempo pode existir, ou
seja, a razão do acontecimento existe se for possível. Segundo o revisionismo, o
acontecimento do holocausto é o alvo da negação, é o impossível de ter existido.
O niilismo contemporâneo consumado pelo realismo não é de modo algum uma
ameaça exterior ao discurso histórico, algo que do lado de fora incutiria o mal-estar entre os
historiadores. Foi no cerne da racionalidade historiadora o plano de sua manifestação, e,
portanto, foi no cerne da história onde ele pôde legitimar-se enquanto valor de verdade. Desde
a década de 30, sob a assinatura de escola dos Annales, a ciência histórica buscou delimitar
como seu campo de atividade mais o estudo das condições de possibilidade de um
determinado acontecimento do que propriamente o acontecimento. Esta foi a revolução
copernicana da história, que expulsou o acontecimento do seio da ciência histórica. A razão
de equiparar a revolução científica dos Annales à efetivada por Copérnico deve-se ao motivo
que foi sob o modo de pensamento executado pelos analistas, que a ciência histórica atingiu
seu limiar de cientificidade. Isso justifica o emprego da expressão revolução copernicana em
referência ao movimento dos Annales.
De forma esquemática, avaliando o sentido do deslocamento operado por esta
revolução, podemos afirmar que os Annales aproveitaram o rigor com o trato da
documentação oriundo da escola histórica oitocentista alemã, mas para aplicá-lo não ao que
os analistas chamaram de tempo curto dos acontecimentos e sim ao tempo longo das
estruturas, ao tempo longo da história social, dos grupos e instituições sociais, ao tempo
longíssimo, quase imóvel, dos espaços geográficos e à longa duração da mentalidade coletiva.
E a mudança no enfoque temporal não ocorre sem uma mudança na qualidade da massa
59
Para uma análise mais apurada da incapacidade em refutar o revisionismo negacionista e do debate sobre a
negação do holocausto, cf. RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p.240-242 e 244-246; e RANCIÈRE,
J. O desentendimento, p. 127-131.
43
documental que passará a constituir os materiais da história. Os documentos ligados à vida
dos grandes homens, reis, diplomatas, gênios etc., são substituídos pela papelada dos pobres,
papelada que atesta a vida material não de um homem ilustre, e sim a vida material de uma
população anônima, do povo.
Dessa forma, com o movimento dos Annales, o acontecimento abandona o horizonte
de questões do historiador. Pois, para os analistas, o acontecimento é comparado às ondas
superficiais que muito de levemente agitam o oceano imóvel. outras temporalidades
mais profundas que a vida dos indivíduos, que os acontecimentos políticos. É a longíssima
duração dos tempos geográficos ou a média duração dos tempos dos grupos sociais. Assim, ao
tempo curto dos acontecimentos do vel das ilustres vidas individuais, dos eventos políticos,
os historiadores devem acrescentar os tempos médios dos grupos sociais ou o tempo longo
dos espaços geográficos. O jogo incessante entre esses tempos irá caracterizar, segundo
Braudel, o ofício do historiador. De forma que os acontecimentos, chamados a partir de então
de eventos de curta duração, devem ser diluídos em ciclos mais vastos e seculares, e por estes
ciclos eles devem ser explicados. Os ciclos tornam-se, nessa perspectiva, as condições de
possibilidades pelas quais o acontecimento, o evento, deve submeter-se. Isto é, os analistas
privilegiaram como domínio da história as longas durações, as condições materiais da vida
produtiva de uma civilização, as mentalidades coletivas. Em suma, a análise do tempo da
estrutura veio substituir a análise do tempo do acontecimento. O exemplo da impossibilidade
de não crença de Rabelais é bastante sintomático a esse respeito.
Sabe-se que, junto com Bloch, Febvre foi um dos fundadores da escola dos Annales.
Contudo, não podemos reduzir a um ponto de vista exatamente comum a maneira pela qual os
analistas trataram do acontecimento. O livro de José C. Reis, Nouvelle Histoire
60
, mostra que,
ao longo das gerações, como o caso de Febvre e de Braudel, e no interior delas próprias, como
o caso Bloch e Febvre, houve uma heterogeneidade na maneira de lidar com o acontecimento.
Entretanto, de toda forma, guardando o enfoque diferenciado, o sentido do deslocamento é o
mesmo: o rechaço do tempo do acontecimento, o tempo da curta duração. Para empregarmos
uma expressão, segundo Braudel, consagrada a Simiand, mas forjada por Paul Lacombe,
trata-se da história ocorrencial, da história dos eventos. A troca das noções não é sem
significado. Evento vem marcar o tempo curto da vida dos indivíduos, aquilo que de mais
mutante no transcorrer da história. Braudel nos apresenta uma coleção de imagens e metáforas
60
Cf. REIS, José C. Nouvelle Historie e o tempo histórico. São Paulo: Ática, 1994, p. 28-31.
44
que visam demonstrar o caráter fugidio do evento: espumas flutuantes na superfície de um
mar profundo, história ardente dos contemporâneos, lampejos efêmeros de raios que iluminam
rapidamente a escuridão da noite na Bahia, fumaça excessiva que enche a consciência dos
contemporâneos, mas que não dura nada, somente vê-se sua chama. Por conseguinte, o mais
decisivo na efetivação da troca de noções é o fato de que a noção de evento porta um sentido
preciso. É o que diz Braudel no artigo “História e Ciências sociais. A longa duração”, de
1958:
um evento, a rigor, pode carregar-se de uma série de significações ou familiaridades. Dá
testemunho por vezes de movimentos muito profundos e, pelo jogo factício ou não das
“causas” e dos “efeitos” caros aos historiadores de ontem, anexa um tempo muito superior à
sua própria duração. Extensível ao infinito, liga-se, livremente ou não, à toda uma corrente de
acontecimentos, de realidades subjacentes.
61
Com a noção de evento, a escola dos Annales organiza o tempo do acontecimento
isto é, o tempo dos acontecimentos políticos em relação aos “outros” tempos que cruzam a
sociedade. A realidade social, então, passaria a ser atravessada por tempos múltiplos, de
variadas durações: algumas curtas e outras mais longas. Essa temporalidade múltipla do corpo
social, Braudel, no texto citado, denomina uma dialética das durações. Mas, a dialética das
durações, proposta por Braudel, ao afirmar uma multiplicidade temporal para a sociedade, não
deixa de atribuir o tempo às coisas, ela não liberta o tempo das coisas, seja o Sol, segundo a
concepção platônica do tempo, seja os indivíduos, as instituições ou os espaços geográficos,
ainda estamos falando sobre um tempo preso ao movimento, às coisas.
Novamente, adiantando um pouco a ordem de exposição, seguindo uma ideia da
filosofia da diferença e da repetição, é necessário ver diferenças de natureza entre essas
diferenças de grau, pois, curto ou longo, a variação ainda é de grau. O tempo do
acontecimento, segundo Deleuze, não é simplesmente uma variação de grau de um mesmo
tempo. Ao tempo das coisas fixas e medidas, ao tempo do Cronos, é preciso opor o tempo do
Aion, o tempo sem medida, o tempo liberto dos gonzos. Ou seja, o tempo do acontecimento
não difere somente em grau do tempo das coisas fixas, seja ele o tempo curto ou o tempo da
longa duração. O tempo do acontecimento para Deleuze é um tempo de uma outra natureza. É
o tempo do virtual que não cessa de atualizar-se distintamente, sempre variando em sua
repetição. Eis então porque Deleuze retoma a fórmula de Hamelet para tratar do problema do
tempo: o tempo está fora dos gonzos. Pois, o tempo liberado de seu eixo, é o tempo que não
61
BRAUDEL, F. “História e Ciências Sociais. A longa duração”. IN: BRAUDEL, F. Escritos sobre a história.
Trad. J. Guinsburg e Teresa Mota. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 41-77.
45
se rebate sobre o círculo ou ciclo. É o tempo do desvio incessante que fratura o círculo, é o
tempo do eterno retorno da diferença. A forma do ciclo é a forma assumida pelo tempo
segundo a ordem das coisas, do movimento, ou a forma da dialética das durações. Daí a
diferença de natureza: o tempo fora dos gonzos é o tempo descentrado, é o tempo que rompe
o círculo. Acompanhando Peter Pál Pelbart, no texto citado, ao invés do círculo, a forma do
tempo do acontecimento é a forma do turbilhão, do labirinto.
Levando isso em conta, desde a escola dos Annales, e cada vez mais, a idéia da
condição de possibilidade passou a ocupar uma função de relevo na disciplina histórica, que
tem por correlato a prova ontológica negativa postulada pelo erro do anacronismo. E de tal
consideração devem, então, partir os pressupostos históricos validados como legítimos. Já não
se trata mais, como faziam os historiadores de outrora, os historiadores da velha escola
histórica, de pensar como um acontecimento sucedeu, quais foram suas causas e
conseqüências, como ocorreu, em suma, para usar uma expressão que foi comum entre eles.
A partir dos Annales, o problema tornou-se pensar quais foram as condições que tornaram um
determinado acontecimento possível, quais foram os produtos do tempo deste acontecimento
que o tornaram possível. Ou seja, quais foram os fatos de longa duração que compõem as
condições de possibilidade de um acontecimento.
E subsumir a razão historiadora às condições de possibilidade de um acontecimento, é
identificar o tempo com sua possibilidade. Para usar uma fórmula de Rancière: existe
possível segundo o tempo
62
. Sendo interior ao discurso histórico, o realismo é a supressão do
acontecimento, a afirmação do tempo anti-acontecimento, do tempo idêntico a sua
possibilidade, justamente porque existe possível, nesse sentido, caso este possível seja
idêntico ao tempo do qual ele é um produto. Ou seja, o acontecimento deve ser idêntico ao
pensamento do possível para existir. Foi graças ao entrelaçamento entre o tempo, o possível e
o real, que o acontecimento foi suprimido do discurso histórico como objeto da história. O
acontecimento possível não tem necessidade de existir, logo, não tem efetividade. Pois, num
acontecimento possível não espaço para a realização de um impossível e de um
impensável, que são próprios ao real. Os historiadores do possível afirmam a redução do
acontecimento às suas condições de possibilidade. O acontecimento deve ser suprimido de
acordo com o jogo das possibilidades que o reduzem à vinda do único possível e ao pensável
enquanto possível liberado pelo tempo. Com efeito, o acontecimento perde lugar na razão
62
RANCIÈRE, J. “Enunciados do fim e do nada”, p. 242.
46
historiadora do possível por sempre vir acompanhado de um impossível e de um impensável,
por vir acompanhado disso que foi declarado inexistente pelo realismo. Por isso, a força da
argumentação revisionista, que comuta da mesma crença historiadora, que é a impossibilidade
de existência do acontecimento, a impossibilidade de existência do não-ser.
Além dos autores citados, dentre outros, gostaríamos mencionar aqui uma passagem
do historiador cultural Roger Chartier, da cada de 80, que enfatiza o que dissemos há
pouco. Ao analisar as mudanças e transformações pelas quais atravessou a ciência histórica,
principalmente no que tange às captações feitas pelos historiadores da década de 70 aos novos
modos de inteligibilidade do material histórico, modelos oriundos das ciências sociais,
Chartier afirma:
A questão com que se defronta a história nos dias de hoje é a passagem de uma validação
do discurso histórico, fundado no controle das operações que estão na sua base (...), a um
outro tipo de validação, permitindo encarar como possíveis, prováveis, verossímeis, as
relações postuladas pelo historiador entre os vestígios documentais e os fenômenos
indiciados por eles
63
.
A afirmação de Chartier indica que é o regime de verdade da história que passou por
uma transformação em seu modo de validação. De acordo com este novo modo, portanto,
deve haver uma correspondência possível entre os vestígios de um acontecimento e o
acontecimento por eles reconstruído. Mais uma vez, o historiador deve prestar contas com o
pensamento do possível. De tal maneira que os materiais históricos devem revelar o
acontecimento possível a partir de uma determinada materialidade. No exemplo de Chartier, o
sistema do possível deve ser inferido das relações causais que o historiador estabelece entre o
arquivo e o acontecimento. As relações estabelecidas entre o arquivo e o acontecimento - ou
os fenômenos - devem passar pelo crivo das operações causais que partem de um pensamento
do possível.
A intenção desta passagem é dar ainda mais corpo ao que insistíamos acerca do
realismo: um modo de racionalidade presente na atividade histórica, que se estabelece a
partir de uma valorização do pensamento do possível. Por conseguinte, deriva do realismo
uma tripla identificação: a identificação do acontecimento ao possível, do tempo à crença, do
real ao realismo. Sendo assim, o realismo promove um entrelaçamento específico entre o
tempo, o possível e o real, cujo principal efeito é a negação e a aniquilação do
acontecimento. É a vez do tempo anti-acontecimento, da negação da razão do acontecimento
como racionalidade da história.
63
CHARTIER, Roger. A história cultural, p. 86. Grifo nosso.
47
É em relação a esta negação que pensamos poder situar o pensamento de Deleuze na
racionalidade da história. Pensamos, inclusive, que o pensamento deleuzeano pode fornecer
uma “linha de fuga” para a imagem de pensamento consagrada pelo realismo, que este
autor efetiva em seu pensamento uma ontologia afirmativa do acontecimento e um tempo
virtual que desfaz este nó entre o pensamento, o possível e o real.
Entretanto, antes de avançarmos pela exposição do modo segundo o qual Deleuze faz
desviar o pensamento histórico dos pressupostos do realismo, traçando a “linha de fuga” que
este pensamento fornece, é preciso antes que repensemos uma questão específica: o paradoxal
posicionamento de Deleuze em relação à história. Isto é, antes de escandir a maneira segundo
a qual o pensamento de Deleuze desfaz os pressupostos e axiomas do realismo, é preciso,
outra vez, que nos instalemos na paradoxal relação que este pensamento estabelece com a
história. É preciso ver, mais atentamente, como o pensamento de Deleuze se comunica com a
história, como se interage com ela. Expusemos anteriormente duas razões acerca desta relação
paradoxal, a próxima e a distante, a incessante incorporação-reformulação pelas quais são
tratados os problemas e os conceitos históricos que dão corpo ao pensamento de Deleuze e a
distância de sua obra às dos historiadores, que Deleuze coloca sob um outro plano o
acontecimento. Não é que estas razões estejam erradas ou sejam falsas, mas é que elas são
insuficientes para a caracterização da relação, porque ainda não dizem nada a respeito da
natureza singular deste pensamento em sua relação com a história. Pois, certamente é preciso
percorrer o sentido do desvio que este pensamento não cessa de operar em relação à história,
um desvio interior a este pensamento. É preciso aventurar nesse mundo que se abre ao
historiador quando se fala do acontecimento. E o que estas razões insuficientes não
demonstram é um aspecto interior ao pensamento de Deleuze que o que pensar para o
historiador: trata-se do esforço em traçar uma irredutibilidade do devir em relação à história.
Podemos verificar que esta irredutibilidade ganha consistência no decorrer de sua
démarche
64
. E à medida que a distinção ganha consistência, mais Deleuze procura expor o
sentido desvio. De antemão, adiantamos: não devemos pensar o devir como um oposto
simétrico à história. E sim, como uma dimensão imanente que atravessa a história,
distinguindo-se dela, mas que não lhe é de forma alguma preexistente. Sem dúvida é de
especial importância a análise do conceito de devir, caso queiramos pôr em relação o
64
Cf. a entrevista dada a Toni Negri, citada mais a frente, “Controle e devir”. IN: DELEUZE, G. Conversações.
Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: 34, 1992, p. 209-218.
48
pensamento de Deleuze e a história, e situar o posicionamento de Deleuze frente à história.
Inclusive se quisermos precisar a própria noção de história que está em jogo. E mais: é preciso
que enfrentemos esta contradição aparente que invalida nossos estudos. Pois, se o pensamento
de Deleuze excluísse radicalmente a história, o que seríamos levados a aceitar caso esta
distinção fosse exclusiva e radical, não teria sentido algum propor uma aproximação entre
estes conjuntos, caso houvesse uma clivagem excludente entre eles.
49
Capítulo segundo: O devir e a história
Neste segundo capítulo, inicialmente, pretendemos analisar o que está em jogo quando
Deleuze aponta para a irredutibilidade do devir à história. Através da análise dessa distinção,
buscamos apontar para o que faz com que este autor, cada vez mais, afaste-se da história – tal
como ele a concebe – e busque outros planos para seu pensamento, que não são rigorosamente
os históricos.
O conceito de devir é um personagem de relevância para o teatro afirmado pelo
pensamento de Deleuze. Por este conceito, passam algumas de suas invenções mais
singulares. Com efeito, conceitos oriundos do pensamento de Deleuze adquirem consistência
e ganham precisão quando os relacionamos com a noção de devir.
Introdução a irredutibilidade do devir à história
Para analisar esta distinção, ao mesmo tempo precisa, tênue e móvel, entre o devir e a
história, partiremos de uma sucinta indicação encontrada na entrevista que Deleuze concede a
Christian Descamps, a Robert Maggiori e a Didier Eribon
65
. As perguntas que o último coloca
versam exatamente sobre a relação do pensamento de Deleuze com a história. Em resposta a
uma dessas perguntas, encontramos uma passagem bem sugestiva para nosso trabalho. Ao ser
indagado sobre a relação que seu pensamento estabelece com a história, Deleuze diz:
- A história certamente é muito importante. Mas quando você toma qualquer linha de pesquisa,
ela é histórica numa parte de seu percurso, em certos lugares, mas também é a-histórica, trans-
histórica... Em Mille Plateaux, os “devires” têm muito mais importância que a história
66
.
Primeiramente, Deleuze considera a história muito importante. Em segundo,
transparece aquilo que parece ser irredutível à história, o a-histórico e o trans-histórico como
dimensões distinguidas da história. Em terceiro, vemos que a noção de devir adquire primazia
frente à história no pensamento deste autor. Certamente, Deleuze não foi o primeiro a utilizar
o conceito de devir. Sabemos que quem cunhou este conceito, e lhe atribuiu um estatuto
filosófico, foi Nietzsche. Não obstante, não nos cabe aqui explorar o profícuo encontro
65
DELEUZE. G. “Entrevista sobre Mille Plateaux”.
66
Idem, p. 43.
50
Nietzsche-Deleuze
67
, nosso intuito é apenas expor os elementos implícitos na configuração do
conceito de devir presente em determinadas obras de Deleuze. Por isso, apenas indicamos a
vinculação ao pensamento de Nietzsche do conceito de devir
68
. Mas, esta vinculação não
impede a aparição de discrepâncias entre o pensamento de Nietzsche e o de Deleuze acerca
desta noção. Pois, para Nietzsche, o devir é o movimento do eterno retorno do mesmo. E para
Deleuze, ele é o movimento do eterno retorno da diferença.
Numa outra entrevista, Deleuze retoma a relação de seu pensamento com a história, e
de novo, o autor retoma à Nietzsche. Após Toni Negri lhe perguntar sobre a natureza do
Intempestivo, da realização da contra-efetuação, que é própria ao acontecimento, Deleuze diz:
- É que cada vez mais fui sensível a uma distinção entre o devir e a história. Nietzsche dizia
que nada de importante se faz sem uma “densa nuvem não histórica”. Não é uma oposição
entre o eterno e o histórico, nem entre a contemplação e a ação: Nietzsche fala do que se faz,
do acontecimento mesmo ou do devir. O que a história capta do acontecimento é sua efetuação
em estados de coisa, mas o acontecimento em seu devir escapa à história (...) O devir não é
história
69
.
Nessa passagem, aspectos relevantes são dimensionados: não se trata de uma oposição
entre o eterno e o histórico e muito menos de estado de coisas, mas sim se trata do devir, do
acontecimento, da nuvem densa que marca o acontecimento. Conforme o que esta passagem
diz, o devir não se confunde com a história porque a história lida com os acontecimentos ao
nível da sua efetuação em estados de coisas. Já o devir é da ordem do acontecimento que
67
A aliança Nietzsche-Deleuze é fundamental para o pensamento de Deleuze. De todos os autores que utiliza,
podemos afirmar que é Nietzsche o mais valorizado pelo pensamento de Deleuze; o que afeta este pensamento
com mais intensidade. Com Nietzsche, o pensamento de Deleuze se junta para formar vários conceitos: devir,
vontade de potência, eterno retorno, relação de forças etc. É certo que Deleuze modifica os conceitos oriundos da
obra de Nietzsche, para incorporá-los em seu pensamento. Veremos o sentido desta incorporação mais adiante.
Ela diz respeito a um aspecto muito importante do pensamento de Deleuze: o seu modo de atravessar a história
da filosofia. Sobre a relevância de Nietzsche no pensamento de Deleuze, dentre as inúmeras disponíveis, cf.
“Carta a um crítico severo”. In: Conversações. p. 14-15. Além de citações em inúmeros textos, e alguns artigos
sobre este filósofo, Deleuze escreveu dois livros sobre Nietzsche: DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad.
Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976 e DELEUZE, G. Nietzsche. Paris:
PUF, 1965. Vale mencionar ainda os eventos organizados aqui no Brasil por Daniel Lins, Deleuze/Nietzsche,
que procuram abordar os múltiplos encontros entre Deleuze e Nietzsche, cf. LINS, D.(org). Nietzsche e Deleuze:
pensamento nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001; e LINS, D. & GIL, J (orgs). Nietzsche/Deleuze;
jogo e música. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza: Fundação de Cultura, Esportes e Turismo, 2008.
68
Para uma análise mais detalhada da vinculação nietzscheana do conceito de devir, e mesmo da importância de
Nietzsche para a filosofia da diferença, cf. FORNAZARI, Sandro K. O Esplendor do Ser. Tese de doutorado.
São Paulo: USP, 2005. Capítulo III: “Nietzsche e a Diferença”, p. 102-138. Para uma referência mais geral
acerca da importância da relação Nietzsche e Deleuze, cf. RUTIGLIANO, Francisca T. S. Gilles Deleuze: o
drama da diferença. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 1998. No trabalho de Rutigliano, encontra-
se uma aproximação do pensar deleuzeano ao pensar nietzscheano, tendo em vista a crítica radical efetuada por
Deleuze, mas que já havia sido lançada por Nietzsche, aos pressupostos morais que fundam a imagem do
pensamento dogmático da representação, em nome de um pensamento da diferença. Ou ainda, MACHADO, R.
Deleuze e a filosofia, 2ª parte: o ápice da diferença – “Nietzsche e a repetição da diferença”, p. 81-96.
69
DELEUZE. G. “Controle e devir”, p. 210-211.
51
escapa à história, desvia-se dela para criar algo distinto de estados de coisa. Todavia, de
antemão, é preciso advertir e enfatizar que a distinção entre o devir e a história não é absoluta,
exclusiva e livre de contatos. Muito pelo contrário, estas noções estão num incessante
processo de interação e captura. Já dissemos que o devir não preexiste à história. Por seu lado,
a história não cessa de capturar o devir e rebatê-lo sobre os estados de coisa. Embora Deleuze
demonstre que estas noções remetem a dimensões distintas, elas estão em processo de
pressuposição recíproca. Só há devir na história e todo devir é histórico, ainda que o devir não
se esgote na história.
Até agora, invocamos duas passagens, que nos permitem perceber uma irredutibilidade
entre o devir e a história. Mas se, conforme foi dito anteriormente, esta distinção ganha força
ao longo de sua démarche, sem dúvida devemos supor que esta distinção atravessa momentos
em que sua forma muda, pois, não é senão o próprio pensamento de Deleuze que muda ao
longo de seu percurso. As entrevistas mencionadas, embora possuam dez anos de distância, a
primeira é de 1980 e a segunda, de 1990, ambas apresentam um ponto de vista mais ou menos
contíguo sobre esta distinção. Nelas, a distinção está estabelecida. Mesmo que na última
citação a distinção apareça com mais elementos, as duas citações possuem um ponto de vista
bastante contíguos, já que a nuvem densa não histórica de forma alguma exclui a efetuação do
devir em estados de coisa. Aliás, esta nuvem densa, que Deleuze remetendo a Nietzsche
batiza de Intempestivo, é o que se efetua nos estados de coisas. De todo modo, devemos
alertar que a primeira entrevista foi realizada tendo em vista o projeto de Mil Platôs, e a
segunda, o projeto de O que é a filosofia?. E apontamos estas duas obras como textos chaves
para percorrermos o sentido segundo o qual aparece a irredutibilidade do devir à história no
pensamento de Deleuze. Mesmo que se trate de obras escritas em conjunto com outro autor,
Félix Guatarri, nelas o conceito de devir adquire consistência, adquire um plano autônomo. E
é devido a essa consistência que a distinção entre o devir e a história será encaminhada.
Por isso, é preciso que avaliemos estas obras mais de perto. Nelas, e principalmente
em Mil Platôs, o conceito de devir atinge a um estatuto próprio, estatuto que é preciso
conceber para desdobrarmos o sentido da irredutibilidade. Dessa forma, ao buscar uma
melhor compreensão acerca desta distinção, intentaremos explicitar o modo em que o
conceito de devir é apresentado nessas obras e como nelas a irredutibilidade é encaminhada.
Com efeito, a apreciação destas obras segue o seguinte roteiro: em Mil Platôs nos atentamos
para o modo como a noção de devir encontra-se elaborada, e em O que é a filosofia? nos
52
atentamos para o modo como a distinção entre o devir e a história é posta, pois neste livro ela
será trabalhada com mais elementos.
O devir
Em se tratando de Mil Platôs podemos extrair vários pontos relevantes acerca do
devir. Pois, é neste livro onde encontramos o maior esforço de elaboração do conceito de
devir e uma tentativa de colocá-lo em relação singular com a produção do desejo, com a
produção do pensamento. Além de este conceito perpassar todo o livro, em Mil Platôs ele é
exclusivamente analisado no décimo platô: “Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-
Imperceptível...”. Este platô possui uma forma bem interessante, ele é composto por espécies
de contos-lembranças: Lembrança de um espectador, de um naturalista, de um feiticeiro, de
um bergsoniano, de um teólogo, a um espinosista, de uma hecceidade, de um planejador, de
uma molécula, do segredo... Lembranças que os autores nos dizem que também poderiam se
chamar devires
70
. Ao longo do platô, mudando e repetindo os personagens, Deleuze e
Guatarri desdobram os aspectos operacionais do devir. Isto é, eles mostram como é um devir
em operação, em funcionamento, e qual a natureza desse funcionamento. Gostaríamos de
acompanhar de perto a exposição dos autores, que começam aludindo ao exemplo do devir-
animal tal como retratado no filme Willard (1972, Daniel Mann). Eis como Deleuze e
Guatarri nos escrevem o filme:
Willard vive com sua mãe autoritária na velha casa de família. Terrível atmosfera edipiana. A
mãe manda-o destruir uma ninhada de ratos. Ele poupa um (ou dois, ou alguns). Depois de uma
briga violenta, a mãe, que “parece” um cachorro, morre. Willard corre o risco de perder a casa,
cobiçada por um homem de negócios. Willard gosta do rato principal que ele salvou, Ben, e
que se revela de uma prodigiosa inteligência. Há ainda uma rata branca, a companheira de Ben.
Quando volta do escritório, Willard passa todo seu tempo com eles. Eles agora proliferaram.
Willard conduz a matilha de ratos, sob o comando de Ben, para a casa do homem de negócios,
e o faz morrer atrozmente. Mas, ao levar seus dois preferidos para o escritório, comete uma
imprudência, e é obrigado a deixar os empregados matarem a branca. Ben escapa, depois de
um longo olhar fixo e duro sobre Willard. Este conhece então uma pausa em seu destino, em
seu devir-rato. Com todas as suas forças, tenta ficar entre os humanos. Até aceita as
insinuações de uma garota do escritório que “parece” muito uma rata, mas justamente só
parece. Ora, um dia em que convida a garota, disposto a se fazer conjugalizar, re-edipianizar,
ele revê Ben, que surge rancoroso. Tenta enxotá-lo, mas é a garota que ele enxotará, e desce ao
porão para onde Ben o atrai. Lá, uma matilha inumerável o espera para despedaçá-lo
71
.
70
Ver: DELEUZE, G. & GUATARRI, F. “Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível...”. IN:
DELEUZE, G. & GUATARRI, F. Mil Platôs. Vol. IV. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: 34, p. 92: “Cada vez que
empregamos a palavra "lembrança" nas páginas precedentes foi, portanto, erroneamente, queríamos dizer ‘devir’,
diríamos devir”.
71
DELEUZE, G. & GUATARRI, F. Idem, p. 12. Grifo dos autores.
53
Para os autores, vários elementos do devir estão presentes: um devir que não se reduz
à semelhança, sendo que nela o devir se estancaria, a mãe que “parece” um cachorro e garota
que até “parece” uma rata; um devir-molecular, já que se fabrica uma proliferação de ratos;
um efeito de matilha, que mina as potências molares do tipo família; uma escolha maléfica
com o preferido, o rato Ben, e um contrato de aliança, a destruição do homem de negócios;
um agenciamento de uma minoria, de uma máquina de guerra, a ninhada de ratos; e enfim,
uma circulação de afetos impessoais, o devir-rato que não atravessa o rato Ben, como
também o próprio Willard. Embora referidos aqui ao segmento do devir-animal, os elementos
indicados apontam para componentes que pertencem aos heterogêneos blocos do devir.
Antes de apresentarmos os desdobramentos destes componentes inerentes ao devir,
convém indagarmos que, ao partirmos do exemplo de um devir-animal, tal como foi exposto
em um filme, não estaremos deslocando a argumentação, sobretudo porque pretendemos
colocar em relação o pensamento de Deleuze e a história? Não estaremos, por isso, falseando
ou colocando mal o problema? Ou é o devir que é da ordem da irrealidade? Nem um nem
outro. O que acontece é que o devir possui uma natureza própria e singular. Ele não é da
ordem da imitação, da semelhança, do mesmo ou da analogia, e sim da ordem dos
componentes anteriormente sumariados. Daí, os autores insistirem na falência tanto das séries
quanto das estruturas para pensar o devir-animal conforme, respectivamente, a história natural
ou o evolucionismo. Se a história natural e o evolucionismo buscaram pensar as relações
objetivas dos animais entre si, eles o fizeram a partir ora da série e ora da estrutura. Isto é,
segundo os autores, sempre que a história natural ou o evolucionismo tentaram pensar as
relações dos animais entre si, seja sob a forma da classificação, seja sob a forma da filiação,
eles o fizeram em consonância com um pensamento da analogia, da semelhança e do mesmo.
As séries da história natural, a relação entre A e B, produzem imitações ao reunir os
elementos heterogêneos a partir de uma razão de série semelhante: analogia de proporção.
Segundo a série, o problema é graduar e organizar as semelhanças e as diferenças, tendo em
vista a razão da série como razão da imitação. As correspondências funcionais e estruturais do
evolucionismo, A está para B assim como C está para D – as brânquias estão para a respiração
na água como os pulmões estão para a respiração no ar –, produzem uma imitação das
diferenças que se assemelham em uma estrutura: analogia de proporcionalidade.
Nesse ponto, Deleuze e Guatarri indicam como parte deste problema da história
natural e do evolucionismo está presente também na teologia: uma redução do devir a uma
54
forma analógica. Pois, estes saberes estão comprometidos com uma subordinação do devir à
mimese. Para o caso da teologia, há um comprometimento do tema da série e da estrutura com
a Natureza segundo o princípio da imitação: ora são os seres que não param de imitar, tendo o
divino como razão de rie, analogia de proporção; ora é a Natureza, o modelo conforme o
qual todos imitariam, analogia de proporcionalidade.
Contudo, as relações objetivas dos animais entre si entram nas relações subjetivas do
homem com o animal: “acontece que as relações objetivas dos animais entre si foram
retomadas em certas relações subjetivas do homem com o animal”
72
. Em todo caso, mesmo ao
nível dessas relações subjetivas, ainda estamos lidando com as séries e com as estruturas
regidas pela imitação, seja do ponto de vista da imaginação coletiva, seja do ponto de vista de
um entendimento social. Neste nível, Deleuze e Guatarri avaliam as séries, invocando a teoria
do Arquétipo, enquanto inconsciente coletivo, da forma que Jung a concebeu. Nas séries do
inconsciente coletivo, os animais se tornam a razão da série, do ponto de vista dos sonhos, dos
mitos e das coletividades. Conforme as séries, um seguinte tratamento das imagens é
estabelecido: “uma imagem perturbadora estando dada, trata-se de integrá-la em sua rie
arquetípica”
73
. E essa integração é feita a partir de um mecanismo da semelhança: um
elemento é integrado a uma série em consonância com sua semelhança ao termo eminente da
série, segundo a analogia de proporção. Eis como, então, retorna o tema da série, agora ao
nível das relações subjetivas entre o homem e o animal.
Para o caso da estrutura, Deleuze e Guatarri invocam o totemismo de Lévi-Strauss,
onde as homologias internas substituem as semelhanças externas. Segundo os autores: “não se
trata mais de instaurar uma organização serial do imaginário, mas uma ordem simbólica e
estrutural do entendimento”
74
. Isto é, o caso não é mais o de integrar uma imagem a uma
série arquetípica da imaginação em função de sua semelhança com o termo eminente da série.
Trata-se, agora, de ordenar as diferenças, de estabelecer as correspondências das relações
entre diferentes grupos humanos e diversas espécies animais. De modo que no totemismo, não
a identificação do homem com o animal, não a identificação de um determinado grupo
humano a tal espécie animal, o que são relações análogas entre grupos humanos e animais
distintos: “se dois grupos humanos são dados, tendo cada um seu animal-totem, será preciso
encontrar em que os dois totens estão tomados em relações análogas às dos dois grupos o
72
Idem, p. 15
73
Idem, ibidem.
74
Idem, p. 16.
55
que a Gralha é para o Falcão...”
75
. Com o estruturalismo, a mimese muda de plano. Já não se
imita mais partindo da semelhança as semelhanças que se diferem –, e sim partindo das
diferenças, são as diferenças que se assemelham, segundo a analogia de proporcionalidade. E
ao substituir a analogia de proporção pela analogia de proporcionalidade, as correspondências
de relações, as homologias internas, passam a valer mais do que a seriação das semelhanças,
do que a ordenação das semelhanças externas. No intuito de enfatizar esta transição do
modelo analógico acerca das relações subjetivas entre o homem e o animal, de uma analogia
da proporção a uma analogia da proporcionalidade, que de nenhuma forma sai do pensamento
mimético, Deleuze e Guatarri enfatizam a maneira pela qual o tema serial do sacrifício foi
substituído, em Lévi-Strauss, pelo tema estrutural da instituição totêmica
76
.
Assim, do ponto de vista das relações subjetivas entre o homem e o animal, será que
os devires-animais se esgotam no modelo serial do sacrifício ou no modelo estrutural do
totemismo? Contrariando estes dois modelos, os autores nos apresentam um outro tipo de
fenômenos para caracterizar os devires: os fenômenos de feitiçaria.
Pois, nos dois casos precedentes, no caso da rie e da estrutura, o devir-animal é
tomado segundo um modo de pensamento que, preso à forma analógica, mantém com a
semelhança uma relação fundamental: ora são “semelhanças que diferem ao longo de toda
uma série, ou de uma série a outra”
77
, ora são “diferenças que se assemelham numa estrutura,
e de uma estrutura para outra
78
. Pode-se sempre tentar explicar o devir em termos de
analogia, seja através das séries seja através das estruturas, mas fazer isso é empobrecer e
reduzir o fenômeno.
Todavia, se o devir-animal não é da ordem da imitação, da semelhança e da analogia,
se não é nem graduação das semelhanças numa série nem ordenação das diferenças numa
estrutura, qual seria, afinal, sua natureza? Outra vez, vejamos o que dizem os autores:
Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma
imitação e, em última instância, uma identificação. (...) Os devires-animais não são sonhos nem
fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois se o devir animal
não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna
“realmente” animal, como tampouco o animal se torna “realmente” outra coisa. (...) É uma
falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio devir, o
bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna
79
.
75
Idem, ibidem.
76
Ver: Idem, p. 17.
77
Idem, p. 13.
78
Idem, ibidem.
79
Idem, p. 18.
56
Visto isso, temos que o devir não é nem imitação nem identificação. Ele possui uma realidade
própria. O “devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos
conduz a ‘parecer’, nem ‘ser’, nem ‘equivaler’, nem ‘produzir’”
80
. E é devido a essa
consistência singular do devir e a essa realidade própria, que devemos compreender os
fenômenos de devir ao lado dos fenômenos de feitiçaria. Tanto em um quanto no outro, não
devemos aniquilar a realidade própria que invocam, muito menos devemos remetê-los à
faculdade da imaginação. Nos dois casos de fenômenos, com efeito, estamos lidando com
dimensões reais: os movimentos e os transportes locais operados pelo devir-animal e pelo
devir-feiticeiro são efetivos.
Isto se porque estes fenômenos são da ordem da aliança, da simbiose, da
proliferação por contágio e não por dependência ou filiação. Eis a guinada proposta pelo neo-
evolucionismo segundo os autores: pensar uma involução que de forma alguma é uma
regressão por contágio, por exemplo, as epidemias. Deleuze e Guatarri pontuam que as
contribuições oriundas do neo-evolucionismo seriam duas: a) o animal o mais se definiria
por suas características, genéricas ou específicas, e sim em termos de populações e matilhas;
b) o movimento se faz menos por produções filiativas do que por “comunicações transversais
entre populações heterogêneas”
81
. Por conseguinte, um modo de propagação das populações
múltiplas de forma alguma é um problema individual ou pessoal (o lobo, o homem, a
feiticeira), ou ainda um problema de graduação de características, mas sim a efetivação de
uma potência impessoal (ser arrastado por algo que vem de fora). E a natureza disso que vem
de fora, que arrasta os participantes do devir e os feiticeiros, é o afecto: “a efetuação de uma
potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu”
82
.
Em vista disso, a natureza do devir é ser uma multiplicidade, uma efetuação de uma
potência impessoal, nunca individual, e sim do tipo de um bando, de uma população. Assim,
“num devir-animal, estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um
povoamento, em suma, com uma multiplicidade”
83
. E foram os feiticeiros que, segundo os
autores, perceberam isso. Mas essa matilha, legião, bando ou multiplicidade do devir-animal,
não é da mesma natureza que os agrupamentos do tipo família, religião ou Estado. Estes
necessitam de indivíduos com papéis bem delineados, constituídos por características
80
Idem, p. 19.
81
Idem, ibidem.
82
Idem, p. 21.
83
Idem, p. 19.
57
genéricas ou específicas, segundo sentimentos edipinianos e inteligibilidades de Estado. Em
termos dos autores, os grupos do tipo Família e Estado são formações molares, são maiorias
bem constituídas e hierarquicamente fundadas. E ao redor destes indivíduos, os agrupamentos
do tipo molar constroem centros de envolvimentos estáveis, fixos e hierárquicos, pelos quais
procuram cerrar o devir em categorias invariantes. É exatamente ao contrário disso, o que
ocorre com as matilhas, com as multiplicidades. As instâncias molares como o Estado, a
sociedade, as ciências régias e a história natural, conceberam os animais em termos de
características. E ao procurar nas multiplicidades as características que definem um animal,
ainda estamos trabalhando no terreno das séries e das estruturas: “o serialismo e o
estruturalismo ora graduam características segundo a semelhança, ora as ordenam segundo
suas diferenças”
84
. Todavia não se trata de características e sim de modos de contágio, de
povoações. Reiteramos que o que vale não é um animal sozinho, um lobo, um rato, um piolho
etc. e sim a proliferação realizada pelo bando animal. Isto é, o efeito de matilha efetuado pela
proliferação que este animal atualiza. Pois, como afirmam os autores: “dizemos que todo
animal é antes um bando, uma matilha. Que ele tem seus modos de matilha, mais do que
características, mesmo que caiba fazer distinções no interior desses modos”
85
. Por isso, “o que
é um grito, independente da população que ele chama ou que ele convoca como
testemunha?”
86
. Assim, mais do que características, os animais possuem seus modos de
matilha.
Para especificar quais seriam os modos de matilha, os afectos intensivos que povoam
os animais, os autores diferenciam três espécies de animais. Em primeiro lugar, os animais
individuais, familiares e edipinianos, com os quais estabelecemos uma contemplação
narcísica: “meu” gato, “meu” cachorro... Em segundo lugar, há “os animais com
características e atributos, os animais de gênero, de classificação ou de Estado”
87
, dos quais
extraímos séries ou estruturas, arquétipos e modelos. Enfim, os animais de matilha,
animais demoníacos que são povoados por afetos, e estes afetos se propagam por contágios.
Todavia, é preciso enfatizar que esta distinção entre os modos de matilha não é classificatória
como as seriais e nem totalizantes como as estruturais. Um mesmo animal poderá, ao mesmo
tempo, ser tratado como um animal edipiniano e ser tratado ao modo da matilha, da
84
Idem, p. 20.
85
Idem, ibidem.
86
Idem, ibidem.
87
Idem, p. 20-21.
58
proliferação. Isto porque todo animal contém, atual ou virtualmente, conforme o caso, uma
multiplicidade, uma população em processo de variação. Logo, o indivíduo precede de uma
multiplicidade, atual ou virtual, que são os seus modos de matilha. E é essa matilha o que
interessa para os autores.
Contudo, se por um lado, a multiplicidade reclama uma matilha, mais do que um
indivíduo constituído, e um modo de propagação do tipo contágio, mais do que
correspondências filiativas, por outro lado, ela reclama um indivíduo excepcional, que não é o
gênio e sim o anômalo, e uma aliança com este anômalo. O anômalo em hipótese alguma se
confunde com o anormal. O a-normal é um adjetivo sem substantivo, que busca qualificar
aquilo que não tem regra ou que contraria a regra. o anômalo, adjetivo pouco usado
hodiernamente, remete a um substantivo grego que não tem adjetivo anomalia –, e diz
respeito ao desigual, ao que não é igual
88
.
O anômalo é o Solitário, o rato Ben, o Moby Dick para o capitão Arab. Ele é um
indivíduo excepcional que assume em relação à matilha posições variáveis. Daí, a razão da
não confusão entre o anômalo e o anormal. Exatamente sobre isso, os autores dizem: “o
anormal pode definir-se em função das características, específicas ou genéricas; mas o
anômalo é uma posição ou um conjunto de posições em relação a uma multiplicidade”
89
.
Parece haver uma contradição entre estas duas dimensões da multiplicidade. Pois, de
um lado, temos a matilha e o contágio epidêmico, e por outro, o anômalo, a aliança, a escolha
predestinada. Não é que estas dimensões se contradigam, mas é que elas evocam
departamentos diferentes do devir. A matilha e o contágio são como as formas de conteúdo do
devir, já a aliança e o anômalo são como as formas de expressão. Por isso, não há contradição,
cada dimensão diz respeito a componentes distintos do devir. E para desfazer ainda mais esta
suposta contradição não é inútil frisar que Deleuze e Guatarri desfazem e não resolvem a
contradição – os autores aludem às analises de Leach acerca da feitiçaria Kachin, que procura
realçar no fenômeno da feitiçaria a conjunção dos conceitos de pacto e de epidemia
90
.
Todavia, conforme foi visto até então, não estamos por demais confundindo a noção
de devir com a de multiplicidade? A essa questão, os autores nos respondem:
88
Sobre isso, ver: Idem, p. 25
89
Idem, p. 26.
90
Cf. Idem, p. 29: “Leach pode com razão reunir os dois conceitos de aliança e de contágio, pacto-epidemia;
analisando a feitiçaria kachin, ele escreve: ‘a influência maléfica é supostamente transmitida pelo alimento que a
mulher prepara (...). A feitiçaria kachin é contagiosa, mais do que hereditária, (...) ela
é associada à aliança,
não à descendência’”.
59
As matilhas, as multiplicidades não param, portanto, de se transformar umas nas outras, de
passar umas pelas outras. Os lobisomens, uma vez mortos, transformam-se em vampiros. Não é
de se espantar, a tal ponto o devir e a multiplicidade são uma só e mesma coisa. Uma
multiplicidade não se define por seus elementos, nem por um centro de unificação ou de
compreensão. Ela se define pelo número de suas dimensões; ela não se divide, não perde nem
ganha dimensão alguma sem mudar de natureza. Como as variações de suas dimensões lhe são
imanentes, dá no mesmo dizer que cada multiplicidade é composta de termos heterogêneos
em simbiose, ou que ela não pára de se transformar em outras multiplicidades de enfiada,
segundo seus limiares e suas portas.
91
Como indica o citado, o devir e a multiplicidade são bem próximos, “uma só e mesma
coisa”. E eles não se definem por aquilo que lhes são imutáveis e essenciais, senão por aquilo
que está em processo ininterrupto de variação. Os devires, assim como as multiplicidades,
cruzam-se, ultrapassam-se, misturam-se e, principalmente, diferenciam de si mesmos. Um
equívoco seria supor que, entre estas passagens e enfiadas pelas quais se diferencia o próprio
devir, existiriam transições lógicas tal como as que procedem do pensamento matemático. E
muito menos devemos supor que estes fenômenos seriam ininteligíveis à razão. Nestas
passagens e enfiadas o que encontramos são compatibilidades e consistências alógicas. Diz-se
consistência “quando os [elementos] heterogêneos funcionam efetivamente numa
multiplicidade de simbiose”
92
. Em suma, não uma ordem lógica preexistente ao devir, é
preciso experimentá-lo para saber se formará um devir ou se decairá num fracasso.
E abordando a mutabilidade inerente a uma multiplicidade, chegamos a um ponto
notável para a composição do devir. O devir é da natureza daquilo que muda de natureza,
daquilo que não cessa de ganhar ou perder dimensões, sendo que quando ganha ou perde
dimensões, muda de natureza. E assim, o devir se encontra num processo de diferenciação
incessante: uma multiplicidade transformando-se em outras multiplicidades não menos
singulares que a multiplicidade diferenciada. evidente que este ponto notável do devir ao
qual acabamos de chegar, sua natureza de mudar de natureza, demonstra uma forte sintonia
com definições que havíamos estabelecido como pertencentes ao sistema filosófico da
diferença e da repetição esboçado por Deleuze. Além dessa, outras passagens mais adiante
demonstrarão esta sintonia. Suposto que nesta parte do trabalho estamos interessados na
composição do devir segundo o livro Mil Platôs, por ora, faremos apontamentos
indispensáveis. As conexões entre estes pontos serão elencadas posteriormente).
Todavia, esta natureza diferenciante do devir reverte as relações habituais entre
homem e o animal. Como vimos, a teologia, compreendida no seio da analogia mimética,
91
Idem, p. 33. Grifos dos autores.
92
Idem, p. 34.
60
não reconhece a realidade do devir, a realidade daquilo que não cessa de mudar de natureza.
Tomemos por exemplo o caso dos lobisomens. Segundo a teologia, não há lobisomens,
porque o homem não pode mudar essencialmente. Por isso, o homem nunca pode tornar-se
realmente um lobisomem ou qualquer outra coisa. E novamente, o pensamento analógico da
teologia vem interditar o devir, através de um mecanismo serial ou estrutural. Os autores
mostram que a teologia encaminha dois modelos para a determinação da Inquisição, visando
destituir os devires-animais: um caso simples, o serial, e um caso complexo, o estrutural. Para
isso, eles citam o manual de Inquisição, Le marteau des socières, que distingue o caso simples
dos companheiros de Ulisses, a visão imaginária, e o caso complexo dos companheiros de
Diomedes, o sortilégio. A visão imaginária dos companheiros de Ulisses trata o devir-animal
como produto da imaginação. Assim, os companheiros de Ulisses pensam, ou melhor,
imaginam que se transformam em porcos. Mediante esta operação, suprimem a realidade do
devir em nome de um processo imaginativo. O sortilégio, o caso mais complexo, não é um
fenômeno da imaginação. Sendo assim, “os companheiros de Diomedes não pensam que se
transformaram em pássaros, pois estão mortos, mas os demônios pegam corpos de pássaros
que eles fazem passar como sendo os dos companheiros de Diomedes
93
. A complexidade
deste segundo caso provém do fenômeno de transferência de afetos. Por transferência de
afetos devemos entender um seguinte caso: um caçador corta a pata de um animal, e ao chegar
em casa, a mão de sua mulher, que não saiu de casa, também cortada. Os dois casos
reduzem o devir ao modo da analogia, seja ela imaginária, com os homens imaginando terem
se tornados animais, seja ela do tipo do sortilégio, com os homens tendo seus corpos tomados
pelo Diabo, para produzir feridas que serão transferidas. Portanto, nos dois casos, para a
teologia, o homem não pode devir, porque não pode se tornar essencialmente uma outra coisa,
senão pela imaginação ou pelo sortilégio.
A destituição do devir efetuada pela teologia, ao não reconhecer a natureza daquilo
que muda de natureza, que recusa as transformações essenciais, o aliena do que lhe é mais
singular e real. Conforme foi dito, o devir não é da ordem das formas essenciais ou dos
sujeitos determinados. Todavia, a realidade do devir não é recusada somente do ponto de vista
das essências. Do ponto de vista das substâncias, dos acidentes, das formas e das funções, o
devir tem sua realidade anulada, ao fazer das formas e das funções partes invariantes de um
sujeito determinado. Correlata à assinalação da natureza diferenciante do devir, devemos
93
Idem, nota 19, p. 37.
61
precisar que do ponto de vista das substâncias, das partes extensivas, das formas e das
funções, é preciso chegar às partículas em movimento de repouso e lentidão. A realidade
extensiva do devir está nestas partículas para quais interessa o movimento e a velocidade.
É que o agenciamento ao qual todo indivíduo participa, seja ele orgânico ou inorgânico,
insere-se num plano extensivo em que as partículas que entraram em relações num
agenciamento sob funções determinadas, entram em relações noutro agenciamento sob outras
funções. Portanto, a realidade do devir não está em formas, órgãos ou funções determinadas,
mas nestas partículas em movimento e repouso. Ao invés de ser uma parada fixa, um
momento de constituição e de desenvolvimento de um fundamento molar uma
característica, uma forma, uma função, um órgão o devir é um fluxo molecular de
intensidades disparatadas, que são afirmadas disjuntivamente. Em se tratando de devir e de
multiplicidades, o que prevalece é o movimento das potências livres. “Essas multiplicidades
de termos heterogêneos, [as potências livres,] e de co-funcionamento de contágio, entram em
certos agenciamentos e é neles que o homem opera seus devires-animais”
94
.
E devido a esta natureza mutante do devir, e a realidade que ele envolve, os autores
irão aproximá-lo da geografia mais do que da história
95
. Sendo que do devir os autores
confeccionam uma cartografia. Uma cartografia aos critérios da geografia: um devir possui
uma latitude e uma longitude. As latitudes de um devir são as potências intensivas que o
afetam, e as longitudes são as matérias extensivas, as relações, as partículas que o compõem
em extensão. Grosso modo, podemos afirmar que, de um devir, a latitude seria sua potência
imaterial e a longitude suas relações materiais. Acerca disso, vejamos o que dizem os autores:
Chama-se latitude de um corpo os afectos de que ele é capaz segundo tal grau de potência, ou
melhor, segundo os limites desse grau (...) Chama-se longitude de um corpo os conjuntos de
partículas que lhe pertencem sob essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles próprios
partes uns dos outros segundo a composição da relação que define o agenciamento individuado
desse corpo. (...) A latitude é feita de partes intensivas sob uma capacidade, como a longitude,
de partes extensivas sob uma relação
.
96
Sobre a latitude e a longitude de um devir é necessário esclarecer algumas idéias que
aparecem implicitamente. A longitude de um devir, suas partes extensivas, não esgota as
dimensões do corpo. Na filosofia do devir, o corpo perde seu caráter de organismo submetido
a uma organização, e passa a ser definido, seguindo uma idéia de Espinosa, por aquilo que ele
94
Idem, p. 23.
95
Idem, p. 95. Esta aproximação não é encontrada somente nesta passagem. Outras passagens que a demonstram
são encontradas em: “Entrevista sobre Mille Plateaux”, p. 47 e O que é a filosofia, p. 125.
96
Idem, p. 42. Grifos dos autores.
62
pode. As latitudes, as potências intensivas produzidas pelos afetos que as povoam, são
também dimensões dos corpos. O corpo não é constituído apenas pelas partículas materiais,
pelas moléculas em relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, ele é
constituído também por suas potências intensivas, tal como o devir
97
. Dessa forma,
um corpo não se define pela forma que o determina, nem como uma substância ou sujeito
determinados, nem pelos órgãos que possui ou pelas funções que exerce. (...) um corpo se
define somente por uma longitude e uma latitude: isto é, pelo conjunto dos elementos materiais
que lhe pertencem sob tais relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão
(longitude); pelo conjunto dos afectos intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou grau de
potência (latitude). Somente afectos e movimentos locais, velocidades diferenciais. Coube a
Espinosa ter destacado essas duas dimensões do Corpo.
98
E as latitudes, as potências intensivas, pertencem a um modo de individuação que não
é o da coisa formada, da pessoa, do sujeito. É um modo de individuação do tipo hecceidade.
Uma estação, um clima, um inverno ou verão, um deserto, uma hora, um rosto, um grau de
calor ou de frio são hecceidades. “São hecceidades, no sentido de que tudo é relação de
movimento e de repouso entre moléculas e partículas, poder de afetar e ser afetado”
99
. Pois,
cada grau de potência possui uma individualidade que o distingue de outro, mais ou menos
potente e sem nada faltar. Além disso,
não se acreditará que a hecceidade consista simplesmente num cenário ou num fundo que
situaria os sujeitos, nem em apêndices que segurariam as coisas e as pessoas no chão. É todo o
agenciamento em seu conjunto individuado que é uma hecceidade; é ele que se define por uma
longitude e uma latitude, por velocidades e afectos, independentemente das formas e dos
sujeitos que pertencem o somente a outro plano. É o próprio lobo, ou o cavalo, ou a criança
que param de ser sujeitos para se tornarem acontecimentos em agenciamentos que não se
separam de uma hora, de uma estação, de uma atmosfera, de um ar, de uma vida
100
.
Segundo o citado, na cartografia do devir tudo se define em termos de latitude e
longitude, velocidades e intensidades. E assim como vimos que não havia contradição alguma
entre o contágio e a aliança, pois cada conceito incidia sobre uma dimensão distinta da
multiplicidade, ora sobre sua forma de conteúdo e ora sobre sua forma de expressão, é preciso
perceber que o modo de individuação do tipo hecceidade um agenciamento individuado
composto por afetos informais e intensivos é a forma de conteúdo da cartografia do devir.
97
É preciso enfatizar que a noção de corpo em Mil Platôs o se perfilará tendo em vista somente esta definição
segundo as idéias de Espinosa. Neste livro, se um corpo possui uma latitude e uma longitude, isto não esgota
completamente o encaminhamento filosófico concedido a tal noção. O encaminhamento maior da noção de
corpo é quando, em forte consonância com estas idéias de Espinosa mas também em ressonâncias com as idéias
de Artaud, os autores propõem uma cruzada contra o organismo. Eis então que atingimos ao plano de
consistência chamado Corpo Sem Órgãos. Sobre este CsO, cf. especialmente: DELEUZE, G. & GUATARRI, F.
Mil Platôs. Volume III. Trad. Aurélio Guerra Neto et alii. Como criar para si um Corpo Sem Órgãos”. Rio de
Janeiro: 34, 1996, p. 9-30.
98
Idem, p. 47. Grifo dos autores.
99
Idem, ibidem.
100
Idem, p. 49-50.
63
Tendo esta, também, sua forma de expressão: uma enunciação singular da linguagem. A
linguagem do devir é expressa pelos verbos no infinitivo, pelos nomes próprios e pelos artigos
e pronomes indefinidos. Devemos mencionar que o esforço de estabelecer uma linguagem
singular para o devir não é exclusiva a Mil Platôs. De novo, somos lançados de volta ao
pensamento da diferença de Deleuze. Em Lógica do sentido, na terceira série, “Da
proposição”, Deleuze propôs uma dimensão proposicional do sentido que apresenta uma
concepção de linguagem bem próxima a essa do devir
101
.
Em Mil Platôs, a linguagem do devir é composta, primeiramente, pelos verbos no
modo infinitivo. O modo infinitivo é o que libera o movimento expressado pelo verbo das
limitações e das fixações operadas pelos tempos verbais. A razão dos autores situarem o
movimento do devir sobre um modo verbal no infinitivo, provém de uma distinção temporal
forjada em Mil Platôs, mas que também podia ser encontrada em Lógica do sentido
102
.
Trata-se da distinção entre o tempo fixo e medido das coisas, o Cronos, e o tempo ilimitado e
desmedido dos incorporais, o “tempo não pulsado flutuante próprio do Aion”
103
.
Em seguida, a linguagem do devir é composta pelos nomes próprios. Os autores
advertem que por nomes próprios não se deve compreender sujeitos comuns constituídos.
Antes disso, os nomes próprios marcam a enunciação de singularidades nômades, impessoais
e pré-individuais. Com efeito, os nomes próprios não indicam sujeitos, eles dizem respeito a
“algo que é da ordem do acontecimento, do devir ou da hecceidade”
104
. Enfim, esta linguagem
singular do devir é composta pelo artigo e pronome indefinidos. Não é que o devir seja
indeterminado, mas é que, em se tratando de hecceidades um modo de individuação que
não fundamenta formas ou sujeitos constituídos é necessário utilizar o indeterminado para
obter a determinação. “Então o indefinido se conjuga com o máximo de determinação: era
uma vez, bate-se numa criança, um cavalo cai...”
105
. Isto se porque o artigo ou o pronome
não faz uma função de indeterminado, e sim a função de um individuante, visto que o
enunciado não é remetido a um sujeito de enunciação, mas ao agenciamento coletivo de
enunciação ao qual ele pertence. Assim, para os autores, a gramática do devir se expressaria
101
DELEUZE, G. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974, “Da proposição”,
p. 13-24. Para uma leitura da gica do sentido em Deleuze, com destaque para sua concepção de linguagem, cf.
CRAIA, Eladio. A problemática ontológica em Gilles Deleuze, p. 40-49.
102
Neste livro, esta distinção aparece elaborada, principalmente, na décima, “Do jogo ideal”, e na vigésima
terceira série, “Do Aion”, respectivamente, p. 61-68 e 167-174.
103
DELEUZE, G. & GUATARRI, F. “Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível...”, p. 51.
104
Idem, p. 51-52.
105
Idem, p. 52, grifo nosso.
64
em fórmulas de insólitas sintaxes:
“UM HANS DEVIR CAVALO, UMA MATILHA CHAMADA
LOBO OLHAR ELE, MORRE-SE, VESPA ENCONTRAR ORQUÍDEA, ELES CHEGAM,
HUNOS”
106
.
Esta insólita linguagem do devir nos suscita uma estranheza frente à sua natureza.
Pois, em cada um de seus elementos, vemos surgir uma noção linguagem que subverte as
funções ordinárias da linguagem: uma linguagem que não é expressa nas especificidades
classificatórias dos tempos verbais, no tempo fixo e medido das coisas, o Cronos, mas que é
expressa no modo universal do infinitivo, no tempo desmedido do imensurável, o Aion; uma
linguagem que não nomeia objetos, coisas ou seres constituídos, que não representa a
propriedade de um nome comum, mas que designa singularidades livres, seres informais, pré-
individuais e impessoais; e enfim, uma linguagem que não busca atribuir uma determinação a
um indivíduo constituído, mas que busca fazer do indeterminado de um agenciamento
coletivo o individuante determinado.
Entretanto, esta subversão não é suscitada somente do lado da expressão do devir.
Deste lado, o desvio em relação ao uso comum da linguagem se porque a gramática do
devir não está interessada nos tempos verbais definidos e nem nos sujeitos formados e
constituídos, mas está interessada na expressão de um tempo infinitivo, de singularidades
impessoais. Do lado da forma de conteúdo do devir, uma subversão parelha também é
encontrada: um modo de individuação que procede em termos de velocidades e afetos, mais
do que por formas e substâncias, sujeitos e essências. Esta forma de levar em conta o plano
extensivo, segundo o movimento e a intensidade, se distingue contundentemente do trato
ordinário concedido às formas essenciais e às forma substanciais, um corpo não é formado
apenas pelos órgãos, formas e funções que possui, mas também é definido pelos afetos e
potências intensivas que ele comporta. Um agenciamento, por onde flui o devir, é composto
de latitudes e longitudes, mais do que de sujeitos e indivíduos constituídos. Para as duas
subversões, é uma mesma ideia que parece emergir: a ideia de que é preciso acompanhar os
movimentos, as velocidades e as intensidades, ao invés das formas e das funções. Esta ideia
tem sua relevância visto que, para os autores, convém marcar a distinção entre dois planos,
entre duas noções de plano.
Primeiramente, o plano pode ser oculto, um princípio oculto que faz com que o dado,
com o que está incluído neste plano, seja dado. Todavia, o próprio plano não é dado, mas
106
Idem, p. 53.
65
oculto: “só se pode inferi-lo, induzi-lo, concluí-lo, a partir daquilo que ele dá”
107
. É um plano
de organização, de desenvolvimento. E este plano oculto, que dá visibilidade àquilo que o
compõe, sendo ele mesmo invisível, mantém com o dado uma relação transcendente. Pois,
“ele existe, com efeito, numa dimensão suplementar àquilo que ele dá”
108
. Este plano será
sempre oculto: uma falta, um modelo ausente, uma transcendência ou uma analogia. Pois, “as
formas e seus desenvolvimentos, os sujeitos e suas formações remetem a um plano que opera
como unidade transcendente ou princípio oculto”
109
. Dessa forma, este plano permanecerá
oculto, uma dimensão suplementar, que poderá ser inferido segundo as formas que
desenvolve e os sujeitos que constitui.
Mas existe uma outra natureza de plano. Um plano em que as formas e os sujeitos
foram diluídos e dissolvidos. Neste plano,
apenas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão entre elementos não
formados, ao menos relativamente não formados, moléculas e partículas de toda espécie. Há
somente hecceidades, afectos, individuações sem sujeito, que constituem agenciamentos
coletivos. Nada se desenvolve, mas coisas acontecem com atraso ou adiantadas, e formam esse
ou aquele agenciamento de acordo com suas composições de velocidade
110
.
Enquanto aquele primeiro plano é de desenvolvimento, de organização e de
transcendência, este segundo é o plano de consistência, de imanência. Ele é imanente, pois,
por mais que este plano diferencie, acresça dimensões, estas dimensões não lhes são
suplementares, elas crescem horizontalmente. E este plano, ao crescer, não perde sua
planitude, permanece imanente a si mesmo: tudo se passa em termos de contágio e
povoamento.
E o que valia para os três modos de matilhas animais, vale de novo para os planos:
estes planos não se excluem. Aliás, ao contrário, estes planos estão em relação de
pressuposição recíproca: um trabalha sobre o outro, eles não cessam de produzir
interferências
111
.
Contudo, posto os dois planos, a expressão e o conteúdo do devir, sua natureza de
mudar de natureza, não permanece incoerente e abstrata à realidade do devir? Vimos que a
107
Idem, p. 54.
108
Idem, ibidem.
109
Idem, p. 55.
110
Idem, ibidem.
111
Cf. Idem, p. 60: “O plano de organização não pára de trabalhar sobre o plano de consistência, tentando
sempre tapar as linhas de fuga, parar ou interromper os movimentos de desterritorialização, lastreá-los,
reestratificá-los, reconstituir formas e sujeitos em profundidade. Inversamente, o plano de consistência não pára
de se extrair do plano de organização, de levar partículas a fugirem para fora dos estratos, de embaralhar as
formas a golpe de velocidade ou lentidão, de quebrar as funções à força de agenciamentos, de
microagenciamentos”.
66
realidade do devir não é a das formas essenciais ou das substâncias constituídas. Então, qual
seria, mais exatamente, a dimensão dessa realidade, que o devir é da ordem das partículas e
das intensidades? Enfim, qual seria a realidade de um devir-animal?
Conforme os autores, para respondermos a tais questões, requer que nos afastemos de
um pensamento que toma como pressuposto uma irredutibilidade da ordem humana, uma
primazia da forma homem. Este pressuposto assume que a forma humana é imutável e
inalienável, isenta de contatos com outras naturezas em sua constituição. Nessa perspectiva, o
homem pode imitar, fazer análogo ou semelhante a um animal, nunca podendo, assim,
devir-animal. E ao se afastarem de um tal ponto de vista, os autores assumem que devemos
reconhecer uma “zona objetiva de indeterminação ou de incerteza”
112
, na qual partículas
humanas são postas em vizinhança com partículas animais. Uma zona cuja demarcação de
fronteira entre o homem e o animal não pode ser feita, que esta zona é povoada por
partículas de ambas as ordens, entrando em inúmeras relações. E nesta zona, a relação entre o
homem e o animal não parte da forma homem, é antes uma relação inumana do homem com o
animal. A realidade do devir advém justamente dessa zona de vizinhança: não se trata de
imitar o cão, mas compor seu organismo com outra coisa, de tal modo que se faça sair, do
conjunto assim composto, partículas que serão caninas em função da relação de movimento e
repouso, ou da vizinhança molecular nas quais elas entram (...) E é isso o essencial para nós:
ninguém torna-se-animal a não ser que, através de meios e de elementos quaisquer, emita
corpúsculos que entrem na relação de movimento e repouso das partículas animais, ou, o que
no mesmo, na zona de vizinhança da molécula animal. Ninguém se torna animal senão
molecular (...) O homem não se torna lobo, nem vampiro, como se mudasse de espécie molar;
mas o vampiro e o lobisomem são devires do homem, isto é, vizinhanças entre moléculas
compostas, relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, entre partículas
emitidas
113
.
Ao chegar nesta destituição da forma homem como horizonte último do pensamento,
além de explanarmos pontos operacionais de grande relevância para a noção de devir,
atingimos um ponto singular para fomentar a relação, a distinção entre o devir e o história.
Mas primeiro, devemos dizer o porquê de nos focarmos nos segmentos do devir-animal. Por
questões de recorte e de exposição, optamos em abordar preferencialmente os devires-
animais. Graças a isso, executamos uma leitura mais próxima ao texto, pois, para dar
112
Idem, p. 65.
113
Idem, p. 65-66 e 67. Acerca dos devires-animais, os autores invocam uma citação de Philippe Gavi, bem
interessante, sobre as performances de Lolito, um comedor de vidro, ferro, louças, porcelanas e bicicletas, que
diz: “Considero-me metade bicho, metade homem. Mais bicho talvez do que homem. Adoro os bichos, os
cachorros sobretudo, sinto-me ligado a eles. Minha dentição adaptou-se; de fato, quando não como vidro ou
ferro, meu maxilar me dá coceira como o de um cachorrinho com vontade de ficar mordiscando um osso”. In:
Idem, p. 66.
67
visibilidade às sutilezas do conceito de devir afirmadas aí, achamos que era necessário esse
modo de exposição: uma leitura pontual do texto. Todavia, de antemão é preciso alertar: os
devires-animais não são o único horizonte dos devires, e menos ainda ocupam uma posição
privilegiada na filosofia de Deleuze e Guatarri. uma infinidade de devires além e aquém
deles. Aquém, podemos encontrar o devir-mulher, o devir-criança marcando desde a
importância conferida pelos autores ao devir-mulher
114
. Além, podemos encontrar os devires-
moleculares, imperceptíveis. Inclusive, sobre esta heterogeneidade dos segmentos do devir, os
autores postulam uma espécie de ordem, os graus do devir: devir-mulher, devir-criança; devir-
animal, vegetal ou mineral; devires-moleculares e devires-partículas
115
. Mas, se os devires-
moleculares estão no fim, estão além, convém repetir que todos os devires são moleculares.
Não devir sem a emissão de partículas em movimento e repouso, que se agrupam em
moléculas e que comportam intensidades afetivas. Para Deleuze e Guatarri, a percepção
também é molecular. Não percebemos somente extratos molares; através da percepção,
procuramos perceber o imperceptível, o molecular. E no que tange a molecularização da
percepção, as drogas tiveram efeitos expressivos. Pois, nos dizem os autores, se a
experimentação das drogas mudou o universo microperceptivo de todo mundo, é porque fez
um outro universo surgir: um universo composto por distintas espécies de devires-
moleculares. Com efeito, as drogas tornaram mais moleculares as percepções de mundo de
todo mundo e não apenas daqueles que se drogam
116
.
Desfazer a irredutibilidade da natureza humana, da forma homem, torná-la imanente a
um plano molecular onde pululam as partículas e as intensidades, no qual uma zona de
vizinhança é traçada, tornando indiscernível o que lhe pertence, o que lhe é puro, é o caminho
proposto pelos autores para prolongar o fluxo do devir. Sendo que, em Mil Platôs, é através
114
Para ver a importância do devir-mulher, acompanhemos a seguinte citação: “ora, se todos os devires são
moleculares, inclusive o devir-mulher, é preciso dizer também que todos os devires começam e passam pelo
devir-mulher. É a chave dos outros devires”. IN: Idem, p. 70.
115
Ver: Idem, p. 63.
116
Sobre a
s drogas, salientamos duas passagens: “Se a experimentação de droga marcou todo mundo, até os
não-drogados, é por ter mudado as coordenadas perceptivas do espaço-tempo, fazendo-nos entrar num universo
de micropercepções onde os devires moleculares m substituir os devires animais”. E ainda: “O problema está
bem colocado quando se diz que a droga faz perder as formas e as pessoas, faz funcionar as loucas velocidades
de droga e as prodigiosas lentidões do após-droga, acopla umas às outras como lutadores, à percepção a
potência molecular de captar microfilamentos, microoperações, e dá ao percebido a força de emitir partículas
aceleradas ou desaceleradas, segundo um tempo flutuante que não é mais o nosso, e hecceidades que não são
mais deste mundo: desterritorialização, ‘eu estava desorientado...’ (percepção de coisas, de pensamentos, de
desejo, onde o desejo, o pensamento, a coisa invadiram toda a percepção, o imperceptível enfim percebido). IN:
Idem, p. 32 e p. 77.
68
deste ponto, a destituição da forma homem, que é colocada a distinção entre o devir e a
história.
Da distinção entre o devir e a história
Em Mil Platôs, especificamente no décimo platô, a distinção entre o devir e a história
é colocada, então, a partir da destituição da forma homem. Vimos anteriormente sumariados
uma heterogeneidade de segmentos do devir. Aludimos ao fato de que os autores nos propõem
uma espécie de ordem entre os segmentos. Mas, por que será que encontramos uma variedade
de devires no homem e não um devir-homem, que o devir-mulher e o devir-criança?
Esta é uma questão para a qual os autores nos chamam a atenção. E é através dela, que eles
nos apresentam a distinção entre o devir e a história.
Não um devir-homem simplesmente porque o homem é majoritário e o devir é
sempre minoritário. Majoritários e minoritários não são definidos em relação à quantidade
numérica que atualizam. Isto é, a diferença entre um e outro não se mede em face da
quantidade numérica que representam. Não se trata de uma variação de grau, e sim de uma
bifurcação entre dois compostos de naturezas distintas. Dessa forma, o que está em jogo entre
os dois compostos é uma diferença qualitativa. Logo, uma maioria não quer dizer uma
quantidade maior, mas “a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual
tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias: homem-branco,
adulto-macho, etc. Maioria supõe um estado de dominação, não o inverso”
117
. Assim, uma
maioria é um padrão, um padrão estabelecido e assegurado pelas relações de forças e que
envolve um estado de dominação: homem-macho-europeu. E é este padrão a medida a ser
aplicada para determinar uma maioria e uma minoria. Assim, é em relação a este padrão, que
se determina a medida tanto de uma maioria quanto de uma minoria. Todavia, alertam os
autores: não devemos identificar o devir-minoritário com uma minoria. É preciso que uma
minoria entre num devir-minoritário, que a mulher entre num devir-mulher, que a criança
entre num devir-criança, que o negro entre num devir negro, para que um devir-minoritário
ocorra. Pois, sem a emissão de partículas, sem a construção de uma zona de vizinhança entre
moléculas, sem esse fluxo, não há devir.
E é ao nível desta bifurcação que, para os autores, neste texto, o devir se distingue da
história. A história está do lado dos homens, das maiorias, dos padrões e, principalmente, ao
117
Idem, p. 87.
69
nível das relações de forças de uma macropolítica de instâncias molares: o Estado, a Igreja, a
Família
118
. Por outro lado, o devir é minoritário, ele está do lado da micropolítica. Desse
modo, a distinção entre o devir e a história se dá, em Mil Platôs, sob a forma de uma
bifurcação, sendo que a história é tomada como uma atividade imbricada na forma homem, na
maioria dominante. Assim, “só história de maioria, ou de minorias definidas em relação à
maioria”
119
. o devir é sempre minoritário. E é por isso que “não devir-homem, porque o
homem é a entidade molar por excelência, enquanto os devires são moleculares”
120
.
Portanto, em se tratando de Mil Platôs, a história é vista como um empreendimento
majoritário, que reclama uma maioria. Neste texto, não a história é ligada a uma maioria,
como também é ligada aos extratos molares, às formas constituídas e aos sujeitos
desenvolvidos: um homem, um Estado, as crenças coletivas. Esse tal posicionamento do saber
histórico, com a correlata noção de história que lhe aparece embutida a história como
macropolítica das formas molares norteia a distinção entre o devir e a história neste livro.
Contudo, conforme dissemos anteriormente, em Mil Platôs, encontramos uma densa
elaboração do conceito de devir. E, ainda que a bifurcação esteja feita e a distinção
estabelecida, é em O que é a filosofia? onde esta distinção foi mais trabalhada. Dessa forma,
para nos aventurarmos nesta distinção é necessário que nos enviemos ao livro O que é a
filosofia?, sobremaneira, ao capítulo “Geo-filosofia”.
Antes de elencarmos esta distinção, é necessário que apresentemos alguns pontos a
respeito deste livro. Diferentemente de Mil Platôs, o qual é constituído por platôs, mais ou
menos independentes e autônomos, que perpassam por diversos campos de saber, tal como a
filosofia, a psicanálise, a lingüística, a semiótica e outros, O que é a filosofia? insinua-se um
livro, do ponto de vista arquitetural, focado em enfrentar uma questão específica. Assim, neste
livro, uma questão condensa os problemas que levanta. Esta questão está enunciada no tulo
do mesmo do livro: dizer o que é a filosofia. E a solução que os autores propõem, como já foi
dito, é a filosofia enquanto invenção e fabricação de conceitos. E em nome dessa fábrica
conceitual que a filosofia invoca, os autores buscam singularizá-la em relação às artes e às
ciências lógicas e empíricas: somente na filosofia é que encontramos os conceitos. Para eles,
118
Peter l Pelbart confere à história um posto semelhante a este no pensamento de Deleuze. No texto “O
tempo não reconciliado”, Pelbart cita uma passagem de Dialogues que diz: “A história é um marcador temporal
do Poder”. Este uso da história possui uma comunidade de sentido com o que dissemos acerca da história como
forma da maioria. Cf. PELBART, P. P. “O tempo não reconciliado”, p. 92.
119
DELEUZE, G. & GUATARRI, F. “Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível...”, p. 89
120
Idem, ibidem.
70
as artes possuem perceptos e afectos, as ciências possuem funções e prospectos, enquanto a
filosofia possui conceitos. Sendo que o conceito é a criação filosófica por excelência, e é nele
que a filosofia encontra aquilo que lhe é próprio e singular
121
.
Para desdobrar a questão que versa sobre a natureza da filosofia, os autores dividem o
livro em duas partes: na primeira, eles procuram definir o que é um conceito e quais são os
componentes que lhe pertencem. Resumindo bastante, podemos dizer que um conceito é
formado por diversas componentes, que se situam num plano de imanência e este plano é
povoado por personagens conceituais. Na segunda parte, eles avaliam as relações entre a
filosofia, as ciências e as artes. Pois, embora sendo áreas que trabalham sobre conteúdos e
expressões diferenciadas, elas comutam uma pertença ao pensamento. Assim, elas apresentam
e expressam departamentos distintos do pensamento, linhas melódicas heterogêneas que soam
o concerto do pensamento. E se elas são imanentes ao pensamento, são também imanentes à
Vida, visto que o próprio pensamento é imanente à Vida
122
.
121
Acerca da singularidade e das relações entre estes domínios heterogêneos, duas passagens esclarecedoras,
que mesmo sendo de um outro texto, nos permitem compreender esta ideia de forma precisa. Nelas, Deleuze diz:
“O que me interessa são as relações entre as artes, a ciência e a filosofia. Não nenhum privilégio de uma
destas disciplinas sobre a outra. Cada uma delas é criadora. O verdadeiro objeto da ciência é criar funções, o
verdadeiro objeto da arte é criar agregados sensíveis [perceptos] e o objeto da filosofia, criar conceitos. (...) é
preciso considerar a filosofia, a arte e a ciência como espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e
que não cessam de interferir entre si. A filosofia não tem aí nenhum pseudoprimado de reflexão, e por
conseguinte nenhuma inferioridade de criação. Criar conceitos não é menos difícil que criar novas combinações
visuais, sonoras, ou criar funções científicas.” DELEUZE, G. “Os intercessores”. IN: Conversações, p. 154 e
156.
122
Sobre o vitalismo, no pensamento de Deleuze, é preciso dizer que o tema pode ser encontrado em diversas
passagens. A filosofia do devir do desejo, conforme é apresentada em O Anti-Édipo e em Mil Platôs, não apenas
uma vez, coloca o desejo e as máquinas desejantes a serviço da Vida. Na filosofia da diferença e da repetição, o
vitalismo assumiu, do mesmo modo, um papel relevante. Nos escritos sobre Bergson, Deleuze produz uma
filosofia da diferença, acentuando três conceitos do pensamento bergsoniano: duração, memória e impulso vital.
Todavia, o bergsonismo não esgota a força do vitalismo na filosofia da diferença. Em Diferença e Repetição
também encontramos fortes referências ao tema da vida: “A tarefa da vida é fazer com que coexistam todas as
repetições num espaço em que se distribui a diferença”. IN: DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 17. De
modo que esta referência ao vitalismo será uma perspectiva constante para o pensamento deleuzeano. Num de
seus últimos trabalhos, “A imanência: uma Vida...”, de 1995, Deleuze reforça a vinculação ao vitalismo presente
em seu pensamento, quando propõe a vida como plano de imanência
e vice-versa: “diremos da pura imanência
que ela é UMA VIDA, e nada mais. Ela não é imanência à vida, mas a imanência não está em nada e é em si
mesma uma vida. Uma vida é a imanência de uma imanência, a imanência absoluta: ela é potência e beatitudes
completas”. In: DELEUZE, G. “A imanência: uma Vida...”. Texto disponível no domínio:
http://www.dossie_deleuze.blogger.com.br. Todavia, o tema do vitalismo não é uma exclusividade do
pensamento deleuzeano. De um modo mais abrangente, é a filosofia francesa do século XX que esconstituída
ao redor do vitalismo. Se quisermos uma referência ainda mais antiga sobre o assunto, não podemos deixar de
mencionar a obra de Nietzsche. Na Segunda Consideração Intempestiva, Nietzsche, ao abordar o excesso de
história que enfraquece a vida, é enfático em dizer que a história e o pensamento devem servir à vida, dar mais
vida a vida. De modo que, segundo Nietzsche, um laço é estabelecido entre a vida e o pensamento, entre a vida e
a história, no intuito de assegurar a grande saúde. Voltando à França do século XX, uma menção indispensável
acerca do vitalismo, com certeza, é a obra do epistemólogo da biologia Georges Canguilhem. Publicado pela
primeira vez em 1943, seu trabalho O normal e o patológico foi original ao postular uma diferença de natureza
71
A distinção entre o devir e a história é trabalhada no capítulo “Geo-filosofia”. De fato,
nesse capítulo, encontramos uma passagem de relevo acerca dessa distinção. Aspectos que
somente foram levantados em Mil Platôs, aqui são retomados e redirecionados. Além do
mais, esse texto é uma das poucas vezes que os autores citam historiadores de ofício. A razão
disto é que nesse texto os autores partem de um problema histórico para situar o devir do
conceito na demanda filosófica: o que fez com que a filosofia nascesse na Grécia e não em
qualquer outro lugar? Para eles, não foi uma causa determinada ou uma predestinação
européia de encarnar a Razão, de ser o receptáculo do espírito humano, como se os gregos
fossem a origem de todo o pensamento. O motivo de a filosofia ter aparecido na Grécia, para
os autores, não é o mesmo que o de Hegel ou o de Heidegger. A história não é o registro do
desenvolvimento progressivo e lógico do pensamento, ela é um jogo de encontros e acasos,
uma conjunção inesperada. Dessa forma, é somente da perspectiva do acaso e da
contingência, que podemos pensar o encontro que pôs em conjunção a filosofia e o filósofo, e
fez com que a filosofia aparecesse na Grécia. Para a filosofia surgir, foi preciso o encontro
entre a imanência, a democracia, as cidades e os amigos-rivais. o foi por milagre,
necessidade ou origem; a filosofia apareceu na Grécia por razões contingentes, via conjunção
de acasos. E esta história contingencial não diz respeito somente aos acontecimentos do
pensamento. O capitalismo também coloca um problema de tal magnitude: “por que o
capitalismo no Ocidente e não na China do século III, ou mesmo no século VIII?”
123
. A
resposta disso segue a mesma linha que a anterior: devidos aos encontros, às cidades, ao plano
de imanência, ao fluxo de trabalhadores desterritorializados e ao fluxo do dinheiro
124
.
Nesse sentido, para os autores, a história é contingencial, conjunção de encontros,
porque nela há a irrupção de devires. Os devires são os elementos não-históricos, a “nuvem
densa” que toda história possui. Pois, sem o devir, não acontecimento. Ao mesmo tempo,
sem a história, o devir é indeterminado, incondicionado. É próprio do acontecimento um
elemento não histórico, não atual, imaterial. Ou seja, o acontecimento é a junção não dos
fatores históricos, mas também de elementos não-históricos. Neste ponto, as ideias que foram
levantadas naquelas entrevistas retornam, principalmente as levantadas na última entrevista
que analisamos. E o ponto de incidência deste retorno é a noção de acontecimento que o livro
entre a saúde e a doença, entre a vida e a morte, inscrevendo a positividade do conceito de vida no seio do
pensamento da biologia moderna.
123
DELEUZE, G. & GUATARRI, F. O que é a filosofia? p. 127.
124
Sobre isso, cf. Idem, p. 127-131.
72
torneia. Para os autores, “o que a História capta do acontecimento é sua efetuação em estados
de coisas ou no vivido, mas o acontecimento em seu devir, em sua consistência própria, em
sua autoposição como conceito, escapa à História”
125
. Visto isto, o que os autores recriminam
na história é o fato dela se ater a uma dimensão material do acontecimento, deixando de lado
o próprio devir do acontecimento, que é não-histórico e imaterial. Pois, para eles,
duas maneiras de considerar o acontecimento, uma que consiste em passar ao longo do
acontecimento, em recolher sua efetuação na história, o condicionamento e o apodrecimento na
história, mas a outra em remontar ao acontecimento, em instalar-se nele como num devir, em
rejuvenescer e em envelhecer nele de uma só vez, em passar por todos os seus componentes ou
singularidades. Pode ser que nada mude ou pareça mudar na história, mas tudo muda no
acontecimento
126
.
Ao juntarmos as diversas perspectivas acerca da distinção entre o devir e a história, tal
como nos foram apresentadas nas entrevistas e nos livros analisados um devir que é mais
geográfico do que histórico, que é molecular ao contrário da história que é molar, sendo
menos material do que imaterial e intensivo; um devir que é da ordem do acontecimento em
vez de ser da ordem das coisas uma concepção e uma escrita da história são produzidas.
Num primeiro momento, um distanciamento dos pressupostos adotados pelos
historiadores, e a questão do acontecimento demonstra justamente isso. Nesse sentido, não
devemos recolher de um acontecimento sua efetuação num determinado estado de coisas. Um
acontecimento não possui somente uma dimensão material, ele também é imaterial, efeito
incorporal, segundo um conceito que abordaremos no próximo capítulo: ele também é virtual.
Num segundo momento, é a própria história que sofre uma torção. Mesmo que os
autores se distanciem dos pressupostos históricos, eles novamente se aproximam da história
dando-lhe uma outra máscara: eles dão a este saber um modus operandi, uma maneira de
operar, especificamente, um modo de escrita. Quer dizer, os autores escrevem uma história
efetivando a crítica esboçada no primeiro momento, e produzem uma história das
contingências, dos encontros ao acaso. E ainda que exista uma distinção entre o devir e a
história no pensamento deleuzeano, em momento nenhum a história é suprimida em função
do devir. Da filosofia do devir podemos extrair uma escrita da história que leva consigo
também uma filosofia da história sob o signo da contingência, dos encontros de fluxos ao
acaso. Pois, entre o devir e a história uma pressuposição recíproca, não havendo uma
exclusão ou uma negação radical de um termo em proveito do outro. São dimensões distintas
de um mesmo plano de imanência.
125
Idem, p. 143.
126
Idem, p. 144.
73
Entretanto, como vimos anteriormente, a distinção entre o devir e a história não
aparece de uma vez no pensamento de Deleuze. Ela foi ganhando consistência à medida que
seu pensamento mudava. É certo que desde Lógica do sentido, quando aparece uma distinção
próxima a esta, sob a forma da oposição do puro devir-ilimitado e do acontecimento em
relação a estados de coisas fixos e medidos não existindo propriamente uma distinção entre
o devir e a história, mas entre os acontecimentos corporais e os estados de coisas fixos
127
–,
até O que é a filosofia?, onde fica estabelecida a distinção, ela não deixa de sofrer variações.
As obras que analisamos apresentaram uma certa proximidade, uma contigüidade de
ponto de vista em relação a esta distinção. De um modo ou de outro, nelas a distinção estava
presente. A filosofia de Deleuze e Guatarri, em Mil Platôs e em O que é a filosofia?, erigiu e
consolidou a distinção do devir à história. Todavia, esta distinção não estava efetivamente
presente na filosofia da diferença e da repetição. Aliás, pelo contrário, esta é assentada sobre
um saber histórico, segundo uma prática da história da filosofia que não é reprodutiva e sim
inventiva, que mesmo mantendo distância dos pressupostos tradicionais da história, efetiva
uma prática histórica de expressiva singularidade. De certa forma, a história da contingência
já estava presente na prática histórica da filosofia da diferença. Por ora, devemos dizer que, no
pensamento da diferença, a atualização do virtual, uma dimensão da Ideia, não reclama a si
nenhuma forma da semelhança ou do geral, e assim procedendo, o virtual atualiza-se num
processo de diferenciação, différentiation”, no qual o ele se torna atual diferenciando-se
de si mesmo e jogando com os imperativos do acaso. Dito de outra forma, somente de forma
contingente e submetido às peripécias do acaso, é que o virtual atualiza-se diferenciando-se.
127
É preciso enfatizar que, ainda que encontremos uma certa semelhança entre as citações do livro O que é a
filosofia? e isto que dissemos sobre Lógica do sentido, neste último não exatamente uma distinção entre o
devir, os acontecimentos imateriais, e a história, as coisas materiais. De um lado, esta semelhança pode ser
suscitada quando, por exemplo, Deleuze ao definir o sentido, como sendo o expresso da proposição e o atributo
do estado de coisas, diz que não devemos confundir o acontecimento [sentido] com sua efetuação espaço-
temporal em um estado de coisas”. Grifo do autor. IN: gica do sentido, p. 23. Esta semelhança aparente, não
pode nos iludir: neste livro a distinção não é entre o devir e a história, mas sim entre os acontecimentos
incorpóreos e os estados de coisas, conforme sua leitura do estoicismo e do epicurismo. Por outro lado,
completando a ideia anterior, o livro Lógica do sentido não vem propor uma teoria do acontecimento para
historiadores e nem contra historiadores. A filosofia do acontecimento que este livro dá corpo, visa a inserção do
acontecimento no próprio pensamento, sobretudo do ponto de vista filosófico, que tanto procurou suprimi-lo. Por
fim, gostaríamos de evocar uma passagem deste livro que atesta o modo como, tanto a história quanto a
geografia, ainda não se encontram colocadas, na filosofia da diferença, em conformidade com o sentido
posteriormente lhes imputado: “A história nos ensina que os bons caminhos não têm fundação, e a geografia, que
a terra é fértil sob uma tênue camada”. IN: Idem, p. 11. Vê-se que não separação e nem primazia de uma
sobre a outra, já que elas, conjuntamente, ensinam. Numa outra citação, extraída do livro Bergsonismo, ao
associar a liberdade à criação de problemas, Deleuze diz: “a história dos homens, tanto do ponto de vista da
teoria quanto da prática, é a da constituição de problemas”. In: DELEUZE, G. Bergsonismo, p. 9. Nesse trecho,
não há nenhuma preterição em relação à história.
74
E se a distinção não estava presente nesse momento, é porque podemos localizá-la
somente após a uma espécie reviravolta que se opera no interior, ou melhor, nas bordas do
pensamento de Deleuze
128
. Essa reviravolta procede de um encontro singular. Desde já, deve
ser mencionado que é bastante problemático afirmar uma mudança radical de percurso no
pensamento deleuzeano em razão deste encontro. Há temas, intuições e ideias, que irão
retornar em contextos e casos díspares, mas que mesmo assim manterão uma coerência de
uso. Um exemplo disso é a proposição ontológica da univocidade do ser. Seja em referência
às ideias, seja em razão dos devires do desejo, uma tal proposição é válida em ambos os
casos, pois tanto em relação às ideias quanto em relação ao devir do desejo, o ser, as ideias e
os desejos são unívocos, se dizem do mesmo sentido de todas as suas diferenças.
Na filosofia da diferença e da repetição, o conceito de devir ainda não está consistente
para se opor à história. Tanto o conceito de devir quanto o de Corpo sem Órgãos, que aparece
em Lógica do sentido, são noções tímidas no sistema filosófico da diferença
129
. Ademais, a
história não está exclusivamente calcada nos estados de coisa. No caso de Lógica do sentido,
um livro que está rompendo os limites da filosofia da diferença, vimos que Deleuze erige a
128
GIL, José. “Uma reviravolta no pensamento de Deleuze”. IN: ALLIEZ, E. (ORG). Gilles Deleuze: uma vida
filosófica. Trad. Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 65-83. Neste texto, Gil afirma: “A obra de
Deleuze não se constitui como um bloco único desde seu começo. Em particular, se é verdade que Diferença e
Repetição e Lógica do sentido representam momentos maiores no conjunto de seu pensamento, nem por isso ele
deixou de mudar ‘radicalmente’ (...) a partir do Anti-Édipo”. IN: Idem, p. 65.
129
Sem dúvida, esta é uma afirmação complexa. Sobre o conceito de devir, fala-se frequentemente de Deleuze
enquanto um filósofo do devir. Todavia, quando apontamos para uma suposta inconsistência do conceito de
devir, na filosofia da diferença, em relação à distinção entre o devir e a história, estamos levando em
consideração dois pontos específicos. Primeiramente, quando no livro Lógica do sentido Deleuze faz referência
ao conceito do devir, o devir é colocado sempre acrescido a alguma coisa: devir-louco, devir-ilimitado, puro
devir-ilimitado, carecendo assim de um plano de imanência próprio, que ele somente adquire nos trabalhos
posteriores. Em segundo lugar, estamos contraindo uma ideia formulada por Foucault no texto “Theatrum
Philosophicum”. Para Foucault, a univocidade do ser, o fato de o ser afirmar-se num único sentido, que é o dizer
as diferenças das diferenças diferenciantes, não é assimilável ao movimento do Devir e nem ao de Retornar. O
autor sugere que o ser da diferença é o Voltar. Ressaltar este esforço de discriminação conceitual feito por
Foucault é interessante para percebermos um procedimento decisivo na filosofia de Deleuze que é a colagem.
Pois, se Foucault opera esta discriminação, é porque visa salientar a dessemelhança operada por Deleuze do
pensamento de Nietzsche. Para o filósofo alemão, o devir é o movimento do diverso e da ordem do Mesmo.
Sendo a diferença um efeito incorporal, seu movimento não pode ser estabelecido em conformidade o fluxo do
diverso. Por isso, Foucault conceitua o ser da diferença como o Voltar, a linha reta do tempo. Eis o que ele diz:
“Esta palavra [Voltar] evita tanto Devir quanto Retorno. Pois as diferenças não são os elementos, mesmo
fragmentários, mesmo misturados, mesmo monstruosamente confundidos, de um grande Devir que os conduziria
em seu curso, fazendo-os em certos momentos reaparecer, mascarados ou nus (...) e o ser, que se diz da mesma
maneira que a diferença, não é o fluxo universal do Devir”. FOUCAULT, M ‘Theatrum Philosophicum”. IN:
Ditos e Escritos. Vol. II, p. 251 e 253, grifos do autor. Sobre o conceito de Corpo sem Órgãos, levamos em
consideração o que Gil diz a respeito a isso: “a noção de corpo sem órgãos, que surge na Lógica do sentido com
um estatuto ambíguo, oscilante, quase apagado, tomará a importância que se sabe no Anti-Édipo e em Mil
Platôs”. GIL. J. “Uma reviravolta no pensamento de Deleuze”, p. 65, grifo do autor.
75
distinção entre os estados de coisas materiais e os acontecimentos incorporais, não
necessariamente rebatendo a história sobre os estados de coisas.
Isto ocorre porque nesta obra, composta por séries heterogêneas que se cruzam
perpetuamente, a história ocupa um lugar intermediário, indefinido, na distinção entre os
corpos e os incorporais. A história não está totalmente nem de um lado nem de outro. Desse
modo, ela não pertence inteiramente ao devir e muito menos pertence inteiramente aos
estados de coisa. A história ocupa um lugar intermediário, ela está “entre” os dois pólos da
distinção. E neste lugar intermediário, a história assume o importante papel de realizar a
passagem entre os dois pólos. Sua forma é a de uma “história embaralhada”
130
, que permite a
interação e a passagem de uma dimensão à outra. Neste livro, a distinção não está colocada
entre o devir e a história, e sim entre o devir-ilimitado dos elementos incorporais e os estados
de coisas materiais, isto é, entre os acontecimentos incorporais e as misturas corporais.
Havendo aí, uma diferença de natureza entre estas dimensões, mais do que entre o devir e a
história. A diferença de natureza pode ser colocada nos seguintes termos: de um lado, trata-se
dos estados dos corpos, das coisas limitadas e medidas, das qualidades fixas, atribuídas como
causas de sujeitos determinados; de outro lado, trata-se do devir-ilimitado das Ideias, dos
efeitos de superfície que atravessam os corpos, rumo ao vir a ser. Assim, os incorporais
atravessam os corpos, mas se distinguem deles. É importante frisar que os incorporais,
conforme aparecem retratados nesse livro e em consonância com o sentido que será
imputado posteriormente à noção de devir, conforme vimos – são irredutíveis aos corpos, mas
não existem sem eles, isto é, o devir-ilimitado dos acontecimentos incorporais não preexistem
aos corpos, sendo a eles imanentes. Enuncia-se assim o paradoxo do devir ou dos incorporais:
eles chorram entre as coisas, mas não se confundem com elas.
Todavia, o que acontece, o que ocorre, no pensamento de Deleuze, que o faz remeter a
história para o lado material desta distinção? Por que de uma noção de história embaralhada
saltamos a uma história das formações molares, a uma história dos marcadores de Poder? Para
respondermos a estas perguntas, é necessário que nos enviemos ao encontro que ocorre no
interior do pensamento deste autor.
130
Cf. DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 54.
76
Um encontro singular: reviravoltas no pensamento de Deleuze?
A respeito disso, algo curioso. Não existe um consenso ou um acordo, nem no
próprio Deleuze nem nos seus leitores e comentadores, acerca de qual seria, precisamente,
esta reviravolta se é que, de fato, ela existiria –, de quais seriam seus contornos e pontos de
inversão. O pensamento das multiplicidades, como pode ser definido o pensamento
deleuzeano, oferece, por sua vez, múltiplas direções e sentidos quanto à “compreensão” de
sua démarche. A palavra compreensão está entre aspas porque talvez seja melhor falar de
experimentação. E a obra de Deleuze, é uma obra que pode ser experimentada de vários
modos. Não sendo um sistema fechado e composta por conceitos provenientes de diversas e
heterogêneas áreas do pensamento, a obra deste autor proporciona uma positiva mobilidade. E
graças a essa volubilidade, é somente em função de questões e problemas específicos que
podemos determinar continuidades e descontinuidades em sua démarche. Por isso, dizemos
novamente, em alguns pontos, como a univocidade do ser, continuidade, em outros, como
o simulacro ou até mesmo a Diferença Transcendental da Ideia, não há.
Posto isso, não é de surpreender que o próprio autor experimentou distintamente o
sentido desta reviravolta. Para pensar a complexidade da trajetória deleuzeana, uma
constatação deve ser feita, que em muito contribui para a compreensão deste encontro: após o
encontro que teve com Félix Guatarri, o pensamento de Deleuze expandiu-se para domínios
completamente novos em relação aos anteriores. Este encontro gerou várias obras, entre elas:
O Anti-Édipo, Mil Platôs, O que é a filosofia?. Graças a esse encontro, o pensamento de
Deleuze, juntamente com o de Guatarri, pôs em ação uma filosofia singular, que opera a partir
de uma requintada produção conceitual. Até os conceitos que são retomados, reaparecem com
um novo sentido, com dimensões a mais ou a menos.
Com efeito, vários pontos do pensamento de Deleuze, após o encontro com Guatarri,
foram remanejados e alterados, abandonados e criados. Pois, não se trata simplesmente de
uma soma de um mais um, visto que cada autor já é, em si mesmo, uma multiplicidade, uma
multidão. Por mais de uma vez, a ideia de uma conjunção entre duas multidões, ao invés de
duas pessoas, é levantada pelos autores. Cada um deles é um riacho, confluindo para a
formação de um terceiro riacho. Nessa perspectiva, fica um pouco difícil delimitar o que seria
próprio a cada um, sendo cada um, em si, uma multiplicidade. Todavia, algumas
considerações nos permitem enfrentar esta dificuldade. Devido a formação psicanalítica de
Guatarri, grande parte da mudança e da reviravolta decorrente dessa conjunção envolve o
77
modo de abordar a psicanálise. Comparando os escritos da diferença e a filosofia de Deleuze e
Guatarri, as mudanças na forma de abordagem da psicanálise são evidentes
131
. Impressionou
fortemente Deleuze a concepção de máquinas desejantes criada por Guatarri. Isto porque as
máquinas do desejo de Guatarri conjugam-se com uma noção de inconsciente que, de forma
alguma, é um inconsciente representativo; ele é produtivo, é um “inconsciente-máquina”. Daí,
para os autores, a falência do complexo de Édipo para lidar com os fenômenos do
inconsciente. O complexo de Édipo é analítico, no sentido kantiano do termo, ele nada trás de
novo ao estudo da produção do desejo, já que a rebate sobre um teatro da representação, cujos
papéis são desempenhados pelos indivíduos familiares preexistentes. O inconsciente
produtivo é sintético, e a novidade que introduz é justamente ligar a produção do desejo às
formações sociais e históricas. Não se trata de reduzir uma dimensão à outra, mas de retirar a
produção inconsciente do reduto transcendente que lhe é imputado pelas representações
inconscientes.
E desse ponto de vista, não só é preciso refazer a história do inconsciente, mas
também refazer a própria história. Pois, o inconsciente não está dado nos mitos, não é um
teatro de personagens constituídos por papéis delimitados: o pai, ae e o filho; ele é
produzido pelo agenciamento coletivo no qual se insere, e ao mesmo tempo, o agenciamento
coletivo é produzido pelas máquinas desejantes que possui. Assim, o socius é investido pelo
desejo da mesma forma que o inconsciente é investido pelo socius. Eis uma lição que
aprendemos em O Anti-Édipo: o inconsciente é produzido historicamente, ele não é dado a
priori como algo descolado da realidade, e sim ele é produzido a partir da história, do
agenciamento histórico no qual participa. Nesse sentido, a esquizoanálise, a psiquiatria
materialista do inconsciente produtivo, injetou história no campo do inconsciente, onde até
então o que predominava era uma abordagem a-histórica dos fenômenos do inconsciente. As
representações psíquicas situavam o inconsciente numa espécie de inatismo. Nesse sentido, os
autores levaram ainda mais longe do que Braudel a crítica à antropologia estruturalista. Para
Deleuze e Guatarri, o inconsciente não é uma representação mítica e nem estruturas que
mudam lentamente, mas sim uma potência imanente ao campo social. E o que permite a estes
131
É segundo esta mudança na forma de abordagem da psicanálise que Gil vem propor o sentido da reviravolta
no pensamento de Deleuze. Gil aponta para a ambiguidade presente em Lógica do sentido no que tange à
psicanálise: “[ele] lhe é fiel quando consegue integrá-la no seu próprio pensamento. Nos pontos em que a
psicanálise falha pensar e curar a psicose –, Deleuze encontra uma linha de resistência à sua apropriação. (...)
Resulta disso que a crítica à psicanálise que se esboça na gica do sentido, preparando-se para se radicalizar no
Anti-Édipo, anuncia já a mutação do pensamento de Deleuze”. GIL, J. “Uma reviravolta no pensamento de
Deleuze”, p. 66
78
autores levantarem a crítica tanto ao Édipo psicanalítico quanto às representações
inconscientes, caras a determinadas formações históricas, é uma singular noção de delírio: os
delírios são históricos. O delírio não se refere ao pai, nem sequer ao Nome do Pai, mas aos
nomes da História. É como a imanência das máquinas desejantes no interior das grandes
máquinas sociais. Ele é o investimento do campo social histórico pelas máquinas
desejantes”
132
.
Esta junção do inconsciente com o histórico, do desejo com o socius, “a existência de
um investimento lidibinal inconsciente da produção social-histórica”
133
, encontrada neste
livro, foi o ponto de partida para que os autores fomentassem a distinção entre o devir e a
história. Nesse sentido, O Anti-Édipo está mais próximo da história do que o livro posterior,
Mil platôs, no qual, como vimos, a geografia terá uma importância maior do que a história. E
se dissemos que a distinção principia aqui, na conjunção entre a produção social-histórica e a
produção do desejo, é porque nestes processos, ainda que encontremos a produção como um
objeto em comum, a forma de produzir em cada um destes regimes é diferente. Assim, “a
forma social de produção exerce uma repressão essencial sobre a produção desejante, e a
produção desejante, é revolucionária, pode potencialmente fazer a forma social ir pelos
ares”
134
. Como vemos, a forma de produção o é a mesma. A produção desejante é
revolucionária, já a social é repressiva. Revolução e repressão se dizem em relação ao
processo de produção em cada uma destas instâncias. O processo produtivo social opera por
repressões, inibições do desejo. A repressão é exatamente a estagnação do processo, a
interrupção do processo para a determinação de um padrão. Por outro lado, na produção
desejante o revolucionar é a ininterrupção do processo, é o devir da produção, o processo sem
começo e nem fim. Esta distinção de formas de produção será desdobrada em Mil Platôs nos
termos de uma distinção entre o devir e história, entre o devir molecular e a história molar.
Eis porque em Mil Platôs a história teve que ser distinguida do devir. A produção
social, ao operar por intermédio de uma estagnação do processo desejante, adquiriu a forma
do molar, da maioria, do padrão homem, visto que a constituição de um padrão é o abandono
do processo do desejo em prol de algo que não é mais querido, desejado e sim fundado,
imposto. A história molar que os autores determinam, é a história isenta da ação do
inconsciente molecular, do inconsciente produtivo, do fluxo incessante do devir do desejo; na
132
DELEUZE, G. & GUATARRI, F. “Entrevista sobre O Anti-Édipo”. In: DELEUZE, G. Conversações, p. 28.
133
DELEUZE, G. & GUATARRI, F. O Anti-Édipo, p. 102-103.
134
Idem, p. 121-122.
79
história do inconsciente molar, tudo é operado em termos de padrão, de sujeitos, de funções e
de relações de Poder, o desejo não pode mais fluir. Para investir o socius de desejo, foi
preciso estabelecer o devir como uma dimensão distinguida da história. Nesse sentido, a
filosofia de Deleuze e Guatarri, sobremaneira Mil Platôs, é uma filosofia do devir do desejo,
que estabelece uma pressuposição recíproca entre o socius e o inconsciente. E esta
pressuposição, acrescida de uma reformulação da práxis psicanalítica ou melhor,
esquizoanalítica é o sentido atribuído à reviravolta, segundo o ponto vista que situa uma
reviravolta ao redor do encontro entre Deleuze e Guatarri. Assim, é entorno da virada
esquizoanalítica, dos investimentos libidinais sobre o corpo social, onde encontramos as
novidades suscitadas pelo encontro Deleuze-Guatarri.
Todavia, podemos conferir à reviravolta no pensamento deleuzeano um sentido
diferente. Numa entrevista intitulada “Sobre a filosofia”
135
, Deleuze sugere que podemos
encontrar uma reviravolta tendo como base seu próprio percurso. Com isso seríamos levados
a estabelecer uma cisão na démarche deste autor que colocaria, de um lado, seus escritos
sobre a história da filosofia, o Deleuze comentador de filósofos, e de outro lado, seus
trabalhos de cunho propriamente filosófico: o Deleuze produtor de uma nova filosofia. Nessa
perspectiva, a reviravolta se daria um pouco antes do encontro com Guatarri. Já nas obras
Diferença e Repetição e Lógica do sentido poderíamos encontrar os efeitos dessa reviravolta.
Como dissemos, partimos do pressuposto de que Diferença e Repetição e Lógica do
sentido, ao invés de inaugurarem uma nova fase no pensamento de Deleuze, como sugere o
que foi dito pouco, operam a consumação de uma sistematização dos anteriores estudos
deleuzeanos. No texto de Gil que citamos, ele destaca a importância dessas duas obras como
“momentos maiores” do pensamento de Deleuze, caracterizando o encontro de Deleuze com
Guatarri o início da produção de uma outra filosofia: a filosofia de Deleuze-Guatarri
136
. Com
efeito, pensamos ser segundo esta perspectiva, o modo mais produtivo para compreendermos
o empreendimento filosófico de Deleuze. Pois, ao tomarmos Diferença e Repetição e Lógica
do sentido como momentos maiores da produção filosófica de Deleuze, e não momentos de
ruptura, estamos superando a questão que coloca Deleuze semelhante a um historiador da
filosofia. Assim, em tais livros, encontramos sistematizados, mas segundo uma
sistematicidade aberta e rizomática, os estudos anteriores de Deleuze no campo da história da
135
DELEUZE, G. “Sobre a filosofia”. IN: DELEUZE, G. Conversações, p. 169-193.
136
GIL, José. “Uma reviravolta no pensamento de Deleuze”, p. 65.
80
filosofia. Todavia, esta sistematização converge com o projeto filosófico do próprio Deleuze
de estabelecer a diferença, “faire la différence”, isto é, uma filosofia da diferença.
Contudo, a maneira de Deleuze perambular pela história da filosofia merece ser
destacada, que ele não procede como o tradicional historiador da filosofia. Não se trata de
voltar aos clássicos textos filosóficos procurando a verdade do pensamento do sujeito-autor
que deveria aí estar impressa. Muito menos de resgatar o todo do pensamento de determinado
autor. Tampouco se trata de enxergar as entrelinhas desse pensamento, mostrando o que nele
estaria escondido. Para Deleuze, evocando a bem conhecida passagem do prólogo de
Diferença e Repetição, a história da filosofia
deve desempenhar um papel bastante análogo ao da colagem numa pintura. A História da
Filosofia é a reprodução da própria Filosofia. Seria preciso que a resenha em História da
Filosofia atuasse como um verdadeiro duplo e que comportasse a modificação máxima própria
do duplo. (..) Seria preciso conseguir apresentar um livro real da Filosofia passada como se
tratasse de um livro imaginário e fingido. Sabe-se que Borges se sobressai na resenha de livros
imaginários. Mas ele vai mais longe quando considera um livro real, o Don Quixote, por
exemplo, como se fosse um livro imaginário, ele próprio reproduzido por um autor imaginário,
Pierre nard, que ele, por sua vez, considera como real. Então, a mais exata repetição, a mais
rigorosa repetição, tem, como correlato, o máximo de diferença ("o texto de Cervantes e o de
Ménard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico..."). As
resenhas de História da Filosofia devem representar uma espécie de desaceleração, de
congelamento ou de imobilização do texto: não do texto ao qual eles se relacionam, mas
também do texto no qual eles se inserem. Deste modo, elas têm uma existência dupla e
comportam, como duplo ideal, a pura repetição do texto antigo e do texto atual um no outro
137
.
É devido a essa singular concepção da história da filosofia, que nem mesmo o
professor Roberto Machado, ao afirmar a propósito da démarche deleuzeana, que ela, no
limite, não passaria de uma suma de pensamentos extraídos de vários autores
138
, não identifica
Deleuze a um historiador da filosofia. Segundo Machado, Deleuze não pode ser considerado
um historiador da filosofia, porque “repetir um texto não é buscar sua identidade, mas afirmar
sua diferença”
139
. Quando Deleuze percorre a história da filosofia, ele não se limita a dizer, ou
melhor, a redizer aquilo que um determinado autor disse. Seu discurso indireto livre vai mais
além. Não reconhecendo a identidade do autor trabalhado, Deleuze percorre a história da
filosofia, a história do pensamento, extraindo conceitos que remetem ao seu próprio projeto
filosófico. Assim, se falamos que o procedimento da colagem procura afirmar a diferença, não
estamos enfatizando apenas a diferença exterior entre o texto antigo e o texto atual, ao qual se
insere o antigo. Mas sim uma diferença interior e intensiva, que faz valer correspondências
137
DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 18. Grifo do autor.
138
MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia, p. 22.
139
Idem, p. 15.
81
entre o texto antigo e o novo, ou vice e versa, que não são da ordem do idêntico, e sim da
ordem da própria diferença. Então, é a partir do sistema estabelecido em Diferença e
Repetição, que os textos de Deleuze sobre os filósofos devem ser tomados como integrando o
próprio projeto deleuzeano. Não é simplesmente uma rememoração do pensamento do autor
estudado. A filosofia da diferença e da repetição, elaborada em Diferença e Repetição e
levada ao limite em Lógica do Sentido, agrupa e dá sentido sistemático ao que Deleuze
realizou durante suas incursões no campo da história da filosofia, pois nesta incursão Deleuze
colocou questões e problemas que integram o seu próprio pensamento.
Desse modo, seguindo a indicação sugerida pela tese de Sandro Fornazari, O
esplendor do ser, afirmamos ser tais obras o ponto de culminância do projeto filosófico da
diferença no pensamento de Deleuze. Sendo nelas, onde encontramos a consumação de uma
sistematização, cujo modo operacional característico é promover um retorno à história da
filosofia que, de fato, não é uma reconstrução conceitual, mas sim uma produção de
filosófica. Trata-se do duplo proveniente da colagem: extrair um conceito de uma filosofia
determinada e colá-lo num outro pensamento, não deixando de produzir uma diferença na
repetição. Por isso, não devemos achar que Deleuze excluiria da prática filosófica a história
da filosofia. Muito pelo contrário, a filosofia da diferença mantém com a história da filosofia
uma relação singular. Se Deleuze parte da história da filosofia, estudando filósofos como
Hume, Bergson, Nietzsche, Espinosa e outros tantos, não é como um simples comentador.
Deleuze utiliza conceitos vindos de outras filosofias, mas dando-lhes uma nova roupagem, um
novo sentido, em consonância com seu próprio projeto filosófico. É nesse sentido que
Diferença e Repetição e Lógica do sentido são “momentos maiores” do percurso de
Deleuze
140
. Entretanto, se essas obras operam uma coroação dos estudos anteriores de
Deleuze, consumando um modo muito singular de atravessar a história da filosofia, as
reviravoltas que surgem depois são plurais. Visto que depois desta há outras: cada encontro
com Guatarri, suas posteriores obras solo, Foucault e A dobra - Leibniz e o Barroco, sem
dúvida, apresentam outras tantas reviravoltas menores. E é o próprio procedimento da
colagem que faz com que isso seja assim. Este procedimento, ao fazer dos conceitos
ferramentas mutantes, pressupõe que eles o sejam representações gerais, prontas e
acabadas, utilizadas com pretensões universais. Os conceitos são ideias particulares, que não
140
Para um exame mais detalhado desta discussão, o desacordo acerca do sentido da reviravolta, e sobre a
importância da história da filosofia para a produção de uma filosofia da diferença, cf. FORNAZARI, Sandro K.
O Esplendor do Ser, p. 20-27; RUGLITIANO, F. O drama da diferença, p. 7-9.
82
podem oferecer soluções gerais: eles solucionam situações locais. Além do que, os problemas
sobre os quais os conceitos vêm intervir, não admitem soluções gerais. Os problemas
necessitam, a cada vez, que os conceitos sejam retomados e recompostos, visto que um
conceito não possui reserva alguma de saber; e o problema não é imutável, ele tem por
natureza o problemático. Desse modo, o procedimento da colagem requer que os conceitos
sejam retomados e reinscritos de acordo com o problema ao qual estão conjugando. E o
problema, ele mesmo, é problemático. Eis o que nos diz Deleuze: “eu faço, refaço e desfaço
meus conceitos a partir de um horizonte movente, de um centro sempre descentrado, de uma
periferia sempre deslocada que os repete e os diferencia”
141
. Por isso as reviravoltas: elas
ocorrem sempre quando retomamos um conceito, o recolocamos em outros problemas e
fazemos com que outras linhas o capturem. Nesse sentido, convém lembrar que Deleuze
gostava muito de uma declaração de Leibniz, que usava para qualificar o percurso de
Foucault, mas que, por efeito duplo, lhe caberia muito bem: “pensava entrar no porto, mas fui
lançado de volta ao alto mar”
142
.
Em cada movimento de sua trajetória, de Diferença e Repetição e Lógica do sentido à
O Anti-Édipo, de O Anti-Édipo à Mil Platôs, de Mil Platôs à O que é a filosofia?, as
reviravoltas estão presente, mesmo que mais imperceptíveis. Elas atestam o movimento de um
pensamento que toma por objeto o próprio movimento do pensamento. Sendo assim, neste
percurso, a filosofia da diferença e da repetição abre o caminho para uma filosofia do devir do
Corpo sem Orgãos, do desejo incorporado ao socius. Com efeito, após O Anti-Édipo, e
sobremodo em Mil Platôs, temos uma expressiva reviravolta na produção conceitual deste
pensamento, a filosofia da diferença e da repetição lugar à filosofia do devir do desejo, das
máquinas do desejo. Essas reviravoltas implicarão uma proliferação na produção conceitual
deste autor. A partir delas, cada vez mais, podemos ver como o problema do devir do desejo
protagonizará um papel central na filosofia de Deleuze-Guatarri: o desejo constituirá o plano
de imanência para esta filosofia. Eis então a razão da contigüidade entre aquelas duas
entrevistas e os livros analisados a respeito da relação entre o devir e a história: estes textos
estão inseridos mais em uma filosofia do desejo do que, rigorosamente, numa filosofia da
diferença e da repetição. Isto ocorre porque na filosofia da diferença e da repetição não
encontramos uma tal distinção.
141
DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 17.
142
DELEUZE, G. “Um retrato de Foucault”. IN: DELEUZE, G. Conversações, p. 130.
83
Sobre isso que foi dito acerca da situação da história no interior do pensamento de
Deleuze, devemos reter os seguintes pontos: a) o pensamento de Deleuze efetuou uma crítica
aos pressupostos adotados pela história, b) a ponto de estabelecer uma distinção não-
exclusiva entre o devir e a história, c) esta distinção não está presente de forma homogênea
em sua démarche, pois a função que a história designa varia ao longo deste pensamento, d)
os escritos da diferença colocam em jogo uma “outra” noção de história, que aqui a
distinção ainda não se faz atuante. Esta outra noção de história, embora também possa ser,
em partes, encontrada na filosofia do devir do desejo e ela é encontrada, como vimos, sob a
alcunha de uma história dos encontros, de uma história contingencial – ela é ricamente
apresentada nos escritos da diferença. E é essa noção de história, elaborada na filosofia da
diferença deleuzeana, que gostaríamos de contrapor àquela história oriunda do realismo.
84
Capítulo terceiro: a filosofia da diferença e da repetição e o realismo
No primeiro capítulo, lançamos o problema do realismo, e como ele se aloca no
interior da ciência histórica. Vimos seus três axiomas constitutivos: a) a identificação do
acontecimento ao possível; b) a identificação do tempo com a crença, isto é, a assimilação da
forma do tempo à forma da crença de uma determinada época; c) a identificação do real
segundo o real do realismo, quer dizer, a equiparação do real com a lógica do pensamento do
possível. Além disso, vimos também que todos estes axiomas, ao funcionarem, executam uma
negação do acontecimento no interior da racionalidade da história. Acerca do realismo,
destacamos dois pontos que lhe são decorrentes: uma ontologia negativa do acontecimento,
confirmada pelo anacronismo, pecado maior da história ao qual o historiador deve com todas
as suas forças evitar; e um tempo do anti-acontecimento, que é o tempo que suprime a
existência do acontecimento, ao torná-lo submetido ao pensamento do possível. Diante disso,
levantamos a seguinte hipótese: podemos estabelecer uma relação positiva entre o
pensamento de Deleuze e a ciência histórica, na medida em que o pensamento deste autor nos
instiga, de várias formas, a criar “linhas de fuga” que fazem fugir a história das malhas do
pensamento do possível. Sendo na sua filosofia da diferença e da repetição – mas não somente
aí, vale frisar onde aspiramos encontrar estas “linhas de fuga”, que se cruzam num
pensamento do virtual, da Ideia.
No segundo capítulo, com o intuito de dar mais plausibilidade a este ponto de vista,
procuramos enfrentar uma questão que Deleuze levanta a partir de um determinado momento
de sua démarche: a distinção e a irredutibilidade do devir em relação à história. E Deleuze não
apenas diz que os seus objetos são os devires, mas também diz que os devires são elementos
não-históricos, que remetem muito mais à geografia do que a história. Esta questão nos
pareceu importante porque se tal distinção fosse absoluta e excluísse radicalmente a história
do pensamento de Deleuze, o nosso ponto de vista seria de difícil verificação. Ao examinar
esta questão, primeiramente fizemos uma exposição pontual do conceito de devir e depois
analisamos esta distinção em alguns textos; e vimos que a distinção surge num momento
preciso da trajetória deste autor, e que de maneira alguma encontramos uma negação radical
85
da história, havendo mesmo é uma pressuposição recíproca entre estas dimensões distintas, o
devir e a história. Além do mais, na filosofia da diferença e da repetição, esta distinção ainda
não é encontrada, já que ela ainda não fora estabelecida. E são estes escritos, que agora iremos
abarcar.
Por conseguinte, neste terceiro capítulo, visamos encaminhar uma investida na
filosofia da diferença e da repetição deleuzeana, com o intuito de extrair uma noção de
história. Em concomitância a isso, iremos encaminhar a forma pela qual esta noção não está
em sincronia com a tese realista da história. Pelo contrário, segundo nosso ponto de vista, a
noção de história presente nesse sistema libera o pensamento histórico dos axiomas forjados
pelo realismo. Desse modo, a apresentação do sistema filosófico da diferença que faremos
aqui, terá como objetivo conceber uma noção de história que reverta o realista de seu
interior, isto é, uma história que desfaça a identificação entre o pensamento, o real e o
possível, uma história que afirme o acontecimento, e enfim, uma história que não identifique
o tempo à forma do possível. Sendo este o nosso interesse, devemos admitir que algumas
dimensões do sistema da diferença inevitavelmente ficarão de fora. Todavia, devemos
adiantar que a noção de história produzida a partir da filosofia da diferença e da repetição,
somente pode ser alcançada quando a fizermos jogar com “as duas metades” desta filosofia: a
diferença em si mesma e a repetição pura. Pois, por um lado, é o conceito da diferença em si
mesma que invoca um espaço de inscrição na forma de uma ontologia afirmativa do
acontecimento uma ontologia do ser unívoco em termos do autor. E por outro lado, é o
conceito de repetição pura que conclama uma produção temporal sob a forma de um tempo do
acontecimento nos termos de Deleuze, o eterno retorno da diferença, a linha reta do tempo,
o tempo liberado dos eixos, o tempo da repetição.
Assim, esperamos compensar as lacunas e as omissões, colocando em prática um
modo de leitura do pensamento deleuzeano em afinidade com o modo pelo qual o próprio
Deleuze agenciou os autores com os quais trabalhou. Conforme o procedimento de colagem,
destacar a importância de um pensamento não é revivê-lo em sua totalidade a título de
reflexão, e muito menos é propor uma postura rememorativa, explicitando as verdadeiras
pretensões do autor, e sim é mostrar o quanto um autor é atual, o quanto seu pensamento
suscita novos problemas, o quanto ele pode ser atuante para fazer com que o pensamento crie
novas linhas de ação.
86
A filosofia da Diferença e da Repetição
Partimos do ponto de vista de que dessa filosofia podemos produzir uma singular
noção de história. Todavia, cabe-nos levantar uma seguinte objeção: não seria um
descompasso de nossa parte afirmar tal coisa, visto que é em O Anti-Édipo e sobretudo em
Mil Platôs onde mais facilmente encontraríamos as ideias de Deleuze sobre a história
propriamente dita, isto é, uma história das formações sociais, ainda que sob a forma de uma
distinção entre o devir e a história? Vale dizer que em tais livros, problemas históricos como a
formação dos Estados, o capitalismo, o nomadismo e outros, são analisados e abordados.
Sendo assim, não seriam estes livros os materiais mais relevantes para indagarmos acerca da
história no pensamento deleuzeano, mais do que em Diferença e Repetição ou nos demais
escritos da diferença? Vimos anteriormente como a história embaralhada, afirmada pelo
pensamento da diferença no livro Lógica do sentido, foi elaborada aquém a distinção entre o
devir e a história. Vimos ainda que a história contingencial decorrente da filosofia do devir, de
certa forma, apresenta elementos de uma noção de história que já estava contida na filosofia
da diferença. Eis porque os escritos da diferença, sobremaneira Diferença e Repetição, foram
selecionados como os materiais através dos quais podemos trabalhar o objetivo proposto: aí,
não apenas encontramos elementos que serão desdobrados em obras posteriores, como
também é aí que encontramos aspectos do pensamento deleuzeano que permitem dar à
história uma nova dimensão. Devido a isso, nesses escritos encontramos mecanismos
conceituais que operam uma inversão à tese do realismo: ao invés de uma negação do
acontecimento e de uma identificação do tempo ao possível, o pensamento de Deleuze
procura fazer uma afirmação do acontecimento, de modo que o tempo não remeta mais ao
possível, mas sim, doravante, ao virtual. Isto é, a noção de história que propomos a partir
desta filosofia deve ser vista como uma história que possui uma ontologia afirmativa do
acontecimento e um tempo que é um tempo do acontecimento, o tempo do eterno retorno da
diferença.
Ainda na apresentação, fizemos referências a Diferença e Repetição como se tratando,
sob certos aspectos, de uma obra histórica, sobremaneira de uma história conceitual. É certo
que, ao afirmarmos isso, não estamos reduzindo Deleuze ao posto de simples um historiador
da filosofia. Já tentamos refutar este ponto de vista no capítulo anterior, e nele vimos não
que Deleuze não é um comentador de textos, como também que sua maneira de percorrer a
história da filosofia é bastante singular. Para Deleuze, percorrer a história de um conceito não
87
é um exercício crítico ou reflexivo. Segundo Rutigliano, a noção de crítica tem um outro
sentido no pensamento de Deleuze, “uma vez que a criação mostrou-se sempre, na obra
deleuziana, como um duplo necessário da crítica”
143
. É nesta conjunção de crítica e criação
que Deleuze investe sobre a história da filosofia e promove uma filosofia da diferença e da
repetição. E nessa filosofia não somente encontramos uma história conceitual da diferença,
como também entrevemos uma elaboração singular da concepção do tempo.
Do pensamento do possível ao pensamento do virtual
O pensamento histórico do possível, que opera a partir de uma tripla identificação,
contém em seu interior uma negação do acontecimento. Esta negação é sustentada pela prova
ontológica do anacronismo. Através da prova seletiva do anacronismo, ocorre a determinação
do ser histórico. Isto é, o anacronismo determina a possibilidade de existência do ser histórico.
É o anacronismo que autoriza a autenticação do ser histórico, a identificação do existir com
ser de acordo com sua possibilidade. Somente passando pelo crivo da possibilidade, é que um
determinado acontecimento pode aceder ao existente historicamente. Por isso, o pensamento
histórico do possível, com sua correlata prova de fundamentação, ao assimilar a existência de
um “ser” histórico, de um determinado acontecimento com o possível, ao admitir como
existente somente o possível segundo o tempo, disponibiliza para a história uma ontologia.
Vimos como os três axiomas promoviam uma negação do acontecimento nesta ontologia.
Pois, conforme esta ontologia histórica, tudo o que não é possível cai no pecado do erro
anacrônico. O não-ser, o impossível, por não passarem pela prova ontológica da história, são
retirados e suprimidos da razão historiadora.
Antes de tentarmos liberar a história dessa ontologia negativa, é preciso, antes, que nos
instalemos decomposição do pensamento do possível. De fato, será o possível uma noção
conveniente para a história? Será ele uma noção consistente para pensar o real? Aliás, como
podemos ligar o real ao possível? O possível é uma noção gica, e exprime condições
possíveis. A noção de possível é uma abstração lógica. E a lógica do possível é uma lógica do
idêntico, que recusa as dimensões do real a contingência e o acidente –, privilegiando a
adequação gica às condições de possibilidade. Segundo o possível deve haver uma
identificação entre acontecimento e possível, tempo e crença, real e realismo. E para cada
termo da experiência real, acontecimento, tempo e real, o pensamento do possível nos dá uma
143
RUTIGLIANO, F. Gilles Deleuze: o drama da diferença, p. 75.
88
representação abstrata da experiência lógica, possível, crença e realismo. Nesse sentido, a
noção do possível é completamente exterior ao que ela quer dar conta. O pensamento do
possível não conta do acontecimento, do tempo e, logo, do real, porque a realidade não é a
realização de um possível. O possível é uma abstração retroprojetada do real. É esse o ponto
em que, precisamente, devemos fazer intervir as “linhas de fuga” oriundas do pensamento de
Deleuze. Para Deleuze, o possível é contrário, ele se opõe ao real. O possível é um construto
abstrato e lógico desvencilhado real. Um possível pode ou não se “realizar”. Ele mantém com
o real uma relação exterior, o possível se “realiza” através de um processo de realização. Este
processo foi parcialmente exposto ao apresentarmos o pensamento do possível, quando
lançamos uma citação de Deleuze sobre a recusa de Bergson acerca da categoria do possível,
que agora convém resgatar, ao menos o que mais nos interessa:
O possível é uma falsa noção, fonte de falsos problemas. Supõe-se que o real se lhe assemelhe.
Isto quer dizer que damos a nós mesmos um real já feito, pré-formado, preexistente a si
mesmo, e que passará à existência segundo uma ordem de limitações sucessivas. Já está tudo
dado, o real todo está dado em imagem na pseudo-atualidade do possível. Assim, torna
evidente a gica: se se diz que o real assemelha-se ao possível, o seria porque, de fato,
esperou-se que o real acontecesse com seus próprios meios para “retroprojetar” dele uma
imagem fictícia e, com isso, pretender que ele fosse a todo momento possível antes mesmo
acontecer? Na verdade, não é o real que se assemelha ao possível, mas o possível é que se
assemelha ao real, e isso porque nós o abstraímos do real, uma vez acontecido este; nós o
extraímos arbitrariamente do real como um duplo estéril.
144
Conforme o citado, fica evidente que entre o possível e o real a relação é de
identidade, de semelhança e de limitação. Uma semelhança retroprojetada do possível ao real,
que limita o real à imagem do possível. O possível histórico, composto pelo realismo, forja
sua imagem mediante o triplo processo de identificação e aplica esta imagem ao real via
limitação e semelhança. É precisamente nesse sentido que o pensamento do possível rechaça
o pensamento da diferença. O possível forma sua imagem através do idêntico e retroprojeta
esta imagem no real através de uma limitação e de uma semelhança. E nesse processo, é a
diferença, o desigual e o dessemelhante que deixam de existir, ou existem desde uma
desnaturação. Eles passam a ser ditos do que é idêntico, igual e semelhante. Em Bergsonismo,
um pouco antes dessa última citação, Deleuze analisa o processo de realização próprio ao
possível. Segundo Deleuze, o processo de realização, a aplicação da imagem do possível
sobre o real, obedece a duas regras: semelhança e limitação
145
. Assim, a semelhança é quando
retroprojetamos no real uma imagem, um possível, que a ele deve ser semelhante; a limitação
144
DELEUZE, G. Bergsonismo, p. 79. Grifo nosso.
145
Cf. Idem, p. 78.
89
é quando retemos do real um limitado número de elementos em virtude do crivo do possível
pelo qual o fazemos passar. Posto isto, “é esta a tara do possível, tara que o denuncia como
produzido posteriormente, fabricado retroativamente, feito à imagem daquilo a que ele se
assemelha”
146
.
Todavia é certo que, ainda que efetuemos uma crítica ao entre possível, real e
pensamento, de fato, o criamos nenhuma “linha de fuga”. Ao invés do par possível-real,
que procede por identidade e semelhança, a linha de fuga que jorra do pensamento de Deleuze
nos conduz ao par virtual-atual, que procede por diferenças, diferenciações (différentiation) e
diferençações (différenciation). Uma positividade inerente a este par é que, diferentemente do
anterior, o real não está dado nele. Tanto o virtual quanto o atual, que são dimensões reais – o
virtual possui sua realidade, embora não possua atualidade –, estão em processo dinâmico,
em movimento. Vimos que é o possível quem não possui realidade, ele é um construto lógico
exterior ao real, que lhe projeta uma imagem lógica, estática e fixa. No par virtual-atual, as
diferenças comandam os dinamismos dos dois lados: o virtual não cessa de se diferenciar e o
atual não cessa de se diferençar. E é o próprio real dinâmico que possui estes dois lados: sua
metade atual e sua metade virtual, sendo que a nenhuma das metades falta realidade
147
. E
nesse real dinâmico, são as diferenças que comandam, pois quando o virtual atualiza-se, o
processo de atualização não obedece à regra da semelhança, da limitação ou da identidade.
Com efeito, para atualizar-se, o virtual não pode proceder por limitação, mas deve criar suas
próprias linhas de atualização em atos positivos. A razão disso é simples: ao passo que o real é
à imagem e à semelhança do possível que ele realiza, o atual, ao contrário, não se assemelha à
virtualidade que ele encarna. O que é primeiro no processo de atualização é a diferença (...) é
próprio da virtualidade existir de tal modo que ela se atualize ao diferenciar-se e que seja
forçada a atualizar-se, a criar linhas de diferenciação para atualizar-se
148
.
Ao substituirmos o par possível-real pelo par virtual-atual, consumamos a transição
mencionada no título deste trabalho. Desse modo, quando introduzirmos o par virtual-atual no
lugar do par possível-real, é o próprio pensamento do possível que cede lugar ao pensamento
146
DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 298.
147
Sem dúvida, uma proximidade entre a realidade do virtual e a realidade do devir, tal como a expomos no
capítulo anterior. Ao longo de toda a démarche deleuzeana, a dupla articulação entre o atual e o virtual, ou entre
os agenciamentos maquínicos dos corpos e os agenciamentos intensivos do desejo, está presente. Mas, se há uma
proximidade entre o devir e o virtual, devemos assinalar também a distância que os envolvem. E ainda que
ambas as noções possuam uma natureza “imaterial”, a determinação de cada uma ocorre em função de um
campo transcendental distinto. O virtual da filosofia da diferença e da repetição obtém sua determinação da Ideia
Transcendental, do complexo questão-problema, do problemático. A produção do devir recebe sua determinação
do desejo, dos investimentos inconscientes da libido. Assim, o campo transcendental em cada das noções é
distinto.
148
DELEUZE, G. Bergsonismo, p. 78. Grifo do autor.
90
do virtual. Essa transição implica uma mudança no exercício do pensamento. O entre
possível, real e pensamento é desfeito. A ligadura que amarrava este nó, que baseava-se no
primado do idêntico e do semelhante, e que implicava um real dado, lugar ao exercício
diferencial e diferenciante do pensamento. De acordo com o pensamento do virtual, o real
deixa de assemelhar-se ao possível, e torna-se um real dinâmico, posto em movimento através
do processo de atualização do virtual, através de diferenciações.
Cabe-nos colocar em relevo uma passagem de “Enunciados do fim e do nada”, na qual
o historiador J. Rancière procura pensar o alcance da supressão da diferença na história
científica da nova história. Sobre a supressão da diferença, que é a mesma do acontecimento,
ele diz:
A mentalidade é uma crença desacontecimentalizada. As mentalidades são as crenças
transformadas em costumes, modos de vida, maneiras de ser; mas também metáforas de um
certo regime de crenças, manifestações da impossibilidade da inexistência delas. A história das
mentalidades se organiza como resposta a um desafio para o pensamento do historiador, o da
falta de crença ou da heresia. A heresia é a vida tocada, ferida, aniquilada pelo inacreditável de
uma palavra vinda de um outro lugar. A história das mentalidades afirma a impossibilidade de
um acontecimento desses, a impossibilidade de não acreditar no único objeto próprio da
crença, ou seja, finalmente, a impossibilidade de que a crença seja outra coisa que não um
modo de vida. Ela coloca como impossível, logo inexistente, que a vida seja tocada por outra
coisa que seus “modos”. A vida, para ela, inexiste, se for outra coisa que a manifestação de
seus modos. Assim a falta de crença (a diferença da vida em relação a ela mesma) é
impossível, a heresia nunca é mais do que a expressão de um lugar e de um modo de vida, a
guerra de religião (...) nunca passa de uma relação entre lugares, um deslocamento, um impulso
de forções e populações
149
O pensamento do possível, por operar em termos de identidade e semelhança, suprime
a diferença da história. Toda diferença de uma coisa em relação a ela mesma, é subsumida à
identidade da coisa consigo mesma e à semelhança da coisa com os produtos do seu tempo.
Com efeito, a diferença torna-se impossível, inacreditável, impedida de existir segundo a
prova ontológica do anacronismo. É preciso dar valor ao erro do anacronismo para fazermos
com que a diferença possa existir, que o não-ser adquira existência. Por isso, opomos ao par
possível-real, característica do pensamento do possível, o par virtual-atual. E é a filosofia da
diferença e da repetição que está operando nas dobras do pensamento do virtual. É ela que
desfaz o entre pensamento, possível e real. E desfazer este nó, é liberar a existência da
diferença.
149
RANCIÈRE, J. Enunciados do fim e do nada, p. 249. Grifo do autor. Sobre a heresia como manifestação de
um modo de vida localizado, territorializado, cf. RANCIÈRE, J. Os nomes da história. Trad. Eduardo Guimarães
e Eni Orlandi. São Paulo: EDUC/Pontes, 1994, “O lugar da fala” e “Uma história heréica”, respectivamente, p.
69-82 e 95-110.
91
O pensamento do virtual, ou a filosofia da diferença e da repetição, quando elabora
este par do virtual-atual, coloca-nos em meio de uma encruzilhada de linhas e problemas
difíceis de aportar. Por ora, tendo em vista o problema que estamos enfrentando,
destacaremos as linhas desse emaranhado que mais nos interessam. Trata-se daquelas duas
tarefas que inicialmente utilizamos para caracterizar a filosofia da diferença e da repetição: a)
retirar a diferença de seu estado de maldição, isto é, seu estado enquanto diferença sem
conceito ou diferença conceitual, e produzindo um conceito próprio da diferença, em si
mesmo, sem o intermédio da representação; b) fazer da repetição uma potência pura, singular
e afirmativa, para que dela possamos produzir uma diferença, uma Ideia. Várias as vezes,
Deleuze nos esclarece que entre uma diferença em si e uma repetição pura um jogo que as
torna inseparáveis
150
. É ao mesmo tempo que elas podem ser afirmadas, uma não aparece
sem a outra. Isto se porque quando se encontra uma diferença em si mesma e uma
repetição é que há a afirmação de Ideia, problemática e problematizante.
Ao analisar cada uma destas tarefas, somos lançados nos dois pontos que nos
permitirão discorrer as “linhas de fuga” em relação ao realismo na história: a ontologia
afirmativa do acontecimento e o tempo do acontecimento
151
.
150
Cf. Diferença e Repetição, p. 16, 47, 52, 119-120, nota 3 e 190. Duas passagens destes textos nos mostram
isso com clareza. Numa primeira, citando o livro de Foucault sobre Raymond Roussel, encontramos: “A
repetição e a diferença estão tão bem intrincadas uma na outra e se ajustam com tanta exatidão que não é
possível dizer o que é primeiro”. FOUCAULT apud DELEUZE, Idem, p. 47. Na segunda passagem, quando
Deleuze faz referência à Filosofia de Gabriel Tarde diz que “a verdadeira repetição é aquela que corresponde
diretamente a uma diferença de mesmo grau”. Idem, p. 52.
151
Devemos enfatizar que as “linhas de fugas” que estamos esboçando aqui, não esgotam o projeto da filosofia
da diferença e da repetição. Muito pelo contrário, o emaranhado ao qual remete esta filosofia envolve outras
tantas linhas. Exemplo de uma linha que toca e que contribui para o problema deste trabalho, mas teremos que
deixá-la a parte, para uma outra ocasião, é a crítica a própria condição de possibilidade do pensamento. O
pensamento, para Deleuze, não é o exercício natural de faculdades que se relacionam harmonicamente,
convergindo para o exercício possível do pensamento. Isto é, o pensamento não reclama nenhuma instância da
ordem do possível lógico para se exercer e nem de faculdades que se exercem harmoniosamente. Pelo contrário,
segundo Deleuze, o pensamento é objeto de um encontro, de uma violência, que o força a pensar. As condições
de possibilidades não dão conta do caráter genital do pensamento pois: “falta-lhes uma garra, que seria a da
necessidade absoluta, isto é, de uma violência original feita ao pensamento, de uma estranheza, de uma
inimizade, a única a tirá-lo de seu estupor natural ou de sua eterna possibilidade: tanto quanto pensamento
involuntário, suscitado, coagido no pensamento, com mais forte razão é absolutamente necessário que ele nasça,
por arrombamento, do fortuito no mundo. O que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o
inimigo (...) Não contemos com o pensamento para fundar a necessidade relativa do que ele pensa; contemos, ao
contrário, com a contingência de um encontro com aquilo que força a pensar, a fim de elevar e instalar a
necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar”. Idem, p. 202-203. Sobre isso, cf. também
Idem, p. 207-214.
92
Ontologia afirmativa do acontecimento
Certamente, no pensamento deleuzeano, a ontologia é um tema que se repete. Nos
escritos da diferença, a preocupação ontológica recebe larga atenção. Em Lógica do sentido,
há uma passagem lapidar sobre isto: “a filosofia se confunde com a ontologia, mas a ontologia
se confunde com a univocidade do ser
152
. Esta relação da filosofia com a ontologia e da
ontologia com o ser unívoco condensa o alcance da ontologia, e o sentido a ela conferido, no
pensamento de Deleuze. A seguir, procuraremos mostrar em qual medida esta ontologia pode
ser vista como uma ontologia afirmativa do acontecimento.
Antes disso, é preciso que voltemos ao pensamento do possível e à sua correspondente
ontologia. O realismo efetua a determinação do ser histórico em função, de um lado, do
idêntico, o idêntico entre o possível, o real e o tempo, e de outro lado, do semelhante, o
possível se assemelhando ao real. Sendo o anacronismo, a prova ontológica dessa
determinação. Desse modo, o ser histórico é determinado pelo possível sob a forma do ser
possível conforme a identidade e a semelhança. E não é por acaso a referência à gica
aristotélica das causas, para a argumentação comprobatória de um acontecimento. A ação das
causas, a passagem da causa material à causa eficiente, da causa formal à causa final, é a
determinação do ser como unidade essencial, como princípio geral imutável
153
.
Mas será que a determinação, colocada em termos de identidade e semelhança, é uma
determinação positiva? Ou melhor, será que a determinação em função da identidade e da
semelhança não está assim traída? Será que a determinação livre da diferença, a determinação
através do idêntico e do semelhante, não é propriamente a representação da determinação, ao
invés de uma determinação efetiva?
Deleuze, para desdobrar as tarefas da filosofia da diferença, parte de um duplo
combate: contra a representação e contra o negativo. Pois, ao adotar como ponto de partida a
diferença e a repetição, por um lado, Deleuze procura retirar a diferença do espaço de
inscrição ontológica da representação, isto é, liberar a diferença da maldição lhe imposta pela
representação, por outro lado, ele procura liberar a repetição da negação.
A ontologia que Deleuze propõe é uma ontologia da diferença. Visto que a filosofia se
confunde com a ontologia e a ontologia se confunde com a univocidade do ser, é a diferença o
152
DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 185.
153
Sobre a causalidade em Aristóteles, cf. ARISTÓTELES. Metafísica, livro X, 2. Aristóteles nos fornece um
exemplo da ação da dessas causas, ao referir-se a uma estátua de bronze. O bronze é a causa material. O escultor
e suas ferramentas são as causas eficientes. A maquete e sua forma são as causas formais. E a finalidade artística
dessa escultura é sua causa final.
93
próprio ser unívoco. “O Ser se diz num único sentido de tudo aquilo de que ele se diz, mas
aquilo de que ele se diz difere: ele se diz da própria diferença”
154
. E se a diferença foi vista
com uma maldição, foi porque a desmesura da diferença teve que ser domada pelo
pensamento da representação.
No capítulo “A diferença em si mesma”, Deleuze compõe uma história do pensamento
da representação, destacando a maneira como a diferença era acomodada nos conceitos
provenientes de eixos representativos. A advertência de que a diferença liberada de seu estado
de maldição não é a diferença como o indeterminado, faz-se importante. O indeterminado
pressupõe o indiferente. Nas duas formas da indiferença o nada negro em que tudo se
dissolve, o buraco negro em que a escuridão engole todas as formas, o indiferente em que
nada pode ser determinado; e o nada branco, a camada de luz em que as determinações são
flutuantes, o indiferente em que as determinações são indiferenciadas e imprecisas a
diferença é impedida de emergir como singular. Por isso, desde devemos destacar a
diferença do abismo indiferenciado. No abismo do indiferenciado, a diferença é uma
determinação exterior, uma diferença empírica entre duas coisas. Empírica e exterior, a
diferença é ainda o indeterminado, o indiferente.
Ao invés de ser o indeterminado e o indiferente ou a diferença entre duas coisas, a
diferença é “algo que se distingue – e, todavia, aquilo de que ele se distingue não se distingue
dele”
155
. A diferença, Deleuze exemplifica, é o relâmpago. O relâmpago se distingue do céu
negro, a diferença como algo que se distingue, mas o relâmpago acontece conjuntamente
ao céu negro, e assim, aquilo de que se distingue não se distingue dele. Por isso, a diferença é
“A determinação”. E quando dissemos que a diferença deve ser estabelecida, faire la
différence”, é porque a diferença é esse instante d’A determinação. E nesse instante o
pensamento faz a determinação manter uma relação rigorosa com o indeterminado.
Utilizando-se de uma ideia de Artaud, Deleuze diz que a diferença, A determinação, é uma
crueldade, linha tensa traçada entre o claro e o escuro
156
.
A diferença como A determinação, cruel e rigorosa, diz-nos Deleuze, desde sua
aparição na história do pensamento, foi trabalhada sob as malhas do pensamento da
representação. Este pensamento procurou suprimir, ou melhor, domesticar a diferença. Desse
154
DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 67. Grifo do autor.
155
Idem, p. 55.
156
Sobre isso ver: Idem, p. 56. Aqui, Deleuze diz: “Recorde-se a ideia de Artaud: a crueldade é somente A
determinação, o ponto preciso em que o determinado entretém sua relação essencial com o indeterminado, a
linha rigorosa, abstrata, que se alimenta do claro-escuro”.
94
modo, ela foi transformada num mal ao qual era preciso expiar. Eis então o sentido da tarefa
de retirar a diferença de seu estado de maldição: tornada idêntica a um mal, a diferença deve
estar submetida aos eixos representativos para ser aceita no interior do conceito. Isto é, desde
o princípio, segundo a lógica da representação, a diferença não foi pensada em si mesma, ela
foi tomada como um mal ao qual era preciso tratar, “salvar”. E o caminho traçado para salvar
a diferença, foi salvá-la através da representação, que, para integrar a diferença no conceito
em geral, foi necessário submetê-la a mediação de uma representação. Convém agora
dizermos o que é este elemento pelo qual peneira-se, senão sem deixar as maiores pedras
passarem, a diferença com a pretensão de salvá-la. Para Deleuze:
o elemento da representação tem quatro aspectos principais: a identidade na forma do conceito
indeterminado, a analogia na relação entre conceitos determináveis últimos, a oposição na
relação das determinações no interior do conceito, a semelhança no objeto determinado do
próprio conceito. Estas formas são como que as quatro cabeças ou os quatro liames da
mediação. Diz-se que a diferença é "mediatizada" na medida em que se chega a submetê-la à
quadrupla raiz da identidade e da oposição, da analogia e da semelhança. A partir de uma
primeira impressão (a diferença é o mal), propõe-se "salvar" a diferença, representando-a e,
para representá-la, relaciona-la às exigências do conceito em geral. Trata-se de determinar um
momento feliz o feliz momento grego em que a diferença é como que reconciliada com o
conceito
157
.
No momento feliz grego, a diferença é inscrita no conceito em geral, e logo na
representação, a partir da prova do Grande e do Pequeno. Segundo a prova seletiva do Grande
e do Pequeno, a diferença é inscrita nos limites do conceito geral, na sua grandeza e na sua
pequenez. É somente submetida ao conceito, que a diferença torna-se pensável. Nesse sentido,
é prova seletiva do Grande e do Pequeno que permite recolher da diferença sua parte
representável num conceito. E o restante que não entra, que não cabe no conceito, o grande
demais ou o pequeno demais, é relegado do pensamento da representação. Portanto, nesse
momento feliz, a diferença está domada no interior da representação. A diferença e, logo, a
determinação deixam de ser em si mesmas e passam a ser mediadas pela identidade do
conceito e pela analogia do ser. Para Deleuze, nesse momento feliz, a representação é
orgânica, mesurada no interior das formas gerais da substância.
A lógica aristotélica duas alternativas para a diferença: a diferença genérica e a
diferença específica. Mas estas alternativas, por mais distintas que sejam, partem de uma
definição da diferença como algo irredutível à alteridade e à diversidade. Em Aristóteles, a
diferença só existe, quando termos diferentes se dizem de algo em comum: seja o gênero, para
as diferenças de espécie, seja em “ser segundo a analogia”, para as diferenças genéricas.
157
Idem, p. 57.
95
Irredutível à alteridade, em Aristóteles, a diferença entre dois termos deve ser buscada a partir
daquilo que os termos convém, pois, os termos devem convir em alguma coisa para eles se
diferirem. Assim, a diferença não relaciona o diferente com o diferente, na representação
orgânica da diferença, a diferença é mediada, ora pela identidade do conceito, nas diferenças
de espécie, ora pela analogia do ser, nas diferenças genéricas.
Desse modo, para Aristóteles, duas maneiras de domar a diferença no interior do
pensamento. Primeiramente, o estagirita diz que a maior e mais perfeita diferença.
Sabemos que, no momento feliz, a diferença existe em função de algum ponto em comum,
que a diferença não é confundível com a diversidade e com a alteridade, por isso, para haver
diferença, é preciso que os termos atingidos pela diferença convenham em alguma coisa. E
qual é, então, a maior diferença? Para Aristóteles a maior diferença é a oposição. Das
oposições, qual a mais perfeita: a relação, a contradição, a privação ou a contrariedade? Para
ele, a maior e a mais perfeita diferença está na contrariedade
158
. É a contrariedade no interior
de um gênero a maior e a mais perfeita diferença. A diferença de gêneros, nesse sentido, é
grande demais, visto que entre gêneros distintos, a maior distância possível. Assim,
Deleuze condensa: “a diferença perfeita e máxima é a contrariedade no nero, e a
contrariedade no gênero é a diferença específica”
159
. Eis então a primeira forma da diferença
em Aristóteles: a diferença específica. É ela a medição entre o Ser e o gênero. Pois, como
poderíamos dizer que diferenças no gênero sem concluir que diferença de gênero?
Como poderíamos dizer que “pedestre” e “alado” são diferenças no animal, mas não
diferenças de gênero? Como poderíamos dizer que um gênero possui diferenças, mas que
estas diferenças não definem o gênero, pois o gênero se diz do geral? É porque, enquanto
especificação, o gênero é dividido por diferenças específicas, pelas quais produzem espécies
correspondentes. Por conseguinte, é graças à diferença específica que pode “o gênero
permanecer o mesmo para si, tornando-se outro nas diferenças que o dividem”
160
. Os
contrários, sob a forma da diferença específica, são a maior e a mais perfeita diferença no
interior de um gênero.
A diferença específica articula o ser igual do gênero com as diferenças próprias,
quando a diferença é contrariedade na essência, homem e mulher, ou com as diferenças
158
Sobre isso, cf. ARISTÓTELES, Metafísica, livro X, 4. E também cf. AUBENQUE, P. Apud CRAIA, E. A
problemática ontológica em Deleuze, p. 29-31.
159
DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 58.
160
Idem, p. 59.
96
comuns, quando a diferença é contrariedade na matéria, pedestre e alado. É conforme a
identidade de um conceito genérico que a diferença é domada, conciliada com a
representação. Todavia, a natureza diferenciante da diferença – o diferenciador da diferença
é substituída pela identidade de um conceito indeterminado (gênero). Dessa forma, diferença
específica é predicativa, ela é um predicado que se aplica a um conceito, tal como “pedestre”
ou “alado” se dizem do animal. Enquanto predicativa, a diferença é confundida com a
diferença conceitual: “confunde-se a determinação do conceito de diferença com a inscrição
da diferença na identidade de um conceito indeterminado”
161
.
Contudo, será a diferença específica e maior e a mais perfeita em todos os sentidos?
Vimos que a contrariedade é a maior e a mais perfeita quando referimos a diferença à
identidade de um conceito indeterminado. Com efeito, parcialmente os contrários são a
maior diferença. A diferença específica é pequena em relação à diferença genérica, à
diferença entre os conceitos últimos determináveis (categorias). Há pouco, falamos que o que
produz a diferença no gênero é a diferença específica. É ela que divide o gênero em espécies
correspondentes. Ela é a mediação entre o gênero e o ser. Pois, se o ser fosse um gênero
comum, seu ser seria as diferenças específicas e o gênero, em consequência, seria dito das
diferenças, o que é um absurdo, visto que o gênero é princípio constitutivo do geral e não se
diz das diferenças. Mas o que acontece quando nos referimos à diferença entre gêneros, à
diferença entre categorias? Pois, se a diferença, em Aristóteles, precisar convir em alguma
coisa, qual seria esse elo comum entre as diferenças genéricas? Nas diferenças genéricas, para
Deleuze, o ponto em comum, o equivalente à identidade do conceito é a analogia do ser.
Assim, em se tratando de diferenças categoriais, o elo comum é a analogia do ser. Todavia,
estas diferenças, por possuírem uma natureza distinta das diferenças específicas as
diferenças específicas se baseiam na “univocidade de um conceito geral tomado como
gênero”
162
–, elas instalam a diferença na equivocidade do ser. E na equivocidade do ser, o ser
é “distributivo e hierárquico: não tem conteúdo em si, mas somente um conteúdo
proporcionado aos termos formalmente diferentes dos quais é predicado”
163
.
Como predicado, e sem conteúdo em si, o ser tem duas características: ele tem,
distributivamente, um sentido comum e tem, hierarquicamente, um sentido primeiro. Isto é, o
ser possui, no senso comum, uma distribuição que garante a partilha do conceito, e possui, no
161
Idem, p. 61.
162
Idem, p. 62.
163
Idem, ibidem.
97
bom senso, uma hierarquia que assegura a medida dos sujeitos. Nas categorias, o ser se diz de
modo equívoco, pois cada categoria mantém sua relação interior com o ser, cada categoria
tem uma relação equívoca com o ser.
No momento feliz, a univocidade do conceito nas diferenças específicas conduz a uma
equivocidade do ser nas diferenças categóricas. Esta cumplicidade das diferenças assegura a
mediação da diferença pelo elemento da representação. A prova do Grande e do Pequeno
toma a diferença como um elemento comum, ela aparece como um conceito reflexivo.
Como conceito de reflexão, a diferença testemunho de sua plena submissão a todas as
exigências da representação, que se torna, precisamente graças a ela, “representação orgânica”.
No conceito de reflexão, com efeito, a diferença mediadora e mediatizada submete-se de pleno
direito à identidade do conceito, à oposição dos predicados, à analogia do juízo, à semelhança
da percepção. Reencontra-se aqui o caráter necessariamente quadripartito da representação
164
.
Para Deleuze, é preciso livrar a diferença de seu conceito reflexivo, de sua mediação
pela representação. Retirar a diferença de sua mediação representativa é colocar a diferença
em referência a si mesma, sem qualquer intervenção da identidade e da analogia. É colocar a
diferença em relação à diferença, é fazer da diferença uma diferença diferenciante. Eis aqui a
razão para Deleuze apoiar-se na univocidade do ser:
Na medida em que se reporta imediatamente à diferença, a univocidade do ser exige que se
mostre como a diferença individuante precede, no ser, as diferenças genéricas, específicas e
mesmo individuais (...) na univocidade, o ser unívoco se diz imediatamente das diferenças
individuantes ou que, ainda no ser unívoco, o universal se diz do mais singular,
independentemente de toda mediação
165
.
A univocidade do ser é incompatível com a analogia. Segundo a analogia, nega-se que
o ser seja um gênero comum. Se o ser fosse um gênero comum, o gênero seria dito de suas
diferenças. Como isso não ocorre, as diferenças específicas “são” e o ser não é um gênero
comum. Além disso, na diferença genérica, cada categoria mantém uma relação interior
analógica com o ser, é sob o signo da analogia que cada categoria expressa uma relação
equívoca com ser. Na univocidade do ser as diferenças não são e o ser é comum. Mas elas não
são de uma forma muito precisa: as diferenças são o não-ser, o extra-ser, ?-ser, elas são as
Ideias. Pois, “na univocidade, já aparece que não são as diferenças que são e têm de ser. O ser
é que Diferença, no sentido em que ele se diz da diferença”
166
. Por isso, a ontologia de
Deleuze pode ser definida como uma ontologia unívoca da Diferença.
164
Idem, p. 65. Grifo do autor.
165
Idem, p. 70. Grifo nosso.
166
Idem, p. 70-71.
98
A Diferença, a Ideia, a determinação como produção da diferença pela diferença,
recebeu do pensamento de Aristóteles a mediação pela representação. Uma representação
orgânica porque está delimitada pela forma substancial. O primeiro termo da analogia do ser,
a categoria primeira e comum, é a Substância para o estagirita. É certo que este momento é o
chamado momento feliz grego. Há um outro momento da representação da diferença, o
momento em que a diferença deixa de ser mediada pela representação finita da forma, e passa
a ser mediada pelo fundamento que torna infinita a representação. Este momento é a
representação orgíaca em Leibniz, através do fundamento da vicce-dicção, e em Hegel,
através do fundamento da contradição. A prova do Grande e do Pequeno, na representação
orgânica, torna-se a prova do infinitamente pequeno e do infinitamente grande na
representação orgíaca
167
. Por força de recorte, estamos somente aludindo a este momento
posterior da diferença, a este momento em que a diferença é levada ao infinito
168
, pois o que
nos interessa é pensar o momento anterior à representação, o momento em que a diferença
seus últimos rugidos antes de ser domada: Platão.
Em Platão, a diferença, ou melhor, a Ideia, está “como o animal em vias de ser
domado; seus movimentos, numa última crise, dão melhor testemunho, do que em estado de
liberdade, de uma natureza logo perdida: o mundo heraclitiano freme no platonismo”
169
. Ela
ainda não recebeu a mediação da representação. Em Platão, a diferença é posta à prova pelo
método da divisão. Para Deleuze, a crítica aristotélica à Platão não procede. Aristóteles crítica
em Platão justamente a falta de mediação na determinação das espécies. Mas, o objetivo de
Platão é não determinar espécies ao especificar um gênero. É selecionar a Ideia do simulacro,
que não possui Ideia. É selecionar as linhagens puras e autênticas dos falsos pretendentes.
167
Sobre a representação infinita, cf. Idem, p. 75-85, 365-367. Fornazari analisa a vertente hegeliana da
representação infinita, cf. FORNAZARI, S. O esplendor do Ser, capítulo segundo, “Hegel e a diferença”, p. 77-
88. Para uma análise da representação infinita em Leibniz, cf. RUTIGLIANO, F. O drama da diferença, capítulo
II, “As relações diferenciais sob o contexto da vicce-dicção”, p. 43-46.
168
De toda a forma, a representação infinita não tira a diferença de seu estado de maldição. Aliás, ela a
diferença um fundamento que a leva ao infinito da representação: A representação infinita invoca um
fundamento. Mas se o fundamento não é o próprio idêntico, ele não deixa de ser uma maneira de se levar
particularmente a sério o princípio de identidade, de dar-lhe um valor infinito, de torná-lo co-extensivo ao todo e
levá-lo, assim, a reinar sobre a própria existência. Pouco importa que a identidade (como identidade do mundo e
do eu) seja concebida como analítica, sob a espécie do infinitamente pequeno, ou como sintética, sob a espécie
do infinitamente grande. Num caso, a razão suficiente, o fundamento, é o que vice-diz a identidade; no outro, o
que a contradiz. Mas, em todos os casos, a razão suficiente, o fundamento, através do infinito, apenas leva o
idêntico a existir em sua própria identidade. (...) A representação infinita tem, pois, o mesmo defeito da
representação finita: o de confundir o conceito próprio da diferença com a inscrição da diferença na identidade
do conceito em geral (se bem que tome a identidade como puro princípio infinito, em vez de tomá-la como
gênero, e estenda ao todo os direitos do conceito em geral, em vez de fixar-lhe os limites”. IN: DELEUZE, G.
Diferença e Repetição, p. 84-85.
169
Idem, p. 97.
99
Para Platão, o problema é selecionar o verdadeiro político, o verdadeiro sofista, o verdadeiro
amante. O método da divisão é seletivo. Ele seleciona os verdadeiros pretendentes dos falsos.
Os verdadeiros pretendentes são aqueles que passam pela prova do fundamento: a Ideia. A
prova do fundamento exige três elementos: o Imparticipável, o Participado, e os Pretendentes.
O pai, a filha e o noivo, ou o fundamento, o fundado, e os pretendentes a participar do
fundamento: a justiça, a qualidade de justo e os justos. Vale dizer que Platão ainda subordina
a ideia ao uno, ao análogo, ao semelhante e ao negativo, por isso é que, em Deleuze, a
filosofia consiste numa reversão do platonismo. É preciso liberar a Ideia de sua forma
platônica, a determinação como uma fundação bem fundada. E o que faz com que uma
pretensão seja bem fundada é o fato de a determinação estar relacionada com o Mesmo, que
pressupõe uma identidade da ideia com o modelo, e com o Semelhante, que pressupõe uma
identidade entre a coisa e a ideia. Para Deleuze, a prova do fundamento não deve ser apoiada
no idêntico, no Mesmo ou no Semelhante, e sim no complexo da questão-problema. É
neste complexo que o ser encontra sua “dobra ontológica” que o remete à questão, ao
problema e à Diferença.
Para tal, é preciso que a Ideia seja um não-ser. E um não distinto do negativo. Assim,
ao invés de afirmar o o-ser com o ser do negativo, como o ser do erro, o não-ser da Ideia,
ou ainda, ao invés de negar a existência do não-ser, como ocorre no caso do realismo do
possível, é preciso ligar o não-ser ao ser do problemático:
é o Ser (Platão dizia a Ideia) que “corresponde” à essência do problema ou da questão como
tal. como que uma “abertura”, uma “fenda”, uma “dobra” ontológica que reporta o ser e a
questão um ao outro. Nesta relação, o ser é a própria Diferença. O ser é também não-ser, mas o
não-ser não é o ser do negativo, é o ser do problemático, o ser do problema e da questão. A
diferença não é o negativo; ao contrário, o não-ser é que é a Diferença (...) Eis por que o não-
ser deveria antes ser escrito (não)- ser, ou, melhor ainda, ?- ser.
170
É esta referência ao complexo da questão e do problema que remete a diferença à
diferença diferenciante, a diferença como instância problemática. A ontologia deleuzeana da
diferença refere o diferente com o diferente, sem passar pelo idêntico. O ser não pode ser
idêntico, segundo este autor, porque é o próprio do Ser, da Ideia, o poder de diferenciar.
Todavia, nesse complexo, qual a prova ontológica que permite referir o ser à
diferença? É o eterno retorno como eterno retorno da diferença. E no eterno retorno, pode
retornar o livre de qualquer negação: “A história não passa pela negação e pela negação da
170
Idem, p. 103.
100
negação, mas pela decisão dos problemas e pela afirmação das diferenças. Nem por isso é ela
menos sangrenta e cruel. Só as sombras da história vivem de negação”
171
.
É esse o sentido que conferimos a uma ontologia afirmativa do acontecimento: uma
ontologia que afirme o ser livre de qualquer negação. É uma determinação diferencial do ser.
Desse modo, o ser e a diferença, em Deleuze, confundem-se com o acontecimento: “se o Ser
não se diz sem ocorrer, se o ser é o único Acontecimento em que todos os acontecimentos
comunicam, a univocidade remete ao mesmo tempo ao que acontece e ao que se diz”
172
. E o
acontecimento, para este autor, é um agenciamento de termos heterogêneos e singulares. Um
encontro ao acaso, da ordem da batalha, um contingente lance de dados. O acontecimento é
uma disjunção entre termos heterogêneos, é um agenciamento de singularidades. Em suma, o
acontecimento não é negativo e nem da ordem do mesmo, do semelhante, do idêntico ou da
representação. Ele é da ordem da diferença, ele é o acontecer da diferença.
Dessa forma, a ontologia afirmativa de Deleuze conduz a uma determinação do ser
como acontecimento, e também conduz a uma afirmação do acontecimento na linha reta do
eterno retorno da diferença. O eterno retorno da diferença é o tempo do acontecimento. Eis
então porque Deleuze retoma a rmula de Hamelet, no texto intitulado “Sobre as quatro
fórmulas poéticas que podem resumir a filosofia de Kant”, para tratar do problema do tempo
do acontecimento: o tempo está fora dos gonzos. Pois, o tempo liberado de seu eixo, é o
tempo que não se rebate sobre o círculo ou ciclo. É o tempo do desvio incessante que fratura o
círculo, é o tempo do eterno retorno da diferença. A forma do ciclo é a forma assumida pelo
tempo segundo a dialética das durações. Daí a diferença de natureza, o tempo fora dos gonzos
é o tempo descentrado, é o tempo que rompe o círculo. Acompanhando Peter Pál Pelbart, no
artigo “O tempo não reconciliado”, ao invés do círculo, a forma do tempo do acontecimento é
a forma do turbilhão, do labirinto. Portanto, frente à história que promove a negação do
acontecimento, a filosofia da diferença é sua afirmação. E a repetição, é o tempo do
acontecimento. Conforme Deleuze, o acontecimento está implicado no eterno retorno:
elevamos cada acontecimento à potência do eterno retorno para que o indivíduo, nascido
daquilo que ocorre, afirme sua distância de todo outro acontecimento e, afirmando-a, siga-a,
espose-a, passando por todos outros indivíduos implicados pelos outros acontecimentos e dela
extraia um único Acontecimento que não é senão ele mesmo de novo ou a universal
liberdade
173
.
171
Idem, p. 372.
172
DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 185.
173
Idem, p. 184.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, um objetivo específico foi perseguido: propor uma relação
entre o pensamento de Deleuze e à ciência histórica. Esta foi a hipótese que tentamos aqui
elaborar. E longe de querermos fixar definitivamente essa relação nos termos aqui esboçados,
fazemos questão de enfatizar que as “linhas de fuga” que traçamos, são linhas ainda
provisórias, são o resultado de uma pesquisa ainda em curso a respeito da contribuição do
pensamento de Deleuze para a história. Este trabalho é o resultado produtivo de uma pesquisa
que somente por agora começa a desdobrar a quase materialidade de seu objeto de pesquisa.
Isto é, esta pesquisa avançou por várias frentes até chegar a este ponto em que pôde
desenvolver o problema do realismo, através do pensamento deleuzeano. E estamos
motivados a desdobrar por outras linhas de fuga este cruzamento, esta relação.
Portanto, face ao niilismo contemporâneo do realismo, que postula que somente o
possível é possível, que reduz tudo o que acontece à sua condição de possibilidade, colocamos
o pensamento de Deleuze como um pensamento do virtual. Deleuze: o filósofo do
acontecimento como determinação da diferença.
102
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