Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
PARA A CRÍTICA DA “ECONOMIA SOLIDÁRIA”
HENRIQUE ANDRÉ RAMOS WELLEN
Rio de Janeiro
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
HENRIQUE ANDRÉ RAMOS WELLEN
PARA A CRÍTICA DA “ECONOMIA SOLIDÁRIA”
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como requisito para
a obtenção do título de doutor em Serviço
Social.
Orientação: Profº Dr. Carlos Eduardo Montaño
Barreto
Rio de Janeiro
2009
ads:
3
HENRIQUE ANDRÉ RAMOS WELLEN
PARA A CRÍTICA DA “ECONOMIA SOLIDÁRIA”
Banca examinadora:
__________________________________________
Profº Dr. Carlos Eduardo Montaño Barreto (orientador)
__________________________________________
Profº Dr. Francisco José Soares Teixeira
__________________________________________
Profº Dr. João Emanuel Evangelista de Oliveira
___________________________________________
Profº Dr. Mauro Luis Iasi
___________________________________________
Prof º Dr. Ronaldo do Livramento Coutinho
4
Dedicado a Aloys Wellen,
meu pai e mestre intelectual
5
Agradecimentos
À classe trabalhadora brasileira, que produz todas as condições materiais necessárias
à reprodução social. Minha gratidão é elevada pela minha condição de ex-bolsista.
À minha família: aos meus pais Aloys e Josélia, minhas irmãs Renate e Ana Luíza,
meus sogros Martim e Goretti e a minha pequena cunhada Amélia, ainda que já esteja grande.
Ao meu orientador Carlos Montaño, pela confiança depositada em mim desde nossa
primeira conversa, e pelo incansável exemplo de luta em defesa da transformação social. Aos
professores que participaram das minhas bancas examinadoras: Virgínia Fontes, modelo de
pesquisadora e intelectual orgânica; Mauro Iasi, demonstrando que se pode endurecer sem
perder a ternura; João Emanuel Evangelista, oásis do pensamento revolucionário a quem
recorro desde outros tempos; Francisco Teixeira, que, com alegria e humildade, torna cil o
aprendizado do marxismo; Ronaldo Coutinho, inquebrantável defensor da classe trabalhadora;
e José Paulo Netto, referência constante na minha formação doutoral, seja em conversas, aulas
ou palestras, a quem a simplicidade e docilidade no trato com todas as pessoas, serve para
elevar ainda mais sua grandeza intelectual.
A Yolanda Guerra, amiga e professora que, como coordenadora da pós-graduação,
mesmo seguindo às regras administrativas, mostrou-se extremamente compreensiva. Estendo
o agradecimento a todos que compõem essa entidade, em especial a Fábio.
Às grandes amizades que fiz na UFRJ, Fernando Leitão, Sônia Ramos, Marcos
Botelho, Cézar Maranhão e Ranieri Oliveira. Dois agradecimentos especiais a Ranieri: pelo
cotidiano compartilhado que foi fundamental, especialmente, para minha formação cultural; e
ao aprendizado intelectual sistemático, seja na pesquisa da tese, seja na discussão e escrita de
outros textos.
Aos principais amigos brotados da convivência na UFRN: José Rubens, que, mesmo
sendo um adversário futebolístico, é um grande parceiro político e intelectual; Rodrigo
Serafim, que me integra sempre na sua explosiva sede de conhecimento; Washington Souza
que, mesmo não concordando muito com minhas posições, sempre busca escutá-las; e aos
integrantes do GET/UFRN: Chico, Chaguinha, Patrícia, Marconi e Zéu, que, juntos,
principiamos um ousado estudo sobre a obra de Lukács. Nossa análise foi testada nas aulas e
conversas com o sempre disponível professor Sérgio Lessa, a quem agradeço especialmente
pela incursão na Ontologia. Externo minha gratidão ao amigo Zéu pelos seus ensinamentos
humanistas, e pelas várias sugestões incorporadas ao longo da tese.
Aos amigos da UFSC: Ilzo, Matheus, Gabriel e, em especial, a Caio, pelas sugestões
e contribuições no debate sobre o cooperativismo.
Aos e as camaradas do MPSC e do CERC: Fernando, Vivian, Marcelo, Pedro, Carol
e Michele, com quem sou obrigado a testar continuamente e dialeticamente a teoria
revolucionária para aplicá-la à prática política.
Meu maior agradecimento é para os meus dois grandes amores: Héricka,
companheira fraterna de mais de uma década, e Olga, raio de luz cotidiano. Para Héricka o
agradecimento é duplicado, pois, além do incentivo diário mesmo diante dos maiores
desafios, também lhe coube a ingrata tarefa da revisão do presente texto.
6
Resumo:
Objetivamos apreender qual a função social da “economia solidária” a partir das suas relações
com as determinações do capitalismo brasileiro atual. Por ser marcada por uma precariedade
teórica e organizativa, foi preciso, antes de expor seus principais pressupostos teóricos e
metodológicos, identificar elos unívocos desse projeto social. Os diversos tipos de
empreendimentos que integram a “economia solidária” foram agrupados e analisados a partir
de suas conexões com outros projetos sociais atualmente relevantes. Examinamos as
condições de trabalho dentro dessas organizações, assim como suas relações com o mercado
capitalista. Por fim, no que concerne à transformação social, apreendemos que a “economia
solidária” representa um retrocesso na luta dos trabalhadores contra os imperativos do capital.
7
Abstract:
We aimed to apprehend which is the social function of the “solidary economy” through its
relations with the determination of the current Brazilian capitalism. Because of its precarious
theory and organization, it was necessary, before analyzing its theoretical and metodológicos
principles, to identify univocal links of this social project. The diverse types of enterprises
that integrate the “solidary economy” had been grouped and analyzed from its connections
with other relevant social projects. We analyze the conditions of work of these organizations,
as well as its relations with the capitalist market. Finally, focusing the social transformation,
we apprehend that the “solidary economy” represents a retrocession in the fight of the
workers against the imperatives of the capital.
8
Zusammenfassung
Es ist unser Bestreben, die soziale Funktion der “Solidarischen Ökonomie” genauer zu
erfassen, und dies ausgehend von seinen Beziehungen zu den Determinanten des aktuellen
brasilianischen Kapitalismus her. Aufgrund der markierenden, sowohl theoretischen wie auch
organisatorischen Schwankungen wurde es notwendig, vor der Erfassung seiner wichtigsten
theoretischen und methodologischen Voraussetzungen, die eindeutigen Merkmale dieses
sozialen Vorhabens genau zu identifizieren. Die verschiedenen Erscheinungen der
Durchführungen, die wir bei der “Solidarischen Ökonomie” vorfinden, wurden daher erfasst
und einer Analyse ihrer Verbindungen zu anderen aktuellen sozialen Projekten unterzogen.
Wir untersuchen die Arbeitsbedingungen innerhalb dieser Organisationen, wie auch ihre
entsprechenden Beziehungen zum kapitalistischem Markt. Hinsichtlich der Sozialen
Transformation kamen wir schliesslich zu der Feststellung, dass die “Solidarischen
Ökonomie” in dem Klassenkampf der Arbeiter einen Rückschritt gegen die Imperative des
Kapitals bedeutet.
9
Lista de tabelas
Tabela 01: Quantidade de empreendimentos da “economia solidária”
Tabela 02: Tipo de empreendimento da "economia solidária"
Tabela 03: Motivos para criação dos empreendimentos de “economia solidária”
Tabela 04: Situação financeira dos empreendimentos de “economia solidária”
Tabela 05: Remuneração dos integrantes da “economia solidária”
Tabela 06: Direitos trabalhistas dos integrantes da “economia solidária”
Tabela 07: Origem dos insumos para produção nos empreendimentos da “economia
solidária”
Tabela 08: Fonte de crédito dos empreendimentos da “economia solidária”
Tabela 09: Tipos de remuneração dos integrantes da “economia solidária”
Tabela 10: Abrangência do mercado dos empreendimentos da “economia solidária”
Tabela 11: Principais produtos produzidos e comercializados pela “economia
solidária”
40
49
51
164
164
166
187
188
189
245
246
10
Sumário
Introdução
Capítulo I: “Economia solidária” e crise do capitalismo
1.1 Crise do capital, ofensiva ao trabalho e novos padrões de intervenção social
1.2. Reestruturação produtiva e “economia solidária”
1.3. Autogestão, cooperativismo e “economia solidária”
1.4. Crítica ao método da “economia solidária”
Capítulo II: “Economia solidária”, do que se trata?
2.1. Ética e solidariedade na produção capitalista
2.2. A solidariedade do capital: “economia solidária” e as cooperativas capitalistas
2.3. A dominação capitalista mistificada em solidariedade: a “economia solidária”
e a OCB
2.4. Empreendedorismo contra direitos sociais: o “terceiro setor” e a “economia
solidária”
2.5. Solidariedade orgânica e reforma moral: a economia solidária” e o novo
evangelho social
2.6. MST x “economia solidária”: uma relação de complementaridade?
Capítulo III: “Economia solidária” e trabalho
3.1 Relações de trabalho na “economia solidária”: emancipação ou exploração?
3.2 “Economia solidária” e a autonomia do trabalho
3.3 Trabalho e mercado na “economia solidária”, ou Paul Singer x Rosa
Luxemburgo
Capítulo IV: “Economia solidária” e mercado
4.1. O valor de troca como solidariedade
4.2. A solidariedade como valor de troca
Capítulo V: “Economia solidária” e transformação social
5.1. Do socialismo científico à “economia solidária” e da “economia solidária” ao
socialismo utópico
Considerações finais: a “economia solidária” e o Castelo do Barba-Azul
Bibliografia
11
22
23
37
52
65
81
84
93
100
113
128
141
154
154
173
193
207
208
233
252
254
296
300
11
Introdução
Nos marcos atuais do capitalismo, como efeito de duros processos de combate aos
trabalhadores e às suas conquistas históricas, vários projetos sociais passaram a ocupar espaço
na sociedade e, por conseqüência, no debate acadêmico. Tendo por base o gradativo
retrocesso das políticas sociais, os altos níveis de desemprego e a precarização do trabalho,
esses novos projetos sociais promoveram impactos empíricos e teóricos em toda a sociedade.
Os rebatimentos destas novas formas de trato da questão social
1
foram sentidos nos mais
variados campos do saber, com especial destaque na área das ciências sociais. Estando dentro
desse conjunto de conhecimentos, os estudos de Serviço Social também foram tangenciados
por essas novas promessas sociais, influenciando diretamente na apreensão cognitiva de
grande quantidade dos autores desta área.
Em geral, os diversos projetos em tela se remetem a novas confluências entre a
sociedade civil e o Estado, abdicando de um confronto direto com o Capital e seus
representantes, em prol de uma interface “mais harmoniosa” que resultaria num
encaminhamento para uma sociedade “mais justa” (nestes projetos é consensual o repúdio a
movimentos contestadores que se destinam à conquista do poder do Estado para a prática da
revolução social). Para tanto, de maneira explícita ou implícita, resgatam-se antigos
postulados que marcaram, por exemplo, as teses de reformistas clássicos, nas quais as lutas
contra o capitalismo foram pautadas num mote pela busca de uma sociedade “mais justa” ou
“menos injusta”, como foi o caso de um dos representantes da Social Democracia Clássica,
Eduard Bernstein, que “várias vezes qualificava o seu socialismo de esforço tendente a um
modo de repartição ‘justo’, ‘mais justo’, e até mesmo ‘ainda mais justo’” (LUXEMBURGO,
2003, p. 85).
1
“Por ‘questão social’, no sentido universal do termo, queremos significar o conjunto de problemas políticos,
sociais e econômicos que o surgimento da classe operária impôs no curso da constituição da sociedade
capitalista. Assim, a ‘questão social’ está fundamentalmente vinculada ao conflito entre o capital e o trabalho
(Cerqueira Filho, 1982: 21). Ou, nas palavras de um profissional do Serviço Social: ‘A questão social não é
senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário
político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a
manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia [...]’ (Iamamoto, in
Iamamoto e Carvalho, 1983: 77)” (NETTO, 2005, p. 17, n. 01).
12
Conforme veremos melhor no decorrer de nossa pesquisa, é traço comum de tais
projetos a desconsideração de que, dentro do modo de produção capitalista
2
, não se trata de
ser “mais ou menos justo”, mas de uma organização produtiva que é baseada na exploração de
uma classe pela outra. Dentro dos limites do sistema capitalista, mesmo com menores veis
de “injustiça”, ainda assim haverá exploração do homem pelo homem, ou seja, apenas se pode
ter uma remuneração melhor de escravos. Como bem demonstrou Marx (1985a, p. 191):
de seu próprio mais-produto, em expansão e expandindo a parte transformada em
capital adicional, flui de volta para eles uma parcela maior sob a forma de meios de
pagamento, de maneira que podem ampliar o âmbito de suas satisfações, podem
prover melhor seu fundo de consumo de vestuário, móveis etc., e constituir um
pequeno fundo de reserva em dinheiro. Mas assim como melhor vestuário,
alimentação, tratamento e um pecúlio maior não superam a relação de dependência
e a exploração do escravo, tampouco superam as do assalariado.
Analogamente aos novos projetos sociais espalhados por todo o mundo, essa idéia de
socialismo
3
também é um suporte ideológico bem presente no contexto brasileiro,
especialmente em partidos políticos com maior poder e atuação social, como é o caso do
Partido dos Trabalhadores, por exemplo. Conforme demonstra Machado (2000, p. 53), isso
ocorre pela existência de “uma tendência crescente de filiados ao PT no sentido de reduzir o
socialismo a uma idéia moral bastante vaga alguma coisa como a defesa de uma sociedade
mais justa”, o que resulta na conclusão de que “já quase não se defendem, de fato, concepções
que tenham um conteúdo efetivamente socialista”.
Essas novas plataformas de luta incidem na forma histórica de tratar e combater a
questão social, questionando sua validade e cadenciando a luta através de novos axiomas
teóricos e interventivos
4
. Dentro dessa perspectiva, a questão social resultante histórico da
contradição, imanente ao modo de produção capitalista, entre capital e trabalho passaria por
uma consubstanciação fenomênica, na qual ingredientes antes tidos como ultrapassados
2
Ao utilizarmos o termo “modo de produção capitalista”, não estamos desconsiderando as outras esferas
econômicas que integram esse conjunto, mas apenas refletindo teoricamente a centralidade da produção: “Se
produção, distribuição, circulação e consumo são pressupostos e determinantes umas das outras, cabe à produção
a determinação fundamental. É ela o ponto de partida sempre recorrente do processo, sua razão de ser mais
essencial, o resumo de todas as distintas fases. Por isso mesmo, Marx chamará de modo de produção a
organização social da atividade econômica, criando um conceito axial para todo o seu sistema teórico”
(GORENDER, 1986, p. XII).
3
Analisaremos, no último capítulo da tese, alguns pressupostos que demarcam a peculiaridade do socialismo
dentro da “economia solidária”.
4
Como veremos no decorrer da pesquisa, alguns representantes da “economia solidária” defendem o fim da
centralidade do trabalho e, nesse sentido, sugerem uma nova questão social distinta da contradição entre trabalho
e capital.
13
voltariam ao seu interior. Resgatam-se desde promessas utópicas a posturas conservadoras
que legitimam a sociedade vigente
5
.
Além de representarem fraturas visíveis dentro do sempre complexo, e de difícil
definição, campo político da esquerda, esses novos/velhos projetos trazem à tona
questionamentos e perspectivas que problematizam várias categorias teóricas até então
asseguradas pela sua inequívoca validade. Por isso que os impactos provenientes destes não
são apenas de teor político, mas implicam em sérios embates teóricos e metodológicos.
Encontra-se, como epicentro dessa disputa, a discussão sobre as lutas de classes e a história do
movimento operário, repisando-se uma recorrente referência nesse embate, a de que a
“história do movimento operário, desde o século XIX, é um processo que se articula, para
além da sempre desejada unidade, mediante as fraturas parciais que os enfrentamentos
teóricos, políticos e ideológicos, à direita e à esquerda, lhe impõem” (NETTO, 2004, p. 87).
Em prol de uma suposta modernização da estratégia de superação do capitalismo,
antigos métodos de luta são questionados e negados com a finalidade de se construir novas
constelações interventivas. Em casos mais extremos, defende-se que as mudanças históricas
seriam de tal monta que se tornaria imprescindível renegar grande parte (ou todas) das lições
adquiridas a partir do acúmulo das lutas dos trabalhadores contra o capital. Sob esse prisma,
seria de pouca validade as categorias apreendidas a partir da análise “clássica” das relações de
produção do capitalismo e, especificamente, aquelas advindas da tradição marxista.
A substituição dessas categorias por algumas novidades teóricas (ainda que estas
estejam marcadas por grande limitação em relação à sua comprovação concreta) serve para
fornecer substrato à construção de novos projetos políticos que prometem formas de mudança
social menos drásticas. E, ainda que não seja disponibilizada uma quantidade suficiente de
tempo e de análise para a comprovação dessas novas teorias, alguns desses projetos sociais
são apresentados como portadores de “potencial revolucionário” capaz de subverter a ordem
social atual.
Sob esse foco, tais alterações nas táticas e estratégias de mudança social deveriam
ocorrer naturalmente como resultado das alterações históricas na estrutura da sociedade. Um
dos defensores da chamada “economia solidária”, ilustra bem essa necessidade, ao afirmar
que, “a luta por uma sociedade emancipada modifica-se a cada novo modo de organização e
5
Para ficarmos em dois exemplos de relevo, poderíamos citar a ressignificação do trabalho tangenciada pela
“Economia Solidária” (analisado por Barbosa, 2007), e a abordagem da sociedade civil como setor autônomo e
pacífico da sociedade, difundido pelo “Terceiro Setor” (desmistificado por Montaño, 2002). Sobre elementos
mistificadores presentes na “economia solidária”, ver: Wellen (2008); e sobre a reprodução da ideologia pelo
“terceiro setor” ver: Wellen e Teixeira, 2004. Uma pesquisa que busca analisar esses dois projetos, apresentando
o primeiro como expressão do segundo, encontra-se em Menezes (2007).
14
desenvolvimento das forças produtivas, pelo aparecimento de novos agentes sociais, pelas
novas formas de dominação de classe” (HADDAD, 2004, p. 113). Nesse sentido, segundo o
autor, “relações que nem sempre foram bem estabelecidas se tornam ainda mais
problemáticas”, como é o caso da relação entre sindicalismo, cooperativismo e socialismo”
(IDEM).
Objetivando instaurar novas formas de intervenção social, a validade de organizações
políticas e econômicas criadas historicamente pelos trabalhadores na sua luta contra os
imperativos do capital, precisaria, portanto, ser questionada. É nessa linha que outra
representante da “economia solidária” demonstra a necessidade dessa problematização, uma
vez que, devido “às dificuldades de representação do conjunto dos trabalhadores”, seria
preciso “uma revisão de partidos e sindicatos”, fato que implicaria em “abandonar,
definitivamente, a idéia de uma organização de quadros de vanguarda’, tal como a defesa da
velha tradição leninista” (NAKANO, 2003, p. 73)
6
.
Como uma das alternativas a essas formas “ultrapassadas” de luta, surgiria a
“economia solidária”, organizando os produtores a partir de relações sociais e econômicas
baseadas na coletividade e solidariedade. O ambiente interno dessas organizações seria
marcado pela instauração de espaços de resistência contra a ditadura do capital, ou até mesmo
de preparo subjetivo dos trabalhadores para a superação do ordenamento societário vigente. O
objeto de nossa pesquisa o projeto social atualmente conhecido como “economia solidária”
que é apontado pelos seus representantes como capaz de organizar os trabalhadores visando
à superação do capitalismo, é um destes projetos sociais resgatados que instaura novas
mediações para a questão social.
O próprio termo “economia solidária” já representa uma inovação semântica, visto que
busca unificar dois elementos que, no contexto atual, configuram-se por uma oposição: a
economia, que é capitalista, com uma valoração supostamente solidária. Diante da realidade
atual, em que o desenvolvimento do mercado capitalista não apenas invalida as relações
econômicas incapazes de produzir lucratividade, como as tornam subordinadas ao imperativo
do capital, a defesa de uma “economia solidária” expressa, no mínimo, uma posição bastante
questionável. É nesse sentido que, ao nos referirmos a esse projeto social, sempre o faremos
utilizando as aspas, até porque, na realização de nossa pesquisa, não identificamos nenhuma
evidência substantiva que aponte para a possibilidade de união dessas duas antípodas. Em
6
Dentro da “economia solidária”, a autora defende a instauração de experiências de autogestão como forma
privilegiada de luta dos trabalhadores. Analisaremos a relação entre a autogestão e a “economia solidária” no
capítulo 01.
15
termos sintéticos, poderíamos afirmar que, quando buscaram realizar práticas solidárias, os
empreendimentos fracassaram economicamente e, quando objetivaram vencer no mercado,
perderam o sentido original e ideal e, portanto, relegaram a solidariedade.
Além de não expressar uma terminologia confiável, também nos parece oportuno
explicar que a “economia solidária” não possui substrato teórico e político capaz fornecer
fundamentos de pesquisa precisos. Como veremos, mesmo que estejam surgindo análises
mais sérias, ainda permanece como regra uma clara insuficiência teórica, que quase
inviabiliza uma apreensão reflexiva e sistemática desse objeto de pesquisa. É muito difícil,
dentro do conjunto de textos (sejam livros, artigos, relatos de casos, documentos, estatísticas
etc.) apresentados pelos representantes desse projeto social, encontrar algum que possa ser
considerado teoricamente relevante. Por outro lado, ainda que se trate de trabalhos mais
concisos e fundamentados, são muito poucos os autores que objetivam realizar uma análise
crítica sobre a “economia solidária”. Assim, se, por um lado existe uma quantidade
significativa de textos, mas sem qualidade expressiva, por outro, encontram-se análises
fecundas, mas em quantidade muito limitada.
As restrições para a realização de uma pesquisa sobre a “economia solidária” não são
relativas, contudo, apenas ao campo teórico, mas, antes, são expressões da realidade material.
A pouca importância dada a esse objeto em pesquisas sociais sérias também se deve à
precariedade na estrutura material desse projeto social e, é justamente por esse motivo que
utilizamos essa nomenclatura: projeto social
7
. Não somente inexiste uma falta de
fundamentação teórica na “economia solidária”, mas, essa insuficiência, também está presente
nos postulados políticos e organizativos. Mesmo que integre cerca de vinte mil
experiências, a “economia solidária” ainda enceta os primeiros passos organizativos, políticos
e ideológicos para conformar suas diretrizes. Ainda que esse projeto social seja apresentado
pelos seus representantes como um fenômeno social avançado e capacitado à promoção de
mudanças estruturais, evidências acerca de suas limitações são apreendidas por qualquer
análise sóbria sobre a “economia solidária”.
Nossa pesquisa trata, portanto, da chamada “economia solidária”, um projeto social
que, apesar de ser apontado pelos seus representantes como seguidor de experiências
históricas, especialmente dos séculos XVIII e XIX, merece destaque dentro do contexto
brasileiro apenas a partir do final do século XX. Isso acontece porque, conforme veremos com
7
Ainda que muitas vezes limitado a um debate epistemológico, alguns subsídios teóricos sobre a distinção entre
movimento social (e seus diferentes tipos) e projeto social, podem ser encontrados em: Tella (2004); Abendroth
(1977); Bottomore (2001); Sztompka (1998); Reasons (1999); Pasquino (1995).
16
mais detalhes no decorrer deste trabalho, é apenas a partir da década de 80 do século passado
que a “economia solidária” começa a aportar uma quantidade significativa de experiências no
Brasil.
No entanto, apesar do seu recente desenvolvimento, a “economia solidária” conseguiu
agrupar, a partir do início do século XXI, mais de vinte mil organizações, com as mais
diversas características, como grupos informais, associações, sociedades mercantis de
responsabilidade limitada, sociedades mercantis de posse coletiva, cooperativas, entre outras
8
.
Assim, definida como um “conjunto de atividades econômicas de produção, distribuição,
consumo e crédito – organizadas e realizadas solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras
sob a forma coletiva e autogestionária” (SENAES, 2006, p. 11), a “economia solidária”
representa atualmente um fenômeno econômico e social de significativa amplitude.
Dentre as organizações que a compõem, as cooperativas destacam-se, no entender de
seus representantes, como a forma modelar da “economia solidária”, visto que essa seria
formada por duas qualidades essenciais: a produção de mercadorias, vinculada ao controle
social e a gestão democrática. Como indica Singer (2002, p. 09), a cooperativa de produção
representaria o protótipo de “empresa solidária”, uma vez que nessa organização, “todos os
sócios têm a mesma parcela de capital e, por decorrência, o mesmo direito de voto em todas
as decisões”. Sob esse prisma, as cooperativas teriam, dentro do seu espaço interno,
qualidades que as distinguiriam das empresas capitalistas, uma vez que, enquanto nestas os
empresários controlam a produção e o lucro, naquelas seriam os trabalhadores os responsáveis
pela organização produtiva e pela decisão coletiva do destino do excedente econômico.
Além disso, ainda que vislumbrada a partir do seu interior, enquanto espaço
supostamente privilegiado de emancipação do trabalhador, a “economia solidária” não seria
circunscrita a esse ambiente, e representaria, na visão dos seus defensores, um novo modo de
produção. É o que indica Singer (2002, p. 10), ao afirmar que a definição de “economia
solidária” não se limitaria ao espaço interno da organização, mas abarcaria toda a estrutura
social: a economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a
propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual”. Baseado
nessas premissas, o então Ministro do Trabalho e do Emprego do Brasil, Luiz Marinho
9
,
referiu-se à “economia solidária”, como “uma resposta importante dos trabalhadores e das
8
Apresentamos, no capítulo 01, a tabela 02 que expõe a composição das organizações que integram a “economia
solidária”, com as suas respectivas quantidades e porcentagens.
9
Luiz Marinho ficou à frente do Ministério do Trabalho durante o Governo Lula, de 2005 até o início de 2007,
quando se transferiu para o Ministério da Previdência Social, deixando o cargo em 2008 para torna-se prefeito da
cidade de São Bernardo do Campo. Em 1999 ganhou o prêmio destaque do ano da Revista Livre Mercado.
17
comunidades pobres em relação às transformações ocorridas no mundo do trabalho”
(SENAES, 2006, p. 07).
Na visão dos defensores desse projeto social, o papel da “economia solidária” seria o
de superar o modo de produção capitalista, implantando no seu lugar um novo ordenamento
social. Para tanto, a “economia solidária” ajudaria a fomentar um processo transformador
lento e gradual que, ocupando gradativamente os interstícios do modo de produção capitalista,
utilizando-se da competição no mercado com as empresas privadas, findaria com a derrocada
destas. Por meio da instauração de “implantes socialistas” nos espaços marginais do sistema
capitalista, esse projeto social ajudaria a capitanear forças sociais em luta contra os
imperativos do capital (SINGER, 1999) e, nesse sentido, aproveitaria a crise capitalista para
disseminar as experiências autogestionárias (SINGER, 2001).
Segundo Paul Singer, o representante máximo desse projeto social, a força da
“economia solidária” estaria prestes a ser demonstrada na sua amplitude, pois, como “a
economia solidária não é um remendo do capitalismo, mas uma alternativa a ele”, é preciso
aproveitar o momento atual de crise do capitalismo, visto que “a crise abre uma oportunidade
histórica de comprovação deste fato. Mesmo quando ela for superada, o mais provável é que a
produção e distribuição autogeridas não desaparecerão” (SINGER, 2001, p. 11).
Vale ressaltar que um exemplo de semelhante empreitada política e ideológica refere-
se às atuações dos representantes da escola que ficou conhecida como a defensora da teoria do
trabalho imaterial. No que concerne ao horizonte político dos novos tempos, os representantes
dessa corrente, Negri, Hardt e Lazzarato, “postulam que aquilo que nós tomamos por crise
não passa das dores inevitáveis da transição para o comunismo”, além de que “nessa
transição, afirmar-se-ia uma nova relação com a produção: o trabalho imaterial” (LESSA,
2005, p. 20). Promovendo uma “nova teoria da história”, esses autores advogam que “as
transformações em curso seriam a afirmação do modo de produção comunista nos
‘interstícios’ do capitalismo” (LESSA, 2004, p. 05).
Apesar da precariedade conceitual e analítica
10
, esses não são, entretanto, casos
isolados, mas poderíamos até afirmar que o conjunto de projetos similares a esse representam
um “sinal dos tempos”, especialmente porque, em contextos históricos como o que atualmente
vivemos, a desconsideração pela análise concreta torna-se expressão comum. Nesse sentido, é
10
Posteriormente dedicaremos mais espaço para essas questões.
18
de grande relevância uma pesquisa que objetive apreender as determinações concretas que
consubstanciam tais projetos e influem diretamente na sua função social
11
.
Apesar da altivez discursiva, para analisar se realmente a “economia solidária” se
estabelece como um projeto social não apenas capacitado para superar o modo de produção
capitalista, mas que funcione como instrumento na luta dos trabalhadores contra o capital, é
indispensável uma árdua pesquisa que objetive apreender a configuração desse projeto social
a partir das determinações sociais presentes no atual contexto social. Ainda que não
descartemos a defesa de seus representantes, não se pode identificar a priori qual a função
social da “economia solidária”, sem uma confrontação com a realidade social em que ela está
inserida. O que determina a função social de qualquer objeto de pesquisa não são os discursos
proferidos pelos seus representantes, mas as relações de interdependência desse objeto com a
totalidade social. Desconsiderar tal atitude serve apenas para promover uma mistificação da
realidade e do objeto de pesquisa.
Com base nesses pressupostos, tivemos por objetivo geral de pesquisa apreender a
função social da “economia solidária”, diante das determinações do modo de produção
capitalista no contexto brasileiro atual. Sabemos da dificuldade operacional de tal empreitada
e, devido a esse fato, frisamos nossas limitações por meio de nossos objetivos específicos de
pesquisa. De início, destacamos que se trata de uma pesquisa essencialmente bibliográfica,
baseada na análise de diversos tipos de textos, sejam estes livros, artigos, relatórios,
documentos, atas, dentre outros. Além disso, não pretendemos realizar uma análise extenuante
que comporte todos os elementos discursivos ou todas as experiências singulares que
integram a “economia solidária”, mas buscamos identificar os pontos centrais desse projeto
social para, a partir daí, iniciar a análise crítica.
Como não nos dedicamos aos aspectos singulares de cada uma das organizações,
objetivamos apreender as determinações principais que consubstanciam as tendências gerais
desse projeto social. No entanto, como se trata de um objeto de pesquisa sem grande
fundamentação teórica e organizativa, o esforço maior não se destinou à apreensão das
tendências gerais da “economia solidária”, mas, antes, à identificação de qualidades unívocas
dessas organizações. Como inexistem tanto uma teoria, quanto um método formulados, foi
11
Como explicaremos melhor ao longo do texto, sempre que utilizamos o termo função social não nos referimos
a uma análise positivista ou biológica da sociedade (como a presente em Durkheim (2007), por exemplo), mas às
relações entre o objeto de pesquisa e as determinações da totalidade social em que este está inserido. Nesse
sentido, corroboramos a afirmação de Netto e Braz (2006, p. 151), de que “a análise da sociedade (e a crítica da
Economia Política deve ser o fundamento dessa análise) não se opera apenas considerando os fatos na sua
singularidade – a teoria social, fundada na crítica da Economia Política, precisa dar conta da dinâmica da
totalidade social”.
19
preciso estabelecer, com base nas características essenciais identificadas na pesquisa, as bases
para esses elementos. A história desse projeto social, assim como relatos, dados empíricos e
anotações teóricas de seus representantes serviram de base para o primeiro dos objetivos
específicos.
No capítulo 01, apresentaremos o resultado do primeiro objetivo específico, a saber:
realizar uma pesquisa histórica sobre a “economia solidária”, demarcando o contexto social
de seu florescimento, e objetivando apresentar seus pressupostos teóricos e metodológicos.
Essa parte da tese foi constituída por resultados iniciais de pesquisa, em que introduzimos o
objeto de pesquisa, fizemos comentários sobre esse projeto social e sobre as limitações da
análise realizada, aprofundamos a exposição sobre o problema central da tese, avaliamos
criticamente alguns pressupostos metodológicos empregados pelos representantes dessa
proposta, e aproveitamos para explicitar qual o método que conduzirá nossos estudos.
No capítulo 02, seguimos para o segundo objetivo específico de nossa pesquisa, que
foi identificar as características que perfazem a unidade da “economia solidária”, assim
como as que as distinguem ou as aproximam de outros projetos sociais contemporâneos. Para
tanto, apresentamos a “economia solidária” a partir das suas principais qualidades,
reproduzindo indicações sobre esse projeto social a partir dos autores que o sustentam
teoricamente. Em seguida, analisamos quais as relações de complementaridade e de distinção
que existem entre a “economia solidária” e as mais variadas propostas contemporâneas de
intervenção social, desde aquelas mais amplas como o terceiro setor, até as mais específicas
sobre o tema, como a OCB Organização das Cooperativas do Brasil. Uma análise
semelhante encontra-se na parte final do segundo capítulo, na qual tentamos apreender as
relações contraditórias entre a “economia solidária” e o MST – Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra.
Depois de concretizado esse objetivo específico, em que foram identificados pontos
que ligam a “economia solidária” a outras propostas de intervenção social advindas da crise
capitalista, e qualidades que marcam a singularidade do projeto social estudado, passamos aos
objetivos mais expressivos de nossa tese, em que tentamos apontar evidências para o
enunciado central de pesquisa. Nesse sentido, os três capítulos finais da tese foram dedicados
à apreensão da função social da “economia solidária” dentro da fase atual do capitalismo. Para
tanto, aportamos três tópicos centrais: a relação com o trabalho, a relação com o mercado e a
relação com a transformação social. Para efeitos didáticos, ressaltamos que a ordem dessas
abordagens pode ser vista de duas formas: partindo-se do espaço produtivo para as relações de
20
troca e distribuição, até chegar à superestrutura; ou iniciando-se pela esfera econômica até
chegar ao complexo da política.
No segundo capítulo, em que objetivamos apreender relações entre a “economia
solidária” e a exploração do trabalho, iniciamos com a análise de algumas dessas
experiências que se constituem, em sua grande maioria, em agrupamentos de força de trabalho
menos custosa e mais precarizada, inseridas na cadeia produtiva de grandes corporações
capitalistas. Para teorizar sobre essas relações precárias de emprego e de contratos de
trabalhos flexíveis, fizemos referência às categorias marxistas de subsunção formal do
trabalho ao capital e subsunção real do trabalho ao capital. Em seguida, baseando-nos nessas
premissas, propomos-nos a estudar as novas relações de trabalho defendidas pela “economia
solidária”, apontando para a ligação destas com o mercado capitalista.
Objetivando apreender relações entre a economia solidária” e o mercado
capitalista, escrevemos o terceiro capítulo da tese, iniciando-o com a análise de uma
contradição entre as determinações objetivas advindas da totalidade social e os sentidos
subjetivos atribuídos pelos representantes desse projeto, tanto no que diz respeito ao
entendimento da mercadoria, como do valor e do mercado. As relações de troca que integram
o mercado foram o tópico central de estudo e, a partir dessas, buscamos apresentar dois
subterfúgios utilizados pela “economia solidária”, seja para produzir um apelo social, seja
para conseguir se manter competitiva dentro do mercado. De um lado, a mistificação do valor
de troca como solidariedade e, de outro, a busca da transformação da solidariedade em valor
de troca.
No capítulo final de nossa tese, objetivamos nos apropriar de evidências e indicações
para problematizar a relação da “economia solidária” com a transformação social do
capitalismo. Buscamos apreender de que forma esse projeto social se relaciona com a luta de
classes dentro do referido contexto social, se contribuindo para a superação do capitalismo, ou
servindo como fenômeno legitimador. Para tanto, foi preciso, de início, ressaltar que
analisamos essa relação a partir da categoria transformação social, entendendo essa não como
mudanças laterais e endógenas ao sistema social, mas como uma revolução estrutural do
ordenamento societário, rumo a uma sociedade sem classes. A importância dessa definição
cresceu à medida que aprofundamos nossa análise, quando evidenciamos um caráter
regressivo desse projeto social na luta dos trabalhadores. As comprovações dessa assertiva
foram apresentadas em dois movimentos: do socialismo científico à “economia solidária”, e
da “economia solidária” ao socialismo utópico. Demonstramos não apenas que a “economia
21
solidária” apresenta-se como uma posição retrógrada ao socialismo científico, mas,
precisando os respectivos contextos históricos, também aos socialistas utópicos.
Ao final da tese, com a realização desses cinco objetivos específicos, esperamos ter
encontrado evidências para apreender a função social hegemônica da “economia solidária”
diante das determinações do contexto brasileiro atual. Assim, se o alcance dos objetivos
específicos representou a base teórica para determinar a realização do objetivo central, o
produto final da tese servirá para que o leitor nos diga se tivemos sucesso ou não.
Apresentamos-lhe, agora, o resultado de um longo esforço dedicado a apreender a
função social da “economia solidária” a partir da sua relação com a totalidade social em que
está inserida, ou seja, com o contexto capitalista brasileiro atual. Mesmo que não consigamos
lhe convencer dos resultados aqui encontrados, esperamos que esse trabalho sirva para
provocar inquietações e reflexões. Aqui se inicia nosso caminho intelectivo e, que, assim
como nos umbrais da ciência, como na porta do inferno, seja feita uma requisição: qui si
convien lasciare ogni sospetto. Ogni viltá convien che sia morta
12
.
12
“Que aqui se afaste toda a suspeita. Que neste lugar se despreze todo o medo”: inscrição que, conforme Dante
Alighieri (2007), constaria na entrada do inferno. Citado por Marx (1986b. p. 27).
22
Capítulo I: “Economia solidária” e crise do capitalismo
O racionalismo que invocas contém uma boa parcela de
superstição, da crença num demonismo vago,
indefinível, que atua no jogo de azar, na cartomancia,
nos sorteios e na interpretação dos signos. Ao contrário
do que afirmas, teu sistema parece-me mais apropriado
pra dissolver a razão humana em magia.
(MANN, 1984, p. 261).
Em tempos de crise e, em especial, de decadência ideológica e política, as relações
entre a estrutura produtiva e os outros complexos sociais promovem a disseminação de um
rosário de determinações que incidem sobre a sociedade, estimulando a aparição de posições
mistificadoras com pouco lastro na realidade concreta. É fato comum em contextos de
decadência ideológica, uma supervalorização do singular, de modo que isso se torna uma
obsessão ou um fetiche: “teoria e práxis da decadência sublinham sempre a singularidade, que
se torna um fetiche como unicidade, irrepetibilidade, indissolubilidade, etc” (LUKÁCS, 1978,
p. 165)
13
.
Sob o discurso do desaparecimento das alternativas históricas capazes de amenizar os
problemas sociais, seja resultante da fragmentação dos trabalhadores ou da incapacidade dos
governos, erguem-se novos projetos sociais que se apresentam como portadores de uma das
poucas esperanças restantes. Isso pode ser percebido através das palavras de Parra (2003, p.
74), ao afirmar que é por estar “diante da gravidade dos problemas sociais e da inexistência de
projetos alternativos por parte das instituições estatais e civis”, que vários trabalhadores
desempregados, “juntamente com comunidades carentes e pequenos coletivos de ex-
empregados, tentam criar mecanismos de sobrevivência e de pertencimento social”. Como
conclusão natural derivada do atual contexto de crise e de decadência econômica e cultural,
representantes destes novos projetos sociais constatam que não existiriam mais parâmetros
históricos para referendar a luta dos trabalhadores.
Os efeitos ideológicos da crise representam, portanto, um solo fértil para o
aparecimento de projetos sociais que, mesmo sem embasamento teórico e metodológico
suficientes, apresentam-se como redentores da sociedade e capazes de sanar as mazelas
13
Lukács (1991, p. 45), ao analisar a literatura de Gottfried Benn, indica alguns resultantes dessa forma
irracional de apresentar a realidade: “A realidade efetiva não existe, escreve ele, existe apenas a consciência
humana, cujo poder criador não cessa de formar mundos, de os transformar, de os elaborar, de os assumir, de os
assinalar com a sua marca espiritual”.
23
sociais. Assim, como primeiro passo para apreender a função social desses projetos sociais e,
em destaque, da “economia solidária”, precisamos nos remeter à análise da crise capitalista.
1.1. Crise do capital, ofensiva ao trabalho e novos padrões de intervenção
social
A existência de uma crise econômica que resultou em vários problemas sociais a partir
dos anos sessenta do século XX e que teve seus maiores efeitos a partir da década de setenta,
parece ser um caso comprovado para todos os estudiosos sociais das mais diferenciadas
matizes políticas. No entanto, como comprovar a existência de um fenômeno social nem
sempre significa o mesmo que apreender corretamente as causas que levaram à sua formação,
surgiram as mais variadas análises sobre a natureza dessa crise capitalista, desde perspectivas
que buscaram abarcar a totalidade do sistema, até aquelas que advogam elementos externos
como deficiências gerenciais ou administrativas como sua única causa. Na verdade, as
próprias análises foram também resultantes diretos ou indiretos de uma posição nas lutas de
classes entre os integrantes da classe trabalhadora e os representantes do capital. Enquanto,
para estes, não se colocou em questão a natureza e a eternidade do sistema capitalista, para
aqueles coube procurar apreender com o máximo de determinações o movimento da
realidade, pois é essa a base necessária para uma proposta de transformação social viável.
Como são os representantes do capital que possuem o maior acesso à divulgação de
suas teses, a análise hegemônica adotada e amplamente difundida sobre a crise do capitalismo
e do Estado de Bem-Estar Social, mesmo nos meios acadêmicos, foi aquela que não feriu a
suposta eternidade desse sistema econômico. Relacionando suas causas com problemas
administrativos, grande parte dos teóricos sociais tentou resguardar a validade e legitimidade
do modo de produção capitalista, acusando-se agentes individuais pelos problemas surgidos.
Pouco se leu ou se escutou que a crise do capitalismo derivava de causas estruturais e, com
raras exceções advindas de teóricos filiados à tradição marxista, tratou-se aquilo que era
sintoma como sendo a causa do problema, colocando-se no banco dos réus apenas os agentes
administrativos
14
do sistema:
14
A análise hegemônica da mais recente crise do capitalismo divulgada pela mídia a partir de 2008 também
não fugiu a essa regra, uma vez que consta no senso comum capitalista que essa se deve exclusivamente à
ingerência de executivos que, levados pela desenfreada ganância individual de acumular mais riquezas,
24
Raramente desenvolvida tem sido, contudo, a concreta relevância histórico-
universal do exaurimento do denominado Estado de bem-estar social; salvo em
poucos estudos de cariz marxista, este processo foi apreendido enquanto
problemática de natureza administrativa, como ilustração da necessidade de
redirecionar políticas sociais, como fenômeno de caráter financeiro ou tributário ou,
mais geralmente, no quadro abstrato do esgotamento de padrões ideais de
socialidade (NETTO, 2001a, p. 68).
Mesmo limitando as análises da crise a problemas de natureza administrativa, era
possível identificar algumas diferenças nas colorações das teses apresentadas. Isso foi
providencial para o discurso capitalista porque, mesmo impondo claros limites de escopo nas
análises, como estaria supostamente facultada a participação de diferentes autores, aportando
variados determinantes, isso serviu para apresentar a conjectura de um ambiente democrático
do debate. Dentro desse meio, um autor que se destacou pelas suas acrobacias teóricas e
ideológicas com o objetivo de, ao mesmo tempo, se apresentar como crítico do sistema e
buscar resguardar a existência eterna do capitalismo, foi o francês Pierre Rosanvallon, teórico
auto-intitulado seguidor dos ensinamentos de Saint-Simon
15
. Para este autor, a “doença” do
Estado de Bem-Estar Social seria marcada, centralmente, pelo desequilíbrio entre a
quantidade de receitas e de despesas sociais, surgindo como únicas soluções a ampliação de
descontos obrigatórios, como impostos e taxas, ou a necessidade imperiosa de diminuição dos
serviços sociais, assim como sua focalização (MONTAÑO, 2002).
O recurso utilizado por Rosanvallon (1984) é cristalino: para defender e legitimar o
modo de produção capitalista, o autor promoveu uma análise endogenista do Estado,
atribuindo as causas de sua crise aos problemas internos que marcaram a evolução histórica
dessa instituição. Para Rosanvallon, não seria “a lógica capitalista, suas crises, suas fases, as
lutas de classes, que explicariam o desenvolvimento estatal, mas sim sua ‘lógica interna’” e,
para tanto, ele apresentou uma tese seqüencial e linear de que, “o Estado-providência seria
uma evolução do Estado-protetor, que é o próprio Estado-moderno(MONTAÑO, 2002, p..
107).
Sem pôr em questão os elementos que determinam a sociedade regida pelo capital,
Rosanvallon semeou a idéia de que a alternativa para superar os problemas existentes poderia
ser implementada sem modificar a estrutura do capitalismo, bastando, para tanto, apenas um
novo contrato social. Nessa perspectiva, não seria preciso uma transformação social para
provocaram suas causas. A diferença é que, enquanto para a crise dos anos 70, os culpados exclusivos seriam os
governantes, para a do começo do século XXI, essa responsabilidade repousaria nas cabeças dos executivos das
grandes empresas financeiras.
15
Saint-Simon foi, ao mesmo tempo, um dos principais teóricos integrantes do chamado “socialismo utópico” e
do pensamento positivista (cf. Löwy (1994, p. 22-33); BRYANT (1985, cap. II)). Algumas das principais teses
dos socialistas utópicos serão analisadas no capítulo 05 da presente tese.
25
garantir novamente a harmonia social entre as pessoas, mas somente um acordo comum no
qual todos se comprometeriam a ajudar e, nesse sentido, “nada mais natural que reclamar,
para a ultrapassagem da crise, um ‘novo contrato social’, uma sociedade solidária (NETTO,
2001a, p. 85, n. 03)”.
Além de desconsiderar as reais determinações históricas que incidem sobre a
sociedade capitalista e que provocam suas recorrentes crises, Rosanvallon promoveu uma
idealização do contrato social como alternativa de superação dos problemas sociais
16
. De fato,
esse movimento, em que se operou uma “reificação sobre o contrato social” e buscou-se
excluir os “determinantes históricos da explicação do desenvolvimento do Estado”, serviu de
base para “justificar sua proposta de ‘superação’ das duas (únicas consideradas por ele)
alternativas sociais, a (pós-)social-democracia e o neoliberalismo, sem precisar mexer em
absoluto em nenhuma variável econômica” (MONTAÑO, 2002, p. 109). Em síntese, “sua
proposta de sociedade pós-social-democrata pretende alterar relações ‘sociais’ mantendo as
relações e o sistema ‘econômico’” (IDEM).
Ainda que não se intitulasse defensor do projeto neoliberal, as análises apresentadas
por Rosanvallon serviram de legitimação para as mudanças dentro do Estado, objetivando
reduzir os gastos sociais e incrementar as relações econômicas. Como, para o autor, a fonte da
crise encontrar-se-ia no interior do Estado, pelo resultado do excesso de custos em seguridade
social e dos direitos trabalhistas, nada mais natural do que cortar esses gastos para remediar
essa “doença” do Estado. Por isso, com o objetivo de reerguer a economia capitalista, o autor
defendeu a necessidade de reformas capitaneadas pelo Estado contra as conquistas históricas
dos trabalhadores.
Como o quadro social estava marcado por baixos níveis de crescimento econômico e,
em especial, por taxas de lucratividade sem grande expressão, os representantes do capital
buscaram alternativas para reverter essa situação e, para tanto, o projeto neoliberal centrou
esforços na destruição de conquistas trabalhistas e na defesa da supremacia do capital. Dentro
desse meio, alguns autores, ainda que desautorizando sua inserção no campo do projeto
neoliberal, apresentaram análises sociais que se configuraram como extremamente funcionais
a essa nova fase do sistema capitalista. Se, dentre esses, podemos destacar a teoria da crise do
Estado-Providência de Rosanvallon como expoente internacional, dentro da realidade
brasileira, teórico exemplar foi Bresser Pereira com a defesa da Reforma Gerencial.
16
Para Rosanvallon (1984), o novo contrato social representaria a alternativa ideal para a crise da sociedade,
uma vez que estabeleceria um compromisso democrático entre todos, efetivado por concessões e compromissos
de todas as classes sociais. Assim, poderíamos nos perguntar: se existem concessões de ambas as classes sociais,
e tanto capitalistas como trabalhadores precisam pagar pela crise, qual a real mudança aventada pelo autor?
26
No contexto brasileiro foi amplamente divulgada uma análise bastante semelhante à
apresentada por Rosanvallon e que teve também por estratégia direta a destruição de
conquistas sociais históricas dos trabalhadores. Como forma de justificar a necessidade de
implementação de reformas no Estado Brasileiro nos anos 1990 no Brasil, o sr. Luiz Carlos
Bresser Pereira
17
, então ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE)
durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995 1998), divulgou a tese da
existência de uma grande crise no Estado brasileiro que o impossibilitaria de permanecer com
a manutenção de altos índices de gastos sociais, sendo preciso uma reestruturação no seu
arcabouço e funcionamento. Além disso, para o autor, em tempos de globalização, com a
integração mundial dos mercados, tornou-se imperativo
18
a necessidade de repensar o papel
do Estado, deixando de lado qualidades historicamente superadas de intervenção social, para
limitar-se a um novo papel: tornar a economia nacional competitiva internacionalmente. Vale
salientar que, segundo ele, este quadro de crise havia sido desprezado e agravado pelos
governantes anteriores, se tornando “um tema central no Brasil em 1995, após a eleição e a
posse de Fernando Henrique Cardoso” (PEREIRA, 1997, p. 01).
Para o autor, a crise no Estado brasileiro, que acompanhou o itinerário mundial de
crises nos Estados nacionais de vários países, que se tornaram inflados de gastos sociais,
endividados e incapazes de realizar suas funções, foi acarretada a partir de quatro problemas
centrais: crise fiscal, caracterizada “pela perda do crédito público e por poupança pública
negativa”; crise no modo de intervenção do Estado, caracterizada “pelo esgotamento do
modelo protecionista de substituição de importações”, que demonstrou a incapacidade da
tentativa do Estado brasileiro de criar qualidades sociais referentes a um Estado de Bem-Estar
Social; crise da administração estatal burocrática, agravada pela instauração da Constituição
de 1988, que levou a um “enrijecimento burocrático extremo”, tendo como conseqüências “o
alto custo e a baixa qualidade da administração pública brasileira”; e uma crise política, que
perpassou três momentos distintos: uma crise de legitimidade durante o regime militar, uma
crise de adaptação ao regime democrático, derivada da “tentativa populista de voltar aos anos
50”, e uma crise moral que “levou ao impeachment de Fernando Collor de Mello” (PEREIRA,
1996, p. 03 04). Em resumo, de maneira análoga a Rosanvallon, Bresser Pereira difundiu
17
Escrevemos um pequeno artigo (WELLEN, 2006) sobre a importância da atuação governamental de Bresser
Pereira para instituir o marco político e jurídico das chamadas organizações públicas-não-estatais, base para o
chamado “terceiro setor”.
18
Termo que é usado costumeiramente: “A crise do Estado impôs a necessidade de reconstruí-lo; a globalização
tornou imperativo redefinir suas funções”. (PEREIRA, 1996, p. 01); “No Brasil, a reforma do Estado começou
nesse momento, em meio a uma grande crise econômica, que chega ao auge em 1990 com um episódio
hiperinflacionário. A partir de então a reforma do Estado se torna imperiosa(PEREIRA, 1997, p. 01). (itálicos
nossos).
27
uma tese endogenista do Estado para escamotear as reais causas da crise do modo de
produção capitalista.
Analisando os casos anteriores, percebe-se, portanto, uma qualidade que perpassa
ambas as análises: a negação de uma perspectiva que apreenda o funcionamento das entidades
sociais a partir das suas relações dentro da totalidade social, confundindo aquilo que seria
causa dos problemas com suas refrações. Tal fato remete à necessidade de descarte de uma
posição mais crítica frente ao sistema, visto que, numa análise totalizante que se proponha a
apreender a real fonte da questão social, surgiria como indispensável o combate das
contradições de classes sociais, o que colocaria em questão a validade do capitalismo. Por
isso que “a ‘questão social’ é atacada nas suas refrações, nas suas seqüelas apreendidas como
problemáticas cuja natureza totalizante, se assumida conseqüentemente, impediria a
intervenção” (NETTO, 2005, p. 32).
Devido a esse fato, não é de se estranhar que durante os anos 1990 e ainda no início do
século XXI, vários foram aqueles que repetiram constantemente teses tais como estas de
Bresser Pereira, de Pierre Rosanvallon, e tantos outros autores que integram o vasto campo
teórico e ideológico que analisa os problemas do capitalismo sem questionar a ideologia da
validade eterna desse modo de produção. Na contra-corrente dessas posições hegemônicas, é
preciso afirmar que diferentemente do que advogam Rosanvallon, Bresser Pereira e tantos
outros, a partir de uma análise histórica, observa-se que o que existiu não foi uma crise
endógena do Estado, ou de elementos externos à estrutura do sistema social, mas que se tratou
de uma das constantes e recorrentes crises no modo de produção capitalista apontadas desde
os primeiros estudos econômicos de Marx (1985).
Adotando-se esse entendimento, percebe-se o equívoco de teses que limitam a crise
capitalista dos anos 1970 ao espaço interno do Estado, estabelecendo uma análise atomizada e
setorializada desta instituição. Conforme explica Behring (2003, p. 197),
em primeiro lugar, chama a atenção a explicação da crise contemporânea como crise
do ou localizada no Estado. estão indicadas suas causas e suas saídas, o que
expressa uma visão unilateral e monocausal da crise contemporânea,
metodologicamente incorreta e que empobrece o debate. Em outra perspectiva a
da crítica marxista da economia política, um patamar de observação que busca a
interação de um feixe de determinações o mais amplo possível, na totalidade
concreta –, tem-se que as mudanças em curso passam por uma reação do capital ao
ciclo depressivo aberto no início dos anos 1970 (Mandel, 1982 e Harvey, 1993), que
pressiona por uma refuncionalização do Estado, a qual corresponde a
transformações no mundo do trabalho e da produção, da circulação e da regulação.
Como todas as grandes crises do capitalismo, também a dos anos 1970 teve por base a
superprodução de mercadorias. Como é próprio da lógica do capital, para se alcançar maiores
28
taxas de lucratividade, as empresas procuram aumentar a produtividade através de
investimentos em novas formas de gestão e tecnologias, gerando um aumento da quantidade
de trabalho morto em relação ao trabalho vivo (aumento da composição orgânica do capital),
acarretando num tempo maior de retorno do investimento (maior tempo de rotação do
capital). Com a inserção de novas tecnologias e ganhos de produtividade, gera-se a
possibilidade de um processo de barateamento dos custos da produção através de demissão de
mão-de-obra, uma vez que poderá se produzir mais, com menos funcionários.
Com esse acréscimo na quantidade de produtos ofertados no mercado, assim como
pela diminuição de consumidores demandantes, o que gera uma diminuição no poder de
compra, ocorre um momento no qual parte das mercadorias não vai ser vendida, pois existirão
produtos sobrando no mercado, o que resultará na não realização da mercadoria e da mais-
valia, induzindo à queda na lucratividade e acumulação. Esse processo de crise do
capitalismo, que tinha se caracterizado mundialmente em períodos de recessões anteriores
(1824 1847; 1874 1893; e 1914 1939, sendo esta última a mais conhecida, através da
ressonância da crise de 1929, com a quebra da bolsa de Nova Iorque) veio à tona a partir de
1962 na França, ocorrendo também em outros países: Itália (1963), Japão (1964), Alemanha
Ocidental (1966/67), Grã-Bretanha (1970/71), e em escala mundial a partir de 1974/75
(MANDEL, 1982).
Vale ressaltar que, na lista anterior, não consta o nome de nenhum país que não fosse
capitalista, o que, segundo o autor, serve para demonstrar o caráter dessa crise:
A recessão generalizada da economia capitalista internacional em 1974/75 confirma
a análise marxista do caráter não-capitalista da economia da URSS, da China, dos
países chamados ‘de democracia popular’, de Cuba, do Vietnã e da Coréia do Norte.
Enquanto todos os países capitalistas industrializados, sem exceção alguma, foram
envolvidos no turbilhão da recessão, não houve em nenhum Estado operário
burocratizado nem recuo absoluto da produção, nem reaparição de demissões ou
desemprego massivo. Ao contrário, estes prosseguiram seu crescimento em 1974/
1975, até mesmo, em certas ocasiões, com uma taxa de crescimento superior à dos
anos precedentes (MANDEL, 1990, p. 119).
Como conseqüência da crise do capitalismo, surgiram quedas nas taxas de acumulação
e um profundo estado de recessão, apontando a necessidade de uma reestruturação produtiva
para aumentar as taxas de exploração em vistas ao alcance de maiores taxas de lucros. Nesse
sentido, como forma de sustentação política e ideológica desta proposta, a burguesia elegeu
como mais eficiente a proposta neoliberal que estava sendo germinada desde o final da década
de 1940 e que, finalmente, teria sua chance de mostrar serviço. Para dar seqüência e
amplitude ao processo de reestruturação do capital, se fez necessária a implementação de um
sistema que fornecesse vazão e legitimidade às novas regras produtivas, ou seja, uma
29
superestrutura política e ideológica que atendesse às mudanças impostas pelos capitalistas
com o objetivo de ampliar as taxas de lucros. Por isso que podemos definir o neoliberalismo
também como “uma superestrutura ideológica e política que acompanha uma transformação
histórica do capitalismo moderno” (THERBORN, 2003, p. 39).
Em concomitância à implementação de novas formas de produção, avançando em
relação ao padrão fordista, gerou-se a produção flexível que teve como aspecto de maior
importância a ampliação da extração de mais-valia, seja esta relativa ou absoluta. Assim, o
capitalismo flexível ocupou parte do lugar da produção em massa, utilizada anteriormente
para atender a uma massificação do consumo
19
, auxiliado pelos investimentos do Estado na
elevação do poder de compra da população. Todavia, este não era possível de se realizar
sozinho, requerendo uma intervenção social para obstruir as organizações da classe
trabalhadora que tensionavam para baixo a taxa de exploração e impediam a geração de
montantes maiores de lucros.
Uma vez que “toda crise implica a irremediável reestruturação da relação capitalista e,
portanto, simultaneamente, de suas formas econômicas e políticas” (FIORI, 2003, p. 109), ou
ainda, sendo as crises, “por excelência, o momento em que se repõem ou se refazem as
relações entre formas políticas e econômica da dominação” (IDEM, p. 110), para reerguer o
sistema capitalista, era indispensável, além das alterações no modo de produção, mudanças no
aparelho estatal. Surgiu, neste contexto, a fomentação de um Estado que conseguisse auxiliar
no processo de renovação das forças da burguesia, gerando um processo dialético gradativo
com duas diretrizes centrais. Para deixar o mercado livre seria preciso, de um lado, prover a
garantia da estabilidade monetária e a privatização de organizações estatais
20
; e de outro lado
uma ofensiva às organizações, direitos e conquistas da classe trabalhadora.
Unindo um discurso ideológico a uma proposta de maior exploração da força de
trabalho, os precursores do neoliberalismo se afastaram de uma análise histórica que, mais
uma vez, demonstrou a validade da teoria marxista das crises econômicas, negando a
realidade concreta e a inevitabilidade das crises do capital, e situaram aqueles que foram as
vítimas no lugar de réus. Escamotearam que a crise econômica foi gerada por processos de
superprodução e situaram as pressões da classe trabalhadora sobre o Estado e as empresas
como principais fatores da recessão econômica. A crise econômica e social do capitalismo,
segundo o discurso mistificador dos neoliberais, tinha sua causa no excessivo poder de
19
Ainda que essa massificação fosse estruturada sobre profundas contradições sociais e com clara limitação aos
países imperialistas e mais desenvolvidos.
20
Sobre os processos de privatização no Brasil, os textos de maior destaque ainda são as obras de Aluísio Biondi
(1999; 2000).
30
barganha das organizações da classe trabalhadora que pressionavam as empresas para obter
maiores garantias de trabalho e menor exploração, acarretando na diminuição das taxas de
lucro e acumulação, além de pressionarem o Estado para assegurar direitos trabalhistas e
sociais, o que derivou no aumento dos gastos sociais. Sob esse prisma, a pressão por parte dos
trabalhadores, ao implicar diretamente na redução das taxas de lucros empresariais induziria,
inclusive, ao aumento da inflação
21
.
Segundo os representantes do ideário neoliberal, se estas conquistas da classe
trabalhadora se mantivessem, permaneceria um ambiente de limitação humana, ou, nas
palavras de um de seus idealizadores, estaria mantido um grande impeditivo contra a
liberdade das pessoas. Nessa visão, ao inviabilizar o livre funcionamento do mercado
capitalista, as conquistas dos trabalhadores representariam sérios entraves contra a liberdade
humana e, por isso, deveriam ser destruídas. Apresentados por Milton Friedman, na
proclamação da fundação da Sociedade de Mont Pélerin, como termos inalienáveis para a
liberdade humana, a propriedade privada e o mercado de concorrência deveriam aparecer em
qualquer sociedade acima de todos os outros direitos (NETTO, 2001a).
Apesar de ser instaurado apenas após a crise capitalista dos anos 1970, o projeto
neoliberal vinha sendo gerado algumas décadas, a partir da obra O Caminho da
Servidão
22
, de Friedrich Hayek, publicada pela primeira vez em 1944. Segundo Anderson
(2003, p. 09), o neoliberalismo representou “uma reação teórica e política veemente contra o
Estado intervencionista e de bem-estar”. Esse texto de Hayek expressou bem suas teses,
externando “um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado
por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente
econômica, mas também política”.
Para o representante máximo do neoliberalismo, nada seria mais aviltante para o ser
humano do que as limitações do mercado e da concorrência por meio da planificação da
21
Esse discurso catastrófico foi tão disseminado que levou os trabalhadores a crerem que não deveriam exigir
aumento de salários, uma vez que essas pressões seriam as principais determinantes para as grandes taxas de
inflação. É importante destacar que a definição dos salários, além de basear-se no mínimo necessário para a
reprodução da força de trabalho, também é influenciada pelas lutas de classes, além de outros fatores históricos e
sociais: “A grandeza do salário compõem-se de dois elementos: o físico e o histórico-social. O primeiro diz
respeito aos bens de primeira necessidade imprescindíveis à sobrevivência do operário e da sua família. O
segundo inclui aqueles bens que, com variações para cada país, se incorporaram por tradição ao padrão de vida
dos trabalhadores, elevando-o acima do limite físico mínimo” (GORENDER, 1986, p. XIX-XX).
22
Destacamos que o livro é dedicado “aos socialistas de todos os partidos” e que na quarta capa consta um
comentário elogioso de John Keynes.
31
economia, uma vez que afetaria diretamente a dignidade de todos
23
. Um dos principais
argumentos utilizados por Hayek é que, apesar de existir desigualdade nessas duas formas de
organização da economia, apenas na economia planificada essa desigualdade afetaria
negativamente a dignidade do ser humano:
Haverá sempre desigualdades que parecerão injustas aos que as sofrem, decepções e
infortúnios imerecidos. Mas quando essas coisas acontecem numa sociedade
conscientemente dirigida, a maneira como as pessoas reagem é muito diferente
daquela como o fazem quando tais desigualdades e infortúnios não resultam de
escolha consciente. A desigualdade gerada por forças impessoais é, sem dúvida,
melhor suportada, e afeta bem menos a dignidade do indivíduo, do que quando é
intencional. No regime de concorrência, não representa desconsideração ou ofensa à
dignidade de uma pessoa ser avisado pela direção da firma de que seus serviços
não são necessários ou de que não se lhe pode oferecer emprego melhor (HAYEK,
1987, p. 112).
No entanto, um lembrete aos desavisados: dentro da cartilha neoliberal, mercado livre
não rima diretamente com falta de governo ou com Estado fraco
24
, pois, como forma de
remediar esse quadro negativo advindo das conquistas dos trabalhadores, seria preciso
“manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no
controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas”
(ANDERSON, 2003, p. 11). Para assegurar a plena liberdade econômica (logicamente que
apenas para aqueles que possuem riquezas acumuladas) e fazer com que as transações
comerciais voltassem a fluir normalmente, seria preciso estabelecer como meta suprema a
estabilidade monetária, que seria alcançada por meio de três diretrizes: disciplina
orçamentária; contenção dos gastos sociais; e, finalmente, por uma política de geração de
desemprego, ampliando o exército industrial de reserva e, pondo em risco, destarte, a
existência dos sindicatos. Como, na visão de seus representantes, dentro da sociedade regida
pelo mercado, a desigualdade social supostamente não afetaria negativamente na dignidade
humana, não existiriam argumentos contrários ao advento do projeto neoliberal, e, portanto,
“uma nova e saudável desigualdade iria voltar a dinamizar as economias avançadas”
(IDEM)
25
.
23
Ainda que, conforme veremos no capítulo 05, com o desenvolvimento do capitalismo, são os próprios
capitalistas que produzem os monopólios, os conglomerados, assim como se utilizam do Estado para combater o
desequilíbrio entre oferta e demanda no mercado.
24
Na verdade, como elucida Batista (1994) a proposta de um “Estado Mínimo” tornou-se obsoleta com o
desenvolvimento do capitalismo e, se essa poderia ser válida para o contexto econômico de Adam Smith e David
Ricardo, quando prevalecia a concorrência de pequenas e médias empresas, a partir dos modelos modernos de
competição capitalista, ficou patente sua impossibilidade concreta.
25
Tecendo comentários sobre as contradições dentro das organizações de “economia solidária”, o maior
expoente brasileiro desse projeto social ressalta os textos de John Rawls (1971), em que esse autor defende a
permanência da desigualdade como elemento importante para o sucesso de todos. Ou seja, a desigualdade é
apresentada não como empecilho para a melhoria social, mas como ingrediente necessário para o bem-estar
32
Vale ressaltar que o contexto social era marcado pela força e organização dos
sindicatos e dos trabalhadores; por isso, foi importante, para instaurar os veis de dominação
ansiados pelo capital, um combate ao trabalho. Desta forma, se por um lado o Estado deveria
ampliar ainda mais o financiamento da burguesia, por outro, precisava combater a classe
trabalhadora, efetivando a máxima de um Estado máximo para o capital e mínimo para o
trabalho (NETTO, 2001a). Para garantir a possibilidade de aumento dos lucros, o Estado
neoliberal, como foi visto, passou, de um lado, a restringir sua atuação social, e de outro, a
expandir o financiamento ao capital. Por isso, passou a ampliar as características de um
Estado repressor do trabalho, estruturado centralmente no combate à organização sindical e
outras conquistas trabalhistas, e de provedor de auxílios para o reerguimento do capital.
É neste contexto que surgem as teorias sobre a escassez do Estado e a impossibilidade
do mercado de se responsabilizar pelos custos sociais. Ora, no momento em que o Estado se
retira do campo social para abrir espaço para formas mais ampliadas de exploração do
trabalho, esta instituição é posta como incapaz de solucionar ou amenizar problemas sociais e,
quando se passa que o Estado está endividado devido aos excessivos gastos sociais, completa-
se a versão ideológica de sua conseqüente escassez e crise fiscal.
Se o Estado, para permitir e incentivar o alcance de dilatados lucros, realiza as mais
diversas atitudes, desde a renúncia fiscal, passando pela diminuição dos impostos sobre
grandes fortunas, até financiamento direto das grandes empresas, fica patente uma concessão
de grande parte de seus recursos arrecadados, provocando uma diminuição considerável na
sua receita. De maneira similar, como a lógica privatista se alastra por diversas áreas do
Estado, desprivilegiando os investimentos sociais (saúde, educação, seguridade social etc.),
em prol de contratos de pagamentos das agências capitalistas internacionais (com destaque
para os pagamentos fiéis de juros ao FMI), a capacidade de manutenção de políticas sociais de
qualidade passa a ser minimizada.
Completando o ciclo, o mercado, ou o capital, situado como se não se relacionasse
diretamente com o desemprego e a desigualdade social, devendo preocupar-se apenas na
geração de lucro (que seria, ideologicamente vinculado à geração de emprego), aparece como
isento de responsabilidade pela resolução desses problemas, e muito menos exposto como seu
causador. No final, tem-se a visão de um Estado incapaz e um mercado que em nada se
relacionaria com os problemas sociais. Dois setores atomizados e desvinculados da realidade:
do Estado não se pode cobrar nada, uma vez que, devido à sua situação frágil, este não pode
social e, sob esse prisma, a desigualdade seria “tolerável desde que ela sirva para melhorar a situação dos menos
favorecidos” (SINGER, 2002, p. 13).
33
fazer nada além do que é corrente; e do mercado não se deve exigir nada, visto que, por causa
das suas características econômicas peculiares, que determinam a limitação de seu escopo,
este já faz o máximo possível e qualquer ajuda que exceda deve ser entendida exclusivamente
como um imenso favor ao povo. Com a imagem desses dois setores separados pelas suas
características conjunturais específicas, um apenas político e outro somente econômico, resta
o principal: cuidar do social.
Esse é o contexto econômico e político dos anos 1990, e é sobre ele que se ergue
grande parte dos novos projetos sociais que prometem alternativas sociais menos radicais e
mais “solidárias”. É por isso que, como afirmamos no início desse texto, grande parte dessas
experiências se pauta num discurso de desaparecimento de alternativas históricas, sejam estas
dos governantes ou advindas da classe trabalhadora. Como, a partir da crise do capitalismo
nos anos 1970, vislumbrou-se um horizonte mundial sem grandes perspectivas de sucesso nas
lutas por conquistas sociais, as experiências em tela tendem a resignar-se diante desse quadro
e fazer apenas aquilo que for possível, ou seja, promover mudanças laterais que não colocam
em questão a estrutura do modo de produção capitalista. No lugar de lutar por uma
transformação social radical da sociedade, limita-se a mudanças sociais dentro da ordem
estabelecida
26
.
Além disso, existe outro forte elemento ideológico que incide diretamente nesses
projetos sociais e que é o mesmo que acompanhou todo o percurso do Estado neoliberal. Esse
elemento se encontra na base da resposta para a seguinte pergunta: uma vez que, ao destruir as
garantias e direitos dos trabalhadores que foram conquistados após vários anos de luta,
promove-se como conseqüência uma conjuntura marcada pela constância de conflitos sociais
que coloca em questão a própria legitimidade dos governos, como seria possível que o Estado
neoliberal mantivesse sua existência?
Como a ofensiva neoliberal repercutiria, inevitavelmente, numa crise de legitimação,
acarretada pelo aumento dos problemas sociais, seria preciso também uma ampliação da
dominação ideológica
27
. Dessa maneira, como forma de combater as pressões dos
trabalhadores, o Estado neoliberal atuaria em duas frentes: material, precarizando,
desempregando e empobrecendo a classe trabalhadora; e ideológica, disseminando formas
26
Analisaremos de que forma “economia solidária” objetiva instaurar algumas dessas mudanças sociais no
capítulo 05.
27
Vale salientar que esta obteve um êxito muito superior após a desaparição da ameaça comunista, com a
derrocada do chamado socialismo realmente existente. Diferentemente de vários autores (como Singer (1999, p.
21)) que analisam de forma superficial e desconsideram os ganhos sociais desse sistema social planificado, é
importante frisar que não foram poucos os avanços tanto internos, quanto os proporcionados pelo seu temor de
existência, nos países capitalistas (NETTO, 2001a).
34
“alternativas” de pensamento que induzissem à apatia política, além de se auto-intitular como
única solução possível para o futuro da humanidade.
Com o objetivo de propagar uma visão de mundo que favoreceria a sua legitimação, a
proposta neoliberal difundiu a premissa de que não existiriam alternativas a tal modelo, de
maneira que todos, sejam seguindo-a cegamente ou tecendo críticas, teriam de adaptar-se às
suas normas (ANDERSON, 2003). Em última análise, esta ideologia buscou proclamar “o
triunfo final e definitivo do capitalismo”, ocultando, pois, a transitoriedade à qual esse modo
de produção está condenado (BORÓN, 2003, p.185). O neoliberalismo, desta forma, fixou-se
como o senso comum dessa época, dificultando a discussão de novas (ou velhas, mas não
ultrapassadas) propostas, ridicularizando quem ousa discuti-las, calando vozes
questionadoras.
Se na etapa histórica anterior, na primeira fase do capitalismo monopolista, a
estratégia de hegemonia do capital apontou para a diminuição das “resistências operárias
mediante a incorporação sistemática de demandas trabalhistas, mostrando um sistema (e um
Estado) capaz de gerar ‘bem-estar social’ para todos”, a partir da fase neoliberal do
capitalismo, “a estratégia aposta na desmobilização mediante a resignação frente a fenômenos
supostamente naturais, irreversíveis, inalteráveis” (MONTAÑO, 2002, p. 142).
Com o intento de disseminar e cristalizar a ideologia neoliberal, fez-se preciso
providenciar um ataque às “bases da esperança que se construiu nos anos mais duros. O que
não é uma coisa de menor importância.[...] Metamorfoseia esse movimento de esperança num
movimento derrotista” (OLIVEIRA, 2003, p.27). Desta forma, os ingredientes da ofensiva
neoliberal, próprios de “qualquer doutrina classista hegemônica”, foram usados para que o
“sistema produtivo se configure por categorias de validade atemporal ou de duração infinita,
por determinações de leis naturais e racionais” (ROMÃO, 2000, p.143). Serviriam, portanto,
para profetizar o “fim da história”
28
.
Outro efeito mistificador do neoliberalismo foi a ampla divulgação de teses de que as
inovações organizacionais implementadas a partir dos anos 1970 nas grandes empresas
acarretariam em melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores e que, portanto, as pressões
trabalhistas por melhores condições de trabalho não fariam mais sentido. A mistificação
propagada era que, além da melhoria na qualidade de vida dos trabalhadores, a reestruturação
28
Expressão usada por Fukuyama, funcionário “do Departamento de Estado norte-americano que publicou um
pequeno artigo na revista National Interest intitulado ‘O fim da história?’. O artigo repercutiu tanto que, de 15 a
17 de maio de 1991, a Associação dos Amigos da Libraire Sauramps organizou um debate em Montpellier,
destacando a discussão sobre este tema. Os anais foram publicados sob a coordenação de Bernard Lefort em
1995. Impressionado com o próprio sucesso Fukuyama escreveu um alentado volume intitulado O fim da
história e o último homem (1992)” (ROMÃO, 2000, p.143).
35
produtiva faria surgir novos patamares de democracia interna na empresa e, desta forma, a
gestão participativa e a repartição dos lucros com os trabalhadores colocariam um ponto final
na contradição entre trabalho e capital. Estaria esboçando-se a “sociedade pós-capitalista”
29
.
Outra falsa promessa da reestruturação produtiva foi a de que, com a tecnologia, o
caminho natural seria o surgimento de novas ocupações menos precárias, que indicavam a
necessidade de maior qualificação dos trabalhadores. A realidade, entretanto, foi inconteste e
provou justamente o inverso dessas conjecturas para a maior parte da classe trabalhadora. A
verdade é que, mesmo que não se possa negar que o desenvolvimento tecnológico promova
novas ocupações em que a maior qualificação representa um ingrediente central, ao inseri-las
dentro da totalidade dos trabalhos, estas constituem uma pequena exceção.
Algumas palavras do principal formulador das diretrizes gerenciais da reestruturação
produtiva servem para questionar a falsa promessa da automação:
No sistema Toyota de Produção, pensamos a economia em termos de redução da
força de trabalho e de redução de custos. A relação entre esses dois elementos fica
mais clara se consideramos uma política de redução da mão-de-obra com um meio
para conseguir a redução de custos, que é a mais crítica das condições para a
sobrevivência e o crescimento de uma empresa. [...] A redução de força de trabalho
na Toyota é uma atividade que atinge toda a empresa e tem por fim a redução de
custos (OHNO, 2007, p.69-70).
Na visão de Ohno (idem, p. 82) não se trata, portanto, de investir em novas tecnologias para
superar atividades repetitivas, precárias e alienantes, mas simplesmente para incremento de
mais-valia: “eu acho que este tipo de ação para poupar mão-de-obra está completamente
errado. Se a automação está funcionando bem, ótimo. Mas, se ela é utilizada simplesmente
para permitir que alguém fique mais à vontade, então ela é muito cara (sic)”.
O fato comprovado é que a reestruturação produtiva e a implementação de novas
tecnologias dentro das empresas capitalistas nem se destinaram à abolição de trabalhos
precários baseados em atividades repetitivas e mecânicas, nem instauraram uma necessidade
de qualificação dos trabalhadores, visto que somente uma margem pequena dos trabalhos foi
reformulada para atender a um grau maior de qualificação. Como a inovação tecnológica
localiza-se, dentro do modo de produção capitalista, em estado de subordinação ao processo
de valorização do capital, apenas alguns poucos “processos requerem maior instrução
(produção experimental ou de ponta), enquanto que outros não exigem esta requalificação
(fabricação massiva estandardizada
30
)” (KATZ, 1996, p. 410).
29
Título do livro de um dos principais “gurus” da gerência capitalista: Drucker (1999). Uma crítica
desmistificadora dessa obra encontra-se em Tragtenberg (1989).
30
Na verdade, o que é uma tendência do modo de produção capitalista é a constante simplificação do trabalho,
com a finalidade de diminuir os custos com a formação do trabalhador: “‘Numa fábrica para destilação de
36
Com o advento da reestruturação produtiva, não obstante os avanços tecnológicos
instalados nas empresas capitalistas, manteve-se e ampliou-se, na maior parte dos empregos,
uma estrutura de trabalho precária. No lugar de repercutir em melhorias para os trabalhadores,
o desenvolvimento da tecnologia foi implementado pelos capitalistas para rebaixar as
condições de trabalho e diminuir os gastos com a força de trabalho. As mudanças ocorridas no
mercado capitalista nas últimas décadas foram marcadas pela ampliação da exploração do
trabalhador, através das quais “os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder
sindical e da grande quantidade de mão-de-obra excedente (desempregados ou
subempregados) para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis” (HARVEY, 2005,
p. 143). Como afirma o autor, por contratos de trabalho flexíveis podemos entender a
ampliação de formas precárias de trabalho:
Mesmo para os empregados regulares, sistema com ‘nove dias corridos’ ou jornadas
de trabalho que têm em média quarenta horas semanais ao longo do ano, mas
obrigam o empregado a trabalhar bem mais em períodos de pico de demanda,
compensando menos horas em períodos de redução de demanda, vêm se tornando
muito mais comuns. Mais importante do que isso é a aparente redução do emprego
regular em favor do crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou
subcontratado (IDEM).
Mapeando essas transformações no mercado de trabalho nas últimas décadas, Harvey
aponta a existência de dois conjuntos fundamentais: de um lado, um pequeno grupo de
trabalhadores que ocupam os cargos centrais e decisivos das empresas e que, por isso,
possuem algumas vantagens de trabalho, como contrato permanente, segurança de emprego e
perspectivas de promoção e qualificação. No outro lado, em que se encontra a maior parte dos
trabalhadores, estão presentes aqueles que atendem às funções periféricas e integram dois
subgrupos de trabalhos precários: os primeiros, exemplificados nas secretárias, trabalhos de
rotina, ou manuais com pouca especialização, aportam habilidades extensamente disponíveis
no mercado e apresentam altas taxas de rotatividade; e os segundos, em maior mero e pior
situação, que são os empregados de tempo parcial, temporários, casuais ou subcontratados, e
que não possuem nenhuma segurança de emprego. Na visão do autor, a tendência é que os
trabalhadores que integram o primeiro grupo representem, cada vez mais, uma pequena
porcentagem dos provenientes do segundo grupo: “todas as evidências apontam para um
crescimento bastante significativo desta categoria de empregados nos últimos anos”
(HARVEY, 2005, p. 144).
alcatrão (Lyons, 1949), o preparo de um ‘bom destilador’, que anteriormente levava perto de seis meses, hoje
leva três semanas. Isso se deve sobretudo ao processo de destilação contínua, em decorrência de cada vez mais
numerosos e mais sensíveis instrumentos de medida’” (FRIEDMAN apud BRAVERMAN, 1987, p. 195).
37
Por atuarem em atividades secundárias da produção que não oferecem riscos
significantes para a preparação e venda das mercadorias, a sorte da maioria dos trabalhadores
está determinada pela acentuação das condições precárias de trabalho
31
. Diante desse fato, sob
a perspectiva do capital, torna-se extremamente sedutora a possibilidade de diminuir os custos
sobre a produção a partir do trabalho terceirizado e sub-contratado:
Observa-se que, movido pelo impulso do lucro, o capital exige modificações nas
suas condições de acumulação. Tais modificações implicam sacrificar um dos
termos da relação, que é, sem dúvida, o trabalho, ou melhor, os custos dele. Assim,
emergem as formas de trabalho precário, pelas quais são pagos baixos salários sem
nenhuma garantia de proteção social. Naturalmente, esse impulso capitalista de
precarização do trabalho atinge diretamente as atividades secundárias que, sem
nenhum prejuízo para o produto final, podem ser executadas por pequenas empresas
subcontratadas, por cooperativas, e por trabalho domiciliar. As atividades centrais,
mais qualificadas, e também mais produtivas, ainda permanecem, em muitos países,
amparadas pela lei e cercadas de benefícios indiretos que a empresa oferece
(TAVARES, 2004, p. 94).
Ao unir todas essas características apresentadas, podemos vislumbrar qual foi o
panorama das últimas décadas do século passado e que serviram de base histórica para o
advento de experiências sociais tais como esta que nos dedicamos a estudar. Destruição das
conquistas históricas dos trabalhadores; privatização das empresas estatais; precarização e
focalização das políticas sociais; transferência dos serviços públicos para empresas privadas
com um suposto caráter público; disseminação da ideologia neoliberal fomentando a imagem
de eternidade do capitalismo e do fim da história; ofensiva contra as organizações econômicas
e políticas dos trabalhadores; implementação de uma reestruturação produtiva nas grandes
empresas acarretando em várias demissões e no recrudescimento da precariedade do trabalho
e da exploração do trabalhador. São essas as determinações principais que consubstanciaram o
contexto em que surgiu um grande número de experiências sociais e, dentre elas, a “economia
solidária”.
1.2. Reestruturação produtiva e “economia solidária”
É fato consensual entre os autores que representam a “economia solidária”, que a base
histórica em que floresceu a maior parte destas experiências refere-se ao contexto de crise
econômica e social das últimas décadas do século passado. Como afirmam França Filho e
31
Conforme veremos no capítulo 03, as condições precárias de trabalho é uma realidade constante das
organizações de “economia solidária”.
38
Laville (2004, p. 21), por exemplo, “as razões do surgimento e desenvolvimento do fenômeno
relacionam-se, em geral, ao contexto de crise econômica mais ampla que afeta as diferentes
economias do planeta”. Na visão dos autores, o nascimento e desenvolvimento de projetos tais
como a “economia solidária”, poderiam ser hipotecados às conseqüências desse contexto de
crise, em especial aos impactos que incidiram sobre o Estado e o mercado, pois “tal crise vem
minar as bases do mecanismo histórico de regulação das sociedades na modernidade,
marcados pela sinergia entre Estado e mercado”, uma vez que “é justamente quando estes dois
principais agentes de regulação da sociedade começam a dar sinais de fraqueza na sua
capacidade de satisfazer necessidades, que outros fenômenos tomam corpo e se desenvolvem”
(IDEM).
Na opinião dos autores, como a crise capitalista provocou sérias rupturas nas “relações
de sinergia” entre Estado e mercado, surgiu não apenas um grave quadro pautado por
problemas sociais, mas um espaço vago para o seu enfrentamento. A crise do capitalismo teria
não somente provocado sérios danos sociais, mas também abalos institucionais, com seqüelas
na insuficiência do Estado e do mercado para intervir na sociedade e amenizar a questão
social. A lacuna surgida pela crise nas instituições estatais e civis resultaria na ausência de
alternativas sociais capazes de transformação social, sobrando apenas como saída uma forma
de atuação política e de intervenção social mais localizada e de menor expressão. Além disso,
é importante destacar que essas qualidades de intervenção social limitam-se aos exemplos em
que se pode falar de impactos sociais expressivos, uma vez que, na maioria dos casos, essas
experiências restringem-se a buscar formas imediatas de sobrevivência.
Prefaciando a obra anteriormente citada, Singer expõe de maneira mais detalhada
como teria acontecido esse processo de crise do Estado e florescimento da “economia
solidária”. Na opinião do autor, como “os serviços sociais do Estado se burocratizaram em
excesso e não conseguem mais dar conta da demanda, sobretudo depois que ela se expandiu
enormemente em função da crise do trabalho e do desemprego em massa”, surgiram, na
Europa, como uma “resposta à insuficiência das políticas ativas de geração de emprego”
algumas organizações da “economia solidária” (SINGER, 2004, p. 08). Para tanto, esse
projeto social buscou articular “a prestação de serviços públicos (esfera não-mercantil) com a
atividade de voluntários (esfera não-monetária) e de profissionais, que vendem seus serviços
(esfera mercantil)” (IDEM).
Essas citações servem para exemplificar a visão hegemônica adotada nesse projeto
social: a hipótese de que as experiências de “economia solidária” surgiram para ocupar os
espaços deixados pela crise que afetou o mercado e o Estado. Vale salientar que pouco se
39
discute sobre o caráter ou a causa dessa crise, identificando-se apenas alguns dos seus efeitos,
o que provoca muitas vezes uma análise setorialista ou atomizada, ao atribuir a existência da
crise ao espaço interno das instituições, ou ainda, a uma degenerescência natural dentro
destas, como seria o caso da burocracia
32
.
Essa perspectiva encontra-se expressa nas palavras Yunus (2006, p. 265), uma das
principais referências da “economia solidária”
33
:
O setor público não cumpriu seu papel, ou, pelo menos, está perdendo velocidade,
apesar de todos os nossos esforços. Ele se arruinou pela burocratização, fortalecida
com subvenções, proteção econômica e política e falta de transparência.
Por isso que, na opinião do autor, o Estado deveria abdicar da responsabilidade de prestação
de serviços de seguridade social, transferindo sua função para o setor privado:
acho que, mesmo para essas dificuldades específicas, o Estado, em sua forma atual,
deveria se desobrigar quase integralmente (com exceção da fiscalização e da
política externa) de sua função, para deixar o setor privado um setor organizado
de acordo com o modelo Grameen, quer dizer, animado por uma preocupação social
de bem-estar social – desempenhar seu papel (IDEM, p. 262).
Assim, em paralelo à identificação dos sintomas da crise do Estado, se traça uma reta
em que a “economia solidária” aparece como alternativa social para superá-los. Essa
linearidade faz surgir, desde já, um problema de análise na relação da crise capitalista dos
anos 1970 e suas implicações sociais, e a aparição de experiências da “economia solidária”,
uma vez que, dentro das obras analisadas, aqueles são utilizadas como forma de legitimar a
importância dessa. Observa-se que apontar os efeitos negativos da crise capitalista serve para
uma idealização automática do caráter questionador e transformador da ordem social,
supostamente presente na “economia solidária”. A efeito de exemplo, percebemos que na obra
citada anteriormente (FRANÇA FILHO, LAVILLE, 2004), ora a “economia solidária” é
apresentada como uma alternativa para suprir a precariedade do Estado, ora, referindo-se às
mudanças históricas que hipoteticamente colocariam em questão a centralidade do trabalho,
como forma de amenizar a crise do trabalho e de combate de uma nova questão social
34
.
32
Esse tipo de análise, mesmo sendo proveniente de autores que defendem posições políticas distintas, se
aproxima das já comentadas anteriormente, com as de Bresser Pereira e de Pierre Rosanvallon. Este último autor
serve, inclusive, para fundamentar algumas posições de França Filho e Laville (2004) sobre a crise do Estado.
Dedicaremos mais espaço a essa análise no próximo capítulo da presente tese, ao tratar da relação entre
“economia solidária” e outros fenômenos sociais, como o “terceiro setor”.
33
Muhammad Yunus, após terminar o doutorado em economia na Universidade de Vanderblit, nos EUA,
retornou ao seu país e, durante a cada de 70, criou um projeto de micro-crédito para a população de baixa
renda em Bangladesh intitulado de Grameen Bank. Por causa do sucesso desta experiência, foi laureado com o
Prêmio Nobel da Paz em 2006. Analisaremos, ao longo de nossa tese, algumas de suas idéias centrais.
34
Os autores se baseiam nos postulados de Robert Castel (1995) para questionar a centralidade do trabalho,
assim como para afirmar a crise da sociedade salarial. Referências críticas à suposta crise da centralidade do
trabalho encontram-se em: Lessa (2007) e Antunes (2003). Introduziremos esse debate no capítulo 03.
40
Torna-se preciso, portanto, uma distinção imediata: é fato que grande parte dessas
experiências sociais surgiram
35
ou se desenvolveram a partir da crise do capital e, em
conseqüência, da crise das instituições capitalistas. Todavia, não se pode, a partir dessa
evidência, inferir que as respostas que resultaram deste contexto brotaram a partir de lacunas
deixadas por estas entidades, ou pior, que possuem uma lógica ou função social contrárias a
estas. Representa um equívoco concluir antes da análise que, por se instalarem em espaços
antes ocupados por instituições capitalistas e/ou estatais, essas experiências funcionam como
antípodas ao capital. Indicações para esse problema analítico podem ser apresentadas,
logicamente, no decorrer da pesquisa
36
.
Conforme demonstra a tabela 01, a quantidade de experiências de “economia
solidária” no Brasil passou por um elevado crescimento nas últimas décadas. Enquanto até
1950 existiam apenas 65 organizações, a partir do começo do século XXI surgiram mais de
dez mil empreendimentos, totalizando mais de vinte mil empreendimentos, o que indica um
crescimento de 16.289,23% em pouco mais de cinqüenta anos.
Tabela 01: Quantidade de empreendimentos da “economia solidária”
1900 a 1950 1951 a 1970 1971 a 1980 1981 a 1990
1991 a 2000 2001 a 2007
Total
65 139 264 1.903 8.554 10.653 21.578
Crescimento: 113,85% 89,93% 620,83% 349,50% 24,54% 16.289,23%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
A pesquisa da Secretaria Nacional de Economia Solidária SENAES (2007) –,
também indica que integram esses empreendimentos 1.687.035 pessoas, sendo 630.082
mulheres e 1.056.952 homens. Além disso, mesmo antes da publicação desses dados, já se
observava que, em quase metade das cidades brasileiras, existia experiências de “economia
solidária”, uma vez que em pesquisa realizada em 2005, “foram identificadas cerca de 14.954
Empreendimentos Econômicos Solidários em 2.274 municípios do Brasil (o que corresponde
a 41% dos municípios brasileiros)” (SENAES, 2006, p. 15).
Esses dados comprovam a afirmação de Singer (2003, p. 25), de que “a economia
solidária começou a ressurgir, no Brasil, de forma esparsa na década de 1980 e tomou impulso
crescente a partir da segunda metade dos anos 1990”. No entanto, como afirmamos
35
Para alguns autores, como Paul Singer, a “economia solidária” representa um projeto social de largo curso
histórico, iniciado a partir das primeiras experiências dos chamados “socialistas utópicos”. Hipótese essa que
acreditamos ser bastante questionável, como veremos no final do capítulo 05.
36
Um dos pontos centrais de nossa pesquisa é a análise da hipótese de que a “economia solidária” não apenas
conseguiria sobreviver, mas se multiplicar dentro dos interstícios do mercado capitalista, a ponto de ameaçar a
permanência do modo de produção vigente. Investigaremos essa hipótese ao longo de nossa tese.
41
anteriormente, precisamos apreender com cuidado a frase seguinte desse autor, de que a
“economia solidária” resultaria “de movimentos sociais que reagem à crise de desemprego em
massa, que tem seu início em 1981 e se agrava com a abertura do mercado interno às
importações, a partir de 1990” (IDEM).
De forma análoga, podemos analisar a seguinte passagem abaixo, concordando com a
primeira sentença de que o crescimento do desemprego advindo da crise econômica serviu
para ampliar as organizações de “economia solidária”, mas apontando para a necessidade de
problematização de seu complemento, de que se tratam apenas de associações de teor
igualitário e democrático:
No Brasil, o elevado desemprego dos últimos anos vem provocando a proliferação
dessas associações econômicas de inspiração igualitária e democrática, que
assumem formas de cooperativa, pré-cooperativa, empresa de autogestão e clube de
trocas de mercadorias e serviços mediante o uso de uma moeda alternativa de
circulação local. Todo esse conjunto é chamado economia solidária (SOUZA;
CUNHA; DAKUZAKU, 2003, p. 07).
Justificamos nossa postura porque, dentro desses mais de vinte mil empreendimentos,
existe uma grande diversidade de objetivos, diretrizes e organizações. Antecipando alguns
resultados de pesquisa, podemos afirmar que consta uma miríade de experiências dentro da
“economia solidária” e que estas, na sua essência, não apontam nem para uma funcionalidade
contrária ao capitalismo e sua conseqüente defesa dos trabalhadores e de implementação de
espaços igualitários e democráticos, nem para uma atuação autônoma e sem laços com
instituições capitalistas. Tal fato conduz também a não aceitação imediata de que a “economia
solidária” seria composta exclusivamente de movimentos sociais que buscam soluções para o
desemprego.
Conforme demonstra Cruz-Moreira (2003, p. 207), a nova safra de experiências
cooperativas, base da “economia solidária”, engloba diversas organizações de caráter
diferenciado:
além do Instituto de Cooperativismo e Associativismo (ICA), do Ministério da
Agricultura, que tradicionalmente se encarregava de assessorar as cooperativas
rurais e agrícolas, e da Organização das Cooperativas do Brasil (OCB), aparecem
nessa nova onda as cooperativas produtivas do MST (em âmbito nacional) e as
cooperativas de trabalho nos centros urbanos de São Paulo (assim como no
Nordeste), iniciativas de empresas privadas como o caso da multinacional Levi
Strauss & Co, e programas públicos como o Programa de Autoemprego (PAE), do
governo do Estado; o Fórum Municipal de Economia Solidária (que se expande por
municípios vizinhos) e que entre suas linhas de trabalho tem uma de apoio a
cooperativas de produção.
Além disso, questiona-se o grau de independência dessas organizações, visto que,
como relata o autor, existem vários casos em que as empresas estatais e comerciais auxiliam
42
no desenvolvimento dessas experiências de “economia solidária”, como é o caso da
cooperativa União Sul:
A cooperativa União Sul se formou com o apoio do Programa de Auto-Emprego
(PAE) do estado de São Paulo, obtendo principalmente capacitação organizacional e
contábil. Posteriormente a ação definida com a ITCP-USP [Incubadora Tecnológica
de Cooperativa Popular da Universidade de São Paulo] foi mais dirigida à
capacitação produtiva e ao mercado. Foi durante esse período que se promoveram
capacitações de modelagem e costura junto ao Senai, e a ITCP firmou um convênio
com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) para a realização de
oficinas de desenho e desenvolvimento de produtos, teoria da cor e criatividade. A
Superintendência do Trabalho Artesanal e a Comunidade (Sutaco) apoiaram
também a comercialização de produtos artesanais e uma séria de eventos comerciais
por meio da cessa de espaço na principal loja que este organismo do governo
mantém (CRUZ-MOREIRA, 2003, p. 219 – 220).
O próprio Paul Singer (2003, p. 27), visto como o maior expoente da “economia
solidária” no Brasil, relata que, mesmo que seja difícil propor alguma generalização para o
conjunto destas experiências, é possível apontar duas tendências: que “a maioria das
cooperativas sobrevive por anos, apesar da extrema debilidade do que chamamos bases de
sustentação
37
”, e que a “maioria das cooperativas ainda depende muito do apoio das entidades
que as gestaram e continuam as acompanhando(SINGER, 2003, p. 27). Ainda que limite
essas relações de dependência perante organizações oriundas de supostas expressões
“autônomas” da sociedade civil, como a Associação Nacional de Empresas Autogestionárias e
de Participação Acionária – Anteag, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –
MST
38
, Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida (a campanha de Betinho),
Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares ITCP, Agência de Desenvolvimento
Solidário ADS, Unitrabalho, Conselho Nacional de Bispos do Brasil CNBB, da ONG
Fase, o autor explicita, no final de sua lista, o apoio por parte “das prefeituras de Porto
Alegre, de Blumenau e de Santo André, do programa de auto-emprego da Secretaria do
Trabalho de São Paulo e do Sindicato os Metalúrgicos do ABC, que formou a Unisol
Cooperativas” (IDEM, p. 26).
Outro exemplo dessa nebulosa relação de independência das organizações da
“economia solidária” perante as instituições governamentais e capitalistas, encontra-se na ICC
Portosol Instituição Comunitária de Crédito Portosol que, por causa do seu desempenho
na área de microcrédito no Brasil, foi considerada, pelo BNDES – Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social – uma experiência modelar a ser seguida e, nesse
sentido, organizou seminários para divulgar a sua metodologia de sucesso para outras
37
Vale salientar que o autor não indica o que entende por bases de sustentação (produtividade, competitividade,
tecnologia, ideologia, política, ética etc?)
38
Como veremos a seguir, a partir da análise da tabela 03, não existem dados que relacionem diretamente o
projeto da “economia solidária” com a conquista de terras ou reforma agrária.
43
organizações. Além do apoio financeiro do BNDES, esse seminário, também recebeu auxílio
financeiro e institucional das seguintes organizações: GTZ – Sociedade Alemã de Cooperação
Técnica, PMPA Prefeitura Municipal de Porto Alegre, CEF Caixa Econômica Federal,
Banco Mundial, Banco Central do Brasil, BID Banco Interamericano de Desenvolvimento,
e PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
39
(BARCELLOS;
BELTRÃO, 2003).
Da mesma forma, como elucidam seus próprios representantes, as referências teóricas
e ideológicas adotadas na “economia solidária”, nem sempre se situam numa matriz
questionadora do modo de produção capitalista. Exemplo disso é que, para disseminar a idéia
de que “a experiência internacional vem demonstrando a importância e o potencial existente
nos programas de crédito para os pequenos empreendimentos”, Barcellos e Beltrão (2003, p.
166), baseiam-se na seguinte posição do Banco Mundial:
existe certo espaço para a ação pública direta, especialmente no padrão dos serviços
de infra-estrutura urbana e para evitar a canalização de crédito subsidiado a firmas
favorecidas. A pequena empresa considera a falta de crédito como uma limitação,
mas a experiência em países da Ásia oriental mostra que, desde que tenha acesso ao
crédito e aos mercados, a pequena empresa pode desenvolver-se, ainda que sujeita a
juros reais da ordem de 40% (Banco Mundial, 1995: 41).
Para ampliar ainda mais a complexidade dessa análise, remetemos-nos às palavras de
uma estudiosa da “economia solidária”, ao afirmar que as práticas apresentadas como
alternativas de geração de trabalho e renda em busca de sobrevivência não são, como é de
costume pensar, exclusivas de setores populares, mas, em grande parte, trata-se de opção da
classe dominante e de seus representantes para legitimar o sistema vigente:
É importante considerar que as estratégias de sobrevivência não são só de iniciativas
dos setores populares; elas também representam o resultado das políticas
promovidas por agentes externos (organismos internacionais, governos,
empresários, organizações não governamentais, igrejas etc.) que têm permitido de
alguma maneira a reinserção dos excluídos em atividades terceirizada e
precarizadas. De uma maneira geral, têm sido formas de “aliviar os pobres”,
amortecer os conflitos sociais, e, ao mesmo tempo, criar as condições para favorecer
os processos de reestruturação produtiva, e, com ela, a flexibilização das relações
entre capital e trabalho. Ou seja, o estímulo à geração de trabalho e renda vem sendo
parte integrante das políticas neoliberais, entre elas a chamada globalização da
economia (TIRIBA, 2003, p. 42).
Diante do exposto, verificamos que apreender essa relação “peculiar” de autonomia
das organizações da “economia solidária” frente aos poderes governamentais e representantes
da classe dominante, representa uma das maiores dificuldades ao pesquisador que se debruça
39
Essa relação não é exclusiva do Brasil, uma vez que, segundo Demoustier (2001) as iniciativas de “economia
social e solidária” européias possuem incentivo de várias instituições públicas, destacando-se: o Ministério das
Finanças, através do ADIE Associação para o Desenvolvimento da Iniciativa Econômica; e a Delegação
Interministerial integrada pelos Ministérios de Emprego e Solidariedade; da Organização do Território e Meio
Ambiente; e da Cidade.
44
sobre esse objeto de pesquisa. Não obstante as indicações de dependência destes
empreendimentos perante os representantes da classe dominante, segue presente dentro das
teses da “economia solidária” a idéia de que este projeto social não apenas objetiva, mas se
encontra capacitado à promoção da transformação social para superar o modo de produção
capitalista. Barbosa (2007, p. 23 24) observou que, no discurso hegemônico, “a economia
solidária apresenta-se como uma alternativa, capaz de superar até a exploração social. Uma
ante-sala de experimentos socialistas ou de um outro mundo possível”. Nas palavras de
Singer (2003, p. 13), seu representante mais famoso, a “economia solidária” representaria um
outro modo de produção a ser implementado por aqueles que sofrem as contradições do
capitalismo, visto que a economia solidária surge como modo de produção e distribuição
alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se encontram (ou
temem ficar) marginalizados do mercado de trabalho”.
Contudo, mesmo para os defensores da “economia solidária”, essa não é uma opinião
consensual, pois encontramos, em outra obra dedicada à defesa da “economia solidária”, uma
posição no mínimo distinta da anterior:
A economia solidária não constitui, todavia, uma nova forma de economia que viria
acrescentar-se às formas dominantes de economia, mercantil e não-mercantil. Pela
sua existência, ela constitui muito mais uma tentativa de articulação inédita entre
economias mercantil, não-mercantil e não-monetária numa conjuntura que se presta
a tal, haja vista o papel conferido aos serviços de terceirização das atividades
econômicas (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004, p. 107).
Ou ainda, noutra citação dos mesmos autores:
Pensamos, dessa forma, que a economia solidária constitui muito mais uma
tentativa de articulação inédita entre economias mercantil, não-mercantil e não-
monetária, ao invés de uma nova forma de economia que viria a se acrescentar às
formas dominantes de economia, no sentido de uma eventual substituição. Este
conceito de economia solidária nos aparece, então, como uma projeção ao nível
micro ou mesossocial deste conceito macrosocial de economia plural: ele designa
efetivamente realidades micro e mesossociais, que constituem formas híbridas das
economias mercantil, não-mercantil e não-monetária, e não se deixa apreender pela
figura única do “puro” mercado, conhecido apenas pelos economistas ortodoxos
(IDEM, p. 187).
Mesmo diante de terminologias pouco compreensíveis utilizadas pelos autores
40
, fica
explícito que existe uma relação de não complementaridade dessa visão com a apresentada
40
Observamos, de forma recorrente, que os autores fazem uso espontâneo e aleatório de termos sem precisar
suas determinações históricas e afastando-os da função de reflexo da realidade concreta. Exemplo disto é o uso
de terceirização com um sentido singular e de difícil apreensão: “Em primeiro lugar, ela toma seu lugar num
movimento inédito de terceirização da economia que complexifica a composição das associações: em torno dos
serviços solidários formam-se agrupamentos nos quais participam diferentes categorias de atores (usuários,
profissionais, voluntários), enquanto o associativismo do século XIX exprimiu-se mais a partir de agrupamentos
em torno de uma categoria homogênea (operários, consumidores ou camponeses)” (FRANÇA FILHO;
LAVILLE, 2004, p. 105 – 106).
45
anteriormente por Singer
41
, o que dificulta a apreensão crítica da “economia solidária”.
Exemplo cristalino de tal desacordo teórico e analítico entre os representantes da “economia
solidária” encontra-se no difuso posicionamento sobre o caráter híbrido dessas organizações.
De acordo com Singer (2003, p. 13), “o modo solidário de produção e distribuição
parece à primeira vista um híbrido entre o capitalismo e a pequena produção de mercadorias.
Mas, na realidade, ele constitui uma síntese que supera ambos”. Segundo o autor, a
cooperativa de produção protótipo da “economia solidária” não poderia apresentar um
caráter híbrido porque representa uma associação exclusiva de “produtores, e não seus
fornecedores ou clientes, como o fazem as cooperativas de consumo, de crédito, e de compras
e vendas” (SINGER, 2002, p. 90). Conforme justifica, “por isso ela não pode ser híbrida,
como estas outras cooperativas, que combinam igualdade e democracia no relacionamento
externo da empresa com desigualdade e heterogestão em seu interior” (IDEM). Enquanto que,
para França Filho e Laville (2004, p. 106), a hibridação constituiria “uma estratégia de
consolidação para os serviços” da “economia solidária” responsável por elemento central da
sua identidade específica, a saber, “as combinações equilibradas entre recursos monetários e
não-monetários que podem garantir tão bem a autonomia dos serviços (uma garantia sobre sua
multidependência), quanto sua viabilidade econômica”.
Tal variação nas posições apresentadas prejudica a apreensão precisa da “economia
solidária”, e tal fato agrava-se quando buscamos compreender o sentido dado pelos autores à
suposta posição de autonomia destas organizações frente às instituições governamentais e
representantes da classe dominante. Demarcando a especificidade da autonomia nas
experiências de “economia solidária”, os autores citados apresentam um meio termo entre
dependência e autonomia e indicam que existiria autonomia mesmo com a dependência com
essas instituições: “este critério indica, sobretudo, a autonomia da gestão do empreendimento,
o que não impede sua interdependência em relação a outras organizações sob a forma de
parcerias ou arranjos interinstitucionais de cooperação que preservam sua autonomia” (IDEM,
p. 168).
De toda forma, baseando-se em palavras citadas destes autores, podemos afirmar
que algumas das fraturas nas “relações de sinergia” entre o Estado e o mercado foram
ocupadas por organizações da “economia solidária”. Entretanto, não se pode concluir com
segurança que não somente existam esses níveis de autonomia apregoados pelos autores,
como que entre essas organizações e as empresas estatais e comerciais capitalistas exista uma
41
Ainda que, conforme informamos anteriormente, seja o próprio Singer o autor do prefácio da obra de França
Filho e Laville (2004).
46
relação de exclusão. O que se verifica na realidade é uma analogia das referidas “relações de
sinergia”.
O que podemos afirmar até aqui é que, diante deste vasto e complexo conjunto de
experiências, trata-se de uma tarefa difícil determinar a especificidade das organizações de
“economia solidária”. Não obstante, além da diversidade nas experiências concretas,
coexistem diferentes relatos, análises e estudos dentro de um mesmo campo teórico. Estamos
diante, portanto de um solo teórico e ideológico bem escorregadio, no qual o objeto de estudo
espinhoso aponta para a complexidade de distintas análises que perpassam os mais variados
pontos de vista, nem sempre assumidos. Inclusive, devido a esta miscelânea de posições,
torna-se bastante ousado identificar uma unidade que permeie as premissas da economia
solidária” ou, ainda mais, um elemento estrutural que não se limite aos dizeres apregoados ou
ao que se encontra na superfície dos discursos de seus representantes.
Podemos concluir que não existe um consenso entre os autores sobre a história,
importância e função social da “economia solidária”. Não apenas se apresentam autores com
perspectivas teóricas, metodológicas e políticas distintas, como, algumas vezes, observam-se
posições diferentes em uma mesma obra sobre a “economia solidária”
42
. Nesse sentido, é
importante precisar que, em pesquisas sobre a “economia solidária”, não apenas seus autores
apresentam variadas posições em disputa, nem sempre conciliáveis, mas que posições
discordantes também se encontram dentro de textos de um mesmo autor, como é o caso de
Paul Singer. Sobre isso, valem as palavras precisas de Germer
43
(2006, p. 196):
É preciso alertar para o fato de que os escritos de Singer sobre a “economia
solidária” possuem características que tornam difícil a crítica. Por um lado, o autor
não se esforça em precisar os fundamentos teóricos das suas teses e propostas e dos
conceitos que utiliza. O autor faz uso de conceitos marxistas sem se ater ao seu
sentido original e sem chamar a atenção do leitor para o sentido alterado que lhes
dá. Por outro lado, Singer muda de opinião sobre pontos específicos do tema, de um
escrito a outro, sem aparentemente preocupar-se em evitar afirmações contraditórias
e, quando incorre nelas, não adverte para a mudança de opinião nem explica os seus
motivos.
Para comprovar a veracidade das palavras de Germer sobre a incoerência do
representante da “economia solidária”, poderíamos citar algumas passagens diferentes
presentes numa mesma obra de Singer. No início do seu texto, ao tecer críticas a Marx e
Engels, Singer (2000, p. 17) se posiciona de forma contrária ao mercado e defende a
42
Exemplo disso é o livro de Souza et al (2003), em que encontramos não somente perspectivas teóricas,
metodológicas e políticas bastante diferentes sobre a “economia solidária”, mas identificamos confrontos
internos e sérios questionamentos sobre a validade dessa proposta.
43
Além de apontar para a imprecisão categorial de Paul Singer, o texto de Germer (2006) é preciso na
desmistificação das teses de que a “economia solidária” representaria um projeto histórico da classe trabalhadora
e que se configuraria como um modo de produção típico do socialismo. Analisaremos essa idéia no capítulo final
da tese.
47
necessidade do planejamento: “um planejamento geral de uma economia nacional não pode
ser a generalização dos planejamentos empresariais, cuja harmonização se faz em mercados”.
Entretanto, ao demarcar os limites do sistema social baseado na “economia solidária”, ele
adverte: “precisamos de mercados porque é a forma de interação que conhecemos, que
permite manter as diversas burocracias separadas, evitando que um poder total se aposse da
economia” (IDEM p. 34). De maneira análoga, noutras passagens, observamos que, se de um
lado, o autor clama pela “invenção de um sistema de planejamento que não pode ser a mera
generalização do planejamento empresarial capitalista, pois este pressupõe o mercado e a
anarquia da produção social” (IDEM, p. 17), de forma inusitada, ensina que mercados são
essenciais para possibilitar ao indivíduo o direito de escolha, como trabalhador e como
consumidor” (IDEM, 2000, p. 39).
Esse comportamento também é repetido por outros autores, inclusive ao referirem-se
às próprias organizações da “economia solidária”. Ao tratar do cooperativismo, Veiga e
Fonseca (2001, p. 13) afirmam que nada garante que essa organização sirva para defender os
interesses da classe trabalhadora, uma vez que “o cooperativismo tem sido proposto tanto por
governos e indivíduos de direita reacionários, conservadores como pela esquerda pelos
progressistas, por aqueles que lutam por sociedades mais justas”, da mesma maneira que o
“cooperativismo tanto pode ser um instrumento de emancipação dos trabalhadores como pode
ser usado para tornar, para esses mesmos trabalhadores, mais desvantajosas as relações de
trabalho” (IDEM, p. 14).
Nessas passagens apresenta-se um sério questionamento sobre a função social de uma
forma de organização das mais importantes da “economia solidária”, cogitando-se se esta
serviria para fortalecer ou para fazer retroceder a luta dos trabalhadores contra o capital. No
entanto, mesmo com a clareza dessas citações, os autores afirmam em seguida que “o ideal
cooperativista se disseminou pelo mundo e atua em todos os setores da economia”, visto que é
“reconhecido como o sistema mais adequado, participativo, justo, democrático e indicado
para atender às necessidades e aos interesses específicos dos trabalhadores. É o sistema que
propicia o desenvolvimento integral do indivíduo por meio do coletivo” (IDEM, p. 17).
Mesmo utilizando apenas uma obra para análise, surgem, portanto, várias dúvidas sobre a
visão hegemônica acerca da função social das organizações de “economia solidária”, e isso é
resultante da posição no mínimo controversa de alguns de seus representantes.
Se pudermos falar de uma definição oficial da “economia solidária”, esta seria
referente à apresentada pelo órgão máximo desse movimento aqui no Brasil: a SENAES
Secretaria Nacional de Economia Solidária entidade subordinada ao Ministério do Trabalho
48
e Emprego do governo brasileiro. Essa entidade foi responsável por uma extensa pesquisa,
que contou com a colaboração de mais de duzentas entidades, utilizando mais de setecentos
entrevistadores que visitaram quase “quinze mil empreendimentos econômicos solidários
buscando informações sobre sua trajetória, sua atividade econômica, sua forma de gestão,
suas dificuldades e principais demandas”, que resultou no SIES – Sistema Nacional de
Informações da Economia Solidária –, “um banco de dados eletrônico, com acesso facilitado e
público” (SENAES, 2006, p. 07). Dentro desse banco de dados
44
, conforme visto no início do
nosso texto, o então Ministro do Trabalho e do Emprego do Brasil, Luiz Marinho, definiu a
“economia solidária” como “uma resposta importante dos trabalhadores e das comunidades
pobres em relação às transformações ocorridas no mundo do trabalho” (IDEM).
Observamos que essa afirmação coaduna-se inteiramente com a posição de Singer, de
que a economia solidária” representaria um projeto social resultante da luta dos
trabalhadores pela manutenção de seus empregos, assim como pela tentativa processual de
implementar organizações autogeridas no lugar das empresas capitalistas. Segundo o autor, na
América Latina, a “economia solidária” seria um produto da luta dos trabalhadores “pela
preservação de postos de trabalho mediante a substituição de firmas capitalistas em crise por
cooperativas formadas pelos próprios trabalhadores ameaçados pelo desemprego”, da mesma
forma que pelas lutas voltadas para a “criação de novos postos de trabalho mediante a
conquista da terra via reforma agrária ou pela organização de pessoas excluídas da produção
social em diversas modalidades de empreendimentos autogestionários” (SINGER, 2004, p.
09).
Como Singer é o presidente da SENAES
45
, é natural que sua posição seja a
hegemônica dentro dessa instituição, apresentando-se a “economia solidária” como
decorrência natural de um projeto social de resistência da classe trabalhadora contra os efeitos
da crise do capitalismo nas últimas décadas do século passado. Como destacamos
anteriormente, essas posições promovem um automatismo entre a crise capitalista e o
nascimento da “economia solidária” como conseqüência natural da luta dos trabalhadores.
44
Essa versão do SIES foi publicada nacionalmente sob o título de Atlas da Economia Solidária”. Integram o
SIES também outras pesquisas mais recentes apenas disponíveis pela Internet como o Relatório Nacional e
os Relatórios Regionais, Estaduais e Municipais sobre a Economia Solidária. Todas as tabelas apresentadas ao
longo do nosso texto foram construídas a partir do Relatório Nacional da Economia Solidária.
45
A Agência Brasil, divulgou, no dia 27 de janeiro de 2003, que Paul Singer seria o principal responsável pela
gestão da “Economia Solidária” no governo Lula: “O economista e professor da Universidade de São Paulo, Paul
Singer, será o secretário de Economia Solidária do governo federal. A criação da Secretaria é uma iniciativa do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o convite ao professor foi feito pelo ministro do Trabalho, Jacques
Wagner. Ainda não uma data marcada para a oficialização da Secretaria, que será subordinada ao Ministério
do Trabalho” (VEIGA, 2003).
49
Relação essa que, para ser testada, precisa, no mínimo, de várias evidências, sendo que estas
nem foram apresentadas satisfatoriamente por Singer, nem constam nas publicações da
SENAES.
Por outro lado, os dados publicados pela SENAES apontam para a problematização da
própria definição sobre a “economia solidária” presente nas obras de Singer, especialmente
em três dimensões: na existência de cooperativas como base desse projeto social; na
relevância da ocupação de fábricas capitalistas, passando estas a serem controladas pelos
trabalhadores; e na defesa da luta e conquista de terras e reforma agrária. A primeira
dimensão se destaca na visão de Singer (2002, p. 09), ao afirmar que a cooperativa de
produção representa o protótipo de “empresa solidária”, uma vez que nessa “associação entre
iguais em vez do contrato entre desiguais”, “todos os sócios têm a mesma parcela de capital
e, por decorrência, o mesmo direito de voto em todas as decisões” e, por isso, não existe
“competição entre os sócios: se a cooperativa progredir, acumular capital, todos ganham por
igual”. E as outras, constam nas frases citadas anteriormente do autor.
Conforme demonstra a tabela 02, diferentemente do que apregoa Singer, a cooperativa
não representa a principal forma de organização da “economia solidária”, uma vez que essa
aparece em terceiro lugar, atrás das associações e dos grupos informais, com um pouco menos
de 10% dos empreendimentos identificados. Comprova-se assim, que os dados estatísticos da
SENAES demonstram evidências contrárias à primeira sentença de Singer.
Tabela 02: Tipo de empreendimento da "economia solidária"
Tipo de organização Quantidade %
Grupo informal 7.978
36,50%
Associação 11.326
51,81%
Cooperativa 2.115
9,68%
Sociedade mercantil por cotas de responsabilidade limitada 54
0,25%
Sociedade mercantil em nome coletivo 56
0,26%
Sociedade mercantil de capital e indústria 192
0,88%
Outra 138
0,63%
TOTAL 21.859
100,00%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
Para apreender a relação da “economia solidária” com o movimento de ocupação e
controle de fábricas capitalistas por trabalhadores e pela conquista de terras e atuação na
reforma agrária, é preciso analisar a tabela 03. Nesta tabela constam os dados referentes aos
motivos que levaram à criação dos empreendimentos de “economia solidária”, e, como se
50
pode perceber, menos de 1% destes se relacionam à recuperação de empresas pelos
trabalhadores, assim como não consta nenhuma razão que se relacione com a conquista de
terras ou reforma agrária
46
. Fica explícito, portanto, que os dados da pesquisa da SENAES
desautorizam as outras dimensões expostas por Singer como basilares da economia
solidária”.
Também através da leitura da tabela 03, podemos comprovar a tese de que a
“economia solidária” surge como conseqüência dos efeitos da crise do capitalismo,
especialmente para servir como alternativa de emprego ou como complementação de renda
47
.
Essa motivação não ficou, contudo, restrita ao contexto brasileiro ou latino americano, uma
vez que se observa crescimento de distintas experiências de “economia solidária” em vários
países, como é o caso do Complexo de Mondragón
48
, que, mesmo com a crise do capitalismo
na Espanha, permaneceu com níveis elevados de crescimento:
O mero total de trabalhadores no agrupamento Mondragón passou de 18.733 em
1980 para 19.161 em 1985. Foi um crescimento de apenas 2%, mas foi positivo. No
qüinqüênio seguinte, o crescimento foi de mais de 20%, passando o total de 23.265
em 1990 (dados do Relatório de 2000, colhidos no site da MCC) (SINGER, 2002, p.
102, n. 06).
Ainda segundo o autor, esse conjunto espanhol de empreendimentos de “economia
solidária” encontra-se, ainda no início do século XXI, aumentando sua quantidade: “hoje a
Mondragón Corporación Cooperativa (MCC) está em franca expansão”, englobando
46
Vale ressaltar que, nos dados apresentados pela SENAES (2007) que serviram de base para a construção da
tabela 03, os entrevistados poderiam indicar até três motivos para a criação do empreendimento de “economia
solidária” e, no entanto, realizamos o cálculo das porcentagens considerando a indicação do motivo
independentemente da ordem em que esse apareceu, relacionando-se apenas com a quantidade dos entrevistados.
Por exemplo, se, na pesquisa da SENAES, no que se refere aos empreendimentos de “economia solidária”
criados por motivo de recuperação de empresas por trabalhadores, 89 (0,42% do total de respostas) tiveram essa
razão como primeiro motivo, 37 (0,23% do total de respostas) como segundo motivo e 36 (0,36% do total de
respostas) como terceiro, nós apresentamos apenas a proporção entre todas as respostas e o número de
entrevistados, totalizando 0,76%. Quando se calcula a média das respostas essa porcentagem cai para 0,34%, o
que torna ainda mais problemática a segunda dimensão analisada.
47
No decorrer da pesquisa analisaremos a configuração desses empregos, demonstrando que, em sua grande
maioria, se trata de formas precárias e temporárias de ocupação. Por enquanto, como forma de exemplificação,
vale a constatação empírica de Nardi e Yates (2005, p. 101): “Sua vinculação aos empreendimentos solidários é
vista como temporária e o emprego é considerado um quebra-galho para diminuir sua condição precária, mas
que será substituído prontamente caso surja uma oportunidade de emprego melhor remunerado e estável. A
ambição dos jovens centra-se no sonho de conseguir uma posição no mercado formal que lhes permita ter
segurança”.
48
A Corporação Cooperativa de Mondragón seria, na opinião de Singer (1992, p. 98) uma das maiores
referências para a “economia solidária” por ser, provavelmente o “maior complexo cooperativo do mundo, que
combina cooperativas de produção industrial e serviços comerciais com um banco cooperativo, uma cooperativa
de seguro social, uma universidade e diversas cooperativas dedicadas à realização de investigações tecnológicas”
e, mesmo assim, manter a “aplicação coerente dos princípios do cooperativismo a todas estas sociedades”. Em
outras palavras, essa experiência seria um modelo de organização democrática e igualitária (SINGER, 2003a).
Uma visão oposta a essa, em que o Complexo de Mondragón destaca-se na anulação dos direitos dos
trabalhadores, na promoção de desigualdades econômicas e na deterioração dos princípios cooperativistas,
encontra-se em: KASMIR (1999).
51
aproximadamente “53.377 postos de trabalho, com um crescente ritmo de expansão nos
últimos anos: 1997 34.397; 1998 42.129; 1999 46.862 e 2000 53.377. Nestes últimos
quatro anos, o nível de ocupação de Mondragón cresceu 55%” (SINGER, 2002, p. 103 – 104).
Tabela 03: Motivos para criação dos empreendimentos de “economia solidária”
Motivo %
1. Uma alternativa ao desemprego 46,47%
2. Uma fonte complementar de renda para os(as) associados(as) 45,02%
3. Obtenção de maiores ganhos em um empreendimento associativo 37,26%
4. Desenvolvimento de uma atividade onde todos são donos 28,46%
5. Condição exigida para ter acesso a financiamentos e outros apoios 25,71%
6. Desenvolvimento comunitário de capacidades e potencialidades 13,93%
7. Alternativa organizativa e de qualificação 10,11%
8. Motivação social, filantrópica ou religiosa 7,37%
9. Outro. Qual? 6,71%
10. Recuperação por trabalhadores de empresa privada que faliu 0,76%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
Assim, se por um lado, Singer possui razão ao afirmar que as organizações de
“economia solidária” floresceram em vários países a partir da crise capitalista dos anos 70 do
século passado, equivoca-se, segundo os dados da pesquisa da SENAES, ao inferir uma
relação direta destas com a luta dos trabalhadores pela ocupação de fábricas capitalistas ou de
terras para reforma agrária. Além disso, como não consta nenhuma indicação na pesquisa da
SENAES que indique o contrário, devemos problematizar a afirmação bastante divulgada
pelos seus representantes de que a “economia solidária” representa um projeto de resistência
dos trabalhadores contra o capitalismo
49
. Os dados estatísticos não corroboram com as
conjecturas levantadas pelos representantes da “economia solidária” e, nesse sentido,
podemos dar razão a Germer (2006), quando afirmou que o esforço em precisar termos
teóricos, assim como manter sua coerência de sentido, ou contextualizar suas teses a partir de
evidências históricas, o é uma das principais preocupações presentes nas obras de Singer
sobre a “economia solidária”
50
.
Da mesma forma, outro problema recorrente nas referências da “economia solidária”
que prejudica o desenvolvimento da análise é a incoerência não apenas teórica, mas também
49
Na verdade, conforme veremos mais na frente, os dados da SENAES servem para demonstrar o grau de
precarização do trabalho nos empreendimentos de “economia solidária”, o que representa não um avanço, mas
um retrocesso para a classe trabalhadora.
50
Outras hipóteses apresentadas por Germer (2006), como a de que a “economia solidária” poderia representar
uma política da classe dominante para neutralizar o ímpeto revolucionário da classe trabalhadora, serão tratadas
ao longo de nossa pesquisa.
52
de cadência do texto, apresentando desconexão gica. Exemplar típico deste movimento é o
livro “Trabalho e linguagem: para a renovação do socialismo” do atual Ministro da Educação
Fernando Haddad (2004), no qual passagens são repetidas muitas vezes com os mesmos
termos em capítulos diferentes. Isso não somente impõe empecilhos na coerência gica,
uma vez que, ao se ler essa obra, percebe-se a repetição de assuntos em locais diferentes,
dificultando a localização do patamar de desenvolvimento da idéia do autor
51
, como também
faz surgir um sentimento de engano ou de fraude. Além disso, os termos utilizados não são
responsavelmente precisados, e várias propostas não são aprofundadas de forma competente a
ponto de permitir ao leitor uma apreensão satisfatória.
O que se observa, na análise desse objeto de pesquisa, é que a economia solidária”
integra múltiplas experiências, e tal fato prejudica uma análise homogênea sobre o tema. Por
isso, é importante uma advertência sobre essa proposta: quando se fala da “economia
solidária”, dentro dos limites do Brasil, não se pode esquecer que esse projeto social perpassa
realidades diferentes, com objetivos distintos, nem sempre com funcionalidade oposta ao
sistema vigente. Em outras palavras, segundo Gaiger (2003, p. 269), torna-se preciso
que dediquemos algumas linhas a uma ressalva teórica importante: quando falamos
de economia solidária, seja no Rio Grande do Sul seja em outras regiões do país,
não podemos perder de vista que o conceito recobre uma realidade diversa, feita de
motivações e iniciativas com origens e natureza distintas, próprias a cada lugar e
circunstância, sem que comportem, necessariamente, uma expectativa ou
compromisso prévio com a construção de uma nova totalidade social (GAIGER,
2003, p. 269).
Tal fato não impede, contudo, que busquemos apreender qual a função social
hegemônica desse projeto, ou que tendência se estabelece a partir de suas relações com o
modo de produção capitalista.
1.3. Autogestão, cooperativismo e “economia solidária”
Ainda que existam diferentes perspectivas, objetivos e sentidos dentro da “economia
solidária”, isso não inviabiliza uma pesquisa que se proponha à apreensão da funcionalidade
desse projeto social frente ao sistema capitalista, e da sua relação com a luta da classe
51
Expresso nas amigáveis palavras do apresentador da obra: “como os capítulos m unidade própria, nem
sempre os rigores da dialética exigem obediência estrita na leitura, e é bem possível começar pelo fecho”
(COHN, 2004, p. 11 – 12).
53
trabalhadora contra os representantes do capital. Na nossa pesquisa, concedemos privilégio à
identificação da tendência central presente nesse conjunto de organizações e, para tanto,
tentamos entender sua função social a partir da sua tipicidade e não pelos exemplos singulares
que representam uma exceção
52
. Nossa preocupação central foi entender de que forma a
“economia solidária” se relaciona com o sistema capitalista: se de maneira funcional, ao
servir para legitimação do capitalismo, como impeditivo às revoltas organizadas pelos
trabalhadores, ou, por outro lado, se representa uma força social na luta pela superação
desse sistema social.
Apesar de atentar para a diversidade de experiências existentes, assim como para as
variações nas posições teóricas e políticas de seus representantes, faz-se preciso, para a
realização de nossa pesquisa, encaixar as diversas definições dentro de um mesmo campo de
análise. Nesse sentido, as diversas categorizações sobre esse conjunto de experiências, como a
de “economia popular e solidária” utilizada por França Filho e Laville (2004), a de
“socioeconomia” aplicado por Arruda (1997), a de “sócio-economia solidária” empregado por
Veiga e Fonseca (2001), a de “economia social” registrado por Develtere (1998), a de
“economia da dádiva” citada por França Filho e Laville (2004) e Singer (2004), dentre outras,
serão tratadas como partes integrante da “economia solidária”.
Por outro lado, de maneira inversa, mas pelo mesmo objetivo de tentar identificar uma
unidade nessas experiências, descartaremos categorias que não remetam ao contexto histórico
estudado: a da realidade concreta do sistema capitalista dentro do Brasil. Nesse sentido, não
analisaremos referências a organizações dentro de um sistema social distinto do capitalismo,
após a derrubada do Estado capitalista. Para entender a realidade concreta brasileira, esta
pesquisa não teria um sentido preciso caso não delimitasse a “economia solidária” aos seus
rebatimentos dentro do sistema capitalista, e tal fato implica, categoricamente, em abolir
qualquer analogia entre a função social das organizações integrantes deste modo de produção
com aquelas historicamente pertinentes à fase de transição socialista.
Entendemos, por exemplo, que se trata de um erro a utilização de experiências de
cooperativas ou outras organizações autogestionárias que existiram em alguns países
socialistas, como nos casos das antigas Iugoslávia e Tchecolosváquia, com a finalidade de
respaldar o projeto da “economia solidária” dentro de contextos bem diferentes. A nosso ver,
recurso tal como o utilizado por Singer (2000, p. 41 42) não auxilia na análise da realidade
brasileira:
52
Mais à frente apresentaremos algumas premissas metodológicas de nossa pesquisa.
54
Não obstante, continuou viva a idéia de que trabalhadores associados poderiam
organizar-se em empresas autenticamente autogestionárias e desafiar assim a
prevalência das relações capitalistas de produção. No início da Revolução Russa,
essa prática foi bastante geral e inspirou a Oposição Operária durante anos. Ela
surgiu em outras oportunidades revolucionárias, na Guerra Civil Espanhola, na
Polônia e em diversas ocasiões. O governo comunista da Iugoslávia, chefiado por
Tito, após romper com Stalin, em 1948, introduziu a autogestão em todas as
empresas do país, combinando-a com o planejamento geral, possivelmente na linha
do que defendia a Oposição Operária, no começo dos anos 20. Foi a mais extensa
experiência de socialismo autogestionário, tendo durado quase 40 anos.
Gradativamente, o planejamento geral foi sendo substituído por uma espécie de
socialismo de mercado, infelizmente distorcido pelo regime de partido único.
Referências e analogias tais como estas, que realizam alusões a formações histórico-
sociais extremante distintas, equalizando-as na sua relação com uma suposta igualdade nas
formas de “economia solidária”, são tratadas como enganadoras por desviar o sentido
concreto de cada experiência. Representa uma atitude mistificadora a defesa da “economia
solidária” como superação do capitalismo por meio de conjecturas e supostos exemplos destas
em sociedades socialistas. Desconsiderar o contexto histórico que influenciou na configuração
dessas experiências é uma falha séria, visto que, a depender da sua realidade concreta, esse
tipo de organização pode apresentar distintos sentidos:
A utopia comunitária leva naturalmente, em Goodman como em outros autores, à
reivindicação da autogestão, isto é à administração da economia pelos próprios
produtores. É um dos temas mais discutidos pela esquerda francesa, onde, depois de
prolongada greve das usinas Lip em Palente (1973), ele ganhou terreno nos meios
reformistas e social-democratas. É reencontrado sob formas diversas ao longo da
história do socialismo, tanto na corrente utopista como na corrente revolucionária.
Partidários da autogestão foram Fourier e Luis Blanc, e também Proudhon, Bakunin
e os anarquistas da federação jurassiana. Após a revolução de outubro, tentou-se
durante algum tempo colocar em prática esses princípios como os ‘conselhos
operários’. Mais recentemente, na Iugoslávia do Marechal Tito, procurou-se, com
maior ou menor êxito, fazer desse processo um verdadeiro sistema econômico. Mas
é preciso reconhecer que até o momento a autogestão não foi jamais objeto de
experiências cujos resultados fossem indiscutíveis ou suficientemente conclusivos.
Assim, ela conserva a mesma ambigüidade e a mesma vagueza doutrinária de há um
século. Para os revolucionários, a autogestão generalizada parece um novo mito e
substitui o da greve geral. Para os utopistas modernos, ela constitui, com freqüência,
o objeto principal de seu sonho (PETITFILS, 1978, p. 165).
A defesa da autogestão perpassa um longo campo que agrupa distintas posições
teóricas e diversas realidades concretas, sendo ingrediente de projetos fantasiosos de alguns
utópicos, passando por avanços concretos na socialização do poder político dentro das
sociedades socialistas, ou até como adereço social em propostas de legitimação da classe
dominante rural, veiculadas pela OCB Organização das Cooperativas do Brasil
53
. Se, por
53
Vários autores, sob diferentes matizes e perspectivas políticas e ideológicas, se utilizam do termo autogestão
para respaldar o projeto em que estão inseridos. Além desses exemplos citados, essa categoria também é
utilizada para defender as organizações do “Terceiro Setor”, como é o caso de Carvalho (1995), ao afirmar que a
autogestão seria o germe para a criação das ONGs. Analisaremos a relação entre a “Economia Solidária” e o
“Terceiro Setor” no próximo capítulo, assim como daquele projeto social com a OCB.
55
um lado, a autogestão é requerida como parte essencial de um governo planificado para a
ampliação da democracia socialista, tanto nos aspectos econômicos, como políticos, para
garantir o desenvolvimento de experiências pós-revolucionárias (cf. NETTO, 2001a, p. 72;
NETTO, 2001, p. 24), por outro lado, foi utilizada para escamotear os reais interesses da
burguesia agrária:
A O.C.B. consolidaria, de modo definitivo, sua direção, ao advogar a abertura da
economia brasileira às grandes linhas da “competitividade” internacional,
mediante a difusão do projeto do “agro-negócio”, a nova estratégia de sua
hegemonia, nos anos 1990. Para implementá-lo, seus dirigentes lançariam mão de
vários instrumentos, dentre eles os Comitês Educativos, criados em 1989 com vistas
à formação de lideranças capazes de viabilizar a integração pretendida, além de
construir o caminho para a segunda grande meta da agremiação nacional: a
autogestão
Afinal, o volume e o vulto dos negócios gerados pelas cooperativas,
tornavam imperioso, mormente numa conjuntura de privatização do Estado e de
desmantelamento de suas agências, que se buscasse uma “nova feição” para o
Cooperativismo, dotando-o de novos quadros técnicos e instrumental moderno.
Neste processo, a Educação desempenharia importante papel, que por seu
intermédio supunha-se construir a consciência autogestionária”, mais que um
projeto político, uma proposta pedagogicamente adotada e aplicada pela OCB a
partir de 1991 através do Programa de Autogestão, destinado a capacitar suas bases
sociais (MENDONÇA, 2004, p. 07).
Nesse sentido, ainda que concordemos com a atualidade de grande parte dos
pressupostos apresentados na pesquisa de Rios (1979), apontamos para a necessidade de
correção da sua definição de “experiências cooperativas”. Para o autor, deveriam ser
incluídas, dentro do vasto campo denominado de “experiências cooperativas”, também a
“autogestão iugoslava, cuja inspiração remonta, como a cooperativa de produção industrial
ocidental, ao socialismo utópico’’’ (RIOS, 1979, p. 36). Como dissemos anteriormente, a
utilização de experiências consubstanciadas por determinações provenientes de formações
histórico-sociais bem distintas do capitalismo, como parâmetro de apreensão da realidade do
capitalismo no Brasil, o resulta, a nosso ver, em contribuições válidas. Vale salientar que,
como a pesquisa realizada pelo autor data do início dos anos 70 do século passado, essas
experiências ainda existiam. Situação bem diferente é a de Singer, que apresentou sua
definição de “economia solidária” bem depois destas terem findado. Se, no primeiro caso,
são proporcionados problemas concretos para a análise, no segundo caso, as analogias entre as
distintas realidades servem mais para atrapalhar do que para auxiliar na pesquisa sobre esse
tema.
Seria mais profícuo tentar entender de que forma experiências desse tipo se
configuraram não em sociedades socialistas, mas em sociedades capitalistas, especialmente
em momentos decisivos de transformação social. Para tanto, poderíamos fazer referência a
56
relatos que apontam para a função social das experiências cooperativas em situações cruciais
de mudanças estruturais, como é o caso da atuação do movimento cooperativista nos
momentos imediatamente anteriores à Revolução de Outubro. Um observador privilegiado
nesse contexto revolucionário foi, sem dúvida, John Reed, que se referiu da seguinte forma às
experiências cooperativas:
fundado por liberais e socialistas ‘moderados’, a princípio, o movimento
cooperativo não foi apoiado pelos grupos socialistas revolucionários, para os quais
representava apenas um expediente no sentido de adiar a transferência real e efetiva
dos meios de produção e distribuição para as mãos dos operários. Após a Revolução
de Março, as cooperativas progrediram rapidamente: eram, até então, sob a
influência dos socialistas populares, mencheviques e socialistas revolucionários,
utilizadas como força política conservadora que alimentaram a Rússia após a
derrocada da antiga estrutura econômica e do sistema de transportes (REED, 1978,
p. 28 – 29).
Como relata o autor, durante todo o processo que precedeu à conquista do poder do
Estado pelos bolcheviques, o movimento cooperativista se comportou ou como agente
reacionário, ou como força social conservadora, o que fica explícito nas reuniões dos
representantes desses grupos. Ao se reunirem para lutar contra as teses dos bolcheviques,
ambos os grupos criaram comitês de representação em que “foram incluídos em maior
número os delegados das cooperativas socialistas e de outras organizações conservadoras”
(IDEM, p. 46). Além disso, ao se sentirem ameaçadas, tais forças sociais terminaram
buscando uma coalizão com os representantes da burguesia que, juntos, instauraram um
governo provisório praticamente controlado pelos emissários diretos do capital.
No desenrolar das lutas, tais forças integraram um agrupamento conservador intitulado
de “Comitê Para a Salvação da Rússia e da Revolução”, que se reuniram mais uma vez para
barrar os agentes revolucionários (IDEM, p. 149). Por fim, quase ao rmino das batalhas,
como forma de propor um acordo com os agentes vencedores, alguns participantes desse
comitê chegaram a aceitar de forma limitada o ingresso de alguns bolcheviques, o que não foi
o caso do grupo mais conservador, em que se encontravam os representantes das cooperativas,
ou seja, “a ala direita dos mencheviques e dos socialistas revolucionários, os socialistas
populares, as cooperativas e os elementos burgueses”, que “opunham-se encarniçadamente à
participação dos bolcheviques” (IDEM, p. 150).
De acordo com os relados do autor, podemos perceber de maneira cristalina que o
movimento cooperativista se comportou hegemonicamente, mesmo diante de um contexto
social atravessado pelas lutas de classes, como gendarme do modo de produção capitalista. Os
representantes do cooperativismo não apenas se posicionaram contrariamente à Revolução de
Outubro, como também se uniram com as forças mais conservadoras e reacionárias para não
57
deixar sucumbir o ordenamento social baseado na propriedade privada
54
. Não é por menos
que Lênin (1980, p. 660), ao referir-se ao cooperativismo dentro do sistema capitalista, não
hesita na sua explicação: “não dúvida de que a cooperação, nas condições do Estado
capitalista, é uma instituição capitalista coletiva”.
Como não funcionam de maneira imune às determinações sociais, as organizações
cooperativas apresentam nuances e funções que as diferenciam, a depender do contexto social
em que estão inseridas. Se, dentro do capitalismo, podem constituir-se hegemonicamente
como organizações análogas às empresas capitalistas, a partir da revolução social podem
significar importantes instituições a serviço da classe trabalhadora. Essa é a visão de Lênin,
que conseguiu apreender, dentro da história da Rússia, a relação dialética entre essas
experiências e o sistema social a que estas estão subordinadas. Por isso, pôde afirmar que,
enquanto dentro do “capitalismo de Estado”, as empresas cooperativas se distinguem dos
grandes monopólios apenas “porque são empresas privadas, e em segundo lugar porque são
empresas coletivas”, após a revolução, estas se diferenciam das empresas capitalistas privadas
por serem organizações coletivas, “mas não diferem das empresas socialistas, desde que o
terreno onde estão instaladas e os meios de produção que empregam pertençam ao Estado,
isto é, à classe operária” (LÊNIN, 1980, p. 661, itálicos nossos).
Fica explícita, na passagem anterior, a preocupação do autor com a função social das
cooperativas dentro do contexto pós-revolucionário da Rússia, uma vez que, para evitar que as
cooperativas se estruturassem como catalisadoras de elementos capitalistas, os meios de
produção por estas manipulados deveriam pertencer ao Estado operário. É nesse sentido que,
ao fazer referência a Corallo (1999), Germer (2006) demonstra a ambigüidade dessas
organizações, que, mesmo dentro de um sistema social pautado pela destruição da exploração
do trabalho e da propriedade privada, podem resguardar elementos capitalistas, como a lógica
do capital. Segundo Corallo (1999, p. 244 245), mesmo nos textos de Marx, a cooperativa
aparece “como uma forma essencialmente contraditória”, visto que pode resguardar em seu
interior a ausência da exploração, mas, ao mesmo tempo, ainda que dentro do socialismo,
pode integrar imperativos do capital e, assim, “a cooperativa não seria mais elemento de
socialismo em um ambiente capitalista, mas elemento de capitalismo em um ambiente
socialista”. Se, por um lado, a cooperativa pode apresentar elementos socialistas dentro de um
sistema capitalista, por outro, pode comportar elementos capitalistas dentro de um sistema
socialista.
54
Veremos, no último capítulo, quais as implicações de uma proposta de transformação social que rompa com a
propriedade dos meios de produção, com o projeto da “economia solidária”.
58
Mesmo que não seja possível separar as esferas sociais, podem existir casos em que o
espaço interno da cooperativa e a totalidade social que a envolve não sejam idênticos. Essa é
um das principais especificidades desse tipo de organização, de tal modo que essa distinção de
ambientes pode existir mesmo após a passagem de um modo de produção para outro
55
. Essa
peculiaridade das cooperativas, ou mais especificamente, das cooperativas de produção ou,
como Marx (1985b) se referia a estas, das fábricas-cooperativas
56
, existe porque elas se
apresentam como organizações-limite entre o capitalismo e o socialismo. Uma vez que um
novo modo de produção nasce apenas a partir da herança e dos escombros do anterior, surge,
dentro desse contexto específico, organizações que apresentam características tanto do modo
de produção antigo como do que está prestes a rebentar. As fábricas-cooperativas representam
um exemplo pico de formas contraditórias provenientes da fase de transição entre o
capitalismo e o socialismo (cf. GERMER, 2006, p. 208).
A contradição entre as possibilidades positivas para os trabalhadores no ambiente
interno e a necessidade de subordinação aos imperativos do capital para sobreviver no
mercado constitui a base para uma formação híbrida. Vale ressaltar que não se trata de uma
visão de hibridismo como a apontada anteriormente por Singer (2002) que, por se limitar aos
aspectos gerenciais do interior da cooperativa de produção, apregoa a superação do
hibridismo pela igualdade e democracia na gestão, ou ainda, a adotada por França Filho e
Laville (2004), de um hibridismo de relações monetárias e não monetárias, assegurando a
autonomia da cooperativa. As fábricas-cooperativas possuem um caráter híbrido não por estes
motivos, mas porque poderiam resguardar o interesse dos trabalhadores mesmo sendo uma
organização econômica que precisa retirar seu sustento do mercado capitalista e que está
subordinada aos imperativos econômicos e sociais do capital. Nesse sentido, nem possui uma
total autonomia, nem o seu espaço interno está imune a essas determinações
57
.
Apesar de ser impulsionado pela quantidade de capital investida, o desenvolvimento
das forças produtivas gera elementos que contradizem o próprio modo de produção
capitalista, demonstrando as limitações históricas desse sistema. Buscando apreender a
totalidade dialética do capitalismo, Marx identificou as fábricas-cooperativas, ao lado de
55
Distinção essa que decresce à medida que o mercado capitalista se desenvolve.
56
Marx sempre limitou as qualidades contraditórias das experiências cooperativas às fábricas-produtivas,
descartando qualidades socialistas a outras organizações como, por exemplo, as cooperativas de consumo. Nesse
sentido, afirma Germer (2006, p. 208): “a concepção de Marx sobre o cooperativismo como forma contraditória,
no entanto, aplica-se plenamente apenas às fábricas-cooperativas desenvolvidas pelo capital como pressuposto
de um novo modo de produção”.
57
Retomaremos, em locais diferentes, essa discussão, seja para apontar, como afirma Luxemburgo (2003), que
as determinações capitalistas incidem diretamente sobre a organização interna da cooperativa, seja para
demonstrar alguns efeitos mistificadores da visão de autonomia das organizações de “economia solidária”.
59
outras instituições como o sistema de ações
58
, como um dos exemplos de organizações que,
ao mesmo tempo em que brotam do capitalismo e são a esse subordinadas, apresentam
qualidades socialistas:
As fábricas cooperativas dos próprios trabalhadores são, dentro da antiga forma, a
primeira ruptura da forma antiga, embora naturalmente, em sua organização real,
por toda parte reproduzam e tenham de reproduzir todos os defeitos do sistema
existente. Mas a antítese entre capital e trabalho dentro das mesmas está abolida
59
,
ainda que inicialmente apenas na forma em que os trabalhadores, como associação,
sejam seus próprios capitalistas, isto é, apliquem os meios de produção para
valorizar seu próprio trabalho. Elas demonstram como, em certo nível de
desenvolvimento das forças produtivas materiais e de suas correspondentes formas
sociais de produção, se desenvolve e forma naturalmente um modo de produção, um
novo modo de produção. Sem o sistema oriundo do modo de produção capitalista,
não poderia desenvolver-se a fábrica cooperativa e tampouco o poderia sem o
sistema de crédito oriundo desse mesmo modo de produção (MARX, 1985b, p.
334).
Todavia, para apresentar essas qualidades socialistas, a cooperativa não pode estar
subsumida a organizações capitalistas, como é o caso do Estado. Para Marx (1986, p. 220),
somente se pode afirmar que os trabalhadores estão buscando estabelecer condições de
produção coletiva em toda a sociedade e antes de tudo em sua própria casa, numa escala
nacional”, que querem “subverter as atuais condições de produção”, quando “isso nada tem a
ver com a fundação de sociedades cooperativas com a ajuda do Estado”. Em outras palavras,
tal resolução indica que “no que se refere às sociedades cooperativas atuais, estas têm valor
na medida em que são criações independentes dos próprios operários, não protegidas nem
pelos governos nem pelos burgueses” (IDEM). Para Marx, ao subordinar-se às determinações
do Estado, a fábrica-cooperativa colocaria em questão a sua função de auxiliar na luta dos
trabalhadores, fazendo concessões aos representantes do capital.
Visão diametralmente oposta é a veiculada por Singer (2002, p. 93), ao afirmar que “a
ajuda do Estado seum fator importante para o movimento das cooperativas de produção,
por uma série de motivos”. Dentre esses, o autor destaca que “os trabalhadores não dispõem
de capital nem de propriedade que pudessem oferecer como garantia para levantar capital no
mercado financeiro”, e que “as firmas capitalistas, que concorrem com as cooperativas de
produção, também contam com a ajuda do Estado, sob as formas usuais de isenções fiscais e
crédito favorecido” (IDEM). Diante dessa realidade inconteste, o autor arremata pela
58
“No sistema de ações existe a antítese à antiga forma, em que os meios sociais de produção surgem como
propriedade individual; mas a transformação na forma da ação permanece ainda presa às barreiras capitalistas; e
portanto, em vez de superar a antítese entre o caráter social da riqueza e a riqueza privada, só a desenvolve numa
nova configuração” (MARX, 1985b, p. 334).
59
Itálico nosso para observar que, segundo os tradutores dessa obra, é importante destacar que “Marx usa aqui o
termo Aufhebung que significa ao mesmo tempo ‘aboliçãoe ‘guarda’ e é nesse sentido dialético que o termo
deve ser entendido: a propriedade privada é ao mesmo tempo abolida e preservada” (MARX, 1985b, p. 332).
60
necessidade de auxílio do Estado capitalista para as organizações de “economia solidária”,
pois “para concorrer em condições de igualdade com estas firmas, as cooperativas de
produção precisam do apoio do poder político” (IDEM).
A exposição do autor apresenta um quadro desalentador para o futuro da “economia
solidária” uma vez que, para sobreviver no mercado, seria imprescindível a ajuda do Estado.
Ainda que desconsideremos as insuficiências analíticas apresentadas, descontando o impacto
dos grandes conglomerados monopolistas desta visão idílica de concorrência, a assertiva
advogada por Singer é bastante comprometedora. Defender a necessidade de ajuda do Estado
para a “economia solidária”, por meio do argumento de que este também ajuda empresas
capitalistas, contradiz não apenas a defesa realizada por este autor de superação do
hibridismo, mas assevera a igualdade de finalidades entre essas duas formas de organização.
Se afirmar que a “economia solidária” necessita de ajuda do Estado para sobreviver, já
representa um atestado desanimador, exigir isso como um direito, uma vez que qualquer
empresa capitalista o faz, instaura um caminho contrário à conjectura de um processo
revolucionário. Igualar em necessidade material as duas formas de organização não somente
assimilam as condições materiais de existência social, mas também promove simetrias em
relação à postura ideológica, gerando-se uma visão homogênea desses dois tipos de
organizações
60
. Isso não tem nada de transformador, porém, ao contrário, serve para legitimar
a ordem vigente.
Essas determinações perpassam a história do movimento cooperativista de tal forma
que colocam em questão seu real significado para a classe trabalhadora, se como aliado ou
como adversário. Historicamente, as cooperativas foram utilizadas como elo na luta da
classe trabalhadora contra os imperativos do capital, assim como instituições a serviço dos
representantes do capital para desmobilizar e desorganizar os trabalhadores. Um atalho para
esse segundo caminho é a supervalorização da cooperativa, a ponto de se crer na sua
capacidade autônoma para superar as contradições do modo de produção capitalista:
Ao mesmo tempo, a experiência do período decorrido entre 1848 e 1864 provou
acima de qualquer dúvida que, por melhor que seja em princípio, e por mais útil que
seja na prática, o trabalho cooperativo, se mantido do estreito círculo dos esforços
casuais de operários isolados, jamais conseguirá deter o desenvolvimento em
progressão geométrica do monopólio, libertar as massas, ou sequer aliviar de
60
Durante a realização de uma pesquisa de campo (WELLEN, 2001), identificamos alguns efeitos desses
impactos econômicos nas subjetividades dos associados de uma cooperativa de reciclagem. Através da vivência
cotidiana com os integrantes dessa organização, pudemos perceber que a subordinação ao mercado capitalista
não apenas inviabilizou o desenvolvimento de uma ideologia socialista, como levou a comportamentos com grau
de competição extremamente elevados. Também realizamos algumas pesquisas pontuais (WELLEN et al 2002;
2003; 2003a), em que buscamos apreender elementos provenientes dessa contradição numa cooperativa
educacional.
61
maneira perceptível o peso de sua miséria. É talvez por essa mesma razão que,
aristocratas bem intencionados, porta-vozes filantrópicos da burguesia e até
economistas penetrantes, passaram de repente a elogiar ad nauseam o mesmo
sistema cooperativista de trabalho que tinham tentado em vão cortar no nascedouro,
cognominando-o de utopia de sonhadores, ou denunciando-o como o sacrilégio de
socialistas (MARX, 1986a, p. 319).
Ao passo que o mercado capitalista se desenvolve, constituindo-se a partir de grandes
empresas monopolistas, os impactos do capital sobre as cooperativas se recrudescem e, por
isso, eleger essa organização como finalidade da luta dos trabalhadores torna-se, cada vez
mais, um retrocesso ideológico. Além disso, não foi à toa que Marx realizou essa análise
desmistificando a função progressista das cooperativas, pois, dentre as principais tarefas da
Associação Internacional dos Trabalhadores, que foi lançada a partir desse texto anterior,
estava justamente o combate à vinculação dos trabalhadores a essas organizações. Como
observa Konder (1998, p, 121 122), uma das missões iniciais da Associação Internacional
dos Trabalhadores foi lutar contra a ilusão reformista das cooperativas, advertindo para a
incapacidade dessas em acabar com a exploração dos trabalhadores:
Uma das primeiras tarefas com que a Internacional se defrontou foi a de combate às
manobras de Napoleão III, que procurava ‘amolecer’ o combativo proletariado
francês estimulando a formação de cooperativas de trabalhadores e premiando com
quinhentos mil francos cada cooperativa que se fundava.
Na luta contra as ilusões do ‘cooperativismo’, a Internacional contou com a preciosa
ajuda de Augusto Blanqui. Blanqui cujo prestígio era imenso no meio dos
trabalhadores estava preso, na ocasião. (Ele passou, aliás, mais de quarenta anos
no cárcere.) De dentro de sua cela, porém, mandava instruções aos seus seguidores,
recomendando-lhes que combatessem a idéia de que as cooperativas poderiam
acabar com a exploração da classe operária. Blanqui acabara de ler na prisão A
Miséria da Filosofia de Marx, e estava convencido de que o proletariado precisava
combater as ilusões reformistas do tipo das de Proudhon.
Uma elevação da mistificação da capacidade das cooperativas ocorre quando essas são
eleitas autonomamente para resolver os problemas dos trabalhadores e, com isso, servem mais
para assegurar a permanência do capitalismo do que para gerar abalos nesse sistema, sendo
por esse motivo que representantes da burguesia decidiram apoiar e elogiar essas
experiências. Como a principal diferença entre as cooperativas e as empresas capitalistas
tradicionais
61
refere-se à gestão (pois enquanto nessas o futuro da organização é decidido
pelos capitalistas individuais, naqueles objetiva-se a participação de todos), essas não
promovem, autonomamente, impactos diretos na reprodução do capitalismo. Além disso, por
necessitarem do mercado capitalista para sobreviver, essas organizações estão subordinadas à
lógica do capital: “as fábricas-cooperativas e as sociedades anônimas são administradas por
gerentes indicados por proprietários coletivos e não individuais, mas ambas permanecem
61
Uma vez que, dentro do sistema de ações, já existe forma semelhante de gestão.
62
prisioneiras da lógica do capital, como capitalistas coletivos que são” (GERMER, 2006, p.
210).
Além disso, apesar de ser o diferencial progressista das cooperativas, em muitas dessas
experiências não se encontra assegurada uma gestão coletiva, na qual está facultada a
participação de todos os associados. Identifica-se, como principal causa desse problema, a
subordinação dessas organizações perante outras instituições, e tal situação costuma repetir-se
sempre que empresas capitalistas e governos interferem no funcionamento das cooperativas.
Apesar de defender a ajuda dos Estados para as cooperativas, Singer admite que vários são os
exemplos em que os governos inviabilizaram a democracia interna dessas organizações.
Segundo o autor, são recorrentes tais exemplos em países do “Terceiro Mundo”, onde
cooperativas foram promovidas “pelos governos de muitos países, seja para desenvolver a
economia, seja para que fossem a base de uma sociedade ‘socialista’”, e que tais tentativas,
apesar de absorver “parcela importante de toda a força de trabalho”, foram carentes “de
autonomia e portanto” incapazes “de realizar na prática a democracia da empresa, que é a
razão de ser da economia solidária” (SINGER, 2002, p. 96).
Ao longo da história, constam exemplos de governos que buscaram incentivar a
criação de cooperativas para os mais distintos objetivos. Sob a prédica do incentivo à auto-
organização dos trabalhadores, várias cooperativas foram implementadas para incrementar a
exploração dos trabalhadores, assim como para ampliar o poder da classe dominante
62
. Um
exemplo desse processo acontece no interior do Brasil, onde o governo do Estado do Ceará
tem se esforçado para fomentar condições que facilitem a criação de cooperativas a serem
inseridas na cadeia produtiva de empresas internacionais.
Ao lado de incentivos fiscais e da realização de empréstimos, a existência de
cooperativas aparece como oportunidade de instalação de filiais de empresas internacionais,
uma vez que garantem mão-de-obra de baixo custo. Segundo Moreira (1997, p. 74),
cooperativas “têm sido criadas com o objetivo principal de garantir uma mão-de-obra de
baixo custo para a empresa de confecção por parte de um grupo de investidores do Taiwan”.
Para a autora, é inegável que o “objetivo da implantação das cooperativas foi facilitar a
extração da mais-valia da força de trabalho localizada numa área rural de uma região
periférica, num país considerado semiperiférico”. (IDEM, p. 73).
62
Em 2001 realizamos uma pesquisa empírica em algumas cooperativas paraibanas (WELLEN, 2001a), na qual
identificamos que uma destas comportando mais de mil trabalhadores – foi criada após incentivos da prefeitura
e que os funcionários desta instituição foram transferidos para aquela organização. Sob o discurso da democracia
e da liberdade, os trabalhadores perderam todos os benefícios, garantias e direitos trabalhistas.
63
Além disso, como afirmamos, a criação de cooperativas também serve para ampliar a
poder da classe dominante sobre a população. Em pesquisa realizada entre os anos 1968 e
1970 na Colômbia, Venezuela e Equador, Fals-Borda (1970) analisou 11 comunidades
agrícolas, que incluíam cooperativas de produção, comercialização, crédito e de consumo,
tentando apreender como funcionam os movimentos cooperativos realizados na América
Latina e concluiu que estes são estimulados por motivos políticos para pacificar os povos.
Comentando essa pesquisa, Rios (1979, p. 33), observa que
uma das hipóteses centrais, confirmada, é que as cooperativas, tal como foram
constituídas, seriam instrumentos de uma política de mudança social “controlada”,
isto é, poderiam obter melhorias marginais (toleráveis portanto para o sistema
capitalista circundante) dentro de uma ótica eminentemente reformista.
Constituiriam, ademais, sob uma fachada de modernismo e racionalização,
instrumentos de reforço do poder econômico e político vigentes.
Como conclusão, a pesquisa de Fals-Borda apontou para uma realidade que
desestimula a importância do movimento cooperativista para a luta da classe trabalhadora,
pois as cooperativas estudadas não foram capazes de desenvolver uma “consciência política e
cívica de seus membros, nem estimularam suficientemente a autodeterminação, criatividade e
autonomia”, sendo incapazes de fomentar “uma transformação social, econômica e política
significativa” (FALS-BORDA apud RIOS, 1979, p. 34). De forma semelhante a Moreira
(1997), o autor percebeu que as cooperativas estudadas foram implementadas a partir de
políticas reformistas de alcance imediato, visando ampliar o poder da classe dominante sobre
os trabalhadores, refletindo as determinações típicas de países de capitalismo dependente.
Utilizando a pesquisa anterior como parâmetro para sua análise sobre a função social
hegemônica das cooperativas no Brasil, Rios (1979, p. 129) constatou uma situação análoga
no interior desse país, ao evidenciar “que o cooperativismo rural nordestino tem sido mais um
instrumento de controle que de mudança social”. Além disso, baseando-se na tipologia
utilizada por Morais (1971), que sugere duas categorias para analisar essas organizações
associações de estabilização social ou associações de luta – o autor demonstrou que as
cooperativas, “pelo fato de se constituírem em mais uma instituição de nível local através das
quais se exprimem os interesses e a ideologia dos estratos superiores da sociedade rural,
tornam-se típicas associações de ‘estabilização social’” (RIOS, 1979, p. 92).
Comprovação semelhante encontra-se no texto de Mendonça (2004) sobre a análise da
Organização das Cooperativas Brasileiras, ao evidenciar que, por trás do discurso de defesa
do igualitarismo nas cooperativas, encontra-se a estratégia dessa instituição em ampliar o
poder dos grupos dominantes agrários do país, assim como unificar essas forças em torno da
modernização do campo, ou seja, do agro-negócio. Com base nas palavras de Cardoso (1998,
64
p. viii), prefaciador de uma pesquisa anterior da autora (MENDONÇA, 1998), podemos
propor um dilema atual para a relação entre o movimento cooperativista e a luta dos
trabalhadores agrários, questionando se essa organização ajudana vida do agrônomo, ou se
na verdade permanece como “uma das engrenagens na ampliação do aparelho estatal e nas
ações de frações da classe dominante agrária sobre o real”. Ou, na esteira da classificação de
Morais (1971), poderíamos nos perguntar: dentro do contexto histórico atual, essas
organizações representam espaços de estabilização social ou de luta?
Na verdade, poderíamos ampliar esse objeto de pesquisa e incluir também as outras
organizações que fazem parte da “economia solidária”, buscando apreender qual a função
social hegemônica destas organizações: se essas se constituem tipicamente como instrumentos
de luta dos trabalhadores contra os capitalistas, ou se, da mesma forma que os resultados das
pesquisas anteriores, representam instituições a serviço da classe dominante. Em outras
palavras, perseguimos o seguinte problema de pesquisa: diante das determinações atuais do
modo de produção capitalista, qual a função social hegemônica exercida pela economia
solidária”? Este projeto social serve para auxiliar na luta pela emancipação dos
trabalhadores ou é funcional à reprodução do capitalismo?
Diferentemente de outras pesquisas realizadas recentemente sobre o tema, elegemos
como variável fundamental de análise a função social da “economia solidária” na sua relação
de totalidade com o modo de produção capitalista, assim como os impactos e determinações
provenientes dessa relação dialética. Distinguindo-se da pesquisa de Barbosa (2007, p. 24),
por exemplo, que procurou entender a “economia solidária” como uma “uma variante de
política pública e não um movimento social, sem tomar como ponto de partida suas
potencialidades utópicas de transformação social”
63
, iremos buscar indicações para testar
exatamente essa lacuna deixada pela autora, ou seja, apreender a potencialidade de
transformação social desse movimento social.
Para tanto, não analisaremos experiências pontuais ou casos isolados, mas
abordaremos suas tendências centrais, assim como os principais postulados desse projeto
social. O crivo de análise para tais experiências é, portanto, a totalidade social em que a
organização de “economia solidária” está inserida. Como indica corretamente Germer (2006,
p. 209), ao referir-se às fábricas-cooperativas, estas “não podem ser analisadas isoladamente,
mas como um elemento de uma totalidade, de modo que as mudanças que se manifestam
nelas refletem mudanças no modo de produção e não apenas nelas”.
63
Como explicita a autora, o objetivo de sua pesquisa foi “precisamente ver como a economia solidária emerge
como política pública nesse contexto” (BARBOSA, 2007, p. 66).
65
1.4. Crítica ao método da “economia solidária”
Não objetivamos isolar as organizações da “economia solidária” da realidade social,
buscando identificar supostas qualidades específicas ou singulares, mas, pelo contrário,
tentamos inseri-las na totalidade social, nas suas relações dialéticas com o modo de produção
em que estas estão submetidas, para, assim, apreender sua função social. Vale ressaltar que
nossos pressupostos metodológicos são extremamente distintos dos utilizados por alguns
representantes da “economia solidária”, como é o caso de França Filho e Laville (2004, p.
21):
pensamos que uma compreensão adequada desse fenômeno envolve um real
entendimento das suas condições intrínsecas de existência. A economia solidária,
portanto, deve ser compreendida na sua singularidade enquanto fenômeno – no
lugar de ser objeto de explicações baseadas em determinações gerais. A perspectiva
defendida neste livro exige um esforço qualitativo de interpretação, capaz de
apreender a dinâmica dessas experiências a partir de suas lógicas específicas de
interação.
Não somos adeptos da utilização de tais pressupostos metodológicos, visto que, sob tal
perspectiva, a apreensão das determinações da “economia solidária” limita-se não apenas ao
espaço interno dessa organização, mas são resultantes de uma falsa autonomia que comporta
duas qualidades: uma que fantasia a independência da organização perante o modo de
produção que a subordina, e outra que imagina que os seus integrantes estariam pairando
sobre a realidade e, por isso, não teriam convívio social para além dos muros dessa
experiência. Tanto no interior da organização, assim como na íntima subjetividade de cada
integrante da organização de “economia solidária”, constam vários rebatimentos das
determinações sociais provenientes da estrutura econômica e social.
Algumas pesquisas, baseando-se na utilização de pressupostos metodológicos deste
tipo, erguem hipóteses de trabalho pouco convincentes quando testadas a partir da realidade
concreta do capitalismo. Exemplares dessa matriz se referem aos estudos sobre “economia
solidária”, em que seus autores defendem que, “nessas comunidades de trabalho, auto-
interpretativas e autocríticas, o senso comum emancipatório teria de ser produzido
intersubjetivamente”, além de que nessas organizações deve-se objetivar “o reencantamento
com o mundo”, que “é a possibilidade de ter prazer, de erotizar as experiências, de encantar-
se com aquilo que produziu”, tarefa essa que representaria “um grande desafio, especialmente
nas duras e adversas condições materiais da periferia do sistema-mundo como é o caso do
Brasil” (VERONESE; GUARESHI, 2005, p. 67).
66
Voltamos a destacar que as subjetividades dos integrantes dessas organizações não se
situam numa abstração social, ou que se estabelecem sobre um vácuo de determinações, mas
estão sempre interligadas com a realidade vigente, ainda que essa relação não apareça de
forma clara e consciente para essas pessoas. Todos esses sujeitos recebem, em menor ou
maior medida, a incidência dessas múltiplas determinações sociais
64
e, por isso, mesmo os
valores subjetivos hipoteticamente tidos como independentes e não afetados pela lógica do
capital, são condicionados pela realidade concreta e pela ideologia vigente (WELLEN;
OLIVEIRA, 2006).
No nosso entendimento, é falsa a hipótese de uma dualidade estrutural separando o
espaço interno das organizações de “economia solidária” da totalidade social em que estas se
encontram inseridas. Dentro do sistema capitalista, ainda que tal fato não esteja presente no
discurso de seus integrantes, não existe fortaleza capaz de expulsar a influência da gica do
capital do comportamento das pessoas
65
. Por isso que, ao analisar criticamente à pesquisa de
Quijano (2002), Lima (2003, p. 19 – 20) questiona a validade de tal dualidade:
Para Quijano (2002), as regras que regem as cooperativas são as do mercado e do
salário e o caráter de reciprocidade ou solidariedade operariam externamente às
relações de trabalho, a partir da decisão consciente de seus membros. Essa
consciência é um processo complexo, pois raramente significa uma situação de
materialidade mais satisfatória para seus membros o que explica o desinteresse por
esse tipo de empreendimento em momentos de estabilidade e crescimento
econômico. O caráter voluntário da adesão às cooperativas fica comprometido em
contextos de crise econômica nos quais as possibilidades de ocupação são
reduzidas. Fica a questão se é uma alternativa a exploração capitalista, ou à falta
dessa mesma exploração.
Por mais que se ache independente da realidade que o rodeia e das determinações que
incidem sobre sua vida, o integrante dessa organização está, em maior ou menor grau, por
essas condicionado. Pressupostos metodológicos que descartam tal evidência conduzem a
resultados de pesquisas com validade bastante questionável. Corroboramos, portanto, as
seguintes palavras de Marx (1985, p. 13):
Não pinto, de modo algum, as figuras do capitalista e do proprietário fundiário com
cores róseas. Mas aqui se trata de pessoas à medida que são personificações de
categorias econômicas, portadoras de determinadas relações de classe e interesse.
Menos do que qualquer outro, o meu ponto de vista, que enfoca o desenvolvimento
da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode
64
Conforme afirma Marx (1986b, p. 14): “O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações,
isto é, unidade do diverso”.
65
Dentro da sociedade capitalista, as determinações que incidem sobre o comportamento humano são de várias
fontes e de largo alcance: “Tais processos não envolvem apenas os produtores diretos: penetram e conformam a
totalidade das relações de produção social e das relações que viabilizam a sua reprodução. Sob o salariato não
se encontra mais apenas a classe operária, mas a esmagadora maioria dos homens; a gida e extrema divisão
social do trabalho subordina todas as atividades, ‘produtivas’ e ‘improdutivas’; a disciplina burocrática
transcende o domínio do trabalho para regular a vida inteira de quase todos os homens, do útero à cova”
(NETTO, 1981, p. 82).
67
tornar o indivíduo responsável por relações das quais ele é, socialmente, uma
criatura, por mais que ele queira colocar-se subjetivamente acima delas.
Posturas analíticas que desconsideram tal fato tendem à construção de falsas
conjecturas. Esse é o caso da peculiar abordagem realizada pelos representantes da “economia
solidária” que apontam para a necessidade de resgate de supostas características
historicamente constitutivas deste projeto que, com a vigência de uma economia restrita aos
ditames do mercado, deixaram de ser privilegiadas. Nas palavras dos autores, para que a
“economia solidária” conseguisse erguer-se como projeto socialmente relevante, seria
necessária uma noção econômica instalada por meio dos sentidos recíprocos de seus
integrantes, pois “a concepção da atividade econômica a partir de um impulso reciprocitário
pode permitir-lhe fundar-se sobre o próprio sentido que lhe é atribuído pelos seus
participantes e, dessa forma, favorecer dinâmicas de socialização” (FRANÇA FILHO;
LAVILLE, 2004, p. 90). Nesse solipsismo, a partir dos sentidos peculiares atribuídos pelos
integrantes dessa organização, as relações econômicas não mais seriam baseadas nos pilares
do modo de produção capitalista, mas transformadas em relações solidárias, bastando, para
tanto, apenas um impulso reciprocitário.
Sob essa perspectiva, a análise da realidade se estabelece a partir de sentidos de alguns
indivíduos que determinam o que seria verdadeiro ou não. O sentido subjetivo particular do
conhecimento, e não o movimento do real, passa a ser o lastro desse pressuposto
metodológico, limitando o alcance da teoria a características elegidas individualmente. Uma
análise que restringe sua abordagem aos sentidos individuais dos sujeitos pesquisados
inviabiliza elementos apreendidos numa pesquisa que privilegia a totalidade social e, desta
forma, “a verdade radica-se no sujeito do conhecimento e não nas coisas; é ele que imprime
sentido a um mundo sem sentido” (TEIXEIRA, 2004, p. 94).
Tais pressupostos metodológicos tornaram-se amplamente aceitos e utilizados dentro
dos meios acadêmicos, especialmente a partir da vigência do movimento intitulado de pós-
modernismo que, dentre outras características, intentou romper com a importância da
totalidade social como base de análise da realidade
66
. Dedicando espaço total à singularidade
dos indivíduos e aos fatos específicos, assim como suas qualidades mais excêntricas, o pós-
modernismo objetivou instaurar uma visão da história a partir de fragmentos e momentos
dispersos. Nesse sentido, se torna até problemática a utilização do termo história, visto que
não existiria uma relação do indivíduo com a totalidade social e com as causalidades sociais
66
Sobre as relações entre a cultura pós-moderna e os processos de mercatilização da vida humana marcados pelo
fetichismo da mercadoria ou pela reificação, e sua influência cognitiva na fragmentação da totalidade social, ver:
Evangelista (2001).
68
que fogem ao seu controle, e que o sujeito, dentro dessa perspectiva, passaria incólume a
todas essas determinações. Nos termos utilizados por Lessa (1999, p. 171), o pós-modernismo
promove a “fragmentação da totalidade no singular” e, nesse sentido, “não história, não
processo, não há totalidade. Há apenas momentos, indivíduos, fragmentos. A estrutura é
negada enquanto totalidade; e esta é dissolvida em seus momentos puramente singulares”.
Como a totalidade social é negada e o objeto de pesquisa é analisado como sendo uma
entidade que plaina sobre as determinações sociais, torna-se impossível apreender até mesmo
a sua realidade interna. Essa não é somente imaginada como desvinculada da totalidade social
que a envolve, como supostamente comandada por princípios idealistas ou outras criações
individuais utilizadas para fornecer o sentido vislumbrado pelos sujeitos pesquisados ou até
pelo próprio pesquisador. Valendo-se desses pressupostos metodológicos, mesmo em
pesquisas com enfoque restrito à realidade interna de organizações de “economia solidária”, é
comum não se apreender algumas claras evidências.
Em pesquisas sobre esses empreendimentos, em que se privilegia, por exemplo, a
doutrina cooperativista, a realidade pode aparecer como um produto da fantasia, ou do desejo
dos seus integrantes ou do próprio pesquisador, a ponto deo haver preocupação com
elementos que contrariem a validade dos princípios adotados. A máxima discursiva da
“neutralidade política, religiosa, racial”, ou de “um homem, um voto”, representariam, por si
próprios, “a própria negação das desigualdades circundantes”, levando o pesquisador a
desconsiderar evidências de estratificação social dentro da cooperativa (RIOS, 1979, p. 109).
Um dos exemplares desse tipo de pesquisa encontra-se na tese de doutorado de
Miranda (1973), em que a autora, além da utilização de uma definição doutrinária de
cooperativismo, limitou o enfoque de análise às relações dos integrantes dessa organização e,
com isso, abdicou da apreensão da interseção entre esse ambiente e a totalidade social.
Segundo Rios (1979, p. 35), a referida pesquisa, ao reduzir o conceito de cooperativismo a
uma experiência específica da Europa do século XIX no caso, da cooperativa de Rochdale
67
– não apenas comportou uma perspectiva dogmática, mas também liberal:
Trata-se de uma definição tipicamente liberal, dando ênfase às funções da
associação cooperativa no relacionamento com seus membros, isolando-a da
67
A Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale, foi uma cooperativa de consumo criada em 1844 na Inglaterra
por cerca de 28 trabalhadores, após saírem derrotados de uma greve. Se, por um lado é elogiada pela capacidade
de harmonização entre a economia de mercado e os princípios cooperativistas (VEIGA; FONSECA, 2001); de
outra forma, aponta-se que suas similaridades com uma empresa capitalista geraram decepções dentro do
movimento cooperativista (COLE, 1944) e que, por isso, essa experiência representa uma deformação no ideal
de seus pioneiros, como Robert Owen e Charles Gide (FALS-BORDA, 1970). Mesmo com evidências que
demonstram a deformação de muitas das experiências semelhantes a essa, para alguns representantes da
“economia solidária”, a maior parte das cooperativas manter-se-ia ainda fiel aos ideais originais, como é o caso
de Singer (2003, p. 18).
69
sociedade global e sem nenhuma referência a mudança social. A referência às
“bases rochdaleanas” significa uma postura tipicamente dogmática, porque
doutrinária, o que implica em renunciar à análise sociológica da história social para
substituí-la pela visão ideológica de um determinado evento, juízo de valor somente
defensável no plano mesmo da “doutrina”, ou seja, do dogmático.
Para nós, não se trata apenas de superar uma perspectiva dogmática desse conjunto de
experiências, ou de acreditar que a utilização de uma análise sociológica (ainda que essa sirva
como elemento importante) possa bastar para apreender a função social da “economia
solidária”. Entendemos que algumas análises, por se limitarem aos “aspectos sociológicos”,
no lugar de servirem para apontar a relação do objeto de pesquisa com sua totalidade social e
abolir as premissas metodológicas que sustentam a fantasia de isolamento social como bem
critica Rios – podem fornecer mais subsídios a essa equivocada imagem do real. Esse é o caso
de análises que se baseiam nos sentidos internos dos associados para entender de que forma se
estrutura a cooperativa. Por não objetivar apreender as múltiplas dimensões do objeto
pesquisado econômica, cultural, social, política, ideológica, dentre outras uma análise
restrita ao enfoque sociológico não torna possível apreender corretamente a função social.
Como objetivamos identificar o máximo de determinações que consubstanciam a
“economia solidária”, somos contrários não apenas aos pressupostos metodológicos que
privilegiem o singular ou o doutrinário, mas ainda que se limitem aos fatos sociológicos
68
. Em
distinção a essas tipologias de pesquisa, concordamos com a necessidade de uma análise que,
ainda que não consiga plenamente apreender a totalidade social, tenha esse destino. Assim,
dentre os ensinamentos de Lênin, podemos destacar que “para se conhecer realmente um
objeto, é necessário apreender e analisar todas as suas facetas, todas as relações contextuais e
‘mediações’” e, mesmo sabendo que “nunca o conseguiremos plenamente, mas a exigência da
universalidade preservar-nos-á do erro e de cristalização” (LÊNIN apud LUKÁCS, 1978, p.
40).
Além de estudos sobre a “economia solidária” em que o pesquisador limita sua análise
a qualidades singulares elegidas sobre critérios questionáveis, ou até aleatórios, constam
também, como citamos anteriormente, pesquisas em que a validade dos resultados tem por
parâmetros apenas os sentidos atribuídos pelos sujeitos pesquisados, assim como do próprio
68
Segundo Lukács (1959, p. 472), apesar de ter, na sua fundação, um caráter cientifico universal, em pouco
tempo “a sociologia se torna uma ciência puramente especializada, que apenas toca superficialmente nos grandes
problemas da estrutura e do desenvolvimento da sociedade. Não pode mais, portanto, cumprir a missão que havia
objetivado inicialmente: a de demonstrar o caráter progressivo da sociedade burguesa, comprovação indisponível
agora no terreno econômico, e de defendê-la ideologicamente contra a reação feudal e o socialismo” (Tradução
livre). Destacamos que a sociologia surge como uma ciência especializada que tem por função ideológica central
a validação da sociedade burguesa em detrimento de suas contradições estruturais internas: a emergência da
sociologia como ciência autônoma expressa uma resposta burguesa aos problemas colocados pelas
contradições do capitalismo que envereda para o estágio do imperialismo (NETTO, 1976, p. 72).
70
pesquisador. Como vimos, nesses casos, são os sujeitos que imprimem sentido à pesquisa e,
dessa forma, a verdade aparece como uma qualidade do conhecimento destes, e não nas coisas
que existem na realidade. A verdade brota da cabeça do pesquisador para a realidade e esta
serve exclusivamente para respaldar a conjectura levantada por aquele.
Registrado como um dos precursores da economia solidária, Pierre-Joseph
Proudhon
69
, fez uso desses postulados metodológicos para tentar explicar o funcionamento do
sistema capitalista. Utilizando-se de parâmetros e lendas escolhidos espontaneamente, o autor
intentou explicar o funcionamento da economia através de construtos filosóficos, que se
aproximaram bastante da mitologia
70
. Tal qual algumas pesquisas da “economia solidária”,
em que o retrato da realidade é um reflexo da imaginação dos sujeitos pesquisados ou da
criatividade do próprio autor, Proudhon promoveu uma mistificação da sociedade capitalista
bastante semelhante:
Para Proudhon e alguns outros, parece, por certo, agradável deduzir a origem de
uma relação econômica, cuja gênese histórica ignoram, de uma maneira histórico-
filosófica, que lhes permite recurso à mitologia, e dizer que as idéias surgiram de
modo acabado na mente de Adão ou Prometeu, e postas em uso. Nada é mais
aborrecedor e árido do que o lócus communis (lugar-comum) disfarçado
71
(MARX,
1986b, p. 04).
Ao problematizar a validade da propriedade privada, Proudhon relata os parâmetros
que norteiam sua metodologia de trabalho e, dentre estes, destaca o recurso a cálculos e
fórmulas matemáticas com a finalidade de comprovar que a propriedade significa um roubo.
Nesse sentido, afirma o autor: “ataco a propriedade não por seus próprios aforismos, mas pelo
cálculo. Que os proprietários se preparem para verificar minhas operações; porque, se por
infelicidade para eles estiverem corretas, estarão perdidos” (PROUDHON, 2002, p. 235).
Ao analisar a obra citada, concluímos que o autor estabelece uma análise logicista e é
por esta aprisionado: ergue axiomas moralistas para chamar o proprietário de improdutivo e,
para tanto, alega que esse representa um não-valor. A saída para essa antinomia é a redução
69
A relação de parentesco entre a “economia solidária” e Proudhon é explicitada por Singer (2003, p. 13): “A
economia solidária não é criação intelectual de alguém, embora os grandes autores socialistas denominados
‘utópicos’ da primeira metade do século XIX (Owen, Fourier, Buchez, Proudhon etc.) tenham dado
contribuições decisivas ao seu desenvolvimento”.
70
Com base em Marx (2001), Netto (2004) constata que, dentre outros recursos místicos, Proudhon busca suas
hipóteses de trabalho no domínio divino. Para evidenciar essa assertiva, podemos citar trechos da obra desse
autor: “Em primeiro lugar, tenho necessidade da hipótese de Deus para fundamentar a autoridade da ciência
social” (PROUDHON, s/d, p. 33); “Tenho necessidade de Deus não somente, como acabo de dizer, para dar um
sentido á história, mas também para legitimar as reformas a operar, em nome da ciência, no Estado” (IDEM, p.
34); “Tenho necessidade da hipótese de Deus para mostrar o vínculo que une a civilização à natureza” (IDEM, p.
35); “Tenho necessidade da hipótese para justificar meu estilo” (IDEM, p. 37); “Finalmente, tenho necessidade
da hipótese de Deus, para explicar a publicação destas novas memórias” (IDEM).
71
Uma boa definição para senso comum é a utilizada por Gógol (1972, p. 209): “Na cabeça fica um vazio, como
depois de uma conversa com um homem mundano: ele fala de tudo, toca em tudo pela rama, solta tudo o que
conseguiu extrair dos livros, tudo colorido, bonitinho, mas a cabeça não aproveitou nada”.
71
imaginária da produção total por meio de contas matemáticas: se a propriedade é um não-
valor, existe portanto um déficit, e o consumo tornar-se-ia maior que a produção, pois, se o
proprietário também for um produtor, ele deverá ficar sem uma parte da produção, uma vez
que, “como todos os outros, ele produzia 1 e recebia apenas 0,9” (IDEM, p. 255).
Com base nesses cálculos, Proudhon (2002, p. 277) defende que a permanência da
propriedade conduzirá sempre a uma população abundante: “a grande chaga, a chaga horrível
e sempre aberta da propriedade, consiste em que, com ela, a população, por mais que seja
reduzida, permanece sempre e necessariamente superabundante”. Com esse silogismo
72
, o
autor iguala a existência da propriedade à permanência da escassez, sem compreender que a
máxima daquela é a desigualdade, e não necessariamente a falta de condições materiais para
sobrevivência das pessoas. Proudhon estabelece, desta forma, uma assertiva reformista, pois,
em lugar de lutar contra a propriedade, desvia sua crítica e concede à pobreza a causa dos
problemas sociais e, ao combatê-la, crê que esse caminho leva naturalmente à destruição da
propriedade. O autor não compreende que, mesmo acabando-se com a miséria, pode
permanecer a propriedade como categoria eterna
73
.
É por errar na análise da sociedade capitalista, que Proudhon sugere teses políticas
equivocadas:
É porque erra na análise que Proudhon elabora uma proposta política equivocada:
ele não é capaz de formular um projeto político revolucionário porque não é capaz
de compreender a efetiva legalidade histórico-social. [...] A política que se articula
no Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria é utópico-
reformista porque a análise histórico-social que a funda é frágil e porque a teoria
econômica que a sustenta é falsa (NETTO, 2004, p. 94).
No entanto, o principal problema de Proudhon que nos interessa destacar agora
74
é que
o autor faz uso de um método idealista e, devido a esse fato, eterniza algumas categorias
burguesas. Nas suas leituras críticas sobre as obras desse autor, Marx (1986c, p. 328) deixa
bem claro que conseqüências podem derivar da adoção desses pressupostos metodológicos:
Demonstrei ali, entre outras coisas, quão pouco ele penetra no segredo da dialética
científica; mostrei como, por outro lado, ele compartilha das ilusões da filosofia
especulativa, pois ao invés de conceber as categorias econômicas como
expressões teóricas de relações históricas de produção, correspondentes a um
72
Ainda que externe críticas ao uso do silogismo, Proudhon (s/d, p. 27) permanece aprisionado dentro das
fronteiras desse subterfúgio: “Seguramente não venho defender o velho silogismo: todo arranjo pressupõe uma
inteligência ordenadora; ora, existe no mundo uma ordem admirável; portanto, o mundo é obra de uma
inteligência. Este silogismo, tão rebatido desde e Moisés, longe de ser uma solução, é apenas a fórmula do
enigma que se trata de decifrar”.
73
Da mesma forma que afirmou Tavares (2004, p. 19), ao pesquisar sobre as relações de subordinação do
trabalho informal ao capital, poderíamos explicitar sobre nossa pesquisa que é certo que a pobreza “nos preocupa
enquanto efeito, mas a centralidade deste debate é a sua causa – a exploração do trabalho”.
74
Retornaremos, em outros momentos da nossa tese, à análise da relação entre a “economia solidária” e as idéias
dos socialistas utópicos, assim como de Proudhon.
72
dado estágio de desenvolvimento da produção material, ele as converte de
maneira absurda em idéias eternas, preexistentes; e como através desses
circunlóquios retorna mais uma vez ao ponto de vista da economia burguesa.
No lugar de basear suas análises sobre o modo de produção capitalista numa proposta
histórico-materialista, Proudhon utiliza como recurso metodológico as antinomias de Kant
que, “naquela época, era o único filósofo alemão que conhecia, e em tradução” (MARX,
1986c, p. 327). Proudhon herdou de Kant a perspectiva de que a solução para as antinomias
da realidade situava-se para além das possibilidades humanas e que, portanto, de pouco
adiantavam os esforços cognitivos para decifrar a essência da realidade. Essa herança aparece
de forma marcante em sua obra “O que é a propriedade?”, quando Proudhon (2002), no lugar
da dialética, promove ilações abstratas que fundamentam suas antinomias e, quando percebe
que não existe saída para estas, passa à conclusão de que “a propriedade é impossível”, ou que
“a propriedade é um roubo”. Para Proudhon, a verdade aparece como uma dádiva da mente
criativa do pesquisador, ou, mais especificamente, do gênio social
75
. A partir do esforço
intelectivo do gênio social, cria-ser-iam cálculos e construir-ser-iam rmulas sintéticas com
uma finalidade exclusiva: anular as antinomias da sociedade (MARX, 2001). Para esse autor,
assim como para Kant, “o conhecimento é uma construção do sujeito; é ele que confere
sentido à realidade caótica dos fenômenos” (TEIXEIRA, 2004, p. 93 – 94).
Diante dessas qualidades, Proudhon não aparece apenas como um precursor da
“economia solidária”, mas seus pressupostos metodológicos são referências para teóricos
contemporâneos desse projeto social que advogam a construção imaginária da realidade a
partir da mente dos sujeitos pesquisados. Sua herança permanece, desta forma, viva dentro da
“economia solidária”. No lugar de apreender as organizações de “economia solidária” por
meios das suas múltiplas determinações que a inter-relacionam com a totalidade social, é
comum, dentre os representantes desse projeto, uma atribuição supervalorizada aos sentidos
individuais criando, assim, uma hipóstase.
Nesse meio, encontram-se pesquisas em que categorias aparecem como
supervalorizadas a ponto de fantasiar a realidade concreta, como é o caso de uma autonomia
no sentido do trabalho. Tal evidência pode ser encontrada quando se observam as seguintes
palavras de Rosenfield (2003, p. 03):
75
Nesse sentido, ao apelar para os poderes superiores de um nio capaz de solucionar os problemas sociais,
Proudhon se enquadra perfeitamente entre os socialistas utópicos: “Se, até aquele momento, a razão e a justiça
não governavam o mundo, é porque ainda não havia surgido o gênio capaz de descobrir a verdade e explicá-la ao
mundo; e o fato de só agora ter surgido era obra do acaso, e não do desenvolvimento histórico; se antes houvesse
aparecido, séculos e séculos de erros e sofrimentos teriam sido poupados à humanidade” (TEIXEIRA, 2002, p.
28).
73
O presente estudo propõe-se a analisar a vivência de autonomia e a relação com o
trabalho no seio dos trabalhadores que, a priori, vivem na autogestão uma
experiência transformadora do sentido do trabalho, capaz de introduzir uma
autonomia real e de recolocar o sujeito do trabalhador no lugar do objeto da norma.
É com base nos pressupostos metodológicos anteriormente analisados, que a autora
consegue visualizar uma realidade ausente de determinações da totalidade social e, por isso, o
espaço interno da organização teria uma identidade singular preservada: “esta autonomia
permite de se proteger uma vez que ela preserva o grupo como base identitária e possibilita
um retorno sobre si mesmo capaz de conferir um sentido ao trabalho” (IDEM, p. 16). Em
forma de metáfora, poderíamos afirma que, ao conceder uma supervalorização ao singular
com tal amplitude que o autonomiza da totalidade social, o pesquisador deixa de enxergar a
floresta para vislumbrar apenas uma árvore
76
: “obcecado pelas árvores, o consegue ver o
bosque” (ENGELS, 1986, p. 315).
Por outro lado, ainda que se baseando na premissa de que são os sentidos fornecidos
pelos sujeitos de pesquisa que regulam as interfaces singulares entre a subjetividade e o
trabalho, resultando na maneira particular em que estes vivenciam estas experiências
(NARDI; TITTONI; BERNARDES, 2002), alguns autores que intentam apreender a
importância da “economia solidária”, não desconsideram os impactos das determinações
sociais e expõem o grau de subordinação dessas identidades” à lógica do capital. Conforme
relatam alguns entrevistados dessas pesquisas, ainda que dentro de organizações de
“economia solidária”, valores como competição e individualismo fazem parte dessa realidade
de trabalho e, como externam Nardi e Yates (2005, p. 101), “nos relatos dos jovens que
participam de projetos ligados à economia solidária, encontramos a lógica da sobrevivência
como ordenadora do discurso”. Além disso, a luta pela sobrevivência torna-se ainda mais
difícil dentro destas organizações, uma vez que, segundo os autores, “nossa análise indica que
os projetos de economia solidária estudados não se apresentam como real opção aos
trabalhadores no mercado de trabalho” (IDEM).
No entanto, num texto posterior, os mesmos autores recorrem a pressupostos
metodológicos questionáveis para defender a importância da “economia solidária”. Se, por um
lado, evidenciam “a necessidade dos empreendimentos construírem uma maior estabilidade
financeira e formas de proteção do trabalhador nos moldes dos direitos trabalhistas (férias,
13° salário, cobertura previdenciária, etc.)” (NARDI et al. 2006, p. 327), de outra forma,
afirmam que a efetivação dos princípios desse projeto social
76
Explicitando a importância do método marxista para a área da educação, Pistrak (2002, p. 222) afirmou que:
“a árvore não deve impedir o professor de ver a floresta; ele deve evitar a generalização de erros isolados,
tirando daí conclusões incorretas”.
74
dependeria, no nosso entendimento, de um processo de redefinição das formas de
atribuição de sentido ao trabalho para que os valores da autogestão e da
solidariedade possam reconfigurar os modos de subjetivação associados à
competitividade, ao modelo de gestão e ao individualismo no capitalismo
contemporâneo (IDEM, p, 321).
Percebemos que existe, portanto, uma contradição entre a realidade concreta do
interior das organizações de “economia solidária” e a situação almejada ou vislumbrada por
seus representantes. Desconsiderar essa contradição é o primeiro caminho para mistificar esse
objeto de pesquisa, concedendo-lhe qualidades inexistentes. A nosso ver, essa mistificação
resulta, em grande medida, dos pressupostos metodológicos empregados na realização da
pesquisa.
Diferentemente dessa metodologia que elege a imaginação dos sujeitos como
referencial de exame da realidade social, para apreender a função social é preciso analisar a
organização social de maneira objetiva em relação à totalidade social em que esta se insere. O
que define a função social não é o que pensam seus representantes ou integrantes, mas sua
relação com a totalidade social; não é o sentido individual ou coletivo deste grupo social, mas
as interfaces com o sistema capitalista em seus aspectos objetivos e subjetivos, econômicos e
culturais. Recorremos, portanto, a “velha verdade do marxismo [de] que se deve julgar cada
atividade humana conforme o que ela representa objetivamente em relação à totalidade do
contexto, e não segundo aquilo que o próprio sujeito atuante pensa da sua própria atividade”
(LUKÁCS, 1978, p. 55).
A realidade existe de forma objetiva, independentemente da construção imaginária dos
pesquisadores que se debruçam sobre ela. Não são os pesquisadores que fornecem um sentido
à realidade, mas é a partir das determinações da realidade que se pode refletir uma teoria que
aponte para sua configuração. A metodologia correta é, portanto, aquela que compreende que
a imanência da análise encontra-se na realidade e não no pensamento do pesquisador e, por
isso, não se pode substituir de maneira arbitrária os elementos constitutivos daquela. Em
outras palavras, admitindo a imanência das coisas, e não da imaginação do pesquisador,
podemos apreender o sentido da realidade quando não alteramos nenhum dos seus
pormenores (LUKÁCS, 1991).
Ainda que o pesquisador se esforce bastante para calibrar sua análise a partir das
determinações do real, as possibilidades concretas contidas neste distinguem-se das
possibilidades abstratas por aquele imaginadas. Tal fato se agrava bem mais em casos de
pesquisas nas quais o pesquisador imprime um grau elevado de subjetivismo ao ponto que não
saber mais distinguir aquilo que é realmente pertinente da concretude do objeto de pesquisa,
75
daquilo que é fruto de sua imaginação. Quando se busca determinar o objeto de pesquisa pelo
sentido fornecido pelo sujeito, o pesquisador pode eleger como sendo qualidades reais
algumas características imaginadas nas quais inexistem evidências comprobatórias. Assim,
não se consegue apreender corretamente nem as causalidades da realidade, nem as relações
destas com os indivíduos:
Estas possibilidades são bem reais, já que podem transformar-se precisamente, para
a pessoa considerada, no verdadeiro fundamento da sua existência, mesmo quando
esta existência se reduz a um trágico fracasso. Originalmente, para quem a
considere do simples ponto de vista subjetivo, esta possibilidade concreta e real não
se distingue da massa indefinida que constituem as possibilidades abstratas.
Podemos mesmo dizer mais: em certos casos, está tão profundamente escondida,
que o curso dos acontecimentos nunca a faz surgir à consciência do sujeito como
possibilidade abstrata, de modo que, mesmo depois da escolha e da decisão, o
sujeito continua a ignorar as suas verdadeiras motivações (LUKÁCS, 1991, p. 41).
O ingrediente central para uma distinção mais precisa entre as possibilidades abstratas
que aparecem na mente do pesquisador e as reais qualidades concretas, é o correto aporte e a
correta utilização do método de pesquisa e, dentro dos limites da sociedade burguesa, é a
tradição marxista quem fornece os pressupostos metodológicos de maior validade. Ainda que
o desenvolvimento histórico do ordenamento burguês implique em várias mudanças, os
impactos dessas alterações não produziram transformações estruturais dentro do modo de
produção capitalista e, nesse sentido, as determinações fundamentais apreendidas por Karl
Marx, Friedrich Engels e os principais seguidores de sua tradição teórica e metodológica
continuam presentes e válidas. A atualidade dessa teoria
77
deve-se ao fato de Marx ter se
apropriado, após uma pesquisa que durou quase quatro cadas, do método adequado para a
explicação e a compreensão (mais precisamente: para a re-produção ideal) do movimento do
ser social na ordem societária articulada sobre a lógica (o movimento) do capital” (NETTO,
2001, p. 37).
Para que o método empregado por Marx permanecesse válido por mais de um século e
meio após sua sistematização, esse precisaria superar a aparência da sociedade burguesa e
apreender seus fundamentos estruturais, ou seja, a essência do capitalismo. Seu grande
diferencial foi que, mesmo partindo das relações fenomênicas
78
, conseguiu superar a
“pseudoconcreticidade”, na qual “o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta
77
Apesar do combate incessante não apenas de teóricos integrantes de uma matriz política conservadora, mas
também de autores que se intitulam progressistas e de esquerda, o pensamento de Marx permanece, na sua
essência, extremamente atual. Sobre o equívoco de algumas dessas críticas supostamente progressistas contra o
pensamento de Marx, ver Evangelista (2002).
78
Em entrevista concedida a Holz, Kofler e Abendroth (1969, p. 13), Lukács afirma que “creio, então, que o
caminho que devemos empreender, e com o qual entramos de cheio nos problemas ontológicos, é o da
pesquisa genética. Isto é: devemos tentar pesquisar as relações nas suas formas fenomênicas iniciais e ver em
que condições estas formas fenomênicas podem tornar-se cada vez mais complexas e mediatizadas”.
76
e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a
essência desaparece” (KOSIK, 2002, p. 16), e refletir na teoria as determinações estruturais
que consubstanciam a totalidade social do capitalismo. Trata-se de exercício intelectivo
pautado na compreensão da sociedade de forma mais profunda, superando aquilo que é
meramente aparente e propondo-se à análise da sua própria estrutura
79
, de suas características
centrais.
Seguindo os ensinamentos desse autor, podemos afirmar que é apreendendo o real
funcionamento do objeto de pesquisa, a partir das relações entre a organização material e
social postas e a forma de pensar predominante, por meio das interdependências entre a
existência social e a consciência social, que se almeja desnudar as imagens imediatas que
obscurecem a realidade. Para ultrapassar os limites fenomenológicos e apreender a essência
do objeto de pesquisa, precisa-se analisar não apenas aquilo que é visível, mas também o que
é funcionalmente escamoteado, uma vez que “captar o fenômeno de determinada coisa
significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao
mesmo tempo nele se esconde. Compreender o fenômeno é atingir a essência” (KOSIK, 2002,
p. 16). Busca-se superar uma visão da realidade restrita à sua superficialidade, na qual a
análise se torna refém da legalidade e da ideologia vigentes, e a aparência é posta como sendo
a essência do objeto.
O sucesso do método utilizado por Marx deve-se, portanto, ao fato de objetivar
apreender a relação de causalidade dialética entre os fatos presentes na aparência da ordem
burguesa com a totalidade social que os subordina:
A perspectiva teórico-metodológica instaurada pela obra marxiana com seu cariz
ontológico, sua radicalidade histórico-crítica e seus procedimentos categorial-
articuladores é aquela que permite, arrancando dos “fatos” objetivados na empiria
da vida social na ordem burguesa, determinar os processos que os engendram e as
totalidades concretas que constituem e em que se movem. Esta perspectiva é a que
propicia, na dissolução da pseudo-objetividade necessária da superfície da vida
capitalista, apreender e desvelar os modos de ser e de reproduzir-se do ser social na
ordem burguesa. Produto do próprio desenvolvimento do ser social na ordem
burguesa, esta perspectiva teórico-metodológica é que viabiliza o
(auto)conhecimento teórico do ser social nos marcos da socialidade burguesa
(NETTO, 2001, p. 37).
Não se trata de infirmar ou não os pressupostos metodológicos a partir de sua
coerência interna, mas de testá-los a partir das mudanças históricas estruturais. Não é a teoria
79
Apreender a dinâmica e a estrutura da realidade concreta é superar a manifestação imediata e a aparência do
fenômeno. “Dada a sua preparação teórica, Marx tem sempre presente que a manifestação imediata do ser social
não revela a sua estrutura e dinamismo – caso contrário, coincidindo a aparência com a essência, o conhecimento
imediato identificando-se com o conhecimento teórico, pôr-se-ia a inutilidade da reflexão” (NETTO, 1981, p.
76) ou, ainda, “que a aparência dos fenômenos pouco nos diz da sua essência” (NETTO; BRAZ, 2006, p. 151).
77
que serve para fundamentar a realidade, mas, pelo contrário, aquela só possui validade quando
reflete corretamente as determinações contidas nessa. Ao analisar criticamente a obra de
Hegel, sabendo resguardar seus avanços ao mesmo tempo em que demonstrou suas
fraquezas
80
, Marx (2001, p. 97) afirmou que o problema central desse pensador foi imaginar
que a história se passa de acordo com seu próprio raciocínio e, desta forma, não existiria
“‘história segundo a ordem do tempo’, mas apenas ‘a sucessão das idéias no entendimento’”.
Para Marx, por causa dessa metodologia idealista, Hegel acreditava “poder construir o mundo
pelo movimento do pensamento quando apenas reconstrói sistematicamente e ordena de
acordo com o método absoluto os pensamentos que estão na cabeça de toda a gente” (IDEM).
Marx (1985c, p. 21) então apontou para a necessidade de inverter o pensamento de
Hegel “para descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico” e, com esse objetivo, se
apropriar da dialética idealista desse autor para transformá-la numa dialética materialista.
Como resultado desse esforço intelectual, surge a concepção materialista da história, que
representa, portanto, a negação e superação da dialética idealista de Hegel:
meu método dialético não difere do hegeliano, mas é também a sua antítese
direta. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de idéia,
transforma num sujeito autônomo, é o demiurgo do real, real que constitui apenas a
sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é nada mais que o
material, transposto e traduzido na cabeça do homem (IDEM, p. 20).
A concepção materialista da história se fundamenta na tese de que a base da ordem
social encontra-se nos processos produtivos e, com estes, nas relações de trocas e de
distribuição, assim como que a divisão dos indivíduos em classes sociais e camadas distintas é
resultado direto da forma como a sociedade se organiza para produzir as condições materiais
de reprodução social. Sob essa perspectiva, as causas das transformações sociais não devem
ser pesquisadas “nas cabeças dos homens nem na idéia que eles façam da verdade eterna ou
da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem
80
Diferentemente de uma leitura positivista o difundida, Marx nunca negou sua dívida perante o pensamento
de Hegel, mas, ao contrário, se afirmava como discípulo desse grande pensador: “Há quase trinta anos, numa
época em que ela ainda estava na moda, critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana. Quando eu elaborava
o primeiro volume de O Capital, epígonos aborrecidos, arrogantes e medíocres que agora pontificam na
Alemanha culta, se permitiram tratar Hegel como o bravo Moses Mendelssohn tratou Espinosa na época de
Lessing, ou seja, como um ‘cachorro morto’. Por isso, confessei-me abertamente discípulo daquele grande
pensador e, no capítulo sobre o valor, até andei namorando aqui e acoos seus modos peculiares de expressão.
A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede, de modo algum, que ele tenha sido o
primeiro a expor as suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente” (MARX, 1985c, p. 20
21). Foi por compreender corretamente a importância das influências de Hegel no pensamento de Marx, que
Lênin (1986) afirmou que é impossível entender corretamente a obra magna desse autor e, em especial, o seu
primeiro capítulo, sem antes se ter estudado profundamente a lógica de Hegel (1968). Foi também nesse sentido
que Lukács (1973; 1973a) dedicou-se a uma extensa pesquisa sobre a obra de Hegel.
78
ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata” (ENGELS, 1986,
p. 320).
Foi com base nessa metodologia que Marx conseguiu apreender corretamente as
determinações estruturais que consubstanciam a totalidade social da ordem social burguesa. E
essa análise permanece válida porque, quando se cotejam as categorias derivadas da
apreensão das determinações estruturais realizada por Marx, com o contexto histórico atual,
essas permanecem, na sua integridade, extremamente atuais. Por isso, afirmamos que as
determinações estruturais do modo de produção capitalista, apesar de suas mudanças
conjunturais, não se alteraram na medida em que se tornou preciso anular as categorias
utilizadas por Marx e seus principais seguidores
81
.
E, ainda que tais alterações históricas invalidem teses apreendidas pela tradição
marxista, por se basear nos pressupostos metodológicos citados, a sua validade permanece
presente. Isso acontece porque, como afirma Lukács (2003, p, 64), a ortodoxia do pensamento
marxista não se encontra nas suas teses, mas no método utilizado: “o marxismo ortodoxo não
significa, portanto, um reconhecimento sem crítica dos resultados da investigação de Marx,
não significa uma ‘fé’ numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro ‘sagrado’”, mas, em se
tratando “de marxismo, a ortodoxia se refere antes e exclusivamente ao método”
82
(LUKÁCS,
2003, p. 64).
A utilização dos pressupostos metodológicos empregados por Marx serve
especialmente para evitar duas concepções equivocadas de método: “a classificação do real a
partir de conceitos teóricos pré-concebidos (Althusser, Bourdieu-Passeron, fenomenologia,
apesar de todas as significativas diferenças entre esses autores e correntes)”, assim como as
81
Além de Friedrich Engels que teve papel fundamental no processo de maturação teórica, política e
metodológica de Marx (vale lembrar que foi Engels o responsável tanto pelo contato de Marx com o
proletariado, como com a economia política), podemos destacar como brilhantes pensadores marxistas, Vladimir
Lênin, Antonio Grasmci, Georg Lukács e Rosa Luxemburgo e, dentre os representantes contemporâneos, Ernest
Mandel e István Mészáros. Essa pequena lista demonstra a superficialidade de teses que advogam a cooptação da
tradição marxista aos dogmas positivistas. Tais análises, compromissadas apenas com a vulgarização do
marxismo, tiveram, e ainda m, como base, a equalização de todos os autores que integram essa tradição sob a
alcunha de positivistas e, em tempos mais recentes, de stalinistas. Por isso, que, sob essa perspectiva, a queda do
muro de Berlim, que marcaria a crise definitiva do “socialismo realmente existente”, representaria também o
funeral do pensamento de Marx. O que esses autores não entendem é que a referida crise não sinaliza uma crise
da tradição marxista, assim como não vulnerabiliza a teoria marxiana(NETTO, 2001, p. 28). Por outro lado,
como se observa na mais recente crise do capitalismo, a realidade evidencia uma situação diametralmente oposta
a essa aventada pelos profetas da burguesia, e o pensamento de Marx torna-se mais uma vez referência
obrigatória.
82
Mais de quatro décadas após ter escrito essa obra História e Consciência de Classe –, Lukács se propôs a
uma sistemática e severa autocrítica e, ainda que tenha descartado várias afirmações, assegurou a validade e
atualidade do método marxista: As observações introdutórias ao primeiro ensaio já oferecem uma definição de
ortodoxia no marxismo que, segundo minhas convicções atuais, es não apenas objetivamente correta, como
poderia ter mesmo hoje, às vésperas de um renascimento do marxismo, uma importância considerável”
(LUKÁCS, 2003, p. 29).
79
“outras concepções que fetichizam o singular, reduzindo as categorias universais a meros
produtos da abstração da subjetividade (Popper)” (LESSA, 1999, p. 172). Trata-se de um
pressuposto para superar uma “consciência reificada” prisioneira “na mesma medida e
igualmente sem esperança, nos extremos do empirismo grosseiro e do utopismo abstrato”
(LUKÁCS, 2003, p. 185).
Contra o estruturalismo e o determinismo que resultam na miséria da razão e contra o
idealismo e o irracionalismo que derivam na destruição da razão
83
, o método empregado por
Marx consegue articular a singularidade com a totalidade social, o concreto com o abstrato, a
subjetividade com a objetividade e a existência social com a consciência social. Dessa
maneira, busca abolir um posicionamento “inteiramente passivo do movimento das coisas
conforme a lei, no qual não pode intervir sob nenhuma circunstância”, assim como uma visão
mistificadora da realidade, como se existisse “um poder capaz de dominar ao seu bel-prazer
subjetivamente o movimento das coisas, em si destituído de sentido” (LUKÁCS, 2003, p.
185). Por isso que “o retorno a Marx, na discussão metodológica é, hoje, ‘garantia’ de
máxima atualidade” (LESSA, 1999, p. 172).
Mesmo assim, como não existe uma antinomia para a máxima de “quem erra na
análise erra na intervenção política”, sabemos que uma análise correta da realidade não
garante, de antemão, uma intervenção política de sucesso. No entanto, situação bem pior é
aquela em que, por não se possuir ferramentas cognitivas capazes de apreender corretamente
o movimento do real com as suas tendências e determinações, se imagina uma intervenção
política satisfatória, quando essa dificilmente terá algum fundamento de validade. Nesse caso,
a imagem do real presente na cabeça do pesquisador não passa de uma ilusão e isso incapacita
o desempenho positivo do projeto social por esse defendido. Se superar essa contradição entre
a imagem do real e o movimento histórico da própria realidade é pré-requisito para entender
as determinações estruturais da sociedade, conhecer corretamente essas determinações é a
condição primeira para uma proposta de transformação social séria. Essas duas qualidades
básicas se encontram dentro do marxismo
84
que, no entender de Pistrak (2002, p. 38), fornece
“não somente o método de análise para compreender a essência dos fenômenos sociais em
83
Se Lukács (1959) analisou as correntes teóricas que deram suporte ao irracionalismo e as denominou de
destruidoras da razão, Coutinho (1972) dissecou a perspectiva teórica estruturalista e a intitulou de miséria da
razão.
84
Ainda que o acúmulo teórico proveniente da tradição marxista não consiga dar conta das determinações da
atual fase do capitalismo, a falta dessas categorias inviabiliza qualquer tentativa de sucesso: “O acúmulo
realizado a hoje pela tradição marxista não oferece, a priori, nenhuma garantia de êxito no trato das
problemáticas colocadas à sociedade nesta transição de século mas está claro, para todos aqueles que se atêm
às questões centrais do tempo presente, que o seu enfrentamento não pode dispensar o aporte desta tradição”
(NETTO, 2001, p. 30).
80
suas relações recíprocas, mas também o método de ação eficaz para transformar a ordem
existente no sentido determinado pela análise”.
É com base nessas qualidades e, em especial, nos pressupostos metodológicos
empregados por Marx ou, em outros termos, no marxismo ortodoxo, que buscamos apreender
a função social da “economia solidária”. Acreditamos que essa tarefa, ainda que represente
um aporte bastante modesto, servirá para fomentar um projeto de transformação social sério
que leve à superação do modo de produção capitalista e à instauração de uma sociedade sem
classes sociais. Nesse sentido, pretendemos, com essa pesquisa, fazer uma pequena
contribuição ao socialismo científico, enquanto “expressão teórica do movimento operário”,
que objetiva “pesquisar as condições históricas e, com isso, a natureza mesma desse ato,
infundindo assim à classe chamada a fazer essa revolução, à classe hoje oprimida, a
consciência das condições e da natureza de sua própria ação” (ENGELS, 1986, p. 336).
81
Capítulo II: “Economia solidária”, do que se trata?
Não é só nas vozes que somos parecidos,
Que quer dizer, Qualquer pessoa que nos visse juntos
seria capaz de jurar pela sua própria vida que somos gêmeos,
Gêmeos, Mais que gêmeos, iguais, Iguais, como,
Iguais, simplesmente iguais,
(SARAMAGO, 2002, p. 1978)
Como vimos no capítulo anterior, são várias as dificuldades encontradas quando se
pretende identificar uma unidade sobre “economia solidária”, uma vez que nem seus próprios
integrantes apresentam um consenso teórico, metodológico e/ou político para esse objeto de
pesquisa. Além disso, observamos que dentro de textos de um único autor como é o caso de
Paul Singer aparecem posições distintas e, em alguns casos, até contraditórias sobre um
mesmo complexo social, como é o caso do mercado. Em suas obras, ora o autor apresenta o
mercado como elemento negativo para a sociabilidade humana, ora como uma instituição
indispensável para a realização da individualidade. Tal fato impede, portanto, que se consiga
distinguir de imediato o que representa a essência da economia solidária” das afirmações
aparentes que traduzem apenas qualidades singulares, e não remetem diretamente a sua
estrutura.
Foi devido a esses problemas que afirmarmos, desde o início de nossa tese, que não
existe nem uma teoria nem um método próprios da “economia solidária” e que, para alcançar
os objetivos de nossa pesquisa, apresentamos esse projeto a partir dos elementos nucleares por
nós apreendidos. Os dados pesquisados e apresentados ao longo da tese subsidiam nossa
apreensão sobre a “economia solidária” e, como também afirmamos, esses são de distintas
origens, desde dados empíricos primários até depoimentos e teorizações mais abstratas. É a
partir desse manancial de pesquisa que apresentamos qual a tendência central da “economia
solidária” e de que forma esse projeto se comporta dentro do contexto atual do capitalismo
brasileiro.
Ressaltamos que o conjunto daquilo que apresentamos como sendo a essência da
“economia solidária” pode inexistir na aparência das consciências individuais daqueles que
integram esse projeto
85
. No entanto, não foi nossa tarefa apreender determinações individuais
85
Da mesma forma que não se pode excluir a responsabilidade do indivíduo sobre aos atos coletivos, não se deve
creditar uma imanência dos fatos sociais aos aspectos subjetivos e pessoais. Apesar dos equívocos advindos das
82
e isoladas, pois os dados foram relevantes para nós apenas quando representaram
particularidades típicas da essência da “economia solidária”. Nossa análise não se baseou
numa perspectiva metafísica, em que “as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos,
são objetos de investigação isolados, fixos, rígidos, focalizados um após o outro, de per si,
como algo dado e perene” (ENGELS, 1986, p. 315). Apesar de utilizarmos também
depoimentos e relatos individuais, nossa pesquisa não se limitou a esse conjunto psicológico,
pois analisamos os discursos por meio de suas peculiaridades com a realidade social em que
estes estão inseridos e consubstanciados
86
. Entendemos que é apenas a partir do contexto
social que se pode apreender corretamente o sentido desses dados para que, no fim, seja
possível identificar de que forma esses influem na função social da “economia solidária”.
Para proceder às análises dos documentos sobre a “economia solidária”, procuramos
identificar quais as características essenciais expressas nas suas estruturas, descartando
elucubrações acerca de quais seriam os intuitos dos autores sobre seus próprios escritos. Em
outras palavras, “é preciso notar que apenas nos referimos ao objetivo expresso na própria
estrutura da obra, e não às intenções conscientes do autor nem à idéia que este tem dos seus
próprios escritos” (LUKÁCS, 1991, p. 36). Reafirmamos, enfim, que nosso método de
pesquisa baseia-se na concepção materialista da história e, portanto, buscamos privilegiar a
existência social para explicar a consciência humana; caminho antagônico a perspectivas
idealistas (ENGELS, 1986).
Assim, analisamos a “economia solidária” a partir de uma perspectiva distinta, e até
inversa, daquela que aparece como típica de autores que defendem esse projeto. Não
estabelecemos nossa pesquisa procedendo do campo do pensamento ideal para a realidade,
passando deste para o campo afetivo ou racional. No lugar do “método vivencial” apresentado
por Barreto (2003, p. 307), em que se objetiva “deslocar o conhecimento do abstrato/distante
para o concreto/próximo” e “radicar esse conhecimento em campo somático/afetivo e
posições pós-modernistas, as pesquisas sociais precisam atentar para as determinações que a coletividade
promove sobre os atos individuais. Desde vários séculos que, não apenas cientistas sociais, mas diversos
escritores atentaram para esse fato: “A irritabilidade do autor não se voltou, aqui, contra um indivíduo, mas
contra a personificação de um caráter coletivo. De diferentes lugares, de cada canto da Rússia, ele reuniu
representações de um aspecto da verdade. E esse aspecto, que são os abusos e os desmandos, serve a uma
idéia: promover no espectador uma forte repugnância em relação a tudo o que não tem valor. E a impressão é
ainda mais forte porque nenhuma das personagens apresentadas perdeu seu aspecto humano. A humanidade está
em toda parte. Por isso os corações estremecem mais profundamente” (GÓGOL, 2002, p. 48-49).
86
Ainda que publicada pela primeira vez em 1929, a obra de Bakhtin (1986) permanece extremamente atual para
analisar concretamente as relações entre linguagem, psicologia e as determinações da sociedade, como a
ideologia.
83
racional”
87
, nos voltamos para o método inaugurado por Marx, descartando uma posição
subjetivista
88
sobre o objeto de pesquisa.
Esse foi o caminho seguido por nós e a partir dele que apreendemos e apresentamos o
nosso objeto de pesquisa. Mesmo demonstrando a grande precariedade teórica e metodológica
que perpassa a maioria das obras sobre “economia solidária”
89
, objetivamos identificar uma
tendência central, um núcleo material e ideológico que estrutura esse projeto. Nesse sentido,
como observaremos que, apesar do ecletismo e do sincretismo estarem bastante presentes na
“economia solidária”, esses elementos não podem ser analisados apenas como resultado de
insuficiência analítica, teórica ou política
90
. Para nós, o recurso a diversas perspectivas
metodológicas, teóricas e políticas presente nos textos sobre a “economia solidária” não
apresenta simplesmente uma posição eclética que busca atender a diferentes visões em
disputa. Como veremos, ainda que seus representantes não visualizem dessa forma, esse
sincretismo tem uma função social específica.
apontamos duas decisões centrais tomadas para a realização da nossa pesquisa: que
as diversas categorizações apresentadas como supostas novas fórmulas humanizadas de
produção, tais como “economia popular e solidária”, “socioeconômica”, “sócio-economia
solidária”, “economia social”, ou “economia da dádiva”, são tratadas como integrantes da
“economia solidária”; e que as referências às instituições econômicas, sociais e políticas
provenientes de contextos históricos bem distintos do capitalismo, como é o caso de várias
experiências de autogestão em países socialistas
91
, usadas para subsidiar a análise da
“economia solidária”, foram não apenas desconsideradas, mas apresentadas como
87
Nessa proposta apresentada pelo representante da “economia solidária”, o conhecimento resultaria da
independência do abstrato/distante e seria através desse conjunto ideal que se definiriam as qualidades da
realidade para que, a partir dessa imagem, fossem procurados elementos subjetivos para fazer aflorar os
sentimentos humanos. O caminho seria, portanto, do idealismo para o irracionalismo. Uma crítica às diversas
correntes teóricas e ideológicas que deságuam no irracionalismo pode ser encontrada em: Lukács (1959).
88
Ao contrário de negar a subjetividade ou a individualidade humana, a análise instaurada por Marx busca
apreender as relações entre esses complexos e as demais esferas da sociedade. Além dessa dinâmica ser a base de
socialização de qualquer indivíduo é apenas a partir da consciência dessas relações que se pode auferir com
precisão possibilidades e necessidades individuais. Diferentemente dessa perspectiva, o subjetivismo, ao
desconsiderar os elos sociais dos indivíduos e dos complexos singulares com a totalidade social, descarta não
apenas a possibilidade de conhecimento sobre a sociedade e suas determinações, mas também a análise sobre as
esferas particulares e o auto-conhecimento individual.
89
A imensa maioria das obras sobre “economia solidária” se limita a análises superficiais e, em vários casos,
individuais e atomizadas. Com exceção de alguns autores apresentados na introdução dessa tese, inexiste uma
preocupação com a relação entre o espaço interno das organizações da “economia solidária” e as determinações
advindas do contexto social.
90
Como veremos no quinto capítulo, um exemplar típico desses processos de ecletismo e sincretismo que
possuem uma função social específica para a mistificação da realidade é a relação da “economia solidária” com o
socialismo utópico.
91
Ressaltamos que não desconsideramos o vasto debate acerca de qual seria a nomenclatura mais precisa sobre
esses países, desde Economia Planificada, passando por Capitalismo de Estado, até países em Via de Transição
ao Comunismo.
84
mistificadoras. Além disso, apresentamos no capítulo anterior algumas problemáticas que
atravessam o debate entre os autores da “economia solidária” e, dentre estas, podemos
destacar a visão sobre a autonomia e o hibridismo
92
.
Nesse capítulo, faremos uma incursão em outras problemáticas que nos parecem
essenciais para demarcar o terreno de atuação da “economia solidária”, assim como quais suas
qualidades típicas e de que forma esse projeto se relaciona diretamente com outras
organizações sociais atualmente em destaque. No entanto, antes de iniciar essa empreitada,
acreditamos que seja preciso tocar num ponto chave desse projeto, ainda que, para tanto, seja
preciso antecipar alguns resultados finais de nossa pesquisa. Analisaremos a seguir uma
dualidade que marca a “economia solidária”, estabelecida pela tentativa de união entre a
organização industrial de produção e a organização comunitária da vida social, assim como a
relação dessa dualidade com o modo de produção capitalista.
2.1. Ética e solidariedade na produção capitalista
Uma das afirmações mais repetidas em textos sobre a “economia solidária” é que tal
projeto seria um herdeiro e continuador das experiências derivadas dos chamados socialistas
utópicos. Muitos autores alegam, seja de maneira explícita ou indireta, uma linearidade entre
o socialismo utópico e a “economia solidária”. Como já citamos no capítulo anterior, para
Singer (2003, p. 13), ainda que a “economia solidária” não seja uma “criação intelectual de
alguém”, é fato que “os grandes autores socialistas denominados ‘utópicos’ da primeira
metade do século XIX (Owen, Fourier, Buchez, Proudhon etc.) tenham dado contribuições
decisivas ao seu desenvolvimento”. Para o autor, a relação de continuação entre o socialismo
utópico e a “economia solidária”, ocorre mais especificamente por meio de um dos
representantes principais daquele projeto – Robert Owen – e de seu principal empreendimento
econômico a cooperativa de Rochdale. Afirma Singer (idem, p. 18), que mesmo com os
vários “indícios de degeneração de muitas cooperativas, a maioria delas mantém-se fiel ao
espírito dos Pioneiros Eqüitativos de Rochdale, uma cooperativa de consumo fundada em
1844, por operários do setor têxtil, da cidade inglesa de Rochdale”.
92
Apresentaremos a seguir alguns elementos que podem servir para esclarecer o leitor sobre a presença do
hibridismo dentro da “economia solidária”.
85
Sintetizando o entendimento do principal representante da “economia solidária” no
Brasil, podemos perceber claramente a defesa da referida linearidade. Logo após fazer alusão
a intervenções econômicas e políticas capitaneadas por Robert Owen e seus seguidores,
Singer (2002, p. 35) afirma que:
Esta é a origem histórica da economia solidária. Seria justo chamar esta fase inicial
de sua história de ‘cooperativismo revolucionário’, o qual jamais se repetiu de
forma tão nítida. Ela tornou evidente a ligação essencial da economia solidária com
a crítica operária e socialista do capitalismo. A figura que sintetizou pensamento e
ação nesta fase foi sem vida Owen, exemplo acabado de pensador e homem de
ação e que inspiraria os seus sucessores. Engels colaborou na imprensa owenista e
tanto ele quanto Marx deveram muito a Owen, dívida aliás nunca contestada.
Segundo o autor, não apenas Robert Owen seria o principal precursor da “economia
solidária”, como os empreendimentos econômicos por ele desenvolvidos teriam um caráter
referencial. No entanto, para além da questionável relação de continuidade entre projetos
advindos de contextos sociais tão díspares, quais seriam, para Singer, os elementos centrais
das experiências dos socialistas utópicos a serem copiadas pela “economia solidária”?
Seriam duas as principais qualidades que o projeto da “economia solidária” deveria
herdar dos socialistas utópicos: a organização produtiva industrial e a sua estreita ligação com
uma sociabilidade comunitária. Conforme afirma Singer (2002, p. 115): “a economia solidária
foi concebida pelos ‘utópicos’ como uma nova sociedade que unisse a forma industrial de
produção com a organização comunitária da vida social”. Entretanto, como seria possível que
ferramentas organizativas que foram gestadas para um contexto econômico e social de quase
dois séculos atrás e que tiveram como resultado um grande fracasso, pudessem servir para
referendar organizações perpassadas pelas determinações da fase atual do capitalismo, como é
o caso da “economia solidária”?
Desconsiderando as diferentes fases do modo de produção capitalista, o autor
apresenta a configuração do mercado de maneira análoga às experiências dos utópicos e, por
isso, as mesmas qualidades deveriam ser reproduzidas. Para o autor, o mercado capitalista se
estruturaria não através de uma dominação total das empresas capitalistas e, especialmente,
dos grandes monopólios e conglomerados comerciais, visto que esse seria configurado a partir
de diversos tipos de produção, com seus respectivos segmentos mercantis:
De minha parte, tenho procurado mostrar que o capitalismo é o modo de produção
dominante mas que está longe de abranger a totalidade das economias
contemporâneas. Ao seu lado, existe a produção simples de mercadorias (unidades
autônomas de produção, individuais ou familiares), a economia pública (formada
por empreendimentos estatais que prestam serviços ou fornecem bens, sem cobrar
preços de mercado por eles), a economia doméstica (constituída pelas atividades
produtivas e distributivas realizadas nos domicílios, visando o autoconsumo dos
membros) e a economia solidária (formada por empreendimentos autogestionários
de produção, de crédito, de serviços, de consumo etc.) (SINGER, 2004, p. 05).
86
Limitando sua análise sobre a estrutura produtiva a uma perspectiva individualista
93
,
em que aparecem experiências singulares em disputa no mercado capitalista, o autor promove
um fantasioso retrocesso das relações capitalistas de produção e distribuição às relações
imediatas de unidades produtivas. A defesa das experiências dos socialistas utópicos pelos
representantes da “economia solidária” não se configura como uma forma de analisar
criticamente o passado com o objetivo de entender de que forma as limitações políticas e
econômicas dessas organizações levaram, inevitavelmente, ao seu fracasso. A referência a
essas organizações se faz como se as determinações que perpassam o modo de produção
capitalista não tivessem sido alteradas e que, por isso, a forma de intervenção econômica
proveniente da cooperativa de Rochdale, por exemplo, poder-se-ia ser transplantada para um
avanço temporal de quase dois séculos de história. Não se trata, como adverte Teixeira (2002,
p. 10), de analisar essa temática secular para evitar que se cometam os mesmos erros do
passado:
Nesse sentido, o leitor se espantará ao verificar que muitos temas da moda da
regulação à descentralização, da globalização à economia solidária estão
inteiramente presentes em textos cuja idade varia de cem a duzentos anos. Lê-los,
portanto, pode-nos ajudar a trilhar caminhos que levem efetivamente à superação do
quadro de dificuldades por que passa a humanidade e nosso país. Pelo menos, a
evitar que se cometam os mesmos erros.
Como veremos com mais detalhes na parte final de nossa tese
94
, acreditamos que
enxergar uma linearidade entre esses dois projetos sociais instaura uma visão não apenas
mistificada da história, como das próprias qualidades progressistas dos socialistas utópicos. É
preciso ressaltar que, por estarem situados em momentos históricos diferentes, tais projetos
precisam se estruturar de formas distintas, e tal fato determina o seu grau contestador ou
legitimador do ordenamento societário. Reafirmamos que não é a visão ou a consciência dos
seus representantes que determina a função social do projeto analisado, mas a forma pela qual
essas experiências se relacionam e se conformam com a totalidade social em que estão
inseridas.
O contexto histórico em que as experiências utópicas estavam inseridas marca um
limite claro: o desenvolvimento imaturo do capitalismo, que estava em sua fase embrionária.
93
Como veremos com mais detalhes no próximo capítulo, tal enfoque expressa aquilo que Luxemburgo (2003)
intitulou de ponto de vista do capitalista individual.
94
Ao contrário de várias pesquisas sobre a “economia solidária” que se iniciam pela relação de continuidade
entre esse projeto e o socialismo utópico, preferimos analisar essa relação no final de nossa tese, quando nos
debruçaremos sobre as propostas de transformação social. Acreditamos que tal recurso servirá para fornecer ao
leitor um substrato teórico maior para que, ao chegar no momento conclusivo, consiga apreender a função social
desses dois projetos a partir das especificidades de cada contexto histórico. A antecipação feita aqui de parte
dessas análises serve apenas para exemplificar a forma de organização econômica da “economia solidária”.
87
Esse contexto histórico, ao passo que facultava espaço para lutas econômicas e produtivas, se
ressentia do ator central nas lutas contra o capitalismo: o proletariado
95
. Por isso, a estratégia
utilizada mais usada foi a criação de organizações econômicas para lutar contra empresas
capitalistas, como foi o caso da cooperativa de Rochdale. Atualmente, tanto o capitalismo
avançou para fases superiores, com a presença estrutural de monopólios e de empresas
imperialistas, como o proletariado tornou-se sujeito revolucionário e passou do estado de
classe-em-si para o de classe-para-si.
No entanto, essas determinações não são consideradas pelos representantes da
“economia solidária” que procuram imaginar um plágio dos socialistas utópicos e, em
especial, da cooperativa de Rochdale. Isso porque essa organização teria conseguido unificar
as duas qualidades enaltecidas por representantes da “economia solidária”: um
empreendimento produtivo, estruturado com uma organização interna que objetivava a gestão
democrática ou, nas palavras de Singer (2002, p. 115) citadas anteriormente, conseguiu
unificar a “forma industrial de produção com a organização comunitária da vida social”.
O representante máximo desse projeto explica, ainda, de que forma a “economia
solidária” reuniria essas duas qualidades provenientes dos utópicos: “a economia solidária
casa o princípio da unidade entre posse e uso dos meios de produção e distribuição (da
produção simples de mercadorias) com o princípio da socialização destes meios (do
capitalismo)” (SINGER, 2003, p. 13). Ou seja, a “economia solidária”, de forma análoga às
experiências dos socialistas utópicos, deveria produzir um amálgama produtivo e distributivo
a partir de qualidades derivadas dos avanços do capitalismo com uma organização interna em
que todos seriam possuidores dos meios de produção.
Um dos principais analistas dos socialistas utópicos, que relatou em detalhes vários
aspectos materiais e subjetivos da história dos integrantes dessas experiências, identificou a
contradição presente nessa proposta:
Trata-se de ultrapassar, unindo os contrários, a oposição de dois sistemas: ‘A livre
concorrência da propriedade exclusivamente individual’ e a doutrina que, ‘partindo
da unidade social e negando o indivíduo, pretende que tudo seja comum, produção e
distribuição’ (RANCIÉRE, 1988, p. 284).
Contudo, no entendimento de integrantes da “economia solidária” os
empreendimentos solidários seriam organizados para uma produção distinta daquela do
95
Diferentemente do contexto da “economia solidária”, os pressupostos dos socialistas utópicos são, segundo
Marx e Engels (1986, p. 45), provenientes da fase inicial de desenvolvimento do proletariado: “A descrição
fantasista da sociedade futura, feita numa época em que o proletariado, pouco desenvolvido ainda, encara sua
própria posição de um modo fantasista, corresponde às primeiras aspirações instintivas dos operários a uma
completa transformação da sociedade”.
88
mercado, uma vez que incorporariam a solidariedade no centro de suas atividades
econômicas:
Importa salientar que, sobre este termo, parece repousar um valor heurístico
fundamental: aquele que pretende refletir uma tendência atual, verificada em
diferentes partes do mundo, de proliferação de iniciativas autônomas de grupos
organizados na sociedade civil
96
, com o intuito de produção de atividades
econômicas de modo distinto daquela praticada no mercado. Muito embora suas
diferenças significativas, relacionadas a cada contexto da sociedade, um traço
comum que mais parece caracterizar tais iniciativas é o fato de elas incorporarem a
solidariedade no centro da elaboração das atividades econômicas, e, ainda,
considerarem tais atividades apenas como um meio para a realização de outros
objetivos, sejam estes de natureza social, política ou cultural (FRANÇA FILHO;
LAVILLE, 2004, p. 16).
Desta forma, estar-se-ia cogitando, portanto, a determinação da ética e da solidariedade na
produção dentro do modo de produção capitalista?
Ainda que se apropriando de elementos relativos ao modo de produção capitalista e,
em especial, da instância nuclear desse sistema – o mercado capitalista –, a “economia
solidária”, não representaria, para Singer, uma continuação do modo de produção vigente.
Enquanto o capitalismo representaria
um modo de produção cujos princípios são o direito de propriedade individual
aplicado ao capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios
divide a sociedade em duas classes sicas: a classe proprietária ou possuidora do
capital e a classe que (por não dispor de capital) ganha a vida mediante a venda de
sua força de trabalho à outra classe. O resultado natural é a competição e a
desigualdade.
Para o autor, diferentemente de outros integrantes da “economia solidária”
97
, o projeto da
“economia solidária” representaria um
outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou
associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios
une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que são possuidores
de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica (SINGER, 2002,
p. 10).
96
Mais do que outras categorias, o uso do termo sociedade civil por representantes da “economia solidária”
acontece com base em autores das mais diferentes matizes teóricas, metodológicas e políticas, caracterizando
uma visão extremamente eclética. Sobre isso, ver: capítulo final de Montaño (2002), e capítulo 02 de Menezes
(2007).
97
abordamos no capítulo 01, quando tratamos inicialmente do debate sobre o hibridismo, a existência de
diferenças significativas entre os representantes da “economia solidária” sobre a possibilidade ou não desse
projeto configurar-se enquanto outro modo de produção. O próprio Singer (2004, p. 07), ao analisar uma das
vertentes da “economia solidária”, demonstra a dubiedade dessa questão: “A economia da dádiva não constitui
um modo distinto de produção, pelo menos nas sociedades de hoje. Os objetos e serviços que se tornam dádivas
não são produzidos especialmente para este fim. Podem ser adquiridos no mercado ou produzidos no lar. A
economia da dádiva não se distingue pelas relações de produção (como é o caso do capitalismo, produção
simples de mercadorias, economia pública etc.), mas pelas relações de solidariedade que tece e reproduz. Em
certo sentido, a reciprocidade é o relacionamento básico entre os que trabalham na economia solidária, na
medida que todo tipo de associação autogestionária tem por fundamento a ajuda mútua, que não passa dum
sinônimo da economia da dádiva”.
89
Para o autor, as organizações da “economia solidária”, em antinomia às empresas
capitalistas, seriam formadas exclusivamente por trabalhadores sendo esses os únicos
detentores de capital. O capital e o mercado permaneceriam presentes, mas o controle sobre
os meios de produção, ainda que se mantendo em espaços coletivos privados, estariam sob o
controle dos trabalhadores e, por isso, a cooperativa de produção representaria, nesse quadro,
a organização modelar. Contudo, antes que esse protótipo de sistema social, ou de modo de
produção, passasse a se tornar vigente, seria preciso um longo caminho para superar as
empresas capitalistas e suplantar o capitalismo e, nesse sentido, dever-se-ia fomentar ao
máximo as organizações criadas pelos socialistas utópicos e “copiadas” pela “economia
solidária”.
Sob esse prisma, da mesma forma que os socialistas utópicos, a “economia solidária”
teria como objetivo central a união dos trabalhadores para superar as condições negativas de
trabalho e de vida através da criação de organizações econômicas. Nesses empreendimentos
encontrar-se-iam reunidos, “na idéia e na perspectiva prática da associação, operários cujas
qualificações, recursos e modos de vida diferem”, mas que se unificaram por causa de um
“mesmo sentimento de precariedade e uma mesma vontade de tentar um tipo de relações
sociais que tragam, ao mesmo tempo, uma saída individual e o exemplo de uma solução para
a precariedade coletiva” (RANCIÉRE, 1988, p. 157).
Essa aspiração, repetida após mais de dois séculos da sua aparição original, carrega um
ideal histórico da substituição da exploração do trabalhador pelo patrão, pela auto-exploração
coletiva, ainda que essa segunda repercuta em condições econômicas inferiores:
Essa visão desdobrada é que fundamenta o sonho da Associação, palavra sempre
exagerada diante das aparências modestas sob as quais os iniciadores a apresentam
aos colegas: unamo-nos para parar com a depreciação de nossos salários, auxiliar-
nos mutuamente, sustentar nossos doentes e nossos velhos; melhor ainda,
coloquemos nossas economias, braços e ferramentas em comum para explorar nós
mesmos nossa indústria (RANCIÉRE, 1988, p. 108).
Ainda que constituindo condições menos favoráveis de trabalho, marcadas pela
inexistência de direitos e benefícios trabalhistas
98
, o sonho da unificação dos trabalhadores
para o controle coletivo da produção serviria como elemento motivador para a criação de
empreendimentos de “economia solidária”. O autor citado anteriormente – Jacques Ranciére –
narra, em seu livro A noite dos proletários: arquivos do sonho operário, vários episódios
dessas experiências criadas a partir desse sonho e que, inevitavelmente, foram dragadas pela
intervenção das empresas e instituições capitalistas. A análise sobre o resultado final dessas
98
Apresentaremos dados sobre a configuração do trabalho dentro de organizações de “economia solidária” no
próximo capítulo.
90
organizações serviu para que o autor explicitasse uma verdade histórica: para que a
organização solidária consiga sobreviver, não basta apenas a boa vontade das pessoas que a
integram. Nos termos de Ranciére (1988, p. 239):
Impotência da boa vontade, poder da ciência para satisfazer as necessidades dos
trabalhadores, reconciliando a natureza dividida dos proletários. Mas, ao mesmo
tempo, as condições dessa reconciliação ficam fora do poder deles. Elas dependem
da ciência que calcula as atrações, mas também dos meios materiais necessários à
experimentação. Os proletários esperam pela obra do sábio, este espera pelo
dinheiro dos capitalistas, aos quais tenta provar que dobrando as alegrias dos
proletários pode-se quadruplicar o produto do se trabalho. Tais raciocínios,
infelizmente, apenas atraem recursos limitados e a boa vontade mal esclarecida de
filantropos de esquerda
99
.
No final, volta-se à velha máxima de Marx e Engels (1986, p. 45) sobre os socialistas
utópicos, que “vêem-se obrigados a apelar para os bons sentimentos e os cofres de filantropos
burgueses”. Isso ocorre pelo fato de que, para competir e sobreviver no mercado capitalista,
qualquer organização precisa aceitar os critérios de racionalidade e eficiência derivados desse
modo de produção e, fatalmente, nesse terreno a luta é extremamente favorável às empresas
capitalistas. Acatando as regras do jogo do mercado capitalista, a conclusão lógica é que as
empresas capitalistas são bem mais capacitadas para alcançar um melhor desempenho
(MACHADO, 2000). Como os empreendimentos criados pelos socialistas utópicos não
conseguiram aportar as mesmas ferramentas objetivas e subjetivas competitivas utilizadas
pelas empresas capitalistas, precisaram apelar para os corações e os bolsos dos burgueses.
Essa comprovação histórica é tão evidente que até defensores da “economia solidária”
explicitam sua concordância. O diferencial destes encontra-se no recurso utilizado para
escapar às determinações derivadas do mercado capitalista, visto que se apela para elementos
sentimentais para servir como pontos favoráveis na disputa econômica
100
:
No entanto, uma aposta que se reduza à questão econômica terá poucas
possibilidades de êxito no longo prazo, que não há como enfrentar uma economia
capitalista globalizada no campo exclusivamente econômico e, como pude expor na
introdução, reside aí, a meu ver, o diferencial da economia solidária. Ela se funda na
idéia de emancipação política, psicológica e econômica dos sujeitos sociais e, como
tal, não busca apenas ganhos financeiros, mas o resgate da auto-estima, a construção
de uma visão crítica de mundo, a consolidação das identidades, a construção da
cidadania, o (re)estabelecimento de vínculos afetivos e amorosos, dentre outras
tantas. É preciso ter olhos para ver todo esse rico e amplo campo de conquistas
dentro de uma iniciativa solidária e é fundamental fazê-lo, pois é isso, também e
99
Essa passagem de Ranciére representa uma apresentação típica dessa fase do socialismo utópico, pois expressa
uma ntese das principais determinações que perpassaram essas propostas: religião, ciência, natureza, ética,
capital, organização dos trabalhadores etc. Esse projeto social que pretendia organizar os trabalhadores dependia
da religião e suas relações geométricas com a ciência, que copiava os imperativos naturais e que, a partir da boa
vontade de capitalistas, conseguiria o patrocínio necessário. Voltaremos a esses temas no último capítulo.
100
Também Paul Singer, ainda que indiretamente, aponta para essa questão: “A revolução industrial gera forças
produtivas que não cabem no quadro da produção simples de mercadorias. O custo do maquinário exige a
apropriação capitalista do excedente social e sua acumulação sob a forma de capital industrial, num primeiro
momento, e de capital acionista em seguida” (SINGER, 1999, p, 107).
91
principalmente, que a diferencia de um empreendimento capitalista (BARRETO,
2003, p. 309).
Para despistar as condições inóspitas na disputa econômica, o autor recorre a outras
qualidades menos tangíveis para advogar a vantagem das organizações de “economia
solidária” perante empresas capitalistas. Assim, ainda que seguindo as regras do mercado
capitalista, a competição estabelecida pela “economia solidária” teria um diferencial de
relevo: na atividade produtiva estariam presentes não objetivos de participação e repartição
econômicas, mas a formação e a promoção do ser humano (cf. GAIGER, 2003, p. 278).
Faltaria apenas convencer as empresas capitalistas que essa deveria ser realmente a forma
básica da disputa, e não os imperativos do capital. Sob essa perspectiva fantasiosa, ainda que
todas as empresas precisem configurar-se como personificações do capital para sobreviver no
mercado, as organizações da “economia solidária”, ainda que seguindo as mesmas regras
presentes nesse espaço de disputa, poderiam possuir no seu interior um ambiente dominado
pela ética e a solidariedade.
Seria por causa dessa qualidade singular que essas organizações constituiriam
protótipos ou microcosmos de um suposto novo modo de produção que, apesar de se basear
no mercado para regular as trocas econômicas, possuiria como preocupação central o ser
humano. Nesse sentido, experiências como as associações e cooperativas não representariam
apenas a finalidade da “economia solidária”, mas também o meio para produzir a vigência
sistemática desse projeto social. Com isso, alcançar-se-ia, portanto, um sistema social sem
empresas capitalistas e configurado pela solidariedade e igualdade entre as pessoas?
Acompanhando a tendência desses postulados a resposta gica seria a confirmação
dessa assertiva. Todavia, não podemos, na opinião do representante maior da “economia
solidária”, fazer tal afirmação. Segundo Singer, ainda que existisse a presença dominante de
organizações da “economia solidária” na sociedade e que tal fato produzisse um modo de
produção distinto do capitalismo, nada indicaria que prevaleceriam elementos como a
solidariedade e a igualdade entre as pessoas. Para que tais qualidades se tornassem nucleares
da sociedade, seria preciso apelar para uma outra instituição que marca também o modo de
produção capitalista: o Estado. Existe, portanto, uma importante limitação no projeto da
“economia solidária”, visto que,
O resultado natural é a solidariedade e a igualdade, cuja reprodução, no entanto,
exige mecanismos estatais de redistribuição solidária da renda. Em outras palavras,
mesmo que toda atividade econômica fosse organizada em empreendimentos
solidários, sempre haveria necessidade de um poder público com a missão de captar
parte dos ganhos acima do considerado socialmente necessário para redistribuir essa
receita entre os que ganham abaixo do mínimo considerado indispensável. Uma
alternativa freqüentemente aventada para cumprir essa função é a renda cidadã, uma
92
renda básica igual, entregue a todo e qualquer cidadão pelo Estado, que levantaria o
fundo para esta renda mediante um imposto de renda progressivo (SINGER, 2002,
p. 10 – 11. Itálicos nossos).
Desta forma, no lugar das organizações de “economia solidária”, seria o Estado e os
mecanismos estatais os principais responsáveis para erigir uma sociedade em que
prevalecesse a solidariedade e a igualdade. Perguntamos: sendo assim, qual o papel das
organizações de “economia solidária” para a instauração de uma sociedade igualitária e que
rompa com a competição entre as pessoas? Se os elementos básicos do capitalismo, como
capital, mercado e Estado, permanecem existindo, o que distingue estruturalmente o novo
modo de produção aventado pela “economia solidária”, do atualmente vigente? Essa é uma
pergunta de difícil resposta, visto que, para além das discordâncias internas de seus
representantes e das incoerências teóricas que perpassam um mesmo autor, esse novo modo
de produção não descartaria de sua base as principais determinações que consubstanciam a
fase atual do capitalismo.
Assim, o que podemos apreender com segurança não é uma visão potencial sobre o
futuro desse projeto, mas a sua função social realizada na atualidade e, no nosso caso, dentro
das limitações do capitalismo brasileiro. É esse objetivo que pretendemos alcançar ao logo de
toda a tese e, como veremos no próximo tópico, as relações nem sempre nítidas entre a
“economia solidária” e outras organizações podem estabelecer distintas funções sociais.
Todavia, antes de encaminhar essa discussão, gostaríamos de terminar esse tópico expondo
uma lição histórica sobre as determinações que perpassam as pequenas produções que
precisam estar inseridas no mercado capitalista:
Porque em qualquer país capitalista existem sempre, ao lado do proletariado,
extensas camadas de pequena burguesia, de pequenos proprietários. O capitalismo
nasceu e continua a nascer, constantemente, da pequena produção. O capitalismo
cria de novo, infalivelmente, toda uma série de ‘camadas médias’ (apêndice das
fábricas, trabalho a domicílio, pequenas oficinas disseminadas por todo o país em
virtude das exigências da grande, por exemplo, da indústria de bicicletas e
automóveis, etc.). Estes novos pequenos produtores vêem-se por sua vez lançados,
também inevitavelmente, nas fileiras do proletariado. É perfeitamente natural que a
mentalidade pequeno-burguesa irrompa repentinamente nas fileiras dos grandes
partidos operários. É perfeitamente natural que isso suceda, e assim sucederá
sempre, chegando às próprias peripécias da revolução proletária, pois seria um
profundo erro pensar que é necessário que a maioria da população se proletarize
‘por completo’ para que essa revolução seja realizável (LÊNIN, 1980, p. 46).
A idéia de unificação dos trabalhadores em torno de empreendimentos de “economia
solidária”, transformando-os em proprietários coletivos de meios de produção privados ou, da
ética e solidariedade na produção dentro do capitalismo, possui um horizonte de dupla face. É
possível que a união dos trabalhadores derive num elo de luta contra o capital, mas também é
muito provável, a partir da criação de uma organização de “economia solidária”, que se
93
estejam construindo laços materiais e ideológicos de uma consciência e uma prática pequeno-
burguesa
101
. Ao contrário da opinião dos representantes da “economia solidária”, o que se
apreende majoritariamente da função social dessas organizações é a segunda sentença.
Vejamos de perto alguns desses casos.
2.2. A solidariedade do capital: “economia solidária” e as cooperativas
capitalistas
A relação entre produção industrial e organização comunitária da vida social,
objetivada no interior dos empreendimentos de “economia solidária”, marca, como
observamos anteriormente, uma dualidade presente nesse projeto. São vários os
representantes da “economia solidária” que se preocupam com essa questão e que alertam
para o cuidado do crescimento desenfreado dessas organizações. A imagem de uma
organização econômica que se expanda muito representa um pesadelo para alguns integrantes
desse projeto, uma vez que o tamanho da organização tornar-se-ia uma fronteira entre a
possibilidade ou não de implementação de uma gestão democrática. A bandeira levantada
pode ser relacionada diretamente como a luta coletiva de pequenos proprietários contra o
grande empresário
102
, e essa peleja se traduz peculiarmente no Brasil na produção agrícola e
nas atividades de crédito.
Isso aconteceria porque, com o crescimento dos empreendimentos solidários, estar-se-
ia colocando em questão a implementação de elementos pertinentes à organização da vida
comunitária dentro da produção econômica. Além disso, vale ressaltar o contexto em que se
inserem essas organizações o modo de produção capitalista pois, como vimos, as
determinações relativas a essa totalidade social constituem ameaças constantes à prática de
princípios tais como solidariedade e igualdade. Existiria uma relação inversa entre gestão
democrática e crescimento da organização e essa ameaça estaria potencializada pelas
101
Dentre outros suportes para a existência de uma perspectiva pequeno-burguesa dentro da “economia
solidária”, encontra-se a transformação de trabalhadores em capitalistas coletivos, e a subjetividade baseada na
propriedade privada: “A proposição sobre o novo cooperativismo abraçado na economia solidária traz um
limitador na análise, pois, apesar da vitalidade tática de se pensar a coletivização de experiências de
trabalhadores informais de modo a tentar ampliar o poder de barganha na estrutura econômica no mercado, não
elimina o antagonismo, o conflito de classes, transformando trabalhador em empreendedor coletivo, porque a
ilusão da propriedade” (BARBOSA, 2007, p. 111 – 112).
102
Bandeira que também pode ser relacionada diretamente com o lema de que “o negócio é ser pequeno”, que é
o título do livro de Schumacher (1983).
94
determinações que envolvem toda a sociedade e incidem diretamente no espaço interno da
“economia solidária”.
Para não reproduzir os mesmos caminhos do cooperativismo tradicional brasileiro, a
“economia solidária” deveria atentar constantemente para essa precaução e, assim, seguir o
lema da limitação do tamanho das cooperativas. Segundo Bittencourt (2003, p. 194), para
evitar que ocorra com a “economia solidária” o mesmo que ocorreu “na maioria dos casos do
Brasil”, com a existência de “poucas e grandes cooperativas, controladas e a serviço de
poucos”, seria preciso seguir atentamente o “lema básico segundo o qual o sistema deve ser
constituído por ‘muitas pequenas cooperativas, dirigidas, controladas e a serviço de muitos’”.
Assim, para se contrapor às cooperativas tradicionais brasileiras, o autor defende não apenas a
limitação no tamanho das organizações de “economia solidária”, mas também que, a partir do
crescimento desses empreendimentos sejam realizadas medidas drásticas de
desmembramento: “na medida em que as cooperativas que atuam em mais de um município
vão crescendo em número de sócios e em capitalização, busca-se o seu desmembramento”
(IDEM, p. 199).
É baseado nessa preocupação que, logo após citar dados apresentados por Birchall
(1997) sobre a grandeza do cooperativismo em vários países
103
, Singer (2002, p. 87) adverte
que se trata de uma ilusão afirmar que nestas cooperativas prevalecem os princípios da
solidariedade e igualdade na produção econômica:
Poder-se-ia imaginar que países predominantemente agrícolas, em que a maior parte
da produção agrícola e agroindustrial está nas mãos de cooperativas, como a
Islândia, a Dinamarca ou a Irlanda, seriam formações socioeconômicas ‘solidárias
no sentido em que o maior modo de produção, em cada um destes países, seria a
economia solidária. Infelizmente, isso seria uma ilusão. O cooperativismo agrícola,
tanto nestes países como nos demais, é solidário apenas no relacionamento dos
sócios entre si, ou seja, os membros das cooperativas praticam a democracia no
governo das mesmas, mas organizam suas atividades de modo capitalista. A compra
e revenda de insumos, a coleta e o processamento dos produtos dos agricultores
associados e a sua venda são realizados por assalariados.
Quando as cooperativas extrapolam os limites da organização comunitária da vida
social, passando a integrar um número muito grande de membros, a prática da gestão
democrática tornar-se quase impossível. A partir desse momento, o espaço interno dessas
103
Dentre os dados apresentados por Birchall (1997) sobre a importância econômica do cooperativismo em todo
o mundo, podemos destacar: no começo do século XX existiam, na Dinamarca, mais de mil cooperativas de
laticínio, responsáveis por 80% do leite produzido no país e possuidoras de 86% de todo o gado; em 1990,
existiam mais de 58 mil cooperativas agrícolas européias, integrando cerca de 13,8 milhões de associados e
movimentando anualmente 265 bilhões de dólares; na França, 90% dos agricultores fazem parte de cooperativas,
que produzem 60% do vinho, 52% do leite e 42% das aves; na Alemanha existem 5 mil cooperativas
empregando 120 mil trabalhadores e que possuem quase todos os agricultores, horticultores e cultivadores de
vinhas como seus membros; no Brasil, existem 1.378 cooperativas agrícolas que agrupam 1 milhão de membros,
empregam aproximadamente 150 mil trabalhadores e alcançam 12 bilhões de dólares em vendas anuais.
95
organizações representaria uma presa fácil para as determinações típicas de um ordenamento
societário pautado na mercadoria e na lógica do capital. A cooperativa deixaria de ser uma
“economia solidária” e passaria a ser uma empresa capitalista. Tal análise fica evidente
quando se observa que, no Brasil, muitas cooperativas agrícolas tornaram-se, segundo
Bittencourt (2003, p. 213), “organizações de difícil acesso e que privilegiam os agricultores
mais capitalizados”. Também, na visão do autor, no setor de crédito brasileiro, a maioria das
grandes cooperativas não costuma seguir os princípios originais de solidariedade
cooperativista:
Os bancos ditos cooperativos, criados a partir das cooperativas de crédito
tradicionais, passaram a se comportar muito mais como bancos comerciais,
buscando sua sobrevivência e o lucro, do que como bancos cooperativos, com
intuito de viabilizar e facilitar o crédito a seus associados (BITTENCOURT, 2003,
p. 198).
Por estarem subordinadas às demandas do mercado e à necessidade de produzir
receitas econômicas ao final do mês, algumas cooperativas, para continuar existindo,
abdicaram de princípios históricos do movimento cooperativista. Para sobreviver, essas
organizações precisaram seguir as regras do mercado capitalista e, muitas vezes, seguiram
essas regras para além dos limites do ideal solidário. Ocorreu, assim, a passagem de uma
fronteira idealizada entre seguir os imperativos do capitalismo para além dos muros do
empreendimento de “economia solidária”, e conformar seu espaço interno aos imperativos do
capital. Se antes existiriam solidariedade e ética na produção capitalista, agora, subtraem-se os
dois adjetivos e o resultado final torna-se menos complexo: simplesmente uma produção
capitalista.
O crescimento do tamanho da cooperativa, sob essa perspectiva, provocaria efeitos
danosos, fazendo com que o ambiente interno dessas organizações se torne menos resistente
às tentações lucrativas, uma vez que se estaria colocado em xeque a organização comunitária
da vida social:
O fato é que a maioria das cooperativas de consumo e agrícolas adotou a gestão
capitalista em seus estabelecimentos. As cooperativas de consumo tiveram o seu
auge na primeira metade do século XX; depois da Segunda Guerra Mundial
sofreram a concorrência das grandes empresas varejistas de auto-serviço, que as
superaram. A maioria das cooperativas de consumo foi fechando as portas em
muitos países. Mas as cooperativas agrícolas se mantêm e crescem cada vez mais,
organizando agroindústrias de processamento de cereais, produção de rações, de
vacinas etc. Muitas se tornam grandes organizações, dirigidas por tecnocratas
gerenciais de alto nível, que dominam os pequenos agricultores que são
nominalmente os seus ‘donos’. Finalmente, no Brasil pelo menos, cooperativas
agrícolas admitem como cios grandes firmas capitalistas, que assalariam
numerosos trabalhadores. Nestas, não restam vestígios de solidariedade (SINGER,
2003, p. 18).
96
Não obstante, além da pressão por parte de empresas e instituições capitalistas para
subordinar as práticas de organizações da “economia solidária”, existe outra ameaça advinda
de organizações que poderiam configurar-se como aliados da solidariedade na produção: as
cooperativas que se tornaram capitalistas. Com isso, algumas cooperativas não apenas teriam
se estruturado a partir dos pilares do capitalismo, como praticariam a função social de
gendarme desse modo de produção. Tal evidência por ser exemplificada na atuação de
algumas cooperativas que realizam pressões políticas e operacionais contra as pequenas
produções:
Com uma área de ação inicial limitada às regiões Sudoeste e Centro-Oeste do
Paraná, a entrada do Sistema Cresol no Rio Grande do Sul veio por meio da
Cooperativa Central de Leite Ltda. (Cocel). Com o apoio desta central, formada por
cooperativas de leite de agricultores familiares, foram criadas cinco Cresol em 1999.
A atuação em Santa Catarina iniciou em 1998, com a criação de uma Cresol em
Dionísio Cerqueira. Além desta, outras quatro cooperativas de crédito em Santa
Catarina, apesar de estarem inicialmente vinculadas ao Sicredi/SC, desfiliaram-se
desse sistema e associaram-se ao Sistema Cresol em dezembro de 1998. Estas
cooperativas tiveram sua criação vinculada às organizações de agricultores
familiares, sendo que algumas delas haviam contribuído com o Sistema Cresol
quando de sua criação.
Elas se vincularam ao Sistema Cresol porque começaram a sofrer restrições
políticas e operacionais quando o Sicredi participou da criação do Banco
Cooperativo (Bancoop) em 1997. O Bancoob [sic] tem estimulado (forçado) a fusão
de pequenas cooperativas de crédito e a incorporação das pequenas pelas grandes.
(BITTENCOURT, 2003, p. 197 – 198)
.
Apesar de usarem a insígnia de cooperativas, a prática de várias dessas organizações
desautorizaria, segundo representantes da “economia solidária”, a sua inclusão nesse projeto.
Por terem se tornando grandes organizações dirigidas por tecnocratas despreocupados com o
resto dos seus integrantes; por ameaçarem economicamente e politicamente os pequenos
produtores, forçando-os a se subordinar e se incorporar; por terem admitido as grandes firmas
capitalistas como parceiros de relação mercantis; e, finalmente, por utilizar trabalho
assalariado em grande proporção, essas supostas cooperativas não poderiam ser chamadas de
“economia solidária”
104
. Seria preciso, portanto, diferenciar o joio do trigo, ou as
organizações de “economia solidária” das cooperativas que se desviaram do ideal original de
solidariedade. Em vista desse objetivo, representantes da “economia solidária” buscaram
explicitar algumas qualidades centrais que distinguem essas organizações de empresas
capitalistas travestidas de cooperativas.
104
No entendimento de Singer (2002, p. 122), a existência de trabalho assalariado representa uma das fronteiras
que separam as organizações de “economia solidária” de cooperativas capitalistas e esse exemplo é recorrente
em vários casos de cooperativas agrícolas: “As cooperativas agrícolas se expandiram e algumas se
transformaram em grandes empreendimentos agroindustriais e comerciais. Mas nenhuma destas cooperativas era
ou é autogestionária. Sua direção e as pessoas que as operam são assalariadas, tanto nas cooperativas de
consumo como nas de compras e vendas agrícolas. Por isso não se pode considerá-las parte da economia
solidária”.
97
Dentre esses representantes, Bittencourt fez questão de demonstrar por que razões o
Sistema Cresol não pode ser comparado com cooperativas capitalistas de crédito, nem com
empresas tradicionais de capital financeiro. Para o autor, enquanto o sistema financeiro
tradicional busca a concentração por meio de fusões e incorporações, o Cresol objetiva a
descentralização via desmembramento de pequenas cooperativas; enquanto o sistema
financeiro tradicional amplia critérios de seletividade, privilegiando repasse de crédito para
grandes agricultores, o Cresol aposta nos agricultores familiares e nos que estão
descapitalizados; enquanto o Banco do Brasil é bonificado com taxas elevadas de spread e
oriundas do Tesouro Nacional para operacionalizar o funcionamento do Pronaf, é o Cresol
quem se responsabiliza pelas despesas e pelo risco de inadimplência, recebendo unicamente
uma parte ínfima do spread; enquanto o sistema financeiro, por meio de seus técnicos,
defende a subordinação dos agricultores às agroindústrias e ao uso de insumos químicos, a
Cresol auxilia financeiramente na formação de pequenas associações agroindustriais e na
produção orgânica (cf. BITTENCOURT, 2003, p. 215)
105
.
Contudo, ainda que seja uma autêntica organização de “economia solidária”, o Sistema
Cresol precisa produzir receitas econômicas ao final do mês para conseguir sobreviver e, por
isso, não pode se recusar a seguir algumas regras capitalistas. Assim, mesmo que objetive se
diferenciar “dos bancos convencionais”, atuando como “agentes de desenvolvimento local”
(IDEM, p. 214), a organização de “economia solidária” precisa se preocupar com o retorno
financeiro dos empréstimos realizados. Nesse sentido, ainda que não se apresente como
paradoxal para o autor, impera dentro do Sistema Cresol o lema que “cada associado deve ser
respeitado como tal, independente de sua situação econômica”, ainda que o empréstimo deva
“ser feito com base na análise das condições de crédito, do projeto técnico apresentado e das
reais condições de pagamento do agricultor” (IDEM).
Em outras palavras, desde que possuam condições econômicas para pagar o
empréstimo somado com as respectivas taxas de juros, todos serão tratados com igualdade e
respeitados independentemente de suas situações financeiras. Essa característica representaria
105
O autor também faz alusão ao enfoque econômico nos pequenos agricultores e na agricultura familiar:
“Podem ser associados de uma Cresol todos os agricultores familiares com mais de 18 anos, e que explorem, sob
qualquer condição, área inferior a quatro módulos rurais, além das pessoas físicas que desempenham funções
técnicas voltadas ao meio rural e os funcionários ou colaboradores das cooperativas de crédito. Podem se
associar pessoas jurídicas, desde que desenvolvam atividades agropecuárias ou agroindustriais e que sua maior
fonte de renda provenha de atividades agropecuárias. Para algumas Cresol, dependendo do seu regimento
interno, existem ainda limites quanto à renda bruta anual, às quais incorporam os mesmos critérios do Pronaf,
restringindo a associação a agricultores familiares que tenham uma renda bruta anual inferior a 27.500 reais. Em
relação à força de trabalho, todas as Cresol definem que agricultores associados precisam utilizar mão-de-obra
majoritariamente familiar” (BITTENCOURT, 2003, p. 203).
98
uma atitude criteriosa que distingue as organizações de “economia solidária” das cooperativas
capitalistas e demais empresas de capital financeiro:
as cooperativas de crédito devem ser criteriosas na sua ação, não podendo emprestar
sem ter retorno. Isto não significa emprestar apenas para os agricultores mais
capitalizados, mas para projetos que sejam economicamente viáveis e que possam
gerar recursos para pagar os seus débitos (IDEM).
Assim, identificam-se não apenas diferenças entre as organizações de “economia
solidária” e empresas e cooperativas capitalistas, mas também semelhanças. Apesar de
externar várias críticas sobre as cooperativas que realizam práticas capitalistas, os
representantes da “economia solidária” assumem que existe uma qualidade que assemelha
essas duas formas de empreendimentos: a necessidade de subordinação ao mercado
capitalista. Ainda que objetive promover atitudes internas intituladas de solidárias, torna-se
impossível que a “economia solidária” consiga reproduzir essa suposta solidariedade em todas
as relações mercantis. Além disso, vale ressaltar que, diferentemente de autores mais críticos
que analisaram cooperativas capitalistas, em nenhum momento o autor citado anteriormente
se refere de maneira mais contundente às cooperativas tradicionais, como, por exemplo, pelo
seu aspecto político reacionário
106
. As críticas se resumem a aspectos burocráticos, ao
distanciamento para com os pequenos agricultores e a cobrança de taxas de juros mais
elevadas.
Nesse sentido, o problema central que diferenciaria a “economia solidária” de
cooperativas de crédito desvirtuadas, não seria a cobrança de juros ou alguma outra
terminologia que expresse teoricamente o movimento real do capital derivada da apropriação
de uma parte da mais-valia proveniente da exploração do trabalho. O problema essencial não
estaria presente na relação produtiva ou econômica, mas nos sentimentos envolvidos, pois se
deveria preservar a ética e a solidariedade contra a ganância e o individualismo, ainda que,
para tanto, seja preciso cobrar juros dos pequenos produtores. Aceitando como indiscutível
essa regra do mercado capitalista, a “economia solidária” expressa seu diferencial de ética e
igualdade, devendo ser um agente de desenvolvimento local e tratando todos os tomadores de
empréstimos por igual, desde que tenham condições para repassar parte do excedente de
trabalho. Outro diferencial dessas organizações se encontraria na semântica, pois não se
trataria de lucro ou mais-valia, ainda que a fonte desse recurso financeiro seja o mesmo que
de qualquer empresa capitalista, cooperativa ou não.
106
Exporemos, no próximo tópico, de que forma algumas cooperativas e o movimento cooperativista podem se
constituir como forças sociais bastante influentes na busca pela dominação e legitimação capitalista. Também
analisaremos no capítulo 03 algumas cooperativas que funcionam como base da exploração e precarização do
trabalho.
99
Ao expor tal crítica, não estamos, diferentemente de posturas recorrentes na
“economia solidária”, responsabilizando subjetivamente as pessoas que integram essas
experiências, mas apenas apontando para um paradoxo central presente em projetos sociais
que buscam unir idealmente espaço organizativo pautado por valores solidários com relações
econômicas no mercado capitalista. Não se trata de julgar individualmente as pessoas que
compõem a “economia solidária” e acusá-las de terem se desviado dos valores originais do
cooperativismo, mas de apreender de que forma as determinações que perpassam a totalidade
social incidem e consubstanciam esse objeto de pesquisa, impondo limites para a sua função
social. Para manter a existência dessas organizações, seus integrantes sabem que seguir as
regras do mercado capitalista não representa uma escolha, e isso é válido para qualquer
projeto social que pretenda inserir-se nas relações econômicas dentro do sistema capitalista.
Em vez de acreditar que o desvio da “experiência histórica do cooperativismo, que
acabou se transformando em instrumento de promoção de poucos” está relacionado
diretamente com o “desconhecimento das potencialidades de instrumentos comunitários de
promoção do desenvolvimento, fruto do baixo nível de desenvolvimento social no Brasil”
(BITTENCOURT, 2003, p. 194), precisamos entender que essas organizações estão inseridas
dentro de um ordenamento societário estruturado sobre o signo do capital. Por isso, a prática
de valores éticos e solidários dentro do mercado capitalista não depende do aproveitamento da
potencialidade da sociabilidade comunitária das organizações da “economia solidária”, mas
das relações de produção vigentes no Brasil:
Assim, o tipo de interação predominante nas cooperativas será função em grande
medida das relações de produção vigentes no meio mais amplo. A ocorrência de um
maior número de cooperativas ‘eficientes na área dos produtos de exportação e
industriais (cana-de-açúcar, café, cacau, algodão, etc.) em contraposição ao
raquítico cooperativismo de produtos de subsistência, sobretudo no Nordeste, indica
a ligação existente entre a distribuição da terra, da renda e do poder político com a
maior ou menor expressão econômica das cooperativas (RIOS, 1979, p. 28).
Contudo, ainda que sejam moldadas pelas relações de produção pertinentes ao modo
de produção capitalista, cabe, aos representantes da economia solidária”, a complexa tarefa
de mistificar diferenças estruturais entre as organizações que integram esse projeto daquelas
que reproduzem in extenso os imperativos do capital. Além de preservar a imagem da
“economia solidária”, esse recurso serve para subsidiar o ideal de uma suposta capacidade
transformadora. As organizações de “economia solidária” seriam, portanto, não somente
distintas das empresas capitalistas e cooperativas cooptadas pela lógica burguesa, mas, a partir
de sua união e multiplicação, poder-se-ia vislumbrar um novo modo de produção. Sob esse
ponto de vista, ainda que mantendo o mercado e o Estado como instâncias superiores e
100
reguladoras da sociedade, estar-se-ia engendrando uma sociedade mais ética, solidária e igual.
Conforme vimos, esse projeto social e esse ideal de transformação social encontram-se
permeados por várias contradições e, ao longo de nossa tese, aprofundaremos alguns desses
elementos, assim como apontaremos para a existência de outros.
No nosso entendimento existem diferenças importantes que distinguem as
organizações de “economia solidária” de empresas ou cooperativas capitalistas, e buscamos
apresentar os relatos que evidenciam essas qualidades. No entanto, é nosso dever também
realizar uma análise dessas diferenças na sua relação com a totalidade social para, a partir
desse ponto, indicar qual o seu caráter: se, por um lado, significam características antagônicas
ao modo de produção capitalista, ou, por outro, expressam distinções laterais que não
inviabilizam as relações econômicas e sociais em vigor, assim como se servem para ampliar e
legitimar a dominação capitalista.
2.3. A dominação capitalista mistificada em solidariedade: a “economia
solidária” e a OCB
Avançando no processo de diferenciação entre as organizações de “economia
solidária” e as empresas e cooperativas capitalistas, alguns autores do projeto analisado não se
restringem à divulgação de qualidades que seriam típicas de cada uma dessas entidades, mas
apresentam uma tipologia de trabalho. Com base nos princípios históricos do cooperativismo
e nos demais pressupostos contidos nos textos de divulgação da “economia solidária”, surge
uma classificação para identificar quais seriam os autênticos empreendimentos solidários.
Nesse sentido, apresentam-se dois tipos de cooperativismo: um oficial, formado por grandes e
médias organizações, que estariam subordinadas aos desígnios dos aparelhos estatais, que
teriam abdicado dos princípios históricos do cooperativismo e que atuariam de forma
semelhante às empresas capitalistas; e o autogestionário
107
, marcado pelas relações de
solidariedade entre pessoas e organizações e, desta forma, referendado na “economia
solidária”. Assim se pronunciam os representantes da “economia solidária”:
Existe, por um lado, o cooperativismo oficial, mais ou menos ligado a agências
governamentais e de iniciativas de grande e médio porte, que não respeitam os
princípios do cooperativismo, agindo na prática como empresas capitalistas. Por
107
Sobre os diversos usos do termo autogestão, ver tópico 3 do capítulo anterior.
101
outro lado, existem inúmeras iniciativas voltadas para a construção de cooperativas
autogestionárias, que realizam intercâmbios solidários e se esforçam para a
construção de redes de economia solidária (VEIGA; FONSECA, 2001, p. 29 – 30).
Essa classificação, além de ajudar a definir as organizações que fazem parte da
“economia solidária”, serviria também para selecionar quem pode receber auxílio das
entidades representativas desse projeto. Com base nesse entendimento, apenas podem receber
ajuda do Senaes, por exemplo, as organizações que, de acordo com essa classificação, seguem
os preceitos da ética e solidariedade na produção econômica. Por isso que, conforme constata
uma analista crítica da “economia solidária”, “as grandes cooperativas da agropecuária, por
exemplo, que se associam à estratégia do agronegócio não estão sob a proteção da Senaes”
(BARBOSA, 2007, p. 101).
Por não seguirem os indicativos e valores expressos na carta magna do movimento
cooperativista, ou por desconsiderarem na prática os princípios básicos da propriedade
coletiva do capital e da liberdade individual, difundidos pela “economia solidária”
108
, as
organizações, ainda que intituladas pelos seus representantes de cooperativas, ficariam
impossibilitadas de receber proteção do Senaes. A referência histórica para essa tipologia
permaneceria sendo a cooperativa de Rochdale, criada por Robert Owen e seus seguidores
quase dois séculos, visto que essa organização teria conseguido harmonizar os princípios
cooperativistas com as determinações do mercado capitalista:
A Sociedade dos Pioneiros de Rochdale mostrou enorme capacidade de adaptação
às oportunidades e aos riscos da economia de mercado, e fez isso sem abrir mão dos
princípios cooperativistas. Pelo contrário, foi exatamente a harmonização destes
dois fatores que possibilitou seu crescimento, tornado-a um modelo das
cooperativas futuras (VEIGA; FONSECA, 2001, p. 20).
A harmonização entre mercado capitalista e valores solidários representaria, portanto,
o critério central para diferenciar a “economia solidária” dos demais empreendimentos
econômicos. Para ser incluída dentro desse projeto social e receber auxílios das suas
respectivas entidades, seria preciso provar que prevalece uma “racionalidade social distinta da
racionalidade econômica capitalista”, e que se “busca conjugar a eficiência econômica,
entendida aqui como a capacidade de ser competitiva num mercado, com princípios
democráticos e de solidariedade, tanto na gestão quanto na propriedade do empreendimento”
(PARRA, 2003, p. 95 96). Ou seja, como já analisamos anteriormente, que o
empreendimento regula-se pela seguinte contradição: de um lado ética e solidariedade no
108
Como vimos anteriormente, esses dois princípios da “economia solidária”, defendidos por Singer (2002, p.
10), possuem uma fluidez categórica que dificulta a distinção entre trabalhadores coletivos e capitalistas
coletivos.
102
ambiente interno e, de outro, subordinação ao mercado capitalista para realizar as relações
econômicas.
Por trás dessa contradição da “economia solidária” prevalece uma visão dual da
realidade em que se apresenta o espaço interno dessas organizações como imune às
determinações do mercado capitalista, e que, aos poucos essa nova racionalidade solidária
passaria a permear todas as relações sociais e econômicas. De dentro para fora, a
disseminação da “economia solidária” promoveria, aos poucos, sentimentos de solidariedade
que chegariam até os corações capitalistas, convencendo todos sobre a superioridade desse
sistema harmônico. Desconsiderando que “o efeito da solidariedade limita-se a pequenos
grupos, não compondo a organização coletiva do trabalho na sociedade” (BARBOSA, 2007,
p. 112), colocar-se-ia em pauta a transformação da sociedade capitalista em sociedade
cooperativa:
Para esses ‘teóricos’, as cooperativas seriam como oásis de confraternização
econômica e política numa sociedade competitiva, hostil e egoísta. Basta apenas um
pouco de tempo e mais eficiência – e para isso são úteis os pragmáticos para que a
sociedade se metamorfoseando, de dentro para fora, das partes para o todo, de
sociedade competitiva em sociedade cooperativa. E, mesmo quando se elimina esta
perspectiva globalizante na abordagem doutrinária, isto apenas significa que se
passa a considerar o simples funcionamento de unidades cooperativas,
independentemente dos estratos a que sirvam, como a realização mesma dos
princípios doutrinários (RIOS, 1979, p. 109 – 110).
De toda forma, é sob essa insígnia que os representantes desse projeto buscam se
diferenciar de outras organizações econômicas. Qualquer desvio de conduta da organização
que demonstre a introspecção de elementos capitalistas deve ser penalizado simbolicamente e
operacionalmente: com a sua exclusão do projeto da “economia solidária” e com a negação de
auxílio e parcerias com as entidades representativas. Uma degeneração como a ampliação
desmedida do empreendimento, tendo por conseqüência a centralização, burocratização e
verticalização do processo gerencial, não será passível de absolvição.
Exemplos claros desse processo encontram-se em grande parte das cooperativas
integrantes da OCB Organização das Cooperativas do Brasil, assim como nessa própria
entidade. Conforme aponta Barbosa (2007, p. 11), as narrativas de representantes da
“economia solidária” são “claras ao estabelecerem uma cisão entre o que propõem e a
tradição cooperativista brasileira em torno da OCB. A diferenciação estaria na verticalização
da prática política cooperativista, distante da dinâmica democrática e participativa”. A razão
principal da exclusão de cooperativas filiadas a OCB do projeto da “economia solidária”
resultaria, portanto, do fato daquelas incorporarem práticas burocráticas que inviabilizariam a
gestão democrática.
103
Não obstante a degenerescência na prática democrática e participativa, várias
cooperativas que integram a OCB aportariam outra qualidade que tornaria impossível sua
inclusão no projeto de economia solidária”. Segundo relato de representantes da “economia
solidária”, “o discurso das lideranças da OCB indica uma tentativa de colocar o
cooperativismo acima do debate socialismo versus capitalismo” e que tal atitude negaria “as
raízes históricas das lutas sociais e trabalhistas que muitas organizações da economia solidária
e entidades de apoio procuram recuperar” (CUNHA, 2003, p. 65). Como a “economia
solidária” é apresentada pelos seus representantes como baseada na tradição de lutas pela
construção de uma sociedade socialista
109
e, como a prática da OCB renegaria esse patrimônio
histórico, essa entidade não poderia servir como referência.
No entanto, esse também não é um ponto de vista consensual entre os defensores da
“economia solidária”, visto que, como citamos no capítulo anterior, além de ser costume
citar o número de cooperativas da OCB para demonstrar a importância do cooperativismo no
Brasil, essa entidade aparece, ao lado do Instituto de Cooperativismo e Associativismo (ICA),
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), das iniciativas de empresas
privadas como Levi Strauss & Co, e do Programa de Autoemprego do governo de São Paulo,
como integrante da nova onda do cooperativismo (cf. CRUZ-MOREIRA, 2003, p. 205 – 207).
Também Oda (2003, p. 95), outro defensor da “economia solidária”, ao elogiar a decisão de
sindicatos que incentivam a criação de cooperativas, utiliza dados da OCB para citar o
crescimento de organizações que representam alternativas de geração de trabalho e renda no
Brasil:
A decisão do sindicato de tomar as cooperativas como uma de suas prioridades
insere-se também na difusão do tema no país. Da mesma maneira como já ocorrera
em outros países, as cooperativas no Brasil passaram a figurar como alternativa à
geração de trabalho e renda após o agravamento da crise ecomica e a explosão do
desemprego. Isto pode ser constatado pela elevação no número de cooperativas
constituídas nos últimos anos, conforme demonstrado pelas informações da
Organização das Cooperativas Brasileira (OCB) [...]. Entre 1990 e 1998, a taxa de
crescimento do número de cooperativas foi de 44% e a taxa de crescimento do
número de cooperados atingiu 53% (ODA, 2003, p. 95)
110
.
De maneira análoga, outros representantes da “economia solidária”, ainda que
apresentem algumas críticas às cooperativas filiadas a OCB, utilizam dados estatísticos desta
entidade para destacar a relevância social da “economia solidária” (cf. VEIGA; FONSECA,
109
Como já vimos, o modo de produção defendido por representantes da “economia solidária” é bastante
peculiar, visto que, ainda que mantenha, de forma sempiterna, elementos como a propriedade privada, o mercado
e o Estado, poderia ser chamado de socialismo. Analisaremos no capítulo 5 o caráter idiossincrático desse
socialismo.
110
Vale salientar que o texto de Oda (2003) encontra-se num livro que reúne vários artigos sobre a “economia
solidária” organizados por Paul Singer e André Ricardo Souza, sendo esse autor também o responsável pela
organização da obra em que consta o texto citado anteriormente de Cruz-Moreira (2003).
104
2001, p. 31 37)
111
. Os autores afirmam que a OCB, além de ser responsável, desde 1969,
pela representação nacional do cooperativismo no Brasil, teria, dentro do seu cabedal, a
missão de “promover a integração e o fortalecimento do cooperativismo como setor relevante
dentro da sociedade, nos ambientes políticos, social e econômico”, com o objetivo de
“contribuir para a paz social e para a melhoria da distribuição de renda e justiça social por
meio de cooperativas solidamente organizadas” (IDEM, p. 52).
Além disso, conforme consta nesta obra que, segundo Singer (2001, p. 09), seria uma
“nova e abrangente Cartilha sobre Cooperativismo”
112
, os autores, ao aconselhar a filiação e
subordinação das organizações de “economia solidária” às instâncias estaduais da OCB,
coadunam esforços para legitimar a representação dessa entidade:
Antes de levar para a Junta Comercial, vá à Organização das Cooperativas do
Estado do Rio de Janeiro (Ocerj) para submeter os estatutos da cooperativa e pague
a taxa de aprovação dos estatutos, caso contrário cairá em exigência
113
. A Ocerj dará
uma guia para garantir o registro na Junta e o advogado da Ocerj assinará a ata e os
estatutos (VEIGA; FONSECA, 2001, p. 88).
Analisando essas passagens, observa-se que, mesmo expressando algumas críticas
sobre o processo de degenerescência de cooperativas da OCB, expresso na estrutura
burocrática dessa entidade, encontra-se, em vários textos de defensores da economia
solidária”, uma visão distinta. Não apenas alguns desses autores utilizam dados estatísticos de
cooperativas da OCB para demonstrar a importância de organizações de “economia
solidária”, como defendem seus objetivos, missão social e encaminham para a filiação nessa
entidade. Não obstante, é possível identificar algumas aproximações entre a proposta de uma
suposta transformação social presente na OCB e aquela relativa à “economia solidária”.
Como vimos no início desse capítulo, ao se referir à transformação almejada pela
“economia solidária”, Singer (2002, p. 10) sintetiza essa proposta a partir de duas vertentes:
“a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual”. Essas
características estariam concretizadas dentro das organizações de “economia solidária”, com
destaque para as cooperativas, visto que esse empreendimento conseguiria harmonizar
controle democrático do capital com eficiência econômica dentro do mercado (VEIGA;
111
Os autores fazem uso de dados de distintas origens para comprovar a grandeza do cooperativismo, sem se
limitar às organizações que supostamente praticariam os princípios cooperativistas ou os pressupostos da
“economia solidária”: “Aproximadamente 1/6 da população mundial está de alguma maneira no movimento
cooperativista, e este número nos mostra com clareza que o cooperativismo é o movimento socioeconômico mais
importante do mundo” (VEIGA; FONSECA, 2001, p. 26).
112
Ressaltamos que Paul Singer é o responsável pela apresentação da obra de Veiga e Fonseca (2001) e tece
elogios a essa oportuna “nova e abrangente Cartilha sobre Cooperativismo” (SINGER, 2001, p. 09).
113
Os autores apresentam a obrigatoriedade de vinculação das cooperativas a OCB ainda que, segundo outro
representante da “economia solidária”, a Constituição Brasileira de 1988 tenha extinguido tal obrigatoriedade
(cf. CUNHA, 2003, p. 69 – 70).
105
FONSECA, 2001). A união entre o mercado capitalista e a gestão coletiva dos meios privados
de produção poderia ser traduzida na hipotética proposta de unir capitalismo e socialismo, e
esse também é o lema expresso em textos de divulgação da OCB:
O cooperativismo é a solução do futuro, é para nós um sistema-síntese.
Possibilita a capitalização sem capitalismo e a socialização sem socialismo.....São
sociedades sem fins lucrativos, lucram, não os que elas operam....há acumulação
por parte do associado, mas não da entidade e como cada pessoa tem voto
independente do capital, o homem cooperativado exerce sua soberania política
(Revista Brasileira de Cooperativismo, 1978, p. 51 apud MENDONÇA, 2004, p.
05).
A conjectura do enlace entre competição e solidariedade, como dois opostos que se
atraem, tão propagado por defensores da “economia solidária” também integra a fábula
contada pela OCB pois, além de apresentar-se como a “voz natural solidária” do movimento
cooperativo, “não ambiciona o lucro” e “limita a competição ao critério de qualidade”
(Revista Nacional do Cooperativismo, 1980, p. 02 apud MENDONÇA, 2004, p. 06). Sem
embargo, também de forma semelhante à “economia solidária”, a visão da OCB sobre a
cooperativa é agraciada com uma suposta capacidade intrínseca de produzir, autonomamente,
mudanças sociais. Sob essa perspectiva, a cooperativa representaria, por si só, o meio e o
resultado das mudanças sociais, descartando-se, portanto, a necessidade de transformações
profundas na estrutura da sociedade. Foi esse o entendimento advogado, por exemplo, no
debate sobre as propostas de Reforma Agrária no Brasil, quando a OCB vociferou pela
mistificação de que a cooperativa seria um instrumento de reforma e, por isso, essa entidade
configurar-se-ia como a mais adequada para comandar esse processo no Brasil (cf.
MENDONÇA, 2004, p. 04).
Estaríamos diante de projetos que almejam uma transformação social extremamente
idiossincrática, uma vez que buscam unificar duas ordens societárias antagônicas em um
mesmo horizonte. Não seria nem socialismo nem capitalismo ou, em outras palavras, capital
sem capitalismo e socialização sem socialismo. Repete-se uma fantasia incorporada por
personagens passados em que se procura escolher espontaneamente qualidades distintas de
modos de produções distintos, descartando-se aquilo que seria ruim e apropriando-se somente
daquilo que seria bom para vislumbrar uma sociedade imaginária. No final as contas, tal
devaneio não é apenas irrealizável, como tem uma função social clara: escamotear as
contradições do sistema social vigente e, com isso, promover sua aceitação e legitimação.
Como indicamos no início desse capítulo, tal recurso pode ser relacionado com a
perspectiva pequeno-burguesa, e Proudhon pode ser apresentado como um de seus expoentes:
Toda relação econômica tem um lado bom e um lado mau; este é o único ponto em
que o sr. Proudhon não se contradiz redondamente. o lado bom ressaltado pelos
106
economistas; o lado mau condenado pelos socialistas. Dos economistas ele adota
a necessidade de relações eternas; dos socialistas, a ilusão de que na pobreza nada
mais do que pobreza (em vez de ver nela um aspecto revolucionário, subversivo,
que derrubará a velha sociedade). Concorda com ambos em suas tentativas de citar
o testemunho da ciência em seu próprio auxilio. A ciência se reduz para ele às
proporções escassas de uma fórmula científica; é um caçador de fórmulas. [...] Quer
elevar-se, como homem da ciência, acima dos burgueses e dos proletários; não
passa, entretanto, de um pequeno burguês, debatendo-se perpetuamente entre o
capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo (MARX, 1986c, p.
329).
No entanto, falta esclarecer um ponto essencial da apresentação da OCB: essa entidade
se propunha a ser a “voz natural solidária” de quem ou, mais especificamente, de que classe
social brasileira? Conforme veremos, a contradição analisada anteriormente entre ética na
produção e mercado capitalista dentro da “economia solidária” tem uma solução menos
complexa na história da OCB. Na verdade, podemos afirmar que, diante das posições
históricas de seus principais representantes, a OCB, desde sua origem, não teve muitos
problemas derivados desse impasse. Por trás da proposta de tornar-se o ícone do
cooperativismo brasileiro por ser a voz natural e solidária daqueles que não ambicionam lucro
e defendem uma competição limitada ao critério de qualidade, objetiva-se um projeto social
mais direto: tornar-se a principal força dirigente da classe capitalista agrária brasileira.
No caso, está-se falando da O.C.B Organização das Cooperativas Brasileiras -
fundada em 1969, e que se tornou a nova força dirigente dos grupos dominantes
agrários do país, especialmente após 1985, quando dos embates travados intraclasse
dominante em torno do Plano Nacional de Reforma Agrária, divulgado neste ano.
Através da análise dos projetos e estratégias políticas elaboradas pelos quadros
dirigentes da entidade, verifica-se que a O.C.B., em meio à profunda crise de
representação política que marcava as agremiações patronais agrárias brasileiras
desde meados dos anos 1970, conseguiu superar tal impasse, constituindo-se no
grupo dirigente de toda a fração de classe, tendo por coroamento mais recente a
nomeação do mais destacado líder da associação Roberto Rodrigues para
Ministro da Agricultura do governo Lula (MENDONÇA, 2004, p. 01).
A história da OCB explicita uma trajetória bem definida, marcada pelo ensejo de
erguer-se como uma entidade patronal que soube utilizar o discurso da igualdade e da
solidariedade para alcançar uma representatividade expressiva dentro da classe capitalista
agrária brasileira. Ainda que tenha apresentado pouca relevância social nos seus primeiros
anos, a OCB, a partir do começo dos anos 70, procurou estreitar laços institucionais com o
regime militar e ditatorial brasileiro para galgar posições mais altas. Fundada “numa sala
emprestada pela OCESP (Organização das Cooperativas do Estado de São Paulo) onde
permaneceu até 1972, quando se transferiu para Brasília”, essa entidade resultante da
“iniciativa de lideranças cooperativistas paulistas” construiu, a partir de 1974, uma “trajetória
ascendente junto à correlação de forças vigente entre as entidades patronais da agroindústria”
(IDEM, p. 03). Tendo por fonte de recursos principal a criação, em 1974, da Regulação da
107
Contribuição das Cooperativas pelo governo brasileiro, a OCB teve suas receitas ampliadas
no ano seguinte, quando esse governo firmou um acordo daquela entidade com o INCRA
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
As preocupações da OCB em relação à implementação da Reforma Agrária no Brasil
fizeram jus ao posicionamento político e ideológico típico de uma representação patronal.
Quando, na década de 80, surgiu a proposta de incrementar o processo de reforma agrária
através da diminuição dos valores de desapropriações de terras dos latifundiários, a OCB
apresentou-se não somente como porta-voz da classe dominante agrária, mas conseguiu um
feito de destaque: unificar diversas forças sociais para barrar qualquer possibilidade de
sucesso da luta dos trabalhadores. O OCB conseguiu se unir como a CBA (Confederação
Nacional da Agricultura) e a SRB (Sociedade Rural Brasileira), com o intuito de se posicionar
conjuntamente contra a proposta de reforma agrária. Tal união deu tão certo que rendeu
diversos frutos, como em 1985 em Brasília com a organização de “um Congresso Brasileiro
sobre a Reforma Agrária (ou sobre a melhor maneira de não concretizá-la)”, e, logo após esse
evento, com a fundação da UDR – União Democrática Ruralista (FELICIANO, 2006, p. 41).
Além disso, sob a batuta da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil),
a OCB, juntamente com a SRB, a UDR e a MNP (Movimento Nacional de Produtores),
dentre outras entidades de defesa dos interesses das classes agrárias dominantes no Brasil,
conseguiu unir diferentes frações dessa mesma classe social para produzir efeitos de sinergia e
fazer prevalecer a supremacia do direito de propriedade acima de qualquer discussão sobre a
função social da terra (LEAL, 2002). Por isso que o principal adversário dessas entidades
sempre foi e permanece sendo o maior movimento social brasileiro que luta pela
democratização da terra: o MST
114
.
A relação da OCB com o governo e, especificamente, com a pasta responsável pela
Reforma Agrária no Brasil teve, nas últimas décadas, uma aproximação tão grande que se
tornou difícil diferenciar qual a alçada de cada uma dessas entidades. A OCB, que tinha
prestado serviços de “assessoramento” ao Estado para a definição e organização de
assentamentos, conseguiu, no começo da cada de 90 que seu “líder cooperativista, Adelar
Cunha, ex-presidente da Organização das Cooperativas do Estado do Rio Grande do Sul
(OCERGS)”, fosse “nomeado Superintendente do INCRA” (MENDONÇA, 2004, p. 04).
Todavia, a maior participação da OCB em atividades governamentais se deu a partir
do seu mais famoso e prestigiado representante: o sr. Roberto Rodrigues. Detentor de um
114
Teceremos comentários sobre o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e suas relações com
a “economia solidária” na parte final desse capítulo.
108
currículo de fazer inveja a qualquer emissário do capital, Rodrigues, que tinha sido
presidente da OCB, da SRB e da ABAG (Associação Brasileira de Agribusiness) e secretário
da Agricultura do Estado de São Paulo, foi nomeado, no primeiro governo Lula, representante
máximo do Ministério da Agricultura. Rodrigues ficou nesse cargo até meados de 2006,
quando saiu para depois assumir a presidência do Conselho Superior de Agronegócio da Fiesp
(Federação das Indústrias do Estado de São Paulo). Além disso, também acumula os cargos
de coordenador do Centro de Agronegócios da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e, ao lado de
personalidades como o presidente do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e de
Jeb Bush, ex-governador do estado da Flórida, nos EUA, e filho e irmão de ex-presidentes
desse país, comanda a Comissão Interamericana do Etanol.
Foi por essas e outras atribuições que o mais conhecido dos dirigentes da OCB
conseguiu grande prestígio com as diversas agremiações da classe capitalista agrária e, desde
os anos 1990, é agraciado com diversos prêmios e honrarias, como a condecoração de Ordem
com o Mérito Agrícola, pelo governo francês; a integração ao GATT (Acordo Geral sobre
Tarifas e Comércios
115
) e ao Concex (Conselho de Relações Internacionais e Comércio
Exterior); a representação “oficial da Agricultura no Fórum de Entendimento Nacional e no
Conselho Empresarial de Competitividade Industrial”; a presidência da OCA (Organização
das Cooperativas da América) em 1993; e da ICA (Aliança Cooperativa Internacional
116
)
desde 1999 (MENDONÇA, 2004, p. 06 - 07).
Além das atividades em defesa do cooperativismo como base de harmonização entre
trabalhadores e empresários na zona rural brasileira, destaca-se, no currículo do ex-presidente
da OCB, uma recomendação que serviu de referência para as diversas agremiações agrícolas
patronais: a defesa do agronegócio como meio de modernização do capital agrário brasileiro.
A partir do início da década de 90, a OCB juntamente com outras organizações
representativas do capital agrário, iniciou no Brasil uma sistemática defesa do agronegócio e
tal dinâmica empregou os mais diversos recursos, desde a criação de entidades orgânicas,
115
Em inglês: General Agreement on Tariffs and Trade (GATT).
116
Em inglês: International Cooperative Alliance (ICA). Para angariar poder e legitimidade perante a sociedade,
governo e, especialmente, entidades representativas do capital agrário no Brasil, a OCB faz uso de diversas
estratégias e, dentre estas, destaca-se a filiação a órgãos internacionais representativos do movimento
cooperativista: “Outra estratégia de construção da hegemonia da O.C.B. consistiu em filiar-se a Organismos
Internacionais, donde a entidade retiraria um capital simbólico e político significativo, valendo-lhe prestigio e
distinção, como pode ser depreendido de sua associação à Organização das Cooperativas da América (OCA),
desde 1981, e à International Cooperative Alliance (ICA) a partir de 1983” (MENDONÇA, 2004, p. 06). Tal
fato serve também para demonstrar a real função social desses órgãos de representação do cooperativismo.
109
passando pela ampliação do poder dentro do governo brasileiro
117
, até o recrudescimento da
repressão de movimentos sociais de trabalhadores em luta pela reforma agrária. A OCB teve,
dentro desse processo, um papel de destaque, uma vez que utilizou sua hegemonia “junto às
entidades patronais da agricultura” para propor a criação “de uma nova entidade, que
congregasse todas as demais, originando, em maio de 1993, a Associação Brasileira de
Agribusiness (ABAG), presidida por um de seus quadros, Ney Bittencourt de Araújo” (IDEM
p. 08).
Valendo-se do discurso do igualitarismo como uma qualidade supostamente típica das
organizações cooperativas, e de relações estreitas com o governo brasileiro, a OCB conseguiu
avançar com o agronegócio no Brasil a ponto de ajudar a torná-lo o novo projeto hegemônico
dos grupos agroindustriais dominantes. E, com isso, a referida entidade representativa do
cooperativismo brasileiro utilizou a mistificação da solidariedade para ampliar a dominação
capitalista:
Estavam dadas as condições do novo projeto hegemônico junto aos grupos
dominantes agroindustriais brasileiros: a modernização definitiva da agricultura,
mediante seu funcionamento em bases totalmente empresariais e
internacionalizadas, conquanto “mascaradas” pelo discurso do Igualitarismo. Mais
um passo e se afirmaria o conceito de agribusiness”. Para tanto, o Sistema OCB e
o Ministério da Agricultura firmariam acordo para promover o Programa de
Modernização da Agricultura Brasileira (1990), cujo cerne consistiu no
assentamento de inúmeras agências públicas voltadas para o agro - que haviam sido
privatizadas - junto aos Departamentos Técnicos da entidade. Complementando tal
projeto, Rodrigues estaria à frente da recém-criada EXIMCOOP, a Trading do
sistema cooperativista, agora tecnicizado e tecnicizante, no discurso de seus
dirigentes (MENDONÇA, 2004, p. 07).
Aproveitando a agenda e o ideário neoliberais dominantes no Brasil a partir do final da
década de 1980 e início da de 1990, a OCB fez coro à necessidade de abertura econômica do
mercado brasileiro para estimular a competitividade internacional e, dentro desse contexto,
difundiu o projeto do agronegócio. Sob a perspectiva dessa entidade, o agronegócio seria a
única solução capaz de fornecer condições de competitividade internacional para a agricultura
brasileira e, para tornar esse projeto parte do senso comum da população brasileira, as
entidades orgânicas do capital agrário empregaram esforços ideológicos e financeiros para
divulgar e defender amplamente esse tema através do maior número de meios de comunicação
e de personalidades públicas. A dia passou a bombardear a população com essa idéia do
agronegócio como remédio para o atraso do Brasil e, nesse sentido, também estimulou a
repressão aos movimentos sociais rurais de trabalhadores. Além dessa forma de propaganda,
117
A amplitude desse poder dentro do governo brasileiro pode ser comprovada pela demissão da Ministra do
Meio Ambiente, Marina Silva, no início de 2008, após ter ficado cada vez mais isolada por causa de sua posição
crítica em relação ao agronegócio.
110
também foram realizados encontros em que representantes e intelectuais orgânicos do
agronegócio sincronizaram suas prédicas.
Para termos uma idéia do tamanho do poder que envolve o agronegócio no Brasil,
podemos citar o Congresso Brasileiro de Agribusiness que aconteceu entre os dias 27 e 28 de
agosto de 2007 no Worl Trade Center paulistano (Hotel e Centro de Convenções WTC), que
contou com a presença de palestrantes ilustres, tais como: Arnaldo Jabor
118
(cineasta e
jornalista brasileiro), Fernando Furlan (ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior do Brasil), Luis Carlos Guedes Pinto (ex-ministro da Agricultura do Brasil
e vice-presidente de agronegócios do Banco do Brasil), Jackson Schneider (presidente da
ANFAVEA Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), José
Fernandes Jardim Jr. (vice-presidente de Cooperativa Agrícola COCAMAR), Manoel Felix
Cintra Neto (presidente da BM&F – Bolsa de Mercadorias & Futuros), Sergio Barroso
(presidente da Cargill e secretário de Desenvolvimento Econômico do Estado de Minas
Gerais), Cristiano Walter Simon (vice-presidente da ABAG e presidente da ANDEF
Associação Nacional de Defesa Vegetal), Márcio Lopes de Freitas (presidente da OCB),
Dilvo Grolli (diretor-presidente da Cooperativa Agroindustrial COOPAVEL), Carlos Alberto
Paulino da Costa (diretor-presidente da COOXUPÉ Cooperativa Regional de Cafeicultores
de Guaxupé Ltda), Marcos Montes Cordeiro (deputado federal pelo PFL / DEM e presidente
da CAPDR – Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da
Câmara dos Deputados), Ricardo Young Silva (presidente do Instituto ETHOS), Roberto
Waack (criador do empreendimento florestal AMATA Brasil e presidente do Conselho
Consultivo da ARES Instituto para o Agronegócio Responsável), José de Menezes
Berenguer Neto (representando o Banco ABN Amro Real), Ocimar Villela (gerente de Meio
Ambiente do Grupo Maggi), Ricardo Vellutini (presidente da Empresa DuPont Produção e
Vendas de Produtos Agrícolas), Paulo Roberto Costa (diretor de Abastecimento da
PETROBRÁS), Marcos Sawaya Jank (presidente da UNICA União da Indústria de Cana-
de-açúcar), Luiz Custódio Cotta Martins (presidente do SIAMIG – Sindicato das Indústrias de
Açúcar e Álcool de Minas Gerais), José Zílio (presidente da Consultoria de Investimento ALF
International), José Carlos Toledo (presidente da UDOP União dos Produtores de
Bionergia), Carlos Roberto Silvestrin (vice-presidente executivo da COGEN Associação da
Indústria de Cogeração de Energia), Robert L. Thompson (professor da Universidade de
118
Identificando a vinculação orgânica de Arnaldo Jabor ao agronegócio, podemos concluir que as palavras
raivosas desse jornalista contra movimentos sociais rurais de trabalhadores, como o MST, não são nem
ideologicamente espontâneas nem financeiramente gratuitas.
111
Illinois – EUA), Ashok Gulati (diretor da IFPRI – Internacional Food Policy Research
Institute), Fábio Chaddad e Eduardo Giannetti (professores do IBMEC Instituto Brasileiro
de Mercado de Capitais), Gilmar Viana Rodrigues (secretário de Estado da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais), Reinhold Stephanes (ministro da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento do Brasil), Miguel Jorge (ministro do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior do Brasil), José Serra (governador de São Paulo), além da presença
indispensável do famoso Roberto Rodrigues, eleito a personalidade do Agronegócio de 2007.
Não foi à toa que os capitalistas agroindustriais atraíram essa gama de políticos e
intelectuais para o projeto do agronegócio, pois perceberam desde cedo a necessidade de
conquistar e manter a hegemonia dentro do Estado e da sociedade brasileira. Além dos
empresários do agronegócio e de seus funcionários diretos, e dos vínculos evidentes entre
economia e política, em que os cargos políticos aparecem como uma derivação imediata dos
cargos empresariais, tão bem exemplificada na chamada “bancada ruralista”, a defesa do
agronegócio no Brasil conseguiu incorporar outros elementos: desde intelectuais e
multiplicadores de opinião, passando por fundações e organizações sociais integrantes da
mistificada “responsabilidade social” e da autônoma “sociedade civil”, até ministros e demais
representantes de empresas estatais e de governos estaduais e federal. Cada organização e
cada personalidade demarcaram um campo de atuação e planejaram suas tarefas específicas.
Um coral composto de diversos integrantes, mas preocupados com o uníssono do
agronegócio.
Toda essa orquestra possui, dentro da OCB, um instrumento específico: a utilização da
autogestão como forma de legitimar e mistificar a união entre diversas frações do capital
agrário na luta pela hegemonia do agronegócio do Brasil. Além de capacitar o Brasil para a
competição internacional, o agronegócio seria, para a OCB, uma maneira concreta de se
praticar solidariedade:
A O.C.B. consolidaria, de modo definitivo, sua direção, ao advogar a abertura da
economia brasileira às grandes linhas da “competitividade” internacional,
mediante a difusão do projeto do “agro-negócio”, a nova estratégia de sua
hegemonia, nos anos 1990. Para implementá-lo, seus dirigentes lançariam mão de
vários instrumentos, dentre eles os Comitês Educativos, criados em 1989 com vistas
à formação de lideranças capazes de viabilizar a integração pretendida, além de
construir o caminho para a segunda grande meta da agremiação nacional: a
autogestão (MENDONÇA, 2004, p. 07).
Para aproveitar o processo de privatização do Estado Brasileiro iniciado nos anos 1980
a partir de práticas dos governos neoliberais, a OCB providenciou uma proposta sedutora e
mistificadora: a defesa da autogestão. Valendo-se do discurso de demonização do Estado e de
112
idolatria do mercado
119
, a OCB buscou se apresentar como a nova cara do cooperativismo,
capaz de propiciar melhorias sociais a partir da atuação de uma organização empresarial.
Como vimos, o cooperativismo e a autogestão praticados pela OCB conseguiriam unificar
ética e solidariedade com avanços libertários do mercado capitalista e, nesse sentido, oferecer
uma transformação social que, não sendo nem socialismo nem capitalismo, resultaria na
solução para o futuro do Brasil. Por isso que, diante de uma “conjuntura de privatização do
Estado e de desmantelamento de suas agências”, a OCB objetivou buscar “uma ‘nova feição’
para o Cooperativismo, dotando-o de novos quadros técnicos e instrumental moderno”
(IDEM). Para tanto, seria preciso fomentar uma “consciência autogestionária”, e, nesse
sentido, estaríamos diante de “uma proposta pedagogicamente adotada e aplicada pela OCB
a partir de 1991 através do Programa de Autogestão, destinado a capacitar suas bases sociais”
(IDEM).
O processo pedagógico dessa peculiar “formação solidária” apareceria, dentro da
defesa do agronegócio, como um diferencial político e social da OCB que serviria para
esconder os reais interesses desse projeto e conquistar mais facilmente o apoio governamental
e popular. Por isso, essa entidade se apresentou como uma referência para as diversas frações
do capital agrário. A defesa do cooperativismo e da autogestão pela OCB teve e tem, portanto,
uma função social cristalina: mistificar as práticas econômicas, políticas e ideológicas da
classe agrária dominante no Brasil sobre um invólucro de ética e solidariedade. Ainda que não
represente uma novidade histórica, o fato de que cooperativas rurais brasileiras e de suas
entidades representativas tenham utilizado sistematicamente um discurso enganador baseado
na ética e na solidariedade para esconder suas ligações políticas e seus reais interesses
capitalistas
120
, as práticas mistificadoras dessa instituição respaldada por representantes da
“economia solidária” permanecem bastante poderosas.
No entanto, conforme veremos a seguir, esse não é o único caso de organizações que
promovem visões ludibriantes da realidade, advogam falsas promessas e ilusões de
solidariedade e, na verdade, consubstanciam intervenções econômicas e ideológicas que
servem para legitimar o modo de produção capitalista.
119
Afirma Borón (2003a, p. 158): “a categoria de neoliberalismo é útil porque resume o senso comum da época,
o senso comum imposto pelas classes dominantes. O senso comum da época é neoliberal. Gostemos ou não, ele
se implantou profundamente nas massas. O mercado é idolatrado; o Estado é demonizado; a empresa privada é
exaltada e o ‘darwinismo social de mercado’ aparece como algo desejável e eficaz do ponto de vista
econômico”.
120
Conforme demonstrou Rios (1979, p. 129), numa pesquisa realizada na década de 1970 no Brasil, é fato
comprovado que “certos benefícios propiciados pelas cooperativas m mais servido aos estratos superiores da
sociedade rural, aí incluindo-se os setores agro-exportadores. Devem-se contar entre esses benefícios os
dividendos de ordem política e de prestígio auferidos por esses estratos, em geral à frente das cooperativas”.
113
2.4. Empreendedorismo contra direitos sociais: o “terceiro setor” e a
“economia solidária
Ao analisarmos de que forma a contradição central da “economia solidária”, derivada
da busca por uma produção ética e solidária dentro do mercado capitalista, se estabelece
concretamente, identificamos algumas semelhanças e distinções entre esse projeto social e
outras organizações econômicas e políticas. Ainda que tal contradição apresente contornos
distintos, a depender do agrupamento social pesquisado, podemos identificar uma tendência
central: o recurso a posições mistificadoras para compreender a realidade. Em alguns casos tal
expediente é realizado de maneira instrumental para escamotear o real interesse capitalista
que se esconde sob o manto da solidariedade, enquanto em outros se trata da forma mais
próxima de um discurso que seduza e atraia interessados para uma causa perdida. Apesar das
assimetrias, ainda que de forma não tão aparente, a “economia solidária” consubstancia-se
através de ingredientes que servem para legitimar o modo de produção capitalista e tal atitude
demonstra uma função social no mínimo ilusória.
Identificar qualidades que aproximam a “economia solidária” a outros padrões
emergentes de intervenção social
121
serve para apreender de que forma grande parte desses
projetos sociais em moda hoje em dia está, na sua essência, extremamente interligado.
apontamos algumas dessas relações demonstrando de que maneira o projeto da “economia
solidária” se vincula a cooperativas capitalistas, assim como a entidades representativas dos
interesses do capital agrário brasileiro. Como demonstramos, o poder da principal entidade
analisada a OCB é de tal monta que não apenas as diversas frações do capital agrário
internacional lhe rendem homenagens, como o próprio governo brasileiro incorpora suas
demandas e atende aos anseios de suas lideranças. Essa realidade exemplifica algumas
nuances de uma relação complexa entre poder público e organizações empresariais, e tal
temática atravessa o projeto da “economia solidária”.
Expresso nas relações de dependência com organismos capitalistas internacionais,
como o FMI ou o BID, ou explicitado no apoio recebido por entidades públicas e estatais,
como os programas de auto-emprego municipais, estaduais ou federal, a “economia solidária”
se estrutura por uma nebulosa dinâmica social construída a partir de relações com instituições
121
Termo utilizado por Montaño (2002) em livro intitulado “Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão
emergente de intervenção social”, resultante de pesquisa de doutorado em Serviço Social na UFRJ.
114
tanto do mercado capitalista como do Estado. Tal identidade se torna ainda mais esfumaçada
quando se apreende a existência de uma amplitude maior para o projeto da economia
solidária”, passando a englobar também outras formas de organização social, como as ONGs
e fundações sociais.
Evidenciados no fato de que a “economia solidária” não se resumiria, na visão de
França Filho e Laville (2004, p. 149), a “algumas formas de cooperativismo”, pois “ela
absorve um certo número de iniciativas sob a forma associativa, assim como alguns casos de
ONGs e fundações”, surgem elementos de análise que apontam para novas relações entre o
público e o privado e a busca por uma suposta peculiaridade e independência entre essas
esferas sociais. Ainda que conste nos documentos da “economia solidáriaa importância da
autonomia dessas organizações, tal preocupação é, conforme analisamos, minimizada
perante a necessidade eminente de apoio externo para superar fragilidades concretas desse
projeto. A relação da “economia solidária” com outras organizações sociais se insere neste
contexto, o que aponta para a confluência de várias qualidades.
Analisando esse projeto social identificamos que, se não é possível instaurar uma
fronteira entre organizações da “economia solidária” e cooperativas capitalistas, assim como
entidades representativas do capital, torna-se muito mais problemático erguer uma linha
divisória que separe aqueles empreendimentos não somente de ONGs e fundações, mas de
outras propostas como a responsabilidade social, o empreendedorismo social, ou o trabalho
voluntário. Enfim, existem muitos laços que unificam o projeto da “economia solidária” ao
projeto do “terceiro setor” e essas vinculações se apresentam com maior ênfase nos
posicionamentos ideológicos.
Um dos postulados ideológicos centrais expressos pelo “terceiro setor” e reproduzido
na “economia solidária” refere-se à mistificação de uma incapacidade inata do Estado para
promover melhorias sociais significativas, visto que essa instituição possuiria barreiras
ideológicas e operacionais impossíveis de serem superadas. Empregando a idéia da inépcia
estatal como “uma característica congênita, bem como sua vocação excludente, dada que a
burocracia estaria sempre voltada a extrair benefícios para si própria, mais que promover a
democratização do acesso aos recursos e serviços que controla” (COSTA, 2001, p. 26), esses
projetos exigem a transferência de atividades públicas para organizações privadas, seja para
essas ONGs ou cooperativas, constituindo o que Pereira (1996) denomina de público-não-
estatal. Esse discurso mistificador serviu, como vimos no início do capítulo anterior, para
basilar uma análise endógena do Estado brasileiro, com o objetivo de implementar um
115
processo de reestruturação que resultou na perda de direitos sociais e na precarização de
políticas e serviços públicos.
Todavia, desconsiderando essas evidências, assim como as implicações da prática do
ideário neoliberal nas próprias organizações sociais
122
, autores da “economia solidária”,
defenderam posições regressivas. Contanto com o apoio do BID, que foi a entidade
responsável pela publicação de sua obra, Silveira e Amaral (1997, p. 119) expuseram os
argumentos precisos para a legitimação do ideário neoliberal:
A experiência acumulada neste setor nos últimos anos indica que, enquanto
instância de execução direta, as organizações não-governamentais possuem
significativas vantagens comparativas em relação aos organismos governamentais,
particularmente no tocante à flexibilização e agilidade das estruturas operacionais.
Tal argumento é corroborado por vários autores da “economia solidária”, como é o
caso de Barcellos e Beltrão (2003, p. 186) que reproduzem a citação anterior para explicitar
que esse entendimento neoliberal se encaixa perfeitamente na configuração de uma
experiência modelar desse projeto: a Cooperativa de Crédito Portosol
123
. Na visão dos
autores, a ICC Portosol teria a mesma configuração de uma ONG, devendo ser definida não
como uma empresa privada, mas “como uma política pública não-estatal de concessão de
crédito aos pequenos empreendedores. Estatutariamente, caracteriza-se como associação civil
ideal, ou seja, pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos” (BARCELLOS;
BELTRÃO, 2003, p. 167).
Ainda que configurada como uma empresa de capital privado, a ICC Portosol
promoveria ações sociais e públicas e, nesse sentido, estaria ocupando o espaço deixado pelo
Estado a partir da implementação das políticas neoliberais. Como se trataria de uma
organização com finalidade pública, ainda que possuindo uma estrutura privada, seria um
resultado natural que o Estado cedesse o espaço que antes ocupava para uma intervenção mais
flexível e que tivesse contato direto com a população. Apresentando argumentos análogos aos
do “terceiro setor”, essa organização de “economia solidária” deveria substituir a atuação
burocrática do Estado, por uma bem mais ágil e flexível.
122
Conforme demonstra Montaño (2002, p. 254), baseado em Serra (1998): “nas entidades filantrópicas, e
especialmente nas ONGs (estas em mais de 40%), forte presença de contratos terceirizados de assistentes
sociais[...]”; “por outro lado, no Rio de Janeiro, os assistentes sociais das entidades filantrópicas recebem, quase
na sua totalidade, salários equivalentes às duas faixas mais baixas[...]”; A pesquisa também mostra a baixa
carga horária dos assistentes sociais nas entidades filantrópicas (mais de 50% com 20h/semanais) e nas ONGs
(20% com 20 e 20% com 25 h/semanais) [...]”.
123
Conforme explicamos no capítulo anterior, a ICC Portosol – Instituição Comunitária de Crédito Portosol – foi
considerada por várias entidades nacionais e internacionais, como BNDES e o Banco Mundial, uma experiência
modelo de microcrédito no Brasil.
116
Uma das experiências sociais mais famosas a partir da década de 1990 no Brasil foi a
Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, conhecida pela sua principal
atividade a Campanha do Natal sem Fome e que tem por objetivo central a busca de
soluções para os problemas sociais a partir da conscientização e participação de toda a
população, independentemente de classe social. Além do sociólogo Herbert de Souza
(conhecido por Betinho), essa experiência também contou com a participação efetiva do
principal representante da “economia solidária”, Paul Singer que, “sempre zeloso”, participou
desse movimento que começou “no Rio de Janeiro, [e] se espraiou pelo país todo”
(OLIVEIRA, 2003, p. 17). No entender de outro defensor da “economia solidária”, além de
estimular o debate sobre a transferência de atividades públicas para empresas privadas, essa
experiência conseguiu prover uma análise segmentada da realidade, separando mercado,
Estado e ações sociais, estas também conhecidas como “terceiro setor”:
O movimento da Ação pela Cidadania desenvolveu-se baseado no Rio de Janeiro.
Pretendendo sensibilizar a sociedade e distribuir alimentos para a população mais
carente, o movimento logo obteve apoio de empresas federais e estaduais iniciando
uma discussão sobre ‘a transformação da empresas estatais em empresas privadas’.
Avançava o debate sobre a ação social como algo não relacionado ao mercado nem
ao Estado: o terceiro setor (SOUZA, 2003, p. 40).
Ainda que não seja capaz de definir qual a função social do “terceiro setor”, pois
“apontar o que é público ou privado, qual a essência do terceiro setor, ainda é um terreno
pantanoso que carece de pesquisa e reflexão” (IDEM, p. 30), existiria, para o representante da
“economia solidária”, uma relação de reciprocidade entre esses projetos sociais. Na verdade,
como as organizações do “terceiro setor” possuiriam um tempo de existência superior às da
“economia solidária” (cf. SOUZA, 2003b, p. 256), aquelas experiências não apenas
contribuiriam para o desenvolvimento dessas, como aportariam um apoio indispensável, pois
“no que se refere às iniciativas de economia solidária, as organizações do terceiro setor
parecem exercer um papel estrategicamente importante de apoio logístico e também político.
Empreendimentos solidários vêm nascendo dessas organizações da sociedade civil” (SOUZA,
2003, p. 42). Por isso que, na compreensão do autor, pode-se afirmar que, dentro do contexto
brasileiro, “embora distintos
124
, muitos empreendimentos da economia solidária nascem e
permanecem com o apoio de organizações do terceiro setor”, e, nesse sentido, o “terceiro
124
A principal diferença entre o “terceiro setore a “economia solidária” encontrar-se-ia, segundo o autor, na
prática da autogestão. No entanto, essa qualidade não é bem demarcada pelo autor, uma vez que ele se posiciona
de forma dúbia sobre o tema. Se no primeiro momento ele afirma que “diferentemente da economia solidária, as
organizações do terceiro setor não se caracterizam necessariamente pela autogestão do empreendimento pelos
próprios trabalhadores envolvidos” (SOUZA, 2003a, p. 255), em seguida ele advoga que, “tratando-se
exclusivamente de geração de trabalho e renda, entre terceiro setor e economia solidária parece haver um
desafio, que é passar da tutela bem-intencionada para efetiva autogestão” (IDEM, p. 256).
117
setor” é realmente o “responsável pelo desenvolvimento da economia solidária” (SOUZA,
2003a, p. 255).
No entanto, apesar de ambos os projetos voltarem-se para a construção de supostas
organizações autônomas, integrantes de uma mistificada sociedade civil
125
independente do
mercado e do Estado, a “economia solidária” teria uma peculiaridade que tornaria mais
complexa essa relação. Conforme veremos mais à frente, se a defesa de organizações sociais
localizadas numa suposta sociedade civil autônoma e imune às influências econômicas e
políticas, requer um grande esforço mistificador por parte dos representantes do “terceiro
setor”, no caso da “economia solidária”, pela necessidade ontológica na produção e
comercialização de mercadorias, tal recurso beira as raias do delírio.
Por se estruturarem como empreendimentos econômicos, as organizações da
“economia solidária” ainda que, segundo seus representantes, sejam consubstanciadas por
uma racionalidade distinta da lógica do capital, precisariam inserir-se no setor econômico da
sociedade:
Embora haja pontos de convergência nos discursos da economia solidária e do
chamado ‘terceiro setor’, notadamente a ênfase nas práticas autônomas da sociedade
civil, ainda persistem divergências fundamentais. O terceiro setor, definido como
‘setor privado, porém com fins públicos’ (Fernandes, 1994), afirma-se como não-
governamental e não-lucrativo (para se distinguir tanto das empresas capitalistas
quanto do Estado). Mas a economia solidária se reconhece como setor econômico,
portanto formado por empresas empresas onde a dimensão social importa tanto
quanto a dimensão econômica, empresas orientadas por valores distintos do
capitalismo, mas ainda assim empresas (CUNHA, 2003, p. 64).
Ainda que existam vários laços que liguem a “economia solidária” ao “terceiro setor”,
haveria, portanto, uma diferença marcante entre esses projetos sociais, localizada na dimensão
econômica. Como precisam “produzir para viver
126
”, e essa produção precisa ser
comercializada e vendida no mercado, as organizações de economia solidária” não podem
sobreviver de forma isolada do complexo social da economia. Desta forma é que se torna
mais complicado rogar, tal qual o fazem representantes do “terceiro setor”, por uma sociedade
civil sem ligações com o setor político o Estado –, e, especialmente, com o setor econômico
o mercado. Todavia, ainda que seja impossível escamotear tal imanência, essa situação não
impede que representantes daeconomia solidária” façam uso de posturas mistificadoras
sobre a realidade social.
125
O termo sociedade civil, ainda que usado de diversas formas tanto por representantes do “terceiro setor” como
da “economia solidária”, possui uma função social precisa: mistificar a realidade através da separação das
esferas sociais para retirar a luta econômica e política da pauta de reivindicações sociais.
126
Título de uma coletânea de artigos sobre experiências econômicas alternativas ao capitalismo, tais como a
“economia solidária”, organizado por Boaventura de Sousa Santos (2005).
118
Vários são os argumentos utilizados pelos representantes da “economia solidária” para
advogar a independência dessas organizações perante as determinações do modo de produção
capitalista. Em especial, busca-se defender uma autonomia gerencial e organizativa face às
imposições do mercado e do Estado de tal maneira que se poderia imaginar um ambiente
interno pautado por uma racionalidade solidária distinta da capitalista. É baseado nesse
axioma que se estabelece também outra peculiaridade da “economia solidária” que, esses
autores, a distinguiriam do “terceiro setor”. No ponto de vista dos representantes desse
projeto, enquanto o “terceiro setor” objetivaria construir um setor à parte do Estado e do
mercado, a “economia solidária” almejaria alcançar os mesmos ideais de uma conscientização
solidária por meio de uma estratégia oposta: no lugar de separar os setores sociais, buscar-se-
ia uma união reciprocitária entre eles. A diferença é não seria ao lado do Estado e do mercado,
mas um produto de interação social que uniria todos os setores sociais num projeto
associativo:
Trata-se, portanto, de uma forma de economia que ao invés de se constituir como
um setor à parte (terceiro), tem muito mais vocação, segundo nossa hipótese, para
interagir com as formas econômicas dominantes (Estado e Mercado), numa
perspectiva de elaboração de arranjos particulares de princípios econômicos
diversos, a fim de subordinar a lógica mercantil a outros imperativos da ação
organizacional ou coletiva por exemplo, uma dinâmica reciprocitária ou um
projeto associativo (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004, p. 114).
Poderíamos nos perguntar o que é mais mistificador: uma perspectiva que produz a
falsa categoria de esferas sociais (economia para mercado; política para Estado; social para
“terceiro setor”), as separa e isola, ou outra que busca unificar todas num projeto associativo
reciprocitário por meio de uma nova racionalidade, desconsiderando as suas determinações
ontológicas. Não obstante essa evidente mistificação, não somente a necessidade de angariar
recursos econômicos perpassa também as organizações do “terceiro setor”, como, em alguns
casos, essas possuem uma configuração que lhes permitem um apelo econômico maior. Isso
acontece particularmente nas supostas doações recebidas por essas entidades.
Avançando no processo de reestruturação do Estado para precarizar os serviços
públicos e promover um aniquilamento gradativo dos direitos sociais, existe um movimento
crescente de práticas de repasse de verbas e responsabilidade para organizações sociais. Sob
tal contexto, ainda que se apresentem como um setor à parte do mercado e do Estado, as
ONGs, fundações e outras organizações do “terceiro setor”, recebem incentivos por parte de
várias entidades empresariais e governamentais. Tal realidade fica evidente nas palavras de
Singer (2003a, p. 131 132), ao admitir a necessidade de criação de ONGs para conseguir
recursos para empreendimentos de “economia solidária”:
119
Por ocasião do lançamento da ADS [Agência de Desenvolvimento Solidário], dois
gerentes do BNDES Luis Antonio de Souto e Antonio Sergio Barretto
comunicara aos representantes de incubadoras presentes que o banco pretendia
oferecer, a fundo perdido, recursos às ITCP [Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares] para serem repassados às cooperativas em incubação, a
título de financiamento.
A proposta era de formar em cada incubadora um fundo rotativo de algumas
dezenas de milhares de reais para financiar as cooperativas incubadas, para tanto
devendo cada incubadora criar uma entidade possivelmente uma ONG para
administrar o referido fundo.
Diante dessa evidência, podemos repetir os termos de França Filho e Laville (2004)
para caracterizar não apenas a “economia solidária”, como também o “terceiro setor” nas suas
relações de reciprocidade com o mercado e o Estado, construindo um projeto associativo sob
a insígnia do capital. Além disso, vale ressaltar o caráter dessas doações, visto que tais
práticas se estabelecem justamente pela reciprocidade de interesses particulares e dificilmente
possuem um sentido puramente altruísta
127
. Na maior parte dos casos, o que acontece é que as
entidades doadoras estabelecem filtros e critérios para determinar o comportamento esperado
pelas organizações beneficiadas. Assim, como explica Montaño (2002, p. 209), “se a ‘doação’
não render dividendos o é de interesse do ‘doador’, não haverá ‘doação’”, o que “evidencia
o fetiche da doação”. Para o autor, o “fetiche da doação” se estabelece sob diversas faces
mistificadoras, visto que tenta ocultar o real funcionamento dessa dinâmica:
em primeiro lugar, uma atividade verdadeiramente rentável transmutada em
aparente ‘doação’. Em segundo lugar, uma ‘doação’ provinda supostamente de uma
instituição (empresarial) e de uma classe (a burguesia), que, no entanto, no fundo
provém da sociedade (dos trabalhadores) e/ou do Estado – diretamente da sociedade,
quando tal ‘doaçãoredunda em maiores vendas e preços, portanto, maiores lucros
para a empresa ‘doadora’ (que compensam e ampliam a ‘doação’); do Estado (e
indiretamente da população pagadora de impostos), por meio de subvenções,
isenções de impostos (renúncia fiscal) etc. Assim, o que parece ser ‘doação’ do
capital não é redistribuição de mais-valia, mas, na verdade, atividade lucrativa.
Em terceiro lugar, as ‘dicas’ recomendam apresentar a proposta na ‘época oportuna’.
Qual é esta época? A melhor época definida pela população-alvo, pelas necessidades
sociais? Não, aquela conveniente à entidade ‘doadora’. Por fim sugere-se ser
realista no estabelecimento de objetivos’. O que é ‘ser realista’? Quem estabelece o
padrão de ‘realidade’? É ser realista resolver o problema do desemprego? Ou o tema
da reforma agrária, num país de grandes latifúndios e terras improdutivas, é realista?
(IDEM).
127
O caráter supostamente altruísta de organizações sociais, filantrópicas e beneficentes é comumente
desmistificado não apenas por teóricos sociais, mas por literatos, como é o exemplo de Gógol (1972, p. 238) que
escreveu há quase dois séculos: “E, no entanto, a disposição existe, quiçá para qualquer tipo de empreendimento:
num ápice, estamos prontos a fundar sociedades beneficentes, estimulantes e sabe-se que outras. As
finalidades são sempre maravilhosas, mas sempre acaba não saindo nada. Pode ser que isso aconteça porque, de
repente, damo-nos por satisfeitos bem no começo e achamos que tudo está realizado. Por exemplo, tendo
planejado alguma sociedade em benefício dos indigentes, e tendo reunido vultuosas contribuições em dinheiro,
imediatamente, para comemorar tão meritória ação, oferecemos a todas as altas autoridades da cidade um
almoço, pelo preço, está claro, da metade da soma arrecadada; e, com o que restou, aluga-se imediatamente uma
excelente sede para a comissão organizadora, com guardas e calefação, após o que, de tudo o que foi arrecadado,
sobram para os pobres cinco rublos e meio; e mesmo sobre a distribuição destes nem todos estão de acordo, cada
qual quer favorecer alguma comadre sua”.
120
Objetivando apreender qual a função social do terceiro setor”, o autor apresentou,
além desse fato, outras evidências que comprovam não somente a ligação desse projeto social
a empresas capitalistas e ao Estado, como a sua importância na construção do projeto
neoliberal. Ao contrário do senso comum capitalista que faz propaganda da ética,
solidariedade e benevolência do “terceiro setor”, esse projeto social se constitui, segundo
Montaño (2002, p. 22), como “um fenômeno real inserido na e produto da reestruturação do
capital, pautado nos (ou funcional aos) princípios neoliberais”. Como forma de legitimar o
ordenamento social vigente, o “terceiro setor” coloca em prática diversos ingredientes
econômicos, políticos e ideológicos para desmobilizar a classe trabalhadora na luta contra o
capital. Também nesse sentido, as semelhanças entre “terceiro setor” e economia solidária”
são patentes.
Outra prática bastante usual dentro do projeto neoliberal é a responsabilização dos
indivíduos pelos seus próprios problemas, com o objetivo de desobrigar e desonerar o Estado
de responsabilidade e gastos com atividades públicas. Para a implementação de práticas desse
tipo, fomentou-se a criação de organizações de “terceiro setor” e de “economia solidária” a
serem utilizadas para substituir a atuação do Estado. Sob o discurso da capacidade autônoma
dos indivíduos para resolverem seus próprios problemas, o escopo dessas práticas capitalistas
englobou até organizações voltadas para o atendimento de pessoas deficientes. No lugar dos
tratamentos necessários para a recuperação física e mental representarem um direito social a
serem prestados com qualidade pelo Estado, esses se tornaram, sob a óptica da “economia
solidária”, uma responsabilidade dos próprios deficientes. Como exemplo, valem as palavras
de Dakuzaku (2003, p. 241), ao afirmar que “a idéia que regeria a criação de cooperativas é a
de que as próprias pessoas com deficiência” é que deveriam “ser os principais atores de sua
reabilitação, de seu processo de capacitação profissional, do tratamento médico e de sua
adaptação social”. A autora também autentica a posição de Nogueira (1997), explicitando que
até as responsabilidades relacionadas com a equipe de assessoria deveriam ser assumidas
gradualmente pelos cooperados até que, no final, esses possuam capacidade plena para
superar seus problemas (cf. DAKUZAKU, 2003, p. 248 – 249).
Por trás desse discurso sedutor da autonomia do indivíduo para capacitá-lo à superação
de seus próprios problemas, esconde-se um projeto extremamente mistificador: a transferência
da responsabilidade estatal para as próprias pessoas afetadas, ampliando a ofensiva neoliberal
sobre a classe trabalhadora. Isso ocorre porque,
ao desonerar a intermediação estatal a única instituição social que pode se
apropriar do excedente de mais-valia e redistribuí-lo socialmente sob a forma de
121
provisões e direitos ao bem-estar, tanto dos trabalhadores empregados quanto dos
desempregados as estratégias de economia solidária incorporam a autonomia da
acumulação do capital e terminam por responsabilizar os trabalhadores pobres por
sua pobreza, reforçando e legitimando a ofensiva neoliberal do capital sobre o
trabalho (ABREU, 2007, p. 09).
No caso histórico da “economia solidária”, essas práticas incorporam uma dinâmica
que possui um contexto social bem definido: as primeiras medidas impostas pelo Estado
neoliberal para buscar incrementar a economia capitalista. Como forma de amenizar alguns
impactos da crise capitalista a partir dos anos 1970, os governos de vários países europeus
forneceram subsídios para a criação de cooperativas, assim como transformaram algumas
políticas públicas em atividades mercantis:
Na França, o cooperativismo de produção tornou-se um elemento constante da
economia. Mas, a partir de 1978, com a crise atingindo muitas empresas e o
desemprego em aumento, o governo passou a oferecer subsídios para que os
trabalhadores assumissem as empresas em via de fechar. Isso fez com que o número
de cooperativas de produção passasse de 571 para 1.200 em cinco anos, com mais
de 50 empresas transformadas em cooperativas operárias por ano. A mesma crise
atingiu a indústria britânica, um terço da qual entrou em colapso. Autoridades locais
criaram Agências de Desenvolvimento Cooperativo, para estimular novas
cooperativas e converter empresas em crise em cooperativas. Estas conversões
resultaram em 200 cooperativas. No fim da cada de 1990, havia na Grã-Bretanha
cerca de 1.200 cooperativas operárias, com cerca de 170 novas cooperativas
surgindo a cada ano. O setor em que a expansão destas cooperativas é mais intensa é
o de prestação de cuidados à população em situação de risco. Estes serviços eram
antes prestados pelas autoridades locais, que passaram a contratar sua prestação
mediante licitações (SINGER, 2002, p. 95).
Conforme explicamos no capítulo anterior, o contexto de crise do capitalismo dos anos
1970 tornou eminente a necessidade de implementação de mudanças não apenas no mercado,
mas também na estrutura do Estado, com o objetivo de prover oxigênio para o
desenvolvimento da economia. Foram dois os recursos mais utilizados pelos governos para
tentar diminuir os impactos dessa crise: as diversas práticas de privatização, e a transferência
dos serviços públicos para entidades privadas. Utilizando as palavras de Pereira (1996),
teríamos de um lado a privatização, a partir da qual setores não estratégicos do Estado seriam
comercializados para a iniciativa privada, e a publicização, a ferramenta utilizada para que
setores compreendidos como importantes para a sociedade fossem cedidos a organizações
sociais ou não governamentais, que ficariam conhecidas como “públicas não-estatais”
128
.
128
Para implementar práticas de repasse da responsabilidade do Estado para as organizações sociais foi preciso
construir termos jurídicos e criar leis para legitimar esse processo. Dentro do contexto brasileiro, Bresser Pereira
teve uma atuação de destaque, liderando essas peripécias para inovar o entendimento da relação entre público e
privado: “no capitalismo contemporâneo as formas de propriedade relevantes não são apenas duas, como
geralmente se pensa, e como a divisão clássica do Direito entre Direito Público e Privado sugere - a propriedade
privada e a pública -, mas são três: (1) a propriedade privada, voltada para a realização de lucro (empresas) ou de
consumo privado (famílias); (2) a propriedade pública estatal; e (3) a propriedade pública não-estatal, que
122
Sob esse prisma, a transferência de atividades públicas para organizações “públicas
não-estatais”, sejam estas integrantes do “terceiro setor” ou da “economia solidária”, seria
necessária, pois resultaria numa melhor qualidade de atendimento, visto que, assim, seriam
abolidas práticas clientelistas típicas da burocracia estatal. Tal mistificação fica patente nas
seguintes palavras de Pereira (1996, p. 22), ao afirmar que as organizações “públicas não-
estatais” podem “ter um papel de intermediação” assim como “facilitar o aparecimento de
formas de controle social direto e de parceria, que abrem novas perspectivas para a
democracia”.
Contudo, como afirmamos em outro texto, “o distanciamento entre a origem do
serviço público e a pessoa que vai recebê-lo, acarreta o contrário do falaceado”, visto que, “no
lugar de combater o clientelismo e o fisiologismo, criam-se novas possibilidades concretas
para que estas práticas sejam ampliadas” (WELLEN, 2006, p. 05). Com essa assertiva, não
buscamos encobrir a existência de práticas corruptas usuais dentro do Estado brasileiro que,
aliás, ainda que em menor grau, são típicas de uma superestrutura política derivada de uma
estrutura social que tem por base a mercadoria e a busca por acumulação privada. Afirmamos
apenas que, ao inserir uma organização privada como intermediária entre a população e o
Estado
129
, torna-se mais difícil o contato direto entre esses dois pólos e, com isso, surgem
condições materiais para fortalecer as elites locais. Tal fato ficou comprovado em pesquisa da
CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), ao evidenciar que a
implementação desses tipos de intermediários entre a população e o Estado foi “considerada
como importante fonte de corrupção e de perda de controle fiscal”, além de “ter contribuído
para ampliar as brechas interterritoriais dos indicadores educativos e de saúde” (SOARES,
2002, p. 78).
Da mesma forma, como lado complementar da privatização, a transferência de
atividades públicas para organizações privadas, sejam estas integrantes do “terceiro setor” ou
da “economia solidária”, foram implementadas com a finalidade de proporcionar atendimento
àquelas pessoas sem condições de pagar pelos serviços. A partir da adoção de tais “práticas
solidárias”, direitos sociais resultantes de várias décadas de lutas da classe trabalhadora por
melhoria de vida se transformaram em prestações de serviços privados, precarizados e
também pode ser chamada de não-governamental, não voltada para o lucro, ou propriedade do terceiro setor
(PEREIRA, 1996, p. 20). Ver uma análise crítica desses subterfúgios em: Wellen (2006).
129
Para representantes da “economia solidária”, a inclusão de organizações sociais como intermediárias entre a
população e o Estado seria importante porque repercutiria em relações de parceria entre público e privado,
especialmente no espaço local: “Neste âmbito das entidades de fomento, importa ainda registrar a ação de um
número muito expressivo de ONGs agindo mais no plano local e menos conhecidas nacionalmente. Muitas
dessas formas de organização têm empreendido, mais recentemente, relações de parceria com os poderes
públicos, sobretudo no plano das prefeituras” (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004, p. 157).
123
focalizados. Se a precarização do trabalho ficou bem evidente seja na inferioridade da
remuneração, no emprego de meio período, na baixa carga horária, ou na ampliação das
atividades de trabalho e na conseqüente cobrança por maior produtividade, a transformação
das políticas sociais em atividades privadas e focalizadas serviu para destruir a universalidade
de serviços públicos e manutenção de direitos sociais. Esse processo promoveu a ruptura na
universalidade dos serviços públicos, uma vez que apenas as pessoas sem condições
financeiras para pagar por serviços privados é que seriam beneficiadas pelas organizações
sociais privadas. Focalizam-se os serviços públicos nas pessoas mais miseráveis (por isso, em
alguns casos chega-se a requerer o “atestado de pobreza” para realizar atendimento),
transformando-os em prestações de serviços solidários. O que era direito social universal
passa a ser um favor e um não-direito.
Como conseqüência da crise capitalista, foram fomentados projetos sociais tais como o
“terceiro setor” e a “economia solidária” que romperam com a universalidade da política em
prol de identidades coletivas fragmentadas, abolindo a luta por direitos sociais e o
posicionamento político baseado numa perspectiva de classe
130
. Com isso, vislumbrou-se o
horizonte ideológico esperado pelos representantes do capital, em que as entidades da classe
trabalhadora perderiam poder e identidade por causa da individualização ideológica dos atores
coletivos. Numa sociedade fragmentada, em que inexiste a luta por direitos sociais, a pauta de
reivindicações torna-se singularizada e se elege como público-alvo das políticas sociais
apenas aquelas pessoas com menos recursos financeiros e capacidade de pressão:
a partir da ‘naturalização’das desigualdades, o modelo devolve o conflito para o seio
de uma sociedade fragmentada, onde os ‘atores’ se individualizam, ao mesmo tempo
que os sujeitos coletivos perdem identidade. Muda, portanto, a orientação da política
social: nem consumos coletivos, nem direitos sociais, senão que assistência
focalizada para aqueles com ‘menor capacidade de pressão’ ou os mais
‘humildes’ou, ainda, os mais ‘pobres’. Dessa forma, o Estado Neoliberal ou de ‘Mal-
Estar’ inclui, por definição, uma feição assistencialista (legitimação) como contra-
partida de um mercado ‘livre’(acumulação). Essa política de legitimação tem
oscilado, particularmente nos países da América Latina, entre o assistencialismo e a
repressão (SOARES, 2002, p. 73).
130
Além de ficar marcado pela imensa crise do modo de produção capitalista e pela erosão dos países socialistas,
como a Alemanha Oriental e os que compunham a antiga URSS, o último quartel do século passado representou
um epicentro para novas formas de intervenção social. Segundo Hobsbawm, (1995, p. 406 407), com o
abandono de causas classistas capitaneadas por partidos de esquerda, criou-se um vácuo ocupado por novas
forças políticas, “que ia dos xenófobos e racistas de direita, passando pelos grupos secessionistas (sobretudo mas
não apenas étnicos/nacionalistas), até os vários partidos ‘Verdes’ e outros ‘novos movimentos sociais’ que
reivindicaram um lugar na esquerda. Várias dessas forças políticas estabeleceram uma presença significativa na
política de seus países, às vezes um domínio regional, embora no fim do Breve Século XX nenhuma houvesse de
fato substituído os velhos establishements políticos. O apoio às outras flutuava loucamente. A maioria mais
influente delas rejeitava o universalismo da política democrática e cidadã em favor da política de alguma
identidade grupal, e conseqüentemente partilhava de uma visceral hostilidade a estrangeiros e gente de fora, e ao
Estado abrangente da tradição revolucionária americana e francesa”.
124
Outra conseqüência ideológica natural desse processo e também funcional à
legitimação do modo de produção capitalista, ocorre na desfiguração do conceito de
solidariedade, uma vez que este se torna esvaziado de caráter classista. Busca-se fomentar um
tipo específico de solidariedade sem questionamento social nem compromisso de classe e
norteado por uma perspectiva individualista em que a causa e a solução dos problemas se
encontrem nas próprias pessoas que são atingidas. Tal expediente é providencial para a
ideologia capitalista, pois instaura a culpabilização individual pela própria desgraça social, ou
seja, transforma vítimas em réus
131
.
Essa ideologia possui um lastro na dinâmica de reestruturação do Estado capitaneado
pelas práticas neoliberais, pois se fundamenta diretamente nas mudanças implementadas e nas
novas formas de intervenção social. Ao precarizar e focalizar a seguridade e as políticas
públicas, esse projeto associativo neoliberal que engloba reciprocamente a participação do
mercado, do Estado, de organizações do “terceiro setor” e da “economia solidária”, substitui o
princípio da solidariedade baseada em direitos universais para instaurar uma ideologia
baseada na auto-responsabilização:
A substituição do princípio de solidariedade baseada em direitos universais (presente
no sistema de tributação direta, na previdência única, na seguridade e das políticas
sociais do Welfare State) faz com que cada grupo ou coletivo que apresenta uma
necessidade ou carência particular tenha que se auto-responsabilizar (direta ou
indiretamente) pelo financiamento/prestação da sua resposta; e este é o grande
desejo/finalidade do projeto neoliberal (MONTAÑO, 2002, p. 167).
A relação da ideologia neoliberal, que objetiva individualizar a responsabilidade
social, com a criação de organizações de “terceiro setor” e de “economia solidária”, fica
evidente também na própria materialidade desses empreendimentos, pois, é fato que esses
projetos buscam combater problemas sociais a partir de uma resposta particular. As
determinações próprias das estruturas dessas organizações resvalam na negação da
universalidade dos direitos sociais, substituindo-a por um atendimento focalizado,
segmentado e individualizado e, com isso, esses projetos contribuem para efetivar postulados
capitalistas que negam a totalidade social e fortalecem a alienação, definindo a sociedade
como composta por um conjunto de indivíduos, cada qual com seus interesses e problemas
isolados. Dessa forma, ainda que existam honestos sentimentos de solidariedade das pessoas
que integram essas organizações, isso não invalida a sua funcionalidade para com o projeto
neoliberal.
131
Sobre a interiorização da ideologia neoliberal nas pessoas, induzindo a uma culpabilização pessoal dos
problemas sociais, isto é, transformando aqueles que são vítimas das contradições do capitalismo em réus, ver:
Forrester (1997).
125
Ao apreender a reciprocidade de práticas tais como essas, podemos demonstrar, na
esteira de defensores da “economia solidária”, a existência de uma complementaridade entre
esse projeto e o “terceiro setor”:
A pesquisa permitiu concluir que um contínuo entre terceiro setor e economia
solidária. O desafio foi distinguir dentre o universo pesquisado o que deve ser
considerado terceiro setor, o que é economia solidária e o que está numa posição
intermediária. [...] Considerei empreendimentos de economia solidária aqueles que
possuem, ou estão constituindo estatuto próprio e não têm pessoas assalariadas, mas
apenas sócios cooperados, em condição igualitária. O contrário classifiquei como
terceiro setor. Aqueles que respondiam a um dos dois quesitos acima chamei de
intermediários. Com isso cheguei a seguinte distribuição: 44% intermediários, 29%
terceiro setor e 17% economia solidária (SOUZA, 2003b, p. 255).
Apontar diferenças significativas entre o “terceiro setor” e a “economia solidária”
representa, portanto, uma tarefa de grande complexidade e que não repercute em resultados
efetivos, sendo por esse motivo que o autor demonstra a existência de um contínuo entre esses
projetos
132
. São várias as características que assemelham esses projetos e, como vimos, essa
unidade aparece com maior relevo nas posições ideológicas adotadas e praticadas. Ainda que
os integrantes de tais organizações não tenham plena consciência desse fato, a intervenção
social tanto do “terceiro setor” como da “economia solidária” é extremamente funcional ao
projeto do capitalismo em sua fase mais avançada, pois, dentre outras razões, busca retirar a
responsabilidade do Estado pelas políticas e direitos sociais e passá-la para os indivíduos.
Sob o discurso mistificador do empreendedorismo social, esses projetos ampliam as
teias neoliberais tecidas pelos representantes do capital, destruindo conquistas da classe
trabalhadora e impondo retrocessos materiais e ideológicos. Praticando uma verborragia
repleta de adjetivos modernos e sentenças vazias, como “a união faz a força” e “é preciso
ensinar a pescar e não dar o peixe”, a “economia solidária” acompanha o “terceiro setor”
numa trilha anacrônica para a superação dos problemas sociais. Convencendo “os segmentos
das classes subalternas, através dos mais diversificados meios de comunicação, que contar
com as políticas sociais públicas é coisa do passado”, e que “na atualidade, é obrigatório
despertar o espírito empreendedor; a iniciativa privada; a ‘ir à luta’; ‘correr atrás’ etc”
(MENEZES, 2007, p. 195 196), essas organizações concretizam importantes avanços para o
132
Outros autores não apenas evidenciam a existência de várias semelhanças entre o “terceiro setor” e a
“economia solidária”, como apontam que esse projeto faria parte daquele. Com a diferença que as organizações
da “economia solidária” conseguiriam praticar os valores solidários também nas atividades econômicas, essas
comporiam o mosaico do “terceiro setor”: “Neste universo, que o termo terceiro setor pretende exatamente
refletir, convivem formas as mais variadas de ações, embora um mar de iniciativas assistencialistas, ainda
amplamente marcadas por uma cultura política tradicional, permaneça bastante forte. Porém, neste universo tão
heterogêneo de práticas, algumas demonstram a especificidade de articular solidariedade com elaboração de
atividades econômicas: são estas que consideramos como desenhando o projeto de uma economia solidária, tal
como descritas no início deste capítulo” (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004, p. 161).
126
controle social capitalista. A panacéia do empreendedorismo solidário, no lugar de fomentar
experiências que auxiliam na emancipação dos trabalhadores, “constitui de fato uma
alternativa de ocupação imposta pela agenda burguesa dominante, ao passo que também é
uma escolha política de perspectiva de desenvolvimento e sociabilidade” (BARBOSA, 2007,
p. 74).
Outro ingrediente empregado e defendido tanto no “terceiro setor” como na “economia
solidária” que também é apresentado sob o manto da solidariedade e ajuda coletiva, mas é
funcionalmente utilizado para destruir direitos sociais, é o trabalho voluntário. Como afirmam
autores da “economia solidária”, não somente várias das organizações que integram esse
projeto surgem a partir do esforço de trabalhadores voluntários (cf. SOUZA, 2003b, p. 257),
sem possuírem direitos trabalhistas nem acesso à remuneração, como essa prática é legitimada
pelo apoio institucional de agências externas. A ocorrência desse fato é tamanha que “certa
confusão entre trabalho profissional e voluntário costuma acontecer no início e, às vezes,
durante toda a existência do empreendimento”, sendo muito comum “nesses pequenos
negócios solidários” (SOUZA, 2003b, p. 253). A máxima é que, quanto menor a organização
e mais precária a sua situação, maior a quantidade de trabalho voluntário, como é o caso das
Cooperativas Raiffeisen que, “sendo organizações menores e de gente mais pobre, [...]
utilizam ao máximo o trabalho voluntário de membros. Só os caixas em tempo integral
recebiam salários” (SINGER, 2002, p. 64 – 65).
Existe uma relação direta entre o empreendedorismo e o trabalho voluntário, pois o
emprego e a propaganda da multiplicação do voluntariado muitas vezes realizada por meio
de frases sentimentalistas também representam um elemento de ampla mistificação. Além
de servir para incrementar práticas de privatização dos serviços públicos, subsidiar a
ampliação do desemprego e a precarização do trabalho, conforme afirma a autora, “o
voluntarismo do trabalho empreendedor é uma névoa que esconde a submissão” (BARBOSA,
2007, p. 294). O emprego e a divulgação do trabalho voluntário a partir do ideário capitalista
possuem grande funcionalidade na substituição de empregados efetivos por voluntários, da
mesma forma que serve para rebaixar a carga horária e retirar os direitos trabalhistas.
Além disso, as conseqüências desse tipo de intervenção são bastante graves para o
usuário, como fica destacada, dentre outras, na falta de conhecimento técnico nas práticas
educativas. A boa vontade dos voluntários é instrumentalmente utilizada para implementar
reformas sociais que auto-responsabilizam os sujeitos pelas suas necessidades sociais. Apesar
do discurso apelativo da ajuda voluntária constituir-se enquanto benfeitoria para o bem-estar
coletivo, essas práticas, quando analisadas a partir da totalidade social, servem para fomentar
127
práticas e sentimentos individualistas que justamente rompem com a consciência de
organização e luta coletiva.
Tanto no empreendedorismo social como no trabalho voluntário, a promessa do
fortalecimento dos laços comunitários e locais contra as imposições da burocracia é
capitaneada pelo “terceiro setor” e pela economia solidária” e serve para obscurecer
alternativas concretas na luta da classe trabalhadora contra a classe capitalista. No lugar de
vislumbrar-se um novo projeto societário em que seja abolida a supremacia da mercadoria nas
relações sociais, a adoção de ideologias desse tipo aprofunda processos de alienação,
fetichismo e reificação:
A mudança nas lutas sociais ainda abre sendas de impacto sobre o que está por vir,
mas escolhas político-ideológicas estão sendo feitas, em geral no plano do
espontaneísmo, retirando o que ainda se pode do universo do conflito com o terreno
mais explícito do capital, assumindo o fetichismo da mercadoria: o
empreendedorismo popular. Essas mudanças foram estratégicas para aprofundar o
encobrimento da luta de classes que se realiza nesse drama pela reprodução social e
pelo crescente fortalecimento do capital mundializado mediado pela sua versão
financeira (BARBOSA, 2007, p. 283).
A atuação desses projetos não conduz apenas à mistificação de uma luta espontaneísta
contra a supremacia da mercadoria nas relações sociais, mas representa uma forma de
intervenção social que rompe com padrões ideológicos e materiais capazes de suplantar os
imperativos do capital. Ao desvirtuar e abolir demandas materiais e ideológicas, como os
direitos sociais e a universalidade do atendimento público, que unificam a classe trabalhadora
na luta contra a classe capitalista, o “terceiro setor” e a “economia solidária” funcionam como
gendarmes da ordem societária burguesa, ainda que uma parte de seus integrantes não tenha
ciência disto.
Além disso, tal funcionalidade perante o capital é potencializada a partir da adoção e
divulgação de uma perspectiva alienante sobre a realidade social que escamoteia as
determinações sociais do capitalismo para fantasiar relações sociais de solidariedade pautadas
numa suposta autonomia. É por isso que, sob o ponto de vista da “economia solidária”, o
problema da alienação, do fetichismo da mercadoria e das relações sociais reificadas, seria
resultante não da forma como se estrutura a sociedade para produzir as condições materiais de
reprodução social, mas de elementos subjetivos, individualizados e autônomos.
Para subsidiar essa perspectiva mistificadora cita-se até um pensador marxista que
apreendeu o fenômeno da reificação de maneira bem distinta da apresentada na “economia
solidária”. Desconsiderando esse fato, o representante desse projeto faz uso de uma análise de
Graeber (2000) que deturpa a obra de Lukács, para advogar que o problema da reificação no
capitalismo seria derivado de questões puramente valorativas e culturais:
128
Para o antropólogo David Graeber (2000), a análise de Mauss remete em parte às
teorias marxistas da alienação e reificação, desenvolvidas na mesma época por
autores como Georg Lukács, ao mostrar que nas economias de mercado as trocas se
revestem de dimensão impessoal e transformam tudo em objeto, ao passo que as
economias da dádiva funcionam de modo totalmente contrário: o que importa é a
relação entre pessoas, o objeto da troca é na verdade a criação de laços de amizade
ou a confrontação de rivalidades (e somente em segundo plano a circulação de
riquezas) (CUNHA, 2003, p. 60).
Para o autor, como as contradições estruturais provenientes do modo de produção
capitalistas seriam resultantes de uma dimensão impessoal que produz elementos como a
alienação e a reificação, a “economia solidária” teria a solução para tal impasse: construir
relações entre as pessoas baseadas em sentimentos de amizade. Nesse sentido, como o
processo de produção e circulação de mercadorias somente teria importância em segundo
plano, e o principal fenômeno a ser combatido derivaria de sentimentos negativos que pairam
sobre a estrutura produtiva e norteiam o comportamento humano, a tarefa imediata e essencial
seria a criação de laços de solidariedade. Poderia se traduzir essa proposta a partir da seguinte
máxima: a necessidade de uma reforma moral para fornecer laços de solidariedade perante a
impessoalidade na divisão do trabalho, que resultasse na humanização do capital. Estamos
diante, portanto, de uma nova nuance da “economia solidária”.
2.5. Solidariedade orgânica e reforma moral: a “economia solidária” e o
novo evangelho social
Conforme analisamos, a “economia solidária” se estabelece a partir de um dilema, pois
busca produzir relações sociais solidárias dentro de um espaço de produção regido pelas leis e
determinações capitalistas. Por conseguinte, apontamos para o fato de que a necessidade
dessas organizações dependerem do mercado para manter sua sobrevivência inviabiliza uma
solução não metafísica para tal antinomia. vimos também que esse paradoxo aparece com
alguns graus de diferença, a depender da organização que se busca analisar. Enquanto alguns
desses empreendimentos superam esse dilema a partir da adesão total aos pilares do
capitalismo e utilizam o discurso da solidariedade para arregimentar um apoio maior das
empresas e entidades capitalistas, outras organizações de “economia solidária” se assemelham
ao “terceiro setor”, metamorfoseando direitos sociais e seguridade pública em troca de
129
alternativas voluntaristas baseadas na degradação do trabalho. Apesar das diferenças, ambas
as propostas estão, cada qual à sua forma, ampliando os tentáculos do capital sobre o trabalho.
Existe também uma outra nuance da “economia solidária” que, ao passo que se
assemelha funcionalmente com as organizações analisadas anteriormente, apresenta uma
peculiaridade: a defesa de uma reforma moral e da implementação de uma nova ética para
regular as relações econômicas e sociais. De forma análoga às experiências anteriormente
analisadas, essas organizações se estabelecem pelo uso de um discurso da solidariedade como
elemento de superioridade empresarial, ética e social; no entanto, nesse caso, essa retórica
suscita postulados que remetem tanto a aspectos religiosos como oriundos do positivismo
clássico
133
. Ainda que se baseando num leque extenso de autores que vão desde pensadores
oriundos da Doutrina Social da Igreja Católica, até integrantes da tradição sociológica
positivista, a perspectiva adotada nessas organizações é unívoca: a busca por uma nova ética e
uma nova moral que harmonize a sociedade capitalista e evite o agravamento dos conflitos
sociais.
Na base desse ponto de vista encontra-se a conjectura de que o problema da sociedade
capitalista se localizaria na existência de uma crise moral advinda da decadência de valores
solidários que historicamente guiaram a humanidade para uma situação de coesão social,
relativos essencialmente à tradição religiosa. Para alcançar novamente esse estado de
normalidade em que as pessoas seriam benevolentes umas com as outras, independentemente
de sua classe social, seria preciso iniciar uma reforma moral para estabelecer novos ou
restabelecer velhos valores coletivos, seja através da ressuscitação da ética paternalista cristã,
seja pela adesão a uma nova moralidade social. Estamos diante de dois casos que perpassam o
projeto da “economia solidária”: a propagação da necessidade de uma reforma moral,
capitaneada pelos teóricos positivistas e a pregação de um evangelho social, por parte da
“economia de comunhão”. Especialmente porque, como se propõe a instauração de uma nova
racionalidade baseada em valores deste quilate, as organizações da “economia solidária”
teriam uma contribuição decisiva para tal empreitada.
O subsídio teórico nesse projeto de um novo ethos
134
diferenciado do mercado
capitalista acontece a partir de algumas referências históricas, como Robert Owen e Pierre-
133
Ao falar de positivismo clássico nos referimos à perspectiva metodológica, teórica e ideológica fundada por
Émile Durkheim e desenvolvida por seus principais seguidores. Conforme veremos, a adoção dessa perspectiva é
explícita dentro da “economia solidária”.
134
É também voltado para esse objetivo que se criou em 1998 no Brasil, sob a iniciativa de um grupo de
empresários e executivos, o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Essa entidade busca
sensibilizar e ajudar as empresas no estabelecimento de uma gestão socialmente responsável que, mesmo sem
alterar as causas das contradições sociais do capitalismo, almeje uma sociedade justa e sustentável. Talvez seja
130
Joseph Proudhon, mas, em especial a partir de Émile Durkheim e de seu sobrinho e discípulo
Marcel Mauss:
sobrinho e discípulo de Émile Durkheim e considerado o precursor da antropologia
francesa, Mauss era também membro ativo do movimento cooperativista e
partilhava das idéias de Owen e Proudhon de que o socialismo seria construído de
baixo para cima com base na invenção de instituições alternativas. Embora
reconhecesse que as relações de compra e venda não poderiam ser eliminadas da
sociedade no curto prazo, Mauss defendia que era possível se desvincular do ethos
do mercado, organizar o trabalho de modo cooperativo, garantir uma proteção social
efetiva e criar um novo ethos segundo o qual a única justificativa para a acumulação
da riqueza seria a capacidade de dar tudo (CUNHA, 2003, p. 59).
Utilizando termos usualmente empregados por Durkheim, a “economia solidária”
voltar-se-ia para o combate do “estado de anomia, em que a divisão do trabalho social
135
não
gera solidariedade” (OLIVEIRA, 2003a, p. 128), por meio do estabelecimento de relações
sociais no interior dessas organizações, pautadas na união coletiva e na coesão social
136
. Por
meio da repetição dessas práticas solidárias, essas experiências conseguiriam desenvolver elos
que promoveriam a integração da sociedade e evitariam o estado de anomia social, uma vez
que, no entendimento do representante desse projeto, essa degeneração “não ocorreria se
determinadas maneiras de agir coletivas, uma vez consagradas, se tornassem hábitos, que por
sua vez viessem a se transformar em regras de conduta” (IDEM, p. 128 129). Para o autor,
relegar a organização da sociedade à vontade individual seria uma forma de fechar os olhos
para as injustiças sociais e, por isso, tornar-se-ia imprescindível o estabelecimento de um
poder moral superior que impusesse barreiras sociais que limitassem a liberdade individual.
Seriam necessárias, portanto, normas que consolidassem “não apenas maneiras de agir, mas
modos de ação socialmente obrigatórios, criando coesão e regularidade, afastando de vez o
estado de anomia e, principalmente, as injustiças dele decorrentes” (IDEM, p. 130).
por causa dessa ideologia que essa entidade promova acordos com a “economia solidáriabuscando transformar
essas organizações em fornecedores de produtos e força de trabalho das empresas capitalistas. Abordaremos
algumas dessas relações no próximo capítulo.
135
Como fica explícito no título de sua obra principal “Da divisão do trabalho social”, Émile Durkheim (2008)
sempre utilizou o termo divisão do trabalho social e não divisão social do trabalho. No lugar de apreender a
sociedade com base na estrutura produtiva, para Durkheim a divisão do trabalho social seria um fenômeno
secundário em relação à desintegração da solidariedade mecânica, precisando-se levar e conta três causas
principais para sua análise: o volume (quantidade de pessoas), a densidade material (demografia) e a densidade
moral (intensidade de comunicações) (ARON, 2008).
136
Segundo Durkheim, a solidariedade mecânica, que era o elemento de promoção de integração e coesão social
típica de sociedades primitivas nas quais predominava a consciência coletiva sobre a consciência individual (pois
a maioria das pessoas exercia a mesma atividade, seguia os mesmos costumes e adorava os mesmos deuses), foi
substituída pela solidariedade orgânica vigente a partir da divisão do trabalho e que pressupõe a diferenciação e
complementaridade entre as atividades e, por isso, a integração é realizada por meio da diferenciação entre os
indivíduos e os grupos. Assim, para afastar o estado de anomia na sociedade em que a consciência coletiva perde
o primado sobre as consciências individuais, seria preciso fortalecer elos de solidariedade entre as pessoas a
partir de uma reforma moral.
131
Um dos fenômenos mais visíveis do estado de anomia social resultante da perda de
hábitos e vínculos entre coletividades estaria representado na crise das sociedades salariais.
Esse contexto social poderia ser definido a partir de uma terminologia durkheimiana e de seus
seguidores como representado por uma ruptura de sociabilidade, o que demarcaria não apenas
a situação de exclusão dos trabalhadores, mas o fim da centralidade do trabalho. Nesse
sentido, incorporando autores e máximas que privilegiam aspectos morais em detrimento da
estrutura produtiva da sociedade, ecoa-se, dentro da “economia solidária”, a profecia sobre o
fim da centralidade do trabalho:
Pode-se afirmar que a economia solidária guarda grandes vínculos com as
abordagens de tradição durkheimiana da escola francesa de sociologia política, onde
a exclusão é vista como quebra de sociabilidade. Castel entende a crise das
sociedades salariais além do aumento da pobreza e do desemprego: trata-se, nos
termos de Émile Durkheim, de profunda anomia social, isto é, da perda de vínculos
básicos, mesmo nas esferas da família ou da vizinhança. Cada vez mais o trabalho
perde a centralidade do debate pois, diante da constatação de que a sociedade
salarial está deixando de incluir trabalhadores, a questão passa a girar em torno da
vulnerabilidade resultante dessa exclusão o que, mais do que marginalidade
econômica, implica desenraizamento social. É por isso que Castel não fala em
exclusão mas em desfiliação, que ele define como um duplo processo de
desligamento, em termos de trabalho e de inserção relacional (1997, 1998)
(CUNHA, 2003, p. 52).
Existiria, portanto, uma relação direta entre a economia solidária” e pensadores que
advogam a necessidade de uma reforma moral para integrar a sociedade, uma vez que a
temática e as categorias advogadas por estes seriam realizadas em exemplos concretos
naquelas organizações. Como a capacidade de controle moral da sociedade não poderia advir
de instituições que se distanciaram das pessoas e perderam poder ao longo da histórica, como
o Estado, que teria se tornado incapaz de gerenciar os interesses sociais, tal atribuição deveria
ser centralizada em agrupamentos profissionais. Especificando o escopo de atuação social, a
capacidade de intervenção social relativa a estes agrupamentos sociais não deveria ser medida
nos seus aspectos econômicos, mas, antes, na sua influência moral, uma vez que a
importância das “organizações corporativas não se deveu aos serviços econômicos que
inegavelmente prestavam à sociedade, mas sim à influência moral de que eram depositárias”
(OLIVEIRA, 2003a, p. 131).
Seguindo nesse caminho, o representante da “economia solidária” também explica que
a congruência entre esses projetos aconteceria a partir da perspectiva teórica, metodológica,
política e ideológica de Durkheim, pois, ainda que se possa “divergir da forma pela qual
Durkheim construiu suas reflexões em torno da solidariedade”, a proposta que esse pensador
“empreendeu talvez tenha muito mais pontos em comum do que se poderia a princípio admitir
no caminho que hoje partilhamos, na promoção de uma sociedade econômica e culturalmente
132
solidária” (OLIVEIRA, 2003a, p. 138). Da mesma forma, apesar de seus equívocos políticos,
Durkheim também representaria uma referência na transformação social almejada pela
“economia solidária”, pois seria uma fonte de inspiração para a construção do socialismo.
Da maneira análoga a outras questões, analisar a relação entre a precária noção de
socialismo defendida por Durkheim e a peculiar proposta de transformação social da
“economia solidária” não é tarefa fácil. Isso acontece porque Durkheim é analisado de forma
contraditória na visão dos próprios representantes da “economia solidária”, uma vez que, se
de um lado, é evidente que esse pensador discordava “da teoria das lutas de classes,
entendendo-a como guerra aberta e violenta”, e que “ninguém ousaria dizer que Durkheim foi
um socialista”, por outro lado, para o representante da “economia solidária”, não se poderia
afirmar que ele “foi indiferente ao socialismo”, mas pelo contrário, “segundo Marcel Mauss,
nutria simpatia por ele” (IDEM, p. 137). Assim, ainda que o projeto de sociedade vislumbrado
por esse pensador fosse a conjugação dos ingredientes do sistema capitalista somados a
reformas morais para incrementar a ordem e o controle social, a simpática posição de
Durkheim sobre o socialismo bastaria para eleger esse pensador como referência da
“economia solidária”.
O tipo de socialismo simpático a Durkheim estabelecer-ia-se a partir de uma força
moral que harmonizaria interesses opostos, ainda que esses sejam insuprimíveis dentro de
uma sociedade baseada na contradição de classes. Além disso, compreendendo o socialismo
como um “fato social
137
da mais alta importância”, o projeto de Durkheim deveria ser
parâmetro para a “economia solidária” por ser
a subordinação do indivíduo à coletividade, ressalvando que não é possível
determinar com objetividade o grau de tolerância do sacrifício individual; a luta por
melhorias na condição das classes trabalhadoras, visando maior igualdade,
sobretudo econômica. Para o autor, todavia, o socialismo ia além da questão
operária e dizia respeito à proteção dos interesses coletivos em face de interesses de
ordem particularista, traço que inegavelmente lhe era caro, conforme aqui pudemos
notar (IDEM, p. 137 – 138).
De imediato, faz-se necessário distinguir esse projeto social de cunho coletivista, que
objetiva a subordinação do indivíduo à coletividade, do horizonte revolucionário de uma nova
ordem social em que esteja abolida a propriedade privada dos meios de produção, destruídas
137
O fato social seria, para Durkheim, o objeto da sociologia e, ainda que não fosse uma coisa inanimada tal qual
um fenômeno das ciências naturais, deveria ser tratado de maneira semelhante. Ele o definia como “toda maneira
de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda toda maneira de
fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria,
independente de suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 2007, p. 13). As características principais do
fato social seriam: exterioridade, pois é exterior às consciências individuais; coercitividade, pois exerce um
poder de coerção sobre os indivíduos; generalidade, pois é geral numa determinada sociedade; e independência,
pois independe das vontades e consciências individuais.
133
as classes sociais, e seja superado o antagonismo entre os homens. Diferentemente desses
postulados corroborados pelo representante da “economia solidária”, um projeto social
baseado na emancipação humana não objetiva submeter o interesse individual a uma
expressão qualquer de coletividade, até porque existe uma ligação intrínseca insuperável entre
indivíduo e gênero humano:
Como consciência genérica o homem confirma sua vida social real e apenas repete
no pensar a sua existência efetiva, tal como, inversamente, o ser genérico se
confirma na consciência genérica, e é, em sua universalidade como ser pensante,
para si.
O homem – por mais que seja, por isso, um indivíduo particular, e precisamente sua
particularidade faz dele um indivíduo e uma coletividade efetivo-individual
(wirkliches individuelles Gemeinwesen) é, do mesmo modo, tanto a totalidade, a
totalidade ideal, a existência subjetiva da sociedade pensada e sentida para si, assim
como ele também é na efetividade, tanto como intuição e fruição efetiva da
existência social, quanto como uma totalidade de externação humana de vida
(MARX, 2008, p. 107 – 108).
Além disso, podem existir casos em que a própria coletividade consiga estabelecer
uma moral que incorpore práticas extremamente individualistas, como ocorre dentro do
capitalismo. Os principais coletivos que determinam a subordinação dos indivíduos são
exatamente aqueles que personificam os imperativos do capital, impondo condições materiais
e ideológicas competitivas e individualizantes. Baseando-se na análise de Adorno e
Horkheimer (1973) sobre o capitalismo, podemos afirmar que, dentro desse ordenamento
social, quando mais se intensifica o individualismo menos se estimula uma formação
autenticamente individual
138
. O capital personificado nas coletividades dominantes impõe
valores sociais e tipos de comportamentos que não apenas desarticulam a relação de
complementaridade entre os indivíduos, mas enaltecem um padrão de acumulação que isola as
pessoas. Usando termos usuais da “economia solidária”, poderíamos afirmar que ocorre o
contrário do apregoado nesse projeto uma vez que, nesse contexto, vemos como uma
coletividade pode subordinar os indivíduos a maneiras específicas de ação coletivas que,
consagradas, se tornam hábitos de práticas extremamente individualistas e egoístas.
Uma verdadeira transformação social que destrua as condições materiais que
subsidiam o individualismo possessivo
139
é bem diferentemente desse projeto coletivista
baseado no pensamento positivista e incorporado na “economia solidária”, que integra
qualidades análogas a um “comunismo vulgar, que subsume o indivíduo no gênero” (NETTO,
2004, p. 99). Para ser realmente transformadora, exige-se um projeto revolucionário que
138
Convém recordar hoje esta virtude da sociologia, quando a sociedade passou a exercer uma tremenda
pressão sobre o indivíduo e as relações individuais são contidas em limites muito reduzidos, sendo as
considerações sociológicas freqüentemente preteridas pelas de ordem psicológica. Quanto menos são os
indivíduos, tanto maior é o individualismo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p. 53)
139
O termo individualismo é utilizado por Macpherson (1979) para analisar teóricos políticos da tradição liberal.
134
vislumbre a destruição das barreiras sociais determinadas historicamente que impossibilitam a
relação dialética de complementaridade entre indivíduo e gênero humano (WELLEN;
OLIVEIRA, 2006a). Para tanto, como objetivo essencial encontra-se a destruição da
“propriedade privada para suprimir a alienação”, e, nesse sentido, é preciso “instaurar o
comunismo, garantia do humanismo real (NETTO, 2004, p. 99). É apenas nesse projeto
revolucionário que se encontra
a verdadeira dissolução (Auflösung) do antagonismo do homem com a natureza e
com o homem; a verdadeira resolução (Auflösung) do conflito entre existência e
essência, entre objetivação e auto-confirmação (Selbstbestätigung), entre liberdade e
necessidade (Notwendigkeit), entre indivíduo e gênero (MARX, 2008, p. 105).
Diferentemente dessa proposta, o tipo anacrônico de socialismo positivista presente na
“economia solidária” não é apenas incapaz de alcançar os objetivos anteriores, mas dissemina
vários postulados ideológicos funcionais à ampliação do poder do capital. Dentre as premissas
apresentadas anteriormente relativas ao projeto social de Durkheim e incorporadas pela
“economia solidária”, consta que a construção do socialismo deveria atender a todas as
classes sociais, visto que “ia além da questão operária e dizia respeito à proteção dos
interesses coletivos em face de interesses de ordem particularista, traço que inegavelmente lhe
era caro” (OLIVEIRA, 2003a, p. 137 138). Não se trataria, portanto, de um projeto voltado
exclusivamente para o atendimento dos interesses dos trabalhadores, mas dos interesses de
todas as pessoas dentro de uma mesma coletividade.
A fantasia desse novo mundo coletivista visualizado por Durkheim, a ser criado a
partir de uma reforma moral construída pela solidariedade entre todos os homens, também faz
parte do mundo ideal almejado pela “economia solidária”. Empregando o termo comunista de
maneira extremamente idiossincrática, é assim que Paul Singer (1999, p. 73 74) se refere a
essa nova sociedade:
O comunismo, não por acaso, é o oposto simétrico do capitalismo. Ao
individualismo deste último, que funciona como explicação e justificativa na
competição enquanto valor e modo de comportamento universal, o comunismo opõe
o coletivismo, apresentado como ambiente necessário para o surgimento de um
‘novo mundo moral’ (na expressão de Owen) baseado na solidariedade, na
cooperação e na fraternidade entre os homens.
Essa visão de transformação social não demonstra apenas uma obtusa análise do modo
de produção capitalista, desconsiderando a especificidade do papel da classe trabalhadora
nessa estrutura produtiva e as suas conseqüentes contradições, mas expressa uma marca
indelével da “economia solidária”: o apelo a todas as pessoas, independentemente de sua
relação com a classe social, objetiva e subjetiva. A condição explícita nessa perspectiva é que
a transformação tanto deveria atender aos anseios dos trabalhadores, como deveria preservar
135
os interesses dos capitalistas e, para tanto, a efetivação dessa luta precisaria afastar o egoísmo
das classes trabalhadoras que se achavam as únicas que deveriam conquistar melhorias. Por
isso que a implementação de mudanças sociais deveria ser realizada, na visão de Durkheim e
dos representantes da “economia solidária”, a partir de uma reforma moral, pois, dessa forma,
deixar-se-ia preservada a estrutura produtiva capitalista em que uma classe vive à custa da
exploração do trabalho da outra. Com essa nova moral, não somente manter-se-ia a
concentração dos meios de produção nas mãos dos capitalistas, mas se alcançaria a integração
social e faria submergir os conflitos sociais, legitimando a exploração do trabalho por meio da
solidariedade entre patrões e empregados.
Esses pressupostos aparecem com maior clareza no caso da “economia de
comunhão
140
” (EdC), uma “experiência peculiar de economia solidária” (PINHEIRO, 2000, p.
333) que, objetivando o direcionamento da “firma ou empresa a constituir-se como
comunidade de pessoas altamente responsáveis e motivadas” (ARAÚJO, 1998, p. 11), propõe
a vigência de um novo evangelho social capaz de suplantar os conflitos sociais entre patrões e
empregados. Seria por meio da disseminação de uma cultura solidária que uniria valores
cristãos com ingredientes do mercado capitalista, que a “economia de comunhão” alcançaria
essa façanha.
Segundo seus representantes, a “economia de comunhão” poderia ser definida como
um novo “modelo empresarial, orientado por princípios cristãos, pelo qual se efetiva um
modo peculiar de lidar com os outros bens, com o lucro e com as relações humanas”
(THIEMER, 2000, p. 101). Da amálgama entre modelo empresarial e valores cristãos
resultaria uma nova cultura solidária chamada, pelos integrantes desse projeto, de “cultura do
dar” ou cultura da partilha” e que guiaria os empresários para a formação de empresas
distintas das capitalistas tradicionais, pois utilizariam o lucro para fins sociais. A razão para
essa adjetivação seria que, mesmo proveniente da exploração do trabalho pelo capitalista, o
lucro é apresentado, dentro desse projeto, como detentor de uma finalidade social, uma vez
que uma parte deste seria distribuída com três objetivos: para reinvestimento na atividade
produtiva, assegurando que a empresa se mantenha economicamente viável; para patrocínio
da formação humana, com intuito de “fortalecer a matriz cultural que lhe respaldo”; e para
140
alguns anos, realizamos uma análise crítica da “economia de comunhão” com base no pensamento de
Marx, abordando quatro categorias centrais propriedade privada, trabalho, natureza humana e transformação
social. O resultado dessa pesquisa encontra-se na nossa dissertação de mestrado (WELLEN, 2004). Na banca de
defesa, o professor João Emanuel Evangelista sugeriu alterar o título da dissertação para “novo evangelho
social”. Sugestão essa que, apesar de não ter sido incorporada naquele momento, agora recebe o título desse
tópico da nossa tese. O termo “evangelho social” foi utilizado por Marx e ENGELS (1986, p. 45) para fazer uma
crítica aos socialistas utópicos que objetivavam mudanças sociais fantasiosas com base na força do exemplo.
136
ajudar “pessoas em situação de pobreza, inicialmente no âmbito do Movimento Focolares
141
(PINHEIRO, 2003, p. 335).
A criação desse projeto derivou de uma necessidade endógena de um grupo religioso
intitulado de Movimento Focolares, vinculado à Igreja Católica, uma vez que, como afirma
sua fundadora, “apesar da comunhão de bens, eu percebera que devido ao crescimento do
Movimento (no Brasil somos cerca de 250 mil pessoas) não se conseguiam mais cobrir nem
sequer as necessidades mais urgentes de certos membros” (LUBICH, 2000, p. 15). Ainda que
conseguisse angariar recursos para prover parte das necessidades de seus membros, a criação
de uma organização econômica se fez imperativa para o Movimento Focolares pelo fato de
que “a prática de comunhão, embora realizada de modo regular e organizado, havia se tornado
insuficiente para cobrir as necessidades emergenciais de muitos dos duzentos mil membros do
movimento no Brasil que viviam em situação de pobreza” (PINHEIRO, 2000, p. 334).
Baseado na Doutrina Social da Igreja Católica e, mais especificamente, nas “reflexões
sobre o sentido da propriedade privada e da livre iniciativa no sistema econômico vigente,
contidas na encíclica Centesimus Annus
142
(IDEM, p. 335), a “economia de comunhão”
surgiu como um empreendimento econômico destinado a instaurar uma nova moral dentro das
relações capitalistas de produção. A “economia de comunhão”, para alcançar esse fim,
disporia de um importante sujeito social: os empresários que, dotados de uma consciência
solidária superior, além de beneficiar as outras pessoas a partir da doação de parte dos lucros
de suas empresas, se dedicariam à catequização de seus funcionários. Com isso, além de
alcançar o milagre de uma racionalidade não capitalista dentro de uma empresa capitalista, a
“economia de comunhão” também teria a graça de aumentar sua produtividade a partir da
harmonização entre patrões e empregados. Por isso que, ainda que essas experiências não
representassem uma quantidade expressiva
143
, essas teriam, segundo a autora, um importante
papel social na superação da racionalidade capitalista:
141
Segundo dados do escritório nacional da EdC, existem cerca de 11.000 pessoas cadastradas para receber uma
parte dos lucros dessas empresas, distribuídas nos seguintes continentes: 1.020 pessoa na Europa, 1.312 na Ásia,
1.903 na Oceania e 6.723 na América. A utilização dos lucros é realizada na seguinte proporção: 49% para
alimentação, 20% para educação, 17% para assistência, 11% para moradia e 3% para outras finalidades. (Diário
de Pernambuco, 26 de julho de 2009).
142
A Centesimus Annus é uma encíclica social escrita pelo Papa João Paulo II e publicada em 1991. Além dessa
encíclica, também integram a Doutrina Social da Igreja Católica: a Rerum Novarum escrita pelo Papa Leão XIII
e publicada em 1891; a Quadragesimo Anno, escrita pelo Papa Pio XI e publicada em 1931; a Mater et Magistra,
escrita pelo Papa João XXIII e publicada em 1961; e a Octagesima Advenies, escrita pelo Papa Paulo VI e
publicada em 1971.
143
No início do século XXI, existiriam aproximadamente 750 empresas integrantes da “economia de comunhão”
em todo o mundo, das quais, cerca de 300 na Europa, 200 na América Latina e 100 no Brasil (SERAFIM, 2001).
Não houve uma alteração significativa desses dados para a atualidade, visto que em 2005 foram identificadas
137
Engendrando mudanças qualitativas, essas iniciativas têm se mostrado capazes de
implementar, ainda que minimamente, um contramovimento que visa a superação
da racionalidade capitalista, pautado no não-reconhecimento da solidariedade, no
cerceamento à participação e não-distribuição da renda e da riqueza e na
instrumetalização da pessoa, fatores que terminam por institucionalizar as
desigualdades, fundando uma existência calcada no terror (IDEM, p. 347).
O foco central da “economia de comunhão” é o combate à racionalidade capitalista,
independentemente do local onde essa se expresse. Na verdade, podemos afirmar que esse
escopo é tão preciso quanto o tipo de estrutura produtiva que suportaria esse tipo de
racionalidade, pois ambas se constituem a partir da existência de classes sociais. O que
importa para a “economia de comunhão” é instaurar uma nova cultura baseada em valores
religiosos, que conduza as pessoas à prática de um novo evangelho social, independentemente
da classe social e da organização em que estas estejam inseridas. Como afirma a autora, “as
empresas vinculadas à EdC possuem grande diversificação jurídica”, pois no lugar de
“defender uma forma única de organização da atividade produtiva, a EdC concentra-se na
tentativa de renovar por dentro as práticas empresariais, quaisquer que sejam as suas
modalidades” (IDEM, p. 338).
Essa desconsideração perante a estrutura produtiva e, conseqüentemente, pela
permanência ou não da propriedade privada e da exploração do trabalho, tem uma razão
específica: a mistificação do lucro. Isso acontece porque, dentro desse projeto, o processo de
produção e geração de lucro baseado na exploração do trabalho e na expropriação da mais-
valia passa por uma ressignificação semântica construída a partir de uma epistemologia
baseada em um novo evangelho social capaz de nortear o comportamento humano. Por causa
dessas qualidades subjetivas, o lucro, dentro da economia de comunhão”, é apresentado com
“um estatuto que diverge cabalmente daquele capitalista, em conseqüência de um conjunto
representativo de práticas interpessoais de valor extra contábil, inteiramente desconsideradas
pela racionalidade econômica vigente” (IDEM, p. 335). O lucro dessas organizações de
“economia solidária” não apenas incorporaria uma função social altruísta, como possuiria um
valor superior àquele proveniente de empresas capitalistas concorrentes, pois as práticas
subjetivas resultariam em “valor extra contábil” que não é computado pela racionalidade
econômica vigente”.
Como denominamos em outro texto, e aprofundaremos no decorrer de nossa pesquisa,
aqui ocorrem nuances de dois movimentos mistificadores, de um lado a transformação
imagética do valor de troca em solidariedade e de outro a reificação da utilização da
735 empresas, localizando-se 01 na África, 02 na Oceania, 31 na Ásia, 458 na Europa e 243 na América, das
quais 123 no Brasil (Diário de Pernambuco, 26 de julho de 2009).
138
solidariedade como valor de troca a serviço da empresa (WELLEN, 2008). Não apenas o
evangelho social desse projeto de economia solidária” seria capaz de transformar a
propriedade privada e a exploração do trabalho em eventos solidários, como essa imagem de
superação do conflito entre capital e trabalho dentro da empresa seria capaz de incrementar o
processo produtivo e, dessa forma, resultar num diferencial competitivo.
Tudo isso seria capitaneado pelos empresários solidários desse projeto que, por meio
de subterfúgios subjetivos, seriam capazes não somente de suplantar as suas diferenças para
com seus funcionários, mas de educar todos com base nessa cultura que promoveria a paz
entre todos os homens. Os grilhões desse evangelho social envolveriam a mente dos
trabalhadores para que esses imaginassem como superadas as contradições econômicas, não
obstante o fato de que a riqueza produzida por eles permanecesse expropriada pelos seus
patrões que, no final, seriam os principais responsáveis pela boa ação social. Os capitalistas se
vangloriam de práticas de solidariedade, ainda que essas se dêem a partir da exploração dos
trabalhadores. A “economia de comunhão” segue, assim, os mesmos postulados contidos na
Doutrina Social da Igreja Católica que elege os capitalistas como pessoas capazes de dar o
bom exemplo e de serem responsáveis pela harmonização social, ainda que acumulem
riquezas a partir do trabalho alheio.
A Doutrina Social da Igreja Católica, analogamente ao novo evangelho social presente
nessa experiência de “economia solidária”, representa uma versão da ética paternalista cristã,
destinada a difundir uma ideologia que se harmonize com o sistema capitalista e proclame “a
superioridade natural de uma pequena elite, os magnatas da indústria e das finanças, para a
qual atribuía a função de zelar, paternalisticamente, pelo bem-estar das massas” (HUNT;
SHERMAN, 1985, p. 128). Esse projeto representa uma atualização daquela epístola, ao
buscar convencer a todos que o êxito dos empresários representaria “uma prova irrevogável”
de que estes possuiriam “virtudes superiores às do homem comum”, apresentando a
“crescente concentração industrial como o produto de superioridade biológica dos
empresários que se sobressaíam nesse processo” (IDEM, p. 129).
Esses versículos da Doutrina Social da Igreja Católica, endossados pelo Papa Leão
XIII nas primeiras encíclicas publicadas entre 1878 e 1901 e que baseiam o evangelho social
presente na “economia de comunhão”, constituem um esforço bem presente no projeto da
“economia solidária”: a harmonização social de um sistema contraditório baseado na
propriedade privada. Expressando uma perspectiva similar à reforma moral aventada pelos
139
positivistas, outra encíclica, a Rerum Novarum
144
, que trata sobre a condição dos operários,
mistifica um discurso “cujo tom e conteúdo lembram posições socialistas” para impor
“palavras duras de repúdio ao socialismo e uma apologia da propriedade privada” (IDEM,
130).
O corpo desse documento reflete um projeto social que, por meio de uma reforma
moral que integre todos em torno de uma solidariedade anticlassista, funciona como
legitimação da exploração do trabalho pelo capital:
no percurso de todo o documento, o capital era aceito como um co-princípio
independente e com direitos frente ao trabalho. Pois, mantendo-se dentro da moral
capitalista, esta encíclica afirmava ‘ser natural’ a diferença de classes, e por isso, o
‘mal capital’ é pretender que uma classe seja inimiga da outra, ‘como se a natureza
não houvesse disposto a existência dos ricos e dos pobres’. Aceitava-se a
propriedade privada do capital e ‘os que carecem de propriedade a suprem com o
trabalho’, argumentava Leão XIII (ANDRADE FILHO, 2000, p. 110).
Percebemos, assim, a relação complementar entre o projeto de integração social
advogado por Durkheim e aquele defendido pela “economia de comunhão”, visto que, por trás
dessas propostas de reforma moral, encontra-se um instrumento mistificador amplamente
eficaz na despolitização da questão social e no desestímulo da classe trabalhadora para a
defesa de seus interesses na luta de classes:
A proposta de reforma moral durkheimiana, de criação de vínculos que garantam
uma solidariedade que seja princípio diretor da ação dos homens, tem sido, ao longo
da história, objetivo precípuo das instituições, práticas sociais e profissionais sob o
capitalismo. O entendimento das questões políticas (sobretudo a luta de classes)
como um problema de coesão social, de vinculação dos indivíduos a valores e
normas coletivas, metamorfoseia os aspectos políticos em éticos, cuja
responsabilidade passa a ser atribuída à sociedade civil. A esses traços acresce-se a
necessidade de uma ação social de conteúdo pedagógico, mediante procedimentos
técnicos racionais, e teremos a fórmula durkheimiana que tem sido utilizada na
despolitização das questões sociais, na reprodução ideológica da sociedade pela via
da moral, esta, instrumento privilegiado para assegurar a coesão social (GUERRA,
2005, p. 64-65).
O escopo dessa reforma social aventada por Durkheim, e incorporada em diferentes
gradações pelo projeto da “economia solidária”, não desconsidera a possibilidade de
mudanças sociais mas, pelo contrário, faz eco a manifestações contra práticas egoístas, e até o
mercado e empresas capitalistas tradicionais recebem críticas. No entanto, a reforma social
vislumbrada por essa perspectiva não contempla uma transformação social revolucionária que
144
Constam, na Rerum Novarum (2002, p. 12), preciosos conselhos sobre a forma ideal de comportamento dos
trabalhadores, para que esses não se revoltem contra seus patrões, nem se deixem ser influenciados por pessoas
que lutam pelo fim das classes sociais: “entre estes deveres, eis os que dizem respeito ao pobre e ao operário:
deve fornecer integral e fielmente todo o trabalho a que se comprometeu por contrato livre e conforme à
equidade; não deve lesar seu patrão, nem nos seus bens, nem na sua pessoa; as suas reivindicações devem ser
isentas de violências, e nunca revestirem a forma de sedições; deve fugir dos homens perversos que, nos seus
discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças exageradas e lhe fazem grandes promessas, as quais conduzem
a estéreis pesares e à ruína das fortunas”.
140
destrua as causas das contradições sociais, e nem sequer toca no ponto estrutural do modo de
produção capitalista. Desconsiderando a centralidade da exploração do trabalho como fonte
dessas contradições sociais, a alternativa projetada deixa intocada a forma como a sociedade
organiza a produção e, desta forma, “remete não para o conjunto macroscópico da ‘questão
social’, mas para a evidência societária das suas refrações mais preocupantes para o
pensamento conservador: o problema da coesão social” (NETTO, 2005, p. 47).
Trata-se de uma crítica social, mas que objetiva resultados extremamente limitados
que, além disso, quando relacionados com a totalidade do sistema social vigente, possuem não
somente uma essência inócua de transformação, mas uma grande influência no
estabelecimento da ordem e na manutenção da estrutura social. Nesse sentido, essas nuances
da “economia solidária”, seja referente à reforma moral positivista, ou ao novo evangelho
social, no lugar de servirem para abrir veredas para a emancipação dos trabalhadores,
possuem uma função social oposta: escamotear as reais contradições sociais e desvirtuar o
sentido das lutas de classes. Situando os valores sociais como independentes da estrutura
produtiva e rogando por uma solidariedade entre todas as pessoas, independentemente de sua
classe social, essas experiências promovem uma regressão na análise da sociedade e
encaminham uma inflexão mistificadora para a transformação social.
Tanto nos aspectos materiais quanto nos ideológicos, as organizações de “economia
solidária” representam um campo fértil para a efetivação de postulados que escamoteiam a
contradição social entre capital e trabalho e, dessa forma, iludem a classe trabalhadora da
exploração sofrida e de sua capacidade revolucionária. No final das contas, retoma-se uma
velha estratégia capitalista desmistificada por Engels (1986, p. 300 301) bastante tempo:
depois de ter a “oportunidade de aprender do que era capaz o povo, aquele puer robustus sed
malitiosus”, a classe dominante percebeu que, “agora, mais do que nunca, era necessário
manter o povo à distância mediante recursos morais; e o primeiro e mais importante recurso
moral com que se podia influenciar as massas continua a ser a religião”.
A reforma moral e o novo evangelho social capitaneados pela “economia solidária”
servem, portanto, como um meio funcional de legitimação do modo de produção capitalista.
Por meio de uma crítica social de viés puramente racionalista, que advoga a autonomia das
consciências perante as condições materiais de existência social, essas ferramentas
disseminam práticas mistificadoras pautadas numa solidariedade vazia que serviria tanto para
trabalhadores como para capitalistas. Vários trabalhadores oscilam diante dessa promessa
social e, com isso, o fim aventado pela economia solidária” torna-se um meio para
incrementar o poder e o controle da classe capitalista.
141
No entanto, cabe indagar até que ponto esta dádiva alienante está presente na luta dos
trabalhadores e, nesse sentido, torna-se importante analisar de que forma a “economia
solidária” se relaciona com movimentos sociais que adotam práticas mais radicais na luta pela
transformação social. Tal análise passa a ser mais complexa quando se observam casos em
que a criação de organizações cooperativas não representa uma finalidade da luta pela
transformação social, mas um meio que forneça subsídios para a luta política.
Nesses casos, diferentemente do que se expressa nesses postulados mistificadores, o
objetivo não é instaurar uma luta econômica a partir da competição com as empresas
capitalistas, mas sobreviver no mercado e, ainda que assumindo as limitações e dependências
econômicas, utilizar esse meio como motivação para o embate político. A pergunta que
podemos fazer é se as organizações que adotam essa perspectiva possuem a mesma função
social que a “economia solidária” e as diversas organizações irmãs, analisadas até aqui.
Para problematizar essa questão, analisaremos a relação de complementaridade ou não
entre o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e o projeto da “economia
solidária”.
2.6. MST x “economia solidária”: uma relação de complementaridade?
Ao apreendermos elementos sobre a configuração da economia solidária” nas suas
relações com outras organizações sociais, identificamos várias nuances. Ainda que tenhamos
constatado posturas e perspectivas distintas, a depender da especificidade de cada tipo de
empreendimento integrante ou vinculado com a “economia solidária”, a função social dessas
organizações variou dentro de um escopo restrito. Em nenhum momento da análise
encontramos evidências que apontassem para uma intervenção contestadora e capaz de
encaminhar um projeto de revolução social. As gradações variaram em torno de um horizonte
que não coloca em questão a estabilidade do sistema capitalista, mas que serve, em geral, para
retroceder condições materiais e ideológicas da luta dos trabalhadores contra o capital. Nos
próximos capítulos de nossa tese apresentaremos outros dados que fortalecem essa conclusão.
No entanto, antes de seguir com esse objetivo, precisamos resolver uma questão ainda
pendente sobre a delimitação da “economia solidária”, expressa na sua relação com o MST.
142
Ao lado de várias outras organizações, o MST seria, na visão de autores da “economia
solidária”, uma das expressões desse projeto social. Como vimos, para Cruz-Moreira (2003, p.
207) ao lado do ICA, da OCB, da Levi Strauss & CO e de programas governamentais de auto-
emprego, o MST é apresentado como parte integrante de uma nova onda do cooperativismo
que integra a “economia solidária”. Outro defensor da “economia solidária” também utiliza o
MST como base de subscrição da visão de transformação social desse projeto social.
Afirmando a necessidade de contar com o “apoio das três classes sociais não-proprietárias,
sem o que o sucesso do empreendimento estaria comprometido”, Haddad (2004, p.226)
enaltece esse projeto porque “um dado eloqüente é o apoio dado pelos não-proprietários de
uma maneira geral a um movimento tido como radical como o Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra (MST)”.
Da mesma forma que a “economia solidária”, o grande diferencial revolucionário do
MST estaria, segundo o autor, proclamado não na luta por melhores salários, menor jornada
de trabalho, ou na defesa de direitos sociais, mas na busca por crédito, apoio técnico e
independência para a organização de cooperativas:
Trata-se de um movimento que mudou completamente a pauta clássica de
reivindicações: ele não reclama maior remuneração ou menor jornada, nem
tampouco favores do Estado, seja renda mínima ou seguro-desemprego, ainda que
tudo isso seja muito justo. Revolucionariamente, o MST quer crédito, apoio técnico
e autonomia para organizar suas cooperativas. Apesar do seu escopo limitadíssimo e
ainda não muito nítido, as demandas do MST tem caráter universal, aplicável a todo
ramo de atividade econômica, em pequena e grande escala (HADDAD, 2004, p.
226).
Sob a perspectiva do autor, para que o MST alcançasse o mesmo padrão
revolucionário da “economia solidária”, esse movimento deveria centrar esforços não na
união de trabalhadores para a luta política contra os capitalistas, mas na batalha por melhores
condições que permitissem o desenvolvimento econômico autônomo de suas cooperativas e,
por isso, deveria focalizar suas intervenções no crédito e na formação técnica. Nesse sentido,
para superar seu “escopo limitadíssimo” e passar a ter um “caráter universal”, o MST
precisaria centrar sua atuação nessas demandas econômicas, seja em pequena ou grande
escala. Da mesma forma que a “economia solidária”, a transformação social almejada pelo
MST seria a construção de empreendimentos econômicos independentes, visto que, para o
autor, ser revolucionário é alcançar autonomia para organizar cooperativas.
para Singer (2004, p. 09), seria natural que o MST representasse uma das
expressões da “economia solidária”, visto que esse projeto incluiria no seu rol de atuação a
luta pela conquista da terra e pela reforma agrária. Ainda que, como demonstrado no capítulo
anterior, os dados da tabela 03 desautorizem essa relação apresentada por Singer, visto que
143
não consta nenhum depoimento que indique a luta pela socialização da terra como razão para
criação de organização de “economia solidária”, o autor aponta outros motivos para sua
conjectura:
a idéia de se juntar e organizar uma atividade econômica coletiva, à base de
participação igualitária nas decisões e no capital não era conhecida e usual à grande
maioria dos sem trabalho. Daí a importância de entidades como o Anteag, o MST,
as ITCP e as ADS etc., que estão reinventando a economia solidária na atual
conjuntura brasileira (SINGER, 2003, p. 26).
Tal qual o projeto da “economia solidária”, para o representante desse projeto, a
principal atuação do MST também se voltaria para a criação de organizações econômicas em
que os trabalhadores pudessem se integrar ao mercado capitalista. Para ele, o MST seria
“outro movimento que também luta contra a exclusão” por meio de um empenho “na
organização de moradores do campo e mais tarde também de cidades, que desejavam se
integrar à economia mediante a obtenção de terra mantida improdutiva em latifúndios”
(IDEM, p. 25). Sob o seu ponto de vista, seria justamente “para viabilizar economicamente os
assentamentos, [que] o MST organiza diferentes tipos de cooperativas, que contam com uma
escola de formação de técnicos em cooperativismo” (IDEM).
Ainda que não explicitada, existe uma ambigüidade nessas posições sobre a relação
entre essas propostas, a saber: as organizações econômicas criadas no interior do MST
possuem a mesma finalidade daquelas típicas da “economia solidária”? O seu destino é
integrar os trabalhadores ao mercado e, quem sabe, iniciar uma luta econômica contra as
empresas capitalistas, ou a viabilização econômica representa um meio para a luta política
desse movimento? A organização econômica representa, dentro o MST, um meio ou a
finalidade de sua intervenção social? Em outros termos, as razões principais da luta dos
trabalhadores sem terra se destinam à criação de cooperativas ou essas organizações
representam ferramentas econômicas instrumentalizadas para os embates pela socialização de
terras no Brasil? No fundo, o que se buscamos problematizar é se a função social do MST é a
mesma ou não da “economia solidária”.
A origem do MST remete a necessidades bem distintas de empreendimentos
econômicos como a “economia solidária”, que são destinados à integração de trabalhadores
no mercado capitalista. Esse movimento, desde o início, voltou-se para a luta política e social
pela distribuição da posse da terra. Apesar da luta pela terra no Brasil não ser recente, é a
partir de meados da década de 1970 que ela passa por uma intensificação, na qual se destacam
práticas mais radicais, como as ocupações de propriedades privadas. É a partir dessa época
que começam a aparecer movimentos sociais no campo e, dentre esses, “o movimento mais
144
representativo que nasceu nesse processo foi o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST)” (FERREIRA, 2003, p. 81).
A missão histórica desse movimento social situa-se na defesa de uma ampla reforma
agrária, política essa tão combatida e reprimida pela classe agrária dominante no Brasil e
pelas suas entidades representativas. Ainda que a finalidade das lutas tenha se mantido, com o
passar dos anos e com as novas determinações presentes nas conjunturas recentes e nas
classes sociais em disputa, novos temas precisaram ser defendidos e outros combatidos. A
estreita ligação entre latifundiários brasileiros e o capital imperialista fez surgir, por exemplo,
o agronegócio, e a defesa dessa estrutura produtiva subordinou até organizações que possuem
relações diretas com a “economia solidária”, como é o caso da OCB
145
. Pelas suas diversas
intervenções sociais, objetivando um projeto econômico oposto ao do agronegócio, o MST é
visto por essa entidade como o seu principal adversário.
Diferentemente do que apregoam os representantes da “economia solidária”, nessa
batalha contra a classe dominante rural e suas entidades representativas, o MST não pode
utilizar as mesmas armas apregoadas por aquele projeto social, voltando-se para a competição
econômica. Podemos afirmar que existem duas possibilidades vislumbradas para o caso do
MST centralizar seus esforços nos conselhos da criação de cooperativas para disputar o
mercado com as organizações do agronegócio: ou esse movimento terá um prazo de vida
extremamente limitado, ou resolverá a contradição entre a solidariedade e a produção
capitalista da mesma forma que a OCB, renegando todos os princípios históricos do
cooperativismo em prol dos imperativos do capital. Por isso que, diferentemente dos
representantes da “economia solidária” que acreditam no milagre do mercado local e na
capacidade autônoma de disputa econômica, os integrantes do MST apreendem corretamente
esse equívoco e admitem suas limitações:
De certa forma, a totalidade dos coletivos estudados se relaciona com o mercado
local e mantém muitas linhas de produção para o autoconsumo. O destino dos
produtos excedentes tem sido o mercado local, que se diferencia em termos de porte
e de estrutura, em função das características da região. Outro aspecto é a
comercialização de safras, seja com atacadistas, seja diretamente com a grande
indústria. É a maneira tradicional de comercialização das comodities agrícolas,
sendo esta a forma em que o produtor se sente mais prejudicado, pois os ganhos de
escala e de agregação de valor são transferidos para a indústria (FERREIRA, 2003,
p. 85).
145
A necessidade de desvinculação da OCB aparece, dentro do MST, como condição essencial para a concepção
de cooperativas como meio para uma luta classista: “A criação do sistema cooperativista dos assentados,
desvinculado da Organização das Cooperativas Brasileira (OCB), possibilitou autonomia em relação ao governo
e às grandes corporações cooperativistas, comandadas por empresários. Essa desvinculação deu independência
de atuação política, liberdade de expressão, baseada na concepção de cooperativismo como instrumento de luta e
de classe” (FERREIRA, 2003, p. 87).
145
Da mesma forma, além da centralidade na luta econômica, outros postulados
mistificadores, como a existência de valores “extra contábeis”, desconsiderados pela
“racionalidade econômica vigente” e empregados pela “economia solidária” como diferencial
competitivo (cf. PINHEIRO, 2000, p. 335), também não são reproduzidos pelo MST. Ao
contrário, no lugar de fantasiar vantagens competitivas dentro do mercado capitalista, essa
situação é apresentada sem desvios, na essência da sua relação com a totalidade social. As
limitações econômicas são o que a própria palavra indica e não se trata de diferencial
positivo, mas de uma desvantagem que afetará diretamente o futuro do movimento social caso
sejam desconsideradas.
A capacidade competitiva desses empreendimentos econômicos não é determinada a
partir de valores solidários, mas tem a mesma fonte de valor que qualquer outra mercadoria: a
quantidade de trabalho socialmente necessário para a sua produção. Na competição mercantil,
torna-se indiferente a existência ou não de um ambiente pautado por relações solidárias entre
os produtores, pois, como o resultado desse trabalho precisa ser vendido no mercado, a
agregação de valor por meio de elementos subjetivos não passa de uma mistificação. Para
sobreviver dentro do mercado é preciso seguir alguns imperativos e, dentre esses, o que
determina o valor das mercadorias serve tanto para empresas capitalistas, como para
empreendimentos solidários. É por esse fato, que a representante do MST afirma:
A dificuldade de distribuir sobras desestimulava os trabalhadores. Sentimos então a
necessidade de controlar a produtividade, passando então a discutir o conceito de
postos de trabalho, a partir da questão: ‘Quanto tempo socialmente é necessário para
desenvolver determinada tarefa?’. Passamos a estabelecer metas e objetivos e as
horas de trabalho determinadas em função destas metas e objetivos, segundo o
tempo socialmente necessário (FERREIRA, 2003, p. 87 – 88).
Para conseguir sobreviver dentro do mercado capitalista, as organizações econômicas
do MST precisam, como qualquer outra, seguir o imperativo do trabalho socialmente
necessário e, é por esse motivo, que, desmistificando princípios da “economia solidária” que
apregoam uma suposta autonomia do trabalho, apresenta-se a necessidade de estabelecer a
divisão do trabalho
146
. A representante do MST explicita que, nesses empreendimentos, a
“organização do trabalho se efetiva por meio de setores, a partir da divisão do trabalho, na
lógica de ‘postos de trabalho’, que são determinados pela atividade econômica desenvolvida e
pela capacitação dos associados-trabalhadores” (IDEM, p. 83).
146
Conforme veremos no próximo capítulo, existe, dentro da “economia solidária”, um automatismo entre
divisão do trabalho e emancipação humana, pois, segundo representantes desse projeto, negando-se o
parcelamento das atividades produtivas alcançar-se-ia um espaço ausente de alienação. É com base nessa
hipótese que se elogiam, por exemplo, práticas organizativas da produção advindas do toyotismo.
146
Esses elementos subscrevem uma tese central, que a criação de um empreendimento
econômico pelo MST o finaliza a instauração de um novo projeto social
147
, mas possui uma
função social não hipostasiada nem mistificadora: prover condições sicas para o auto-
consumo de seus integrantes
148
. Da mesma forma, não se busca idealizar e fantasiar
qualidades de solidariedade para uma falsa autonomia perante o mercado capitalista. Assume-
se que a situação econômica é amplamente desfavorável na disputa dentro do mercado, uma
vez que “as várias atividades competem entre si pelos parcos recursos de capital e pela mão-
de-obra, o que leva eventualmente ao fracasso de algumas linhas de produção, além de
dificultar a especialização, atrasando ganhos de produtividade” (IDEM, p. 85).
Desta forma, busca-se não incorporar falsas promessas de transformação social, pois
se entende que as determinações da totalidade social incidem diretamente no interior dessas
organizações e consubstanciam sua atuação econômica. Assim, longe de constituírem um
novo modo de produção que supera o capitalismo, as cooperativas do MST possuem um
“sentido da resistência econômica, visto que, mesmo que a distribuição em dinheiro seja
pouco expressiva, se comparada com a média urbana, é considerável em relação aos demais
de pequenos agricultores e assentados individuais” (IDEM, p. 89). Diante dessa realidade,
surge a necessidade de alcançar melhores resultados econômicos, mas para tanto, a
representante do MST descarta postulados mistificadores presentes na “economia solidária” e
não emprega subterfúgios. Para ela, apesar de não termos conseguido avançar
consideravelmente nos benefícios econômicos”, a importância das cooperativas do MST
deriva-se do fato de que a sua presença “em muitas regiões faz com que os assentados não
estejam subordinados à atuação de atravessadores, que sempre implica maiores prejuízos”
(IDEM, p. 87).
Assim, ainda que sejam limitados os avanços na promoção de melhores condições
econômicas, a autora não descarta a relevância das cooperativas no MST, visto que é através
dessas que os produtores conseguem superar os atravessadores e vender as mercadorias
diretamente no mercado. Trata-se de uma competição econômica dentro do capitalismo e, no
147
Ainda que, dentro das relações de competição no mercado capitalista, esse elemento seja insignificante, não
desmerecemos o esforço dedicado à instauração de gestão coletiva dentro desses empreendimentos econômicos.
Como não se pode construir esse processo longe das determinações do capitalismo, a efetivação desses
princípios representa uma tarefa bem complexa, e esse também é o caso do MST: “As CPA [Cooperativas de
Produção Agropecuária] organizadas nos assentamentos do MST se caracterizam pela total coletivização dos
meios de produção. Em quase todas as nossas CPA, o título de propriedade ou concessão de uso da terra
permanece em nome do indivíduo, que passa para o controle da cooperativa por meio de contrato de comodato.
Porém, já existem CPA com o título da terra em nome da própria cooperativa” (FERREIRA, 2003, p. 83).
148
Alguns representantes da “economia solidária” também analisam essa realidade de forma semelhante,
apontando para o fato de que o MST fomenta “empreendimentos visando primordialmente a auto-
sustentabilidade” (GAIGER, 2003, p. 272).
147
lugar de evangelho social ou de tantos outros recursos mistificadores, o que vale nessa disputa
é a capacidade produtiva.
É para promover maior produtividade e, desta forma, diminuir a desvantagem perante
as grandes empresas capitalistas, que se fomentou, dentro do MST, o SCA Sistema
Cooperativista dos Assentados. Essa entidade foi criada no início dos anos 1990, após o
acúmulo de experiências nessas organizações e, com pouco mais de dez anos de existência,
contava com mais de 80 cooperativas, divididas em três níveis. O primeiro nível é divido em
três formas principais: “Cooperativas de Produção Agropecuária (CPA), Cooperativas de
Prestação de Serviços (CPS) e as Cooperativas de Crédito”, no segundo nível essas
organizações “são associadas a uma Central de Cooperativas de Assentados (CCA), tendo
hoje centrais em nove estados brasileiros; em terceiro nível se encontra a Confederação de
Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab)
149
” (IDEM, p. 82 – 83).
Além dessas qualidades, também existem outros motivos que diferenciam as
cooperativas do MST das empresas capitalistas. Ao lado da desvantagem competitiva já
apontada, a autora expõe também novos elementos que subscreveriam objetivos sociais de
caráter extra-econômico:
O que queremos dizer é que as CPA são pequenas empresas que atuam em ramos de
produção muito pouco rentáveis atualmente, que têm pouca capacidade de se
capitalizar, pouca experiência de gestão e de participação da concorrência do
mercado. E sobretudo visam, além da viabilidade econômica, a realização de
objetivos sociais extra-econômicos que garantam a inserção social de seus cios e
famílias, o que extrapola largamente os fins de uma empresa capitalista
(FERREIRA, 2003, p. 86).
Por conseguir apreender determinações que atravessam a disputa econômica dentro do
mercado capitalista e, nesse sentido, visualizar as cooperativas para além de seu espaço
interno, a representante do MST identifica de forma clara as limitações desse empreendimento
econômico. Não se isenta em admitir a inferioridade dessas experiências na disputa
concorrencial, marcada pela menor capacidade produtiva e financeira. No entanto, em
semelhança à “economia solidária”, também advoga a existência de “objetivos sociais extra-
149
Por idealizar o espaço interno da organização e atenuar a importância de recursos materiais que diminuam a
desvantagem competitiva das cooperativas perante as empresas capitalistas, representantes da “economia
solidária” preocupam-se muito mais com os riscos degenerativos do que com a necessidade de produtividade
centralizada e em maior escala. Como existiria, para os representantes da “economia solidária”, uma relação
inversa entre crescimento da organização e gestão democrática, a adoção de práticas tais como essa
implementada pelo MST levaria ao risco eminente da burocracia:
“As cooperativas agrícolas e agroindustriais do
MST também integram a economia solidária. Elas enfrentam problemas semelhantes aos das empresas urbanas
de autogestão. Lidam também com o risco da maléfica burocratização, qual seja, a cristalização no poder de uma
elite detentora das informações técnicas. Risco esse, aliás, que perpassa a história e as diferentes formas de
organização da economia solidária, bem como os agrupamentos sociais em geral, como bem apontou Max
Weber (1979)” (SOUZA, 2003, p. 39).
148
econômicos”. Desta forma, poderíamos nos questionar sobre a origem desses objetivos sociais
extra-econômicos, e, centralmente, se estamos diante do mesmo dilema da “economia
solidária”, analisado ao longo desse capítulo.
Uma referência importante para responder essa questão refere-se ao posicionamento
do representante mais famoso da “economia solidária”. Ao tecer comentários sobre a origem
dos integrantes de organizações econômicas tais como o MST, Singer (2003, p. 21) aponta
que os valores assimilados por esses não se originam de experiências de “economia solidária”,
pois a antecedem:
Em sua origem, em geral uma comunidade formada por ex-empregados duma
mesma empresa capitalista ou companheiros de jornadas sindicais, estudantis,
comunitárias etc. os integrantes, por exemplo, de cooperativas formadas em
assentamentos de reforma agrária compartilham por vários anos acampamentos à
beira de estradas e ocupações de fazendas, choques com a polícia etc.
Como incorporam grupos que atuaram em lutas coletivas anteriores, é natural que a
formação dessas organizações econômicas também seja perpassada pelos principais valores
adotados e vivenciados por essas pessoas nas suas realidades anteriores. Nesse sentido, a
cooperativa, em menor ou maior grau, representa uma expressão das posições políticas e
ideológicas desses sujeitos sociais e dessas realidades históricas. Juntamente com as
determinações do mercado capitalista, os valores sociais e práticas sociais realizadas
historicamente somam-se na composição dessas experiências e, por isso, trata-se de “uma
opção ao mesmo tempo econômica e política-ideológica” (IDEM).
Ainda que analogamente também possibilitem a “assimilação da cooperação como um
valor no movimento e também melhoram a qualidade de vida dos trabalhadores envolvidos”
(SOUZA, 2003a, p. 08), a situação das cooperativas do MST é bem mais complexa, porque se
tratam, na sua grande maioria, de práticas sociais extremamente contestadoras. As ocupações
de terras, a defesa coletiva contra a repressão da polícia, a constante ameaça de morte pelos
pistoleiros, as atividades de educação e conscientização para a luta de classes, o cotidiano da
vida em assentamentos, tudo isso não apenas antecede a criação da cooperativa, como
permanece presente na memória e na prática diária de seus integrantes. A relação desses
valores contestadores com a necessidade de sobrevivência no mercado capitalista expressa um
dilema que, diferentemente do projeto da “economia solidária”, no MST nem se utilizam
práticas mistificadoras para escamotear esse paradoxo, nem a luta social se resume ao interior
dessas organizações.
A assimilação e a instauração desses valores sociais contestadores não representam um
resultado posterior da criação de cooperativas, mas, antes, deriva-se dos fundamentos e
149
princípios do movimento social que subordina essas organizações. Diferentemente do
apregoado pela “economia solidária”, o dilema sintetizado na oposição entre uma perspectiva
transformadora e a necessidade de sobrevivência no mercado capitalista, quando analisado
dentro das cooperativas do MST, nem se inicia na construção desse empreendimento nem tem
o seu desfecho na luta econômica
150
.
Como vimos no capítulo anterior, não existe uma pré-determinação na função social
da cooperativa, uma vez que essa varia de acordo com as relações sociais exteriores e,
especialmente, com as forças sociais que a subordinam. No entanto, podemos concluir que no
momento em que se apregoa a autonomia dessas para superar as contradições do capitalismo é
que se avança na subordinação dessa organização aos representantes do capital. Quando
conservados no escopo restrito do seu interior e baseados na sua atuação limitada, as
cooperativas não serão apenas incapazes de competir contra as grandes empresas capitalistas,
mas também de amenizar a precariedade da vida dos trabalhadores. Por isso, passam a receber
apoio de burgueses solidários. (cf. MARX, 1986a, p. 319).
A cooperativa não pode ser vista como um fim em si mesma, mas como uma
ferramenta que tanto pode servir para ampliar a consciência dos trabalhadores e, dessa forma,
sua luta, como para fazer recrudescer os interesses do capital. Para ter uma função social
contestadora, essa organização precisa ser capitaneada pelos interesses dos trabalhadores e,
dessa forma, necessita servir a um movimento político que a subordine. A diferença é que,
enquanto a “economia solidária” renega essa evidência e se insere numa seara mistificadora, o
MST consegue apreender corretamente essa sentença.
Longe de aportarem uma perspectiva política autônoma, as cooperativas do MST
seguem os princípios desse movimento como referências práticas e ideológicas e, nesse
sentido, esses empreendimentos econômicos não possuem um fim em si mesmo, mas são
guiados para a luta pela reforma agrária. Tal assertiva fica comprovada no relato da integrante
do MST, ao afirmar que “a consciência das tarefas” nas cooperativas deve servir “não apenas
na produção, mas como forma de propaganda da reforma agrária”, pois esse “é um fator
motivador deste movimento de massa que é o MST” (FERREIRA, 2003, p. 90).
Da mesma forma, para conservar a perspectiva política classista dentro do MST, são
utilizadas práticas que descartam até símbolos da tradição cooperativista. Esse é o caso, por
150
Como demonstrou Lênin (1980, p. 61), bem diferente de fazer críticas ao capitalismo e tecer considerações
sobre a transformação social, encontra-se a direção de uma empresa dentro do mercado capitalista: “uma coisa é
argumentar sobre a possibilidade de progresso sem o capitalismo, outra coisa é dirigir a sua própria
propriedade”. Tratam-se de duas racionalidades distintas e é preciso ter consciência desse fato para conseguir
alcançar um bom desempenho no mercado capitalista e usar esses recursos para um projeto que objetive a
construção de uma nova ordem social.
150
exemplo, da negação do primeiro princípio do cooperativismo, que determina a não utilização
de filtro político ou ideológico para o ingresso nessas organizações. Se o representante da
“economia solidária” roga pela vigência da neutralidade política e religiosa
151
e, através desse
princípio, objetiva “impedir que as cooperativas sejam exclusivas de partidos ou seitas” e que
abra “a porta a todos os que desejam se associar, não importando suas posições políticas e
crenças religiosas” (SINGER, 2002, p. 42), a representante do MST, por sua vez, afirma que
os empreendimentos econômicos desse movimento “passaram a ser mais uma ferramenta de
organização da nossa base, visto que os assentados precisam estar vinculados a um organismo
de base para associarem-se a essas cooperativas” (FERREIRA, 2003, p. 90).
No lugar de princípios cooperativistas tais como esse que pregam a solidariedade entre
todas as pessoas, independentemente da sua classe social, existe, dentro do MST, a soberania
de outros códigos que orientam um movimento classista que luta contra os imperativos do
capital. Conforme consta na Carta dos Movimentos Sociais das Américas
152
, respaldada pelo
MST, o objetivo é “a recriação de um novo internacionalismo de povos em luta, através de
uma autêntica perspectiva de integração popular que seja plural, horizontal, com uma clara
definição ideológica anti-neoliberal, anti-capitalista, anti-patriarcal e anti-imperialista”. Para
efetuar tal projeto, estabelece-se como prioridade “elevar a mobilização de massa contra o
capital transnacional e os governos que atuam como cúmplices do saque. É a mobilização de
massa que criará a força necessária para promover transformações populares
(IDEM)
153
.
Estamos diante, portanto, de princípios que não possuem nenhuma neutralidade
política, mas, pelo contrário, estabelecem com precisão os adversários a serem combatidos.
Não se trata de buscar uma irmandade entre classes sociais, ou de rogar pelo bem comum de
todos através da harmonização social, mas de uma luta aberta contra entidades que são
151
Para o cooperativismo tradicional, como “as cooperativas são organizações voluntárias e abertas a todos,
desde que estejam aptos a assumir responsabilidades e utilizar os seus serviços, sem discriminações de raça,
classe social, sexo, opção política e religiosa” (VEIGA; FONSECA, 2001, p. 43), deve existir a “neutralidade
política e religiosa (esta regra tem relação direta com a de livre adesão e desligamento dos cios, pois se a
cooperativa assumisse caráter político ou religioso ela excluiria implicitamente os que pensassem de outro
modo)” (IDEM, p. 21). Assim está escrito o primeiro princípio do cooperativismo: “As cooperativas são
organizações abertas à participação de todos, independentemente de sexo, raça, classe social, opção política ou
religiosa. Para participar, a pessoa deve conhecer e decidir se tem condições de cumprir os acordos estabelecidos
pela maioria”. (SESCOOP, 2009).
152
Aprovada em fevereiro de 2009 no Fórum Social Mundial, em Belém.
153
Até mesmo representantes da “economia solidária” situam a criação de cooperativas pelo MST como uma
atividade secundária perante a mobilização de trabalhadores na luta pela reforma agrária: “Além de mobilizar
trabalhadores em prol da reforma agrária, e educar seus adeptos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) vem organizando cooperativas em áreas de assentamento. As primeiras cooperativas de produção
agropecuária (CPA) foram formadas em 1989. Além dessas, também cooperativas de crédito e de prestação
de serviços no âmbito do movimento, totalizando hoje 86 cooperativas espalhadas em nove centrais estaduais de
cooperativas dos assentados (CCA), todas congregadas nacionalmente na Confederação Nacional das
Cooperativas de Reforma Agrária no Brasil (Concrab)” (SOUZA, 2003a, p. 08).
151
responsáveis pela ampliação das desigualdades sociais. E é nesse sentido que as cooperativas
do MST são condicionadas em sua função social: não apenas como um agrupamento de
produtores autônomos que querem sobreviver no mercado capitalista, mas como um
instrumento a serviço desse movimento social na sua luta contra os imperativos do capital. É
por isso que na atual conjuntura, conforma afirma Machado (2003, p. 121), as cooperativas
que possuem “melhores condições de manterem sua autenticidade sejam as vinculadas ao
MST, justamente porque esse é um movimento que proporciona uma referência política,
ideológica e cultural anticapitalista muito forte atualmente”.
O autor cita o MST como referência concreta de um movimento social que conseguiu
capitanear organizações para servirem num amplo leque de luta, que engloba desde elementos
econômicos, políticos, até culturais e ideológicos:
Fico imaginando que pelo menos parte do êxito do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) tem a ver com o fato de ele estar criando um movimento
com essas características. O MST tem sido eficiente em conseguir tomar terras, e a
partir daí começar a produzir. Mas vai além. Ele tenta organizar suas unidades
produtivas na forma de cooperativas. E o que talvez seja mais interessante e
importante: o vínculo dos trabalhadores com o movimento não se extingue quando
conseguem sua terra. Após terem seu quinhão, continuam membros do movimento
e, portanto, referenciados nele, em seus objetivos. Acho que esta concepção vem
permitindo que o MST crie uma coisa que não é um movimento social de luta
pela terra, ou um movimento político. O MST é também cultural e ideológico, e
ainda econômico (MACHADO, 2000, p. 61).
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) representa, atualmente, o
maior movimento contestador da ordem social estabelecida no Brasil. Completando mais de
duas cadas e meia de existência, o MST construiu uma história marcada pelas lutas contra
as imposições do capitalismo imperialista no campo, a ponto de representar hoje o mais
importante coletivo de luta dos trabalhadores no Brasil e, talvez, até no mundo.
Apresentando-se como herdeiro de lutas históricas pela socialização de terras no Brasil, como
os Quilombos, Canudos e as Ligas Camponesas
154
, o MST organiza diariamente práticas
interventivas para construir a melhoria de vida de todos trabalhadores e, em especial, aqueles
pertencentes à zona rural.
Para a construção de uma nova sociedade, o MST ajuda na promoção de uma
solidariedade classista que unifique os trabalhadores e promova intervenções tais como
manifestações públicas, invasões de terras e empresas, cursos e encontros de formação para a
consciência de classe. Por causa dessas práticas contestadoras, esse movimento recebe
diariamente ataques de todos os tipos: desde repressão física proveniente de capangas e da
154
Para falar sobre a trajetória do MST é preciso falar da história da concentração fundiária que marca o Brasil
desde 1500. Por conta disso, aconteceram diversas formas de resistência como os Quilombos, Canudos, as Ligas
Camponesas, as lutas de Trombas e Formoso, a Guerrilha do Araguaia, entre muitas outras” (MST, 2007a).
152
polícia, até difamação pública promovida por vários meios de comunicação e por
personalidades da sociedade brasileira
155
.
Como as práticas utilizadas não se baseiam no apelo à solidariedade entre todas as
pessoas, mas voltam-se para a conscientização e a ampliação da luta dos trabalhadores contra
os imperativos do capital, a resposta das entidades capitalistas contra o MST é bem
diferenciada daquela voltada para a “economia solidária”. Uma das razões desse tratamento
antagônico encontra-se no fato de que, enquanto organizações da “economia solidária”
recebem apoio de entidades capitalistas como o Banco Mundial e subscrevem os conselhos
desta instituição capitalista (cf. BARCELLOS; BELTRÃO, 2003), o MST objetiva
“desenvolver ações contra o imperialismo combatendo a política dos organismos
internacionais a seu serviço”, tais como “o FMI (Fundo Monetário Internacional), OMC
(Organização Mundial do Comércio), BIRD (Banco Mundial) e a ALCA (Acordo de Livre
Comércio das Américas)”, além da luta “pelo não pagamento da dívida externa” (MST,
2007).
O MST também representa uma oposição à função social contida nas práticas
desenvolvidas pelas organizações do “terceiro setor” e subscritas pela “economia solidária”.
Ao contrário das práticas desses projetos que contribuem para a destruição da universalidade
dos direitos sociais em troca de prestação de serviços privados, individualizados e
precarizados, o MST (2007) exalta nas suas linhas políticas a defesa dos “direitos contra
qualquer política que tente retirar direitos já conquistados.” Além disso, também em
contraposição a posicionamentos conciliadores, sua postura é cristalina e não permite dúvidas
quanto ao caráter classista, pois busca “articular com todos os setores sociais e suas formas de
organização para construir um projeto popular que enfrente o neoliberalismo, o imperialismo
e as causas estruturais dos problemas que afetam o povo brasileiro” (IDEM).
Diante de todas essas evidências, podemos afirmar que não somente o MST possui
diferenças significativas para com a “economia solidária”, como as organizações econômicas
que integram aquele movimento não possuem a mesma função social que os
empreendimentos desse projeto social. Bem diferente da utilização de cooperativas como
espaço econômico e político subordinado a uma luta superior, implementada pelo MST,
encontra-se o projeto mistificador que fantasia a possibilidade de criar organizações de
155
Dentre tantas personalidades que agridem o MST, destaca-se o jornalista Arnaldo Jabor que, mesmo
financiado pelo agronegócio para defender o latifúndio, é promovido pela mídia capitalista como o paladino da
moralidade.
153
“economia solidária” para competir economicamente com as empresas capitalistas, vencê-las
dentro do mercado capitalista e, dessa forma, superar o modo de produção capitalista.
Essa promessa da “economia solidária” não é apenas impossível de ser realizada,
como serve para encobrir sérios retrocessos econômicos e ideológicos na história de luta da
classe trabalhadora. Vejamos de perto algumas implicações desse processo.
154
Capítulo III: “Economia solidária” e trabalho
Tenho vaqueiros, que são bons violeiros...
Tenho cavalos ladinos, para furarem tapumes. Hô-hô...
Devagar eu uso, depressa eu pago...
Todo-o-mundo aqui vale o feijão que come... Hô-hô...
E hoje, com um tempo destes e a gente atrasada...
(ROSA, 2006, p.16)
Buscamos apreender, ao longo do capítulo anterior, elementos que subscrevem ao
mesmo tempo a especificidade da “economia solidária” assim como a relação desse projeto
com outras formas de intervenção social que marcam o contexto brasileiro. Ainda que se trate
de uma tarefa complexa e difícil, a identificação de qualidades que demarcam o campo de
atuação da “economia solidária”, assim como sua proposta de atuação social, constitui um
pré-requisito para apreender a sua função social. É com base nesses postulados analisados
anteriormente que nos propomos, agora, a adentrar na problemática central de nossa tese, ou
seja, apreender qual a função social realizada pela “economia solidária” dentro do capitalismo
brasileiro atual.
Como primeiro ponto de análise, precisamos nos debruçar sobre as relações entre a
“economia solidária” e o complexo do trabalho e, nesse sentido, são pautas de investigação as
determinações que incidem sobre o trabalho dentro desses empreendimentos, conformado seu
sentido. A primeira pergunta que podemos fazer é se, dentro das organizações de “economia
solidária”, existem processos de exploração do trabalho e se esse elemento passa por
processos de precarização, ou inversamente, se, no interior dessas experiências, o trabalho
torna-se um elemento de emancipação do trabalhador perante o capital.
3.1 Relações de trabalho na “economia solidária”: emancipação ou
exploração?
Nas análises realizadas ao longo de nossa pesquisa sobre a “economia solidária”
tornou-se explícita a existência de várias posições em disputa, sejam essas relacionadas a
perspectivas teóricas ou políticas, e tal fato gerou uma imprecisão acerca da compreensão de
155
algumas experiências e empreendimentos sociais. Ainda que tal dissonância envolva também
o debate sobre as cooperativas de trabalho, não se pode afirmar que essa imprecisão aconteça
de forma semelhança àquela relativa às experiências analisadas anteriormente. Em verdade,
podemos apontar que existe um entendimento consensual entre representantes da “economia
solidária” sobre as cooperativas de trabalho, em que essas organizações são vistas de forma
bem negativa, visto que, ao invés de avançar na luta dos trabalhadores, teriam passado por
inflexões ou desvios históricos perante as imposições do capital.
Como afirmam representantes da “economia solidária”, o expressivo crescimento das
cooperativas de trabalho no Brasil estaria relacionado diretamente com o processo de
precarização e ampliação da exploração do trabalho. Tal entendimento é exposto por Veiga e
Fonseca (2001, p. 49), para quem a causa central da expansão das cooperativas de trabalho no
Brasil encontra-se no fato de que “75% dessas cooperativas foram criadas a partir de 1992,
apresentando-se como uma conseqüência direta da política de flexibilização e precarização
das relações de trabalho, das privatizações e da recessão da economia”.
A utilização de cooperativas de trabalho como base para ampliação da exploração do
trabalhador recebeu um incentivo de relevo a partir de algumas modificações dentro da carta
que rege a maioria das relações entre trabalho e capital no Brasil: a CLT Consolidação das
Leis do Trabalho. A inserção de um parágrafo no artigo 442 da CLT serviu para retirar
barreiras legais e facilitar a criação de cooperativas para precarizar as relações de trabalho (cf.
Parra, 2003, p. 78 79). O debate sobre as cooperativas de trabalho ocorrido no final do
primeiro lustro dos anos 1990 teve como desfecho a aprovação de um projeto de lei, de
autoria do deputado federal Adão Preto, do PT do Rio Grande do Sul, que acrescentou o
seguinte parágrafo único ao artigo citado anteriormente: “qualquer que seja o ramo da
sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre
estes e os tomadores de serviço daquela
156
” (PALMEIRA SOBRINHO, 2001, p. 01).
Aparentemente inexistiria grande mudança em relação ao texto anterior, visto que já se
encontrava expresso na lei antecedente a negação de vínculo empregatício entre os
cooperados, pois, conforme se observa no art. 90 da Lei 5.764/71: “qualquer que seja o tipo
de cooperativa, não existe nculo empregatício entre ela e seus associados”. No entanto, a
relevância da mudança na lei ocorreu na declinação da existência de vínculo empregatício
para além das relações internas entre os cooperados, abrangendo as relações de compra e
156
Também citado, com alteração de alguns termos, por Veiga e Fonseca (2001, p. 99): “Art. 19. Qualquer que
seja o ramo de atividade da Cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre
estes e os tomadores de serviços daquela (CLT, art. 442, parágrafo único)”.
156
venda presentes no mercado. Se a Lei 5.764/71 negava o vínculo empregatício entre os
integrantes da cooperativa, a inserção do parágrafo único no artigo 442 destruiu as
possibilidades legais de exigência de direitos trabalhistas para com as empresas tomadoras de
serviço.
Com tal advento legal, ao utilizar os serviços de uma cooperativa de trabalho, a
empresa capitalista tornou-se desobrigada da responsabilidade de pagamento de direitos
trabalhistas para com os cooperados. Abriu-se, portanto, uma vereda institucional e
juridicamente legal para legitimar práticas de terceirização em que empresas capitalistas
fazem uso de uma força de trabalho menos custosa, bastando apenas que o trabalhador se
apresente como cooperado, negando a possibilidade de vínculo empregatício entre ele e a
cooperativa e entre essa e a empresa tomadora de serviço.
Para tais cooperados, ainda que seja explícita a sua inserção e participação em trabalho
coletivo subordinado às empresas capitalistas, torna-se uma perda de tempo o reclame e a
exigência de direitos trabalhistas. Como constatou Tavares (2004, p. 72), foi justamente “para
evitar esse tipo de reivindicação trabalhista” que se criou a “Lei nº 8.949/94, que trata da não-
existência de vínculo empregatício entre cooperativa e cooperado e empresa tomadora de seus
serviços, através de cooperativa”. No entendimento da autora, ao lado da Lei de 1998 que
estabelece o Contrato de Trabalho Temporário e do Projeto de Lei 5.843, de 2001, que
modifica o artigo 618 da CLT, a Lei das Cooperativas de 1994, se insere num conjunto de
reformas jurídicas
157
que, “ao invés de proteger o trabalhador, oferecem ao capital um aparato
157
Não é recente, no Brasil, o processo de implementação de reformas trabalhistas voltadas para a destruição de
conquistas dos trabalhadores, objetivando aperfeiçoar a subordinação e exploração do trabalho pelo capital.
Dentre as principais reformas jurídicas, podemos destacar: a Lei do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço) de 1966, que substituiu a estabilidade pelo sistema de indenização baseada em depósitos mensais em
conta individualizada; a Lei 6.019 de 1974 que permitiu a criação de empresas de trabalho temporário que
isentam o pagamento de direitos trabalhistas por um prazo de três meses; a autorização, na Constituição Federal
de 1988, do uso de acordos coletivos para permitir a redução salarial; a súmula 331 do TST que, em 1994,
ampliou as possibilidades de terceirização, uma vez que negou a indexação dos salários, que passaram a ser
objeto de livre negociação; no mesmo ano, como afirmado, a inserção do parágrafo único no artigo 492 da
CLT que nega o vínculo empregatício entre trabalhador e empresa, desde que aquele se apresente como
cooperado; a portaria 865 do MT que, em 1995, desautorizou que fiscais autuem empresas que descumpriram
convenções coletivas de trabalho (portaria revogada durante o Governo Lula após várias pressões sociais); a
negação por parte de Fernando Henrique Cardoso da Convenção 158 da OIT, que havia sido ratificada por
Itamar Franco, que permitia que a empresa dispensasse um empregado caso houvesse razão socialmente
justificada; modificação na Lei 9.300, em 1996, retirando despesas com moradia e alimentação do valor sobre a
rescisão do trabalho rural; Lei 9.491 de 1997 que permitiu a utilização de recursos do FGTS para os processos
de privatização; Lei 9.601 de 1998 que estabeleceu regras do banco de horas e que desobrigou o empregador do
pagamento do excesso de horas durante o prazo de um ano, praticamente evitando o pagamento de horas extras;
foi instituída, no mesmo ano, a Lei de Trabalho a Tempo Parcial, através do artigo 59 da CLT; Lei 9.608 de 18
de janeiro de 1998 que regulou o trabalho voluntário, caracterizando-o legalmente como serviço voluntário de
atividade não remunerada que não gera vínculo empregatício nem obrigação de natureza trabalhista ou
previdenciária; MP 1.878 de 1999 que permitiu o trabalho no comércio aos domingos sem necessidade de
negociação coletiva; Lei 10.243 que desconsiderou despesas referentes à educação, transporte, assistência
157
jurídico capaz de legalizar as relações fraudulentas e impor uma redobrada submissão do
trabalho ao capital” (IDEM, 25). A partir da nova lei do cooperativismo, as relações
contratuais entre cooperados e empresários, ainda que apresentassem um caráter
extremamente desigual e retrógrado, tornaram-se juridicamente legais e, assim, negaram a
adjetivação de fraudulenta.
Ainda que possa restringir uma atuação mais qualificada dentro do processo de
trabalho, a substituição de mão-de-obra interna das empresas capitalistas por trabalhadores
integrantes de cooperativas representa um movimento ascendente dentro do processo de
reestruturação produtiva no Brasil. O barateamento da força de trabalho marcado
especialmente pela inexistência de direitos trabalhistas se apresenta para o capitalista como
uma oferta bastante sedutora que extrapola inclusive as vantagens da terceirização tradicional.
Isso ocorre porque, além de desonerar “a empresa dos custos do assalariamento direto,
enxugando a base produtiva e mantendo o uso do trabalho vivo sob bases mais escusas de
exploração”, o contrato com cooperativas de trabalho é mais vantajoso “do que a contratação
de empresa terceirizada, porque se rege por legislação civil, desobstruindo a relação de
sentido trabalhista” (BARBOSA, 2007, p. 219). O emprego da força de trabalho proveniente
de cooperados não representa somente uma possibilidade legal, mas uma vantagem a ser
utilizada pelos capitalistas no incremento das taxas de lucros.
Há, entretanto, quem afirme que tal vantagem não se circunscreve apenas aos donos do
capital, mas envolve também os trabalhadores cooperados que vendem sua força de trabalho.
Com o título de “Cooperativa de trabalho: é assim que se faz
158
”, Almeida (2000) apresenta
um manual que enaltece que, se por um lado, poderiam ser apontadas as seguintes vantagens
para os empresários que utilizam trabalho cooperado:
a) O cooperado não é um funcionário do Tomador de Serviços, pois se enquadra na
categoria de AUTÔNOMO, não tendo nenhum vínculo empregatício, nem com o
cliente e nem com a Cooperativa; b) O custo financeiro, em relação a um
funcionário, é infinitamente menor; c) Não existem ‘questões trabalhistas’, uma vez
médica ou previdência privada como utilidades salariais necessárias de serem concedidas pelo empregador;
proposta de alteração do artigo 618 da CLT, estabelecendo que o direito negociado prevaleça sobre o legislado; o
então Ministro do Trabalho, Jacques Wagner, propôs em 2003 o fim da multa do FGTS; Lei 11.101 de 2005,
conhecida como lei de falências, que limitou o privilégio do crédito trabalhista a 150 salários mínimos e, uma
vez ultrapassado esse valor, os banqueiros passaram a serem credores mais privilegiados do que os
trabalhadores. Além disso, caso a empresa seja declarada em processo de recuperação judicial, os proprietários
tiveram a obrigação de pagamento dos trabalhadores limitada a apenas 30 dias de salários atrasados restringindo-
os a uma quantia de 5 salários mínimos e, quando ocorre a venda da empresa, o novo proprietário ficou isento da
responsabilidade sobre os débitos relacionados com os direitos dos trabalhadores antigos; implementação em
2006 do Estatuto da Micro e Pequena empresa, que dispensou controle de freqüência de horários e a necessidade
de vinculação do menor aprendiz a uma instituição de ensino; Portaria 42 do MT de 2007 que permitiu a redução
do intervalo da intra-jornada mediante negociação coletiva. (PALMEIRA SOBRINHO, 1998; 2008).
158
Citado por Tavares (2004, p. 159-160, n. 18).
158
que o cooperado não é empregado, ficando, possíveis contendas entre este e a
Cooperativa, para a Justiça Cível’ (ALMEIDA, 2000, M-7/068).
Por outro lado, em relação às vantagens dos trabalhadores cooperados, poder-se-ia atribuir as
seguintes vantagens, iniciando pelo fato de que ele
é um dos donos da Cooperativa. É o patrão de si mesmo. Mensalmente percebe o
título de remuneração da produção – que substitui o salário da empresa – um
percentual na ordem de 24,66%, além da sua remuneração normal. [...] Além disso,
no final do ano, quando realizado o Balanço da Cooperativa, 85% da sobra
verificada, será rateada pelos cooperados que efetivamente trabalharam no decorrer
do ano, proporcional ao período trabalhado (IDEM, M-7/076).
Diferentemente dessa compreensão sobre as relações de trabalho entre cooperados e
empresas capitalistas apresentada pelo autor, em que existiria um mutualismo entre os
interessados, a realidade das cooperativas de trabalho expressa uma função social de
retrocesso das conquistas trabalhistas. Em pesquisa realizada em cidades do Ceará, no interior
do Nordeste brasileiro, junto a trabalhadores cooperados empregados em indústrias de
confecção, Moreira (1997) comprovou empiricamente a inexistência de uma relação
mutualista entre seus entrevistados e os empresários, demarcando uma ambivalência de
interesses. Para o pólo mais forte dessa relação, as vantagens do trabalho cooperado
empregado na indústria de confecção são explícitas, pois se relacionam diretamente com a
diminuição do custo de mão-de-obra. Como afirmou o entrevistado: “a vantagem das
cooperativas é a redução dos custos, visto que a empresa não precisa pagar encargos sociais
aos cooperados”, e, se “os custos com os encargos sociais são muito altos e aumentam
substancialmente o preço do produto. Com as cooperativas é diferente. Nossos custos são
muito baixos” (IDEM, p. 61).
Do lado dos trabalhadores cooperados, não existem razões para elogiar a relação
contratual a que estão submetidos, uma vez que
Os membros das cooperativas de confecções trabalham no mínimo oito horas por
dia, com um período de uma hora de descanso para o almoço, e um intervalo de 10
minutos pela manhã e à tarde. Na rotina diária das cooperativas de confecções, as
entrevistadas afirmaram que apenas m hora para chegar ao trabalho, mas não para
sair. Elas nunca sabem com certeza a hora que irão para casa no final do dia. Muitas
vezes fazem horas extras para terminar uma ordem de produção. Assim, às vezes,
trabalham até sete ou oito horas da noite. Isto causa problemas, principalmente para
as cooperadas casadas, que m atividades domésticas para fazer todos os dias.
Além disso, as cooperadas têm que trabalhar também aos sábados, quando é
necessário terminar um mero de peças de jeans para a empresa que contrata seus
serviços. Apesar de não serem obrigadas a trabalhar aos sábados, a supervisão
espera que o façam. Entretanto, sentem-se desencorajadas em ter que trabalhar nos
finais de semana, pois precisam organizar suas atividades domésticas, como lavar
roupa, limpar a casa, comprar comida, etc (IDEM, p. 65).
A precarização do trabalho não se encontra apenas no alargamento da jornada de
trabalho dos cooperados, mas fica expressa também nas condições de remuneração, uma vez
159
que não existem elementos que assegurem a regularidade desse atributo. Como relata a autora,
nessa peculiar relação contratual entre trabalhador e empresário, inexistem dispositivos que
protejam a renda dos cooperados, especialmente em caso de parada da produção ocasionada
por falta de peças disponibilizadas pela empresa. Como a alimentação da produção é
responsabilidade da empresa que se utiliza desse mistificado “trabalho autônomo” para
realizar atividades subordinadas, o cooperado torna-se não apenas um apêndice do capital,
mas também um refém da falta de materiais para a manutenção da produção. Tal realidade
retrata um anacronismo de trabalhador autônomo ainda mais subordinado ao capital que os
trabalhadores de empresas tradicionais, uma vez que, além de possuírem uma insignificante
“renda fixa de R$ 40,00 mensais
159
”, nem esse valor é garantido, pois, “quando falta trabalho
várias vezes num determinado mês, eles simplesmente recebem menos porque produzem
menos” (IDEM, p. 72).
A determinação da elevada precariedade dessa relação de trabalho é resultante direto
do nível hierárquico dentro da cadeia produtiva formada pelas relações mercantis das grandes
empresas com seus fornecedores (sejam de produtos ou de mão-de-obra) e, no caso analisado,
com as cooperativas usadas para terceirizar a produção. Como afirma um representante da
“economia solidária”, as “cooperativas de confecção situam-se principalmente no segundo elo
da cadeia”, atuando geralmente como faccionistas subcontratadas “para outras empresas ou
como pequenas empresas de produção, informais, que realizam sua própria comercialização
em mercados marginais” (CRUZ-MOREIRA, 2003, p. 203). Como se situam numa posição
inferior da cadeia produtiva, em que são obtusos os requisitos de tecnologia ou qualificação, a
função econômica das cooperativas de trabalho dentro da cadeia produtiva é prover mão-de-
obra com valor inferior às outras empresas e, dessa forma, diminuir o custo produtivo da
empresa matriz.
Ainda que parte das mudanças tecnológicas e organizacionais que incidiram sobre os
processos de reestruturação produtiva seja relativa ao avanço tecnológico na produção como,
por exemplo, aquelas geradas pelo uso da microeletrônica, alguns níveis da cadeia produtiva
tiveram quase ou nenhuma alteração. No caso da indústria têxtil, as mudanças centrais que
elevaram a produtividade e aumentaram a composição orgânica do capital não incidiram de
forma significativa sobre as etapas manuais do trabalho, como é o caso das atividades de
costura. Nas atividades de costura, a unidade básica de produção permanece “constituída por
uma máquina de costura e um operador (basicamente igual, tanto nas grandes empresas
159
O artigo de Moreira citado resulta de pesquisa de campo finalizada em 1996.
160
industriais, quanto na produção artesanal caseira)”, sendo por esse motivo que se trata ainda
da fase com maior intensidade de trabalho para a mão-de-obra
160
(IDEM, p. 196).
Como vimos no início do capítulo 01, ao analisar brevemente algumas determinações
advindas do processo de reestruturação produtiva, não obstante alguns avanços tecnológicos
instaurados em empresas capitalistas, as condições de trabalho precário não apenas
permaneceu como uma realidade para um grande número de trabalhadores, como se ampliou
em vários casos. A tecnologia dentro das empresas capitalistas possui uma função social
definida que inviabiliza uma utopia de melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores e
aponta para um imperativo claro: a busca por maior extração de mais-valia. Por isso que, no
caso da cadeia produtiva da indústria têxtil, não somente as cooperativas de trabalho se
apresentam subordinadas aos determinantes do capital, como os trabalhadores cooperados são
utilizados para baratear os custos sobre a mão-de-obra. Para tanto, a tecnologia instalada na
empresa matriz é essencial para controlar e intensificar a produção nos elos mais precários da
cadeia produtiva
161
.
Ainda que não realizem uma análise mais fundamentada sobre as causas e as
conseqüências dessa relação de trabalho que subordina as cooperativas de trabalho às
empresas capitalistas, tal fato não deixa de ser constatado por defensores da “economia
solidária”, que apontaram para essa realidade inconteste em que o uso de cooperativas de
trabalho serviu como forma de terceirização e precarização do trabalho. No entanto, tal atitude
não deve ser identificada como uma maneira de expor críticas às experiências da “economia
solidária”, mas, antes, como forma de resguardar a validade desse projeto contra
empreendimentos que se desviaram historicamente, subordinando-se aos imperativos de
empresas capitalistas. Buscando distinguir essas experiências equivocadas de autênticos
empreendimentos da economia solidária”, representantes desse projeto alegam que: a
“terceirização por meio da formação de cooperativas de trabalho que não respeitam a
autonomia dos trabalhadores e buscam apenas a legalização da sonegação dos encargos
160
Como afirma a autora, os trabalhadores cooperativos limitam-se aos níveis mais baixos da cadeia produtiva,
não chegando sequer a participar de atividades de corte das peças: “Quando têm maior capacidade chegam até a
embalagem dos produtos, não obstante as cooperativas de costura quase nunca realizam sequer o corte dos
tecidos ou o desenho original das peças” (CRUZ-MOREIRA, 2003, p. 212).
161
Alguns autores da “economia solidária” apresentam um entendimento bem diverso desse, alegando que a
tecnologia, ainda que sob o domínio do capital, serviria diretamente para beneficiar o trabalhador: “Milhões de
postos de trabalho estão sendo inexoravelmente eliminados. Entretanto, é sempre oportuno ponderar que o
avanço tecnológico, em tese, beneficia o trabalhador, pois alem do conforto que propicia, o libera para o trabalho
criativo e também para o ócio (SINGER, 1998)” (SOUZA, 2003, p. 28). Diferentemente dessa perspectiva,
entendemos que, como no sistema capitalista o desenvolvimento tecnológico é determinado pela lógica capital,
este é realizado às custas de uma classe de homens e, assim, não pode generalizar seus avanços para toda a
sociedade.
161
sociais está precarizando as relações de trabalho e infringindo os princípios cooperativistas”
(MAGALHÃES; TODESCHINI, 2003, p. 136).
Como não respeitariam a autonomia dos trabalhadores e buscariam somente a
abdicação dos direitos trabalhistas, essa forma de terceirização expressaria uma inflexão
histórica contra os princípios cooperativistas. É para evitar tal desvio histórico dos princípios
cooperativistas que o principal representante da “economia solidária” no Brasil apela para
uma distinção essencial entre as verdadeiras cooperativas de trabalho e as falsas, pois tal
separação tornar-sei-ia “cada vez mais necessária para impedir que as cooperativas de
trabalho sejam confundidas – como estão sendo – com as falsas cooperativas, formadas
unicamente para retirar de assalariados os direitos que as leis trabalhistas lhes asseguram”
(SINGER, 2003a, p. 130 – 131).
A importância dessa distinção categorial pode ser vista como forma de assegurar uma
apresentação mais progressista para a “economia solidária”, uma vez que, ao passo que se
estaria propondo uma crítica a organizações usadas funcionalmente como oferta de trabalho
precário, estar-se-ia erguendo um invólucro que purificaria as “autênticas experiências
solidárias”. Para tanto, seria preciso advertir para a situação de eminente risco em que se
encontram algumas cooperativas de trabalho que, a qualquer deslize, poderão ser expulsas da
“economia solidária”. Singer (2003, p. 23) realiza essa admoestação alertando para o fato de
que algumas cooperativas de trabalho estão se aproximando “perigosamente das empreiteiras
de mão-de-obra e das falsas cooperativas, montadas por firmas capitalistas que visam explorar
o trabalho dos cooperadores sem lhes pagar as contribuições trabalhistas legais”.
Ainda que essa fronteira proposta para distinguir as “autênticas experiências de
economia solidária” das falsas cooperativas seja bastante tênue, o que impossibilita uma
fiscalização eficiente dessas organizações (cf. Cunha, 2003, p. 66), tal distinção torna-se
necessária para uma maior aceitação social da “economia solidária”. Ao ser vista com
condições similares de trabalho de uma cooperativa de trabalho que funciona como depósito
de mão-de-obra precária a serviço do capital, as qualidades alegadas para a “economia
solidária” de serem não apenas supostamente transformadoras, mas também progressistas,
cairiam por terra. Assegurar essa distinção, ainda que seja apenas em termos semânticos,
representa uma forma de sobrevivência da “economia solidária” dentro de vários corações e
mentes e, poderíamos complementar, mais corações do que mentes. Apontar desvios
históricos que produziram as falsas cooperativas não representa apenas uma crítica contra
formas organizativas que agrupam trabalho precário, mas uma atitude necessária para
conservar uma certa imagem da “economia solidária”.
162
Nesse sentido, tornou-se eminente para os representantes da “economia solidária”
demonstrar, inclusive, os equívocos da lei do cooperativismo, visto que permitiu o
crescimento de cooperativas de trabalho e, assim, sua subordinação aos imperativos do
capital:
a lei que estabeleceu a não existência de vínculo empregatício entre as cooperativas
e seus cooperados, possibilitou a expansão das cooperativas de trabalho como a
forma mais eficiente de terceirizar a gestão da mão-de-obra. Assim surgiu um
grande número de falsas cooperativas que não são organizadas por iniciativa dos
próprios trabalhadores, mas são controladas segundo os interesses dos
empregadores e dos intermediários de mão-de-obra (muitas destas cooperativas
estão sendo organizadas por antigos gerentes das empresas contratantes). A criação
das cooperativas de trabalho se tornou uma forma legal de sonegar impostos e
encargos e reduzir direitos trabalhistas (MAGALHÃES; TODESCHINI, 2003, p.
143).
No entanto, os representantes da “economia solidária” não estão sozinhos nessa luta
pela defesa da pureza desse projeto social, pois estão acompanhados de personalidades e
organizações bastante atuantes nas relações econômicas no Brasil. Em texto que busca
analisar as principais relações contratuais atuais no Brasil, o presidente da CNI (Confederação
Nacional da Indústria), trata das organizações cooperativas, afirmando que, quando
“respeitam as normas”, essas organizações têm se apresentado “como de grande utilidade para
os cooperados, a sociedade, e, principalmente, para os tomadores de serviços” e, dessa forma,
“a solução cooperativa permite uma grande autonomia para os contratados e contratantes,
garantida pela CLT” (PEREIRA, 2001, p. 05)
162
. Em outras palavras, as cooperativas
representariam a panacéia para os males do Brasil, pois beneficiariam não os cooperados,
mas a sociedade e, principalmente, os empresários que utilizam seus serviços, preservando a
autonomia de todos, inclusive da CLT.
Por outro lado, ainda que esse remédio não conseguisse sanar todos os males da nação
brasileira, não se poderia negar que seu advento melhoraria significativamente a vida de
várias pessoas. Se o presidente da CNI destaca os benefícios destinados aos tomadores de
serviços, ou seja, para os empresários, o presidente da SENAES enaltece as qualidades
curativas desse emplasto para os trabalhadores. Como afirma Singer (2003, p. 18), “mesmo
quando estas continuam deixando muito a desejar”, as organizações da “economia solidária”
melhoram “para o cooperador as condições de trabalho”, visto que, “afinal de contas, assumir
o poder de participar das decisões e portanto de estar informado a respeito do que acontece e
que opções existem é um passo importante para a redenção humana do trabalhador”. Tal
posição é comungada por outros representantes da “economia solidária”, como é o caso de
162
Citado por Barbosa (2007, p. 218 – 219).
163
Rufino (2003, p. 258), para quem seria indiscutível as vantagens dessas organizações para os
trabalhadores, visto que “o trabalho em empresas autogestionárias, em princípio, mostra-se
mais útil e menos penoso do ponto de vista do trabalhador”.
Estamos diante, portanto, de um novo dilema presente na “economia solidária”,
expresso na conjectura de que, ainda que nas cooperativas de trabalho existentes no Brasil
estejam presentes formas de trabalho baseadas numa maior exploração e precarização, essa
realidade não seria, segundo os representantes desse projeto, a mesma das organizações
solidária autênticas. Sob esse prisma, mesmo possuindo limitações a serem consideradas, as
experiências de “economia solidária” não somente apresentariam melhores condições de
trabalho que as empresas capitalistas, como se configurariam como espaços propícios para a
autonomia dos trabalhadores.
Para testar a validade dessa hipótese analítica é preciso recorrer a dados que
demonstrem as características essenciais das condições de trabalho dentro das organizações da
“economia solidária” no Brasil, e tais informações encontram-se disponíveis apenas em um
lugar: no banco de dados da SENAES. Por isso que apresentamos, a seguir, as tabelas 04, 05 e
06, construídas a partir de dados dessa instituição, que demonstram a situação financeira
desses empreendimentos, a remuneração e o acesso a direitos trabalhistas dos integrantes da
“economia solidária”.
Conforme demonstra a tabela 04, do total dos empreendimentos de “economia
solidária” presentes no Brasil e que foram pesquisados da SENAES, mais da metade não
consegue gerar uma remuneração financeira capaz de gerar sobras
163
, e quase um quinto não
consegue sequer pagar as próprias despesas. Como grande parte desses empreendimentos não
consegue gerar sobras financeiras ao final das transações econômicas, a remuneração dos
integrantes da “economia solidária” se limita a um pagamento básico, sem conseguir integrar
alguns fundos sociais, como aqueles destinados à previdência ou educação, formação e
segurança no trabalho. Tal situação torna-se ainda mais alarmante no caso dos outros
empreendimentos que estão em situação ainda pior, pois não conseguem sequer pagar as
despesas.
Diante desses dados, podemos concluir que a situação financeira das organizações de
“economia solidária” é bastante delicada, incidindo diretamente nas condições de trabalho de
163
Se a soma da quantidade de empreendimentos de “economia solidária” que não conseguiram gerar nenhuma
sobra com aqueles que sequer conseguiram pagar as despesas resulta numa porcentagem de 48,95%, quando
consideramos apenas aqueles em que se aplica essa regra (retirando-se a quantidade de empreendimentos que se
enquadram em “não se aplica”), essa porcentagem se eleva para 56,11%. O segundo resultado serve para
demonstrar ainda mais o quão delicada é a situação financeira dos empreendimentos de “economia solidária”.
164
seus integrantes. Não obstante, quando se observam os dados expressos na tabela 05,
apreende-se que a situação de precariedade do trabalho dentro dessas organizações é ainda
mais elevada.
Tabela 04: Situação financeira dos empreendimentos de “economia solidária”
Descrição TOTAL %
% Total
(menos não se aplica)
Pagar as despesas e ter uma sobra 8.324
38,29% 43,89%
Pagar as despesas e não ter nenhuma sobra 7.383
33,96% 38,93%
Não deu para pagar as despesas 3.259
14,99% 17,18%
Não se aplica 2.776
12,77% -
Total 21.742
100,00% 100,00%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
Como demonstra a tabela 05, dos integrantes dos empreendimentos da “economia
solidária” que informaram renda, cerca de um quinto não recebe nada, aproximadamente
metade recebe até 1/2 salário mínimo e quase 70% recebe uma remuneração máxima de 1
salário mínimo. Vale salientar ainda que, quando se soma essa porcentagem com o fato de
que, conforme explicitado na tabela anterior, quase um quinto dos empreendimentos sequer
consegue pagar as despesas econômicas, encontra-se uma porcentagem extremamente elevada
de trabalhadores que recebem uma remuneração muito baixa.
Tabela 05: Remuneração dos integrantes da “economia solidária”
Faixa salarial
Quantidade de
empreendimentos
%
% apenas dos que
informaram
164
0 2.093
9,58% 16,14%
Até ½ salário mínimo 4.117
18,83% 31,75%
1/2 a 1 salário mínimo 2.657
12,16% 20,49%
1 a 2 salários mínimos 2.812
12,86% 21,69%
2 a 5 salários mínimos 1.043
4,77% 8,04%
Maiores que 5 salários mínimos 243
1,11% 1,87%
Não informou 8.894
40,69% 0,00%
Total 21.859
100,00% 100,00%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
Diante de tais dados, torna-se bem difícil defender a hipótese de que os integrantes da
“economia solidária” possuem condições melhores de trabalho que aqueles que pertencem às
164
Os dados apresentados na tabela da Senaes confundem uma vez que pouco mais da metade dos entrevistados
informou a remuneração. Para entender melhor, propusemos uma nova coluna, apenas com as pessoas que
informaram a remuneração.
165
empresas capitalistas. No fim das contas, quando se analisam os aspectos econômicos, a
hipótese dos representantes da “economia solidária” torna-se desmistificada apenas com o
recurso aos dados oriundos de uma pesquisa de sua própria secretaria nacional.
No entanto, ainda que os dados estatísticos da SENAES invalidem a conjectura de que
a “economia solidária” representaria um progresso nas relações de trabalho, torna-se
necessário que os representantes desse projeto hipostasiem essa assertiva para manter o apelo
social. Nesse sentido, como afirma Barbosa (2007, p. 124), apesar das relações precárias de
trabalho dificultarem a mobilidade socioeconômica das cooperativas de qualquer segmento”,
é importante veicular uma “narrativa das virtudes do empreendedorismo e do auto-emprego”
para fornecer “coerência e convicção a essa insegurança social, transmutada na liberal
independência e liberdade”. Sob o manto da autonomia e da liberdade dos trabalhadores,
escondem-se formas de trabalho com níveis mais elevados de exploração e precarização.
Se os dados das tabelas anteriores apontam para a inferioridade dos níveis de
remuneração presentes nos empreendimentos da “economia solidária”, as informações
contidas na tabela 06 são palmares no que diz respeito à existência ou não de direitos
trabalhistas nessas organizações. E, como se observa também nesse quesito, os integrantes da
“economia solidária” encontram-se numa situação extremante delicada. Do total dos
entrevistados, apenas pouco mais de 6% possuem algum acesso a equipamentos de segurança;
menos de 4% possuem descanso semanal remunerado; pouco mais de 3% possuem férias
remuneradas; menos que 3% recebem gratificação natalina; em aproximadamente 1% dos
empreendimentos existe comissão de prevenção de acidentes de trabalho; e o dado mais
alarmante: quase três quartos dos entrevistados afirmaram que não recebem nenhum benefício
trabalhista. Tais dados demonstram o grau de precariedade das condições de trabalho em que
se encontram os integrantes da “economia solidária”.
Ainda que tal realidade seja indiscutível, até porque os dados apresentados originam-
se de suas próprias pesquisas, alguns representantes da economia solidária” buscam
apresentar justificativas para preservar esse projeto social. Para justificar a negação das horas
extras, costuma-se apelar para dois fatores: que se trata de uma situação inicial e que tal
precariedade é essencial para o crescimento do conjunto dos trabalhadores. Tal perspectiva
aparece nas palavras de Pedrini (2003, p. 33 – 34), para quem o fato de que a hora extra nunca
ter sido remunerada é derivada do interesses dos próprios integrantes, “pois, segundo os
sócios, é uma necessidade emergente da firma, que gera crescimento para o conjunto”. Além
disso, a autora propõe um pensamento tautológico em que, sempre que a situação não for tão
precária, todos os trabalhadores terão direitos a um trabalho melhor: “todos os sócios têm um
166
descanso anual remunerado de trinta dias e um décimo terceiro pró-labore, quando possível”
(IDEM, p. 34).
Tabela 06: Direitos trabalhistas dos integrantes da “economia solidária”
Tipo de benefício TOTAL % Ordem 01 % Total
165
Não existem 12.230
64,27% 72,91%
Qualificação social e profissional 3.015
15,84% 17,97%
Equipamentos de segurança 1.091
5,73% 6,50%
Outro. Qual? 844
4,44% 5,03%
Descanso semanal remunerado 615
3,23% 3,67%
Férias remuneradas 535
2,81% 3,19%
Gratificação natalina 480
2,52% 2,86%
Comissão de prevenção de acidentes no trabalho 219
1,15% 1,31%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
Sobre a importância da comissão de prevenção de acidentes no trabalho, alguns
autores apresentam justificativas mais diretas, alegando simplesmente a isenção legal desse
elemento dentro das organizações de economia solidária”. Como, de acordo com a Norma
Regulamentadora 05 de 1978, a lei restringe a obrigação dessa comissão a empresas com mais
de 50 trabalhadores e somente quando tiverem vínculos empregatícios, os empreendimentos
de “economia solidária” não precisam se preocupar com tal atributo, ainda que ele implique
diretamente em condições negativas de trabalho. Segundo Holzman (2003, p. 62), isso
acontece porque
A NR-5 (Norma Regulamentadora/5), de 1978, que dispõe sobre a organização,
funcionamento e atribuições da Cipa, limita sua obrigatoriedade a empresas
privadas e públicas e aos órgãos de administração pública direta ou indireta, nos
quais sejam empregadas mais de cinqüenta pessoas, em regime celetista (Álvaro
Zócchio. Cipa: histórico, organização, atuação. São Paulo: Atlas, 1980). Não sendo
esta a condição dos trabalhadores das cooperativas, não há imposição legal de
organizar e manter uma Cipa.
Não obstante, alguns representantes da “economia solidária” ainda conseguem
providenciar justificativas mais impressionantes para a situação de precariedade em que se
encontram os integrantes desse projeto
166
. Além da inexistência de remuneração de horas
165
Vale ressaltar que, nos dados apresentados pela SENAES (2007) que serviram de base para a construção da
tabela 05, os entrevistados poderiam indicar até seis indicadores (15.416 entrevistados deram uma resposta, 817
entrevistados deram duas, 314 deram três, 134 deram quatro, 67 deram cinco, 23 deram seis e 4 deram sete), para
encontrar o valor da porcentagem total é preciso fazer a soma da quantidade de entrevistados e não das respostas,
ou seja 16.775 e não 19.029.
166
A precariedade do trabalho em organizações semelhantes a “economia solidária” é fato historicamente
comprovado e, por isso, essa constatação não possui ineditismo. A novidade trazida por autores da “economia
solidária” refere-se à mistificação dessa precariedade ou ao encaminhamento de justificativas para tal realidade.
Como consta no Dossiê Wurthon, publicado em 1853 e citado por Ranciére (1988, p. 319), “Nessa oficina, onde
cada um trabalha para si próprio, habitualmente a diária do trabalho por peças não ultrapassa 2,45 francos, ao
167
extras, de férias e descanso semanal, ou de comissões de segurança necessárias para evitar
acidentes de trabalho, outro fator determinante para a precariedade do trabalho dentro da
“economia solidária” é a falta de direitos trabalhistas básicos que determinam o futuro da vida
do trabalhador, como sua aposentadoria. Tratada como qualidade proveniente de uma falta de
consciência social, ou de uma incipiente subjetividade solidária, a carteira de trabalho é
apresentada por representantes da “economia solidária”, não apenas como um documento
desnecessário, mas como resquício de uma cultura de assalariado:
As pessoas que constituem uma cooperativa normalmente sentem falta ou reclamam
de certas normas legais no mundo do trabalho tradicional, patrão x empregados
essa cultura da carteira de trabalho assinada, a cultura da subalternidade e as
conquistas e os direitos trabalhistas não lhe saem da cabeça, em coisas como: fundo
de garantia, décimo terceiro salário, direito a férias etc. A cooperativa não lhe paga
esse direito. Por que não paga? Porque a cooperativa é dele, e, portanto, ele é o dono
do negócio (VEIGA; FONSECA, 2001, p. 83).
De maneira análoga, outro representante da “economia solidária” não apenas alega que
a necessidade de lutar pela manutenção das conquistas históricas da classe trabalhadora
representa uma atitude antiquada e sem validade, como defende uma ação inovadora que,
baseando-se em novos sentidos e significados subjetivos, poderiam favorecer bem mais os
trabalhadores:
Diante desse processo de transformação social encontramos basicamente dois tipos
de ação: uma ação defensiva ou restitutiva que procura lutar pela manutenção das
conquistas históricas das classes trabalhadoras, tentando proteger dessas mudanças a
relação de emprego e as instituições a ela ligadas; uma ação propositiva ou criativa
que, frente a essa situação adversa, tenta se utilizar de mecanismos que emergem
desse processo de mudança, mas para conferir a eles novos sentidos e significados
que possam favorecer os seus sujeitos (PARRA, 2003, p. 90 – 91).
Sob essa perspectiva, depoimentos de trabalhadores que se sentem defraudados pelo
fato de não possuírem carteira de trabalho devem ser tratados como desvios de conduta e
encaminhados para um tratamento baseado nessa anacrônica psicologia solidária. Contudo, tal
atitude não contraria apenas analistas mais críticos sobre esse projeto, mas é retroativa
também a pesquisas de autores simpáticos à “economia solidária”. Como relatam Nardi e
Yates (2005), os jovens integrantes das organizações de “economia solidária” entrevistados
possuem uma distinta visão consensual acerca de suas experiências de trabalho: trata-se de um
emprego temporário que será substituído instantaneamente no momento em que se consiga
uma melhor oportunidade no mercado formal.
passo que, nos estabelecimentos dos patrões, esses mesmos operários ganhavam de quatro a cinco francos. É
preciso concluir, fato estranho, que o operário livre, trabalhando para si, produz menos do que para um patrão
que o faz sentir sua autoridade”. Num relatório de delegados de trabalho de 1862 (idem, p. 326), demonstrou-se
que operários de uma associação “praticam a exploração numa escala maior do que em qualquer outro lugar”.
Além disso, o autor também identificou a existência de relações de exploração no interior de organizações desse
tipo: “a associação não pode produzir lucros reais a não ser explorando auxiliares” (IDEM, p. 327).
168
Conforme consta nos depoimentos colhidos pelos autores, ainda que os entrevistados
apresentem uma visão crítica sobre a sociedade capitalista, negando as opções liberais como
capazes de solucionar os problemas sociais, a “economia solidária” não se apresenta para eles
como melhoria das condições de trabalho, pois sequer “é possível ter uma renda satisfatória
para sustentar suas necessidades dentro dos movimentos em que se insere” (IDEM, p. 101).
Além disso, no relato dos jovens que integram esse projeto social, percebe-se que eles não
apenas não visualizam esse projeto social como capaz de lhes fornecer uma segurança
econômica, mas essa realidade limita seus próprios anseios e desejos sobre a sociedade a
questões imediatas e individuais, pois nessas organizações, “a ambição dos jovens centra-se
no sonho de conseguir uma posição no mercado formal que lhes permita ter segurança”
(IDEM).
Assim, no lugar de estimular uma consciência solidária que projete novos horizontes e
possibilidades para além do modo de produção capitalista, as determinações advindas dessas
condições precárias de trabalho dentro da “economia solidária” condicionam um sentimento
que deprecia o potencial revolucionário dos trabalhadores. Ainda que desconsideremos
algumas críticas a termos mistificadores da “economia solidária” analisados no capítulo
anterior, como a conjectura de uma ética no espaço de produção capitalista, torna-se
impossível aceitar, diante desses relatos, a promessa de uma subjetividade voltada para a
emancipação humana gerada a partir das condições de trabalho nessas organizações. Para que
a hipótese da emancipação humana dentro da “economia solidária” torne-se minimamente
verossímil, é preciso que seus representantes utilizem explicações baseadas exclusivamente
em recursos metafísicos, desconsiderando todas as relações entre a consciência social e a
existência social.
Quando se descartam tais posturas mistificadoras da realidade e se busca apreender as
determinações que consubstanciam o trabalho dentro da “economia solidária”, constatam-se
imediatamente várias semelhanças entre essas organizações e as cooperativas de trabalho tão
criticadas por esses autores. Tal similitude fica explícita quando se comparam os dados
apresentados nas tabelas anteriores e os depoimentos de integrantes da economia solidária”
sobre a segurança no trabalho, com relatos de trabalhadores que fazem parte de cooperativas
de trabalho. A situação dessas duas organizações se assemelha no fato de que, para ambos os
integrantes, as condições de trabalho são de precariedade elevada e, como não existem
direitos trabalhistas, ambos reclamam da insegurança no trabalho.
Como relata Moreira (1997, p. 68), como não possui carteira assinada, a integrante da
cooperativa de trabalho afirma que se sente “muito insegura” pela possibilidade de que,
169
quando “acontecer um acidente aqui, a cooperada vai para casa” sem a certeza de cobertura,
pois “se a cooperativa resolver pagar, tudo bem. Mas a gente não tem certeza de nada, mas na
lei a gente tem direito de receber o nosso dinheiro, se a gente ficar doente. Isto eu tenho
certeza”. Essa insegurança advinda da precariedade do trabalho incide também na vida dos
integrantes da “economia solidária”, sendo por essa razão que a sua vinculação a esses
empreendimentos “é vista como temporária e o emprego é considerado um quebra-galho para
diminuir sua condição precária, mas que será substituído prontamente caso surja uma
oportunidade de emprego melhor remunerado e estável” (NARDI; YATES, 2005, p. 101).
As semelhanças entre essas duas formas de organizações não se limitam aos dados
estatísticos ou aos depoimentos dos seus integrantes, mas se encontram também nas
justificativas alegadas para tal realidade. Se representantes da “economia solidária” justificam
essa situação alegando que se tratam de vestígios de uma retrógrada cultura de assalariado
presente na subjetividade dos cooperados que ainda não conseguiram superar a falta dos
direitos trabalhistas e não se percebem como “donos do negócio” (VEIGA; FONSECA, 2001,
p. 83), nas cooperativas de trabalho a justificativa não é muito diferente, como mostram os
seguintes depoimentos relatados por Moreira (1997, p. 69): “em uma reunião eles disseram
para a gente que eles não assinam a nossa carteira porque esta cooperativa é da gente. s
estamos pagando as máquinas de costura agora, mas no futuro este negócio será nosso”, ou
que “quando a gente fala sobre os nossos direitos, o pessoal da Kao Lin diz que isto não é
uma empresa particular, por isso nós não temos nenhum direito”.
Como ambas as organizações são regulamentas por uma legislação que permite a
existência dessas relações contratuais baseadas em precárias condições de trabalho, não
apenas as cooperativas de trabalho, mas também os empreendimentos da “economia
solidária” passam a ser alvos de interesse direto de empresas capitalistas. Ainda que se
vislumbrem características que diferenciem esses dois empreendimentos e não descartamos
a sua existência essas distinções importam muito pouco para as empresas tomadoras de
serviço. Além disso, mesmo que não se apreendam de imediato tais relações de subordinação
dessas organizações às empresas capitalistas
167
, como precisam produzir mercadorias e vendê-
las, essas organizações estão submetidas às mesmas regras do mercado capitalista.
Nesse sentido, como veremos adiante, ainda que não seja entendida dessa forma pelos
seus representantes, a elevada precariedade do trabalho presente nos empreendimentos de
167
Analisaremos algumas dessas relações entre a “economia solidária” e empresas capitalistas mais à frente ao
tratar da subordinação do trabalho ao capital, e no próximo capítulo, ao abordar a vinculação ao mercado
capitalista.
170
“economia solidária” permanecerá como uma determinação imutável enquanto não se
conseguir um significativo incremento da produtividade. Como o valor das mercadorias é
determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário e não pela subjetividade dos
integrantes dessas organizações e, como existe nessas experiências uma desvantagem
produtiva considerável, o grau de exploração do trabalho (e a quantidade de energia física e
mental despendida no processo de trabalho) será bem mais elevado que a média das empresas
capitalistas. Por isso que, no final das contas, ainda que se fantasiem sentimentos superiores
de solidariedade, as condições materiais de trabalho permanecerão determinando que os
trabalhadores visualizem majoritariamente essa experiência apenas como uma atividade
momentânea, até que se consiga um emprego formal.
Os depoimentos dos integrantes da “economia solidária” expressam bem como essas
determinações do mercado capitalista incidem sobre as condições de trabalho dentro dessas
organizações. Não se trata, portanto, de um caso a parte, mas de um imperativo social que
condiciona todas as organizações econômicas que necessitam do mercado para sobreviver.
Tal conseqüência também pode ser visualizada em empresas capitalistas menores que, por não
alcançarem patamares produtivos similares aos grandes conglomerados e monopólios,
precisam recorrer à força de trabalho amplamente não sindicalizada e retirada da reserva de
pauperizados da parte inferior da sociedade” criando “novos setores de baixa remuneração”
em que “essas pessoas são mais intensamente exploradas e oprimidas do que as empregadas
nos setores mecanizados da produção” (BRAVERMAN, 1987, p. 240).
Ainda que não se proponham a relacionar diretamente com a precariedade do trabalho
dentro dos empreendimentos de “economia solidária”, essa realidade não deixa de ser
constatada também por representantes desse projeto social:
O capital vai em busca do país e também da região interna a ele, à procura da maior
produtividade e do menor custo de produção. Inserem-se nesse processo as questões
de fragilização sindical, da redução de salários, da guerra fiscal entre estados
federativos e das disputas políticas com base em interesses privados e corporativos
dentro do aparato institucional do Estado (SOUZA, 2003, p. 28 – 29).
Como o mercado capitalista é um só para todos os tipos de empreendimentos
econômicos e não se tratam de duas formas de produção isoladas uma das outras, existem
vários elos, ou, nos termos citados por Tavares (2004) vários “fios (in)visíveis da produção
capitalista” que interligam as grandes empresas capitalistas com empreendimentos menores
168
e, dentre esses, com as organizações de “economia solidária”. Para economizar custos, muitas
168
Sobre as formas concretas dessas relações de subordinação entre as microempresas e as grandes empresas, ver
Montaño (2001).
171
vezes as grandes empresas fazem uso de força de trabalho mais precária dessas empresas
menores que, para sobreviver, precisam se subordinar a essas relações contratuais.
No caso da “economia solidária”, tal relação de subordinação entre trabalho e capital é
condicionada por um regimento jurídico que, ainda que não tenha esse propósito ideal
nascente, serve para ampliar as possibilidades de extração de mais trabalho. As determinações
do mercado capitalista refuncionalizam os postulados da idealizada situação entre iguais
defendida pela lei das cooperativas, transformando-a, paradoxalmente, num eficaz marco
regulatório de negação dos direitos trabalhistas. A amplitude dos efeitos dessa
refuncionalização é de tal monta que suspende até os princípios do direito do consumidor.
Além de servir como base legal para a regulação das relações econômicas entre
trabalhadores cooperados e empresas capitalistas, apresentando-se como superior às
determinações de direito trabalhista, a lei cooperativista também funciona como carta magna
para as próprias intermediações de consumo intestinas dessas organizações. Isso ocorre
porque a lei cooperativista restringe-se à autonomia dos interesses dos cooperados dentro
dessas organizações, impossibilitando recursos que evoquem elementos exteriores, como o
Código de Defesa do Consumidor. Tal resultado fica evidenciado no relato realizado por
Cardeal (2003) sobre o caso da cooperativa habitacional dos jornalistas, em que a apelação ao
direito do consumidor tornou-se nula perante a lei do cooperativismo.
Como relata a autora, ainda que tenha se passado quase duas cadas desde a criação
da cooperativa habitacional e que não se tenha alcançado o sucesso do projeto e a conseqüente
entrega das casas aos cooperados, a devolução da quantia investida nessa empreitada
precisaria submeter-se às determinações da lei do cooperativismo. Quando a ex-cooperada
Norma de Carvalho Facchini tentou processar a cooperativa, buscando “exigir na Justiça a
restituição das parcelas pagas, com acréscimo de correção e juros”, a resposta dada pelo
relator do processo foi “que não havia porque invocar-se o Código de Defesa do Consumidor,
pois ‘inexiste relação de consumo’” (CARDEAL, 2003, p. 235). Baseando sua sentença no
Direito Cooperativo, o relator citou o jurista Waldirio Bulgarelli, para quem o direito que rege
“as sociedades cooperativas e suas relações jurídicas” não possui “subordinação a outros
ramos do direito, por ser incompatível a sistemática jurídica das cooperativas com a
orientação e o conteúdo das normas desses ramos do direito” (IDEM).
O final do processo demarcou a antecedência e superioridade da lei do cooperativismo
sobre o código de defesa do consumidor, visto que o relator rejeitou o recurso da ex-
cooperada, encerrando com a afirmação de que a cooperativa não se recusaria
a pagar os
haveres integrais da ex-associada”, mas que esse pagamento deveria acontecer apenas após o
172
“ingresso espontâneo de um substituto, quando será observada a ordem de pedidos de
desistentes, ou indicação por parte da apelante de novo cooperado, quando a restituição seria
de imediato, observando assim as normas estatutárias, lei entre as partes” (IDEM, p. 236). Em
outras palavras, o ressarcimento do investimento realizado pela ex-cooperada aconteceria
apenas com o ingresso de um novo cooperado que aceitasse de forma espontânea as regras da
cooperativa, inclusive a longa demora na construção e entrega da casa prometida.
O que se desconsidera nesses casos citados anteriormente são exatamente as várias
relações (de variados enfoques: econômicas, sociais, políticas, ideológicas etc) que existem
para a além do interior da experiência de “economia solidária”. Existe, portanto, uma
mistificação presente na lei das cooperativas, pois esse documento se baseia numa falsa
premissa, enaltecendo relações entre pessoas iguais e unidas com o mesmo interesse,
desconsiderando o fato e que tais relações perdem sua validade quando inseridas dentro do
mercado. A necessidade de relações econômicas externas às cooperativas desqualifica a
defesa do ato cooperativo, transformando o que seria hipoteticamente um avanço para os
trabalhadores em uma situação concreta de retrocesso. A própria definição do ato cooperativo
como aquelas práticas realizadas “entre as cooperativas e seus associados; entre estes e
aquelas, e pelas cooperativas entre si, quando associadas, para a realização dos seus
objetivos
169
(artigo 79 da Lei 5.764/71), expressa um sentido idealista, pois desconsidera as
relações econômicas externas que condicionam a função social das cooperativas.
No melhor dos casos, toma-se como base para essa lei uma situação ideal em que a
cooperativa não necessitaria de nenhuma relação econômica externa pautada por interesses
individuais. Em outras palavras, a justificativa ingênua seria que essa lei foi criada pensando
num construto cooperativista ideal em que todas as organizações seriam altruístas por
natureza
170
. O que falta nessa fábula é compreender que o processo histórico humano não se
baseia em postulados ideais, mas produz realidades concretas com estruturas sociais que, no
caso brasileiro atual, não possui nada de solidário nas relações mercantis. Como o capital não
possui coração e não se preocupa com esses sentimentos idealistas, a lei do cooperativismo é
169
Citado por Veiga e Fonseca (2001, p. 82).
170
Construto esse que, mesmo no entendimento do principal representante da “economia solidária”, seria
impossível de ser concretizado, pois é certo que, se “toda economia fosse solidária, a sociedade seria muito
menos desigual. Mas, mesmo que as cooperativas cooperassem entre si, inevitavelmente algumas iriam melhor e
outras pior, em função do acaso e das diferenças de habilidades e inclinação das pessoas que as compõem.
Haveria portanto empresas ganhadoras e perdedoras. Suas vantagens e desvantagens teriam de ser
periodicamente igualadas para não se tornarem cumulativas, o que exige um poder estatal que redistribua
dinheiro dos ganhadores aos perdedores, usando para isso impostos e subsídios e/ou crédito” (SINGER, 2002, p.
10).
173
utilizada não a partir desse solo metafísico, mas com um objetivo básico: a busca por maiores
taxas de lucro.
Assim, o fato das cooperativas estarem “isentas de imposto de renda porque são
consideradas uma extensão das atividades do associado, sendo as sobras líquidas distribuídas
proporcionalmente aos associados”, (VEIGA; FONSECA, 2001, p. 82) possui relevância para
os capitalistas apenas porque tal premissa incide sobre a diminuição dos custos com a mão-
de-obra. Pode até ser que algum empresário fique tocado com essa “prática solidária”, mas o
que determinará o emprego dos trabalhadores dessas organizações é a possibilidade de
isentar-se do pagamento de direitos trabalhistas. E, como vimos nas tabelas da SENAES, essa
é a realidade não apenas das cooperativas de trabalho, mas também dos empreendimentos de
“economia solidária”.
Mesmo que seja norteado por sentimentos altruístas, a aplicação de regras abstratas
que idealizem relações econômicas de solidariedade dentro do mercado capitalista, expressa
uma análise romântica da sociedade que nem apreende as causas centrais das contradições
sociais, nem visualiza possibilidades concretas de transformação social. Distante dessa visão
idílica, a existência de uma força de trabalho legalmente isenta de direitos trabalhistas serve
como uma possibilidade sedutora para que o capital consiga diminuir os custos sobre a
produção e, assim, alcançar maiores taxas de lucro. Tanto as cooperativas de trabalho
“desvirtuadas” como as “puras” organizações de “economia solidária” se encontram
subordinadas a esse imperativo.
No entanto, como vimos, não se descartam pretextos para mistificar a hipótese da
autonomia do trabalho e da produção nessas organizações. O extremo de tais subterfúgios
encontra-se nas posturas que fantasiam a existência de ordem social em que inexistiria a
centralidade do trabalho. Por trás de todos esses devaneios encontra-se a mesma realidade: as
relações de trabalho que se escondem por trás dessas ilusões permanecem sendo reguladas
pela subsunção do trabalho ao capital.
3.2 “Economia solidária” e a autonomia do trabalho
As últimas décadas do modo de produção capitalista foram marcadas por sérias
alterações na organização do espaço produtivo e tal fato incorreu em algumas mudanças
174
relevantes no mundo do trabalho. Para alguns autores, o desenvolvimento tecnológico teria
promovido rupturas no processo de produção de tal monta que se tornou impossível visualizar
a permanência do trabalho como elemento central da produção. As conseqüências naturais
desse fenômeno seriam, de um lado, a instauração de uma nova perspectiva analítica, na qual
a ciência, o trabalho imaterial, ou outros elementos “subjetivos”, ocupariam o lugar do
trabalho na produção de mais-valia e, de outro, a abdicação da luta revolucionária pelo
proletariado, visto que esse agrupamento social não seria mais central para geração das
condições materiais para a reprodução social. Apesar das distintas colorações dessas posições
teóricas, políticas e ideológicas, a visão da sociedade capitalista derivada das modificações
produtivas do culo XX estaria, segundo estas análises, marcada pelo fim da centralidade do
trabalho
171
.
Situados em posições mais extremas, alguns autores não apenas visualizaram
elementos positivos nas transformações derivadas da reestruturação produtiva, como
expressaram uma o grande nesse quadro histórico que começaram a enxergar os
primeiros resultados desse empreendimento conduzindo a humanidade a uma sociedade sem
classes. Esses foram os casos de Negri, Hardt e Lazzarato, que visualizaram no horizonte
político dos novos tempos uma nova teoria da história em que as transformações derivadas da
reestruturação produtiva marcariam o êxodo do capitalismo para a produção comunista
(LESSA, 2004). Para eles, estaríamos diante da transição do capitalismo para o comunismo e
todos os resultados negativos da reestruturação produtiva como incremento da precarização
do trabalho e ampliação do desemprego deveriam ser vistos analogamente às “dores de um
parto”. Ainda que extremado, o exemplo anterior representa um caso típico dessa perspectiva
que perpassa várias outras posições, às vezes mais radicais, outras mais comedidas.
Se não foram poucos os autores que, diante dessas modificações, passaram a repensar
a centralidade do trabalho e, em especial, a validade das análises inauguradas por Karl Marx e
Friedrich Engels, de outra forma, algumas vozes apontaram para o equívoco e a ilusão de
relegar os pressupostos do materialismo histórico e dialético ao esquecimento. Dentre esses
autores que buscaram desmistificar a panacéia do fim do trabalho, podemos destacar, dentro
do contexto brasileiro, Antunes (2000; 2003) e Lessa (1997; 2004; 2005; 2007). Apesar das
171
Vários foram os autores, de diferentes matizes, que se voltaram para a defesa do fim da centralidade do
trabalho. Dentre esses, podemos destacar: Jürgen Habermas, Robert Kurz, Jean Lojkine, Claus Offe e André
Gorz. Outros autores, ainda que se diferenciem dos anteriores por buscarem conservar alguns pressupostos
históricos, também se relacionam diretamente com a idéia do fim do trabalho, como é o caso de Castel, que
aponta para o fim da sociedade salarial, e Boaventura Santos, devido a sua incessante busca pela sociedade do
consenso, traduzida em harmonização entre capital e trabalho (neste caso, ver análise crítica de suas propostas
em NETTO, (2004a)).
175
diferenças significantes entre as posições analíticas de ambos
172
, cada um buscou, à sua
maneira, desmistificar a fantasia do fim da centralidade do trabalho, demonstrando a validade
atual da potencialidade revolucionária da classe trabalhadora e elucidando o indispensável e
insuperável papel do trabalho enquanto produtor da riqueza social. De toda forma, a partir
dessas respostas, ficou estabelecida, portanto, a precariedade da perspectiva de fim da
centralidade do trabalho.
No entanto, as análises sobre as relações entre trabalho e capital dentro do modo de
produção capitalista não se deram apenas sob esse foco de debate, e alguns autores difundiram
uma propaganda ideológica que, apesar de aportar pressupostos teóricos bem mais frágeis,
conseguiu uma considerável aceitação em algumas áreas das ciências sociais e, em especial,
naquelas áreas mais próximas da economia, administração e teorias gerenciais. No pólo mais
mistificador dessa perspectiva encontra-se a idéia de que algumas das alterações
implementadas na organização produtiva apontariam para a erradicação das contradições
entre capital e trabalho, instaurando a harmonia dentro das empresas
173
.
Por outro lado, no anseio de defender a emancipação dos trabalhadores, foram aceitas
e defendidas, nesse meio, algumas teorias gerenciais baseadas no toyotismo, visto que a sua
implementação dentro do espaço produtivo resultaria em espaços mais amplos de liberdade
para o trabalhador, pois esse passaria a controlar seu ritmo e sua forma de trabalho. Da mesma
forma, também se creditaram esperanças socialistas na acumulação flexível, pautadas na
promessa de que essas alterações na organização da produção resultariam em condições
favoráveis de trabalho, como seria o caso de que a expulsão do espaço interno das
organizações para a criação de pequenas empresas ou cooperativas serviria para gerar
autonomia no trabalhador. As organizações da “economia solidária” aparecerem, aos olhos de
defensores dessa perspectiva, como laboratório privilegiado desse peculiar processo de
emancipação do trabalho. Como pano de fundo se afirma que, como nessas formas de
organizações da produção todos estão unidos com o mesmo objetivo comum, ocorreria uma
tendência à superação da alienação, promovendo o retorno do controle do trabalhador sobre o
172
Destacamos que, apesar de ambos os autores se voltarem para a desmistificação do fim da centralidade do
trabalho, não se pode estabelecer uma maior vinculação teórico-metodológica entre eles. O elemento central que
determina essas diferenças refere-se à apreensão sobre a categoria trabalho e sua relação com a produção de
valor. Para se ter uma noção clara dessas distinções, ver: Lessa (2007), cap. III.
173
Peter Drucker (1999), um dos “gurus” da gerência capitalista, defende que, a partir das novas formas de
organização da produção, além da melhoria na qualidade de vida dos trabalhadores, o novo ordenamento no
interior da empresas faria surgir espaços de democracia e, desta forma, a gerência participativa e a repartição dos
lucros com os trabalhadores colocariam um ponto final na contradição entre trabalho e capital. Estaria
esboçando-se a “sociedade pós-capitalista”. Como afirmado no capítulo 01, uma análise crítica dessa perspectiva
encontra-se em: Tragtenberg (1989).
176
processo e resultado de trabalho, colocando um ponto final na subsunção do trabalho ao
capital.
vimos anteriormente, a partir dos próprios dados expostos pelo instituto de pesquisa
oficial da “economia solidária” que existe, em tais organizações, níveis de precariedade do
trabalho que não são apenas similares, como superiores àqueles presentes nas empresas
capitalistas. Também observamos brevemente que essas condições de trabalho são
extremamente funcionais ao mercado capitalista que consegue fazer uso não apenas desses
trabalhadores cooperados, mas também de suas cartas jurídicas com o objetivo de diminuir os
custos sobre a mão-de-obra utilizada. Cabe-nos, agora, aprofundar essa exposição a partir de
uma análise sobre o caráter dessas relações que existem entre os empreendimentos da
“economia solidária” e as empresas capitalistas.
Como introduzimos no capítulo 01, ao longo da história do modo de produção
capitalista existiram várias novidades dentro do espaço produtivo que condicionaram a
organização e o controle sobre o trabalho e enfocaram um objetivo unívoco: a busca por
maiores taxas de lucro. Isso acontece porque, desde o advento do capitalismo e das primeiras
experiências de gestão e organização da produção dentro das empresas, manteve-se um
elemento intrínseco dessas relações: a busca do controle da força de trabalho pelo capital. Foi
a partir desse imperativo que surgiu a gestão capitalista, com o objetivo de incrementar
formas de adestramento dos trabalhadores, para que o capitalista conseguisse extrair o
máximo das suas capacidades física e mental.
Visando um domínio maior sobre o processo de trabalho, um dos primeiros postulados
implementados pelos emissários do capital foi a separação entre trabalho manual e trabalho
mental, ou entre planejamento e execução, dentro da empresa. Tal intervenção não possuiu
um sentido independente, visto que se apresentou como uma conseqüência de uma sociedade
dividida em classes sociais e potencializada pela especificidade do modo de produção
capitalista:
Esta imposição da divisão social hierárquica do trabalho como a força cimentadora
mais problemática em última análise, realmente explosiva da sociedade é uma
necessidade inevitável. Ela vem da condição insuperável, sob o domínio do capital,
de que a sociedade deva se estruturar de maneira antagônica e específica, já que as
funções de produção e de controle do processo do trabalho devem estar
radicalmente separadas uma da outra e atribuídas a diferentes classes de indivíduos.
Colocado de forma simples, o sistema do capital cuja raison d’être é a extração
máxima de trabalho excedente dos produtores de qualquer forma compatível com
seus limites estruturais possivelmente seria incapaz de preencher suas funções
sociometabólicas de qualquer outra maneira. Por outro lado, nem mesmo a ordem
feudal instituiu esse tipo de separação radical entre o controle a produção material.
Apesar da completa sujeição política do servo, que o priva de liberdade pessoal de
escolher a terra em que trabalha, no mínimo ele continua dono de seus instrumentos
177
de trabalho e mantém um controle não formal, mas substantivo, sobre boa parte do
processo de produção em si (MÉSZÁROS, 2002, p.99).
Ao longo da história, o desenvolvimento da divisão social do trabalho promoveu
mudanças nas relações de extração do trabalho excedente e, no caso do capitalismo, foram
impostas formas mais avanças de controle, ampliando a sujeição do trabalhador. Ainda que
expropriado de parte da riqueza produzida, no feudalismo, o servo detinha o controle sobre os
instrumentos de trabalho e, assim, possuía um controle substantivo sobre parte do processo de
produção. A partir do desenvolvimento do capitalismo, tal relação de trabalho foi alterada,
passando o capitalista a restringir em suas mãos cada vez mais o controle sobre o processo de
produção. Esse domínio sobre o processo de trabalho foi retirado gradativamente dos
trabalhadores, transformando-os em apêndice das máquinas e explicitando o que Marx (2004)
denominou de passagem da subsunção formal do trabalho ao capital à subsunção real do
trabalho ao capital.
Seguindo esse imperativo do capital, muitos gestores se debruçaram sobre o ambiente
de trabalho dentro das empresas objetivando fomentar subsídios materiais e ideológicos
voltados para a intensificação e o controle da força de trabalho pelo capital. Vários foram os
autores, passando por Taylor, Fayol, Ford, Mayo, Münsterberg e até os mais recentes, como
Ohno, que sistematizaram teorias gerenciais com a finalidade de aperfeiçoar as relações de
trabalho na sua subordinação ao capital. Ainda que existam diferenças relevantes entre as
posturas desses autores, não se pode identificar uma contraposição entre essas, uma vez que
todas estão voltadas para a mesma finalidade. Mesmo com mudanças laterais, a gestão
capitalista continua sendo uma ciência determinada desde sua origem
174
.
Tal assertiva serve também para caracterizar os pressupostos organizacionais advindos
da experiência gestada em meados dos anos 1960 na fábrica de automóveis japonesa Toyota.
Aliando a utilização de máquinas e equipamentos mais avançados com novas técnicas de
controle, essa experiência alcançou um aumento expressivo da produtividade, o que a tornou
parâmetro da gestão capitalista. Mantendo uma intensificação inédita do trabalho por meio de
um elevado ritmo de produção que conseguiu extrair do trabalhador padrões máximos de
exploração física e manual, o toyotismo, como ficou conhecido, apareceu como solução para
as baixas taxas de lucratividade durante o último quartel do século passado e, por isso, foi
amplamente divulgado e adotado.
174
Sobre isso ver Capítulo 02 e 03 de Wellen e Wellen (2009).
178
Contudo, ainda que o principal representante desse modelo organizacional externe
essas determinações
175
, alguns autores conseguem vislumbrar outras possibilidades para esse
modelo de gestão e organização do trabalho. Ainda que detentores de uma visão crítica sobre
o modo de produção capitalista, para alguns defensores da “economia solidária”, a verdadeira
face do toyotismo seria outra. No lugar de servir para intensificar a exploração do trabalhador
pelo capital, transformando-o em instrumento contra a própria classe social, na visão de
Tauille (2001, p. 10), o sucesso do toyotismo adviria da confiança depositada nos
trabalhadores:
Apoiada por uma organização sindical própria vinculada a cada empresa, a
economia japonesa conseguiu beneficiar-se extremamente do engajamento dos
trabalhadores em busca sucesso [sic] dos respectivos empreendimentos. Houve ao
menos um rompimento de qualidade em relação às tendências prévias, presentes no
capitalismo moderno, qual seja de, através das sugestões dos trabalhadores para
melhoria de produtos e processos, os trabalhadores fabris voltarem a participar
ativamente dos processos de concepção e de tomadas de decisões ao longo da cadeia
produtiva, especialmente no chão de fábrica. Uma empresa como a Toyota, no ano
de 1982 recebeu de seus trabalhadores cerca de 1.900.000 sugestões, sendo
utilizadas 95% delas e dando uma média de quase 39 sugestões por trabalhador.
Tais contribuições foram importantes para que produtos passassem a ser projetados
e desenvolvidos com maior rapidez e tivessem mais qualidade quando de sua
produção. O engajamento dos trabalhadores também foi fundamental para o
desenvolvimento e sucesso das técnicas de produção enxuta como o just-in-time. A
confiança depositada nos trabalhadores é fundamental para que este tipo de sistema
que trabalha com estoques praticamente nulos seja bem sucedida.
Distante dessa visão peculiar sobre o desenvolvimento da organização produtiva,
Oliveira (2004, p. 10) afirma que, “na medida em que introduz as divisões internas e a
competição no centro do coletivo do trabalho”, o toyotismo “consegue aliar crescimento
continuado da produtividade e reafirmar a subordinação do trabalho”. Nesse sentido, objetiva-
se o máximo de entrega do trabalhador, adestrando o corpo e a mente, fazendo-o participar
ativamente e conjuntamente de um processo que resultará na sua exploração e alienação. Uma
das ferramentas organizativas que produzem um envolvimento maior dos trabalhadores é o
chamado Gerenciamento Participativo, que se baseia no incentivo aos trabalhadores para que
façam sugestões de idéias e de melhorias a serem implantadas pela empresa. Contudo, essas
atividades pseudo-voluntárias de fornecer sugestões servem para comprometer o trabalhador
com os interesses da empresa, uma vez que o trabalhador “faz sugestões com o objetivo de
melhorar o seu trabalho, e a empresa examina essas sugestões buscando elementos que
resultem na diminuição de custos” (IDEM, p.151).
A evidência disso é que essas sugestões elaboradas servem para que a empresa
promova uma diminuição dos funcionários, pois se efetiva a concentração de tarefas,
175
Constam, a seguir, algumas citações de Taiichi Ohno que explicitam essa afirmação.
179
ampliando a produtividade e reduzindo a necessidade de integrantes no trabalho coletivo.
Citando as palavras do idealizador dessa proposta, poderíamos afirmar que “a eliminação do
desperdício está especificamente direcionada para reduzir custos pela redução da força de
trabalho e dos estoques (OHNO, 2007, p. 72)
176
. Além disso, como apontamos
anteriormente, o resultado almejado com a implantação desse sistema é que o trabalhador
torne-se cúmplice de sua própria exploração e alienação, uma vez que se intensifica a
produção contra o interesse coletivo de sua própria equipe de trabalho. Nesse sentido, o
toyotismo segue à risca o imperativo da gestão capitalista, buscando novos patamares de
sucção e expropriação física e mental dos trabalhadores para ampliar a taxa de lucro.
Uma das ferramentas organizativas mais importantes do toyotismo refere-se aos
Círculos de Controle de Qualidade (CCQ). Na base desse elemento, encontra-se a
racionalização da produção por meio da imposição da equipe sobre os trabalhos individuais,
transformando todos em integrantes ativos do aumento da exploração. Com isso, gera-se um
ambiente de extrema competitividade, operando como uma técnica de intensificação do
trabalho e de responsabilização do trabalhador, como uma forma de internalizar o controle de
uns trabalhadores sobre outros. O ambiente como um todo, e a equipe em específico, torna-se
subordinada a um “conjunto de forças latentes que determinam o comportamento, a maneira
como se percebem as coisas, o modo de pensar e os valores tanto individuais como coletivos”
(SCHEIN, 2001, p.29).
Além desse exemplo, vários outros métodos coercivos são empregados para ampliar a
subordinação do trabalho pelo capital, como é o caso dos jogos de luzes no sistema Just-In-
Time, em que se aponta de imediato o trabalhador culpado pela interrupção da produção. Tal
fato provoca um sentimento de culpa e de degradação moral do trabalhador e tais qualidades
são aproveitadas para impor um ritmo de trabalho constantemente próximo ao limite máximo
de esforço físico, supervisionado pela própria equipe de trabalho. Nesse sentido, continuar
trabalhando no limite é um requisito para se manter no emprego.
Outro elemento – base para a chamada “produção enxuta” –, é a polivalência ou
multifuncionalidade e, sob essa batuta, costuma-se alegar que o funcionário passa a ter uma
visão ampliada do processo produtivo, analisando e contribuindo para os objetivos da
empresa. Todavia, trata-se de uma falsa promessa, pois essa multifuncionalidade torna o
176
Ou, de forma mais explícita: “Isto significa que um trabalho que então estivesse sendo feito por 100
trabalhadores teria que ser feito por 10” (OHNO, 2007, p.25); “Nos negócios nós estamos sempre preocupados
em como produzir mais com menos trabalhadores” (IDEM, p. 82); “Na verdade, sempre digo que a produção
pode ser feita com a metade dos operários” (IDEM, p.124); “Na Toyota, estabelecemos um novo objetivo
reduzir o número de operários” (IDEM, p.132).
180
trabalhador apto a desenvolver várias funções, porém a divisão pormenor do trabalho continua
presente, impedindo que o trabalhador tenha competência de fazer e até mesmo de entender o
processo como um todo. O trabalhador não somente permanece como peça de reposição, mas
passa a ser mais manipulado e remanejado dentro do próprio quadro de funcionários. Em
outras palavras, como resultado, um trabalhador pode atender diversas máquinas, tornando
possível reduzir o número de operadores e aumentar a eficiência da produção” (OHNO, 2007,
p.28).
Com a flexibilização do quadro de funcionários, sobrecarregando-os e aumentando
ainda mais o exército de reserva do trabalho, o capitalista passa a desfrutar de novas
habilidades a um custo menor da função contratada. Como já analisamos, esse processo não
se limita ao interior da empresa e abrange as relações de trabalho integrantes da cadeia
produtiva e, para tanto, diversas empresas e organizações externas são utilizadas como forma
de diminuição dos custos sobre a mão-de-obra.
quem enxergue, entretanto, esse processo como positivo, identificando elementos
do toyotismo como importantes de serem absorvidos por organizações da “economia
solidária”. Isso aconteceria porque, segundo Tauille (2001, p. 09),
de qualquer modo, experiências mais cooperativas de relacionamento, as quais
implicam, freqüentemente, formas particulares de autogestão, apoiaram-se na
lealdade e na credibilidade mútuas entre os agentes econômicos, sejam eles capital e
trabalho ou capital e capital, na mesma cadeia produtiva. Sem dúvida, estes foram
fatores decisivos para o sucesso da economia japonesa ao longo da segunda metade
do século XX.
As organizações da “economia solidária” deveriam seguir os exemplos da Toyota que,
por meio dessas novas relações organizativas entre trabalho e capital, teria conseguido
incrementar o poder de competição no mercado. O conselho dado é que, estabelecendo
relações de confiança com outros agentes econômicos, a “economia solidária” construiria uma
rede de eficiência coletiva:
Na medida em que se desenvolva a confiabilidade intrínseca entre os agentes, uma
espécie de ‘eficiência coletiva’ poderá resultar em ‘economias de rede’. Pensando
em termos de sucesso e expansão destas redes quem aponte que, tanto em países
avançados como em desenvolvimento, ‘clusters de pequenas e médias empresas...
conquistaram mercados externos com base em sua eficiência coletiva’ (IDEM, p.
16).
Sob esse prisma, como a dinâmica da reestruturação produtiva teria estabelecido novas
configurações na organização da produção, ampliando a divisão do trabalho para além dos
limites intestinos de empresas e países, surgiriam, nesse processo, elementos positivos a
serem absorvidos pela “economia solidária”. Para alcançar uma maior condição competitiva
no mercado capitalista, as organizações da “economia solidária” deveriam adotar ferramentas
181
de gestão que possibilitassem uma sinergia maior das relações de trabalho. Como teria
conseguido diminuir o conflito interno nas empresas capitalistas e alcançando níveis elevados
de harmonização entre trabalho e capital, o toyotismo representaria, nessa perspectiva, um
modelo organizacional a ser utilizado como parâmetro:
De uma ou outra maneira, o chamado modelo japonês atenuou, ainda que
parcialmente, o conflito explícito entre capital e trabalho no âmbito dos processos
de produção e, aparentemente, por isso foi muito bem sucedido. Por mais que
existam argumentos mostrando as deficiências deste modelo e apontando um
decorrente e expressivo aumento na taxa de exploração do trabalho, não são poucos
os que consideram esta, [sic] uma experiência alternativa de grande significância,
dado que seria impensável no espírito conflitivo do capitalismo moderno alcançar
tais níveis de cooperação entre os agentes econômicos (IDEM, p. 10).
No caso específico de nossa análise, o que se oculta por trás desse entendimento é que
a novidade advinda desse contexto não são processos de solidariedade entre os agentes
econômicos, mas o fato de que, nas últimas décadas, tornou-se corrente o uso de organizações
precárias, sob a insígnia de autonomia dos trabalhadores, servindo para ampliar a extração de
mais-valia. Dentro desse meio, vários tipos de organizações foram criadas e incentivadas por
organismos governamentais e entidades capitalistas internacionais, com destaque para
associações, microempresas, cooperativas, empresas familiares e organizações de micro-
crédito. Sob o manto da solidariedade dos trabalhadores, não apenas geraram-se e geram-se
espaços de trabalho com condições de trabalho mais precárias, mas subordinados diretamente
ao capital
177
.
Se alguns representantes da “economia solidária” apresentam o toyotismo como um
modelo de harmonia e produção coletiva que, uma vez copiado, proporcionaria uma
capacidade autônoma superior, outros, ainda que admitam a existência de condições precárias
de trabalho, afirmam que essa realidade negativa torna-se irrelevante perante a independência
dos trabalhadores existente no interior desses empreendimentos. Conforme alega Tiriba
(2003, p. 233 234), de nada serviriam estatísticas que demonstram as precárias condições
dos trabalhadores nestas organizações, uma vez que os trabalhadores não estão vendendo sua
força de trabalho:
O tempo de trabalho para produzir os meios necessários para a sobrevivência
costuma exceder a jornada estabelecida não obstante não se configure como
trabalho excedente, já que nessas organizações seus integrantes não se apresentam
177
Também autores da “economia solidária” advertem para esse fato. A diferença é que, conforme
demonstramos no tópico anterior, a base de tais relações de subordinação ao capital encontra-se, para esses
pesquisadores, nas cooperativas de trabalho: “Diversas experiências se baseiam em modelos de terceirização e
flexibilização da produção, valendo-se para isso de outro modelo organizacional da produção: as cooperativas de
trabalho para as quais trabalham governo, empresas privadas, ONGs, agentes financeiros públicos e privados
(Lima, 1998). As relações entre essas empresas são típicas de centro-periferia (Goularti & Neto, 1997),
fundamentadas na busca de MDO não sindicalizada a qual não se lhe garantem todos os direitos” (CRUZ-
MOREIRA, 2003, p. 201).
182
no mercado como vendedores de sua força de trabalho. Ou seja, o tempo
socialmente necessário para a produção da mercadoria pode se prolongar muito
mais que o tempo socialmente necessário encontrado nas empresas de capitais, no
entanto não se configura como trabalho não pago. Ao contrário, quanto mais se
trabalha, maior é a possibilidade de aumentar a remuneração do conjunto dos
trabalhadores
178
. Diferentemente das empresas capitalistas, o ‘prêmio de produção’
representa o aumento, geralmente igualitário, da partes [sic] que cabe a cada um na
distribuição de excedentes.
Em outros termos, mesmo que se precise trabalhar mais para receber os mesmos
recursos financeiros que um trabalhador que esteja empregado na “empresa de capitais”
179
, o
trabalhador integrante da “economia solidária” estará satisfeito
180
por não sentir que está
vendendo sua força de trabalho. Na contramão dos relatos apresentados anteriormente, no
entendimento do autor, como integrante da “economia solidária”, o trabalhador continua
realizando-se dentro desse projeto social ainda que seja preciso intensificar o ritmo de
trabalho para patamares superiores à média capitalista, sacrificando-se horários antes
destinados ao descanso e ao lazer:
É preciso intensificar o ritmo e estender a jornada de trabalho, sacrificando o tempo
livre. No entanto, a vantagem é que a produção associada não se caracteriza pela
mercantilização da força de trabalho, mas pela sua auto-exploração intensiva e pela
satisfação das necessidades básicas como principal critério para estabelecer o
quantum de trabalho, e portanto, quando será necessário trabalhar mais ou menos
para conseguir a remuneração que se pretende ou que é possível obter (TIRIBA,
2003, p. 234).
Nesse enfoque, mesmo com condições mais precárias de trabalho, a “economia
solidária” se apresentaria como um projeto social emancipatório dos trabalhadores, uma vez
que as organizações que o compõem não estariam apenas desvinculadas da lógica do capital,
como se destinariam à superação do modo de produção capitalista. Desconsiderando a
necessidade da luta política para a superação da ordem do capital, tal empreitada centra
178
A autora desconsidera que a possibilidade de aumentar a remuneração via ampliação da quantidade de
trabalho também pode ocorrer em empresas capitalistas, especialmente quando se adota o salário por peça.
Discutiremos isso mais à frente.
179
Da mesma maneira que em outras passagens, o autor dificulta a apreensão do texto ao utilizar termos sem se
remeter ao seu sentido original, como é o caso aqui de “empresa de capitais”. Fica a dúvida sobre sentido real
adotado: o que seria uma empresa de capitais? De capital financeiro?
180
Não se trata de ineditismo a utilização de recursos subjetivos como forma de mitigar a precariedade do
trabalho e mistificar um horizonte de multiplicação produtiva, visto que essa foi uma ilusão dos utópicos: “Com
efeito, se os homens, mulheres e crianças trabalhassem por prazer, desde a idade de três anos aa decrepitude;
se a destreza, a paixão, a mecânica, a unidade de ação, a livre circulação, a restauração de temperatura, o vigor, a
longevidade dos homens e dos animais, elevam a um grau incalculável os meios da indústria, estas
possibilidades acumuladas levarão rapidamente aocuplo a massa do produto; e é por consideração aos hábitos
que anuncio somente o quádruplo, pelo temor de chocar pelas perspectivas colossais, ainda que exatas”
(FOURIER, 2002, p. 88 89). Contudo, ainda que se trate também de uma mistificação, a diferença entre essa
postura e a adotada na “economia solidária” é que, diferentemente dessa que centra a análise nos aspectos
internos da organização, naquela permanecem ingredientes de uma perspectiva que busca abarcar a totalidade
social. Tal fato marca um retrocesso ideológico da “economia solidária” em relação ao socialismo utópico.
Trataremos dessa questão no capítulo 05.
183
esforços na disputa pelo mercado e instaura uma contradição básica: ao passo que defende a
necessidade de uma competição econômica, afirma que se processa uma nova consciência,
não apenas solidária, mas capaz de superar a alienação. Para exemplificar tal postura,
podemos recorrer às seguintes palavras de Singer (1999, p. 128):
A cooperativa operária realiza em alto grau todas as condições para a desalienação
do trabalho e, portanto, para a realização do socialismo no plano da produção. Ela é
gerida pelos trabalhadores, as relações de produção são democráticas, ela traduz na
prática o lema: ‘de cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas
necessidades’.
Todavia, ainda que se restrinja a análise desse pensamento às palavras do autor, surge
uma contradição: como alcançar o fim da alienação através de relações que dependem do
mercado capitalista? É por causa dessa contradição que Singer (idem, p. 131) apresenta o
seguinte paradoxo: “despertada a consciência da alienação (assim como da exploração etc.), é
preciso educar o jovem para competir não individual, mas coletivamente, mediante
participação ativa em cooperativas, sindicatos, centros estudantis, partidos políticos”. Ou seja,
uma vez acabada com a alienação no espaço interno desses empreendimentos, buscar-se-ia
instaurar uma formação de competição para o mercado capitalista. Como se observa,
adentramos no debate sobre as relações entre “economia solidária” e mercado capitalista e, no
caso aqui tratado, da defesa de uma autonomia organizativa que serve para esconder elos de
subsunção do trabalho ao capital.
Para apreender elos que vinculam a “economia solidária” às empresas capitalistas e
estabelecem relações de subsunção do trabalho ao capital, podemos nos remeter a acordos
firmados entre alguns representantes orgânicos dessas instituições
181
. Em 2006, durante a
realização de uma Conferência Internacional de Empresas e Responsabilidade Social,
construiu-se um projeto intitulado de Fundo de Capital Solidário, em que empresas
capitalistas se prontificaram a contribuir para o desenvolvimento da “economia solidária” no
Brasil. Apoiado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), numa
gestão conjunta formada pela Rede Unitrabalho, pela central de cooperativas UNISOL
BRASIL, pela ICCO (Fundação Organização Intereclesiástica para a Cooperação ao
181
A realização de uma pesquisa sistemática que objetive identificar os acordos realizados entre as experiências
de “economia solidária” e as empresas capitalistas representa uma tarefa bastante difícil de se operacionalizar
não apenas pela necessidade de um grupo de pesquisadores formados para tal objetivo, mas porque os
documentos a serem analisados precisam estar disponíveis, o que leva, conseqüentemente, à necessidade da boa
vontade das pessoas que integram esses empreendimentos. Numa pesquisa realizada em 2001 (WELLEN,
2001a), em que entrevistamos mais de 200 integrantes de cooperativas (sendo 19 diretores), conseguimos
apreender várias relações contratuais entre essas organizações e grandes empresas capitalistas que apontaram
para o fato de que a força de trabalho contida naquelas era utilizada e controlada para produzir mercadorias a
serem vendidas por essas. Ficou demonstrado, nesses casos analisados, a existência concreta da subsunção real
do trabalho ao capital.
184
Desenvolvimento), pela Fundação Banco do Brasil e capitaneada pelo Instituto Ethos, o
acordo motivou os capitalistas a se disporem a integrar organizações de economia solidária”
nas suas cadeias produtivas.
Priorizando as áreas do “agronegócio, alimentos e bebidas, arte e entretenimento,
indústria têxtil e confecção, serviços, reciclagem, limpeza e higiene, bancário e mineração
182
”,
foi criado um processo de seleção em que as organizações a serem beneficiadas precisariam
“apresentar um elevado potencial de retorno econômico e social” (BEDINELLI, 2006).
Atendendo a esses requisitos e passando nos testes de rentabilidade, os empreendimentos de
“economia solidária” seriam agraciados pelas empresas capitalistas através da “doação
183
de
máquinas, equipamentos, softwares e até empréstimos financeiros. A idéia que norteia tal
acordo é que, a partir de tais aportes, essas organizações solidárias tornar-se-iam aptas a
realizar uma produção econômica que melhoraria a vida de várias pessoas em situação de
risco social, assim como dos próprios investidores capitalistas.
Tocados por esses sentimentos, assim como pela possibilidade de diminuição dos
custos em suas empresas, os empresários apoiaram essa iniciativa e se disponibilizaram a
beneficiar as organizações da “economia solidária”. Para tanto, os interessados deveriam
atender ao seguinte chamado:
As empresas e instituições que quiserem apoiar a iniciativa poderão investir capital,
inserir as cooperativas e associações em sua rede de fornecedores e clientes, e doar
materiais que possam impulsionar os trabalhos, como programas de computador. O
objetivo é fazer com que os empreendimentos se tornem sustentáveis e possam
devolver ao fundo a verba que receberam, para que novas atividades sejam
contempladas (BEDINELLI, 2006).
Para além de acordos dessa amplitude sistemática, existem também várias relações
contratuais de caráter pontual entre essas duas esferas econômicas: de um lado as
organizações de “economia solidária” e de outro as empresas capitalistas. Ainda que possam
ser apresentadas como relações igualitárias entre as partes, quando se observa que é partir das
necessidades e interesses das empresas capitalistas que se constroem esses acordos, pode-se
concluir pela inexistência dessa propagada isotropia
184
. Tal afirmativa fica evidenciada no
182
Observa-se uma relação direta entre essas áreas priorizadas e a existência de maiores possibilidades de
ampliação do lucro das empresas capitalistas tomadoras de serviço. Podemos destacar, dentre essas, as áreas do
agronegócio (já analisada no capítulo anterior ao tratar da OCB e do capital agrário no Brasil), da indústria têxtil
e confecção (abordado no tópico anterior, quando evidenciamos a precariedade das condições de trabalho das
cooperativas que se inserem nas cadeias produtivas das empresas desse setor) e reciclagem, limpeza e higiene
(aquela expressando diretamente não apenas a existência de mão-de-obra precária, mas também uma fonte de
matérias-primas menos custosas; e essas amplamente empregadas não apenas em empresas capitalistas, como em
instituições públicas para diminuição de custos).
183
Abordamos, no capítulo anterior, a mistificação que se esconde por trás de formas de doação tais como essa.
184
Essa falsa promessa de igualdade também aparece na relação entre pequenas e grandes empresas: “O máximo
que o mercado oferece à chamada pequena empresa é trabalhar para uma grande empresa. Assim, o pequeno
185
fato de que a determinação dos critérios de seleção de escolha se restringe a um pólo dessa
equação, cabendo a empresa capitalista o poder de dispor-se à realização dessa relação
contratual. Resta, para o lado mais fraco, como única possibilidade, a beneficência de integrar
a rede de fornecedores e clientes e, diante desse fato, submeter-se aos imperativos da empresa
matriz.
O desenvolvimento da divisão internacional do trabalho possibilitou que grandes
empresas capitalistas conseguissem terceirizar seus serviços não apenas para empresas
localizadas em regiões próximas, mas que se encontram em grandes distâncias
185
. Diante
dessa possibilidade, surgem diariamente casos em que “as empresas continuam sendo as
donas do local de trabalho e dos equipamentos, arrendando-os às cooperativas”, assim como,
a preferida pela maioria, em que se busca “repassar o equipamento obsoleto e as dívidas para
os trabalhadores quando falência, negociando formas de pagamento e prazos” (CRUZ-
MOREIRA, 2003, p. 212). Dentre as organizações que passam a integrar a cadeia produtiva
dessas empresas internacionais, existe lugar cativo para aquelas constituintes da “economia
solidária”, uma vez que se tornou fato comum que “tanto médias quanto grandes empresas
propõem e implementam a segmentação e subcocontratação de atividades produtivas, muitas
vezes utilizando os serviços de cooperativas” (IDEM).
Como exemplo típico dessas relações contratuais advindas da divisão internacional do
trabalho encontra-se a empresa de confecções Levi’s que, ainda que possua sua matriz nos
EUA, espalhou seu setor produtivo por diversas regiões e países do mundo. Além das micro e
pequenas empresas, a Levi’s costuma integrar também, aqui no Brasil, as cooperativas nas
suas cadeias produtivas. Acordos contratuais análogos a esse demonstram não apenas a
existência de uma relação de subordinação entre poderes desiguais, mas assinalam uma
função social precisa: a busca pela extração de uma quantidade maior de trabalho excedente,
através de uma maior intensidade na exploração que nega totalmente a possibilidade de
alguma autonomia
186
.
empresário ao invés de ter no capitalista o seu patrão, poderá chamá-lo de cliente, mas essa mudança de
tratamento não os faz iguais” (TAVARES, 2004, p. 34).
185
Em 2006 foi inaugurado, na cidade de Santa Cruz do Capibaribe (no interior de Pernambuco), o maior parque
de confecções da América Latina que, nos seus 65 hectares, abriga uma quantidade expressiva de pequenas
produções do setor têxtil. Com base no trabalho caseiro e familiar, foram criadas várias relações comerciais entre
essas pequenas produções e grandes empresas. Hoje, nesse “Milagre da Sulanca”, como é conhecido, encontram-
se várias empresas internacionais que se utilizam de trabalho precário nas suas cadeias produtivas. Uma pesquisa
bastante ilustrativa que poderia ser realizada encontra-se na comparação entre as condições de trabalho presentes
nesses empreendimentos e aqueles que Marx (1985a) chamou de “trabalho domiciliar moderno”.
186
Segue exemplo dessa relação numa cadeia produtiva de uma grande empresa capitalista de produção e venda
de automóveis: “Quando a General Motors faz com que as peças de seus caminhões sejam fabricadas na fábrica
X, as carrocerias na fábrica Y, e reserva a montagem final à fábrica Z, o fato de que impressos contendo cálculos
186
Não obstante, as organizações de “economia solidária” possuiriam alguns diferenciais
que as tornariam mais atrativas para integrar essas relações. Tal vantagem se origina, na visão
de representantes desse projeto, do fato de que esses empreendimentos podem se inserir
facilmente em práticas contemporâneas de flexibilização da produção, atendendo muito bem
às necessidades do capitalismo neoliberal:
Porém, as cooperativas de trabalhadores, sejam falsas ou verdadeiras, têm
funcionado como modelos de produção flexíveis, pois podem se adequar mais
facilmente às rápidas modificações na demanda por trabalho e na execução de
tarefas, o que não quer dizer que sejam necessariamente expressões de precarização.
Nessa perspectiva, paradoxalmente, poderíamos dizer que o trabalho associado
encaixa-se num processo mais amplo, bem característico dos tempos neoliberais, de
passagem de um contrato social de trabalho para um contrato de natureza cível, o
qual regula as cooperativas (PARRA, 2003, p. 90).
Além disso, nos vários exemplares de relações contratuais que envolvem organizações
com tamanhos distintos, cabe a empresa matriz, pela sua capacidade de intervenção
econômica no mercado capitalista, decretar os limites para a estrutura da pequena produção.
Com isso, não existem apenas conexões de subordinação do trabalho ao capital, mas fica
manifesta também a existência de outras formas usuais de favorecimento para as empresas
capitalistas:
Especialmente em ramos da economia cuja unidade básica de produção pode ser
adquirida pelo próprio trabalhador, como uma máquina de costura, por exemplo, o
capital se favorece duplamente: ao vender a máquina, e ao fazer com que ela seja
utilizada como instrumento de exploração, sem que se imponha explicitamente o
comando capitalista (TAVARES, 2004, p. 20).
Assim, a extração de trabalho excedente não ocorre apenas a partir da relação
contratual entre empresa capitalista e organização de “economia solidária”, visto que isso
acontece também no momento em que esse empreendimento compra daquele uma máquina
ou equipamento. Para realizar o pagamento dessa venda, a organização de “economia
solidária” estará disponibilizando, ainda que indiretamente, um valor produzido pelos seus
integrantes, a ser expropriado pela empresa vendedora do meio de produção. Essa realidade
vida evidenciada quando se observa a tabela 07, que demonstra que mais de dois terços dos
empreendimentos de “economia solidária” adquirem insumos para produção a partir de
empresas privadas. Além disso, quando se retira desse cálculo a quantidade dessas
organizações que recebem esses insumos via doação, chega-se a uma porcentagem de mais de
92%.
minuciosos de custo monetário acompanhem o frete das peças entre as fábricas não significa de modo algum que
a planta X ‘vende’ as peças para a fábrica Z. A venda implica em mudança de propriedade e com ela uma efetiva
fragmentação do poder de decisão, refletindo uma autonomia real da propriedade e dos interesses financeiros”
(MANDEL, 1991, p. 16).
187
Tabela 07
187
: Origem dos insumos para produção nos empreendimentos da “economia solidária”
Origem
Quantidade de
empreendimentos
%
Aquisição de empresa privada 13.697 68,75%
Aquisição de outros empreendimentos de ES 1.292 6,49%
Associados(as) 6.187 31,06%
Aquisição de produtores(as) não sócio(as) 2.270 11,39%
Doação 4.642 23,30%
Coleta (materiais recicláveis ou matéria-prima para artesanato) 2.581 12,96%
Outra. Qual? 1.148 5,76%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
Não obstante, poderíamos citar outra forma pela qual as empresas capitalistas
conseguem extrair um quantum de trabalho excedente das organizações de “economia
solidária”: por meio dos juros bancários. Além da necessidade proveniente da compra de
máquinas, equipamentos e outros insumos produtivos, esses empreendimentos também
carecem de crédito para conseguir funcionar e, como não dispõem dessa riqueza monetária,
torna-se preciso apelar para outros agentes econômicos. Como a relação entre tomador e
emprestador de dinheiro dificilmente se baseará em práticas mutualistas, parte da riqueza
produzida portada por aquele repassará para o cofre desse e, como demonstra a tabela 08, no
caso dos empreendimentos da “economia solidária” torna-se impossível esconder essa relação
de exploração. Quase dois terços dessas organizações tomam empréstimos de bancos públicos
e, quando se desconsidera o atributo “outra” (que não foi explicado pelo instituto de
pesquisa), chega-se a um total de 92,63% de empreendimentos que tomam empréstimos de
bancos públicos, privados ou outras instituições privadas.
Existem, portanto, diferentes formas utilizadas pelas grandes empresas capitalistas
para conseguir alcançar maior apropriação de trabalho excedente de organizações da
“economia solidária”. Dentre outras formas, estejam expressas na contratação da força de
trabalho, na compra de mercadorias produzidas, na realização de empréstimos ou nas vendas
de máquinas e equipamentos, as empresas capitalistas conseguem dispor de mecanismos que
sugam parte da riqueza produzida na “economia solidária”. A integração dessas organizações
187
Ressaltamos que, nos dados apresentados pela SENAES (2007) que serviram de base para a construção da
tabela 07, os entrevistados poderiam indicar até três indicadores (21.301 empreendimentos tiveram uma resposta,
9.003 empreendimentos tiveram deram duas e 2.926 tiveram três) e nós calculamos as porcentagens a partir de
todas as respostas, independentemente da ordem em que apareceram. Além disso, também retiramos a
quantidade de empreendimentos em que essa análise não se aplica.
188
nas cadeias produtivas das empresas capitalistas alavanca tais mecanismos, construindo uma
subsunção real do trabalho ao capital.
Tabela 08
188
: Fonte de crédito dos empreendimentos da “economia solidária”
Tipo
Quantidade de
empreendimentos
%
Banco público 1.985 61,68%
Outra 775 24,08%
ONG ou OSCIP 354 11,00%
Banco privado 215 6,68%
Cooperativa de crédito 180 5,59%
Banco do Povo ou similar 145 4,51%
Outra instituição financeira privada 63 1,96%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
Para facilitar a realização e a ampliação dessas relações de subordinação das
organizações de “economia solidária” às empresas capitalistas, busca-se estabelecer a
remuneração por meio do pagamento por peças produzidas. Nessa maneira de remuneração,
historicamente conhecida como “subarrendamento do trabalho (subletting of labour)”, além
do fato de que “qualidade e intensidade do trabalho são controladas aqui pela própria forma
do salário”, o que “torna grande parte da supervisão do trabalho supérflua”, existe o
diferencial da “interposição de parasitas entre o capitalista e o trabalhador assalariado”
(MARX, 1985a, p, 141). Devido a esses motivos, o salário por peça constitui “a base tanto do
moderno trabalho domiciliar anteriormente descrito como de um sistema hierarquicamente
organizado de exploração e opressão” (IDEM).
Como demonstra a tabela 09, a grande maioria
189
dos trabalhadores integrantes dos
empreendimentos de “economia solidária” possui uma forma de remuneração semelhante à
descrita anteriormente, uma vez que recebem pela quantidade de objetos produzidos ou pela
produção realizada. Ao apreender esse dado a partir das relações de trabalho entre essas
organizações e as empresas capitalistas, podemos chegar a uma conclusão semelhante a de
188
Vale ressaltar que, nos dados apresentados pela SENAES (2007) que serviram de base para a construção da
tabela 09, os entrevistados poderiam indicar até três indicadores (3.218 empreendimentos tiveram uma resposta,
218 empreendimentos tiveram deram duas e 21 tiveram três) e nós calculamos as porcentagens a partir de todas
as respostas, independentemente da ordem em que apareceram.
189
Para cálculos da tabela 09, em que os entrevistados poderiam dar mais de uma resposta, quando se limita a
porcentagem apenas à primeira resposta, cerca de 57% dos entrevistados afirmam que possuem uma
remuneração por produto ou produtividade acordo; quando se calcula a partir de todas as respostas, esse dado se
eleva para 60%; e, quando se descartam aqueles trabalhadores que não recebem nada (seja porque o
empreendimento não está conseguindo remunerar, ou seja porque não existe remuneração), esse dado chega a
83%.
189
Marx (1985a, 141), quando afirmou quea exploração dos trabalhadores pelo capital se
realiza aqui mediada pela exploração do trabalhador pelo trabalhador”.
Vale ressaltar que nossa conclusão também aparece em resultados de análises de
representantes da “economia solidária” quando explicitam que:
Mesmo no ‘cooperativismo autêntico um processo de auto-exploração, na
medida em que os trabalhadores são forçados a ampliar a sua jornada de trabalho e
reduzir sua remuneração para aumentar sua competitividade no mercado, ou mesmo
para manter sua sobrevivência (MAGALHÃES; TODESCHINI, 2003, p. 152).
Tabela 09: Tipos de remuneração dos integrantes da “economia solidária”
Tipo de remuneração
Quantidade de
empreendimentos
% Ordem 01 % Total
190
Remuneração por produto ou produtividade 9.951
56,49% 59,64%
Não está conseguindo remunerar 3.532
20,05% 21,17%
Remuneração fixa 1.164
6,61% 6,98%
Remuneração por horas trabalhadas 1.105
6,27% 6,62%
Não há remuneração (autoconsumo ou voluntário) 1.102
6,26% 6,60%
Outro tipo. Qual? 760
4,31% 4,55%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
Como afirma o autor, é prática usual dentro dos empreendimentos de “economia
solidária” que os seus integrantes precisem ampliar a quantidade de trabalho para alcançar
níveis de competitividade no mercado capitalista. Tal assertiva expressa, a nosso ver,
evidências de determinações concretas que consubstanciam o trabalho nessas organizações.
Contudo, o lado mistificador da análise apresentada pelo autor encontra-se na visão autônoma
do trabalho, falseando esse expediente como se fosse um dado positivo, visto que o aumento
da remuneração seria uma resultante exclusiva da capacidade produtiva dos trabalhadores.
Assim, a ilusória vantagem desses empreendimentos seria a existência de uma regulação
autônoma da remuneração a partir das capacidades individuais dos trabalhadores.
No entanto, para que se torne visualizável essa idiossincrática compreensão acerca das
relações de trabalho entre “economia solidária” e empresas capitalistas, o se precisa apenas
prover a imaginação de uma falsa autonomia daquelas organizações, mas também a adoção de
uma perspectiva metodológica individualista ou endogenista que renegue a totalidade
190
Como, nos dados apresentados pela SENAES (2007) que serviram de base para a construção da tabela 07, os
entrevistados poderiam indicar até três atributos (15.776 entrevistados deram uma resposta, 889 entrevistados
deram duas e 20 deram três), para encontrar o valor da porcentagem total é preciso fazer a soma da quantidade
de entrevistados e não de respostas, ou seja, 16.685 e não 17.614. É com base nesse valor que encontramos as
porcentagens apresentadas na última coluna da tabela 07.
190
social
191
. Quando se amplia esse escopo analítico e se busca apreende as inter-relações
existentes entre os diversos agentes econômicos do mercado capitalista, a aceitação de tal
hipótese torna-se impraticável. Mesmo que, segundo os representantes da “economia
solidária”, inexistam relações de exploração do trabalho dentro dessas organizações, isso não
nega a existência desse tipo de relações no espaço externo. Em outros termos, ainda que se
imagine que nas relações internas não exista exploração do trabalhador, esse fato não pode ser
transladado automaticamente para além dos muros da organização, nas relações com as
empresas capitalistas e com todo o mercado.
Diante dos dados apresentados anteriormente, dos exemplos das teias que envolvem
essas relações de trabalho, e da necessidade de subordinação ao mercado para manter a
sobrevivência econômica, pode-se entender melhor a função dessa forma de remuneração
amplamente praticada nas organizações de “economia solidária”. Se, de um lado, encontra-se
o trabalhador com o interesse pessoal e natural de “aplicar sua força de trabalho o mais
intensamente possível” para “prolongar a jornada de trabalho, pois com isso sobe seu salário
diário ou semanal”, do outro, situa-se o capitalista que, a partir desse enredo, tem sua vida
facilitada porque consegue “elevar o grau normal de intensidade” da exploração (MARX,
1985a, p, 141).
Apesar de aparecer ao trabalhador como uma vantagem sedutora do processo
produtivo, visto que facilitaria o controle sobre o ritmo de trabalho e instauraria elementos de
um poder decisório em que a remuneração pode ser ampliada a partir do aumento de trabalho
pessoal, o salário por peça não diminui nem a exploração nem o controle do capital sobre o
trabalho. Essa forma de remuneração, na verdade, amplia a subordinação do trabalho ao
capital, estabelecendo uma escala gradativa de extração de mais-valia: quanto mais o
trabalhador produzir, maior o trabalho excedente expropriado pelos capitalistas. Como essa
realidade somente é possível de ser apreendida por uma metodologia marxista que analisa a
sociedade a partir do ponto de vista do trabalho
192
, ao descartar essa perspectiva em prol de
enfoques limitados a elementos singulares, essa relação de trabalho pode aparecer como
independente do mercado capitalista.
Como constatou Germer (2006, p. 2003), essa é umas das diferenças básicas que
distinguem a análise praticada pela economia solidária” sobre o modo de produção
capitalista, daquela arvorada por Marx:
191
Aprofundaremos, no próximo tópico, a análise sobre esse tipo de perspectiva analítica, a partir de um suporte
crítico baseado em Rosa Luxemburgo.
192
Ou, como afirmava Chasin (1991), uma perspectiva orientada pela “lógica humano-societária do trabalho”.
191
Mas essa avaliação positiva não levou Marx a ignorar o quadro global em que as
fábricas-cooperativas estão imersas, caracterizado pela subjugação dos
trabalhadores aos capitalistas, enquanto classes sociais, e as contradições que disto
resultam e os seus efeitos tanto interna quanto externamente. Ao contrário de
Singer, não as erige em representantes imediatos de um novo modo de produção,
uma vez que não concebe este como um corpo estranho que se expande
gradualmente ao lado do modo de produção dominante, como parece ocorrer na
confusa exposição de Singer.
É por causa de limitações deste tipo que alguns autores, ainda que apresentem críticas
ao capitalismo, conseguem visualizar o trabalho dentro da “economia solidária” como
autônomo e a remuneração do trabalhador como se fosse derivada da venda de produtos e não
do emprego da força de trabalho. A mistificação ocorre exatamente nesses casos em que “o
salário por peça parece, à primeira vista, como se o valor de uso vendido pelo trabalhador não
fosse função de sua força de trabalho, trabalho vivo, mas trabalho objetivado no produto”
(MARX, 1985a, p, 139). Baseada na conjectura de uma relação entre iguais, nesses exemplos
os agentes econômicos apareceriam no mercado como possuidores de uma capacidade
interventiva autônoma. Como artifício central utilizado, encontra-se a metamorfose ilusória da
“relação empregado/empregador” em uma “negociação entre agentes econômicos que se
encontram em iguais condições na esfera da circulação de mercadorias” (TAVARES, 2004, p.
17).
Nessa transmutação ideal em trabalhadores autônomos que se encontrariam em
condições isotrópicas iguais a todos os outros comerciantes, inseridos numa suposta feira livre
das mercadorias
193
, escamoteiam-se os laços de subordinação da “economia solidária” perante
o capital:
a mistificação destes trabalhadores como sujeitos autônomos, obscurece
aparentemente esses nexos centrais com o capital, na medida em que estes
trabalhadores são considerados vendedores de mercadorias que se enfrentam na
esfera da circulação, e não como vendedores de força de trabalho que realizam
atividades na produção e negociam na esfera da circulação (NEVES, 2006, p. 06).
Da mesma forma, ao apregoar que as experiências de “economia solidária” seriam
capazes de instaurar a autonomia e o controle dos trabalhadores sobre o processo de produção,
os autores afirmam – ainda que implicitamente – que ocorre um retorno às relações de
subsunção formal do trabalho ao capital. Nessa perspectiva, não se trataria mais de visualizar
o trabalhador como apêndice da máquina e controlado pelo capitalista e seus representantes,
pois esses teriam o poder de decidir como, em que ritmo, e de que forma se organizaria a
produção. Em todos os casos, seja na defesa de princípios toyotistas ou na construção de
193
Conforme veremos no próximo capítulo, para que tal axioma possua ingredientes de verossimilhança é
preciso uma análise que desconsidere a evolução histórica do mercado capitalista, tratando esse complexo social
a partir de elementos restritos à sua fase embrionária.
192
organizações de “economia solidária”, a visão dos trabalhadores como sujeitos autônomos
apenas existe com base numa falsa apreensão sobre a realidade. Distante dessas fábulas, como
afirma Horkheimer (1980), “a aparente autonomia dos processos de trabalho, cujo decorrer se
pensa provir de uma essência interior ao seu objeto, corresponde à ilusão de liberdade dos
sujeitos econômicos na sociedade burguesa”.
Também nesse caso, o que se encontra por trás dessa assertiva faz parte das críticas
anteriores, ou seja, a visão não somente setorializada, mas idílica do mercado capitalista.
Como, dentro do capitalismo, a produção é determinada, desde sua fonte, para a venda no
mercado, representa uma ilusão acreditar que se pode produzir autonomamente de acordo com
interesses subjetivos particulares. A simples determinação do valor das mercadorias pelo
tempo de trabalho socialmente necessário desautoriza qualquer ilação nesse sentido. E, antes
de ter regredido, a história do capitalismo fez apenas incrementar a ampliação dos monopólios
e das empresas imperialistas.
Além disso, vários são os exemplos que demonstram não somente a dependência
dessas experiências com as grandes empresas capitalistas, mas sua plena inserção na cadeia
produtiva dessas. A reestruturação produtiva tornou corrente os processos de terceirização e,
dentre esses, como forma de barateamento da força de trabalho, foi incentivada a criação
dessas organizações ditas autônomas. E, se esses devaneios de autonomia não fazem nenhum
sentido quando se fala de cooperativas e micro-empresas, para organizações da produção tais
como as toyotistas, isso não passa de uma ideologia extremamente precária. Em ntese,
podemos afirmar que não se trata de uma regressão à subsunção formal do trabalho ao capital,
mas a utilização de formas mais lucrativas da subsunção real do trabalho ao capital, baseadas,
em sua grande maioria, no salário por peça.
Para poder superar a aparência desse fenômeno e alcançar sua essência, é importante
ter uma opção metodológica que almeje relacionar o objeto pesquisado com a totalidade
social em que esse se encontra inserido e, vale ressaltar, que apenas uma tradição é portadora
desses fundamentos:
O método dialético em Marx visa ao conhecimento da sociedade como totalidade.
Enquanto a ciência burguesa confere uma ‘realidade’ com realismo ingênuo, ou
certa autonomia com espírito ‘crítico’, àquelas abstrações que, para a ciência não
pertence ao âmbito da filosofia, são necessárias e úteis do ponto de vista
metodológico e resultam, de um lado, da separação prática dos objetos da
investigação e, de outro, da divisão do trabalho e da especialização cientificas, o
marxismo supera essas separações elevando-as e rebaixando-as às categorias de
aspectos dialéticos (LUKÁCS, 2003, p. 106).
E, como demonstrou Lukács, ao lado de Vladimir Illicht Ulianov (Lênin), Rosa Luxemburgo
se destacava como discípula capaz de aplicar corretamente o método instaurado por Marx:
193
“Rosa Luxemburgo foi, a meu ver, a única discípula de Marx a prolongar realmente a obra de
sua vida tanto no sentido dos fatos econômicos quanto no do método econômico e, desse
ponto de vista, a se colocar concretamente no nível atual do desenvolvimento social” (IDEM,
p. 52)
Além de portar uma perspectiva crítica voltada para a análise das relações estruturais
da totalidade social do modo de produção capitalista, Rosa Luxemburgo também se dedicou à
análise de organizações econômicas e sociais que, da mesma forma que a “economia
solidária”, eram apresentadas por seus autores como portadoras de uma autonomia do
trabalho. Apreender as lições deixadas por essa pensadora marxista é, portanto, essencial para
entender de que forma o trabalho se configura nesses empreendimentos, assim como pela
maneira a qual os representantes da “economia solidária” se apropriam dessa análise.
3.3 Trabalho e mercado na “economia solidária” ou Paul Singer x Rosa
Luxemburgo
A escolha de Rosa Luxemburgo como interlocutora privilegiada de análise da
“economia solidária” não é gratuita. Além do fato do principal representante desse projeto
social – Paul Singer – fazer alusão a esta autora para combater críticas à “economia solidária”,
tomando-a como suposto exemplo de análise equivocada, sua escolha é decisiva por outros
motivos. Não somente por ter aproveitado bem sua elevada capacidade intelectiva
194
para
escrever suas obras, Rosa Luxemburgo é referência corrente nos estudos econômicos e
sociais. Poderíamos citar, ainda, dois outros motivos centrais que a incluem no hall dos
grandes pensadores, sendo o primeiro porque viveu e escreveu suas obras num momento
peculiar e decisivo da história humana, num contexto social perpassado por grandes
possibilidades de evolução da sociedade e da humanidade
195
.
194
Um exemplo disso era a fluência de Rosa em vários idiomas: “ainda criança, falava fluentemente o alemão, o
polonês e o russo. Depois, aprendeu corretamente o francês” (BENJAMIN, 2003, p. 07).
195
Possibilidades estas que colocaram em questão o próprio modo de produção capitalista. Essa dinâmica
instaurou dois movimentos: do lado das tropas dominantes, a busca por maneiras de manter vigente o
capitalismo; e no âmbito dos movimentos contestadores, a necessidade de se pensar as formas de superação do
capitalismo e os caminhos que levam ao socialismo. Nesse lado das fileiras, as críticas de Rosa Luxemburgo a
Eduard Bernstein sintetizadas em Reforma ou revolução? representam um dos momentos mais marcantes da
luta pelo socialismo em detrimento da capitulação teórica e política em face às novas aparências do capitalismo.
194
A Alemanha do início do século XX não era apenas culturalmente avançada, mas,
tendo alcançado um elevado desenvolvimento das forças produtivas, preparava-se para
exercer influência econômica em todo o mundo. No bojo dessa sociedade não se encontrava
somente uma promessa de melhores condições econômicas de vida, mas a possibilidade
concreta de transição a uma nova ordem societária que levasse à emancipação humana. se
encontrava um dos maiores coletivos organizados de trabalhadores em luta pelo socialismo,
capitaneado por um partido de massas que marcou a história: o SPD Sozialdemokratische
Partei (Partido Social Democrata
196
), do qual Rosa fazia parte até romper, junto com a Liga
Espartaquista, para fundar o KPD Kommunistische Partei Deutschlands (Partido Comunista
da Alemanha), onde ficaria até seu assassinato
197
. É nesse caldo cultural que Rosa
Luxemburgo reflete a relação entre as necessidades humanas e as possibilidades históricas
dadas.
Por outro lado, como ela própria fez referência
198
, apenas por adotar uma perspectiva
histórica de superação do capitalismo, é que lhe foi possível desvendar os enigmas desse
modo de produção. Não estando limitada aos imperativos da ciência burguesa, que elegem o
capitalismo como a melhor e última etapa da história humana, Rosa Luxemburgo dedicou-se a
uma análise radical desse sistema, apreendendo suas características fundamentais.
Contrapondo-se a uma forma de ciência vulgar comumente aceita e propagada dentro da
sociedade burguesa, o acertado resultado das suas pesquisas foi possível porque estava
vinculada à teoria social fundada por Marx, a única capaz de atingir a essência do modo de
produção capitalista.
196
Para afugentar aproximações equivocadas, vale ressaltar de imediato que o projeto social expresso no SPD (e,
em especial, nos primeiros anos de sua formação) que marcaram a terminologia histórica da Social Democracia
tem muito pouco de análogo com os ditos partidos sociais democratas de todo o mundo e, em especial, com a
sigla brasileira. Nesse sentido, fazemos coro às seguintes palavras de Netto (2001a, p. 48) de que o modelo de
social democracia atual “como é notório, pouco tem a ver com a social-democracia ‘clássica’, inspirada no
movimento operário revolucionário do século XIX e marcada por influxos marxistas; de fato, o que se efetiva
neste modelo é uma proposta política de controle, redução e reforma dos aspectos mais deletérios e brutais da
ordem burguesa, sem a vulnerabilização de seus fundamentos. Tem-se, em realidade, uma configuração sócio-
política que, de alguma forma limitando as seqüelas próprias à ordem burguesa, é compatível com a dinâmica do
capital”. Da mesma forma, ainda que em alguns momentos alguns autores da “economia solidária” façam uso de
pensamentos defendidos por Sociais Democratas “Clássicos” (como Karl Kautsky ou Eduard Bernstein), a
analogia entre dois projetos sociais nos parece bastante complicada.
197
Rosa Luxemburgo foi presa e assassinada no início de 1919 pela guarda de extrema-direita que integrava o
então governo alemão. Vale salientar que também nesse momento o próprio SPD havia aderido ao governo,
apoiando a I Guerra Mundial. Bertold Brecht escreveu o seguinte epitáfio para a revolucionária comunista:
“Aqui jaz Rosa Luxemburgo, judia da Polônia, vanguarda dos operários alemães, morta por ordem dos
opressores. Oprimidos, enterrai vossas desavenças”.
198
“É precisa e unicamente porque Marx considerava em primeiro lugar como socialista, isto é, de um ponto de
vista histórico, a economia capitalista, que de decifrar os seus hieróglifos, e é porque fez do ponto de vista
socialista o ponto de partida da análise científica da sociedade burguesa que pôde, por sua vez, dar ao socialismo
uma base científica” (LUXEMBURGO, 2003, p. 78).
195
O manancial teórico deixado por Rosa Luxemburgo é extremamente relevante para se
desmistificar teses atuais presentes na defesa de organizações derivadas da reestruturação
produtiva que se apresentam como autônomas, tal qual a “economia solidária”. Além disso,
tal relação torna-se explícita, visto que o principal representante desse projeto social se
apresenta como analista dos ensinamentos de Rosa Luxemburgo e, em especial, de suas
severas críticas dedicadas às organizações cooperativas. Paul Singer realiza, no início de um
pequeno artigo intitulado “Economia solidária: um modo de produção e distribuição”, uma
abordagem crítica dessa pensadora, em que defende que ela produziu uma inconsistente
reflexão sobre as organizações que representariam os embriões da “economia solidária” (cf.
SINGER, 2003, p. 17). Para entender as razões que levam o autor a propor tal adjetivação,
precisamos identificar alguns elementos fundamentais de sua exposição
199
.
De inicio, vale destacar que Singer se disponibiliza a entender de que forma se
originou o capitalismo. Conforme veremos mais adiante, essa alusão não é gratuita, mas
representa um ingrediente essencial para sustentar a tese de que a “economia solidária” poderá
superar o capitalismo utilizando os mesmos supostos meios utilizados por este para superar o
feudalismo. Na sua peculiar apreensão deste processo histórico, destaca-se a hipótese do
capitalismo ter se tornado dominante pelo fato de seus representantes terem conseguido,
gradativamente, aproveitar as brechas econômicas disponíveis no mercantilismo, visto que o
“capitalismo prosperou nos interstícios da produção simples de mercadorias, dominada pelo
capital mercantil, na Inglaterra, sobretudo nas atividades em que a melhor técnica exigia a
cooperação de grande número de trabalhadores” (SINGER, 1998, p. 142).
Segundo o representante da “economia solidária”, para que os capitalistas tivessem
conseguido se sobrepor aos outros agentes econômicos a ponto de dominar o mercado e
instaurar um novo modo de produção, precisaram, antes, prevalecer seus interesses nas falhas
do mercado, ou, nos seus termos, nos “interstícios”. Isso teria acontecido porque, na base
desse processo, “a burguesia capitalista aproveitava as falhas na imposição do monopólio para
competir secreta e ilegalmente, contando evidentemente com a cumplicidade interessada dos
compradores e intermediários prejudicados pelo monopólio
200
” (IDEM, p. 29).
199
Como veremos ao longo desse tópico e, em especial, no capítulo 05, Singer direciona críticas a vários
pensadores integrantes da tradição marxista, com destaque para, além de Rosa Luxemburgo, Ernest Mandel,
Vladimir Lênin, Friedrich Engels, e o próprio Karl Marx.
200
Ou ainda que “a burguesia capitalista pôde acumular capital e expandir sua produção, ocupando parcelas cada
vez maiores dos mercados em detrimento dos monopolistas tradicionais porque, de um lado, oferecia vantagens
aos consumidores e, do outro, oferecia uma via de integração à produção social dos excluídos pelas políticas
restritivas das classes dominantes. A expansão da burguesia capitalista solapava a dominação de classe ao
unificar ao se redor o conjunto dos interesses prejudicados ou excluídos por aquela dominação” (SINGER, 1998,
p. 29 – 30).
196
Para Singer, o jogo competitivo do mercado nascente possibilitou, aos que deste
saíram vitoriosos, a conquista dos meios de distribuição e de produção daqueles que foram
derrotados:
O capitalismo se originou da produção simples de mercadorias, negando-a ao
separar a posse e o uso dos meios de produção e distribuição. Esta separação surge
mais ou menos ‘naturalmente’ do funcionamento dos mercados, em que os
vitoriosos no jogo competitivo acabam por se apoderar dos meios de produção e
distribuição dos derrotados (SINGER, 2003, p. 11).
Em outros termos, existiria, para Singer, um mercado nascente ideal no qual era
preservada uma livre concorrência entre os agentes econômicos e quando estes naturalmente
colocaram suas capacidades e habilidades em teste competitivo, resultou em que uns, por
alcançarem melhores desempenhos que outros, acumularam vantagens. Essa seria a causa da
desigualdade social: alguns agentes econômicos conseguiram obter mais vantagens do que
outros. O mercado surgiria, portanto, não de uma imposição de um grupo social ou de uma
classe social sobre a outra, mas de um somatório de vantagens historicamente acumuladas,
consubstanciadas, em última instância, pelo mérito individual
201
.
Na fonte da concentração da riqueza social não constam a usurpação e a apropriação
do excedente produzido por outras pessoas, grupos e classes sociais, mas uma condição
natural de trabalho e esforço individuais. Podemos propor que se trata de uma tese análoga à
que a Igreja Católica realiza sobre a gênese do capitalismo, que se encontra expressa nas
encíclicas sociais dessa instituição, assim como àquela presente nos principais teóricos do
liberalismo clássico, que partem da necessidade de legitimar um subterfúgio ficcional para
sustentar a proposta de possível igualdade de competição dentro do mercado capitalista. Em
outras palavras, essa é a tese liberal da acumulação primitiva:
Essa acumulação primitiva desempenha na Economia Política um papel análogo ao
pecado original na Teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado sobreveio à
humanidade. Explica-se sua origem contando-a como anedota ocorrida no passado.
Em tempos muito remotos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e
sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos dissipando tudo o que tinham e
mais nada. A legenda do pecado original teólogo conta-nos, contudo, como o
homem foi condenado a comer seu pão com o suor do seu rosto; a história do
pecado original econômico no entanto nos revela por que gente que não tem
necessidade disso
202
. Tanto faz. Assim se explica que os primeiros acumularam
riquezas e os últimos, finalmente, nada tinham para vender senão sua própria pele. E
deste pecado original data a pobreza da grande massa até agora, apesar de todo seu
trabalho, nada possui para vender senão a si mesma, e a riqueza dos poucos, que
201
Levando essa perspectiva ao seu extremo, encontraremos ingredientes de aproximação com a visão de alguns
representantes da gestão capitalista sobre a existência das desigualdades sociais: “Como certos indivíduos
nascem preguiçosos e ineficientes e outros ambiciosos e grosseiros, como vício e crime, também sempre
haverá pobreza, miséria e infelicidade” (TAYLOR, 1982, p. 43).
202
Exemplarmente retratado por a de Queirós: “Salvara de um garrotilho a filha de um brasileiro, no Aterro
e ganhara ali a sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho ganhava um homem da sua família
(QUEIROZ, 2001, p. 103 – 104, grifos nossos).
197
cresce continuamente, embora há muito tenham parado de trabalhar (MARX, 1985a,
p. 261).
Para Marx (1985a, p. 261 262), diferentemente desta fábula, contada para desmobilizar os
trabalhadores e para legitimar o sistema capitalista, “na história real, como se sabe, a
conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência, desempenham o
principal papel”.
Entretanto, não se pode dizer que Singer seja um autor estranho ao assunto, e muito
menos desconhecedor da perspectiva marxista
203
. No texto analisado, tal vinculação emerge
no final da passagem anteriormente citada, quando o autor confessa, por meio de uma nota de
rodapé, as limitações de suas palavras. Remetendo-se a Marx, completa sua sentença
indicando que a análise desse pensador tem validade dentro dos marcos do capitalismo e
não durante a acumulação primitiva. Enquanto que nesta valeriam as palavras de Marx:
“conforme Marx mostrou, a origem histórica do capitalismo se vincula à acumulação
primitiva”, uma vez que nesse contexto histórico, “as classes dominantes utilizaram o poder
de Estado para despojar os camponeses de suas terras e para proletarizar grande número de
produtores simples de mercadorias, do campo e das cidades” (SINGER, 2003, p. 28), com o
advento do capitalismo, a análise marxista teria se desmanchado no ar: “depois que a
hegemonia do capitalismo se instaurou, a expropriação dos trabalhadores passou a ser
resultado ‘natural’ dos mecanismos de mercado” (IDEM). Se naquele momento histórico
existiriam evidências do uso da força da classe dominante, expressa especialmente por meio
do Estado, na atualidade prevaleceriam as relações naturais do mercado.
Podemos apontar que a análise histórica apresentada pelo representante da “economia
solidária” almeja um motivo preciso: para defender a possibilidade do controle sobre o capital
e a crença na instauração de espaços de autonomia, faz-se essencial situar como ultrapassadas
as determinações do capital na totalidade social. Caso contrário, uma vez aceitando a
existência da predominância econômica de uma classe social sobre a outra, auferindo o poder
dos grandes monopólios e conglomerados empresariais, tornar-se-ia uma incoerência advogar
pela possibilidade de pequenas organizações produtivas tais quais as presentes na
“economia solidária” erguerem-se contra este sistema social a tal ponto de o subverterem.
Como bem apreendido por Paniago (2007, p. 16):
O que de comum em todas as posições aqui referidas é a hipótese da
possibilidade de controle sobre o capital e a crença de que se podem criar espaços
de autonomia (de aprendizagem social) paralelos ao livre desenvolvimento da lógica
203
Vale lembrar a importância de Paul Singer como analista e divulgador do pensamento marxista no Brasil,
com destaque para a coordenação e revisão da publicação de O Capital de Marx pela Editora Nova Cultural.
198
do capital, reservando-se esferas específicas de experiências institucionais alheias às
leis gerais da auto-reprodução do capital.
Além disso, o processo de mistificação baseia-se em outro recurso fantasioso: a
apreensão do mercado capitalista atual como se esse fosse constituído pelas mesmas
determinações presentes na sua fase embrionária, ou na concorrência ideal vislumbrada por
economistas clássicos. Encontramos, portanto, um patamar superior para a dualidade presente
na “economia solidária” que foi analisada desde o primeiro capítulo, em que a competição
seria restrita ao mercado capitalista, não promovendo impactos diretos no interior dessas
organizações. Nesse nível superior de ilusão, o mercado capitalista é apresentado de forma
mistificada, como sendo consubstanciado apenas pelas trocas simples de mercadorias
204
.
Nessa fábula, não somente fenômenos como o monopólio e o imperialismo são
desconsiderados, mas até mesmo a visão de troca e circulação das mercadorias é apresentada
de maneira idílica. A qualidade nuclear do capitalismo, que é a produção sendo determinada
desde sua origem pela busca de dinheiro e, conseqüentemente, pelo valor de troca
205
, é
ilusoriamente abolida em busca de uma outra forma de troca em que o dinheiro representaria
apenas o intermediário dessa relação. Em outros termos, imagina-se a circulação simples (M-
D-M) no lugar da circulação tipicamente capitalista (D-M-D’).
Para refletir sobre essa visão de mercado capitalista, podemos fazer referência à
análise econômica de Luxemburgo (1976, p. 159), com destaque para as críticas destinadas ao
pensamento de MacCulloch:
Vemo-nos prontamente transportados das condições de produção capitalista,
altamente desenvolvida, para a época da troca primitiva tal como hoje se apresenta
ainda no interior da África. A origem da mistificação fundamenta-se na circulação
simples de mercadorias, o dinheiro desempenha o papel de intermediário. Mas,
precisamente, a intervenção desse intermediário, que na circulação M-D-M
(mercadoria-dinheiro-mercadoria) separou ambos os atos, a compra e a venda,
fazendo-os independentes temporal e espacialmente, determina não ser obrigatório
que toda venda seja seguida imediatamente de compra e, em segundo lugar, que a
compra e a venda não se liguem de modo algum às mesmas pessoas, ao contrário,
em casos excepcionais teriam lugar entre as mesmas persone dramatis. Mas
MacCulloch faz justamente essa suposição contraditória, ao contrapor como
compradores e vendedores a indústria à agricultura.
A fantasia da igualdade de competição entre a capacidade produtiva de pequenas
organizações econômicas e os grandes monopólios torna-se possível exclusivamente pela
204
Aprofundaremos essa discussão no próximo capítulo.
205
O sistema capitalista, ao destacar a mercadoria como elemento fundante da sociedade, através da qual todas
as relações devem se pautar, representa a “expressão de uma sociedade em que o indivíduo existe enquanto
produtor de valor de troca, o que implica a negação absoluta de sua existência natural” (RUBIN,1987, p.11). Ou,
expresso nas lições de um personagem de Dostoievski (2007, p. 31): “Mas o senhor Liebeziátnikov, em dia com
as nossas idéias, explicou pouco que a compaixão em nossa época está proibida pela ciência e que já é assim
que se procede na Inglaterra, onde existe a economia política”.
199
desconsideração das determinações que perpassam o desenvolvimento do modo de produção
capitalista. Tal evidência fica bem explicitada quando se apreende que esses autores enxergam
a função do dinheiro apenas como elo intermediário de troca, desconsiderando a evolução de
sua função dentro do capitalismo: “a concepção simplista, que tem MacCulloch, da troca de
mercadorias torna totalmente incompreensível o significado econômico e o aparecimento
histórico do dinheiro, pois atribui-lhe uma capacidade imediata de troca” (LUXEMBURGO,
1976, p. 159 – 160).
A seguinte citação de Jean Baptiste Say
206
, um dos economistas mais cultuados,
expressa de que forma ocorre a mistificação do dinheiro como elo intermediário das trocas:
“O dinheiro representa apenas um papel passageiro nessa dupla troca. Terminadas as trocas,
observa-se que se pagaram produtos com produtos. Por conseguinte, quando uma nação tem
demasiados produtos de uma classe, o meio de dar-lhes saída é criar produtos de outra classe”.
Como veremos melhor adiante, o que se encontra por trás tanto na perspectiva de Say, assim
como na de vários outros analistas é, justamente, o ponto de vista adotado para realizar a
análise sobre a sociedade. É comum em todos esses casos, seja na “economia clássica e
sobretudo seus vulgarizadores”, o fato de que esses pensadores “sempre consideraram a
evolução capitalista do ponto de vista do capitalista individual e se envolveram, por
conseguinte, numa série de contradições insolúveis e de falsos problemas” (LUKÁCS, 2003,
p. 108).
A relação dessa perspectiva analítica com o nosso objeto de estudo perpassa
determinações variadas visto que, no nosso entendimento, ao se demonstrar os reais fatores do
mercado capitalista o capital como uma força global que determina o comportamento dos
agentes econômicos torna-se inevitável assumir o eminente fracasso de experiências tais
como a “economia solidária”
207
. Situando-se na posição defensiva, não seria coerente para os
representantes desse projeto reconhecerem a dominação dos setores sociais pelo capital, em
que a capacidade dominadora do capital se espalha por todas as esferas sociais, instaurando o
que Mészáros (2002) denomina de “controle metabólico do capital”. Essa é uma perspectiva
adotada que não visualiza que tal dinâmica é construída “por um conjunto de mediações (de
206
Passagem de: SAY, Jean Baptiste. Traité d’économie politique. Paris, 1803, I, pág. 154, citada em
LUXEMBURGO (1976, p. 175)
.
207
Fracasso enquanto proposta de superação do capitalismo. Como observado nos tópicos anteriores, aqui não se
coloca em dúvida a sobrevida de tais experiências subordinadas às empresas capitalista, ou ainda como adereços
sociais para enfeitar o capitalismo. “Eis porque o ‘princípio do cooperativismo’, fraca decantação da finalidade
socialista, com que quer Bernstein enfeitar a economia capitalista, aparece como concessão de sua teoria
burguesa, feita, não ao futuro socialista da sociedade, mas ao passado socialista do próprio Bernstein”
(LUXEMBURGO, 2003, p. 79).
200
segunda ordem, segundo Mészáros) que se inter-relacionam reciprocamente umas com as
outras, criando um círculo vicioso de auto-sustentação insuperável em suas partes isoladas”
(PANIAGO, 2007, p. 122).
No entanto, não se pode estabelecer um automatismo entre todos os representantes da
“economia solidária” e os emissários diretos do capital. Tal é o caso de Paul Singer que, para
demarcar as arestas que o afastam dos defensores do capitalismo, providencia uma crítica
contra a escola liberal que defende a auto-regulação ou equilíbrio do mercado, admoestando
que não existe reciprocidade entre a oferta e a procura e que o mercado na verdade é
perpassado por crises freqüentes:
Ao contrário da generalização teórica de que mercados tendem a um equilíbrio entre
procura e oferta, a partir do qual todos os agentes teriam apenas de reiterar a mesma
conduta para continuar participando da divisão social do trabalho, a realidade
histórica indica que os mercados apenas passam de um desequilíbrio a outro, em
função de fatores naturais e sociais quantidade de chuva e sol, guerras,
expedições, invenções etc. que afetam a posição relativa de cada agente,
beneficiando alguns e arruinando outros (SINGER, 2003, p. 11).
O mercado capitalista não seria, portanto, apenas um mar tranqüilo onde todos os
agentes econômicos poderiam navegar da forma que lhes aprouvesse, mas também uma
procela em furor, na qual todos estariam sob o mesmo perigo. Ainda que apresente novos
recursos analíticos, em ambos os casos, seja na tempestade, ou na calmaria, os riscos seriam
repartidos de forma equânime, ou seja, haveria um “salve-se quem puder geral”. Assim,
apesar da suposta crítica contra a escola liberal, nosso autor reproduz uma analogia capitalista
em que o mercado seria configurado por uma relação entre iguais. Seja em momentos de
equilíbrio, seja em situações de crise, as chances de sucesso seriam hipoteticamente repartidas
democraticamente, havendo uma igualdade entre os agentes econômicos. Desta forma, seria
preciso uma análise bem mais profunda ou talvez valorativa para se encontrar as
distinções teóricas e ideológicas que afastam substantivamente essa postura da escola liberal.
É a partir destes pensamentos que o autor se prepara para encarar algumas críticas
historicamente realizadas que demonstram as limitações das experiências de cooperativas
quando inseridas no mercado capitalista. Providenciando um recurso eficaz à defesa da
“economia solidária” colocando num mesmo invólucro pensadores de perspectivas e de
estatutos teóricos diferenciados, como Beatriz Webb, Eduard Bernstein e Rosa Luxemburgo –
Singer se propõe a extirpar as possíveis críticas contra o bom desempenho das experiências
por ele defendidas.
Primeiramente, tece ressalvas contra Eduard Bernstein por este ter dado razão a
Beatriz Webb nas suas repreensões contra o cooperativismo, quando alertou para o fracasso
201
ou degeneração iminentes destas experiências, uma vez que lhes faltaria a necessária
disciplina fabril. No entender de Singer, a defesa da hierarquia no interior de uma organização
solidária seria bastante estranha a um teórico socialista como Bernstein, uma vez que o mais
normal seria que, como integrante desta matriz política, ele aceitasse prontamente a
autogestão como princípio organizativo. Utilizando as palavras do autor, como Bernstein teria
visto os princípios da autogestão “como caprichos, de somenos importância” e “a idéia da
igualdade de poder de decisão, de autogestão, da qual todos participam em de igualdade
parece nem lhe passar pela cabeça”, seria preciso denunciar que, “para um socialista, esta
argumentação é paradoxal” (SINGER, 2003, p. 16). No fim das contas, no entendimento de
Singer, o problema de Bernstein advinha do fato deste não ter conseguido visualizar uma
organização estruturada por práticas democráticas de gestão e, conseqüentemente, não ter
entendido as supostas qualidades emancipatórias das cooperativas.
Dito isso, Singer parte para enfrentar uma adversária mais poderosa. Em momento
mais decisivo de seu texto, ele cita palavras de Rosa Luxemburgo para, em seguida, realizar
uma avaliação crítica de seu pensamento. Primeiro transcreve a seguinte passagem da obra
Reforma ou Revolução?:
‘Mas, na economia capitalista, a troca domina a produção, fazendo da exploração
impiedosa, isto é da completa dominação do processo de produção pelos interesses
do capital, em face da concorrência, uma condição de existência da empresa.
Praticamente, exprime-se isso pela necessidade de intensificar o trabalho o mais
possível, de reduzir ou prolongar as horas de trabalho conforme a situação do
mercado, de empregar a força de trabalho segundo as necessidades do mercado ou
de atirá-la na rua, em suma, de praticar todos os métodos muito conhecidos que
permitem a uma empresa capitalista enfrentar a concorrência de outras. Resultado
daí, por conseguinte, para a cooperativa de produção, verem-se os operários na
necessidade contraditória de governar-se a si mesmos com todo o absolutismo
necessário e desempenhar entre eles mesmos o papel do patrão capitalista. É desta
contradição que morre a cooperativa de produção, quer pela volta à empresa
capitalista, quer, no caso de serem mais fortes os interesses dos operários, pela
dissolução (LUXEMBURG apud SINGER, 2003, p. 17).
Depois da transcrição anterior, o representante da “economia solidária” expõe sua
crítica anunciando a incapacidade de Rosa Luxemburgo em reconhecer tanto a resistência dos
trabalhadores contra os desmandos do capital, como o fato de que as cooperativas
representavam espaços de menor imposição do capital, uma vez que não se precisaria
produzir para atender aos patamares de lucro dos capitalistas:
A argumentação de Rosa Luxemburg é mais antagônica à gestão capitalista, mas
não é consistente. Ela desconhece ou despreza a resistência que os trabalhadores
oferecem ao absolutismo do capital e que limita as arbitrariedades que este tenta
praticar. Já na época em que ela escrevia (1899), os trabalhadores estavam
organizados nas fábricas e tinham capacidade de se opor à intensificação do
trabalho e as alterações unilaterais da jornada de trabalho. Se as condições de
trabalho na fábrica capitalista eram duras, elas sempre seriam menos duras na
cooperativa por duas razões fundamentais: na fábrica capitalista os empregados têm
202
de produzir lucros proporcionais ao capital investido, obrigação que os cooperados
não m, o que lhes permite se auto-explorar menos; além disso, os cooperados m
a liberdade de escolher quando e como trabalhar para tornar sua empresa
competitiva, ao passo que os trabalhadores assalariados têm de obedecer a
determinações da direção (SINGER, 2003, p. 17).
Como demonstramos, com base nos dados publicados pela SENAES, o equívoco
dessa alegação, cabe-nos agora entender qual a sua relevância para o debate teórico. Ao
analisar o texto de Singer, identificamos alguns estratagemas praticados. O primeiro desses é
que, para facilitar o combate à posição de Rosa Luxemburgo, o autor não apenas coloca os
três pensadores citados anteriormente (Rosa; Webb e Bernstein) no mesmo nível teórico,
como desconsidera as diferenças teóricas e políticas da postura social democrata de Eduard
Bernstein e do socialismo revolucionário de Rosa Luxemburgo. No texto de Singer, ambos os
autores aparecem como socialistas de semelhante envergadura e de mesma perspectiva
revolucionária, omitindo não apenas que incorporavam horizontes sociais distintos, mas que,
enquanto Bernstein fazia a defesa do cooperativismo – assim como de outros princípios
incorporados pela “economia solidária”
208
Rosa Luxemburgo demonstrava, com base na
correta apreensão da realidade, o caráter regressivo desses empreendimentos.
Assim, para se isentar de tais mediações e complicações de análise, Singer os trata
como politicamente iguais. Para não retratar essas diferenças, assim como para diminuir o
poder de fogo da pensadora marxista, o primeiro passo foi não citar as palavras seguintes à
passagem parafraseada do livro de Rosa Luxemburgo, através das quais a autora adverte sobre
as incoerências tanto de Beatriz Webb, como de Eduard Bernstein:
São estes fatos que o próprio Bernstein constata, mas que evidentemente não
compreende quando, com a Sra. Potter-Webb
209
, na falta de ‘disciplina’ a causa
do fracasso das cooperativas de produção na Inglaterra. O que aqui se qualifica
vulgar e superficialmente de ‘disciplina’ outra coisa não é senão o regime absoluto
natural ao Capital, e que evidentemente os operários não podem empregar contra si
mesmos (LUXEMBURGO, 2003, p. 81).
Para Singer, mesmo com uma argumentação mais precisa (que ele intitula de “mais
antagônica à gestão capitalista”), a crítica de Rosa, da mesma forma que Bernstein e Webb,
também limitar-se-iam-se aos problemas de gestão. Tal estratégia torna-se importante porque
desloca a crítica para o espaço interno da organização e, assim, o autor pode conferir à
“economia solidária” um nível de autonomia fantasioso. A correta crítica de Rosa
208
Desconsiderando as especificidades do contexto histórico, assim como sua tendência à capitulação perante o
sistema capitalista, algumas propostas de Bernstein são apropriadas pela “economia solidária”. Dentre essas,
podemos destacar: a defesa do cooperativismo como forma de superação do capitalismo; o exercício da
democracia como objetivo final e não como meio para conquista do poder do Estado; a legitimação de
instituições sociais para amenizar as desigualdades sociais; a perspectiva metodológica limitada ao capitalista
isolado.
209
Beatriz Potter era o nome de solteira de Beatriz Webb.
203
Luxemburgo é que, caso as experiências de cooperativismo desejassem sobreviver dentro do
mercado capitalista, essas precisariam manter veis semelhantes de produtividade às
empresas dominadas pela lógica do lucro. Desta forma, não se trata, portanto, de um problema
de gestão, mas da cooperativa ter que atender às determinações do mercado capitalista para
conseguir se manter.
Seja na análise dos dados das tabelas apresentadas ao longo desse capítulo, quando
pudemos apreender o grau de precariedade do trabalho nas organizações de “economia
solidária”, seja no tópico anterior, em que apontamos para a existência de vínculos contratuais
entre esses empreendimentos e empresas capitalistas, configurando uma relação de
subordinação, conseguimos desmistificar a promessa de autonomia dessas organizações
perante o mercado capitalista. Como vimos, o motivo que leva tanto à existência do trabalho
precário como às relações de subordinação dessas organizações, é o mesmo: a função social
da “economia solidária” determinada dentro do mercado capitalista. É a existência de
condições precárias de trabalho, em que inexistem direitos trabalhistas, que tornam esses
empreendimentos alvo de sub-contratos de empresas capitalistas.
Dentre as causas principais que apontam para os menores rendimentos em
organizações da “economia solidária”, especialmente quando comparadas a empresas
capitalistas, encontra-se a diferença entre os patamares de produtividade determinados pelo
desenvolvimento tecnológico. Isso se deve porque, para compensar a menor produtividade
derivada do menor desenvolvimento tecnológico, faz-se preciso que a organização diminua os
custos de sua produção via decréscimo nos salários e outros rendimentos dos trabalhadores.
Inclusive nas próprias palavras de Singer (1998, p. 174), observamos a tendência geral de
organizações com menores níveis de desenvolvimento tecnológico apresentarem menores
rendimentos a seus integrantes: “provavelmente as empresas que usam técnicas mais antigas
são as que pagam salários menores, de modo que a produtividade menor é compensada por
um custo menor da força de trabalho”.
Contudo, quando busca defender a “economia solidária” como projeto capaz de
utilizar a competição do mercado capitalista para gerar um novo modo de produção, o autor
retrocede nessa sua análise e adota uma perspectiva metodológica que não apreende as
determinações da realidade. A vantagem competitiva da “economia solidária” sobre as
empresas capitalistas apenas é observada por Singer porque, restringindo o escopo de análise
ao próprio interior da organização, o autor imagina que apenas as organizações por ele
defendidas conseguiriam incremento de produtividade.
204
Pelo prisma do autor, a partir do momento que se organiza o espaço da produção e da
distribuição de forma solidária, com a vigência de uma suposta gestão democrática, com o
controle coletivo das decisões sobre o futuro da produção, naturalmente acarretaria na
ampliação da produtividade. O problema está em que essa lente de análise restringe seu
escopo ao espaço interno da organização, obscurecendo a totalidade social. A quem interessar,
o código dessa lente é conhecido como capitalista isolado:
Há, por certo, um ponto de vista que nos apresenta realmente todos esses fenômenos
tal como os a ‘teoria da adaptação’ isto é, o ponto de vista do capitalista isolado,
refletindo a manifestação dos fatos econômicos, deformados na sua consciência
pelas leis da concorrência. Com efeito, o capitalista isolado considera cada parte
orgânica do conjunto da economia como um todo independente (LUXEMBURGO,
2003, p. 67).
É por isso que, baseado na ausência de determinações do capital na totalidade social,
Singer pode fazer a defesa do sucesso da economia solidária” no mercado. Relegando os
imperativos da classe capitalista sobre a classe trabalhadora, expressos no uso da força
econômica e das instituições organizadas para defender e legitimar o capitalismo, Singer é
coerente ao defender a liberdade no mercado e, com isso, que os problemas que afligem a
“economia solidária” o apenas de cunho organizativo. Na sua cabeça, se o capital é
determinado de forma individual, o mercado pode ser democrático, e o projeto social por ele
defendido poderá crescer cada vez mais.
A conjectura da organização autônoma dos trabalhadores, assim como de uma suposta
capacidade competitiva superior pode ser vislumbrada apenas quando se retiram do horizonte
de análise as relações sociais e econômicas que integram a totalidade social. Enxergar
independência de trabalhadores ou fim da alienação dentro dessas formas de organização da
produção ocorre apenas a partir de uma análise mistificadora centrada e limitada ao interior
das instituições defendidas. A mistificação realizada por essas teses analisadas ocorre não
somente pela separação entre esferas e complexos sociais que integram o sistema capitalista,
mas pela instauração de uma dualidade fantasiosa: a solidariedade e união dos trabalhadores
no espaço interno da empresa e a competição limitada ao espaço externo, isto é, ao mercado
capitalista. Como efeito dessa dualidade presente na perspectiva do capitalista individual,
conforme aponta corretamente Luxemburgo (2003, p. 65),
as manifestações todas da vida econômica que acabamos de citar não são estudadas
nas suas relações orgânicas com o conjunto do desenvolvimento capitalista e com
todo o mecanismo econômico, e sim fora dessas relações, como disjecta membra
(partes esparsas) de uma máquina sem vida.
De forma análoga aos postulados contidos nas teses revisionistas de Eduard Bernstein,
as premissas da “economia solidária” defendidas por Paul Singer erguem-se sobre promessas
205
impossíveis de serem realizadas dentro do modo de produção capitalista
210
. A realidade
concreta contradiz as conjecturas que consubstanciam os dois projetos sociais. Para escapar de
uma análise que evidencie esse limite, de maneira similar a Bernstein, Singer apela para o uso
da perspectiva do capitalista isolado, fantasiando todos os fenômenos econômicos capitalistas:
“todos os erros econômicos dessa escola repousam precisamente no mal-entendido que resulta
de se tomar os fenômenos da concorrência, considerados do ponto de vista do capital isolado,
como fenômeno do conjunto da economia capitalista” (LUXEMBURGO, 2003, p. 68).
Assim como os autores que integravam o revisionismo, os atuais defensores da
“economia solidária” não conseguem apropriar-se inequivocamente das relações econômicas
que consubstanciam a totalidade social. Quando as enxergam, não o fazem da forma correta,
mas como partes autônomas do sistema, como expressa um de seus representantes: “uma vez
que a autogestão é marcada pela capacidade autônoma de trabalhadores de gerirem sua
própria empresa, tornando-as viáveis dentro deste ideário” (NAKANO, 2003, p. 73). Para a
autora, seria por meio destas relações autônomas germinadas na “economia solidária” e
organizações congêneres que surgiriam novas relações de poder: é fundamental para aqueles
que, de maneira autônoma, ousam tocar o seu próprio negócio, valorizando o fator trabalho e
as relações de solidariedade e de cooperação, e produzindo novas relações de poder” (IDEM,
p. 75).
Apreendendo criticamente essa perspectiva, podemos concluir que o retrocesso
ideológico é produto de uma mistificação da realidade que, como se observou, marca a
“economia solidária” em suas bases analíticas sobre o estágio atual do capitalismo. Tanto
abordando as relações sociais como elementos independentes do comando do capital, como
circunscrevendo o escopo da análise ao espaço interno da organização, o método da
“economia solidária” serve muito mais para esconder os problemas e as suas possíveis
soluções, do que para apontar um caminho que conduza ao horizonte de uma nova sociedade.
Por estas razões, e por tantos outros motivos não apontados aqui
211
, a “economia
solidária”, após uma apreensão crítica à luz da realidade concreta do capitalismo, apresenta-se
não como um projeto social progressista, mas como um retrocesso tanto ideológico como
econômico. Há pelo menos uma centena de anos já existe uma referência teórica cristalina que
210
Se isso já era fato para o contexto social daquele, torna-se mais explícito com o desenvolvimento do
capitalismo.
211
Outros elementos que configuram o caráter reacionário da “economia solidáriaestão expostos, por exemplo,
em Wellen (2008).
206
demonstra o real sentido de experiências tais como esta
212
. Rosa Luxemburgo estava coberta
de razão ao apontar para isso:
Eis porque, sem ter em conta o seu caráter híbrido, as cooperativas de produção não
podem ser consideradas uma reforma social geral, antes de tudo, a supressão do
mercado mundial e a dissolução da economia mundial atual em pequenos grupos
locais de produção e troca, constituindo no fundo, por conseguinte, um retrocesso da
economia do grande capitalismo à economia mercantil da Idade Média
(LUXEMBURGO, 2003, p. 82 – 83).
Agora que conseguimos nos apropriar dessas determinações básicas que incidem sobre
a economia solidária” e condicionam a configuração do trabalho no interior dessas
organizações, já podemos prosseguir para uma análise mais avançada que aprofunde a análise
das relações desse projeto com o mercado capitalista. Sigamos em frente.
212
Os artigos que compõem o livro Reforma ou Revolução? datam de final de 1898 e início de 1899. No ano
seguinte foi publicado pela primeira vez. Nos anos que se seguiram esta obra foi usada como ferramenta contra o
revisionismo, destacando-se na derrota deste movimento nos congressos de 1901 e 1903 do Partido Social
Democrata e de 1904 na Internacional Comunista.
207
Capítulo IV: “Economia solidária” e mercado
Irmãos, que momento! O mercado volta à vida
O pior já passou, a crise está vencida.
Benditos os empregadores, bendito os empregados
Que à fábrica tornam felizes e congraçados.
A voz da razão ouvida com maturidade
Trouxe o bom senso à nossa sociedade.
Abram-se os portões, funcione o parque industrial
É no trabalho que se entendem proletariado e capital.
(BRECHT, 1994, p. 54 - 55)
No capítulo anterior, ao tratar das determinações que consubstanciam o trabalho
dentro da “economia solidária”, principiamos a apreensão de algumas relações entre essas
organizações e o mercado capitalista, com o objetivo de desmistificar a autonomia daquelas
entidades perante esse complexo social. A partir de exemplos de relações contratuais entre
empresas capitalistas e empreendimentos da “economia solidária”, por meio de dados
estatísticos que demonstram o nível de precariedade nas condições de trabalho ou, ainda,
através de um debate teórico entre perspectivas metodológicas de distintos estatutos,
esperamos ter conseguido evidenciar qual a realidade que se esconde sob o manto dessa
alegada autonomia.
Em todos os casos, foi buscando abarcar elementos imanentes à totalidade social do
modo de produção capitalista, expressos nas relações entre os setores sociais e as instituições
que os integram, que nos propomos a realizar tal empreitada. Foi por isso que, especialmente
na parte final do capítulo 3, tivemos que introduzir a análise sobre fundamentos importantes
desse sistema social que incidem e condicionam a regulação dos experimentos analisados e,
para tanto, iniciar a análise sobre o mercado capitalista. Agora, aprofundaremos essa análise.
Prosseguindo no exame crítico de determinações da “economia solidária” nas suas
relações com a realidade do sistema capitalista, trataremos, nesse momento, de demonstrar
dois movimentos que, a nosso ver, estruturam esse projeto social: a transmutação do valor de
troca em solidariedade e a transformação de qualidades solidárias em mercadorias
213
.
213
Os pontos centrais dessa análise foram apresentados num paper intitulado “Para a crítica da ‘economia
solidária’” durante o primeiro exame avaliativo doutoral que teve como banca examinadora, além de meu
orientador Carlos Montaño, os professores José Paulo Netto e Virgínia Fontes. Busquei incorporar, dentro das
minhas limitações, grande parte das sugestões e críticas levantadas pela banca. Depois de incorporar algumas
modificações, realizei um resumo desse texto que foi publicado, com o mesmo nome e encontra-se disponível
em Wellen, 2008.
208
Conforme veremos a seguir, o primeiro ponto de destaque de nossa análise crítica das
relações entre a “economia solidária” e o mercado capitalista remete ao fato desse projeto
preconizar o uso do capital como uma escolha individual e que, para tanto, seus autores
promovem uma visão mistificadora da atual fase do capitalismo, tratando as vontades
humanas como independentes das determinações do capital. Esse recurso serve
ideologicamente para justificar que o capital não representaria uma força ativa na totalidade
social, mas que seria induzido de acordo com a subjetividade de cada um dos seus portadores.
Com a vigência dessa pseudo-realidade, os representantes desse projeto apelam para a boa
vontade das pessoas, para que essas façam um uso solidário do seu capital particular,
ampliado, dessa forma, a “economia solidária”.
Em momento complementar, apontaremos para a mistificação do uso da solidariedade
como diferencial competitivo a serviço de organizações da “economia solidária”. Propomos
uma leitura crítica da conjectura de que essas organizações por causa do seu peculiar trato
aos trabalhadores e clientes – disporiam de autênticas qualidades subjetivas e que estas
representariam vantagens competitivas frente às empresas capitalistas. Trataremos essas
posturas como formas ideológicas e mistificadoras que servem para intensificar processos de
alienação humana.
4.1. O valor de troca como solidariedade
Como vimos brevemente no capítulo anterior, uma das hipóteses levantadas por
representantes da “economia solidária” é que a competição seria vantajosa para ambas as
partes da relação comercial, uma vez que, ao mesmo tempo que “permite a todos nós
consumidores escolher o que mais nos satisfaz pelo menor preço”, a concorrência também
possibilita “que o melhor vença, uma vez que as empresas que mais vendem são as que mais
lucram e mais crescem, ao passo que as que menos vendem dão prejuízo e se não
conseguirem mais clientes acabarão por fechar” (SINGER, 2002, p. 07).
Da mesma forma, reafirmamos que, dentro dessa perspectiva, o mercado aparece
como espaço propício para a realização da liberdade humana, no qual cada indivíduo poderia
efetivar suas escolhas de acordo com sua subjetividade: “o indivíduo tem o direito de tomar
uma iniciativa, abrir uma empresa ou vender o fruto do seu trabalho. O mercado não é um
209
mal, ele é uma forma de realização individual” (SINGER, 1998, p. 113). Seria, portanto, o
local privilegiado para se colocar em prática a iniciativa de cada um. Conforme afirma Singer,
o “mercado de trabalho
214
é condição de liberdade humana e alguns mercados de bens e de
serviços me parecem igualmente essenciais, porque uma das liberdades interessantes é a de
iniciativa” (IDEM).
No entanto, segundo autores da “economia solidária”, apesar de representarem
elementos positivos para toda a sociedade, tanto a competição quanto a sua efetivação pela
instância do mercado possuem qualidades que precisariam ser obstruídas. Isso se deve ao fato
de que a existência das desigualdades imanentes ao sistema capitalista teria a sua fonte nas
diferenças particulares historicamente construídas, visto que, enquanto uns conseguiram
acumular capital, outros apenas alcançaram maiores prejuízos. Ou seja,
enquanto os primeiros acumulam capital, galgam posições e avançam nas carreiras,
os últimos acumulam dívidas pelas quais devem pagar juros cada vez maiores, são
despedidos ou ficam desempregados até que se tornam inempregáveis, o que
significa que as derrotas os marcaram tanto que ninguém mais quer empregá-los.
Vantagens e desvantagens são legadas de pais para filhos e para netos. Os
descendentes dos que acumularam capital ou prestígio profissional, artístico etc,
entram na competição econômica com nítida vantagem em relação aos descendentes
dos que se arruinaram, empobreceram e foram socialmente excluídos. O que acaba
produzindo sociedades profundamente desiguais (SINGER, 2002, p. 08 - 09).
Sob esse prisma, as diferenças sociais provenientes de ações particulares promovem a
tal ponto as desigualdades sociais, que estas se tornam pilares para as contradições sociais
entre perdedores e ganhadores. Para o autor é esse o fato que “explica porque o capitalismo
produz desigualdade crescente, verdadeira polarização entre ganhadores e perdedores”
(IDEM). Essa posição torna-se explícita no discurso de outro autor que, além de criador e
defensor de experiências da economia solidária”, tornou-se mundialmente conhecido em
2006, quando agraciado pelo Prêmio Nobel da Paz: Muhammad Yunus. Segundo este autor,
nos
Estados Unidos descobri que a economia de mercado liberava o indivíduo e lhe
permitia fazer escolhas pessoais. O único inconveniente é que ela favorece os
poderosos. Mas eu achava que os pobres deveriam tirar proveito do sistema para
melhorar a sua sorte (YUNUS; JOLIS, 2006, p. 261).
Ou seja, lastima-se que o único inconveniente do mercado capitalista seja o favorecimento dos
poderosos.
Dentro dessa perspectiva, ainda que o mercado representasse um local de afirmação
dos interesses individuais, seria preciso a imposição de limites sociais para regular as
214
Ressaltamos que nessa passagem o autor usa os termos mercado e mercado de trabalho com o mesmo
sentido, sendo esse um dos exemplos da falta de precisão e rigor nos termos utilizados por autores da “economia
solidária”.
210
desigualdades sociais e essa, seria, segundo o represente máximo da “economia solidária” no
Brasil, a qualidade central que distinguiria o capitalismo do socialismo. A diferença entre o
sistema socialista e o sistema capitalista encontrar-se-ia nessa forma de regular a sociedade,
pois, enquanto este permitiria a existência de grandes diferenças entre vantagens e
desvantagens sociais, aquele instauraria instituições para abrandar essa desigualdade.
A peculiaridade do socialismo estaria presente, então, na adição de uma qualidade
imprescindível: a tentativa de amenização das desigualdades sociais. Após o livre
funcionamento do mercado, entraria em ação uma instituição para redistribuir vantagens
adquiridas: “o que o socialismo tem a mais é que, depois que o jogo do mercado é feito,
depois que os ganhadores e os perdedores estão definidos, deve existir uma instituição que tira
uma grande parte dos bens materiais dos ganhadores e para os perdedores” (SINGER,
1998, p. 114). Esse alegórico tipo de socialismo representaria a manutenção não apenas do
mercado, mas também do Estado, ou seja, muito mais um sinônimo de keynesianismo, do que
o socialismo como fase de transição para o comunismo. Numa terminologia que marcou o
debate do último quartel do século passado, trata-se de uma defesa, ainda que aportando
elementos mais precários, do chamado “socialismo de mercado
215
”.
Tal qual a proposta aventada décadas atrás (ou de forma mais obtusa), essa idéia
presente na “economia solidária”, que apresenta uma crítica romântica ao sistema capitalista,
esconde fortes resquícios da legitimação da ordem societária determinada pela lógica do
capital. A definição do mercado como um resultado de ações individuais possui um lastro
ideológico baseado na defesa do uso particular feito do capital como causa central das
desigualdades sociais e, de maneira tautológica, encontra-se a premissa de que o capital tem o
seu destino determinado pelo uso particular. O capital, de acordo com esse pensamento,
aparece não como dominante, mas como dominado; não é tido como uma força social que
gera determinações, mas como sendo condicionado pelo emprego feito pelas pessoas, o que,
no extremo, induz a uma análise moralista ou valorativa da sociedade, uma vez que seria a
utilização particular feita do capital, e não as determinações da universalidade de sua gica,
que configuraria a sociedade.
Dessa forma, desconsidera-se que o imperativo regulador do comportamento dos
capitalistas não se origina de sentimentos morais particulares e que tais atitudes são norteadas
por imposições advindas da força social do capital. Tais análises, em nenhum momento,
observam que
215
Uma análise desmistificadora desse tipo de socialismo encontra-se em Mandel (1991).
211
capitalistas não partilham o mundo levados por uma particular perversidade, mas
porque o grau de concentração a que se chegou os obriga a seguir esse caminho para
obterem lucros; e repartem-no ‘segundo o capital’, ‘segundo a força’; qualquer outro
processo de partilha é impossível no sistema da produção mercantil e no capitalismo
(LÊNIN, 1980b, p. 631).
A defesa da competição e do mercado como uma entidade voltada para a realização
individual, mesmo estando ligada à denúncia da desvantagem social proveniente de diferenças
sociais acumuladas, nega a discussão central do próprio capital como uma força social, como
causa geradora dessas desigualdades, sendo sua proposta de fornecimento de vantagens para
quem não as tem uma forma de legitimação dessa mesma força social, não tocando, portanto,
na causa do problema. A idéia “de que o mercado é essencial ao socialismo” (SINGER, 1998,
p. 113), estabelece-se, nesse sentido, negando aquilo que é próprio da especificidade do
mercado em sua concretude capitalista: o lócus privilegiado de atuação das forças do capital,
tanto de aquisição de força de trabalho quanto de realização de mais-valia.
O que nos parece importante de ser ressaltado é que o que ocorre nesse meio não é
apenas uma maneira de velar as especificidades do sistema capitalista, mas uma tentativa de
promover um retorno àquilo que existia antes de sua vigência. O discurso da “economia
solidária” apresenta-se como uma expressão alienadora, visto que se estabelece a partir da
negação do capital enquanto uma força social que articula as relações sociais dentro da ordem
capitalista. Entendemos que a base dessa mistificação advém da posição historicamente
regressiva de enxergar a forma atual de relações mercantis como algo anterior ao capitalismo
moderno, isto é, como sendo estruturada pela circulação simples de mercadorias. Mesmo sem
proporcionar uma transformação social que elimine as determinações do capital, a “economia
solidária” concerniria um retorno fictício à circulação M – D – M
216
.
Nessa visão, sendo o valor de troca um meio para comprar valor de uso, o dinheiro
serve apenas para atender às necessidades sociais e aos interesses particulares. Essa imagem
encontra-se, em gradações distintas, presente nas formas como os teóricos da “economia
solidária” visualizam o mercado capitalista. Por isso que esse tipo de organização produtiva se
coloca como supostamente capacitada para superar o modo de produção capitalista,
constituindo-se como modelo alternativo. Com esse artifício, se inverte de maneira fantasiosa
a relação D M D’ para M D M, uma vez que a produção teria o homem como
epicentro. Promove-se, pois, o efeito ilustrativo da subsunção do valor de troca pelo valor de
uso.
216
“Na circulação M – D M, o dinheiro é finalmente transformado em mercadoria que serve de valor de uso. O
dinheiro está, pois, definitivamente gasto. Na forma inversa, D M D, o comprador gasta dinheiro para como
vendedor receber dinheiro” (MARX, 1985, p. 126).
212
Tal análise teórica expressa, no máximo, uma crítica romântica ao capitalismo,
buscando alertar para a necessidade de inserir o ser humano como finalidade das relações
econômicas do mercado. No entanto, rogar pela existência de tal propriedade dentro de um
modo de produção baseado na propriedade privada e na exploração do trabalho, significa um
trabalho de Sísifo e, por isso, esse apelo não passa de um sentimentalismo sem utilidade
217
.
Além disso, essa idéia se baseia na negação daquilo que os economistas políticos clássicos
expuseram de mais avançado: a defesa da teoria do valor-trabalho. Um exemplo dessa posição
regressiva pode ser observado nas críticas que Carl Menger, o fundador da Escola Austríaca
de Economia, realizou contra Adam Smith:
A desumanização do homem, causada pela divisão do trabalho, seria impensável
para Menger, visto que, para ele, a troca é um meio e não um fim, como
supostamente imagina que assim teria entendido o autor de A Riqueza das nações.
De fato, em sua crítica a Smith, acusava-o por ter pensado a troca como um dos
princípios constitutivos da natureza humana, como se daí pudesse concluir, como de
fato o fez, que intercâmbio de mercadorias é um fim que se justifica por si mesmo.
Partindo dessa conclusão, Menger julga que Smith teria, dessa forma, desvirtuado o
próprio fim da economia, que é o de promover a produção da vida e do bem-estar
geral dos homens. Se a economia existe em função dos homens, de suas
necessidades, a troca pode ser vista como um meio, nunca como um fim
(TEIXEIRA, 2004, p. 83).
Como veremos mais adiante, por trás de apelos sentimentalistas tais como esse de
Menger, não se encontra apenas uma mistificada análise sobre o mercado capitalista, mas
todas as implicações negativas advindas da anulação da teoria do valor-trabalho apresentada
pelos economistas políticos clássicos e apropriada por Marx. É impossível que uma
economia
218
estruturada pela produção de mercadorias que encontra sua expressão nas
relações de troca presentes no mercado, destine sua finalidade ao bem-estar dos homens. É
também por isso que, nesse quesito, todas as promessas capitalistas de equilíbrio social, desde
217
Sobre esse tema, merece menção à seguinte passagem de Marx (1980, p. 549): “com razão para o seu tempo,
Ricardo considera o modo capitalista de produção o mais vantajoso para a produção em geral, o mais vantajoso
para a geração de riquezas. Quer a produção pela produção, e está certo. Querer sustentar, como fizeram os
adversários sentimentais de Ricardo, que a produção como tal não é o objetivo, é esquecer que a produção pela
produção significa apenas o desenvolvimento das forças produtivas humanas, ou seja, desenvolvimento da
riqueza da natureza humana como fim em si. Opor a essa finalidade o bem do indivíduo, é afirmar que o
desenvolvimento da espécie tem de ser detido para a assegurar o bem do indivíduo, e que assim não se deve, por
exemplo, conduzir uma guerra onde, seja como for, alguns indivíduos pereçam (Sismondi tem razão contra os
economistas que dissimulam ou negam essa contradição). Além da inutilidade de tais meditações edificantes,
deixa-se de compreender que esse desenvolvimento das aptidões da espécie humana, embora se faça de início às
custas da maioria dos indivíduos e de classes inteiras, por fim rompe esse antagonismo e coincide com o
desenvolvimento do indivíduo isolado; que assim o desenvolvimento mais alto da individualidade se
conquista por meio de um processo histórico em que os indivíduos são sacrificados”.
218
Utilizamos o termo economia aqui da forma apresenta por Marx e não aquele reduzida pelo senso comum e
por economistas vulgares, ou seja, como estrutura produtiva disponível para que os homens produzam as
condições materiais de reprodução social.
213
a “mão invisível de Smith”, passando pelo “Estado de Bem-Estar Social” de Keynes, até
chegar ao hibridismo do “socialismo de mercado”, foram reprovadas pela história.
Para se conseguir visualizar relações de troca voltadas para o bem-estar social dentro
do mercado capitalista, torna-se necessário erguer um construto de sociedade que suspenda as
determinações do desenvolvimento histórico. Por isso que, no caso de Menger, sua teoria do
valor baseou-se em premissas de um modelo de sociedade de vários séculos atrás e, mais
especificamente, aquela vivenciada e analisada por Aristóteles, pois, assim como “Aristóteles,
Menger a troca não como uma finalidade em si mesma, cujo objetivo seria a busca da
riqueza pela riqueza, mas sim como um meio mediante o qual os homens adquirem os bens
necessários para o atendimento de suas necessidades e do seu bem-estar” (TEIXEIRA, 2004,
p. 86). Nesse ponto, analogamente ao pensador grego
219
, o economista austríaco acredita que
as relações de troca deveriam destinar-se ao interesse coletivo e, portanto, “diferentemente de
Smith e Ricardo, para quem a troca tem como finalidade a obtenção do maior lucro possível,
para Menger não a troca mas também o dinheiro são meios de que se serve o homem para
adquirir as coisas necessárias a uma vida boa” (IDEM, p. 111).
Contudo, a diferença entre os dois pensadores é que, enquanto Aristóteles ergueu seu
pensamento a partir das determinações do seu contexto social, Menger realiza tal empreitada
não com base na sociedade em que viveu, mas imaginando as mesmas necessidades e
possibilidades que as vivenciadas pelo pensador grego. Por isso que, enquanto Aristóteles
conseguiu pensar o indivíduo a partir das relações sociais presentes na totalidade da
sociedade, Menger desconsidera tais conexões e pensa os sujeitos de forma autônoma ao
processo histórico
220
. A imaginação de uma teoria subjetiva do valor de troca se processa
exatamente a partir desse manancial mistificador. Por outro lado, a grandeza de Aristóteles
resulta da sua capacidade de identificar as determinações que consubstanciaram sua época
histórica:
Que na forma dos valores de mercadorias todos os trabalhos são expressos como
trabalho humano igual, e portanto como equivalentes, não podia Aristóteles deduzir
da própria forma de valor, porque a sociedade grega baseava-se no trabalho escravo
e tinha, portanto, por base natural a desigualdade entre os homens e suas forças de
trabalho. O segredo da expansão do valor, a igualdade e a equivalência de todos os
trabalhos, porque e na medida em que são trabalho humano em geral, somente pode
ser decifrado quando o conceito de igualdade humana possui a consciência de um
preconceito popular. Mas isso é possível numa sociedade na qual a mercadoria é
219
Como veremos adiante, essa similitude é apenas ideal visto que se tratam de contextos sócio-históricos
distintos. Essa é uma das razões que determinam a grandiosidade de Aristóteles e a mistificação de Menger.
220
Nas palavras de Teixeira (2004, p. 115): “É essa concepção de homem que Menger tem em mente. Tudo
indica que é assim mesmo, pois, diferentemente de Aristóteles, ele pensa o indivíduo sem referência às
instituições, como indivíduo-mônada, dotado de poder de escolha, que lhe permite alcançar o seu bem-estar
individual. Neste sentido, para ele, a essência da sociedade é pensada a partir do indivíduo”.
214
a forma geral do produto de trabalho, por conseguinte também a relação das pessoas
umas com as outras enquanto possuidoras de mercadorias é a relação dominante. O
gênio de Aristóteles resplandece justamente em que ele descobre uma relação de
igualdade na expressão de valor das mercadorias. Somente as limitações históricas
da sociedade, na qual ele viveu, o impediram de descobrir em que consiste ‘em
verdade’ essa relação de igualdade (MARX, 1985, p. 62).
De forma semelhante a Menger, a perspectiva apresentada na “economia solidária”
mesmo que, dependendo do autor analisado, apresente gradações diferentes coloca-se no
sentido de resgate das relações sociais existentes antes da ascensão do modo de produção
capitalista e do valor de troca como regulador das permutas do mercado. Mesmo com níveis
quantitativos distintos, o que permanece na tese da “economia solidária” é a tentativa de
superação da mediação social da mercadoria enquanto valor de troca pela mercadoria
enquanto valor de uso. A nosso ver, as variações entre as posturas particulares dos autores
221
são apenas de forma e o de conteúdo, mantendo-se o movimento teórico que denominamos
de visualização do valor de troca como solidariedade.
Na essência dessa assertiva encontra-se um retrocesso ideológico às formas pré-
capitalistas: o valor de uso servindo como base para as relações de troca no mercado. Essa
idéia não apenas é fantasiosa no sentido de combater o capital pela via de subjetivização da
sua base o valor de troca como propõe uma saída mistificadora, pelo entendimento das
relações de troca por meio do valor de uso, ou da utilidade social. Nesse pensamento não está
incluso o fato de que, na sociedade capitalista, o valor de troca passa por uma elevação
qualitativa que faz abstrair nas relações mercantis as especificidades da utilidade específica de
cada mercadoria
222
, uma vez que a mercadoria torna-se a mediação universal das relações
sociais, subordinando os parâmetros de subjetividade.
A diferença entre as determinações que perpassam a realidade concreta capitalista e a
perspectiva analítica presente na “economia solidária” se torna mais fácil de ser apreendida a
partir da comparação entre a circulação simples de mercadorias e a circulação do dinheiro na
sua forma de capital:
Assim como na circulação simples de mercadorias a dupla mudança de lugar da
mesma peça monetária acarreta a sua transferência definitiva de uma mão para
outra, assim aqui a dupla mudança da mesma mercadoria acarreta o refluxo do
dinheiro a seu primeiro ponto de partida (MARX, 1985, p. 127).
221
Tentamos apresentar algumas particularidades de autores e correntes integrantes da “economia solidária” no
capítulo 02.
222
Isso é, que “no valor econômico se verifica [...] uma elevação qualitativa”, visto que “o caráter de utilidade do
valor passa por uma elevação ao universal, em todos os domínios da vida humana, e por isso ocorre
simultaneamente ao se tornar cada vez mais abstrata a utilidade [...]” (LUKÁCS apud LESSA, 2002, p. 133).
215
No primeiro caso, a mercadoria representa o começo e o fim da equação e, desta
forma, ocorre apenas uma troca equilibrada entre as duas partes: a primeira pessoa troca sua
produção com a terceira pessoa, tendo como intermediário o portador do dinheiro. O dinheiro,
dentro desse contexto, é subsumido pelo interesse recíproco de necessidade social de cada um
dos produtores, que passam a ser também consumidores. Já no segundo caso, (isto é, a
circulação de dinheiro), o dinheiro deixa de ser o elo intermediário para se tornar a causa e a
finalidade da relação de troca; deixa de ter a simples função de ligação entre as duas partes
interessadas no valor de uso das mercadorias para se tornar a única meta a ser alcançada. No
lugar do valor de uso subsumir o valor de troca, na segunda forma de circulação, o valor de
troca é que passa a subsumir o valor de uso. É essa a especificidade do mercado capitalista.
“Essa é, portanto, uma diferença que salta aos olhos entre a circulação do dinheiro como
capital e sua circulação como mero dinheiro” (IDEM).
O que pretendemos demonstrar com isso é que a mistificação promovida pelos
representantes da “economia solidária” tem sua gênese no processo de manipulação e
desvirtuamento da essência do mercado atual. Essa visão aparece desprovida de grande parte
das determinações provenientes do capitalismo moderno, apreendendo a fase atual do
capitalismo pela imagem de mercado embrionário. Não se leva em conta que, no capitalismo
moderno, o valor de troca deixa de ser um meio das relações de troca para tornar-se uma meta
suprema; fazendo surgir o capitalista como a figura do capital personalizado. Em outras
palavras, omite-se que:
O conteúdo objetivo daquela circulação – a valorização do valor – é sua meta
subjetiva, e só enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata é o único
motivo indutor de suas operações, ele funciona como capitalista ou capital
personificado, dotado de vontade e consciência (IDEM, p. 129).
Como conseqüência dessa apreensão equivocada da realidade, apresenta-se, dentro das
premissas da “economia solidária”, a possibilidade de que as organizações integrantes desse
projeto se localizem num espaço alheio ao domínio do capital, ou seja, nos interstícios do
sistema capitalista
223
. Não somente isso, pois, no entender de Singer (2002, p. 88), ainda que
se encontre nos interstícios do mercado capitalista, o cooperativismo teria realizado uma
importante intervenção econômica de obstrução à ampliação do domínio do capital: se “o
cooperativismo desempenhou e desempenha um papel de freio à centralização do capital ao
223
Essa discussão tem no seu bojo distintas análises setorialistas da realidade capitalista. Dentre estas, poder-se-
ia destacar a ideologia presente na categoria “alternativo”, conforme demonstra Iamamoto (2004).
216
menos num setor, ele não passa de um modo de produção intersticial nas formações
capitalistas”
224
.
A idéia de que a “economia solidária” poderia servir para frear o capitalismo, assim
como salvaguardar as pessoas através da criação e manutenção de pequenos empreendimentos
econômicos resulta de uma falsa apreensão da realidade atual
225
. Para que tal hipótese fosse
minimamente plausível seria necessário que existisse uma relação de igualdade entre os
agentes econômicos que integram o mercado capitalista e, quando se apreende as
determinações da totalidade social, tal postulado torna-se impossível de implementação. Em
verdade existe, por trás desse axioma, a legitimação do capitalismo através da veiculação da
ideologia liberal:
O apelo à ‘solução’ é operacionalizado por intermédio dos postulados da Doutrina
Cooperativista, que reflete por sua vez uma ideologia liberal competitiva no sentido
clássico do termo. Isto é, tudo se passa como se vivêssemos em uma economia de
pequenas e médias unidades produtivas num regime de concorrência perfeita. Ora,
os postulados da ideologia liberal clássica não são mais funcionais – se jamais o
foram – para as condições econômicas do século XX, máxime em um país como o
Brasil que tem a sua estrutura produtiva, tanto agrícola como industrial, fortemente
condicionada por centros capitalistas hegemônicos. E aí está o equívoco, mas não é
um equívoco apenas ‘técnico’, mas reflete justamente o papel do cooperativismo em
geral utilizado pelas classes dominantes como paliativo econômico e ‘esperança
honrosa’ dos que não podem ‘competir individualmente’. Foi nesse sentido que
falamos anteriormente de um ‘cooperativismo marginal’, isto é, um cooperativismo
pensado não como política econômica global do país, mas um cooperativismo para
‘remendar’ as lacunas sociais e econômicas muito gritantes do sistema. Para isto a
Doutrina Cooperativista é tremendamente funcional e portanto conservadora, pois,
como fóssil da ideologia liberal clássica, revestida ademais de um apelo ‘igualitário
e humanista’, dá a entender que na nossa época de multinacionais, de monopólios,
de incentivos fiscais do setor privado ‘individual’, basta a união de alguns homens e
centavos para ‘fazer a força’ (RIOS, 1979, p. 129).
O próprio representante da “economia solidária” se aproxima dessa análise ao
explicitar que “a revolução industrial gera forças produtivas que não cabem no quadro da
produção simples de mercadorias” e tal ato condicionou o crescimento das empresas uma vez
que “o custo do maquinário exige a apropriação capitalista do excedente social e sua
acumulação sob a forma de capital industrial, num primeiro momento, e de capital acionista
em seguida” (SINGER, 1999, p, 107). No entanto, tal exame parece ter sido desconsiderado
para se incrementar a defesa da “economia solidária” e, para ilustrar a referida função social
224
Afirmação que não passa de uma mistificação ideológica como demonstram amplamente vários autores.
Dentre estes poderíamos destacar: TAVARES (2004); MONTAÑO (2005; 1999); LIMA (2003; 1998);
GERMER (2006).
225
Nesse sentido, concordamos com a seguinte afirmação Rios (1979, p. 129 130): “Julgamos que um
equívoco fundamental na maneira como costuma ser incrementado o cooperativismo. O mesmo costuma ser
apresentado como ‘tábua de salvação econômica’ de categorias de baixa renda, tais como pescadores artesanais,
pequenos agricultores, artesãos, etc”.
217
de freio ao domínio do capitalismo, o autor nos remete a diversas formas de cooperativismo,
como o de compra e venda e o agrícola. No primeiro caso, para ele, “o cooperativismo de
compras e vendas se insere em interstícios da economia em que a tendência centralizadora do
capital, entregue a seu curso natural, destruiria a pequena produção de mercadorias”
(SINGER, 2002, p. 88). Já em relação ao cooperativismo agrícola,
não cabe dúvida de que se hoje ainda predomina na maioria dos países a agricultura
familiar, praticada em pequenas e médias propriedades, sobretudo pelos próprios
proprietários e seus familiares, isso se deve aos efeitos do cooperativismo, que dão à
agricultura familiar competitividade e, portanto, possibilidade de resistir e se
reproduzir (IDEM, p. 87).
Porém esta premissa não é propriedade particular dos teóricos da “economia
solidária”, mas integra um rosário de autores muito maior. A proposta de superação do
sistema capitalista pela via dos interstícios do capital também está presente em textos dos
defensores do “trabalho imaterial”, uma vez que, para estes autores, de forma semelhante, as
transformações sociais surgiriam nos interstícios do capitalismo. Explicita Lessa (2004, p.
05), que
Negri, Lazzarato e Hardt, cuja tese mais conhecida é a do trabalho imaterial, propõem
uma nova teoria da história. Segundo eles, as transformações em curso seriam a afirmação do
modo de produção comunista nos ‘interstícios’ do capitalismo”.
Estamos diante, portanto, não de
uma proposição particular sobre as alternativas de superação da ordem capitalista, mas de um
fundamento que perpassa diferentes matizes. Não é nosso dever aqui encontrar as similitudes
e diferenças que existem entre a economia solidária” e a perspectiva do “trabalho imaterial”,
mas apontar que este aspecto manipulador está localizado em ambos os projetos.
A mistificação está em achar que alguma parte do mercado, por mais isolada que seja,
vai estar ausente de determinações capitalistas e, por isso, pode ser passível de não ser vista
como área de promissora lucratividade
226
. Para demonstrar tal mistificação, remetemo-nos às
palavras de Netto (2005, p. 38 39), quando este afirma que, a partir da fase imperialista do
capitalismo, surge uma tendência de apropriação de todos os complexos sociais pela lógica da
mercantilização:
Na idade do imperialismo, a organização monopólica da vida social tende a
preencher todos os interstícios da vida pública e da vida privada; a subordinação ao
movimento do capital deixa de ter como limites imediatos os territórios da
produção: a tendência manipuladora e controladora que lhe é própria desborda os
campos que até então ocupara (no capitalismo concorrencial), domina
estrategicamente a circulação e o consumo e articula uma indução comportamental
para penetrar a totalidade da existência dos agentes sociais particulares.
226
Até Sua Santidade, o Papa Bento XVI, tornou-se recurso mercadológico para aumento de vendas: “a dos
brasileiros tem feito com que as lojas que comercializam artigos religiosos comemorem o aumento das vendas. O
aquecimento do mercado é conseqüência da vinda do Papa Bento XVI ao Brasil” (GORRITI, 2007).
218
Com o marco desse novo contexto histórico, não apenas os setores diretamente ligados
à produção capitalista foram aprisionados pelo interesse do capital, mas também as demais
esferas sociais: “o monopólio, uma vez que foi constituído e controla milhares de milhões,
penetra de maneira absolutamente inevitável em todos os aspectos da vida social,
independentemente do regime político e de qualquer outra ‘particularidade’” (LÊNIN, 1980b,
p. 618). Essa é uma das diferenças que distingue a fase monopolista ou imperialista do
capitalismo de sua fase embrionária, ou concorrencial
227
. Como frisamos anteriormente, ao
defender a existência dos “interstícios do capitalismo”, teríamos que advogar também um
retorno à sua fase concorrencial. Para a permanência de um intervalo social entre as partes
dominadas do capital, faz-se necessário a suposição de que o capital ainda não tinha entrado
na fase monopolista, e que não tenha a tendência de mercantilização da totalidade social.
Da mesma forma, por meio dessa perspectiva, suscita-se o seguinte problema lógico:
se a localização dessas organizações ocorre nos interstícios do capitalismo, como a “economia
solidária” poderia representar uma barreira ao capital? Para se constituir enquanto barreira à
centralização do capital não necessitaria localizar-se no mesmo campo de disputa, gerando,
com isso, embate e tensionamento? Ou, por outro lado, o que se pretende afirmar com tal
premissa é que o freio ao capital ocorre para que esse não se espraie para áreas até então sem
interesse direto?
Na fase atual, diferentemente dos primórdios da ascensão do sistema capitalista, o
capital passou a saturar todos os espaços e pólos e relações mercantis, e isso não é visto
apenas pelo próprio mercado na sua esfera sui generis – a economia –, mas também em outros
complexos sociais. Para visualizar esse movimento basta uma leitura sobre a vigência da
reificação como forma de mercantilização das mais distintas formas de objetivação do ser
social. Com a vida social saturada de determinações capitalistas, com suas variadas esferas
transformadas em mercadorias, poderíamos nos perguntar: qual seria o espaço de não
interesse do capital e, portanto, de atuação permissível da “economia solidária”?
Centralizando os esforços em escamotear a dinâmica da mercantilização das relações
sociais, os representantes da “economia solidária” apelam, ainda que de forma implícita,
contra a fase superior do capital, na qual todas as áreas – inclusive de especificidade direta da
subjetividade humana passaram a ser de interesse direto do capital. Assim, como seria
possível conciliar o combate ao processo de reificação em sua forma mais plena a
227
“Trata-se do período histórico em que ao capitalismo concorrencial sucede o capitalismo dos monopólios,
articulando o fenômeno global que, especialmente a partir dos estudos lenineanos, torna-se conhecido como o
estágio imperialista. E é também consensual que ‘o período do imperialismo ‘clássico’[situa-se] entre 1890 e
1940’ (Mandel, 1982, 3: 325)” (NETTO, 2005, p. 19).
219
mercantilização das relações sociais se o embate não acontece diretamente nas esferas em
que isso acontece
228
? Ao contrário, a “economia solidária”, localizando-se nos interstícios do
mercado capitalista, não possui lócus de atuação e, com isso, não pode prover uma superação
do capital.
Além disso, ao afirmar que as organizações que integram seu escopo são
majoritariamente de pequena produção de mercadorias, promove-se outra contradição: num
momento se defende que a “economia solidária” é um modo de produção intersticial ao
sistema capitalista e, no seguinte, que se trata de pequena produção de mercadorias. Como é
possível que, sendo produção de mercadorias, estas organizações estejam fora do circuito do
capital? Ou, inversamente: como poderia sobreviver no mercado capitalista sem produzir e
vender mercadorias?
A resposta para essas perguntas é apresentada por Singer, para quem tal espaço
econômico deveria ser criado a partir do esforço dos próprios desempregados que, mesmo
sem recursos financeiros nem meios de produção, conseguiriam obter sucesso no mercado.
Oliveira (2003, p. 17) cita uma entrevista em que Singer defende essa concepção:
O problema dos desempregados – assinala Singer – é que todos eles tentam trabalhar
individualmente, que não se pode deixar de trabalhar. Então, os mercados de venda
na rua e semelhantes estão absolutamente saturados pelo excesso de pessoas
tentando vender no mesmo lugar as mesmas coisas [...] O que se precisa fazer é
organizá-los pela cidade inteira e criar um mercado para eles. Eles m de construir
um mercado para si próprios; os desempregados m que solidariamente comprar
uns dos outros. E para isso o ideal seria criar uma grande cooperativa de trabalho e
de consumo ao mesmo tempo. Eles se associariam; e uma forma de proteger o
mercado deles seria criar uma moeda de cooperativa, que as pessoas receberiam e
aceitariam uns dos outros.
Além da incoerência gica, marcada pela falta de plausibilidade de que pessoas sem
renda e condições financeiras poderiam não apenas produzir, mas também consumir as
mercadorias produzidas por eles mesmos, esconde-se, por trás dessa idéia, um outro elemento
mistificador que é central para prover legitimidade ao capitalismo. Encontra-se, nessa
proposta de criação de um mercado para os desempregados, a defesa de que a
responsabilidade pela causa do desemprego e as alternativas para a saída dessa condição
negativa repousariam nos ombros daqueles que estão desempregados.
Com a defesa de um mercado solidário autônomo, promove-se uma análise que
fragmenta e isola os agentes econômicos de tal forma que não se identificam os laços
históricos que consubstanciaram o modo de produção capitalista e suas diversas
228
Poder-se-ia questionar, de forma análoga, como o construto mundo da vida” mais conhecido atualmente por
sua versão utilizada por Habermas, sendo uma entidade independente das determinações econômicas, poderia
solucionar as contradições sociais do capitalismo. Sobre isso ver Capítulo VIII de LESSA (2002); Capítulo I, 2.2
de MONTAÑO (2005); Capítulo III, 3.2.2 de OLIVEIRA (2007).
220
determinações, inclusive as causa da criação e ampliação do desemprego. Aderindo
ideologicamente a esse projeto, o trabalhador desempregado se auto-responsabiliza, junto com
outros trabalhadores desempregados, pela sua situação de desemprego, assim como pela busca
de maneiras autônomas de pôr fim a esse calvário. No fim das contas, os emissários do capital
aparecem como se não tivesse nada a ver com esses problemas e, por isso, devem ficar muito
agradecidos.
Essa mistificação se amplia quando autores desse projeto afirmam que, mesmo dentro
de um processo de produção de mercadorias, pode-se ter uma relação social isenta de
exploração e marcada por elementos de emancipação humana, ou seja, que as organizações de
“economia solidária” existiriam sem que fossem apropriadas e submetidas pelo interesse da
economia burguesa. Com isso, escondem que o “capital é a potência econômica da sociedade
burguesa, que domina tudo” (MARX, 1986b, p. 19), e que é somente a partir desse fato que se
pode analisar o funcionamento das relações de produção:
A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais
diferenciada de produção. As categorias que exprimem suas relações, a
compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas
relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas
ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva
de arrastão desenvolvendo tudo que fora antes apenas indicado que toma assim toda
a sua significação etc (IDEM, p. 17).
Relações de produção anteriores à sociedade burguesa são consubstanciadas a partir de
determinações advindas do capital, forjando formas deformadas ou desvirtuadas das
anteriores. Como “a própria sociedade burguesa é apenas uma forma opositiva do
desenvolvimento”, essas relações anteriores “só poderão ser novamente encontradas quando
completamente atrofiadas, ou mesmo disfarçadas; por exemplo, a propriedade comunal
(IDEM, p. 17). Além disso, como afirma Balibar (1992, p. 202)
ninguém pode ser excluído do mercado, simplesmente porque ninguém pode dele
sair, posto que o mercado é uma forma ou uma ‘formação social’ que não comporta
exterioridade. Dito de outra forma, quando alguém é expulso do mercado, na
realidade, funcionalmente ou não, ele é mantido em suas margens, e suas margens
estão sempre ainda no seu interior. Não seria o mercado essa estrutura ou instituição
paradoxal, talvez sem precedentes da história, que inclui sempre suas próprias
‘margens’ (e portanto seus próprios ‘marginais’) e que, finalmente, somente conhece
exclusão interna?
229
No nosso entendimento, o fator central presente na defesa da existência dos
interstícios do capitalismo é que, por meio da aceitação desse artifício, promove-se uma
representação ideal que não reflete as especificidades da fase atual do mercado capitalista. A
idéia de interstício dentro do capitalismo conduz à visualização da sociedade atual como se
229
Traduzido e citado por Fontes (2005, p. 25).
221
essa fosse constituída por meio de setores ou partes possuidoras de altos níveis de
autonomia
230
. Sob este prisma, interditam-se de forma imagética as relações de
interdependência entre as diversas esferas da sociedade capitalista madura, atribuindo a estas
uma posição de autonomia que não lhes é típica. Confunde-se aquilo que é referente às
sociedades pré-capitalistas com o que é exclusivo e fundamental da organização econômica
capitalista:
Essa situação de fato tem seu fundamento na diferença profunda entre a organização
econômica do capitalismo e a das sociedades pré-capitalistas. A diferença muito
surpreendente que mais nos importa agora é que toda sociedade pré-capitalista
forma uma unidade incomparavelmente menos coerente, do ponto de vista
econômico, do que a capitalista. Na primeira, a autonomia das partes é muito maior,
e suas interdependências econômicas são muito mais limitadas e menos
desenvolvidas do que no capitalismo. Quanto mais frágil o papel da circulação das
mercadorias na vida da sociedade como um todo, quanto mais cada uma das partes
da sociedade vive praticamente em autarquia econômica (comunas aldeãs) ou não
desempenha nenhum papel na vida propriamente econômica da sociedade e no
processo de produção em geral (como era o caso de importantes frações de cidadãos
nas vilas gregas e em Roma), tanto menos a forma unitária, a coesão organizacional
da sociedade e do Estado têm fundamento real na vida real da sociedade (LUKÁCS,
2003, p. 149).
Com base nessa apreensão da sociedade capitalista desenvolvida, realizada a partir da
apreensão de suas principais determinações, podemos refutar a tese de que existem espaços
vagos no mercado ainda não ocupados pelos interesses do capital, e que esses poderiam ser
apropriados por meio de experiências da “economia solidária”. Assim, questionamos a
validade da afirmativa de que a “economia solidária” poderia se expandir através de novas
organizações produtivas estruturadas em pequena escala, isto é, que:
As cooperativas de compras e vendas ganham novos espaços para se desenvolver à
medida que surgem atividades econômicas que podem ser desenvolvidas em
pequena escala, desde que os pequenos produtores se associem para gerar os
mesmos ganhos de escala que o grande capital (SINGER, 2002, p. 89).
Como referência teórica para essa problematização, são válidas as palavras do mesmo
autor citado, quando este, por ocasião da escrita da introdução do livro de Mandel (1982),
afirma que todos os espaços produtivos da economia mundial são, mais cedo ou mais tarde,
apropriados pelo capital:
Cada um desses períodos se divide por sua vez em duas ondas longas: uma primeira
com ‘tonalidade expansionista’, graças ao impulso proveniente da revolução
tecnológica; e uma segunda, com ‘tonalidade de estagnação’, quando aquele
impulso se esgota. Na descrição desse processo, por Mandel, o revolucionamento da
técnica desempenha um papel fundamental. Ela se inicia, em geral, por substituição
de fontes de energia e pela introdução correspondente de novos tipos de motores e
de máquinas, que vão renovando o capital fixo nos diversos ramos de produção.
230
Diferentemente dessa postura mistificadora, uma importante discussão concreta sobre a relação entre
autonomia das organizações produtivas e a planificação do mercado na fase de transição ao comunismo, pode ser
encontrada em: Guevara; Mandel; Bettelheim (2005).
222
Enquanto isso se dá, grande quantidade de oportunidades lucrativas de aplicação
de capital, o que constitui precisamente a onda longa com tonalidade expansionista.
Porém, mais cedo ou mais tarde, o revolucionamento da técnica acaba por alcançar
todos os ramos da produção da economia mundial e as oportunidades de
investimento começam a escassear. Ao mesmo tempo, como resultado da revolução
tecnológica, a composição orgânica do capital se eleva determinando a queda da
taxa média de lucro. Isso impede que novo revolucionamento da técnica ocorra em
seguida. O investimento cai, ficando parte do capital disponível ocioso (SINGER,
1982, p. XIV)
231
.
Diferentemente da fase embrionária do mercado capitalista, quando o processo de
expansão das empresas capitalistas encontrava-se tão-somente na sua forma nascente, a partir
da fase imperialista, o mercado torna-se consubstanciado por extremas relações de dominação
na totalidade social. Desta forma, a concorrência por margens de mercado perde seu caráter
clássico de competitividade (se algum dia foi assim) e esta passa a ter uma qualidade
secundária perante o surgimento dos monopólios. Tendo a busca pela mais-valia como razão
da sua existência, mesmo a visão de mercado capitalista ideal torna-se precária quando se tem
em seu bojo um determinante que contraria o seu equilíbrio: o monopólio
232
. Apesar de surgir
a partir das relações competitivas de troca, os interesses do capital chegam, portanto, a um
patamar superior, no qual o domínio submete a concorrência, o que leva a movimentos
econômicos de agigantamento das empresas, tornando-se grandes conglomerados
empresariais
233
. Conforme elucida Lênin, (1980b, p. 641):
O que de fundamental nesse processo, do ponto de vista econômico, é a
substituição da livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalistas. A livre
concorrência é a característica fundamental do capitalismo e da produção mercantil
em geral; o monopólio é precisamente o contrário da livre concorrência, mas esta
começou a transformar-se diante dos nossos olhos em monopólio, criando a grande
produção, eliminando a pequena, substituindo a grande produção por outra ainda
maior, e concentrando a produção e o capital a tal ponto que do seu seio surgiu e
surge o monopólio: os cartéis, os sindicatos, os trusts e, fundindo-se com eles, o
capital de uma escassa dezena de bancos que manipulam milhares de milhões. Ao
mesmo tempo, os monopólios, que derivam da livre concorrência, não a eliminam,
mas existem acima e ao lado dela, engendrando assim contradições, fricções e
231
Na mesma obra, mais à frente, Singer (1982, p. XVII), propõe uma equivocada crítica a Mandel no seguinte
sentido: “Outro aspecto que Mandel deixa de considerar é que as revoluções tecnológicas sobretudo as duas
últimas não consistem somente na mudança dos processos de produção de bens conhecidos mas também na
criação de novos bens e serviços de consumo – os chamados ‘novos produtos’ –, o que dá lugar ao surgimento de
novos ramos de produção”. Mesmo que concordássemos com essa afirmação, isso em nada invalida a nossa
crítica exposta, uma vez que a própria suscitação ou criação de novas necessidades e suas relações dialéticas com
os novos produtos se constitui a partir da lógica do capital e, em especial, de interesses dos grandes monopólios
capitalistas.
232
Apesar de configurar-se enquanto uma contradição racional, existe na própria lei do capitalismo o horizonte
do monopólio do mercado. Sobre isso ver o “Capítulo XXIII A Lei Geral da Acumulação Capitalista” em
MARX (1985).
233
Alguns exemplos atuais: fusão entre a Reuters e a Thompson Corporation, formando o maior grupo de
informações financeiras (Folha de São Paulo, 16/05/07); fusão entre as lojas Americanas e Submarino, somadas
com aquisição da Blockbuster e implementação da Financeira Americanas Itaú, obtendo um crescimento de
400% (Folha de São Paulo, 12/05/2007); “Compra do Capitalia pelo concorrente UniCredit forma principal
instituição da zona do euro e vice-líder na Europa, atrás do HSBC” (FONTAINE, 2007).
223
conflitos particularmente agudos e intensos. O monopólio é a transição do
capitalismo para um regime superior.
Ainda que não sejam apreendidas corretamente pelos representantes da “economia
solidária”, as determinações que são provenientes dessa fase do capitalismo provocam
impactos diretos na estrutura dessas organizações, o que faz surgir a necessidade de repensar
as relações dessas organizações com o mercado. Antigos axiomas precisam ser repensados à
luz destas novas configurações societárias. Esse é o caso, por exemplo, da premissa de que “a
grande vantagem inicial das cooperativas era o ‘mercado assegurado’ por um quadro de
sócios em plena expansão” proveniente do fato de que, com base na associação de
consumidores e com o uso de fundos emprestados, tornar-se-ia possível “concentrar a
atividade distributiva que lhe confere superioridade competitiva em relação ao comércio
preexistente, que na segunda metade do século ainda era pré-capitalista, estando nas mãos de
pequenos operadores” (SINGER, 2002, p. 52).
Apesar da explicitação de que a vantagem competitiva da “economia solidária” era
fruto de um período histórico marcado por características provenientes da sociedade pré-
capitalista, essa imagem é recorrente quando observamos que um dos ingredientes básicos
concernentes a esse processo que levaria ao “mercado assegurado” seria o apelo à vinculação
com comunidades locais. Conforme advoga Birchall (apud SINGER, 2002, p. 71), a vantagem
competitiva das organizações de “economia solidária” perante as empresas capitalistas estaria
no fato daquelas possuírem uma relação mais próxima com as comunidades, ou seja, que o
“‘segredo do sucesso do movimento é seu foco primordial em comunidades locais e sua
capacidade de reforçar o senso de identidade étnica’”
234
.
Busca-se apresentar, nesse caso, uma ligação entre organização econômica e a
comunidade onde esta se estabelece, qualificando essa relação como um diferencial
competitivo para a “economia solidária”. O apelo à comunidade faz surgir, como vimos
anteriormente, uma representação da sociedade estruturada a partir de esferas sociais
possuidoras de um elevado grau de autonomia, subestimando o desenvolvimento da
circulação de mercadorias e seus impactos sociais. A coesão social gerada pelo
desenvolvimento das relações econômicas aparece, dessa forma, desfalcada de grande parte
dos seus determinantes sociais. Em caso extremo, seríamos levados a compreender a
comunidade não apenas como lócus de atuação da organização econômica, mas como fonte
que promove o sentido subjetivo do trabalho.
234
Conforme veremos no próximo tópico, a ligação com a comunidade representa, mesmo para os integrantes
das organizações de “economia solidária” não uma vantagem competitiva, mas uma limitação de mercado.
224
A comunidade deixaria de ser uma esfera subordinada pelo movimento do capital e
pelas determinações do mercado capitalista, para concentrar em si mesma uma autonomia
coletiva de subjetividade
235
. Com esse artifício volta-se de maneira fictícia ao período anterior
em que a comunidade constituiu-se enquanto instituição que determinava o sentido do
trabalho:
É a comunidade que, baseando-se na produção, impede que o trabalho do indivíduo
seja trabalho privado e que seu produto seja produto privado e, ao contrário, faz o
trabalhador individual aparecer diretamente como função de um órgão dentro de um
organismo social (MARX, 1986, p. 35).
A diferença entre os dois períodos históricos está no fato de que, enquanto em
sociedades pré-capitalistas era a comunidade – como o centro das relações sociais com
elevado patamar de autonomia que determinava a natureza do trabalho individual, na fase
seguinte, após a divisão burguesa do trabalho e a massificação das relações mercantis, do
valor de troca e a vigência do capitalismo, a busca pela mais-valia surge como uma força
social que subsume a sociedade
236
. Esse processo cresce na medida em que o mercado se
expande, até o ponto em que o capital satura todos os pólos econômicos e sociais, e envolve a
partir de sua lógica particular todas as relações sociais. A mercadoria
237
deixa de ser apenas
um produto a ser trocado entre dois indivíduos interessados e passa a ser o objeto que
intermedia e operacionaliza as relações entre as pessoas. Não é a comunidade como
organismo social isolado que determina a natureza do trabalho, mas é a forma como se
organizam, na totalidade social, as relações de trabalho, que serve de base para a organização
da comunidade.
Logo na primeira frase de Para a Crítica da Economia Política, Marx (1986b, p. 03)
ressalta uma relação dialética entre o trabalho individual e a forma como a produção é
determinada socialmente: “indivíduos produzindo em sociedade, portanto a produção dos
indivíduos determinada socialmente, é por certo o ponto de partida”. Aqui aparecem duas
determinações: indivíduos produzindo em sociedade versus produção socialmente
determinante dos indivíduos, que resultam no entendimento de que os homens produzem as
mercadorias, mas as produzem a partir de condições pré-determinadas, sejam advindas da
natureza ou socialmente construídas. A relação entre indivíduo e sociedade precisa passar por
235
Com esse retorno à comunidade, promove-se uma aproximação ideológica com idéias positivistas e
moralistas, tais quais aquelas que apresentamos do Capítulo 02.
236
“Em outras palavras, a construção social da particularidade de cada momento histórico é uma função que
pertence à essência da categoria da reprodução, e não ao trabalho enquanto tal” (LESSA, 2002, p. 158).
237
Por isso que, “sem negligenciar, em absoluto, os aspectos quantitativos, o objeto primordial de Marx é
desvendar no valor a substância da mercadoria. Pois esta substância contém a relação básica da economia
capitalista” (GORENDER, 1986, p. XIV).
225
esse crivo dialético: são os homens que produzem e a produção se estabelece de forma
inclusive individual, nos laços cotidianos e singulares; entretanto não se pode fugir do fato de
que essa produção não se em abstrato, da forma como cada indivíduo desejaria, mas sofre
as determinações da forma como foi estruturada essa mesma sociedade.
Na perspectiva adotada por autores da “economia solidária”, essa relação dialética
entre indivíduo e sociedade torna-se fraturada na medida em que se hipostasia a importância
da autonomia subjetiva na organização social. Quando analisamos a afirmação de que,
O trabalho segundo tais pensamentos desempenharia hoje um papel eminente no
reforço das solidariedades colectivas, seria a maneira moderna do viver em comum e
da cooperação, permitiria aos indivíduos serem parte activa de uma relação social
maior (a relação de trabalho) e, através dela, integrarem-se na comunidade, na
sociedade em miniatura que é a empresa (MÉDA apud ROSENFIELD, 2003, p. 21),
percebemos que ocorre um processo de valoração individualizada que singulariza a incidência
do capital sobre a sociedade e, por isso, suspende as referências concretas para a apreensão do
mercado capitalista. É por isso que não podemos qualificar essa análise social como capaz de
identificar a essência da realidade e, portanto, como expressando aquilo que represente o
típico do mercado capitalista
238
.
Representa uma mistificação pensar que as relações internas dentro de uma
comunidade estão suspensas das determinações do capitalismo e que a economia solidária”
poderia forjar, de forma independente, um tipo de racionalidade peculiar. Para superar a
ideologia capitalista e fazer emergir qualidades autenticamente humanas, é preciso um
movimento que abarque a totalidade social e que não se restrinja à comunidade, isto é, que
não se limite à posição de que a “racionalidade assenta na comunidade de trabalho (Gaiger,
2005), a qual funda-se em vínculos de reciprocidade, que diluem as eventualmente rígidas
fronteiras entre interesses individuais e coletivos” (VERONESE, GUARESHI, 2005, p. 66).
Ainda que teçam críticas à exploração do trabalho
239
, os autores citados recorrem a um
grau mistificador de subjetividade como forma de superação das determinações do
capitalismo e, com isso, terminam por fazer remissão a uma autonomia socialmente
inexistente: “isso precisa ser garantido pelos mecanismos institucionais da gestão do
empreendimento, para que sua forma de racionalidade demarque-se como solidária e justa,
238
Como afirma Lukács (1991, p. 181): “para que ela seja típica, é preciso que os fatores que determinam a
essência mais íntima da sua personalidade pertençam objetivamente a uma das tendências importantes que
condicionam a evolução social”, ou ainda que “o típico define-se por se opor duplamente, ao mesmo tempo, ao
excepcional e ao singular” (IDEM, p. 182). Sobre as distinções entre as categorias singular, particular e universal
no pensamento marxista, ver: LUKÁCS (1978a).
239
Como afirmam os autores (idem): “também é apontado, como um fator positivo, a indivisão social entre
capital e trabalho, característica dos EES [Empreendimentos de Economia Solidária]. Quem trabalha, deverá
apropriar-se do produto final deste trabalho, além de participar da sua gestão e organização”. Sobre essa peculiar
visão de trabalho presente na “economia solidária” ver capítulo anterior.
226
implicando novos processos de subjetivação com sentido emancipatório” (VERONESE,
GUARESHI, 2005, p. 66).
Ao conceber a comunidade como setor de privilegiada autonomia social e, por isso,
como o epicentro de valoração humana, nega-se que o processo real de incidência das
determinações das relações recíprocas do mercado capitalista cause-lhe impactos diretos. Em
outras palavras, a comunidade é tratada como alheia ao domínio do capital. A dinâmica da
circulação de mercadorias seria, assim, um fato menor diante de qualidades peculiares dos
empreendimentos de “economia solidária”. Sob os olhos de representantes desse projeto
social, no lugar de ser subsumida pela lógica do capital, esta relação apareceria dentro dessas
organizações, da forma escolhida pelo arbítrio de cada um dos seus integrantes. O capital, sob
esse ponto de vista, não representaria uma força social, mas teria sua utilidade definida de
maneira individual ou, nesse caso específico, que o valor de troca poderia ser transformado
em solidariedade. Nega-se, assim, que,
A troca de mercadorias é o processo no qual o metabolismo social, isto é, a troca dos
produtos particulares dos indivíduos privados, é, ao mesmo tempo, a geração das
relações de produção sociais determinados, que os indivíduos contraem nesse
metabolismo. As relações recíprocas das mercadorias em processo se cristalizam
como determinações diferenciadas do equivalente geral, e assim o processo de troca
é simultaneamente processo de formação do dinheiro. A totalidade desse processo,
que se apresenta com o decorrer de processos distintos, é a circulação (MARX,
1986b, p. 47).
Seguindo as premissas presentes na economia solidária”, sendo a forma particular de
utilização do capital – feita de acordo com a vontade do seu possuidor individual – a base que
estruturaria e ergueria as regras societárias, então cada vez que se tivesse mais adeptos de um
projeto de uso solidário do capital particular, um nível mais alto seria alcançado rumo à
constituição de uma nova sociedade. O núcleo de formação e ampliação da “economia
solidária” estaria, justamente, no passo ulterior, não apenas no momento em que ocorreria o
uso solidário do capital particular, mas quando um agrupamento social detentor de vários
capitais particulares, os uniriam, transformando em capital coletivo, gerando novas formas de
relações mercantis solidárias.
Se, no primeiro momento, seria uma opção apenas particular, mas que se difundiria
aos poucos; na etapa seguinte, após os primeiros resultados de conscientização em relação ao
uso solidário do capital particular, os indivíduos solidários unir-se-iam em interesse e em
propriedade para que, a partir do agrupamento da produção solidária, ou do trabalho
cooperativo, conseguissem forjar um espaço no qual a relação de exploração inerente ao
próprio capital (antes individual, mas agora social, deixando, portanto de ser capital nesse
227
sentido de exploração do trabalho) fosse abolida por meio da relação de igualdade presente na
cooperação.
Como afirmamos na parte final do capítulo anterior, o problema metodológico dessa
premissa está em que, em todos os momentos, esse processo parte de uma perspectiva
individualizada. Tanto no primeiro nível, quanto no segundo que se apresenta como uma
derivação do primeiro sua validade é apenas imaginada quando negadas as determinações
do mercado capitalista e, conseqüentemente, da totalidade social. Observamos não somente a
defesa de uma dinâmica derivada de subjetividades singulares autonomizadas e isentas
inclusive de determinações da ideologia, mas portadora de um viés culturalista, valorativo e
voluntarista. A transformação social, no final das contas, apesar de aparecer como tendo seu
cerne no espaço da produção, tem seus pilares na esfera da subjetividade individualizada.
Por meio dessa análise, concluímos que existe no projeto da “economia solidária” um
elevado grau de voluntarismo que, por sua vez, pode ser relacionado diretamente com uma
posição filosófica idealista. Essa perspectiva relega a apreensão da totalidade social em prol
de aspectos avulsos: o “idealismo subjetivo, a partir da chamada aprioridade desta ou daquela
atitude em face da realidade, cria ‘mundos’ especialíssimos, isolados um do outro; esta
criação aparece, com particular evidência, em Simmel” (LUKÁCS, 1978, p. 160). Com a
vigência desse recurso, a perspectiva de universalidade é desmerecida e o que resulta da
análise teórica da realidade são representações falsas ou distorcidas. Fazendo uma analogia
com a legalidade estética, poderíamos parafrasear Lukács (1978, p. 163), quando este afirma
que:
Toda obra de valor discute intensamente a totalidade dos grandes problemas de sua
época; tão-somente nos períodos de decadência estas questões são evitadas, o que se
manifesta, nas obras, em parte como carência de real universalidade, em parte como
enunciação nua de universalidade não superada artisticamente (falsa e distorcidas
como conteúdo).
A limitação teórico-metodológica de análises restritas a aspectos singulares da
realidade proporciona um falso reflexo das determinações concretas do mercado capitalista,
elegendo como regra aquilo que é, na verdade, exceção. Ocorre, na “economia solidária”, uma
supervalorização do singular a tal ponto deste se tornar independente do contexto social que
lhe fornece sentido. No fim, promove-se uma fantasia de um modelo de sociedade resultante
das principais características elegidas e extraídas da realidade de forma subjetiva. O singular
deixa de ser um meio de compreensão das determinações da totalidade social, para ser a fonte
exclusiva da análise, como se nada fosse preciso além de si mesmo; nele estariam localizadas
a causa e a solução dos problemas sociais.
228
Como afirmamos na introdução de nossa tese, essa postura que supervaloriza o
singular em detrimento da totalidade social torna-se mais presente em contextos históricos
perpassados pela decadência ideológica: “teoria e práxis da decadência sublinham sempre a
singularidade, que se torna um fetiche como unicidade, irrepetibilidade, indissolubilidade,
etc” (LUKÁCS, 1978, p. 165)
240
. No final desse processo, a teoria, no lugar de se estabelecer
pela diminuição da distância inseparável entre a representação mental do movimento da
realidade e a própria realidade em si, produz uma suspensão fictícia dessa distância. Tal
procedimento desconsidera o fato de que o conhecimento não representa “a superação da
distância entre o subjetivo e o objetivo, mas justamente sua mais plena reprodução: apenas
tendo por mediação essa distância pode o conhecimento se realizar enquanto movimento de
constante aproximação da consciência ao ser” (LESSA, 2002, p. 98).
Consta nos anais da “economia solidária” a defesa de que existiria um impulso natural
do ser humano para produzir uma sociedade econômica nova, isenta de contradições sociais:
“o impulso natural de pessoas se unindo para se prover de bens e serviços produziria uma
sociedade econômica completamente nova
241
, que [Charles Guide] chamava de República
Cooperativa” (CRAIG apud SINGER, 2002, p. 53 - 54). De forma análoga ao que foi dito
anteriormente, entendemos que essa afirmação se estabelece sobre um falso dilema resultante
da forma de apreender a realidade a partir de características escolhidas de maneira individual.
A questão central não é se existem ou não qualidades humanas que se destinam a
superar a sociedade de classes, mas a forma que se estrutura tal pensamento: por meio de uma
análise isolada da realidade, na qual sentimentos são eleitos de forma individual para
representar idealmente aquilo que se almeja no mercado capitalista, ou seja, aquilo que é
singular é tratado como universal. Além disso, através das próprias palavras de Singer (2002,
p. 64), podemos observar a ilusão dessa posição valorativa: “novos membros tinham de ter,
além de bom caráter atestado por dois vizinhos, terra ou ao menos patrimônio tangível, como
gado e equipamentos”.
A perspectiva de superação do capitalismo via criação e fomento de organizações da
“economia solidária” passa, portanto, pelo apelo moralista uma vez que, para se tornar
plausível a defesa dessa alternativa, surge a necessidade de se defender uma falsa autonomia
240
“A consciência reificada deve permanecer prisioneira, na mesma medida e igualmente sem esperança, nos
extremos do empirismo grosseiro e do utopismo abstrato. Desse modo, ou a consciência se torna um espectador
inteiramente passivo do movimento das coisas conforme a lei, no qual não pode intervir sob nenhuma
circunstância, ou se considera como um poder capaz de dominar ao seu bel-prazer – subjetivamente – o
movimento das coisas, em si destituído de sentido” (LUKÁCS, 2003, p. 185).
241
Precisamos nos perguntar: qual o destino e quem controla o excedente de produção dessa futura sociedade
econômica? Sobre isso, acreditamos que apresentamos algumas pistas para essa pergunta nos capítulos anteriores
quando analisamos, a configuração do trabalho dentro desses empreendimentos.
229
dessas organizações perante o mercado capitalista e circunscrever os esforços produtivos a
sentimentos de solidariedade e de união. Seguindo essa linha de pensamento, as organizações
da “economia solidária” cresceriam de forma gradual até submergir o capitalismo, que seria
soterrado graças a qualidades humanas da natureza solidária de seus integrantes. Aparece
assim, de forma explícita, um conceito ideal de natureza humana, forjado pela automaticidade
propensa da união entre as pessoas para integrar e criar essas organizações.
O problema é que, com a legitimação dessa crença, promove-se uma anulação da
historicidade da humanidade e a encapsula em dois potes diferentes: aqueles que alcançaram
os sentimentos nobres e, logo, estão propensos a participar da “economia solidária”, e os
fracassados que não conseguiram alcançar essa graça da natureza humana. Aderindo a essa
premissa, a capacidade de enquadramento em uma das duas opções não ocorre de forma
concreta, mas com base na negação das possibilidades materiais atualmente existentes. Resta
para o indivíduo, portanto, uma saída idealmente construída, na qual o campo de atuação se
restringe à própria conotação particular presente nesse projeto social. Promove-se uma auto-
afirmação que apenas serve para o isolamento moralista, no qual cada um dos integrantes da
“economia solidária” tende a se colocar acima dos outros pelas suas supostas qualidades de
natureza humana.
Fantasia-se não apenas a anulação das relações dos integrantes das organizações com
pessoas que não expressam essas mesmas qualidades, mas a própria individualização social.
No fim das contas, estamos diante de uma análise limitada ao individualismo e que, ao
promover a negação das relações sociais, mistifica a morte do homem:
Realmente, num mundo onde os fios invisíveis da divisão social do trabalho
prenderam os indivíduos numa teia de relações recíprocas, de sorte que cada
particularidade pode satisfazer suas necessidades se entrar em contato com outras
particularidades, considerar o individuo unicamente pela perspectiva de sua relação
unilateral com as coisas é negar sua própria existência, é decretar a morte do
homem, enquanto ser carente, enquanto ser que só pode se afirmar pela mediação do
outro, ainda que o outro seja considerado apenas meios para a realização de seus fins
particulares (TEIXEIRA, 2004, p. 135).
Não se percebe que, na outra face dessa suposta natureza humana presente na
“economia solidária”, existem outras pessoas que, apesar de não representarem o estereótipo
de “vitoriosos da solidariedade”, representam as possibilidades típicas do ser-assim-existente
da etapa histórica atual. Na sociedade vigente, a essência humana histórica tem pouco ou
quase nada de uma protoforma de solidariedade e ética que promova uma relação
230
complementar entre indivíduo e gênero humano
242
. Ou seja, vive-se sob condições materiais
que incidem negativamente sobre o afloramento dessas qualidades, intituladas por Lukács de
autênticas, uma vez que a consciência social generalizada é resultante de um processo social
que relega o ser humano a um segundo plano, oferecendo a mercadoria como mediação social
privilegiada. O que é natural nessa sociedade e, em especial no mercado capitalista, não é,
portanto, a existência de qualidades autênticas, mas de valores distorcidos pelos obstáculos
sociais presentes no modo de produção capitalista, consubstanciados pela mercadoria.
A crítica a esses tipos de valores atualmente hegemônicos precisa ser feita. Entretanto,
quando a crítica deriva de uma perspectiva estruturada sob a naturalização do ser social, a
saída prometida serve apenas para legitimar a impossibilidade de superação da ordem. Uma
proposta de transformação social que se estruture a partir de um ciclo vicioso, de um deus ex
machina, não ajuda a vislumbrar caminhos de superação da ordem, mas, antes, serve para
afastar a análise concreta das possibilidades concretas dessa superação. O ser social não pode
ser visto como possuindo uma natureza humana estipulada e que seja perpassada por
quaisquer valores escolhidos de forma intencional. Toda tentativa de impor um conceito
fechado de ser social resultará, ao fim e ao cabo, em perspectivas de restrição social, no qual
se promoverão hierarquias de tipologias humanas. Nestas estarão selecionados os homens de
forma arbitrária.
Se esse recurso era utilizado pelos chamados socialistas utópicos durante a vigência
da fase concorrencial do capitalismo, após a ascensão da fase imperialista e dos grandes
monopólios, os defensores da “economia solidária” acentuam o apelo à vontade e ao
ascetismo. A validade dessa afirmação ocorre pela concepção de que, diferentemente da fase
atual do capitalismo, o contexto que influía nas organizações dos socialistas utópicos era bem
menos impactante, abrindo maiores possibilidades de sucesso no mercado. O roteiro
econômico de superação do mercado capitalista aparecia, aos olhos dos utópicos, como uma
conquista gradativa que se iniciava pela esfera da distribuição, passando pela produção e
culminando numa cooperativa nacional. Ou seja, “aplicando os princípios dos Pioneiros, eles
foram capazes de repetir o mesmo roteiro ‘do varejo ao atacado, depois à produção própria e
finalmente à criação de uma união cooperativa nacional’” (BIRCHALL apud SINGER, 2002,
p. 53).
242
Após ser escolhida pelos santíssimos Deuses como uma alma boa, a prostituta Chen Te responde: “Mas,
esperai, Santíssimos: eu não tenho certeza de ser boa. Gostaria de ser, mas como hei de pagar meu aluguel?
(BRECHT, 1992, p. 67).
231
Percebemos que para estes pensadores a estrutura da superação do sistema capitalista
não se limitava apenas a qualidades subjetivas, mas abarcava também a questão econômica,
uma vez que o próprio crescimento do cooperativismo de consumo se deu pela significante
baixa de preços e da melhoria das mercadorias vendidas. Isso ocorreu, conforme visto, pelo
fato das cooperativas de consumo realmente representarem um avanço no comércio atacadista
no quesito organização e escala. Por serem organizadas a partir de sócios consumidores, essas
organizações poderiam se servir de dados indicando os principais itens de interesse e, com
isso, garantiu-se um mercado consumidor. Essa qualidade de ligação entre a oferta e a
demanda era um fator que apontava para o grau de avanço das cooperativas em relação às
empresas capitalistas até então existentes. Foi por isso que a expansão das cooperativas de
consumo pôde acontecer sem restringir-se a sentimentos de solidariedade ou de pertencimento
coletivo, mas a partir de um diferencial próprio do espaço de produção capitalista; de forma
privilegiada, a redução dos preços em relação à ainda frágil concorrência existente
243
.
No entanto, mesmo se concordássemos com a idéia de vantagem competitiva das
cooperativas de consumo, devemos problematizar a tese da possibilidade desse crescimento
desbordar o momento do consumo e passar, como almejaram seus representantes, para a
cooperativa de produção e, em seguida, fornecer as bases para a construção de “comunidades
cooperativas”:
Charles Guide, em sua análise das cooperativas de consumo, viu uma evolução
gradual em direção ao conceito de comunidade cooperativa. Ele acreditava que se
tornaria realidade como resultado de forças econômicas e sem necessidade de
revolução socialista ou intervenção do Estado [...] Cooperativas de consumo numa
situação competitiva cresceriam vertical e horizontalmente até submergir o
capitalismo (CRAIG apud SINGER, 2002, p. 53).
Devemos nos questionar se, naquele período histórico do mercado capitalista, o setor
de produção era igualmente precário ou débil quanto o comércio capitalista ou, de forma
simétrica, se as empresas produtivas capitalistas representadas pela burguesia nascente
atuavam apenas como coadjuvantes nesse processo ou constituíam um tipo de vanguarda
industrial. Se a produção em escala e com menor custo eram as constantes primeiras do
desenvolvimento tecnológico da empresa capitalista, isso não determinaria sua posição de
destaque e seu domínio no setor produtivo? Diante desse quadro, seria possível o
cooperativismo de produção ter alcançado o mesmo sucesso que o de consumo? A história
demonstrou qual a resposta para essa pergunta.
243
Com o desenvolvimento do capitalismo e a formação e crescimento das grandes empresas, essas experiências,
pela falta de competitividade, precisaram apelar também para sentimentos ascéticos e, no final das contas,
precisaram fechar as portas. Para muitas pessoas esse processo foi extremamente traumático pois representou o
fim de um sonho de vida. Várias experiências desse tipo são relatadas em detalhes por Ranciére (1988).
232
Todavia, o que é mais importante para nossa pesquisa é trazer essa análise para os
tempos atuais, determinando-a diante do fato de que as empresas capitalistas de produção têm
historicamente aumentado seu controle no mercado. Para garantir a venda da mercadoria e,
conseqüentemente, da realização da mais-valia, as empresas capitalistas, a cada nova década,
exponenciaram seu desempenho, ultrapassando os limites da produção strictu sensu e, dessa
maneira, controlaram também o comércio
244
. Com o advento do capital monopolista, as
grandes corporações capitalistas empresariais passaram a produzir em alta escala e, devido às
suas técnicas de propaganda e publicidade e à sua vinculação direta com os pontos de venda,
fecharam o circuito das mercadorias e uniram diretamente o espaço da produção com o campo
de vendas.
Assim, questionamos: ainda existe espaço para o cooperativismo de consumo? Ele tem
condições de competir com essas grandes corporações sem relegar sua condição histórica para
tornar-se um apêndice do capital? Nesse quadro, como fica a tese de que a “economia
solidária” sobrevive não pela competição direta com os monopólios, mas tentando aproveitar
os interstícios do mercado capitalista?
Dentro dessa perspectiva, retomamos algumas questões anteriores: realmente existe
uma área de mercado capitalista que não seja de interesse do capital (o que leva a uma
tautologia inversa)
245
? As organizações de “economia solidária” poderiam restringir-se a
partes isoladas do mercado? Se estas não estão diretamente ligadas ao capital e localizam-se
nas franjas ou frestas justamente pelo pouco interesse do capital em apropriar-se desses
pequenos nichos de mercado, como a “economia solidária” poderia sobreviver
economicamente nesse ambiente? Por outro lado, não é nessas áreas que se pode estabelecer
uma carga maior de taxas de expropriação de trabalho excedente, através de exploração do
trabalho mais intenso, derivada de condições mais precárias de produção? E isso não faz
surgir o interesse das empresas capitalistas de forma dissimulada, ao fomentar indiretamente,
organizações produtivas constituídas sob a insígnia da “economia solidária”
246
?
244
O que tornou mais evidente a tese de Marx de que a produção merece destaque privilegiado dentro do
sistema capitalista sendo elo determinante do circuito do capital.
245
Para aprofundar nessa temática, duas análises merecem destaque: a noção de interligação entre os espaços de
produção, sejam estes atrasados ou avançados, presente em OLIVEIRA (2003); e a crítica do conceito de
exclusão social, colocando-se como substituição os postulados de inclusão forçada e exclusão interna, propostos
por FONTES (2005).
246
Em épocas de crise, com a necessidade de liquidez das empresas, retomam-se velhas formas de exploração
que se estruturam a partir do aumento da mais-valia absoluta. Grande parte dessas organizações aparece não
como internas das grandes corporações, (que se apresentam como estruturadas centralmente na mais-valia
relativa), mas como independentes. Para perceber a ligação unilateral entre elas, bastaria rastrear o caminho
seguido das mercadorias produzidas nestes locais de trabalho precário. “Para os trabalhadores, assim como
acontece na empresa ‘terceira’, a cooperativa da forma como está sendo experimentada representa
233
Esperamos ter exposto, nos capítulos anteriores, vários dados que demonstram não
apenas as condições precárias de trabalho na “economia solidária”, mas a vinculação direta
dessas organizações com empresas capitalistas. Também nesse sentido, as condições postas
no mercado capitalista atual determinam que a função social desses empreendimentos seja
mais regressiva que aqueles provenientes dos “socialistas utópicos”. Por isso que, em síntese,
a nossa distinção é que, enquanto as organizações propostas pelos socialistas utópicos
possuíam uma margem de manobra de sobrevivência no mercado, as experiências de
“economia solidária” se defrontam com um quadro muito mais restritivo, consubstanciado
pelo crescimento e dominação do capital.
Como vimos, para fantasiar uma superação das determinações imanentes à fase atual
do mercado capitalista, os defensores desse projeto advogam a possibilidade de determinação
do sentido do capital pelo seu portador individual. As contradições sociais não teriam sua
causa no capital como uma relação social, mas exclusivamente na vontade egoísta do seu
portador. Desta maneira, sendo seu detentor um indivíduo portador de valores solidários, o
capital teria também esse sentido, ou seja, a “economia seria solidária”.
Entretanto, no mundo real, as organizações da “economia solidária”, para disputarem o
mercado com as empresas capitalistas, precisam portar elementos que as tornem também
competitivas. Como não possuem capacidade produtiva destacada nem detêm uma grande
quantidade de capital, essas precisam dispor de novos elementos, ainda que sejam frutos da
imaginação. Tal fato remete à necessidade destas organizações ampliarem o apelo à
solidariedade como diferencial competitivo. Se para algumas organizações criadas pelos
socialistas utópicos a vantagem competitiva era fato resultante da fase embrionária do
capitalismo, para as integrantes da economia solidária” o diferencial se faz por meio de um
recurso intensificado de qualidades solidárias, transformando-as em valor de troca.
4.2. A solidariedade como valor de troca
Conforme analisamos até aqui, existe uma mistificação que perpassa as propostas da
“economia solidária” na sua apreensão do mercado capitalista, apresentando o capital como
precarização de suas condições de trabalho pela flexibilização ‘de fato’ das relações de trabalho que acarreta.
Pode-se falar de retrocesso frente ao trabalho assalariado e as conquistas dos trabalhadores, que bem ou mal
garantem direitos mínimos” (LIMA, 1998, p. 227).
234
um recurso determinado pelo uso individual e não como uma força social. Além disso, a
forma de compreender o sistema capitalista se pela não consideração de determinações
imanentes à fase atual do modo de produção capitalista, mas regredindo o enfoque a um
contexto histórico embrionário do mercado capitalista. Aprofundando a análise dessas
propostas, concluímos que essas características estão envolvidas num processo que se busca
utilizar o valor de troca como solidariedade. Vamos partir agora para a segunda parte da
análise. Se, no primeiro momento, através da tese de sentido individualista da utilidade do
capital, ocorre a defesa do valor de troca como elemento de solidariedade, em seguida, por
meio da utilização da alegada qualidade de solidariedade como diferencial competitivo,
ocorre a mercantilização da solidariedade.
Como buscamos desmistificar a conjectura de que a “economia solidária” existe acima
das determinações do mercado capitalista, faz-se necessário, antes de qualquer coisa, discutir
o fato de que, para se manter no mercado, essas organizações precisam fazer uso de
qualidades subjetivas como sendo diferenciais competitivos. Veremos que aquilo que fornece
condições imagéticas para a difusão ideológica dessa premissa encontra-se na mesma
contradição que lhe permite idealizar a transformação do capital em uma ferramenta
individual. Completando o ciclo iniciado com a visão do valor de troca como solidariedade
surge, então, a utilização da solidariedade como sendo um valor de troca
247
.
Consta nas obras teóricas da “economia solidária” a tese de que, como essas
organizações possuiriam poucas chances de competir com as empresas capitalistas, deveriam
centrar seus esforços na demanda de um certo segmento de mercado formado pela busca de
um atendimento sofisticado, agrupado por consumidores especiais por terem uma consciência
supostamente cidadã. Diferentemente de grande parte das empresas capitalistas que se dirige a
um público massificado ou homogeneizado, as organizações de “economia solidária”
deveriam enfocar nichos de mercado formados por clientes que buscam algo mais do que
apenas o valor de troca das mercadorias, ou seja, que não elegem o local de compra de suas
mercadorias apenas pelo atributo preço. Conforme advoga Singer (2002, p. 58),
A massificação dos consumidores é um pressuposto. As vantagens que ele oferece
se dirigem a um público homogeneizado, cujas preferências são pautadas pela
publicidade dos meios de comunicação de massa. Sempre existem demandas por
outro tipo de atendimento, em que o consumidor é cidadão, tem direito a ser ouvido
e participar das decisões que o afetam. São estas as demandas que a economia
solidária atende melhor que o varejo capitalista.
247
Faz-se preciso explicitar que a separação entre esses dois momentos tem a função exclusiva de facilitar a
compreensão desse texto, ou seja, representa um recurso de didática. Dentro da totalidade social, não existe uma
separação temporal entre eles, uma vez estão conectados dialeticamente.
235
Esse seria o lema da “economia solidária”: não competir com as mercadorias
massificadas das grandes corporações capitalistas, mas proporcionar um tipo de produto ou
serviço que tenha outros diferenciais, tais como atendimento personalizado e uma relação
mais humana entre a organização e seu cliente. Ficam, no entanto, algumas dúvidas acerca da
validade desses requisitos: com este tipo de atendimento, o que está sendo vendido: a
mercadoria ou a própria relação social? O que é a mercadoria principal nessa relação de troca:
o produto ou a forma como esse produto é elaborado e disponibilizado? A “economia
solidária” produz e vende o que: mercadorias ou slogans de solidariedade?
Essas perguntas, apesar de apontar para uma imediata crítica, possuem, como pano de
fundo, dois problemas decisivos. O primeiro e de percepção mais aparente é o aspecto
econômico. Como as organizações de “economia solidária” conseguirão sobreviver no
mercado capitalista, tendo uma mercadoria com preço mais elevado do que as de seus
concorrentes diretos? Quais serão os clientes que terão condições materiais para adquirir esse
tipo de “mercadorias especiais”? Esses clientes se aproximam mais da faixa de rendimento da
classe dos trabalhadores, que dificilmente terá margem disponível de compra superior à
reprodução da sua força de trabalho ou, daqueles que, por se apropriarem privadamente da
produção social, possuem riqueza a mais que sua necessidade direta de reprodução social e,
por isso, se dispõem a pagar mais por um atendimento do tipo especial? A que classe social as
organizações da economia solidária” precisam convencer a se tornar seu cliente fidelizado:
os trabalhadores ou os capitalistas
248
?
Essa é uma necessidade histórica de um tipo de organização econômica que, por causa
do déficit produtivo perante seus concorrentes, precisa apelar para outros elementos que
supostamente agreguem valor aos seus produtos. No entanto, como dificilmente os integrantes
da classe trabalhadora terão recursos disponíveis para pagar um preço superior pelas
mercadorias, esses empreendimentos precisam apelar para pessoas de outras classes sociais. O
problema é que, conforme relato de um integrante de uma dessas experiências (comentado por
Ranciére (1988, p. 323)), dificilmente se obtém sucesso na busca por essa nova clientela:
É inútil pretender corrigir a situação tentando conseguir clientela ‘mais forte e mais
solvente’, que permitisse contratar auxiliares e beneficiar-se com seu trabalho. ‘Uma
nova clientela teria de ser encontrada em uma classe onde o sistema de associações
operárias tem sido bem pouco favorecido... com igual mérito, concorrendo com um
outro tipógrafo para obter um trabalho qualquer, vocês fracassariam pelo simples
fato de serem uma associação operária. A verdade é [...] que a associação operária,
em teoria, hoje é considerada uma utopia e, na prática, um clube e um centro de
anarquia’.
248
Retoma-se, assim, a velha máxima apontada por Marx contra Proudhon: a necessidade de apelar para os
corações e os bolsos dos burgueses (MARX, 2001).
236
Não obstante, essa necessidade não se apresenta apenas na esfera da comercialização
de mercadorias, mas, antes, antecede-a e perpassa todo o processo produtivo. Antes de se
precisar de clientes para comprar as mercadorias, é preciso de dinheiro para adquirir todos os
elementos necessários à produção. Um dos seguidores de Robert Owen e idealizador de
Icária, uma das mais famosas experiências de aldeias de trabalhadores, símbolo dos socialistas
utópicos, Étienne Cabet, expõe, em suas cartas icarianas a seguinte preocupação:
Precisamos aumentar nossa população, visto que podemos formar um Povo; temos
necessidade de homens que nos tragam não só seus braços, mas habilidades de todos
os tipos e dinheiro! Pois bem! Como poderíamos fazer uma propaganda eficiente?
Há homens e mulheres ricos, simpáticos à causa do Povo e do Progresso, dispostos a
sacrificar tudo para se unir a trabalhadores moderados e econômicos, cheios de
sentimento e dignidade humana, fraternos, polidos, limpos, etc., etc.; mas como
fazer que se decidam a abandonar a tria, atravessar mares, enfrentar cansaços e
perigos, para vir para o meio de um povo sensualista e egoísta, que fuma e masca
fumo, etc., etc.?
249
Como requisitos para ingressar nessa experiência não bastariam boa vontade e
sentimentos solidários, mas, antes, uma boa condição financeira. É por isso que um dos
pretendentes afirma: “lamento muito ser tão proletário que não possa participar da felicidade
comum de nossos irmãos que partiram e continuam seguindo para a feliz Icária, porque
tenho uma pobre diária para sustentar minha mulher e meus dois filhinhos...”
250
.
Além disso, essa relação “especial” de compra e venda traz em si um elemento que, à
primeira vista, não é facilmente identificado, mas que é essencial para a manutenção e
legitimação da ordem capitalista. Trata-se da relação coisificada entre pessoas, na qual não
somente a mercadoria passa a ser tida como possuidora de capacidades humanas, como,
dialeticamente, capacidades humanas são vendidas como sendo mercadorias. Fortalece-se o
fenômeno da reificação que, mesmo sem percepção em primeiro plano, recebe subsídios dessa
forma especial de relação mercantil, na qual o cliente, ao comprar uma mercadoria, por um
acréscimo de preço, recebe, como bônus, certificados de solidariedade e cidadania
251
. É para
realizar esse tipo de venda especial, que transforma a solidariedade em valor de troca, que as
organizações da “economia solidária” se preparam ativamente:
O processo de criação do selo de produtos e serviços da economia solidária deverá
iniciar por convênio com as redes internacionais de certificação e de consultoria
para a implementação desta política no Brasil e a posterior criação de um selo
próprio, articulado a uma política de marketing no mercado brasileiro
(MAGALHÃES; TODESCHINI, 2003, p. 157).
249
Citado por Ranciére (1988, p. 372).
250
Citado por Ranciére (1988, p. 338).
251
Um exemplo atual dessa dimica são os diversos selos de certificação ISO (International Organization for
Standardization).
237
Com a utilização deste “selo de qualidade solidária” almeja-se alcançar um segmento
de mercado composto por clientes especiais que, sendo consumidores com grande
disponibilidade de recursos, podem pagar mais do que o preço médio do mercado (ou seja,
aqueles que se utilizam, diretamente ou indiretamente, da exploração do trabalho alheio). Para
esses consumidores, a aquisição destes tipos de sentimentos de solidariedade teria uma maior
valia subjetiva, especialmente para conseguir dormir com a consciência tranqüila, tendo a
certeza de que está contribuindo para um mundo melhor e mais justo, ainda que perpetuando a
exploração dos trabalhadores.
Sendo o valor da mercadoria determinado pelo tempo de trabalho socialmente
necessário nela incorporado, esse recurso de apelo a qualidades subjetivas como diferencial da
mercadoria traz, em si, um agravante: negar a relação direta entre a mercadoria e o
trabalhador que a produziu. Nesse sentido, observamos que, sob a ótica da “economia
solidária”, o que aparece como determinação central do valor da mercadoria não é o tempo de
trabalho nela investido, mas as supostas qualidades subjetivas que esta pode oferecer. Essa
posição confronta-se diretamente com a afirmação de que “quanto menor for o volume de
valor de uso no qual uma mercadoria contenha uma determinada quantia de tempo de
trabalho”, quando esta for comparada com “outros valores de uso, tanto maior será seu valor
de troca específico(MARX, 1986, p. 38). Adotando-se o ponto de vista desse projeto social,
não só se está criando elementos mistificadores para invalidar a teoria do valor trabalho, como
também invertendo as grandezas presentes na mercadoria que determinam seu valor: valor de
troca por valor de uso.
Com esse artifício de negação da centralidade do valor de troca, situam-se novos
valores de uso como superadores do valor de troca: essa é a base para a intensificação da
reificação. Dessa forma, colocar o valor de uso como o centro das mediações sociais requer
que se retraia de forma mistificadora o desenvolvimento das forças produtivas, visto que, ao
descartarmos a prevalência do valor de troca em detrimento do valor de uso incorporado,
inexiste uma relação entre quantidade de trabalho invertido numa mercadoria e o valor nela
presente. Ou seja, duas mercadorias, resultantes de tempos de trabalhos socialmente
necessários distintos, poderão ter hipoteticamente o mesmo valor de troca. Não importaria que
a mercadoria contivesse, per se, mais tempo de trabalho invertido, uma vez que seu preço não
será cotado pelo mercado a partir do quantum de trabalho socialmente necessário. Os
representantes da “economia solidária” tentam, por meio desse subterfúgio “passar a idéia de
que as trocas nunca são estritamente econômicas, são relações sociais sustentadas em valores
238
em que os indivíduos se reconhecem como pertencentes a uma ordem social” (BARBOSA,
2007, p. 128).
O mais grave é que, com a vigência dessa perspectiva teórica, a medida do valor de
troca da mercadoria deixa de ser o esforço físico e mental do trabalhador nela invertido e, com
isso, esta se apresenta como portadora independente de qualidades subjetivas. O trabalhador
como produtor de mercadorias é desmerecido nessa equação e substituído pelo atendimento
especial, ou outras qualidades subjetivas a serem incorporadas nas mercadorias através das
organizações de “economia solidária”. O mundo das mercadorias teria agora, como apêndice,
um leque opcional de subjetividades humanas que lhe serviriam da maneira que for mais
rentável.
Essa craveira regula um novo postulado que retira da economia política clássica aquilo
que esta possui de mais avançado, inclusive contribuindo na luta dos trabalhadores contra a
imposição do capital: a teoria do valor-trabalho. E,
na medida em que se retiram da economia clássica interferências revolucionárias
(sobretudo as implicações da teoria do valor/trabalho) e na medida em que o
utopismo do socialismo idealista transita para reivindicações práticas, o pensamento
burguês articula soluções capazes de obstaculizar a ntese teórica desta situação,
que se estrutura no marxismo (NETTO, 1976, p. 72).
A partir do momento em que a “economia solidária” volta-se para a substituição da
teoria do valor-trabalho, elegendo novas fontes de valor a partir da capacidade imagética
particular de seus autores, além de falsear a apreensão das determinações do mercado
capitalista, também asfalta o caminho para a dominação ideológica da burguesia. A forma
mais explícita de se constatar essa realidade se pela utilização de efeitos morais para
substituir o trabalho como fonte do valor e, conseqüentemente, para obscurecer a existência
da mais-valia. Se não é o trabalho a fonte do valor, mas se as mercadorias possuem o valor
auferido subjetivamente por cada pessoa, não existiria mais-valia, nem muito menos
exploração do trabalho. Além disso, como se trata de uma proposta de teoria social, não cabe
alegar que essa seria válida apenas para uma realidade peculiar da economia solidária”,
como se apenas nessas organizações essa fonte de valor estivesse presente. A mistificação não
é, portanto, singular ou interna à organização, mas possui um caráter universal que perpassa
todas as consciências da totalidade social.
Contudo, quando se distancia desses elementos mistificadores e se retorna à realidade
de uma sociedade fundada sobre a divisão social do trabalho, torna-se impossível substituir o
trabalho abstrato como fonte do valor de troca das mercadorias, por qualquer outro elemento
(cf. Mandel, 1968, p. 50). O preço a ser pago por uma mercadoria é um resultante direto do
239
seu valor e, nesse sentido, é determinado pela quantidade de trabalho gasto na sua produção.
Podem existir variações entre essas proporções, mas, mesmo assim, é impossível abolir a
relação da determinação do valor da mercadoria pelo trabalho socialmente necessário. Para
calcular o valor de uma mercadoria, a grandeza que se leva em conta não é o serviço que esta
vai disponibilizar, mas sim o serviço que a ela foi disponibilizado na sua produção.
Se o valor da mercadoria fosse calculado pelo serviço que esta disponibiliza, pelo seu
valor de uso, esse cálculo passaria por uma infinita variação, visto que seria resultado do
interesse de cada um dos seus consumidores. Nas palavras de Marx (1986, p. 37),
Esse efeito da mercadoria que provém dela unicamente enquanto valor de uso,
objeto de consumo, pode ser denominado serviço que ela presta como valor de uso.
Contudo, como valor de troca, a mercadoria é sempre considerada sob o ponto de
vista do resultado. Trata-se aqui não do serviço que ela presta, mas sim do serviço
que foi dedicado a ela na sua produção. De modo que o valor de troca de uma
máquina não é determinado pela quantia de tempo de trabalho que ela substitui, mas
sim pela quantia de tempo de trabalho que foi empregado para a sua própria
produção e, por conseguinte, o tempo de trabalho que se requer para a produção de
uma nova máquina do mesmo tipo.
Essa digressão é importante para demonstrar que a “economia solidária” se apresenta
como um projeto que busca substituir a centralidade do trabalho como fonte de valor da
mercadoria (aliás, como única fonte de valor), por características individuais que lhe seriam
peculiares. Para tanto, suscita-se um privilégio aos fatores subjetivos, atribuindo a estes uma
força social que em muito extrapola àquela referente na sua validade social. Com esse
artifício, organizações de “economia solidária” orientadas a partir de qualidades como a
consciência social, teriam maior capacidade de sucesso no mercado capitalista: “objetivos
sociais podem substituir a ganância como uma poderosa força motivadora. Se forem bem
dirigidas, as empresas orientadas para a consciência social podem se sair muito bem no
mercado, competindo com as outras baseadas na ganância” (YUNUS; JOLIS, 2006, p. 264).
A diferença competitiva entre as empresas capitalistas e as organizações da “economia
solidária” poderia ser suprimida de forma fantasiosa pela aderência de sentimentos que
conduzissem a processos motivacionais de trabalho. Seria a partir do melhor aproveitamento
dessas qualidades subjetivas supostamente presentes nessas organizações, que a “economia
solidária” utilizar-se-ia de importantes recursos típicos da fase atual capitalismo: “tais
empreendimentos encontram potencialmente no trabalho coletivo e na motivação dos
trabalhadores que os compõem, uma importante fonte de competitividade reconhecida no
capitalismo contemporâneo” (TAUILLE; DEBACO, 2002, p. 62). Como citamos no capítulo
anterior, o bom emprego dessas qualidades hipoteticamente imanentes às organizações
240
solidárias, em especial das relações de confiabilidade intrínseca, resultaria numa “eficiência
coletiva”:
Na medida em que se desenvolva a confiabilidade intrínseca entre os agentes, uma
espécie de ‘eficiência coletiva’ poderá resultar em ‘economias de rede’. Pensando
em termos de sucesso e expansão destas redes quem aponte que, tanto em países
avançados como em desenvolvimento, ‘clusters de pequenas e médias empresas...
conquistaram mercados externos com base em sua eficiência coletiva’ (TAUILLE,
2001. p. 16).
No nosso entendimento, o mais importante a ser apreendido nessas passagens é a
maneira pela qual estão estruturadas, ou seja, os recursos e as categorias que, de forma
explícita ou implícita, são privilegiadas. Ao centrar esforços na defesa de hipotéticas
peculiaridades das consciências dos integrantes das experiências de “economia solidária”,
opera-se, mesmo que de forma implícita, uma substituição da apreensão das determinações
materiais advindas da forma como está organizado o modo de produção capitalista, por um
entendimento que tem no seu lastro o idealismo subjetivo. A contradição econômica existente
no mercado capitalista, na qual os processos de exploração do trabalho e apropriação da
riqueza socialmente produzida levam, gradativamente, a um abismo social entre trabalhadores
e capitalistas, passa a ter uma conotação subjetiva. Com isso, a contradição da estrutura
produtiva pode ser relegada a uma instância secundária ou até ser desconsiderada em prol de
elementos valorativos
252
.
No lugar da competição capitalista ser apresentada a partir da estrutura produtiva, que
incide na totalidade social, essa seria idealmente superada de forma individual. A alternativa
para a superação dessa lógica competitiva se daria a partir da redefinição das formas de ver o
trabalho; de um novo sentido ao trabalho
253
. Como citamos no capítulo 01, esse subterfúgio
encontra-se expresso nas seguintes palavras:
A efetivação destes princípios dependeria, no nosso entendimento, de um processo
de redefinição das formas de atribuição de sentido ao trabalho para que os valores da
autogestão e da solidariedade possam reconfigurar os modos de subjetivação
associados à competitividade, ao modelo de gestão e ao individualismo no
capitalismo contemporâneo (NARDI et alii, 2006, p. 321 – 322).
Para fins de esclarecimento: diferentemente do capítulo anterior, o nosso enfoque
analítico nesse momento aqui não é apenas a afirmação de que a “economia solidária”
252
Movimento que se aproxima qualitativamente daquele que analisamos no tópico 05 do capítulo 02.
253
Num patamar superior, essa visão nos leva a uma discussão entre trabalho concreto e trabalho abstrato. A
mistificação surge na tendência implícita de evocar a difusão daquele como uma forma de superação do sistema
capitalista, como se cada indivíduo, a partir do momento em que atribui um sentido particular ao seu trabalho,
pudesse superar os processos de alienação e de exploração. Como vimos no capítulo anterior, tal recurso serve,
dentre outras coisas, para justificar as condições precárias de trabalho nessas organizações.
241
pretende constituir-se como experiência de abolição da exploração do trabalho
254
. O que para
nós é central agora é aquilo que apontamos desde as primeiras palavras do capítulo 01, ou
seja, a forma como se estabelece a relação entre o espaço interno dessas organizações e a
totalidade social em que estas estão inseridas e condicionadas. O entendimento adotado por
representantes desse projeto sobre essa relação é bastante problemático, visto que se defende
que entre esses dois pólos existiria uma contradição baseada por princípios, isto é, que o
“quadro contemporâneo de implantação dos projetos de ES se situa, portanto, na contradição
entre os princípios da ES apregoados pelos líderes do movimento e a heteronomia imposta
pela economia de mercado” (IDEM, p. 321 322). Ao se eleger valores morais como causas
das contradições imanentes do mercado capitalista, não apenas se apresenta essa contradição
social sem ter seu fundamento no espaço da produção das condições materiais da vida social,
como a generalidade concreta passaria a ser subsumida às supostas singularidades subjetivas
de cada organização produtiva.
Retomando uma conclusão anterior, podemos dizer que, atribuindo um sentido
particular ao seu trabalho, os integrantes da “economia solidária” podem se imaginar
enquanto trabalhadores autônomos quando, na verdade, estão inseridos numa relação direta de
exploração. Vendem sua força de trabalho, mas são levados a se ver como imunes e
superiores a essa relação de exploração. Percebem-se como autônomos, mesmo estando a
serviço de empresas de capital internacional: “nos anos 90, cooperativas cearenses ficaram
quase seis meses sem encomendas em função da crise argentina, país para o qual a empresa
parceira destinava parte de sua produção” (LIMA, 2003, p. 18), além de que “geralmente a
empresa determina a produção, como deve ser organizada, padrões, etc” (IDEM, p. 19). Os
integrantes dessas organizações podem não saber, mas o fazem.
Além do mercado capitalista não ser dualista, o que importa basicamente nas relações
entre os agentes econômicos são as condições de produtividade, e que são essas condições que
determinam o sucesso das vendas:
254
Poderíamos somar às várias análises realizadas no capítulo anterior as seguintes citações: “As cooperativas de
trabalho, empresas familiares e associações de trabalho, reivindicadas pelo suposto caráter espontâneo e
solidário, para sobreviverem precisam, também, articular-se ao grande capital. cooperativas que longe de
serem uma iniciativa dos trabalhadores, são criações do Estado e da própria empresa interessada na exploração
da força de trabalho mais barata” (TAVARES, 2004, p. 113), e: “No cotidiano, os princípios do cooperativismo
diluíam-se numa organização do trabalho em nada diferente de uma fábrica comum” (LIMA, 1998, p. 220), “O
salário varia de R$ 80,00 a R$ 180,00 raramente ultrapassado a média de R$ 120,00. O valor da hora trabalhada
fica em torno de R$ 0,44 a R$ 0,76 e o número de horas mensais médio em R$ 184,80. Do valor recebido, por
trabalhador, é descontado a importância dos carnets do INSS (são trabalhadores autônomos), a taxa
administrativa referente a despesas com água, luz e telefone, 1% referente ao FATES, 8,5% relativos ao recesso
da produção e 15% de recolhimento exigido ao INSS” (IDEM, p. 221).
242
Para o mercado, importa a força de trabalho global, não as condições sociais e as
virtudes da economia solidária. A maior produtividade implica redução do preço da
mercadoria e da força de trabalho, o que garante melhores condições de venda no
mercado. Como o mercado é único, o confronto dos segmentos favorece aquele com
condições vantajosas de produtividade. Por isso, afirma-se que não igualdade
entre os agentes econômicos, quer os empreendedores sejam considerados
individualmente, quer enquanto segmentos econômicos coletivos diversos. Nessa
condição, entram no mercado em condições de disputa trabalhadores informais
em áreas inovadoras que não são de investimentos do capital, mas tão logo essas
áreas se tornem rentáveis, elas tendem a ser absorvidas no seu circuito
concentracionista (BARBOSA, 2007, p. 160).
Desconsiderar-se esse fato representa, portanto, uma fuga ilusória da realidade.
Representa um movimento de mistificação da realidade no momento em que se defende que
um importante diferencial competitivo a serviço das organizações de “economia solidária”
encontrar-se-ia na capacidade de atribuição de sentido do trabalho como um recurso interno,
assim como na caracterização dessa qualidade subjetiva como atributo de valor de troca.
Assim, além de instaurar uma separação fictícia entre o espaço interno das organizações da
“economia solidária” e as determinações do modo de produção capitalista, fomenta-se uma
mercantilização dessas qualidades subjetivas. Num primeiro momento, ocorre o processo
ilusório de autonomização da “economia solidária” e, em seguida, as características
provenientes dessas organizações são transformadas em supostos diferenciais competitivos
disponíveis para a disputa no mercado capitalista. Como afirmamos, uma contradição entre
as partes que se completa para fechar um ciclo iniciado com a transformação do valor de troca
em solidariedade e finalizado com a transformação da solidariedade em valor de troca.
Esse posicionamento teórico nos remete a formas anteriores de organização da
produção, nas quais as diferentes formas de trabalhos ainda não estavam equiparadas numa
só.
Ao equiparar seus produtos de diferentes espécies na troca, como valores, equiparam
seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Não o sabem, mas o fazem. Por
isso, o valor não traz escrito na testa o que ele é. O valor transforma muito mais
cada produto de trabalho em um hieróglifo social. Mais tarde, os homens procuram
decifrar o sentido do hieróglifo, descobrir o segredo de seu próprio produto social,
pois a determinação dos objetos de uso como valores, assim como a língua, é seu
produto social. A tardia descoberta científica, de que os produtos de trabalho,
enquanto valores, são apenas expressões materiais do trabalho humano despendido
em sua produção, faz época na história do desenvolvimento da humanidade, mas
não dissipa, de modo algum, a aparência objetiva das características sociais do
trabalho. O que somente vale para esta forma particular de produção, a produção de
mercadorias, a saber, o caráter especificamente social dos trabalhos privados,
independentes entre si, consiste na sua igualdade como trabalho humano e assume a
forma de caráter de valor dos produtos de trabalho, parece àqueles que estão presos
às circunstâncias de produção mercantil, antes como depois dessa descoberta, tão
definitivo quanto a decomposição cientifica do ar em seus elementos deixa perdurar
a forma do ar, enquanto corpo físico (MARX, 1985, p. 72).
243
Com base nessa sentença, podemos desmistificar a possibilidade de que o trabalho
concreto surgiria como uma vantagem da economia solidária” frente às empresas
capitalistas, uma vez que, enquanto nestas ocorreria o trabalho abstrato, naquelas as pessoas
conseguiriam atribuir um sentido particular à sua produção
255
. Com a prevalência dessa
posição analítica, o processo de superação da reificação social, ou de descoberta do hieróglifo
social cunhado nos produtos do trabalho, recebe mais um obstáculo. Com o advento desse
ponto de vista adotado na “economia solidária”, para descobrir o segredo de seu próprio
produto social, agora não basta apenas enxergar o trabalho como única fonte de valor, mas,
antes disso, superar o sentido individual atribuído ao trabalho, inserindo-o na totalidade
social. O processo de reificação também está presente ao tratar não apenas mercadorias como
detentoras de subjetividade, mas diferenciando os trabalhadores segundo suas especificidades
como trabalhadores concretos , o que promove implicações diretas para a consciência de
classe dos trabalhadores
256
.
Promovendo um “atendimento especial” a seus clientes, não apenas restrito a uma pura
relação mercantil, alcançar-se-iam nichos de mercado de pessoas mais conscientes e cidadãs.
As qualidades subjetivas que integram esse “atendimento especial” representariam, portanto,
uma forma de agregar mais valor ao produto comercializado. Com isso, subjetividade é
transformada também em mercadoria. Esse é um exemplo da mercantilização de qualidades
subjetivas e, no caso exposto por nós, da transformação da solidariedade em valor de troca.
A análise do mercado capitalista não possui elementos subjetivos, ou o trabalho
concreto, como núcleo estrutural e fonte de valor, e, diferentemente do apregoado pelos seus
representantes, faz-se preciso analisar a “economia solidária” por meio de suas relações de
dependência com o capital. Como citamos no capítulo 01, a consciência das pessoas que
integram essas organizações não está acima dessas relações, mas é consubstanciada por elas;
não está suspensa aos determinantes econômicos, nem se sobrepõem a estes. Não existe uma
dualidade estrutural entre o espaço interno organizacional e o mercado capitalista, marcada
por uma ruptura da consciência: para aquele, sentimentos de solidariedade, para este, a
255
Esse pressuposto nos leva à necessidade de caracterizar a maneira pela qual es presente na “economia
solidária” o entendimento da alienação. Como vimos no capítulo anterior, ao tratar da promessa de um trabalho
autônomo, seja a partir de ferramentas do toyotismo, seja a partir da criação de empreendimentos de “economia
solidária”, observamos que, em grande medida, a alienação surge aos olhos de autores desse projeto como uma
decorrência da falta de conhecimento de todo o processo produtivo, ou seja, como fruto da divisão técnica do
trabalho.
256
Os impactos provenientes dos pressupostos e práticas da “economia solidária” na consciência de classe dos
trabalhadores é um tema urgente de pesquisa que, nos marcos de nossa tese, apresentamos apenas pequenas
contribuições. A nosso ver, um importante texto que se propõe a desmistificar a relação complementar entre
“economia solidária” e classe trabalhadora é o de GERMER (2006).
244
competição mais selvagem. As regras que governam o funcionamento externo da economia
solidária” são as mesmas que incidem sobre o seu espaço interno.
Nessa dinâmica mistificadora da autonomização das organizações da “economia
solidária” perante o mercado capitalista e da apresentação de suas características peculiares
como supostos diferenciais competitivos, destaca-se a relação dessas organizações com a
comunidade local em que estas estão inseridas. Conforme observamos anteriormente, a
relação com a comunidade surge aos olhos de representantes desse projeto como uma
vantagem competitiva perante as empresas capitalistas. Por se estabelecer, majoritariamente,
apenas no mercado local, essas organizações teriam mais proximidade com os seus clientes e,
por isso, aportariam maiores vendas.
Nas estatísticas da “economia solidária”, a relação com o mercado local aparece como
fator determinante na estrutura dessas organizações:
Os produtos e serviços das EES destinam-se predominantemente aos espaços locais.
56% dos EES afirmaram vender ou trocar produtos e serviços no comércio local e
comunitário e 50% em mercados/comércios municipais. Apenas 7% dos EES
afirmaram que o destino de seus produtos é o território nacional e 2% que realizam
transações com outros países (SENAES, 2005, p. 41).
Não obstante, conforme os dados da tabela 10, a última pesquisa realizada pela
SENAES demonstrou que, de uns tempos para cá, as organizações de “economia solidária” se
tornaram ainda mais limitadas no acesso ao mercado e, por isso, mais dependentes do
mercado local. Menos de um terço desses empreendimentos sequer tem acesso ao mercado
estadual e, quase 70% se utilizam majoritariamente do mercado local para as relações
econômicas. Diante desses dados, podemos perceber que a utilização de uma fraseologia que
propague supostos diferenciais competitivos desses empreendimentos no mercado local
representa, na verdade, um recurso utilizado para conseguir estimular a sobrevivência
mercantil da “economia solidária”. Não se trata da expressão de uma suposta consciência
altruísta, mas, antes, de uma determinação do mercado capitalista dominado por grandes
corporações, monopólios e empresas imperialistas.
Entendemos que uma coisa é defender a ligação com a comunidade como fator
positivo e outra bastante diferente é compreender que essa relação constitui um limite de
mercado que deveria ser superado. Ou seja, a relação com o mercado local não é um atributo
de superioridade, mas uma necessidade imposta que explicita a deficiência econômica. A
limitação de mercado não é escolha das organizações de “economia solidária”, mas um
imperativo das relações capitalistas.
245
Tabela 10
257
: Abrangência do mercado dos empreendimentos da “economia solidária”
Destino Quantidade de empreendimentos
%
Comércio local ou comunitário 12.695 67,65%
Mercado/comércio municipal 11.585 61,74%
Mercado/comércio micro-regional 5.629 30,00%
Mercado/comércio estadual 3.650 19,45%
Mercado/comércio nacional 1.473 7,85%
Exportação para outros países 494 2,63%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
Como seus próprios integrantes alegam, esse fato deve ser visto como uma dificuldade
de comercialização: “Quanto às dificuldades enfrentadas constata-se que 61% dos EES
afirmaram ter dificuldades na comercialização, 49% para acesso a crédito e 27% não tiveram
acesso a acompanhamento, apoio ou assistência técnica” (SENAES, 2005, p. 46). Esses
entrevistados confessam que, no lugar de possuir autonomia perante o mercado capitalista e
de ter a relação com a comunidade como um diferencial competitivo, as organizações de
“economia solidária” são também condicionadas pelas determinações do capitalismo e que,
devido a esse fato, o espaço da comunidade se apresenta como um limite de mercado. Apesar
da tentativa de promoção de qualidades subjetivas como valores de troca, a lógica dos valores
de troca determina que essas qualidades subjetivas não representam um relevante diferencial
competitivo, e o que conta no final é a capacidade econômica de produzir valor de troca.
De forma concreta, essa afirmação pode ser evidenciada quando se observa que os
principais produtos produzidos e comercializados pelas organizações de “economia solidária”
possuem pouco valor agregado, sendo, também por esse motivo, que os representantes desse
projeto fazem acrobacias para inventar novas fontes de valor de troca, tais como a
solidariedade. Tal situação encontra-se expressa em dados estatísticos na tabela 11.
Para tentar escapar idealmente das determinações do mercado capitalista, além dos
processos de mistificação apontados anteriormente, também aparece nas teses da “economia
solidária” a defesa do dinheiro como causa da contradição social. Dentre as referências
teóricas que integram esse projeto, consta a idéia de que a fonte da desigualdade social seria
proveniente da ausência de dinheiro. É nesse sentido que, fazendo publicidade para o
cooperativismo de crédito, apregoa-se como modelo de superação dos problemas sociais o
257
Vale ressaltar que, nos dados apresentados pela SENAES (2007) que serviram de base para a construção da
tabela 09, os entrevistados poderiam indicar até três indicadores (19.059 empreendimentos tiveram uma resposta,
11.686 empreendimentos tiveram deram duas e 5.099 tiveram três) e nós calculamos as porcentagens a partir de
todas as respostas, independentemente da ordem em que apareceram. Além disso, também retiramos a
quantidade de empreendimentos em que essa análise não se aplica.
246
Grameen Bank, cujo idealizador Muhammad Yunus
258
relata a sua fascinante descoberta
científica de que “a fome não resultava da falta de comida, mas da incapacidade de uma parte
grande da população de comprá-la por falta de dinheiro. ‘Em tempo de fome, apesar das
abundantes reservas de cereais, os pobres não tinham acesso à alimentação’” (YUNUS apud
SINGER, 2002, p. 75).
Tabela 11: Principais produtos produzidos e comercializados pela “economia solidária”
Posição Produto Total % % Total
259
Milho 2.839 10,21% 13,12%
Feijão 2.508 9,02% 11,59%
Arroz 1.563 5,62% 7,22%
Farinha de mandioca 1.472 5,30% 6,80%
Confecções 1.317 4,74% 6,09%
Leite 1.288 4,63% 5,95%
Artigos de cama, mesa e banho 1.074 3,86% 4,96%
Hortigranjeiros 1.027 3,69% 4,75%
Artesanato 971 3,49% 4,49%
10ª Bolsas diversas 890 3,20% 4,11%
Fonte: produzido a partir de SENAES (2007)
Fazendo tábula rasa em todo o debate que permeou a economia política clássica, assim
como nas análises críticas de diversos autores sobre esse assunto, Yunus incorre numa falsa
modesta e afirma que o alcance dessa misteriosa descoberta originou-se de sua prática social e
não de estudos teóricos. Talvez por ser egresso do doutorado em economia na Universidade
de Vanderblit, nos EUA, e, por isso, nunca ter atentado para as análises marxistas sobre o
modo de produção capitalista, nosso autor acredita que nenhuma das teorias estudadas daria
conta da análise da realidade, servindo apenas para fins estéticos:
Lembro-me de meu entusiasmo ao ensinar as teorias econômicas, mostrando que
elas apresentavam respostas para problemas de todos os tipos. Eu era muito sensível
à sua beleza e elegância. Mas de repente comecei a tomar consciência da inutilidade
desse ensinamento. Para que poderia ele servir, quando as pessoas estavam
morrendo de fome nas calçadas e diante dos pórticos? (YUNUS, 2006, p. 14).
Apresentando-se como um gênio social típico da mentalidade dos primeiros socialistas
utópicos, somente ele teria conseguido, a partir de sua experiência concreta de micro-crédito,
não apenas desvendar o enigma do mercado capitalista, mas encontrar a solução redentora
258
Um fichamento crítico que desmistifica algumas das idéias de Yunus encontra-se disponível em Vieira
(2005).
259
Salientamos que, nos dados apresentados pela SENAES (2007) que serviram de base para a construção da
tabela 09, os entrevistados poderiam indicar até três indicadores (7.218 empreendimentos tiveram uma resposta,
6.060 empreendimentos tiveram deram duas e 8.360 tiveram três) e nós calculamos as porcentagens da última
coluna a partir de todas as respostas, independentemente da ordem em que apareceram.
247
para toda a humanidade. Foi por causa dessa fabulosa descoberta, quase tão extraordinária
quanto o “Emplasto Brás Cubas
260
”, que Muhammad Yunus foi agraciado com o Prêmio
Nobel da Paz em 2006.
Contudo, ainda que possamos ser acusados de invejosos, precisamos afirmar que,
como o autor não passa de um nível superficial da análise da realidade, devemos salientar
para o fato de que o dinheiro deriva da relação de troca e, existindo uma contradição social
geradora dos problemas sociais, a sua causa estará na forma como se gera esse valor de troca
e não na autonomia da moeda. No lugar de ser a causa, o dinheiro é uma conseqüência. Isto é,
o dinheiro é apenas uma encarnação do valor de troca, é o equivalente geral das mercadorias
e, por isso, não pode ser a causa, mas apenas uma derivação necessária. O que o pensamento
vulgar de Yunus faz é anteceder à mais obtusa forma de apreensão econômica do modo de
produção capitalista, louvando seus supostos valores positivos, e elegendo o dinheiro como
elemento de desequilíbrio social
261
.
Com esses argumentos, não apenas se inverte a relação de causalidades entre a esfera
da produção e a esfera da circulação, como se insere uma suposta ruptura entre elas. Para
ilustrar a precariedade da proposta de Yunus, basta usar como contraponto a afirmação de um
inquestionável representante da economia capitalista, Abram Szajman, o presidente da
Fecomercio/SP (Federação do Comércio do Estado de São Paulo): “Há um descompasso entre
o aumento de crédito e a melhoria da renda e do emprego, o que deve se refletir no aumento
do endividamento e da inadimplência a dio prazo” (FOLHA DE SÃO PAULO,
04/05/2007).
Além disso, observamos que, ao se alegar que sendo o dinheiro ou a sua falta a
causa para a desigualdade social, duas premissas estão aqui implícitas: que o equilíbrio social
260
“Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu
tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bocejar, a pernear a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim,
que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as
pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa idéia era nada mais nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-
hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi,
chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as
vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos.
Agora, porém, que eu estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o
gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas de remédio, estas três
palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de
lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os
hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim.
De um lado, filantropia e lucro; de outro, sede de nomeada. Digamos: a amor da glória” (ASSIS, 2006, p. 18
19).
261
Yunus seria, nesse sentido, uma imitação de um Proudhon, sendo que do lado político oposto (de direita): não
apenas um pensador piorado, como também um ideólogo reacionário que não se propõe a superar a ordem do
capital, mas naturalizá-lo e legitimá-lo.
248
é resultante do espaço da circulação de mercadorias, e que o uso particular do dinheiro é que
irá determinar a condição social do seu possuidor. A partir do momento em que se estabelece
o dinheiro como o ente que provoca o desequilíbrio social, não apenas se perde de vista as
características que são peculiares e imanentes da economia capitalista, como se propõe uma
alternativa individualizante para esses problemas. Além da explícita mistificação de
possibilidade de harmonia social, consta como pano de fundo dessa tese a premissa de que a
determinação da organização da produção de riqueza social estaria restrita ao uso individual e
autônomo do trabalho.
Em outras palavras, que o requisito basilar para promover a suposta harmonia social
seria a autonomia do trabalho, por meio do seu uso individual. Inserindo esses elementos na
nossa discussão, poderíamos afirma que se inicialmente a subjetividade surge como um
diferencial competitivo a serviço das organizações de “economia solidária”, agora seria esta
qualidade (tomada de forma estritamente particular) que proporcionaria a superação das
contradições sociais resultantes do modo de produção capitalista. Por isso que Yunus (2005,
p. 282) fantasia a autonomia do trabalho a tal ponto que apresenta uma crítica radical àqueles
que são contra sua visão:
Entretanto, mesmo quando a lei garante aos pobres o direito à propriedade, a
mentalidade dos responsáveis pelas instituições de caridade não aceita isso. Um
jovem que havia acabado de sair da prisão queria se estabelecer por conta própria
vendendo batatas fritas, mas a instituição parisiense que o acolheu não podia
admitir que ele se tornasse autônomo; eles queriam comprar um estande de batatas
fritas e contratá-lo como assalariado, em vez de permitir que ele se tornasse
proprietário.
Em outras palavras, a caridade, como o amor, pode se transformar numa prisão.
Ainda que o autor, pelas suas limitações teóricas e metodológicas, não consiga
compreender, essa possibilidade de autonomia do trabalho dentro do mercado capitalista não
passa de uma mera ilusão. Como demonstrado no capítulo anterior, por trás desse discurso
supostamente progressista, se encontra um subterfúgio contratual em que organizações tais
como estas defendidas pelo autor, tornam-se peças-chave no processo de reestruturação
produtiva, em que as empresas capitalistas buscam maiores taxas de lucro. Dentro desse
contexto, não existe nem autonomia do trabalho, nem a possibilidade de retroação para o
trabalho concreto.
Nesse sentido preciso, a idéia presente na “economia solidária” do trabalho concreto,
em ruptura com o trabalho abstrato, aparece não somente como um recurso mercadológico,
mas também como o elo de unidade entre as pessoas, independentemente das classes sociais a
que estão vinculadas ontologicamente. Falta nessa tese, todavia, a apreensão das
249
determinações específicas do capitalismo, especialmente o caráter de universalidade do valor
de troca. Podemos fazer uma analogia dessa posição teórica com a de economistas criticados
por Marx (1986b, p. 49), por não apreenderem de forma correta o sistema capitalista, como é
o caso de Boisguillebert:
Boisguillebert olha, de fato, somente para o conteúdo material da riqueza, o valor de
uso, o desfrute, e considera a forma burguesa do trabalho, a produção de valores de
uso como mercadorias e o processo de troca das mercadorias como a forma social
natural, onde o trabalho individual atingiria aquele fim. Por isso, cada vez que se
defronta com o caráter específico da riqueza burguesa, como no dinheiro, acredita
na intromissão de elementos usurpadores estranhos irritando-se com o trabalho
burguês sob uma de suas formas, ao passo que o glorifica sob outra forma.
Boisguillebert nos fornece a prova de que o tempo de trabalho pode ser tratado
como medida da grandeza de valor das mercadorias, embora o trabalho, objetivado
no valor de troca das mercadorias e medido pelo tempo, seja confundido com a
atividade imediata natural dos indivíduos.
Em ambos os casos, os autores, apesar de crerem (ou de, propositalmente, se
apresentarem como tal) que estavam discorrendo sobre o fundamento da questão social, na
verdade, trataram-na de forma marginal, elegendo uma derivação como causa. Ao inverter a
relação entre circulação e produção, ou entre o dinheiro e a forma como se organiza a
produção de mercadorias, ataca-se apenas algumas conseqüências, permanecendo as causas
intactas. Ou seja,
Bate-se na carga, visando o burro. No entanto, enquanto o burro não sentir as
pancadas na carga, alcança-se de fato apenas a carga e não o burro. Tão logo ele as
sente, bate-se no burro e não na carga. Enquanto as operações forem dirigidas contra
o dinheiro como tal, trata-se apenas de um ataque às conseqüências, cujas causas
continuam existindo; trata-se pois de perturbação do processo produtivo, que possui
base lida e também a força de dominar através de reações mais ou menos
violentas as perturbações meramente passageiras (MARX, 1978, p. 02).
Não obstante a precariedade teórica de seus postulados, Yunus retira como conclusão
de sua experiência particular a lição de que a teoria econômica convencional, ao atribuir “aos
mercados a capacidade de otimizar a utilização dos fatores e satisfazer da melhor forma
possível todos os agentes econômicos era irrelevante para entender e combater a pobreza”
(SINGER, 2002, p. 76). Apesar de concordar com o caráter de irrelevância da teoria
econômica convencional, devemos nos perguntar se esse autor realmente aponta para a
superação dessa corrente.
A nosso ver, ainda que proponha críticas à auto-regulação do mercado (a famosa lei de
Say), ele se insere na mesma lógica dessa: a superação da pobreza faz-se-ia a partir do alcance
da harmonia social, sem cogitar a perda econômica para nenhuma pessoa, ou classe social.
Questionamo-nos se, com a defesa desse ponto de vista, Yunus, ao invés de negar a teoria
econômica convencional, não promove sua ampliação, levando-a para os segmentos de
mercado não atendidos diretamente. Ele também não se propunha, por meio da
250
disponibilização de crédito às pessoas necessitadas, proporcionar ou incrementar a
“capacidade de otimizar a utilização dos fatores e a satisfazer da melhor forma possível todos
os agentes econômicos”? O que ele fez não é tentar transformar todas as pessoas em agentes
econômicos a serviço do mercado capitalista? Ao objetivar aumentar o mercado consumidor,
Yunus não busca aumentar também as possibilidades de realização de mais-valia para o
capital?
As respostas estão disponíveis nas obras do autor
262
e, nestas fica expresso não apenas
que consciência das implicações dessa relação mercantil projetada, como se assume que essa
seria a única forma que, possibilitando a manutenção, ampliação e legitimação do modo de
produção capitalista, tornar-se-ia possível ajudar às pessoas pobres. Como ele mesmo relata, a
aquisição de empréstimos financeiros seria a única forma de saída para o pobre:
Para minha grande surpresa, percebi que o pagamento dos empréstimos sem caução
funciona muito melhor do que quando a garantia é importante. De fato, mais de 98%
de nossos empréstimos são pagos, porque os pobres sabem que essa é a sua única
chance de sair da pobreza e não podem recuar ainda mais. Se forem excluídos desse
sistema de empréstimo, como irão sobreviver? (YUNUS, 2005, pg. 109).
Sendo a partir dessa experiência de “economia solidária” que o sistema capitalista avançaria
na sua estrutura social baseada em classes sociais.
Sempre haveria diferenças entre as pessoas que estão na parte inferior da sociedade
e as pertencentes aos veis superiores de renda. Mas essa diferença seria a existente
entre a classe média e a classe abastada. (Assim como nos trens europeus hoje
apenas vagões de primeira e segunda classe, ao passo que no século XIX havia
vagões de terceira e até mesmo de quarta classe, sem janelas e com palha no chão)
(IDEM, p. 333).
Contudo, ainda que com janela ou um colchão mais confortável no lugar de palha no
chão, permanece uma ordem societária em que uma classe retira sua riqueza do controle e
exploração da outra. E, diferentemente do entendimento autor, na verdade o que se vislumbra
com o avanço do capitalismo não são melhorias graduais para a classe trabalhadora ou um
nível de desigualdade social inferior. Pelo simples fato de que o capital é uma força social e
não um elemento determinado individualmente e que inexistem outras fontes de valor para
além do trabalho abstrato, o horizonte cada vez mais próximo vislumbrado por esse sistema
social é a barbárie social e humana.
Como nem o valor de troca se transforma em solidariedade nem a solidariedade pode
ser a fonte do valor de troca, o que resta à classe trabalhadora é a organização e união para a
262
Além do livro citado (YUNUS, JOLIS, 2006), outra obra desse autor foi traduzida e publicada no ano passado
aqui no Brasil (YUNUS, 2008). Vale salientar que ambos o sucessos de vendas e o preço deles é determinado
pelo mercado capitalista.
251
luta de classes pois, somente assim, pode-se gerar uma alternativa concreta ao horizonte do
mercado capitalista. Adentramos, portanto, na análise sobre a transformação social.
252
Capítulo V: “Economia solidária” e transformação social
Então, para se fortalecer, não desperdice esse seu ódio ao vento,
use esse mesmo ódio como alimento, mastigue, engula, saboreie ele,
se arraste, morda a língua, arranhe a pele, e chore, e reze, e role pelo chão,
faça das suas tripas, coração, do seu coração, um corpo fechado
onde seu ódio fique represado, engrossando, acumulando energia
Até que num determinado dia, junto co’o ódio dos seus aliados,
todos os ódios serão derramados ao mesmo tempo em cima do inimigo
Numa luta dessas, conte comigo Mas ainda não dá para brigar agora,
é bobagem brigar justo na hora que o inimigo quer.
Sozinha, fraca, assim é dar murro em ponta de faca
(BUARQUE; PONTES, 1976, p. 112)
Desde a introdução de nossa tese, ressaltamos que nosso objetivo é apreender a função
social da “economia solidária” a partir das qualidades imanentes ao capitalismo brasileiro,
com base numa perspectiva metodológica e política que, além de aportar elementos teóricos,
volta-se para a superação do atual ordenamento social. Para nós, apenas a partir de uma
posição analítica que desmistifique a eternidade do modo de produção capitalista é que se
torna possível identificar os elementos centrais da essência de qualquer objeto de pesquisa que
esteja consubstanciado pelas determinações desse sistema social. A vinculação à perspectiva
da classe trabalhadora, assim como a visualização de um horizonte revolucionário, são,
portanto, ingredientes que também integram essa metodologia de análise. Como vimos nos
capítulos anteriores, sem eles, torna-se impossível uma apreensão que ultrapasse, por
exemplo, a aparência das relações de trabalho ou do mercado capitalista.
Não nos cabe agora relembrar pressupostos metodológicos adotados nessa pesquisa,
visto que tal tarefa foi realizada, ainda que de forma breve, no capítulo inicial. Gostaríamos de
frisar apenas que existem relações inseparáveis entre o método de pesquisa e a análise aqui
adotada e a concepção de transformação social, ou, especificamente, entre o método marxista
e a superação do ordenamento social baseado no capital, rumo a uma sociedade sem classes
sociais. No nosso entendimento, ao retirar do marxismo esse elemento central, promove-se
uma drástica fratura nessa tradição de pensamento, fazendo com que ela não mais se
sustente
263
. A defesa da revolução enquanto transformação estrutural não somente das
relações de produção, assim como de todos os elementos da superestrutura social, representa
263
Duas apresentações introdutórias sobre as bases do pensamento de Marx podem ser encontradas em Lênin
(1980c) e Mandel (2001).
253
um bem inalienável do pensamento inaugurado por Marx e trilhado pelos seus principais
seguidores.
Por outro lado, como observamos pontualmente em vários comentários ao longo da
tese, ainda que representantes da economia solidária” apresentem esse conjunto de
experiências não somente voltadas para a transformação social, como capacitadas para
realizar essa empreitada, essas qualidades não passam, a nosso ver, de elementos
mistificadores. Para nós, nem a “economia solidária” integra uma perspectiva de
transformação social, nem esse projeto teria capacidade para inaugurar um processo de
superação do modo de produção capitalista.
Conforme veremos em seguida, uma das grandes diferenças existente entre a proposta
de revolução social defendida por Marx e Engels e o modelo de alteração social projetado na
“economia solidária” é que, enquanto aquele almeja uma transformação radical da sociedade,
esse limita seu escopo de atuação a mudanças endógenas no atual sistema social. As
mudanças sociais defendidas pela “economia solidária” possuem limites claros e, ainda que
seja apelidadas por seus representantes de “socialismo”, esse modelo não rompe com os
principais elementos do modo de produção capitalista. Por isso que, como afirmamos na
introdução da nossa tese, torna-se preciso fazer uma diferença entre transformação social e
mudança social, visto que, enquanto aquela categoria pressupõe uma superação da ordem
social, essa pode ser realizada dentro desses limites, mantendo a essência social do atual
modo de produção.
É com base nesse pressuposto que buscaremos demonstrar que inexiste um projeto de
transformação social não apenas possível de ser realizado como também incorporado pela
“economia solidária”. É mister ressaltar bem essas duas condições, visto que será com base
nelas que evidenciaremos semelhanças e diferenças entre esse projeto social e as principais
características dos chamados socialistas utópicos. Como se observará, ao inserir essas duas
propostas de intervenção social dentro de seus respectivos contextos históricos, ficam
explícitas qualidades que demarcam uma superioridade dos socialistas utópicos em relação à
“economia solidária”.
Contudo, antes dessa análise, precisamos circunscrever bem qual a visão de mudança
social incorporada na “economia solidária” e quais suas diferenças principais para um projeto
de transformação social, tal qual aquele defendido pelos representantes do marxismo. Assim,
se num primeiro momento refletiremos sobre as diferenças que separam o socialismo
científico da “economia solidária”, em seguida, apontaremos elementos que interditam uma
analogia entre esse projeto social e os socialistas utópicos.
254
5.1. Do socialismo científico à economia solidária” e da “economia
solidária” ao socialismo utópico
Consta, dentre as referências teóricas que sustentam as teses da “economia solidária”,
um pequeno ensaio
264
em que Paul Singer almeja indicar os possíveis caminhos para o
alcance de mudanças sociais que promoveriam a instauração de uma “economia socialista”.
Nesse texto, o autor, objetivando o convencimento acerca da necessidade de ampliação das
experiências da “economia solidária”, se dedica ao combate de posições que criticam esse
projeto, dando destaque central às análises de Friedrich Engels. Na primeira parte do referido
texto
265
, Singer se propõe não apenas à crítica do projeto comunista presente nos “clássicos”
(como Singer se refere a Marx e a Engels), mas almeja inviabilizar analiticamente qualquer
tentativa oriunda destes que se destine à construção de uma sociedade emancipada. No seu
entendimento, para validar o projeto de mudança social presente na “economia solidária”,
seria imprescindível, antes de tudo, colocar em dúvida o exame daqueles que expuseram
enfaticamente o fracasso inevitável desse tipo de experiências. É assim que o representante da
“economia solidária” inicia seu duelo.
Logo na primeira frase de seu texto, o autor deixa claro o referido objetivo, alegando
que, a seu ver, apesar de Marx e Engels terem deixado como legado “uma crítica profunda e
penetrante do capitalismo como modo de produção”, não teriam alcançado resultados
convincentes acerca do projeto socialista, visto que “sua visão cientifica do socialismo”
deixaria “muito a desejar, sobretudo no delineamento de sua organização econômica e de seu
ordenamento social e político” (SINGER, 2000, p. 11). Munido dessa hipótese de análise,
Singer se qualifica para a contenda e elege como saco de pancadas Engels e seu “imortal
opúsculo Socialismo utópico e socialismo científico
266
”, no qual “mostra de forma magistral
264
Esse pequeno texto é resultado de uma palestra proferida no âmbito dos encontros “socialismo em discussão”,
promovidos pela Fundação Perseu Abramo, no sentido de amadurecer as idéias socialistas que perpassavam o
Partido dos Trabalhadores no final do século passado.
265
Nos limitaremos nesse espaço, centralmente, às idéias expostas na parte introdutória desse texto, visto que, a
análise das principais teses restantes já está contemplada em outros locais de nossa pesquisa.
266
Vale frisar que o título original poderia ser traduzido por “O Desenvolvimento do Socialismo, da Utopia à
Ciência” (Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft) e o título adotado nas edições
publicadas no Brasil é “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, oriundo da tradução francesa:
“Socialisme Utopique et Socialisme Sientifique”. Como se observa, ambas as traduções diferem da apresentada
por Singer (“Socialismo utópico e socialismo científico”) que, por substituir os termos “dopara “e”, vislumbra
uma relação de igualdades entre esses projetos, no lugar de um movimento de passagem.
255
como a instauração do socialismo poderia vir a decorrer da própria evolução contraditória do
capitalismo, particularmente em sua fase monopolista” (IDEM).
Primeiramente, vale precisar corretamente essa passagem de Engels. Tratando-se de
uma frase que pode provocar análises distintas
267
, faz-se necessária a seguinte explicação para
afastar possíveis leituras equivocadas que possam vincular a perspectiva de Engels a práticas
revisionistas: em nenhum momento dessa obra assim como de todos os seus textos que
temos conhecimento –, o pensador comunista advoga que o socialismo nascerá de forma
automática das contradições imanentes ao modo de produção capitalista. Para Engels, assim
como para os “clássicos” do marxismo, cabe aos trabalhadores e seus representantes, por meio
de sua organização e luta contra a classe capitalista, aproveitar o desenvolvimento dessas
contradições para instaurar um novo modo de produção. O comunismo não resulta de um
caminho natural do capitalismo
268
, mas representa um novo modo de produção que deve ser
imposto pela classe trabalhadora.
O roteiro utilizado por Singer para analisar criticamente a obra de Engels é simples:
primeiro transcreve algumas passagens de Engels; a partir dessas citações, explica brevemente
qual seria a concepção de socialismo que nelas estaria incutida; em seguida, indica quais
seriam os equívocos dessa concepção; por fim, conclui que tanto Engels como Marx por
comungarem dessa mesma concepção de socialismo não teriam sido capazes nem de
analisar criticamente o modo de produção capitalista, nem de projetar uma sociedade
realmente emancipada. Para Singer, somente o que os “clássicos” do marxismo teriam
visualizado seria uma sociedade capitalista centralmente planejada, que representaria um
modelo preparatório para o sistema soviético. Isso fica exposto nas seguintes críticas: “ao que
parece, Marx e Engels pensavam na generalização do planejamento interno da grande
empresa capitalista a toda a economia” (SINGER, 2000, p. 16), e “o reducionismo de Marx e
Engels teve conseqüências quando na União Soviética se tratou de aplicar à realidade as
fórmulas do socialismo científico” (IDEM, p. 17).
Contudo, como veremos, para conseguir alcançar essa crítica terminante aos
“clássicos” do marxismo, Singer se baseia numa falsa análise, visto que desvirtua não apenas
a proposta exposta por Engels em Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, mas
também a concepção metodológica e histórica presente em Marx e Engels. Para fornecer uma
267
O que, como será constatado ao longo de nossa exposição, é a base para a crítica do representante da
“economia solidária”.
268
Na verdade, o que está por trás da idéia de que o socialismo poderia nascer automaticamente da evolução
contraditória do capitalismo, é a defesa da “economia solidária” como conjunto de empreendimentos
econômicos aptos a aproveitar as brechas criadas por essa contradição.
256
visão correta da obra de Engels, assim como das críticas de Singer, nos propomos ao resgate
dos pontos principais dos textos desses autores, cotejando o primeiro a partir das análises
expostas no segundo. Somente assim, o leitor conseguirá situar corretamente as conjecturas
levantadas pelo defensor da “economia solidária” contra o fundador do socialismo científico.
O opúsculo Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico é parte integrante de um
projeto editorial maior que teve o objetivo central de combater as idéias oriundas de uma nova
doutrina supostamente socialista, levantadas pelo professor Karl Eugen Dühring da
Universidade de Berlim
269
. O anúncio de instauração dessa nova doutrina se deu em 1875,
causando bastante alarido na imprensa alemã, inclusive nas tendências socialistas, e a resposta
de Engels começou a ser dada a partir de artigos publicados em final de 1877 no jornal
Vorwärts
270
, logo depois de dedicar um ano de estudos a esse fim. Não obstante esse destino,
essa obra serviu não apenas para desmistificar as falsas promessas desse peculiar tipo de
socialismo aos olhos e ouvidos da classe trabalhadora
271
, mas expressou um esforço de Engels
(com contribuições de Marx
272
) em apresentar de forma coerente a ideologia comunista e o
269
Conforme afirma Engels (1990, p. 10), no prefácio de Anti-Dühring: “Três capítulos da obra (o primeiro da
Introdução e o primeiro e o segundo da terceira parte) foram transformados em brochura especial por meu amigo
Lafargue, atendo-se este a tradução francesa da obra; e, quando a versão francesa serviu de base à polonesa e à
italiana, fiz uma edição aleintitulada: ‘Do socialismo utópico ao socialismo científico’, obra que em poucos
meses alcançou três edições e apareceu vertida para o russo e o dinamarquês”. Somou-se a essas três partes, na
edição inglesa a partir de 1892, um substantivo prefácio em que Engels sintetiza traços históricos do
desenvolvimento da concepção materialista dialética. Esse prefácio também foi publicado em alemão na revista
Neue Zeit nos anos de 1892/1893. (cf. Engels, 1986, p. 302).
270
O jornal Vorwärts (Adiante) sucedeu o Volksstaat (Estado Popular) (cf. Engels, 1990, p. 05) como “órgão
central de imprensa da social-democracia alemã depois do congresso de unificação de Gotha. Publicava-se em
Leipzig, de 1876 a 1878” (ENGELS, 1986, p. 284).
271
As propostas de Dühring se alastraram a tal ponto que sua difusão começava a ter impactos nos trabalhadores:
“havia mesmo pessoas que se julgavam no dever de difundir a doutrina entre os trabalhadores” (ENGELS,
1990, p. 05).
272
A união de esforços entre Marx e Engels era prática comum não apenas na escrita desse texto, mas em todas
as suas obras: “Uma observação de passagem: tendo sido criada por Marx, e em menor escala por mim, a
concepção exposta neste livro, não conviria que eu a publicasse à revelia do meu amigo. Li-lhe o manuscrito
inteiro antes da impressão; e o décimo capítulo da parte segunda, consagrada à economia política (Sobre a
história crítica) foi escrito por Marx. [...] Era, aliás, hábito nosso ajudar-nos mutuamente na especialização de
cada um” (ENGELS, 1990, p. 09). Essa afirmação de participação conjunta dos dois pensadores em vários textos
é corroborada por um dos maiores historiadores marxistas: “Quando dois homens colaboram tão intimamente
como o fizeram Marx e Engels, durante mais de quarenta anos, sem qualquer desacordo teórico de importância, é
de presumir que cada um deles tinha pleno conhecimento do que estava na mente do companheiro. Sem dúvida,
se Marx estivesse escrito o ANTI-DÜHRING (publicado quando ainda vivia), seu texto seria diferente e, talvez
contivesse algumas novas e profundas sugestões. Mas não razão alguma para crer que ele discordasse de seu
conteúdo. Isto é aplicável aos trabalhos que Engels escreveu depois de morte de Marx” (HOBSBAWM, 1975, p.
53). Não nos cabe, aqui, retomar uma longa polêmica que norteou a análise dessa obra de Engels e as suas
influências no projeto inacabado da “Dialética da Natureza” (ENGELS, 1979), ou se essa posição teria sido ou
não comungada por Marx. Em todo caso, precisamos ressaltar que acreditamos que se trata de um equívoco o
fato de Engels ter buscado estender o uso da dialética para além da ontologia do ser social e, nesse sentido
preciso, concordamos com Netto (1981a. p. 44): “do projeto, tal qual ele nos chegou, resulta a conclusão de que
as formas gerais do movimento do ser são dialéticas mas resulta, ainda, uma tácita identificação entre a
dialética operante na natureza e a dialética do ser social. Daí a problematicidade do pensamento engelsiano;
porque, se não parece discutível a dialética da natureza, é pertinente o debate acerca da homologia que, nos seus
257
método dialético: “a polêmica transformou-se em exposição mais ou menos coerente do
método dialético e da ideologia comunista defendida por Marx e por mim, numa série de
domínios bastante vastos” (ENGELS, 1986, p. 09).
Das quatro partes que compõem Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico
(somando-se o prefácio e os três capítulos), Singer se dispõe a analisar apenas a última parte,
referente à exposição sobre contradições imanentes ao modo de produção capitalista e de que
forma esses elementos poderiam servir à instauração do comunismo. Deixa de lado, portanto,
as considerações acerca da gênese do desenvolvimento histórico da concepção do
materialismo dialético (prefácio); uma análise sobre a relação complementar entre a evolução
do sistema capitalista e o amadurecimento das formas de luta contra o capital, com destaque
para o papel dos socialistas utópicos, especialmente Saint-Simon, Charles Fourier e Robert
Owen (primeiro capítulo); e uma abordagem sobre as contribuições e limitações do
pensamento de Hegel, os aprendizados oriundos da crítica da economia política e do
movimento operário, assim como as categorias apreendidas por Marx que perfazem a
concepção materialista da história (segundo capítulo).
Como, nesse momento, o nosso objetivo específico é precisar as críticas de Singer
contra Engels nessa obra, centraremos nossos esforços apenas nas considerações expostas no
terceiro capítulo da obra citada
273
. As críticas de Singer serão expostas nos momentos exatos
em que as respectivas idéias de Engels são colocadas em questão.
Convicto de que a concepção dialética da história se estabelece segundo a tese de que
a organização produtiva é a base para apreender a configuração de qualquer sociedade, Engels
esboços, Engels a impressão de afirmar, entre esta dialética e o movimento do ser social. Nessa questão de
fundo que, até hoje, é ‘ponto quente’ do pensamento marxista reside, precisamente, a extensão daquele
sistema de idéias particularmente engelsiano, a que se fez alusão ao mencionar-se o Anti-Dühring. Trata-se de
um tipo de generalização teórica e metodológica que não se encontra em Marx; este, a partir da década de
cinqüenta, restringe as suas investigações e as suas conclusões à ontologia do ser social. No pensamento
engelsiano, todavia, registra-se o trânsito tendencial dessas determinações, comuns a ele e a Marx, para uma
ontologia geral e universal”. A primeira crítica marxista significante realizada sobre essa debilidade de Engels
se deve a Lukács que, dentre outras passagens, afirmou que: a “reserva da dialética à realidade histórico-social é
muito importante. Os equívocos surgidos a partir da exposição de Engels sobre a dialética baseiam-se no fato de
que Engels seguindo o mau exemplo de Hegel — estende o método dialético também para o conhecimento da
natureza” (LUKÁCS, 2003, p. 69), e que “antes de mais nada creio que é muito importante e sem esta
deformação o stalinismo o seria possível que Engels e, com ele, alguns social-democratas tenham
interpretado o decurso da sociedade do ponto de vista de uma necessidade lógica” (LUKÁCS, 1999, p. 107).
Mesmo concordando com elementos da crítica de Lukács, não subscrevemos a desqualificação da dialética da
natureza, mas, apenas a sua incorporação dentro da dialética social e, especialmente, que o equívoco de Engels o
situaria como antecessor de Stálin. Somos devedores, nessa análise, ao professor Ranieri Oliveira que, além de
fornecer várias críticas e sugestões sobre esse texto, nos chamou atenção para o fato de que “discordar
pontualmente de Engels não é concordar integralmente com Singer”.
273
Não se trata de aceitar essa limitação de Singer na análise da obra de Engels, mas, como abordamos vários
temas análogos em outras partes de nossa pesquisa, pouparemos tempo ao leitor. Além disso, nos parece
suficiente a análise desse capítulo para desqualificar e desmistificar todas as críticas de Singer a Engels.
258
introduz o terceiro capítulo da referida obra dedicando-se à análise das contradições do modo
de produção capitalista. Assim, logo após alguns comentários sobre a prevalência que a
estrutura produtiva tem no desenvolvimento histórico, inicia sua apreensão da gênese e
desenvolvimento do modo de produção vigente. Para o autor, é no capitalismo que, pela
primeira vez na história da humanidade, surge o caráter social da produção como resultado de
um longo processo de transformação de pequenas produções privadas em grandes
conglomerados de produção coletiva:
Os meios de trabalho – a terra, os instrumentos agrícolas, a oficina, as ferramentas
eram meios de trabalho individual, destinados unicamente ao uso individual,
diminutos, limitados. Mas isso mesmo leva a que pertencessem, em geral ao próprio
produtor. O papel histórico do modo capitalista de produção e seu portador a
burguesia consistiu precisamente em concentrar e desenvolver esses dispersos e
mesquinhos meios de produção, transformando-os nas poderosas alavancas
produtoras dos tempos atuais. Esse processo, que a burguesia vem desenvolvendo
desde o século XV e que passa historicamente pelas três etapas da cooperação
simples, a manufatura e a grande indústria, é minuciosamente exposto por Marx na
seção quarta de O Capital. Mas a burguesia, como fica também demonstrado nessa
obra, não podia converter aqueles primitivos meios de produção em poderosas
forças produtivas sem transformá-los de meios individuais de produção em meios
sociais, só manejáveis por uma coletividade de homens (ENGELS, 1986, p. 321).
O processo histórico da transição e vigência do modo de produção capitalista impôs
que as pequenas produções individuais comuns ao feudalismo fossem gradativamente
substituídas por grandes empresas capitalistas, dentro das quais não apenas se reuniam vários
trabalhadores, mas que a sinergia desses promovia um efeito inovador na produção: no lugar
do sentido individual das pequenas produções isoladas, as grandes organizações que surgiram
no capitalismo instauraram um caráter social na produção. Com a ascensão desse modo de
produção, a ligação entre pequenos produtores individuais perdeu seu espaço para uma cadeia
de atos sociais, tornando-se praticamente impossível discernir quais os imediatos produtores
individuais das principais mercadorias
274
.
Com o desenvolvimento dos meios de produção, “transformou-se a própria produção,
deixando de ser uma cadeia de atos individuais para converter-se numa cadeia de atos sociais,
e os produtos transformaram-se de produtos individuais em produtos sociais” (IDEM, 322).
Como resultado desse processo, as mercadorias produzidas não se assimilam a poucos
274
Para precisar os termos: os laços sociais que envolvem a produção capitalista das principais mercadorias são
de tal monta que se torna difícil identificar quais os trabalhadores que participaram exclusivamente de sua
origem. Pensemos, por exemplo, na fabricação de um automóvel que, além de suas diferentes funções e cargos
internos na fábrica, abriga uma rede imensa de trabalhadores que são responsáveis pela fabricação das peças que
o compõem. Como lei geral, a exceção que confirma essa regra são as pequenas produções, sejam restritas a
mercados locais, ou a segmentos de pouca relevância econômica. Como vimos no capítulo anterior, muitas
dessas formas de produção insignificantes em termos de produção e mercado são definidas, dentro das teses da
“economia solidária”, como aproveitadoras dos interstícios do capitalismo. Problematizaremos, mais à frente,
essa assertiva.
259
produtores individuais, mas, sendo fruto de uma atividade produtiva que engloba um imenso
conjunto de produtores, não permite uma identificação direta de sua origem singular. Com a
produção social surgida com o capitalismo, os produtos tornaram-se “produto de trabalho
coletivo de um grande número de operários, por cujas mãos tinha que passar sucessivamente
para sua elaboração” (IDEM). Nesse sentido, “já ninguém poder dizer: isso foi feito por mim,
esse produto é meu” (IDEM).
Para ser implementada, a produção capitalista exigiu não apenas um grande número de
pessoas produzindo, mas também que estas fizessem atividades diferentes. Ao lado da
concentração de rios produtores num mesmo espaço, o modo capitalista de produção fez
surgir a divisão técnica do trabalho em termos exponenciais. As atividades passaram a ser
parceladas ou especializadas e os trabalhadores não dominaram mais como antes todo o
processo produtivo de uma mercadoria, desde sua origem até sua conclusão
275
. Alguns dos
efeitos decorrentes da divisão técnica do trabalho foram a multiplicação de atividades
produtivas singulares, ao lado da especialização do trabalhador em operações limitadas. Além
disso, a imposição do capital pela necessidade de lucratividade fez com que, por meio do
crescente desenvolvimento de máquinas e equipamentos para ampliar a produtividade, as
atividades produtivas passassem a depender desses meios de produção a tal ponto de terem
seu sentido invertido, servindo como sua extensão. No lugar do trabalhador comandar a
máquina, foi a máquina que passou a comandar o trabalhador, ocorrendo, nos termos usados
por Marx (2004), a passagem da subsunção formal à subsunção real do trabalho no capital.
Contudo, ainda faltava um outro requisito para completar essa organização de elevado
potencial produtivo: a sistematização e a planificação dos conhecimentos e funções. De pouco
adiantaria ter um grande número de produtores unidos num mesmo espaço, exercendo várias
atividades diferentes, se esses trabalhadores e suas atividades não estivessem voltados para
um fim comum. Para orientar quais as formas mais eficazes de estabelecer e manter esse
objetivo comum entre os diversos produtores e as diversas funções ocupadas, tornou-se
necessário um sistema complexo de planejamento
276
. Foi a união desses ingredientes que
serviu como força propulsora e possibilitou a gênese da produção social. Em oposição à
“divisão elementar do trabalho, sem plano nem sistema, que imperava no seio de toda a
sociedade” surgiu um novo modo de produção que “implantou a divisão planificada do
275
Como vimos anteriormente, vários autores que defendem a “economia solidária” igualam divisão técnica do
trabalho com alienação e, conseqüentemente, sua superação com produção autogestionada ou uma democracia
dentro do processo decisório das empresas. Nas palavras de Singer (2000, p. 38): dentro dos objetivos da
economia socialista “se inclui também a desalienação do trabalhador, o que implica superar a hierarquia nas
empresas e a desinformação acarretada pela divisão do trabalho”.
276
Sobre isso ver: I Parte “Trabalho e Gerência”, de Braverman (1987).
260
trabalho dentro de cada fábrica; ao lado da produção individual surgiu a produção social
(IDEM, p. 322).
A disparidade produtiva entre a produção social brotada a partir do modo de produção
capitalista e a pequena produção individual típica do feudalismo era tão elevada que
ocasionava diferenças significativas em relação ao tempo e aos custos para fabricação das
mercadorias. Essa diferença de custos e valor das mercadorias, ao ser repassada ao mercado
através de seus preços cobrados, impulsionou as vendas das empresas capitalistas e limitou a
comercialização das pequenas produções individuais. Como conseqüência econômica, em
poucos anos o mercado foi dominado pelas empresas capitalistas.
Os produtos de ambas [produção individual e produção social] eram vendidos no
mesmo mercado e, portanto, a preços aproximadamente iguais. Mas a organização
planificada podia mais que a divisão elementar do trabalho; as fábricas em que o
trabalho estava organizado socialmente elaboravam seus produtos mais baratos que
os pequenos produtores isolados. A produção individual foi pouco a pouco
sucumbindo em todos os campos e a produção social revolucionou todo o antigo
modo de produção (IDEM, p. 322).
A dinâmica de crescimento das empresas capitalistas e seu respectivo domínio no
mercado favoreceram o aprofundamento entre aquelas pessoas que eram responsáveis pela
produção das mercadorias e aquelas que detinham os meios de produção e que impunham as
metas e formas de produção. Já existia, mesmo no nascente modo de produção capitalista, a
possibilidade de se perceber a contradição entre capital e trabalho. Isso aconteceu porque, não
apenas aqueles que sentiam na pele essa contradição os trabalhadores mas todos que se
dedicaram a entender o funcionamento do capitalismo em sua fase inicial, tinham a
possibilidade de perceber a contradição estrutural entre produção social e apropriação
privada
277
. A base dessa contradição se encontra no fato de que a classe capitalista se apropria
privadamente dos resultados da produção social realizada pela classe trabalhadora:
E se até aqui o proprietário dos meios de trabalho se apropriara dos produtos,
porque eram, geralmente, produtos seus e a ajuda constituía uma exceção, agora o
proprietário dos meios de trabalho continuava apoderando-se do produto seu, mas
fruto exclusivo do trabalho alheio. Desse modo, os produtos, criados agora
socialmente, não passavam a ser propriedade daqueles que haviam posto realmente
em marcha os meios de produção e eram realmente seus criadores, mas do
capitalista (IDEM, p. 323).
De forma distinta ao incipiente proprietário dos meios de produção que participava
integralmente das atividades laborais e era responsável pela fabricação dos produtos, o dono
277
Não é a toa que Marx e Engels utilizaram diversos textos e pesquisas de estudiosos da economia política
(com destaque para Ricardo e Smith) como base para apreensão do modo de produção capitalista. No entanto, a
demarcação temporal da validade dessas pesquisas burguesas é precisa: até 1848. Quando os trabalhadores
passaram a representar uma classe consciente de seus interesses, os ideólogos burgueses trataram de ampliar a
mistificação do capitalismo, relegando a apreensão da realidade a caminhos de vulgarização.
261
da empresa capitalista se apropria do resultado do trabalho de outras pessoas. Enquanto nas
pequenas produções típicas da passagem do feudalismo para o capitalismo, o proprietário dos
meios de produção apropriava-se privadamente de um produto que, em grande medida,
também era resultante de seu esforço particular, tempos depois, o capitalista se apropria de
uma mercadoria que é fruto quase sempre exclusivo de trabalho alheio
278
. Assim, a
contradição imanente ao modo de produção capitalista é que a apropriação privada ocorrida
nos moldes embrionários de produção mantém-se mesmo com a emersão de uma forma
avançada de produção, de caráter social.
Apesar de a produção ter se convertido essencialmente em fator coletivo
279
, a forma de
apropriação que “pressupõe a produção privada individual, isto é, aquela em que cada qual é
dono de seu próprio produto e, como tal, comparece com ele ao mercado” foi mantida
(IDEM). Com isso, “apesar de destruir o pressuposto sobre o qual repousa”, é a apropriação
privada típica de modos de produções anteriores ao capitalista que representa a forma
imanente dessa configuração social. Conforme destaca Engels, é “nessa contradição, que
imprime ao novo modo de produção o seu caráter capitalista, [que] encerra-se em germe,
todo o conflito dos tempos atuais” (IDEM, p. 323).
Em outras palavras, Engels indica que a contradição central do modo de produção
capitalista, que representa a base em que se erguem todos os seus problemas econômicos,
ocorre pela adversidade entre produção coletiva e apropriação privada, presente nas empresas
capitalistas. De um lado encontra-se um grande coletivo de trabalhadores realizando
atividades distintas e reunidas com um mesmo fim e, de outro, um pequeno grupo de
capitalistas que retiram seu sustento e sua imensa riqueza dessa produção alcançada com o
suor dos outros. A produção social surgida a partir do modo de produção capitalista e
apresentada como potencialmente progressista é, portanto, barrada pela forma como se sua
determinação social, por uma classe de parasitas que sugam sua opulência dos trabalhadores a
tal ponto que esta se torna a lógica que impera na totalidade social. Assim se estabelece o
278
Mesmo que algum capitalista contrarie a regra geral que aponta para seu gradativo afastamento da produção
de mercadorias, delegando o controle da empresa na mão de subordinados e restando para si apenas o
recebimento dos dividendos, o seu dispêndio de energia física e mental é irrisório perante o montante de valor
socialmente produzido pelos “seus empregados” e apropriado privadamente.
279
Ressalta-se que se trata de fator coletivo e não coletivizado. Não é pelo fato das funções se darem
necessariamente de forma coletiva que o controle sobre o resultado do trabalho também o será. Como indica
Engels, dentro da empresa capitalista, apesar de existir uma produção coletiva, o controle sobre o resultado e a
forma como ocorre a produção se de maneira privada. Levando essa lei ao paroxismo, pode-se ter inclusive
uma gestão coletiva da produção com a apropriação privada da riqueza produzida. Uma empresa pode funcionar
a partir de elementos de gestão democrática, em que haja participação dos trabalhadores no processo decisório e,
ao mesmo tempo, manter a centralidade da apropriação privada nas mãos de poucos capitalistas. Uma visão
fantasiada desse processo pode ser encontrada nos CCQ Círculos de Controle de Qualidade, ou na participação
dos trabalhadores nos lucros das empresas. (ver: Capítulo 03).
262
capital: o uso da força de trabalho alheia retornando em concentração de riquezas a quem tem
a posse dos meios de produção.
Com o desenvolvimento do capitalismo, imperou e impera cada vez mais essa regra do
capital, e a concentração dos meios de produção nas mãos dos capitalistas retirou todas as
ferramentas externas que possibilitam o sustento autônomo dos trabalhadores. No fim, os
meios essenciais de produção ficaram restritos às mãos dos capitalistas e sobrou aos
trabalhadores apenas uma fonte de sobrevivência: a venda de sua própria força de trabalho.
“Realizara-se o completo divórcio entre os meios de produção concentrados nas mãos dos
capitalistas, de um lado, e, de outro, os produtores que nada possuíam além de sua própria
força de trabalho” (IDEM, p. 324). Como conseqüência da contradição entre caráter social da
produção e apropriação privada, surge a contradição entre classe trabalhadora e classe
capitalista. A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista reveste a
forma de antagonismo entre o proletariado e a burguesia” (IDEM).
Não obstante, os efeitos da contradição entre produção social e apropriação privada
não se restringem ao antagonismo entre proletariado e burguesia, mas provoca outros abalos
de grande impacto social. Não demorou muito para que a contradição imanente ao modo de
produção capitalista começasse a produzir efeitos negativos diretos não apenas na vida dos
trabalhadores, mas também na dos capitalistas e na de toda a sociedade. Se os impactos do
antagonismo entre trabalho e capital podem ser escamoteados à medida que a classe
trabalhadora se fragmenta e se desorganiza enquanto sujeito consciente e capaz de subverter o
modo de produção capitalista, o segundo grande efeito da contradição central desse sistema
aponta para outras soluções menos capazes de serem escondidas, visto que configuram
indicações contra os próprios imperativos do capital
280
.
Representa uma qualidade lógica e racional, dentro das hostes capitalistas, a luta
contra as necessidades, conquistas e direitos dos trabalhadores, no entanto, diametralmente
oposto, é o conflito entre interesses de seus representantes, entre os próprios capitalistas
281
. A
280
Dito a partir de outras expressões: ainda que seja extenso o poder e o controle da classe capitalista sobre a
classe trabalhadora, isso não significa que não existirão mais crises econômicas e sociais no capitalismo. Perry
Anderson (2003 p. 15) demonstra como as políticas neoliberais, mesmo promovendo impactos negativos diretos
na classe trabalhadora não surtiram os efeitos desejados de retomada do crescimento econômico de países
capitalistas: “no final das contas, todas estas medidas haviam sido concebidas como meios para alcançar um fim
histórico, ou seja, a reanimação do capitalismo avançado mundial, restaurando taxas altas de crescimento
estáveis, como existiam antes da crise dos anos 70. Nesse aspecto, no entanto, o quadro se mostrou
absolutamente decepcionante. Entre os anos 70 e 80 não houve nenhuma mudança nenhuma na taxa de
crescimento, muito baixa nos países da OCDE”.
281
Ainda que em alguns contextos históricos específicos os representantes da classe capitalista forneçam
concessões à classe trabalhadora, isso não indica que se trate de defender o interesse dos trabalhadores, mas
antes resguardar o interesse dos capitalistas.
263
oposição entre trabalhadores e capitalistas é uma contradição eterna do modo de produção
capitalista, mas pode ser obscurecida por instrumentos como o domínio ideológico. Por outro
lado, a contradição entre os diversos interesses dos capitalistas, além de condição imutável,
requer formas de controle que limitam à própria razão de ser destes agentes econômicos.
Trata-se de uma grande contradição desejar que o capitalista não amplie sua capacidade de
produção visando um aumento de lucratividade, ou que não pratique atividades de
especulação financeira. Ou seja, é um paradoxo solicitar ao capitalista que não aja como
capitalista. É justamente nesse enredo que se estabelece a contradição entre a vontade
particular de cada capitalista e a anarquia dos interesses de todos os capitalistas que se
cristalizam no mercado.
O mercado enquanto junção desordenada de interesses capitalistas individuais não
respeita, portanto, a prospecção interna de cada empresa capitalista. De nada adianta que a
empresa capitalista se estruture por uma organização interna se, externamente, o mercado
reflete uma babel de interesses particulares:
A anarquia da produção social sai à luz e se aguça cada vez mais. Mas o
instrumento principal com que o modo de produção capitalista fomenta essa
anarquia na produção social é precisamente o inverso da anarquia: a crescente
organização da produção com caráter social, dentro de cada estabelecimento de
produção (ENGELS, 1986, p. 325).
É desta forma que se caracteriza o segundo efeito central da contradição entre produção social
e apropriação capitalista: “a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista
manifesta-se agora como antagonismo entre a organização da produção dentro de cada
fábrica e a anarquia da produção no seio de toda a sociedade” (IDEM, p. 326).
É apenas a partir desse momento, rejeitando de sua análise a centralidade da
contradição entre produção social e apropriação privada, assim como sua derivação em
antagonismo entre trabalhadores e capitalistas, que Singer principia suas críticas a Engels e
aos “clássicos” do marxismo. Para o representante da “economia solidária”, a única
contradição dentro do modo de produção capitalista apreendida por Engels e que merecia
destaque seria essa: “o antagonismo provém do fato de a organização fabril da produção ser
planejada e o relacionamento das fábricas entre si com fornecedores e consumidores ser
condicionado pela competição em mercados, daí a anarquia da produção no plano social”
(SINGER, 2000, p. 11). Omitindo todas as etapas anteriormente apreendidas por Engels,
Singer afirma categoricamente que seria “dessa contradição [que] Engels deduz a necessidade
de centralização do capital” (IDEM).
264
Ao desenvolver suas análises, Engels realmente aponta para a dinâmica de
concentração e centralização dos capitais
282
, no entanto, não o faz de forma autônoma, com
base somente nas relações entre o espaço interno das empresas capitalistas e as relações
externas que se dão entre essas no mercado. A contradição entre planejamento interno da
organização e anarquia da produção dada na totalidade social não é um fenômeno
independente, mas pressupõe a contradição entre caráter social da produção social e
apropriação capitalista, imanente a qualquer empresa. Essa característica sim é que deve ser
apreendida como a contradição basilar do modo de produção capitalista a partir da qual as
outras se estabelecem. É somente omitindo esse fato contundente que Singer se propõe a
encarar o seu adversário.
Diferentemente do que indica Singer e que aparece de maneira repetitiva em textos da
“economia solidária”, não se trata de uma luta entre dois pólos desconectados: de um lado o
espaço interno da empresa e de outro o seu espaço externo expresso no mercado.
Inversamente do que se observa constantemente nos textos da “economia solidária”, Engels
nunca parcelou a totalidade social do modo de produção capitalista, o que indica que o espaço
da fábrica e o âmbito do mercado não estão desconexos, mas, antes, se imbricam mutuamente,
fazendo parte da mesma dinâmica social e, por isso, tanto um como outro são momentos da
sociedade capitalista. A contradição entre produção social e apropriação privada é qualidade
estrutural da base de todas as empresas, em que, apesar de existir um trabalho coletivo para
fabricar os produtos, o controle sobre seu processo e resultado fica restrito a poucas mãos.
Vários produzem, mas poucos controlam e se apropriam e, quase sempre, os que se
apropriam, não contribuíram em nada nesse processo produtivo. Essa é a contradição basilar
do modo de produção capitalista e, sob sua alçada, cimentam-se derivações: tanto a oposição
entre capitalistas e trabalhadores, como o descompasso entre planejamento interno das
empresas e anarquia do mercado.
De maneira tautológica, poderíamos afirmar que, como os capitalistas são os donos
dos meios de produção, acumulam privadamente a riqueza social por meio da exploração da
força de trabalho de outras pessoas. O mercado produz efeitos de contradição com o
planejamento interno da empresa capitalista porque essa qualidade se ergue a partir da
contradição entre produção social e apropriação privada. Diferentemente do que aponta
Singer, para Engels, a empresa capitalista não representa um pólo oposto do mercado, mas,
antes, o mercado constitui uma expressão da forma como se produzem e se apropriam as
282
Da mesma forma que o fez Marx (1985a) de forma minuciosa e magistral no Capítulo XXIII A Lei Geral da
Acumulação Capitalista de O Capital.
265
mercadorias. Como Singer descarta a contradição central do modo de produção capitalista e
apreende somente uma derivação, enxerga causa quando na verdade se trata de sintoma, o
que, como veremos, gera sérios problemas de análises. Tendo explicitado o uso desse recurso
questionável, voltemos ao texto de Engels.
Para Engels, o descompasso entre a organização da produção interna da empresa e a
confusão entre os diversos interesses dos capitalistas fora dos muros da empresa, constitui
uma qualidade intrínseca do capitalismo. Além disso, essa contradição possui uma força
tamanha que determina a existência de dois modelos de comportamentos complementares e
diversos, um referente ao espaço interno da empresa e outro às relações dentro do mercado.
Mesmo estando ambos condicionados pela lógica do capital, pela busca imperativa de
acumulação privada de riquezas, as mediações particulares que regulam a produção de
mercadorias não são as mesmas que estabelecem suas trocas. O imperativo do capital é o
mesmo: conseguir aglomerar cada vez mais lucros, mas isso não se realiza da mesma forma
nessas duas instâncias.
Dentro das empresas, como forma de ampliar gradativamente a lucratividade, é lei a
máxima produtividade possível, e esta é limitada apenas por fatores internos
283
, como
quantidade de força de trabalho, de matérias-primas ou de máquinas disponíveis. Todos esses
fatores são dominados, ou ao menos conhecidos, pelos capitalistas. Entretanto, o momento de
realização da venda requer outras mediações, nem sempre corretamente apreendidas pelos
capitalistas, visto que o mercado não é controlado ou controlável da mesma forma que se
organiza e planeja a produção de mercadorias. Para que a venda seja realizada é preciso que
existam pessoas que executem sua compra e, nesse ínterim, sempre vão existir grandes
margens de imprevisão
284
. Mesmo que a empresa invista nas mais diversas formas de
manutenção e ampliação de sua clientela, a busca incessante pela ampliação da acumulação e
o aumento da maior produtividade provocarão um desequilíbrio constante entre os interesses
283
Claro que todos esses fatores internos são produtos sociais, mas a quantidade ou a qualidade de incorporação
desses dentro das empresas depende de condições particulares de cada organização.
284
É também para reduzir o grau de incerteza no mercado que os capitalistas precisam demandar grande
quantidade de recursos em atividades de publicidade: “Uma vez que os mercados devem permanecer a principal
área de incerteza, o empenho da empresa é portanto no sentido de reduzir o caráter autônomo da demanda de
seus produtos e aumentar seu caráter induzido. Para esse fim, a organização mercadejadora torna-se a segunda
em dimensão, sendo a primeira a organização da produção em empresas fabris, e outros tipos de empresa vêm a
existir com o único propósito de mercadejar. Essas organizações de mercadejamento assumem como sua
responsabilidade o que Veblen chamou ‘uma produção quantitativa de clientes” (BRAVERMAN, 1987, p. 227),
ou, ainda que “quanto mais forte a atração do público à sua marca específica, tanto menos elástica se torna a
procura com que pode contar e tanto mais capacitado estará ele para elevar seu preço sem sofrer uma
considerável perda de receita” (BARAN; SWEEZY, 1966, p. 121).
266
internos e a capacidade de realizá-los. Torna-se inevitável, portanto, a colisão entre produção
e venda:
A enorme força de expansão da grande indústria, a cujo lado a expansão dos gases é
uma brincadeira de crianças, revela-se hoje diante de nossos olhos como uma
necessidade qualitativa e quantitativa de expansão, que zomba de todos os
obstáculos que se lhe deparam. Esses obstáculos são os que lhe opõem o consumo, a
saída, os mercados de que os produtos da grande indústria necessitam. Mas a
capacidade extensiva e intensiva de expansão dos mercados obedece, por sua vez, a
leis muito diferentes e que atuam de uma maneira muito menos enérgica. A
expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a da
produção. A colisão torna-se inevitável, e como é impossível qualquer solução
senão fazendo-se saltar o próprio modo capitalista de produção, essa colisão torna-
se periódica. A produção capitalista engendra um novo ‘círculo vicioso(ENGELS,
1986, p. 327)
285
.
Realiza-se, dessa forma, não apenas a confirmação em maior grau da contradição entre
produção social e apropriação privada, mas entre proletários e burgueses. A contradição entre
quantidade de mercadorias produzidas e quantidade de mercadorias a serem consumidas
apenas ocorre porque dentro do capitalismo não existe uma apropriação social dos produtos
socialmente produzidos, da mesma forma que, dentro desse contexto, é exatamente por causa
dos grandes níveis de produtividade que os trabalhadores ficam cada vez mais sem meios de
subsistência: “as massas operárias carecem de meios de subsistência precisamente por -los
produzido em excesso” (IDEM, p. 328). Ressaltamos que, diferentemente de formas históricas
de distribuição social, nas quais o Estado capitalista se prestou ao papel interventivo
286
de
regulação do mercado em vista de um equilíbrio mínimo entre oferta e demanda, o que está
aqui em discussão é a apropriação social de toda a produção social. Não se trata de supostas
políticas de redistribuição da riqueza, defendidas no sentido de amenização da desigualdade
285
Salta aos olhos a atualidade da análise de Engels: “o capitalismo monopolista é caracterizado por uma
tendência à estagnação econômica, bem como à natureza complexa da forma pela qual a publicidade opera para
contrabalançá-la” (BARAN; SWEESY, 1966, p. 129).
286
Uma das expressões mais conhecidas de intervenção no mercado para manter patamares nimos de
equilíbrio entre oferta e demanda foi o Estado de Bem-Estar Social. Diferentemente da visão de que o Welfare
State marca uma nova relação entre mercado e Estado, propiciando o pleno aproveitamento dos recursos (cf.
Singer, 1999, p. 159), entendemos que, mesmo instaurando novas nuances, como as políticas sociais, a função
essencial do Estado permaneceu a mesma, aproximando-se da seguinte realidade: “por todos os indícios
existentes, o Estado de Bem-Estar não foi a expressão de uma nova configuração das classes sociais e nem de
uma outra função social do Estado. Dadas as peculiaridades históricas do pós-guerra, as necessidades inerentes à
reprodução do capital exigiram a conjunção do binômio Estado de Bem-Estar nos países imperialistas e ditaduras
e regimes autoritários no Terceiro Mundo; exigiram o renascimento da tortura e a intensificação da repressão ao
sindicalismo revolucionário; exigiram uma série de guerras imperialistas e o incrível desperdício que é o arsenal
nuclear. E o aumento da massa salarial ocorreu na medida e na proporção exatas para a maior lucratividade do
capital naquelas circunstâncias. O Estado de Bem-Estar, longe de significar uma democratização do Estado e
uma maior participação da sociedade civil em sua direção política, representou uma intensificação inédita das
alienações que brotam do capital, com tudo o que tem de destrutivo. Não nos parece concebível, portanto,
utilizar o Estado de Bem-Estar como um argumento empírico a favor das inúmeras teses que apregoam ter
ocorrido alteração essencial no capitalismo, no Estado burguês e nas classes sociais no pós-guerra” (LESSA,
2007, p. 291).
267
social, mas de uma socialização efetiva da produção social, instaurando uma apropriação
social de toda a riqueza socialmente produzida.
Como, dentro dos marcos do capitalismo, não existe forma de efetivar a apropriação
social, a contradição entre planejamento interno na empresa e anarquia no mercado alcança,
nos seus níveis mais elevados, uma marca na economia que se faz sentida por todos: um
elevado descompasso entre a produção e consumo, gerando crises históricas.
Nas crises estala em explosões violentas a contradição entre a produção social e a
apropriação capitalista. A circulação de mercadoria fica, por um momento,
paralisada. O meio de circulação, o dinheiro, converte-se num obstáculo para a
circulação; todas as leis da produção e da circulação das mercadorias viram pelo
avesso. O conflito econômico atinge seu ponto culminante: o modo de produção
rebela-se contra o modo de distribuição (IDEM, p. 328).
O descompasso entre quantidade de mercadorias produzidas pelas empresas e a
capacidade efetiva do mercado em realizar e absorver todas as vendas, se expressa em termos
absolutos nas crises do capitalismo. Nesses momentos de grande imprevisibilidade sobre o
futuro do mercado, torna-se impraticável ao capitalista auferir com segurança uma perspectiva
de venda e, com isso, amplia-se o paradoxo entre produção e consumo. Sem ter noção da
capacidade de absorção efetiva do mercado, o planejamento interno da produção perde seu
sentido de eficácia. Produzem-se mercadorias sem garantia relevante de que essas serão
vendidas e é por isso que as crises do capitalismo não somente elevam ao máximo a oposição
entre planejamento interno e anarquia do mercado, como transformam esses pólos em
inimigos, um rebelando-se contra o outro.
A contradição entre produção social e apropriação privada, expressa no descompasso
entre capacidade de produção da empresa e capacidade de consumo do mercado, gera
impactos diretos em toda a sociedade. Os efeitos negativos das grandes crises do capitalismo,
como a de 1929 (ou a atual), provocam a emersão de sintomas da contraditoriedade do modo
de produção capitalista que não podem ser escondidos. Mesmo com várias tentativas de
camuflagem da crise, sua amplitude é de tal monta que todos recebem seus impactos. Além
disso, mesmo que representantes do capital tentem situar sua natureza para além de aspectos
endógenos do capitalismo, costumeiramente elegendo novos efeitos como causas
287
, as crises
históricas colocam em questão a permanência desse modo de produção e podem potencializar
a capacidade revolucionária de transformação social.
287
Como é o caso da crise da década de 70 do século passado, em que os representantes do capital elegeram
como causa o preço do petróleo. O que era conseqüência foi transformado em fonte da crise. Sobre isso ver:
Mandel (1982).
268
É nos momentos de crise que, por causa dos problemas materiais acarretados, de um
lado se apresentam as tentativas de reformas sociais e do outro se potencializam as críticas ao
capitalismo e se fortalecem manifestações exigindo um novo ordenamento social. Não se trata
de fantasiar sentimentos ou valores voltados para a defesa de uma possibilidade idealizada,
mas de uma determinação concreta que perpassa o modo de produção capitalista, seja
conscientemente sentida ou não. Em síntese, enquanto existir o modo de produção capitalista,
vai existir contradição entre produção social e apropriação privada, assim como sua expressão
absoluta do desequilíbrio entre produção e consumo representada nas crises e,
conseqüentemente, a necessidade de transformação social pela classe trabalhadora.
Como base material dessas diversas reivindicações da classe trabalhadora está a busca
pela abolição da apropriação privada da riqueza socialmente produzida e, com isso, que as
forças produtivas sejam efetivadas em seu caráter social:
De um lado, o modo capitalista de produção revela, pois, sua própria incapacidade
de continuar dirigindo suas forças produtivas. De outro lado, essas forças produtivas
compelem com uma intensidade cada vez maior no sentido de que resolva a
contradição, de que sejam redimidas de sua contradição de capital, de que seja
definitivamente reconhecido o seu caráter de forças produtivas sociais
(ENGELS, 1986, p. 329).
Se as duas classes em luta dentro do capitalismo desenvolvem formas diversas de
impor suas vontades e de encaminhar soluções para essa contradição, cabe à classe dominante
a responsabilidade sobre seu direcionamento. Se, de um lado, os trabalhadores precisam
aproveitar as crises do capitalismo para promover a transformação social, de outro lado, os
capitalistas necessitam desenvolver alternativas para naturalizar os efeitos das contradições
desse sistema e, como a crise o coloca em questão, devem tentar atenuar seus impactos. A luta
se estabelece em torno da contradição entre produção social e apropriação privada, visto que
se trata de uma condição estrutural do modo de produção capitalista e, enquanto os
trabalhadores lutam para que se supere a apropriação privada capitalista e, com isso, que as
forças produtivas deixem de ser tangenciadas pelo capital e sejam socialmente efetivadas, os
capitalistas se inscrevem na manutenção e legitimação dessa contradição.
Como os capitalistas também conseguiram perceber que a crise é uma condição
imanente do modo de produção capitalista, coube a seus representantes a responsabilidade de
encontrar formas de amenizar seus efeitos
288
. Várias ilações foram aventadas sob diferentes
288
O mais cotado de todos foi Keynes que, várias décadas depois que Marx e Engels expuseram essa qualidade
intrínseca, conseguiu admitir que o mercado capitalista não se estrutura pelo equilíbrio entre as partes: “Ele
procurou mostrar que no capitalismo o nível de emprego e de atividade não são determinados por livre
concorrência nos mercados de fatores, mas pela variação da demanda efetiva, que depende da propensão a
consumir da população e das decisões de investir dos empresários” (SINGER, 1998, p. 158).
269
aspectos, mas manteve-se o mesmo pré-requisito para todas: a busca pelo equilíbrio entre
oferta e demanda ou, nas palavras de Engels, pela solução momentânea da expressão mais
ampla da contradição entre caráter social da produção e apropriação privada: o descompasso
entre planejamento interno e anarquia do mercado. No bojo da classe capitalista é impossível
vislumbrar um projeto que retire do capital o mandatário sobre as forças produtivas e efetive o
caráter social da produção em reciprocidade com a apropriação social e, assim, abre-se espaço
apenas para atenuar as expressões dessa contradição. Sob esse prisma, uma das alternativas
postas foi a unidade de agentes econômicos em torno de um fim comum de apropriação
privada.
Para solucionar os efeitos da referida contradição econômica, gerou-se historicamente
uma alternativa coerente com o capitalismo, objetivando controlar a demando do mercado.
Nesse sentido, surgiram as grandes empresas monopolistas que ampliaram constantemente
seu domínio sobre o mercado com o objetivo de prover níveis próximos nas relações entre
oferta e demanda. É redundante externar que, como se trata de uma proposta que se ergue a
partir da estrutura do modo de produção capitalista, seguindo sua tendência, seria impossível
superar uma contradição que lhe é imanente. Mesmo assim, esse foi e continua sendo um
recurso utilizado para que os capitalistas consigam superar momentaneamente as defasagens
com o mercado, mesmo que sirva apenas para naturalizar e ampliar o problema. O grande
exemplo desse empreendimento são as sociedades anônimas:
É essa rebelião das forças de produção, cada vez mais imponentes, contra a sua
qualidade de capital, essa necessidade cada vez mais imperiosa de que se reconheça
o seu caráter social, que obriga a própria classe capitalista a considerá-las cada vez
mais abertamente como forças produtivas sociais, na medida em que é possível
dentro das relações capitalistas. Tanto os períodos de elevada pressão industrial,
como sua desmedida expansão do crédito, como o próprio crack, com o
desmoronamento de grandes empresas capitalistas, estimulam essa forma de
socialização de grandes massas de meios de produção que encontramos nas
diferentes categorias de sociedades anônimas (ENGELS, 1986, p. 329)
289
.
Com a união de capitalistas em torno das sociedades anônimas, ao mesmo tempo em
que esses buscam amenizar o descompasso entre produção e consumo, ou atenuar a
contradição entre planejamento individual e anarquia do mercado, ocorre um alargamento da
contradição central do capitalismo, pois se amplia o caráter social da produção e se restringe a
sua apropriação privada. As sociedades anônimas, que surgem com o objetivo de providenciar
que os maiores capitalistas se unam para controlar o mercado e consigam vender a maioria
das mercadorias produzidas, ao passo que monopolizaram o mercado em torno de grandes
289
Basta apenas uma manchete do jornal mais lido no Brasil para demonstrar a atualidade da análise de Engels:
“Crise acelera união de Itaú e Unibanco” (SCIARRETA, 2008).
270
empresas capitalistas, concentraram em suas mãos elevados patamares de riqueza social e
englobam altas quantidades de trabalhadores. Como, diferentemente do que apregoa Singer
290
,
existe uma determinação classista sobre esse processo, ao se unirem, os capitalistas
restringem ainda mais a apropriação da riqueza produzida e, por outro lado, acumulam ao seu
poder o controle de grande quantidade de força de trabalho. Como também esperam ampliar a
produtividade, a produção é orientada ao alcance de menores tempos de trabalho e custos
possíveis, o que requer a ampliação do trabalhador coletivo. Assim, ao mesmo tempo em que
existe uma concentração de apropriação privada, aumenta o caráter social da produção.
De forma distinta da apresentada, na opinião de Singer, o problema da exposição de
Engels é que existiria, na análise de Engels, uma linearidade entre concentração de capitais e
manifestação do caráter social da produção capitalista: “Engels identifica a concentração dos
capitais como manifestação do caráter social que a produção capitalista vai adquirindo,
sobretudo quando a empresa toma a forma de sociedade anônima” (SINGER, 2000, p. 12). Na
opinião do representante da “economia solidária”, Engels estaria equivocado ao igualar
concentração de capital com caráter social da produção e, como veremos mais adiante, será
esse o argumento para defender que o socialismo tanto de Marx como de Engels não passa de
um planejamento geral de empresas capitalistas.
O que Singer não compreende é que quando Engels se refere ao caráter social da
produção não a faz a partir de uma perspectiva que idealiza, por exemplo, uma autonomia dos
trabalhadores dentro dos limites do capitalismo, mas de uma qualidade estrutural que
determina a produção de mercadorias dentro desse modo de produção. Para que se eleve a
produtividade, faz-se necessário um grande conjunto de trabalhadores e, como suas funções
são as mais diversas, a mercadoria tem como alcunha a produção social. Tanto a mercadoria
não pode facilmente ser assimilada aos seus produtores diretos, como o processo que resultou
na sua fabricação, por consubstanciar um conglomerado de peculiaridades, não é individual.
Esse é o caráter social da produção.
É caráter social da produção apenas no sentido de aumento da quantidade de pessoas
que agrupam a produção, não de controle social sobre a produção ou da detenção socializada
dos meios de produção. Esse movimento possui uma determinação classista explícita e, por
isso, não se trata de socialização dos meios de produção para todas as classes sociais (o que
faria, na verdade, acabar com as classes sociais), mas de uma ampliação do caráter social da
290
Conforme veremos expresso numa citação desse autor.
271
produção, apropriada privadamente pelos capitalistas. Engels realiza uma análise bem
diferente daquela apresentada por Singer (2003, p. 13):
Sob o capitalismo, os meios de produção são socializados na medida em que o
progresso técnico cria sistemas que podem ser operados por grande número de
pessoas, agindo coordenadamente, ou seja, cooperando entre si. Isso se dá não
somente nas fábricas, mas também nas redes de transporte, comunicação, de
suprimento de energia, de água, de vendas no varejo etc.
Como não existe uma evolução natural para o socialismo, diferentemente da afirmação
de Singer, para que os meios de produção sejam socializados é preciso uma transformação
social capitaneada pela classe trabalhadora
291
. E também não é apenas o caráter social da
produção que Engels identifica com a concentração dos capitais, mas a contradição entre
produção social e apropriação privada. Com o surgimento das grandes empresas capitalistas
não ocorre apenas a manifestação do caráter social da produção, mas se ampliam as formas de
apropriação privada que se tornam cada vez mais restritas. Como Singer não se dispôs a
apreender a contradição entre produção social e apropriação privada, assim como suas
manifestações, ele recorre a essa análise mistificadora.
Deixando de lado as conjecturas do representante da “economia solidária” e voltando
ao texto do socialista científico, observamos que a tendência de aprofundamento da
contradição entre produção social e apropriação privada não se limita à criação e difusão das
sociedades anônimas, mas, seguindo seu rumo histórico, alcança patamares mais altos. Se, no
lugar dos pequenos produtores individuais que se apropriavam individualmente do resultado
do trabalho coletivo, surgem os primeiros proprietários dos meios de produção que passam a
se apropriar privadamente do resultado da produção social, no lugar desses surgem os
primeiros grandes capitalistas individuais. A marcha não pára e, sobrepujando os grandes
capitalistas individuais, passa a vigorar o modelo das sociedades anônimas num nível mais
elevado do desenvolvimento do capitalismo. Em seguida, a concentração da propriedade
privada alcança um novo degrau: os trustes.
Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento não basta tampouco essa
forma; os grandes produtores nacionais de um ramo industrial unem-se para formar
um truste, um consórcio destinado a regular a produção; determinam a quantidade
total que deve ser produzida, dividem-na entre eles e impõem, desse modo, um
preço de venda de antemão fixado
292
(ENGELS, 1986, p. 329).
Como, em nenhum dos casos, foi superada a contradição nuclear do capitalismo, ao
passar o tempo, mantêm-se os grandes impactos oriundos do descompasso entre oferta e
demanda, exigindo dos capitalistas novas soluções. Nesse sentido, os trustes, por sua vez,
291
Aprofundaremos essa análise mais à frente.
292
Mais outra manchete de jornal para demonstrar a validade da apreensão de Engels: “Concentração bancária
cresce; 10 bancos têm 89% dos ativos” (VIEIRA, 2009).
272
também se tornam defasados com o tempo, e a concentração de riquezas e a busca pelo
domínio do mercado instauram formas capitalistas ainda mais elevadas. Ao invés de lutar
contra a concorrência por pequenos espaços no mercado
293
, com a união dos grandes
capitalistas por meio de fusões, aquisições e outras formas de concentração dos meios de
produção e distribuição, a regra do capital passa a ser o domínio de setores completos do
mercado. A margem de disputa se torna ínfima em relação ao domínio dos grandes
conglomerados no mercado capitalista
294
.
Conforme aponta Engels (1986, p. 329), como os “trustes se desmoronam ao
sobrevirem os primeiros ventos maus nos negócios”, amplia-se uma “socialização ainda mais
concentrada”, visto que, “todo o ramo industrial converte-se numa única grande sociedade
anônima, e a concorrência interna lugar ao monopólio interno dessa sociedade única”.
Observamos que a contradição do capitalismo se mantém, mas em veis cada vez mais
elevados: de um lado concentra-se gradativamente a apropriação privada e de outro se amplia
a produção para novos espaços, englobando mais trabalhadores. De um lado, uma produção
com o caráter potencialmente de maior socialização, e de outro, uma concentração dos meios
de produção e de riquezas que beira o inimaginável.
Ao mesmo tempo em que ocorre uma maior concentração dos meios de produção nas
mãos de poucos capitalistas, a produção torna-se mais planejada e eleva seu caráter social. Da
contradição entre as duas grandezas que estruturam o capitalismo, é refletida com maior
clareza a dialética entre dois caminhos possíveis para a humanidade: na via direita encontra-se
uma maior produção social se contrapondo a uma maior apropriação privada, e na via
esquerda uma maior produção social sendo realizada por uma apropriação social. O campo de
disputa entre esses modelos sociais se localiza na luta de classes e, como num primeiro
momento, os capitalistas foram vencedores, os prêmios lhes pertencem:
Nos trustes, a livre concorrência transforma-se em monopólio e a produção sem
plano da sociedade capitalista capitula ante a produção planificada e organizada da
nascente sociedade socialista. É claro que, no momento, em proveito e benefício dos
capitalistas (IDEM, p. 329).
A instauração de obstáculos que impedem a apropriação da produção social por toda a
sociedade faz com que o caráter conservador do modo de produção capitalista
295
ronde como
293
Como almejam os integrantes da “economia solidária”.
294
Para resguardar alguma aparência de concorrência, algumas firmas se apresentam com nomes diferentes,
mesmo que estejam sob as hostes dos mesmos donos. E os governos dos diferentes países, também exercendo
seu papel de salvaguardar a aparência dessa falsa democracia no mercado, apenas autorizam a implementação
destes consórcios, se seguirem essa regra de ouro.
295
O caráter conservador do capitalismo fica explícito por não permitir o aproveitamento social tanto do
desenvolvimento das forças produtivas, como de todas as conquistas culturais da humanidade: “Pressupõe, por
273
um espectro por toda a sociedade. O desenvolvimento das forças produtivas, apesar de
expressar uma potencialidade de progresso humano, ao servir concretamente para usufruto de
poucos, aprofunda a contradição social e instaura uma situação potencialmente
revolucionária. Torna-se impossível esconder de todos e em todos os momentos a verdadeira
face do capitalismo, na qual uma pequena matilha de capitalistas se apropria de quase toda a
riqueza social: “Mas aqui a exploração torna-se tão patente, que tem forçosamente de ser
derrubada. Nenhum povo toleraria uma produção dirigida pelos trustes, uma exploração tão
descarada da coletividade por uma pequena quadrilha de cortadores de cupões” (IDEM).
Chegando nesse ponto, a classe capitalista deve urgentemente voltar-se para uma
dupla preocupação: ao mesmo tempo em que precisa buscar amenizar o descompasso entre
produção, distribuição e consumo, deve tentar escamotear o elevado patamar de concentração
de riqueza, objetivando a legitimação do capitalismo, assim como da sua própria classe
296
. Em
ambos os casos, a única instituição capaz de realizar essas tarefas é o Estado
297
. Cabe ao
Estado, portanto, a responsabilidade central de regular o modo de produção capitalista a ponto
de assegurar sua manutenção, por isso que, “o representante oficial da sociedade capitalista, o
Estado, tem que acabar tomando a seu cargo o comando da produção” (IDEM, p. 329 – 330).
Com o aprofundamento da contradição entre produção social e apropriação privada, os
capitalistas não conseguem mais, apenas por meio de suas organizações econômicas privadas,
como as sociedades anônimas e os trustes, manter níveis mínimos de desequilíbrio no
mercado. Assim, se expressa uma tendência em que a sociedade anônima torna-se limitada
perante os trustes, e, na seqüência, a união de interesses dos capitalistas fica patente em um
novo patamar organizativo: o Estado é requerido como entidade central da regulação do
conseguinte, um grau culminante no desenvolvimento da produção em que a apropriação dos meios de produção
e dos produtos e, portanto, do poder político, do monopólio da cultura e da direção espiritual por uma
determinada classe da sociedade, não só se tornou de fato supérfluo, mas constitui econômica, política e
intelectualmente uma barreira levantada ante o progresso” (ENGELS, 1990, p. 333).
296
Da mesma forma que precisa esconder que as contradições sociais são imanentes ao modo de produção
capitalista, é indispensável, para a sua perpetuação, que a classe capitalista obscureça o seu caráter descartável:
“Além da incapacidade da burguesia para continuar dirigindo as forças produtivas modernas que as crises
revelam, a transformação das grandes empresas de produção e transporte em sociedades anônimas, trustes e em
propriedade do Estado demonstra que a burguesia já não é indispensável para o desempenho dessas funções”
(ENGELS, 1990, p. 330).
297
Nesse sentido, juntamente com Marx, Engels apreende de forma antecipada o papel do Estado no capitalismo
monopolista: “O desenvolvimento capitalista alcança o seu patamar mais alto na ordem monopólica que traveja a
sociedade burguesa consolidada e madura. A institucionalidade sócio-política que lhe é própria não redunda
imediatamente das exigências econômicas do dinamismo do capital monopolista, mas se produz como resultante
do movimento das classes sociais e suas projeções. Nela, o Estado joga um papel central e específico, dado que
lhe cabe assegurar as condições da reprodução social no âmbito da lógica monopólica ao mesmo tempo em que
deve legitimar-se para além desta fronteira – donde o potenciamento do seu traço intervencionista e a sua relativa
permeabilidade a demandas extramonopolistas incorporadas seletivamente com a tendência a neutralizá-las”
(NETTO, 2005, p. 80).
274
mercado. Nesse sentido preciso, o desenvolvimento do capitalista coletivo alcança um nível
mais elevado.
De forma semelhante ao que afirmou juntamente com Marx no Manifesto
Comunista
298
, que o governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns
de toda a classe burguesa” (MARX; ENGELS, 1986, p. 23), Engels apreende corretamente a
razão essencial da existência dessa instituição:
O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente
capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista coletivo ideal. E quanto mais
forças produtivas passe à sua propriedade tanto mais se converterá em capitalista
coletivo e tanto maior quantidade de cidadãos explorará (ENGELS, 1986, p. 330
331).
Apesar da explicitação do papel do Estado dentro do capitalismo, determinando sua
função social como gestor dos interesses dos capitalistas, a exposição de Engels não foi
corretamente compreendida por Singer. Segundo o representante da “economia solidária”, o
problema da análise de Engels supostamente se localizaria no fato desse autor identificar não
somente a concentração de capitais como expressão do caráter social da produção capitalista
(identificação desmistificada anteriormente), como hipoteticamente defender, a partir dessa
paridade, a necessidade do Estado em se apropriar de várias empresas. Nas palavras de Singer
(2000, p.12), é por meio “dessa identificação, [que] Engels mostra que a incompatibilidade
entre a anarquia da produção no mercado e a concentração cada vez maior dos capitais acaba
por exigir a intervenção do Estado, que se apropria de diversas empresas”.
Situando essa passagem dentro das premissas da “economia solidária”, podemos
perceber que, além da recorrência ao exame equivocado das teses de Engels, desconsiderando
as demarcações entre caráter social da produção e apropriação privada, Singer promove uma
mistificação sobre o papel do Estado dentro do sistema capitalista. Ao afirmar que essa
instituição se apropria autonomamente de diversas empresas, ele aponta para um sentido
idealista que, aliás, está ausente no trato engelsiano. O que para Engels é um comitê gestor
dos interesses capitalistas, para Singer é uma entidade isotrópica que paira acima da
298
Apesar da necessidade de novas mediações para apreender toda a amplitude do Estado na atualidade, as
palavras de Marx e Engels permanecem válidas quanto à essência da função dessa instituição: A centralização
é tanto econômica quanto política e o Manifesto refere a sua ntese, enquanto poder, no Estado, caracterizado
sumariamente o seu executivo como ‘comitê para administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa’
(cf. p. 7). Caracterização insuficiente, sem dúvidas, mas inteiramente correta na sua essencialidade: o Estado
‘ampliado’ exerce funções sociais coesivas e integradoras, mas o seu caráter de classe (e o Manifesto foi o
primeiro documento a precisá-lo) permanece a sua determinação estrutural mais significativa. No nosso mundo
da entrada do século XXI, o é precisamente através de um executivo cada vez mais fortalecido que se m
induzido as medidas de ‘redução do Estado’? Não são precisamente esses executivos (onde se integram os
aparatos técnico-burocráticos das grandes corporações transnacionais) que têm conduzido as políticas – de
‘desregulamentação’, de ‘flexibilização’ etc. que estão parametrando a globalização comandada pelo capital?
(NETTO, 2004b, p. 85).
275
sociedade. O Estado, dentro dessa visão mistificadora, estaria composto por interesses
universais, e sua função de concentração do controle das empresas capitalistas representaria
um sinal de nascimento do socialismo: “A mudança supra-estrutural ganhará dinamismo
próprio e tornará desnecessário o recurso à revolução à medida que os direitos civis, políticos
e sociais se universalizam” (SINGER, 1998, p. 148). Diferentemente dessa perspectiva de
cunho revisionista e de trato idealista, Engels demonstra que, apenas depois da tomada do
poder do Estado pela classe trabalhadora, é que essa instituição passará a ter um caráter
socialista. Até lá serve hegemonicamente como comitê gestor e executor dos interesses
capitalistas
299
.
Ao crer num Estado ausente de determinações e interesses dos capitalistas, que se
apropria autonomamente de diversas empresas, a apreensão de Singer retorna a um passo
anterior ao exposto por Hegel e criticado por Marx e Engels. Singer volta-se idealmente a
uma desvalorização da função do Estado como entidade de dominação de classe, para
apresentá-lo como inserido numa gradação linear e automática rumo ao socialismo. Quando o
Estado aparece aos seus olhos como entidade universal, ou amplamente democrática, o
axioma defendido é claro: o alcance do socialismo não requer como ingrediente sua utilização
pela classe trabalhadora e, portanto, a luta política torna-se desprivilegiada. Em última
instância, o que o autor deseja é referendar a estratégia da “economia solidária” enquanto
projeto capaz de superar o capitalismo por meio de uma disputa econômica nos seus
hipotéticos interstícios, descartando, assim, a necessidade de tomada do poder do Estado.
Singer relega o fato de que, ao tornar-se a instituição central para a regulação do
mercado, assim como o comitê gestor dos diversos interesses capitalistas em torno de uma
unidade
300
, o Estado representa um poder capaz de transformar o próprio modo de produção
vigente. A necessidade histórica de utilizar o Estado como centro dos acordos capitalistas, fez
299
Como é o caso do Estado no capitalismo monopolista: “Vale dizer: o Estado funcional ao capitalismo
monopolista é, no nível das suas finalidades econômicas, o ‘comitê executivo’ da burguesia monopolista opera
para propiciar o conjunto de condições necessárias à acumulação e à valorização do capital monopolista”
(NETTO, 2005, p. 26).
300
Como exemplo dessa dinâmica vale o apelo de um representante do capital agrícola, exigindo que o Estado
brasileiro se responsabilize pela gestão da unidade dos interesses desse segmento social, da mesma forma que
legitime o domínio do mercado por poucas empresas monopolistas: “Não basta crédito. Agora que o país
caminha para uma nova fase econômica, o governo deve pensar o setor agrícola de forma unificada. [...] O
governo deve fazer o planejamento da safra para pelo menos dois anos, liberando recursos no momento
apropriado. [...] Esse crédito deve ser estendido também à comercialização, permitindo aos produtores buscar
proteção nos novos mecanismos atuais, inclusive no mercado futuro, o que ocorre em outros países. [...] Os
últimos anos deram ao produtor uma visão de que ficam no mercado os que realmente são ‘do ramo’ e
buscam redução de custos e elevação de produtividade. [...] A eficiência deverá fazer parte da agenda de todo
produtor a partir de agora. Essa eficiência deve ser tanto na produção como na comercialização. O mercado
mundial deixou de ser apenas uma questão de oferta e demanda, mas também de especulação maior”
(ZAFALON, 2008).
276
brotar, de forma contraditória, a entidade que torna possível a subjugação dos mesmos
interesses que o ergueram. A burguesia não criou apenas os sujeitos capazes de combater e
superar a sua classe (cf. Marx; Engels, 1998, p. 14), mas forjou também o instrumento central
para esse fim. No seu processo histórico, os capitalistas retiraram sua riqueza dos proletários e
alcançaram a manutenção dessa situação através do uso do Estado, mas, ao mesmo tempo,
proporcionaram as condições para sua própria sepultura. O Estado, portanto, aloja em seu
interior o meio para a transformação social: “a propriedade do Estado sobre as forças
produtivas não é solução do conflito, mas abriga em seu seio o meio formal, o instrumento
para chegar à solução
301
” (ENGELS, 1986, p. 331).
É devido a essas determinações sociais que definem a importância dessa entidade tanto
para a manutenção da ordem vigente como para sua transformação, que Engels afirma
categoricamente que o objetivo central dos trabalhadores deve ser a tomada do poder do
Estado. É somente a partir do controle do Estado
302
que os trabalhadores podem iniciar o
processo revolucionário que transitará até o alcance do comunismo, começando a promover as
primeiras medidas de transformação social: “O proletariado toma em suas mãos o Poder do
Estado e principia por converter os meios de produção em propriedade do Estado
(IDEM, p. 332).
O resultado primeiro desse processo é que todos os meios essenciais de produção
passarão ao controle do Estado. Aos que já estavam nacionalizados se somarão os que
também serão tornados estatais após a tomada do poder do Estado pelo proletariado e seus
representantes. Para afastar possíveis leituras equivocadas, Engels faz questão de externar que
não se deve confundir nacionalização dos meios de produção pelo Estado capitalista, com o a
utilização desta entidade para alcançar uma sociedade sem classes sociais. Para explicitar essa
diferença, utiliza como exemplo as práticas capitalistas de Bismarck e Napoleão:
Contudo, recentemente, desde que Bismarck empreendeu o caminho da
nacionalização, surgiu uma espécie de falso socialismo que degenera de quando em
vez num tipo especial de socialismo, submisso e servil, que em todo ato de
nacionalização, mesmo nos adotados por Bismarck, uma medida socialista. Se a
nacionalização da indústria do fumo fosse socialismo, seria necessário incluir
Napoleão e Metternich entre os fundadores do socialismo. Quando o Estado belga,
por motivos políticos e financeiros perfeitamente vulgares decidiu construir por sua
conta as principais linhas férreas do país, ou quando Bismarck, sem que nenhuma
necessidade econômica o levasse a isso, nacionalizou as linhas mais importantes da
301
Sobre a experiência da revolução russa, nin (1980d, p. 571) afirmou que, com o controle do Estado pelos
operários, torna-se possível utilizar algumas organizações desenvolvidas no capitalismo no processo de transição
ao comunismo: “O capitalismo deixou-nos em herança organizações de massas capazes de facilitar a transição
para o registro e o controle de massas da distribuição de produtos: as sociedades de consumo”.
302
Pela limitação do nosso texto, não nos propusemos à análise das formas e organizações de luta pela conquista
do Estado, mas apenas ressaltamos a essencialidade desse processo para a transformação social, que,
obviamente, extrapola a dimensão econômica.
277
rede ferroviária da Prússia, pura e simplesmente para assim poder manejá-las e
aproveitá-las melhor em caso de guerra, para converter o pessoal das ferrovias em
gado eleitoral submisso ao Governo e, sobretudo, para encontrar uma nova fonte de
rendas isenta de fiscalização pelo Parlamento, todas essas medidas não tinham, nem
direta nem indiretamente, nem consciente nem inconscientemente, nada de
socialistas (IDEM, p. 330).
Mesmo tendo ciência dessa posição cristalina de Engels
303
, Singer aventa em sua
crítica a hipótese de que a sociedade socialista nasceria diretamente do Estado capitalista.
Para o representante da “economia solidária”, o socialista científico se comportava de maneira
reducionista não apenas por esperar o advento do socialismo a partir do Estado capitalista,
como também por meio das grandes empresas. A conjectura de Singer se funda no
ordenamento das seguintes idéias:
Engels monta a seguinte equação: 1. O desenvolvimento das forças produtivas
expande a produção fabril, tornando-a maior, mais concentrada e mais planejada,
portanto mais social. 2. Isso torna insuportável a contradição entre a produção cada
vez mais social dentro da empresa e a anarquia da produção (causadora das crises)
no mercado. Sobretudo quando a produção social se torna monopolista, tendo por
isso de ser assumida pelo Estado. 3. A sociedade socialista irrompe com a
socialização da produção pelos trustes ou pelo Estado (SINGER, 2000, p. 13).
Acreditamos que, sobre os dois primeiros pontos, nos atemos de forma suficiente a precisar
a posição de Engels e descredenciar a leitura de Singer. Resta, portanto, desmistificar apenas
o terceiro ponto levantado.
Em nosso exame da referida obra de Engels, assim como de todos os textos deste autor
que temos conhecimento, é inequívoca sua posição sobre as determinações capitalistas que
envolvem tanto o Estado como as grandes empresas: dentro da ordem social burguesa, essas
instituições se apresentam como representantes dos interesses da classe capitalista. Nesse
sentido, a precisão do termo caráter social, quando utilizado por Engels, não se refere à
gênese de uma sociedade socialista brotada nem de maneira automática das contradições do
modo de produção capitalista, nem por meio de divergências de valores morais entre seus
representantes, sendo somente quando o Estado se torna instrumento de poder da classe
trabalhadora que se torna possível visualizar o horizonte socialista. Esse é o marco a partir do
qual o caráter social da produção pode servir como esfera complementar à apropriação social
de toda a riqueza produzida. Enquanto isso não acontecer, as diferentes agremiações
empresariais terão um sentido preciso: a manutenção do modo de produção capitalista.
É por isso que, por exemplo, se torna um paradoxo devanear, dentro da matriz
analítica defendida por Engels, que organizações econômicas que, para se manter, precisam se
303
Singer (2000, p. 13) realiza a transcrição dessa passagem de Engels, comentando o seguinte: “Ele chama a
atenção contra um novo falso socialismo, ‘recentemente surgido, [...] que declara simplesmente qualquer
estatização, mesmo as bismarkianas, como sendo socialista’”.
278
estabelecer a partir das regras do mercado, possam consubstanciar autonomamente uma
estratégia capaz de superar o capitalismo. A hipótese de que a finalidade do capital pode ser
determinada pelos valores individuais não passa de uma mistificação presente no projeto da
“economia solidária” e, dessa forma, não é Engels, mas Singer, quem enxerga nas
organizações econômicas capitalistas uma forma de socialização da produção. Além disso, é
importante frisar que em nenhum momento Engels advoga que o Estado capitalista concentra
em seu seio o controle de todos os meios essenciais de produção, servindo como uma entidade
acima dos capitalistas, a qual eles deveriam devotar obediência. A indicação taxativa é que,
como resultado do processo de desenvolvimento das forças produtivas em seu epicentro
contraditório entre produção social e apropriação privada, o Estado surge como uma
instituição indispensável ao capital para regular seus interesses. Com isso, o Estado deixa de
ser um mero coadjuvante para ser uma peça chave no tabuleiro da luta entre a classe
capitalista e a classe trabalhadora.
A tomada do poder do Estado pela classe trabalhadora torna-se, portanto,
indispensável para que se efetive o caráter social das forças produtivas, passando esse a estar
em reciprocidade com a apropriação social da riqueza produzida. Somente a partir desse
ponto se pode pensar numa sociedade em que a riqueza socialmente produzida pode ser
apropriada por todos. Essa é a fronteira que instaura uma bifurcação historicamente
recorrente: de um lado propostas que buscam reformas e adereços dentro do capitalismo, e de
outro lado, a construção de um caminho que conduza à transformação social. Engels (1986, p.
331) não poderia ser mais explícito ao complementar sua apreensão sobre as propriedades do
Estado:
Essa solução pode residir em ser reconhecido de um modo efetivo o caráter
social das forças produtivas modernas e, portanto, em harmonizar o modo de
produção, de apropriação e de troca com o caráter social dos meios de produção.
Para isso, não senão um caminho: que a sociedade, abertamente e sem rodeios,
tome posse dessas forças produtivas, que já não admitem outra direção a não ser a
sua.
É baseando-se nessa passagem de Engels que o representante da “economia solidária”
alega que o socialista científico (ao lado de Marx) não teria sido capaz de apreender
corretamente o processo de superação do capitalismo. Antes de analisar essa acusação
precisamos, contudo, ressaltar que existe uma diferença entre a tradução do texto engelsiano
adotada por nós, e a realizada por Singer:
Na formulação de Engels, a solução para o conflito entre o desenvolvimento das
forças produtivas e a anarquia da produção se restringe a ‘que a sociedade
abertamente e sem rodeios tome posse das forças produtivas que ‘entwachsen’
[cresceram para além] de qualquer outra direção que não a sua’ (SINGER, 2000,
p. 15, destaques nossos).
279
É com base nessa tradução que o representante da “economia solidária” afirma que o
socialista científico foi incapaz de visualizar o processo de transformação social, uma vez que,
supostamente para esse autor:
De duas uma: ou a revolução consiste na estatização somente das empresas cujo
tamanho exige que sejam dirigidas pela sociedade ou a revolução pode ocorrer
quando todas as empresas tiverem atingindo tal tamanho. No primeiro caso, a maior
parte dos meios de produção continuaria nas mãos dos proprietários privados, o que
frustraria a abolição do capitalismo etc.; no segundo caso, a revolução socialista
ficaria ainda adiada para um futuro indefinido (IDEM).
Ainda que concordássemos com a tradução livre que Singer realiza da passagem de
Engels, para que a acusação do representante da “economia solidária” contra o socialista
científico se tornasse minimamente plausível, seria preciso um subterfúgio questionável: que
desconsiderássemos todo o percurso anterior realizado por Engels para apresentar as
determinações que consubstanciam o Estado dentro do capitalismo. Não só em nenhum
momento de seu texto Engels iguala estatização com revolução social, como faz questão de
alertar para o perigo dessa mistificação, citando os exemplos de Bismarck, Napoleão e
Metternich. A estatização das grandes empresas dentro do capitalismo não representa uma
iniciativa da classe trabalhadora
304
, mas expressa a unidade de interesses da classe capitalista.
De maneira inversa, é no interesse dessa classe, para assegurar veis de segurança no
mercado, que se realizam estatizações de grandes empresas.
O Estado aparece dentro desse processo, não como uma entidade idealista que, ao
realizar as estatizações de empresas privadas, serviria como expressão do interesse dos
trabalhadores. Como vimos, o Estado, dentro da análise de Engels (assim como da de Marx),
é uma expressão dos interesses da classe capitalista e, por isso, um comigestor e executor
condicionado pelo capital. Dialeticamente, cabe à classe trabalhadora, na luta pela
transformação social, se utilizar desse processo para por fim à propriedade privada dos meios
de produção e, assim, acabar com a contradição nuclear do capitalismo. Claro que, após a
tomada de poder do Estado pela classe trabalhadora, quanto mais empresas privadas tiverem
sido estatizadas durante esse processo, maior a quantidade de meios de produção que ficarão
sob o controle direto dos trabalhadores, mas isso não invalida dois pressupostos: que, para se
tomar o poder do Estado, não é preciso que todas as grandes empresas estejam sob o
controle dessa instituição; e que, após a posse do Estado, o resto das empresas também deverá
304
Ainda que em alguns momentos históricos a estatização de empresas privadas sirva para atender interesses da
classe trabalhadora.
280
passar para o controle dos trabalhadores
305
. Singer se equivoca, portanto, nas duas
admoestações contra Engels.
Além disso, com base nas palavras de Engels, podemos rechaçar terminantemente a
seguinte crítica de Singer (2000, p. 15): “Engels compartilha com Marx (que considerava a
brochura em questão ‘uma introdução ao socialismo científico’) esta visão de socialismo
como um prosseguimento linear do desenvolvimento capitalista das forças produtivas”.
Voltamos a repetir: em nenhuma das obras de Marx e Engels se encontra uma referência que
permita a leitura de uma passagem mecânica do capitalismo ao socialismo, de forma gradativa
ou linear. Como esses autores afirmam de forma palmar, é apenas por meio de um projeto
coletivo de luta da classe trabalhadora que o capitalismo pode ser superado. A perspectiva
evolucionista do capitalismo ao socialismo, ao invés de estar presente nas análises dos
“clássicos” do marxismo, pode ser identificada facilmente em ingredientes que integram o
sincretismo da “economia solidária”
306
.
É também por não ser adepto dessa concepção evolucionista, que Engels apreende a
necessidade do uso do poder do Estado para a transição do capitalismo ao socialismo, da
mesma forma que do socialismo ao comunismo. Após a conquista do poder do Estado, este
dever servir para representar os interesses da classe trabalhadora contra as vontades dos
capitalistas. A ditadura do proletariado representa um momento de transição para uma
economia planificada, quando o Estado instaura o processo efetivo de desapropriação das
empresas privadas para socializar a produção. O Estado ainda permanece como instrumento
de classe, porém não mais dos capitalistas, mas dos trabalhadores e, como instrumento
representativo da nova classe dominante, deve servir para concentrar todos os meios
essenciais de produção nas mãos das pessoas que a compõem. Retirar o controle da produção
social das mãos dos capitalistas e passar para as mãos dos trabalhadores deve ser, portanto,
uma das primeiras funções do Estado socialista.
Quando todos os meios essenciais de produção estiverem sob o jugo do Estado
socialista, como os capitalistas não terão mais condições de explorar o trabalho alheio e se
apropriar privadamente da produção, precisarão, da mesma forma que todos os indivíduos,
fornecer sua cota parte de energia física e mental para a geração da riqueza social. Além
305
Para que não restem vidas: “O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco
todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do
proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças
produtivas” (MARX; ENGELS, 1986, p. 37).
306
Conforme verificado em abordagens anteriores, várias das teses de Paul Singer foram, desconsiderando as
implicações específicas de cada particularidade histórica, derivadas de teses de Eduard Bernstein, o que indica
uma aproximação qualitativa entre “economia solidária” e o revisionismo.
281
disso, apropriação deixará de ser privada e passará a ser controlada por todos que contribuem
para a produção social. Assim, “quando já não existir nenhuma classe social que precise ser
submetida” e “desaparecerem, juntamente com a dominação de classe, juntamente com a luta
pela existência individual, engendrada pela atual anarquia da produção, os choques e os
excessos resultantes dessa luta”, o Estado se converterá, “finalmente, em representante efetivo
de toda a sociedade” e, portanto, “tornar-se-á por si mesmo supérfluo” (ENGELS, 1986, 332).
Nesse contexto, o Estado, historicamente determinado como instrumento de repressão de uma
classe sobre a outra perderá totalmente sua razão de existência
307
.
Da mesma maneira, nesse contexto preciso, a contradição entre produção social e
apropriação privada perde seu sentido, visto que a produção social será complementada pela
apropriação social. Com a instauração do modo de produção comunista, desaparecerá a
contradição nuclear do modo de produção capitalista e suas respectivas derivações. Se o fim
da propriedade privada dos meios essenciais de produção acaba com a contradição entre
proletários e burgueses, a vigência da organização coletiva da produção e da apropriação
extingue a disparidade entre oferta e demanda, assim como os grandes veis de desperdício
de riqueza social
308
:
O dia em que as forças produtivas da sociedade moderna se submeterem ao regime
congruente com a sua natureza por fim conhecida, a anarquia social da produção
deixará o seu posto à regulamentação coletiva e organizada da produção, de acordo
com as necessidades da sociedade e do indivíduo. E o regime capitalista de
apropriação, em que o produto escraviza primeiro quem o cria e, em seguida, a
quem dele se apropria, será substituído pelo regime de apropriação do produto que o
caráter dos modernos meios de produção está reclamando: de um lado, apropriação
diretamente social, como meio para manter e ampliar a produção; de outro lado,
apropriação diretamente individual, como meio de vida e de proveito (IDEM, p. 331
– 332).
No entanto, para o representante da “economia solidária”, o socialismo de Engels e de
Marx não passaria de uma nuvem de fumaça, visto que esse projeto se ergueria sob uma falsa
sentença: que as classes sociais são distinguidas pela posse dos meios de produção. Para
Singer, os “clássicos” teriam caído “num reducionismo evidente” por dois motivos: por
307
Entre o fim do Estado numa sociedade comunista e o fim da política existem mediações complexas que não
temos espaço para tratar aqui. Sobre posições ao mesmo tempo próximas e distintas ver: Oliveira (2007) e Lessa
(2007a).
308
Desperdícios que acontecem de várias formas: “A apropriação social dos meios de produção não elimina
os obstáculos artificiais hoje antepostos à produção, mas põe termo também ao desperdício e à devastação das
forças produtivas e dos produtos, uma das conseqüências inevitáveis da produção atual e que alcança seu ponto
culminante durante as crises. Ademais, acabando-se com o parvo desperdício do luxo das classes dominantes e
seus representantes políticos, será posta em circulação para a coletividade toda uma massa de meios de produção
e de produtos. Pela primeira vez, surge agora, e surge de um modo efetivo, a possibilidade de assegurar a todos
os membros da sociedade, através de um sistema de produção social, uma existência que, além de satisfazer
plenamente e cada dia mais abundantemente suas necessidades materiais, lhes assegura o livre e completo
desenvolvimento e exercício de suas capacidades físicas e intelectuais” (ENGELS, 1990, p. 334).
282
pensarem “que, se a propriedade privada dos meios de produção é a causa da divisão da
sociedade em classes, [e que] a abolição daquela implica eliminação desta”, além de não
entenderem que “a abolição da propriedade privada exige a criação de um regime de
propriedade coletiva, sobre o qual eles nada tinham a dizer” (SINGER, 2000, p. 17). Em
outras palavras, Singer acusa Marx e Engels de serem reducionistas por supostamente não
defenderem um projeto social capaz de superar as contradições de classes, uma vez que, como
defendiam a abolição da propriedade privada, não visualizavam a implementação de um modo
de produção coletivo
309
. Temos, portanto, dois aforismos contra a transformação social
apreendida por Marx e Engels.
A primeira sentença é que a abolição da propriedade privada não repercutiria na
extinção das classes sociais. Como não indica qual seria a correta fonte da contradição entre
as classes sociais, nem muito menos precisa suas hipóteses de análise, poderíamos nos
questionar quais os motivos de Singer retirar imediatamente a propriedade privada desse
grupo de fatores. Apreendendo essa posição à luz das teses da “economia solidária”, fica
evidente que não se trata de uma ilação aleatória, pois o sentido é inequívoco: a razão que o
leva a criticar Marx e Engels pela defesa do fim da propriedade privada é a mesma que o
estimula a defender a “economia solidária”, pois, em ambos os casos, encontra-se implícita a
defesa da manutenção da propriedade privada.
A distinção entre o modo de produção capitalista e um sistema social estruturado a
partir da “economia solidária” não seria o fim da propriedade privada, mas um processo
controverso de ampliação restrita e limitada de seu controle. As organizações da “economia
309
É com base nessa suposição que, conforme indicamos no início desse tópico, Singer estabelece uma
causalidade entre as tese de Marx e Engels e os equívocos da experiência soviética: “o reducionismo de Marx e
Engels teve conseqüências quando na União Soviética se tratou de aplicar à realidade as fórmulas do socialismo
científico. Os meios de produção foram efetivamente estatizados, mas desse primeiro ato do Estado como
representante auto-assumido de toda a sociedade não resultou o perecimento do Estado, mas o contrário, seu
crescimento monstruoso” (SINGER, 2000, p. 17). Acreditamos que analisamos de maneira suficiente essa
assertiva a ponto de demonstrar sua precariedade. Não obstante, ressaltamos que defendemos a necessidade de
tratamento crítico não apenas das práticas soviéticas, como de todos os modelos de socialismo, inclusive os que
ainda estão em curso. No entanto, é preciso explicitar que não devemos apreender essas complexas experiências
de maneira autônoma, por um viés ao mesmo tempo idealista e endogenista. Sobre o processo revolucionário
cubano, concordamos com as seguintes palavras de Netto (2003, p. 28): “À parte erros que não comete quem
nada faz, até hoje o balanço da atividade do Partido e do governo cubanos é indiscutivelmente positivo,
quaisquer que sejam os critérios de sua avaliação e as indicações sugerem que essa trajetória não sofrerá
inflexões”. Já sobre a experiência do chamado “socialismo real”, nos situamos de forma crítica a um
entendimento, tal qual o apresentado pelo representante da “economia solidária” (cf. Singer, 1999, p, 21), que
não apenas desconsidera o desenvolvimento econômico e social nesses países (ainda que aportando sérios custos
políticos), como desvincula a influência dessa ameaça contra o capital, motivando pressões sociais e ganhos para
os trabalhadores de vários países capitalistas. Também sobre esse ponto, fazemos nossas as palavras de Netto
(2001b, p. 85): “Quero assinalar, porém e mais de uma vez, que não compartilho das avaliações superficiais do
processo global do socialismo real, consistentes em considerar o conjunto da sua experiência sem ponderar os
ganhos sociais que ela proporcionou, tanto no interior do ex-‘campo socialista’, quanto pelo efeito-temor no
mundo do capital”. Segundo o autor, alguns desses ganhos sociais estão sumariados em Hobsbawm (1989).
283
solidária”, ao mesmo tempo em que se distinguiriam das sociedades anônimas pela possível
democratização interna, se configuram de forma análoga a estas, pela limitação da posse dos
meios de produção a um conjunto de pessoas
310
. Não se trata, portanto, de um projeto
societário que se estabeleça a partir da reciprocidade entre produção social e apropriação
social, mas que mantém, mesmo que em níveis distintos, a contradição capitalista entre
produção social e apropriação privada. A alternativa proposta por Singer para atenuar essa
contradição se encontra não na alteração do segundo pólo, mas do primeiro.
Enquanto Engels defende a utilização das forças produtivas no seu desenvolvimento
gradativo para servir socialmente a toda humanidade, superando assim a contradição entre
produção social e apropriação privada pela alteração desse segundo pólo, Singer, ao eleger a
tese da “economia solidária” de configuração social por meio de agrupamentos de pequenos
proprietários privados, visa à superação fictícia e momentânea dessa contradição pela
alteração do primeiro pólo: retrocedendo a produção social para um conjunto limitado de
produtores individuais. Enquanto o primeiro visualiza uma sociedade sem apropriação privada
da produção social, o segundo defende um projeto baseado em produção privada sem caráter
social. Se Engels almeja a superação dessa contradição no sentido de emancipação dos
trabalhadores e, a partir deles, toda a humanidade, Singer propõe um retrocesso no
desenvolvimento das forças produtivas. Vale salientar que, adotando-se a proposta de Singer,
a solução tornar-se-á fictícia e, no máximo, momentânea, pois sem nenhuma garantia de
universalidade, visto que, mesmo contando com sua capacidade de imaginação, não será
possível barrar o desenvolvimento das forças produtivas.
no segundo aforismo, de que o projeto social exposto por Marx e Engels não
contemplaria um “regime de produção de propriedade coletiva”, a verificação da validade da
análise de Singer se torna um pouco mais complexa, não pela postura dos socialistas
científicos, mas pela incoerência do representante da “economia solidária”. Isso se deve ao
fato de que, se, no início do texto examinado, Singer externa admoestações contra Marx e
Engels pelo suposto fato desses autores terem vislumbrado
311
um planejamento social
310
Por isso lembramos mais uma vez que, mesmo numa sociedade consubstanciada exclusivamente por
organizações de “economia solidária”, a desigualdade seria um fator insuperável: “Se toda economia fosse
solidária, a sociedade seria muito menos desigual. Mas, mesmo que as cooperativas cooperassem entre si,
inevitavelmente algumas iriam melhor e outras pior, em função do acaso e das diferenças de habilidades e
inclinação das pessoas que as compõem. Haveria, portanto, empresas ganhadoras e perdedoras” (SINGER, 2002,
p. 10).
311
Diferentemente da proposta da “economia solidária” que se estrutura em grande medida a partir de prática
imagética da realidade, o projeto social defendido por Marx e Engels é uma possibilidade histórica capaz de ser
efetivada por meio de condições concretas da realidade. A apreensão na totalidade social das possibilidades
prenhas de serem efetivadas, descartando falsas ilusões é, como indica Engels (1986), uma das qualidades que
distinguem os socialistas científicos dos chamados “utópicos”.
284
balizado pelo mercado, esse autor apela paradoxalmente, no decorrer de sua exposição, para a
necessidade de manutenção do mercado.
Repisando o que demonstramos desde a introdução de nossa tese, se, no início de
sua exposição, o representante da “economia solidária” realiza a seguinte crítica a Marx e
Engels: “um planejamento geral de uma economia nacional não pode ser a generalização dos
planejamentos empresariais, cuja harmonização se faz em mercados, os quais a socialização
dos meios de produção supostamente eliminaria de imediato” (SINGER, 2000, p. 17), ao
desenvolver as idéias sobre esse projeto social, ele recua e afirma: “precisamos de mercados
porque é a forma de interação que conhecemos, que permite manter as diversas burocracias
separadas, evitando que um poder total se aposse da economia(IDEM, p. 34). Em outras
partes de seu texto, se, inicialmente, o autor clama pela “invenção de um sistema de
planejamento que não pode ser a mera generalização do planejamento empresarial capitalista,
pois este pressupõe o mercado e a anarquia da produção social” (IDEM, p. 17), de maneira
inversa, ensina que mercados são essenciais para possibilitar ao indivíduo o direito de
escolha, como trabalhador e como consumidor” (IDEM, p. 39).
Ficamos, portanto, diante do seguinte dilema: se, dentro do projeto de “economia
solidária”, consta a tese de defesa da manutenção do mercado, por que Singer se coloca em
posição contrária ao projeto socialista de Marx e Engels por esse supostamente pressupor a
permanência do mercado? Analisando mais atentamente as hipóteses defendidas por Singer
(idem, p. 46), iremos encontrar a resposta para essa questão na parte conclusiva do seu texto:
o mercado socialista difere do capitalista porque não é matriz de acumulação de capital
privado”, visto que, diferentemente do capitalismo, na “economia solidária”, “a acumulação
se dá em empresas pertencentes coletivamente a seus participantes ativos, como produtores ou
consumidores. Em outros termos, como o mercado socialista seria composto por empresas
de posse coletiva de seus integrantes, a acumulação existente não seria de capital privado.
Como o autor não se esforça nem um pouco em precisar sua assertiva, devemos
dedicar grande capacidade imagética para responder a conseqüente dúvida: se, dentro do
mercado em que permanece a competição entre as partes, um grupo de pessoas que restringem
a posse de uma empresa não busca a acumulação de capital privado, o que almejam então? De
forma análoga, devemos problematizar: estando o mercado consubstanciado por organizações
privadas restritas a poucas pessoas, por qual razão é possível deduzir linearmente o fim da
acumulação de capital privado?
De maneira análoga, precisamos estender essas perguntas para a análise de outras
propostas da “economia solidária” apresentadas pelo autor. Isso porque, além da manutenção
285
do mercado, Singer roga pela permanência do sistema financeiro e, de forma semelhante à sua
exposição anterior, a diferença entre o sistema financeiro estruturado pelo capital e o referente
à “economia solidária” encontrar-sei-a hipoteticamente no fato de que esse, diferentemente
daquele, se pautaria por qualidades altruístas:
Caberia aos bancos (que provavelmente seriam públicos) financiar os projetos
novos, segundo normas e diretrizes aprovadas pelo parlamento econômico
312
. Os
bancos deveriam funcionar como incubadoras ou ter ligação com incubadoras de
empresas socialistas. A função do sistema financeiro seria apoiar os projetos que
representantes dos consumidores considerassem de grande potencial ou significação
social. É possivelmente a melhor forma de desenvolver novas forças produtivas. Ao
mesmo tempo, o sistema financeiro teria por incumbência liquidar iniciativas
fracassadas ou que esgotaram sua utilidade social. A insuficiência de demanda por
seus produtos deveria ser o principal indicador de fracasso, mas se as pessoas
envolvidas num desses projetos quisessem continuá-lo, a decisão final deveria caber
a elas (SINGER, 2000, p. 47).
Assim sendo, o espaço da competição e da disputa reificada não se restringiria ao
espaço do mercado, mas teria também o reforço do sistema financeiro. Esse projeto de
“economia socialista” estaria, continuamente, pressionado sob a mesma contradição básica do
capitalismo que Singer, por causa das limitações de sua análise, não conseguiu compreender:
de um lado produção social e, de outro, apropriação privada. Ainda que se almejem melhorias
sociais e morais para os integrantes dessa fábula social, nada indica que os bons sentimentos
apregoados consigam conquistar o coração de todos para que, juntos, trilhem por esse
caminho da “economia solidária”, até o momento em que os ventos do capital destruam esse
castelo de areia.
Nesse sentido, retornamos à discussão do aforismo anterior e, da mesma forma que
naquele, a solução da negação da acumulação de capital dentro de um mercado formado por
organizações de propriedade privada, encontra-se restrita ao limbo impenetrável do idealismo
da “economia solidária”. Na realidade concreta, a solução para o problema encaminhado
ocorre apenas no espaço da semântica. Mas, vale ressaltar que, mesmo alterando-se o nome de
capital privado por capital social, ou qualquer outro termo escolhido, a realidade permanece a
mesma, pois apenas “trocando-se o nome não se muda a coisa” (MARX, 2001, p. 76). Nesse
caso, a determinação concreta que estabelece a apropriação restrita da riqueza social será
mantida e a centralização dos meios de produção, mesmo que alcance um número maior que a
quantidade de dedos de todos os capitalistas, continuará confirmando a contradição entre
produção social e apropriação privada.
312
O “parlamento econômico” seria uma instituição na qual seus membros, eleitos por partidos políticos e
corporações setoriais e profissionais, deveriam formular políticas fiscais e de crédito, para regular o mercado.
Em outras palavras, seria um clone, supostamente avançado democraticamente, do poder legislativo do sistema
capitalista (cf Singer, 2000, p. 38).
286
Quando comparamos essa análise realizada por Engels sobre o modo de produção
capitalista com aquela proveniente da “economia solidária”, não apenas identificamos duas
posturas diferentes, mas perspectivas incompatíveis. Ainda que não sirvam para apontar
deficiências da tradição marxista, as críticas aventadas pelo representante da “economia
solidária” demarcam um claro espaço de observação: a peculiar perspectiva de mudança
social presente nesse projeto social. Como vimos ao longo da análise crítica realizada por
Singer contra a obra de Friedrich Engels (que, em alguns momentos, também se destina a
Marx), o que está em questão não é somente uma acusação teórica e política, mas uma
explícita oposição entre projetos de intervenção social.
Enquanto um apreende as armas políticas como indispensáveis para o processo de
transformação social, o outro centra esforços da disputa econômica dentro do mercado;
enquanto um aponta a necessidade de conquista do poder do Estado para iniciar o processo
revolucionário, o outro desconsidera o privilégio dessa instituição para a manutenção da
sociedade; enquanto um apreende o capital como uma força social que apenas pode ser
combatida na sua totalidade, o outro alega que o sentido do capital depende de quem realiza
seu uso; enquanto um identifica os elos que perpassam toda a sociedade e envolvem as
relações de trabalho, o outro nega esse recurso metodológico, imaginando espaços de total
autonomia. No fim das contas, enquanto o socialista científico propõe uma transformação
radical da sociedade, a “economia solidária” visualiza uma superação gradativa do
capitalismo pelas vias econômicas.
Diante dessa premissa, as evidências históricas contidas não somente nessa obra de
Engels, como em vários textos dos teóricos da tradição marxista são arrasadoras: demonstram
que experiências tais como a “economia solidária” não apenas são incapazes de realizar sua
promessa social, mas representam uma posição regressiva na luta dos trabalhadores contra o
capital. Deve ser por causa desse fato que Singer não mede palavras em acusar o pensamento
marxista de incapaz de compreender a complexidade do mercado capitalista. Mesmo
imaginando uma relação de parentesco da “economia solidária” com os teóricos “clássicos”
do marxismo, o nosso autor propõe uma adjetivação bastante dura a essa tradição política e
teórica.
Para Singer (cf. 1998, p. 147), ainda que Robert Owen (que seria o principal precursor
“economia solidária”) deva ser considerado um dos grandes influenciadores do pensamento
de Marx e Engels, isso não permitiria afirmar que esses autores devam ser tomados como
referência, visto que expressam uma compreensão determinista da realidade, similar às
posturas funcionalistas presentes nas ciências sociais:
287
Se as instituições capitalistas são sementes socialistas plantadas nos poros do
capitalismo para resistir às tendências destrutivas e concentradoras da dinâmica
capitalista, é necessário discutir mais detidamente estas tendências, distinguindo-as
das contratendências que surgem como reação a elas. Isso é necessário, porque na
tradição da análise marxista tudo o que acontece no seio da sociedade capitalista é
automaticamente tido como sendo ‘capitalista’. O que lembra o funcionalismo das
ciências sociais: todas as mudanças que contribuíram para o status quo serviram
para viabilizá-lo, portanto explicam-se por esta função (SINGER 1998, p. 114).
Além do fato curioso dessa acusação tão infundada ser realizada justamente por um
autor que, durante um bom tempo, realizou um papel de destaque na análise e divulgação das
idéias marxistas no Brasil, podemos constatar, a partir da leitura dessa passagem, outros
elementos importantes para o exame da visão de mudança social contida na “economia
solidária”. Como se observa nas palavras de Singer, a mudança social almejada por esse
projeto centra-se numa criativa formulação: a ocupação de poros do capitalismo através de
implantes socialistas. Mesmo que se tratem de termos inusitados, não poderíamos, segundo o
autor, afirmar que esse processo deriva-se de uma constatação recente, visto que resultaria de
um longo processo que abarcaria dois séculos de história.
Desconsiderando todo o desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista e
as suas crescentes determinações, desde sua fase inicial, passando pela criação das sociedades
anônimas, monopólios e trustes, até chegar ao seu nível atual, a “economia solidária”
almejaria realizar uma mudança social com as mesmas armas adotadas há mais de dois
séculos. Ainda que o mercado tenha se consubstanciado a partir de novas e maiores
determinações, estabelecendo o “controle metabólico do capital” (MÉSZÁROS, 2002), em
que essa entidade torna-se uma força social suprema das relações econômicas, para os
representantes desse projeto social, nada disso seria capaz de desmerecer a importância dos
artifícios usados pelos primeiros socialistas utópicos.
Nesse sentido, a “economia solidária” é apresentada pelos seus integrantes como um
projeto que, há mais de duzentos anos, luta contra as imposições do capital e, mesmo que não
se tenha nenhum indicativo de sucesso, permaneceria austero na sua batalha:
Singer ressalta esse caráter histórico da economia solidária, ao defini-la como
‘criação, em processo contínuo, de trabalhadores em luta contra o capitalismo’
(2000:14). Para ele, assim como houve uma revolução social capitalista durante
séculos, até que relações econômicas e ideologias capitalistas se tornassem
dominantes, uma potencial revolução social socialista em curso conforme sua
ênfase na concepção de revolução social enquanto processo lento de mudanças
sociais profundas, que ele distingue da concepção de revolução política, ou seja, a
tomada de poder (em geral violenta) do poder político. A revolução social socialista
estaria em construção aproximadamente dois séculos, tendo começado na Grã-
Bretanha com a introdução de instituições anti-capitalistas (sufrágio universal,
sindicatos, legislação trabalhista e sistema de seguridade social, além das
cooperativas) que, embora sempre possíveis de cooptação por parte da sociedade
burguesa, seriam ‘implantes socialistas dentro do capitalismo’ (SINGER, 1998). Na
sua visão, a economia solidária é uma forma de repensar o socialismo, portanto uma
288
economia socialista, porque caracterizada fundamentalmente por princípios opostos
ao capitalismo (CUNHA, 2003, p. 56 – 57).
O papel de destaque destes “implantes socialistas” seria o de amenizar as dicotomias e
desigualdades do mercado, para que este funcionasse com o máximo de democracia: seriam,
portanto, “instituições destinadas a enfrentar e/ou compensar as tendências de concentração
da renda e da propriedade, de exclusão social e de destruição criadora, inerentes à dinâmica
do capital” (SINGER, 1998. p. 132). Por isso que, nas promessas da “economia solidária”, a
defesa destes “implantes socialistas” estaria vinculada à sua peculiar maneira de apreender o
mercado capitalista. Nessa visão, o mercado não estaria saturado de determinações, nem o
capital representaria uma força social global, mas existiram espaços e formas de luta
econômicas que não apenas não seriam limitados pelos imperativos do capital, mas que,
através da ocupação e utilização desses interstícios, conseguiriam autonomamente derrubar as
imposições dos monopólios.
É apenas por se basear nessa mistificada análise do mercado capitalista, que
representantes desse projeto conseguem visualizar a possibilidade de disputa econômica como
plataforma de superação do sistema capitalista. Isso, pois, somente imaginando o mercado
capitalista como uma relação de igualdade entre os agentes econômicos
313
é que se pode
conceber a idéia de que o “desenvolvimento da economia solidária e sua integração num setor
pode se dar de baixo para cima, por iniciativa das próprias empresas e instituições de apoio,
sem interferência direta de autoridades governamentais” (SINGER, 2003, p. 24). De maneira
análoga, é somente pelo emprego do mesmo subterfúgio que essas organizações podem ser
vistas como detentoras de autonomia capaz de reter as determinações do mercado nas
fronteiras de seus muros e, assim, conseguirem “preservar a autenticidade das organizações
solidárias, que depende da sua democracia interna e da sua autonomia externa” (IDEM).
De forma diversa da análise realizada por Engels, o mercado capitalista seria, para os
defensores da “economia solidária”, o fundamento da mudança social, uma vez que permitiria
uma coexistência plural e democrática entre vários tipos de empreendimentos econômicos.
Exatamente por causa dessa conjectura, é que se tornaria possível,
através da referência à noção de economia plural, de se pensar uma outra forma de
produção e distribuição de riqueza, isto é, uma economia não necessariamente
contra o mercado (imaginando-se ingenuamente ou autoritariamente que ele possa
ser aniquilado), mas uma economia com mercado, entretanto sob a condição de que
este seja submetido a outros princípios, ou melhor, que ele seja enraizado, isto é,
313
Perspectiva essa que representa claramente uma expressão da ideologia burguesa: “A determinação do valor
das mercadorias pelo trabalho e a livre troca que se faz de acordo com essa medida de valor entre os possuidores
iguais face ao direito, tais são, como já demonstrou Marx, os fundamentos reais sobre os quais se edificou toda a
ideologia jurídica, política e filosófica da burguesia moderna” (ENGELS, 2001, p. 14).
289
imbricado junto a outros registros e práticas (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004,
p. 118).
Com a miragem de um mercado capitalista plural e democrático, a “economia
solidária” não somente se proporia a se integrar nesse complexo social, como se intitularia
capaz de realizar significativas alterações nos princípios valorativos que permeiam essa
entidade. Não haveria porque temer o mercado e nem os imperativos do capital, visto que,
com uma simples adjetivação, a economia seria modificada:
Enquanto parte desse novo projeto socialista, a economia solidária caracteriza-se
pela sua adjetivação. Seu diferencial encontra-se exatamente no termo ‘solidária’, o
que significa dizer que aspectos ético-normativos passam a qualificar a lógica
econômica, o que a torna distinta da lógica econômica tradicional, essencialmente
competitiva, comum a correntes de diferentes posições ideológicas (BARRETO,
2003, p. 288).
Sinteticamente, poderíamos afirmar que seriam dois os elementos que fundamentam a
mudança social promovida pela “economia solidária”: aproveitar o mercado capitalista em sua
diversidade econômica e produzir novas identidades autônomas nos seus integrantes. Se, de
um lado, essas organizações, “aproveitando a diversidade do mercado interno brasileiro”
objetivariam fomentar a “longevidade ao esforço empreendedor dos segmentos mais
modestos, [como] o cooperativismo”, de outro, constituiriam um “mecanismo de integração
social e espaço de produção de novas identidades do trabalhador, do empreendedor, de
processos e produtos” (BOCAYUVA, 2001, p. 94). Em outros termos, esse projeto social
buscaria utilizar o mercado capitalista para a criação e ampliação de seus empreendimentos
econômicos, assim como para a instauração de um imaginário autônomo e distinto do capital.
Trata-se da refilmagem, ainda que bem mais precária, da luta da utopia contra os imperativos
do capital, depois de passados dois séculos. A trama central desse projeto cinematográfico
poderia ser assim definida: a abdicação da luta política em prol da luta econômica.
No lugar de ações políticas contra o capital e seus representantes, Singer (1998, p.
112) advoga supostos ensinamentos históricos que apontariam para outro caminho, o de
superar o sistema capitalista de forma gradativa a partir de seu interior: “A lição foi
apreendida e o movimento operário se reformulou, adaptando-se à hegemonia do capital e
passando a tentar transformá-lo a partir de dentro”. Neste sentido, as organizações da
“economia solidária”, hipoteticamente herdadas dos socialistas utópicos, representariam a
grande arma dos trabalhadores. As cooperativas seriam, “sem dúvida o mais controverso e
significante implante socialista no capitalismo” (IDEM, p. 122), assim como “o advento do
movimento operário socialista” teria produzido “um implante coletivista nos interstícios da
formação social capitalista: as cooperativas de consumo e de produção” (IDEM, p. 148).
290
Nas cenas dessa refilmagem não poderia faltar a estória de um herói abnegado que
buscaria, a partir do seu exemplo pessoal ascético
314
, convencer toda a humanidade da
grandeza de sua causa. Honrando uma linhagem de nobreza, que remontaria aos primeiros
socialistas utópicos, passando pelos principais representantes do anarquismo (como
Proudhon), até chegar nos defensores da “economia solidária”, caberia ao nosso herói
“encontrar a verdade completa, a noção em toda a plenitude, a fórmula sintética que anule a
antinomia”, pois esse é “o problema do gênio social” (MARX, 2001a, p. 104). Como vimos
no capítulo passado, um dos espíritos elevados que teriam alcançado essa graça metafísica
seria o sr. Muhammad Yunus. Internacionalmente conhecido e elogiado pela sua preocupação
com os mais humildes, o defensor da “economia solidária”, não apenas teria desvendado todo
o mistério da pobreza social, mas também descoberto um remédio capaz de cura: o uso
solidário do mercado capitalista.
A “economia solidária” se apresentaria, então, como laboratório para produção desse
emplasto que teria por ingredientes centrais a liberdade individual solidária e o mercado
capitalista: “o desafio é acumular vantagens da economia monetária, fonte de liberdade
individual pelo mercado e fator de igualdade pela redistribuição, com aquelas da economia
não-monetária que contextualiza as trocas, retirando-as do anônimato [sic]” (FRANÇA
FILHO; LAVILLE, 2004, p. 107). Para quem não acreditaria na verossimilhança desse
enredo, realiza-se o seguinte apelo:
As experiências dos trabalhadores afirmam a premissa de que é possível essa
construção, de que é possível tecer o novo por dentro das velhas estruturas.
Portanto, o projeto DSS
315
pode ser tomado como parte dessa estratégia,
estimulando, acompanhando, propondo iniciativas populares de organização dos
314
Se, no caso dos socialistas utópicos, o apelo ao comportamento ascético advinha, em grande medida, das
limitações econômicas e políticas do seu contexto histórico, quando se trata da “economia solidária”, essa
conduta assume uma tática puramente mistificadora. Como demonstram Marx e Engels (1990, p. 44), o
ascetismo dos utópicos expressa uma relação direta da falta de condições materiais para a transformação social:
“As primeiras tentativas diretas do proletariado para fazer prevalecer seus próprios interesses de classes, feitas
numa época de efervescência geral, no período da derrubada da sociedade feudal, fracassaram necessariamente
não só por causa do estado embrionário do próprio proletariado, como devido à ausência das condições materiais
de sua emancipação, condições que apenas surgem como produto do advento da época burguesa. A literatura
revolucionária que acompanhava esses primeiros movimentos do proletariado teve forçosamente um conteúdo
reacionário. Preconizava um ascetismo geral e um grosseiro igualitarismo”. Outra contradição é que os
representantes da “economia solidária” não atentam para o fato de que a defesa do ascetismo pode descambar em
sistemas sociais burocratizados. Se, como demonstramos no capítulo 03, existem, nessas organizações, um
déficit claro de produtividade e um elevado nível de precariedade no trabalho, para manter coeficientes de
produção similares à concorrência, assim como para desviar o foco da falta de condições dignas de emprego,
apela-se para não apenas para o exemplo ascético, mas busca-se transformar esse modelo em padrão de
comportamento que, em vários momentos, torna-se irracional. Guardadas as devidas diferenças, essa realidade se
assemelha ao maior pesadelo de muitos representantes da “economia solidária”: “pois o burocratismo (que se
tornou tão poderoso graças ao culto stalinista da personalidade) desenvolveu um matiz particular de ascetismo: a
exigência de um comportamento ascético das massas, formulado por burocratas, que, de sua parte, de nenhum
modo se submetem a semelhante exigência” (LUKÁCS, 1991, p. 195).
315
Desenvolvimento Sustentável Solidário.
291
trabalhadores desempregados, subempregados, autônomos ou do mercado informal,
em empreendimentos cooperativos, autogestionários, que neguem a lógica da
empresa capitalista (CARVALHO; ARAÚJO; ARAÚJO, 2000, p. 46).
Deixando de lado essa literatura fantástica que faria inveja a Edgar Allan Poe e do
sentimentalismo típico de um Pedro da Maia
316
, o que nos importa é apreender que essa visão
peculiar sobre o mercado apresentada na “economia solidária” é, portanto, base fundamental
para se apreender a proposta de mudança social contida nesse projeto. A mistificação
aventada pela difusão desta fantasiosa análise da realidade encontra-se não somente na
precária apreensão do mercado, mas na maneira de enxergar a mudança social. Não obstante a
imaginação de uma suposta igualdade entre agentes econômicos no mercado capitalista e, por
isso, a possibilidade de apropriação dos seus interstícios para fins alternativos, a “economia
solidária” promove uma inversão das reais possibilidades de luta pelo socialismo: priorizando
a luta econômica e relegando a luta política.
No entanto, se a defesa da luta econômica em detrimento da luta política expressava
uma limitação dos socialistas utópicos, justificada pela incipiente formação e organização da
classe trabalhadora, realizar tal apologia no contexto atual constitui uma posição
extremamente regressiva. No caso dos socialistas utópicos, essa limitação possui uma razão
histórica
317
:
Enquanto o proletariado não se tornar bastante desenvolvido para se constituir em
classe, enquanto por conseguinte a própria luta do proletariado com a burguesia não
tiver ainda um caráter político e as forças produtivas não estiverem ainda
suficientemente desenvolvida no seio da própria burguesia para permitirem
vislumbrar as condições materiais necessárias à libertação do proletariado e à
formação de uma sociedade nova, esses teóricos não passam de utopistas que, para
obviar as necessidades das classes oprimidas, improvisam sistemas e se em à
procura de uma ciência regeneradora (MARX, 2001, p. 111).
Por outro lado, no caso da “economia solidária”, trata-se mesmo de um retrocesso na
luta da classe trabalhadora pela transformação social, visto que,
ao contrário de representar a continuidade de um processo crescente de lutas dos
trabalhadores (‘é uma criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra
316
Personagem do livro “Os Maias” de Eça de Queirós (2001).
317
Com o desenvolvimento do capitalismo e, conseqüentemente, da formação da classe trabalhadora, as formas
de resistência contra a exploração do trabalho passaram, gradativamente, da esfera econômica para a esfera
política: “Essa forma inicial de resistência acabou por evoluir para um terreno cada vez mais político,
ascendendo ao primeiro plano a luta pelo direito de voto. Em 1819, 60 mil operários fizeram uma manifestação
em Manchester pelo ‘sufrágio universal’, duramente reprimida por uma tropa de cavalarianos, que matou
dezenas de operários, inclusive mulheres e crianças” (TEIXEIRA, 2002, p. 21). Em 1905 na Rússia, cerca de 135
mil trabalhadores que marcharam nas ruas de São Petesburgo exigindo avanços políticos e sociais foram
recebidas com tiros pela guarda do Czar, resultando em centenas de mortes. Esse momento representou um
marco para a organização política dos trabalhadores da Rússia. Sobre esse contexto vale a pena duas consultas: o
filme “Encouraçado Potemkin” de Sergei Eisenstein e a sinfonia n. 11, “O Ano de 1905” em sol menor opus 13,
de Dmitri Shostakovitch.
292
o capitalismo
318
’), a tentativa de restabelecer o cooperativismo como centro da luta
dos trabalhadores pelo socialismo, nos dias de hoje, constitui um retrocesso às
limitadas ações anticapitalistas dos trabalhadores na sua infância como classe social
(GERMER, 2006, p. 201).
Se, no contexto histórico dos socialistas utópicos, em que o mercado capitalista se
apresentava ainda numa fase inicial e, conseqüentemente, desprovido das determinações da
sua atual fase, investir na luta econômica contra as empresas capitalistas já se apresentava
como uma fatalidade iminente, reapresentar tal proposta dois séculos depois significa, no
mínimo, uma postura regressiva. Tal crítica não se fundamenta em posições valorativas sobre
a sociedade, mas expressa as condições materiais que determinam as possibilidades e limites
da luta de classes dentro do capitalismo. Como afirma o autor citado, adotar a “economia
solidária” no “lugar da disputa pelo poder do Estado, como estratégia de transição para o
socialismo” consiste exatamente “no abandono do terreno em que as condições de luta são
relativamente mais favoráveis aos trabalhadores, por um terreno no qual são amplamente
desfavoráveis (GERMER, 2006, p. 203).
Substituir a luta política pela competição econômica representa, portanto, a troca do
espaço de disputa em que os trabalhadores possuem mais condições de sucesso por aquele em
que inexistem garantias reais não apenas de vitória, mas de sobrevivência sem subordinação
direta ao capital. Bem distante do mundo sonhado pelos representantes da “economia
solidária”, o mercado capitalista nem disponibiliza interstícios ou espaços vagos para atuação
independente, nem muito menos constitui um ambiente econômico plural e democrático em
que os agentes econômicos, independentemente de seu tamanho e princípio valorativo,
conseguem realizar livremente suas atividades.
Como, para competir no mercado, qualquer organização precisa atender aos seus
requisitos básicos da disputa econômica e, portanto, seguir os imperativos do capital, a luta da
“economia solidária” está perdida:
O risco vem do próprio fato de tais organizações competirem no âmbito do mercado
capitalista. Isso significa que elas são forçadas, em alguma medida, a aceitar
critérios de racionalidade e de eficiência capitalistas. Acontece que no terreno dos
critérios de eficiência capitalistas, dos critérios vigentes no mercado capitalista, a
luta é desigual, e está perdida. Se avaliamos a performance econômica segundo a
lógica do mercado, isto é, segundo a lógica do capitalismo, não dúvida de que
teremos de concluir que as formas de gestão do capitalismo são mais eficientes,
embora tenham também seus problemas (MACHADO, 2000, p. 58).
318
Extrato da seguinte passagem de Singer (2003, p. 13): “A economia solidária é uma criação em processo
contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo. Como tal, ela não poderia preceder o capitalismo
industrial, mas o acompanha como uma sombra, em toda sua evolução”.
293
Como afirmamos de maneira recorrente, se esse fato representava uma imposição
contra as experiências dos socialistas utópicos, com o desenvolvimento do sistema capitalista,
se ampliaram cada vez mais as determinações do mercado, assim como o poder do capital
como regulador das relações econômicas. Apenas uma análise mistificada pode desconhecer
essa realidade e, como conseqüência, possibilitar a imaginação de promessas sociais tão
infundadas. É com base nessa qualidade que, diferentemente do que apregoam os
representantes da “economia solidária”, não existe, a nosso ver, uma relação de continuidade
entre esse projeto social e as propostas dos principais socialistas utópicos
319
.
Para apreender corretamente a função social desses projetos sociais, objetivando
apreender o grau contestador ou legitimador sobre a ordem social vigente, precisamos
entender que esses foram vislumbrados com base em possibilidades e limites distintos, a
depender do seu contexto histórico. Isso indica, a nosso ver, duas evidências claras: que a
função social da “economia solidária” não é a mesma dos socialistas utópicos; e que, quando
relacionados com a totalidade social em que estão inseridos, a “economia solidária”,
diferentemente do socialismo utópico, não possui nada de progressista. Como demonstramos
anteriormente, as experiências dos socialistas utópicos são resultantes do incipiente
desenvolvimento do capitalismo, seja marcado pela inexistência do proletariado enquanto
classe social
320
e do mercado estruturado por relações de concorrência, na qual a presença dos
grandes monopólios ainda não era desenvolvida. Sem levar em conta esses fatores não se
apreende corretamente a proposta dos utópicos em criar comunidades produtivas ou
organizações econômicas alternativas às cidades e empresas burguesas.
Por outro lado, quando se trata de um contexto histórico mais recente que trás em si
novas e mais amplas determinações que produzem as possibilidades e os limites das lutas de
319
Fazemos referência aqui a Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen. Como foge do nosso escopo de
análise, não buscamos analisar as semelhanças e diferenças de cada um desses representantes e, ainda mais,
problematizar a dinâmica de inflexões e continuidades entre eles e seus seguidores.
320
Aqui não nos referimos ao proletariado enquanto classe em si, mas evidenciamos que não se tratava ainda de
classe para si. O marco dessa passagem acontece na década de 40 do século XIX, com a irrupção de várias
manifestações e revoluções organizadas e dirigidas pelos trabalhadores: “A ambivalência ídeo-política desses
anos expressa com fidelidade a evolução do protesto operário na sua curva ascendente basta evocar a
larguíssima bibliografia que acompanha as formulações típicas do que ulteriormente se denominou ‘socialismo
utópico’. Na década de 40, todavia, o protesto operário, sobretudo no continente, sofreu profunda inflexão. A
progressiva consolidação do novo modo de vida do mundo burguês põe à luz do dia a dilaceração medular desse
mundo: inseparável acólito da burguesia, o proletariado, ao fim da primeira etapa da Revolução Industrial, já não
se opõe simplesmente a ela, mas articula um projeto societário que implica a sua supressão. Numa palavra:
consolidando-se o mundo burguês, o proletariado converte-se, no seu processo de lutas, em classe para si
(NETTO, 2004, p. 91). No ano 1848 ocorreram vários levantes por toda Europa, organizados pelos
trabalhadores, integrando o que ficou conhecido como “primavera dos povos” ou “revolução mundial” (cf.
TEIXEIRA, 2002a, p. 23).
294
classes, essas formas de intervenção social se configuram por outras funções sociais, cada vez
menos contestadoras:
A importância do socialismo e do comunismo crítico-utópicos está na razão inversa
do desenvolvimento histórico. À medida que a luta de classes se acentua e toma
formas mais definidas, o fantástico afã de abstrair-se dela, essa fantástica oposição
que se lhe faz, perde qualquer valor prático, qualquer justificação teórica. Eis
porque, se, em muitos aspectos, os fundadores desses sistemas eram
revolucionários, as seitas formadas por seus discípulos são sempre reacionárias, pois
se aferram às velhas concepções de seus mestres apesar do ulterior desenvolvimento
histórico do proletariado. Procuram, portanto, e nisso são conseqüentes, atenuar a
luta de classes e conciliar os antagonismos. Continuam a sonhar com a realização
experimental de suas utopias sociais: estabelecimento de falanstérios isolados,
criação de colônias no interior, fundação de uma pequena Içaria, na edição in 12 da
nova Jerusalém e, para dar realidade a todos esses castelos no ar, vêem-se obrigados
a apelar para os bons sentimentos e os cofres de filantropos burgueses. Pouco a
pouco, caem na categoria dos socialistas reacionários ou conservadores descritos
acima, e se distinguem deles por um pedantismo mais sistemático e uma
supersticiosa e fanática na eficácia miraculosa de sua ciência social (MARX;
ENGELS, 1986, p. 45)
321
.
Trazer à tona experimentos sociais que, antes mesmo desse desenvolvimento histórico,
se apresentavam como incapazes de qualquer tentativa de transformação social, representa
não mais uma posição utópica, mas extremamente regressiva. Apreendendo a magnitude do
poder do capital dentro das relações do mercado, Engels demonstrou o crescente processo de
determinações que perpassa o capitalismo e, com isso, tornou explícita a nulidade de sucesso
das tentativas de disputa econômica por pequenos produtores e, ainda mais, que estes possam
conseguir subverter a ordem societária vigente. É por ter exposto essa evidência histórica que
os autores “clássicos” do marxismo são tão criticados pelos representantes da “economia
solidária”. Fica explícito, portanto, porque o texto de Engels representa um perigo tão grande
ao projeto da “economia solidária” e que, por isso, Paul Singer não apenas realiza uma crítica
tão dura ao representante do socialismo científico, mas também faz questão de relegar ao
esquecimento a sua contribuição ao pensamento marxista.
As dualidades e as contradições que identificamos ao longo de nossa tese não
perpassam apenas nosso objeto de estudo, mas também os representantes da “economia
solidária”: a imagem do Singer atual não é a mesma refletida pelo espelho da história. E, no
final da contas, quando a imagem histórica desse grande pensador não resplandece mais, os
dois adversários de Friedrich Engels possuem muito em comum:
321
Atualizando um pouco essa análise de Engels, poderíamos afirmar que defender práticas revoltosas anti-
capitalistas românticas de algumas décadas atrás representa, no máximo, um gratificante academicismo: “É
desnecessário esclarecer que a revolta de sessenta anos atrás é, nos dias correntes, uma simples volta. A
inatualidade teórica e a nenhuma eficácia histórico-social dos posicionamentos anticapitalistas românticos
fundadas na conjunção de uma ética revolucionária com uma epistemologia conservadora faz deles, hoje,
quando muito, um gratificante academicismo de oposição” (NETTO, 1980, p. 32).
295
A liberdade científica consistirá, assim, na possibilidade de cada qual escrever sobre
ciência tudo o que nunca aprendeu, dando-o como o único método rigorosamente
científico. O senhor Dühring é um dos mais característicos tipos desta
pseudociência presunçosa, que atinge a primeira plana, em toda a Alemanha
hodierna, e domina o espaço com seu estrepitoso ruído de... latão (ENGELS, 1986,
p. 07).
296
Considerações finais: a “economia solidária” e o Castelo do Barba-Azul
Abre a sétima porta!
Abre, abre, Duque Barba-azul.
Acho que sei o que escondes.
Tuas armas estão manchadas de sangue,
Tuas coroas estão manchadas de sangue,
A copa de tuas flores sangra,
As nuvens lançam sombras sangrentas.
Ah, eu sei, Duque Barba-Azul,
De quem são as lágrimas que enchem teu lago.
Lá estão suas antigas esposas,
Assassinadas, encharcadas de sangue.
Ah, os rumores eram verdadeiros.
(BALÁZS, 2008, p. 29)
Em 1908, o compositor húngaro Béla Balázs escreveu um libreto de ópera,
posteriormente musicado por Béla Bartók, intitulado de A Kékszakállú Herceg Vára, ou, em
português, O Castelo do Barba-Azul. Este libreto, inspirado numa das histórias contidas num
livro de Charles Perrault (1999), e baseado na peça Ariadne et Barbe-Bleue, do escritor belga
Maurice Maeterlinck, narra a relação de Judite e Barba-azul, desde seu enlace até o seu
trágico desfecho (CASOY, 2008).
Apesar de ter escutado vários rumores negativos sobre Barba-azul, indicando que
ele teria assassinado suas três primeiras esposas, Judite desconsidera esses boatos, casa-se
com ele, e o acompanha até o castelo que é sua morada. Lá, após escutar um longo suspiro,
Judite encontra uma porta, a abre e se depara com uma cena horrenda: sob uma forte luz
vermelha ela vê uma sala de torturas, com suas paredes manchadas de sangue. Entretanto,
após deixar a câmara, ela, alegando que a sala estava muito escura e que a cor vermelha
também faz parte de todo amanhecer, desconsidera o que viu. Após conseguir a chave de
outra porta, Judite a descerra e se depara com outro cenário assustador: está diante de um
depósito de armas repleto de vestígios de sangue.
Todavia, no lugar de medo, essa experiência aguça a curiosidade de Judite, que solicita
a Barba-azul as chaves das outras portas das salas do seu castelo. Se, nas primeiras duas salas,
ela se deparou com as bases da força de Barba-azul (a tortura e as armas), os três cômodos
seguintes lhe expõem os deleites que derivam desse poder. Encontra, atrás da terceira porta,
um amontoado de variadas jóias que integram a riqueza de Barba-azul. Ao se aproximar desse
tesouro, o júbilo que inicialmente envolveu Judite transforma-se rapidamente em receio, pois
297
ela percebe que todas as jóias estavam manchadas de sangue. A rotina se repete na quarta
porta, mas desta vez com uma diferença: ao passo que Judite torna-se mais amedrontada, as
expectativas de Barba-azul se ampliam. Sob incentivos de Barba-azul, Judite abre também
essa porta e enxerga um vasto e lindo jardim. No entanto, em poucos instantes, o sentimento
de Judite se inverte, pois todas as plantas também estão manchadas de sangue.
O caminho segue, e Judite, no intento de abrir as outras três portas que restam,
desconsidera o real perigo que se aproxima. Encaminhada por Barba-azul, ela abre a quinta
porta, em que se encontra todo o reino do seu amado, com destaque para longos pastos,
espessas florestas e um céu prodigioso. Mas, como também seu reino origina-se das práticas
maléficas de Barba-azul, tudo está manchado de sangue. Obcecada pela curiosidade em
descobrir os segredos de Barba-azul, Judite segue adiante, abre a sexta porta e um lago de
água morna e clara. A tranqüilidade advinda dessa imagem, todavia, desaparece quando
Barba-azul responde a Judite que a água que abastece esse lago vem de lágrimas.
Mesmo descobrindo que as lágrimas que enchem o lago do castelo são das antigas
esposas de Barba-azul, e comprovando que os rumores que escutava eram verdadeiros, Judite
abre a sétima porta. Depois desse passo, as alternativas se acabam pois, agora, não existem
mais saídas, e Judite fica aprisionada para sempre no castelo de Barba-azul, que declama para
ela: “Bela, magnífica, radiante de beleza, Tu foste a mais bela de minhas esposas, A mais bela
de todas! E agora a noite será eterna, Eterna, eterna, eterna...” (BÁLAZS, 2008, p. 30).
Ao buscarmos apreender qual a função social da “economia solidária” diante das
determinações do capitalismo brasileiro atual, identificamos uma relação análoga ao conto
anterior: ao passo que percebem as qualidades negativas do mercado capitalista, os integrantes
da “economia solidária” se aproximam cada vez mais dessa entidade. Estruturando-se a partir
de um falso dilema, em que as relações econômicas dentro do mercado poderiam ser forjadas
a partir de sentimentos solidários, esse projeto social se encaminha para um desfecho
semelhante ao de Judite: aprisionada para sempre por aquele que a recebe em sua morada.
Desconsiderando esses rumores, assim como suas evidências, os representantes da
“economia solidária” o enxergam que existe perigo, e esse se encontra cada vez mais
iminente. Acreditam que, apelando para sentimentos românticos, poderão alterar a
subjetividade de uma instância amoral. Não compreendem que tentar convencer os agentes
econômicos do mercado capitalista a se comportarem de forma solidária é o mesmo que
solicitar que reneguem a razão de existência de seus empreendimentos; que, numa sociedade
regida pela lei das mercadorias, os agentes econômicos do mercado não passam de expressões
298
personificadas do capital e, assim, para todos eles, abdicar dessas regras regimentares resulta
no mesmo que desaparecer economicamente. Em suma, desconsideram que o capital e sua
expressão máxima, o mercado capitalista, não permitem alternativas para além de sua
configuração e, nesse sentido, toda valoração solidária torna-se nula perante o imperativo do
lucro. Não se pode humanizar aquilo que não tem coração.
Ao desconsiderar esses fatos, a “economia solidária” realiza, no melhor dos casos,
uma crítica romântica ao sistema capitalista. Mas, ainda que se evidenciem os valores nobres
de seus representantes, essa prática não contribui em nada para um processo de transformação
social. Em verdade, posturas tais como essas funcionam no inverso do apregoado: no lugar de
colaborar com a organização, unificação e conscientização dos trabalhadores, a “economia
solidária” mistifica a realidade e as possibilidades concretas para a luta de classes,
escurecendo, assim, o horizonte revolucionário. No lugar de significar um fenômeno
progressista, esse projeto social funciona como um retrocesso econômico, político e
ideológico.
Se, dois séculos, era possível apreender que era esse o papel desempenhado por
essas organizações, na atualidade não existem justificativas para esse tipo de projeto social.
Se, antes, tal prática poderia ser chamada de romantismo anti-capitalista, agora não passa de
um precário sentimentalismo. O contexto histórico dos socialistas utópicos, configurado por
um incipiente desenvolvimento do capitalismo, em que nem o mercado estava totalmente
dominado pelo capital, nem o proletariado tinha o estatuto de classe-para-si, já não serve mais
de justificativa para amenizar um duro julgamento da “economia solidária”. Não existem
explicações racionais para a recorrência em tal erro histórico, até porque, se, na primeira vez,
trata-se de tragédia, a segunda representa uma farsa
322
.
Mesmo realizando acrobacias teóricas e analíticas, os representantes da “economia
solidária” não conseguem esconder a fragilidade desse projeto social. Apenas com os dados
apresentados por sua entidade representativa máxima (SENAES), saltam aos olhos as
condições precárias de trabalho e as limitações econômicas dessas organizações. Seus
próprios integrantes assumem que estão nesses empreendimentos apenas como condição
passageira, até não encontrarem um trabalho com maior segurança. Além disso, a existência
de fios que envolvem as organizações da “economia solidária” com empresas e
322
“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do
mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a
segunda como farsa” (MARX, 1997, p. 21).
299
representações capitalistas é tamanha que se torna impossível apontar para a existência de
duas lógicas e razões econômicas em disputa.
Pela variedade e a amplitude das parcerias entre as organizações da “economia
solidária” e empresas, entidades e tantas outras instituições, quem alega uma distinção entre
essas posturas, incorpora uma fronteira muito tênue que está em permanente mutação. Mesmo
detendo qualidades singulares, esse projeto possui vários elementos de assimilação com
entidades tais como: cooperativas de trabalho, Organização das Cooperativas do Brasil,
organizações do “terceiro setor”, empresas da “economia de comunhão”. A única exceção a
essa complementaridade encontra-se nas cooperativas do MST que, em termos sintéticos,
subordinam-se às diretrizes deste movimento social e expressam uma peculiaridade política
distinta da “economia solidária”.
Longe de fomentar uma organização política crítica ao sistema capitalista, ao centrar
esforços na luta econômica, a “economia solidária” torna-se refém dos imperativos do
mercado capitalista e, tal situação é agravada pelos conselhos de seus parceiros empresariais.
Por causa da ingenuidade ou do pragmatismo, a “economia solidária consegue tapar os
ouvidos sobre os rumores e evidências que demonstram a essência do mercado capitalista. E,
cada passo dado para o interior desse complexo social é acompanhado de uma porta de saída
que se fecha, tal qual Judite no Castelo do Barba-azul.
Em breve os integrantes da “economia solidária” estarão diante da sétima porta do
mercado, com a chave nas suas mãos. No jardim encontram-se as únicas ferramentas capazes
de destruir esse castelo: uma foice e um martelo. A escolha se torna cada vez mais necessária.
300
Bibliografia:
ABENDROTH, Wolfgang. A história social do movimento trabalhista
europeu. Trad. Ina de Mendonça. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
ABREU, Haroldo. Um duro combate aos que buscam suavizar a barbárie. In: MENEZES,
Maria Thereza C. G. Economia Solidária: elementos para uma crítica marxista. Rio de
Janeiro: Gramma, 2007.
ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Indivíduo. In: HORKHEIMER, Max;
ADORNO, Theodor W (orgs.). Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, 1973.
ALIGHIERI, Dante. La divina commedia. Milano: Mondadori, 2007. (col. oscar grandi
classici).
ALMEIDA, L. C. T. Cooperativa de trabalho: é assim que se faz. Maceió: s/ed. 2000.
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In. SADER, Emir; GENTILI, Pablo (orgs).
Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2003.
ANDRADE FILHO, Francisco Antônio. Economia de Comunhão e modernidade: uma
demarcação teórico-prática. In: BARAÚNA, Márcia (Coord.). Anais do bureau
internacional de economia e trabalho - Economia de Comunhão e Movimento Econômico:
desenvolvimento e perspectivas. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2000.
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do
mundo do trabalho. 9. ed. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
_________. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 3.
ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.
ARAÚJO, Vera. Economia de Comunhão e Comportamentos Sociais. In: COSTA, Rui, et al.
(orgs.). Economia de comunhão: projeto, reflexões e propostas para uma cultura da partilha.
2 ed. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 1998.
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. Trad. Sérgio Bath. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. (col. tópicos)
ARRUDA, Marcos. Globalização e sociedade civil: repensando o cooperativismo no contexto
da cidadania ativa. In: Revista Proposta. N. 72. Rio de Janeiro: FASE, 1997. (p. 06-17).
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 28 ed. São Paulo: Ática, 2006.
(série bom livro).
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.
BALÁZS, Béla. O Castelo do Barba-Azul. Libreto da ópera em um ato de Béla Bartók.
Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Teatro Municipal / Secretatia de Cultura, 2008.
301
BALIBAR, Etienne. Exclusion ou lutte des classes? In: BALIBAR, Etienne. Les frontiéres
de la démocratie. Paris: La Découverte, 1992.
BANCO MUNDIAL. O trabalhador e o processo de integração mundial. (Relatório sobre
o desenvolvimento mundial, 1995). Washington, D. C.: Oxford University Press / Rio de
Janeiro: FGV, 1995.
BARAN, Paul A.; SWEESY, Paul M.. Capitalismo Monopolista: ensaio sobre a ordem
econômica e social americana. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966.
(biblioteca de ciências sociais)
BARBOSA, Rosangela Nair de Carvalho. A economia solidária como política pública: uma
tendência de geração de renda e ressignificação do trabalho no Brasil. São Paulo: Cortez,
2007.
BARCELLOS, Jane Athayde; BELTRÃO, Ricardo Ernesto Vasquez. Instituição Comunitária
de Crédito Portosol: construindo uma economia solidária. In: SINGER, Paul; SOUZA, André
Ricardo de (orgs). A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao
desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto, 2003.
BARRETO, André Valente de Barros. Cultura da cooperação: subsídios para uma economia
solidária. In: SOUZA, André Ricardo de; CUNHA, Gabriela Cavalcanti; DAKUZAKU,
Regina Yoneko (orgs.). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia solidária.
São Paulo: Contexto, 2003.
BATISTA, Paulo Nogueira. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas
latino-americanos. São Paulo: Consulta Popular, 2001.
BEDINELLI, Talita. Empresas vão criar fundos para cooperativas. Reportagens. PNUD
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Disponível em:
http://www.pnud.org.br/cidadania/reportagens/index.php?id01=2069&lay=cid, acessado em
21/08/2007.
BEJAMIN, César. Apresentação. In: LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução? 3 ed.
São Paulo: Expressão popular, 2003.
BIONDI, Aloysio. O Brasil privatizado II: o assalto das privatizações continua. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2000.
_______. O Brasil privatizado: um balanço do desmonte do Estado. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 1999.
BIRCHALL, Johnston. The international co-operative movement. Manchester: Manchester
University Press, 1997.
BITTENCOURT, Gilson Alceu. Sistema Cresol de Cooperativas de Crédito Rural: uma
experiência de economia solidária entre os agricultores familiares. In: SINGER, Paul;
SOUZA, André Ricardo de (orgs). A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como
resposta ao desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto, 2003.
302
BOCAYUVA, Pedro Cláudio Cunca. Pensando uma política pública de geração de trabalho e
renda. In: VEIGA, Sandra Mayrink; FONSECA, Isaque. Cooperativismo: uma revolução
pacífica em ação. Rio de Janeiro: DP & A, Fase, 2001 (col. economia solidária).
BORÓN, Atílio. O pós-neoliberalismo é uma etapa em construção. In. SADER, Emir;
GENTILI, Pablo (org). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 6. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
_______. A sociedade civil depois do dilúvio neoliberal. In. SADER, Emir; GENTILI, Pablo
(org). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 6. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2003a. p. 63-118.
BOTTOMORE, Tom. Movimentos operários. [verbete] In: BOTTOMORE, Tom. (org.).
Dicionário do pensamento marxista. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital Monopolista: a degradação do trabalho no
século XX. 3 ed. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
BRECHT, Bertold. A Santa Joana dos matadouros. Trad. Robert Schwartz. In: BRECHT,
Bertold. Teatro Completo. vol. 4. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1994.
________. A alma boa de Setsuan. Trad. Geir Campos e Antônio Bulhões. In: BRECHT,
Bertold. Teatro Completo. vol. 7. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992.
BRYANT, C. Positivism in Social Theory and Research. London: MacMillan, 1985.
BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976.
CASTEL, Robert. Les métamorphoses de la question sociale: une chronique du salariat.
Paris : Fayard, 1995.
CARDEAL, Maria Regina. Cooperativa habitacional dos jornalistas: uma história inconclusa.
In: SOUZA, André Ricardo de; CUNHA, Gabriela Cavalcanti; DAKUZAKU, Regina Yoneko
(orgs.). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia solidária. São Paulo:
Contexto, 2003.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Prefácio. In: MENDONÇA, Sonia Regina. Agronomia e poder
no Brasil. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998.
CARVALHO, Maria do Socorro Normanha de; ARAÚJO, Nailsa; ARAÚJO, Vilma
Aparecida de. O Desenvolvimento Sustentável Solidário na Formação Cutista: uma reflexão
sobre suas potencialidades e desafios. In: Escola de Formação Sindical da CUT no Nordeste.
DSS e Economia Solidária: debate conceitual e relato de experiências. Recife: Edições
Bagaço, 2000.
CARVALHO, Nanci Valadares de. Autogestão: o nascimento das ONGs. 2 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1995.
303
CASOY, Sergio. A ópera das sete portas. In: BALÁZS, Béla. O Castelo do Barba-Azul.
Libreto da ópera em um ato de Béla Bartók. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Teatro
Municipal / Secretaria de Cultura, 2008.
CHASIN, José. Cadernos ensaio: manifesto editorial VIII. In: MANDEL, Ernest. Socialismo
x Mercado. São Paulo: Ensaio, 1991. (cadernos ensaio, série pequeno formato, v. 8)
COHN, Gabriel. Apresentação. In: HADDAD, Fernando. Trabalho e linguagem: para a
renovação do socialismo. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2004.
COLE, G. D. H. A century of co-operation. Manchester: Cooperative Union, 1944.
CORALLO, Jean-François. Coopérative. In: LABICA, Georges; BENSUSSAN, Gerard.
Dictionnaire critique du marxisme. Paris: Quadrigne/PUF, 1999.
COSTA, Márcio da. A educação em tempos de conservadorismo. In.GENTILI, Pablo (org.).
Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. 9 ed. Petrópolis: Vozes,
2001.
COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1972.
CRUZ-MOREIRA, Juan Ricardo. Cooperativas populares de confecção do estado de São
Paulo. In: SOUZA, André Ricardo de; CUNHA, Gabriela Cavalcanti; DAKUZAKU, Regina
Yoneko (orgs.). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia solidária. São
Paulo: Contexto, 2003.
DEMOUSTIER, Danièle. A economia social e solidária: um novo modo de empreendimento
associativo. São Paulo: Loyola, 2001.
DEVELTERE, Patrick. Économie sociale et développement: les coopératives, mutuelles et
associations dans les pays et développement. Bruxelas: De Boeck Université, 1998.
(ouvertures économiques).
Diário de Pernambuco. Economia da comunhão. Recife, 26 de julho de 2009.
__________________. A comunhão dos lucros. Recife, 26 de julho de 2009.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. 4 ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34,
2007. (col. Leste).
DRUCKER, Peter F. Sociedade pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1999.
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 3 ed. Trad. Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2008. (col. Tópicos)
___________. As regras do método sociológico. 3 ed. Trad. Paulo Neves. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. (col. Tópicos).
ENGELS, Friedrich. Prefácio à primeira edição alemã. In: MARX. Karl. Miséria da
filosofia: resposta à Filosofia da miséria do senhor Proudhon (1847). Trad. Paulo Ferreira
Leite. São Paulo: Centauro, 2001.
304
________. Anti-Dühring. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1990. (col. pensamento crítico, vol.
09)
________. Do socialismo utópico ao socialismo científico. In: MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. Obras completas. vol 2. São Paulo: alfa-omega, 1986.
________. Dialética da natureza. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1979. (col. pensamento
crítico, vol. 08).
EVANGELISTA, João Emanuel. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno. 3. ed.
São Paulo: Cortez, 2002. (Coleção Questões da nossa época - 07)
______. Elementos para uma crítica da cultura pós-moderna. Revista Novos Rumos, v. 16, n.
34, 2001.
FALS-BORDA, Orlando. Formación y deformación de la politica cooperativa en América
Latina. In : Boletín, n. 7, Ginebra: Instituto de Estudos Laborales, 1970.
FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2006.
FERREIRA, Elenar. A cooperação no MST: da luta pela terra à gestão coletiva dos meios de
produção. In: SINGER, Paul; SOUZA, André Ricardo de (orgs). A Economia Solidária no
Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto, 2003.
FIORI, José Luís. O vôo da coruja: para reler o desenvolvimento brasileiro. Rio de
Janeiro/São Paulo: Record, 2003.
FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de; LAVILLE, Jean-Louis. A Economia Solidária:
uma abordagem internacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. (col. sociedade e
solidariedade)
Folha de São Paulo de 04/05/07 (Veículos puxam alta no comércio de SP).
Folha de São Paulo de 12/05/07 (Lucro das Americanas sobe 400%, para R$ 17 mi).
Folha de São Paulo de 16/05/07 (Thomson fecha compra da Reuters por US$ 17,2 bi).
Folha de São Paulo de 21/05/07 (Italianos criam o 2º maior banco europeu).
FONTES, Virgínia. Capitalismo, exclusões e inclusão forçada. In: FONTES, Virgínia.
Reflexões Im-Pertinentes: história e capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Bom
Texto, 2005. (col. Pensamento crítico).
FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Unesp, 1997.
FOURIER, Charles. O novo mundo industrial e societário. Trad. Paula M. A. C. Mello. In:
TEIXEIRA, Aloísio (org.). Utópicos, heréticos e malditos: os precursores do pensamento
social de nossa época. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2002.
GAIGER, Luiz Inácio. Os caminhos da economia solidária no Rio Grande do Sul. In:
SINGER, Paul; SOUZA, André Ricardo de (orgs). A Economia Solidária no Brasil: a
autogestão como resposta ao desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto, 2003.
GERMER, Claus. A “economia solidária”: uma crítica marxista. In: Revista Outubro, n. 14,
São Paulo: Alameda, 2006.
305
GÓGOL, Nikolai. A avenida Niévski. In: GOL, Nikolai. À saída do teatro depois da
apresentação de uma nova comédia; A avenida Niévski. São Paulo: Paz e terra, 2002. (col.
Leitura)
_______. Almas Mortas. Trad. Tatiana Belinky. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (col. Os
imortais da literatura).
GORENDER, Jacob. Introdução. In: MARX, Karl. Para a crítica da economia política;
Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes: a economia vulgar. 2 ed. São Paulo:
Nova Cultural, 1986.
GORRITI, Eliana. Vinda do Papa eleva vendas de itens religiosos. In: Notícias Terra,
06/05/07.
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 8 ed. Trad. Luiz Mário
Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
GUEVARA, Che Ernesto; MANDEL, Ernest; BETTELEHIM, Charles. El Gran Debate:
Sobre la economia en Cuba. Madrid: Ocean Press, 2005.
HADDAD, Fernando. Trabalho e linguagem: para a renovação do socialismo. Rio de
Janeiro: Azougue editorial, 2004.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança
cultural. 14 ed. Trad. Adail Ubirajara Sobral; Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola,
2005.
HAYEK, Friedrich A. O caminho da servidão. 4 ed. Trad. Anna Maria Capovilla, José Ítalo
Stelle e Liane de Morais Ribeiro. Rio de Janeiro: Expressão e Cultural: Instituto Liberal,
1987.
HEGEL, G. W. F. Ciencia de la logica. 2 ed. castellana. Trad. Augusta y Rodolfo Mondolfo.
Buenos Aires: Solar/Hachette, 1968.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos: o breve século XX (1914 1991). 2 ed. Trad.
Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das letras, 1995.
____________ (org.). História do marxismo. Vol 11 (O marxismo hoje, primeira parte).
Trads. Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio N. Henriques. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1989.
____________. Introdução. Trad. João Maia. In: MARX, Karl. Formações econômicas pré-
capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1975. (col. pensamento crítico, vol. 03).
HOLZ, Hans Heiz; KOFLER, Leo; ABENDROTH, Wolfgang. Conversando com Lukács.
Trad. Gizeh Vianna Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. (col. Rumos da cultura
moderna, vol. 32).
HORKHEIMER, Max. Teoria tradicional e teoria crítica. In: BENJAMIN, W. et alii. Textos
escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1980 (col. Os pensadores).
HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard, J. História do pensamento econômico. 4. ed.
Petrópolis: Vozes, 1985.
306
IAMAMOTO, Marilda Villela. “Serviço Social Alternativo”: elementos para a sua
problematização. In: IAMAMOTO, Marilda Villela. Renovação e Conservadorismo no
Serviço Social: ensaios críticos. 7 ed. São Paulo: Cortez, 2004.
KASMIR, Sharryn. El mito de Mondragón: cooperativas, política y classe trabajadora em
uma cidade del País Vasco. Trad. Laura Martínez González. Nafarroa: Txalaparta, 1999.
KATZ, Claudio. Marx e a tecnologia. In: COGGIOLA, Osvaldo. Marx e Engels na história.
São Paulo: Xamã, 1996. (p. 399 – 416).
KONDER, Leandro. Marx: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 1998.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 7 ed. Trad. Célia Neves e Alderico Toríbio. São Paulo:
Paz e Terra, 2002.
LEAL, Giuliana Franco. Organizações da burguesia agrária e reforma agrária: um estudo
sobre a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil CNA (1995 2001). Campinas:
IFCH / UNICAMP, 2002. (Dissertação de Mestrado em Sociologia).
LESSA, Sérgio. Trabalho e Proletariado no Capitalismo Contemporâneo. São Paulo:
Cortez, 2007.
______. Lukács: ética e política. Chapecó: Argos, 2007.
______. Para além de Marx?: crítica da teoria do trabalho imaterial. São Paulo: Xamã,
2005. (col. labirintos do trabalho)
______. Uma “praga de fantasias”. In: Revista Praia Vermelha estudos de política e
teoria social. vol. 10. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. (p. 84 – 111).
______. Mundo dos Homens: trabalho e ser social. São Paulo: Boitempo, 2002.
______. Lukács, ontologia e método: em busca de um(a) pesquisador(a) interessado(a). In.
Praia Vermelha estudos de política e teoria social. vol. 01. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.
(p. 141-174).
______. Centralidade do trabalho, qual centralidade? In: Revista de ciências humanas.
Florianópolis: 1997. v. 15, n. 22 (out).
LÊNIN, V. I. Cadernos Filosóficos. In: LÊNIN, V. I. Obras completas. Tomo 29.. Moscou:
Editorial Progresso, 1986.
______. Sobre a cooperação. In: LÊNIN, V. I. Obras escolhidas em três tomos. vol. III. São
Paulo: alfa-ômega, 1980.
______. Marxismo e revisionismo. In: LÊNIN, V. I. Obras escolhidas em três tomos. Vol. I.
São Paulo: alfa-ômega, 1980a.
______. Imperialismo: fase superior do capitalismo (ensaio popular). In: LÊNIN, V. I. Obras
escolhidas em três tomos. Vol. I. São Paulo: alfa-ômega, 1980b.
______. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. In: LÊNIN, V. I. Obras
escolhidas em três tomos. Vol. I. São Paulo: alfa-ômega, 1980c.
______. As tarefas imediatas do poder soviético. In: LÊNIN, V. I. Obras escolhidas em três
tomos. Vol. II. São Paulo: alfa-ômega, 1980d.
LIMA, Jacob Carlos. O trabalho autogestionário em cooperativas de produção. A retomada de
um velho paradigma. In: Anais do XXVII Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu:
ANPOCS, 2003.
307
_____. Cooperativas de produção industrial: autonomia e subordinação do trabalho. In:
CASTRO, Nadya A.; DEDECCA, Cláudio S (orgs.). A ocupação da América Latina:
tempos mais duros. São Paulo, Rio de Janeiro: ALAST, 1998. (Serie II Congresso Latino-
americano de Sociologia do Trabalho).
_____. Negócios da China: a nova industrialização do Nordeste. In: Novos Estudos. N. 49.
São Paulo: CEBRAP, 1997.
LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo
e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994.
LUBICH, Chiara. O Movimento Focolares e a Economia de Comunhão. In: BARAÚNA,
Márcia (Coord.). Anais do bureau internacional de economia e trabalho - Economia de
Comunhão e Movimento Econômico: desenvolvimento e perspectivas. Vargem Grande
Paulista: Cidade Nova, 2000.
LUKÁCS, George. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista.
Trad. Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
________. Pensamento vivido: autobiografia em diálogo, entrevista a Istvan Eörsi e Erzsébet
Vezér. Trad. Cristina Alberta Franco. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem; Viçosa:
Editora da UFV, 1999.
________. Realismo crítico hoje. 2 ed. Trad. Ermínio Rodrigues. Brasília: Thesaurus, 1991.
________. Trata-se do Realismo! Trad. Maria Assunção Pinto Correia. In: BARRENTO, João
(org.). Realismo, materialismo, utopia: uma polêmica 1935 1940. Lisboa: Moraes
editores, 1978.
________. Introdução a uma Estética Marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978a.
________. Der junge Hegel: über die Beziehungen von Dialektik und Ökonomie. band 1.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973. (suhrkamp taschenbuch wissenschaft 33).
________. Der junge Hegel: über die Beziehungen von Dialektik und Ökonomie. band 2.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973a. (suhrkamp taschenbuch wissenschaft 33).
________. El assalto a la razon: la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta
Hitler. México: Fondo de Cultura Económica, 1959.
LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução? 3 ed. Trad. Livio Xavier. São Paulo:
Expressão popular, 2003.
______________. A acumulação do capital: estudo sobre a interpretação econômica do
capitalismo. 2 ed. Trad. Moniz Bandeira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
MACHADO, João. Comentários. In: SINGER, Paul; MACHADO, João. Economia
Socialista. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000 (col. Socialismo em Discussão).
MANN, Thomas. Doutor Fausto: a vida do compositor alemão Adrian Leverkühn narrada
por um amigo. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
MANDEL, Ernest. O lugar do marxismo na história. 2. ed. São Paulo: Xamã, 2001.
_________. Socialismo x Mercado. São Paulo: Ensaio, 1991. (cadernos ensaio, série
pequeno formato, v. 8)
_________. A crise do capital: os fatos e sua interpretação marxista. Trad. Juarez Guimarães
e João Machado Borges. São Paulo: Ensaio; Campinas: UNICAMP, 1990.
_________. O capitalismo tardio. Trad. Carlos Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e
Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (col. Os economistas)
308
_________. A formação do pensamento econômico de Karl Marx. Rio de Janeiro: Zahar,
1968.
MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke.
Trad. Nelson Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. (col. Pensamento Crítico, v. 22).
MARX. Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo:
Boitempo, 2008.
______. Capítulo VI inédito do capital: resultados do processo de produção imediata. 2 ed.
Trad. Klaus Von Puchen. São Paulo: Centauro, 2004.
______. Miséria da filosofia: resposta à Filosofia da miséria do senhor Proudhon (1847).
Trad. Paulo Ferreira Leite. São Paulo: Centauro, 2001.
______. O 18 Brumário. Trad. Leandro Konder. In: MARX. Karl. O 18 Brumário e Cartas a
Kugelmann. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1997.
______. Crítica ao Programa de Gotha. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras
completas. vol 2. São Paulo: alfa-omega, 1986.
______. Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores. In:
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras completas. vol 1. São Paulo: alfa-omega, 1986a.
______. Para a crítica da economia política. Trad. Edgar Malagodi. In: MARX, Karl. Para a
crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes. 2 ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1986b. (col. Os economistas).
______. Sobre Proudhon (carta a J. B. Schweitzer) In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.
Obras escolhidas. vol 1. São Paulo: alfa-omega, 1986c.
______. O Capital: crítica da economia política. 2 ed. Trad. Regis Barbosa e Flávio R.
Kothe. vol. I, tomo I (o processo de produção capitalista). São Paulo: Nova Cultural, 1985.
(col. Os economistas).
______. O Capital: crítica da economia política. 2 ed. Trad. Regis Barbosa e Flávio R.
Kothe. vol. I, tomo II (o processo de produção capitalista). São Paulo: Nova Cultural, 1985a.
(col. Os economistas).
______. O Capital: crítica da economia política. 2 ed. Trad. Regis Barbosa e Flávio R.
Kothe. vol. III, tomo I (o processo global da produção capitalista). São Paulo: Nova Cultural,
1985b. (col. Os economistas).
______. Prefácio da segunda edição. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia
política. 2 ed. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. vol. I, tomo I (o processo de produção
capitalista). São Paulo: Nova Cultural, 1985c. (col. Os economistas).
______. Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico. vol 2 (livro 4 de
O Capital). Trad. Reginaldo Sant’Anna. São Paulo: Difel, 1980.
______. Troca, igualdade, liberdade. In: Temas de Ciências Humanas, n. 03. São Paulo:
Ciências Humanas, 1978.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In: MARX, Karl;
ENGELS, Friedrich. Obras completas. vol 1. São Paulo: alfa-omega, 1986.
MENDONÇA, Sonia Regina. A organização das cooperativas brasileiras e a nova hegemonia
ruralista no Brasil. In: Anais do XI Encontro Regional de História. Rio de Janeiro: UERJ,
2004
___________. Agronomia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998.
MENEZES, Maria Thereza C. G. Economia Solidária: elementos para uma crítica marxista.
Rio de Janeiro: Gramma, 2007.
309
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Trad. Paulo
Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002.
MIRANDA, M. H. Doutrina e Empresas Cooperativas: contribuição para o estudo do
cooperativismo na “Região de Araraquara”. Araraquara: FFCLA, 1973. (Tese de Doutorado).
MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de
intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.
__________. Microempresa na era da globalização: uma abordagem histórico-crítica. 2 ed.
São Paulo: Cortez, 2001. (col. questões de nossa época, n. 66).
MORAIS, Clodomir Santos de. Algunas Consideraciones en Torno de las Organizaciones
Campesinas. In : Boletín, n. 8, Ginebra: Instituto de Estudos Laborales, 1971.
MOREIRA, Maria Vilma Coelho. Cooperativismo e desenvolvimento: caso das Cooperativas
de Confecção do Maciço de Baturité, Ceará. In: Revista Política e Trabalho, n. 13, João
Pessoa: UFPB, 1997.
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Carta dos Movimentos Sociais das
Américas FSM Belém 2009. 09 de fevereiro de 2009. Disponível em
www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=6277. Acessado em 25 de março de 2009.
_____. Linhas políticas reafirmadas no IV Congresso Nacional do MST 2000. 12 de
setembro de 2007. disponível em: www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=4179. Acessado em 13
de março de 2009
_____. Quem somos. 04 de setembro de 2007a. disponível em:
www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=4151. Acessado em 13 de março de 2009.
NAKANO, Marilena. Anteag: a autogestão como marca. In: SINGER, Paul; SOUZA, And
Ricardo de (orgs). A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao
desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto, 2003.
NARDI, Henrique Caetano et al. Subjetividade e solidariedade: a diversidade das formas de
implicação dos jovens na economia solidária. Revista Psicologia: Reflexão e Crítica. vol.
19, n. 2. Porto Alegre: UFRGS, 2006.
NARDI, Henrique Caetano; YATES, Denise Balem. Transformações contemporâneas do
trabalho e processos de subjetivação: os jovens face à nova economia e à economia solidária.
In: Revista Estudos de Psicologia. vol. 10, n. 1. Natal: UFRN, 2005.
NARDI, H. C.; TOTTONI, J.; BERNARDES, J. Subjetividade e trabalho. In: CATTANI, A.
D. (Org.) Dicionário crítico sobre trabalho e tecnologia. Petrópolis: 2002, Vozes. (pp. 302-
309).
NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo:
Cortez, 2006.
NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 4 ed. São Paulo: Cortez,
2005.
_______. 1847, Marx contra Proudhon. In: NETTO, José Paulo. Marxismo Impenitente:
contribuição à história das idéias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004.
310
_______. De como não ler Marx ou o Marx de Sousa Santos. In: PAULO NETTO, José.
Marxismo impenitente: contribuição à história das idéias marxistas. São Paulo: Cortez,
2004a.
______, José Paulo. Para ler o Manifesto do Partido Comunista. In: NETTO, José Paulo.
Marxismo Impenitente: contribuição à história das idéias marxistas. São Paulo: Cortez,
2004b.
______, José Paulo. Os intelectuais de esquerda não podem abandonar Cuba. In: Margem
Esquerda: ensaios marxistas. n. 02, novembro 2003 / maio 2004.. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2003.
_______. A “crise do socialismo” e a alternativa comunista. In: NETTO, José Paulo. Crise do
socialismo e ofensiva neoliberal. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2001. (col. questões da nossa
época).
_______. A ofensiva neoliberal e seu significado. In: NETTO, José Paulo. Crise do
socialismo e ofensiva neoliberal. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2001a. (col. questões da nossa
época).
_______. Capitalismo e reificação. São Paulo: Ciências Humanas, 1981.
_______. Introdução: F. Engels: subsídios para uma aproximação. In: ENGELS, Friedrich.
Política. São Paulo: Ática, 1981. (col. grandes cientistas sociais, vol. 17).
_______. Lukács e a sociologia. In: Revista Contexto, N. 1. São Paulo: Hucitec, 1976.
NEVES, Daniela. Capitalismo contemporâneo: as cooperativas sob o comando do capital. In:
Anais do X Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social, UFPE: ENPESS,
2006.
NOGUEIRA, Fernanda. O direito ao trabalho – um instrumento no processo de desconstrução
do manicômio em Santos, São Paulo. In: Revista de Terapia Ocupacional da Universidade
de São Paulo: USP. jan/abr. 1997, v. 08, n.1, p. 53-6.
ODA, Nilson Tadashi. Sindicato e cooperativismo: os metalúrgicos do ABC e a Unisol
Cooperativas. In: SINGER, Paul; SOUZA, André Ricardo de (orgs). A Economia Solidária
no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto, 2003.
OHNO, Taiichi. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Trad.
Cristina Schumacher. Porto Alegre: Bookman, 2007.
OLIVEIRA, Eurenice de. Toyotismo no Brasil: desencantamento da fábrica, envolvimento e
resistência. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
OLIVEIRA, Francisco de. Neoliberalismo à brasileira. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo.
Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra,
2003.
OLIVEIRA, Paulo de Salles. Uma trajetória em companhia de Paul Singer. In: SOUZA,
André Ricardo de; CUNHA, Gabriela Cavalcanti; DAKUZAKU, Regina Yoneko (orgs.).
Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia solidária. o Paulo: Contexto,
2003.
_________. Uma fonte de solidariedade: a divisão do trabalho social em Durkheim. In:
SOUZA, André Ricardo de; CUNHA, Gabriela Cavalcanti; DAKUZAKU, Regina Yoneko
(orgs.). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia solidária. São Paulo:
Contexto, 2003a.
311
OLIVEIRA. Ranieri Carli de. As raízes históricas da sociologia de Max Weber. Tese de
doutorado em Serviço Social. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. mimeo.
__________. O conceito de ideologia no último Lukács. In: Revista Novos Rumos. Ano 22,
n. 47. São Paulo: Instituto Astrojildo Pereira, 2007.
PALMEIRA SOBRINHO, Zéu. A norma trabalhista e a sua legitimação. In: Revista
Trabalhista Direito e Processo. Brasília, p. 55 – 66, dez. 2008.
_____________________. Das cooperativas de trabalho: dispersando os atores. In: Revista
Nacional de Direito do Trabalho, v 42. São Paulo, p. 31 - 41, 01 out. 2001.
_________________________.
Flexibilização: um enfoque crítico. In: Revista do TRT da 21ª
Região, v. 01, Natal-RN, p. 50-66, 1998.
PANIAGO, Maria Cristina Soares. Mészáros e a incontrolabilidade do capital. Maceió:
EDUFAL, 2007.
PARRA, Henrique Zoqui Martins. Sindicalismo e cooperativismo: entre a criação e a
destituição. In: SOUZA, André Ricardo de; CUNHA, Gabriela Cavalcanti; DAKUZAKU,
Regina Yoneko (orgs.). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia solidária.
São Paulo: Contexto, 2003.
PASQUINO, Gianfranco. Movimentos sociais [verbete]. In: BOBBIO, Noberto;
MATTEUCCI, Nicolas; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 8 ed. Vol. 2.
Brasília: UnB, 1995.
PEREIRA, C. E. M. Artigo do presidente. Notícias. Disponível em: http://www.cni.org.br,
2001.
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Uma reforma gerencial da administração pública no Brasil.
In: Anais do Congresso da Associação Internacional de Ciência Política - IPSA. Seul,
agosto de 1997.
_________. Da administração pública burocrática à gerencial. In: Revista do Serviço
Público, n. 47 (1), janeiro de 1996.
PERRAULT, Charles. Histoires ou contes du temps passe. Paris: Gallimard, 1999. (la
bibliotheque gallimard)
PETITFILS, Jean-Christian. Os socialistas utópicos. Trad. Waltenzir Dutra. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1978.
PINHEIRO, Márcia Baraúna. Economia de Comunhão: uma experiência peculiar de
economia solidária. In: SINGER, Paul; SOUZA, André Ricardo de (orgs). A Economia
Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto,
2003.
PISTRAK, M. Fundamentos da Escola do Trabalho. 2 ed. Trad. Daniel Aarão Reis Filho.
São Paulo: Expressão Popular, 2002.
312
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? Trad. João Emilio Gonçalves e Pedro
Quaresma de Araújo. In: TEIXEIRA, Aloísio (org.). Utópicos, heréticos e malditos: os
precursores do pensamento social de nossa época. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2002.
___________. Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria. Trad. Antonio
Geraldo da Silva. Tomo I. São Paulo: Escala, s/d. (col. grandes obras do pensamento
universal, n. 79).
QUEIROZ, Eça de. Os Maias: episódios da vida romântica. São Paulo: Landy, 2001.
QUIJANO, Aníbal. Sistemas alternativos de produção? In: SANTOS, Boaventura de Sousa
(org.). Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
RANCIÉRE, Jacques. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. Trad. Marilda
Pedreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971.
REASONS, C. E. Movimentos sociais [verbete]. In: ARNAUD, André-Jean (coord.).
Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. São Paulo: Renovar, 1999.
REED, John. 10 dias que abalaram o mundo. 10 ed. Trad. Armando Gimenez. São Paulo:
Global, 1978.
RIOS, Gilvando Sá Leitão. Cooperativas agrícolas no nordeste brasileiro e mudança
social. João Pessoa: Editora da UFPB, 1979. (col. Estudos Universitários, série Ciências
Sociais).
ROMÃO, José Eustáquio. Dialética da diferença o projeto da escola cidadã frente ao
projeto pedagógico neoliberal. São Paulo: Cortez, 2000.
ROSA, João Guimarães. O burrinho pedrês. In: ROSA, João Guimarães. Sagarana. Edição
Comemorativa 60 anos (1946 – 2006). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-providência. Lisboa: Inquérito, 1984.
ROSENFIELD, Cinara L. A autogestão e a nova questão social: repensando a relação
indivíduo-sociedade. In: Anais do Seminário Intermediário da ANPOCS. São Paulo: USP,
2003.
RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. São Paulo: Polis, 1987.
SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Produzir para viver: os caminhos da produção não
capitalista. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. (col. reinventar a emancipação
social: para novos manifestos, vol. 02)
SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
SCHEIN, Edgar H. Guia de Sobrevivência da Cultura Corporativa. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2001.
313
SCHUMACHER, E. F. O negócio é ser pequeno: um estudo de economia que leva em conta
as pessoas. 2 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1983.
SCIARRETA, Toni. Crise acelera união de Itaú e Unibanco. In: Folha de São Paulo, 24 de
novembro de 2008.
SENAES Secretaria Nacional de Economia Solidária. Relatório Nacional SIES
2005/2007. Disponível em: http://www.mte.gov.br. Acessado em: 11 de agosto de 2008.
________. Atlas da Economia Solidária no Brasil. Brasília: TEM, SENAES, 2006.
SERAFIM, Maurício Custódio. A Ética no espaço de produção: contribuições da economia
de comunhão. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2001.
SERRA, Rose Mary. O serviço social e os seus empregadores: o mercado de trabalho nos
órgãos públicos, empresas e entidades sem fins lucrativos no Estado do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: FSS/UERJ, 1998.
SESCOOP Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo. Princípios
cooperativistas. Disponível em: http://www.portaldocooperativismo.org.br/sescoop/
cooperativismo/principios_cooperativistas.asp. Acessado em: 25 de abril de 2009.
SILVEIRA, Caio Márcio; AMARAL, Carlos. Crédito popular no Brasil: exame de
experiências selecionadas. Núcleo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa (NAPP); Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), mar. 1997.
SINGER, Paul. Prefácio: um olhar diferente sobre a Economia Solidária. In: FRANÇA
FILHO, Genauto Carvalho de; LAVILLE, Jean-Louis. A Economia Solidária: uma
abordagem internacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
_______. Economia solidária: um modo de produção e distribuição. In: SINGER, Paul;
SOUZA, André Ricardo de (orgs). A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como
resposta ao desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto, 2003.
_______. Incubadoras universitárias de cooperativas: um relato a partir da experiência da
USP. In: SINGER, Paul; SOUZA, André Ricardo de (orgs). A Economia Solidária no
Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto, 2003a.
_______. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
_______. Apresentação. In: VEIGA, Sandra Mayrink; FONSECA, Isaque. Cooperativismo:
uma revolução pacífica em ação. Rio de Janeiro: DP & A, Fase, 2001 (col. economia
solidária).
_______. Economia Socialista. In: SINGER, Paul; MACHADO, João. Economia Socialista.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000 (col. Socialismo em Discussão).
_______. Uma utopia militante: repensando o socialismo. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
_______. Apresentação. In: MANDEL, Ernest. O Capitalismo Tardio. São Paulo: Abril
Cultural, 1982. (col. Os Economistas).
SOARES, Laura Tavares. Os Custos Sociais do Ajuste Neoliberal na América Latina. 2
ed. São Paulo: Cortez, 2002.
314
SOUZA, And Ricardo de. Economia solidária: um movimento nascente da crise do
trabalho. In: SOUZA, André Ricardo de; CUNHA, Gabriela Cavalcanti; DAKUZAKU,
Regina Yoneko (orgs.). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia solidária.
São Paulo: Contexto, 2003.
_______. Os empreendimentos comunitários de São Paulo. In: SINGER, Paul; SOUZA,
André Ricardo de (orgs). A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao
desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto, 2003a.
SOUZA, André Ricardo de; CUNHA, Gabriela Cavalcanti; DAKUZAKU, Regina Yoneko
(orgs.). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia solidária. São Paulo:
Contexto, 2003.
SZTOMPKA, Piotr. A sociologia da mudança social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1988.
TAVARES, Maria Augusta. Os fios (in)visíveis da produção capitalista: informalidade e
precarização do trabalho. São Paulo: Cortez, 2004.
TAUILLE, José Ricardo; DEBACO, Eduardo Scotti. Autogestão no Brasil: a viabilidade
econômica de empresas geridas por trabalhadores. In: VVAA. Economia Solidária. Vol 01.
TAUILLE, José Ricardo. Do socialismo de mercado à economia solidária. In: Seminário
Internacional Teorias de Desenvolvimento no Novo Século. 2001. mimeo.
TAYLOR, Frederick Winslow. Princípios de Administração Científica. 7 ed. Trad. Arlindo
Vieira Ramos. São Paulo: Atlas, 1982.
TEIXEIRA, Francisco. Trabalho e Valor: contribuição para a crítica da razão econômica.
São Paulo: Cortez, 2004.
TEIXEIRA, Aloísio (org.). Utópicos, heréticos e malditos: os precursores do pensamento
social de nossa época. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2002.
_________. Introdução. In: TEIXEIRA, Aloísio (org.). Utópicos, heréticos e malditos: os
precursores do pensamento social de nossa época. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2002a.
TELLA, Torcuato di Tella. Movimientos sociales [verbete]. In: TELLA, Torcuato.
Diccionacio de ciencias sociales y politicas. Buenos Aires: Ariel, 2004.
TIRIBA, Lia. A economia popular solidária no Rio de Janeiro: tecendo os fios de uma nova
cultura do trabalho. In: SINGER, Paul; SOUZA, André Ricardo de (orgs). A Economia
Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. 2ed. São Paulo: Contexto,
2003.
THERBORN, Goran. A crise e o futuro do capitalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo
(org). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 6. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2003.
THIEMER, Stefan. Economia de Comunhão: um modelo para a sociedade. In: BARAÚNA,
Márcia (Coord.). Anais do bureau internacional de economia e trabalho - economia de
315
comunhão e Movimento Econômico: desenvolvimento e perspectivas. Vargem Grande
Paulista: Cidade Nova, 2000.
TRAGTENBERG, Maurício. Administração, poder e ideologia. São Paulo: Cortez, 1989.
VIEIRA, Fabio Mourão. Coerência e aderência da economia solidária: um estudo de caso
dos coletivos de produção do MST em Mato Grosso do Sul. Tese de doutorado em economia.
USP: São Paulo, 2005. mimeo.
VEIGA, Lívia. Paul Singer será o secretário de Economia Solidária do governo Lula.
Agência Brasil ABr: Brasília, 27/01/2003. Disponível em:
http://www.radiobras.gov.br/materia.phtml?materia=90973&editoria=EC, acessado em:
02/03/2009.
VEIGA, Sandra Mayrink; FONSECA, Isaque. Cooperativismo: uma revolução pacífica em
ação. Rio de Janeiro: DP & A, Fase, 2001 (col. economia solidária).
VERONESE, Marília Veríssimo; GUARESHI, Pedrinho. Possibilidades solidárias e
emancipatórias do trabalho: campo fértil parca da psicologia social crítica. In: Revista
Psicologia & Sociedade, 17 (2): mai / ago, 2005. (p. 58-69).
VIEIRA, Fabrício. Concentração bancária cresce: 10 bancos têm 89% dos ativos. In: Folha
de São Paulo, 22 de setembro de 2009.
WELLEN, Henrique. Contribuição à crítica da “economia solidária”. In: Revista Katálysis,
v. 11, n. 1. Florianópolis: UFSC, 2008.
________. Neoliberalismo, Reforma do Estado e o Público-Não-Estatal: ou Bresser Pereira, o
Frankstein brasileiro. In: Anais do X Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço
Social, Recife: UFPE, 2006.
________. Trabalho, calor e conquista: um estudo sobre a viabilidade de uma cooperativa
de comercialização e reciclagem de lixo na cidade de Campina Grande / PB. Campina
Grande: UFPB, 2001. (Monografia de conclusão de curso).
________. Cooperativismo: uma alternativa de geração de emprego e renda para a população
da cidade de Campina Grande? Campina Grande: UFPB, 2001a. (Monografia de conclusão de
curso).
WELLEN, Henrique; OLIVEIRA, Ranieri. Apontamentos sobre a Ontologia de Georg
Lukács, primeira parte: do trabalho ao estranhamento. In: Anais do XII Seminário de
Pesquisa do CCSA, Natal: UFRN, 2006.
________. Apontamentos sobre a Ontologia de Georg Lukács, segunda parte: da ciência à
liberdade. In: Anais do XII Seminário de Pesquisa do CCSA, Natal: UFRN, 2006a.
WELLEN, Henrique; TEIXEIRA, José R. Sob o Efeito da Medusa: o terceiro setor na
corrente da ideologia capitalista. In: Anais do X Seminário de Pesquisa do CCSA, Natal:
UFRN, 2004.
WELLEN, Henrique; TEIXEIRA, José R.; SOUZA, Washington. Valores Humano-Sociais da
Gestão e do Trabalho Cooperativos: o caso da Cooperativa de Professores do Rio Grande do
Norte - COOPERN. In: Anais do IX Colóquio Internacional sobre Poder Local, Salvador:
UFBA, 2003.
316
________. Entre a racionalidade instrumental e a racionalidade substantiva: estudos sobre o
dilema central do trabalho cooperativo. In: Anais do II Seminário Internacional de
Educação Intercultural, Gênero e Movimentos Sociais, Florianópolis: UFSC, 2003a.
WELLEN, Henrique; FERREIRA, Luciano; SOUZA, Washington. Condicionantes atitudinais
do trabalho cooperativo: o caso da Cooperativa de Professores do Rio Grande do Norte -
Escola Freinet (Natal, 2002). In: Anais do VIII Seminário do CCSA, Natal: UFRN, 2002.
WELLEN; Henrique; SERAFIM, Rodrigo. Reestruturação produtiva e subsunção do trabalho
ao capital: análise crítica de teorias gerenciais a partir de Rosa Luxemburgo. In: Anais do
Seminário Internacional “A teoria política de Rosa Luxemburgo”. Natal: UFRN, 2009.
WELLEN, Henrique; WELLEN, Héricka. Introdução à gestão da escola: uma análise
crítica. Curitiba: IBMEX, 2009.
YUNUS, Muhammad; JOLIS, Alan. O banqueiro dos pobres. Trad. Maria Cristina
Guimarães Cupertino. São Paulo: Ática, 2006.
YUNUS, Muhammad. Um mundo sem pobreza. Trads. Henrique Amat Rego Monteiro e
Juliana A. Saad. São Paulo: Ática, 2008.
ZAFALON, Mauro. Dívida escancara contraste entre produção e política. In: Folha de São
Paulo, 28 de maio de 2008.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo