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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE
LINGUAGEM
NILMA MACHADO CARVALHO
A MEMÓRIA DA SOLIDÃO E DO TÉDIO NAS PERSONAGENS
FEMININAS DA NOVELA MEMÓRIAS DE LETICIA VALLE, DE
ROSA CHACEL
CUIABÁ-MT
2009
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C257m
Carvalho, Nilma Machado.
A memória da solidão e do tédio nas personagens femininas da obra:
“Memórias de Letícia Vallede Rosa Chacel. / Nilma Machado Carvalho
– Cuiabá (MT): A Autora, 2009.
85 p.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem). Universidade
Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Área de concentração:
Estudos Literários.
Orientador: Prof
ª. Drª. Rhina Landos Martínez André.
Inclui bibliografia.
1. Literatura Espanhola. 2. Rosa Chacel. 3. Memórias. 4. Personagem
Feminina. I. Título.
CDU: 821.134.2-055.2
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NILMA MACHADO CARVALHO
A MEMÓRIA DA SOLIDÃO E DO TÉDIO NAS PERSONAGENS
FEMININAS DA NOVELA MEMÓRIAS DE LETICIA VALLE, DE
ROSA CHACEL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da
Universidade Federal de Mato Grosso como
parte dos requisitos para a obtenção do título de
Mestre em Estudos de Linguagem, sob a
orientação da professora Drª. Rhina Landos
Martínez André.
CUIABÁ-MT
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5
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À Maria Abadia, Felipe e Flávia, meus
filhos e mãe, pela compreensão
incondicional.
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AGRADECIMENTOS
Ao término deste trabalho e depois dessa caminhada, às vezes solitária e
árdua, gostaria de agradecer às pessoas que, de alguma forma, trilharam comigo esse
caminho, dando-me força e vontade para prosseguir.
À Profª. Drª. Rhina Landos Martínez André, minha orientadora, pela sua
paciência às minhas dificuldades como pesquisadora iniciante e por ter acreditado na
minha capacidade acadêmica.
À Profª Drª Sheila Dias Maciel e à Profª. Drª. Adja Balbino pela leitura e as
considerações apresentadas ao meu trabalho no momento da qualificação, período
decisivo para mim.
À Profª. Ms. Soraia Lima que fez a correção deste trabalho com carinho e
dedicação, e a quem eu tenho grande afeição e amizade.
À Universidade Federal de Mato Grosso que exerceu seu papel social,
contribuindo sempre para pesquisas no país, aprimorando a ciência e a cultura do
Brasil.
Ao Estado de Mato Grosso que por meio da FAPEMAT, concedeu-me uma
bolsa no período de 01/07/2008 a 30/09/2009.
Ao corpo docente do Programa de Mestrado MeEL da UFMT, pelas
disciplinas ministradas, que foram importantes fontes de pesquisa para este estudo,
em especial à Profª. Drª Maria Rosa Petroni, por ser insistente ao solicitar à bolsa que
tanto precisava.
Aos meus filhos Felipe e Flávia e minha mãe Abadia que compreenderam a
necessidade que tive de ausentar-me de casa por longo período e, pela força que
deram-me para conquistar mais um grau de conhecimento.
Agradeço, em especial, a minhas irmãs e primas, que foram importantes para
que eu pudesse descontrair-me quando vinha um bloqueio e eu não conseguia
escrever: Niva, Nelci, Nivany, Norma, Tati, Cida, Zânia.
Ao Maurio pelo carinho e paciência prestados nos momentos estressantes em
que eu precisava desabafar dada a dificuldade encontrada.
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Aos amigos que de alguma forma leram e opinaram sobre a pesquisa,
ajudando-me encontrar um norte: meu amigo Renato Augusto e Lena Monteiro.
Agradeço ao Moacir que me ajudou econômica e espiritualmente durante o
período em que fiquei aguardando a bolsa.
Aos colegas de disciplinas pelas conversas que davam sensação de alívio, pois
a angústia, às vezes, se fazia presente.
Enfim a Deus que me deu saúde, força e vontade para buscar e realizar o
desejo de aprender cada vez mais.
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RESUMO
Neste estudo, investigamos, na obra Memórias de Letícia Valle de Rosa Chacel, a
solidão e o tédio que aprisionam as mulheres de uma pequena cidade espanhola,
resultando em sequelas psico-sociais que se vivem no período de pós-guerra civil
espanhol. Partimos da análise das recordações configuradas pela memorialista um
recurso singular da autora para mostrar a interioridade feminina subsidiados pelos
estudos teóricos elaborados por Ana Caballé em Narcisos de tinta, quem nos
proporcionou uma visão mais precisa da memória como estética literária. Entendendo
que a memória somente é possível a partir do outro com quem conversamos, em
Halbwachs e sua Memória coletiva, bem como em Le Goff em História e memória,
entre outros, encontramos suporte teórico. Para compreender a função e a
preservação da memória como aspecto intrínseco ao ser humano, investigamos os
escritos de Gusdorf, Les Écritures de Moi, que propõe ser a memória a possibilidade
de reflexão e mudança. O estado de solidão e tédio vividos pelas mulheres, de
maneira peculiar pela protagonista Letícia, considerando os aspectos existencialistas
presentes que dificultam a interação social, foram elucidados com a leitura de
Svendsen em Filosofía do tédio, com Kierkegaard em O desespero humano e Sartre
com O ser e a nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Cândido, Aguiar e Silva e
Núñez Puente contribuíram na análise literária da protagonista. Como conclusão,
observamos que nessa novela materializa-se uma convivência de interação entre
ficção e realidade social, metonimizando problemas da existência humana em
momentos de repressão social.
Palavras-chave: Literatura Espanhola, Rosa Chacel, Memórias, Personagem
feminina.
10
ABSTRACT
This study investigates, in the work ‘Memories of Leticia Valle’ de Rosa Chacel,
loneliness and boredom that trap women in a small Spanish town, resulting psycho-
social consequences that are living in post-civil war. Part of the review of records set by
memoirist a singular resource of the author to show the inner female supported by
theoretical studies prepared by Ana Caballé Daffodils in ink, provided us a more
accurate idea of memory as literary aesthetics. Considering that the memory is only
possible from the other who spoke on Halbwachs and its Collective memory, as well as
Le Goff in History and memory, among others, find theoretical support. To understand
the function and the preservation of memory as intrinsic to the human being, we
investigated the writings of Gusdorf, Les Écritures de Moi, who proposes to be a
memory and the possibility of reflection and change. The state of loneliness and
boredom experienced by women, in different ways by the protagonist Letícia,
considering the present existentialist issues that hinder social interaction, were
elucidated with the reading of Svendsen in of boredom with Kierkegaard in The human
despair and Sartre with The being and nothing': test phenomenological ontology.
Cândido, Aguiar e Silva and Núñez Puente contributed in the literary analysis of the
protagonist. In conclusion, we observed that in this novel a familiarity of interaction
materializes between fiction and social reality, representing problems of the human
existence in times of social repression.
Keywords: Spanish Literature, Rosa Chacel, Memories, Female Character.
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RESUMEN
En este estudio investigamos en la obra Memorias de Leticia Valle de Rosa Chacel,
la soledad y el tedio que aprisiona a las mujeres de una pequeña ciudad española
como resultado de las secuelas psico-sociales que se viven en el periodo de pos-
guerra civil. Partimos del análisis de los recuerdos configurados por la memorialista
un recurso singular de la autora para mostrar la interioridad femenina
subsidiados con los principios teóricos elaborados por Ana Caballé en Narcisos de
tinta, quien nos proporcionó una visión más precisa de la memoria como estética
literaria. Entendiendo que la memoria solamente es posible a partir del otro con
quien conversamos, en Halbwachs y su Memoria colectiva, bien como en Le Goff
en Historia e memoria, entre otros, encontramos el soporte teórico. Para
comprender la función y la preservación de la memoria como aspecto intrínseco al
ser humano, investigamos en los escritos de Gusdorf, Les Écritures de Moi, que
propone ser la memoria la posibilidad de reflexión y cambio. El estado de soledad y
tedio vividos por las mujeres, y de manera peculiar por la protagonista Leticia,
considerando los aspectos existencialistas presentes que dificultan la interacción
social, fueron elucidados con la lectura de Svendsen en Filosofía do tédio, con
Kierkegaard en O desespero humano y Sartre con O ser e a nada: ensaio de
ontologia fenomenológica. Cândido, Aguiar e Silva y Núñez Puente contribuyeron
en el análisis literario de las protagonistas. Como conclusión observamos que en
esa novela se materializa una convivencia de interacción entre ficción y realidad
social metonimizando problemas de la existencia humana en momentos de
represión social.
Palabras-clave: Literatura Española, Rosa Chacel, Memorias, personajes femeninos.
12
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS.....................................................................................................v
RESUMO......................................................................................................................vii
ABSTRACT..................................................................................................................viii
RESUMEN....................................................................................................................ix
Introdução......................................................................................................................1
Capitulo 01:
A memória inscreve o homem no tempo..................................................6
1.1- Confissões – desvendamento do Eu.............................................................11
1.2- Diários íntimos e a fugacidade temporal.......................................................14
1.3- Memórias: um gênero em evidência..............................................................18
1.3.1- Memórias como estética literária.....................................................................20
1.3.2- Memórias e trauma .........................................................................................27
Capitulo 02: A memória da solidão e do tédio na narrativa feminina do
pós-guerra espanhol ...................................................................................................29
2.1. Considerações sobre o conceito histórico-filosófico de solidão e
Tédio........................................................................................................................... 29
2.2. O tema exílio na escrita feminina de memórias ...........................................33
2.3. Rosa Chacel: uma singular memorialista......................................................36
2.3.1. A desumanização orteguiana em Rosa Chacel...................................40
2.4. Um breve resumo de Memórias de Letícia Valle .........................................43
Capítulo 03: O devir nas memórias de Letícia ............................................................45
3.1- Adentrando as memórias .............................................................................45
3.2- O universo feminino nas memórias de Letícia..............................................54
3.3- As marcas singulares da escrita de memórias em Memórias de
Letícia Valle..................................................................................................................60
3.4- A personagem Letícia Valle: representação do real.....................................66
Considerações finais....................................................................................................74
REFERÊNCIAS............................................................................................................79
13
Introdução
Quando entramos em contato com a história do universo feminino
espanhol do século XX, observamos que não existe muita diferença em relação
à história das mulheres de outras épocas e de outros lugares, distantes e
próximos. O papel desempenhado tem sido de silenciamento e marginalização
por ser uma fronteira imposta pela cultura masculina. Mas, é justamente nesse
século que a mulher, de vários pontos do planeta, problematizou o discurso
Amo
1
, os feminismos e os formalismos, o universo branco ocidental e
heterossexual, para abordar a diversidade e a pluralidade.
O universo feminino como força política transgrediu radicalmente os
paradigmas e contribuiu para erradicar as distinções entre cultura popular e alta
cultura. As mulheres não ficaram indiferentes às tribulações humanas, às
desventuras e privações que afligiam a sociedade e particularmente a elas.
Será esse o caminho que seguirão as muitas escritoras espanholas
Concepción Arenal, Rosalía de Castro, Rosa Chacel, entre outras, lutando por
mudanças nas estruturas sociais. Com elas, fazendo comparações com o
presente, podemos aprender sobre as concepções do feminismo
contemporâneo. Claro que encontraremos uma variedade de posições. Seu
papel tradicional de costureiras, cabeleireiras, enfermeiras ou prostitutas aos
poucos vai se modificando para ocupar um espaço antes limitado aos homens.
A literatura culmina com uma explosão de vozes femininas em quase
todos os âmbitos da cultura. Muitas delas como anarquistas, falangistas,
socialistas, republicanas, enfim políticas por opção própria. A cultura se
enriquece com o novo discurso feminino, com um novo estilo político e
discursivo que se afirmou depois da Guerra Civil Espanhola e da segunda
grande guerra. Os artigos sobre a exploração capitalista, a violência física
militar e a violência psicológica são a referência direta desse feminismo
batalhador.
1
Refere-se ao discurso masculino socialmente estabelecido.
14
A história do universo feminino e sua representação na literatura nos
traslada ao passado para entender o presente da literatura escrita por mulheres
em que se conjugam feridas, alegrias, dores e medo. Conhecer e analisar o
escrito deixa a descoberto as estratégias que a mulher usou para se defender
das afiadas garras das aves de rapina e das instituições caducas, bem como
deixam o registro dos mecanismos usados para apagar as vozes dos
oponentes políticos. Diversas tendências literárias surgem para mostrar a
rebeldia, o inconformismo, a ansiedade, a angústia e a solidão como marcas de
um mundo cotidiano desumanizado. A expressão literária da angústia e da
solidão será especialmente visível na forma de autobiografias, memórias,
ensaios ou diários íntimos.
Não podemos esquecer que as imagens profundas deixadas pelo nefasto
período de pós-guerra espanhol se guardam ainda na memória coletiva do
povo espanhol de diversas e ltiplas manifestações artísticas. A literatura,
duplamente escondida entre o exílio e o interior, viveu anos de busca. A
expressão dos problemas existenciais e religiosos ocupava um lugar de
primeira ordem nas gerações imediatas e se converterá numa veia notável
influenciada pela literatura européia de entre-guerras. O ódio, a repressão, a
censura, a fome, o isolamento internacional e as prisões injustas agravarão a
crise econômica, a vida cultural, inclusive o conflito relacionado à religiosa.
As filosofias existencialistas encaminham suas abordagens proclamando que a
essência do homem se reduz a sua existência: o homem está jogado no
mundo, sem razão, aguardando a morte. Kierkegaard, Sartre e outros filósofos
abordarão as causas do absurdo da existência pelo absurdo do mundo, em
caos permanente. Rosa Chacel foi uma dessas mulheres que experienciaram
na carne o exílio, a exclusão, a rejeição e a solidão.
Tomando como ponto de partida a história do universo feminino espanhol
e as sequelas que o regime franquista provocou, este trabalho analisa a
vertente memorialista de Rosa Chacel, na obra Memórias de Letícia Valle,
(1945), com o intuito de investigar o dio e a solidão como marcas do conflito
existencial instalado nas personagens femininas dessa novela. Rosa Chacel, a
partir do gênero memórias, desvenda com singularidade os aspectos
15
particulares do universo feminino em seu cotidiano. Através da protagonista
Letícia, a romancista delineia e denuncia a reclusão da mulher no lar.
A personagem protagonista metonimiza a atmosfera da solidão e do
tédio nas mulheres submersas no ambiente doméstico, vendo transcorrer o
tempo, sem nenhuma perspectiva de vida social ou cultural. As personagens
femininas da obra parecem sucumbir ante a vida. a jovem protagonista
tenta suprir fora de sua casa a carência de afeto e de comunicação precárias
na sua família.
Ressaltando a condição da mulher, Chacel, nos coloca diante de sua
realidade como escritora e mulher nos tempos do pós-guerra espanhol. Em sua
produção romanesca, Chacel, escreveu e analisou esse universo, refletindo e
apontando soluções mais igualitárias para a relação homem mulher. Segundo
ela, a condição humana deveria evoluir para o transcendental.
Chacel teve uma vasta produção no exílio. Boa parte de suas novelas,
além de tratar pontualmente da temática feminina, trata também do ser humano
como agente em constante evolução. Sua elaboração estética permite olhar a
mulher mais de perto neste momento do século XXI em que a discussão sobre
gêneros está em voga. A reflexão é importante porque na atualidade, a mulher
ainda é discriminada e, na maioria das vezes, não tem voz ativa, sua vida, em
muitos casos, presta-se a conviver consigo mesma, como o romance a
demonstra.
A novela em questão apresenta as memórias de uma menina de onze
anos, Letícia Valle, que retoma reflexões sobre sua convivência com mulheres
na pequena Simancas, em Espanha. Nas memórias, a protagonista revela seu
estado solitário e tedioso e, acima de tudo, suas inquietações, que não
consegue entender por que se sente tão só e isolada.
Sobre o gênero memórias, os pesquisadores Caballé (1995), Halbwachs
(1950) e Güsdorf (1991) entre outros, são unânimes em considerar tal gênero
um recurso que recupera um momento vivido a ser contado, partindo de uma
coletividade envolvida que apresenta repúdio ao que ficou marcado por
16
questões de repressão política, violência, luta, dor, em determinado contexto
sócio-histórico.
Objetivando oferecer um testemunho convincente ao leitor, o memorialista
deve traduzir experiências conscientes; seu olhar deve permanecer nos fatos
externos e buscar revivê-los, ressaltando o que mais lhe significou. Sob esse
ponto de vista, buscará momentos de sua existência, muitas vezes com o
intuito de entender certas lacunas que ficaram obscurecidas e assim te
condições de tentar ver o presente e mudá-lo.
Tentando encontrar as explicações necessárias desde o ponto de vista
histórico e estético a esse objetivo geral proposto, este trabalho está
organizado em três capítulos. No capítulo 01 abordamos os gêneros que tratam
da literatura do eu, confissões, diários íntimos e memórias. A este último
gênero demos mais ênfase por ser nosso marco principal, assim fizemos uma
retomada histórica, concluindo com as teorias atuais.
No capítulo 02 abordamos os temas tédio e solidão, partindo para
considerações filosóficas, que acreditamos ser pressuposto indispensável à
análise da novela propriamente dita. Apresentamos um panorama do contexto
histórico da Guerra Civil Espanhola e do pós-guerra, momento em que Chacel
viveu. Ainda neste capítulo, expusemos alguns momentos da vida da autora,
incluindo uma parte de sua trajetória literária. Chacel é uma escritora relevante
dentro da literatura espanhola e, por que não dizer, universal. Ao ser exilada
viveu em vários países, inclusive no Brasil. Sua criação literária, no dizer de
alguns críticos, é perpassada por uma técnica singular e percebe o ser humano
com um olhar mais aguçado, de uma forma mais abrangente. Além de
romancista, foi uma intelectual que pesquisou sobre o fazer literário, o que
salientamos nesse capítulo.
No capítulo 03 analisamos as personagens femininas da novela em
estudo, dando maior atenção à memorialista/protagonista por ser ela a
narradora de suas memórias. A partir do olhar minucioso de uma menina com
uma maturidade psicológica acentuada, observamos a condição de vida da
mulher espanhola. Além de analisar as marcas discursivas do texto de
17
memórias, considerando a fragmentação, o isolamento, o tédio e a solidão que
perseguem as mulheres e a protagonista no presente da narração.
Através das memórias de Letícia Valle, Chacel problematiza a violência
velada sofrida pela mulher, que se sente solitária e entediada, remetendo-nos,
assim, a seu próprio exílio.
A análise tem como suporte teórico autores como Weintraub, Zambrano,
Chacel, Benjamim na discussão sobre o registro por meio da arte a partir da
literatura do Eu; Caballé, Halbwachs, Güsdorf, Le Goff, Ecléa Bosi, entre
outros, para as discussões sobre o gênero memórias. Utilizamos Tussel,
Zavala, Peñalosa, Martín Gaite, Rodriguez-Fischer, Svendsen, Kierkegaard,
Sartre, Ortega y Gasset, entre outros, para as discussões sobre o contexto
histórico espanhol e a filosofia do tédio e da solidão. Esses autores nos deram
subsídios para compreendermos a vida e a obra de Chacel, bem como a
protagonista feminina na obra. Cândido, Aguiar e Silva, Dal Farra e Massaud
Moisés foram nossos pressupostos para analisar a novela na perspectiva
literária.
Assim, toda gama ora levantada contribui para divulgar a utilidade das
memórias no viés literário, porque apresenta-nos um contexto social, político,
histórico e cultural para entender melhor a obra e a autora.
18
Capítulo 01
1. A memória inscreve o homem no tempo
A necessidade de registrar o que acontece com o homem está presente na
herança deixada antes mesmo de ele inventar a escrita. As pesquisas sobre as
pinturas rupestres evidenciam os primeiros traços deixados pelo homem primitivo
como forma de representação de seu momento de vida aqui na terra.
O homem pré-
histórico ao criar e fabricar instrumentos para sua sobrevivência, além de adquirir certo
conforto ao ambiente de convivência a priori, trouxe com esses utensílios as
manifestações que se materializariam posteriormente na arte. A partir dessas criações
necessárias à sua vida, o homem percebe que os instrumentos também poderiam ser
usados para outros fins, como a construção do conhecimento, por conta disso ele cria
imagens, esculturas e sons, ou seja, as primeiras manifestações artísticas,
colaborando para a história da humanidade e especificamente para o registro
consentido à arte de modo geral. No livro Teoria da Literatura “Revisitada”, 2005, as
pesquisadoras Gonçalves e Bellodi apresentam um panorama da literatura universal
em que explanam sinteticamente as origens da arte na humanidade e por que ela
surge. Logo no prefácio dizem que as primeiras manifestações têm como objetivo o
representar:
nossos ancestrais pré-históricos pintavam essas figuras
acreditando que, dessa forma, adquiriam uma espécie de
poder sobre as representações. Pintando animais poderiam
assumir, sobre eles, poder e, consequentemente, caçá-los
com sucesso. (Gonçalves e Bellodi, 2005: 15)
A arte, grosso modo, nasce da vontade dos humanos de tentar representar e
entender as intempéries da vida. Dessa forma, o registro se mostrou uma condição
indispensável para que o homem revisse o que fora vivido em determinada época. Na
verdade, a arte sempre esteve presente na vida do homem desde os tempos
primordiais. As pesquisas antropológicas têm mostrado o processo de construção
social feito por esses primeiros habitantes; além de permitir sabermos a estrutura
social criada por eles, permite-nos também saber sobre o seu lado criativo, verificado
19
nas imagens, esculturas etc., deixadas por eles. O ensaio disponível na Revista
Filosofia Capital, 2006, e escrito pela pesquisadora Júlia de Holanda, corrobora nossa
discussão, ela é firme ao apresentar em seu estudo intitulado Fora da arte não
salvação, que “A criatividade artística nasce (...) do estado de constante insatisfação e
de contínua opção de luta que o homem trava para levar adiante a sua própria
existência” (Holanda, 2006: 4)
Ainda sobre tal discussão, Benjamin (1980: 5) nos coloca a par de suas
considerações, apresentando um breve levantamento sobre a obra de arte,
apontando-nos os caminhos da arte na história de vida do homem. Ao iniciar seu
ensaio, Benjamin vai até as origens para detectar como era a produção existente
inicialmente. Para ele a arte “foi sempre suscetível de reprodução” (Id, p. 5). De acordo
com essa visão, o que um homem fazia poderia ser “refeito por outros” (Id. Ib.), a
técnica configurada era a reprodução, portanto, por motivos variados, a aprendizagem
se dava a partir da cópia dos artistas. Essa técnica “nasceu e se desenvolveu no curso
da história mediante saltos sucessivos” (Id. Ib), contudo, era uma técnica moderna. No
seu levantamento, Benjamin faz muito sucintamente o percurso histórico que a obra de
arte percorreu desde o entalhamento de gravura em madeira até a descoberta da
tipografia, momento em que o homem se inscreve na história não mais por técnicas
reprodutivas, mas com a litografia “as técnicas de reprodução marcaram um progresso
decisivo (Id. Ib). Isso permitiu que o homem popularizasse a arte, dando-lhe
condições de evoluir no sentido de poder produzir diariamente, fazendo com que ele
se inscrevesse na história, por meio das inscrições de suas experiências vividas ora
singular, ora coletivamente no curso da temporalidade humana.
A cultura greco-romana, por exemplo, deixou um cabedal de registros da sua
existência na terra. O conhecimento e a evolução do saber que o homem clássico
apreendeu foi essencial para que, hoje, tenhamos informações daquele povo tão além
de sua época. A herança deixada é relevante para que compreendamos os
sentimentos expressados por eles nas obras de arte.
O conhecimento popular, mais especificamente dos gregos, postulava a vida
cotidiana da civilização ocidental como uma experiência coletiva, de modo que as
relações humanas eram de interesse social. A busca pelo bem-estar deveria atingir a
todos. Tal empresa, de alguma forma, era representada nas artes. Exemplos disso são
os heróis que lutavam pela coletividade como Ulisses e Aquiles, entre outros.
Com esses exemplos queremos apontar para o desenvolvimento do processo
de criação artística que essas sociedades produziram, mas que pelo processo
20
dialético social entraram num período de estagnação, pois com o advento do
capitalismo e a decadência dos ideais franceses, o herói mudou de postura. Ele não
está mais a serviço da coletividade e, na modernidade, passa a ser criado a partir do
homem comum com todas as problemáticas da existência que fazem com que ele se
volte a si mesmo, e em alguns casos, não se reconheça como um ser coletivo e sim
individual.
Esse indivíduo vai, em muitos momentos, entrar em contradição com ele
mesmo e com o outro. Pois, o que lhe estava assegurado outrora na coletividade,
agora não está mais e por isso ele sofre constantes crises existenciais. Será, então,
este novo homem a matéria prima que a literatura vai utilizar nos romances realistas e
naturalistas que tratam mais dos espaços sociais criados pela burguesia. Diante da
nova situação, o individuo estará representado no romance psicológico. E tal romance
mostrará que é preciso lidar com as mudanças do momento, assim este homem em
conflito será o novo herói, tentando lidar com sua individualidade. Essa nova
manifestação romanesca, o registro moderno, agora partirá do indivíduo solitário,
escrevendo normalmente em primeira pessoa sobre seus dramas, traumas e conflitos.
Nasce, então, uma literatura intimista que propicia ao homem o espaço para
que ele possa confessar suas angústias, relatar suas experiências, rever-se no seu dia
a dia. A literatura autobiográfica e a memorialista entre outras, são a ferramenta
necessária para configurar gêneros que tratam do Eu.
O pesquisador Karl J. Weintraub, em seu artigo intitulado Autobiografia y
conciencia histórica (1991:18), discorre sobre os gêneros autobiográficos e afins como
memórias, diários íntimos e auto-retratos que se constituíram em gêneros catárticos
para o homem exteriorizar seus conflitos e dialogar consigo e com os outros. A
literatura, então, torna-se um espaço de fuga em que esse ser solitário encontra para
se refugiar e por meio dele contar aos demais seus problemas individuais que nem
sempre o são. Na verdade, é a tentativa de mostrar para a sociedade suas angústias.
Nesse sentido, a autobiografia, a memória e outros subgêneros como confissões e
diários íntimos foram imprescindíveis para que o homem compreendesse mais a sua
existência, partindo da narração do Eu.
O ensaísta citado concebe a vida como um fato biográfico e não biológico
como a ciência o tem apresentado. O homem não tem natureza e sim história e se
constitui a partir do registro dela. Isso é, a partir do momento que o homem consegue
rever sua história e sua condição de vida, compreende a si e os demais, além disso,
busca por justiça e igualdade. (p. 23)
21
Weintraub (1991:25) observa que historicamente o homem teve sua construção
baseada no tempo, ajudando o mundo a ser formado de maneira a preservar esse
elemento de contingência, imprescindível para que o indivíduo se enxergasse dentro
da cultura, libertando-se das injunções apenas coletivas, experimentando o ato de
liberdade dentro da linha cultural e histórica que o envolve. Dessa forma, o viver em
sociedade lhe assegura a condição humana, porém, no seu íntimo, o homem
necessita registrar, de alguma forma, suas angústias ou seus feitos. Ele precisa deixar
sua história de vida para que nela possa haver uma identificação com os outros seres
que o rodeiam.
Por viver em sociedade, muitas vezes o ser humano tem sua individualidade
apagada em detrimento da coletividade, quando, por exemplo, ideologicamente o
Estado torna-se o gerente de sua identidade com o objetivo de controlar as
manifestações que porventura possam surgir nos momentos de desgosto social.
Nasce daí a necessidade de buscar a sua essência individual, pois “(...) todos sentem
que parte de suas experiências são íntimas, que mais ninguém tem acesso a elas.”
(Figueiredo, 1991:16). E uma das muitas possibilidades de lutar para perceber-se
humano está no ato de falar de si mesmo, partindo do ponto de vista do sublime, para
ressaltar um fato grandioso, mas também para evidenciar um fato que deixou marcas
e o que se sente necessidade de relatar, relembrar e compartilhar com seu
semelhante. Sobre a necessidade de entender o individual, o pesquisador Figueiredo
aponta que acontecimentos como
as grandes irrupções da experiência subjetiva privatizada em
situações de crise social quando uma tradição cultural
(valores, normas e costumes) é contestada e surgem novas
formas de vida. Em situações como estas, os homens se vêem
obrigados a tomar decisões para as quais não conseguem
apoio na sociedade. Nestas épocas, as artes e a literatura
revelam a existência de homens mais solitários e indecisos do
que em épocas nas quais dominam as velhas tradições e não
existem graves conflitos. (Figueiredo, 1991:17-18)
Observamos no exposto que as grandes situações que levam o indivíduo a se
questionar e questionar o sistema social para obter mudanças de valores e normas,
são molas propulsoras para alavancar a ação por parte da população que, via de
regra, ao lutar pelos anseios da coletividade, tenta sair da condição de isolamento,
promovendo a resistência que nem sempre atinge o poderio do Estado. Podemos
22
afirmar, então, que as formas de resistência são variadas e os gêneros literários
intimistas dão suporte às vozes que, em muitos casos, são silenciadas.
Para considerar a escrita dos gêneros mencionados é interessante tecer
considerações sobre o Eu, isso é, a individualidade. uma grande dificuldade em
entender o indivíduo, entender aqui no sentido de perceber a existência primordial.
Perguntas como “quem eu sou” e “O que sou” não foram resolvidas, porque o homem
ainda está em busca de sua origem e, consequentemente, de si mesmo. Nesse
sentido, a coletividade coloca todos os seres num mesmo patamar e nunca considera
as diferenças por mais gritantes que sejam. No entanto, essas diferenças, mesmo que
sutis, são as marcas da individualidade; em espécie o ser humano pode ser igual,
porém na particularidade é possível perceber que o homem é distinto e único.
Weintraub (1991:28) considera as pessoas como seres incomparáveis, irrepetíveis,
indescritíveis e inefáveis.
A literatura intimista eclode com o passar do tempo, o homem acredita em sua
individualidade, aliás, é isso que o faz sentir-se humano. Precisa ser fiel a si mesmo e
deve tomar as decisões sobre sua vida de acordo com o necessário para o próprio eu.
(Id, p. 28)
Na inquietude de se encontrar, o indivíduo busca recursos que lhe ofereçam
ajuda para tal, assim ele envereda pelos caminhos da literatura que serve de
ferramenta para que a liberdade de expressão seja configurada quando se tem
vontade de elaborar as crises existenciais no espaço e no tempo. Por tal motivo, a
literatura denominada de literatura do Eu ganhou fôlego, atraindo adeptos que se
identificaram com ela pela possibilidade de falar de si mesmos. A história evidencia o
crescimento de tal literatura aproximadamente nos séculos XVIII – XIX, auge do
Romantismo. No entanto, a discussão sobre a individualidade surgiu desde o
Renascimento, porque o homem começa a voltar para si mesmo e a questionar sua
própria existência, tentando encontrar repostas às suas angústias e seus dramas. Por
conta disso, é que em busca de si, o ser humano faz uso dos gêneros intimistas.
23
1.1- Confissões – desvendamento do Eu
Publicadas no século IV, As Confissões colocam Santo Agostinho como um dos
primeiros a desvelar sua própria interioridade e foram importantes para que ele
revelasse seus conflitos e apresentasse uma visão particular voltada exatamente para
o eu interior em desacordo com o exterior, dando condições de ter uma visão de si. O
gênero confissões, apesar de se inscrever nos limites da autobiografia, tem caráter
predeterminado no conteúdo e no próprio título da obra de confissão. Além de fazer
uso do narrador de primeira pessoa, não está obrigatoriamente preso à temporalidade,
pois sua principal característica está no registro da experiência projetada, voltado para
a alma na tentativa de extrapolar o que se deseja confessar.
Além de Santo Agostinho, Rousseau com seus escritos em forma de confissões
também teve seu êxito. Sua proposta de refletir sobre o homem foi conseguida e
ademais Rousseau é um exemplo nítido de que o homem necessita explanar seus
tormentos mais ínfimos e dividi-los com o outro por se tratar de seres de natureza
humana e não o contrário, como querem alguns. A literatura confessional como a
autobiografia, memórias, diários, auto-retratos e confissões “puede tener una función
muy especial en la elucidación de la historia y puede además ayudarnos a entender la
vida como um proceso continuo.” (Weintraub, 1991: 26)
Em La confesión: género literario, (2004), Zambrano nos apresenta uma
discussão bastante rica em relação ao gênero confissões. Sobre as questões
levantadas, ela tenta apontar algumas particularidades do texto de confissões,
buscando criar uma teoria para o gênero. Suas primeiras considerações partem da
necessidade que o homem tem de falar e escrever sobre si mesmo. No escribe
ciertamente por necesidades literarias, sino por necesidad que la vida tiene de
expresarse.” (Zambrano, 2004:25). Segundo Zambrano, está no livro de Job uma das
primeiras confissões de que temos noticias, ele seria “El antecedente de la confesión”,
pois ele fala em primeira pessoa e por isso suas palavras chegam em viva voz a
nossos ouvidos por ser a confissão desprendida de tempo e espaço ( Id. p. 26).
Porém, é ao mesmo tempo real e parte “de la confusión y de la inmediatez temporal”
(Id. p. 27), ou seja, sua originalidade é apresentar outro tempo, aquele que faz
confissões no busca el tiempo del arte, sino algún otro tiempo igualmente real que el
suyo”. (Id. Ib)
24
Chacel, em La confesión (1971), coloca-se de outra maneira na sua forma de
entender o gênero confissões. Nessa obra, ela tenta responder um questionamento de
Ortega y Gasset que teria expressado que o gênero não foi muito salientado pelos
escritores espanhóis. Para Chacel, a confissão é o que brota de um sentimento de
culpa e, portanto, o escritor envereda pelos caminhos da confissão expondo sua
“útima voluntad”, sobressaindo em dois sentidos, que Chacel chamou de “temporal” e
“esencial”. Sendo o temporal la urgencia con que hoy día deseamos conocer vidas
ajenas” (Chacel, 1971:11), para ela esse temporal expõe a necessidade que o homem
tem de enxergar sua experiência em tempo real, por isso a confissão; e o essencial
reside na vontade de confessar, “cuanta más voluntad existe, más yo hay” (Id.ib).
Zambrano, concordando em parte com Chacel, conclui, num viés igualmente
filosófico, que as confissões surgem de um limite extremo a que o homem chega,
podendo ser um fato individual ou uma circunstância histórica, resultando disso, um
fato crucial que faz com que sua existência se torne um peso, surge, portanto, o
desejo de falar: “La confesión comienza siempre con una huida de si mismo. Parte de
una desesperación. Su supuesto es como el de toda salida, una esperanza y una
desesperación” (Zambrano, 2004: 32). Ou seja, em um momento desesperador a
literatura intimista é levada a uma instância suprema, porque oferece condições de
reflexão e continuidade de vida.
Com a literatura do Eu temos condições de visualizar um estado singular em
determinada época, principalmente em momentos de conflitos. As confissões se
constituíram em um gênero bastante utilizado em períodos de fortes conflitos sociais,
por exemplo, durante as grandes guerras, os pós-guerras e depois da guerra civil
espanhola, pois, ao relatar e desnudar a vida no desterro, nos campos de
concentração, nas prisões etc., é possível chamar a atenção para uma reflexão sobre
as relações humanas.
As confissões se aproximam dos textos denominados testemunhos que também
têm forte influência sobre a literatura do Eu, pois é na autoanálise que o ser humano
se materializa. Na verdade, estão mais que nunca presos ao Eu que se pretende
entender, e por conta disso, se ocupam dessa interioridade, na busca, do
extravasamento para o autoconhecimento. Nesse trajeto, é possível trilhar pelos
caminhos da História. Na visão de Weintraub o homem é um ser histórico e é possível
entender seu eu na perspectiva cronológica.
Falar de si mesmo é uma atividade inerente ao homem, pois a todo momento
está voltado a perceber sua essência, o que lhe subsídios para compreender a
25
coletividade. Caballé esclarece “El ser humano practica constantemente el ejercicio
de hablar de si mismo” (1995:39). Caballé discute a necessidade que as pessoas
têm de falar de si mesmas, o acúmulo de sentimentos parece, às vezes, transbordar
do inconsciente e sentimos vontade de falar, ou algo que nos angustia promove esse
ato. Contudo, o desabafo é uma particularidade do ser que nem sempre é possível
concretizar porque para falar é preciso ser ouvido, e em muitos casos estamos a
sós. Por isso é preciso encontrar outra forma de expressão mesmo quando o
silenciamento “(...) habla de si cuando calla por el modo de hacerlo, y tal vez sea la
elocuencia de algunos silencios la parte más inapelable de cuaquier discurso sobre
el yo” ( id. ib). Sob a ótica de falar de si mesmo, Caballé alicerça-se na possibilidade
de não ter com quem falar e o indivíduo expressa no silêncio, paradoxalmente, suas
incertezas e traumas.
Diante dessas considerações, o homem pode ter um conjunto de ações que o
projeta à historicidade humana e possibilita uma compreensão do próprio eu.
Weintraub (1991: 25) alude à questão, ao tratar de Santo Agostinho, pois não é tanto
a reconstrução da autêntica personalidade de Santo Agostinho como cogita na
história, mas sim a reconstrução da história da concepção agostiniana de seu
próprio eu.
1.2- Diários íntimos e a fugacidade temporal
A literatura de cunho autobiográfico fez surgir vários subgêneros utilizados
como pressupostos para o refúgio do EU que se desprende do coletivo e precisa voltar
a si mesmo. Assim, os diários íntimos ganham conotação literária com características
singulares, a forma de relatar o dia a dia é sua marca mais evidente. Na perspectiva
de Weintraub (1991: 21) cada anotação no diário tem o valor em si de ser o reflexo de
um momento breve de determinadas situações vitais às quais se atribui uma
importância primordial. E a partir daí é revelada a personalidade do diarista. O seu
valor reside em conseguir trazer um olhar particular do passado para o presente. Para
Güsdorf (1991:250) o diário íntimo é utilizado com o objetivo de relatar as vicissitudes
26
da alma. O diarista se coloca dia a dia a empregar o tempo, as atividades e o encontro
do autor com ele mesmo. Com essa prática seria possível sair do momento passado e
se tornar livre.
Contudo, o que surge para ajudar o indivíduo apresenta uma problemática em
relação ao particular que se torna público. Barcelos (2007: 51) em seu artigo
Aproximações: teorias contemporâneas de literatura, identidade e diário, a esse
respeito considera
Não haveria dúvidas de que essa escrita viesse a ser o tão
decantado “refúgio do eu”, espaço de exercício da intimidade,
longe dos olhares públicos e, em muitos casos, sem quaisquer
intenções de se tornarem escritos publicados ou lidos por
alguém além do próprio escritor ou de pessoas por ele
autorizadas. Entretanto, é exatamente sua publicação
e sua acessibilidade à leitura o que contribui para que tais
escritos venham a ser considerados sob a perspectiva literária.
(Barcelos, 2007: 51)
No exposto, percebemos que o diário traz à tona o eu íntimo que emerge da sua
particularidade por meio da escrita, tornando-se possível observá-lo em sua
singularidade, porque o diarista se despe e publica sua intimidade com minúcias. E
nessa perspectiva o leitor entra em contato com um momento breve, mas rico, pois ao
escrever o diarista tem o fato quase como uma fotografia, que a temporalidade é
extremamente real.
Conjeturando sobre a sua importância, notamos que o caráter temporal é
apresentado sempre em um contexto, daí observamos que o espaço e o tempo é que
fazem desse gênero um promissor texto que consegue abordar mais profundamente o
Eu que diariamente se propõe a relatar suas experiências em tempo real, descrevendo
com precisão suas angústias, seus dramas e o ambiente porque acabara de vivê-los.
Percebemos isso a partir da gradação temporal na personalidade de Laura
Palmer, protagonista do romance O diário secreto de Laura Palmer, 1990. De acordo
com as datas marcadas em seu relato diário, vemos como ela se comporta diante do
conflito entre a razão e a emoção: Laura sabe que não deveria desrespeitar as regras
determinadas pela sociedade e especificamente a educação recebida dos pais, mas
atende aos seus instintos mais exacerbados. Envolve-se então com as drogas e vai se
27
distanciando de sua família. Outro ponto que percebemos diante dos seus relatos
diários é que mesmo adentrando os caminhos das drogas e a prática do sexo em
demasia, sua consciência não a deixa em paz e se configura na personagem Bob.
Ao recriar o mundo da protagonista Laura Palmer, a escritora Jennifer Lynch,
apresenta o universo da personagem desde o 12º aniversario até o 17º, e o leitor
convive com a protagonista que vai desnudando suas facetas. É por meio de seu
relato diário que o leitor penetra no mundo misterioso de Laura. Ela deixa registrados
comportamentos que normalmente são inconfessáveis e isso lhe traz um dilema entre
o certo e o errado. Suas experiências sexuais com amantes de ambos os sexos e o
início de uma vida voltada às drogas são alguns de seus dramas. No entanto em seus
relatos vemos uma menina que convive com seus pais, aluna exemplar no colégio e
ótima funcionária na loja de departamentos. Entretanto o mundo das drogas acabará
por levá-la à morte.
Em contrapartida Anne Frank apresenta em seu diário os dias que passou com
sua família no porão de sua casa, refugiando-se da perseguição dos alemães durante
a Segunda Guerra. De 1942 a 1944, Anne Frank nos condições de perceber os
horrores da guerra no seu dia a dia. Anne e sua família após ficarem sabendo das
ameaças contra os judeus e que poderiam ser expulsos do país vão viver no porão
com mais duas famílias refugiadas. Anne então passa a relatar todos os conflitos que
surgem enquanto eles estão naquele lugar, aguardando o final da guerra. São
descobertos e levados ao campo de concentração onde todos morrem, exceto seu pai,
Otto Frank, que traz a público seu diário íntimo.
Anne Frank, na tentativa de buscar a si mesma e denunciar a violência, utiliza-
se do diário como uma arma no momento de guerra ou no momento da confusão
social. No caso dos exilados ou dos desterros, por exemplo, o exilado consegue por
meio do diário mostrar para o mundo como é sua vida no desterro e a luta singular
entre o indivíduo e o tecido social. A singularidade que surge entre o narrador e
muitas vezes a personagem do diário, tem implicância na possibilidade de entender a
essência humana.
Nesse sentido, o diarista ao expor a violência sofrida em momentos de guerra
deixa expressar a constância de sua angústia no desterro, e também oferece um
testemunho da violência do Estado, registrando dessa forma a história do homem e os
mecanismos de destruição e fragmentação de quem possui as forças do poder, e a
literatura acaba sendo a forma de expressão a fortiori.
28
Textos como diários se transformam em armas muito promissoras nas mãos
dos que conseguiram se inscrever na história, fazendo o outro refletir sobre a violência
nos tempos de conflitos em que lutar era a única saída. Por isso os diários fizeram
história e ainda são necessários para refletir o indivíduo que, ao desprender do
coletivo, se sente só e angustiado, como Rolim descreve
Os diários fazem parte da necessidade atual, tanto de narrar a
própria experiência, quanto de buscar pela leitura uma
identificação com um outro eu que se revela. [...] Portanto, em
maior ou menor medida, todo diário é imaginativo, senão
puramente ficcional: ou porque é impossível passar para a
página a realidade fielmente retratada ou porque a forma do
diário pode ser usada a serviço da criação ou, ainda, porque não
é possível prever ou identificar com precisão até onde se
misturam o desejo de relatar uma realidade verificável com o
impulso criador ou as transformações ocorridas nos labirintos da
memória. (Rolim e. tal, 2005, 25-26)
Mesmo usando esse gênero, corre-se o risco de não ser compreendido porque
é impossível falar de si mesmo com fidelidade, pois o narrador se mistura ao
personagem, deixando uma margem de desconfiança ao leitor que precisa confiar no
que lê, por conta disso, os diários são em algumas situações rechaçados. Mas sob
outro viés, por exemplo, quando está a serviço de discutir a violência de uma
determinada época, tão necessário como na Guerra Civil Espanhola, o diário
consegue permitir uma visão fiel do sofrimento e da injustiça promovida pelos
poderosos.
Os diaristas conseguem traduzir uma visão do breve momento relatado porque
seu caráter se volta ao cotidiano e, dessa forma, consegue com mais precisão
sensibilizar quem lê sua escrita, porque o fato relatado ainda é muito vivo, pois conta a
distância de um dia apenas. Barcelos afirma que
Da relação entre quem e para quem se escrevem os diários
íntimos, conclui-se comumente que a motivação de um leitor no
processo de leitura de narrativas de vida seria menos sua
curiosidade em relação às confissões e revelações daquela
subjetividade narrada e mais um movimento de tentativa
de reconhecimento de si próprio. A experiência de vida relatada
pelo diarista ou autobiógrafo seria interessante por
possibilitar ao leitor projetar sua subjetividade, em vez de aceitar
29
passivamente os supostos segredos ali revelados.
(Barcelos, 2007: 50)
Trazendo os diários para o campo da realidade social, é possível visualizar seu
valor nos períodos de conflitos em que o cidadão necessita de armas para lutar
contra a injustiça social.
É indiscutível o valor literário que os diários íntimos conseguiram configurar
durante a história da humanidade: na cultura greco-romana, na Espanha do pós-
guerra, ou em outros momentos. Poderíamos dizer que o diário nasce da
necessidade de um registro, de uma revelação, para tornar imortal o sujeito diarista
até ganhar outras configurações e adeptos, pois ao falar de fatos do cotidiano o
diarista se diante de si, despido em seus sentimentos e emoções. Nos seus
relatos é perceptível este Eu que erige dos eventos, promovendo outro ser, no
momento de relatar os fatos a subjetividade se apresenta e o narrador ao se
entrelaçar à personagem, constitui-se em outro ser que em muitos casos faz com
que o leitor desconfie dele.
Weintraub (1991:29) afirma que ninguém expressa seu Eu numa linguagem
feita por si e para seu próprio Eu senão em linguagem herdada como a obra dos
outros. Na verdade, esse Eu que se forma a partir do outro é construído na
coletividade e lançado em seu momento mais íntimo, para perceber sua própria
existência. Portanto o indivíduo pode criar dentro do seu Eu uma harmonia entre os
elementos de sua época e sua individualidade que sobressaem neste gênero.
1.3- Memórias: um gênero em evidência
Le Goff (1996: 460) faz um estudo trilhando os caminhos que o vocábulo
memória percorreu, ressaltando suas características e suas disparidades em relação
ao contexto vivido outrora e atualmente. Para esse teórico, o termo teria vindo do
vocábulo principal mémoire surgido na Idade Média, no século XI. Daí em diante o
termo foi se transformando e ganhando conotações diversificadas relacionadas ao
contexto social. No século XIII o termo se torna memorial, conceituando as contas
30
financeiras; em seguida, mémoire vai designar um dossiê administrativo; no século
XV aparece o vocábulo mémorable exatamente no momento em que as artes estavam
em ascensão, e, em 1777, aparece memorandun no inglês emprestado do latim.
Assim o termo ganha espaço nos dicionários e enciclopédias.
Essa palavra que surge para definir a área das ciências exatas, por se tratar de
cunho biológico, será utilizada, também, para lembrar os mortos. Le Goff (1996: 462)
expõe que, na Revolução Francesa, houve uma busca para o não esquecimento
daqueles que morreram, a saber, os heróis de guerra que lutaram em defesa do país,
e, assim, esse contexto é apresentado como sendo A grande época dos cemitérios
[...], com novos tipos de monumentos, inscrições funerárias e rito da visita ao
cemitério.” (Le Goff, 1996: 462)
As comemorações, destarte, foram criadas a partir das memórias que foram
utilizadas pelos românticos. Um dos traços do romantismo era, principalmente, o
nacionalismo exacerbado residente na exaltação dos valores nacionais ambientados
no passado, nesse sentido, o recurso para tais valores foi a memória. Além disso, o
calendário das comemorações foi expandido a muitos países e ganhou status de
memória coletiva: “Em todas as sociedades, os indivíduos detêm uma grande
quantidade de informações no seu patrimônio genético, na sua memória em longo
prazo e, temporariamente, na memória ativa” (Goody,1977, apud Le Goff, 1996: 425).
Na memória coletiva, então, está impresso os conflitos entre a classe
dominante e a luta do povo contra os que detêm o poder. Por esse lado, os que lutam
são silenciados em virtude de ameaçar a ordem social, a classe dominante utiliza
ideologicamente o mecanismo da memória coletiva para se manter no poder, porque a
memória coletiva é o que foi vivido no seio de um grupo, acentuando o que fizera no
passado e o que ficou reconhecido por todo o grupo social; a partir da consciência do
que foi vivido o grupo propõe mudança.
Com efeito, a memória coletiva é um recurso em expansão nas sociedades
modernas que permitem delinear o conhecimento. Porém, ao apagar a memória
individual, a pessoa tende a um estado de conflito constante pautado na angústia
existencial por se desconhecer particularmente e existir somente a partir de um grupo
determinado, porque sua memória individual é descartada e consequentemente
esquecida. A memória coletiva, sem dúvida, é um recurso de poder e, às vezes, é
manipulada historicamente. Le Goff (1996: 477) considera a história como sendo uma
ferramenta que ao recuperar o passado tem como objetivo servir e modificar o
31
presente e o futuro; ao mesmo tempo, ressalta que a memória coletiva deve trabalhar
a favor da libertação do homem e não para sua subserviência em relação à sociedade.
O historiador Le Goff em seu ensaio promove essa visão, mas considera outras
perspectivas no âmbito da sociologia. É importante registrar que, em seu estudo
aborda a memória coletiva unicamente pelo viés histórico, desconsiderando a memória
individual à qual já nos referimos e que aprofundaremos mais adiante.
No campo da sociologia, a memória tem sido um recurso em evidência e a
nomenclatura de memória histórica se cambiará para memória social. Nessa linha,
Ecléa Bosi em Memória e Sociedade, (1994), faz um estudo sobre relatos de pessoas
idosas, colhendo seus testemunhos com o objetivo de deslindar a memória social, a
partir desses relatos individuais. O estudo parte da psicologia da memória e apresenta,
sob a perspectiva de Bergson, a condição psicológica do lembrar. Na verdade, o
pressuposto perceptivo de memória que aflora no indivíduo, representado na
passagem das imagens das coisas reais ao nível do inconsciente esgalha na
lembrança e lembrança é usada aqui, no sentido de “vir à tona o submerso” (Bosi,
1994: 46) que desaguará no fluxo da memória.
Para Bosi (2007: 46-47), “Começa-se a atribuir à memória uma função decisiva
no processo psicológico total: a memória permite a relação do corpo presente com o
passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações”. A
autora problematiza, na obra referida, a lembrança individual que é substituída pela
social, mais precisamente a memória histórica modificada, no sentido de “oficial e
celebrativa”. E assim ataca o capitalismo que se serve do trabalho das pessoas, e
depois, na velhice, suas memórias são oprimidas e apagadas.
A pesquisadora acentua ser na velhice que a possibilidade de estudar a
psicologia da memória, porque o idoso já atravessou “um determinado tipo de
sociedade, com características bem marcadas” (Id. Ib). Nesse sentido, ela nos oferece
um amplo estudo sobre a memória social pautada nas lembranças de idosos e, de
certa forma, esse social mina o individual. Ao considerar os relatos de idosos, Bosi
chama a atenção para o apagamento da memória individual que aflora nesse
momento da vida do ser humano. Sua critica propõe exatamente o inverso, pois para a
psicóloga a memória individual deveria constituir a memória coletiva e não o contrário.
32
1.3.1- Memórias como estética literária
O gênero memórias tem sido estudado como um recurso para compreender a
sociedade a partir do indivíduo e do grupo em que ele está inserido. Além de permitir
entrar em contato com fatos que marcaram uma coletividade metonimizados num
indivíduo, o gênero foi usado como recurso da literatura para o depoimento de um
trauma, do sublime entre outros vividos.
Caballé, (1995) na sua obra Narcisos de tinta, pontua considerações assertivas
em relação a memórias e autobiografias produzidas por autores espanhóis. Para
adentrar o gênero memórias, faz uma longa distinção entre ele e a autobiografia por
ambos apropriarem-se do Eu. No contexto em que produz seu estudo, apresenta, em
linhas gerais, o interesse por esse gênero na atualidade, por ter sido objeto de estudos
exclusivos em congressos nacionais e internacionais. Este tipo de relato atraiu para si
um contingente de escritores que viram nessa forma de expressão artística uma
possibilidade de falar sobre suas experiências de vida, porque os gêneros
autobiográficos pressupõem o relato da realidade ligada à individualidade, ou melhor,
algo com que o leitor possa se identificar.
Caballé (1995:37) observa que a problemática reside na impossibilidade de
conhecer-se a si mesmo e o escritor de autobiografia se deixar trilhar pela
subjetividade, pois a autobiografia deve tratar de uma realidade que o leitor exige a
sinceridade dos fatos com uma linguagem objetiva. Quando o insucesso aparece na
estrutura narrativa é porque o escritor ocupa a posição de autor, narrador e
personagem, permitindo uma discussão lingüístico-discursiva, porque ao falar de si
mesmo, é impossível reduzir a vida a uma simples descrição. Nesse contexto, o leitor
de autobiografia reclama da inverossimilhança que possa existir no gênero, como
aponta Lejeune em seu ensaio El pacto autobiográfico:
el lector es invitado a leer las novelas, no solamente como
ficciones que remiten a una verdad sobre la naturaleza
humana, sino también como fantasmas reveladores de un
individuo. (Lejeune, 1991:59)
33
É aí que Caballé (1995) aponta para as sutis diferenças entre autobiografia e
memórias. Para ela, as memórias, além de pertencer ao domínio do eu, permitem que
o memorialista adentre os caminhos de suas lembranças com o objetivo de resgatar
ou reviver acontecimentos ou pessoas que de alguma maneira influenciaram ou
influenciarão o momento presente ou seu futuro. Por conta disso, a história, as
lembranças e os relatos são o suporte técnico desse gênero literário, problematizado
neste estudo. Caballé (1995), retomando as palavras de Corpus Barga, apresenta
pressupostos particulares ao gênero memórias diferenciando-o do gênero
autobiografia, que achamos pertinente transcrever.
Las memorias vienen a resultar todo lo contrario de la
autobiografía. En la autobiografía todo se reduce a uno; en las
memorias, la autobiografía no es solamente de uno, ni siquiera
de uno y todo lo demás, sino de uno en todo los demás (…) Al
emprender las mías no me mueve el deseo de contar
anécdotas personales, me siento llevado por el afán de
registrar lo más posible todo lo vivido, con todo detalle, toda
exactitud. La vida de una persona como la de un pueblo (la
Historia), no está constituida por los grandes acontecimentos o
las grandes personalidades que intervienen en ella. No existe
en función de fechas y de nombres; es el acontecer cotidiano
y anónimo, si puede decirse. La vida se teje en todos los
instantes. Las memorias deben descubrir este tejido, en vez de
limitarse a recordar los hechos y las personas que son
considerados importantes o curiosos a posteriori. Las
memorias no deben ser un montón de retazos, por lujosos que
éstos sean, sino una tela inconsutil. (Corpus Barga,1979, apud
Caballé, 1995: 108-109)
Caballé, ao basear-se nessas idéias, delimita as linhas demarcando-as entre a
autobiografia e as memórias, resolve a equivalência entre os dois gêneros a partir da
junção do vivido, do momento histórico e a partir de uma singularidade que emerge do
individual, mas que direciona a uma coletividade que se refletida nas memórias.
Caballé ainda ressalta que o memorialista deveria estar contando 40 anos, pois do
contrário teria inexperiência em relatar memórias. Na verdade, a ensaísta aponta para
algumas obras de memórias escritas na juventude em que o memorialista não
conseguiu problematizar o fato narrado, o que resultou num fracasso literário.
Para a autora as memórias recuperam um momento vivido que deve ser
contado, considerando que há sempre uma coletividade envolvida, principalmente
naquelas memórias que aludem a manifestações de repúdio a algo que ficou marcado
34
por questões de repressão política, violência ou luta, em determinado contexto sócio-
histórico. Assim o memorialista deve oferecer um testemunho convincente ao leitor,
nas memórias o escritor deve traduzir experiências conscientes; seu olhar deve
permanecer nos fatos externos e buscar revivê-los, ressaltando o que mais lhe
significou. Nesse ponto de vista, buscará momentos de sua existência, muitas vezes
com objetivo de entender certas questões que ficaram obscurecidas e assim terá
condições de tentar ver o presente e mudá-lo.
Dessa perspectiva, o gênero literário memórias é uma forma também de
testemunho. Ainda que apresente fatos que marcaram uma individualidade, reforça a
idéia de coletividade e, por conseguinte, tem como objetivo apresentar à sociedade
experiências ocorridas a partir de um fato que em dado momento é individual, mas que
reflete a sociedade porque o memorialista está distante e amadurecido
intelectualmente ou psicologicamente, assim tem capacidade e experiências para
refletir e despertar o olhar do leitor em relação ao fato, capaz de analisar o homem na
sociedade.
Güsdorf (1991:252) considera o gênero memórias como sendo um subsídio
indispensável para oferecer uma visão pessoal da história, porque concentra-se mais
no coletivo, fugindo, então, à subjetividade proposta pelo narrador, pois a partir dele
conhecemos a realidade social da época. Portanto, nessa linha, as memórias apesar
de apresentarem traços subjetivos têm como objetivo principal rever e repensar
eventos de uma coletividade, principalmente no sentido político, bélico e sobre a
violência de um modo geral.
Güsdorf apresenta um estudo pertinente ao discurso estabelecido sobre a
narrativa em primeira pessoa. Para o pesquisador as escritas do eu englobam todos
os textos a favor de uma individualidade aprofundada no conhecimento dela mesma
como possibilidade de elucidar o passado, o presente e mesmo profetizar o futuro.
Sobretudo, pode-se dizer que, ao longo de sua pesquisa, deu prioridade à vida interior
sobre a presença do mundo exterior. (Güsdorf, 1991:242-243)
Em suas considerações o autor não deixa escapar a necessidade que o
indivíduo tem de escrever sobre sua experiência de vida, seja um fato sublime ou um
fato que carece de verificação
Un nombre certain d’individus éprouve le besoin de se
remémorer leur vie, de commémorer ce qu’ils furent, en
35
prenant par rapport au devenir de l’existence un recul suffisant
pour une conscience de leur personalité et du rôle qu’ils
ont joué, qu’ils jouent, dans la société des hommes.
(Güsdorf, 1991: 250)
No contexto atual, como ressaltamos, o gênero vem ganhando fôlego como
estética literária. Halbwachs em sua obra A memória coletiva, 1950, faz-se um
promissor analista de memória, visto que apresenta uma visão social que distingue
memória individual e memória coletiva a partir de singularidades entre elas. Para o
autor, o primeiro testemunho a que recorremos será sempre o nosso e assim
enveredamos pelos caminhos da memória individual. Nessa mesma linha, as
lembranças que buscamos, ainda que nos apoiemos no outro, serão sempre
produzidas a partir do eu que a memória individual faz prevalecer. No entanto, seria
quase impossível falar de uma memória exclusivamente individual, pois a temos a
partir da vivência de um grupo porque
Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são
lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que
somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós
vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é
preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos
de nós, porque sempre levamos conosco e em nós
certa quantidade de pessoas que não se confundem.
(Halbwachs, 2006: 30)
Nas palavras de Halbwachs, a memória coletiva sobressai da individual, por
não estarmos sozinhos e nossa experiência partir sempre do grupo em que
convivemos. E é por esse viés que nossa pesquisa vai enveredar; o texto literário
criado por meio do gênero memórias trabalha com a verossimilhança com que o
narrador, em primeira pessoa, construirá eventos ancorados no coletivo para
conseguir entender o que ficou obscurecido em tempos difíceis, uma vez que o
objetivo é tentar resolver ou modificar essa circunstância que o atormenta ou que não
deve ser esquecida. E para rememorar as circunstâncias o memorialista recorre a
outros personagens com quem convivia. Halbwachs assegura que
Uma ou muitas pessoas juntando suas lembranças
conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos
que vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem até
36
reconstruir toda a sequência de nossos atos e nossas palavras
em circunstâncias definidas. (Id, p. 31)
A reconstrução à qual Halbwachs alude faz com que o leitor entre em contato
com outra história, sobretudo a história que se quer contar que é de um tempo
passado, relevante ao indivíduo e à coletividade. Assim, a memória individual
corrobora a memória coletiva. O autor assinala a existência das duas memórias que se
“interpenetram com freqüência, especialmente se a memória individual confirma
algumas de suas lembranças, para torná-las mais exatas [ou] preencher algumas
lacunas” (Id. p. 71).
O teórico, em outras palavras, assegura que não uma individualidade pura,
pois ao viver em sociedade, estamos assimilando o pensamento social, sendo que o
indivíduo ao buscar suas lembranças recorre às lembranças do grupo ao qual
pertenceu.
Nos romances modernos percebemos a necessidade de contar as memórias
em qualquer circunstância perpassada pela violência causada pelo poder como forma
de repressão. Como observa Caballé, o narrador dessas memórias é uma pessoa
madura que tem a pretensão de deixar registrada sua indignação vivida. Por outro
lado, apropria-se, então, desse gênero literário e segue à risca suas características
ainda sutis, mas, com o máximo de rigor possível, visto que é preciso ser verossímil e
ao mesmo tempo conseguir rigor estético.
Na teoria literária a forma como o homem manifesta sua interioridade é
conhecida como monólogo interior, e este “se liga à consciência, à inteligência e à
memória.” (Lobo, 1993:40)
O monólogo interior é uma técnica apresentada por Èdouard Dujardin em 1887,
empregada posteriormente por Joyce com eficácia na constituição do romance
moderno. Dujardin admite ser o monólogo interior
[...] a fala de um personagem numa cena, com finalidade de
introduzir-nos diretamente na vida interior desse personagem,
sem intervenção do autor por exemplificações ou comentários;
[...] ser, quanto ao tema, uma expressão do pensamento mais
íntimo situado mais próximo ao inconsciente; ser, quanto à
forma, produzido em frases diretas, reduzidas ao mínimo de
sintaxe [...] ( Dujardin, 1931, apud Lobo, 1993:39)
37
Essa técnica existe desde sempre na literatura, mas evoluiu grandemente nas
mãos dos escritores que deram uma nova roupagem ao que chamamos hoje de
romance moderno. Podemos observar que os questionamentos do homem moderno
não cessam, ele está sempre conversando consigo mesmo na busca de se conhecer.
No ensaio A ficção impressionista e o fluxo de consciência, Lobo (1993) aponta para
perspectivas que distinguem o monólogo interior do fluxo de consciência, consta que é
perceptível que as duas técnicas são híbridas e, em alguns casos, são utilizadas como
sinônimos. Os romancistas modernos fazem uso do monólogo interior para
representar as crises existenciais às quais o homem contemporâneo atravessa.
Ao narrar o fato recordado, o memorialista abre espaço para discutir questões
de interesse de uma coletividade, ao mesmo tempo em que propõe uma reflexão
histórica sobre a sociedade.
Em decorrência da discussão sobre a memória, como percebemos no trajeto
deste capítulo, queremos trabalhar com o conceito que mais atende às nossas
necessidades na análise da obra em estudo. Segundo Maciel (2007), entre
a memória (singular), capacidade humana de armazenar dados,
e a forma literária das memórias (plural) [há] uma conexão
implícita. É por meio da memória que se constrói o texto de
memórias. Da memória às memórias, no entanto, o caminho
traçado não se assemelha à reta que une, menor caminho
provável, dois pontos no espaço, mas sim a um feixe de
hipérboles, que as vozes que atuam na recuperação da
memória vêm mostrar a interferência de muitos outros fatores
na construção do relato. Na verdade é por meio da linguagem
que o relato memorialista é construído, tecido de escolhas,
silêncios, lembranças e imprecisões. (Medeiros e Maciel, In:
Signótica, v. 19, n. 1, p. 15-31, jan./jun. 2007.)
O conceito adotado aqui será aquele apresentado por Caballé nos estudos
citados. Para esta autora, a vida de uma pessoa difere da vida de uma coletividade,
ela não é construída por grandes acontecimentos ou grandes personalidades. É a
singularidade específica de um anonimato revelado no dia a dia que nos interessa. É a
história particular de uma pessoa que vem à tona. A memória deve perceber esta
singularidade e tecer fios que conduzem às memórias, travando uma discussão entre
memória e memórias, e apresentar o ser humano em sua condição existencial.
38
Nesse sentido, Chacel na obra Memórias de Letícia Valle, consegue abstrair da
memória de uma menina um fato marcante e pessoal cuja revelação culmina numa
situação coletiva. No caso da obra em questão, vemos Letícia mergulhada em sua
memória individual, mas conduzindo o fato ocorrido a todas as mulheres que, de
alguma forma, viviam na mesma condição que ela: solitárias e entediadas. Chacel
consegue produzir a novela, utilizando uma estética particular desenvolvida pós-
experimentalismo. Percebemos, na narrativa, que o fio condutor dos acontecimentos
está diretamente ligado à individualidade e ao mesmo tempo à coletividade. A
atmosfera criada por Chacel permite ao leitor sair do texto sem ter certeza dos fatos e
questões importantes levantadas por Letícia. A linguagem conflituosa e os lapsos da
memória deixam o leitor intrigado e faz dele um detetive, pois precisa fazer um pacto
com a memorialista para desvendar o que de fato Letícia precisa desabafar.
A estética de Chacel está baseada numa técnica singular, pois ao pesquisar e
começar a produzir seus textos menores, foi capaz de desenvolver uma técnica que
transcende o nível individual e culmina no universal. De mesmo modo, consegue
apropriar de uma linguagem extremamente rebuscada e penetra no meio social
machista e abstrai de o universo feminino. As acusações que traz à tona sobre o
machismo exacerbado são de uma sutileza invejável. Além de abrir a discussão sobre
esse universo paralelo, consegue com riqueza de detalhes escrever sobre a
introspecção vivida por várias de suas personagens de personalidade singular.
1.3.2- Memórias e trauma
A literatura autobiográfica ganha fôlego principalmente depois das grandes
catástrofes ocorridas na história da humanidade. Acentuadamente, no século XX, após
as grandes guerras e eventos como o holocausto. Outros momentos também de
grande efervescência para o homem aconteceram na luta dos indígenas pela
devolução dos territórios usurpados pelo homem branco na América Latina. Quando
esses fatos acontecem o sobrevivente sente a vontade de mostrar ao outro o que
vivera e como isso se deu, assim nasce a vontade de representar as marcas deixadas
pelas catástrofes. O estigma de ter sobrevivido acaba se tornando um fardo, gerando
a ideia de que é necessário retomar o passado para em muitos casos “esquecer”,
embora isso seja difícil a ponto de gerar um trauma. Para Freud, “o trauma traz à
39
mente, num período curto de tempo, um aumento de estimulo grande demais para ser
absorvido”. (Freud apud Nestrovski e Seligmann-Silva, 2000: 8)
A literatura do Eu penetra nos caminhos das consciências que sobreviveram a
tragédias, principalmente depois das grandes catástrofes. Os gêneros de testemunhos
como a autobiográfica, e as memórias, entre outros gêneros voltados a representar o
eu e seu trauma ganham notoriedade, na tentativa de fazer a contraposição com o
mundo atual, evoluem com o objetivo de conscientizar sobre os grandes traumas que
assolam a humanidade.
Contudo, em alguns casos, a representação através da palavra cai no malogro
no sentido de a palavra não ser suficiente para expressar um fato tão traumático como
fora a morte de milhões de pessoas nos campos de concentração. A esse respeito
Landos Martínez André em seu estudo aponta sobre
la experiencia traumática, el instante mismo del horror. Es el
lenguaje que también desliza por la vivencia del silencio y la
mudez, por la oscuridad de la prisión, para testimoniar él
mismo esta experiencia, porque esta categoría no puede
reducirse a criterios simplificadores por niveles de
representación o no representación, sino verlo como la materia
esencial para la representación de los momentos de silencio e
impotencia, la ausencia de vida y la suspensión del horror.
(Landos Martínez André, 2005:17-18)
Como referência, destacamos aqui o livro do sobrevivente de Auschwitz, Primo
Levi, É isto o homem? (1963) em que ele apenas relata e coloca o leitor na cena do
medo e do pavor do campo de concentração onde foi mantido prisioneiro até os
aliados invadirem o campo e o libertarem. Como vemos, em se tratando da Shoah,
alguns teóricos expõem que é impossível descrever o horror vivido. Seligmann-Silva
(2000:80) salienta que “Algumas coisas são tão sublimes que não podem ser atingidas
por pensamentos finitos, não podem ser sugeridas por nenhum signo ou
representação via imagens”.
Portanto, o trauma está diretamente ligado à memória no sentido de tentar
descrever como “resposta a um evento ou eventos violentos inesperados ou
arrebatadores, que não são inteiramente compreendidos quando acontecem” (Caruth,
apud Nestrovski e Seligmann-Silva, 2000:111) e carecem de ser lembrados para
verificação ou superação.
40
Capítulo 02
2. A memória da solidão e do tédio na narrativa feminina do
pós-guerra espanhol
2.1. Considerações sobre o conceito histórico-filosófico de solidão e tédio
A solidão e o tédio são estados de consciência diretamente ligados à existência
humana, por isso temos de revisitar a filosofia existencialista, principalmente a de
Sartre para compreendê-las teoricamente. Sartre sustenta que a existência do homem
concreto está marcada por uma angústia na direção de seu destino, pois o homem
quando surge no mundo não é nada até que ele se vai fazendo e definindo a si
mesmo. Por outro lado, o ser humano comporta uma consciência desgraçada, que
se encontra dominado por sentimentos de solidão, angústia e desamparo,
precisamente quando percebe que existem situações-limites, como o sofrimento, a
luta, a queda, a morte. Ele é nada porque está radicalmente só, e, ao mesmo tempo,
condenado a ser livre, a inventar-se porque não está atado a nada
Para Sartre o homem está destinado à decepção e ao desespero, na medida
em que é consciente de que vive em um mundo absurdo dominado pela morte, daí a
existência ser uma realidade vazia, que provoca uma consciência desgraçada. Essa
decepção e desespero são plenamente coerentes no contexto do mundo
convulsionado por duas guerras mundiais e outros conflitos armados, como a Guerra
Civil Espanhola no primeiro terço do século XX. Na Europa, muitos outros conflitos
marcaram o período, como os massacres coletivos na Rússia e nos demais
continentes, os genocídios, invasões, guerras civis etc. Tais acontecimentos m
derrubado a confiança do homem na razão, no direito à vida e no esquema de valores
morais e éticos sobre os que se tinham apoiado, até então: a existência coletiva dos
homens. É assim que o homem registra na historiografia do século XX a banalidade da
vida, a consciência do mal. Não em vão, Hobsbawm denominou precisamente o
século passado como o Século das revoluções.
41
Na literatura, esses fatos manifestam absurdamente a eterna solidão do
homem, o sem sentido da vida, o pessimismo da existência e a solidão da sociedade.
Essa história está estreitamente vinculada com a literatura para deixar uma reflexão
filosófica sobre a arte de uma época, bem como se tem refletido sobre os recursos
linguísticos e literários na representação do mal, da catástrofe, da barbárie. obras
singulares em forma de ensaios ou de ficção de autores que conviveram com estes
fatos e deixaram em seus escritos as sequelas infinitas da convivência com a morte e
a dor. Malraux, Beckett, Sartre, Pirandello, por exemplo, desde sua perspectiva de
testemunhos de uma época, vão refletir ou vão se perguntar sobre o sentido da vida,
sobre o sentimento trágico da vida que invade o mundo.
Na literatura espanhola, à parte a obra de Unamuno, produz-se na etapa
posterior à guerra civil, uma criação literária marcada pela experiência dramática das
lutas, na qual se percebe uma atitude intelectual e vital análoga a dos outros países
europeus. O desconcerto provocado pelo estalo da guerra provocou o rancor, a
desconfiança, e um estado de ansiedade se traduz no mundo de ficção por meio da
evocação de situações, ambientes e personagens representativos da autoridade, do
poder e da violência.
Em uma série de narrativas autobiográficas, predominantemente diários,
memórias e biografias, principalmente escritas por mulheres, apalpa-se a mesma
sensação de inquietação, angústia e sentimento do absurdo da vida humana. Essa
sensação resulta da recorrência de temas como o da solidão, o tédio, a ansiedade e a
desesperança; quer dizer, da consciência de um mundo inautêntico e alienante.
Claramente os autores vão projetar em seus personagens de ficção esse estado de
ânimo de angústia e incertezas.
A solidão e o tédio, apesar de serem estados da alma próprios do ser humano
de qualquer época, podem ser vistos de forma recorrente na narrativa espanhola do
século XX. As personagens femininas são reflexos da situação da mulher nesse
período: por um lado havia a Igreja e o Estado cobrando uma postura submissa,
voltada somente à sua existência singular; por outro lado a sociedade, historicamente,
também cobra dessa mulher o seu papel fundamental: esposa e mãe. Algumas
mulheres conseguiram sobreviver à custa de resistência intensiva, pois os direitos da
mulher foram conseguidos através de um lento processo de luta. O lar, em alguns
casos, fora o local do isolamento que acabou culminando neste mal-estar que
podemos denominar de tédio e solidão. A mulher que fora aprisionada no lar se sentia
muito entediada e solitária porque não tinha oportunidade de sair de seu “quintal”. Por
estar não tinha força para se revelar no espaço doméstico e se entediava. Na
42
verdade, ela se sentia assim porque não podia expressar-se como um ser com direitos
de pensar e agir por si mesmo, “O tédio normalmente surge quando não podemos
fazer o que queremos, ou temos de fazer o que não queremos.” (Svendsen, 2006:20)
As palavras solidão e dio transformaram-se em vocábulos muito utilizados no
século passado e neste século XXI. Apresentando como uma de suas acepções o
estado de quem está e em um lugar ao ermo, fazemos a relação com o homem
moderno que vive nessa condição; os compromissos da modernidade são ágeis e a
competição existente promove o “cada um pra si”. Para alguns teóricos o estado de
estar não significa necessariamente que se possa estar isolado. A solidão consiste
em estar acometido por um estado de espírito do qual é, muitas vezes, difícil de sair.
A obra O desespero humano, de Kierkegaard nos coloca em uma situação de
tentativa de autoconhecimento. Para o filósofo o desespero do homem é nunca
conseguir a plenitude; sempre algo que o inquieta, que o deixa em desequilíbrio ou
em desarmonia. Essa constante deságua no tédio e na solidão. O homem, nesse
estado, sugere uma busca incessante no sentido de não conseguir entender o que o
leva ao desespero. Em muitos casos, esse ser é podado e tolhido de sua liberdade,
restando-lhe a possibilidade de lutar contra o repressor ou resignar-se.
O ser humano não consegue viver só, e nem tem capacidade de agir só. Por
conseguinte, é necessário relacionar-se com o outro, porém a problemática reside na
ideia que temos de que o outro não pode viver e agir em nosso lugar. A solidão de
certa forma é positiva, por consequência, é o “quinhão de cada um” segundo Comte-
Sponville (2007:69). Para esse filósofo é o isolamento que traz o conflito encerrado
num “fracasso”. Porém a solidão “é uma dimensão da condição humana. [...] é a regra”
(Id. Ib), e sendo regra só é possível no meio social. Assim, ela existe porque o ser tem
por convenção a ideia de que o viver em sociedade abarca a possibilidade de estar
sempre junto, logo, sendo impossível expressar-se, ele entra em crise consigo mesmo,
e esse momento resulta em um estado desfavorável para que sua vida continue no
curso natural.
Esse é o ambiente no qual a mulher espanhola no contexto de pós-guerra se
encontrava. Ela vivia num espaço hostil em que não tinha liberdade para expressar
suas vontades, conforme regras determinadas pelo ditador espanhol General
Francisco Franco, comandante geral das forças armadas espanholas depois de
ganhar a guerra civil entre 1936-1939. Iniciaria, então, um grande retrocesso aos
direitos conquistados ao longo dos anos 30 pelas mulheres. Com a chegada de
Franco ao poder em 1939 a Espanha viveria 40 anos difíceis, pois o ditador tinha
como objetivo reformular a sociedade ideal. A sociedade pensada por franco teria
como esteio o pai, ou seja, a figura masculina que detinha a autoridade máxima sobre
43
a mulher e os filhos (Nunez-Puente, 2004:84-85). Dessa forma, as mulheres entravam
num estado de grande melancolia permeado pelo isolamento e o fastio.
No entanto, uma minoria, como Chacel e Zambrano entre outras, não
aceitaram tal situação e buscaram mecanismos de mudanças por meio da escrita. O
mal-estar as instigou a tomar uma postura antagônica frente ao sistema configurado.
Por isso, elas foram perseguidas e a única saída foi o exílio. Do desterro, elas
relataram suas experiências, apresentando um cenário perverso e esvaziado de
significado; de modo geral, representaram uma voz dissonante que começou a
expressar as negativas sobre a própria pátria que as expulsou. A literatura produzida
por elas foi significativa; essa voz do exílio foi ouvida e outras vozes se levantaram,
formando uma corrente de narrativas de mulheres, para mulheres sobre mulheres,
resultou, então, numa luta coletiva feminina, tentando sair do isolamento existencial,
ajudando aquelas que tinham condições de lutar e não o faziam porque uma força
invisível as impedia. O tédio, então sobressai nesse momento de negação [...] é um
estado de espírito tipificado pela falta de qualidade, o que o torna mais alusivo que
outros [...]” alude Svendsen (2006:14). Esse estado em alguns casos deixava a mulher
sem opção: o estar entediada era um sinal de que algo tinha de ser verificado, o tédio
é uma doença que ganha caráter na modernidade. Ela, a doença, consegue fazer com
que haja considerável perda de significado o que traz sérios danos à pessoa.
O isolamento, o tédio e a solidão são percebidos como temáticas recorrentes
nas obras de escritoras inseridas na narrativa feminina do pós-guerra espanhol. Nos
romances de caráter intimista, observamos que a escritora está sempre tentando
ressignificar a condição social da mulher no ambiente do pós-guerra, que precisava
sair da situação na qual fora enredada. As personagens femininas e, que normalmente
contam suas memórias, nos diários e nas confissões são bem representadas na
literatura espanhola, percebemos, por meio dos relatos, a frustração instalada no
universo feminino que promoveu uma luta coletiva para transgredir as fronteiras
impostas pelo opressor.
2.2. O tema exílio na escrita feminina de memórias
A Guerra Civil Espanhola, nos anos de 1936 a 1939, foi um momento de muitos
conflitos e de transformação em todas as esferas sociais do país. Em 1938, forças
franquistas cortam a Espanha em duas partes, isolando a Catalunha do resto do país.
Em janeiro de 1939, suas tropas entram em Barcelona e, no dia 28 de março, Madri se
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rende aos militares depois de ter resistido a poderosos ataques por quase três anos.
Assim termina a guerra e começa um período de total angústia para os espanhóis: o
pós-guerra.
Com o término da Guerra Civil em 1939, a Espanha se encontra em situação
crítica em relação à economia e à estrutura social, além de ter deixado um saldo de
um milhão de mortos e destruição de várias cidades; a situação econômica se
encontrava caótica pelos gastos gerados pela guerra.
Esses acontecimentos promoveram uma forte e acentuada desigualdade
social, pois a crise nas indústrias, a agricultura castigada pelas mudanças climáticas e
a chegada de muitos trabalhadores do campo para a cidade, foram fatores
determinantes. Fazia parte também desse contexto a insuficiência de moradia,
alimentação, trabalho e racionamento. A situação decadente do país beneficiou uma
minoria que detinha o poder de compra e acesso a bens de consumo, e ainda elevou a
inflação de alguns produtos. Como Franco não participou da Segunda Guerra Mundial,
a Espanha se viu ilhada e com dificuldades em reconstruir-se.
A junção dos aparelhos ideológicos ao poderio de Franco marca o início de um
período nefasto para a história do país. A Igreja, o militarismo, o estado, a família, a
escola enfim foram instituições utilizadas pelo estado para manter uma nova ordem. A
Igreja se encarregou de direcionar a moral e os bons costumes. Contudo, foi no seio
familiar com a mulher que sua atuação se deu com mais crueldade, pois os direitos
conquistados pelas mulheres nos anos 30 foram esquecidos e perdidos sob o domínio
de Franco. Nuñez Puente (2004: 85-86) esclarece que as mudanças no regime
entre 1940-1970 foram um retrocesso para as mulheres espanholas. O franquismo
as censurou em vários aspectos, construiu uma nova mulher voltada para os deveres
religiosos e familiares e sobre quem o marido teria autoridade máxima, cria, portanto,
um novo modelo de família na Espanha. De maneira que se estabelece uma aliança
de efeitos mais reacionários com a Igreja. A mulher, agora, deveria educar seus filhos
dentro das concepções estabelecidas pelo regime, que determinava seu
comportamento: ela deveria se vestir adequadamente sem exageros, comportar-se
como uma pessoa de vida regrada e religiosa, ter muitos filhos, ser submissa e
angelical para confortar o marido inteligente e forte (Nuñez Puente, 2004: 95). E ela
tinha a função de harmonizar o lar e nada poderia fazer em relação aos conflitos
existenciais e pessoais surgidos e vivenciados, porque era sempre silenciada.
A literatura espanhola foi frutífera no período do pós-guerra. Nela foram
traduzidos os dramas humanos que a guerra fez surgir. Com evidência, a narrativa
45
feminina sobressai e ganha uma gama de estudos e valor literário, configura, então,
uma literatura feminina, com peculiaridades, conforme o estilo desenvolvido por cada
escritora. Por conta da imposição masculina, o texto escrito por mulheres estava
quase sempre falando de algo repressor; podemos observar nas entrelinhas o seu
pedido de socorro porque as escritoras não podiam ser explícitas nas denúncias dada
a condição que lhes era imposta; era preciso driblar a censura para que seu texto
fosse publicado.
A literatura feminina do pós-guerra progride, porém nem sempre foi assim. A
mulher escritora foi ganhando espaço progressivamente, somente nos anos quarenta
ela começa a escrever, mas com as mesmas características masculinas, novelas rosa
e de evasão de cunho tradicional e conservador. Precisava publicar e por isso
submetia-se à estética vigente; de outra forma seria um fracasso. É sabido de todos
que a mulher teve de lutar por seu espaço. Barzotto (2006) explica a progressão de
vida das mulheres e suas vozes como forma de luta e tentativa de conseguir liberdade
dentro da própria casa, espaço onde é marginalizada e sofre agressões de alguma
maneira. O texto literário escrito pelo gênero feminino “é então uma metonímia da
saga das mulheres, também como uma ferramenta de alerta e denúncia onde uma
voz por detrás das letras.” (Barzotto, 2006: 4)
A repressão destinada à mulher a lançou em busca de liberdade, vislumbrando
encontrar, de alguma maneira, seu espaço. Ao sair do locus doméstico em que estava
confinada, não só físico como também psicológico, teve um caminho muito difícil a
trilhar. Algumas delas optaram por escrever recordações, a saber, a escrita de
memórias ou diários que permitiam a elas a liberdade para criar e refletir sobre seu
modus vivendi.
No entanto, as mulheres intelectuais exiladas por partidarismo político, e outras
também autodidatas, no desejo de mostrar a sua condição humana, alcançam uma
criação de qualidade mais elaborada esteticamente, com o objetivo específico de
denunciar o tratamento determinado a elas. Assim, a escritora espanhola começa a
escrever nos anos quarenta e sua produção prolifera na Espanha do pós-guerra e se
revela uma literatura de muita qualidade literária. Peñalosa (2004: 265) aponta para
três traços que saltam aos olhos em relação à narrativa feminina: a importância que
dão à personagem; a focalização em primeira pessoa; e a presença da mulher como
tema, como observadora da realidade e receptora dos próprios relatos. É o universo
feminino ressaltado nos romances intimistas, aludindo ao estado solitário e entediante
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que as personagens vivem e que no fundo está representado o estado real da própria
vida.
A produção literária de exílio foi contundente e relevante no pós-guerra. A partir
dessa produção, muitas editoras na América Latina acolheram essas publicações
México, Argentina, Uruguai... –, que levaram a público toda essa literatura feminina da
mulher exilada, cuja escrita mostrava o engajamento político e psicológico dos dramas
íntimos e, ao mesmo tempo, apresentava à coletividade a questão da mulher e da
sociedade como um todo. Na culminância desse contexto, no desterro, Rosa Chacel
vai produzir suas novelas e como matéria-prima recorre às repressões sofridas pelas
mulheres que não conseguiam serem ouvidas e que normalmente estavam reclusas
ao lar, vivenciando algum drama como violência física, moral ou psicológico.
2.3. Rosa Chacel: uma singular memorialista
Rosa Chacel nasceu em 3 de junho de 1898 em Valladolid, entretanto, desde
os dez anos viveu em Madri, onde ingressou na escola de Bellas Artes em 1915.
Casou-se e foi morar em Roma, onde começou a escrever para a Revista de Ocidente
e a Faceta Literária. Voltou a Madri em 1938, foi perseguida e teve de exilar-se por ser
republicana contrária ao regime de Franco. Passou por Atenas, Genebra, Rio de
Janeiro e Buenos Aires. Voltou a Madri somente em 1974, onde permaneceu até sua
morte em 1994. Por ter estudado na escola de Bellas Artes, Chacel torna-se uma
escritora de múltiplas habilidades frente ao texto literário, na sua amplitude. Escreve
ensaios, poemas, contos, novelas... Escritora consagrada recebeu o Prêmio de Crítica
em 1976, em 1987, o Prêmio Nacional das Letras. Como consequência de seu
sucesso, sua novela Memórias de Letícia Valle é levada às telas de cinema. Em 1990
recebe o Prêmio Castilla e Leon das Letras.
Segundo Rodríguez-Fischer (1993), em um relato publicado pela primeira vez
na Revista de Ocidente (nº 55 [enero de 1928] XIX, p. 79-90), Chacel apresenta
47
uma forma moderna e excelente sensibilidade para a literatura do século XX. Na
verdade, ela transforma o modo de fazer literatura no que se refere à abordagem
temática, pois confronta gerações de tradição do tipo “padres e hijos o madre e hija”
no relato elaborado inicialmente. Contudo, essa ideia primeira desembocará em
temáticas como a existência, a vitalidade e especificamente o estético. (Rodriguez-
Fischer,1993:209)
No ensaio referido por Rodríguez-Fischer, vemos a trajetória feita por Chacel e
sua audácia em elaborar novelas e ensaios entre outros com uma visão muito
particular sobre a condição humana, especificamente em momentos de muita
perseguição em relação à mulher. Rodriguez-Fischer (1993:240) pontua o texto
Chinina Migone como sendo um dos que permite perceber os primeiros traços
literários que Chacel publicara; nesse relato a considera uma escritora vanguardista:
Si desde finales del siglo XIX aparecen en España destacadas
mujeres que, con decisión y voluntad, se incorporan a
la vida intelectual de su época aportando, además de una obra
literaria propia, unos cuantos títulos que reflexionan sobre la
condición o situación histórica de la mujer, esa tendencia
se acentúa conforme avanza el siglo XX. (Rodriguez-Fischer,
1993:240)
Rodriguez-Fisher (1993) ressalta Chacel como uma escritora que tem a
possibilidade de revolucionar a escrita feminina que mudaria a forma de ver o mundo
caótico pelo transtorno do pós-guerra.
Chacel teria, em 1921, participado de uma conferência em Ateneo madrileño,
na Espanha, e expôs preocupações com a temática feminina ao elaborar um texto
intitulado “La mujer y sus posibilidades”. Depois dessa abertura Chacel não parou
mais. Escreveu um vasto repertório de textos relacionados a essa temática. Seus
ensaios refletiram sobre a mulher, mas num plano mais transcendente, voltado ao ser
humano e à sua essência no tempo e no espaço social.
Depois de alguns importantes artigos publicados na Revista de Ocidente, o
caminho inicial estava esboçado, Chacel continua escrevendo sobre temáticas
femininas num espaço delimitado.
Os traços deixados por Chacel em Espanha farão sentido quando ela se muda
para Roma onde se dedica ao aprofundamento do conhecimento sobre escritores que
48
contribuíam para uma nova postura literária que privilegiavam a essência humana,
escritores como Proust, Joyce, Freud e, principalmente, aquele que lhe serviria de
apoio, Ortega y Gasset, sua grande influência. É nessa época que Chacel escreve o
relato Chinina Migone, livro de contos, e a sua primeira novela Estación Ida y vuelta,
entre 1925 e 1928.
Com esta novela, Chacel cria um circuito confessional, pois sua produção
romanesca permeará entre autobiografias, diários, memórias e confissões, com a
focalização na primeira pessoa. No entanto, essa novela é ainda uma tentativa de
inovação, Rodríguez-Fischer (1993: 243) acredita que se trata de uma “(...)
consonancia con el experimentalismo de aquellos años en que se buscaba la
renovación de la prosa española (...)”. A novela recebe as influências de Ortega y
Gasset na construção da personagem que transforma seus pensamentos e os fatos da
vida em realidade. Ortega y Gasset admite que El hombre rinde el máximum de su
capacidad cuando adquiere la plena conciencia de sus circunstancias. Por ella
comunica con el universo” (Ortega y Gasset, apud Rodriguez-Fischer, 1993: 245).
É interessante ressaltar que toda a obra chaceliana envereda por esse pensamento,
ou seja, o homem deve tomar consciência de sua condição de vida, por isso a
literatura voltada ao intimismo atinge o ponto máximo em sua elaboração cuidadosa.
Na tentativa de penetrar na alma humana, Chacel constrói a personagem
Teresa da novela de mesmo nome publicada em 1941, em que ela tenta esmiuçar o
íntimo da personagem, dando voz às meditações, às sensações, às recordações, às
fantasias e aos temores da heroína expressos por um narrador de primeira pessoa em
estilo indireto livre. Acrescenta-se a Espanha mostrada como pano de fundo no
momento em que a personagem caminha pelas ruas e medita sobre a vida. (Id. p.
248). O trabalho de criação e invenção que Chacel tem é acentuado em Teresa. Nela
prenuncia um rigor literário refinado. Verificamos que muita coisa se perdera quando a
Guerra Civil Espanhola foi alçada e ela teve de sair do país por ser contrária ao regime
em voga. Contudo, ela não permaneceu calada, “(...) la autora la continuó a lo largo de
cuarenta años, manteniendo los planteamientos estéticos anteriores, permaneciendo
fiel al punto de partida.” (Rodriguez-Fischer, 1993: 253)
Nos primeiros anos de exílio, Chacel volta a escrever narrativas que vão de
romances a contos. Sua obra produzida Sobre el piélago, 1952 e Ofrenda a una
virgen loca, 1961, e mais dois trabalhos foram agrupados em Icada, Nevda, Diada
(1971), todos pertencentes ao gênero fantástico, gênero que a influenciou a partir das
leituras de Poe e Baudelaire (Id. p.254). Ainda nessa perspectiva, publicara em 1960
49
La sinrazón. É interessante considerar que Chacel não se limita a um único estilo, ao
contrario “gusta de fundir en sus relatos los elementos más diversos.” ( Id. Ib)
A obra Memória de Letícia Valle, objeto de nosso estudo, publicada na
Argentina em 1945 foi bastante lida e traduzida em vários países. Essa obra apresenta
um rigor intelectual voltado aos princípios da escola orteguiana, voltado à essência
humanista. Com essa obra a escritora não ressalta os problemas relacionados à
guerra, mas também cria um estilo, abordando problemas universais aos quais o ser
humano está submetido em qualquer tempo conflituoso. Nessa obra também está
presente uma das características do estilo estético criado por Chacel, o mistério. Ou
seja, são narrativas abertas, pois é descartada qualquer possibilidade de explicitar o
mistério em que as personagens se envolvem. Nas palavras de Rosales é evidenciado
que
El desentrañamiento del misterio es una de las claves de la
narrativa de Rosa Chacel. Con una curiosodad infatigable,
Chacel persigue lo que le inquieta hasta que consigue
disoverlo en palabras. Misterios cotidianos, […], son en gran
medida lo que alimenta el fuego creador de esta escritora. Ella,
consciente del papel que desempeñan en su obra, atesora
aquellos hechos que de alguna forma están tocados por el
misterio. ( Rosales, 2000: 5)
Chacel escreveu quase toda sua obra praticamente no exílio, por conta disso é
que suas novelas demoraram a chegar à Espanha e, somente algum tempo depois,
ganharam reconhecimento nacional como narrativas do pós-guerra. Desenvolveu, com
inteligência, novelas, contos, ensaios, deixando um grande ganho para a literatura
espanhola e latino-americana.
A maioria de seus críticos a considera como uma das mais nobres escritoras
de narrativa feminina espanhola, e que se insere no meio literário, exatamente pela
sua inovação no que concerne o fazer novela, pois se apropria de uma excepcional e
minuciosa observação psicológica, apresentando-nos os conflitos mais íntimos e
singulares das personagens, normalmente femininas. Não obstante, nos anos
quarenta, sua obra foi ignorada pela crítica, por várias razões, principalmente porque
estava em evidência somente novelas rosa e de evasão, outro fator foi o de que sua
obra era muito elaborada e não fora entendida a priori, nem mesmo por intelectuais,
como aponta a própria Chacel em entrevistas. No entanto, após 20 anos de atraso sua
obra se instala na Espanha e é lida como uma obra de vanguarda. (Peñalosa, 2004:
168-169)
50
A crítica é unânime em manifestar que ela soube criar uma estética essencial
para discutir a condição da mulher na Espanha do pós-guerra. No universo de sua
obra está presente a mulher e sua convivência no meio masculino. Foi pesquisadora
da essência feminina, a partir da qual escreveu ensaios problematizando e analisando
o papel social da mulher. Por isso, Peñalosa (2004: 170), constata que atualmente é
uma das escritoras que mais desperta o interesse dos estudiosos da literatura,
especificamente os que pesquisam temáticas femininas.
2.3.1. A desumanização orteguiana em Rosa Chacel
Ortega y Gasset no texto A Desumanização da Arte, 1925, apresenta os rumos
que a arte moderna tomou no início do século XX. Naquele momento, a vanguarda
artística trabalhou com a desrealização do processo artístico, determinando uma nova
abordagem estética. O artista jovem ao valorizar o corporal ao espiritual, o gozo e a
liberdade ao formal e circunspecto, projeta-se ao que Ortega y Gasset denominou de
arte desumanizada. A nova arte rompe com a tradição dos padrões estéticos
antecedentes, instaurando, assim, uma movimentação tumultuosa entre o artista e o
público, à medida que exige uma nova sensibilidade para a sua apreciação. O
vocábulo desumanização explicita as diferenças entre a nova arte e a anterior. De
maneira clara, indica que a arte anterior era uma arte humanizada, e que essa nova
tendência passa por um processo de corrosão em virtude das novas intenções e
soluções da arte que surgem. A humanização está vinculada à desrealização da
“realidade”. O desumano está em tentar recriar o real na perspectiva da arte
desumanizada, refletindo sobre a realidade da vida, de maneira deformada por romper
com aspectos humanos; em contrapartida a arte humanizada se encontra
exclusivamente no labor artístico, “Essa nova vida, essa vida inventada, prévia
anulação da espontânea, é precisamente a compreensão e o prazer artístico” (Ortega
y Gasset, 2001: 42)
É nesse sentido que Chacel, seguidora das ideias orteguianas, busca
concomitantemente o rigor estético e uma obra que alargue os limites da realidade
humana, que seria o ponto de partida para que ela vislumbrasse uma literatura de alto
51
nível estético, pois o artista “aumenta o mundo, acrescenta ao real, que já está por
si mesmo, um irreal continente.” (Id. p. 54).
Além do experimentalismo, a novelista escreveu artigos teóricos sobre gêneros
em evidência como confissões e sobre outros grandes temas da literatura. Segunda
Cora Requena, pesquisadora de Chacel, esta escritora teria se engajado no grupo de
1925, também conhecido como Generación de 27 por pactuar das mesmas ideias do
grupo em que Ortega y Gasset era a figura central. Sua obra também foi alcunhada de
desumanizada. No entanto, nas considerações de Cora Requena, Chacel neste grupo
compartilhou teorias de como produzir literatura e
Con ellos compartió no sólo algunos postulados claves sobre
la manera de producir literatura, como son, por ejemplo, la
caracterización interior de los personajes o la idea orteguiana
de la “biografía de las ideas”, sino también la suerte de que
sus novelas fueran tildadas (y lo continúan siendo) de
deshumanizadas, aun cuando, a diferencia de lo que ocurrió
con la obra de sus compañeros de generación, en el caso de
Rosa Chacel esta recriminación habría de abarcar toda su
producción novelística, pues pese a la incuestionable
evolución que ésta experimentó a lo largo de sesenta años, la
autora se mantuvo siempre fiel al proyecto de escritura que
inaugurara en el año 1930 con la publicación de Estación. Ida
y vuelta. ( Requena, 2002: 1)
Na obra A desumanizão da arte, Ortega y Gasset critica de forma rígida a
arte moderna que não consegue se fazer entendida esteticamente. Para ele, a
tentativa de deformar o natural que chama de homem, como a sentimentalidade, o
melodramático promove uma ilusão e no fundo não causa prazer estético, porque está
voltada para a tentativa de fazer o público se identificar com um drama parecido e
vivido. Nesse sentido, Ortega y Gasset chama a atenção para o prazer estético que a
arte nova deforma. Vem então daí a influência tomada por Chacel ao buscar o mais
alto grau de forma para sua produção artística. O trabalho artístico vivido e produzido
por ela está presente em toda sua obra, começado por um experimentalismo,
amadurecido posteriormente. Como observa Rodríguez-Fischer (1993) textos como
“La mujer em galeras” (1973); “Comentario a un libro histórico” (1980); “La esclava”
(1992), são textos que revelam grande amadurecimento teórico como resultado de
quarenta anos do início de sua carreira. Em outro artigo sobre a desumanização
em Chacel, Requena analisa a obra da escritora na perspectiva humanista e não
desumana pela influência de Ortega y Gasset como acreditam alguns criticos, pois em
52
cada personagem homem ou mulher revela-nos a riqueza estética da sua criação;
além de discutir temas recorrentes e universais. Segundo Requena esta narradora é:
una de las escritoras más arriesgadas y representativas de la
literatura española del siglo XX y una heredera legítima de los
movimientos de vanguardia que sacudieron el mundo del arte a
comienzos del siglo pasado; y su obra, extraordinariamente
moderna, “deshumanizada”, intelectual, pasional, es uno de los
más humanos y bellos obsequios de la literatura española
contemporánea. (Requena, 2007: 9)
Requena nos apresenta uma escritora preocupada com o universo feminino e
como a mulher foi vista naquele momento do pós-guerra. Por suas ideias às vezes
radicais, não foi aceita no Movimento Feminista, pois sua forma de ver a mulher era da
maneira mais universal, o que talvez não fosse propício para o contexto. Segundo
Requena, Chacel “luchó siempre por hacer participar a la mujer del pensamiento
filosófico, científico, político y artístico de su época aunque algunas de sus opiniones
son difícilmente entendibles fuera de su contexto histórico”, (Requena, 2001: 2).
Para essa pesquisadora, há nas narrativas chacelianas dois tipos de mulheres:
o primeiro é a mulher feminina: aquela que não extrapola o espaço doméstico, é vista
como uma personagem tipificada, o “espejo” da mulher na sociedade espanhola, não
cultiva a intelectualidade e normalmente é uma personagem secundária; o segundo
tipo são mulheres e meninas livres, às vezes com as mesmas oportunidades que a
esfera masculina, normalmente são protagonistas em busca de liberdade, criatividade
e inteligência, quase sempre participam do espaço destinado aos homens. Para
Chacel o homem e a mulher são seres humanos, nesse sentido não se deveria fazer
distinção entre ambos; a arte humanizada está em levá-los ao mesmo patamar de ser
humano.
Rosa Chacel foi parte importante da geração de 27, ao lado de Zambrano,
entre outras escritoras que assumiram claramente estar a serviço da intelectualidade
ou de esquerda, tanto que foram exiladas e mesmo assim sua escrita foi profícua. A
escritora espanhola logra êxito com suas novelas discutindo o comportamento da
mulher e a Espanha tem noticias e testemunhos que, de modo geral, Chacel ajudou a
mudar a literatura do século XX.
53
2.4. Um breve resumo de Memórias de Letícia Valle
Letícia é uma menina de 11 anos que se dispõe a contar suas memórias dos
cinco meses vividos em Simancas, uma pequena vila próximo a Valladolid, onde
Letícia vai morar com seu pai e sua tia Aurélia uma solteirona que cuida dos dois.
Após a chegada em Simancas, a menina se desprende da família, ficando muito livre
pela vila e, entediada, vai ter aulas com a professora que percebe nela um talento
musical e a indica para estudar música com a professora Luisa. Quando Letícia
começa a ter aulas de música, conhece Dom Daniel, marido de Luisa, com quem tem
aulas de História posteriormente e, a partir daí, começa a nutrir pelo professor
sentimentos de amor, promovendo ciúmes na esposa, por quem Letícia tinha
sentimentos maternos. Esse envolvimento culmina na separação dos três, o professor
desaparece
2
, Luisa resigna-se e Letícia é levada para morar com a tia Frida e tio
Alberto em outra cidade, para que continuasse seus estudos e convivesse com
Adriana, uma prima de idade equivalente. O drama vivido fez com que Letícia
escrevesse as memórias desses cinco meses, retomando um fato especifico que é
sempre aludido, mas nunca explicitado. Contudo em seus relatos ela sempre se refere
ao acontecido o que a deixa muito solitária e infeliz.
2
Segundo artigos de teóricos de Chacel, acontece um fato trágico que levaria D. Daniel ao suicídio,
resultado do envolvimento amoroso entre Letícia e ele. No entanto, Chacel astutamente não deixa
explícito este fato. Por isso no decorrer da análise vamos aludir à tragédia como um fato traumático
vivido pela protagonista.
54
Capítulo 03
3- O devir nas memórias de Letícia
3.1- Adentrando as memórias
Recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e
também para completar o que sabemos de um evento sobre o
qual temos alguma informação, embora muitas
circunstâncias a ele relativas permaneçam obscuras para nós.
O primeiro testemunho a que podemos recorrer será sempre o
nosso. Quando diz: “não acredito no que vejo”, a pessoa sente
que nela coexistem dois seres um, o ser sensível, é uma
espécie de testemunha que vem depor sobre o que viu, e o eu
que realmente não viu, mas que talvez tenha visto outrora e
talvez tenha formado uma opinião com base no testemunho de
outros. Assim, quando voltamos a uma cidade em que
havíamos estado, o que percebemos nos ajuda a reconstituir
um quadro de que muitas partes foram esquecidas. Se o que
vemos hoje toma lugar no quadro de referências de nossas
lembranças antigas, inversamente essas lembranças se
adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente. É
como se estivéssemos diante de muitos testemunhos.
Podemos reconstruir um conjunto de lembranças de maneira a
reconhecê-lo porque eles concordam no essencial, apesar de
certas divergências. (Halbwachs, 2006: 29)
Halbwachs (2006) em poucas palavras remete-nos ao ambiente retomado pela
protagonista Letícia ao analisarmos a obra Memórias de Letícia Valle, considerando a
trajetória feita por ela, enfatizamos as marcas das lembranças trilhadas na novela.
Para reforçar suas evocações, Letícia se ancora nas personagens com quem viveu
maior parte do tempo.
Seu relato é intenso e nebuloso, porque apesar de ser uma menina com uma
maturidade psicológica e singular, tenta buscar nas lembranças o trauma, os dramas
acontecidos por volta de cinco meses antes de completar doze anos. No início da
novela, expõe a necessidade de relatar suas memórias e buscar compreender o
estado de isolamento no qual se encontra. Dessa forma, circula entre o tempo
presente e o passado. Esforça-se para dar início ao relato, porém, na tentativa de
expor a necessidade de escrever suas memórias, titubeia entre o presente e o
55
passado, buscando um princípio a partir de suas lembranças mais distantes, porque
nesse momento não consegue ter clareza de como ou de onde começar, assim, ela
expõe algumas palavras
Ahora, las peores [cosas] ya no me dan miedo: me atrevo a
repetirlas aquí, las escribiré para que no se borren jamás en mi
memoria. Y no por consolarme: necesito mirarme al espejo en
ellas y verme rodeada de todas las cosas que he adorado, de
todas las cosas de que me han separado, como si ellas me
hubiesen hecho daño”. (Chacel, 1985: 8)
3
Letícia inicia, então, suas memórias, proferindo a data importante de seu
aniversário, a saber, o aniversário remonta ao nascimento que é celebrado com
festividade por marcar um momento importante na cultura humana. Letícia ao dar
ênfase a esse fato permite perceber que, a partir de suas recordações, renascerá,
transformando-se em outra pessoa.
No entanto, exatamente no início de seu relato a atmosfera é de muita solidão.
É clara sua condição de isolamento, pois não tem ninguém ao seu lado e lembra-se
das palavras do pai, as únicas que, talvez, teriam ficado em sua memória “Es inaudito,
es inaudito!”, e ela no seu canto, tentando dizer ao pai o que não teve coragem ou
condições; esse momento vem agora em sua memória “Eso es lo que yo estaba
queriendo decirte siempre. Yo no sabía decir que todo lo mío era inaudito, pero
procuraba dártelo a entender, y de todo decías que no tenía nada de particular...” (
Id. p.8). O sentimento de tristeza a invade e ela tenta rever sua vida, buscando
entender aquele fato específico cujo viver se tornou enfadonho.
Letícia, agora, busca em sua memória uma retomada para esclarecer o que
ficara obscuro. O início do seu relato é conflituoso e incerto; em meio à reflexão ela
transita no tempo, mostrando-nos uma Letícia às vezes insegura, às vezes serena, às
vezes revoltada e totalmente indecisa sobre qual fato relatar. Ela se guia pelo leitor
virtual, apresentando a ele o mote de sua novela: expõe com clareza por que sente
necessidade de escrever
3
As citações que se referem à obra em estudo, foram extraídas de: CHACEL, Rosa. Memórias de Letícia
Valle. Primera edición. Barcelona: Editorial Lúmen, 1985.
56
Caballé (1995: 108) assegura que as dimensões da memória coincidem com as
do papel em que esta se configura para ofertar ao leitor um espaço em que os
acontecimentos ainda estão recentes, e por isso é possível perceber o micro-histórico,
as faces das várias personagens e as descrições que surgirão das memórias. É este
microespaço que Letícia utiliza para relembrar, escrever e rever sua experiência
aflitiva e isso a deixa em constante busca de auto-afirmação. As marcas de sua
reflexão estão por toda a novela “la distancia es una ventaja para mí: me aísla, es mi
propiedad y no siento aquel deseo de explicaciones.” (Id. p.8) A protagonista busca no
presente uma explicação para sua existência, “O ser nos será revelado por algum
meio de acesso imediato, o tédio, a náusea, etc...” anota Sartre (2007:19). É o que ela
nos apresenta, pois na tentativa de escrever, reviver um momento que a entedia e a
isola, percebe-se desesperada e se entrega às recordações. Ela está num momento
de crise existencial e busca a possibilidade de alcançar a cura para sua essência
humana.
Ao mesmo tempo, em meio à intensidade do monólogo interior que vem à tona
em forma de memória, Letícia parece falar sem travas, as palavras atropelam sua
consciência, nesse impulso ora fala de um assunto, ora fala de outro e principalmente
de si mesma. A necessidade de exprimir-se é a proposta do recurso memória, o
memorialista ao falar de si mesmo está dizendo algo mais além da simples descrição
de suas memórias, afirma Caballé (1995:37). Portanto, sem a pausa dos capítulos,
podemos perceber a necessidade que a narradora tem em expor suas angústias
descontroladamente.
A narradora, agora na condição de autora de sua vida, percebe que o fato a ser
exposto, ainda é um problema grave, ela não lida muito bem com o assunto
traumatizante para si, pois ainda se sente só. Na tentativa de retomar o fio da
narrativa, tem como companhia somente uma planta que a observa da janela, a hera –
espécie de trepadeira que permanece verde o ano todo –, representando a única
companhia de Letícia, “es mi compañera [...], Cuando la miro, como cuando la olvido o
cuando duermo”. (Id. ib). Segundo Chevalier (2003: 486), hera “simboliza a força
vegetativa e a persistência do desejo”, assim vemos a protagonista passando pela
vida motivada pelo desejo, mas é podada como se fosse uma planta que extrapola os
limites estabelecidos.
Suas introspecções colocam o leitor no cenário lembrado. Toda ação parte “do
rio da memória [...] tudo, [...] está no romance como tempo interior, tudo é seu tempo
interior”, (Moisés. 1974: 107). Ao narrar a história, Letícia revela sob o monólogo
57
interior os resquícios de perturbações e descontrole em relação ao seu consciente, o
que não é possível desconsiderar para uma análise totalizadora da trama. Ao apoiar-
se no tempo psicológico (Moisés. 1974: 107), Chacel aguça o interesse do leitor para
que penetre nas lembranças da narradora porque sabemos da história a partir das
recordações da protagonista. Apesar da fragmentação que marca o tempo presente e
o passado, ela precisa seguir com suas retomadas marcadas pelo fluxo da memória:
“Há horas mortais, dias vazios, enquanto em outros momentos, seja porque os
eventos se precipitam seja porque nossa reflexão se acelera...” conforme Halbwachs
(2006: 116). Desse modo, Letícia inicia seu relato. Sua volta no tempo é um abismo
que a fará buscar o que de fato procura ou precisa, agora no presente.
A protagonista assume o papel de narradora, por isso ela se configura como
narrador-personagem, assim, o leitor manterá um dialogo com a personagem, e, com
isso, os fatos parecerão mais convincentes (Bosi, 1977, apud Dal Farra, 1978:11). O
romance é introspectivo visto que é narrado em primeira pessoa, com focalização
autodiegética (Aguiar e Silva, 1986: 770) porque a heroína e a narradora configuram-
se na mesma personagem, havendo um intervalo temporal entre o que é narrado e o
quando se narra. Na confluência dos dois eus surgem posturas spares quanto ao
modo de pensar da personagem nesses dois tempos, conforme esclarece Aguiar e
Silva:
Amadurecido ou envelhecido, o eu narrador, ao rememorar
eventos de eu narrado, pode assumir uma atitude irônica e
judicativa ou uma atitude solidaria perante o eu narrado, pois
que o fluir do tempo esgarça a identidade entre o eu narrador
e o eu narrado, instaurando entre ambos uma relação
ambígua e complexa de continuidade e de ruptura. (1986: 770)
Nessa atmosfera, vemos erigir das memórias da protagonista os fatos que ela
precisa elaborar, com as marcas traumáticas que a impedem dar o início. Para Freud
“o trauma traz à mente, num período curto de tempo, um aumento de estímulo grande
demais para ser absorvido”. (Nestrovski e Seligmann-Silva, 2000:8). Letícia retoma
sua infância, a morte da mãe, a ausência do pai alcoólatra e o suposto romance com
seu professor.
A estrutura narrativa é bastante peculiar, por ser narrada em primeira pessoa,
temos uma visão ampla do espaço, do ambiente, da ação e principalmente das
personagens, ficando, assim, o leitor em contato com a trama na sua totalidade. Por
58
certo, essa divisão é um ponto que suscita comentários, visto que, a novela caminha
de forma não-linear; a partir do recurso de memória, a protagonista rememora, mas
também reflete no momento da lembrança, porque é estabelecido um contato com o
que se narra com o narrador. Surgindo daí uma lacuna passível de investigação.
Essa lacuna entre o narrador e o fato narrado incita o leitor a penetrar junto
com Letícia no monólogo interior (Dujardin, apud Lobo, 1993:39). Nesse sentido, a
narradora coloca o leitor num ambiente cuja denúncia traz à tona a condição social
dela e da mulher, especificamente, as que habitavam em Valladolid e na vila de
Simancas na Espanha. Neste ambiente e, a partir das lembranças da protagonista,
vemos explicitamente o sentimento de tédio e de solidão das personagens femininas,
apoiando-nos em Svendsen (2006:20). Conseguimos visualizar o condicionamento ao
qual elas estavam submissas e não conseguiam sair para buscar mudanças, pois
perderam até a capacidade de pensar, assim não tem força de vontade para sair
daquele estado.
As marcas dessas lembranças e do tempo retomados estão por toda a
narrativa, porque ela “compara muitas consciências a um mesmo momento” como
sugere Halbwachs (2006:116). O tempo passado que Letícia remonta transparece
algumas marcas de que o passado deve ser lembrado para que ela possa verificar sua
condição de mulher e seguir sua vida, pois agora no presente sente necessidade de
se desprender do que outrora a fizera infeliz e solitária.
Em se tratando de um romance aberto
4
, o leitor não fica à vontade no
fechamento da intriga referida, pois Letícia não apresenta com clareza os fatos
relatados, sim um “fluir caótico da corrente de consciência” (Aguiar e Silva, 1986:
770) que conduz o leitor a refletir com ela sobre seu estado.
Segundo Halbwachs (2006:119), “A memória não tem poder sobre os estados
passados e não os devolve a nós em sua realidade de outrora”, daí haver tempos
distintos no romance. A partir do que Letícia nos conta, percebemos sua situação e
visualizamos em suas lembranças uma fenda para observarmos a condição das
mulheres de um modo geral.
4
Esse termo é usado por Aguiar e Silva ao tratar do romance fechado e romance aberto. O
termo se refere ao romance aberto no sentido de mostrar que os romances abertos fazem uso
do monólogo interior. Ver: AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. edição.
Coimbra, Livraria Almedina, 1986, p. 726.
59
Nas memórias, a protagonista revela seu estado solitário e tedioso e, acima de
tudo, não consegue entender porque se sente tão só e isolada. Para Letícia, escrever
é uma tentativa de elaborar ou reelaborar o que ficara pendente, no entanto a memória
dever ser “um lembrar ativo: um trabalho de elaboração e de luto em relação ao
passado, realizado por meio de um esforço de compreensão e de esclarecimento...”
aponta (Gagnebin, 2006:105), assim, o objetivo de suas rememorações deve culminar
em conseguir a catarse; entretanto, percebemos que ao final do relato isso não se
configura, na verdade, não lhe resolvem nada as lembranças, pois tem somente a
hera como companhia no presente “... es ella que va a medir mi tiempo. Cuando la
miro, como cuando la olvido o cuando duermo, ella va avanzando...” (Id. p.8)
Mediante essas palavras percebemos que para Letícia não havia o que escolher,
pois, considerando sua família, a vida estava condicionada, estaria e infeliz em
qualquer lugar. Em Valladolid, por exemplo, teria o mesmo fim que as demais
mulheres da família, estaria entregue ao espaço doméstico sem chance de evoluir,
porque teria mais familiares obrigando-a ou determinando seu comportamento
fragmentado “Sólo la angustia de tener que aprender unas cosas para comprender
otras,...” (Id. p. 10) . Ao mudar-se para Simancas, tem possibilidades de se tornar uma
pessoa mais livre, no entanto ela cai numa armadilha. Tem liberdade, mas é
impossibilitada de romper com os costumes do universo feminino internalizados. Por
mais que tente, não percebe a liberdade vislumbrada. Isso está no romance como
fagulhas do fluxo da memória. A mulher estava presa ao modelo determinado pela
ditadura de Franco conforme descreve Nuñez Puente:
Las prácticas religiosas regulaban aspectos íntimos de la vida
privada, sobre todo de las mujeres, como el modo de vestirse,
de comportarse y em general de su actitud ante la vida.
(Nuñez Puente, 2004: 85)
No princípio da narrativa, a protagonista faz uma reflexão muito rígida em
relação a si mesma e a sua família, principalmente sobre sua mãe, com quem não
teve convivência, contudo não esquece o único momento em que filha e mãe
estiveram próximas. Nesse momento, suas memórias atingem o máximo de
intensidade com uma singularidade impressionante, ao falar do afeto materno recorda
com tamanha objetividade o carinho que recebeu da mãe, que, apesar de não se
60
lembrar dela fisicamente, não esquece o momento que marcou sua vida, uma volta ao
útero materno
Me parecia sentir precisamente un no sentir en algún sitio, un
tener una parte mía como perdida, como ciega. Era como si
estuviese pegada a algo que, aunque era igual que yo misma,
era inmenso, era algo sin fin, algo tan grande, que sabía que
no podría nunca recorrerlo entero, y entonces, aunque aquella
sensación era deliciosa, sentía un deseo enorme de hacerla
cambiar de sitio, de salir de ella, y me agarraba al fin.
( id. p. 10)
É perceptível a harmonia simbiótica que Letícia rememora entre ela e a mãe,
dado que essa atmosfera de ternura é o retorno ao aconchego do útero materno onde
sente sua mãe com fulgor. As sensações relembradas por ela são as que ficaram
registradas no seu inconsciente e, talvez, veio à tona nesse instante de extrema
sensibilidade. Tal fato lembrado pela protagonista é verossímil, já que agora ela está
mais madura e tem consciência de seu nascimento,
Recuerdo el ruido ligerísimo que hacía mi piel al despegarse
de la de ella, como el rasgar de un papel de seda sumamente
fino. Recuerdo cómo me quedaba un poco en el aire al
incorporarme, y seguramente entonces la miraba y ella me
miraría. (id. p.10)
Letícia sensibiliza o leitor e o convida a partilhar de suas lembranças a todo
momento, chamando-o à reflexão, para entender o que ocorrera, por que estava tão
entediada outrora e principalmente no momento presente.
Seu relato, então, recupera o momento vivido cinco meses antes de seu
aniversário de doze anos, objetivando chegar ao ponto exato que pretende desabafar
cuando era pequeña, oía hablar...” (Id. p. 9), “Me parecía sentir
precisamente un no sentír en algun sitio...” (Id. 9) Recuerdo
cómo me quedaba un poco en el aire...” (Id. 9) “Es raro: si
recuerdo lo que sentía...” (Id. p. 11) “Cuando yo preguntaba,
61
era un alzarse de hombros...” (Id. 12) “...yo pasaba la mayor
parte del tiempo con mi tía Aurélia...” (Id. p. 12).
Ao se lembrar dos momentos da infância, a tia que cuidava dela, a casa da avó,
os momentos em que passeava em Valladolid e até mesmo a professora particular nos
remete ao panorama da infância da memorialista menina. Letícia, ao retomar aqueles
meses, faz um contraponto com o momento presente “Esto río era pensar, pienso
ahora, para ver hasta donde llegan mis recuerdos, pero entonces era otra cosa,
enteramente otra cosa.” (Id. p. 17)
E a história se constrói a partir das lembranças cronologicamente ancoradas na
retomada de alguns meses, mas ainda na infância, como propõe Caballé em suas
explicações sobre relato do passado:
(...) a medida que avanza la cronología del relato aumenta la
fuerza de la invención. Y es que siempre resulta más fácil
asumir los compromisos con el niño del pasado que con el
hombre del presente.” (Caballé, 1995:116)
A narradora volta de forma decidida a partir das dimensões ainda infantis. Em
todos os espaços que ela retoma, conta com clareza a experiência que viveu junto às
personagens, pois o ser humano lembra dos fatos a partir das pessoas com quem
convivera, como sustenta Halbwachs (2006). Ou seja, conseguimos lembrar o que
vivemos, apoiando nossas lembranças no que os outros falaram. Dessa forma, temos
um registro mais verossímil. Ao visualizar a escola das Carmelitas, Letícia fala das
meninas que ainda tinham uma postura muito infantilizada, elas brincavam de
“comidinha” e não questionavam quase nada do que estava ao seu redor.
Depois dessa passagem, as lembranças se voltam para o momento do retorno
do pai que participava duma guerra, momento muito esperado pela narradora. Esse
instante é lírico para ela que havia se decepcionado com a família de um modo
geral e, portanto, projeta na figura do pai suas esperanças:
Cuando cambió todo fue a la vuelta de mi padre. Los días en
que se supo que estaba herido se animó todo el mundo en las
dos casas. Las noticias llegaban a la de mi abuela; mi tía y yo
íbamos allí y parecía que unos y otros teníamos ya algo que
hacer: esperarle, cuidarle luego. (Id. p. 20)
62
No fragmento acima, começa a aparecer o estado de tédio em que as duas mulheres
estavam e estariam mergulhadas. Como a tia não tinha objetivo de vida, vivia em
função de cuidar da sobrinha e, desta maneira, mergulhava na monotonia da vida e
sentia o mesmo que Letícia: a volta do pai da menina seria uma forma de ter algo
importante a se fazer. A expectativa de cuidar de alguém reanima-as do estado de
tédio de que elas estavam acometidas. Assim, a narrativa parece ganhar mais ação, a
narradora, nesse momento, escreve num tom mais alegre, seus sentimentos de
felicidade ficam mais claros, parece que as brumas que permeiam a narrativa diluem-
se quando ela fala do pai.
!Yo esperaba tanto de su llegada! Creía que él iba a
explicarme, que él iba a estar cerca de mi en todo lo que me
interesaba, que con mirarle solo comprendería aquellos
misterios, aquellos dramas que yo sabía que llevaba dentro.”
(Id. p.20)
Vemos no fragmento anterior o regozijo das duas mulheres que viviam de maneira
monótona em busca de algo que as fizesse sentir úteis para a vida. Essas lembranças
remetem à família núcleo que amarga as reflexões de Letícia, entretanto ela vai
chegar a essa conclusão no final da narrativa, por acreditar que pode ser diferente.
No entanto, o retorno do pai traz muitos transtornos às duas mulheres, Letícia e
tia Aurélia. Infelizmente ele volta doente e com marcas irreversíveis dos traumas da
guerra, além da deficiência física a perda de uma das pernas. Ele não quer viver na
cidade e é a partir desse momento que a família se muda para Simancas, uma vila
afastada de Valladolid. Um lugar simples e tranquilo, que beira o bucólico.
As lembranças de Simancas parecem ficar mais intensas, pois é o lugar que
permite à narradora reviver com mais força suas reminiscências. Ali estava mais livre
“yo dejé de ser el centro de la casa.” (Id. p. 22). Essa liberdade aos poucos fez com
que Letícia se interessasse mais pelo lugar e, mesmo negando a vila, busca uma
forma de sair do tédio que sentia, às vezes conseguia escapar de casa com o objetivo
de fazer algo necessário “... yo me escapaba; buscaba de cuando en cuando un
pretexto para salir...” (Id. p. 23).
Observamos que, ao mudar para Simancas, as memórias começam a obedecer
a uma cronologia mais clara, esse é o cenário próprio para começar a história porque
63
Letícia quer reviver esse momento e não outro. Ela tem um propósito nesse relato. A
partir de então, o leitor vai se deparar com mulheres que vão corroborar o estado
solitário e tedioso que rapidamente é apresentado nas primeiras páginas. Na verdade,
“ahora el no hacer nada lo hacía de otro modo.” (id. p.24).
3.2- O universo feminino nas memórias de Letícia
As personagens femininas da obra parecem sucumbir ante a vida. a jovem
protagonista tenta resolver fora de sua casa a carência de afeto e de comunicação
precárias em sua família. A memorialista extravasa com detalhes minúsculos sua
convivência familiar, seus interesses externos e suas inquietações na tentativa de
retomar reflexões sobre sua convivência com mulheres na pequena Simancas.
Letícia enfatiza o universo feminino, abordado com certa sutileza, mas de forma
clara: o abandono, o encerro, a rotina instalados nas mulheres que cercarão seu
universo. No desenvolvimento da narrativa, a protagonista apresenta a condição
existencial de cada mulher com quem teve contato, porque o ambiente no qual se vive
traz recordações mais vivas. A esse respeito Halbwchs afirma:
Nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca
e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a maneira como
são arrumados, todo o arranjo das peças em que vivemos, nos
lembramos nossa família e os amigos que vemos com
freqüência nesse contexto. (Halbwachs, 2006:157)
Letícia se lembra de diferentes espaços povoados por mulheres com costumes
e formação diversa. Todas elas estão presas em seu recinto familiar por algum motivo,
ou não tinham ideias de como sair do condicionamento no qual viviam há muito tempo,
ou poderia ser que a resignação imperava. A pequena Simancas, com sua estrutura,
suas tradições, as pessoas e seus objetos que as cercam nos dizem muito sobre o
grupo que vive ou viveu ali, pelas marcas que ficam contidas na interioridade, tal como
64
expõe Halbwachs, que “as imagens espaciais desempenham esse papel na memória
coletiva”, (Halbwachs, 2006:159).
O primeiro espaço que podemos observar é a casa onde Letícia morava,
havia as empregadas, o pai, a tia e ela; sendo a família constituída por mulheres,
porém dominadas por uma minoria masculina. Esta casa era a materialização do
próprio fastio. A menina se sentia muito aborrecida e se queixava de seu cotidiano “...
desde que caí en el pueblo, todo me dio igual: me levantaba sin llamarme nadie y en
cuanto oscurecía ya estaba deseando irme a la cama.” (Id. p. 25). O abandono, o
cansaço, o encerro são constantes que se manifestam não nas pessoas, mas
também em todos os espaços retratados pela protagonista; é um ambiente
caracteristicamente doméstico de total fastio.
A protagonista metonimiza a atmosfera do isolamento indolente configurado
nas personagens femininas submersas no ambiente doméstico. Ela descreve o
transcorrer do tempo e as ações das mulheres daquela vila que não tinham nenhuma
perspectiva de vida social ou cultural. A memorialista, sobretudo, reunia qualidades
que muitas mulheres não possuíam. Nas memórias fica claro que Letícia era uma
menina perspicaz, inteligente, questionadora e com um temperamento especial.
Sentia-se muito livre naquela pequena cidade, mas, ainda com liberdade sente que a
vida e a cidade não lhe oferecem nada interessante, chamando-nos a atenção para
uma reflexão que perpassa a essência humana e culmina, algumas vezes, no
metafísico, denunciando a monotonia da vida das personagens femininas.
É importante a decisão que ela faz quando vai estudar no colégio das
Carmelitas, aqui observamos um confronto entre o que era “ser menina” e sua singular
maturidade. Esse confronto é determinante para entendermos a precocidade da
protagonista que tem uma psicologia, às vezes, incomum para as meninas de sua
idade. No colégio sente horror” das meninas que ainda brincavam de “comidinha” e
de bonecas. A comidinha poderia remeter ao destino doméstico e a continuidade do
papel familiar que as mulheres têm como cotidiano: tornar-se uma esposa reclusa ao
lar para cozinhar, ter filhos, bordar e esperar o marido.
A protagonista nos coloca a par dos conflitos existenciais vividos por várias
mulheres naquele pequeno espaço em que a mulher existia para um único papel
social: o de esposa e consequentemente mãe.
Dessa forma, talvez o interesse de Letícia em escrever suas memórias, esteja
no fato de ela ser muito precoce e enxergar uma realidade obscura aos olhos de
65
outrem, mas não tem a maturidade para definir o que lhe era necessário, enquanto
crescia e recebia instruções de pessoas alheias e nunca de sua família. Em particular,
Letícia necessita que outras mulheres saibam que: a orientação e a afeição familiar
são primordiais à educação. No fragmento que segue, é revelada a falta de
comunicação entre ela e o pai:
Cuando quiero decirme a mi mísma algo de todo lo que
secedió, sólo se me ocurre la frase de mi padre: “!Es inaudito,
es inaudito!” Me parece verle en su rincón, metido em su
butaca, cogiéndose la frente con la mano y repitiéndola, y yo,
desde el mío, diciéndole sin decirle: “Eso es lo que yo estaba
queriendo decirte siempre. Yo no sabía decir que todo lo mío
era inaudito, pero procuraba dártelo a entender, y de todo
decías que no tenía nada de particular. (Id. p. 7)
Nas lembranças da narradora-protagonista deslindam, num mesmo contexto,
mulheres que desistiram ou não tiveram discernimento para perceber sua própria vida.
A professora ensina às meninas a arte da costura e as delicadezas que eram próprias
da mulher, para refletir a história das mulheres até o infinito, quer dizer, a mestra,
conforme exigia o meio, ensina Letícia a bordar, e Letícia na sua vontade de viver
conta histórias e canta para todas. É nesse momento que a professora projeta na
menina a possibilidade de mudança, indicando-lhe Luisa, professora de música e
esposa de D. Daniel, para receber aulas de música.
Ao sair da casa, Letícia conhece Luisa, professora de música, entre ambas
estabelece-se uma relação especial. Em suas recordações, a narradora confessa que
Luisa era uma mulher diferente, havia algo nela que a seduzia por que lhe oferecia
tudo que a garota desejava.
Em outros termos, Letícia ficou deslumbrada com Luisa, ao ponto de fazer uma
minuciosa descrição dela, considerando todos os aspectos que lhe saltaram aos olhos
naquele primeiro contato. Em contrapartida, vemos que o mesmo ocorreu com Luisa,
pois, em troca, deixa sua casa à disposição da menina. Entre outras coisas, Letícia
encontrou naquela casa a família perfeita: pai, mãe e irmãos. A passagem que segue
é pertinente para entendermos esse sentimento tão forte surgido em ambas:
66
Cuando le decir “adiós, querida”, me di cuenta de que no
era castellana. Su desenvoltura me deslumbró; no era
elegante como algunas señoras de Valladolid que yo
admiraba, no si se puede emplear aquí esta palabra, pero
yo diría que era mundana. Ya que doy a esto un sentido
que no es el que se le da generalmente: para , mundana
quiere decir que no tiene la manía de estarse quieta que tiene
toda mí familia. Tampoco tenía el aire de viajera de mi primera
profesora. Bueno, aquélla era una princesa, pero tenía algo de
persona emprendedora. Llevaba un vestidillo de vuela que se
le desabrochaba por todas partes y tenía puesta unas chinelas
de tafilete rojo que hacían que sus tobillos resultasen aún más
huesudos.
Esa fue mi impresión cuando la miré al marcharme, a la puerta
de su casa. Había un cerco oscuro, entre azul y verde,
alrededor de sus ojos grises muy grandes. Sólo por tener
aquellos ojos ya se podía decir que era muy guapa, y en
realidad lo era. Estaba mal peinada, de un modo gracioso, y
tan delgada que parecía que en vez de estar criando a un hijo
estuviese criando diez a un tiempo. (Id. p. 32)
Ao observarmos as descrições minuciosas do primeiro encontro, no trecho, temos a
evidência do relacionamento cordial que a protagonista teve com a professora de
música. Letícia vislumbra em Luisa a família que sempre buscava. na professora a
possibilidade de sentir a afeição materna que nunca sentira, e que tanto a deixava
solitária, infeliz e em constante busca.
É interessante notarmos que a mistura do tempo traz as reflexões do estado de
Letícia e da própria professora que à primeira impressão mostra-se uma pessoa
diferente e feliz, porém no decorrer da ação revela resignada:
(...) después, fui viendo que su cara era siempre igual; no
podía cambiar de expressión sino en algunas ocasiones muy
graves, en las que aquella misma franqueza se hacía ruda, y
su voz, que en general era suave, se hacía chillona. Yo no vi
nunca más que momentos pasajeros de ese aspecto suyo,
pero ahora estoy segura de que se habrá quedado así para
siempre. (Id. p.32)
É interessante nesse momento, quando ela se volta ao presente da narração e
tece considerações do condicionamento ao qual Luisa ainda se submete:
67
(...) la casa probablemente sigue igual. (…) Si pienso en esto
acabo por perder la fe. Me vuelve loca esta soledad; que este
yo aqui con mi desesperación y otros en otro sitío con la suya,
y que al mismo tiempo las cosas se queden como estaban.
Porque entonces pienso: aquella luz de otras veces, aquel
ambiente, no querían decir nada, no estaban hechos para mí.
(Id. p.32)
A alternância entre o tempo presente e o passado cria momentos de tensão,
exacerbados pelo estado emocional que aflora na narradora, pois, ao se lembrar de
Luisa, a atmosfera é de muita solidão e piedade. que via na amiga uma relação de
puro amor: o de estar junto e sentir uma a outra como se a priori lembrasse da mãe.
Sentia em Luisa a mãe ausente e questiona o porquê de tanta recusa por parte dela
em se libertar do ambiente familiar. Luisa sucumbe à imposição social. Em troca, o
havia nada que abalasse a condição social daquela mulher em que a ideologia do
momento estava tão arraigada.
Enfim, Luisa, a personagem que tem uma ligação mais próxima com Letícia,
também está resignada. Apesar de ser intelectual, a professora de música, não
extrapola o espaço doméstico, nem mesmo quando acontece a tragédia, o sumiço do
marido. Nas memórias de Letícia fica o questionamento: será que antes era assim
também? Na verdade, era, por isso Luisa sentia felicidade ao lado da narradora, pois a
força de viver e a alegria da menina de onze anos a tiravam do estado letárgico o qual
vivia há anos. Ao reviver o acontecido, a maturidade que a faz refletir sobre os
sentimentos da amiga, permite perceber que, apesar de tudo que aconteceu, a casa
continuava a mesma, o ambiente não mudara
Na matriarca da família de Letícia, temos uma senhora forte que passa a
tradição da postura da mulher às demais da família. O ambiente no qual elas vivem é
marcado pela desesperança. Além de não terem intenção de sair à procura de sonhos,
as mulheres vivem somente para o papel que lhes é designado pela sociedade
machista: devem ser boas esposas e se entregarem às tarefas domésticas como
bordar, fazer artesanatos, lecionar...
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Mi pobre tía me sacaba a pasear todos los días, y siempre,
antes o después de nuestro paseo, nos deteníamos en casa
de mi abuela. Allí era donde había grandes conversaciones
alrededor de la camilla. Las tías se entretenían en hacer
encaje de Irlanda, calados de Tenerife: tenían la habitación
inundada de cestillos y bastidores. Yo me asfixiaba allí, y (...).
(Id. p. 12-13)
Aurélia era a tia que cuidava da educação da menina. Contudo, Letícia não lhe
obedecia pois a Aurelia, “era la menos aficionada a hablar” (Id. Ib.). Era uma
solteirona que falava pouco e tinha poucas amigas em Valladolid, levava Letícia aos
lugares que ela necessitava ir, mas em Simancas a deixa à vontade e a garota se
encarrega de ir e vir conforme seu desejo. E, quando a avó determinava que a tia e
Letícia tivessem de comprar coisas ou de explicar algo, a tia Aurélia deixava a cargo
de Letícia: ela tinha uma memória prodigiosa”. Isso vai conduzindo o leitor a confiar
nela, pois com uma boa memória se lembraria de tudo mais fielmente.
Outra personagem também plana (Candido, 1981) é a professora primeira de
Letícia, a que percebe seu talento musical. Essa personagem é a representação da
própria solidão
¡Era tan extraña para mí aquella señora! Yo no me había
sentido nunca confusa delante de mi profesora cuando era
pequeña.(…) Las primeras lecciones fueron tan angustiosas
para ella como para mí: preguntas y respuestas que se iban
consumiendo poco a poco, y, al cerrar cada libro, un carpetazo
como un suspiro de descanso. (...) Intenté mil veces sacar
alguna conversasión que me diese una pista de sus gustos o
de sus habilidades: inútil. La pobre se escondía porque sabía
que su instrucción era muy escasa y no quería perder su
autoridad cometiendo algún error. (Id. p. 25-26)
O excerto mostra que a professora é uma pessoa que carece de companhia e, nas
férias da escola mantém outras duas meninas e Letícia como companhia, agradando-
as para mantê-las nas tardes tediosas. Nesse grupo outra personagem revela vontade
de se lançar à vida, é a menina mais alta, que chama a atenção da narradora, mas
que ainda não tem discernimento sobre os conflitos existentes.
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Em contrapartida a personagem Frida, uma tia, foge à normalidade, é uma
mulher viajada e estudada. Formada em arqueologia o que a levava a ter curiosidade
em conhecer os lugares que remontavam à memória de um povo.
A mi tía, con sus estudios arqueológicos por el Mediterráneo,
le gusta mucho enseñarme a sus amigas. Vienen
generalmente unas cuantas a tomar el con ella, junto a la
chimenea, y luego hacen tricot y charlan todas a un tiempo.
(Id. p. 168)
No entanto, era uma mulher entregue a esses deleites, sem uma função social.
Havia um vazio nela que a fazia falar sem parar e, além de não se importar com os
negócios da família levava uma vida fútil, que sua condição financeira permitia e,
nessa esteira, tenta levar sua filha Adriana, uma menina que aprende o que era
determinado para a mulher dessa classe social desde cedo: dançar, falar línguas
diferentes e viajar. O que fica claro nessas duas personagens que aparecem em meio
à ação narrativa, é o contraponto com as mulheres que habitam Simancas, porém
todas, apesar da diferença cultural, estão resignadas e entregues ao seu vazio
existencial, não vislumbram uma vida melhor nem qualquer liberdade de escolha.
3.3- As marcas singulares da escrita de memórias em Memórias de Letícia Valle
Sabe-se que para escrever é preciso sistematizar o que se pretende expor,
como Letícia necessita escrever por questões emocionais, ela tem de encontrar um fio
que conduza à seqüência dos fatos “Pero? A qué conduce este discutir? Estamos muy
lejos, como siempre estuvimos, con la diferencia de que ahora la distancia es una
ventaja para mí.” (Id. p.7-8) se pergunta indecisa.
Ela tenta ir por muitos caminhos, e, em meio a reflexões, lembra-se de vários
fatos na tentativa de dar sequência a eles, mas não consegue ter clareza sobre o que
de fato planeja fazer em princípio, pois a memória, fluindo intensamente, deixa-a
confusa, e ela fica entre um eu narrado e um eu narrador, “Claro que si ahora lo que
ha pasado te parece inaudito es porque sigues creyendo que anteriormente nada tenía
70
nada de particular.” Diz a si mesma (Id. p. 3) e “Aquí ya no pueden quitármelas,
ellas pueden irse; aqui seran como yo quiera, no pueden estas otras que están de
veras a alrededor; las veo, pero me niego a creerlas.” (Id. p. 8), dando se ela
mesma a resposta às dúvidas e incertezas.
Ainda no início da narrativa, Letícia fala do que sente no presente. Mora com a
tia Frida e sua família; ela se lembra de Adriana e dos deveres que terá de assumir em
relação aos estudos. Notamos, então, certa rebeldia em relação ao contexto em que
está vivendo, ao procurar pela liberdade que ainda não encontrou:
tengo que aprender de prisa el alemán para poder seguir los
estudios con ella. No aprenderé el alemán, ni esquiaré, ni
estudiaré nada. No iré por ese camino que me marcan, no
seguiré a ese paso. (Id. p.8-9)
As recordações sobre a mãe são emotivas, por isso ela ancora no nascimento
o princípio de tudo, ainda mais no caso da protagonista, que não conheceu e nem
conviveu com a mãe:
Esto me atormenta más que nunca cuando quiero hacerme
una idea de cómo sería mi madre. Cuando era pequeña, oía
hablar de ella y me decía a misma: No era así, yo recuerdo
otra cosa, pero ¿qué es lo que yo recordaba? Nada, claro,
nada que se pueda decir ni siquiera oscuramente. La verdad
es que nunca pude recordar cómo era madre, pero
recuerdo que yo estaba con ella en la cama. (Id. p 10)
Desde criança Letícia tentava entender sua vida, buscava respostas e sempre
vivera em função do que a família determinava – os tios, as tias, a avó, e nunca o pai e
a mãe –, por isso a recordação mais forte e mais viva está no lirismo das lembranças
da mãe:
71
Por muchos años que pasen, no se me borraeste recuerdo,
y puedo hundirme en él tan intensamente, sobre todo de un
modo tan idéntico a cuando era realidad, que en vez de
parecerme que cada vez lo miro más desde lejos me parece
que, al contrario, algúna pasaré más allá de él. (Id. p. 10)
A lembrança citada destaca um momento de puro lirismo na novela, porque era a
única lembrança que tinha da mãe, tanto que Letícia, se lembrava das sensações e
não das imagens que normalmente são mais fortes. Por isso ela só começa a escrever
depois da organização das recordações nebulosas, pienso ahora, para ver hasta
dónde llegan mis recuerdos.” (Id. p.17).
As marcas das memórias estão mais fortes quando ela nos fala da afeição
materna e paterna, lembrava-se da mãe por sentir o calor e o aconchego no útero;
enquanto a relação paterna era a possibilidade de sentir mais afeto, não obstante, o
pai também ser desprovido de afeição, na verdade era um homem amargo e
injustiçado pela vida, visto que fora um combatente de guerra que volta debilitado e
infeliz. O pai não realiza o desejo da filha que tanto o esperava, e a decepção é
tamanha que ela abdica de sua participação em sua vida:
Pero no fue así, y no es que él se apartase, no; me quería
mucho, quería tenerme siempre co nél, pero no quería que le
preguntase. Mi mirada, mi ansiedad, yo creo que le hacían
daño. No tenía valor para recordar. ( Id. p.20)
Outra importante marca de memória é a que vai permear as lembranças da
residência da professora Luiza e D. Daniel, mais acentuado a princípio em Luisa.
Quando Letícia a vê, surge um sentimento materno mesclado com um erotismo, “signo
da harmonia, da conjunção dos opostos e, sem dúvida, da fecundidade”, declara
Chevalier (2003:376). Tais sentimentos embebedam a protagonista, nesse lugar ela
pretendia ser feliz e se apropria da atenção de Luisa que projeta também em Letícia o
que gostaria de ser. As recordações de Letícia revelam o acolhimento de Luisa:
Recordaré siempre que al despedirnos en la puerta me dijo:
“Ya sabes, puedes venir desde mañana a eso de las seis.
Bueno, puedes venir a cualquier hora; adiós, querida.” (...)
72
Doña Luisa se puso a enseñarme todo la casa antes de que
yo mostrase interés por ella. ( Id. p.32-33)
Luisa vive suas emoções através da menina, é como se ela voltasse ao
passado e tivesse a chance de ser uma mulher feliz, talvez porque Letícia tivesse se
interessado de forma especial por ela. No primeiro momento em que elas se veem, a
protagonista se deslumbra diante de uma mulher tão formosa, e com um ar de
princesa, mas ao mesmo tempo “mundana” com a conotação de mundo, daquela que
o está sentindo. Ambas convivem de forma harmoniosa, a amizade transcende o nível
ordinário. Elas nutrem uma pela outra algo mais forte que uma simples amizade entre
uma professora e uma aluna.
Letícia, em suas lembranças, faz uma descrição minuciosa de Luisa.
Observamos na sutileza das descrições a atmosfera de amor, afeição, erotismo e
solidão do sentimento que ficara nas memórias. O tempo da memória nos conduz ao
que Halbwachs sugere:
horas mortas, dias vazios, enquanto em outros momentos,
seja porque os eventos se precipitam seja porque nossa
reflexão se acelera, ou porque estivéssemos em estados de
exaltação e efervescência afetiva, temos a impressão de viver
anos em algumas horas ou alguns dias. É o que acontece
quando se compara muitas consciências a um mesmo
momento. (Halbwachs, 2006: 116)
Nesse excerto, apontamos a relação que Letícia nutre por Luisa e, ao final da
narrativa, a protagonista não aceita ver a amiga infeliz, apesar de tudo que viveram
juntas.
Nas considerações da narradora, Luisa deveria se transformar em uma mulher
diferente depois da tragédia: estava livre. Poderia mudar de cidade, de vida, mas se
entrega ao vazio, e no presente Letícia a sente mais solitária e entediada,
73
su cara era siempre igual; no podía cambiar de expresión
sino en algunas ocasiones muy graves, en las que aquella
misma franqueza se hacía ruda, y su voz, que en general era
suave, se hacia chillona. Yo no vi nunca más que momentos
pasajeros de ese aspecto suyo, pero ahora estoy segura de
que se habrá quedado así para siempre. Aquella mirada de
confianza no volverá a repetirla nunca. (Id. p. 32)
Ao falar de Luisa, ela traz todas as recordações para o tempo presente e, ao mesmo
tempo em que o descreve, reflete sobre a condição de vida daquela mulher que repete
a história das mulheres viúvas.
Na construção das lembranças, Letícia revive o que ocorrera entre ela e o
professor D. Daniel, naquela casa de onde não saia mais. O tempo passado começa a
correr cronologicamente depois que Letícia passa a estudar música e História com D.
Daniel. Assim a narrativa ganha marcas temporais
Ya en los últimos días de noviembre.” (Id. p. 40); No recuerdo
cómo terminó aquella tarde, pero si que yo perdí mi
tranquilidade. (Id. p.43); Tenía el recuerdo de haberlo hecho
otras veces. (Id. p.47); Cada vez que recobraba la conciencia
me decía a mi misma que había sido tal el embelesamiento de
aquella tarde que no podría fácilmente borrar la impresión. (Id.
p.48) ; El año había terminado, pero no cambió nada, no se
empezó una vida nueva. (Id. p.73); El mes de marzo ya fue
diferente. (Id. p.74); Y nuevamente por aquellos días yo volví a
retroceder, pero no hacía el atontamiento como durante el
invierno; más lejos: volví a reanudar las fantasías, los
ensueños de cuando era pequeñísima. (Id. p.78).
Uma marca importante é quando Letícia mistura o tempo presente com o
passado, questionando o que fizera e quem fora. Nesse momento ela tem a certeza de
que em tudo que viveu não poderia ter sido diferente. Os parentes, entretanto,
pressupunham que a tragédia seria algo premeditado dado se tratar de uma moça que
iniciava a vida e de um homem maduro e experiente.
Ao término do relato, Letícia percebe que não conseguiu desabafar o
necessário, ainda está infeliz. No entanto, de alguma forma, sente-se, fazendo
previsões em favor de sua vida. Nada parece ter adiantado ter relembrado, ela contou
74
suas memórias de forma fragmentada, apresentou momentos mais intensos, contudo,
ainda estava transtornada e extremamente sozinha:
En el día de hoy, ya distante de los hechos, puedo traer a la
memoria aquellos momentos de agitación reviviendo sus más
pequeños detalles, porque la que actuaba en ellos era yo
misma, la que soy ahora; pero el día después, ¿quién era yo el
día después? Sólo puedo recordarlo como se recuerda lo
ajeno, como si me hubiera visto a misma, desde una
ventana (…) Yo no era más que un muerto que andaba. (Id.p
138); Ahora es muy otra cosa lo que me queda por decir. Si
pudiese seguir llenando páginas con los detalles olvidados de
imágenes o de pensamientos, eso significaría que la vida
continuaba; pero no, no continúa. (Id.p.158); “Podría dar por
terminado el relato. Estamos ya en el mês de marzo.
(Id. p.166).
O levantamento das marcas memorialísticas nos esclarece a genialidade e o
experimentalismo de Chacel, ao iniciar a leitura da novela nos deparamos com um
passado marcado pelo verbo no imperfeito, conduzindo-nos a um cenário de muita
solidão, tédio e reflexão a partir de momentos relembrados, pois conforme Perrot, os
modos de registros das mulheres estão ligados à sua condição, ao seu lugar na família
e na sociedade” (2005:39).
Outra questão que sobressai ao texto memorialístico é o envolvimento que
temos de fazer com a narradora em relação à solidariedade que ela nos reclama, pois
está definitivamente só. Consegue passar uma angústia existencial, apontando o
mesmo drama de outras mulheres com quem convive, e também acometidas pelo
mesmo estado, porém estas não conseguem perceber tal fato e Letícia, além de
percebê-lo, descreve-o e reflete sobre ele: o isolamento das mulheres daquele lugar.
Por isso ela conclui o relato apontando por que escreve e por que se sente bem ao
fazê-lo
De pronto me acuerdo... No, eso no lo escribiré. Descobrí
todos mis sentimientos sublimes hasta que desembocaron en
aquello, porque para eso lo hice: para que se viese dónde
fueron a parar. De lo de ahora no quiero decir nada, no quiero
que resulte conmovedor mi sufrimiento; al contrario, si sigo
escribiendo es sólo porque no quiero pasar por alto esta red
de detalles grotescos que se teje alrededor mío, para mi bien.
(Id. p 168)
75
3.4- A personagem Letícia Valle: representação do real
A personagem é considerada um dos elementos mais importante e mais
maleáveis da narrativa. Na obra A poética de Aristóteles, a personagem é a imitação
do real. No entanto, no século XIX, com surgimento do romance psicológico esse
conceito é ampliado, pois a necessidade de uma nova postura frente ao que estava
nascendo ganha direito a revisão. O romance moderno exigiu, então, novas pesquisas
e estudos voltados à sua interpretação.
Na modernidade não se tem mais o herói eloquente totalmente previsível e
vencedor ao final da narrativa. Na verdade, com a decadência dos ideais franceses, o
herói mudou de postura, a personagem protagonista passou a ser criada a partir do
homem comum. No século XX, com efeito, os formalistas russos criaram a teoria para
o estudo da personagem, na concepção deles a personagem não é a imitação do ser
real, mas um ser constituído e com existência apenas dentro do texto. Sua criação
postula a partir da linguagem e assim ganha “fisionomia própria”.
Por certo, a teoria da literatura contribuiu para o novo romance nascido no
século passado. As considerações frente à personagem constituíram uma ferramenta
a mais na interpretação do romance moderno.
Na perspectiva de Aguiar e Silva (1986: 686), a personagem constitui um
elemento estrutural indispensável à narrativa, visto que é a personagem que dará ação
à narrativa. Dessa forma, é imprescindível que sua criação sobressaia ao contexto
narrativo, obtendo, assim, prestigio social. No âmbito dessa teorização, Brait (1985:
11) afirma que a personagem é um problema linguístico e sua construção parte da
representação também de pessoas, que o texto será seu espaço e o autor deverá
criá-la linguisticamente para que possua vida própria e obtenha vivacidade extratexto.
Cândido (2004) assegura que depois do término da leitura de um romance o
que sobressai é sempre a personagem, devido à relação que o ser ficcional tem com a
pessoa real. Com efeito, a personagem é a comunicação entre o ser real que se
apossa da ficção, discutindo um problema social.
Letícia é a personagem principal e a heroína da novela em estudo, segundo o
que Moisés (2004) dispõe sobre a personagem. Sendo, então, a protagonista (Aguiar
e Silva, 1986) e, por se tratar de um romance em primeira pessoa, também se
configura como narradora. Portanto está na ação como personagem-narradora,
76
contando-nos por meio da primeira pessoa, dando mais veracidade ao fato narrado,
pela profundidade da qual extrai os sentimentos mais íntimos, ainda que sejam
fragmentados. Bosi afirma que o “eu que se dá no texto é apenas o sujeito do
enunciado gramatical como também o sujeito da enunciação, logo objeto e mola da
criação ficcional” (Bosi, apud, Dal Farra, 1977: 12)
Letícia pode ser considerada como uma personagem mista, pois em seu relato
vemos a vitalidade crescente no seu cotidiano. Apesar de sentir muita falta de
referência familiar, gosta de viver, pensa na liberdade, envolve-se com as artes,
dispõe-se a participar das festividades na escola, momento em que declama um
poema.
Projetada como personagem esférica (Cândido, 2005), por revelar de forma
interna sua vida interior, Letícia mostra-se tomada de uma alegria e intensidade na
forma de viver, está sempre em busca de algo necessário à sua plenitude. Suas
descrições físicas são poucas, no entanto o que ela deixa transparecer por meio do
seu discurso, chama a atenção, porque ainda menina lança-se a vida e, dotada de
uma alegria ainda infantil, percebe-se e sente-se mulher. Busca seus anseios porque
sua energia lhe permite e sua alegria como seu próprio nome significa –,
acompanhado do sobrenome Valle indica seus anseios, como se tivesse um imenso
descampado por descobrir.
Letícia ganha liberdade para decidir o que quisesse fazer, e, com o objetivo de
estudar música, consegue a permissão de sua família para ter aulas com Luisa. No
entanto, as aulas de música ficam de lado, ela encontra naquela casa o que sempre
lhe faltou, a estrutura triangular de uma família perfeita: pai, mãe e filhos. E, dessa
forma, aproveita para se adentrar na casa e usufruir de afeto familiar, por isso vai
estudar História com o marido da professora.
Em seu rememorar fica explícito todo seu domínio sobre si mesma, acaba
sendo seduzida, porque com muita liberdade, não enxerga as complexidades que a
vida oferece. Mesmo no presente da narração, mais madura, tenta ser autoritária
consigo mesma, rebelando-se em relação aos estudos, diz que não fará aula de
alemão, nem vai esquiar e nem vai estudar nada, assim mostra sua capacidade de
perceber-se livre e independente. Letícia, então, faz reflexões voltadas para as coisas
divinas. Diz que a vida pode ser algo que vem e vai e finaliza “Deus é o principio e fim
de todas as coisas” (id. p.5). Vemos então que o plano para o qual chama a atenção é
um plano universal.
77
Outro fato importante é retomado pela lembrança de como rezava no escuro,
essa escuridão podemos relacioná-la com a obscuridade dos fatos que a acometeram
e que ela precisa revelar. Com efeito, reza no escuro e, ao abrir e fechar de olhos se
perde de si mesma, portanto toca-se atenta para ver se está mesmo por ali como se
se sentisse nula e sem referência.
Ao pensar na escuridão sente angústia e reza. Interessante essa recordação,
pois muitos já viveram o pânico de não enxergar quando a escuridão os faz perder-se
de si mesmos. Na verdade, conforme Svendsen é no estado de “insônia em que o “eu
perde sua identidade na escuridão, preso num vazio aparentemente infinito” (2006:13-
14).
Assim, ela se lembra de fatos que foram relevantes para seu
autoconhecimento. Ao se dispor a escrever suas memórias, precisa pensar sobre o
que fora vivido, por isso o estado antitético em que se encontra é ressaltado, com uma
afirmação veemente: “Sinto tal necessidade de pensar por conta própria que, quando
não o posso fazer [...] acolhe a [ opinião] dos outros como se fosse um ser sem
“sentimentos” (id.p. 6)
A heroína faz uma analogia bastante interessante com o mito de Narciso,
sabemos que Narciso se interessava apenas por si mesmo, essa analogia faz com
que, em suas memórias, Letícia reveja a si mesma. Na verdade, as memórias devem
suscitar os fatos num determinado momento histórico com o objetivo catártico, como
argumenta Caballé (1995: 108/109), portanto a narradora está olhando para dentro de
si, para depois mudar, transformar-se em outra pessoa mais polida humanamente.
Apesar de ser perspicaz e atenta a tudo ao seu redor, Letícia mostra, através
de suas memórias, como se sentia desnorteada com o que sempre lhe ocorria no dia a
dia, lembrava-se do estilo de música que as amigas da tia Aurélia tocavam: Fugas,
estilo musical que é toada a muitas vozes. Essa analogia com fuga mostrava ainda
uma menina que pensava em muitos questionamentos para os quais não obtinha
resposta de ninguém. No entanto às vezes a mulher que tentava sair de dentro dela
falava mais alto. Em determinado momento em que não tinha maturidade para
entender certas coisas, via-se criança e elucubrava sobre o assunto; em outro
momento apresentava uma maturidade além do normal.
Na verdade, está a genialidade de Chacel: constrói uma personagem
protagonista memorialista e por meio dela metonimiza o comportamento do universo
feminino espanhol, com suas angústias, problemas, dores, sem saída, etc. Assim,
78
observamos os fragmentos que surgem no início da narrativa. Segundo Cândido, ao
falar da composição da personagem, “Cada um desses fragmentos, mesmo
considerado um todo, uma unidade total, não é uno, nem contínuo” (Cândido, 2005:
56).
Em suas memórias, Letícia busca incessantemente a liberdade que a leva a se
envolver com a professora Luisa e com o D. Daniel, porque, até então, ela vivia
cercada de cuidados com a vida regrada dentro das convenções sociais determinadas
por sua família.
Letícia se lembra que, ao instalar-se em Simancas, apresenta-se um tanto
insatisfeita com a mudança repentina. Porém, vai se adaptando e fazendo amizade.
Portanto em determinado momento da ação, Letícia é convidada a participar de um
evento promovido pela professora de música, e nesse contexto, vemos que ela se
entrega a essa apresentação com entusiasmo. Letícia se sente muito feliz nesse
contexto em que declama o poema:
Si es difícil en cualquier caso medir el aliento que hay que dar
al primer verso, mucho más lo es en La Carrera, pues el
poema se desboca en las primeras palabras con el impulso de
un caballo que no obedece al freno. (Id. p. 127)
Observamos que Letícia aproveita esse momento artístico para dar vazão aos seus
sentimentos, apresentar-se diante de uma plateia eleva seu estado espiritual, junta-se
o desejo de estar no palco, mostrar seus conhecimentos poéticos e sua arte de
declamar e o intento de se dirigir indiretamente ao professor, quer dizer uma figura
feminina de Narciso.
En los cuatro primeros alejandrinos ya me sonó a mi misma mi
voz como un galope, y en seguida me esforcé en suavizar lo
que había oído al médico llamar la monotonía onomatopéyica:
no me fue difícil. Después de sugerir el ímpetu del caballo,
empieza la descripción de las imágenes airadas que pasan
junto al rey moro.” ( Id. p. 127-128)
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Apesar do nosso objetivo aqui ser o de tratar da produção de memórias, não podemos
desconsiderar o diálogo entre Memórias de Letícia Valle e a obra A la orilla de um
pozo, (1936), um livro de poesia que trata da amplitude literária de Chacel, a temática
clássica e autobiográfica. Observemos as imagens presentes no fragmento do poema
“Narciso” do livro citado:
¿Dónde habitas, amor, en qué profundo
seno existes del agua o de mi alma?
Lejos, en tu sin fondo abismo verde,
a mi llamada pronto e infalible.
Nuestras frentes unánimes separa
frío, cruel cristal inexorable.
O poema escrito anteriormente à obra em estudo, remonta aos anseios de
Letícia, pois no início da narrativa quando Letícia participava do momento
feminino na casa da abuela, sentia vontade de sair às ruas para comprar o
necessário para os afazeres domésticos. Às vezes se envolvia com outras
questões que a faziam refletir. Considerando o poema “Narciso”, Letícia se
sentia feliz e pensava na Grécia e particularmente em Narciso. Sabemos que
Narciso é a figura mitológica que possui uma beleza extremada e, por isso,
acabou se frustrando, porque se apaixonou por si mesmo ao ver sua imagem
refletida na água. Por isso sofre com a contrariedade da natureza humana que
tem como condição se apaixonar pelo “outro”. O reflexo da imagem de Narciso
remonta ao vocábulo refletir, que na sua denominação latina significa
reflectere: voltar para trás; nesse sentido, voltar requer um olhar particular para
si mesmo, entrando em contato com uma parte que desconhecemos de nós
mesmos ou algo que ainda nos é obscuro. Percebemos que Letícia, no início
do relato, prepara o leitor para algo que está no seu subconsciente que será
revelado nas páginas que seguem. O que deve ser ressaltado aqui é a ligação
de uma obra com outra. A autora conseguia manter um diálogo entre suas
produções literárias. O romance dialoga com o poema “Narciso”, mito referido
nas lembranças de Letícia, apresentado uma visão do eu interior.
Diante de tanta liberdade e com tantas coisas por descobrir, a narradora se
projeta em várias ambiências domésticas. A partir de suas lembranças, vemos que
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cada espaço determinado à mulher, era nebuloso, frio, tedioso e solitário, segundo
Perrot, a mulher “é uma memória do privado, voltada para a família e para o íntimo”
(2005:39). Contudo, a protagonista consegue ir bordar com as meninas na casa da
professora e obtém a permissão de sua família, que lhe compra o material necessário
para tal empreitada, o que nos remete ao universo feminino permitido e delimitado
pela sociedade da época.
Nas lembranças de Letícia revive-se o primeiro contato um tanto intrigante,
entre ela e o professor Dom Daniel e, de uma forma sutil, Chacel apropria-se de uma
situação corriqueira entre um adulto e uma criança para indicar o que está por vir:
Todas [chicas] en coro alrededor de doña D. Luisa, cuando
apareció su marido en la puerta. Le acompañaba el médico, y
doña Luisa se abalanzó a saludarle, buscando pretextos para
disculpar el descuido en que la encontraban. Ponía las manos
en los hombros del médico y le decía “Ay, doctor, estas
muchachas me tienen loca!” Pero miraba a su marido y yo veía
que tenía ansias de preguntarle: ¿ Qué hora es?” (Id. p. 33)
Em meio à bagunça que as meninas faziam, D. Daniel carinhosamente segura
em suas mãos um punhado de cachos dos cabelos de Letícia e aperta-os próximo ao
pescoço dela e diz que ela é a aluna que dá mais trabalho, pois tem juba de uma fera.
Assim somos colocados diante de um momento de muita afeição e amizade entre ela
e D. Daniel, seria ele a preencher o espaço vazio que o pai deixara?
Letícia se lembra também da bondade do arquivista para com ela, pois a
pedido da esposa, aceita administrar aulas a ela e, a partir daí, a narradora faz
considerações importantes, sobre esse sentimento o qual fora envolvida. De D. Daniel
recebia educação, orientação, afeto..., fora seduzida pelo amor que não recebia do pai
e da tia Aurélia.
Na mesma noite do dia em que Letícia se põe a estudar como sempre fizera,
seus pensamentos se voltam sempre a se lembrar do seu novo professor,
atrapalhando os exercícios dados como tarefa, pois es sempre embriagada nas
lembranças daquela tarde marcante. No entanto, logo a seguir diz que tudo isso é
mentira, na verdade o responsável seria o embrutecimento que contraiu em detrimento
da preguiça em estudar. Percebemos que as emoções da narradora são contraditórias
em alguns momentos, mas são coerentes ao final do relembrar. A narradora tenta nos
81
manter numa linha sequencial de ações, mas ela mesma se encarrega da contradição,
pois está presa às lembranças que gostaria de esquecer, um dos motivos dos conflitos
que a acometem, por isso escreve.
Letícia se descobre diferente depois do primeiro encontro com D. Daniel, o que
a leva a confessar: “Me abandonaba a pensar en aquellas cosas que me envolvían en
un encanto, en un calor...[...] Me había zambullido de tal modo en el mundo de las
mujeres [...] Ya me di yo cuenta de que allí empezaba una nueva fase facultad ”( id. p.
49). Essas passagens são relevantes, porque a narradora admite estar se
desenvolvendo e se tornando mulher. Lembrava-se também do afeto e da experiência
que tivera com sua mãe, por isso se deixava levar por sensações de bem-estar em
relação a ambos Luisa e o marido. No fundo o que sentia naquela casa que a
acolhera era afeição por todos da família, inclusive pelos filhos do casal. Após estes
entremeios, Letícia relata sua rotina na casa do diretor do Arquivo, esta rotina segue
em harmonia, até que o professor começa a nutrir por ela um desejo diferenciado,
explícito em suas memórias.
Na verdade, as insinuações por parte de D. Daniel em relação à menina
encontram barreiras depois de Luisa sofrer um acidente, assim, uma quebra na
narrativa que será a preparação para o desfecho. Até o acidente, Letícia não
compreende as aulas do professor e se deixa levar pelo seu afeto, até porque não
consegue se livrar dos sentimentos que estão fervilhando entre ambos.
Enquanto Luisa e D. Daniel estiveram fora por conta do acidente, Letícia se
sente na mais extrema solidão, vai de um lado a outro aguardando o casal retornar do
hospital. Nesse ínterim, Letícia se encarrega de repensar sua vida. Permanece horas
e horas na ponte vendo as folhas que vão descendo rio abaixo. A ponte tem uma forte
simbologia, pois representa a passagem de um momento a outro, e ela parece não ter
condições de fazer a travessia. De fato, está tão envolvida que se transporta para o
lugar físico e psicológico de Luisa, sentindo todos os cuidados do professor. Ademais,
faz considerações melancólicas, confessa segredos, tem dúvidas e, nessa inquietude,
não vê outra saída senão escrever, porque mergulha na memória para suprir a
necessidade de escrever, assim se entrega aos acontecimentos do passado, tentando
capturar todos os motivos que a angustia.
Nesse monólogo interior intenso, Letícia afirma ter adquirido recentes
experiências as quais, na sua concretude, vão externar-se na tragédia premeditada
por seu pai, quando pede explicações a D. Daniel sobre o ocorrido. Após essa
82
discussão, a suposta tragédia é materializada e o tio Alberto se encarrega de salvar a
conduta da menina, ora ameaçada pela sedução do professor.
É notório enfatizar o recurso estilístico utilizado por Chacel. Na verdade, em
suas memórias, Letícia faz uma crítica dura ao sugerir que o opressor configura-se
nas personagens masculinas: o pai, o tio, o professor, dando indícios de ter sido
seduzida por este último, ele aproveitara de sua ingenuidade, de sua carência
paternal. Com evidência, esse fato permite refletir sobre o que acontece com uma
coletividade. Ou seja, no universo feminino sempre houve o abuso do homem no que
concerne à sexualidade, ou melhor, o homem sempre achou por direito usufruir do
corpo da mulher ou, como diria Perrot, “A virilidade repousa sobre a representação de
um desejo masculino, natural, irrefreável, que necessita de um exutório.” (2005: 448).
Letícia então sente ser inundada por uma leveza existencial, pois ao
rememorar o passado, se livra de um drama que não a deixava prosseguir com seus
ideais Entonces empecé a bostezar y a sentir unas ganas locas de dormir
profundamente.” ( Id. p. 170).
Depois das memórias escritas ela se sente como se tivesse tirado um peso de
si mesma, está aliviada. Contudo, ainda sucumbe à reclusão do lar, pois sua
convivência agora terá a família de tio Alberto como referência. Entretanto, é possível
que seja mais uma mulher preparada para o casamento, pois não existe a
possibilidade de mudança. Por isso Aurélia a entrega ao irmão Alberto. Todo o texto
se baseia em uma memória ainda que sua tristeza seja permanente, possibilidade
de outros caminhos para Letícia, porém não é explicitado ao final da narrativa.
83
Considerações finais
Conforme a revisão bibliográfica efetuada no primeiro capítulo desta pesquisa
realizada para analisar a obra Memórias de Letícia Valle, constatamos a importância
da escritora Rosa Chacel para a narrativa espanhola produzida nas décadas de 40 e
50 do século XX, em meio à Guerra e o Pós-guerra civil espanhol, dando ênfase ao
relato memorialístico.
Sem pretensão de escrever um tratado sobre a narrativa intimista, ainda na
primeira parte deste trabalho fizemos um levantamento teórico para entendermos a
importância de um texto que centra a ação no Eu interior. Fizemos a pesquisa
considerando também os gêneros: diários íntimos, confissões e memórias, pois
Chacel publicou também esses gêneros contos, novelas, entre outros.
A arte literária tem permitido ao ser humano a condição de falar de si mesmo,
sobressaem cada vez mais na contemporaneidade textos intimistas. Foi a partir
desses gêneros que as mulheres exiladas puderam expor ao outro suas angústias
surgidas no ambiente doméstico o qual as deixava sem perspectiva de acreditar que a
vida poderia ser diferente.
Os gêneros intimistas ganharam várias seguidoras, especificamente no
contexto da Guerra Civil em 1936/1939, por qual a Espanha passou, o momento crítico
em relação à economia e a estrutura social, a situação econômica confusa no mais
absoluto caos gerado pela guerra, são fatos que permeiam pela incidência que estes
tiveram na vida doméstica e na relação familiar. A Igreja se alia a Franco e propõe
mudanças com objetivo de recuperar o bem-estar familiar e social. Portanto criou
regras “indispensáveis” à mulher, pois elas seriam o pilar: deveriam ser boas esposas
e boas donas de casa. Algumas mulheres aceitavam docemente este papel outras se
rebelavam. As que conseguiram sair desse ciclo foram perseguidas ou exiladas e,
do desterro começaram a falar dos maus-tratos outrora vividos.
No viés memorialístico, vimos explícitos sentimentos de violência psicológica
materializados no tédio e na solidão vividos por mulheres num ambiente social hostil e
desolador. O universo feminino “desfrutava” da prisão doméstica, mas aparentemente
não havia impedimento físico sobre aquelas mulheres. A tradição mostrada por meio
das personagens na obra Memórias de Letícia Valle, revela a violência velada, sob a
liberdade aparente, a mulher não consegue sair da estagnação. Ela está sempre
84
recebendo das mais velhas os ensinamentos que perpetuarão sua resignação, a
mesma estrutura da novela sem a divisão por capítulos, é um ponto que suscita
comentários, visto que o tempo caminha linearmente a partir do recurso de memória.
Nesse sentido, a narradora coloca o leitor num ambiente cuja denúncia traz à tona a
condição social da mulher, especificamente, as que habitavam Valladolid e a vila de
Simancas na Espanha.
As lembranças revelam o contexto sócio-histórico, o sentimento de monotonia
e tristeza da mulher naquele momento, fazendo-nos rever o condicionamento ainda
presente nos dias atuais, apesar de tantas evoluções sociais e políticas.
Chacel, ao apropriar-se da técnica sem capítulos, possibilita a leitura da
intensidade do cotidiano, pois não quebra ou pausa entre o fluxo de consciência
que abarca um momento e outro. Por conseguinte, remetendo-nos ao desabafo da
protagonista necessário para rever, refletir e entender o passado e o presente. Nesse
contexto, expõe a reclusão da mulher ao lar, historicamente reprimida, perseguida,
silenciada e incapaz de tomar decisões talvez por conta do seu gênero diferenciado,
ou por ter um papel imposto ideologicamente pelo poder masculino, conforme analisa
Perrot (2005). Acentuamos também nesta parte do trabalho o trauma que fica na
memória e do qual nasce uma vontade de contar, relembrar, escrever com o objetivo
de esquecer e apagar a memória que causa dor.
No segundo capítulo desta pesquisa, fomos rever os filósofos que tratam do
tédio e da solidão, os pressupostos para nossa análise literária. A mulher que surge da
memória da protagonista está sempre enclausurada e enfiada nos afazeres
domésticos. Por mais que ela tente sair deste espaço, observamos que ela não tem
força motriz suficiente. Na verdade é levada desde muito cedo a acreditar que
uma saída, ser esposa e mãe para cuidar do lar.
Foram estes fatos que levaram a mulher a se revelar publicamente a conquistar
e ocupar um lugar em espaços nunca sonhados. Surgem escritoras que
transformariam a literatura espanhola do século XX. Nesse período, escritoras como
Rosa Chacel, Maria Teresa León e Cecília G. de Guilarte, pertencentes a “Generación
de 27”, um grupo de mulheres exiladas e com uma produção literária prolífera fora do
país de origem, partilharam das temáticas vinculadas às questões mais universais e
até metafísicas.
Com evidência, a narrativa feminina sobressai e ganha uma gama de estudos
pelo seu valor literário, estabelecendo-se desta maneira, uma literatura feminina com
85
as peculiaridades e o olhar feminino, conforme o estilo desenvolvido por cada
escritora. Por conta da repressão masculina, no texto escrito por mulheres entre
algumas temáticas que abordam aparece a repressão masculina
Esta repressão se mostra esteticamente elaborada no comportamento
feminino, por exemplo na mulher recriada pela memória de Letícia, poderíamos
assegurar que é a própria Chacel, falando com a voz de Letícia. Na tentativa de se
libertar e se tornar uma possivelmente intelectual como se projetara, é exilada na
América Latina, e no exílio encontra-se com outras mulheres que pactuam dos
mesmos ideais que os dela. Apesar de todos os esforços da escritora em se rebelar
contra o regime de Franco, ela consegue deixar sua mensagem através da sua
produção literária, que entra na Espanha somente algum tempo depois da morte do
ditador. A partir de então a crítica começa a perceber o seu valor literário, incluindo-a
entre os grandes nomes da Narrativa Feminina de Pós-guerra.
Somente depois da morte do ditador a Espanha fica sabendo também da
existência de várias escritoras que foram exiladas e, por conseguinte, foram
silenciadas, pois não aceitavam o tratamento destinado às mulheres.
Na literatura espanhola, questões sobre a repressão relacionadas ao universo
feminino foram muito evidentes, mais particularmente na elaborada pelas intelectuais
que mostraram aos seus compatriotas o sentimento em relação à expatriação. No
desterro, as mulheres tiveram muito sucesso na arte de escrever, pois abordaram a
literatura intimista com o objetivo de aludir ao sentimento de infelicidade e solidão na
condição de expatriada e de mulher.
Quanto à terceira parte de nossa pesquisa, efetivamente procedemos à
análise propriamente dita, tratamos da mulher em seu espaço doméstico cercada pela
solidão e pela monotonia que as fazem resignar-se ao enclausuramento. Nessa
novela, constatamos metonimizado o sofrimento de modo geral. Por meio da memória
de Letícia vemos uma cidade totalmente feminizada, a narrativa vai se fazendo a partir
das personagens femininas que povoam os espaços da novela. Em todas as casas
elas são maioria, no entanto um silenciamento de vozes tão sutil, mas que não se
percebem como seres capazes e com vida própria.
Halbwachs (2006: 29) admite que “O primeiro testemunho a que podemos
recorrer será sempre o nosso.”, o que constatamos por meio da memória da
protagonista. Ela faz sua investida na vida, apesar das carências que sofre. Não é
medrosa, tem força de vontade e busca o que lhe falta, porém sofre os percalços que
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o vilão lhe proporciona. Aquele em quem ela confia é quem a leva ao fracasso. Ou
seja, confirmamos que a protagonista testemunha a vilania configurada na
personagem masculina. Observamos que Chacel cria um ambiente machista, com
reflexos da realidade vivida por ela e outras mulheres de mesma época. O espaço da
intelectualidade era reservado para os homens, e as mulheres eram de alguma forma
impedidas de participar de tal ambiente.
Verificamos que, naquela época como nos dias atuais, apesar de tantas
conquistas, a mulher ainda é massacrada. Remetendo-nos à memória da narradora, o
desabafo da protagonista é necessário para fazê-la rever, refletir e seguir em frente.
Ela expõe a reclusão da mulher ao lar, a repressão e a perseguição por conta do seu
gênero diferenciado, além de mostrar o papel imposto ideologicamente pelo poder
masculino.
Chacel é uma excepcional observadora, lapidadora e escultora literária do
caráter e dos conflitos psicológicos, por que cria uma técnica inovadora para discutir a
questão do discurso Amo. Ao pensar uma novela de memórias, está falando de uma
coletividade, pois parte de uma memória singular para discutir o coletivo, isto é, as
memórias das mulheres que sofrem discriminação por ser do gênero feminino.
Ao estruturar a novela sem capítulos, apresenta-nos a memória de uma menina
com onze anos de idade, vivendo “prisioneira” a mais significativa parte de sua vida,
num ambiente que é de muita hostilidade, sobretudo o que “va más allá de la simple
descrpción o aseveración”, como expõe Caballé (1995: 38). A protagonista ao
dizer para o leitor o motivo porque quer escrever suas memórias, está no fundo
tentando desabafar suas angústias configuradas pela fragmentação que fora
acometida pelos adultos. Ao descrever suas memórias proporciona um momento de
revisão à vida.
Letícia sofre desde o principio da novela, nunca conhecera a mãe e como em
momentos de hipnose, volta ao útero materno para senti-la como se precisasse da
força materna para viver. Ao projetar sua carência afetiva no retorno do pai, sente
mais uma frustração porque não recebe o afeto do pai, e, por fim, ao se incluir na
residência do casal que poderia lhe dar tudo que precisava é totalmente violentada por
eles. O casal se apaixona pela vivacidade da protagonista e a seduz com afeto, aulas,
a amizade, culminando em um triângulo amoroso com fim trágico. Letícia ao fazer
análise do passado continua solitária e tentando se encontrar na vida, Luisa estagna-
se, e o professor desaparece.
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Memórias de Letícia Valle, enfim, é uma referência no que concerne ao texto
de memórias. As relações humanas apresentadas nas memórias nos dão um
panorama da opressão prolongada e de sua manutenção.
Nessa novela, as memórias trazem à tona o diálogo ininterrupto de uma
sociedade que marginaliza a mulher. Negando-lhe o direito de manifestar sua
liberdade de ser humano. Condicionada social, político e economicamente, poucas
vezes agia para mudar. Vemos clara a tentativa de Letícia e o trágico final que se
estabelece por ela ter saído do padrão permitido. O relato se encaminha pela linha de
textos de memórias nos quais o memorialista escreve para esquecer e para refletir
sobre os fatos vividos, pois quando a protagonista termina o relato, sente-se aliviada.
O catártico é alçado. Sobre isso Gusdorf assegura:
Retour à soi, retour sur soi attestant la revendication d’un
patrimoine personnel, d’un espace vital propre, en dépit des
empiètements mutuels, des interférences imposées par la
coexistence sociale. J’écris, donc je suis ; si je prends la
parole, si je prends la plume, c’est que j’existe à part moi et
que ma vie doit avoir un sens. (Gusdorf, 1991:250)
A memória singular que se configura é, então, a memória coletiva, através da
linguagem literária que erige das lembranças oportuniza ao ser humano rever suas
ações: fragmentação, silenciamento, violência, trauma entre outros fatores, numa
perspectiva estética para chegar ao sublime.
A partir da análise de Memórias de Letícia Valle, contribuímos para o
entendimento do universo feminino e apontamos para fatos que ainda não foram
resolvidos na sociedade em que vivemos. Por meio da Literatura é possível perceber o
sofrimento que acomete a mulher em qualquer contexto sócio-histórico.
88
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