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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
SUBJETIVAÇÕES EM NOVA LIMA:
(trans)formações de uma cidade operária em acelerado
processo de metropolização
Nina Rosa Magnani
Belo Horizonte
2009
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Nina Rosa Magnani
SUBJETIVAÇÕES EM NOVA LIMA:
(trans)formações de uma cidade operária em acelerado
processo de metropolização
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Processos de
Subjetivação
Orientador: Prof. Dr. William César Castilho
Pereira
Belo Horizonte
2009
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Magnani, Nina Rosa
M196s Subjetivações em Nova Lima: (trans)formações de uma cidade operária em
acelerado processo de metropolização / Nina Rosa Magnani. Belo Horizonte,
2009.
209f. : il.
Orientador: William César Castilho Pereira
Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
1. Subjetividade. 2. Divisões territoriais e administrativas. 3. Regiões
metropolitanas. 4. Urbanização. 5. Segregação. 6. Marginalidade social. 7. Nova
Lima Vida e costumes sociais. I. Pereira, William César Castilho. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. III. Título.
CDU: 159.922.2
Nina Rosa Magnani
SUBJETIVAÇÕES EM NOVA LIMA: (trans)formações de uma cidade
operária em acelerado processo de metropolização.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Psicologia. Área de concentração:
Processos de Subjetivação.
__________________________________________________________
William César Castilho Pereira (Orientador) PUC Minas
__________________________________________________________
Michel Marie Le Ven - UFMG
__________________________________________________________
Roberta Carvalho Romagnoli PUC Minas
Belo Horizonte, 14 de dezembro de 2009.
À memória de Dazinho, símbolo de resistência,
conciliação e dignidade em Nova Lima.
AGRADECIMENTOS
Ao professor William, orientador e amigo, por sustentar minhas errâncias.
À professora Roberta, presença-potência.
Aos professores Michel Le Ven e João Leite Ferreira Neto pelas críticas solidárias.
A meus filhos pela atenção amorosa.
Aos companheiros de trabalho pelo apoio e pela paciência.
A todos que contribuíram para que esse trabalho fosse realizado,
gracias a la vida.
“– É hora de concluir o século dos ratos e iniciar o das andorinhas
disseram os mais resolutos. E, de fato, sob o sinistro e sórdido predomínio
ratinheiro, já se sentia incubar, entre as pessoas menos notórias, um ímpeto
de andorinhas, que avançam no ar transparente com ágil movimento de
cauda e desenham com a lateral das asas a curva do horizonte que se
alarga.”
Ítalo Calvino, “Cidades Invisíveis”.
“Liberdade para outros bravos,
quebrando agora outras formas de opressão”
Hino do Sindicato dos Mineiros de Morro Velho
RESUMO
Esta dissertação aborda as (trans)formações espaciais, sociais, políticas e ambientais ocorridas
no território de Nova Lima a partir da década de 90 e seus efeitos de subjetividade. Estudou-
se o intercruzamento entre a trajetória de Nova Lima como cidade operária, sua transformação
em cidade dos condomínios “paraíso das elites” e os processos de subjetivação que nessa
passagem se têm produzido. O objetivo da pesquisa foi traçar possíveis conexões entre os
macroprocessos de múltiplas ordens que incidem sobre o território novalimense (com
destaque para o acelerado movimento de metropolização provocado pela expansão da região
sul de Belo Horizonte) e os processos de subjetivação inscritos no cotidiano dos habitantes de
Nova Lima, compondo entrelaces entre os aspectos pesquisados e as trajetórias singulares dos
entrevistados. Os moradores foram ouvidos através de entrevistas individuais e de Grupo
Focal, sendo feito um mapeamento de suas falas e diálogos, agrupados por aspectos
abordados, resultando num mosaico de intensidades, idéias, percepções e afetos relatados do
ponto de vista dos cidadãos especialistas em sua própria realidade.
Palavras-chave: Processos de subjetivação. Território. Metropolização. Cidade operária.
Segregação espacial. Modos de vida.
ABSTRACT
This dissertation leads with the spatial, social, political and environmental (trans)formations
that took place at Nova Lima´s territory from the 90's and their effects of subjectivity. It was
studied the intercross between Nova Lima´s trajectory as a worker city, its transformation into
a city of condominiums - "elite´s paradise” - and the processes of subjectivity in that have
taken place this passage. The objective of this research was to establish possible connections
between the macro processes of multiple orders that affect Nova Lima`s territory (especially
the fast metropolization process caused by the expanding of the southern region of Belo
Horizonte) and the subjective processes included in the daily life of Nova Lima´s inhabitants,
making interconnections between the issues investigated and the interviewed people
trajectories. The residents were heard through individual interviews and focus groups, and
then it was made a mapping of their speeches and dialogues, grouped by covered aspects,
resulting in an intensities, ideas, perceptions and emotion mosaic, reported in terms of these
citizens - experts in their own reality.
Key-words: Subjectivity process. Territory. Metropolization. Worker city. Spatial
Segregation. Lifestyles.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................
10
1.1 Implicações ................................................................................................................
12
1.2 Ordenações ................................................................................................................
14
2 PERCURSOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS ...............................................
16
2.1 Dos processos de subjetivação e do território ........................................................
17
2.2 Posturas e métodos ...................................................................................................
22
2.3 Recursos ....................................................................................................................
26
2.4 O traçado e o texto ...................................................................................................
31
3 (TRANS)FORMAÇÕES EM NOVA LIMA: DE CIDADE OPERÁRIA A
PARAÍSO DAS ELITES ............................................................................................
33
3.1 História ......................................................................................................................
35
3.1.1 A mina .....................................................................................................................
43
3.1.2 Movimento operário ...............................................................................................
58
3.2 Mudanças pós-90 e a questão espacial ....................................................................
62
3.2.1 A Nova Lima Nova .................................................................................................
68
3.3 Novos espaços para uma segregação secular .........................................................
76
4 METRÓPOLE E SUBJETIVAÇÃO: TRANSFORMAÇÕES
CONTEMPORÂNEAS EM NOVA LIMA...............................................................
81
4.1 Cidades, metrópoles, megalópoles ..........................................................................
89
4.1.1 Periferias .................................................................................................................
96
4.2 Subjetivações quando a Metrópole avança ............................................................
97
4.2.1 Sobre rodas .............................................................................................................
102
4.2.2 Nos vãos da cidade .................................................................................................
107
4.3 Territorialidades .......................................................................................................
111
4.3.1 Nova Lima são muitas ............................................................................................
111
4.3.2 Desterritorializações ...............................................................................................
116
4.4 Invasões civilizadas ..................................................................................................
118
11
4.4.1 Guetos de luxo ........................................................................................................
120
4.4.2 Segregações ............................................................................................................
127
4.5 Alterações ambientais, contato com a natureza ....................................................
129
4.6 Espaços de cultura e lazer .......................................................................................
134
5 VIVENDO A NOVA CIDADE ...................................................................................
139
5.1 Jeitos de ser, maneiras de viver ...............................................................................
139
5.2 Meninos na cidade ....................................................................................................
146
5.3 A cidade do medo .....................................................................................................
151
5.4 Adoecimentos ............................................................................................................
155
5.4.1 Uma ponte entre dois mundos ................................................................................
157
5.5 Linhas de fuga ...........................................................................................................
159
6 DISCUTINDO O VIVER NA CIDADE: IMPASSES E POSSIBILIDADES .......
165
6.1 Dinâmica das discussões ..........................................................................................
166
6.2 Sobre viver em Nova Lima ......................................................................................
171
6.3 Palavras, palavras ....................................................................................................
182
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................
192
REFERÊNCIAS .............................................................................................................
197
APÊNDICES ...................................................................................................................
203
Apêndice A Glossário ..................................................................................................
203
Apêndice B Roteiro das entrevistas individuais .......................................................
205
10
1 INTRODUÇÃO
A região de Nova Lima vem passando, desde a década de 90, por acelerado ritmo de
mudanças, bem evidentes nas extensas intervenções e modificações no espaço urbano e no
seu perfil sócio-econômico, e por outras alterações pouco delineadas, mas não menos
importantes, com relação à produção de subjetividade e às maneiras de ser e se relacionar, às
“práticas de si”
1
, aos estilos de vida de sua população. A metropolização da região, fenômeno
contido durante um século e meio, pelo fato das mineradoras deterem a posse da maior parte
das terras disponíveis, a partir da década de 90 aconteceu de forma vertiginosa, impulsionada
por novos interesses econômicos e pela necessidade de expansão da região sul de Belo
Horizonte, disparando assim múltiplas e drásticas alterações.
[...] eu lembro Nova Lima com quarenta e dois mil habitantes, nó, levou anos,
décadas prá..., de repente chegou a sessenta, setenta mil, assim de uma hora pra
outra, quer dizer a cidade cresceu né, a população aumentou, as construções
aumentaram, as ruas, aumentou tudo, cresceu a cidade. (Irineu)
2
A década de 90 se impôs como referencial, não só por sua importância para o
município com a progressiva extinção das jazidas rentáveis da mineração e a intensificação
do processo de urbanização da região metropolitana de Belo Horizonte, mas também por ter
sido marcada pela alteração da configuração político-econômica mundial, com a tendência
hegemônica neoliberal e a chamada globalização da economia. Todas essas macro-mudanças
foram acompanhadas por importantes modificações em todos os níveis, da cultura às relações
sociais, das estratégias de sobrevivência às subjetividades.
Em Nova Lima, os moradores mais antigos, ligados a configurações sócio-espaciais
pautadas pela presença e domínio da atividade mineradora e a ritmos de vida interioranos, se
deparam agora com uma diversidade de paisagens urbanas, multi-influências e ritmos da
metrópole que chega às suas portas e invade seu cotidiano, e com novos moradores,
pertencentes a grupos sociais e estilos de vida diversos. Multiplicam-se os cenários, persiste a
segregação e a pequena autonomia do município sobre os destinos do território, o que se
reflete no dia-a-dia dos seus habitantes e em novos modos de produção de subjetividade,
“isto é, de conhecimento, cultura, sensibilidade e sociabilidade” (GUATTARI, 1995, p.33).
1
Termo utilizado por Michel Foucault, no livro Uso dos Prazeres (História da Sexualidade), se referindo às
artes da existência e à sua proposta genealógica de construção de uma história das problematizações éticas.
2
Irineu foi um dos entrevistados durante a pesquisa.
11
No campo psicossocial, novos transtornos, distúrbios pouco conhecidos se apresentam, assim
como impasses criados pela exacerbação dos confrontos e pela ausência de práticas que
contemplem essa nova configuração.
Este início de século se constitui num momento bastante favorável, uma oportunidade
única de se cartografar no ato, enquanto acontecem, de forma pulsante e viva, essas
transformações, seus efeitos de subjetivação, suas dificuldades e aberturas. Também, de se
identificar, as reproduções, cristalizações e resistências, às vezes revestidas de novas formas,
assim como a erupção de inventos e de produções potencialmente transformadoras e
restauradoras das trajetórias de vida, singulares e coletivas, na região de Nova Lima. Desta
maneira, esta pesquisa buscou mapear alguns cenários, certos traçados de um largo espectro
de acontecimentos que se apresenta, em bruto, para registro e análise.
Procurei acessar fenômenos, construções, transformações, pensares e fazeres que se
desenrolam neste município do eixo sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte, seus
desdobramentos e conexões. Assim, vemos presentificadas, no nível local, as grandes
questões do mundo do Capitalismo Globalizado, com suas particularidades e idiossincrasias,
miudezas do cotidiano, mas parte de um amplo processo de produção do espaço, do trabalho,
das subjetividades, da vida na Grande Cidade. “O mundo está aqui e aqui está no mundo”
(Irineu).
As transformações que acontecem em Nova Lima se impõem como tema de fundo
para qualquer trabalho de pesquisa que queira localizar adequadamente seu objeto na
atualidade do município, usufruindo da oportunidade de se registrar, ao vivo, um processo que
se desenrola com aspectos previsíveis ou surpreendentes, às vezes com tonalidades surreais,
como a imagem das torres do Vila da Serra e das Seis Pistas
3
surgindo por trás da mata.
Visualizo também a importância deste trabalho como base e referência para futuros
estudos nesse território, seja no campo da psicologia, fortalecendo uma abordagem da
subjetividade que leve em conta a polifonia, a heterogênese e as múltiplas causalidades
histórico-espaciais, locais e globais; como em outras áreas de investigação que considerem os
processos de subjetivação produzidos na região.
Num tema atual estão imbricadas complexas conexões histórico-espaciais,
desdobramentos, simplificações, análises, macro e micropolíticas. A história se inscreve
espacialmente no tecido da cidade, nas suas construções, nas suas demolições, no recorte das
3
Bairros situados na fronteira entre Nova Lima e Belo Horizonte, onde prédios luxuosos são construídos com
grande rapidez.
12
ruas, no patrimônio preservado ou destruído; sinais de uma rota coletiva e de singulares
trajetórias.
O registro e análise dessas transformações implicam em se estabelecer conexões com
aspectos importantes da trajetória da cidade e das subjetividades que se produzem. Dessa
maneira, estudar os processos de subjetivação que acontecem numa Nova Lima em
transformação convoca vários saberes, muitos olhares, épocas e cenários variados. Na sua
complexidade, um trabalho difícil e apaixonante.
1.1 Implicações
Quando escolhi como tema de meu projeto de pesquisa os processos de subjetivação
que se constituem e são produzidos no bojo das transformações pelas quais vem passando o
território de Nova Lima, além do interesse por desenhar e abordar as complexas tramas que
se desenrolam e se apresentam para estudo, fui impulsionada pelas conexões de toda uma
vida, com a cidade, sua natureza, sua história, seus percalços.
Minha mãe, novalimense, filha de imigrantes libaneses que vieram parar no
município, no início do século passado, atraídos pelo ouro e meu pai, filho de família italiana
que chegou a Belo Horizonte por ocasião da sua construção, tendo se enlaçado com a Terra
do Ouro ainda jovem como professor do Liceu e mais tarde advogado da Mineração Morro
Velho, me forneceram a primeira oportunidade de contato com Nova Lima e seus moradores.
Pude sentir desde a infância, nas visitas à cidade, as características arquitetônicas, o gemido
da mina, a diversidade étnica, o sofrimento e o bom humor de seu povo, a organização
fortemente segregadora do espaço e da vida na cidade.
Moradora de Nova Lima, onde trabalho desde 1978, atuando em frentes diversas,
desde o ambientalismo até a cultura popular, passando pelo movimento feminista até a
militância política, como profissional do campo-Psi fui multiconstituída por várias facetas e
posturas, formações e circunstâncias. Ao escolher esta temática, fui influenciada pelos
múltiplos fatores que dizem respeito à minha trajetória profissional, envolvida 30 anos no
trabalho de interface entre cultura, saúde, educação, em especial com crianças e adolescentes.
Trabalhando 25 anos no Centro Psicopedagógico da Prefeitura Municipal de Nova Lima,
tenho registrado a interligação das forças presentes na constituição do território e da
sociedade com os processos de produção da subjetividade, das maneiras de se viver e
também com os impasses, rupturas e adoecimentos do cidadão e da coletividade.
13
Como freqüentadora de matas, riachos e cachoeiras da região, militante ambientalista
por mais de uma década, senti na pele quando vi agradáveis trilhas nas montanhas, bicas,
cursos e quedas d‟água serem destruídos por tratores e máquinas, para abertura de estradas e
expansão da indústria ou das áreas loteadas nos grandes empreendimentos imobiliários. Isso
tem a ver pessoalmente comigo, com meus filhos, com meu estilo de vida e de muitos amigos.
Tivemos que abandonar, com tristeza e indignação, nossas caminhadas e incursões à natureza,
pois as cercas e a degradação estão em toda parte.
A vivência dos efeitos da chegada da grande metrópole e da aceleração de sensíveis
transformações nas formas de vida e nos processos de subjetivação, ocorridos nas duas
últimas décadas em Nova Lima, me moveu a esta pesquisa, que buscou aquilo que se
dissolve, o que permanece, o que se cria, o que se metamorfoseia, o que se disfarça e como
isso acontece. Caracteriza-se por ter sido concebida e realizada com grande mergulho e
enraizamento, ao mesmo tempo em que tive a oportunidade de praticar um movimento de
“estar nômade”, desenraizada, olhando todo o panorama com olhos de primeira vez.
Estando mergulhada na vivência dos acontecimentos da cidade, de sua história de
lutas, derivas, sucessos e capitulações, um simultâneo distanciamento crítico, proporcionado
pela maturidade e pela maior amplitude teórica, me traz a este propício momento de trabalhar
com a multiplicidade de fluxos e capturas presentes nas amplas e aceleradas transformações
que ocorrem na região, a partir da década de 90. Momento também de modificação das
formas de sentir e estar na cidade e de re-invenção de estratégias de combate e de possíveis
movimentos libertários.
Muitos entrevistados têm de mim uma determinada visão e registro de certos ângulos
de minha inscrição social, o que envolve e modela as respostas e opiniões, na interação
fecunda entre o campo temático e a história do pesquisador e dos pesquisados. Assim, as
respostas sofrem, em parte, a influência da interseção do meu espaço existencial com o do
entrevistado. Cada encontro com o universo pesquisado é também um encontro da cidade em
mim e suas derivações. A inseparabilidade entre conhecimento/vida está configurada no meu
próprio corpo. Essa implicação só enriquece o trabalho, desde que essas nuances sejam
consideradas e registradas, como aspectos presentes e que produzem efeitos, visíveis ou não.
“Do ponto de vista cartográfico, existe uma aliança móvel, uma dança onde o momento do
sujeito penetra o momento do objeto, acabando por formar instantes mútuos nos quais sujeito
e objeto somem e fazem surgir um testemunho do tempo em algum lugar.” (KIRST et al.,
2003, p.99).
14
1.2. Ordenações
O objetivo geral da pesquisa poderia ser dito como: - Traçar possíveis conexões entre
os macroprocessos sócio-político-histórico-espaciais que incidem sobre o território
novalimense, em transformação, e os processos de subjetivação inscritos no cotidiano dos
seus moradores.
Os objetivos específicos podem ser localizados num tripé, em que todos os elementos
têm importância para os rumos tomados, a metodologia escolhida e a busca teórica
empreendida:
I Desenhar genealógicamente a trajetória sócio-histórico-espacial do município de
Nova Lima, desde sua constituição como cidade-operária a suas novas configurações dentro
do processo de expansão da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
II Mapear e analisar linhas e aspectos das transformações contemporâneas, no nível
local e global, em especial as relativas ao processo de metropolização, presentes nas falas dos
novalimenses entrevistados.
III Compor entrelaces entre os aspectos pesquisados e as trajetórias singulares dos
entrevistados.
A pesquisa foi desenvolvida em torno de 3 eixos básicos, já traçados no projeto inicial
e que se enlaçaram durante todo o percurso:
I Mapeamento de informações e análises sobre aspectos sócio-históricos e
urbanístico-ambientais do território de Nova Lima, seus trajetos e transformações. Para isto
utilizei documentos, livros, entrevistas, mapas, sites, visitas, jornais, folhetos, fotografias,
consultas a órgãos oficiais, conversas em ambientes informais.
II Estudo de autores e abordagens que discutem os processos de subjetivação
produzidos na metropolização das periferias e as maneiras de se viver nas grandes cidades,
que possuam elementos críticos ao capitalismo globalizado e às questões colocadas pela
contemporaneidade.
III Pesquisa empírica com moradores de Nova Lima, ligados a vários cenários
existenciais e configurações do território-vida.
Esses eixos foram desenvolvidos simultaneamente, se interinfluenciando e abrindo
novas trilhas, desvios, atalhos. Como o mineiro no fundo da mina, apesar do traçado proposto,
as errâncias e derivas muitas vezes guiaram meu trabalho, duro trabalho de sondagem e
registro, de abertura de galerias e “horizontes”, numa temática cheia de pontos cegos,
“chocos”, pedreiras de resistência e possibilidades de se encontrar alguma gema em alguma
15
perfuração. Como o próprio novalimense, escondido, retraído: “[...] a gente realmente
continua encantado com o povo todo, realmente aquela coisa, entra numa gruta, assim,
descobre um cristal escondido. Ele não está brilhando pra fora, você entra lá, você vê ele lá, o
brilho. Pura mina, com certeza, e a gente vê.” (Rodrigo)
4
.
A dissertação está dividida em sete capítulos, sendo esta introdução o espaço para a
localização do tema, objetivos e desenvolvimento da pesquisa, além de uma pida
abordagem das implicações decorrentes do envolvimento do pesquisador com o campo. O
segundo capítulo trata dos percursos teórico-metodológicos trilhados no processo de trabalho
e o terceiro desenha genealogicamente a trajetória sócio-histórico-espacial do município de
Nova Lima, desde sua constituição como cidade-operária a suas novas configurações dentro
do processo de expansão da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Os capítulos 4 e 5 mapeiam, desenvolvem e analisam linhas e aspectos das
transformações contemporâneas, no nível local e mundial, que envolvem a produção de
subjetividade, e que emergiram, como percepções, sentimentos, opiniões, posturas nos
encontros com quem habita a cidade. O sexto capítulo relata a discussão entabulada no grupo
focal sobre toda a temática, enquanto o sétimo traz as considerações finais, abrindo
perspectivas de continuidade e desdobramentos. Há ainda dois anexos, um contendo um
glossário dos termos usados no universo dos trabalhadores do fundo da mina, outro com o
roteiro usado nas entrevistas individuais.
Citados no decorrer do texto, Irineu, Rodrigo, Rita, Alice, Fernando, Mirtes, Wânia,
Sara, Ronaldo, Valter, José, Alda, Lúcia e Maura, são personagens e interlocutores
incrustados no cotidiano da cidade que se (trans)forma. Pedras de brilho singular, compõem o
traçado dessa história do presente que aqui se delineia. História de lutas e superações,
perspectivas de resistência e reinvenção, que a própria pesquisa pode agenciar com sua
potência, gerada no fecundo encontro entre as práticas e o conhecimento.
4
Rodrigo foi um dos entrevistados durante a pesquisa.
16
2 PERCURSOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
“Muito cascalho de ser processado para chegar-se ao brilho de uma
pinta de ouro” (Bráulio Villela).
Uma tese panorâmica de início de milênio. Muita coisa por rever, muitas perspectivas
a considerar, resgates importantes, excessos a descartar. Várias portas de entrada. A
complexidade do tema e o volume de informações me obrigam a passar rapidamente por
alguns pontos que são importantes na montagem do grande painel de influências que
desembocam na situação problematizada. As dificuldades com o texto: para quem escrevemos
uma dissertação de mestrado? O ato de escrever para um público indefinido, passando pela
definição de uma banca, como requisito para obtenção de tulo, carrega a escrita daquele
desagradável toque de artificialidade que dificulta a inspiração e barra a escrita como deriva,
como militância. Para superar esse e outros impasses, a força do desejo de saber, contribuir
com meu ponto de mirada para as estratégias de combate e invenção de possíveis
virtualidades numa cidade que não se reconhece.
Busquei o olhar de várias disciplinas, especialmente a geografia, a história, a
sociologia e a antropologia, ou alguma coisa que esteja numa confluência de saberes,
acreditando que a psicologia não se restrinja a uma pretensa “interioridade” do sujeito, mas
amplie seu olhar pelos múltiplos de interinfluência que constituem a subjetividade “entendida
como produção, conectada aos diversos componentes e fluxos da vida atual. [...] Para ser
capaz de apreender o sujeito brasileiro contemporâneo, a psicologia precisa se manter
permeável a outras interlocuções fora do seu campo de saber/fazer”. (FERREIRA NETO,
2004a, p.192) Também procurei articular autores que se dedicaram às questões urbanas, da
vida nas grandes metrópoles e suas periferias e ao estudo das dimensões contemporâneas da
modernidade, com as produções teóricas, documentos e registros relativos às questões locais,
específicas ao território e à vida em Nova Lima.
Os autores da chamada Filosofia da Diferença têm forte presença em todo o percurso,
trazendo sempre perspectivas de uma compreensão crítica e ampliada, com a riqueza de suas
análises, e de rupturas e re-invenções de mundos possíveis, saindo do determinismo da
constatação do poder assujeitador dos sistemas de dominação para a construção de pequenos
universos libertários, que rompam as uniformidades e instaurem múltiplos devires-mundo,
dissonantes, heterogêneos, singulares.
17
Dois conceitos estratégicos, processos de subjetivação e território, permeiam todo o
trabalho. Amplos, controversos, norteadores, abrem possibilidades de compreensão do tema,
se articulando com os vários elementos que despontaram no universo estudado.
2.1 Dos processos de subjetivação e do território
O conceito de território, com sua amplitude de vertentes e interpelações, se ramifica
por todo trabalho, contendo desde a noção de território-zona que se refere ao solo, à
materialidade do espaço geográfico onde se desenrolam os acontecimentos até a concepção de
territórios existenciais, campo da subjetividade e das práticas de si, lugar dos afetos e dos
afetamentos. Procuro trabalhar com a idéia de território-vida que inclui o substrato material,
mutável, solo-natureza, limite e chão dos acontecimentos, objeto-mercadoria do mundo
capitalista, foco de concentração do poder e da dominação e além e aquém disto, território
como resultantes históricas, cristalizações de processos de luta e de articulações dos homens
com o entorno, construções coletivas no espaço-tempo. Também, e principalmente, território
ético-estético dos afetos, dos sentidos, das singularidades e das reinvenções criativas dos
espaços existenciais; condensação de universos abstratos, ideológicos, artísticos, oníricos, na
unidade mínima territorial: o corpo.
Alguns autores me ajudaram a pensar essa variedade de abordagens e como se
relacionam com meu campo de pesquisa. Haesbaert trabalha com as idéias de hibridismo
territorial e multiterritorialidade, em que co-existem vários territórios sobrepostos, desde o
nível etológico, passando pelo sociológico e geográfico, chegando ao nível psicológico e
subjetivo e ao filosófico.
Tendo como pano de fundo esta noção híbrida (e, portanto múltipla, nunca
indiferenciada) do espaço geográfico, o território pode ser concebido a partir de
múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-
políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural.
(HAESBAERT, 2006, p.79)
Trabalho também com a concepção de território em Milton Santos, como resultante de
um conjunto de sistemas naturais e artificiais, pessoas, instituições e empresas.
Consideremos o território como o conjunto de sistemas naturais mais os acréscimos
históricos materiais impostos pelo homem. Ele seria formado pelo conjunto
indissociável do substrato físico, natural ou artificial, e mais o seu uso, ou, em outras
palavras, a base técnica e mais as práticas sociais, isto é, uma combinação de técnica
e de política. (SANTOS, 2002, p.87)
18
Na sua análise que privilegia a dimensão econômica, o autor traz o importante e
controvertido conceito de “território usado”, considerando o caráter híbrido e historicamente
mutável do território: O território usado constitui-se como um todo complexo onde se tece
uma trama de relações complementares e conflitantes. Daí o vigor do conceito, convidando a
pensar processualmente as relações estabelecidas entre o lugar, a formação socioespacial e o
mundo.” (SANTOS apud HAESBAERT, 2006, p.89) Santos discute também as tensões entre
o caráter local do território, lugar da vizinhança, da produção, dos recursos e dos comandos
em escala técnica e seus aspectos ligados a grandes comandos globais, à distância, lugar da
política e das redes informacionais, compondo um território em que fixos e fluxos se
interrelacionam, se opõem, na luta pelo espaço. E lança seu olhar iluminador sobre a relação
espaço/ desigualdades sociais no território brasileiro:
O território é onde vivem, trabalham, sofrem e sonham todos os brasileiros. Ele é,
também, o repositório final de todas as ações e de todas as relações, o lugar
geográfico comum dos poucos que sempre lucram e dos muitos perdedores
renitentes, para quem o dinheiro globalizado aqui denominado “real” não é
um sonho, mas um pesadelo. (SANTOS, 2002, p.48)
Salientando a importância para a configuração das relações sociais e para a vida do
cidadão, das demarcações do território, de onde provêem a sua orientação e eficácia, o autor
nos diz que “não pacto social sem pacto territorial concomitante, mesmo que este não
venha explicitado.” E nos alerta para o fato de que nos tempos atuais, “essa explicitação se
torna cada vez mais necessária, para que todos saibamos para onde nos levam” (SANTOS,
2002, p.34)
Guattari e Rolnik também trazem a dimensão de território em seu sentido amplo, com
foco nas relações produtoras de subjetividade:
Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam
aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um
espaço vivido quanto a um sistema percebido, no seio do qual o sujeito se sente “em
casa”. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.323).
Para Deleuze e Guattari, uma imbricação território-agenciamento, em que todo
território se constitui por agenciamentos
5
e todo agenciamento é, em primeiro lugar,
5
Por agenciamentos poderíamos tomar arranjos, montagens, regimes particulares e heterogêneos, modeladores e
produtores de subjetividade e de práticas discursivas. “Para Deleuze & Guattari (1995), o agenciamento
corresponde a um “entre” coletivo, que convida as subjetividades a se conectarem, sem reduzi-las a sujeitos, a
individuações.” (ROMAGNOLI, 2007, p.10)
19
territorial. O território cria o agenciamento. [...] A primeira regra concreta dos
agenciamentos é descobrir a territorialidade que envolvem, pois sempre alguma: dentro de
sua lata de lixo ou sobre o banco, os personagens de Beckett criam para si um território.”
(DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.218).
O território de Nova Lima e de seus habitantes esteve por dois séculos modelado pela
mina, subterrânea, invisível à superfície, agenciadora de processos na vida cotidiana da cidade
e no poderio internacional das empresas exploradoras. O trabalho na mina e toda a atividade
da cidade, circulando em torno da retirada do ouro para enriquecimento de grupos
estrangeiros, constituíram territórios existenciais e formas de viver mistas de submissão,
irreverência e revolta, humilhação cotidiana e sentimento de corajosa dignidade. Relações de
amizade e solidariedade, amorosa cumplicidade de pessoas que vivenciam as mesmas
experiências de vida difícil, sacrificada, “pelejada”.
A mão cria um território na ferramenta de que faz uso, assim como a boca cria um
território ao ser acoplada ao seio. O conceito de território de Deleuze e Guattari
ganha essa amplitude porque ele diz respeito ao pensamento e ao desejo desejo
entendido sempre como uma força “maquínica”, ou seja, produtiva. (HAESBAERT,
2006, p.126)
Os territórios existenciais são aqui pensados como condensações ou encarnações de
universos de valor maquinicamente agenciados, potência de heterogênese, delimitações de um
“em casa‟ que consistência à multiplicidade; nos termos guattarianos, tomada de
contingência de múltiplos pontos caósmicos desterritorializados, que tomam forma e
permanecem, até o próximo movimento. Entre o eixo dos Fluxos e dos Territórios
Existenciais, uma categoria de necessitação, ou de tomada de contingência, de finitude, se
encarna nas coordenadas de espaço, de tempo e de diferentes matérias de expressão.”
(GUATTARI, 1992, p.87).
A concepção de Territórios Existenciais, a que Guattari se refere como “amarrações
territorializadas idiossincráticas” (1992, p.14) - ao que poderíamos acrescentar: cristalizações
próprias às singularidades e a suas relações com o mundo, organizadoras das aberturas à
virtualidade e às processualidades criativas - está intimamente ligada aos processos de
desterritorialização e reterritorialização:
O movimento da vida, sua processualidade, está em inventar territórios, em deixar-
se afetar pelo que vem de "fora", desterritorializar e reterritorializar novamente. Vale
lembrar que o território existencial é composto tanto pelo que está estabelecido
quanto pelo que pode vir a ser. "Um território está sempre em vias de
desterritorialização, ao menos potencial, em vias de passar a outros agenciamentos,
mesmo que o outro agenciamento opere por reterritorialização" (Deleuze & Guattari,
20
1997, p. 137). São as circunstâncias, os elementos que se estabelecem entre os
encontros que podem ou não trazer outras marcas, romper com sentidos conhecidos
e fundar novos territórios existenciais. (ROMAGNOLI, 2006)
A desterritorialização como momento de renovação das possibilidades de mudança e
re-invenção da vida e da sociedade, quando ocorre de maneira abrupta pode romper o tecido
que sustenta o território. Ao mesmo tempo em que possibilita as transformações, pode se
tornar excludente, quando há impedimentos para que as forças e os grupos desterritorializados
se reterritorializem segundo a errância do desejo e a heterogeneidade de fluxos, vencidos
pelas massificações homogeneizantes promovidas pelo poder e pensamento hegemônicos.
Você sabe que às vezes eu fico meio perdida na Nova Lima de hoje, eu acho que ela é uma
coisa que a gente que é da cidade, da sede, não percebe, a gente não consegue perceber, ela
escapou da mão da gente há muito tempo.” (Rita).
O mercado, em busca de novos e fiéis consumidores de todo tipo de mercadoria,
“constrói e destrói territórios de existência como a própria condição de seu funcionamento”
(ROLNIK, 2002, p.25), criando novas órbitas de produção e consumo e novas espacialidades
habitáveis por quem se territorializa sob os modelos identitários pré-figurados. Guattari e
Rolnik, dizendo da incessante montagem e desmontagem dos territórios, salientam a
necessidade de um jogo de cintura, equilíbrio precário nas cordas bambas do capitalismo
globalizado: “Temos de ser craques em matéria de montagem de territórios, montagem, se
possível, tão veloz e eficiente quanto o ritmo com que o mercado desfaz situações e faz
outras.” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.12) Essa montagem de territórios diz respeito aos
espaços de vida, no sentido material, do habitar o mundo e, no que mais nos interessa, aos
espaços existenciais, subjetivos, vulneráveis a modelagens nos seus processos de produção.
As forças sociais que administram o capitalismo “entenderam que a produção de
subjetividade talvez seja mais importante do que qualquer outro tipo de produção”
(GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.26) Essa produção de subjetividade através da conexão
direta entre a grande maquinaria capitalística de produção e controle social e as instâncias
psíquicas definidoras das maneiras de se viver e conceber o mundo, não está restrita ao
registro das ideologias, mas atua “no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de
perceber o mundo, de se articular como tecido urbano, com os processos maquínicos do
trabalho, com a ordem social suporte dessas forças produtivas”(GUATTARI e ROLNIK,
1986, p.26). Opera-se assim uma modelização no âmbito dos comportamentos, da
sensibilidade, da memória, das relações sociais e no âmbito da intimidade, da sexualidade, dos
fantasmas imaginários.
21
O conceito de processos de subjetivação vem então deslocar o foco de uma visão da
subjetividade como universal, a-histórica, ligada a uma interioridade apartada do mundo e das
maquinações espaço-temporais para uma concepção processual, contingente, plural,
polifônica, multideterminada, produzida na heterogeneidade dos fluxos. A subjetividade seria,
desta maneira, historicamente produzida, complexa, ao mesmo tempo única e múltipla, não
mais localizada no interior de cada indivíduo, mas sim no âmbito das multidimensões
coletivas que compõem o campo do sujeito. Cada época, cada configuração histórica, cada
cena social, cada composição espacial produz seus próprios processos de subjetivação, em
permanente mudança e interação com outras cenas e instâncias de agenciamento.
Um processo de subjetivação traduz, portanto, o modo singular pelo qual se produz
a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação de forças. Podemos dizer que
cada formação histórica irá dobrar diferentemente a composição de forças que a
atravessam dando-lhe um sentido particular. (SILVA, 2003, p. 182)
Descola-se, assim, da concepção moderna de sujeito individual, unificado, isolado dos
processos coletivos que o constituem, entidade desencarnada, ideal, totalizante.
Seria conveniente dissociar radicalmente os conceitos de indivíduo e de
subjetividade. [...] A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização
no indivíduo. Uma coisa é a individualização do corpo. Outra é a multiplicidade dos
agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é fabricada e modelada no registro
do social. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.31).
O sujeito seria, então, constituído por fluxos múltiplos, em que interagem as dimensões
sócio-político-econômicas, as dimensões bio-psíquicas e as inter, intra e infra-pessoais, em
configurações em contínua mutação. Esses componentes, como em todo jogo de forças, estão
em conexão, se misturando, se alterando, se complementando, se anulando, se ampliando.
O indivíduo pode ser visto, assim, em posição de “terminal” no que diz respeito aos
processos maquínicos agenciadores da subjetividade, terminal processador de novos
agenciamentos. “Assim, a interioridade se instaura no cruzamento de múltiplos componentes
relativamente autônomos uns em relação aos outros e, se for o caso, francamente
discordantes.” (GUATTARI, 1995, p.17). A interioridade do sujeito, cultivada por séculos e
civilizações, seria então um dobramento da exterioridade, mar de fluxos, campo de vetores e
intensidades, fragmentos, plissês, formigueiros. Essa dobra, forração, invaginação, deixa
surgir escavações agenciadas do si-mesmo, constrói relevos, mundos dentro de mundos,
conexões, estabilizações, num movimento em que “o lado de dentro, o subjetivo, é, ele
próprio, não mais que um momento, ou uma série de momentos, por meio do qual uma
„profundidade‟ foi constituída no ser humano.” (ROSE, 2001, p.179).
22
Michel Foucault rompe com a idéia de um eu profundo individual, imutável que
conheceria o mundo e propõe uma ética da existência, descolada dos modelos identitários
hegemônicos:
[...] encontramos na obra de Foucault em sua problematização da subjetividade
contemporânea, um projeto ético-político de desmontagem da forma padrão da
individualidade identitária moderna em favor da invenção de outros modos de
subjetivação, novas formas de experiência de si.[...] Foucault afirmava não a busca
interior de um verdadeiro eu, mas o movimento de diferenciar-se de si mesmo,
modificar-se continuamente num processo de resistência contra as subjetivações
modeladas. (FERREIRA NETO, 2004a, p.49-51).
Provavelmente inspirada em Guattari, que invoca o surgimento de modalidades de
subjetivação que engendrem territórios existenciais singulares, únicos, potentes, capazes de
“receber cara-a-cara o encontro com a finitude, sob a forma do desejo, da dor, da morte...”
(GUATTARI, 1995, p.55), Rolnik (2002) propõe um modo antropofágico de subjetivação,
brasileiro, irreverente, inventivo que tem como características: exposição à alteridade,
restauradora da energia vital; sintonia com a vibratibilidade do corpo conectado com o desejo;
construção de um “em casa” a partir de conexões do desejo nômade; singularidade impessoal,
voltada para o campo social e por fim, ou por princípio, gênese por aliança e por contágio
rizomático
6
. Uma subjetividade que tem por marca a alegria, “prova dos nove”, a ruptura com
todas as colonizações do corpo e da alma e a devoração de tudo que passar pelo crivo ético-
estético.
2.2 Posturas e métodos
De que forma o esquizo faz história? Tornando-a imediatamente
geografia”. (Peter Pál Pelbart).
Adotei, como forma de trabalho, uma postura que poderia ser denominada genealogia
cartográfica ou cartografia genealógica, numa tentativa de unir aspectos que são
fundamentais para se abordar as questões propostas: as abordagens espaciais, territoriais,
geográficas, ambientais e os processos históricos, as trajetórias no tempo, construindo
atualizações historicamente mapeadas.
6
Para Deleuze & Guattari, “[...]o rizoma é um sistema a-centrado, não hierárquico e não significante [...]
diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e
cada um dos seus traços não remete necessariamente a traços da mesma natureza [...] Ele não tem começo nem
fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda.” (DELEUZE & GUATTARI, 1995-1, p.32).
23
É importante entender as configurações do momento como interrelação entre
conteúdos históricos rizomaticamente atualizados e disposições geográficas que pressupõem
enraizamentos e cristalizações em alguns pontos. “[...] ali onde a linha do tempo se quebra,
projetando-se sobre um mapa de estados intensivos” (PELBART, 2000, p.164). Daí a
elaboração do conceito-método-estratégia, em que utilizo com a mesma importância e força, a
genealogia em Foucault, relacionada ao poder, e a cartografia, em Deleuze e Guattari, relativa
ao desejo.
A genealogia em Foucault se coloca como tática em que os saberes da erudição se
unem aos saberes locais, desqualificados, descontínuos. “Chamemos provisoriamente
genealogia o acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a
constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais.”
(FOUCAULT, 1979, p. 171). Diferente de uma escavação arqueológica que recupera
construtos do passado em sua rígida inteireza histórica, que pouca interação podem ter com o
momento presente, a genealogia traz a história como atualização, como ela se revela, se
desdobra e se dispersa no presente e como nossa própria visão da atualidade se forja num
processo de múltiplas influências.
Esses vários saberes possibilitariam a ruptura com a verdade única, as totalizações, as
afiliações ditas científicas, construindo outros saberes e fazeres históricos a partir de
descontinuidades e particularidades. A genealogia seria então “um empreendimento para
libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e luta contra a
coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico.” (FOUCAULT, 1979, p. 172).
Esses saberes menores, não estariam ligados ao senso comum, mas a um saber
diferenciado, regional, incapaz de unanimidade e não estariam submetidos a ordenações
hierárquicas que lhes dariam coerência com o discurso científico vigente, tido como
verdadeiro. “[...] são os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico
que a genealogia deve combater.” (FOUCAULT, 1979, p.171).
Interessam-me os conceitos de Proveniência e Emergência, trabalhados por Foucault,
como dois momentos de um processo de constituição genealógica, assim comentados por
Robinson (2003, p.310): “[...] a proveniência, ao contrário da origem, é o campo de força-
cenário, onde se produz o acontecimento, é a emergência como acontecimento, o atual.” A
multiplicidade das proveniências desloca o foco da pesquisa de um encadeamento lógico e
“completo” dos fatos, próprio das racionalizações reducionistas a serviço de uma gica do
poder instituído, para a noção de percurso genealógico, traçado das diversidades históricas
presentificadas “[...] a tarefa é buscar as múltiplas proveniências, fragmentando e expondo sua
24
heterogeneidade, ou melhor, como ela processou a atualidade histórica no contexto da
dispersão e do acaso” (ROBINSON, 2003, p.309). Não um resgate histórico de conteúdos
jogados no esquecimento, aguardando para serem retomados e vivificados, nem uma verdade
a ser descoberta, mas uma proliferação de acontecimentos, que se dispõem, se contradizem, se
atropelam, se encorpam.
Seguir o filão complexo da proveniência é[...] manter o que se passou na dispersão
que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios ou ao contrário as
inversões completas os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram
nascimento ao que existe e tem valor para nós [...] (FOUCAULT, 1979, p.21).
Assim acontece o encontro do percurso do pesquisador com um certo percurso
histórico, teórico, metodológico em um determinado território, territórios de vida, território-
corpo testemunha e detonador de mundos. “A genealogia como análise das proveniências está
portanto no ponto de articulação do corpo com a história.” (FOUCAULT, 1979, p.22).
Podemos, assim, apontar conexões dessa articulação genealógica com a postura cartográfica:
“Dentro do oceano da produção de conhecimento, cartografar é desenhar, tramar
movimentações em acoplamentos entre mar e navegador, compondo multiplicidades e
diferenciações.” (KIRST et al., 2003, p.91).
A genealogia, como concebida por Foucault, a partir de Nietzsche, não se apóia em
bases identitárias originárias, nem na demarcação seqüencial da linha do tempo.
A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de
nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá-la; ela não pretende
demarcar o território único de onde nós viemos [...] ela pretende fazer aparecer todas
as descontinuidades que nos atravessam. (FOUCAULT, 1979, p. 35).
Inspirados em Deleuze, chegamos, então, à multiplicidade de singulares
particularidades, corpo sem órgãos
7
, que rompe com uma temporalidade normativa e se dirige
a uma outra topologia temporal. “Não se busca a origem, mas os deslocamentos, as
redistribuições de impasses, de limiares, de devires. Não afundamento arqueológico na
memória, mas deslizamento cartográfico na superfície: criação de caminhos sem memória.”
(PELBART, 2000, p.172) Os processos proveniência/emergência podem ser relacionados às
7
Baremblitt se refere ao Corpo sem Órgãos, em Deleuze e Guattari, como recurso para tratar e pensar o Caos em
relação ao Cosmos, em que o Caos é pensado em sua positividade, não como ausência de ordem. Corpo
potencial “incriado”, “improdutivo”, apartado das organicidades, sustentáculo de toda produção desejante, está
percorrido por fluxos, “que formam áreas energéticas móveis caracterizadas por graus de intensidade”.
(BAREMBLITT, 1998, p.99).
25
linhas de análise na cartografia, se vemos a genealogia como pesquisa-dispositivo
8
, que
abordaria a trama de linhas que despontam nos cenários estudados. “Desemaranhar as linhas
de um dispositivo é, em cada caso, levantar um mapa, cartografar, percorrer terras
desconhecidas, e isso é o que Foucault chama o „trabalho no terreno‟.” (DELEUZE e
PARRET apud ROBINSON, 2003, p.310).
A postura cartográfica se mostrou a indicada neste trabalho, dado o grau de
envolvimento do pesquisador com o campo e o tema, sendo mesmo necessária uma inversão,
que poderíamos chamar de “outramento”, também característico da perspectiva cartográfica:
“o objeto pode instaurar no sujeito, um estado de outramento, que consiste em tornar-se
estrangeiro de si mesmo, possibilitando-lhe experimentar-se em novos espaços e modos de
existência.” (KIRST et. al., 2003, p.96). Um problema surge na escolha do método: a
cartografia, propondo a unificação sujeito/objeto e o envolvimento pesquisador/pesquisados
poderia exagerar meu mergulho e implicação, impossibilitando novos emergentes,
configurações e enlaces? O meu movimento, ao contrário da maioria das pesquisas com esta
orientação, foi de buscar criar um “de fora” que me possibilitasse novas visões, menos
reprodutoras. Se habitualmente a quebra das delimitações pesquisador/pesquisados constrói
um “entre”, rico e fecundo, no meu caso, em que o compartilhamento já é dado, uma tentativa
de afastamento produziu a renovação da capacidade de conexão com meu objeto, que se
apresentou sob novas formas ao meu olhar rotineiro “[...] a cartografia deve apresentar-se de
alguma forma distante de seu autor, pois a pesquisa deve ter estabilidade sozinha. Assim a
cartografia é uma semelhança produzida e não “a semelhança”, é uma extrema continuidade,
um enlaçamento. (KIRST et. al., 2003, p.91). Nessa pesquisa o autor e seus vínculos deram
espaço para que as situações muito marcadas por contatos padronizados, rígidos e esvaziados
sejam bem analisadas e ao mesmo tempo se permita que encontros inusitados aconteçam.
também se encontram a abordagem cartográfica e a genealógica, que “a articulação da
abordagem genealógica com um problema preciso do nosso presente [...] exige, sim, um
árduo trabalho de dimensão ética que desaloja o sujeito de sua identidade, e supostas certezas,
lançando-o ao encontro da diferença, do surpreendente.” (FERREIRA NETO, 2004a, p. 71).
A opção por uma postura cartográfica, possibilitou articular vários cenários, fluxos,
atores, teorizações, informações, discursos, lembranças, imagens, colocados em conexão,
8
O dispositivo, em Foucault, pode ser definido como uma formação, em determinado momento histórico, com
função estratégica, englobando, em redes que se rearticulam, “discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas”, o dito e o não dito. (FOUCAULT, 1979, p.244).
26
apresentados em montagens e desmontagens que se misturam. A complexidade e extensão do
tema indicam que seja feita uma abordagem transversal, que consiga mapear múltiplos e
variados feixes das forças presentes no campo e suas relações, num determinado momento,
para o qual convergem a história e a disposição no espaço.
A cartografia se apresenta como valiosa ferramenta de investigação exatamente para
abarcar a complexidade, zona de indeterminação que a acompanha, colocando
problemas, investigando o coletivo de forças em cada situação, esforçando-se para
não se curvar aos dogmas reducionistas. (ROMAGNOLI, 2009).
A construção rizomática da pesquisa permite uma liberdade de movimentos e de
análises, que exigem rigor e trabalho para que se mantenha o tom vivo e pulsante. A
cartografia possibilitando uma leitura não hierárquica do mundo, o desdobramento e a
circulação dos dados, ações, temas, conceitos, é tomada como “método de construção do
presente, experimentação das misturas que a vida é [...] procedimento das emergências, do
acompanhamento dos pontos de insurgência dos devires no estrato histórico.” (BENEVIDES,
2003, orelha).
As entrevistas, as fotografias tiradas no meio da estrada, as visitas às fontes oficiais, as
buscas na Internet, nos noticiários de jornal, a pesquisa bibliográfica, pontos de insurgência
no tempo, encontros, trajetos que ajudam a compor a montagem de cenas e cenários, links que
se abrem quando demandados pela análise.
Na pesquisa cartográfica, o tempo pulsa, pois se evidenciam os modos pelos quais
os sujeitos percebem, experimentam e narram a passagem do tempo em suas
próprias vidas e naquilo que estudam. [...] a cartografia propõe-se a capturar no
tempo o instante do encontro dos movimentos do pesquisador com os movimentos
do território de pesquisa. (KIRST et. al., 2003, p.99/100).
2.3 Recursos
Foram utilizados como recursos de pesquisa qualitativa as entrevistas individuais
semi-estruturadas e o grupo focal, além do registro fotográfico de elementos espaciais
significativos. As observações, feitas a partir de um lugar de pertencimento ao campo
pesquisado, possuem aspectos singulares. Sendo um trabalho que vem embebido nas
características etnográficas de investigação e de análise, tentei, como pesquisadora, criar
condições de identificar e compreender os processos sócio-ambientais em que minha vida
cotidiana se desenrola, em um movimento que poderia ser chamado, como contraponto, de
participação observante”. A imersão, nesse caso, não acontece no “campo do outro” (etnoe:
27
termo grego para designar os outros povos, não-gregos), mas no próprio campo de vida e
trabalho do pesquisador, que, conectado com o campo teórico, deve emergir para se tornar um
observador.
Também foram realizados contatos com equipamentos institucionais que pudessem
fornecer dados e estatísticas que promovessem maior visibilidade das questões da cidade:
Projeto Vida Nova de Transferência de Renda, Secretaria de Habitação de Nova Lima, Setor
de Cartografia da Secretaria de Planejamento de Nova Lima, Observatório de Políticas
Urbanas da PUC-Minas.
As fontes bibliográficas, documentais, jornalísticas, de dias eletrônicas, tiveram
relevante importância, assim como conversas informais e observações aleatórias em
deambulações pelos caminhos e descaminhos da cidade.
Essa variedade dos recursos estratégicos surgiu do contato com o objeto/campo de
trabalho, através de sugestões de algum entrevistado ou na leitura de alguma publicação. Os
entrevistados, citados no decorrer do texto, receberam nomes fictícios e foram abordados
através de entrevistas individuais, na primeira fase e do grupo focal, na segunda.
Sete entrevistas individuais foram realizadas no período de Agosto de 2008 a Janeiro
de 2009, na casa dos entrevistados ou no seu local de trabalho, algumas na minha casa, com a
duração média de 1 hora e meia, cada contato. A seleção dos nomes para as entrevistas se deu
dentre uma lista inicial de 40 pessoas, com idades variadas, ligadas a atividades, locais de
moradia e de origem diversas, pertencentes a diferentes camadas sociais e que possuem
aspectos significativos com relação à vida e história da cidade, importantes para a construção
da pesquisa. Cada pessoa compõe, assim, uma multiplicidade de trajetos, montagens,
inscrições, afetos, que por sua vez se articulam com os vários cenários da vida na cidade,
compondo certos territórios existenciais reveladores, na beleza de sua diversidade. São eles:
Fernando, 39 anos, cozinheiro, morador do bairro José de Almeida, desde o
nascimento;
Alice, 32 anos, psicóloga, belorizontina, mora em Nova Lima 14 anos, no bairro
Campo do Pires;
Irineu, 64 anos, funcionário público aposentado, morador do bairro Vila Passos,
nascido no Mingú;
Wânia, 65 anos, pedagoga aposentada, nascida no bairro Retiro, mora no BNH;
Rodrigo, 49 anos, fiscal da receita, veio de Pedro Leopoldo para Nova Lima 15
anos, morador do Condomínio Jardim de Petrópolis, trabalha em Belo Horizonte;
28
Rita, 59 anos, jornalista, nascida em Nova Lima, na Vila Operária, mora em Belo
Horizonte e trabalha em Nova Lima no Areião do Matadouro;
Mirtes, 44 anos, professora de artes cênicas, veio de Belo Horizonte para Nova Lima
há 6 anos, morando e trabalhando no bairro José de Almeida.
Esses entrevistados foram selecionados por possuírem marcantes trajetórias de vida e
inscrições sociais singulares dentro da multiplicidade de cenários que a cidade nos apresenta,
numa das diversas composições possíveis dentro da amplitude de conteúdos e de formas de
expressão presentes no território novalimense.
O objetivo dessas primeiras entrevistas, que, a princípio, chamei de preliminares, foi
mapear percepções, sentimentos, opiniões, dúvidas, sugestões sobre as transformações
acontecidas, em vários âmbitos, na cidade de Nova Lima, e como se vivencia tudo isso. A
intenção inicial seria levantar idéias e um traçado básico para a montagem do grupo focal,
mas o material coletado se mostrou tão rico que passou a constituir importante fonte de relatos
substanciais sobre o viver em Nova Lima. Durante as entrevistas, pesquisador e pesquisados,
tivemos oportunidade de organizar as idéias, os afetos e as percepções sobre a vida na cidade,
os traços que a história vai construindo, os sentidos que a configuração espacial revela e como
tudo isto se entrelaça com cada trajetória de vida. Desse ponto de vista o roteiro apresentado
(ver o anexo) se mostrou didático, flexível. Cada entrevista alterou em algum aspecto o
roteiro, acrescentando e eliminando itens e alterando a forma de abordagem.
O grupo focal foi montado com 7 componentes (um dos 8 convidados não
compareceu) escolhidos entre cidadãos comuns do município, com diversas inserções sociais,
idades, locais de moradia e de trabalho: Sara, José, Lúcia, Maura, Alda, Ronaldo e Valter
(maiores descrições no capítulo 6).
O grupo focal, estratégia metodológica de pesquisa qualitativa, foi criado por Robert
Merton a partir do artigo The focused interview e desenvolvido por ele, Fisk e Kendall na
década de 50. Algumas definições situam o grupo focal como entrevista coletiva ou em grupo,
mas o aspecto interativo e de produção de sinergia entre os participantes o coloca ao nível dos
grupos terapêuticos ou de intervenção como é o caso dos “grupos operativos‟, também
surgidos na década de 50, na Argentina.
O Grupo Focal que constitui o objeto do presente estudo, se assemelha ao “grupo
operativo” de Pichon-Riviére e Bleger, tanto na sua estrutura quanto na sua
operacionalização. Ele tem indicações terapêuticas, educativas e para pesquisa. È
recomendado para pesquisa de campo, já que, em pouco tempo e com baixo custo,
29
permite uma diversificação e um aprofundamento dos conteúdos relacionados ao
tema de interesse. (ASCHIDAMINI e SAUPE, 2004, p.9).
Os grupos focais têm por objetivo gerar uma gama diversificada de respostas e
formular hipóteses, não necessariamente chegar a um discurso conclusivo sobre as questões
pesquisadas. Isso os torna preciosos instrumentos de trabalho para quem quer explorar as
múltiplas facetas dos acontecimentos, a partir da palavra de quem entende do assunto: a
população envolvida, especialista em relação à própria vida, integrando uma nova e
significativa forma de fazer ciência, frente à nova racionalidade científica que vislumbra
possibilidades em detrimento das certezas.” (SUANNO, 2002).
Como recomenda a técnica, busquei agrupar pessoas que tenham restrito contato entre
si e com o pesquisador, coisa difícil numa cidade como Nova Lima. A idéia é procurar
estabelecer uma conversa como a que entabulamos com companheiros desconhecidos numa
viagem, com a sinceridade que o anonimato permite. As características, que determinam a
formação dos grupos focais, variam de acordo com o objeto em questão, devendo haver um
balanço entre uniformidade e diversidade. No caso, um conceito interessante é o de ambientes
relevantes para a pesquisa, definidos a partir de varáveis como gênero, idade, categoria social
e configuração geográfica, dentre outras.
Como técnica participativa, dinâmica, ativa, motivadora, de adesão voluntária, o grupo
focal assegura e privilegia o discurso e as percepções dos atores sociais da realidade estudada.
Gaskell, no cap. 3 do seu manual de pesquisa escrito com Bauer, falando sobre entrevistas
individuais e grupais, suas semelhanças e distinções, frisa a importância da escolha da
modalidade adequada a cada situação de pesquisa e distingue os processos que ocorrem
dentro dos grupos que não são vistos na interação diática da entrevista em profundidade: “Em
sua essência, a pesquisa mostra que o grupo, distinto de determinado mero de pessoas em
um mesmo local, é mais do que a soma das partes: ele se torna uma entidade em si mesma”.
Diz ainda que, nos grupos, as pessoas estão mais propensas a acolher novas idéias, explorar
suas implicações, assumir riscos, polarizar opiniões e ao mesmo tempo assumir um “destino
comum”. (BAUER e GASKELL, 2002, p.75).
Dentre outros, podemos elencar como objetivos dos grupos focais:
Entender processos de construção da realidade de um grupo social mediante coleta e
interpretação em profundidade, para detectar comportamentos sociais e práticas
cotidianas.
Estimular a fala e a reação dos participantes ao que os outros dizem.
30
Maximizar a oportunidade de explorar o espectro de opiniões (variedade e
fundamentos) e de compreender as diferentes posições tomadas pelos membros do
meio social.
A essas poderíamos acrescentar a oportunidade de construção da palavra coletiva, de
novos sentidos e de possíveis ações transformadoras.
A análise dos dados das entrevistas individuais e coletivas foi montada a partir de
alguns referenciais, que forneceram importantes elementos para o estudo. Desses utilizei
algumas elaborações e certos procedimentos, modificados para a situação específica dessa
pesquisa, misturados para compor uma corpo de análise próprio:
Análise temática do conteúdo, considerando, não o texto obtido com as transcrições
dos encontros, mas as fotografias, os documentos e textos provenientes de várias mídias,
buscando distinguir unidades significativas para observação e análise, já delineadas no roteiro
de entrevistas. Sem a rigidez das categorizações usuais, vários aspectos e linhas foram
identificados e propiciaram uma classificação bastante esclarecedora, sem comprometer a
complexidade inerente ao tema. Essas linhas se interpenetram e compõem uma trama que
pode ser lida em várias direções e sentidos.
Análise microetnográfica:
Para Geertz, praticar etnografia não é somente estabelecer relações, selecionar
informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um
diário, o que o define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco
elaborado para uma „descrição densa‟”. (MATTOS, 2002, p.3).
A análise microetnográfica pretende relatar, em detalhes, situações restritas,
momentos, encontros, de uma parcela da população, conectada com as questões do amplo
campo de estudo da etnografia. Com perspectiva holística, pequenos fatos sociais,
acontecimentos de curto espectro se revelam grandes enunciadores dos macro-processos em
que os fluxos do discurso social se inscrevem. A etnografia em geral serve de background
para a microetnografia.” (MATTOS, 2001, p.5).
Abordagem cartográfica dos dados: Como principal elemento de análise, traz a
proposta de se mapear territórios de diferentes inserções, capturar forças de diferentes
intensidades tais como os dados sócio-espaciais, traçados urbanísticos, percurso histórico,
teorizações e trajetórias pessoais, que dêem conta das múltiplas (trans)formações em processo
em Nova Lima, compondo um desenho do presente, com ramificações de toda ordem.
31
A cartografia registra as paisagens que se conformam segundo sua afetação pela
natureza, pelo desenho do tempo, pela vida que ali passa. [...] São pelos desvios que
se começa a jornada, pelas linhas mal/bem traçadas do desejo que se realiza a
cartografia, potencializando vidas em territórios complexos e heterogêneos de forças
que se imiscuem umas às outras num constante jogo de poder e afeto, característicos
de qualquer grupo composto por sujeitos. (MAIRESSE, 2003, p.260/271).
Esses procedimentos contribuíram para a organização e explicitação dos elementos
contidos nos discursos e nas relações estabelecidas nos encontros. Os referenciais da
Pesquisa-Intervenção também foram contemplados já que algo se mobilizou a partir dos
contatos nas entrevistas e, principalmente, no Grupo Focal. Idéias, atitudes e articulações para
uma ação no campo foram manifestadas pelos entrevistados, me convocando à reflexão sobre
meu papel e meu desejo frente a tais propostas.
2.4 O traçado e o texto
A pesquisa foi se desenrolando de forma rizomática, em que aspectos de ordem
diversa se apresentam e compõem novas aberturas para a compreensão do tema, se
conectando, se interpenetrando e construindo configurações em movimento.
Tudo isto se expressa no texto através de montagens de itens que, não fugindo de uma
certa linearidade, apresentam também possibilidades de leitura por conexão e por focos de
interesse. Assim, pequenos ensaios se justapõem, com vida própria, mas articulados ao
conjunto do texto, buscando uma linguagem agradável para veicular um tema denso e amplo.
Assim alguns aspectos aparecem em vários pontos do texto, alinhavando uma idéia, outros se
apresentam rapidamente, introduzindo questões que serão trabalhadas depois em
profundidade.
Esses recortes cartográficos do tema pretendem expressar a multiplicidade dos
agenciamentos presentes no cenário novalimense, montando um mapa-mosaico dos
acontecimentos que se interconectam, se afetam, se recompõem.
Para facilitar a compreensão, foi montado um glossário com termos peculiares à vida
em Nova Lima, apresentado no apêndice A.
As falas dos 14 entrevistados, individual ou coletivamente, foram profusamente
usadas, por se entender que o coração da pesquisa se expressa, trazendo a atualização de
todas as questões trabalhadas nesta dissertação, sob a ótica de quem as vivencia. São histórias
de vida, trajetórias articuladas pela história local, pelas questões espaço-ambientais, por
32
formas particulares de viver na região metropolitana. Buscou-se preservar o ritmo e o tom
espontâneo do que foi dito, às vezes mantendo algumas incorreções ortográficas.
A experiência do grupo focal, que discutiu os aspectos estudados, se apresenta aqui na
forma de trechos de diálogos, pinçados do conjunto, e que desenham, com bom humor e
esperançosa perspectiva de futuro, uma possível Nova Lima, objeto da admiração de seus
moradores, paraíso a ser acessado por todos que nela habitam e que construíram, com suor
e dedicação, não a riqueza, fruto do trabalho de muitos, mas rotas singulares de vida e
montagens coletivas enunciadoras de devires.
33
3 (TRANS)FORMAÇÕES EM NOVA LIMA: DE CIDADE OPERÁRIA A PARAÍSO
DAS ELITES
“Toda mina é uma linha de fuga.” (Deleuze e Guattari, “Mil Platôs”).
Os países da América do Sul foram por séculos explorados e usurpados num processo
alongado de colonização que, no caso do Brasil, praticamente extinguiu a população nativa e
retalhou e dividiu o território nacional em nome de interesses europeus.
A região do estado de Minas Gerais, marcada pela presença dos metais preciosos,
recebeu, desde o século XVI, a visita de gananciosos caçadores de riquezas de várias partes
do país e do mundo, que abriram picadas em suas matas, poluíram os rios, esburacaram o seu
solo.
O processo de extração mineral, desde o garimpeiro solitário, às megatecnologias
multinacionais, deixou rastros de destruição da natureza e desconfiguração do locus e modus
vivendis de vastas regiões. Grande parte do estado de Minas teve suas cidades e seu estilo de
vida moldados e produzidos pela presença da colonização e da exploração das riquezas
minerais. Dentre as cidades mineradas, Nova Lima possui facetas inusitadas, se constituindo
em rico campo de pesquisa pela multiplicidade de influências e por marcas únicas, no âmbito
da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Como grande diferencial, temos a colonização
inglesa, que, por mais de um século, imprimiu em seu território e na sua população
características sui generis para uma cidade da Grande BH, como o marcado perfil do início do
século XX na arquitetura de seus bairros operários e das mansões coloniais de seus dirigentes,
a manutenção de maior parte de seu território distante da chamada “expansão da pobreza” ou
do processo de industrialização do município de Belo Horizonte e, destacadamente, pela
inscrição no espaço urbano, de um sistema feudal de segregação e de perpetuação das
desigualdades.
Nova Lima se encontra face a uma encruzilhada dramática: ou aproveita os
elementos positivos de fortes fatores exógenos em benefício de sua população e do
desenvolvimento local, ou assistirá a uma ocupação desregrada que porá em risco
sua paisagem, seus valores tradicionais, sua água, pondo a perder as oportunidades
novas que são igualmente previsíveis. (NOVA LIMA, 2005).
A região ligada ao município de Nova Lima, setor sul da região metropolitana de Belo
Horizonte, sente o impacto do acelerado processo de transformação pelo qual vem passando,
na última década, sob diversos pontos de vista. A alteração na estrutura econômica e na
34
modalidade básica de produção que, do secular extrativismo do ouro e do ferro, através das
suas minas subterrâneas e de superfície, passa a ser focalizada no setor de serviços, na
especulação imobiliária e no parcelamento da terra e da natureza para a criação de
condomínios para as classes médias e altas trouxe várias conseqüências, dentre elas, a
mudança nos ofícios, hábitos e cultura da população, o subemprego, o agravamento do
processo de privatização e poluição de recursos naturais, assim como o de industrialização e
urbanização sem planejamento.
A diminuição da importância da atividade mineradora no município, tanto no que diz
respeito à arrecadação, quanto à influência modeladora das subjetividades e da sociedade,
coincide com o desejo das novas gerações de buscar outros espaços de trabalho e de vida, que
não circulem em torno da mina, que tantas marcas deixou nas famílias operárias.
[...] o trabalhador era trabalhador da mina, vinha de fora para trabalhar na mina, mas
tem um negócio em Nova Lima que aquele que foi, que trabalhou na mina, ele fez
de tudo para os filhos dele não trabalhar. Então os filhos de Nova Lima mesmo, eles
estão fora, eles foram fazer SENAI, eles foram fazer escola técnica, ou foram fazer
faculdade, foram fazer alguma coisa para.., foram trabalhar fora, foram trabalhar
em Contagem, em Betim, Cidade Industrial, em Acesita, Ipatinga, Volta Redonda, o
pessoal saiu daqui e foi para estes lugares. (Irineu).
Apesar da proximidade da capital (12 km em linha reta), a cidade se manteve com
características diferenciais em relação aos outros municípios do entorno de Belo Horizonte. A
absurda porcentagem de terras em mãos das mineradoras, chegando a mais de 90%, no
período de maior concentração, manteve seu meio ambiente preservado enquanto foi do
interesse das empresas. Onde a extração de ferro foi desenvolvida, os estragos se mostraram
bem visíveis, com significativas fraturas do relevo e do horizonte, como na Serra do Curral e
outras devastações a céu aberto, como é o caso da região da Mutuca e Macacos. A mineração
de ouro provocou degradações ocultas, subterrâneas, perfurando, a mais de 2500 metros, uma
outra cidade, dinamitada, incrustada no coração da terra com suas galerias, túneis, cavidades.
Outras feridas, também pouco visíveis, se configuraram na exploração do homem e no
processo colonizador de fundas marcas sociais, expressos pela ausência de cidadania, num
território cujo destino é definido, na sua quase totalidade, pelas grandes empresas. Assim, a
exuberante natureza da região, com suas cachoeiras, nascentes, campos e matas nunca pôde
ser usufruída adequadamente pela sua população, pois nunca foram bens públicos. Do mesmo
modo, o extenso território urbano, controlado pelas mineradoras, que mantiveram a sua quase
totalidade como território-estoque para futuras utilizações e, destacadamente, a riqueza
35
produzida por milhares de mãos operárias, que engordou cofres internacionais, deixando
profundas feridas no relevo e nas subjetividades.
3.1 História
Conta a lenda, que existia, nas margens do Rio das Velhas, uma terra mítica, Ita
Beraba Uçu, Grande Montanha Brilhante, que ocultava imensas jazidas de ouro, prata e
pedras preciosas e que os bandeirantes, já no século XVII, perseguiam, buscando as terras de
Sabarabuçu. O sonhado Eldorado se materializou no chamado Quadrilátero Ferrífero,
principalmente no Vale do Rio das Velhas, onde as riquezas foram encontradas, disputadas,
saqueadas, exploradas, enriquecendo nações estrangeiras, pouco acrescentando às riquezas
nacionais ou locais. Nova Lima, que foi chamada Congonhas das Minas de Ouro e
Congonhas de Sabará, realizou para o capital estrangeiro, o sonho do enriquecimento, com
sua mão de obra escravizada ou mal remunerada, e com as benesses de governos pouco
interessados em soberania ou zelo pelo patrimônio público.
O nome Congonhas (do tema cong, em tupi-guarani, engolido, deglutido
9
) revelava
a outra característica da terra, sempre relegada ao segundo plano, pela costumeira falta de
visão das elites dirigentes na busca avassaladora pelo lucro e pelo “progresso”. As congonhas
abarcavam várias espécies de plantas medicinais, de agradável sabor, que antes do uso do café
se generalizar, forneciam a bebida mais usada na região. Eram encontradas nos campos e
matas, ricos reservatórios da diversidade, junto a espécimes raras da fauna, madeiras nobres,
essências, plantas de potencial curativo e ornamental, frutos, fibras resistentes para o
artesanato e a indústria, e um elemento tão precioso quanto o ouro: a água pura de seus
mananciais, de fundamental importância para a região metropolitana de Belo Horizonte.
Nova Lima surgiu em torno da extração mineral, quando bandeirantes, no século
XVII, percorriam a região em busca de pedras preciosas, ao longo do Rio das Velhas e
afluentes. Desde esta época, com escravos ou operários assalariados, com ingleses,
portugueses, franceses ou sul-africanos, a atividade econômica em torno da qual a cidade
girou foi a mineração de ouro (mais recentemente a de ferro), atividade primitiva, brutal,
subterrânea, em que o corpo a corpo homem/natureza ia aos extremos, a 3 500 metros de
profundidade, com temperaturas de até 60 graus, pó de pedra, explosões.
9
“Congonha, conforme Batista Caetano, é denominação de origem tupi-guarani, do tema cong, engolido,
deglutinado, o que se bebe, erva para chá (luxemburgia polyandra).” (MINAS GERAIS, 2000, p.13).
36
Quando a jovem e moderna Belo Horizonte foi construída, a velha Nova Lima
extrativista, de características feudais, tinha mais de 200 anos de exploração e se manteve
impermeável à metrópole que se desenvolvia ao seu lado, estando protegida e aprisionada
pelo domínio das empresas mineradoras.
A St. John d‟El Rey Mining Company (depois Mineração Morro Velho) manteve
durante séculos uma estrutura de dominação e de controle dos empregados, que se estendeu
por todo o território do município, com relações hierárquicas fortemente segregativas.
Há registros do espanto e do desagrado da família real, em especial da princesa Isabel,
em visita à região no ano de 1881, frente às precárias condições de trabalho encontradas nas
minas de ouro de Nova Lima, o que teria de certo modo impulsionado o ato abolicionista.
Sabe-se que a Princesa ficou horrorizada com o ambiente pouco iluminado da
grande caverna e do modo como os escravos trabalhavam num lugar feio, ora
quente, ora frio e minando água. Os escravos sem nenhum conforto, trabalhando
seminus e pendurados em correntes, quebrando a pedra aurífera com martelos e
talhadeiras. Reprovou o sistema adotado pelos diretores da Companhia que foi
considerado por ela como anacrônico, pelo avanço das liberdades que já havia no
País. Esperava que a Companhia de Morro Velho fosse um paradigma das empresas
humanitárias, porquanto tivesse sido a Inglaterra o primeiro país do mundo a
combater o tráfico negreiro nos oceanos. No entanto, o que se via ali, era uma
notável Companhia inglesa ainda mantendo uma linha de escravatura tão rígida
como aquela que existiu nos primórdios do Brasil-Colônia. (SOUZA, 1999, p.116).
Essa estrutura de características feudais resiste à abolição da escravatura, que para a
Saint John chegou com anos de atraso: “[...] a fumaça venenosa da escravidão na Morro
Velho perdurou por muitos anos, sendo totalmente abolida no Estado Novo, com os primeiros
movimentos que deram origem às leis trabalhistas.” (SOUZA, 1999, p.77). Resiste também
aos movimentos pela república democrática, às mudanças no capitalismo e nas relações de
trabalho no nível mundial e às lutas sindicais e dos partidos de orientação socialista. A partir
da década de 50, com a mudança da direção inglesa, ares de modernidade permeiam a cidade,
com a ampliação dos direitos trabalhistas, a ascensão de pequenos comerciantes e
profissionais liberais e a grande atuação de movimentos progressistas da igreja católica, do
sindicato e da sociedade civil, que culminariam com a eleição, em 1962, do operário Dazinho
para deputado estadual.
Tal processo foi fortemente atingido pelo golpe militar de 64, que desbaratou toda a
organização sindical e os movimentos sociais, semeando terror, mortes e incentivando
delações, traições e acomodações. Durante as décadas posteriores a palavra “comunista”
despertou na população medo e desconfiança, como negação da traumática situação vivida
pela cidade.
37
Em Nova Lima foi possível observar, em nível local, como em poucos lugares do
Brasil, o desenrolar das lutas, vicissitudes, desenlaces, ligados à história da classe operária, do
Partido Comunista, da esquerda religiosa, do apartheid social, da colonização ostensivamente
segregacionista, com similaridades, talvez, com a Índia, o Peru e a África do Sul. Também
acompanhar, com espanto cívico, a conivência irrestrita dos governos com relação ao
esvaziamento e expropriação de riquezas e materiais estratégicos, assim como à apropriação
territorial, com a transferência para empresas privadas internacionais, de áreas de inegável
importância para o país. “O caso brasileiro ilustra de forma explícita essa entrega ao privado
da regulação dos usos do território, sobretudo naquelas suas fatias, pontos e articulações
essenciais” (SANTOS, 2002, p.89).
As terras de Nova Lima deixaram progressivamente de pertencer efetivamente à
cidade e ao país, para ser controladas pelas empresas e pelo capital estrangeiro, cujos
interesses não coincidem com o da população local. Como comenta Milton Santos, em seu
artigo A guerra dos lugares: “é desse modo que áreas inteiras permanecem nominalmente no
território, fazendo parte do mapa do país, mas são retiradas do controle soberano da nação”
(SANTOS, 2002, p.89).
Cidade operária, cidade incompleta
“Recuperar a história desses núcleos no Brasil é, sob muitos aspectos,
entender o sentido das rápidas transformações de sua configuração
espacial.” (Telma Correia).
As chamadas vilas ou cidades operárias encontradas, no século passado, por todo o
país, traziam, no seu traçado e no seu funcionamento, registro de uma forte estrutura de
dominação, que, ao mesmo tempo em que protegia a região das investidas exteriores, impedia
o aparecimento de novas possibilidades econômicas, sociais e de construção de subjetividades
mais livres, mais conectadas com outros estilos de viver e produzir. Por causa do monopólio,
essas cidades operárias, em torno de uma única atividade, são denominadas feudos, cidades-
latifúndio ou “cidades incompletas”, e geraram extenso debate sobre a pertinência, ou não, do
estatuto de cidade a esses núcleos.
No Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, difundiu-se largamente a
prática da construção, por empresas, de moradias para seus operários em cidades ou
em localidades rurais. Tal prática deu origem a comunidades habitadas
principalmente por empregados de uma única companhia que possuía parte
38
substancial do mercado imobiliário e das casas e, com freqüência, também detinha o
controle sobre os equipamentos e serviços coletivos. (CORREIA, 2001, p. 83)
Tal fato, espalhado por todo país, levou à inclusão, em 1947, na constituição de
Pernambuco, de um artigo aludindo à inadequação dessa situação para a autonomia municipal
e federativa: “as sedes dos Municípios e Distritos não podem ser localizadas em terras
encravadas em propriedades pertencentes a pessoas físicas ou jurídicas de direito privado,
salvo quando patrimônio de instituições religiosas ou beneficentes.” (CORREIA, 2001, p.91).
Houvesse tal lei se difundido para legislações mais abrangentes e a história do Brasil,
e especialmente de Nova Lima, teriam se alterado significativamente. O município de
Paulista, em Pernambuco, com movimento sindical expressivo, foi um dos primeiros a se
beneficiar com a lei, desapropriando 50 hectares, dentre as terras da empresa única, para
criação da “cidade livre”.
O questionamento da condição de cidades a sedes de municípios encravadas em
terras de um único proprietário, e que se conformaram de aglomerações criadas para
abrigar funcionários de uma mesma empresa, não esteve restrito ao caso de Paulista.
Nova Lima, em Minas Gerais, era definida por Roberto Costa, em 1955, como uma
“cidade-latifúndio” e como um “feudo”, baseado no fato de a Companhia Morro
Velho ser proprietária de 495 quilômetros quadrados de terras contínuas, que
representavam mais de 80% das áreas dos municípios de Nova Lima e Raposos,
cujos moradores dependiam direta ou indiretamente das atividades da empresa de
mineração. (CORREIA, 2001, p.92).
Essa forma de dominação, que se estendia a todo o território e à sua população
trabalhadora, se apresentava como alternativa favorável aos interesses das “Companhias”,
muitas vezes bem recebida pelos operários por significar melhores condições de habitação e
saneamento, principalmente para a força de trabalho oriunda do meio rural.
Nas primeiras décadas do século XX, as “vilas operárias” surgiam como modelo
privilegiado de reforma da habitação do pobre urbano, a qual era apontada como um
dos problemas centrais da cidade. As “vilas operárias” definiam-se como um padrão
de moradia popular oposto à favela, ao mocambo e ao cortiço, supondo ordem,
higiene e decência. O termo sugeria casas salubres e dotadas de ordem espacial
interna, que se distinguia da falta de higiene, de espaço e de conforto atribuída às
casas dos pobres urbanos. Também sugeria casas de famílias de trabalhadores
estáveis, em oposição às misturas entre estes últimos e os indivíduos afastados dos
empregos regulares (autônomos, vadios, prostitutas etc.), favorecidas pelas formas
de moradia e relações de vizinhança nas habitações coletivas e em moradias
precárias. (CORREIA, 2001, p.84)
Essas cidades e vilas operárias apresentavam um padrão serial de organização do
espaço, com suas casas iguais, seu traçado conservador e o impedimento de que o trabalhador
fizesse alterações na arquitetura e na conformação das áreas coletivas. Tal proximidade e
39
similaridade entre moradores favorecia os vínculos e a sociabilidade, mas permitia que o
controle da empresa sobre a vida do trabalhador se estendesse à sua vida íntima, às suas
opções pessoais e ideológicas.
Assim, o modelo logo revelaria suas contradições, ao construir uma reputação de
restringir fortemente a liberdade individual e familiar e ao se revelar um mecanismo
suplementar de subordinação e exploração do trabalhador pelo patrão,
desencadeando conflitos e contribuindo para o agravamento das lutas sociais. [...]
Não é à toa que lugares como Paulista, em Pernambuco, e Nova Lima, em Minas
Gerais, notabilizaram-se pela força de seu movimento sindical e pelo elevado grau
de politização de sua população, tendo sido o local de sucessivas greves e
constituindo-se em importantes bases eleitorais dos partidos de esquerda.
(CORREIA, 2001, p.86).
O desenvolvimento da atividade rural na região de Nova Lima, que poderia se
tornar uma alternativa à mão única da mineração, foi abortado pela presença monopolizante
da St. John Del Rey também na pecuária e no plantio de árvores frutíferas, com a posse de
várias fazendas.
São significativos os exemplos nos quais a implantação de uma grande empresa
fábrica e mineradora em uma antiga fazenda não impede que o lugar continue a ser
qualificado como uma fazenda. As terras da Companhia Morro Velho, em Nova
Lima incluindo as áreas residenciais e de mineração , eram referidos no século
XIX como “Fazenda Morro Velho” e “Fazenda Raposos”. em 1891, quando foi
promovido de freguesia a vila, o local da sede da Morro Velho passou a se chamar
Vila Nova Lima. (CORREIA, 2001, p.88).
No livro “As minas de ouro de Morro Velho”, Souza (1999), relaciona os vários
setores em que os ingleses eram donos absolutos, deixando toda a população dependente de
seus produtos e do seu beneplácito: a criação de gado de corte e leiteiro, criação de suínos,
produção de derivados do leite, abatedouro e frigorífico, produção de frutas de múltiplas
espécies, rebanhos eqüinos e asininos, salientando-se o adestramento dos burros que se
tornaram companheiros de labuta e de sofrimentos dos mineiros no fundo da mina. Além de
tudo isto a “Companhia” tinha proeminência no comércio atacadista de carnes e cereais para
todo Brasil e mantinha, com seu favorecimento, o que o autor chama de primeiro shopping-
center do Brasil: a Casa Aristides, antigo Armazém da Mina, onde os trabalhadores
utilizavam uma caderneta de compras a serem descontadas no fim do mês, o que reduzia
significativamente o salário a ser recebido e mantinha o trabalhador em débito e atrelado à
empresa. Nas palavras de Dazinho, mineiro de Morro Velho, líder sindical, deputado estadual
cassado pela ditadura militar: “Tudo, tudo era da Empresa. Ela tinha o controle do corte de
cabelo, da lenha que o pessoal queimava, dos alimentos, tecidos, jóias, tudo, inclusive do
40
armazém que fornecia tudo isso, para poder fornecer a prazo.” ( LE VEN, 1998, p.93). Ao que
Souza acrescenta:
Em síntese, pode-se dizer que a vida econômica do distrito e mais tarde município
criado em 1891, é a vida da Companhia Saint John Del Rey, pois dependem
exclusivamente dela por mais de cem anos. Quando havia uma crise na companhia,
a cidade entrava em colapso porque tudo dependia das atividades da mina de ouro.
(SOUZA, 1999, p. 109).
Como exemplo extremo dessa estrutura feudal, a Companhia chegou a ter uma moeda
própria, de circulação interna em Nova Lima, onde estava cunhado o nome Morro Velho.
“[...] claro que é a Morro Velho né, ela que comandava, tanto é que juiz, o promotor, o padre,
o escrivão, todo mundo morava na casa da Morro Velho, então os outros sofriam por causa
deste mando da empresa.” (Irineu).
Outro aspecto indicativo do domínio quase absoluto que a mineradora exercia na
cidade diz respeito à forma como a empresa se tornou dona das terras que compõem seu
patrimônio. Segundo o autor, a Companhia vivia em demanda com outros donos de terras:
“conta a tradição que ela os forçava a vender suas propriedades pelo preço mais humilhante
que se possa imaginar e lhes tomava os escravos mediante ameaças de morte ou através de
lutas terríveis, onde o mais forte engolia o mais fraco. Era a lei do leão. (SOUZA, 1999,
p.70).
Wânia, entrevistada durante a pesquisa, relata a longa disputa pela terra, empreendida
por sua família:
A minha família está sofrendo com isto, você sabe que nós temos um processo
quarenta anos na justiça, e justiça no Brasil fica, assim, séculos para resolver um
problema. Nós estamos há quarenta anos lutando para reaver terras que foram
cercadas pela Morro Velho, que eles não têm documento delas e eles se apoderaram
delas. Desde a época em que os ingleses vieram para Nova Lima que eles se
apoderaram de terras que não eram deles e isto é uma política vamos dizer
estrangeira. É a política dos mais espertos, quem tem dinheiro corrompe, consegue
um papel, consegue uma escritura e você sabe que aqui tudo tem preço, então foi
muito fácil apoderar de tudo. (Wânia).
A isto se acrescenta a existência de uma milícia responsável pelo controle de escravos
e trabalhadores, pela segurança da empresa e pelos abusos autoritários, à revelia das leis:
A Companhia Saint John d‟el Rey tinha uma polícia forte armada de rifles e
cartucheiras, de fazer medo aos governadores de Minas Gerais da época. Como dona
da situação não conhecia lei brasileira, tampouco interessava conhecer, porque se
conhecesse também não lhe daria respeito. (SOUZA, 1999, p.70).
41
Tudo isto contraria a noção de liberdade e autonomia que se esperaria para as cidades
numa federação republicana, o que está expresso no comentário abaixo, formulado em 1949
por Torres Galvão, deputado, pastor e líder sindical da cidade pernambucana de Paulista:
[...] a principal característica de uma cidade é justamente a liberdade na mais ampla
acepção do termo: liberdade religiosa, liberdade política, liberdade de comércio e
liberdade de construção; e todos nós sabemos que estas liberdades não existem para
uma população como a de Paulista, que vive sob o guarde férreo de uma empresa
industrial, que, além de senhora da terra, é ainda proprietária de todas as casas que
formam a cidade. (LEITE LOPES, apud CORREIA, 2001, p.92).
A partir da década de 70 e, aceleradamente, a partir de 90, as terras do município de
Nova Lima, em poder das mineradoras, estocadas para negócios futuros, foram transferidas de
mãos, em grandes transações do capital fundiário, inaugurando um novo momento para a
região, que, no entanto, não altera o monopólio privado das terras e não implica em
autonomia da administração pública sobre essas áreas.
A perda do monopólio da fábrica sobre a propriedade fundiária e sobre os serviços
coletivos e a independência da administração local em relação à empresa são
condições indispensáveis para garantir à população a autonomia inerente a uma
cidade. Assim, tal situação geralmente se configura quando está em andamento
um processo de desmonte; quando a empresa que construiu a aglomeração está se
desvencilhando da propriedade e do controle do lugar, mediante a venda de imóveis
e o repasse dos serviços ao Estado ou a outras empresas privadas. Nesse sentido,
trata-se de uma situação intermediária em diversos sentidos entre um núcleo
fabril e uma “cidade-aberta”. (CORREIA, 2001, p.95).
Desse ponto de vista, a cidade permanece então uma cidade incompleta, pois a
transferência de posse do território não implica em autonomia de gerenciamento ou
interferência da população e do poder público nas suas destinações.
Nova Lima tinha uma empresa, hoje Nova Lima, só o Jardim Canadá tem seiscentas.
Por um lado é muito bom para a cidade porque há diversificação, mas apesar de hoje
Nova Lima não ter uma empresa só, sessenta por cento da renda da prefeitura, e
quando se fala prefeitura você espalha, é da Vale do Rio Doce
10
. [...] Mudou a
empresa. Nova Lima ganhou uma série de empresas novas, inclusive importantes,
você tem empresas aqui que você conta né, você tem empresas de ponta, de
tecnologia de ponta. Votem empresa que faz marca-passo, você tem empresa que
faz o coração de um raio x, o cerne do raio x, então são empresas de alta tecnologia,
mas continua na mão de uma grande empresa, se essa grande empresa afundar um
pouquinho ela arrasta a cidade. (Rita).
10
A mineração de ferro, pertencente às Minerações Brasileiras Reunidas (MBR,) foi transferida, em grande
transação econômica, para a Vale do Rio Doce (VALE), a partir de agosto de 2007.
42
Cidade Alta & Cidade Baixa
O principal modelo sócio-espacial, historicamente presente na configuração urbana de
Nova Lima não foi o Centro-periferia como em Belo Horizonte e grande parte da região
metropolitana. Provavelmente por influência da topografia da região, um vale cercado por
belas montanhas, o padrão básico novalimense de delimitação e segregação espacial foi e
indícios de continuar a ser, o “cidade alta”/“cidade baixa”.
No seu início como povoação, Congonhas de Sabará, já se constituía de dois principais
núcleos habitacionais: Arraial das Congonhas, correspondendo à região baixa da cidade,
próxima à desembocadura do Ribeirão dos Cristais, onde se construiu a capela de Nosso
Senhor do Bonfim, e o Arraial do Morro Velho, gerado pelos serviços de mineração e situado
na área mais alta, nas redondezas de onde se instalou a companhia inglesa.
Como a cidade está incrustada num vale, os dirigentes ingleses ocuparam a parte alta
da cidade, construindo o bairro das Quintas, com suas casas de típica arquitetura britânica,
com varandas de treliças e jardins com cercas vivas. Ficavam também, no “lado de cima” os
equipamentos sociais britânicos (igreja anglicana, cemitério, armazém, escola, entrada da
mina). Nas encostas e regiões próximas foram construídas as casas dos encarregados, pessoal
técnico, de escritório e no centro se localizaram pequenos comerciantes, profissionais liberais,
professores. A parte baixa, onde a cidade começou, em especial os bairros do Bonfim, o
Matadouro, o Areião, o Cascalho, habitados pela população mais pobre e imigrantes
espanhóis, típicos redutos dos negros recém-saídos da escravidão, da zona boêmia, do
pequeno comércio e dos trabalhadores informais, com arquitetura, urbanização e
movimentação que lembravam o burburinho da Bahia, permaneceu como “lugar do povão”.
Tal divisão se estendeu para as manifestações culturais e religiosas, sendo emblemática a
disputa entre as escolas de samba de “cima” e de “baixo”.
Porque aqui é o seguinte, eu sempre falo: Nova Lima, da Santa Cruz pra cima é um
tipo de pensamento, tem mais a influência da Morro Velho, tem mais influência
inglesa, e da Santa Cruz para baixo é outro tipo de pessoa e de pensamento, era
mais do povo, mais operários mesmo, então tem isto, você pega a história, todo
prefeito daqui de baixo que se elegeu, ele sofreu pressão, de cima. (Irineu).
A cidade operária, propriamente dita, se espalhava por morros e encostas, em bairros
de estrutura fortemente homogeneizada, com suas casas geminadas ou seus bonserás seriados,
onde moravam trabalhadores da mina, sendo comum que viúvas e filhos de operários
mortos tivessem que desocupar suas casas, mesmo sem ter outro local de moradia.
43
“Entre 1930 até meados de 1950, excetuando-se o centro de Nova Lima, a empresa e o
bairro dos ingleses, diretores e funcionários categorizados, no dizer dos entrevistados, „o resto
era tudo nosso; cidade feita por nós, os mineiros de Morro Velho; milhares de operários ativos
mais os dependentes‟”. (GROSSI, 1981, p.69).
[...] você pode ver que todo jornal que criam em Nova Lima, sempre tem “nossa
gente, a história de...”, não tem história de operário, só tem história de família
fulana, família não sei quem, tudo gente de cima, não tem ninguém daqui de
baixo. De operário a não ser Dazinho que foi um deputado e os mais conhecidos...
como Yone veio aqui, ela também estava fazendo uma pesquisa, ainda na época da
ditadura. (Irineu).
Até na estrutura sindical se deu essa dicotomia: em paralelo ao sindicato dos mineiros,
autêntico, fundado e gerido pelos trabalhadores em defesa da classe, denominado “sindicato
de baixo”, foi criado outro sindicato, o “sindicato de cima”, patrocinado pela Companhia, que
oferecia privilégios e benefícios aos associados, automaticamente filiados quando contratados
pela empresa. “Devido à localização geográfica de sua sede, em um elevado, esse sindicato,
considerado pela maioria dos mineiros como de tendência patronal, recebeu deles a titulação
de Sindicato de Cima, em contraposição ao outro, denominado Sindicato de Baixo, situado na
praça principal da cidade, onde ainda está instalado.” (GROSSI, 1981, p. 99).
Esse modelo permanece nos condomínios e loteamentos de luxo, espalhados pelas
colinas e montanhas, formando um anel de riqueza em volta da “Velha Nova Lima”, instalada
no vale, com suas ruelas sem passeios para pedestres, seu trânsito estrangulado, seus
moradores espremidos em multimoradias num mesmo terreiro. A Nova Lima “de baixo” se
ampliou agora por quase toda a sede, que sente as dificuldades de uma cidade que toma rumos
alheios à sua trajetória sócio-histórica e aos interesses de sua população.
A fragmentação dos vários condomínios que se dispõem nos arredores, alguns, como o
Alphaville e o Vale dos Cristais, buscando oferecer um conjunto de serviços e equipamentos
que os enquadraria no conceito de edges cities, constituem novas centralidades, em torno das
quais a vida se organiza. Esse modelo fragmentado, chamado por alguns de cidade fractal, se
articula com os antigos padrões, resultando em formas particulares de produção do espaço e
das subjetividades.
3.1.1 A Mina
“As minas são uma fonte de fluxo, de mistura e de fuga, que quase não tem
equivalente na história” (Deleuze & Guattari, Mil Platôs)
44
Seguir o veio, ir pelas encostas, perfurar e mergulhar nas profundezas, esse é o fluxo
da mineração. Nos primeiros momentos fluxos livres, anárquicos, libertos da apropriação do
trabalho de uns por outros; no garimpo é cada um por si na aventura cotidiana de buscar a
maior pepita, a maior “pinta”. Artesão e nômade, o minerador se desloca para onde está o
ouro, a prata, o estanho. “O artesão metalúrgico é o itinerante, porque ele segue a matéria
fluxo do subsolo” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 95).
A antiga relação entre a ferramenta, a arma e a jóia, o trabalho, a guerra, o poder, é
palpável para quem trabalha com metais. De uma função à outra é um pulo. Assim, os
símbolos do comunismo internacional, a foice e o martelo, vibram o poder da máquina de
guerra dos trabalhadores. Na extração mineral, a matéria bruta está muito próxima do valor
final e a chamada vida inorgânica é perpassada por sentidos e poderes de toda ordem,
pulsantes formas presentes na dureza da pedra, no trabalho rude, no calor de 50 graus, no
brilho do ouro.
Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, no capítulo “Tratado de Nomadologia: A Máquina
de Guerra”, falando sobre a itinerância artesanal do ato de minerar, destacam a onipresença do
metal como condutor em todo material, lhe conferindo o lugar de consciência da própria
matéria. “Em suma, o que o metal e a metalurgia trazem à luz é uma vida própria da matéria,
um estado vital da matéria enquanto tal, um vitalismo material que, sem dúvida, existe por
toda a parte, mas comumente escondido ou recoberto...” (DELEUZE & GUATTARI, 1997,
p.94). Desta maneira o metalúrgico estaria próximo do alquimista, em contato direto com a
força e a potência imanentes da corporeidade da matéria e seus correspondentes psíquicos,
sociais, culturais. O metal não seria uma coisa ou um organismo, mas um corpo sem órgãos,
pleno de devir, pura produtividade da matéria.
O itinerante, por excelência, seria o homem do subsolo, híbrido de uma vida de fluxos,
rompendo a rocha, e do ferrenho controle da vida de superfície, demarcada em suas relações
sociais e de trabalho.
O homem aqui consente, sem combate, à sua força e a seu nada. Não exige da forma
a afirmação de um ideal determinado. Ele a extrai bruta do informe, tal como o
informe quer. Utiliza as cavidades da sombra e os acidentes do rochedo. (ELI
FAURE, apud DELEUZE & GUATTARI em Mil Platôs/5, p. 98).
As desterritorializações acontecem de diversas formas, com a remoção e
deslocamento do que de mais sólido na matéria, com a construção de uma cidade sob a
cidade, com a arte inacabada de criar espaços e não-lugares, com o esgarçamento dos limites
45
entre a vida e a morte. “Nosso mundo real é outro. Pesado. Tem cheiro de morte.” (LE VEN,
1998, p.80).
Embaixo da terra, uma outra cidade se desdobra sob nossos pés, com seus canais,
shafts (poços), galerias, salões, avenidas. as regras e as relações são outras que não as de
superfície. A contigüidade com a morte e o perigo, o ambiente inóspito, a falta de ar, revelam
seres humanos diferentes.
[...] lá embaixo da terra parece haver um mundo estranho ao da superfície, a gente se
transforma, uma força diferente surge e ninguém sabe explicar. Mas o certo é que a
carência de ar puro modifica o organismo do trabalhador. Os operários tornam-se
frenéticos, violentos, profanos, tristes. (SOUZA, 1999, p.48).
Quanto mais se aprofunda o mineiro dentro das entranhas subterrâneas, mais próximo
de imagens arquetípicas primitivas, no ventre úmido, quente e escuro da Grande Mãe, em que
poderosos instintos se enlaçam ao mal-estar das péssimas condições físicas, evocando
dantescas visões do inferno.
No fim da quinta gaiola, os mineiros estão a mil e oitocentos metros abaixo da
superfície. O silêncio é dominante. O barulho vindo das máquinas que ressoam em
outros “horizontes” ao longe é rouco por falta de espaço para repercussão do eco.
Nessa profundidade os mineiros estão a novecentos e setenta e quatro metros abaixo
do nível do mar, numa sauna de 38 graus. (SOUZA, 1999, p.57).
Nos níveis mais profundos, a temperatura sobe mais ainda, como relata Dazinho: “[...]
o calor na mina, nas partes mais no fundo da mina, nos 3700 metros de profundidade,
onde nós estávamos nesta ocasião, [...] era entre 45° e 60°.” (Le Ven, 1998, p.60) A área mais
abafada e de alta temperatura é chamada pelos mineiros de Nova Lima de “zona rabo quente”:
Quando os mineiros vão se aproximando da “zona rabo quente” gritam: “estamos
chegando ao purgatório”. Outros dizem que é o “inferno brabo”, mas fora da mina
quando alguém pergunta em que lugar estão trabalhando, ironicamente respondem:
“pra lá da casa do caralho”. (SOUZA, 1999, p.57).
As sensações físicas no limite das possibilidades humanas provocam, dentre outros,
processos regressivos, levando os mais fracos (“ioiôs/vovôs ou siá-marias”) a desistirem da
empreitada e muitos a saírem „sambados‟.
A goela fica seca demais, seca o cuspe que o mineiro engole, a língua fica um trem
esquisito, seca, áspera como língua de boi. O lugar onde eles vão trabalhar todos os
dias, lá no fundão da terra é sacrificante, e conforme dizem: “Lá onde o filho chora e
a mãe não ouve”. (SOUZA, 1999, p.58).
46
As mais elementares necessidades humanas eram ignoradas pelos donos das minas,
cujo único interesse era a produção: a sede que era aplacada com água quente, a proteção
contra a poeira, improvisada com o pano amarrado no rosto, a falta de instalações sanitárias.
As necessidades fisiológicas eram satisfeitas no mesmo espaço em que se trabalhava e se
alimentava.
Não havia instalações sanitárias, nem esgotos. Ali também se comia. O ambiente
não se tornava insustentável porque, devido à temperatura elevada, as fezes se
petrificavam. Junto com a terra eram apanhadas com a e usadas para calçar o
realce, “mas o cheiro penetrava no corpo”. (GROSSI, 1981, p. 64).
Tudo criava condição para que aspectos mais rudes e animalescos dos trabalhadores
viessem à tona, na forma de vinganças e competições violentas, ou aridez e indiferença ao
sofrimento do outro. “Depois de algum tempo, eu não tinha palma da mão, eu tinha um calo
na mão que era das pontas dos dedos até o punho... Tudo era um calo só.” (LE VEN, 1998,
p.62). Por outro lado, as condições adversas do trabalho exigiam alto nível de interação e a
construção de uma rede bem afinada: Era preciso que todos, cada um no seu lugar,
respeitassem a organização do trabalho e as ferramentas, mas, sobretudo as condições
coletivas de trabalho, senão eram o perigo e a ameaça de morte certa.” (LE VEN, 1998, p. 58)
Assim, algo sempre escapa e ali no caldeirão do inferno se forjaram também vontades
férreas e corações solidários e o sofrimento do dia-a-dia constituiu a matéria-prima de um
sólido movimento emancipador:
Não se passa impunemente 15 anos no fundo da mina com as mãos feitas um calo
só. A cabeça erguida e a inteligência operária fizeram o resto, o chão da política
continuou o fundo da mina, mas uma mina na cidade de Nova Lima, em Minas
Gerais, numa Pátria chamada Brasil. (LE VEN, 1998, p.90).
Eldorado
Fora do padrão dos outros municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte,
Nova Lima recebeu migrantes de vários estados do Brasil e de muitos países, em busca do
sonho de enriquecimento fácil ou de trabalho braçal sem exigências quanto à formação, cujo
principal requisito era um corpo forte, disponível para o trabalho brutal e insalubre do fundo
da mina. Com a grande oferta de mão de obra, a seleção de candidatos a mineiros era feita nos
moldes da escravidão:
47
Na seleção dos candidatos, a empresa empregava, então, um método singular, que
persistiu até meados de 1940: pela manhã, os que desejavam emprego se dirigiam a
uma ponte de Nova Lima, situada perto da mina. Um funcionário da Companhia se
encarregava de escolher poucos pelo físico. Os rejeitados eram dispensados a jatos
d‟água de mangueira: “os gringos faziam isso para não ter que dar explicações e
mostrar força aos que ficavam mais revoltados, os escolhidos iam para o rojão do
realce”. (GROSSI, 1981, p. 57).
O ouro atraiu, para a cidade, imigrantes de várias partes do mundo, com destaque para
os espanhóis, italianos, franceses, libaneses, chineses, além dos portugueses e ingleses,
responsáveis pela colonização da região e pela exploração das riquezas. “Outros empregados
da St. John d‟el Rey Mining Co. Ltd., de origem portuguesa, italiana, alemã, francesa e
polonesa e os próprios ingleses fizeram de Nova Lima um melting-pot de raças e culturas,
assaz interessante” (VILLELA, 1998, p.45).
A importante participação dos africanos trazidos pelo regime da escravatura, baluarte
onde se apoiou todo o trabalho bruto de escavação e de extração do minério, e dos grupos
indígenas, muitos escravizados pelos bandeirantes paulistas, em contraponto às tribos da
região, que resistiram à invasão do seu território, se constituiu em linha de montagem para os
processos de luta e acomodação que se configuraram na cidade. “Cada ano vem nas frotas
quantidades de portugueses e de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades, vilas,
recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos e pretos e muitos índios de que os
paulistas se servem.” (ANTONIL apud VILLELA, 1998, p. 111).
A história das populações indígenas da região não é contada, estando registrado, como
início oficial da história da cidade, a vinda dos bandeirantes portugueses e descendentes, em
busca de pedras preciosas ou na captura de “aborígenes” para seu serviço, na labuta do
trabalho ou no “alívio sexual do homem branco”. Tem-se vaga notícia de Puris, Coroados e
Botocudos que se postavam como guardiães do ouro e dos aguerridos canibais do grupo
ou Tapuia, despejados pelos paulistas para o nordeste mineiro, para o Rio de Janeiro ou
Espírito Santo. (VILLELA, 1998, p.114).
A negritude da cidade se evidenciava para visitantes acostumados com o padrão
português das cidades históricas:
O inglês Richard Burton, em 1867, presenciou uma festa de reinado em Nova Lima.
Ficou impressionado com o caráter africano dos negros ali presentes. Para ele Nova
Lima nada parecia com as demais cidades mineiras. Tinha um aspecto de cidade
africana. (MINAS GERAIS, 2000, p. 11).
A partir de 1834, a Saint John d‟El Rey Mining Company Ltda. passa a explorar as
minas de ouro, instalando na região todo o artefato cultural da Grã-Bretanha, utilizando,
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sempre que necessário, a tecnologia e o know-how de outros povos, como foi o caso dos
alemães e canadenses, responsáveis por significativas mudanças nos processos de produção e
administração ou dos estadunidenses, presentes a partir da década de 50.
A alta rotatividade da mão de obra, em alguns momentos da história, trouxe para a
cidade retirantes de rias partes do Brasil, em especial os nordestinos, que com sua garra e
sua resistência a condições adversas, contribuíram com sua força de trabalho para a riqueza da
Companhia. “Nova Lima sempre foi referencial de trabalho... trabalho muito duro, de alta
periculosidade... era para quem vinha da roça, que não tinha especialização [...]” (LE VEN,
1998, p.54) Esses grupos migrantes, quase todos vindos do meio rural, de uma vida de
privações e miséria, sem escolaridade, “cheirando a capim”, eram surpreendidos pela dureza
do trabalho no fundo da mina, e como os outros mineiros, desenvolviam comportamentos
agressivos, muitas vezes violentos e criminosos, o que conferiu à cidade a fama de selvagem,
“terra de índios”, estendida a seu principal time de futebol, o Vila Nova, cuja torcida se
incumbia de ganhar “no braço”, o que o time não ganhasse no campo. notícia de
verdadeiras guerras de torcidas, inclusive com mortes, que se espalhavam pela parte baixa da
cidade, próxima ao campo, o “Alçapão do Bonfim”.
Souza pinta um quadro extremo e controverso do caráter belicoso da cidade:
A Morro Velho tornou-se o centro de convergência dos gentios de todas as partes
do Brasil, assim como ficou sendo o empório dos crimes hediondos, dos furtos, dos
roubos e dos assaltos à mão armada. Nova Lima tinha de um lado a fama de ser um
pedaço de Londres no Brasil e do outro a capital do crime, da injustiça social e da
desordem organizada. (SOUZA, 1999, p.86).
Os perigos ligados à atividade mineradora serviam para encobrir crimes motivados por
rixas pessoais e disputas de trabalho:
Então o papai como nós éramos quatro, quatro filhos, ele teve que trabalhar na mina
onde o salário era melhor, e saiu de lá, ele foi para Rio de Peixe, para tocar a mina
de amianto e foi onde ele foi assassinado. Eles falam que ele morreu em um
desastre, mas nós sabemos que ele foi assassinado. Por causa de chefia, pela chefia,
porque Rio de Peixe era aquele.., era como diz, aquele ninho, era uma caldeira,
Nova Lima era uma caldeira do diabo, né. (Wânia).
relatos desde o século XVIII de uma ampla e curiosa gama de contravenções
registrada no município: “De modo geral, os tipos de contravenção levantados indica uma
efervescência típica de aglomerados urbanos de alta densidade como lenocínios, incestos,
bigamias, cartomancias, jogos, tavolagens, danças supersticiosas, curandeirismo e
benzeduras” (MINAS GERAIS, 2000, p.15).
49
Em estatística de 1940, 1,6% da população era de estrangeiros, o que, aliado à
característica semiflutuante da população, à hegemonia inglesa, à escravidão prolongada, deu
à cidade traços culturais bem diversos das cidades históricas mineiras, o que seria considerado
por alguns como “descaracterização cultural do município” ou em termos antropofágicos, um
município “sem nenhum caráter”.
Desse cadinho de hibridações, algo diverso e dissonante se mistura com uma história
consistente de lutas e superações, que unificou origens e etnias e resultou no traço político-
revolucionário que distingue o município. O sindicato dos mineiros de Nova Lima, fundado
na década de 30, que se tornou, com sua postura combativa e sua força organizativa, modelo e
espelho para outras organizações sindicais, atraiu atenções e aliados e se ligou a movimentos
dentro e fora do país, consolidando a tendência da cidade a se tornar um caldeirão de raças e
nacionalidades, mas agora sob outra perspectiva, que não a da carência, do crime e da
desigualdade: a perspectiva da libertação e da justiça social.
Nova Lima, nesse sentido, se situa numa linhagem, é a parte do Brasil no mundo,
dando as mãos de seus mineiros aos milhões de mineiros que também produziram
„as riquezas das nações‟, ou melhor, de suas elites e dos capitalistas em progressão
no mundo. (LE VEN, 1998, p.55).
Com a força da diversidade e da heterogeneidade, Nova Lima superou poderosas
forças de assujeitamento e homogeneização, saindo do lugar de depositária da exploração
britânica, da mão de obra embrutecida e discriminada, para a gênese de um movimento
singular, em que as diferenças tiveram seu espaço.
A cortina de ouro
“[...] o mundo de Nova Lima é o fundo da mina e as relações que se
constituem a partir dessa realidade.” (Michel Le Ven).
A vida da cidade, por três séculos, circulou em torno da mineração de ouro, incluindo,
mais recentemente, a mineração de ferro. Ao mesmo tempo em que sustentava a vida
econômica da região, com seus 8000 empregos diretos, além da arrecadação para os cofres
públicos e de todas as atividades comerciais e de serviços que se desenvolveram à sua volta, a
“Companhia”, como era chamada pelos novalimenses, produziu subjetividades subservientes
ou lutadoras, amedrontadas ou revoltadas pela opressão, todas fortemente marcadas pela
presença monopolizadora.
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[...] a empresa era centenária e durante esse tempo todo ela dominou tudo lá, até as
formas das pessoas agirem e pensarem, e ninguém, em consciência, contestava. A
subserviência, ela, é de tal forma incrustada na sociedade que é muito difícil as
pessoas enxergarem o outro lado, isso vinha de pai pra filho. Então acabava-se
aceitando todas essas coisas como verdade. (LE VEN, 1998: p.69).
A cidade permaneceu, em muitos aspectos, na pré-modernidade, na pré-história do
mundo do trabalho e a presença feudal da St. John d‟El Rey e depois da MMV no município,
moldou, com uma estrutura fortemente centralizadora e controladora, uma forma de ser
humilhada na sua dignidade, onde a extrema pobreza estava em contato direto com o supremo
símbolo da riqueza: o ouro. Nas palavras de Dazinho: “Segundo os donos, saía de Nova Lima
450 quilos de ouro por mês. Muito ouro, muita silicose. Nós não sentíamos orgulho disso não.
Mas nós fizemos duas marchas sobre Belo Horizonte... Mas tudo isso é silenciado.” Ao que
Le Ven acrescenta: “O ouro dos mineiros é outro: a memória dos mortos pelos vivos. Isso
também é cultura, é o culto dos mortos, das vidas ceifadas pela idolatria de homens.(LE
VEN, 1998, p.73)
Yone Grossi, no seu livro “Mina de Morro Velho: a extração do homem”, nos relata
aspectos da vida dos trabalhadores nas minas, na família, nas brincadeiras com amigos, no
sindicato, que revelam as várias modelagens e clivagens que constituíram coletivamente os
modos de ser e viver de uma cidade operária e seus moradores. Falando sobre a postura dos
ingleses frente aos “nativos”, a autora diz que o comportamento segregativo dos ingleses,
externalizando ostensivamente um estado de desigualdade econômica e social”, se mostrou
presente em todo período pesquisado, tornando mais visível a oposição de classe e
contribuindo para agravar os conflitos. (GROSSI, 1981, p.81). Essa postura discriminadora se
estendeu, quase sempre, a técnicos e chefias de outras nacionalidades, inclusive brasileiros,
que, ocupando postos de poder na empresa, reproduziam o emproado comportamento
aristocrático e autoritário para com empregados e população da cidade.
Era uma hierarquia que era exercida com muita pressão mesmo, porque escolhiam as
pessoas de pior reputação para colocar de encarregado [...] no início, o sujeito tinha
que ter um bom porte físico, uma boa dose de ignorância para poder se transformar
em arrancador de choco, em um feitor, em um patrão, em um fiscal. (LE VEN,
1998, p.60).
Os ingleses tinham seu mundo à parte, sua escola, sua igreja, seu clube, seu bairro, seu
cemitério. Esse mundo era cercado por guaritas e por “rondeiros” a cavalo que se incumbiam
de manter afastados os curiosos ou inconvenientes.
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A discriminação dos mineiros pelos ingleses ultrapassava a vida. Enquanto os
mineiros eram enterrados no cemitério da cidade, os ingleses tinham seu Campo
Santo particular, o que feria os operários. De acordo com suas observações, “o
cemitério isolado dos ingleses era um escárnio para nós; mesmo em caso de morte
de inglês, mineiro não era convidado; ia algum chefe; o nosso cemitério era cheinho,
o dos ingleses vazio. (GROSSI, 1981, p.81).
O bairro das Quintas, com seus casarões em estilo colonial, suas cercas vivas, seu
clube onde se jogava cricket e squash e se tomava chá das cinco com scones, contrastava com
as residências operárias: as familiares, quase sempre geminadas, os bonserás de estrutura
coletiva, também denominados barracões, e os alojamentos para acolher a mão de obra de alta
rotatividade. Nesse pedaço britânico do Brasil, a população era proibida de circular, se
constituindo grande aventura, para as crianças brasileiras, penetrar às escondidas no bairro
inglês para espiar a vida que ali se desenrolava.
Wânia, antiga moradora do bairro do Retiro, contíguo às Quintas, bairro dos ingleses,
relembra a segregação e os privilégios que seu avô não repassou aos descendentes :
Naquela época, você lembra que havia casa pros chefes, Morro Velho cedia a casa,
tinha a casa dos operários e tinha a casa dos chefes. Você lembra que aquele bairro
ali era fechado, você não podia passar nem na rua, e meu avô freqüentava ali. Agora
ele não olhou os filhos, ele não deu oportunidade aos filhos, ele falava que filho
tinha que começar ralando, você entendeu? Olha como era a mentalidade da outra
época. (Wânia).
José Moura, que no texto Humilhação Social: Humilhação Política, fala de sua
experiência com Nova Lima e novalimenses, diz que “a cidadezinha conheceu, na distribuição
dos bairros, a mesma hierarquia que vinga no interior da mineradora” e abordando o processo
de humilhação que se cola às segregações: “Humilhação social é sofrimento longamente
aturado e ruminado.”, é dor velha, repetida, dividida entres irmãos de destino. (GONÇALVES
FILHO, 2007, p.192 a 194). Sofrimento de mineiros, por nascença ou por labuta.
Vida de Mineiro
São esses homens, mulheres, milhares e milhões que constroem a cidade,
renovam a sociedade, deixam sua memória na cultura da humanidade: o
movimento operário da Mina de Morro Velho foi a minha vida”. (Michel Le
Ven).
Com o ruído ensurdecedor do trabalho da mina que reduzia a comunicação a gestos e
gritos, os mineiros desenvolveram formas de expressão rápida, baseadas em mica e ação,
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mais que em verbalizações, que os perigos do fundo da mina exigiam atenção permanente,
nervos sensíveis e pronta resposta. “Esse traço cultural dos mineiros irá contribuir, até certo
ponto, quando constituírem seu movimento, para que as suas propostas não se diluam no
comodismo das discussões intermináveis e paralisantes.” (GROSSI, 1981, p. 71).
Palavrões, expressões de irreverência e “gozação” foram cunhadas no dia a dia do
trabalho e se espalharam pela população. Os mineiros resistiam à apatia e à humilhação com o
comportamento agressivo e a rudeza dos gestos e palavras, em que se incluíam os palavrões e
as blasfêmias. O humor e a irreverência ajudavam a suavizar tudo isto com os apelidos
hilários colocados em brasileiros e “gringos”, as piadas e histórias que brincavam com o
ridículo e o grotesco de sua realidade. “Mineiro é igual à matéria prima: bruto. Só de se
perguntar: vamos comer?”, a resposta é um gesto pornográfico.” (GROSSI, 1981, p.62).
As relações de companheirismo e amizade, evidenciadas nos apelidos e nas expressões
jocosas calcadas nas palavras inglesas e na terminologia do fundo da mina, geralmente tinham
por cenário, botecos e “bitacas” resultando, muitas vezes no gasto de grande parte do salário
com bebidas e prostitutas, que eram disponibilizadas, também de acordo com a escala social:
as melhores para os encarregados, os “carreiros” ficavam com as piores. Os mineiros criaram
relações de amizade, configurando uma cultura de rua adensada particularmente pelos
contatos em bares, compensando a fantasia no „deleite da cachaça, que devaneio e faz
esquecer o trabalho‟. (GROSSI, 1981, p.71). O alcoolismo, ao lado da silicose, se constituiu
numa das principais patologias do município.
No carnaval os mineiros se esbaldavam, expressando nos blocos sua vida, revestindo
de forma debochada e grotesca suas mazelas, na descontração da folia. Dentre os blocos, se
destacavam o Dos Prontos, com seu coronel, boneco gigante, semelhante aos de Olinda,
representando os “duros”, os sem-dinheiro ou o bloco da Vitória, das prostitutas, patrocinado
pelos feitores, com especial destaque para o Bloco dos Sujos, em que os mineiros saíam direto
da mina para cair na farra. Esse bloco está presente até hoje no carnaval da cidade, com seus
milhares de seguidores, vestidos de mulher ou com fantasias de crítica social. Yonne Grossi
relata a existência de um bloco diretamente relacionado à mina:
Existiu um bloco idealizado pelos mineiros, que talvez fosse um esboço de cultura
da classe. A fantasia consistia na indumentária usada na mina. O canto e os gritos
expressavam a situação do subsolo. O bloco reproduzia o ambiente de trabalho: o
carreiro imitava o feitor, o sambado, o maricas entre outros. Levava também uma ala
dos picapaus e outra dos trabalhadores do tráfego. (GROSSI, 1981, p.80).
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As festas religiosas, o footing
11
e as lutas de boxe, muito apreciados, aconteciam na
praça da matriz; as reuniões, nas casas, para a dança com sanfona, violão e cavaquinho ou
para o “carteado”, o jogo de “truco” em família: “Cada bairro tinha o seu clube de truque e se
faziam torneios. Essas reuniões seriam também aproveitadas pelos organizadores da classe
para testar, em conversas informais, a receptividade dos mineiros quanto ao lançamento de
campanhas reivindicatórias.” (GROSSI, 1981, p. 80)
Dazinho relata seu único vício, além do trabalho:
[...] eu gostava de jogar cartas... às vezes por falta de outras coisas, um jogo um
pouco inocente, era o jogo de truco que não tinha muito problema jogar. Era muito
bom por causa do convívio, a convivência que tinha com um maior número de
famílias, maior número de pessoas. (LE VEN, 1998, p.66).
O jogo inocente e barulhento que até hoje persiste na cidade, tendo como local
privilegiado um grande e frondoso fícus defronte a entrada da Mina Grande, na Praça dos
Mineiros, podia se revelar perigoso: “Cheguei a ficar em uma situação de inteira miséria, eu
não tinha uma roupa inteira, perdia tudo no jogo, então resolvi um dia parar e parei definitivo,
parei, parei mesmo...” (LE VEN, 1998, p. 66).
Os casados se orgulhavam de suas mulheres e de suas casas que primavam pela
limpeza, em contraste com o ambiente de trabalho: “a gente precisa de limpeza para esquecer
o ambiente da mina. O homem da mina é como um animal: sujo...” (GROSSI, 1981, p.71).
Souza relata no seu livro a experiência das mulheres escravas no fundo da mina, no
período anterior á lei Áurea:
A tradição não guardou a quantidade de mulheres escravas que trabalharam na Mina
Velha por mais de cincoenta anos, contudo, sabe-se que a mina consumiu batalhões.
Foram verdadeiras heroínas, pois trabalhavam dia e noite, transportando as pedras
que os homens iam quebrando. [...] a partir de 1890, a Companhia Saint John d‟El
Rey dispensou o trabalho da mulher no interior das minas por muitas causas, duas
delas de maior urgência, devido à forte pressão imposta pela Lei Áurea: a
hemorragia provocada pelo fluxo menstrual e a tuberculose, ambas se tornaram
devastadoras. (SOUZA, 1999, p. 30).
Persistiu, contudo, a lenda de que mulheres na mina é desastre e desmoronamento na
certa, o que as afastou desse campo de trabalho e as restringiu às atividades de superfície. Tal
proibição se estendeu aos padres e foi respeitada por trabalhadores e chefias.
Nas lutas cotidianas, no entanto, as mulheres dos mineiros tiveram importante papel,
11
Verificar Glossário, no apêndice A.
54
compartilhando sua vida de perigos e sacrifícios para sustentar a família, muitas participando
também da luta sindical.
A mulher nunca desceu à mina, mas sabe explicar direitinho onde o marido está
trabalhando, o vizinho, o companheiro. Ele vive dentro da mina. O trabalho significa
morte a todo instante. É comum uma mulher dizer de seu marido: “Hoje está
trabalhando num lugar muito perigoso, muito gás, pode explodir.” É o que a
gente diz: conversar com mulher de mineiro é conversar com mineiro. (GROSSI,
1981, p.70).
O risco e a iminência de um acidente na mina pairavam sobre a cidade e sobre a
família do mineiro. Como os jangadeiros, a ida era certa, a volta Deus sabia. A lembrança
dos graves acidentes ocorridos durante toda a história das minas de Morro Velho somada à
cotidiana experiência de pequenos acidentes que roubavam vidas preciosas, mantinha as
famílias em suspense: Quando as turmas desciam na mina, a cidade inteira ficava com o
ouvido na escuta. A ida era feita de corpo e alma, mas a volta nem sempre, porque
diariamente um montão voltava o corpo, porque a alma tinha ido para os cafundós-do-
judas.” (SOUZA, 1999, p. 87). Tal sentimento era reforçado pelas explosões que diariamente
sacudiam a cidade vindas do subsolo e pelo constante gemido do maquinário que ressonava,
ao fundo, no dia-a-dia da cidade. Os apitos demarcando os turnos de trabalho eram ouvidos
por todo o vale e dirigiam o ritmo de vida diário.
Os acidentes podiam vir de arriamentos, explosões das “panelas de gás” ou de “fogo
falhado”. Souza relata o macabro quadro dos constantes acidentes:
Saía um monte de gente esmigalhada ou queimada. Na verdade, os montes de
cadáveres irreconhecíveis. O hospital da Companhia não tinha lugar para agasalhar
tanto morto. Os médicos ajuntavam os pedaços de uns, de outros emendavam ou
costuravam, numa tentativa de fazê-los parecer gente... (SOUZA, 1999, p.87)
Em vários morros da cidade foram plantadas grandes cruzes iluminadas, os cruzeiros,
que teriam a função de zelar pela segurança dos mineiros. “[...] os mineiros olhavam para o
cruzeiro da Boa Vista para ver se estava todo iluminado, pois se alguma lâmpada se apagasse
aconteceria algum acidente. [...] vai ver que é por isso que a companhia sempre mandou trocar
as lâmpadas.” (MINAS GERAIS, 2000, p.182).
A silicose (“poeira”, “peste branca”) e outros problemas pulmonares ainda marcam o
cotidiano novalimense, como herança do trabalho pesado no fundo da terra. Nas palavras de
Dazinho: “A silicose, que é aquela poeira mais fininha que pousa no pulmão... irreversível,
55
porque depois da poeira pousar no pulmão e solidificar, ela nunca mais deixa o pulmão da
pessoa, a não ser quando ela morra.” (LE VEN, 1998, p.62).
Hélio Pellegrino, no texto “A grande tosse dos pobres”, fala sobre o desassossego das
noites de uma cidade silicótica:
Nas noites de Nova Lima, quando buscava repouso, a cidade era sacudida e
inquietada por uma trovoada surda e cava que, nascendo dos casebres operários,
rolava em ondas recorrentes até as fraldas das montanhas em torno. Era a grande
tosse dos pobres, sintoma e denúncia da silicose que os roía. (LE VEN, 1998, p.62).
Comenta ainda, com fina ironia, a habilidade dos britânicos em transformar a desgraça
alheia, a grande “trovoada brônquica”, em lucro:
Os ingleses, perturbados em seu sono e em sua boa consciência, ao invés de
adotarem medidas hábeis para que a silicose cessasse, resolveram enfrentar o
problema pelo exclusivo ataque ao sintoma. Montaram em Nova Lima, com banda
de música e foguetes, uma fábrica de xarope contra tosse, que ao mesmo tempo
produzia para consumo dos colonizadores matéria-prima de refrigerantes não
encontrados no país. A fábrica andou de vento em popa... juntando o útil ao
agradável. (LE VEN, 1998, p.63).
Em Agosto de 1995, a revista Isto É publicou reportagem “As viúvas do ouro” em que
entrevista silicóticos e viúvas, em luta na justiça para serem devidamente indenizados. No
primeiro semestre do ano da publicação, 78 mineiros de Raposos e Nova Lima haviam
falecido com os pulmões enrijecidos. Andréia Silveira, professora da UFMG e na época
médica do Sindicato dos Mineiros diz à reportagem: “A cada semana, diagnosticamos pelo
menos três novos casos. Nos últimos 20 anos a Previdência Social notificou a existência de
cerca de cinco mil mineiros portadores da silicose na região metropolitana de Belo Horizonte”
Nas palavras da viúva Isabel Barbosa: “O João de Deus tirou ouro da terra sem faltar um dia
sequer ao serviço até morrer. Hoje, recebo apenas a pensão da Previdência de dois salários
mínimos, sem nenhuma indenização da Morro Velho”
Alice, psicóloga, atende os mineiros sindicalizados e seus familiares:
[...] o público que eu atendo, a maioria, os chefes da família que já estão mais velhos
hoje em dia, são daquela época que a mina ainda estava ativa, então geralmente são
pessoas que estão doentes, que têm a silicose, acem por cento em alguns casos,
estão muitos doentes, alguns falecidos, aí muitos se aposentaram por invalidez.
Outros não, são filhos desta geração que constituíram família e eu atendo os
netos.[...] Tem um pequenininho que eu atendo que ele fala: “que bom tia, que
agora não tem mais mina”, porque o avô dele faleceu com a silicose. (Alice).
56
Os silicóticos vão desaparecendo junto com os traços de uma forma de vida penosa,
geradora de riquezas e de profundas desigualdades. Suas famílias ainda lutam para receber a
justa indenização pelo sofrimento de tantos anos e pela perda do ente querido, quase sempre
sustentáculo da família. São os últimos sinais de uma história que não se conta, que se
dissolve frente às modernidades e ao domínio das aparências.
Dodóra, irmã e filha de mineiros, encantada pela mina que povoava seus sonhos de
criança, se tornou, pelas voltas que a vida , defensora dos direitos dos silicóticos e
continuadora da luta de Dazinho. “A mina sempre esteve na minha vida... Eu cresci com a
mina, vivendo também a participação dela na minha vida” (LE VEN, 2005, p.238).
Levada pelo irmão para a reunião dos mineiros que lutavam na Justiça pela
indenização relativa à silicose, adquirida no trabalho nas minas de Morro Velho, se
transformou em líder de um novo movimento, que cria em 2002, a ABRAVIM - Associação
Brasileira de Vítimas de Danos Causados por Atividades de Mineração -, de alcance nacional
e que se propõe a ter uma atuação independente, que Dodóra diz faltar ao sindicato.
A Associação foi fundada no dia 16 de Janeiro de 2002. Ela é muito recente. Ela
foi fundada porque não existia, até aqui, ninguém para estar defendendo e estar
gritando pelos direitos dos trabalhadores. [...] O Sindicato dos Mineiros[...]depois
que ele fechou e de novo reabriu, ele não foi mais o sindicato dos trabalhadores. Ele
foi o sindicato patronal. Hoje ele é totalmente da empresa. (LE VEN, 2005, p.244).
Os associados, preocupados com a situação de penúria e sofrimento de aposentados e
de novos empregados, se articulam com políticos do nível local e estadual para levar adiante a
luta pelos direitos dos trabalhadores.
Eles trabalham com muito ouro, com muita riqueza e hoje não resolve nada. Todos
morrendo à míngua. Tem uns que não têm dinheiro para comprar um litro de leite,
para tomar um litro de leite. [...] uma empresa rica, que tem coragem de dar 150 mil
por mês a um time e não tem coragem de cuidar das pessoas que estão morrendo.
(LE VEN, 2005, p.242).
Dodóra nesse movimento a oportunidade de retomada da trajetória de lutas dos
mineiros e do “povo de Nova Lima”: “Olha, sim, o Povo de Nova Lima voltou a ser o Povo
de Nova Lima! Voltou, sim, a buscar os seus direitos. Eles achavam que os direitos deles
estavam perdidos. Mas eles voltaram à luta. Voltaram a buscar o que são os direitos deles...”
(LE VEN, 2005, p. 245).
Uma mística do trabalho
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“Eles todos têm o „mapa da mina‟ no corpo e na mente” (Michel Le Ven).
Se o sofrimento desses trabalhadores e suas famílias, produziu extremos de violência e
passividade acrítica, gerou também um orgulho operário, o culto aos heróis do fundo da mina
e a valorização do trabalho coletivo, à parte das precárias condições ambientais e salariais.
Gostava, não tanto do uniforme, mas do que ele representava. Da representatividade
dele, do operário, do trabalhador comum, do peão de obra. Nunca tive vergonha de
ser trabalhador a vida toda. O que gosto no trabalho é de estar junto com os
companheiros. (LE VEN, 1998, p.71).
Na Morro Velho a brutalidade do trabalho, a pobreza e a discriminação produziram
um ethos de bravura e virilidade que nos casos extremos resultou em violência, crimes,
perseguições, homens lobos de homens, mas também produziu heróis do cotidiano, festejados
e cultuados pela sua coragem e sua força. Eram chamados “cuiudos” ou “cunhudos”, aqueles
que não “afinavam” e enfrentavam com coragem as feras da mina: a falta de oxigênio, a
poeira das pedras, a fumaça das dinamites, os chocos, o fogo falhado, os desabamentos, as
explosões de gás, os fios de alta tensão, a angústia das profundezas. Os fracos, que “não
davam no couro”, os “sambados”, tinham que agüentar toda sorte de achincalhes, da parte de
colegas e encarregados: Os que sambavam recebiam dos próprios colegas apelidos
desqualificadores de sua condição de homens: ioiô, -maria, maricas. Ouviam também a
expressão ferina dos feitores : „Por que sua mãe não te comeu no ninho, quando te pariu tão
mole assim?‟.” (GROSSI, 1981, p.64)
Essa discriminação era usada pela empresa para garantir disciplina e produtividade:
O valor consagrado entre os trabalhadores da mina era a resistência física para o
exercício de sua atividade. De fato, a empresa manipulava a discriminação entre
fortes e fracos, estabelecendo-se um clima de competição extenuante entre os
operários, que beneficiava a produtividade, além de submetê-los a uma rígida
disciplina de trabalho. (GROSSI, 1981, p.68).
No entanto, efeito inverso era produzido, quando a situação de quase animalidade era
comparada às amenas relações familiares e de amizade.
A oferta de casas para os funcionários funcionava como um meio de fixar o
trabalhador, impedindo-o de retornar ao campo ou demandar outras cidades, onde os salários
fossem mais compensadores e os riscos de trabalho menores.” (GROSSI, 1981, p.69). Assim
a maior parte da população habitava esses bairros, compartilhava da difícil vida por turnos de
trabalho, dos horários calcados no ritmo britânico anunciado pela sirene que ecoava por toda a
58
cidade, dos equipamentos coletivos, como tanques, chafarizes e banheiros, no caso dos
bonserás. Toda essa proximidade e compartilhamento propiciaram o nascimento do
sentimento e da consciência de classe, como também de articulações para a melhoria das
condições de vida, como os Grupos de Compra que funcionaram durante 20 anos, reduzindo
os gastos e melhorando a qualidade da alimentação, tão necessária à manutenção da saúde nas
precárias condições de trabalho do subsolo.
A descoberta e a construção da força coletiva foi para os mineiros resgate de uma nova
virilidade, outras formas de combate, de saída das condições animalescas para a dignidade de
trabalhadores e seres humanos.
É o trabalho braçal do mineiro Dazinho e de seus companheiros que marca o fim da
“escravidão”, a conquista da auto-estima, da “inteligência operária”, a formação do
vínculo social e político, a redenção do trabalho material e social, a elevação à
condição humana e política, enfim, à uma mística do trabalho. (LE VEN, 1998,
p.74).
Inaugura-se assim uma nova etapa na história do trabalho nas minas de Morro Velho e
no Brasil, com efeitos prolongados na vida da cidade e seus moradores: o movimento sindical
de características particulares e exemplares, que trouxe potentes vitórias, muitas dores e
rupturas; máquina de guerra dos trabalhadores construindo seu destino.
3.1.2 Movimento Operário
Na década de 30 emerge, em Nova Lima, o movimento operário que iria resultar, em
1934, na criação da União dos Mineiros de Morro Velho, futuro Sindicato dos Trabalhadores
na Indústria de Extração do Ouro e Metais Preciosos. Essa movimentação coincide com o
início da atuação local do Partido Comunista Brasileiro, chamado pelos mineiros de “o
partido”, e com uma conjuntura nacional de forte centralização do governo Vargas, com a
cooptação e o controle do fruto das lutas operárias, ao mesmo tempo em que a Constituição de
34 assegurava, no seu artigo 120, a pluralidade e a completa autonomia sindical. A legislação
trabalhista pós 30 e as estratégias de poder do governo Vargas, atrelaram a classe operária ao
Estado paternalista e manipulador, cerceando sua livre organização e a formação de uma
consciência de classe.
Em Nova Lima, apesar do regime da quase-escravidão que vigorava nas relações
trabalhistas, o movimento operário conseguiu manter um nível de autonomia sindical, que
impediu, por muito tempo, a burocratização e elitização do poder e o peleguismo, construindo
59
a coesão entre os companheiros e se articulando para as principais reinvidicações. “A situação
penosa de trabalho, a dominação arbitrária da empresa, o desamparo a que se expunha a
família do operário, constituíam uma condição suficiente para despertar princípios de coesão
entre os trabalhadores.” (GROSSI, 1981, p. 94).
A organização coletiva e a vida sindical trouxeram, para os mineiros, possibilidade de
mudanças, que dependiam de sua ação solidária: “Então nós é que lutamos contra tudo e
contra todos. E a supremacia nossa foi por causa da força do trabalho. Quanto mais perigoso,
quanto mais difícil o trabalho, mais união; cria-se mais elo de união, cria-se entre os
trabalhadores a união” (LE VEN, 1998, p.79).
No movimento operário de Nova Lima, política e religião estiveram unidas, em função
das necessidades e lutas da classe, principalmente através da figura de Dazinho, cristão
militante, jocista: “[...] na fundação da JOC, fui seu fundador, reunimos 5 ou 6 sujeitos da
mina e o padre Lage leu o Evangelho e o disse em termos operários: amor, justiça, trabalho.
Colocou o Evangelho na vida do operário. Nasceu o nosso ideal.” (LE VEN, 1998, p.85).
Esse ideal, unido ao dos militantes comunistas e de trabalhadores de boa vontade,
constituiu o movimento sindical dos mineiros de Nova Lima, plural, inventivo, bem
organizado, potente. Os mineiros comunistas e cristãos nos deixaram [...] uma lição política.
Sindicalistas iguais e diferentes, com ideologia, mas que não se tornasse totalitária [...]
unicamente ligados à mina e à classe, unidos antes de tudo pela classe e pelo trabalho.” (LE
VEN, 1998, p.88).
Nova Lima era chamada, pelos detratores do movimento operário, “cidade vermelha”,
estigma rechaçado pelos trabalhadores “porque prejudicava a nossa ação e aumentava a
repressão” e justificado na forte presença do Partido Comunista, que a partir da década de 30
trouxe para a cidade sua experiência de organização das massas. Nas palavras de Dazinho:
“Os comunistas foram o baluarte do grande sindicato que foi o Sindicato dos Trabalhadores
de Nova Lima” (LE VEN, 1998, p.86).
Apesar das orientações do Comitê Central, o partido agiu na cidade com certa
independência, atuando na organização das bases operárias e populares, no preparo de
quadros dirigentes e nas lutas sindicais. “A estratégia do Partido, em Nova Lima, era
palmilhada na conquista da unidade de classe, desenvolvendo formas de resistência às
condições iníquas de trabalho e vida da comunidade.” (GROSSI, 1981, p.209).
A luta sindical em Nova Lima, que uniu cristãos e comunistas, transformou a vida de
humilhações e subserviência de 8000 mineiros e suas famílias em resgate da dignidade, da
solidariedade, do poder coletivo, da capacidade organizativa de uma classe. Às assembléias,
60
no Teatro Municipal, compareciam milhares de mineiros, que tinham voz e possibilidade de
intervir nos rumos do movimento. Nova Lima se tornou, nas palavras de Dazinho, “espelho
para o Brasil”, com a força de suas greves, de suas passeatas sobre Belo Horizonte. “Queriam
uma mão de obra calada, fez-se uma cidade em marcha.” (LE VEN, 1998, p.90).
As lutas sindicais, durante os 30 anos de intensa atividade do sindicato, antes de 64, se
caracterizaram pela coragem e pela ruptura com o padrão de subserviência ao domínio da
empresa que vigorava no município: “O sindicato de Nova Lima primou pela coragem dos
trabalhadores porque nós enfrentávamos os jagunços contratados pela Empresa... É
coragem física.” (LE VEN, 1998, p.91). Apesar dos constantes boicotes e perseguições, várias
campanhas e bandeiras, se mostraram bem sucedidas, dentre elas as que buscavam garantir a
segurança no trabalho, a higiene e salubridade nas minas, outras que buscavam garantir os
direitos trabalhistas ou apoiar movimentos e causas de outros sindicatos, se ligando a redes
brasileiras e internacionais, além das ações de características francamente políticas, como a
campanha contra a bomba atômica e pela entrada do Brasil na 2ª guerra mundial.
Em 1947 o movimento operário elegeu 4 vereadores à câmara municipal e se firmou
como força política no nível local e estadual, aumentando a preocupação da empresa e a
consequente repressão, culminando com a eliminação física de líderes expressivos, dentre eles
o atuante vereador William Gomes, e com a demissão de 51 militantes, sob a alegação de
prejuízo à produção da mina. Além disto, aumentou a pressão da igreja católica conservadora
e, por outro lado, as interferências do “centralismo burocrático” do PC nacional.
Com o acirramento da situação, desponta a figura de Dazinho, unificadora,
representativa da classe e que durante uma década atuou na direção do sindicato, liderou
greves e marchas políticas, se elegendo deputado estadual em 1962.
As greves envolviam toda a cidade e recebiam o apoio das mulheres, noivas, viúvas
dos mineiros aposentados e ativos: “entravam na campanha junto conosco. Iam às assembléias
e na cidade procuravam o apoio do comércio” (GROSSI, 1981, p.220). A imprensa mineira e
do Brasil noticiava o fato com os matizes ideológicos de cada publicação. Por ocasião da
chamada “marcha sobre Belo Horizonte”, durante a greve dos 33 dias de 1953, em que toda a
mina parou, o jornalista Newton Carlos assim relatou o acontecimento, na Revista da Semana:
Acompanhando a picada que corta o estreito vale entre dois montes, na Serra do
Curral, a coluna se estendia por quase dois kms, uma extremidade perdida de vista
da outra. [...] Vinham juntos crianças, que mal conseguiam andar, acompanhando os
pais; mulheres carregando crianças de colo acompanhando os maridos; casais jovens
aos braços. Cada um com a mochila de comida a tira-colo. [...] Desciam à Capital
não apenas para dizer ao cidadão de gravata que sustentavam uma greve de 20 dias,
sem que ninguém se dispusesse a ajudá-los numa solução, irão mostrar, em toda
61
amplitude, o drama de uma população escravizada às minas de ouro. (LE VEN,
1998, p.96).
E conclui ressaltando, que assim os mineiros haviam realizado a primeira passeata
grevista do Brasil. Ao que se poderia acrescentar passeata das famílias mineiras, apesar das
dificuldades, apoiando as lutas operárias, e de uma cidade mostrando que a história oficial,
vazia de sentidos, não pode conter a força dos desejos, agenciadores potentes de novas
configurações e de acontecimentos inusitados.
O Corte
“Em de abril de 1964, os mineiros de Morro Velho representaram um dos únicos
núcleos do país que tentaram resistir à intervenção das forças político-militares do regime
vigente.” (GROSSI, 1981, p.215). Os fatos que se seguiram, repetidos em vários lugares do
território nacional, romperam com um processo de emancipação, não da classe operária,
mas de todo o município, com relação ao domínio e ao monopólio das empresas mineradoras.
Nova Lima foi duramente atingida. Presos e afastados seus líderes. Paralisada a
classe operária. Sindicato sob intervenção. [...] O depoimento dos mineiros sintetiza
a mesma expressão: “após 64 foi uma fase de terror; o povo ficou acuado, os
trabalhadores acuados, sem rumo...” (GROSSI, 1981, p.231).
Depois de 64 o movimento operário foi submetido a 14 anos de silenciamento. O
operário Dazinho, deputado “cassado e caçado”, foi detido e condenado, sendo libertado em
1966, permanecendo com sua vida política, profissional e pessoal cerceada até 1974. Foi
recebido com carinho e respeito em Nova Lima apesar do medo da repressão e da tentativa de
demonização de que foi vítima, acusado de planejar o envenenamento da caixa d‟água de
Belo Horizonte e de importação de armas da Tchecoslováquia para o sindicato. Os dias
difíceis que se seguiram foram compartilhados com outras famílias atingidas pelo golpe de 64
e por companheiros de luta de todo Brasil. Em 1972 se muda de Nova Lima, mas continua
ligado ao movimento sindical e partidário da cidade, sendo referência de coragem, dignidade
e resistência para velhas e novas gerações, sintonizadas com as lutas dos trabalhadores e das
classes desfavorecidas, exploradas pelo capital. Em 1986, candidato a senador pelo PT, dos
538.000 votos que recebeu, 15.000 foram em Nova Lima.
A partir de 1978, com a influência do novo sindicalismo do ABC e com o apoio de
movimentos da sociedade civil, principalmente de uma esquerda jovem, se articula em Nova
Lima, um movimento sindical com novas cores, marcado também pelos tons arrojados ou
62
perversos da emergente pós-modernidade. Jornais independentes, projetos culturais,
movimentos ambientalistas se tornaram parceiros e co-autores na lutas por melhores
condições de trabalho e vida digna. O Partido dos Trabalhadores, fundado na cidade em
1980, se revela mais um espaço de luta, em alguns momentos em íntima relação com o
sindicato.
Da mesma forma o movimento ambientalista, que se tornou opositor de peso à
hegemonia das mineradoras, se uniu ao sindicato em várias ocasiões para defender causas
comuns chegando a ter um encarte no jornalzinho do sindicato, para tratar de questões
ecológicas. Movimentos, como o Renascer Nova Lima em 1986, uniram representantes de
vários movimentos e partidos do município e do estado, para traçar ações comuns e discutir as
novas expansões da Mineração Morro Velho, dentre elas a usina de produção de ácido
sulfúrico. Essa intensa movimentação da sociedade novalimense, na década de 80, coincide
com articulações, a caminho, de finalização do processo extrativo mineral na região e das
mudanças que se instalariam na década de 90.
3.2 Mudanças pós-90 e a questão espacial
12
“Eu vejo mais como uma visão do que tinha, que era o valor, que era o
ouro, que era o minério, quando eles conseguiram ir acabando com tudo,
agora vão acabar com as terras.” (Fernando).
Cercados na pequena área de perímetro urbano da sede do município (cerca de 7% da
área total), sem espaço para moradia, sem áreas de lazer significativas, a população da sede de
Nova Lima se aglomera nos “puxados” e nas multimoradias no mesmo “terreiro”.
De um município que até poucos anos atrás possuía extensa área verde com campos,
cerrados e trechos remanescentes da mata Atlântica, além de água, muita água, se esperava
que sua população pudesse ter a seu dispor boas áreas dedicadas ao contato com a natureza.
Não há, contudo, um parque municipal protegido, com espaços reservados a caminhadas, ao
ciclismo, às brincadeiras infantis, à contemplação, a eventos culturais, nem cachoeiras ou
lagoas destinadas ao acesso público, com a infra-estrutura necessária.
As mineradoras que detiveram a posse da terra por todo esse tempo, se desdobraram
em múltiplos empreendimentos imobiliários para a classe A da Região Metropolitana. Ao
12
Os dados estatísticos usados nesta seção foram retirados dos textos de MENDONÇA e PERPÉTUO, 2006;
BRITO e SOUZA, 2005 e BRITO, SOARES e SOUZA, 2005 (ver Referências)
63
mesmo tempo, o centro de negócios de grandes empresas, a área hospitalar e universitária,
casas noturnas e points da indústria do lazer, shopping-centers se postaram na zona limite
entre BH e Nova Lima, modificando substancialmente a configuração espacial e política do
município, ampliando oportunidades de trabalho e criando embaraços de toda ordem. O
crescimento, sem planejamento, fora das possibilidades e características da estrutura viária do
município, ocasionou grande transtorno no trânsito com engarrafamentos monumentais.
Tem estas dificuldades que vão acarretando, por exemplo o trânsito, nesta estrada de
Nova Lima. Esses condomínios, eles fazem isto, eles o pensam que o pessoal
daqui tem que trabalhar lá, então você sai daqui, você vai para escola, você vai
trabalhar ou qualquer outra coisa, é uma dificuldade para você chegar, porque chega
ali na trincheira ali e pronto. BH Shopping pára, porque é Belvedere. São esses
condomínios que tem aqui, então, eles não pensaram em uma via, agora é que eles
estão pensando, vai ter que mexer muito. Agora que eles estão pensando, mas já está
pronto ... está liberado os condomínios. Não estava preparado né, então a coisa foi
acontecendo assim, de uma vez né, então até acertar isto vamos ter que sofrer.
(Irineu).
Tudo isto aliado à chegada de um modo de vida de metrópole e às alterações de médio
prazo, como as mudanças no clima, nos níveis de poluição, na qualidade de vida podem
ocasionar rupturas profundas nas formas de sentir, pensar, se relacionar da população
novalimense. “Você sabe que às vezes eu fico meio perdida na Nova Lima de hoje, eu acho
que ela é uma coisa que a gente que é da cidade, da sede, não percebe, a gente não consegue
perceber, ela já escapou da mão da gente há muito tempo” (Rita).
A Questão Metropolitana
O processo de urbanização brasileiro se deu com grande velocidade, se
potencializando a partir da década 50, com o incremento da industrialização e a expansão da
malha viária e dos meios de comunicação, sendo que na segunda metade do século XX a
população urbana passou de 49 milhões para 138 milhões, multiplicando-se 7,3 vezes. Esse
excepcional crescimento demográfico das cidades se explica pelo intenso fluxo migratório
rural/urbano, já que as taxas de fecundidade decrescem a partir da década de 60. Entre 1960 e
o final dos anos 80 saíram do campo, em direção às cidades, cerca de 43 milhões de pessoas.
O censo de 1970 revelou uma população urbana superior à rural, ao mesmo tempo em que
o processo de metropolização acompanhava esse ritmo acelerado.
Essa maciça redistribuição da população favorável às cidades e, em destaque,
às cidades metropolitanas, contribuiu para definir um novo perfil para a
64
sociedade brasileira. Desde sua criação, no início dos anos 70, até os dias
atuais, as regiões metropolitanas sofreram inúmeras transformações com a
incorporação de novos municípios. Como essa decisão é da competência das
Assembléias Legislativas, frequentemente a delimitação de uma região
metropolitana obedece muito mais a critérios políticos do que aos sociais,
econômicos e demográficos. (BRITO; SOUZA, 2005, p.49).
Esse novo perfil, do Brasil urbano e metropolitano, vai prevalecer sobre outras
realidades, mesmo sobre a vida rural, atravessada pela crescente mecanização e pela grande
ausência da reforma agrária. Prevalecem também problemas de toda a ordem, gerados pela
inadequação e despreparo dos equipamentos administrativos e sociais para comportar tal
crescimento.
Mais do que uma realidade em números, o fenômeno das Regiões Metropolitanas no
Brasil chama também atenção por se verificar a partir de um processo de
urbanização demasiadamente rápido. Verifica-se, assim, em conseqüência do
crescimento acelerado e com indesejada normalidade no dia a dia das Regiões
Metropolitanas, a escassez de serviços sanitários, deficiências de moradias e
serviços básicos, falta de segurança e degradação ambiental, além da vulnerabilidade
a acidentes e desastres naturais. É a cidade explodindo em si mesma, expandindo-se
sem limites. (GUIMARÃES, 2004, p.4).
Para alguns autores, a crescente urbanização da sociedade brasileira deve ser
entendida como “construção irreversível da hegemonia do urbano”, seja como concentração
de população e de atividades econômicas como também “como difusora dos novos padrões de
relações sociais inclusive as de produção e estilos de vida.” (BRITO; SOUZA, 2005,
p.49).
Milton Santos (2002, p.124) falando do inchaço das metrópoles, relata que entre 1970
e 1980 as 9 regiões metropolitanas brasileiras (incluindo o Distrito Federal) foram
responsáveis por quase 44% do crescimento total da população do país. Esse número
corresponde ao índice atual, com 33 regiões metropolitanas oficialmente reconhecidas pelo
IBGE, habitadas por cerca de 70 milhões de pessoas. A Grande-BH, tem 34 municípios e
perto de 5 milhões de habitantes.
No final do século passado um terço da população brasileira residia nos aglomerados
metropolitanos. No entanto, um declínio no crescimento da população metropolitana, com
redirecionamento de parte das migrações internas para cidades médias do interior. Dentro das
regiões metropolitanas se assistiu, a partir de 80, à redução acentuada no ritmo de crescimento
dos seus núcleos, as capitais, como foi o caso de S. Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte,
simultaneamente ao acelerado crescimento das periferias. “Os dados indicam que o processo
de metropolização tem sido marcado pela redistribuição da população metropolitana favorável
65
aos municípios periféricos, certamente estimulada pela emigração da capital em direção às
demais cidades das aglomerações metropolitanas” (BRITO; SOUZA, 2005, p.52).
Ao mesmo tempo, os municípios-núcleo detêm a capacidade de influir diretamente nos
destinos das periferias e municípios contíguos, localizando equipamentos e extensões que
lhe são favoráveis, muitas vezes impedindo os movimentos autônomos que retirariam essas
regiões da sombra da capital.
Com o peso relativo do município-núcleo da região metropolitana, suas decisões de
investimento econômico e social arrastam os demais, gerando distorções em cadeia,
cujo resultado final é a ineficácia das administrações municipais, sobretudo no que
toca ao interesse da maior parte da população. (SANTOS, 2002, p.121).
No contexto em que foram criadas as regiões metropolitanas no Brasil, em plena
ditadura militar “retratando uma triste situação de fato no Brasil de então, isto é, a cidade
sem cidadãos” (SANTOS, 2002, p. 120) serviram para reproduzir e ampliar o espectro das
mazelas da metrópole sobre uma maior extensão territorial, que foi um rearranjo destinado
a favorecer a produtividade dos novos capitais voláteis e a eficácia na sua administração.
“Pela forma que as regiões metropolitanas foram constituídas, somente os grandes interesses
podem merecer soluções estruturais, duráveis, enquanto para os outros, deixados ao deus-
dará, os remédios são apenas funcionais, tópicos, provisórios.” (SANTOS, 2002, p.121).
Os aglomerados humanos das grandes cidades se estendem, aceleradamente, por
espaços contíguos, seja trazendo a paradisíaca segregação dos condomínios, ilhas de conforto
dentro de áreas verdes; seja atraindo retirantes do interior, de áreas menos desenvolvidas ou
populações expulsas pelos grandes empreendimentos monopolizadores. As regiões
metropolitanas atraem milhares de pessoas em busca das possibilidades de estudo e trabalho e
de um estilo de vida glamourizado pela mídia. Muitos continuam na margem, aguardando a
oportunidade de se inserirem, de alguma forma no grande ventre devorador ou se
estabelecem, precariamente, no centro da cidade, nos cortiços, “terreiros” e favelas.
O adensamento demográfico das metrópoles e suas formas agressivas de ocupação do
espaço provocam efeitos nas relações entre cidadãos, nas configurações familiares, nas
produções de subjetivação. A contigüidade dos territórios existenciais, aliada à lógica
capitalista, produz sujeitos de exacerbado individualismo, alienados dos processos coletivos,
avessos à colaboração e anestesiados com relação ao sofrimento dos seres e populações que
os cercam. Milton Santos diz que
66
[...] nas metrópoles, cada vez mais carregadas de gente e cada vez menos capazes de
renovar o capital, o conflito é permanente e sem trégua, por que a metrópole pode
abrigar, ao mesmo tempo, os mais diversos tipos de classe de capital, desde os muito
grandes até os médios e os minúsculos, e os mais diversos tipos de trabalho, desde o
mais especializado até o mais banal. (SANTOS, 2002, p.125).
Para o homem médio urbano ganhar dinheiro, muito dinheiro, é fundamental para
inscrevê-lo no universo dos consumidores de todo tipo de mercadoria, desde quinquilharias
hi-tech até paz de espírito e boa educação. Principalmente, para garantir a sua privacidade e o
seu “direito” a um padrão de vida diferenciado, o que é materializado nos condomínios
fechados que as classes médias e altas adotaram como estilo de “morar bem”.
A privatização dos espaços públicos e da natureza provoca o empobrecimento da vida
cultural e de lazer das populações menos favorecidas que ficam com o bagaço da laranja.
Região Metropolitana de Belo Horizonte
A formação da região metropolitana de Belo Horizonte, comportou várias tendências
provocadas pela migração dentro do próprio estado de Minas Gerais, em direção às periferias
da capital. A partir da década de 70, a RMBH tem crescido aceleradamente em vários eixos.
Configuraram-se, desde então, espaços de reprodução e moradia de grande parte da população
e da força de trabalho de baixa renda, na chamada “mobilidade dos pobres”, nos eixos Norte,
Leste e Oeste de expansão. Cidades como Ibirité e Ribeirão das Neves se constituíram em
cidades-dormitório, com a maioria da população trabalhando em Belo Horizonte, enquanto
Contagem e Betim, com forte implantação industrial, atraíram nova população fixa e
trabalhadores de outros municípios, nos chamados movimentos pendulares. Essas regiões
tiveram seu pico de crescimento entre 70 e 80, o que não aconteceu com o Eixo-Sul, que
manteve baixas taxas de crescimento até a década de 90, em função da grande concentração
de terras nas mãos das mineradoras, secularmente instaladas, que mantiveram seu estoque
do chamado “território de engorda”, acumulando valor para futuros negócios, o que se
concretizou a partir de 90, com a especulação e venda das terras no mercado imobiliário.
[...] a população fica à mercê da redistribuição espacial das atividades econômicas e
das leis do mercado imobiliário. Verifica-se um processo de “metropolização da
pobreza”, marcado por uma expansão espacial da exclusão social, o que leva a um
deslocamento em direção às periferias metropolitanas. Aliado a isso está a
mobilidade da população de alta renda a qual migra para municípios da RMBH, em
busca de maior qualidade de vida proporcionada por um maior contato com a
“natureza”. (BRITO; SOUZA; SOARES, s.d, p.5).
67
Toda essa área, que pertence principalmente aos municípios de Nova Lima e
Brumadinho se torna alvo do interesse do setor imobiliário, visando criar ali
empreendimentos com destinação residencial ou de negócios, para as camadas mais altas da
Grande BH, em especial para as elites de Belo Horizonte.
A análise micro-espacial da expansão ao vetor sul de Belo Horizonte indica uma
fuga relativa dos serviços avançados dos centros tradicionais da capital mineira em
direção às franjas do município de Nova Lima, principalmente na região das Seis
Pistas (devido, em grande parte, a incentivos fiscais concedidos por este município
ao terciário belo-horizontino) (LINHARES; MAGALHÃES; MONTE-MÓR, 2006,
p. 410).
Apesar da visível alteração do padrão Centro-Periferia em Belo Horizonte, com o
aparecimento de novas centralidades, no nível macro está havendo a distensão do padrão de
segregação, com a expansão dos espaços de moradia e trabalho dos segmentos de alta renda
para o eixo-sul e os da pobreza e da precariedade para os eixos norte e oeste. Isto tem
provocado um crescimento populacional socialmente polarizado, concentrando enorme gama
de problemas em certas áreas e ironicamente, grandes volumes de investimento em outras.
Eixo Sul
O Eixo Sul de expansão da Região Metropolitana de Belo Horizonte representa uma
periferia sui generis, em processo de ocupação acelerada, na qual coexistem
fragmentos de vários tipos de urbanização: empreendimentos imobiliários na forma
de loteamentos fechados; várias tipologias de unidades de conservação ambiental;
áreas de adensamento não controlado; núcleos urbanos tradicionais em
transformação; várias áreas de mineração. (COSTA, 2006, contracapa).
Em Nova Lima e Brumadinho se assiste, a partir dos anos 90, ao fenômeno de
“periferização da riqueza”, com os moradores dos condomínios mantendo com o núcleo
metropolitano os vínculos de trabalho, educação, cultura e lazer.
Vários fatores convergiram para essa expansão acelerada da ocupação desses
municípios pelas elites belo-horizontinas:
A expansão urbana da zona sul de Belo Horizonte;
Disponibilização das terras concentradas na o das mineradoras para o mercado
imobiliário classe A;
A prodigiosa natureza da região, com matas, cursos d‟água, montanhas, em ótimo
estado de conservação, clima ameno, belas paisagens;
68
Facilitação através de políticas públicas e legislação dos municípios envolvidos,
favoráveis ao processo de expansão.
Nessa região, grandes e aceleradas transformações se desenrolaram nos últimos 15
anos, com a proliferação dos condomínios fechados para as elites, principalmente de Belo
Horizonte, assim como a instalação de um novo centro de negócios e lazer na divisa entre
Nova Lima e a capital. As fronteiras se rompem em nome de uma lógica não mais regida pela
geopolítica, mas sim pela dominância do capital e das grandes empresas, que com incrível
rapidez ocupam espaços, destroem e constroem em ritmo de urgência.
A grande diversidade e a multiplicidade que marcam as subjetividades nas metrópoles
estão intimamente associadas aos variados processos de urbanização que demarcam e
modelam os territórios. No caso do Eixo Sul da RMBH vários cenários se agrupam,
constituídos pelo perfil histórico secular, pelas tendências do capitalismo globalizado e do
mercado imobiliário, pelas lutas preservacionistas, pelas resistências culturais.
3.2.1 A Nova Lima Nova
Bom, em termos assim de espaço, vamos dizer área, Nova Lima é maior do que
Belo Horizonte, então é gico que a tendência era crescer, esta área não iria ficar
desocupada mesmo, mas é como eu falei para você, acho que tinha que ser
planejado. A sede ficou sufocada, estrangulada. (Wânia).
Tudo era da Mina, tudo girava em torno dela, tudo era por ela permitido ou proibido.
Isto até fins do século XX, mais especificamente na década de 90, quando de um salto, a
cidade foi atingida pelas ondas do capitalismo líquido, situado em lugar nenhum e em cada
pequena localidade do planeta. Com o final da exploração do ouro e a previsão de extinção
das atividades de exploração de ferro dentro de poucos anos, etapas foram suprimidas. Os
ideais modernos de igualdade, de humanidade, de coletividade, de racionalidade nas relações
sociais e de trabalho, não chegaram a se configurar na sociedade novalimense, em termos de
organização sócio-econômica. De uma estrutura altamente controladora e centralizadora,
pulamos, para uma realidade em que não há centro visível, patrões, ordenadores.
A impessoalidade e a transitoriedade estão presentes tanto na direção das empresas,
sem rosto, sem identidade, pertencendo a grandes grupos econômicos internacionais, dentro
do que Félix Guattari chama de “Capitalismo Mundial Integrado”, quanto nos novos
trabalhadores que a Companhia ainda utiliza, vindos de vários pontos do Brasil para contratos
temporários, morando precariamente e sem vínculos com a cidade.
69
A organização dos trabalhadores nos sindicatos, de combativa história, é esvaziada
pelas terceirizações e contratos temporários, dentro do modelo neoliberal, desmontando
possibilidades de construções identitárias coletivas baseadas na dignidade, na cidadania e na
solidariedade. As formas de convivência e articulação social ligadas ao trabalho nas minas,
que durante séculos foi o lócus organizador da cidade, tanto no sentido econômico, quanto no
político, social e afetivo, se esfacelam sem produzir as mudanças libertadoras pelas quais
tantos operários lutaram e se sacrificaram.
Nova Lima não tinha uma rua com nome de trabalhador, então quando eu fui
vereador, eu que denominei, fiz um projeto, na época do aniversário, acho que
cinqüenta anos do sindicato, então eu dei nome a umas ruas do Mingú, aqui dos
Cristais e da Chácara, com ex-presidentes, fundadores dos sindicatos, os dezessete,
mais os ex-presidentes falecidos. O Milton nesta época era o presidente do sindicato,
agora eu acho que tem uma rua, ele faleceu depois. (Irineu).
Atualmente, cerca de 50 % do território municipal estão nas mãos de duas
Companhias de Mineração: AngloGold-Ashanti (ouro) e Vale do Rio Doce (ferro). Com a
exaustão da mineração de ouro, encerrada em 1990, e a de ferro, prevista para os próximos
anos, as empresas se utilizaram de nova estratégia empresarial, dando novo destino à sua
propriedade fundiária, indo ao encontro da demanda habitacional e de serviços do setor de
mais alta renda da capital, com a venda e loteamento de extensas áreas para enormes
empreendimentos imobiliários que já ocupam grande parte do território.
Muitos cenários urbanos se desenvolvem no município, dentre eles podemos destacar:
A região do Jardim Canadá e do Vale do Sol, que de área semi-rural passa a ter grande
crescimento demográfico e da indústria e comércio, concentrando pequenas empresas e a
população pobre, migrantes de várias regiões do estado e do país, numa típica configuração de
fronteira urbana.
A região de Honório Bicalho e Bela Fama, se consolidando como periferias
consolidadas em crescimento.
O centro da cidade, estrangulado espacialmente e com crescimento demográfico quase
nulo.
O processo de periferização da riqueza, com a conurbação da zona sul de Belo
Horizonte com a zona Norte de Nova Lima, apresentando grande crescimento demográfico e
estabelecimento de novo centro de negócios na rica zona de fronteira.
Segundo dados do censo do IBGE de 2000, 37% da população do município é de
migrantes, metade deles menos de 10 anos na cidade e 45% vindos de Belo Horizonte.
70
Desses migrantes 57% ganham menos de um salário nimo, taxa que cai para 44% se
pegamos os migrantes recentes (menos de 5 anos); da mesma maneira, os migrantes que
ganham mais de 15 salários (1,5 %), aumentam para 11,7% se tomamos os migrantes dos
últimos 5 anos, o que demonstra a mudança no perfil econômico dos que chegam ao
município. Os migrantes recentes têm renda e escolaridade bastante superior à dos
novalimenses nascidos no município, com grande número de empregadores e dirigentes
(30%). Em contraste, um alto percentual de pessoas com rendimentos menores que o
salário mínimo, trabalhadores manuais e prestadores de serviços pouco qualificados (50%),
que acompanham e possibilitam a fixação da população de alta renda e repetem o padrão de
exclusão e polarização da metrópole, morando precariamente em pequenas áreas sem
estrutura.
Nova Lima continua, em situação subalterna, oferecendo espaço e mão de obra barata
para as elites. A ausência de atividade econômica expressiva e emancipadora leva os filhos do
município com potencial e condições mais favoráveis a saírem para trabalhar fora.
Acho que isso tem que ser acompanhado a meu ver de outras medidas, que
favorecessem o pessoal do local, pro pessoal não ser reles serviçais. Pois acaba
acontecendo que vão virando domésticos, jardineiros e tal, do pessoal dos
condomínios. Fica um horizonte muito limitado, normalmente com salários baixos, a
grande maioria deles, com poucos horizontes, horizontes muito limitados mesmo,
você não consegue avançar muito. (Rodrigo).
Encontramos altíssimos percentuais, (superiores a todos os municípios da Grande BH,
incluindo Belo Horizonte) para os que moram em Nova Lima e trabalham em Belo Horizonte,
que ganham mais de 10 salários mínimos (16,2% com vínculo empregatício e 34,6% sem
vínculo empregatício). Os números confirmam que Nova Lima vem se constituindo em local
de moradia para empresários e profissionais liberais sem vínculo empregatício.
Há de fato uma relativa periferização das elites belo-horizontinas, que saem da
capital por motivos diversos, entre os quais parece destacar-se o medo da violência
urbana, e na esteira de um marketing imobiliário que utiliza a imagem da natureza e
a possibilidade de uma vida tranqüila (que significa, na verdade, a apartação do
outro indesejável), vão adensar os loteamentos fechados, exclusivamente
residenciais. (MENDONÇA; PERPÉTUO, 2006, p.33).
A falta de laços desses novos moradores com o município provoca estranhamentos e
incomoda os antigos moradores:
É uma pressão muito grande, excessiva, da questão da expansão imobiliária, essa
opção de usar Nova Lima como uma expansão da zona sul metropolitana de Belo
Horizonte. Vai empurrando o povo pra e o povo na verdade fica por cima da
71
cidade, não faz contato, fica na sua. E a cidade de Nova Lima mesmo, que seria a
produtora, a que devia estar gerindo esse pensar, esse destino, não está gerindo, né.
(Rodrigo).
A Pobre Cidade Rica
A imagem de Nova Lima na mídia vem sendo associada a status, alto poder aquisitivo,
qualidade de vida, mansões hollywoodianas, a prazeres ilimitados, inimagináveis a quinze
minutos da capital.
O município, atualmente goza de situação privilegiada, em termos financeiros,
principalmente em função dos royalties pagos pelas mineradoras.
E até mudou a questão da legislação tributária no Brasil, porque antigamente a
Morro Velho explorava o ouro, o ouro era imune de imposto, de 1988 pra que
mudou, Nova Lima passou a receber pela exploração do ouro e minério também,
minério de ferro, a cidade até parece que enriqueceu né. A receita da prefeitura hoje
é fabulosa, então melhorou muito. (Irineu).
A grande arrecadação que faz de Nova Lima uma “cidade rica” se comparada com
outras da região metropolitana e do estado, mascara uma situação de exclusão e segregação
que os ocasionais e bem intencionados esforços das administrações municipais não
conseguem reverter: a falta de domínio da administração pública sobre o destino de 90% do
território, antes de posse das mineradoras, hoje divididos com os grandes empreendimentos
imobiliários. Pequena parte desse território se encontra nas mãos de pequenos empresários,
muitos deles através de concessão de terras e isenção de impostos, via Prefeitura Municipal.
Essa ausência de autodeterminação manteve a cidade defasada em termos sócio-
econômicos, culturais, urbanísticos, ambientais, educativos, arquitetônicos e patrimoniais,
apesar e por causa de sua riqueza. Quando o “progresso” chegou, na década passada, às suas
portas, foi um progresso imposto, com o ritmo e o modelo da metrópole, em função das
necessidades da elite da capital mineira e não dentro de um projeto de sociedade novalimense.
A partir de 90, foi criado no município um “clima de negócios” impulsionado pelo fim
da extração do ouro, que procurou atrair novos investimentos e novas empresas, através da
redução ou isenção de impostos, cessão de áreas para instalação de empreendimentos,
capacitação de mão de obra, investimentos em infra-estrutura, em especial na malha viária.
Dessa maneira, os recursos públicos são mais uma vez utilizados para aumentar o lucro e a
produtividade do setor privado, inclusive de empresas transnacionais, sob a alegação de
aumento do número de empregos. Com isto se atraiu principalmente os serviços de comando e
72
controle (indústrias de escritórios) e espaços de consumo e lazer, além de pequenas empresas
ilhadas, pouco participantes na vida política e social da cidade. De 1990 a 2002, 366 novas
empresas se instalaram no município, sendo os principais ramos: consultoria e assessoria,
serviços médicos, construção civil, distribuição e representação e serviços de arquitetura.
(COSTA; PACHECO; 2006, p. 135).
Na busca de inserção numa economia globalizada, Nova Lima adotou as chamadas
“estratégias de empresariamento urbano”: legislação tributária favorável, flexibilização nas
negociações com empresários, incentivos fiscais seletivos, estabelecendo como critérios a
sustentabilidade ambiental e a oferta de empregos para moradores em Nova Lima, critérios
estes burlados com a costumeira sagacidade do capital, quando se trata de proteger seus
interesses. Na prática, como mostram os dados, cresceram realmente na cidade os empregos
de baixa qualificação e a questão ambiental foi silenciada através da institucionalização e
burocratização dos movimentos ecológicos.
Fraturas Sociais
Em Nova Lima a pobreza foi sempre invisível. O brilho do ouro ofuscou a visibilidade
das populações à margem ou estabelecidas em precárias condições, seja habitando residências
cedidas pela mineradora, que com isto mantinha o contingente trabalhador nas suas mãos, seja
nos enfavelamentos e aglomerados ou na realidade pouco conhecida dos milhares de
migrantes que aqui não conseguiram se fixar para viver.
Atualmente, a rica Nova Lima dos condomínios mascara a realidade da falta de espaço
territorial para a população e para as áreas públicas, o aumento do custo de vida, em especial
no campo imobiliário, o domínio crescente do capital sobre o território e a vida política, o
caos no trânsito, a precariedade do transporte coletivo, as incertezas quanto ao futuro.
Bons projetos de promoção social, desenvolvidos pela administração municipal,
atenuam a gravidade da situação, atraindo migrantes em busca dos benefícios que a cidade
oferece.
O novo padrão que a pós-modernidade trouxe, nestes tempos de globalização
desenfreada, em que as elites se encastelam em enclaves hiperprotegidos, encontrou sua
forma em Nova Lima na interação com o modelo construído de cidade. Os condomínios, os
grandes empreendimentos imobiliários, as “mansões”, estão dispostos no entorno da cidade,
nos morros e colinas, pressionando ainda mais a região central, onde a carência por espaços
de moradia e o alto preço dos imóveis impede que o cidadão novalimense médio se estabeleça
73
com dignidade. A cidade passa então de uma longa história de humilhação e discriminação
dos novalimenses em sua própria terra, fruto de uma colonização excludente, para um modelo
com os matizes pós-modernos, que através da exclusão de classe, mantêm sua população
apartada das possibilidades de ocupação do espaço e de fruição da natureza.
Alterou-se o perfil da segregação das camadas mais pobres, antes impedidas pelos
“rondeiros” das mineradoras de circular livremente no território em seu poder (inclusive no
“bairro dos ingleses”), mas com permissão informal, através das relações de amizade e
solidariedade de classe, ou por pressão de movimentos ambientalistas, para freqüentar os
recantos naturais bem preservados pela tradição britânica. Com a nova destinação dessas
terras para a especulação imobiliária e com a implantação dos condomínios fechados,
“enclaves fortificados” na expressão de Tereza Caldeira (1997) o processo de segregação
se acirrou, ganhou muros, guaritas, segurança interna, enquanto que a degradação de grandes
áreas se tornou realidade.
A cidade, antes arquitetonicamente estruturada entre os casarões coloniais ingleses do
bairro das Quintas, onde moravam os chefes, o staff da mineração, e os bonserás seriados dos
bairros operários, passa a ser cercada por mansões e construções modernas dos condomínios
de acesso restrito. A população desses bairros nobres se isola, mantendo como seu centro de
referência Belo Horizonte, com quase ou nenhum contato com Nova Lima e seus moradores,
a não ser com empregados que venham a ter. Os empreendimentos, em implantação,
escondem dos compradores em potencial o fato de estarem em território novalimense, pois
atendem ao mercado de Belo Horizonte, realizando na prática um antigo projeto belo-
horizontino de unir os dois municípios por um fantástico viaduto que atravessando a Serra do
Curral, uniria a Av.Afonso Pena a Nova Lima.
A auto-segregação sócio-espacial das elites é apresentada assim como parte de um
contrato espacial compatível com o baixo grau de diversidade social desejado para
as áreas de moradia, onde a capacidade de pagamento é utilizada para privatizar
serviços e limitar a entrada de estranhos e a passagem de vizinhos externos.
(ACSELRAD, 2006, p.144).
Apesar de contra a lei, essas prerrogativas se mantêm na prática, com a silenciosa
conivência das administrações a quem interessa esse tipo de moradores, como é o caso de
Nova Lima. A preferência pela população de alta renda e pelo estilo de vida dos condomínios
vem justificada pela necessidade de preservação ambiental, que a baixa densidade
demográfica e o nível de escolaridade desses núcleos podem sugerir.
74
A tudo isto se soma a privatização dos recantos naturais da região, até pouco tempo
utilizados pela população para a prática de esportes, lazer, para colher plantas medicinais e
para rituais religiosos. A região, que foi chamada de “pulmão” e “caixa d‟água” da Grande
BH, tem agora suas matas (remanescentes da Mata Atlântica), suas cachoeiras e cursos d‟água
cercados e recortados pela malha viária, pelos loteamentos e pelo aparato logístico que a
metrópole exige. Isso traz problemas para toda a região metropolitana que 50% da água
consumida na Grande BH se originam em Nova Lima, com captações comprometidas, como
no já citado Jardim Canadá.
O Plano Diretor do município, aprovado em 2007, foi feito após os planos diretores
particulares das mineradoras construírem suas projeções para o futuro de suas extensas áreas,
e o que sobra desse rateamento é um restrito território público, disperso entre áreas com
ocupações diversas, insuficiente para suprir as necessidades urbanas de seus habitantes.
Todo esse processo teve seu preço. A população da sede do município, cada dia mais
espremida nos 7% do território que lhe resta e nas periferias pouco estruturadas, desenvolveu
atitudes e posturas de estranhamento com o espaço e o cotidiano, estrangeiros na própria casa,
atados a vícios clientelistas e pouco propensos a se envolver em movimentos e práticas
associativas.
As camadas mais pobres são empurradas para áreas ainda disponíveis no perímetro
urbano, co-habitando precariamente em “puxados”, num mesmo lote, que os “arredores”
estão em processo de ocupação pelas classes abastadas da Grande BH.
A metrópole avança sobre localidades, recantos, vilas, lugares de convivência e
vizinhança, alterando o ritmo do cotidiano, as configurações familiares e a vida em sociedade.
A perda dos referenciais históricos, paisagísticos e societários produz novos sujeitos,
submetidos a processos característicos, ainda pouco compreendidos.
Os processos de subjetivação que se gestam no bojo dessas transformações trazem a
marca da transitoriedade, da inconsistência, da descartabilidade; principalmente são marcados
pelo desenraizamento e pela fragilidade dos vínculos. Em nome do progresso, se desfazem os
laços que sustentam a idéia de comunidade, do cotidiano compartilhado, do espaço público
como lugar de encontro e de produção desejante. Como diz Bauman, “a decadência da
comunidade nesse sentido se perpetua; uma vez instalada, cada vez menos estímulos para
deter a desintegração dos laços humanos e para procurar meios de unir de novo o que foi
rompido.” (BAUMAN, 2003, p.48).
As famílias das classes empobrecidas têm que responder à nova realidade com mais
trabalho (mal-remunerado) e menos convívio, às voltas com a proliferação da violência
75
doméstica, dos abusos, do adoecimento psíquico e com os equipamentos psicossociais do
Estado.
Zona de Fronteira
Na região de limite entre o município de Nova Lima e o de Belo Horizonte, prédios,
cada dia mais altos, avançam sobre o que resta das matas e campos, no frenético ritmo das
obras impulsionadas pela expansão do Capital, imprimindo um perfil surrealista à região,
coroado recentemente por uma apoteótica torre onde se pratica esportes radicais. Ali,
estabelecimentos comerciais, shoppings e points da vida noturna, provocam enormes
engarrafamentos, perturbando a vida de trabalhadores e estudantes novalimenses que
necessitam se deslocar para a Capital.
O bairro belo-horizontino Belvedere, no limite sul da cidade, afastado do centro da
capital, inaugurou, a partir da década de 70, um novo padrão de morar bem, o “estilo de vida
Belvedere”, incrementado pela instalação, na mesma década, do BH Shopping, marco desse
novo perfil de ocupação, que trouxe para Nova Lima novas possibilidades de trabalho e de
consumo, além do contato de todas as classes sociais com formas glamourizadas de ser e
viver. Pela proximidade com a sede do município (15 km) o BH Shopping modificou
substancialmente o estilo de vida de Nova Lima, dando um toque cosmopolita ao dia-a-dia
dos cidadãos novalimenses, consumidores em potencial ou ao grande número de
trabalhadores ali empregados em atividades variadas. Em Nova Lima todo mundo vai “ao
shopping”, podendo-se detectar um pequeno ritual de passagem na vida dos adolescentes
quando lhes é permitido ir com amigos, sem os pais, ao shopping, para lanchar no Mac
Donald‟s, ver as vitrines ou simplesmente participar da “azaração” dos garotos.
Quando do fechamento da mina de Morro Velho, foram contadas histórias de mineiros
e suas famílias que gastaram sua indenização num dia, nas atraentes lojas de departamentos,
nos faiscantes brinquedos e lanchonetes. O fruto de anos de suor e trabalho insalubre trocado
por quinquilharias e efêmeros prazeres, exprimindo bem essa passagem de um mundo regido
por regras rígidas e pesadas estruturas de trabalho para uma realidade onde a leviandade e a
fugacidade se aliam à ausência de perspectivas e sentidos.
O Belvedere III, com a permissão de residências multifamiliares, teve ocupação rápida
e intensa a partir do final de 90, no que foi seguido pelo Vila da Serra e Seis Pistas,
construindo o perfil verticalizado que desponta atrás das montanhas e sugere uma enorme
boca de tubarão, pronta para engolir outros cenários.
76
A extensão do território do município de Nova Lima, maior que o de Belo Horizonte,
acarreta dificuldades administrativas e contribui para a sensação de não-pertencimento da
população, como é o caso do bairro Jardim Canadá, situado às margens da Rodovia 040, em
área de preservação ambiental, que abriga centenas de pequenas empresas, de comércio e
indústria e recebe um grande número de migrantes de vários estados em busca da fronteira da
Capital. São personagens de variadas histórias de abandono de terras natais, de estilos de vida
na roça, no sertão, de longos trajetos, muitas vezes ligados à criminalidade e à violência.
Como traço comum a pobreza. Décadas atrás estariam engrossando o contingente da mina,
morando humildemente na sede do município, o que hoje se torna difícil com a enorme
valorização dos imóveis na cidade e com a ausência de frentes de trabalho que absorvam essa
mão de obra.
3.3 Novos espaços para uma segregação secular
Em Nova Lima, a dimensão absurda da posse do território pelas mineradoras, impediu
que mecanismos usuais de ocupação do espaço como o processo de industrialização, a
atuação do poder público, dos agentes imobiliários e dos movimentos sociais, pudessem ir se
constituindo como determinantes do processo de urbanização.
A grande extensão de terra, guardada e preservada para se transformar em mais-
riqueza para as elites nacionais e internacionais, se revelou a segunda safra da mineração. A
postura colonial e imperialista, em desuso nas nossas análises de conjuntura nesses tempos
neo-liberais, permanece e continua colhendo seus dividendos, agora, em total liberdade, sem
deveres trabalhistas, sem compromissos com a população local, sem greves ou levantes.
Alguns poucos movimentos civis se constituem como de afrontamento a essa situação, e,
afora isto, a resistência a esta fase extrema e perversa do capitalismo aparece como violência
urbana, em que a população segregada, refugo do sistema, na sua maior parte despolitizada,
mostra a sua cara, engrossando o caos social.
A população de Nova Lima sempre esteve à margem, no espaço cindido da cidade,
alijada anteriormente das terras em posse das mineradoras, que preservaram, com cuidado
britânico, aquelas que não foram destruídas pela atividade extrativista, para destiná-las à
especulação imobiliária, excluindo mais uma vez, dos novos espaços urbanos, aqueles que
produziram a sua riqueza.
77
Nova Lima sempre foi uma cidade de diferenças, né, de estratos e camadas da
sociedade. Você tinha onde morava o staff da Morro Velho, onde era a Vila dos
Operários, a vila do staff de meio intermédio. Nova Lima sempre isso
historicamente, tanto que o lugar em que a minha família mora, eu era a ultima casa,
vamos dizer, civil, da Vila Operária. Você andava mais um pouquinho, você batia
ali pela Rua Chalmers, por ali que eram as casas do staff médio, um outro tipo,
depois você ia para as Quintas. Isso em Nova Lima, essa segregação eu acho que ela
se faz, continua se fazendo, continua sendo, numa cidade. (Rita).
O caso de Nova Lima, com relação à segregação social, é mais grave que o usual nas
grandes cidades, pois as áreas nobres e os “espaços de valor” estão reservados aos grupos de
alta renda de fora da cidade, se praticando, além da segregação de classe, também a de
origem. Extensas e bem cuidadas áreas, acumuladas durante séculos pela mineração, se
valendo do poder e da riqueza construídos pelas mãos de seus milhares de trabalhadores, sem
bens, sem casa própria, são repassadas às elites de Belo Horizonte, que se apropriam, assim,
do território novalimense, sem nenhum compromisso com a população ao redor, sem rosto,
sem identidade, sem pedigree. Emblematicamente, nos coquetéis de lançamento dos mega
empreendimentos imobiliários da região, não se um rosto novalimense, nem mesmo de
autoridades. A elite faz a festa sem preocupações com os moradores que passam a ser parte do
entorno.
Na junção entre a zona sul de BH e a zona norte de Nova Lima acontece o que
podemos chamar de conurbação das elites, que a demarcação política do território é o que
menos importa, fazendo-se, ao contrário, o possível para se esquecer que aquelas paradisíacas
áreas mostradas em folders publicitários, ou que o hospital de ponta onde nascem os bebês
metropolitanos, pertencem a Nova Lima.
O descompasso é enorme entre o global e o local e a balança pende fortemente para o
poder de decisão das grandes empresas internacionais, com quase ou nenhuma participação
dos poderes políticos locais, e muito menos dos cidadãos, nas decisões quanto ao rumo dado
ao espaço e ao meio construído do município. O secular domínio que as empresas
mineradoras tiveram sobre toda a região criou uma prática de subserviência e acomodação em
toda a sociedade, que se reflete na postura dos cidadãos e dos poderes oficiais.
O poder público municipal e estadual, impotente com relação ao poderio do capital
internacional, barganha pequenos benefícios para a cidade, nas chamadas parcerias entre o
público e o privado, se restringindo a ajeitar, da melhor maneira, os efeitos funestos da
avassaladora fúria por lucros, que acomete os grandes grupos econômicos que têm negócios e
interesses na região e que passam, literalmente, por cima de estilos de vida, patrimônio
histórico e natural, espaços públicos e de convívio, engolindo tudo no seu disforme corpo
78
acéfalo. A bela natureza da região, acessível a poucos, passa a compor o conjunto de
diferenciais de status que contribuem para ampliar os processos de segregação e exclusão.
Na urbanização elitizada do Eixo Sul, o capital imobiliário vem sendo bem sucedido
na apropriação de mecanismos de preservação ambiental, que, embora pensados
para propriedades particulares, trazem em si a noção de um valor de uso coletivo,
transformando-os em mercadoria e agregando valor à terra e ao produto. (COSTA,
2006, p.120).
Apesar dos novos empreendimentos se adequarem à legislação vigente, os impactos de
seu conjunto na totalidade do território e na vida da população não é estudado, discutido e
avaliado. Os moradores dos condomínios, em defesa de sua qualidade de vida, se alienam dos
danos e degradações que não chegam à sua porta, ou melhor dizendo, à sua portaria. Nos
conflitos ambientais com empresas poluidoras, defendem com habilidade “seu quintal”, não
ampliando essa luta para o quintal dos mais fracos, no caso os moradores da sede e de bairros
e localidades economicamente desfavorecidos, sem poder político.
A criação, em 1990, da figura jurídica das RPPN Reservas Particulares do
Patrimônio Natural, visando à conservação integral de áreas privadas, com o aval do IBAMA
e órgãos estaduais de regulação, evoluiu, em seguida (1996), para uma flexibilização das
restrições de uso, se permitindo “o desenvolvimento de atividades de cunho científico,
cultural, educacional, recreativo e de lazer” . Além disto, essas áreas estão isentas do Imposto
Territorial Rural, sendo consideradas terras legalmente produtivas para efeito de Reforma
Agrária e funcionando como condicionantes para a aprovação de empreendimentos de alto
impacto. Isso era tudo que o capital imobiliário precisava para unir “qualidade de vida” a
grandes lucros. “[...] o que se compreende por proteção ao meio ambiente, integra
decisivamente os circuitos de valorização do capital que se constituíram através da produção
do espaço.” (FREITAS, 2006, p.187).
O grande loteamento Vale dos Cristais, lançado pela parceria da AngloGold e
Odebrecht, bastante próximo de áreas densamente ocupadas, utiliza da RPPN para manter o
entorno do condomínio livre de indesejáveis vizinhos , enquanto valoriza o empreendimento
com o marketing da preservação ambiental.
Dessa forma, a legislação respalda a impactação de uma determinada área (rica em
minerais, por exemplo), enquanto outra área (pobre em minerais), geralmente
próxima à área do empreendimento, passa a ser preservada na forma de RPPN, não
sofrendo tributação, sendo agraciada pela manutenção do direito de propriedade e
ainda, podendo ser objeto de empreendimentos imobiliários altamente rentáveis.
(FREITAS, 2006, p.186).
79
Assim como não projeto de nação, não projeto de município ou projeto de vida
que não sejam atravessados pela voracidade, pela aceleração e pelo descompromisso
neoliberal. Tudo se faz com aparência aleatória, mas na verdade um grande roteiro
perpassando tudo, que é o do Capitalismo, na sua forma extrema, em que o Consumo substitui
a Produção como foco de poder.
A descentralização global, mudanças inter-regionais e a desconcentração urbana,
tanto da população quanto da atividade econômica ameaçaram os modelos anteriores
de vida urbana. Entretanto, seria falso pensar que essa descentralização foi moldada
através da dispersão do poder econômico. Companhias multinacionais e
transnacionais aumentaram seu poder justamente por conseguirem coordenar
tomadas de decisões e mantê-las internas num contexto mundial instável.
(HARVEY, 1996: p.175).
Muitas posturas tidas como ecológicas reforçam a segregação. Freitas (2006), em
artigo que aborda o movimento ecológico e a (re)produção social no Eixo Sul de Belo
Horizonte, chama de “totalitarismo urbano” às práticas que, através de uma ideologia de
segurança e de “preservação” de áreas particulares, fortalecem a segregação espacial.
toda uma prática de higienização do espaço urbano, de aglutinação entre ciência
e capital, um revigoramento da segregação espacial e controle dos “indesejáveis”, e
uma importante retomada da metamorfose da renda fundiária em capital para
elevação dos ganhos econômicos de diversos grupos / pessoas cujos exemplos vistos
ao sul de Belo Horizonte são apenas a ponta de um imenso iceberg. Processo que se
arvora num discurso de “renovação urbana”, mas que é na realidade, uma prática
totalitária. (FREITAS, 2006, p.190).
Nova Lima reuniu as condições necessárias para uma abrupta transformação: os
interesses do capital saltando de uma condição primitiva, pesada, centralizadora, para outra
descentralizada, fragmentada, desregulamentada; e os interesses da urbanização expansiva na
região metropolitana de Belo Horizonte, com a explosão da capital sobre os municípios
vizinhos. A cidade vive, nesta passagem de milênio, muitas passagens: de modo de produção,
de modalidade econômica, de disposição do espaço urbano, de relação com a natureza, de
configurações sociais e da subjetividade. Assim a cidade operária se transforma abruptamente,
com formas de ocupação do espaço traçadas pelos interesses do capital globalizado, gerando
novas maneiras de se viver, demandando novas estratégias de sobrevivência e resistência às
forças segregadoras, que permitam outros fazeres e invenções. A idéia de avassaladora
invasão se impõe, mesmo se considerarmos que a cidade era uma cidade sitiada, tolhida na
sua liberdade de organização e de concepção de seu futuro.
80
Nesse processo de mudanças e de deslocamento acelerado dos modelos e das relações,
um vácuo se forma: as antigas estruturações se diluem, os grupos de referência se desfazem, o
futuro chegou antes do presente construído e desejado. Se perguntarmos hoje a uma criança
novalimense o que é mina, Serra do Curral ou Mata do Jambreiro, provavelmente
receberemos um olhar de espanto como resposta. A Velha Nova Lima, circunscrita pela
rodovia de Contorno, está rodeada pela Nova Lima dos empreendimentos fabulosos, da
população sem cara. Os silicóticos da Mina estão morrendo todos, sem indenização digna e
sem reconhecimento, últimos vestígios de uma história de lutas que não foi contada para as
novas gerações. Como se posicionam os cidadãos, habitantes dessa Nova Lima em
dissolução? Como percebem, sentem e expressam esses impactos sobre seu cotidiano? Como
acontecem as reinvenções e as remontagens?
Nesses movimentos de desterritorialização e reterritorialização poderíamos
vislumbrar o que Deleuze & Guattari chamariam procedimentos de descodificação dos
códigos culturais das situações invadidas e de recodificação das culturas locais por novos
fluxos coletivos de enunciação. Enunciados por sujeitos produzidos em situações-limite, num
momento histórico de extremos, na carência e no excesso, no luxo dos condomínios
desodorizados e na penúria de cidadãos sem perspectiva. Nova Lima se apresenta como
espaço de hibridações e capturas, possibilidades diversas, como ser engolida, deglutida a
exemplo das congonhas, pelas forças da inércia e do poderio econômico ou recompor
trajetórias de coragem e união, reinventadas no cotidiano da grande metrópole que chega às
suas portas, cruel, instigante, ampla e assustadora.
81
4 METROPÓLE E SUBJETIVAÇÃO: TRANSFORMAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
EM NOVA LIMA
“O drama urbanístico que se esboça no horizonte deste fim de milênio é
apenas um aspecto de uma crise muito mais fundamental que envolve o
próprio futuro da espécie humana.” (Félix Guattari).
É sempre importante lembrar que o acelerado processo de metropolização vivido em
Nova Lima está inscrito, articulado e atravessado por movimentos e configurações em nível
mundial que alteraram substancialmente as relações de poder internacionais e no nível local.
Tais mudanças, potencializadas a partir da década de 90, vêm sendo delineadas pelas formas
como o Capital se inscreveu no território novalimense, desde o século XVIII, no início como
pequenas e isoladas empreitadas dos primeiros exploradores das minas e dos garimpos, até o
momento em que o capital estrangeiro se instalou, ocupando e dominando não toda a
extensão territorial, mas também os espaços sócio-políticos e as maneiras de se viver e de se
conceber o mundo. “Tudo que acontece em Nova Lima, acontece no mundo inteiro, tudo que
acontece no mundo, acontece aqui. Tudo, do bom, do ruim, tudo.” (Irineu).
Os entrevistados pela pesquisa, moradores de Nova Lima, falaram extensamente de
suas percepções, sentimentos, vontades e idéias sobre a vida da cidade, seu crescimento
vertiginoso e sobre as características da grande metrópole que se misturam, se chocam ou
invadem a sua atmosfera interiorana. Alguns percebem e comentam as relações entre o que
aqui ocorre e as macropolíticas transnacionais que influem, pressionam, modelam no nível
molecular, as micropolíticas do cotidiano. Os processos de subjetivação produzidos na Nova
Lima de hoje têm conexões tanto com a história de sua (trans)formação enquanto cidade,
espaço vivido, território usado por seus habitantes, como com as instâncias mundiais do
império capitalista, que, nas suas formas atuais, transborda a metrópole e ganha novos
contornos.
Pequenas ilhas de Primeiríssimo Mundo por toda a parte, constituindo a cidade da
elite global, rodeada de Terceiro Mundo por todos os lados, constituindo o mar dos
excluídos, dos inempregáveis, dos inúteis e sem préstimo. A cidade é desmembrada
e satelitizada pelo capitalismo. (PELBART, 1997, p.34).
Modernidade, capitalismo, grandes cidades estiveram acoplados desde o início, uns
alimentando e sustentando outros no seu poder de expansão e na sua eficácia.
82
As transformações do século XX, ocorridas nas cidades, nos sistemas político-
econômicos, nos modos de produção, na vida social e nos processos de subjetivação, foram
perpassadas pela constante contraposição, muitas vezes sangrenta, entre
socialismo/comunismo e capitalismo, até o final de 80, quando a Perestroika e a queda do
muro de Berlim, selaram a derrocada das forças que se contrapunham ao sistema capitalista,
que passou a imperar solitário, como tendência hegemônica, globalizando seus domínios,
varrendo ideologias e instaurando o unilateralismo que invadiu todos os âmbitos. Após a
década de 90, esses processos foram impulsionados, dentro do chamado neoliberalismo, em
que as potências detentoras do poder econômico, lideradas pelos Estados Unidos, agora sem a
“ameaça vermelha”, impõem seu ritmo às “nações periféricas”.
[...] você tem que convir que o mundo mudou, o mundo agora é capitalista, você
ouviu falar em alguém socialista? A China não está tendo que ir aos poucos aderindo
ao capitalismo assim disfarçado para poder chegar aos grandes? Isso , em Nova
Lima, é conseqüência, na minha opinião, é conseqüência. (Wânia)
Essa chamada “nova ordem”, baseada em princípios liberais de flexibilização de
regras, abertura dos mercados à livre concorrência e desregulamentação da vida político-
econômica, traz no seu bojo uma impermeabilidade às mudanças. Reduz-se a necessidade de
coerção ou repressão, no nível político, pois a visão de mundo e a forma de vida hegemônicas
se colocam como única opção visível e viável. Milton Santos se expressando sobre as novas
dinâmicas da modernidade, diz que, diferente de períodos históricos anteriores, a
modernidade de nosso tempo é irrecusável, não sendo posta a opção de ser desprezada ou não
aceita. “A modernidade dos nossos tempos [...] é uma modernidade queo se pode recusar.”
(SANTOS, 1988, p.24). Isso serve para todos os campos, desde as mais primitivas sociedades
até as estratégias de conquista do espaço sideral, e principalmente, para o campo das
tecnologias virtuais, onipresentes e intimamente ligadas às novas concepções de mundo.
Na chamada, por alguns, pós-modernidade, se instala o movimento de fluidificação da
legislação, das instituições, das relações de trabalho, enfim de todo o aparelho do Estado e da
vida dos cidadãos a ele circunscritos, estratégia de manutenção do capitalismo tardio. Esse
projeto político se estende, a partir da década de 90, pelos quatro cantos do mundo, que se
pretendeu homogeneizar, dentro de uma proposta de globalização que Milton Santos prefere
chamar de Globaritarismo, para salientar seu caráter impositivo e totalitário.
Essa nova ordem se estabelece como indiscutível e inquestionável, com pouco espaço
para posturas éticas, vínculos duradouros, escolhas que priorizem o humano. Nesse processo,
83
o derretimento das instituições e das tradições se estendeu, em seguida, aos elos entre as
escolhas individuais e os projetos e ações coletivas.
Na verdade, nenhum molde foi quebrado sem que fosse substituído por outro; as
pessoas foram libertadas de suas velhas gaiolas apenas para ser admoestadas e
censuradas caso não conseguissem se recolocar, através de seus próprios esforços
dedicados, contínuos e verdadeiramente infindáveis, nos nichos pré-fabricados da
nova ordem... (BAUMAN, 2001, p. 13).
Com a redução do papel do Estado e o crescente domínio do Mercado, esgarçaram-se
as fronteiras político-geográficas e novos territórios se constituíram baseados em interesses do
campo econômico e de rotas transnacionais poderosíssimas, que alteraram a vida de países e
localidades, desde os edifícios de Manhattan até os povoados da China. A própria idéia de
nação é na prática esvaziada que a grande soberania é a do lucro imediato e todos os
sistemas e práticas devem a isto se adaptar para sobreviver. Como um grande e voraz Midas,
o sistema transforma tudo que toca em mercadoria, incluídas a cultura, a natureza e a
humanidade, desconstruindo os campos da ética, do humanismo e dos ideais de igualdade
social.
[...] valores éticos, valores morais, deveriam ser os mesmos, mas não sei não, eu
acho que as coisas mudaram. Hoje em dia você falar com uma pessoa assim: “não
faça isso que não é certo”, ele vira para você e diz: “Uai! Mas como é que fulano faz
e está no alto, sendo recebido com tapetes e festas e foguetes? É difícil, né.
(Wânia).
Na esteira das modificações que o processo de globalização trouxe para o mundo são
engolidas e eliminadas as diferenças, as especificidades, as singularidades em nome de uma
liberdade de escolha regida pelas leis do Mercado.
A partir da década de 90 assistimos à ampliação da dispersão social do trabalho,
provocada pela transnacionalização dos sistemas produtivos, pela precarização das relações
salariais e dos direitos trabalhistas, pelo aumento do trabalho autônomo e da informalidade,
ocasionando a diluição e o enfraquecimento dos sindicatos e processos de silenciamento
ideológico e de supressão da atividade política. Ao mesmo tempo, o regime de urgência e
aceleração, imposto pela desenfreada busca por resultados imediatos, atrelados ao mercado
financeiro, instala no seio das empresas e de toda vida social, a velocidade e a
competitividade geradoras de tensão, insegurança, insatisfação.
Em Nova Lima, em que o sindicato dos mineiros representou um baluarte de estratégia
política e de resistência às imposições do capital estrangeiro, essa nova configuração provoca
o esvaziamento da atividade sindical e o surgimento de um sindicalismo muito envolvido com
84
a imagem e com resultados imediatos, apartado dos efeitos que a secular exploração mineral
legou ao município, como a silicose, o desemprego, o passivo ambiental, o estrangulamento
espacial e a avassaladora expansão imobiliária.
A globalização da economia exacerbou a desigualdade entre países desenvolvidos
(centrais) e os periféricos, no chamado vetor norte/sul, com o domínio das empresas
multi/transnacionais no mercado global, a partir da desregulação do mercado financeiro, da
erosão do poder dos Estados e da dependência tecnológica dos países do Terceiro Mundo. A
chamada abertura das economias”, empurradas para a exportação e o assujeitamento aos
programas de ajustes do Banco Mundial e do FMI, trouxeram para os países da América
Latina o recrudescimento do desemprego, da fome e da miséria (quadro recentemente
modificado, por alguns países, dentre eles o Brasil), junto a novos efeitos, como a progressiva
degradação ambiental e a violência urbana, ligada principalmente ao tráfico de drogas.
Falando sobre o capitalismo globalizado dos nossos dias, Milton Santos aponta que o
período atual é atípico, pois é ao mesmo tempo um período cujas variáveis tudo influenciam,
por toda parte, se superpondo a uma crise de fortes contornos e generalizada, permanente e de
amplo espectro. D falarmos de uma “normalidade da crise”, podendo-se dizer que neste
período histórico a crise é estrutural. “Na verdade, trata-se de uma crise global, cuja evidência
se faz tanto por meio de fenômenos globais como de manifestações particulares, neste ou
naquele país, neste ou naquele momento, mas para produzir o novo estágio da crise. Nada é
duradouro.” (SANTOS, 2002, p.91) Os interesses hegemônicos, buscando soluções, criam
mais crises, que o dinheiro é intocável e o sistema que tiraniza o planeta é extremamente
permissivo com os atores hegemônicos.
A associação entre a tirania do dinheiro e a tirania da informação conduz, desse
modo, à aceleração dos processos hegemônicos, legitimados pelo “pensamento
único”, enquanto os demais processos são deglutidos ou se adaptam passiva ou
ativamente, tornando-se homogeneizados. (SANTOS, 2002, p.91).
então uma centralização e concentração da economia se apoiando na flexibilidade
dos comportamentos e numa “política” disseminada por todo o corpo social que não passa de
“normatizações particularistas, conduzidas por atores privados que ignoram o interesse
social.” (SANTOS, 2002, p.92) A crise que o sistema deseja afastar é a financeira, o que
aprofunda e agrava ainda mais a crise real do nosso tempo: econômica, social, política e
moral.
As soluções imediatas, remendos num sistema que vive de crises e delas tira
estratégias de maior lucratividade, vão se tornando cada dia mais impotentes para cobrir os
85
rombos e as quebras, sejam eles financeiros, no meio ambiente, na vida das populações ou na
intimidade das subjetividades despedaçadas.
A busca de remédios eficazes não parece possível sem que o modelo global imposto
a cada país seja revisto. Assim, mais cedo ou mais tarde, todos os países submetidos
ao jugo da globalização perversa serão forçados a rever os termos atuais de sua
dependência. (SANTOS, 2002, p.116).
Cogita-se, percebe-se, identifica-se um novo paradigma emergente, que romperia com
o que a modernidade e o capitalismo trouxeram a nossos caóticos dias e tentaria dar conta de
uma outra globalização, um outro mundo, uma nova humanidade. Esse novo paradigma
romperia com a racionalidade instrumental, com os dualismos epistemológicos
(sujeito/objeto, meios/fins, fatos/valores) e com a concepção mecanicista da natureza e da
sociedade, que, com sua pretensa neutralidade e objetividade científica, se mostrou
insuficiente para abarcar a complexidade e a heterogeneidade dos grandes problemas da vida
coletiva e das relações interculturais.
No seu livro “Pela mão de Alice”, Boaventura Santos fala da crise do modelo
civilizacional e do paradigma da modernidade, identificando uma transição paradigmática,
nas suas dimensões sociais, políticas e culturais, propondo o que ele denomina de paradigma
eco-socialista, que viria a recolocar e redimensionar a democracia e a capacidade
emancipatória, sobre uma nova subjetividade e uma nova cidadania, trazendo de volta a
vontade de transformação pessoal e coletiva. Dentro do novo paradigma se encontra em
primeiro plano a questão ecológica que está assentada na contradição entre a finitude do
ecossistema terrestre e a suposta infinitude da acumulação capitalista, com foco nas condições
de produção, ou seja, tudo que é tratado como mercadoria apesar de não ter sido produzido
como mercadoria, ressaltando-se a tendência do capital de apropriar-se de modo
autodestrutivo, tanto da força de trabalho, como do espaço, da natureza e do meio ambiente
em geral. (SANTOS, 1997, p.44).
Milton Santos aponta a ausência da dimensão humana e cidadã no projeto de mundo
da globalização:
Essa globalização por enquanto não leva em conta o homem. De modo que esse
espaço do cidadão tem que ser recriado a partir dos níveis abaixo do mundo. Não é o
mundo que vai criar o cidadão. O chamado mundo quer acabar com as cidadanias,
mas cada nação e cada espaço e cada cidade é que vai ter a força de recriar esse
cidadão que vai contribuir, creio eu, mais tarde, para sugerir uma outra
globalização. (SANTOS, 2002, p.141).
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Outras formas de se apropriar e se responsabilizar coletivamente pelo mundo são
discutidas em instâncias das quais o Fórum Social Mundial é a mais representativa e
abrangente, mas iniciativas menores proliferam em toda parte, algumas utilizando de forma
criativa e transformadora a Internet e as tecnologias digitais.
Nunca houve no nero humano uma tão acentuada potência capaz de articular e de
levar a cabo conjunções praticamente ilimitadas entre forças presentes no homem e
os mais variados mini conjuntos do seu universo ambiente; ao mesmo tempo, nunca
se viveu tão sistemático, cotidiano e envolvente sucateamento da humanidade.
(ORLANDI, 2001, p.39).
Acelerações
“Hoje é relógio no braço e tempo pra correr” (Fernando).
O processo de globalização, em alguns aspectos, rompe com a organização do espaço
mundial, suas fronteiras se dissolvem, suas distâncias são suprimidas. Novas redes de
intercâmbio se formam, outras se desfazem, configurando as bases da inovadora noção de
“espaço virtual”. Ao mesmo tempo, se desenvolvem as novas concepções de tempo virtual,
tempo flexível, instantaneidade, tempo real, que inauguram o domínio da urgência na pós-
modernidade.
Nicole Aubert, no seu livro “O culto da urgência”, aborda as manifestações da nova
cultura do imediato e da urgência no trabalho nas empresas e as conseqüências que ela
introduz. A autora relaciona as mudanças na abordagem do Tempo ao momento sócio-
econômico de extrema exacerbação do Capital e da competição, levando à temporalização do
espaço mundial e à frenética busca por lucros imediatos e por um crescimento sem limites. O
livro sinaliza para a radicalização do relacionamento com o Tempo, ocorrida desde a última
década do séc. XX, com a emergência de novas formas de expressão: velocidade, urgência,
imediatismo e instantaneidade, geradas pela globalização econômica e possibilitadas pela
revolução nas telecomunicações.
Quanto mais veloz o Capital, maiores os lucros, resultando daí a aceleração da
globalização e da conquista de novos mercados.
Os últimos anos do séc. XX, assim como os primeiros do novo milênio, parecem
marcados pela ascensão irresistível do reino da urgência, em vias de se estabelecer
como um modo privilegiado de regulação social e de uma modalidade da
organização da vida coletiva. (AUBERT, 2003, p.34) [tradução nossa].
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A transformação do modo de regulação de nossas sociedades ocidentais passa do
controle exclusivo do Estado para uma regulação, em grande parte, assegurada pela
instantaneidade da lógica do Mercado Financeiro, se apoiando sobre a revolução no domínio
da Informação, com a fusão entre Telecomunicação e Informática. “Utilizando a
instantaneidade induzida pelas novas tecnologias, a lógica do Mercado, com suas exigências,
impôs então sua temporalidade própria conduzindo ao advento de uma urgência
generalizada.” (AUBERT, 2003, p.38) [tradução nossa].
O sistema capitalista, na sua expressão atual, exige um ritmo acelerado de vida, de
produção, de comunicação. Tecnologia, arquitetura, urbanização convergem e conspiram para
que os lucros, cada dia concentrados em menos mãos, cresçam e gerem necessidades cada dia
mais disseminadas por todas as camadas sociais. As inovações em todos os campos, mesmo
que para efeitos de manutenção da velha ordem das elites, exigem adaptações constantes e
atualização é a palavra “da hora”.
Alguns órgãos que foram feitos e preparados para nos atender, um banco por
exemplo, você tem que..., você agenda qual o horário que você pode ser atendido, o
tempo está tão corrido, que a gente tem que agendar até o dia que a gente pode ir no
banco resolver alguma coisa, né. Eu não estou conseguindo entender estas coisas
não. (Fernando).
A efemeridade dos planos e projetos, a superficialidade dos contatos e a constante
renovação deixam “pouco espaço para a vida vivida como projeto, para planejamento de
longo prazo e esperanças de longo alcance”. (BAUMAN, 1998, p.50).
Os sistemas de informação, em tempo real, colocam em contato realidades diversas,
homogeneizadas pelo modo de vida capitalístico que tem na velocidade seu ponto de
referência.
[...] quando não havia televisão, satélite, nada, você ficava sabendo das coisas da
Europa e dos EUA, lá para o norte, você ficava sabendo quanto tempo depois? Então
a gente ficava sabendo era muito tempo depois, agora é um segundo, passa alguns
segundos e você sabe o que terrorista fez ali, o que aconteceu, e outra coisa, de uma
certa forma a publicidade no Brasil, eles colocam os crimes lá, ah! aconteceu isto!
puseram fogo num mendigo, daí a pouco chega o povo copiando aqui. Ensina o
comportamento da pessoa, entendeu? (Wânia).
O curto prazo das operações financeiras se estende por toda a malha social,
instaurando, por contágio, uma urgência ideológica, disseminada por todo o planeta. O espaço
e tempo virtuais inauguram uma era em que as materializações se tornam dispensáveis, já que
as virtualidades, os simulacros se bastam a si mesmos. As novas paisagens, hibridações em
permanente mutância, mesclam influências, contágios, tendências e constroem mundos dentro
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de mundos, realidades múltiplas, que podem massificar e assujeitar ou abrir espaços de
singularizações. O impacto dessas aceleradas mudanças, em vários níveis, é sentido também
pelas populações periféricas das grandes metrópoles, como é o caso de Nova Lima na Grande
BH.
Eu acho que o crescimento da cidade é uma mudança muito grande, é o crescimento
onde ninguém conhece mais ninguém, ou seja está entrando nesse ritmo de coisa ...
Porque Nova Lima sempre foi uma cidade de migrantes, de gente que veio e gente
que foi, mas as pessoas se conheciam de uma certa forma. Isso veio em um período
de tempo muito curto, muito curto, se você pensar, dez, vinte anos atrás, você não
tinha essa expansão última que você está tendo agora dos novos condomínios e mais
do centro da cidade também. É menos de uma geração, é menos que o período de
uma geração. (Rita.)
As grandes cidades, ponto de confluência das maravilhas e das misérias de todo
sistema, grande caldeirão das diferenças, levam aos extremos as conquistas e fracassos do
nosso momento histórico, acolhendo a frenética busca de multidões por oportunidades,
templos de consumo, anonimato e, principalmente, pelo progresso, possibilidade de
crescimento e ampliação de posses e de poder. Nelas o tempo urge e os espaços se
multiplicam, forjados pelas mesmas maquinações que modelam também as subjetividades.
Eu acho que é aquela corrida! A pessoa corre o dia inteiro, trabalha o dia inteiro,
chega estafado, oito horas, nove horas da noite, não quer aposentar, porque se
aposentar morre, porque o ordenado cai mesmo, então você a preocupação de
cunho material. (Wânia).
Na metrópole, as configurações espaciais estão a serviço do Capital e do reino da
Urgência. Edificações, malha viária, disposições estão, todas, montadas pela maquinaria de
controle para que se produza mais, em menos tempo, sem muitos gastos, sem dispersão e com
máximo aproveitamento. No mecanismo da aceleração, da simultaneidade, da urgência, a
sociedade, os grupos e as pessoas se curvam a um ritmo que poderia ser classificado de
desumano, pois, no seu reducionismo que visa o lucro, quase sempre elimina a complexidade
dos afetos, desejos, movimentos, encontros que compõem a trajetória humana, incluídos o
acaso, o inesperado, a errância do desejo e as inutilidades produtivas.
Ninguém bom dia, boa tarde, boa noite, porque não está tendo tempo. A gente
tinha prazer, era uma cidade família, hoje já não é mais. As pessoas que nasceram há
um tempo atrás elas tinham um fim de semana, era um tempo de se encontrar um ao
outro, ter um diálogo com o outro, hoje é relógio no braço e tempo para correr.
(Fernando).
89
Mudanças na organização sócio-econômica e inusitadas configurações espaço-
temporais, conectadas com as tendências do capitalismo globalizado, trouxeram para Nova
Lima ritmos de vida e de trabalho mergulhados na agitação e no stress, no trânsito caótico, na
poluição sonora, nas extensas jornadas e grandes deslocamentos, formas de se viver picas
das metrópoles. Com isto se alteram as rotinas, as oportunidades de convívio e de relação
com a cidade e com os “conterrâneos”.
A mudança está sendo muita, não pelo lado econômico de querer ter alguma
coisa, de possuir, mas a gente tinha muito mais tempo de ir na pracinha, comer
uma pipoca de tio Wilson. Todo mundo sabia o nome de um por um e sabia de tudo
que estava acontecendo, mas o avanço veio tão correndo pra que está fazendo a
gente fugir daqui. (Fernando)
4.1 Cidades, Metrópoles, Megalópoles
Se é o Estado moderno que ao capitalismo seus modelos de realização, o
que se encontra assim realizado é uma axiomática independente, mundial,
que é uma e mesma cidade, megalópolis ou “megamáquina”, de que os
Estados, são partes, bairros. (DELEUZE & GUATTARI).
É na cidade que a modernidade se concretiza e se amplia, nos aglomerados humanos,
nas linhas retas do traçado das ruas, na verticalidade de seus prédios, na proliferação dos
espaços de compra e venda. A cidade moderna reuniu em si todos os atributos da
racionalidade com suas divisões funcionais, os indivíduos se aglomerando para trabalhar nas
indústrias, a vida circulando rapidamente, a concorrência, as novidades e a multiplicidade de
encontros e de oferta de serviços.
Se a modernidade se configurou em volta do trabalho e do lucro, o entorno das
atividades econômicas se constituiu no palco em que surge o homo urbanus, regido pela
velocidade, pelo imperativo das máquinas, pelas repetitivas rotinas das linhas de produção e
pelo contato com a diversidade multifacetada da cidade moderna.
A grande cidade é antes de tudo um espaço integrante da modernidade capitalista. É
privatizada, segregada e segmentada, não obstante as tentativas de gestão
democrática e participativa em muitas regiões urbanas. É dinâmica, excludente e
desigual, mesmo que permeada de possibilidades e de novos tipos de arranjos
institucionais envolvendo práticas inclusivas e novos atores (MATOS, 2006, p. 58).
Durante o século XX, a tecnologia encheu as cidades com seus artefatos de
locomoção, de produção industrial, de telecomunicação, de conforto doméstico.
90
Principalmente aí se localizou o dinheiro e as possibilidades de a ele ter acesso. Atrás de tudo
isto, milhões se deslocaram do campo chegando, em 2000, ao índice de cerca de 50% da
população mundial nas cidades, sendo que no Brasil, segundo censos do IBGE, esse índice
sobe para 81%, com 15% dos brasileiros vivendo nas 8 cidades mais populosas.
A cidade atrai para si tudo o que nasce, da natureza e do trabalho, noutros lugares:
frutos e objetos, produtos e produtores, obras e criações, atividades e situações. O
que ela cria? Nada. Ela centraliza as criações. E, no entanto, ela cria tudo. [...] Ela
cria uma situação, a situação urbana, onde as coisas diferentes advêm umas das
outras e não existem separadamente, mas segundo as diferenças. (LEFEBVRE,
1999, p.109).
A cidade contemporânea transborda seus próprios limites e invade todo o território
num processo que
[...] reflete o caráter do capitalismo tardio em sua tentativa de industrializar todos os
ramos e setores da economia, onde tudo se torna matéria vendável, inclusive as
„novas raridades‟ nas palavras de Lefebvre, aquilo que era abundante e se torna
escasso: o espaço, o ar, a água, a terra, a luz. (LINHARES; MAGALHÃES;
MONTE-MÓR, 2006, p. 395).
A essas raridades poderíamos acrescentar outras, como os direitos, a cidadania, o
desejo, o tempo, todos sujeitos ao sucateamento e à banalização, próprios à superficialidade e
à labilidade propiciada pelas relações do Mercado e pela vida nas grandes cidades.
Roberto Monte-Mór denomina urbanização extensiva à extensão do tecido urbano e
das relações de comando da metrópole sobre todo o território. Com isto se disseminam as
condições e relações requeridas pela economia capitalista e diversos outros aspectos
socioculturais e espaciais, característicos da urbanidade, transformando a rede de cidades em
área de influência da metrópole, no que Lefebvre denomina “sociedade urbana”, marcada
pelos conflitos e exigências do modo de produção capitalista.
Não está no calcanhar não, Belo Horizonte está dentro, está dentro, eu estou falando
que está dentro, assim o número de pessoas que moram e trabalham aqui, moram
aqui e trabalham lá, mas continua sendo Nova Lima à parte. (Rita).
Eu consigo perceber mais gente subindo pra Belo Horizonte mesmo, virou cidade
dormitório mesmo, pessoal tem que sair. Acho que essa proximidade muito grande
com Belo Horizonte, ainda mais com o shopping logo ali, um Carrefour, um Extra,
realmente é muito fácil pro pessoal daqui comprar lá, então consegue preços
melhores. a gente que os supermercados, as lojas de Nova Lima não
conseguem avançar muito. (Rodrigo).
A metrópole atual se constitui assim no retrato da flexibilização, da precarização e
desregulamentação dos mercados de trabalho pós- modernos, em que a riqueza convive lado a
91
lado com a pobreza, ambas produzidas e desenvolvidas nas grandes cidades do capitalismo
contemporâneo, estratificadas no espaço urbano através de muros e aparatos ostensivos ou de
sutis códigos de pertencimento difundidos pelo corpo social. Sobre o fato novo da produção
do espaço pelas forças hegemônicas do capitalismo globalizado, Henri Lefebvre, diz em seu
livro “A Revolução Urbana”:
Há poucos anos não se podia imaginar outra „produção que não fosse a de um
objeto, localizado, aqui e ali, no espaço: um objeto usual, uma máquina, um livro,
um quadro. Hoje o espaço inteiro entra na produção como um produto através da
compra, da venda, da troca de parcelas do espaço. (LEFEBVRE, 1999, p.140).
Nessa obra de 1970, o autor distingue os contornos da grande mudança, a caminho,
nas relações entre o fenômeno urbano e a crise permanente do sistema capitalista, que
encontrou na especulação imobiliária, nas obras faraônicas e na compra e venda do espaço,
um novo filão, em escala mundial para adiar o esgotamento das suas possibilidades de
sustentação.
A situação de Nova Lima, nesse início de século, se encaixa marcadamente nesses
contornos premonitórios de Lefebvre, tendo sua economia, ainda definida e sustentada pelas
mineradoras, sido traçada para um futuro imediato ligado aos grandes empreendimentos
imobiliários e às grandes obras para sua viabilização. Dispor da natureza, dos espaços de
convívio e de ampliação, à revelia de sua população nativa, impedindo outros possíveis rumos
a serem definidos por quem construiu a cidade e nela habita, é algo que choca e angustia seus
habitantes, mesmo considerando que esta terra nunca foi efetivamente “a nossa terra”. Sempre
em mãos privadas, que direcionaram o uso de seu território em proveito do capital
internacional, o que havia era uma ilusão de pertencimento.
Eu acho que tem a ver com a falta do cidadão no destino e tem a ver com os
latifúndios, porque quem determina o que vai..., o que está acontecendo na cidade
não é a cidade. Extra, é tudo extra cidade, é tudo de fora, que determina que vai ter
um bairro ali, vinte e cinco mil pessoas aqui, trinta mil ali, cinco mil acolá, se vai ser
classe A, B, C, D. Numa rapidez muito grande que a cidade não tem como nem
perceber, é muito rápida para ter essa história de sustentabilidade. (Rita).
Lefebvre fala da perniciosidade da situação em que a mais-valia formada e realizada
na indústria decresce enquanto a formada e realizada na especulação e pela construção
imobiliária aumenta, em que o circuito secundário suplanta o principal: “o capital imobiliza-se
no imobiliário. A economia geral (dita nacional) logo sofre com isto.” (LEFEBVRE, 1999,
p.144). E critica o urbanismo “de classe” que mascara e “azeita” toda essa situação, apesar da
percepção dos efeitos nefastos das investidas do capital imobiliário: “ O urbanismo propicia o
92
pressentimento e, às vezes, a exploração das novas raridades: o espaço, o tempo, o desejo, os
elementos (o ar, a água, a terra, o sol) [...] Sua leitura do espaço o conduz a ler a natureza, isto
é, a conceber a devastação e o fim da natureza” (LEFEBVRE, 1999, p.145).
Nessa vertente o urbano se opõe à preservação dos ecossistemas, dando vazão à
relação de exploração do capital sobre a natureza. Essa relação, secularmente pautada pelo
desrespeito às atuais e futuras gerações, desde o início da colonização brasileira dilapidou
nossa biodiversidade, enviando para a Europa riquezas inestimáveis. “Até então exploravam
o ouro, as minerações estão destruindo mesmo toda a nossa região, eles estão procurando
pelo lucro.” (Fernando).
O cuidado com o meio ambiente, tardiamente presente na agenda dos poderes
dominantes, ainda é visto, por estes, como entrave ao progresso e ao crescimento, à
industrialização e à urbanização, sendo criados impasses muitas vezes insolúveis, enquanto
prevalece a hegemonia do mercado e do lucro sobre as necessidades e carências das
populações e dos ecossistemas que nos abarcam.
A criação e a gestão de unidades de conservação, o licenciamento ambiental de
atividades tipicamente urbanas / metropolitanas são processos que revelam a
complexidade dos conflitos envolvidos entre os agentes presentes na produção do
espaço, usualmente explicitados na permanente contradição entre valores de uso e
valores de troca, espaços públicos/coletivos e privados, entre as lógicas da
reprodução social e da acumulação. (COSTA, 2006, p.15).
Assim sendo, cada ampliação da metrópole implicaria em negociação de espaços,
entre interesses, populações, gestões, se incluindo aí as questões ambientais, regidas por
vários âmbitos, desde os planetários aos locais.
Ao se referir à ideologia e ilusão urbanística, que mascara e dissimula a estratégia
capitalista de domínio do espaço sob a aparência humanista e tecnológica, Lefebvre pontua:
“A estratégia vai muito mais longe que a simples venda, pedaço por pedaço, do espaço. Ela
não só faz o espaço entrar na produção da mais valia, ela visa uma reorganização completa da
produção subordinada aos centros de informação e de decisão.” (LEFEBVRE, 1999, p.141).
A isso podemos acrescentar que esse novo produto posto à venda, o espaço, vem
mergulhado no marketing que apela para os desejos e sonhos envolvidos no ato de habitar,
revestindo-o de paradisíacas imagens e sugestão de plenitude, ligadas à localização, à
arquitetura, ao urbanismo e aos novos conceitos de morar.
A produção do espaço urbano/ metropolitano encontra-se completamente imbricada
com e embebida por dois outros processos usualmente vistos de forma separada: a
produção social da natureza, como ambiente transformado, muitas vezes
93
materializada como paisagem na expansão urbana, e a produção e reprodução de
valores, modos de vida, desejos e padrões de consumo, em particular aqueles
associados à habitação em sentido amplo. Ambos os processos m sido mediados
por relações sociais de mercado, crescentemente „naturalizadas‟ e incorporadas
como valor pelo aparato de regulação urbanística e ambiental. (COSTA, 2002, p. 14)
Assim o mercado imobiliário gesta consumidores adequados para determinados
espaços, que se adéquam por sua vez às prerrogativas do capital e do lucro, protegidos e
estimulados pelo Estado e suas instituições.
A Cidade e seus tentáculos
O espaço urbano deixou assim de se restringir a um conjunto denso e definido de
edificações para significar, de maneira mais ampla, a predominância da cidade sobre
o campo. Periferias, subúrbios, distritos industriais, estradas e vias expressas
recobrem e absorvem zonas agrícolas num movimento incessante de urbanização.
No limite este movimento tende a devorar todo o espaço, transformando em urbana
a sociedade como um todo (ROLNIK, 1988, p.12).
O crescimento e o inchaço das metrópoles é uma tendência mundial, a ponto de se
falar em arquipélagos de metrópoles interligadas virtualmente, disseminadas por todo o tecido
social, como tentáculos de um grande polvo insaciável. Em 2006 a população urbana do
planeta se equiparou à do campo, selando assim uma tendência iniciada com a revolução
industrial. Estima-se que nas próximas décadas 80% da população mundial estarão nos
aglomerados urbanos, sujeitos aos efeitos de complexas conformações espaço-temporais,
arquitetônicas, sócio-políticas e a uma gama de problemas ligados à segregação, à exclusão e
ao domínio da urgência.
As metrópoles avançam sobre comunidades estruturadas em modelos econômicos e
sociais ainda ligados a outros períodos históricos, trazendo impactos variados: sociais,
ambientais, psicológicos. Seu modo de vida se instala, então, nos arredores, nas periferias e se
expande pelos municípios vizinhos, imprimindo suas marcas na paisagem, nas formas de
habitar, moldando as maneiras de ser e sentir, a linguagem, os desejos.
No seu texto sobre a cidade e o urbano W. Pereira fala sobre a expansão do processo
de urbanização:
Com o desenvolvimento do mundo urbanizado, os limites da cidade gradativamente
vêm perdendo a sua legitimidade. A cidade deixa de ser perceptível ao olhar, ou
mesmo ao conjunto dos sentidos, e, do simples local restrito se estende a um
continuum processo de urbanização difuso, real e virtual, com múltiplos espaços e
tempos. A fragmentação do espaço e o estilhaçar do tempo, dos limites e das
fronteiras encontra correspondência no campo de vários conceitos: suburbanização,
área metropolitana, megalópoles. (PEREIRA, 2006, p.2).
94
Esse esgarçar dos limites, que resguardam as regiões ainda ligadas a outras
configurações espaciais e societárias, tende a se configurar como invasão de espaços sócio-
geográficos e de territórios existenciais, do ponto de vista ético e afetivo das populações
suburbanas, em especial das menos favorecidas economicamente. Estas, por sua vez, se
deslocam para os núcleos de grande atividade econômica, buscando chances de ascensão
social e sobrevivência e a manutenção do novo padrão que lhes é apresentado, muitas vezes
imposto.
Nas grandes cidades o conflito entre interesses de várias espécies e origens instaura a
tensão entre as necessidades das diferentes camadas sociais, os investimentos públicos, as
prioridades governamentais, as movimentações da sociedade civil.
Um dos aspectos mais decisivamente regressivos do nosso tempo de globalização
globalitária, como a chamou Milton Santos, é a crise das grandes cidades, cada vez
mais forçadas a mimetizarem a ordem capitalista e as suas conseqüências: a
fragmentação, a hierarquização perversa, a „guetificação‟, que tanto significam a
redução e o amesquinhamento dos espaços públicos, quanto a privatização de
espaços que demandam ser coletivamente apropriados. (PAULA, 2006, p. 9).
A disposição do espaço urbano tende à sectarização acentuada entre as classes sociais,
destinando as melhores regiões (do ponto de vista topográfico, ambiental e do prestígio
social) às classes altas e expulsando a pobreza para regiões distantes dos equipamentos sociais
e para áreas de risco, mal servidas em termos de infra-estrutura, transporte, lazer.
As populações, que resistem a esse processo de expulsão social, se aglomeram junto
aos centros das cidades, em favelas sem planejamento, com precárias condições sanitárias e
habitacionais, se dedicando a atividades econômicas sub-remuneradas ou criminalizadas,
como é o caso do tráfico de drogas ou do comércio de mercadorias sem nota fiscal.
O capital produz corpos e mentes dóceis ou rebeldes, reprodutores ou disruptores;
monta seus modelos e suas ordenações, efeitos perversos e possibilidades de inversões de
rota. “Se o capital tem sido o senhor da cidade, essa dominação nunca foi absoluta, sempre
houve forças que reivindicaram a cidade como espaço da liberdade e da solidariedade, da
diversidade cultural e da imaginação” (PAULA, 2006, p.10). A força dessa diversidade,
causadora de estranhamentos, pode, no entanto, propiciar as almejadas mudanças de postura
individual e coletiva, mobilizando resistências:
A cidade tem sido um locus de poder, cujos espaços tornaram-se coerentes e
completos à imagem do próprio homem. Mas também foi nela que essas imagens se
estilhaçaram, no contexto de agrupamentos de pessoas diferentes fator de
intensificação da complexidade social e que se apresentam umas às outras como
95
estranhas. Todos esses aspectos da experiência urbana diferença, complexidade,
estranheza sustentam a resistência à dominação. (SENNETT, 2006, p.24).
A cidade agrega e coloca lado a lado as multiplicidades, produzindo assim uma nova
realidade, a das diferenças que se tocam, interagem, se confrontam, se estratificam. “A lógica
do espaço, submetida às exigências do crescimento, a lógica do urbanismo, a do espaço
político e da moradia entrechocam-se, às vezes se espatifam uma contra a outra.”
(LEFEBVRE,1999, p.82).
Falando sobre o agravamento da crise nas cidades brasileiras, Milton Santos (2002)
cita a enorme extensão territorial do país cotejada com a imobilidade a que estão condenados
os pobres, confinados em frações da cidade, subordinados à lei do mercado com relação ao
emprego, bens e serviços. No seu artigo sobre os fixos e os fluxos da cidade, o autor aborda a
transformação dos pobres em fluxos, tendo que se deslocar por longas distâncias atrás de
serviços de saúde, escolas, emprego, produtos essenciais. Depois de serem expulsos para
regiões distantes têm que fazer diariamente o longo caminho até o centro, gastando o que não
têm em transporte precário. Propõe então o desenvolvimento local de células autônomas, em
vários pontos da cidade, conjugadas com a instalação de serviços essenciais e de fontes de
empregos, o que traria a renovação da vida econômica, social e cultural e uma organização
apropriada do espaço, gerida pelos próprios cidadãos.
A cidade, especialmente a cidade grande, é o locus de todas essas confrontações, por
ser também o lugar essencial do afrontamento das forças desencadeadas no processo
violento de mudança. Trata-se, agora, de impor uma rearticulação que faça
velozmente aflorar a tão decantada nova ordem mundial. (SANTOS, 2002, p.124).
Tal configuração difere bastante do que é visto normalmente nos aglomerados
metropolitanos, em que o destino dos moradores e da região é decidido por instâncias
políticas pouco representativas, ou, quase sempre, por interesses econômicos distantes e
opostos aos das populações das periferias pobres. “Não é à toa que as grandes empresas
(incluindo os bancos) governam mais a vida e o destino das pessoas e coletividades, onde
moram e trabalham, do que mesmo os governos legalmente constituídos.” (SANTOS, 2002,
p.101).
O cidadão comum se desloca então, para regiões distantes e desassistidas ou se
transfere para novos núcleos e aglomerados que o recoloquem no jogo da metrópole.
96
4.1.1 Periferias
Um momento decisivo da luta pela construção do urbano como projeto
emancipatório está sendo travado hoje, na periferia das grandes metrópoles, entre as
forças do capital e os que resistem a ele, em nome da democracia e da solidariedade,
da valorização da diversidade cultural e da sustentabilidade ambiental. (PAULA,
2006, p.10).
Mais do que nunca o território urbano é um espaço de luta. Luta política entre as
populações excluídas, seus movimentos organizativos, suas lideranças e a força das elites
dominantes, do mercado imobiliário, do poder globalitário do capital exercido em cada
localidade. O território metropolitano se torna então campo de uma guerra surda pelo espaço,
em especial nas periferias eleitas pelo mercado como passíveis de se encaixar no conceito de
bem-viver da classe A.
Vários movimentos se distinguem nessas periferias:
movimentos emancipatórios de bairros, populações e lideranças em busca de seu
direito de moradia, trabalho, equipamentos urbanos;
formas violentas de ocupação do espaço, de sobrevivência e de relação entre as
camadas sociais;
isolamento das classes abastadas nos chamados condomínios fechados, exclusivos e
excludentes, com a ocupação de áreas nobres;
atuação do poder público na criação de infra-estrutura para a instalação de
condomínios e centros de negócio para a elite dominante;
transformação das regiões mais pobres, vilas, cortiços e favelas em espaços sectários,
atravessados pelo narcotráfico e seu exército, sua hierarquia empresarial, suas relações
de proteção e violência;
atuação do poder público no sentido de atenuar desigualdades e mediar conflitos ou na
instauração da “guerra às drogas e à violência”, com forte aparato repressor.
Ao mesmo tempo em que políticas urbanas de caráter progressista (orçamentos
participativos, urbanização de favelas, regularização fundiária, processos auto-gestionários)
são implantadas nas periferias pobres, com a atuação de movimentos reivindicatórios e de
longos processos de negociação, emergem no tecido urbano, como uma excrescência que se
espalha rapidamente, territórios fechados, ilhas de bem viver, feudos pós-modernos,
justificados pelos crescentes níveis de insegurança e violência e estimulados por um dinâmico
mercado imobiliário. Com a ilegalidade consentida desses loteamentos fechados, para os
97
quais as administrações fazem vista grossa, de olho no aumento da arrecadação e nos votos da
próxima eleição, uma apropriação de paisagens, bens naturais, serviços e infra-estrutura,
caros e exclusivos, cujos custos indiretos são socializados, pagos pelos investimentos do
poder público.
Fala-se então de uma elitização das periferias ou periferização da riqueza, em que a
segregação existente no antigo modelo centro /periferia se estende por todo o tecido urbano,
em que as várias centralidades reproduzem o cenário excludente construído pelas classes
dominantes.
Dentro das próprias periferias pobres se reproduz a estratificação característica da
cidade, com o aparecimento de uma periferia dentro da periferia, a hiperperiferia, bolsões de
miséria e exclusão, em contraste com áreas já desenvolvidas, com acesso aos bens sociais e ao
consumo. se localizam populações submetidas a alto risco, ao lado de grupos sociais bem
estabelecidos, com padrão de vida, infra-estrutura e serviços de bom nível.
Assim a metrópole se estende e se reproduz segundo a modelagem do capital e dos
interesses das elites, o que se expressa no conceito de metropolização, conformação de
grandes áreas aos preceitos, normas e injunções do modelo de desenvolvimento e acumulação
capitalista. Nas denominadas regiões metropolitanas, vários municípios se unem, muitas
vezes conurbados, sob a liderança do município de maior poder político-econômico,
formando grandes blocos de poderio e influência, repletos de conflitos e problemas urbanos
potencializados.
4.2 Subjetivações quando a Metrópole avança
“A cidade produz o destino da humanidade: suas promoções, assim como
suas segregações, a formação de suas elites, o futuro da inovação social, da
criação em todos os domínios”. (Félix Guattari).
As metrópoles engolem as vizinhanças, as redondezas, as cercanias no seu grande
gargalo unificador e padronizador, com a insaciável busca do desenvolvimento constante.
Lembram aqueles fungos que se reproduzem incessantemente com a simples presença do ar.
Reproduzem também a crescente exigência do Mercado por resultados e índices cada dia mais
altos, prazos cada dia mais apertados e trabalhadores submetidos a ritmos desumanos.
Ruas, vielas, recantos, comunidades, são incorporados à malha urbana em que a regra
geral é a velocidade, o pragmatismo, o descuido com os ambientes naturais e com os espaços
de convivência. A metrópole, com suas formas de vida baseadas na aceleração e na
98
impessoalidade, no alto grau de consumo e descartabilidade, nas relações superficiais e no
isolamento, na violência generalizada e na segregação, invade as localidades pressionando
para a instauração de seu modus vivendi.
Nossa tradicional comida mineira acabou. A gente podia criar galinha, talvez até um
patinho que voava e sumia e hoje em dia um animal que se pode criar é cachorro e
de preferência pitbull para dar proteção. A diferença mesmo é o tipo do nível de
pessoa. Porco mais de quinze anos que não se pode mais criar, porque a cidade
era pequena e ela cresceu com a cidade toda diferente. Todo mundo podia criar e
dividir no fim de ano, não tinha problema nenhum, mas do jeito que está vindo, a
gente vai ter que procurar mesmo é Carrefour, é o shopping, para usar a química
para alimentar. É onde quem lembra da cidade não tem mais tanto prazer de viver,
onde entra o problema da saúde mental. (Fernando).
O desaparecimento dos lugares de memória e dos marcos da história local vai
deslocando as pessoas de seu eixo relacional, de seus territórios existenciais, impedindo os
contatos criadores de novas formas de sociabilidade, anestesiando a potência inventiva e
transformadora, barrando as montagens políticas, éticas e estéticas que transmutam a
existência em vida, plena de fluxos heterogêneos, desafios, vibrações.
As grandes cidades do nosso tempo são também o lugar onde a ética da competição
e a pressão pelo status mais depressa conduzem ao individualismo aberto e
possessivo, ao mesmo tempo que a massificação materialista termina por levar à
fragmentação e à perda da individualidade. (SANTOS, 2002, p.126).
Um individualismo compulsório é imposto ao cidadão, com suas rotinas de consumo,
sua busca incessante do prazer, sua vida privada apartada dos enlaces coletivos e da
participação política, se atrofiando o campo intermediário entre o grande poder do
Capitalismo Globalizado e o indivíduo, que destituído de sua função blica, está livre
para consumir. “Há um desagradável ar de impotência no temperado caldo de liberdade
preparado no caldeirão da individualização.” (BAUMAN, 2001, p. 44).
Gente, era tão diferente a vida aqui. Eu vejo o povo aqui agora só preocupado em se
dar bem, então realmente, se dar bem pessoalmente. Eu acho que a preocupação
mais é essa, não tem mais aquela de fazer amigos sabe, de sair para passear na
banqueta
13
, não tem muito isto mais não. (Wânia).
O consumo, nessa virada de culo, assume, muitas vezes, o lugar das lutas coletivas e
das ideologias baseadas na solidariedade e no compartilhamento. Como ato individual, substitui
13
Banquetas são canais construídos para a condução de água para utilização industrial, no caso para o processo
de mineração, os chamados regos: Rego Grande, Rego dos Carrapatos, Rego dos Amores, etc. Tornaram-se, com
o tempo, os últimos espaços, no centro da cidade, para caminhadas e passeios, apesar da sua má conservação.
99
grande parte das relações entre pessoas e grupos por relações pessoa/objetos e vampiriza pulsões
que poderiam estar voltadas à busca de rotas e derivas provocadoras de mudanças sociais e de
abordagem dos problemas coletivos. O consumo possibilita efêmero escape do medo e da
insegurança, como busca incessante de um querer e de uma identidade de consumidor que tenta
dar forma ao disforme e tamponar as duras realidades da violência, do desperdício e das
desigualdades. “Numa sociedade de consumo, compartilhar a dependência do consumidor a
dependência universal das compras é a condição sine qua non de toda a liberdade individual.”
(BAUMAN, 2001, p. 98).
Não há possibilidade real, pelos limites do ecossistema planetário e pelo desenvolvimento
desigual do capitalismo, de que toda população mundial tenha o padrão de consumo dos países
desenvolvidos. No entanto, o desejo de consumir está disseminado por todas as camadas sociais,
de todos os países, imersos na ideologia global consumista, independente de suas práticas
concretas de consumo. “Esta dupla armadilha coloca uma grande parte da população mundial
numa situação dilemática: não está dentro da sociedade de consumo e tão-pouco está fora dela‟
(SANTOS, 1997, p. 313). Essa impossibilidade atinge grandes massas do Terceiro Mundo
“duplamente vitimizadas por este dispositivo ideológico: pela privação do consumo efetivo e
pelo aprisionamento no desejo de ter” (SANTOS, 1997, p. 313).
Fizeram tudo descartável hoje. Você compra um som hoje, ele atrapalha, você
manda arrumar, o cara não consegue peça mais. Isso pra pessoa comprar mais, pra
movimentar o Mercado. que não criou-se as condições pra isto, que é poder de
compra. Não tá certo. Porque eu poderia, estragou, eu ponho no canto, não uso mais,
eu vou lá e compro outro. E o poder de compra que você não tem? O salário é baixo,
o poder aquisitivo é baixíssimo, não tem como a coisa ir. Então fizeram uma coisa
neste país que não estava preparado para receber. (Ronaldo).
Os shoppings, muito adequadamente chamados de templos de consumo, apresentam o
equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança e propiciam uma proximidade com o Outro,
sem contato e sem confronto, onde é forte o sentimento de pertencimento a uma confraria de
fiéis que professam a mesma fé: “compramos”. A exemplo dos condomínios fechados, os
shoppings se constituem em ilhas de um outro mundo, fora do traçado urbano, em que a gica e
a rotina são subvertidas em nome de uma homogeneização quase total, como lugares sem lugar
na trama da cidade. O BH Shopping ocupa, desde a sua instalação, um lugar de destaque no
imaginário da população novalimense, modelando formas de se vestir, se divertir, se alimentar,
formas de sentir e se posicionar frente ao mercado e à vida. Quanto maior o poder de sedução do
mercado, mais próspera a sociedade dos consumidores e mais profundo o fosso entre os que
100
desejam e os que podem satisfazer os seus desejos. “A sedução do mercado é, simultaneamente,
a grande igualadora e a grande divisora” (BAUMAN, 1998, p. 55).
Ao mesmo tempo em que esse individualismo consumista se processa, uma pressão
para a abolição das diferenças e pela massificação, acaba barrando as singularidades e
instaurando a repetição e a reprodução de modelos pré-figurados, “subjetividades prêt-à-
porter” que acabam restringindo o campo do indivíduo. Esse duplo efeito conduz ao
afastamento cada dia maior dos investimentos na vida comunitária ou na participação
solidária, reduzindo também as possibilidades de defesa dos direitos. Ao indivíduo é
transferida, então, a maioria dos atributos sociais e o que resta do Estado e das instituições
não garante mais as possibilidades de trabalho, sobrevivência, saúde, segurança, moradia. “O
outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania...”
(BAUMAN, 2001, p.46).
Irineu, cidadão participante de vários movimentos sociais, ex-vereador, ex-vice-
prefeito, filho de expressivo militante do movimento operário, sindicalista, membro do
partido comunista, se retirou da vida pública.
[...] não participo, minha vida agora é casa. Sábado, fim de semana, sábado, eu
encontro com uns amigos e vou tomar uma cerveja e no mais eu fico aqui. Mandei
contar meu tempo, estava com trinta e sete anos de serviço, pedi aposentadoria,
aí fiquei em casa, virei cozinheiro, então eu só sábado que eu saio e às vezes
domingo, mas, no mais, saio uma vez ao mês, que eu vou em Darci, aparo o
cabelo, vou na casa da minha tia no Matadouro, venho embora para casa e fico
aqui. (Irineu).
Se declara um consumista e se sente estranho frente às novas realidades de Nova Lima
e aos novos moradores:
Era mais família, não era vizinho, era quase que uma família, né, mas hoje está
rodeado de outras pessoas que às vezes muda, mudou gente aqui agora que eu não
conheço, mas aqui, ali em baixo, aqui atrás é tudo gente mais antigo. [...] É aquilo
que eu falei, que as pessoas, da minha época né, eu conheço, convivo, tenho
relacionamento, mas os de hoje pouco conheço e eles pouco me conhecem também,
então... não sei, porque vem de fora, não chega a ter um... A não ser que você seja
uma pessoa que participa de tudo e está vivenciando tudo na cidade e tal, mas no
meu caso assim é muito difícil, eu praticamente num... (Irineu).
Outros entrevistados comentam sobre o esvaziamento dos movimentos da sociedade
civil e a desmobilização atual:
Eu vejo a Nova Lima de hoje muito a mercê de um planejamento, de um
norteamento assim das ações, e tal, que não está contemplando, não está sendo
respaldado pelo pensamento popular, da população. A coisa vem muito de cima pra
baixo mesmo, a sociedade civil está totalmente desarticulada, na minha opinião, com
101
poucos lampejos isolados, resolvendo questões um pouco localizadas, algumas com
sucesso, outras não. Quando eu cheguei à cidade, existia movimentos, várias
articulações, tinha um dono da cidade, né, na época, tinha o grupo que tomava conta
da cidade, que decidia os destinos da cidade, e tinha toda uma movimentação de
uma série de entidades e pessoas, tentando virar a mesa mesmo, virar esse jogo.
nesse tempo quando eu cheguei eu vi a coisa bem efervescendo, eu lembro do
MEL
14
acontecendo, das associações comunitárias presentes, conselhos
funcionando. (Rodrigo).
Apesar da melhoria, a Nova Lima do passado, ela era mais, ela buscava mais as
conquistas, com mais entusiasmo, com mais força. Porque na realidade também não
tinha nada praticamente né. Então havia um movimento de luta muito grande, de
reivindicação, o povo era muito participativo, em todos setores né, até no esporte.
Nova Lima tinha o Vila Nova que participava do campeonato, ganhava campeonato,
tinha vôlei, tinha basquete, tinha uma série de atividades..., mas era uma época, hoje
é diferente, hoje as coisas são diferentes. (Irineu).
Rita se refere especificamente aos movimentos ambientalistas, que se especializaram e
se profissionalizaram, se afastando dos ideais humanitários e preservacionistas:
Eu estava até falando outro dia, aqui na rádio, algo que tem a ver com isso também,
um artigo do Manuelzão falando: “ganham-se os anéis e perdem-se os dedos, as
organizações sem fins lucrativos investem na profissionalização e podem perder a
sua motivação ideológica.” Esse é o artigo que é isso que você está falando, ou seja,
Nova Lima cresceu, as organizações cresceram, se descaracterizaram, quem está lá é
um profissional e não está ligado na idéia da coisa. (Rita).
O isolamento dos cidadãos e o desmanche das ações coletivas se relacionam
diretamente com a perda dos espaços públicos, como locais de convivência e de manifestação,
com as condições de acesso e visibilidade necessárias. A ascensão, nos nossos tempos, do
âmbito privado como forma a ser cultivada e como armadura contra as duras realidades
sociais, conduziria ao que Sennett chama de “tirania da intimidade”, que paradoxalmente
esvazia a vida pessoal e “inibe o desenvolvimento das forças básicas da personalidade”.
(SENNETT,1988, p 17). Essa “visão íntima da sociedade” levaria à erosão da vida pública e
vice-versa: “ originou-se uma confusão entre vida pública e vida íntima : as pessoas tratam em
termos de sentimentos pessoais os assuntos públicos, que somente poderiam ser
adequadamente tratados por meio de códigos de significação impessoal” (SENNETT, 1988,
p.18).
O esvaziamento da vida pública se relaciona com uma certa organização do espaço
urbano em que o ambiente leva a pensar no domínio público como desprovido de sentido. Os
prédios, as praças, as ruas são construídos segundo o paradoxo do isolamento em meio à
14
Movimento Ecológico Livre, criado em Nova Lima em 1986, para lutar pela preservação do patrimônio
natural, cultural e humano do município.
102
extrema visibilidade, o que, em última instância, levaria ao recolhimento ao âmbito da
intimidade.
O espaço público morto é uma das razões, e a mais concreta delas, pelas quais as
pessoas procurarão um terreno íntimo que em território alheio lhes é negado. O
isolamento em meio à visibilidade pública e a exagerada ênfase nas transações
psicológicas se complementam. (SENNETT, 1988, p. 29).
“O individualismo moderno sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade. A rua, o
café, os magazines, o trem, o ônibus e o metrô são lugares para se passar a vista, mais que
cenários destinados a conversações”. (SENNETT, 2006, p.289). Dentro desta idéia foi criado
o conceito de “não-lugares”, espaços desvitalizados, forjados para dar vazão aos fluxos e
movimentos acelerados do capitalismo, à multidão desprovida de contatos singulares,
significativos. A falta de conexão entre o âmbito privado e uma vida pública, cidadã, esvazia
tanto o âmbito da coletividade, da participação política, quanto a vivência subjetiva, afetiva,
singular. Para tamponar esse vazio existencial a grande maquinaria capitalística oferece
produtos consumíveis, em todos os níveis, para todas as classes.
Raquel Rolnik nos fala sobre a prevalência das cidades como espaço de circulação de
mercadorias e como essa função se sobrepõe a outros usos, modificando o tecido urbano,
alterando paisagens, demolindo e soterrando outros espaços. “Hoje tudo é mercadoria e
circula. As pessoas vendendo sua força de trabalho, os veículos despejados aos milhões pelas
fábricas de carros, as cargas que distribuem uma lista interminável de bens a serem
consumidos pelos moradores.” (ROLNIK, 1988, p.62).
4.2.1 Sobre rodas
Com a perda e o esvaziamento dos espaços públicos, a cidade se desumaniza, se torna
exclusivamente espaço de circulação de automóveis, de mercadorias, de pessoas a caminho
de... Lugar de passagem e não de paragem.
Pela tecnologia, pela quantidade, pela facilidade das pessoas conseguirem
automóvel, conseguir apartamento, vai ser um local de muita poluição. A estrada
foi duplicada, mas não vai dar sustento, apesar de estarem fazendo trevos e tudo.
Como se abriu porta para vir, deveriam ter primeiro pensado, estudado e preparado
para que sua chegada viesse rápida. Pensaram, duplicaram as estradas e tudo, mas
esqueceram que de um bairro para outro tem que atravessar uma criança.
Esqueceram que a cidade é pequena, que é uma cidade histórica, que não adianta
uma ambulância passar correndo no centro da cidade, que ela não tem como resolver
nada. (Fernando).
103
O medo da violência e o ritmo apressado, não permitem que se alonguem os olhares,
as permanências. Causa estranheza flanar, perambular sem meta, sem objetivo. Adolescentes
e crianças, tradicionais donos das praças e calçadas, onde espalhavam suas lúdicas e
barulhentas formas de convívio, hoje passam no banco do carro, ou em coletivos apertados,
rumo às múltiplas atividades de sua extensa agenda.
[...]é aquela história, você morava ali na Vila Operária, a três minutos de menino
correndo ladeira abaixo da praça. Hoje você não isso aí, aquilo ali você não vê,
menino não desce correndo ali mais, por que é carro subindo, carro descendo, é
carro demais, é gente demais. A cidade cresceu e as pessoas da cidade..., eu acho
que continua uma cidade muito de interior, a gente não percebeu esse crescimento
desse outro lado de Nova Lima, muito forte e muito pesado. (Rita).
Os ruídos da cidade abafam os sons da vida. Sob o ronco dos motores os barulhos
comuns da existência, dos afetos, da corporeidade se diluem.
quinze anos atrás, a gente andava de carroça, não se mais carroça, né. Será
que ainda existe? Não é engraçado isto? Eu ouvia muito, muitas vezes as pessoas
falavam que andar em Belo Horizonte era mais fácil que andar em Nova Lima,
porque as pessoas andavam na rua. E andavam na rua e carro ia tranqüilo. Hoje,
nossa, dá até medo, eles vêm buzinando e gritando e xingando. (Fernando).
Richard Sennett, em “Carne e Pedra”, fala da experiência da corporeidade nas cidades,
através dos tempos e como isto modelou os espaços, os corpos, as sensações. A apassivação
dos corpos e o entorpecimento dos sentidos pela proximidade, pela velocidade, pela
fragmentação, propiciam o isolamento individualista que o autor atribui, principalmente, ao
estilo de vida da cidade contemporânea e à tecnologia audiovisual que tudo oferecem e
permitem aos sentidos, sem que contatos e laços efetivos se configurem. Isso, aliado à rapidez
dos deslocamentos pelo espaço colabora para a anestesia dos corpos, que vivem experiências
fragmentadas e pouco ligadas ao ambiente e à coletividade.
“O espaço tornou-se um lugar de passagem, medido pela facilidade com que dirigimos
através dele ou nos afastamos dele. [...] Transformado em um simples corredor, o espaço
urbano perde qualquer atrativo para o motorista, que deseja atravessá-lo.” (SENNETT,
2006, p.17). Assim, o motorista se restringe a poucos e mecânicos movimentos e a um
mínimo de reações exigidas para o ato de dirigir, se mantendo isolado da paisagem em que
está mergulhado.
A condição física do corpo em deslocamento reforça a desconexão com o espaço.
Em alta velocidade é difícil prestar atenção à paisagem. [...] Navegar pela geografia
da sociedade moderna requer muito pouco esforço físico e, por isso, quase nenhuma
vinculação com o que está ao redor. [...] O viajante, tanto quanto o telespectador,
104
vive uma experiência narcótica; o corpo se move passivamente, anestesiado no
espaço, para destinos fragmentados e descontínuos. (SENNETT, 2006, p.18)
Trincheiras, passarelas, vias expressas materializam o mundo urbano da velocidade e
dos grandes corredores direcionadores de fluxos, nos rápidos deslocamentos que não
permitem travessias, atravessamentos ou encontros inesperados. Rígidas maquinações que
impossibilitam outros movimentos, novas formas de estar no espaço ou devires fora do
domínio da urgência. Os espaços públicos de circulação se tornam então propriedade do
capital, suporte de vitrines, adereços do consumo, com reduzidas possibilidades de
construções inventivas ou aglutinadoras.
Na fronteira entre Belo Horizonte e Nova Lima, um novo centro urbano absorve a
demanda por áreas residenciais e de negócios para as classes abastadas da capital, alterando
substancialmente a paisagem e os cenários, fazendo surgir uma outra Nova Lima, com alto
padrão de consumo e tecnologia, ligada aos modelos internacionais de ocupação do espaço e
ao estilo de vida das megalópoles. Ali está instaurado o ritmo acelerado da metrópole, a
alguns metros de matas e montanhas, rapidamente recortados pelo tecido viário. A rápida
ocupação dos espaços, com a implantação de grandes empreendimentos imobiliários,
aumentou, em grandes proporções, o fluxo de veículos na região.
Eu vejo que o que vai acontecer, que na verdade está até acontecendo, é que isso
vai gerar um bloqueio no acesso à cidade, pra Belo Horizonte. Realmente o mero
de casas oferecidas, de espaços, de habitações oferecidas, se forem realmente
ocupados, com o mero de vias ofertadas, isto está completamente descompassado.
(Rodrigo).
O trânsito se torna então um dos maiores problemas para o novalimense e para a vida
na cidade. Com o significativo aumento do número de carros em circulação e estrutura viária
insuficiente, o dia- a dia do cidadão se tornou penoso e seus deslocamentos tumultuados e
atravancados pelo excesso de fluxo e pela estrutura viária insuficiente.
Eu já viajei, às vezes eu falo com o pessoal daqui de casa, é a única estrada, rodovia
que você movimento pra e pra o dia inteiro, de madrugada, tudo tem. Você
viaja oh... quilômetros e quilômetros aí, você passa, tem distância que você passa
e não encontra com um carro..., aqui não, é pra e pra o dia inteiro, a noite
inteira e a madrugada inteira. E, por exemplo, esses condomínios, eles fazem isto,
eles não pensam que o pessoal daqui tem que trabalhar lá, então você sai daqui, você
vai para escola, você vai trabalhar ou qualquer outra coisa, é uma dificuldade para
você chegar, porque chega ali na trincheira ali e pronto, pára. (Irineu).
A concentração de prédios residenciais, condomínios e centro de negócios e
entretenimento na região denominada Seis Pistas, no Vila da Serra, no Belvedere trouxeram
105
um fluxo de carros e do transporte coletivo que alterou significativamente o acesso do cidadão
novalimense a Belo Horizonte.
[...] neste sentido de você sair daqui, ir para Belo Horizonte, antigamente você ia
com alguns minutos, hoje você leva mais tempo. Outro dia eu fui cedo lá, tinha
consulta marcada e quase que eu não chego, porque quando chega ali depois da
trincheira, o negócio ali custa, porque é justamente horário de pico para aquela
região lá, você custa a passar ali. (Irineu).
Rodrigo compara essa situação a de outras metrópoles, que vivem esse tipo de
estrangulamento:
Então é isso mesmo, é virar tipo o que nós temos em São Paulo, que é o Barueri ali,
pra o antigo Alphaville ali, o Alphaville velho lá, que era uma maravilha a quinze
minutos de S. Paulo, e hoje, pode esquecer né, se for de helicóptero. Vogasta
uma hora e tal pra chegar no lugar.(Rodrigo)
Na sede do município o grande afluxo de carros também causa transtornos:
Nova Lima pelo crescimento, você viu que a cidade tem um número de carros
muito maior que a cidade poderia suportar, então vem o problema de você não ter
onde estacionar, então a gente morre de rir deles falarem assim: “Compre em Nova
Lima”, compra como? Quem não pode andar, que tem dificuldade de andar, não tem
onde parar no centro da cidade, aqui é morro, quem é que vai subir com compra?
Subir ladeira carregando, por exemplo, compras? Não tem jeito, então o
engarrafamento, o local de estacionamento, não tem, Nova Lima não tem. É, Nova
Lima está sofrendo as conseqüências do crescimento que não foi planejado. (Wânia).
É, porque o progresso, ele facilita pra uns e dificulta para outros, por exemplo, hoje
para você sair, para você ir na rua é uma dificuldade, você vai de carro, você tem
quase que deixar o carro na porta da sua garagem estacionado, você vai de carro e
volta a pé para onde você tem que ir, você sai de casa e quase que você deixa o carro
em casa mesmo. (Irineu).
Você não tem aonde estacionar seu carro, isso é meio ambiente, você não tem aonde
estacionar o seu carro, ou seja, você faz parte daqueles que querem ter um carro, têm
um carro, mas negam o direito do outro de ter, ok! Eu acho que isso é basicamente o
meio ambiente de Nova Lima e quando eu falo do carro, eu estou falando da
montanha. (Rita).
A questão da reduzida área disponível para os moradores da sede é citada como
agravante para o problema:
As casas do centro de Nova Lima, do centro da sede, rara a casa que você tem hoje
uma horta ou um jardim, porque fez um puxadinho, construiu, então não tem nem
garagem. Não tem o espaço da garagem porque todo mundo foi construindo ali,
porque a cidade não tem terra, a terra está na mão de três grandes empresas ou de
especuladores, é caríssima, caríssima. Então você não vai gastar terra para construir
garagem, no lugar da garagem você vai construir a casa do seu filho e ele, que tem o
carro e o outro, vão botar ali na frente, então você tem isso aí cada vez mais e mais e
mais. (Rita).
106
A violência no trânsito e a alta velocidade dos veículos se chocam com os hábitos e a
rotina dos moradores:
Então as minhas duas filhas que moram, estudam em uma escola que fica a menos
de trezentos metros têm que ir e voltar com alguém acompanhando, não porque elas
vão ser assaltadas, mas porque o número de veículos está aumentando demais. A
gente está em um certo local que não era desta forma, não adianta ter quebra mola,
três, quatro, cinco, um do lado do outro, porque a pressa é demais. (Fernando).
Dona S. R., mexe com idoso, mexe com o grupo de convivência do idoso, ela toda
segunda feira ela es aqui na rádio, ela fala assim: “mas você leva dez minutos
tentando atravessar a Santa Cruz e quando você vai atravessar vem um motoqueiro e
te ameaça”, ou seja, um idoso, não é o idoso não, a criança, o idoso, qualquer pessoa
tem pavor das motos. Quando a gente fala em segurança a gente pensa em crime,
mas é a segurança da minha vida, o cara passa e me passa a moto por cima. (Rita).
A MG-30, recentemente ampliada, é motivo de orgulho e admiração, apesar de serem
apontados aspectos preocupantes como a alta velocidade e a falta de espaços para pedestres e
ciclistas, dentre outros. A estrada, por exemplo, de Nova Lima para Belo Horizonte,
melhorou, a gente não pode falar. Nossa Senhora, a duplicação daquela estrada foi um ganho,
né?” (Wânia).
[...] a iluminação pública em termos de transporte melhorou, é muito bom uma
estrada iluminada até Belo Horizonte, até o Alphaville, tem um trecho de Nova
Lima bastante iluminado, asfaltado, mas não tem outro olhar que não seja do carro.
Duplicação da estrada, não tem lugar pro caminhante, não tem lugar pro ciclista.
Uma faixinha de um metro, não vai onerar mais nada, mas não se consegue ver isto.
Nego quiser ir, não vai. Não tente ir a pra Belo Horizonte, o risco é muito grande,
não faça isso. (Rodrigo).
O trânsito de Nova Lima piorou assim, isso em 6 anos que eu estou aqui, o trânsito
piorou demais. Muito carro, a cidade muito pequena, não tem como estacionar, no
centro de Nova Lima, eu falo pelo centro. Eu acho que isso é nítido. A estrada
violenta, acho que essa estrada é muito violenta! O que é muito diferente daquela
outra estradinha que tinha antes, que ia todo mundo devagar, muita curva, muita
árvore. Abriu, ampliou, quatro pistas em que você corre e chega na cidade, que
continua a meeesma cidade. Tudo é simbólico, né? (Mirtes).
Podia ir todo mundo de bicicleta, não precisa ficar levando de carro, as mães nas
portas. O próprio Colégio Santo Agostinho, se tivesse uma ciclovia, muitos meninos
podiam vir de bicicleta, tranquilamente. A meninada? Sobe e desce ali fácil. Não
tem, comé que faz? Tem que levar. Mais um carro na estrada, começa a dar
engarrafamento... Agora é pior, faz a estrada que a gente acha que é pra acesso,
vem um belo dum assessor da prefeitura e fala que “brevemente teremos uma Raja
Gabaglia”, com a boca cheia, e tá caminhando pra isso... Breve vira a Raja Gabaglia,
“tudo que a gente quer”,? (Rodrigo).
A precariedade do transporte coletivo deixa desatendidas as populações que residem
nos bairros localizados ao longo da rodovia, que sofrem dos extremos da atual condição do
trânsito: os perigos da travessia da pista onde os veículos passam a 120 por hora, causando
107
inúmeros atropelamentos e a falta de espaço nos ônibus e lotações que se dirigem ao
Shopping, Vila da Serra, Alphaville, Belo Horizonte, Contagem.
Cresceu tanto e pelo local que a gente morando aqui, a gente não tem ônibus
porque o ônibus sai do centro da cidade, quando ele chega aqui está lotado, não
tem como descer e nem como subir mais e hoje está todo mundo com a cabeça assim
cansada. Não adianta a gente ter grandes empresas próximas daqui, sendo que a
gente não tem como se locomover para lá, não tem, medo de ir, tanto de ir como
para voltar. (Fernando)
A cidade sobre rodas não trégua ao pedestre. Instaura sua rotina alucinante, seus
engarrafamentos colossais, seus motores barulhentos, sobre os dias e as noites dos moradores.
Os movimentos da cidade que não dorme, continuam presentes, nos altos sons dos carros e
das casas noturnas, nas luzes que não se apagam, no ritmo ininterrupto.
O que evoca o urbano com mais força? A profusão de luzes, à noite, sobretudo
quando se sobrevoa uma cidade o fascínio das luzes, dos neons, anúncios
luminosos, incitação de toda espécie a acumulação simultânea das riquezas e dos
signos. (LEFEBVRE, 1999, p.109).
A cidade das luzes que não se apagam afasta o que restava da fauna da região e
mantém de sobreaviso o sistema: uma pequena falha e toda essa montagem desanda, fábricas
param, aparelhos entram em pane, shoppings se trancam para não serem roubados. Blackout,
liberando o negror dos tempos, sufocado por camadas de falso brilho.
4.2.2 Nos vãos da cidade
“Eu te vejo sumir por aí
Te avisei que a cidade era um vão
na sua mão.
Olha pra mim,
Não vai lá não.”
(Vitrines; Chico Buarque).
Na cidade as pessoas se perdem de seus vínculos, de seus roteiros, de sua história. Na
rua os rostos passam incessantemente, em flashes, evocando significados e emoções que não
se concretizam em movimentos, contatos. Na multidão não sou ninguém, perco meu rumo. As
massas têm vida própria, anulam a racionalidade individual, arrebentam barreiras, mudam
sistemas.
108
A visão da cidade como um grande gargalo que engole e despeja multidões sem rosto,
massa despersonalizada que não distingue singularidades, está bem expressa na hora do rush,
com suas intermináveis filas de ônibus, os metrôs abarrotados de pessoas que não se falam,
nem se olham.
Sennett, fala das imagens modernas sobre a multidão como o modo espontâneo de
expressão das mais baixas paixões humanas, “a multidão é o homem-animal libertado de suas
rédeas” (1988, p. 364), e como essa imagem passa a adquirir um caráter explícito de classe,
em que essas manifestações passionais viriam de subclasses ou de desajustados sociais,
imagens coladas às chamadas classes perigosas, evitadas, impedidas, imobilizadas. Estas
imagens das multidões se ampliariam nas idéias de comunidade, que aparece, então, como
refúgio e defesa contra a turba sem rosto. “O quê que vocês estão fazendo aí? Não pode ficar
andando por aí não. Vocês não viram a cerca lá em cima?” (Valter).
Dentro do modelo moderno de cidade racional e planificada, em que a rua se configura
“como espaço próprio aos carros, inadequado aos homens”, a circulação se instala como
atividade soberana e independente dos prédios, construções e da vida que pulsa.
(MAIOLINO; MANCEBO, 2005, p.7). O gigantismo e a fragmentação, a ausência de
contatos e de evocação de lembranças significativas, impede que se forme uma imagem
afetiva da cidade que possa ser apropriada pelo cidadão.
[...] se com freqüência se esfacela para os habitantes a possibilidade de apreensão do
espaço urbano, se este se torna extremamente fragmentado, incapaz de ser capturado
e memorizado, o que se esmaece, em última instância, é a possibilidade de se
constituir sentidos para o território. (MAIOLINO; MANCEBO; 2005, p.8).
Vários entrevistados falaram da dificuldade em reconhecer os contornos dessa Nova
Lima que cresceu, se modificou e como se sentem perdidos nessa nova cidade.
Eu acho que é tudo isso que eu estava falando antes, que Nova Lima está se
perdendo. É uma cidade onde as pessoas ainda gostariam de estar sentando na
calçada e ainda sentam. Você passa em alguns bairros desses por aí, Mingú, Cristais,
Vila Operária, as pessoas ficam sentadas na porta da casa, elas ainda cultivam aquele
hábito, mas por outro lado fica uma cidade tão cheia de carro, tão entupida, tão
tolhida, barulhenta, poluição auditiva, essa coisa toda que as pessoas... Eu acho que
é um negócio muito..., é uma contradição, dessa forma provinciana de Nova Lima
ser, que mantém a estrutura, a identidade cultural dela e esse outro lado aí. (Rita).
Há uma variedade de percepções e sentimentos com relação à Nova Lima que cresce e
se fragmenta, que progride ampliando espaços, provocando mudanças nas maneiras limitadas
109
e cristalizadas de ver e se inscrever no mundo. Quem vem de fora gosta desse crescimento,
que torna a cidade mais atraente, dentro dos padrões urbanos esperados:
[...] quando eu cheguei em Nova Lima, eu achei nossa! que cidade simples, pobre,
eu até não gostei muito. Não tinha desenvolvimento nenhum, a cidade era até muito
feia, bonita pela natureza, agora foi crescendo, crescendo, crescendo, agora eu não
quero sair daqui mais não. (Alice).
Eu acho que esse crescimento não deixa de ser interessante não. Eu gosto, sabe, de
estar próximo das novidades, nós não podemos ficar igual mais uma tribo escondida,
intocável. Nesse sentido eu acho bacana, desde que se respeite determinadas
questões. Se essa chegada (da cidade grande) for organizada, com respeito às
pessoas que estão aqui, respeito à questão da ecologia, eu acho que se as pessoas
quiserem tirar proveito disso, elas vão tirar. Mas eu acho que elas têm que se
organizar em classes, estarem reivindicando determinadas coisas. (Mirtes).
Os “nativos” ponderam:
Eu acho que está aí, você não pode negar, você tem que se preparar, mas eu não
acho vantagem nenhuma em crescer demais, eu tenho certeza que não tem nenhuma
mãe de adolescente que goste de ver o filho dela, pisshss! De repente não cabe nas
roupas né, não cabe nas roupas, não cabe na porta, não cabe... Crescer todo mundo
quer que cresça, mas o ritmo está rápido demais, a palavra sustentável fica muito
difícil, não tem jeito de se crescer nessa rapidez com sustentabilidade... (Rita).
Eu sinto assim que a Nova Lima era uma terra, mas uma terra ecológica, não seria
um lo de apartamentos, condomínios que viriam todos para cá. Quando a cidade
foi crescendo em torno de outros redores, aqui pra mim seria o lugar de
tranqüilidade; não foi. De repente, virou um local para ser explorado mesmo, mas
mais para o lado econômico, sócio-econômico, do que pela natureza que a gente
tem. (Fernando).
Há a Nova Lima que resiste e que permanece dentro de padrões de convívio e relações
de pertencimento e solidariedade próprios a um momento anterior, em que a sociabilidade se
constituía em valor para os habitantes, e também, a Nova Lima dos atrasos políticos, do
clientelismo, da subserviência ao domínio das mineradoras e suas ramificações.
Eu identifico essa forma de viver, que eu estou falando, provinciana, umas vizinhas
da minha mãe que ainda põem a cadeira do lado de fora e ficam conversando no fim
da tarde, isso eu vejo não é na rua da minha mãe, não. Você passa ali do lado
da igreja de Santa Efigênia, tem aqueles caras que ficam sentados naquele
banquinho ali, qualquer hora que você passar eles estão ali sentados naquele
banquinho, tem aqueles que sentam ali do lado da Câmara, na frente, tem aqueles
que sentam debaixo daquela árvore na praça do mineiro, ok? E cada lugar da
cidade tem . Tem uns que sentam em frente à igreja do Rosário, temos quem senta
aqui em frente em um poste caído e no Matozinhos em Bicalho, então isso é
espalhado pela cidade. Mas Nova Lima continua sendo ainda: se seu filho precisa de
um emprego você vai pedir para um vereador, então continua sendo assim o estilo
político. Vem um supermercado para cá, abriu uma seleção, deu gente, a fila até...,
tiveram que fazer dois ou três dias, quando estava previsto para uma manhã, mas
todo mundo já sabe que quem vai é o que o vereador indicar, é o que o secretário
110
indicar, mais ou menos uma coisa por e esse tanto que as pessoas vão atrás e vão
cultivando este esquema. (Rita).
Alice, psicóloga, o lado positivo desse crescimento e diz que devemos nos adequar
a essas mudanças:
Toda mudança traz o lado positivo e o negativo. Acho que positivo é o crescimento
geral da cidade, a nossa região ali de trabalho, como que ela está cheia agora de
indústrias, fábricas de Belo Horizonte mesmo, que vieram para cá e empregam
pessoas da cidade e também de fora, mas acho que a maioria seja da cidade. Então
dá mais oportunidades para as pessoas que não trabalhavam, que tinham que acordar
cedo para ir a Belo Horizonte, deixavam filho, família, então é o lado positivo. [...]
eu acho que a gente tem que ressaltar é o positivo mesmo, é o crescimento, a gente
tem que caminhar para isto, a gente tem que se adequar a isto. A sociedade evoluiu
também, junto com a cidade, né. (Alice).
Também é destacado o aumento nas oportunidades de trabalho, estudo e contato com
novas possibilidades de ampliação pessoal e coletiva: Com as mudanças de governo, novas
empresas vão surgindo, novos cargos, a gente está tendo oportunidade de viver aqui, viver
bem e também trabalhar.” (Alice).
[...] cresceu, cresceu a cidade, cresceu o comércio, cresceram as atividades né, de
prestação de serviço, essas coisas, e mesmo com os condomínios, que é essa mão de
obra que também eles estão absorvendo, que é empregada doméstica,
arrumadeira, passadeira, lavadeira. Esse pessoal está tudo indo para aí, pedreiro,
essas funções, . Por outro lado vai também acarretando uma série de outras coisas,
afeta o meio ambiente, afeta uma série de outras coisas, fica mais caro, a vida fica
mais cara. Então é o de sempre né, você cresce, aí você tem que aumentar o tamanho
da roupa, do pano, então você vai gastar mais, para você crescer, você tem que
passar por isto, tem um preço, tem que pagar por aquilo, tem que pagar mais caro,
né. (Irineu).
Ao mesmo tempo se sublinha a precariedade dos trabalhos oferecidos, a baixa
capacitação da mão de obra local e a vulnerabilidade das ocupações:
Nova Lima não tem como, Nova Lima vai ser sempre cidade dormitório, a não ser
que os arredores se transformem em pólos industriais. Eles estão tentando? Tão. A
gente que tem muita indústria implantada nestes últimos anos, mas ainda não
absorve a mão de obra, e outra coisa, Nova Lima não tem mão de obra
especializada, então às vezes eles são obrigados a buscar gente de fora, e aí vem esta
migração que está vindo para e Nova Lima é uma cidade boa de se viver, não é
isto? (Wânia).
[...]meus alunos sempre estão fazendo algum trabalho, estão sempre conseguindo
um trabalho, ou seja de professor, ou com computador, o outro trabalha com
marketing, eles trabalham muito nessa área. Salão de beleza, empregada doméstica,
então todos têm trabalho, não vejo que nenhum passe dificuldade de arrumar, de
conseguir um trabalho. Mas é também tudo muito vulnerável, por pouco tempo,
saem. Na minha área, por exemplo, é uma área delicada também, onde tudo é muito
temporário. A gente não consegue um trabalho de alunos mesmo de teatro, gente
111
que quer trabalhar com teatro, por exemplo, aqui em Nova Lima, a gente não
consegue, a gente leva os meninos pra fora, pra trabalhar com a gente em BH.
(Mirtes).
4.3 Territorialidades
4.3.1 Nova Lima são muitas
A grande extensão territorial de Nova Lima, entrelaçada, em grande parte, ao território
belorizontino, cria dificuldades administrativas e complicações geradas pela diversidade de
situações, padrões sociais, formas de se viver.
Nova Lima tem quase cem por cento de seu território em uma região extremamente
rica do ponto de vista ambiental, isso é grande demais para a gente poder preservar.
Vinte e cinco por cento da Apa Sul
15
está em Nova Lima, isso é grande demais para
a gente poder dar conta, por isso que eles movem daqui, pra acolá, né. A Vale do
Rio Doce é grande demais, você está entendendo? A cidade é grande demais nesse
sentido, a renda que a prefeitura de Nova Lima ganha é grande demais para uma
cidade de sessenta e nove mil habitantes, as possibilidades da cidade são grandes
demais. É tudo que quando você fala que Vale dos Cristais vai ter vinte e cinco mil
pessoas, todo mundo olha assim: “quê isso!”, que uma cidade, cinco cidades, né,
então assim é tudo muito grande, muito grande. A gente não pode..., para resolver os
problemas da cidade, a gente não pode pensar pequeno, não tem jeito de pensar
pequeno. (Rita).
Esse grande território, constituído por múltiplas trajetórias, é percebido pelos
entrevistados de variadas maneiras, às vezes de forma contraditória: uma Nova Lima fugidia
de contornos pouco distintos, outra que permanece com uma identidade delimitada por
antigos modelos, ainda uma outra que se lança por novos caminhos, novos perigos.
Acho que Nova Lima são várias. Essa frase é perfeita. Cada lugar é um lugar
distinto. Porque se você pensar que Nova Lima começa ali naquele portal, porque
você tem que pensar nisso, isso é real. Eu passo ali todos dias. Eu falo assim, é Nova
Lima, porque é, o novalimense tem que assumir isto, tem que assumir esse lugar
como dele também. Eu acho que ali é uma cidade completamente diferente.
Cruzeiro, Santa Rita, José de Almeida é uma outra cidade. Os lugares, os espaços
são muito diferentes. (Mirtes).
Dos vários cenários encontrados nas muitas “Nova Limas”, alguns foram
especialmente citados pelos entrevistados, que residem e/ou trabalham, podendo se
salientar os contrastes espaciais e de estilo de vida e se vislumbrar, em cada localidade, o
15
Área de Proteção Ambiental-Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
112
embate entre forças conservadoras ou de resistência e as forças de ruptura, muitas vezes
invasivas e inadequadas.
Bairros do centro da cidade, Boa Vista, Vila Operária, Vila Passos, Retiro, Cristais,
antes habitados pela população operária, ainda mantêm o convívio afetuoso entre vizinhos que
se relacionam intimamente, se apóiam e participam de uma expressiva vivência coletiva.
Nova Lima, ela é muito próxima da capital, mas ela conserva toda a característica de
uma cidade de interior mesmo. Nova Lima conserva muito isto né, principalmente
nós que moramos neste tipo de bairro aqui, igual Vila Passos, Vila Operária, pessoal
é mais ligado, aquele vizinho que é mais que um parente às vezes né, então conserva
muito isto. (Irineu).
Olha! Aqui ainda tem bairro, por exemplo, vou te dar a Boa Vista, eu falo que Boa
Vista não faz parte de Nova Lima, eu falo que é uma rua só, todos moram naquela
rua, então ainda esse espírito, um espirra e todo mundo está ali, todo mundo sabe
da vida de todo mundo, ainda é um pouco daquilo do passado, sabe? Esses bairros
mais fechados, eles não sofreram tanto assim, influência ou transformações, ainda
é muito o antigo, sabe? (Wânia).
Ao mesmo tempo, Sara, moradora da Boa Vista, reclama da descaracterização das
fachadas dos bonserás, do asfaltamento da rua: “Colocou asfalto em tudo na Boa Vista,
quando chega na ponte, quem tinha poder falou que não: a parte da Casa Grande da Morro
Velho não foi asfaltada. Agora com esse escoamento de água quando chove, a água desce, até
na ponte é uma cachoeira!”
Outras localidades, diretamente atingidas e atravessadas pelo “progresso” e pelas
transformações sócio-espaciais, se ressentem pela quebra de condições básicas de convívio e
pela instalação de modos de vida estranhos ao cotidiano dos moradores e que se impõem
como modelo a ser implantado por todos. A vila José de Almeida encarna, dentre outros, o
caso mais gritante dessa situação: cercado por condomínios, é o bairro mais distante da sede,
no sentido Nova Lima/Belo Horizonte, fazendo fronteira com os condomínios Ouro Velho e
Residencial-Sul.
[...] se não houver uma certa maturidade é um bairro que pode deixar de existir
porque ele está fechado por dois altos condomínios e a pressão é muito grande. Eles
pensam que uma vila de pessoas de classe inferior à deles não pertence, então eles
estão vendo que a cidade nos quatro lados viraram condomínios, então está
causando muitos problemas. (Fernando).
De características rurais, até a década de 80 tinha ruas sem calçamento, casas com
grandes quintais, hortas, galinheiro, criação de porcos. Incrustado na Mata do Jambreiro,
remanescente da Mata Atlântica, o dia-a-dia de seus habitantes era de intensa relação com a
mata onde buscavam lenha, plantas medicinais e ornamentais, nadavam e faziam caminhadas
113
até a “represa da MBR” (hoje Vale), mineração que se desenvolveu ao seu lado, roendo a
Serra do Curral e transformando a paisagem.
Os primeiros condomínios vieram, na década de 70, trazendo a proximidade com a
classe abastada e com padrões de vida sofisticados, positiva em muitos sentidos, que as
possibilidades de trabalho aumentaram e vagas para domésticas, caseiros, jardineiros,
lavadeiras, surgiram nas “Mansões”.
Era um terreno de fácil acesso, a gente não usava estrada, a gente usava trilhas, para
se chegar até a BR. Eram poucos moradores do Vila do Ouro, Ville de Mansões que
eram os bairros próximos, então a gente se sentia livre para andar, entrar e sair a
qualquer hora. então, não havia tantos condomínios e tantos moradores que nem
imaginavam que era isto. Eles vieram procurando uma casa, em que eles pudessem
passar o fim de semana só,o de outras regiões. (Fernando).
Atualmente, a realidade do bairro José de Almeida se transformou com os padrões
discriminatórios e cerceadores impostos pelos novos moradores do Condomínio Ouro Velho,
que entram em choque inclusive com os condôminos mais antigos, que não aceitam essas
regras.
Os entrevistados Fernando e Mirtes, moradores do José de Almeida, falaram, em
muitos momentos, dessa segregação e desses estranhamentos.
uma questão de dor, a gente que construiu, nasceu e viveu aqui. De vez em
quando a campainha toca: Nós gostaríamos de saber se vocês m o interesse de
vender e tudo”, mas a gente não tem placa de vende-se lá fora... Às vezes eles fazem
isto, mas no bairro também do José de Almeida tem muitas mansõezinhas
começando a aparecer aí. (Fernando).
A região do Campo do Pires e Chácara Benito, também vive esse confronto com
condomínios e empresas de vários ramos. Apesar das cercas e da segregação, alguns
benefícios indiretos surgem, resultantes dos privilégios políticos de alguns grupos
econômicos:
[...] na minha região tem a garagem da Via Ouro, que é uma empresa de Ônibus que
é de Belo Horizonte, que agora coordena o transporte de Nova Lima, transporte de
passageiros dentro da cidade. Eles colocaram iluminação pública na região por
causa da Via Ouro, porque a Via Ouro foi assaltada por pessoas de Belo Horizonte,
os malotes da empresa com o recolhimento de todo o pagamento das passagens,
exigiram: “vocês vão ter que iluminar tudo”, então a nossa região agora é toda
iluminada. Antes nós procuramos a iluminação via prefeitura e ela dizia: “não! para
você iluminar, você tem que pagar a iluminação da sua rua”, e como a nossa região
não tem quase nada, fica muito caro para uma pessoa só. Ficamos no escuro por
muito tempo, ficamos sem asfalto por muito tempo, era estrada de terra mesmo, na
época da chuva era muito barro, aí, antes da Via Ouro chegar, asfaltaram, depois da
chegada da Via Ouro colocaram a iluminação, então traz os benefícios para a cidade.
(Alice).
114
O bairro do Galo, situado a meio caminho do município de Raposos, impactado pela
presença da Usina de Ácido Sulfúrico e envolvido pela represa de rejeitos da mesma, também
foi citado como lugar historicamente marcado pela poluição ambiental e pelo desrespeito às
populações que ali residem. “Aconteceu isso no bairro do Galo, com o arsênico, o pessoal não
tinha essa divisão que a gente tem no nariz, não. Ficou prejudicado o contato com a terra, a
vegetação, tudo poluído.” (Ronaldo).
Honório Bicalho, Santa Rita, Bela Fama, localizados às margens da estrada para o
município de Rio Acima, vivenciam dificuldades de outras ordens: desemprego, dificuldades
com transporte, violência, drogas. A psicóloga Alice, que trabalha em H. Bicalho, fala sobre
os graves problemas psicossociais da população:
Estas queixas estão entranhadas, acho que em todos que eu atendo, em alguns
lugares mais que outros, por exemplo, em Honório Bicalho. É em Honório Bicalho é
mais gritante, acho que a população é mais carente, é mais humilde, então o
sofrimento parece que chega mais, mais cru, mais gritante. É uma clientela bem
complicada. (Alice).
Alda, residente na região, se preocupa com a possibilidade do bairro “virar
condomínio” e com as invasões de terra que presencia, apesar de ela própria ter invadido o
terreno onde vive:
Quando eu morava em Honório Bicalho, eu morava na casa de minha sogra. Então
meu filho teve uma crise muito forte de bronquite e eu tive que arrumar um terreno
às pressas e eu invadi um terreno da Morro Velho. A gente construiu a casa de um
dia pra outro, um barraco. Quando foi no outro dia, tava dois policial e o carro
da Morro Velho. Foram pra gente sair. eu expliquei a situação, falei que eu
tava disposta a pagar, mas tinha que ser do meu jeito, que eu pudesse pagar. eles
fizeram prestações pequenas pra eu ir pagando, acabou que quem pagou foi meu pai.
quê que aconteceu, meu pai pagou meu lote de duas vezes, eles não aceitam
pagar de uma vez também não. Meu pai deu um bocado e deu outro bocado depois,
de parcelado. Eles me deram um papel de compra e venda, escritura não tem não.
Não consigo. Eu não pago imposto porque não tem nada. Tem vez que eu fico até
com medo, de perder o meu lote. Porque eu tenho um papel de compra e venda
simplesmente. (Alda).
O bairro Jardim Canadá, às margens da BR040, distante da sede do município, recebe
migrantes de todo país em busca de trabalho e oportunidades. A grave situação social do
bairro inclui urbanização deficiente, subemprego, alta rotatividade da população, falta de
equipamentos públicos, violência. Dos entrevistados, Maura reside e Laura e José trabalham
no bairro.
115
Porque eu tou lá no Jardim Canadá, a primeira vez que eu recebi a visita de parentes,
eu não expliquei bem como era, sabiam que era Nova Lima, então pegaram e
foram para Nova Lima ali pelo shopping, quem disse que eles conseguiram chegar.
Tiveram que ligar e eu fui direcionando por telefone. Eu acho assim que às vezes
tem um preconceito com o bairro Jardim Canadá. Quando eu mudei pra eu senti
isso, um, podemos dizer, choque de culturas. Quando você passa a viver é outra
realidade. Mostra um bairro violento, com todas as dificuldades que todos os lugares
têm, mas não é um bairro como é mostrado. É um bairro que tem a parte boa e a
parte ruim, igual outros lugares têm. (Maura).
O choque dessa realidade com a de condomínios, como o Alphaville, edge city no
extremo noroeste do município, é inevitável:
A diretora da minha escola no Jardim Canadá, ela morava no Alphaville e ela não
pagava imposto. Durante dez anos, tem uma cláusula , que durante dez anos ela
não paga nenhum imposto. Quer dizer, é um disparate, né. Por você que a
coisa é desproporcional em todos os sentidos. (Lúcia).
Outros cenários, como os de condomínios, com variadas formas de inscrição no
espaço e na vida da cidade podem ser citados. Alguns, como o Jardim de Petrópolis, são
habitados por quem busca contato com estilo de vida interiorano, alternativo, como é o caso
de Rodrigo:
Com isso, pra mim, viver em Nova Lima atualmente é excelente, muito bom, ainda
com o acréscimo que é o lugar que a gente mora, que é o Jardim de Petrópolis. A
gente conseguiu atrair pessoas muito interessantes, a gente vive numa comunidade
muito gostosa, na base de muitas trocas, muita permuta, de companheirismo, de
coleguismo, de ajuda mútua. A gente tá conseguindo viver isso lá e a grande maioria
é de pessoas que vieram de Belo Horizonte e todo mundo com esse perfil, de querer
viver numa cidade do interior, aproveitar da cidade do interior, o que ela tem de
melhor e, se necessário, ir a Belo Horizonte pra algumas coisas, uma escola melhor,
médico, o que for. Tem aquela questão cultural, né, pra ver um filme, ver uma
peça... (Rodrigo).
Outras configurações, como Vila Castela, Conde, Vale dos Cristais, de altíssimo luxo,
inteiramente apartadas do cotidiano de Nova Lima e seus moradores, aguçam, nos
novalimenses, os sentimentos de desigualdade, exploração, invasão.
Essa multiplicidade fragmentada do território é percebida como preocupante e
ameaçadora:
[...] então vai haver uma cidade que não vai ser uma cidade, cada bairro vai ter
aquela individualidade, vão ser cidades em bairros né. O Alfaville vai ser uma
cidade-bairro, Macacos vai ser uma cidade-bairro e Ouro Velho Mansões a gente vai
dividir, é os ricos e os pobres; e isto está fazendo com que a cabeça dói né, dói
muito. (Fernando).
116
4.3.2 Des-territorializações
Por parte do capitalismo, a desterritorialização urbana vai de par com uma
brutal territorialização sobre o rico e o pobre, o garantido e o não
garantido. (Peter Pál Pelbart).
O sistema capitalista, no seu atual estágio, provoca grandes desterritorializações no
espaço das cidades, na vida das coletividades e nos territórios existenciais. Na chamada
modernidade quida se rompem as fronteiras geográficas e se constituem outras fronteiras,
movediças, instigadas pelo capital flutuante e pela busca de lucros instantâneos.
Os grupos sociais atingidos e excluídos pela grande máquina do capital se defendem
como podem, se re-organizando, se re-territorializando em precárias condições de vida,
buscando reproduzir fórmulas de ascensão ao sistema e modelos de sucesso baseados no
consumo, no jogo das aparências, na forma de se vestir, de utilizar a tecnologia e, ao mesmo
tempo, produzindo explosivas maneiras de se relacionar com a cidade e com as populações
“bem garantidas‟.
Em Nova Lima distinguimos desterritorializações evidentes, com as novas formas de
ocupação, a diversidade das inscrições, as migrações trazendo realidades heterogêneas. Ao
mesmo tempo, essa desterritorialização se dá, contraditoriamente, pela imobilização e pelo
cerceamento das populações impactadas por todo esse processo de ocupação do território,
acontecido à revelia de seus interesses e de seus desejos. A sede do município, cercada por
grandes empreendimentos imobiliários e condomínios de alto luxo, com padrão de vida e
estilos de morar correlatos aos das elites do primeiro mundo, se encontra sufocada e
espremida no pequeno território que lhe restou. A sensação é de aprisionamento, impotência,
sufocamento, expressos pelos entrevistados em suas falas. “Nós de Nova Lima, nós
moradores, nós estamos sendo sufocados.” (Wânia).
Muitos grupos sociais podem estar „desterritorializados‟ sem deslocamento físico,
sem níveis de mobilidade espacial pronunciados, bastando para isto que vivenciem
uma precarização das suas condições básicas de vida e/ou a negação de sua
expressão simbólico-cultural. (HAESBAERT, 2006, p.251).
Também se desterritorializam os cidadãos quando as decisões são tomadas fora do
âmbito de influência do município, em que a capacidade de entender e interferir nos rumos da
vida social e na própria vida é drasticamente reduzida. “A generalização do uso do território
se acompanha de seletividades de uso, governados por fatores estranhos ao lugar e à região.”
(SANTOS, 2002, p.22). Enquanto “cada indivíduo se torna outro, mesmo sem sair do lugar”,
117
constituem-se processos de subjetivação que desembocam, muitas vezes, em adoecimentos,
na falta de um mínimo de autodeterminação da vida e de manutenção de um “em casa”
significativo.
Uma coisa está puxando a outra muito rápido, a pessoa pega um stress, ela pega uma
doença, ela está indo para assistência e para o tratamento, ela está optando pelas
drogas, sabe, porque está correndo demais, não é por culpa deles, é culpa talvez do
mundo que está crescendo demais, mas meios ainda de concertar a cidade. E a
tendência é que as pessoas vão adoecer muito mais rápido, até os loucos pouquinhos
que andavam pela rua, uns anos atrás, eles nos cumprimentavam, eles aceitavam
os alimentos. Hoje a cidade tem investido para não haver este tipo de tratamento,
mas tem que haver isto também, isto faz parte da humanidade. (Fernando).
Desterritorializamo-nos nas grandes perdas, no desemprego, nas doenças, separações e
na grande desterritorialização da morte. Também a violência, o desrespeito, a humilhação, a
segregação, provocam rupturas nos territórios existenciais construídos com amor e luta.
A perda das terras natais, lugares onde o nosso “em casa” se dá de maneira mais suave
e natural, constitui marca de nosso tempo de drásticas descontinuidades e fragmentações, que
nos fragilizam, nos deixam literalmente “sem chão”. Toda essa fragilidade, a serviço da
grande territorialização capitalística, globalitária, por sua vez subordinada ao crescimento da
lucratividade, nos impede as re-territorializações criativas. “Uma imensa máquina produtiva
de uma subjetividade industrializada e nivelada em escala mundial tornou-se dado base na
formação da força coletiva de trabalho e da força de controle social coletivo.” (GUATTARI e
ROLNIK, 1986, p. 39).
A longa história de privatização do território e expropriação das riquezas, em Nova
Lima, fez com que toda uma rede composta por instâncias oficiais e extra-oficiais, governos,
instituições sociais, religiosas, times de futebol, clubes de lazer, ONGs, se coloque a serviço
da manutenção do domínio das mineradoras, e agora de suas subsidiárias e parceiras,
impossibilitando livres manifestações, livre movimentação e a construção de espaços políticos
que modifiquem essa situação.
Então eu acho que essa questão do espaço, não foi pensada, a coisa ficou aí. Eu vejo
inclusive, a Anglo Gold, anos atrás fez aquela exposição dos projetos dela pra
cidade: nada, absolutamente nada pensado pra população local. Tudo pra atrair as
pessoas de fora, ou as pessoas mais endinheiradas da cidade, mas para a grande
população, população que de fato é carente... (Rodrigo).
No cerne da questão da desterritorialização em Nova Lima estão os chamados
Condomínios, espaços fechados em que a elite se isola e se defende do outro ameaçador: os
não garantidos pelo sistema excludente, que não comungam da confraria dos grandes
consumidores, mas almejam estar presentes. Grandes re-territorializações estão presentes
118
na modelagem intramuros dos enclaves das elites, com padrões exclusivos em termo de
arquitetura, urbanização, estilo de vida. Nessas ilhas de bem-viver se repetem clivagens de
classe, bastante homogêneas e avessas às influências externas e à vida que se desenrola na
cidade.
4.4 Invasões civilizadas
O impacto das novas realidades que se desdobram frente ao cidadão novalimense nos
últimos anos é grande. Como quinze anos reduziu, eles trabalharam tanto em quinze anos,
que parece que tem trinta ou quarenta. O efeito foi muito forte. Teria que ter feito um estudo
muito prolongado ao longo do tempo.” (Fernando).
O sentimento de invasão da cidade, do bairro, da vida também está presente. Os
entrevistados usaram, muitas vezes, uma terminologia de guerra para dizer da chegada
avassaladora da metrópole, dos condomínios, dos novos moradores ao território novalimense.
Olha, eu noto, por exemplo, uma expansão de casas, de condomínios, uma invasão,
assim que Belo Horizonte está invadindo Nova Lima e que aquela região tranqüila,
natural, está virando muito concreto agora. Mas eu sinto que as empresas estão
vindo para também, as pessoas estão tendo mais oportunidades, o profissional é
mais valorizado. (Alice).
Ah podia arrumar uma tropa de choque aí, para parar com eles, que eles ficam pra
e nós prá cá, né. Ah sinto, sinto... eu lembro na época das campanhas, eu fui em
Macacos, Macacos era aquela ruinha ali, né. nós estávamos conversando com
as senhoras de lá, as mais velhas, e elas reclamando que estavam começando a
construir em volta, o pessoal construindo casas, mansões e tal. Então eles
estavam sofrendo o problema, elas já estavam sem água, enquanto eles estavam
construindo piscinas, né. Isto vai acontecer com a gente também, vai pegar nossa
água. (Irineu).
Eu acho que retrai. A chegada dessa maneira gera... ela retrai, ela é diferente da
nossa chegada. São chegadas distintas. Você chega devagar, vendo o que aquele
lugar tem, respeitando aquele lugar, tentando somar com aquele lugar, é uma coisa.
Agora, se você chega, pra mais uma vez levar o ouro daquele lugar, retrai. Eu
acho que é complicado pras pessoas, nesse sentido, não é bom. (Mirtes).
Falou-se de invasão dos lugares e também de invasão da vida por rostos estranhos,
pelos carros, pelos prédios que se reproduzem velozmente, pelo asfalto. Invasão de ritmos de
vida, pela aceleração da cidade, do capital globalizado que não tem barreiras. A gente, as
ruas públicas eram usadas até para jogar uma partida de peteca, mas como chegou todo
mundo, agora está perigoso. Nossas praças vão acabar, se continuar desta forma, porque a
região está muito próxima da capital, que já cresceu por todos os lados. (Fernando).
119
Aparece também o sentimento de desvalorização da cidade e de seus moradores, cidadãos de
segunda categoria, alienados das destinações dadas aos espaços:
[...] devastada pelo homem para..., vamos dizer para o seu bel prazer, né, estão
fugindo da cidade para vir.., vamos dizer assim, chamando Nova Lima de uma zona
rural, considerando Nova Lima uma zona rural e nós é que vamos sofrer as
conseqüências disto, vamos sofrer não, nós estamos sofrendo. Nós de Nova Lima,
nós moradores, nós estamos sendo sufocados. (Wânia).
A nova situação urbana em que a cidade e sua população foram envolvidas gera um
sentimento de impotência e inadequação aos padrões exigidos pela nova população que chega,
pela tecnologia e arquitetura avançadas. Nova Lima e os novalimenses parecem ser obrigados
a “correr atrás” para alcançar o ritmo da metrópole. Mirtes se refere a uma falta de preparo da
população para receber essas transformações e suas consequências:
Eu acho que tem que ter uma preparação da cidade, que vem da educação, da arte,
da cultura, uma preparação para um fortalecimento para as pessoas receberem isso,
porque isso tudo é mutável. As cidades elas não são iguais, elas sempre se
transformaram e tudo, mas a população tem que estar preparada e preparada
emocionalmente mesmo, e esse emocionalmente, na minha opinião, ele vem através
do fortalecimento da educação e da cultura, né. Pra você não ter medo do outro, não
se achar pior ou inferior do que o outro. E pra não haver embate também, porque se
retrai o embate, “você estão invadindo esse lugar, isso aqui é nosso”. Isso não é
de ninguém, é de todo mundo. Todos nós temos direitos iguais, podemos morar, em
Nova Lima, podemos morar em BH, podemos morar em São Paulo, onde a
gente...não é? Aí eu acho que falta esse preparo mesmo. (Mirtes).
O marketing que transformou a região de Nova Lima em objeto da cobiça e dos
sonhos das elites metropolitanas, alterou a imagem da cidade, vista como cidade rica, símbolo
de status, uma ilha de bem viver no meio da agitação e da violência da metrópole:
Minha menina estuda na Federal, quando fala que mora em Nova Lima, ah, a casa
dela é uma mansão, mora em condomínio, o seu pai é muito rico... É qual o
condomínio?” Eu quando eu vou no Shopping, por exemplo, e perguntam qual é
meu bairro, eu falo assim com toda pose “Vi-la Pás-sos”, se falar Vila Passos é meio
caído né (risos), para eles achar que é assim um Ville de Montaigne. Agora quando
vem assim, é, aquela novela que passou agora, a Portelinha, é a mesma coisa aqui.
(risos) (Irineu).
As consequências dessa visão colada ao município, para as populações pobres, o
várias, como as dificuldades geradas pelo aumento do custo de vida e a insatisfação com
relação às brutais desigualdades instaladas.
[...] quando eles fazem cálculo da renda per capita da cidade, eles fazem colocando
este pessoal de condomínio e não é isso, né. Então isto ficando igual cidade de
praia né, turista vai para lá, os preços vão em cima, é o público que paga
120
depois, o povo de é que paga, então aqui também é assim, você acaba pagando
por esta proximidade. É outro padrão. (Irineu).
Essas desigualdades são sentidas na arquitetura e urbanização dos bairros e
condomínios, nas oportunidades de trabalho, lazer, educação e cultura, nas perspectivas de
vida.
Pra nós que trabalhamos com cultura, a gente corre o risco de mandar projetos pra
lei de incentivo e o pessoal falar assim “Nova Lima não precisa, Nova Lima é rica.”
E nossos projetos não são para os condomínios, é pra cidade, porque Nova Lima tem
um centro mais pobre e a periferia rica, é o inverso das outras cidades. Então a gente
tem que dizer “vocês não conhecem Nova Lima”.
A gente ganha os prêmios, mas como a gente não tem mídia, a gente tem que ficar
muito atento, porque ... O Grupo X está construindo uma sede gigantesca aqui em
Nova Lima, no Vale do Sol. Eles têm um tipo de trabalho que é complicado, eles
têm uma postura, são muito jovens, pais muito ricos, então tem essa coisa de chegar
e dominar mesmo. Eu morro de medo, nós temos que nos organizar, eles têm que ter
espaço pra eles, o Grupo Y também vem, tem que ter pra todo mundo, mas é aquela
história, a gente não pode perder espaço pro grande, praquele que é mais famoso. Os
trabalhos são legais, mas tem que valorizar o trabalho das pessoas aqui de Nova
Lima. Eu falo com os meninos, vocês têm que montar grupo, gente, têm que criar
um CNPJ pra vocês, pra gente criar uma associação das artes nicas”. É assim
que a gente se fortalece, a gente não se fortalece sozinho. (Mirtes).
4.4.1 Guetos de luxo
A tentativa de se manter em âmbito íntimo e restrito as relações e os contatos, o que
permitiria uma confortável alienação quanto às alarmantes condições sócio-políticas do nosso
tempo, tem gerado aberrações urbanas, com o isolamento de grandes áreas das metrópoles
para as elites e o surgimento de territórios precariamente ocupados pela pobreza.
Condomínios fechados, redutos feudais, tentam reconstituir uma forma ideal de vida
comunitária, em que o estranho fica de fora. O que não faz parte do imaginário de uma vida
bucólica e tranqüila se torna o inimigo. A partir disto, novas modalidades de condomínios
fechados estão sendo construídas, reproduzindo pequenas cidades do interior, particulares,
com sua pracinha, seu pipoqueiro, suas casas ao redor. Esquecem-se de que não muralha
que proteja contra a áspera realidade dos excluídos, presentes, no seu rico dia a dia, como
domésticas, jardineiros, vigilantes, porteiros ou como possíveis agressores ou violadores.
Os condomínios, lugares de status, planejados para marcar e delimitar as diferenças
sócio-econômicas, são formulações atualizadas, aperfeiçoadas no espaço-tempo, das
tradicionais divisões do espaço urbano em bairros e regiões da elite e os chamados bairros
populares, disposição que, no contexto atual, deixou de oferecer os requisitos básicos de
121
segurança e isolamento para as classes médias e altas. É importante destacar como uma
sociedade globalizada, dita pós-moderna, que preconiza a descentralização e a ruptura das
fronteiras gerou, em seu âmbito, essas estruturas medievais de caráter marcadamente
separatista, pequenos feudos, onde a individualidade é supervalorizada. Nesses condomínios o
item segurança vem em primeiro lugar, o que implica em impedir a livre circulação no seu
espaço e em passar em revista qualquer cidadão que queira entrar nos seus “domínios” ou
mesmo, que esteja nas imediações em “atitude suspeita”.
Esses espaços fechados criam um mundo à parte, paradisíaco, onírico, de total
homogeneidade e de gozo pleno. Nesses sistemas voltados “para dentro” a realidade, a
diferença, as contradições ficam de fora, fora dos muros, das grades, das cercas eletrificadas.
A privatização da natureza, dos recursos naturais, dos cursos d‟água e da paisagem impede
que a população vizinha desfrute desses bens públicos e reforça a postura fortemente
egocêntrica e alienada dos seus privilegiados moradores. Esses cidadãos de lugar nenhum se
vinculam, nos casos extremos, unicamente a uma central operacional que promove o bom
funcionamento interno; nos melhores casos a uma organização de condôminos para
gerenciamento dos aspectos do cotidiano.
As grandes corporações, as megaempresas e os serviços classe A estão encastelados
em espaços inacessíveis, ultra vigiados. O acesso a esses locais é propiciado por dispositivos e
tecnologias estranhas ao cidadão comum. O sistema capitalista, que gerou toda essa gama de
segregações e contradições e a insustentabilidade social e econômica, cria agora mecanismos
para se defender de si mesmo.
A alteração do modelo centro-periferia, até então prevalente nas grandes cidades,
trazendo a fragmentação do espaço urbano e o aparecimento de novas centralidades teria
consequências já visíveis: agravamento dos conflitos sociais; aumento da poluição, do número
de congestionamentos e do tempo de locomoção; maior consumo de recursos naturais (água,
energia elétrica e combustíveis fósseis); maior incidência de problemas de saúde e causas de
óbito (obesidade, acidentes de trânsito, problemas respiratórios, neoplasias); aumento dos
gastos públicos com saneamento, segurança, saúde e educação (OJIMA, 2008).
A nova terminologia, criada para identificar variações, aperfeiçoamentos e
amplificações no processo de apartheid urbano ligado aos grandes condomínios classe A,
inclui as Edge Cities. Este conceito, surgido nos Estados Unidos na década de 50, prevê áreas
planejadas no entorno das grandes cidades que incluem residências, escritórios, shoppings,
serviços. Hoje existem naquele país 181 edge cities e apenas 45 metrópoles.
122
Em entrevista à revista Veja, o jornalista norte-americano Joel Garreau, autor de Edge
City: Life on the New Frontier, afirma que as edge cities são a versão das cidades do século
XXI, enquanto as metrópoles representam o modelo do séc. XIX. São empreendimentos
privados, que se constituem em “cidades dentro das cidades”, estando, ao mesmo tempo, fora,
pois não dependeriam do entorno geográfico e político- social para sua manutenção e
desenvolvimento. Mantêm assim baixa interação social e pouquíssimos laços de
compartilhamento territorial, enquanto demandam alto grau de articulação espacial, na forma
de infra-estrutura e equipamentos para conectividade e fluidez. Isso fica, obviamente, por
conta dos investimentos públicos. Nas palavras do jornalista, as edge cities acolhem
“imigrantes ambiciosos”, várias etnias e raças, no entanto, “[...]as edge cities são classistas.
Elas são criadas e usadas exclusivamente pelas classes média-alta e alta. Algumas pessoas
acham esse tipo de separação da pobreza prejudicial para a sociedade.” (ZAKABI, 2008).
Assim o capitalismo pós-moderno se desvencilha dos ideais democráticos e
igualitários que fundaram a modernidade e as cidades, e cria novos modelos de convivência
que não incluem a grande maioria, a massa dos excluídos pelos perversos e centralizadores
mecanismos do mercado e do capital. A reprodução da desigualdade e dos modelos de
segregação da sociedade, não cessa de se desdobrar sob novas/velhas formas de exclusão, que
têm por objetivo manter as classes dominantes e as camadas mais privilegiadas protegidas do
contato com estranhos que ameacem sua tranqüilidade e o gozo de sua riqueza, seus bens, seu
estilo de vida apartado das mazelas sociais.
Dentro do processo, iniciado nas décadas de 50/60 nos Estados Unidos e também no
Brasil, de criação de condomínios em áreas verdes próximas aos centros urbanos, podemos
distinguir várias fases:
1) Casas de fim de semana em condomínios abertos para as classes médias e altas, em
regiões bucólicas, dentro do movimento de volta à natureza e busca de qualidade de vida.
2) Os condomínios se fecham e passam a utilizar mecanismos de segurança e
segregação.
3) Com o agravamento do nível de violência, poluição e stress nas grandes cidades,
assistimos à procura por condomínios residenciais nas periferias, fortemente protegidos por
muros, guaritas, sistemas eletrônicos, completamente apartados da região à sua volta.
4) Na década de 90, tal quadro se acelerou com a proliferação dos enclaves” e
criação de edge cities”, grandes núcleos habitacionais ou de negócios, afastados do centro,
dotados de infra-estrutura de comércio, serviços e equipamentos básicos, verdadeiras ilhas de
bem-viver, à parte da cidade.Esses empreendimentos, voltados para a classe A, têm como
123
característica, o alto padrão das construções, o preço elevado, os lotes de grande extensão e a
garantia de privacidade, segurança e da homogeneidade de contatos e relacionamentos
intraclasse.
5) Nos últimos anos se configura a tendência das classes médias, também se
comportarem de maneira semelhante, nos condomínios fechados, em lotes de pequena
metragem, em casas ou apartamentos padronizados segundo modelos estadunidenses,
mantendo os requisitos de isolamento, segurança, seletividade e segregação.Tal tendência
abarca também as classes C e D, que, em favoráveis momentos sócio-econômicos do país,
buscam realizar o sonho da casa própria segundo o modelo das classes altas.
6) Chegamos ao ponto de escalonamentos internos dentro das próprias edge cities, em
que vários níveis de espaços e construções são divididos por portarias internas e restrições à
circulação.
Os entrevistados pela pesquisa, moradores de Nova Lima, falaram das
desterritorializações vividas no processo de instalação dos condomínios ao redor da sede.
Alguns as identificam como aprisionamento:
Então agora a gente está preso, preso mesmo, a gente é obrigado a andar com
identidade, todos os carros são filmados para entrar e para sair, a gente não foi
preparado para isto. Então, da mesma forma que a gente estava livre, agora a gente
virou prisioneiro, principalmente nas brincadeiras que tinha, todo mundo interligado
um com o outro. Muitos foram embora daqui e os que estão chegando não pensam o
mesmo, tanto é que encheu de guarita, a qualquer hora tem um carro nos vigiando.
(Fernando).
Porque, do jeito que as coisas vêm aqui, você fechado aqui dentro. Nova Lima,
acabou tudo nosso aqui, o direito de sair, de dar uma volta nesses matos, conhecer, ir
pra essas cachoeiras, poço, igual antes. Acabou tudo isto, você ficou preso aqui...
encurralado. (Ronaldo).
Outros expressam um sentimento e percepção de “estrangulamento”, “abafamento”
gerados pela secular falta de espaço de vida e atualmente pelo cinturão de condomínios e
grandes empreendimentos ao redor das sede: “Nós de Nova Lima, nós moradores, nós
estamos sendo sufocados.” (Wânia).
Rodrigo lembra a impressão que teve ao chegar à cidade no início de 90:
Em termos físicos a gente via assim, Quintas ali aquelas casas todas espaçosas e tal
com espaço, e do lado de não. Eu descia e era a casa de amigos, todo mundo
abafado, umas casas meio sem espaço, na parte de baixo, a gente percebia realmente
que havia uma diferença grande, né. (Rodrigo).
124
Essa situação se agrava com a expansão dos últimos anos: “As pessoas aqui não dão
conta de resolver por si, não resolvem, não têm como resolver. O que eu posso fazer, não
tenho pra onde ir, tá cercado!‟” (Rodrigo).
Não é uma urbanização, é uma urbanização e uma ocupação dos quintais, dos
espaços, porque onde tinha três, hoje tem vinte. Então se adensou, acabaram com os
campinhos, onde era o campinho da minha casa, hoje é o prédio da associação do
bairro, que eu não acho que seja ruim não, mas acabou o campinho. (Rita).
O déficit habitacional para as camadas médias e baixas é grande, com poucas
iniciativas públicas e privadas, insuficientes para a grande demanda:
Eu vejo esse um problema seríssimo na cidade, acho que tinha que ter uma
intervenção pública pesada nessa história, bancar mesmo. Tem aquelas primeiras
casinhas que surgiram ali, que deu muita confusão porque a demanda é enorme. Se
tem um déficit tão grande , vai dar mesmo, é aquilo mesmo. É claro que, com toda
dificuldade, eu conheço algumas pessoas que moram ali, mas é isso mesmo, é o
mínimo, a pessoa ter um terreninho, uma casinha e tal, toda feliz por ter uma casinha
pequenininha, não importa, é uma casinha dela. (Rodrigo).
Outros falam de uma perda da cidade, perda de referenciais, de pontos onde a vida
adquire consistência: “Parece que Belo Horizonte acabou e Nova Lima vai ser uma, vai ter
que mudar, vai ser uma ótima Lima ou então uma antiga Lima, não uma Nova Lima mais.”
(Fernando).
Ainda aparece uma idéia de empobrecimento, de deslocamento de classe:
[...] eu me sinto assim, como se eu estivesse mudando de classe, indo para a classe
pobre, eu me sinto assim, porque eu não tenho condição de ir para lá, então eu vou
ficar do lado de cá. Vovai acabar não tendo classe média, vão ser ricos e pobres,
entendeu? Não tem jeito, vai haver só estas duas classes, na minha opinião. O centro
da cidade virou a favela, você viu algum lugar que a favela é o centro da cidade?
Eu não conheço, Nova Lima, Nova Lima o centro da cidade virou favela e os
arredores condomínios de alto luxo, então você está vendo que a cidade está sendo
sufocada pelos condomínios de alto luxo e a favela es ficando no centro da cidade.
(Wânia).
Os moradores mais antigos de Nova Lima têm posturas bastante semelhantes sobre o
assunto:
Não é que eu sou contra não. Eu acho até interessante igual está acontecendo, este
entorno de Nova Lima sendo ocupado por condomínios e tudo, é preferível isto do
que São Benedito por exemplo, Gorduras, que houve um crescimento totalmente
desordenado, este não, é um negócio ordenado, é preferível isto né. Quem dera que
todo mundo pudesse ter esta condição. Mas infelizmente s vivemos em um país
que não dá esta condição para nós. (Irineu).
125
É o que eu percebo na cidade. Ao redor fechado, pronto pra quem tem renda que
normalmente não é daqui, pessoa de fora. Isso é notório, né. Então eu vejo isso
mesmo, a questão espacial, porque se você tem a população crescendo e quem
ocupando tá vindo de fora, onde é que esse pessoal daqui tá indo, tá cavando buraco,
tá amontoando? (Rodrigo).
Se preocupam com o acirramento das desigualdades expressas no espaço urbano:
Eu sinto que do lado do condomínio é um nível de vida e do outro lado é outro. É
muito interessante, porque o início do meu bairro parece uma favelinha, as casinhas
todas juntinhas, mal elaboradas, sem reboco, eles vão construindo, eles vão
invadindo. pouco tempo o pessoal da Conspar tem terreno e eles contrataram
um segurança para tipo assim, “você vai ficar aqui noite e dia para as pessoas não
invadirem mais”. Então as pessoas não têm condições de comprar terreno, elas estão
invadindo, constroem as casas sem..., como é que a gente fala quando não tem
aprovação da prefeitura? Sem a planta, e vão construindo sobradinhos, e já no
condomínio... eu olho para um lado eu vejo isto, que é a entrada quando estou
chegando em casa, eu viro, eu abro a minha janela eu vejo aquele condomínio,
muitas mansões, só mansão, então a discrepância econômica é gritante. (Alice).
Assim, paralelamente, vem se instalando uma população de baixa renda, trabalhadores
informais em busca de trabalho nas “mansões”, que invadem terrenos e constroem
precariamente.
Enfavelamento
No projeto de modernidade, instaurado no Brasil no início do século passado, a
invisibilidade dos pobres foi sempre um objetivo a ser alcançado, e as políticas
urbanas cumpriram muito bem a função de garantir tal invisibilidade através da
distância geográfica. Urbanizar, ordenar, regular ou „limpar‟ os centros urbanos
foram, e continuam sendo, ações de re-direcionamento daqueles que estão “fora do
lugar”. (LAGO, 2006, p.47).
No outro extremo da malha segmentarizada que recobre as metrópoles, estão as áreas
habitadas pela pobreza e pela miséria, pelos grupos desvalorizados socialmente, pelos
“consumidores falhos”, pelos excessos do sistema excludente. Nesses redutos a população se
organiza de maneira a sobreviver, produzir, amar, consumir, se divertir, com modelos e
expectativas cada vez mais próximos dos da elite dominante, sendo que ainda persistem focos
de invenção e resistência, estilos de vida ligados a outras raízes e trajetórias que não as do
capitalismo tardio.
Se anteriormente a segregação no padrão centro-periferia gerava uma exclusão
localizada, agora ela está em toda parte, com os limites entre a pobreza e a riqueza tendo que
ser delimitados por fortes esquemas de segurança. As antigas vilas, bairros e cidades
operárias, que mantinham certo padrão de conforto e dignidade para os trabalhadores, se
126
desfizeram frente à necessidade de se buscar outros mercados de trabalho ou novas
“virações”, que incluem as atividades ilegais e a criminalidade. A partir dos anos 80, o
chamado crime organizado se monta nas cidades, ao lado da corrupção policial, configurando
um terreno propício para o vertiginoso aumento da violência em todos os sentidos.
No cotidiano das metrópoles a pobreza está cada dia mais associada à criminalidade e
ao tráfico de drogas. Se a pobreza até o final do século XX estava ligada à classe operária,
organizada em torno dos seus interesses, com a desregulamentação e desproteção trabalhista,
acontece também o “salve-se quem puder” nas favelas e periferias pobres. A dispersão
provocada pela instabilidade e flexibilização trabalhista deslocou o operariado de seus
núcleos, instaurando a rotatividade de empregos e de moradia e distribuindo nas periferias e
favelas a pobreza gerada pela globalização. Os antigos bairros, vilas e cidades operárias do
Brasil se dissolveram no tecido pós-moderno das cidades, nos movimentos pendulares das
regiões metropolitanas, na heterogeneidade e na mistura, mas também, e principalmente, em
novas formas de segregação.
O centro da cidade virou a favela, você já viu algum lugar que a favela é o centro da
cidade? Eu não conheço, só Nova Lima, Nova Lima o centro da cidade virou favela
e os arredores condomínios de alto luxo, então você está vendo que a cidade está
sendo sufocada pelos condomínios de alto luxo e a favela está ficando no centro da
cidade. (Wânia).
No perímetro urbano de Nova Lima, surgem, redutos e grotões de pobreza, abrigando
uma população que vive precariamente , muitas vezes migrantes atraídos pelos programas
sociais do município: “Eu vejo o processo de enfavelamento aumentando, aqui em cima, no
Montividiu, Nossa Senhora de Fátima, Cruzeiro, está acontecendo, está aumentando, apesar
dos benefícios sociais também terem sido bastante ampliados.” (Rodrigo).
Nova Lima é uma cidade rica, tem uma população, vamos dizer assim de base,
estabelecida, mas tem alguns grotões de pobreza muito pesados, que a cidade não
conhece. Eu acho que agora... é a primeira administração que está fazendo alguma
coisa, mas eu acho que ainda faz pouco, para essa história desses bolsões de
pobreza. Então são coisas assim que você tinha pobres em Nova Lima, mas pobres
que trabalhavam na Mina de Morro Velho, pobres, eu não estou falando disto, eu
estou falando de uma outra coisa que se criou em Nova Lima, então isso acaba
sendo, cerne de problema sério. Ali você tem centro de droga, você tem centro de
tudo o que você quiser, de tudo, de tudo, de tudo..., que Nova Lima teria que tratar
isso aí de uma outra forma. (Rita).
Paralelamente aos grandes empreendimentos, vem se instalando uma população de
baixa renda, trabalhadores informais que invadem terrenos e constroem precariamente, em
busca de trabalho nas “mansões”.
127
Neste Plano Diretor deles, se não tiver um estudo destas favelas que estão sendo
formadas e isto for acudido a tempo, o que vai acontecer, o lado de Belo Horizonte
com condomínios de alto luxo e estes lados que vão indo para Bicalho e outras
coisas, vai começar a ser tomado. Do jeito que está, uma olhadinha perto do
CAIC
16
, a favela que está se formando ali, com problemas seríssimos, problema de
violência, problema de tráfico de drogas, problema de HIV, você vai ficar espantada,
passa por ali. (Wânia).
4.4.2 Segregações
No mundo alcochoado, maleável e informe da elite global dos negócios e da
indústria cultural, em que tudo pode ser feito e refeito e nada vira sólido, não
lugar para as realidades obstinadas e duras como a pobreza, nem para a indignidade
de ser deixado para trás, nem tampouco para a humilhação que representa a
incapacidade de participar do jogo do consumo. (BAUMAN, 2003, p.59).
A perpetuação do sistema capitalista, na forma como atualmente se apresenta, exige
alto grau de segregação, o que em países ricos se configura na presença de grandes
contingentes de imigrantes, em busca de melhores condições de vida, habitando guetos e
periferias, sujeitos a discriminações múltiplas. Tal quadro culminou com as guerrilhas raciais
em países europeus e, recentemente, na extrema proposta de construção de um novo “muro da
vergonha” entre Estados Unidos e México.
No Brasil, como nos outros chamados países do terceiro mundo, essa situação mundial
está instalada desde a sua colonização, que as populações nativas foram as primeiras a
serem excluídas dentro de seu próprio território, agravando-se esse quadro com a “libertação”
dos escravos no final do séc. XIX. O séc. XX já se iniciou com o processo de enfavelamento a
caminho, em paralelo com a urbanização crescente de suas principais cidades. As populações
empobrecidas, invadidas em seus espaços por interesses alheios aos seus, se deslocam por
todo o território nacional, em busca de um lugar ao sol, se localizando nos arredores e bolsões
de miséria das grandes cidades.
A cidade está cindida com a segregação de grandes massas excluídas de bens e
equipamentos urbanos, ao lado de áreas privilegiadas pelos investimentos públicos que
beneficiam interesses privados, via aparelho estatal. Esse modelo segregativo se repete dentro
dos municípios periféricos, independente de sua situação sócio-econômica. sempre locais
em que a riqueza monta sua cidadela e a pobreza seu reduto e em todos os casos são as elites
dominantes e seus interesses que definem as localizações.
16
Centro Educativo que reúne vários órgãos e serviços à população.
128
Após séculos de segregação, efetuada pela colonização inglesa e pela elite dirigente
das mineradoras, Nova Lima vive uma nova segregação, a dos grandes empreendimentos
imobiliários para a classe A, que impedem, aos antigos moradores, a livre circulação e o
contato com a natureza, através de muros, guaritas, cercas eletrificadas e forte esquema de
segurança.
quinze anos atrás podia contar os moradores que tinha no bairro, como hoje os
moradores de classe alta vieram todos, então quando muda de vigilante eles
assustam, eles perguntam: “Você está indo aonde?”. é um bairro que tem uma
coisa muito engraçada que eu estou vendo acontecer, que nunca teve, as ruas todas
são sem saída, todos os finais das ruas que atravessam para chegar no bairro, as ruas
têm cercas. Todas as ruas, daqui, descendo do Ouro Velho até aqui, todas as ruas são
fechadas. Ninguém pode passar daqui para lá e a única rua que é a principal, ela tem
uma guarita e teve casos da pessoa sair, passar por uma guarita lá em cima e parar
em outra aqui em baixo. É tudo monitorado e antes não. A gente, era tudo caminho,
nossos trilhos, era gostoso, nossa! (Fernando).
[...] não pode entrar não, o condomínio, pelo menos este, acredito que todos aqui em
Nova Lima. Este nosso terreno é dividido com eles com uma tela, então não tem
como passar e quando eu vim morar aqui a gente transitava, não tinha problema,
porque é natureza e não se deve cercar a natureza, e eles cercam, e tem o riacho no
fundo. O riacho ficou e ninguém pode mais ter o acesso à água, se quiser pisar lá na
água, pegar nas pedrinhas, não pode mais. (Alice).
E aqui, Nova Lima, você não pode ir mais na água, fechado, cercado. Geraldo
Mingau
17
morreu, acabou, não tem mais espaço. Você vai entrar pra direita tem
segurança tomando conta, tem um empreendimento vindo. As próprias banquetas
quase todas fechadas, (ou totalmente deterioradas) ou abandonadas, realmente...
Uma cidade dessa, pelo amor de Deus. E toda hora lá, grandes empreendedores
chegando e um preço baixo desse. (Rodrigo).
Os moradores dos novos condomínios têm, em geral, posturas segregativas com
relação aos bairros vizinhos, havendo disputas internas entre os moradores mais antigos dos
condomínios e os mais recentes.
[...] centro da cidade é muito difícil, os condomínios aqui, quem comprou foi gente
que nem pertence a Nova Lima, maioria das pessoas que moram nestes bairros aí,
não tem nenhum contato com o povo de Nova Lima não, com gente natural daqui de
Nova Lima. Não tem este convívio mais assim não, eu o vejo mais assim não.
(Wânia).
Como a gente está numa confluência de bairros, quando a gente veio pra a gente
pensou muito nisso: a gente pode trabalhar com a comunidade e pode trabalhar
também com os condomínios, sustentando isto. Nisso eu percebo uma grande
diferença. Eu acho que essa troca ela não existe, no meu olhar. Eu sinto que uma
dificuldade, de um entrosamento do condomínio Ouro Velho com o José de
Almeida. E ao mesmo tempo uma luta, que existem pessoas muito interessantes
17
Vigia de uma das matas, designadas como área de preservação pela Lei Orgânica do município e que se
constituía numa das áreas mais visitadas pela população, hoje ocupada por condomínio.
129
que vieram pra essa Nova Lima há muitos anos atrás, que foram as primeiras
pessoas que vieram pra morar no Ouro Velho, elas não querem a cancela. As ruas
foram fechadas, foram cercadas, com uma cancela, aliás, eles não m nem uma
cancela, é uma guarita. Eles estavam usando cordas e tudo, mas não concordamos.
As reuniões são feitas aqui. O pessoal que não quer a guarita, eles tão brigando...
Então isso é interessante, existe um núcleo de pessoas que estão numa classe média
privilegiada que não querem a cancela e hoje lutam com pessoas que vieram depois
e que moram no mesmo bairro, pertencem mais ou menos à mesma classe, que
acham e querem a cancela. (Mirtes).
As posturas discriminativas partem também das instituições e dos órgãos
governamentais, como no caso citado por Rodrigo:
Quando foi pensada a Apac
18
era perto ali do Vila do Ouro, quando falaram
daquele presídio perto dos bacanas, nossa! Foi um auê. Então naquela época quando
rolou, teve um impacto, as pessoas preocuparam, jogou para Honório Bicalho.
Pessoal de Honório Bicalho deu uma esperniadinha, mas era pobreza né, não tinha
expressão, não conseguia espaço no Estado de Minas, não conseguia repercussão na
imprensa, ficou sendo lá mesmo. (Rodrigo).
4.5 Alterações ambientais, contato com a natureza
A questão ambiental, calcanhar de Aquiles do sistema capitalista, que não consegue
disfarçar sob malabarismos publicitários o agravamento das condições do planeta, é em Nova
Lima fonte de preocupação, angústia e sofrimento para os moradores da sede e principalmente
para as populações vizinhas de empreendimentos industriais e imobiliários. “Eu vou falar pelo
o que eu ouço, o trem esfeio viu (risos) o trem está feio, você fica sabendo de cada coisa!”
(Irineu).
Eu acho que essa questão de ambiente em Nova Lima eu tenho até medo de falar...
O que eu observo, essa transformação que está todo mundo vendo aí, a estrada que
foi cortando tudo, os condomínios subindo as montanhas, mudando completamente
a paisagem. A paisagem hoje de Nova Lima é outra, o quadro que se pinta hoje é
completamente diferente, e, o que eu ouço falar, acho que a questão do meio
ambiente é seríssima. (Mirtes).
A importância do meio ambiente preservado em Nova Lima, passa pelo cotidiano dos
seus moradores, pelo seu lazer, pelo prazer de viver, pela sensação de liberdade. Também pela
instauração de uma nova assinatura para a cidade, que de “Terra do Ouro” passaria a ser a
“Terra do Verde”.
18
Associação de Proteção e Assistência ao Condenado, presídio que trabalha com uma proposta de re-integração
social dos condenados.
130
[...] é o patrimônio que Nova Lima tem, é o tesouro mais precioso que ela tem nessa
era. Principalmente em termos econômicos, não é isso que eles estão vendendo, não
é isso que as grandes imobiliárias vendem? E as grandes imobiliárias que eu falo é
Odebrecht, é a Anglo Gold Ashanti, que é tudo que eles têm para vender, é a Vale
do Rio Doce com seu Águas Claras
19
lá, é o que tem de mais precioso na cidade.
(Rita).
Com a manutenção de grande parte dos recursos naturais intactos durante séculos, em
função do domínio das mineradoras, a população se acostumou a conviver com as matas,
montanhas, flora e fauna, incorporadas ao seu cotidiano, e agora se ressente com as grandes
modificações e com a devastação, imprimidas ao meio ambiente da região.
Nova Lima não foi construída para ser do jeito que está sendo aqui, a gente está
envolvido com montanhas, matos, matas, esquilos. tudo assustando a gente, não
tem aquele ar puro mais. A visão, pelo lugar que eu moro, a natureza já está
totalmente sentindo falta do que era. A mata está virando mais é um esconderijo,
agora ela é esconderijo de adolescentes e o acesso a ela, até a lagoa, está sendo
monitorado. houve até incêndio que durou mais tempo e eles não... Não sei se é
por falta de interesse de manter, ninguém está investindo, então acho que é a única
mata que ainda é muito bonito e a gente ainda consegue lutar para preservá-la,
porque fora dela já está tudo virando condomínio. (Fernando).
Eu não concordo com o que estou vendo, lógico que eu sou antiga, eu acho que essa
mata, ela tinha que ser preservada, deveria haver um estudo em cima do que eu estou
falando. Você não pode impedir o progresso, ninguém pode impedir o progresso,
isso é até tolice falar, mas você pode controlar para que as coisas..., para que o
modernismo chegue, sem também que liquide com o meio ambiente. Nós não temos
mais a mata do Jambreiro, cadê a mata do Jambreiro? Você viu os morros por aí?
Quem fotografou esses morros por esses últimos tempos vai ter uma relíquia, porque
realmente a mata está sendo devastada. (Wânia).
Fernando, guardião da mata e das nascentes, se angustia e se revolta com a situação
atual:
A gente viu, nasceu sendo explorado por outras mineradoras e tudo que são. De
repente eles pegam o centro da mata e vai falar que é um estudo, só de ser um estudo
vai destruir, vai começar a destruir. As próprias nascentes estão sendo
prejudicadas, como cresceu muito, já está virando: os córregos não estão tão limpos
como eram antes, os pequenos peixes que a gente apanhava antes até com peneirinha
mesmo, já não semais. A gente ia nas nascentes, brincava, passeava, da região do
Biocor, até o centro tinha um rio limpinho, tranqüilo, que todo mundo passava por
ele e aí, como a sociedade está mudando muito, eles não têm interesse. (Fernando).
O perfil montanhoso da cidade, bastante atingido pela corrosão da Serra do Curral
pela mineração de ferro, se revela danificado pelos sulcos e escavações do processo de
urbanização e pela remoção da cobertura vegetal, constituída por campos e cerrados e sua
19
Mega-projeto residencial desenvolvido pela Vale/MBR, que prevê, inclusive, um lago de profundidade abissal
ocupando a cava deixada pela extração mineral.
131
diversidade biológica. A cidade vai ter que ser preparada porque as montanhas sumiram, as
maritacas agora não param em qualquer lugar mais não, elas não estão tendo alimentos mais,
estão assustadas também, são seres vivos e agora é muito difícil encontrar uma cobra na rua.
(Fernando).
Hoje as montanhas aqui estão todas peladas né. Estão peladas, limpinho. Ali onde
eles estão construindo não sei o que é, deve ser negócio da Copasa, era um
lugarzinho bonitinho e tal, fizeram um paredão de todo tamanho. o têm nem
cuidado de respeitar a característica da região, mas eles querem fazer tudo diferente,
para ser diferente, para ter progresso. (Irineu).
A questão climática também preocupa os moradores que identificam várias
modificações: “[...] mudou muito, hoje é muito mais quente, antigamente em Nova Lima
você olhava uma hora desta assim, as árvores estavam tudo, as folhas estavam balançando, os
galhos, hoje não, está tudo parado lá.” (Irineu).
[...] a chuva está escassa, não chove mais. Nossa! Chovia muito, a gente vinha para
e era muita chuva. Era um clima úmido, agora o clima de Nova Lima está muito
parecido com o de Belo Horizonte, seco, um clima que faz mal à gente, à saúde, às
crianças. E eu ainda me sinto muito privilegiada, porque tenho ar puro na minha
janela, não deixo cortar uma árvore e a gente ainda respeita a natureza, mas cada um
devia fazer a sua parte. É muito difícil. (Alice).
A gente tinha prazer de passear nas calçadas, nas estradas que eram de terra, hoje em
dia é o asfalto. Uma chuva que caía dez anos atrás não fazia estrago nenhum, se
chovesse três meses não havia estrago nenhum. Não havia tanta enchente e nem era
tão perigoso. A gente via desta região o centro da cidade todo coberto com uma
névoa, era uma neblina tão bonita, que a gente via no por do sol e com esta mudança
tudo agora é asfaltado. Pela população que está chegando, tudo tem que ser asfalto,
pelos automóveis. Como a água cai e não tem por onde entrar mais, a tendência é ir
para um local só, por isso é que há enchentes. Há perdas e muito grandes, as pessoas
estão tendo dificuldades e ficando muito tristes em ver isto. (Fernando).
A relação do homem com a natureza se alterou em função dos interesses econômicos e
de toda uma dinâmica social.
A gente soube destruir a natureza de uma forma que era boa, a gente apanhava a
madeira que já tinha morrido para fazer a comida. Você se sente privado disto, não
tem o mínimo interesse de fazer mais, por que o que se hoje são caminhadas
próximo aonde tem alguém vigiando. (Fernando).
Quando eu vim para Nova Lima, meu tio comprou um sítio neste condomínio, foi o
primeiro comprador, mas não era um condomínio. Eles vendiam pequenos sítios,
na época ele conseguiu pagar e tudo, ele não era fechado, não era loteado nem nada.
Era muita natureza, muita, muita árvore, a gente subia em árvore, a gente chupava
manga, a gente pisava na água, a gente, nó! s nadamos naqueles riachos todos
que tinham uma água geladinha, muito bom, uma água cristalina, pedrinhas, a gente
não via queimadas, a gente... Era proibido até cortar árvores, desmatar, ele teve que
pedir aprovação no IEF para poder limpar o terreno, para poder construir uma casa e
132
hoje em dia eu não vejo mais isto. Da minha casa eu ouço barulho de motosserra, eu
vejo queimadas [...] (Alice).
O papel das empresas e dos grandes empreendimentos na destruição da natureza é
identificado pelos moradores, assim como o descompromisso dos poderes instituídos:
[...] é justamente, mas a Morro Velho simplesmente ela deixou, porque ela não
precisa da água mais, ela entregou para a Prefeitura, igual a mata do Jambreiro né,
entregou. Não interessa, entrega, porque sabe que deixou para a Prefeitura, da
pouco está lá, estão construindo um condomínio lá. (Irineu).
Hoje por exemplo eu dei uma notícia aqui do índice de coliformes fecais na Lagoa
dos Ingleses, mas a Lagoa dos Ingleses foi sempre tida pra gente como um paraíso,
era um lugar assim..., e não só a Lagoa dos Ingleses, mas todas as lagoas ali daquela
região lá, do Rio de Peixe para lá, da região dos lagos de Nova Lima, sempre vista
como água pura, água limpa. Hoje está lá, cheia de cocô, porque foi ocupada de uma
forma, por gente que quer curtir a natureza, mas que fez essa coisa aí, ou seja um
meio ambiente mais ou menos entre aspas, a preservação do meio ambiente
totalmente entre aspas. (Rita).
São muitas as críticas aos órgãos encarregados de zelar pela integridade ambiental,
que, cercados por grupos e interesses poderosos, se mostram inoperantes:
Eu acho que o grande desastre da administração é a questão ambiental, acho que é
um desastre pensado, sabido, não é desastre de “Oh!”, estão sabendo o que
aconteceu [...] A questão ambiental, pra mim, eu acredito mesmo que a coisa foi
negociada, a mesma situação da Marina do Ministério do Meio Ambiente , acaba
que chega uma hora que não conta mesmo, que realmente a pressão é muito
grande, o próprio governo declarando que a questão ambiental tem um
entendimento, para o desenvolvimento do país, essas coisas. Então aqui acho que a
opção é essa mesmo, colocar uma pessoa que não tem a menor sensibilidade
ambiental, na gestão da secretaria. (Rodrigo).
Eu acho que Nova Lima vai pelo ralo do esgoto é por isso aí, vai literalmente. A
Lagoa dos Ingleses está porque não tem um secretário de meio ambiente que
tenha uma visão, nunca teve, que eu me lembre. Alguém que queira preservar esse
patrimônio que a gente tem, porque o secretário do desenvolvimento trabalha para
desenvolver a cidade, o secretário de educação trabalha pela educação, o secretário
de saúde trabalha pela saúde e esse pessoal tem trabalhado mesmo. o de meio
ambiente trabalha contra o meio ambiente. Ele é um secretário de jardinagem
vagabunda, você está entendendo? (Rita).
A relevância do cuidado com os mananciais e os cursos d‟água da região é salientada
como uma das grandes perdas pra qualidade de vida da cidade e do planeta: A gente
caminhando mesmo pro aquecimento global, é notório, os dias estão cada dia mais quentes,
então o clamor por água aumenta a cada dia e Nova Lima que tinha uma aguada maravilhosa
aí ficando sem água, literalmente sem água mesmo pra uso.(Rodrigo).
133
Esse é também o aspecto que evidencia a falta de autonomia dos poderes instituídos
frente aos grandes interesses econômicos:
A coisa do dinheiro rápido, o próprio Jardim de Petrópolis sofre com isto,
ofereceram asfalto algumas vezes, asfalto é uma rapidez para oferecer. A gente fala
não, sem captação de água pluvial a gente não quer, pode ser até asfalto, mas com
captação de água pluvial decente. Tem? Não. Então pode levar esse asfalto pra outro
lugar. Pronto. Pelo amor de Deus, ficar com esse papo furado. Não gente, nós tamos
preocupados é com a água, nós temos dinheiro pra pagar pneu velho, pra conserto,
com certeza nós damos conta desse recado aí. Não tamos precisando da prefeitura
dessa forma, precisamos cuidar da água. Vocês vão cuidar da água? Não, então
deixa nós na terra mesmo, não tem outra alternativa? Não, o dinheiro é só pra
asfalto. (Rodrigo).
Eu conversando com as donas do Ciclo da Terra, eles pararam de produzir tudo
porque a nascente que fornecia água para eles, que vinha do Morro do Elefante
20
secou, dentro do espaço da secretaria e a secretaria não está nem aí, muito antes pelo
contrário, quer dizer essa é a cidade, como é que você faz para..., as mudanças de
Nova Lima são essas eu acho. (Rita).
A privatização dos espaços públicos de lazer e de contato com a natureza ameaça os
mananciais:
Bem ali, próximo mesmo, você anda um pouquinho na mata, você uma árvore
imensa, grossa, que tem uma nascente próximo da árvore, nasce água purinha
mesmo, mas como está mais no meio do mato... Tem esse condomínio novo que está
lá, é um condomínio longo que vai daqui até quase nos Cristais agora. E muitas
coisas que ninguém lembra e ninguém vai saber, mas em frente onde tem um local
de vendas dos terrenos ali em cima, de plantão, ali onde eles montaram um
escritório, um tempo atrás ali foi barreira de polícia, engraçado é que ali tem
uma nascente de água. Onde passou a máquina, existia uma nascente ali. (Fernando)
A gente perdeu, você não tem mais, por exemplo, você vai passear no Jambreiro,
tem a MBR, chega tem uma cancela lá que num..., antigamente eu era escoteiro, a
gente fazia acampamento na Serra, no Pára Raio. Você lembra do Pára Raio?
Era uma espécie de uma casinha que daqui direto, a gente via uma espécie de uma
casinha banca, pintado de branco, que nesta época já estava todo descascado, né,
estava no tijolo, mas nós fomos lá. Hoje está fechado, você vai pelo Rego dos
Carrapatos, chega no açude, tem uma porteira lá, em todos os lados também tem,
tá tudo fechado. (Irineu)
Então os espaços estão todos fechados, até um pouco mais longe, Rio Acima, né.,
Canto das Águas fechou várias cachoeiras. Você tem um espaço mais longe, do
Viana, você tem Cocho D‟água, também fechado, então estão sendo fechados os
espaços naturais, de lazer, a água principalmente. (Rodrigo).
20
Morro com formato de um grande elefante deitado, tombado pela Lei Orgânica Municipal, muito escalado
pelos moradores, até que foi isolado para a criação de um enorme empreendimento imobiliário, Quintas do Sol.
134
Muitos salientam a importância da cultura e da educação no processo de resistência à
ocupação predatória e à degradação ambiental: “A educação é que vai mudar isso tudo, a
educação.” (Ronaldo).
Eu estou falando isso porque Nova Lima poderia ter uma qualidade de vida muito
melhor, se ela cuidasse um pouquinho mais da instrução. Nova Lima já era para ter
escola integral, em todas as escolas dela, eu não sei porque não tem, deve ter algum
motivo, eu quero crer que dinheiro não seja. (Rita).
Até é uma área que eu participo muito pouco, acho que eu deveria participar mais,
porque eu acho que cultura e meio ambiente têm tudo a ver. Um povo que preserva a
sua cultura, ele não vai deixar sua cidade, sua água, sua árvore, suas plantas, quer
dizer sua saúde ir pelo ralo também. Tudo tem a ver no final das contas. Não pode
falar de saúde sem falar de meio ambiente, não pode falar de meio ambiente sem
falar de cultura e educação. Não adianta você falar com as crianças: “Vamos cuidar
do riacho.”, não adianta, tem que contar a história, qual é a história do homem em
relação a esse riacho, quê que essa criança tem em relação a ele pra ela poder ter
interesse em cuidar desse riacho. E o quê que chega pra essa criança, tem um riacho
aqui no José de Almeida, completamente poluído, a criança não imagina como que
era um riacho limpo! Então não adianta a gente falar, a gente tem que mostrar, a
gente tem que fazer um trabalho juntos. (Mirtes).
4.6 Espaços de cultura e lazer
A área cultural, de maneira geral, foi muito elogiada, se salientando a riqueza das
manifestações culturais.
Eu acho a parte cultural de Nova Lima muito rica, muito. Todas as manifestações
culturais, religiosas, carnaval, futebol, a casa de cultura, todas estas casas aí, muitos
trabalhos com natureza, com ferro, com aço, com coisas naturais. Eu acho esta
manifestação toda de cultura, eu acho muito rica, as escolas, as festas juninas né, as
festas religiosas, tem agora a festa de Nossa Senhora do Pilar, os shows, as bandas...
É congado, é tudo muito admirável, as festas de Macacos, festival de inverno, ah é
tudo muito lindo, está de parabéns. (Alice).
A importância do Teatro Municipal e dos cursos de formação permanente foi
ressaltada, se identificando políticas públicas favorecedoras:
O Teatro tem oferecido muitos espetáculos bons, esta escola de dança é maravilhosa,
a escola de música é fora de série, eu acho que quem tem vocação pra, vamos dizer
aí, pra qualquer tipo de arte, tem tido oportunidade de desenvolver, de participar,
porque a prefeitura tem colocado isto a disposição de qualquer um, de qualquer
classe social. E os espetáculos que vem aqui são de preço, às vezes gratuitos, às
vezes preço razoável né, dá para qualquer um freqüentar. (Wânia).
Ao lado da boa programação foi citada a discriminação de classe ainda presente nos
espaços de cultura: E eu vejo até o teatro aqui, com ofertas maravilhosas de coisas, muita
135
coisa, em grande parte vazio, grandes eventos e tal. O público local não valor, quem
conhece, nos condomínios, não tem coragem de descer na cidade, ninguém conhece a cidade.
(Rodrigo).
Eu fui convidado... , quando eles entregaram aquele piano lá, eu fui, fui eu minha
esposa, fui nessa promoção... Eles custam a abrir né, e abre uma portinha assim,
não sei para qaqueles portões de todo tamanho lá, entrei na fila com a minha
esposa e tal, na hora que eu fui entrar veio uma senhora do outro lado, ela veio
de cima, eu todo solícito esperei, dei ela passagem, mas que a minha esposa
saiu na frente, ela parou e olhou para mim assim de cima embaixo, assim com
aquela cara assim de nojo né, “mas o que você está fazendo aqui, você não tem nada
o que fazer aqui”( risos) eu: “faz o favor”, ela assim:” acompanha a sua esposa”,
“não, não eu prefiro que a senhora, a preferência é da senhora” (risos) mas é aquele
negócio, as pessoas..., “você não devia estar aqui não, aqui é para nós que somos
da alta”, né. Então hoje é que está mais acessível, porque dentro estava cheio de
servente, de pessoas mais simples e tinha a gente, , e as pessoas não aceitam isto,
as pessoas não aceitam. (Irineu).
O teatro está sempre vazio, uma casa maravilhosa de espetáculos, a gente tem o
segundo teatro melhor de Minas Gerais, Nova Lima. Uma casa que tem todo
recurso, sempre tem coisas bacanas e as pessoas não saem. E as pessoas, elas têm
medo do teatro, eu percebo isto. (Mirtes).
A influência de Belo Horizonte nas preferências culturais da população,
principalmente a mais jovem é comentada:
Você é influenciado pela cultura do mais forte, é influenciado, pela propaganda,
pelos hábitos da cidade grande, algumas vezes, vamos dizer, a influência é até
benéfica, porque você acostumar a ir em palestras, você acostumar a ir em teatro, é
muito importante, mas também sofre aquelas conseqüências : hábitos, publicidade,
tudo chega até a gente, né. (Wânia).
A falta de um movimento cultural de peso e que consistência às características que
identificam Nova Lima em termos históricos, vivenciais, sócio-políticos é apontada como o
grande problema nessa área.
Eu sinto que a cidade não tem um movimento, Paulo José falou isso na palestra, a
cidade que não tem identidade, não tem teatro. Não adianta você ter um teatro
maravilhoso e a cidade, as pessoas não terem desejo de falar alguma coisa, nesse
teatro. Mas não é fácil fazer as pessoas irem além, ler uma poesia e pensarem mais
que as palavras falam, o que você pode dar pra isto, o que o seu corpo fala dessa
palavra. Isso ainda é difícil que é a questão da intenção, que é morta. Ela é difícil
porque a identidade cultural está meio perdida, muito abafada. A proximidade com
Belo Horizonte, os jovens que não se interessam por arte, pela cultura, não
valorizam o que tem aqui, as cavalhadas de São Jorge, de São José Operário, até tem
uns trabalhos que são legais. (Mirtes).
Ao mesmo tempo foi bastante mencionada a falta de espaços de lazer em Nova Lima.
Com a crescente ocupação do território pelas classes altas, suas casas hollywoodianas, seus
136
equipamentos privados, o novalimense perdeu seus espaços de lazer prediletos, junto à
natureza, nos cursos d‟água, nas trilhas das montanhas ou nas matas remanescentes.
[...] eu acho que a cidade perdeu, a cidade perdeu muito com esses espaços de lazer
que foram destinados aos empreendimentos imobiliários pra pessoas abastadas, a
maioria dos empreendimentos, não de interesse da comunidade. Poucas pessoas
daqui que estão usufruindo desses empreendimentos, pouquíssimas. (Rodrigo).
Os grandes investimentos em infra-estrutura, em urbanização e ambientação são feitos
para as áreas e empreendimentos voltados para essa nova população classe A, que tem a seu
dispor espaços sofisticados, às vezes pouco utilizados, como é o caso das áreas de lazer de
condomínios verticais.
Eu não preciso de um espaço público de lazer, eu tenho a minha casa que é um
espaço particularizado maravilhoso, eu não tenho essa demanda. Ali no Jardim de
Petrópolis todos nós já temos nossos espaços de lazer resolvidos, nossa área nos
permite ter um lazer próprio. As outras pessoas desses condomínios todo mundo tem
condição de estar filiado a um clube. Agora, quem realmente precisa, até pra
melhorar a condição dela enquanto pessoa mesmo não está contemplada. Eu acho
esse ítem aqui nulo. (Rodrigo).
A ausência de espaços públicos de convívio (e o abandono dos existentes) onde
possam acontecer encontros criativos e aglutinadores, restringe a vida dos moradores a
contatos esvaziados e mecânicos, especialmente das crianças, impedidas de permanecer nas
ruas por questões de segurança.
Que praça? Não tem praça. José de Almeida, Ipê, não têm praça, outro bairros que
eu fui não têm praça, não m lugar de convivência, onde as pessoas se encontram.
Aqui tem uma quadra do Ouro Velho, mas as crianças do José de Almeida não
podem ir. Quando tem uns eventos aqui na rua, por exemplo, eles vêm em peso,
estão sempre presentes. Sinceramente eu acho que essa questão ela influencia
demais, não tem como, porque muda o comportamento. É aquela história que a
gente conversou, né, gera o medo, gera o estranhamento. (Mirtes).
A falta de um parque municipal, bem cuidado e seguro e que possa oferecer espaços
de lazer e recreação, práticas físicas e contemplativas, para as várias camadas e idades,
também é enfaticamente citada:
E a falta de espaço público de lazer, então é um negócio, pô, isso é realmente é um
clamor pra quê, pra alcoolismo, droga e violência. A gente passa, eu não consigo
deixar de ficar chateado quando a gente sai. [...] Eu acho que são medidas, eles
ficam achando maravilhoso ceder um espaço como aquele ali pra uma empresa, que
vai gerar cinco empregos, gente, pelo amor de Deus. Não precisa dessa empresa aí
não, deixa essa empresa pra lá, libera um parque ali pros meninos, uma quadra. É o
tipo do investimento péssimo, péssimo investimento. É vender barato demais uns
espaços assim. Gente, libera pro povo! (Rodrigo).
137
O próprio Rego Grande, aquela máquina ali que era um local..., não é? Tudo! Foi se
acabando, a cidade não tem área de lazer, nenhuma, uma cidade, um município deste
tamanho com tanto verde, com tanto dinheiro, não tem um parque, não tem um
parque de diversão, diversão que eu estou falando: o parque Municipal de Belo
Horizonte, com brinquedos. Agora eles estão colocando aqui, acolá, alguns
equipamentos de ginástica, então se atende um tipo da população e tem que atender
mesmo, mas precisaria ter muito mais e muito mais bem olhado, muito mais
cultivado. (Rita).
Também a área esportiva e o tradicional futebol, foram citados como carentes de
espaço e organização:
Agora lazer Nova Lima não tem muito não, apesar de ter os ginásios poliesportivos
que eles colocaram por aí, eu não vejo muito não. Tem essas escolinhas, tem essas
ONGs por aí, que tentam incentivar isto, bom na escola, bom de futebol, bom na
escola, mas eu vejo isto ainda engatinhando. (Wânia).
Nova Lima era uma cidade que já era para ter, do jeito que ela tem futebol de várzea,
e um público determinado... Nova Lima tem dinheiro para isso e muito, porque
Nova Lima deu os campos de várzea, todos hoje são cercados. Tirou, né, e não deu
outra coisa em troca, o dar é muito bobo, uma coisa muito boba para uma coisa
tão importante quanto essa... (Rita).
Os locais que permitiam a organização espontânea de atividades esportivas também
foram perdidos, ocupados, privatizados, em função do estrangulamento espacial vivido pela
sede:
O meu amigo J., ele era presidente na sede, e eu enquanto estava no Nacional
21
, eu
não permiti que negociasse a área que tinha um campo nosso ali, ele negociou,
ganhou o campo em baixo perto Ciclo da Vida
22
. Deixaram e eles estão
construindo um condomínio e o povo que usava ali para transitar, para passear e
tal, hoje não pode nem passar. (Irineu).
Mas o que acontece com os campinhos hoje, é um negócio muito difícil porque você
tem os meninos na casa da minha mãe, “Zezé onde é que vofoi?” estava imundo,
estava num campinho. O campinho era no alto da rua assim né, no alto da rua, ficava
com a meninada toda, todo mundo de olho, igual eu falei antes, que em Nova
Lima todo mundo vê todo mundo e todo mundo sabe. Hoje os campinhos, uma parte
deles é cercado, para que as crianças não entrem e não detonem, então você tirou
este espaço dessas crianças. Então o menino detona o campo, não é fechar o campo e
cobrar para o menino entrar não, é abrir o campo e botar alguém que tome conta de
verdade e que está lá..., e que é uma pessoa que chega e que se saiba fazer respeitar
pela criança. (Rita).
21
Agremiação esportiva local.
22
Núcleo de práticas agro-ecológicas voltado para a capacitação da comunidade.
138
Queixa-se principalmente da perda dos espaços de contato com a natureza, o que no
perímetro urbano é representado pelas banquetas/regos, lugares de passeio e exercício físico,
últimos redutos de acesso livre para o cidadão comum.
Você o Rego Grande, aquilo é um negócio que tem que ser conservado,
preservado, eu acho que não custava nada para a prefeitura. A gente fala muito mal
da Morro Velho, mas tem muita coisa boa na Morro Velho, porque antigamente
quando o Rego Grande era da administração da Morro Velho, o negócio era bem
cuidado. Hoje não, você passa lá, é uma sujeira, não custava nada a prefeitura
colocar igual era antigamente, aquelas equipes de pessoal, de conservação, para
varrer, para limpar, né. (Irineu).
Rego Carrapato gente, o Rego do Carrapato foi retratado, você via pintores famosos
virem aqui para pintar o Rego do Carrapato, é mata Atlântica, ali é mata Atlântica.
Cadê? Onde que está? Você via animal..., animal selvagem mesmo né, zanzando. Na
minha época de criança, eu lembro meu pai indo caçar, um dos esportes praticados
pelos ingleses, pelo povo aqui, era caçada, caçar o que agora, não tem mais,
acabou, foi sendo destruído e vai sendo destruído né, é o preço do modernismo,
... (Wânia).
139
5 VIVENDO A NOVA CIDADE
“Eu não sou especialista não, sou sofredora disso...” (Rita).
5.1. Jeitos de ser, maneiras de viver
Muitas maneiras de viver coexistem nessa nova cidade que se desdobra e se
multiplica, algumas reproduzindo velhos modelos, outras rompendo com tradições e
enrijecimentos, outras, ainda, fragmentando e esfacelando possibilidades de um convívio
significativo e de pertencimento a um grupo social e a uma coletividade articulada.
Os modos de vida atuais são ainda fortemente atravessados pela presença secular da
mineração, mais do que se poderia a princípio imaginar. Os aspectos espaço-ambientais e o
processo de metropolização, no nível local, assim como as grandes questões no nível mundial,
como a poluição, o consumo, a descartabilidade, o medo, a violência, a qualidade de vida,
também se apresentam como fortes demarcadores do cotidiano e das práticas de si dos
habitantes dessa cidade.
A fama positiva de Nova Lima como cidade “boa de viver” é reconhecida e
confirmada por muitos moradores, principalmente pelos que aqui chegaram recentemente:
“Me sinto uma vitoriosa de ter voltado pra minha terra. a gente que sai daqui sabe dar
valor ao que é da gente. Não tem terra como Nova Lima. Pra ganhar dinheiro é S. Paulo, mas
pra viver é Nova Lima.” (Lúcia).
Eu adoro viver aqui, ainda mais o lugar em que eu moro é muito ar puro, muita
natureza, as pessoas se conhecem. Em Belo Horizonte eu não conhecia nem o meu
vizinho da esquerda e nem o meu vizinho da direita, morava em uma casa, o muro
alto, eu não via a rua, via o céu se olhasse para cima. Em Nova Lima a gente tem
mais segurança, a gente conhece as pessoas. (Alice).
Eu vou te falar que hoje eu sou outra pessoa. Ter mudado pra me fez realmente
ser outra pessoa, porque a cidade vai te deixando dura, enlouquecida, tensa, os
compromissos com o horário, você não tem tempo de observar, você não olha, você
não nada. Então eu não tinha nenhuma relação com a natureza, eu nunca tive. Eu
trabalhava com criança, eu trabalhava com teatro, mas não tinha esse tempo pro
olhar. Então ter vindo morar aqui me fez virar outra pessoa, muito mais tranqüila.
Foi o próprio espaço que foi me fazendo isso. Hoje eu observo as plantas, eu vejo
beleza nisso, eu vejo vida, me emociono com pequenas coisas que antes não me
emocionavam. Eu acho que isto é pelo fato de eu vir morar aqui. (Mirtes).
O bem estar e a realização, expressos pelos novos moradores, contrastam com a
angústia, a sensação de perda e aprisionamento manifestados pelos nativos e pelos moradores
140
da sede, pressionados por várias situações que ameaçam seus modos de vida. No entanto, as
recentes mudanças nas formas de ser, de se relacionar, de se posicionar frente ao mundo e à
natureza são sentidas tanto pelos moradores mais antigos, quanto pelos que chegaram mais
recentemente.
As pessoas que vinham pra Nova Lima eram pessoas que buscavam um contato com
a natureza, vinham pra Nova Lima com uma outra relação, de respeito, de
tranqüilidade. Agora eu sinto o seguinte: muitos shoppings, muitos shoppings, quer
dizer, tem esse olhar do comércio, olhar do econômico o tempo inteiro, é o que vale
dinheiro, é o lote, quer dizer, não era assim. (Mirtes).
Nas relações do dia-a-dia, distinguem-se padrões conservadores e de manutenção de
formas afetuosas de convivência e de vizinhança ao lado de posturas marcadas pelo
individualismo, pelo descaso com os espaços públicos e pela coletividade. Os entrevistados
falam das mudanças nas formas de convívio, geralmente relacionadas às questões de ordem
sócio-econômica.
Eu acredito que quinze anos atrás o convívio era mais natural, mais simples, as
pessoas conviviam mais, sem olhar tanto o poder aquisitivo, até porque Nova Lima
não tinha tantas mudanças, o estava tão elitizada. Porque o desenvolvimento traz
estas camadas, então as crianças começam a se separar, ah não brinca com fulano,
o fulano mais pobre brinca com os coleguinhas mais pobres... (Alice).
A gente prefere sair num sábado ou domingo que eram os dias de encontrar com os
amigos, mas a gente não tem mais os amigos, não tem mais os diálogos, então a
gente está fugindo daqui e talvez está sendo pior. Era uma terra onde todo mundo
sabia o nome de todo mundo, todo mundo dava bom dia para todo mundo. Hoje em
dia está tudo mais difícil, as pessoas estão andando mais assustadas, porque pelo
fato da cidade estar crescendo tão grande, não são os ricos que estão vindo, as
outras pessoas estão vindo porque acham fácil acesso. não existe aquelas escolas
de samba como era antigamente, já não existe aquelas praças bonitas que todo
mundo cuidava. (Fernando).
Antigamente, era aquele convívio de comadre, a gente vivia na casa de um, pedindo
uma coisa emprestada e a vida vai obrigando cada um a olhar os seus problemas, os
seus interesses, não tem tempo para muita amizade, muito, muito raro, viu. (Wânia)
Ainda existem formas de convívio baseadas no respeito, no carinho e no cuidado com
crianças e idosos:
Eu vejo aqui na casa de mamãe, é o dia inteiro, é gente o dia inteirinho. Tem pessoas
que vêm todo santo dia para conversar, porque hoje também ela não sai né, ela
tem dificuldade de andar, fica sentadinha lá, passou por uma fase difícil, agora
está bem, e o dia inteiro é gente lá. Fica todo mundo muito preocupado, muito
atencioso com ela, tanto pessoa de idade como pessoa mais nova, homem e mulher,
então, acho assim, é um povo carinhoso. (Irineu).
141
A falta de espaços de convivência não impede que se inventem maneiras de se
encontrar, em pontos estratégicos, nem que seja de passagem:
Nova Lima tem muito pouco espaço de convivência, vamos dizer assim
oficialmente, mas as pessoas se criam no espaço de convivência, não é? Esses
lugares que eu estou te falando que se transformam numa praça onde você fica ali e
as pessoas sabem que fulano vai estar ali, e passa por ali, mais ou menos, passa
dois dedos de prosa e vai embora e não é só gente mais velha, meninada também faz
a mesma coisa. (Rita).
Os moradores antigos, falam das camadas sociais, da estratificação espacial e dos
fatores que distinguem os antigos bairros operários de outros, projeções na superfície das
relações estabelecidas no subsolo:
Nos lugares que eu morei sempre teve esta característica. Eu morei no Mingú, eu saí
com meses né, mas morei aqui na Volta Redonda, também era quase que todo
mundo amigo, antigamente a Morro Velho também tinha isto né, as diversas
camadas... Então ali na Volta Redonda tinha, eles trabalhavam quase todos juntos
né, então eram muito ligados uns com outros. É fundo de Mina né, é o pessoal mais
sem classificação profissional, é o que ia lá no fundão, que ficava cá em cima
puxando o carrinho, o que ia em baixo encher o carrinho e que esvaziava o
carrinho em cima né. Rua Nova, Areão, na Fábrica de Bala também era e
depois aqui, igual Cristais, Chácara, quase que tudo, era tudo em família né.
Conforme também nas Quintas também era, tinha o pessoal que de outro nível.
(Irineu).
Essa modelagem feita a partir da divisão de classes estabelecida pelas minas,
permanece na Nova Lima de hoje, atravessando o cotidiano e as maneiras de ser: Nova Lima
sempre foi uma cidade de diferenças, né, de estratos e camadas da sociedade. Essa segregação
eu acho que ela se faz, continua se fazendo, continua sendo, numa cidade. (Rita).
Também se falou da receptividade do povo novalimense aos que chegam,
característica adquirida na sua história de cidade mineradora, sujeita a diversos fluxos de
migração, e que permanece até os dias de hoje.
Eu acho que o novalimense é um povo assim muito, muito aconchegante, muito
amigo, muito solidário, acho que isto fica daquela época em que a gente, isto o
pessoal mais antigo né, é aquela solidariedade que existia, porque foi uma
necessidade da época, em que o povo participava, ajudava os operários que estavam
em greve, os operários que estavam em dificuldade. ( Irineu)
Nova Lima é considerada uma cidade que qualquer pessoa que chega é bem
acolhida, acho que nós temos que preservar isso mesmo. Quando nossos netos
tiverem aí, eles falarem, “Nó, Nova Lima consegue acolher as pessoas até hoje. A
mineração foi embora, mas a acolhida ficou, né. (Lúcia)
142
Estranhamentos
Ao lado do decantado progresso, das novas oportunidades e possíveis ampliações,
Nova Lima é uma cidade que cresce e se perde, se dilui, se acelera, que acirra seus processos
de segregação sócio-espaciais e seus estranhamentos.
“Estrangeiros em sua própria terra”, assim se expressam alguns entrevistados com
relação à instauração de estilos de vida, ritmos e posturas dos novos moradores, que em
número crescente nos últimos anos impõem, através de cerceamentos e mecanismos de
reprodução ou contágio, seu modo de vida à cidade. Eu acho que o crescimento da cidade é
uma mudança muito grande, é o crescimento onde ninguém conhece mais ninguém, ou seja
está entrando nesse ritmo de coisa [...]” (Rita).
Você tem medo de cumprimentar uma pessoa, ela atravessa do outro lado porque ela
imagina que pode ser assaltada, então aquelas grandes casas que não tinham alarme
ou funcionário, podia chegar e abrir e entrar, pois o portão ficava aberto, hoje em dia
não pode mais. (Fernando).
O sentimento de pertencimento a uma comunidade, a uma história e rotina de vida,
cultivado pelos moradores mais antigos, dá lugar a um estranhamento generalizado.
Era mais família, não era vizinho, era quase que uma família, né, mas hoje está
rodeado de outras pessoas que às vezes mudam, mudou gente aqui agora que eu não
conheço, mas aqui, ali em baixo, aqui atrás é tudo gente mais antigo. Tinha aquele
negócio, você levava um bolinho, um biscoito, chegava um vizinho novo sempre se
aproximava assim né, hoje não tem muito disto não. (Irineu).
Você chega na prefeitura, você não conhece ninguém, você chega na mara, você
não conhece ninguém, você está entendendo, mas você conhece, é um negócio
muito..., que assusta inclusive, assusta, assusta. Porque fulano é filho de beltrano,
mora em tal lugar, é assim que você faz a sua rede social daqui, recompõe a sua
história né. (Rita).
Os “nativos” são tratados como perigosos e inconvenientes pelos moradores dos
condomínios, que, com suas guaritas e seu arsenal de segurança, afastam qualquer
possibilidade de contato. O cotidiano dos moradores está atravessado por essas interdições,
cercas, desconfianças, que atuam na modelagem de maneiras de se vestir e andar pelas ruas,
no estilo das casas e no comportamento público.
Hoje em dia tem o pequeno pobre e o grande rico; às vezes a gente está andando,
fazendo uma caminhada, a gente é assustado e as pessoas que estão ao nosso lado se
assustam com a gente. Não tem mais como você andar de sandália, de chinelo ou
mesmo descalço na rua. É uma ameaça. A gente tem que andar e andar bem, bonito,
143
andar bem bonito socialmente, por fora, mas por dentro o coração continua, mas ele
está sendo muito afetado. (Fernando).
Esse estranhamento se estende aos serviços e ao comércio novalimense, pouco
procurado pelos novos moradores: “O problema desse povo dos condomínios, é que esse povo
não desce para comprar na cidade. Tinha que ter uma política de atrair esse pessoal pra cá.
Não atrai. Acaba ficando o consumo local mesmo.” (José). A desconfiança prevalece: “[...]
é claro que ainda tem muita desconfiança, desse povo, do usuário, do serviço novalimense, do
serviço de Nova Lima, ficam desconfiados...” (Rodrigo).
Os novalimenses, acostumados às práticas de acolhida e ao convívio quase familiar
com seus vizinhos, estranha a postura dos novos moradores, avessos ao contato e aos laços de
amizade. Sente-se que o morador dos condomínios deseja usufruir das vantagens e
privilégios de estar morando nesse “pedaço do paraíso”, sem se ligar à vida da cidade e de
seus habitantes:
Tem uma questão política que é muito séria, aqui a maioria das pessoas não vota
em Nova Lima, então não tem interesse. Acho que você vindo pruma cidade,
morando numa cidade, você tem que transferir sua vida pra essa cidade, você tem
que votar nessa cidade, senão como é que vai ser? E as pessoas não assumem isto.
Tem uma prima minha que ela podia ter o filho no Hospital Vila da Serra, com o
médico que ela queria, o lugar melhor pra ela ter, mas ela não teve pro menino não
ser novalimense. Não pra gente entender uma coisa dessas. Eu moro na Nova
Lima dos pobres, não é dos ricos, não. (Mirtes).
Assimilações também acontecem, com a influência de estilos de vida cosmopolitas,
sobre a vida de comunidades ancoradas sobre modos de vida interioranos. No bairro José de
Almeida, limite entre a Nova Lima/sede e a região dos condomínios, coexistem casas de
antigos e novos moradores que quase não se relacionam. As casas dos antigos moradores
foram modificadas buscando se assemelhar ao padrão das chamadas “mansões”, com muros
altos, portões fechados c/ interfone, demonstrando que a assimilação de contextos invasores
pelas comunidades invadidas, é uma realidade.
Alguns moradores de condomínios procuram romper a postura excludente e conviver
com a cidade e seus habitantes:
As pessoas estão optando por estar aqui... Aí, inicialmente a gente estava e vinha
a Nova Lima, agora a gente sente que ali é Nova Lima, Jardim de Petrópolis é
Nova Lima, é uma característica da cidade também. Eu vejo isto acontecendo
também em outros condomínios, acho que m essa relação, interessante,
comunitária. (Rodrigo).
144
“É pouco grito!”
A constatação da desvalorização do cidadão novalimense, inicialmente frente ao
colonizador inglês e atualmente frente ao morador dos condomínios, atinge, em cheio, a
questão da auto-estima e do longo processo de humilhação a que o povo novalimense foi
submetido. Isso está presente no cuidado desigual despendido com os bairros da elite e os
ditos “populares”, nos diferentes equipamentos públicos disponíveis nos mesmos, na
vergonha que se tem da cidade “feia”, sem recursos, frente aos luxuosos excessos urbanísticos
e tecnológicos de uma outra Nova Lima.
Eu sinceramente tenho vergonha quando tem carnaval em Nova Lima, fica essa
badalação toda, o turista que vem aqui e chega ali no Bonfim, ou mesmo no centro
da cidade. Quem nunca veio em Nova Lima, vê aquela coisa toda do carnaval, chega
aqui, aquela cidade feia. Sinceramente eu sinto vergonha. (José).
Essa faceta envergonhada da população surpreende quem chega, seja pelo ocultamento
de talentos em potencial, seja pela ausência de espaços públicos de encontro e “badalação”.
O que eu achava diferente aqui era a história das coisas meio escondidas, acho que é
o próprio relevo, a cidade, os becos, umas ruas que a gente não enxerga direito, você
não tem uma visão, não chega a vê-la, quando você olha de cima assim. Quando
você entra, você não acha muito os lugares, não sabe aonde encontra as pessoas. Não
tinha aquele point famoso que toda a cidade tinha. Vofala assim, gente, não é
possível, em que toca que esse povo tá? (Rodrigo).
As pessoas não saem muito de casa, no meu ver, para ir ao teatro por exemplo. O
teatro está sempre vazio, uma casa maravilhosa de espetáculos, a gente tem o
segundo teatro melhor de Minas Gerais, em Nova Lima. E as pessoas, elas m
medo do teatro, eu percebo isto. Então nós tivemos algum evento que a gente
foi pra porta da igreja e a gente foi pegando as pessoas pela mão Vamos ao teatro,
gente. Tem a abertura de um evento assim, assado”, e as pessoas foram. Pelas
mãos de alguém que levava, alguém que conduzia. Eu acho que essa dificuldade de
relacionamento, não é de Nova Lima, acho que o mundo hoje está um pouco frio,
as pessoas estão com muito medo umas das outras, tão querendo buscar o seu
desenvolvimento, o seu valor, e esquecem do grupo. (Mirtes).
Eu acho que o povo de Nova Lima continua com essa história, continua a viver
escondido, não é um povo pra fora, que se solta e tudo mais, inclusive eu vejo que
até a tiurma, pessoal de uma geração, minha geração, dos quarenta e poucos, essa
turma toda continua fazendo algumas produções, algumas coisas assim meio
isoladas, meio fora da cidade. A coisa não acontece aqui, você não encontra a turma
por aqui. Você as figuras de qualidade, mas que você tem que garimpar para
achar, a coisa não fica destacada . E a gente, graças a Deus, por estar aqui muito
tempo, o trabalho de garimpo está bem adiantado, e agora as pessoas ficam se
revelando, né. (Rodrigo).
145
Fala-se também da passividade da população, de sua acomodação, de seu horizonte
restrito: “Nós estamos aceitando, a gente está ficando escondido mesmo. Eles estão falando, a
gente está vendo, mas poucas pessoas vêem, estão sozinhas, não têm como lutar.” (Fernando).
Eu acho o povo de Nova Lima muito quieto, muito sossegado, essas associações de
bairro, elas poderiam dar muitos bons frutos. Eu acho que o povo tem que aprender
a gritar, tem que aprender a cobrar. Eu acho que o povo ainda é submisso. Oh Nina,
o medo, olha aqui, eu vi gente não ter coragem de abrir a boca. Ainda aquele
medo do coronelismo que nós tivemos, a época dos coronéis ainda não foi, ainda
não conseguiram cortar as cabeças dos coronéis todos não, apareceram outros, você
entendeu? Então o povo ainda é submisso, o povo ainda não descobriu a força que
tem e isso de modo geral não é Nova Lima não, é o Brasil todo. (Wânia).
A gente percebe que mudou. Não tanto, ainda tem uma coisa em Nova Lima,
talvez esse contentamento com pouco, o pessoal se contenta com pouco, então
qualquer pouquinho que é dado acaba que, pessoal quieta o facho, fica por aqui
mesmo, não avança demais, né, nessa questão do descontentamento e partir pra
algum tipo de violência e agressão. (Rodrigo).
Eu percebo uma cidade muito passiva diante de determinadas situações, de
determinados contextos, porque a gente vem pra pra Nova Lima buscando
espaços, buscando outras propostas de trabalho, um outro público. Então a gente
encontra um público mais resistente, que tem muito medo de arriscar, de se entregar.
È uma cidade generosa, mas ao mesmo tempo com muita dificuldade com o novo,
muitas vezes com medo. (Mirtes).
O sentimento de impotência e apatia, que às vezes se denuncia, contrasta com o ethos
guerreiro já apontado, que no século passado sustentou um forte movimento de resistência aos
desmandos e às precárias condições de trabalho. O caráter brincalhão e irreverente, ao lado de
uma surda indignação, parecem ser os traços que sinalizam para a manutenção, nos dias de
hoje, dessas forças de re-existência e preservação de uma dignidade de classe e da
solidariedade entre iguais.
Alguns propõem maneiras de se valorizar a cidade através do embelezamento do
espaço urbano, do cuidado e da arte.
Ela tem condição de melhorar sim. Ela vai ficar no meio desses condomínios, mas
quando eles ver a gente de cima, vai ver tudo bonito embaixo. “ah que coisa
bonita que eles fizeram, olha isto, olha aquilo...” E de repente vão até querer
descer pra Nova Lima “ô gente comé que ?”. Acho que isso faz parte, muda a
história, muda o visual. (Ronaldo).
A vizinha Belo Horizonte é citada com as intervenções no espaço urbano que “deram
certo” e resultaram em valorização do cidadão. Praça da Estação, av. Paraná, av. Afonso Pena
foram citadas como exemplo de planejamento em função da vida da população, o que faltaria
a Nova Lima.
146
Como que Belo Horizonte mudou! Eu tava vendo a planta da Afonso Pena, de não
sei quantos anos... Agora Nova Lima é uma cidade o quê, sem projeto. Foi
construída, mas sem projeto. Não tem planejamento não, cada um fez uma casinha
aqui, fez a outra ali, “tem esse beco aqui que nós vamos fazer uma rua pros cavalos
passar, pras carroças passar”. (Ronaldo).
Eu fico torcendo pra ver Nova Lima, domingo, na praça, a praça acontecendo com
atividades, as pessoas juntas, unidas em torno de alguma coisa, sabe? Eu acho que
isso ajuda demais. Eu vejo BH, hoje, os festivais, o Festival Internacional de Teatro,
quer dizer, os belorizontinos se encontram pruma atividade que é mundial,
internacional, a cidade fica famosa por causa disso, valorizada. Valorizar sua cidade
é muito bom, você sente orgulho disso, então eu acho que falta isso em Nova Lima.
Até pensei em propor algumas coisas, uma cidade-parque, sabe. Eu vejo, não tem
brinquedos nas ruas da cidade, não tem parque, então o quê que a gente pode fazer,
para criar esse movimento de valorização da cidade, que as pessoas que vêm,
falam “nossa, essa cidade é muito bonita, muito organizada, licença da gente
andar na sua gangorra, eu quero participar”. Senão as pessoas entram “nossa, mas
não tem nada”. Aí eu não quero mais ser Nova Lima mesmo não. (Mirtes).
5.2. Meninos na cidade
Nas sociedades contemporâneas, principalmente nas metrópoles brasileiras, em que
os espaços são privatizados e definidos pelo pertencimento social de seus usuários, a
criança torna-se uma das principais vítimas da segregação através do espaço. É
fundamental a formulação de políticas públicas de lazer voltadas para a infância.
Espaços que ocupem o lugar da rua, tradicionalmente o lugar da produção e
transmissão da cultura infantil. (LANSKY, 2006, p.13).
Se a vida na cidade se desdobra em múltiplas facetas, algumas terríveis, outras
viabilizadoras de possíveis, o que acontece com essa população invisível, esses meio-cidadãos
a reboque das decisões dos adultos?
Quando o mundo da modernidade produziu o modelo de família nuclear que deu
sustentação às necessidades do sistema capitalista, a infância se tornou centro da vida
doméstica e foco principal dos procedimentos de reprodução de uma subjetividade
capitalística, que se estendem das classes mais altas até aos meninos da periferia. Essa família
mínima, organizada para restringir à intimidade do lar os contatos significativos, avessa aos
espaços públicos e às manifestações coletivas, limita a vida de sua - cada dia mais reduzida -
prole a rotinas de estudos e diversão permeadas pelos equipamentos da sociedade de consumo
e pela tecnologia midiática.
O mundo das crianças de hoje é motorizado, movido a controle remoto, mídias
eletrônicas, à parte do corpo das cidades. Navegam pelo mundo virtual com desenvoltura e,
muitas vezes, não se deslocam sozinhas nem pela própria rua. Por outro lado, a meninada dos
cortiços e das favelas se desloca com agilidade e desembaraço pelo espaço urbano, “donas do
147
pedaço”, apresentando sua ousada linguagem corporal e seus apelos, aos amedrontados
transeuntes. Até que sejam parados por alguma perseguição policial ou por alguma guerra de
grupos rivais.
A metrópole arrasta os meninos para sua roda viva, da batalha pela sobrevivência, de
longas jornadas de trabalho e transporte, do trânsito caótico, da segregação, da violência.
Eu acho que as crianças foram desenvolvendo à força, pela chegada da cidade. Nova
Lima era uma cidade moradia muito tranqüila, então as crianças brincavam muito na
rua, nas ruas não passavam muitos veículos, não tinha tanto transporte, lotação,
como tem agora, não tinha o que tem agora, o tal do moto táxi. Então ficou mais
perigoso atravessar a rua, brincar na rua ficou mais violento também. (Alice).
Crianças e adolescentes esquecidos e “menorizados” pelos projetos políticos, pela
distribuição orçamentária, pela produção acadêmica, são relegados a segundos planos. Seja
para as crianças das camadas abastadas, circulando com motoristas em direção à apertada
rotina de suas agendas lotadas ou para aquelas dos bairros pobres e periferias, submetidas,
desde cedo, com a ausência prolongada dos adultos, a responsabilidades domésticas, em toda
parte há abandono e solidão, desde a extrema solidão da população infantil “de rua”, à
reclusão em escolas, apartamentos e instituições disciplinares. “Porque a cidade cresceu, os
pais todos trabalham, as mães trabalham, as creches não dão conta” (Rita).
Então a liberdade do jovem e da criança foi acabando e eles estão tendo que se
adequar a essa nova realidade. As mães estão deixando as crianças mais em casa,
“ah, não vai brincar na rua, não vai brincar com o vizinho”, então restringe muito a
vida da criança e do adolescente, aí ele chega na escola e ele quer brincar, aí que está
a grande questão. (Alice).
O acesso, o lado infantil, os adolescentes, eles estão procurando trabalho, eles não
estão preparados, eles estão presos, eles não têm mais aquela facilidade de
locomoção. Como cresceu tanto, as coisas ruins têm vindo atrás também, tá vindo
muita droga, facilidade de chegar e está atrapalhando muitos adolescentes. Eles não
estão tendo como brincar mais, a área de liberdade que a gente tinha, de passear, de
ir para a mata, de tudo, eles não estão preparados para isto mais. (Fernando).
Os entrevistados são unânimes com relação à grave situação em que se encontra a
infância e juventude de Nova Lima com relação à falta de espaços adequados ao lazer e ao
crescente avanço da drogadicção.
Nova Lima não está fugindo do quadro do Brasil não, muita violência, muita
droga, a vida das famílias, eu acho que todas as famílias vamos dizer assim, quase
todas, sofrendo as mesmas conseqüências desta modernidade aí, dessa juventude que
não tem limite, né, que a juventude não tem limite. (Wânia).
148
Vindo do Campo do Pires, chegando ali, uns meninos ali na rua, penso assim, que
tristeza! E logo à frente, pouco antes do Via Ouro
23
, um espaço enorme liberado,
tem um negócio que parece é da Conspar
24
, cedido. Gente, pô, faz uma área de
lazer ali, faz umas quadras, libera isso né. Põe os meninos pra ficar brincando,
jogando bola, jogando vôlei, o que for, um parquinho, aquelas madeiras,
investimento pequeno, coisa besta. Agora fica ali aquela meninada no meio de pai
bebendo, outros se drogando, e aquela meninada fica vendo aquela cena, age por
imitação, é uma tristeza. Realmente é uma produção explosiva, eu temo muito.
(Rodrigo).
Nova Lima não tem espaço de lazer para o jovem, nenhum. Para você ter uma idéia,
quando eu falo em associação comunitária, quando a presidente de , que é super
ativa, eu ajudo a divulgar, falo, dou força, do jeito que eu posso, vou etc. Quando
ela faz uma sessão de vídeo , enche. Essa meninada quer fazer as coisas e não tem
atividade, tudo isso que a gente está falando faz parte de isso aí, você não tem, você
tirou os campinhos. Você vai no Galo aqui, você tem um bar ali em frente uma
pracinha que a meninada fica ali toda..., o dia inteiro, qualquer hora que você for
eles estão lá, não têm o que fazer. (Rita).
Atingidas pela privatização dos espaços de lazer junto à natureza e pelo processo de
segregação instalado no município, as crianças vêm restritos seu universo e suas
possibilidades de inscrição social.
Vendo pelo José de Almeida, as crianças observam, né, o bairro Ouro Velho , é um
condomínio que tem cancela. “Não posso passar, podem passar determinadas
pessoas”, quer dizer, isso é uma questão dura pras crianças do Jode Almeida e
de bairros que também sofrem com esse tipo de coisa. Eu acho que criança não
deveria ver isto, isso cria uma revolta nas crianças, então não sei como processam
isso, como que sendo, como que a escola trabalha isto, se eles pensam isso, mas
enfim, eu acho que é uma questão a ser levantada e pensada, perguntar pros
meninos, o quê que eles sentem, o que eles acham, se eles não acham nada. (Mirtes).
Então assim quando você fala em juventude numa cidade como Nova Lima, que não
tem escola em tempo integral, eu não diria nem escola, educação em tempo integral,
o que fazer com esses meninos? Não tem, os campinhos foram fechados, vo
perdeu o que tinha na infância da minha idade, da minha geração e não deu nada em
troca, você não tem espaço de lazer para a meninada, não tem nada! Você não tem
instrutores, porque você precisa de gente que leve as crianças, você não tem os guias
para fazer essa coisa aí, porque isso tudo pode ser promovido e não é promovido
uma vez na vida não, promovido como parte dessa educação que eu estou falando,
que tem que ser o tempo todo. (Rita).
O jovem daqui não tem, não tem o que fazer, não tem passeio, não tem um campo
bonito, não tem o que se fazer. A gente, quando era novo, a gente ia pra Rio Acima,
pra não sei onde, pra Banqueta, pro Rego dos Carrapatos pra nadar. Eu aprendi
nadar ali ... Nesse alto das Quintas Dois, pegava esterco, colhia flor do campo.
Então eu tive uma juventude e uma infância muito movimentadas, sabe, e meu pai,
minha mãe, a gente visitava os presépios e tudo, mexia com Pastorinhas
25
. Então
hoje eu falo isso, os meninos não sabem, né? (Sara).
23
Empresa de transporte lotada no município.
24
Grande construtora lotada no município.
25
Grupo de mulheres, vestidas de pastoras, que no período natalino se deslocava pela cidade, cantando e
dançando marchas alusivas à data, festejando o nascimento do deus- menino.
149
Visões variadas da adolescência do município, que vão desde as mais positivas até as
mais preocupantes perspectivas são expressas pelos entrevistados.
O adolescente, o jovem, pelo menos os contatos que eu tive, são um pessoal assim
bem participativo, bem orientado, tem uns desvios né, mas pelo menos no que eu
tenho convivido, eu acho um pessoal com uma cabeça boa, bem orientado,
preocupado com o futuro, estudar, em aprender coisas, em conhecer. Hoje também
eles têm muito mais chance de cursar escolas, você tem uma diversidade muito
grande de escolas, de possibilidades para eles, antigamente era difícil né. (Irineu).
Os adolescentes coitados, eu estou assim... adolescência é uma fase tão bacana, tão
cheia de novidades, tão cheia de ...É o que eu falo, os meninos poderiam ser mais
felizes se eles tivessem mais criatividade. Mas a criação foi cortada na vida deles,
então eles estão sendo orientados pela televisão, qualquer um, a maioria deles. Zé de
Almeida, Jardim Canadá, as meninas, a sexualidade muito aflorada. Então eles
ficam só nesse mundo deles do desejo, do desejo material. (Mirtes).
Nova Lima que não se preparou para fechar a Morro Velho, não se preparou para
crescer, de repente explodiu e essa meninada está toda ao Deus dará, perdida,
desorientada, não tem emprego, para você conseguir emprego na cidade, igual eu
estou falando, você tem que ser apaniguado de alguém. (Rita).
O alheamento das crianças e adolescentes com relação ao patrimônio cultural, à
história e à trajetória de lutas da população trabalhadora é uma realidade, mesmo nas famílias
que participaram e vivenciaram todo processo de embate entre o sindicato e a mineração.
Eu tenho uma neta de 14 anos e foi no meu aniversário, estava reunido ali em baixo
e tal e de repente ela chegou até chorando: “Vô, eu boba”, porque alguém contou
para ela alguma parte da história do meu pai, do bisavô dela e mamãe, os problemas
que nós passamos naquela época. Ela ficou toda chorosa, chorou mesmo,
emocionada. Não sei quem é que contou, não sei por que não, porque se você vai
sentar para conversar isto nunca eles querem..., sempre tem um joguinho para fazer,
sempre tem uma televisão para ver... Porque antigamente não, você sentava, contava
história, conversava, contava experiência, hoje em dia não tem isso. Você saía, por
exemplo, para a escola, fazia excursão, ia no Rego dos Carrapatos, “porquê tem
esse nome?”, ia no Rego Grande, o que é o rego grande?”, “o que é o Bicame?”,
hoje a escola não ensina isto, não mostra isto, meu tempo de escola mostrava. Vo
ia nesses cruzeiros que tem aí, uma mina ali em baixo né, hoje em dia não, hoje eles
estão mais preocupados com a eleição americana do que com isto... (Irineu).
Mirtes compara a visão crítica dos alunos do Colégio Santo Agostinho, que serve às
classes abastadas dos condomínios, à passividade e desinteresse, ou às reações violentas dos
alunos de escolas dos bairros novalimenses:
[...] a gente estava falando, explicando pros meninos como funciona uma mara,
qual a função dos vereadores, a função do poder executivo, do legislativo e do
judiciário. Os meninos do Santo Agostinho colocaram o colégio abaixo,
questionando, falando mesmo, dando depoimentos do que eles não acham bom, do
que eles não gostam, acham que está errado. Bem diferente da passividade dos
150
adolescentes das outras escolas que entenderam o assunto, mas não se manifestaram
nem contra nem a favor. (Mirtes).
No Jardim Canadá, nas poucas vezes que eu tive lá, a gente não conseguiu nem
fazer, nem falar, nem começar uma história, porque a intenção deles era destruir. Eu
fiquei assustada. Deu uma briga de gang lá, os professores simplesmente trancaram
a porta e ninguém fez nada. Eu perguntei, ninguém vai falar, fazer nada? “Não,
deixa eles brigando e fecha a porta.Eu não acreditei que eu estava em Nova Lima.
(Mirtes).
A ociosidade aliada às oportunidades de contato com as drogas, à facilidade de
aquisição de bebidas alcoólicas forja uma geração em situação de risco, ligada a pequenos
furtos e aos atos de violência e vandalismo. [...] há muito tempo tinha um cartaz em todos os
bairros: proibido a venda de bebida alcoólica e cigarro para menoresmas se eu pedir minha
filha para ir no bar ali comprar...” (Fernando).
Eu estou vendo assim: é droga, álcool à vontade, os meninos começam a freqüentar
um bar com dez anos, onze anos, doze anos, e a venda de bebidas é permitida,
ninguém cobra. Eles não m outra alternativa, não são acostumados a freqüentar o
teatro, o cinema, que nem tem, Nova Lima não tem, né. Então a conseqüência reina,
difícil para os pais que não sabem mais como vão educar os filhos, difícil para os
professores, difícil para todo mundo! (Wânia).
[...] o outro fato é o menino que morreu com uma canivetada, acho que um morreu
com uma canivetada e o outro morreu baleado aqui na quadra, ou seja, a quadra
tinha se transformado num local de encontro da meninada que mexia com droga, ok?
(Rita).
A sensação de perigo iminente cerca a população infantil da cidade e restringe seu
espaço existencial.
Então se a criança participava do carnaval, o adolescente, a mãe deixava ir sozinho
uns dez anos atrás e hoje a mãe não deixa, a mãe fala: “eu vou com você”. O
jovem que quer ir na “sexta na feira”
26
, a mãe fala: “eu vou com você”, porque na
“sexta na feira” agora tem os problemas, roubam boné, cordão, oferecem drogas.
(Alice).
E antigamente você não..., “Ah! Não quero que você ande com o menino de fulano
porque o menino é assim, assim e assim”. O mau elemento, mas os maus elementos
você batia o olho neles de longe. Hoje essa coisa se misturou de uma forma tal que
as pessoas ficam apavoradas e não sabem como dar conta desses adolescentes, né?
Está aí essa questão toda da violência, da violência. (Rita).
A questão da drogadicção, invadindo rapidamente as escolas, as ruas e a vida das
famílias, preocupa a todos, principalmente pela inexistência, no município de espaços e
26
Feira em praça pública, que acontece na cidade às sextas-feiras à noite, e se tornou ponto de encontro de
adolescentes e jovens novalimenses.
151
serviços que abordem a gravidade do problema. “[...] se você ver a quantidade de jovens
desorientados, perdidos, que vão bêbados para a escola às sete horas da manhã! Nova Lima
não precisava ter isso, não precisava. O ritmo é muito rápido, muito acelerado.” (Rita)
Eu tenho é desses adolescentes que tão por aí, usando droga, essas coisas, não
tem um centro de recuperação em Nova Lima que você fala assim Ó fulano de tal
usando, vão colocar num lugar assim pra recuperar. Não existe. Sabe o quê que
acontece, isso vai virar uma epidemia. Eu fico com é do futuro do país, porque,
quem vai dirigir esse país? (Ronaldo).
Mirtes, com seu trabalho teatral tenta abordar esses adolescentes envolvidos com o
uso e o tráfico de drogas:
Eles ficam muito distanciados, eles m prum espetáculo, tou falando de meninos
que tão nesse processo de drogas. Eles entram, vêm de bicicleta, deixam a
bicicleta aqui no pátio e ficam de longe. Aí eu falo “gente vamos lá assistir o
espetáculo” “não, não daqui a pouco nós vamos embora” Eles ficam, ficam até o
final, é a gente não falar nada com eles, entendeu? Chamo, falo “que bom que
vocês vieram! Legal.!” Então eu acho que são coisas que deveria ter muito, sempre
ter, um trabalho aqui, na praça, sempre uma atividade, porque isso vai aproximando
os meninos das outras pessoas, da arte, de uma escolha profissional... (Mirtes).
Os apoios institucionais são pequenos:
Então a gente faz eventos aqui, com restos de patrocínio. A gente tem às vezes
fundos prum espetáculo, a gente traz o espetáculo e faz. Eles vêm sempre aqui, a
gente faz muitas atividades, brincadeiras na rua, às vezes na associação, tudo sem
verba. Não existe uma verba específica prum trabalho aqui, esse seria meu sonho.
Desenvolver um projeto real, que se pudesse montar um grupo, que as crianças
pudessem fazer uma série de atividades... (Mirtes).
Frente a tudo isto, às mudanças aceleradas, as famílias, desde as tradicionais às novas
configurações que se apresentam, se mostram assustadas e buscam a ajuda de profissionais do
campo psicossocial para orientação e tratamento.
Eu acredito que é a evolução social, é uma diferença de como eles viveram anos
atrás, como eles foram criados, como eles viveram com os pais deles e agora
acompanhar toda esta evolução. E como acompanhar um desenvolvimento e
construir, ensinar algo que eu não vivi? Então é difícil, a tendência dos pais é recuar
e deixar os filhos dentro de casa. Orientar como eles foram orientados; como não
conseguem, recorrem aos profissionais. Estão, amedrontados e perdidos, muito
perdidos. Eles estão tendo que aprender na marra, mas acabam aprendendo, com a
dor a gente também aprende né, tem que aprender. (Alice).
5.3 A cidade do medo
152
medos urbanos de toda natureza:...eles habitam o cotidiano dos
cidadãos e o envolvem num drama. A cidade do medo termina por criar,
todos os dias, novos medos”. (Milton Santos).
A urgência, o medo e a violência são, sem dúvida, ao lado do individualismo, as
manifestações mais evidentes da vida nas megalópoles. Com a redução dos espaços de
convivência e da esfera pública, com o aumento do tempo de trabalho e de locomoção, com o
esvaziamento da organização político-comunitária, ocorre um estranhamento entre os
sujeitos-cidadãos, entre vizinhos e parceiros, entre anônimos companheiros de viagem em
ônibus superlotados. Mais distantes ainda aqueles que a situação sócio-econômica separa e
aprisiona, em gaiolas de luxo ou vidas sem perspectivas. Milton Santos nos alerta para o
medo da pobreza e dos pobres, em que tememos mais as próprias vítimas que as
circunstâncias causadoras da miséria. “Sendo assim, teríamos que nos preparar para viver sob
temores mais vastos e profundos, porque, no maravilhoso mundo novo que agora nos
preparam, as grandes cidades no Brasil serão ainda maiores e mais carregadas de miséria”
(SANTOS, 2002, p.126).
A questão da violência, geralmente associada ao tráfico de drogas, aparece na fala dos
novalimenses entrevistados como fator que vem romper o padrão de vida tranqüila cultivado
pelos moradores e que se tornou atrativo para muitos habitantes dos novos condomínios. É
também associada à vinda de uma população de favelas vizinhas, atraídas pelas festas locais,
principalmente o carnaval e pelo marketing através da mídia.
A cidade tem que melhorar para receber o que está chegando, mas ao mesmo tempo
vem a violência, vem a insegurança. A Via Ouro foi assaltada por pessoas de Belo
Horizonte e isto foi comprovado e tudo pela policia, então isto atrai o olhar de outras
pessoas. Nova Lima é muito próxima a Belo Horizonte, são 25 km? Então é muito
rápido o transporte. O carnaval atrai às vezes muita bagunça, violência, um lado
todo ruim, vem gente de fora também para bagunçar, então tem o lado positivo e o
negativo, a sociedade tem que lidar com este crescimento de maneira favorável.
(Alice).
[...] uma coisa que eu tenho visto em Nova Lima acontecendo com mais freqüência,
a violência, e essa violência parece que ela está sendo muito estimulada, crescendo,
por esse excesso de drogas que tendo em Nova Lima agora. Então droga
gerando violência sim, ficando perigoso isso aí, tem gangues, coisa que nunca
teve em Nova Lima, agora tem, cada um comanda uma área. Isso colocando em
risco as pessoas. Eu fico observando e onde isso aí, droga, gera violência. tem
muitos casos acontecidos em Nova Lima, por causa disso. (Ronaldo).
Nova Lima está ficando perigosa, principalmente por causa do tráfico de drogas,
esta proximidade com essas favelas, com essa favela aí, logo na entrada de.., na
saída de Nova Lima, quer dizer, é caso preocupante, e vejo que as coisas vão é
153
piorar, a tendência é piorar, quanto mais crescer, né, o crescimento vai trazer mais
problemas. (Wânia).
A rede transnacional de poderes que sustenta o tráfico de drogas e perpassa os
bairros, favelas, periferias, instaurando o clima de guerra, violência e vale-tudo, vai matando
mais que os grandes conflitos internacionais. O modelo do Mercado, absoluto e despótico,
que a todos impõe o seu ritmo e propicia e estimula o crime-negócio globalizado, é tomado e
utilizado pelas organizações do tráfico. Isto frente a um Estado diminuído e corrompido em
todos os escalões e que perdeu, em grande parte, o monopólio legítimo sobre a violência. Os
efeitos dessa desregulamentação, baseada na dominação e na tirania do capital sobre a vida
humana, se expressam pela violência generalizada que vai tomando conta de todos os âmbitos
da vida coletiva.
Era uma cidade que tinha pouquíssimos policiais militares. Hoje em dia é guarda
municipal, é tanta coisa que a gente não imaginaria que iria mudar em tão pouco
tempo. Eles estão muito privados, eles têm medo de entrar numa área de uma
pessoa, os usuários de droga mesmo e eles serem ameaçados. Eles estão deixando as
coisas correrem mais soltas, não que eles não sejam profissionais, que eles não
tenham capacidade para fazer isto, mas eles sentem com medo. Se um policial
prender alguma pessoa, ele tem medo depois de ser, do filho dele não poder andar
mais na rua. Eles m tanta liberdade de trabalhar como não têm ao mesmo tempo.
(Fernando).
Alba Zaluar, antropóloga com anos de pesquisa e vivência nos guetos e favelas,
analisando o universo da pobreza, da violência e do tráfico de drogas, relaciona a postura da
hierarquia do tráfico e sua economia subterrânea com as condições do capitalismo atual, com
a montagem de uma rede altamente eficiente, que se utiliza dos furos do sistema político-
econômico e da precariedade da educação e das relações comunitárias para se instalar.
O clima de guerra, presente nas ruas, nos bares, nas casas das favelas e nas cercanias,
onde o medo das balas perdidas se estende aos bairros contíguos, cria situações de pânico e
estranhamento entre moradores. Também nas praças dos bairros de classe média e na própria
vizinhança essa rede se estende aumentando a insegurança do cidadão. “As consequências
sociais são catastróficas, na medida em que não é mais possível prever o comportamento
alheio e deixa de prevalecer a confiança sem a qual não existe vínculo social positivo.”
(ZALUAR, 2004, p.400).
A disseminação dos atos criminosos, por todo tecido social, muda a relação entre as
pessoas e abala as certezas que embasam o ato de “sentir-se em casa” na cidade: Eu não
tenho visto mais criancinhas saindo em carrinho para tomar o sol da manhã, não fazem mais
isto, têm medo.” (Fernando).
154
A velocidade das coisas e das mudanças, por exemplo, é a questão da droga na
cidade. Como é que essas pessoas que sempre deixaram a casa delas aberta - na casa
da minha mãe as pessoas entram e saem - elas hoje têm que fechar a casa, porque o
menino vizinho mexe com droga e vai entrar na sua casa procurando tudo para pegar
e para vender e ela sabe que aqueles meninos que estão na esquina são netos da
amiga dela. Então é uma mudança de uma forma muito e muito pesada para as
pessoas. (Rita).
A questão da segurança passa a ter peso para os moradores, altera os ritmos de vida,
introduz novos sentimentos, sensações, posturas:
Quanto mais distanciado o bairro, menos policiais tem. Eles se concentraram todos
no centro da cidade, dependendo da hora, num bairro distante é difícil, está dando
muito medo. Tem gente que mora a cinco minutos do ponto de ônibus até a casa e
está andando de quinze a vinte minutos a mais com medo, para ter mais claridade,
alguém vendo para que possa chegar depois das dez, onze horas. Eles têm muito
medo agora. (Fernando).
A questão de segurança, a gente começa a ter problemas que a gente não tinha.
Jardim de Petrópolis ainda não, mas aqui na cidade eu tou vendo acontecer, notícia
chegando a toda hora. Realmente piorou muito, infelizmente, a gente começa a ter
assalto, roubos, seqüestros-relâmpago, essas coisas. Não tem muita divulgação, acho
até bom que não tenha, ficar divulgando demais essas coisas, acaba generalizando e
criando um estado meio de terror. (Rodrigo).
Agora, a cada casa que eu passo eu vejo uma empresa prestando trabalho de
segurança e até então não havia isto, eram usadas cercas mesmo, cerca de arame
para os animais não fugirem. Agora é tudo murado, com cerca elétrica e vidro e
sendo monitorado vinte quatro horas por dia. Está havendo stress mesmo e isto é a
pior coisa quando uma pessoa teve livre e tem vontade de fazer as coisas... E está
piorando porque o consumo de drogas está sendo muito grande e os assaltos, as
pessoas estão tendo muita facilidade. Vai haver um tempo que todo mundo vai ter
que andar com segurança próximo, ou então como a capital, deve encher a cidade de
câmaras filmando tudo, a gente vai estar preso dentro do que a gente tentou construir
de forma diferente. (Fernando).
A violência adquire contornos variados, traçados no cotidiano de uma cidade que não
se reconhece:
A minha mãe um dia saiu de dentro do quarto e tinha uma pessoa no fundo da casa
que correu, isso para ela é uma violência, alguém que corre. Porque ela está
acostumada até a chegar e ver alguém na sala “oh dona Maria estou aqui
telefonando”, isto não é uma violência. Não é o fato de entrar na casa dela, é como
você entra. Então para ela ter que fechar a porta, o portão, é um negócio que a
violenta muito né. Inibe a vida, inibe a vida assim dela não saber... (Rita).
É gico que tudo isso acaba sendo uma questão nacional e mundial, por mais que
se trabalhe isso, hoje em dia o negócio está complicado. Antigamente não, você
podia transitar livremente, tranquilamente e hoje não, ainda mais com este negócio
de droga então ...Os nego estão invadindo casa, estão matando. Hoje mesmo fiquei
sabendo que um filho de um primo meu está preso porque estava roubando na
padaria, quer dizer, você fica intranqüilo né, tem que ter a casa muito bem fechada,
muito bem vigiada. Você não sabe, não pode receber qualquer pessoa porque você
não sabe o que você vai receber, então realmente está complicado. (Irineu).
155
[...] esse fim de semana, a menina que trabalha aqui na rádio foi assaltada, quer
dizer, não sei se a gente pode chamar isso de assalto, mas passaram dois
motoqueiros, ela estava com uma bolsa a tiracolo, agarraram a bolsa e saíram
arrastando ela pela rua, levaram a bolsa com celular, eram dez reais que ela tinha
para pagar uma conta. Então esse tipo de coisa deixa as pessoas muito inseguras né,
como em qualquer lugar, mas que isso em Nova Lima começa a ficar de uma
forma que não combina com a manutenção dessa característica de província que ela
tem, que ela ainda tem muito forte. (Rita).
Lúcia atribui esse aumento da violência à vinda dos condomínios e à fama de Nova
Lima, como cidade rica:
E com isso tá tirando a tranqüilidade nossa, né. Porque a marginalidade chega junto,
porque através de tudo isto... Passa na televisão: “Nova Lima, condomínio tal...”
Bandido que no Rio de Janeiro “Opa,vou pra Nova Lima, é que a mina!”e
vai acabando com nós aqui. Chega e entra no meio da gente aí, onde muita droga tá
entrando. Vem de fora! Vai aconchegando e daí vai começando...tira a
tranquilidade. Eles, do condomínio, ficam tranqüilos, por que eles têm segurança,
nós não temos. (Lúcia).
5.4 Adoecimentos
O adoecimento da população em função do seu modo de vida e das condições sócio-
ambientais está marcado, em Nova Lima, pelos efeitos da mineração, com a trágica presença
da silicose, os rastros nefastos das barragens de rejeitos e das chaminés da antiga produção de
arsênico, hoje Usina de Ácido Sulfúrico, com dermatoses, problemas respiratórios e
neurológicos associados à prolongada convivência com a poluição de água, ar e terra. Os
efeitos na subjetividade se tornam visíveis na drogadicção, principalmente no alcoolismo,
secularmente arraigado ao dia a dia da população operária. “Tem muitas pessoas que bebem, é
uma visão de uma outra Nova Lima, você vê isso na cidade e isso é seríssimo. Muitas drogas.
O José de Almeida, por exemplo, é um bairro que tem muitos problemas com droga.
(Mirtes).
Nova Lima é uma cidade, isso várias pessoas me falaram, cardiologista já me
falou, psicólogo já me falou, pediatra, psiquiatra, uma cidade com um número muito
grande de pessoas viciadas em bebida, droga e antidepressivo. Então é uma cidade
que não pode esquecer que ela está nesse problema e age como se não estivesse, ela
age como se não soubesse e são coisas que não são complicadas de se fazer. Elas
podem exigir um pouco mais de investimento, mas não são coisas assim de alta
tecnologia. Por isso que eu estou falando que, na saúde, Nova Lima conseguiu criar
um CTI, que é de alta tecnologia, ou seja, que implica em um gasto grande, mas não
consegue resolver problemas muito menores, mais fáceis de sanar e mais, todo
mundo comenta, qualquer médico da cidade sabe te falar... “O Doutor trata de
fulano, mas o problema dele não é coração, é bebida.” (Rita).
156
Por outro lado, o acelerado processo de metropolização, pelo qual o município vem
passando, deixa suas marcas na constituição das subjetividades com adoecimentos típicos dos
aglomerados urbanos. Os temores e a ansiedade, nos grandes centros, se apóiam em atos
concretos e percepções da realidade que disseminam justificado terror e insegurança. Há, no
entanto, uma generalizada atemorização coletiva, produzida pela ruptura das possibilidades de
compreensão e modificação dos impasses sociais gestados no seio do Capitalismo Mundial
Integrado, que se torna patológica e provoca diversas formas de sofrimento mental.
Com relação ao crescimento na atualidade dos transtornos alimentares (anorexia e
bulimia), de ansiedade (pânico, fobia social, etc.) e da dependência de substâncias psicoativas,
Ferreira Neto pontua que “a mudança do perfil epidemiológico das modalidades de
sofrimento mental tem uma associação evidente com os processos sociais e urbanos na
contemporaneidade” (2004, p.8).
Alice, psicóloga da rede pública e do sindicato, relata a mudança no perfil da clientela
que a procura e sua relação com as agruras da metrópole:
Olha, a clientela tem trazido cada vez problemas mais graves, problemas
associados a outras áreas, por exemplo, a psiquiatria. Quando eu comecei a
atender, por exemplo, no sindicato, apareciam poucas queixas de distúrbios
graves, psiquiátricos, agora isto é gritante. A gente nem ouvia falar nestes
distúrbios que a gente ouve falar hoje em dia. As queixas pareciam mais
tranqüilas, mais leves, muitas vezes um pequeno desajuste comportamental,
familiar. Hoje em dia é um desencontro total entre pais e filhos que resulta
em distúrbios graves, comportamentais, alimentares, muita depressão, muita
síndrome do pânico, muita coisa assim, difícil, que envolve além da própria
pessoa, a família, o trabalho, a sociedade, o tempo passando muito rápido, as
pessoas vivendo com pouca qualidade de vida e é difícil digerir toda essa
mudança. O ano começou ontem e amanhã é o natal; e difícil de realizar os
planos e os sonhos, os desejos, acredito que por estas mudanças todas, as
pessoas têm padecido mais, os consultórios têm ficado mais cheios, os
psicólogos têm tido mais trabalho, mas continuam mal remunerados. (Alice).
Suely Rolnik, falando sobre a síndrome do pânico, transtorno do nosso tempo,
diretamente associado à vida nas grandes cidades, coloca a resistência a embarcar em
processos de individuação não previsíveis e não programados, como anestesiante das
possibilidades de construção de novas subjetivações. No pânico, a anestesia não basta e o
corpo se imobiliza na dependência de um outro que o conduza e o garanta. A subjetividade
calcada em esquemas identitários pré-estabelecidos entra em crise frente à pulverização das
experiências e ao esfacelamento das dualidades e pressupostos sobre os quais o sujeito se
alicerçava. A realidade caótica exerce sua função demolidora das representações que
pareciam conferir sentido à vida.
157
Fernando, usuário do serviço de saúde mental do município, às voltas com o
alcoolismo, relata sua experiência e de seus companheiros e localiza nas transformações
sócio-ambientais as origens dos distúrbios que enfrentam.
Eu notei que a mudança está causando um grave problema na saúde mental das
pessoas, por não estar tendo liberdade e se sentindo presos, eles estão adoecendo
mais rápido. As pessoas de mais idade estão ficando com medo também de uma
porção..., uma coisa vai puxando a outra. sinto muita falta, as praças não são
como eram antes, eu acho que tem que trabalhar nas praças também e não está difícil
não. Porque o tratamento que eu faço, com algumas pessoas que também estão lá, a
gente que chance ainda de amenizar o problema, porque se continuar assim o
que a gente vai dizer para os nossos netos? Isso influi sim, porque tratamentos,
mas as drogas estão muito pesadas e a angústia que uma pessoa sente de estar preso
ela fica... Ela lembra de dez anos atrás quando ela ia para a aula, ia todo mundo.
Agora, como está todo mundo realmente em uma prisão livre, está influenciando na
saúde mental das pessoas. Não sendo muita vantagem porque a tendência vai ter
que ter muito mais psiquiatra, mais psicólogo, para estudar porque o tempo de vida
vai encurtar. (Fernando).
A chegada de modos de vida característicos da metrópole e do capitalismo tardio ao
cotidiano de Nova Lima provoca nos seus habitantes abalos e estranhamentos, sofrimento e
conflito, produtores de adoecimentos difíceis de ser abordados com os mecanismos usuais da
Saúde Pública. A estas formas de sentir e de se colocar frente à metrópole, se juntam as ações
violentas, advindas não das necessidades de sobrevivência na selva de pedra, mas também
de perversas formas de ataque e eliminação das diferenças de classe, de origem, de religião,
de gênero, de opção sexual, potencializadas pela concentração e pela proximidade espacial.
Extremas formas de reação e negação a tudo isto são produzidas, como no caso do grande
aumento na taxa de auto-extermínio, na maioria consumados na “Ponte dos Suicidas”
5.4.1 Uma ponte entre dois mundos
Graves formas de adoecimento psíquico e social se mostram relacionadas com as
modificações empreendidas no espaço da cidade, visando atender a interesses econômicos de
empresas ou grupos, sem que a população local seja envolvida no processo. O impacto
causado por padrões e perspectivas oriundos do projeto de cidade do capitalismo globalizado,
sobre uma sociedade em processo de desmonte, tem fortes efeitos na subjetividade.
A Estrada de Contorno, que passando por fora de Nova Lima, se liga a Rio Acima e
Raposos, construída no final da cada de 80 para escoar a produção de ácido sulfúrico da
usina instalada no bairro do Galo, alterou substancialmente uma agradável região, ao do
Morro do Elefante, muito utilizada para lazer da população, com suas águas, suas matas, suas
158
trilhas. Nela foi erguido um grande viaduto, chamado pelo povo de “pontilhãoou “ponte dos
suicidas”, pois se tornou, a partir da década de 90, local de grande incidência de tentativas de
suicídio, em grande parte consumada, sem que alguma ação dos órgãos públicos fosse
efetivada.
27
Muitas análises foram ensaiadas para dar conta do alarmante fato, dentre elas a de
que a ponte estaria materializando todo o processo de ruptura acontecido pós-90, com os
múltiplos impactos sobre a vida e o psiquismo do cidadão novalimense. A grosseira estrutura
de concreto, ancorada sobre a singela beleza natural e sobre a sensibilidade dos moradores e
caminhantes, promoveria (des)territorializações difíceis de ser processadas, rompendo com
estilos de vida, memórias, lugares de convívio, certezas e virtualidades.
Multari, em seu trabalho sobre os suicídios ocorridos na ponte, identifica aspectos
psicológicos ligados ao ato e a sua crescente ocorrência:
Tomando os dados apresentados, na pesquisa documental, identificamos como
motivos que levaram ao suicídio, tanto entre os atos cometidos quanto a tentativas,
problemas nas relações afetivas e familiares, problemas financeiros e, em três deles
a causa identificada foi depressão, motivos que vão de encontro com o imaginário
social. (MULTARI, 2007, p.34).
O trabalho citado busca levantar o alcance social do fato, sua representação no
imaginário da cidade, os efeitos na vida dos moradores. Dentre outras posições, a que
localiza o auto-extermínio como uma característica da cidade: “As pessoas tendem a achar
que a comunidade, no geral, tem tendência ao suicídio” (p. 35), como também aparece a
postura de banalização da questão: “O povo já está até acostumado” (p. 36). Ao mesmo tempo
em que se fala do choque de cada ocorrência no município, pois se trata de “pessoas
conhecidas”, uma tentativa de minimizar o fato, tornando-o corriqueiro e de pouca
importância para a vida social. Parece atuar o tabu com relação ao tema e uma recusa a se
pensar na questão que se coloca para além dos fatores intra-subjetivos: “O que está
acontecendo com esta cidade e seus moradores? Essa recusa parece se estender às
autoridades que silenciam e demonstram ignorar os suicídios acontecidos.
A autora conclui então que o suicídio, como problema social de Nova Lima, “precisa
ser discutido e compreendido pela população e pelos governantes [...] deixando de tratá-lo
como um „tabu social‟, pois enquanto deixamos de discuti-lo e debatê-lo, os casos continuam
acontecendo e em taxas crescentes” (MULTARI, 2007, p. 42).
27
A exceção a ser registrada fica por conta da polícia militar que efetuou a pesquisa cujos dados embasaram o
trabalho citado.
159
O levantamento epidemiológico dessa questão, como de várias outras que atravessam
o dia-a-dia novalimense, como é o caso da drogadicção e da depressão, é dificultado pelos
interesses dominantes, fato muito visível com relação aos fatores de epidemiologia ambiental
ligados à atividade mineradora, historicamente falseados em benefício das empresas, como no
secular e vergonhoso caso da silicose e atualmente, no caso dos graves efeitos da atividade da
usina de ácido sulfúrico e ao recente impacto das transformações promovidas no espaço
urbano.
As abordagens na saúde pública, para se aproximarem de uma efetividade e
resolutividade nimas, deveriam estar ancoradas em uma concepção política da saúde da
população, numa autonomia mínima com relação aos interesses hegemônicos e no
entendimento dos processos de subjetivação que produzem os adoecimentos e suas possíveis
restaurações.
Para que se delineiem alguma perspectivas de mudança neste quadro, as nossas
prováveis linhas de fuga devem ser também potencializadas e ancoradas em planos de
consistência coletivos, produções desejantes, contágios de toda ordem buscando a instauração
da vida pulsante numa outra cidade.
5.5 Linhas de Fuga
“O ideal seria lutar para manter, aqui é um lugar bom de se viver ainda”
(Fernando).
Cabe a nós, sufocados por esses fluxos de opressão coletiva, a recusa
desses processos hoje dominantes no nosso cenário urbano? Que outras
possibilidades de apropriação do espaço urbano podemos pensar e viver
nesse contexto, fora da equação diferença/desigualdade/segregação?”
(Ferreira Neto, 2004b, p.8).
No seu texto “Restauração da Cidade Subjetiva”, escrito para o colóquio “Homem,
cidade, natureza; a cultura hoje”, organizado pela UNESCO, no Rio de Janeiro, em maio de
1992, Félix Guattari localiza, dentro de sua proposta ecosófica, linhas de fuga e possibilidades
inventivas no seio do espaço urbano.
Falando de desterritorializações do ser humano contemporâneo, do nomadismo
generalizado, da perda definitiva das “terras natais”, Guattari enfatiza o paradoxo entre a
circulação constante de pessoas, veículos, imagens e, simultaneamente, a petrificação e a
imobilização com a repetição do mesmo padrão em formas infinitamente diferentes.
160
Os espaços para o inusitado são quase nulos dentro da “superfície de controle”. Sob a
aparente multiplicidade, programações impõem caminhos, atitudes, sentimentos, que
ameaçam paralisar a subjetividade. O que podemos contrapor a tal processo massificador seria
a reconstituição de uma relação particular com os cosmos e a vida, em processos de
singularização únicos e ao mesmo tempo coletivos.
Essa subjetividade em estado nascente o que o psicanalista americano Daniel Stern
denomina “o si mesmo emergente” cabe a nós reengendrá-la constantemente. Não
se trata mais aqui de uma “Jerusalém celeste”, como a do Apocalipse, mas de
restauração de uma “Cidade Subjetiva” que engaja tanto os níveis mais singulares de
pessoas quanto os níveis mais coletivos. (GUATTARI, 1992, p.170).
Eu penso que é um trabalho que a gente vai fazer junto, eu vou pegar o catálogo
mesmo de telefone e vou ligar para um e vou ligar para outro. Vamos nós mesmos
fazer um trabalho por conta própria, fazer nossos grupos ecológicos, fazer nossas
caminhadas, tentar convidar nossos filhos para aprenderem o que é isto, andar mais
descalço. O meu pensamento é este porque a gente vai ter, se fizer isto no domingo,
uma cabeça muito mais livre para começar uma semana pesada. (Fernando).
Trata-se então de destacar-se de um falso nomadismo, desvitalizado, repetitivo, serial
que nos deixa no mesmo lugar para permitir a verdadeira errância do desejo, inventiva,
revolucionária e transformadora. Guattari via no Brasil, as condições para o desenvolvimento
de uma máquina imensa, um “ciclotron de produção de subjetividades mutantes.” (ROLNIK,
1996, p. 96).
Nova Lima tem condições, tem condição porque ela tem gente com cabeça, porque
eu acho que o principal é você ter o ser humano com cabeça para fazer a coisa. Eu
acho que Nova Lima tem e está desperdiçando. Nova Lima tem dinheiro e Nova
Lima, se souber fazer isso, pode fazer o futuro dela de uma outra forma. (Rita).
O Brasil, desde os modernistas, passando pelos tropicalistas, nos deu a “vacina
antropofágica”, proposta terapêutica para uma “ecologia da alma”, superadora das dicotomias
e das segregações, potencializadora das invenções libertadoras dos fluxos múltiplos e das
diversidades híbridas tropicais. Possibilidades de uma subjetivação maquínica antropofágica
que nos remeta à vivência da positividade do caos, motor dos novos agenciamentos
transformadores, da abertura para o outro, para as diferenças, instigadoras de amplificações.
Desmontagem das escleroses urbanas, do modus vivendi capitalista.
Alguém vai ter que lutar por isto e vai ter que ser a gente mesmo, porque o alimento
está todo cheio de coisas tóxicas e tem muita maneira de resolver isto. Não precisa ir
em um clube para nadar não, ainda tem as nascentes, ainda tem alguns rios que
coitados estão sendo poluídos, mas é a gente que vai ter que fazer isto. Tem que
reunir grupos, chamar imprensa, pegar umas poucas nascentes que existem e mostrar
que ali existe uma nascente, que ali não pode ser tocado de maneira nenhuma. Tem
que acompanhar bem próximo mesmo as matas e auto-educar as pessoas nas praças.
161
Porque a partir do momento que a gente lutar por isto a imprensa nos apoiará porque
não é uma questão política isto, é uma questão de vida. (Fernando).
Nos dizeres de Suely Rolnik “é preciso resgatar a vibratibilidade do corpo, a
receptividade aos efeitos do mundo na subjetividade” (1999, p.8), ao que Guattari
acrescentaria na sua proposta ecosófica, indicando linhas de recomposição das práxis
humanas: “a ecosofia social consistirá, portanto, em desenvolver práticas específicas que
tendem a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto
urbano, do trabalho.” (GUATTARI, 1995).
Eu não deixo a peteca cair não, primeiramente um cuidado espiritual. Eu tenho
muita e eu não abro mão da minha por nada, por teoria nenhuma. E eu busco a
minha fuga com a natureza, gosto muito de andar descalça, de mexer na terra, deixar
a terra entrar na unha... Eu acho que tem uma troca de energia entre a terra, a
natureza e o ser humano, então eu pego na terra, gosto de cachorro, em casa eu tenho
muito cachorro, eu sento na grama, eu deito, eles sobem em cima de mim. Isto é
gostoso, este olhar a natureza, agradecer. Da minha casa eu vejo aquele Morro do
Elefante, nó! lindo! eu agradeço a Deus, falo: olha que bom que eu tenho esta
natureza, quanta gente queria ter isto, aquilo não tem dinheiro que pague. (Alice).
Seja através dos espaços de vida: “é apenas em um clima de liberdade e emulação que
poderão ser experimentadas as vias novas do habitat e não através de leis e circulares
tecnocráticas.” (GUATTARI, 1992, p.174). Ou pela via da arte:
É nas trincheiras da arte que se encontram os núcleos de resistência dos mais
consequentes ao rolo compressor da subjetividade capitalística [...] A arte aqui não é
somente a existência de artistas patenteados, mas também de toda uma criatividade
subjetiva que atravessa os povos e as gerações oprimidas, os guetos, as minorias.
(GUATTARI, 1992, p.115).
Os meus alunos de teatro são alunos que representam várias camadas, então eu
posso falar por aí. Eu tenho alunos de teatro que são estudantes, alunos que são
empregadas domésticas, cabeleireiro, tem homossexual, travesti. É muito
interessante esse universo que eu trabalho em Nova Lima, O que eu posso falar
dessa transformação foi o processo de viver com arte. Acho que, hoje, como eles
tiveram essa experiência com arte, eles são pessoas diferentes, estão buscando outras
questões de vida. Eu sinto um desejo de mudança nessas pessoas, uma vontade de
aprender. (Mirtes).
Boaventura S. Santos (1997) propõe, frente à crise dos paradigmas da modernidade,
uma heterotopia: Pasárgada 2. Em vez da invenção de um lugar totalmente outro, proponho
uma deslocação radical dentro de um mesmo lugar, o nosso.” (p. 325). Em Pasárgada 2, que
“não é um lugar inventado, é o nome inventado de um lugar da nossa sociedade”, se trabalha
com a idéia de transição paradigmática, se busca conhecer a condição atual do paradigma
decadente e, mais importante, identificar “as vibrações ascendentes” do(s) paradigma(s)
162
emergente(s). “Trata-se de uma arqueologia virtual porque interessa escavar sobre o que
não foi feito e, porque não foi feito, ou seja, porque é que as alternativas deixaram de o ser.”
(p.324). Essa arqueologia buscaria tudo o que foi ocultado e esquecido pelos saberes e
poderes oficiais, o não-permitido, o não-dito: [...] a escavação é orientada para os silêncios e
para os silenciamentos, para as tradições suprimidas, para a perspectiva das vítimas, para os
oprimidos, para as margens, para a periferia, para as fronteiras [...] (p.324).
A gente não pode deixar pensar que estudo perdido. A gente tinha que fazer um
circulo de reuniões e pegar alguns trabalhos. Eu, no local que eu estou fazendo
tratamento, há pessoas lá que estão com vontade de sair e que nunca foi ao Rego dos
Carrapatos, mas ainda tem lugares bonitos e ainda tem muito como sair ainda né,
então é questão de consciência mesmo. Eu quando percebi que eles vão acabar com
as águas, vou sozinho lá, vou tirar foto e vou acompanhando os finais de semana
como é que está. Porque a hora que a primeira máquina passar, apesar da gente não
ter força, mas eu quero que tudo isto seja registrado. (Fernando).
Santos propõe então um paradigma eco-socialista que decorre de um diálogo cultural
amplo e opera reformulações significativas nos conceitos de propriedade, desenvolvimento e
consumo. “Na sua definição mais simples, o eco-socialismo é democracia sem fim” (p.345),
ou seja, radicalmente democrático, em luta contra o apartheid identitário-cultural e a
opacidade das relações sociais despolitizadas, dessingularizadas. “Mas se a gente deixar que a
cidade de pedra tome conta de tudo, nós vamos ficar a mesma coisa. Então eu escolhi a
convivência por isto. Nós temos que aprender a conviver.” (Lúcia).
Assim, as adesões à sonhada alternativa de sociedade, passam pelas subjetividades,
rizomáticas, multidimensionais, solidárias. Ampliando e garantindo espaços para que essa
multiplicidade se constitua e seja praticada nos pequenos e grandes grupos sociais, se montam
novas possibilidades de vida. “As coligações a favor do paradigma emergente são possíveis
na exata medida em que a ele aderem, uma a uma, as diferentes dimensões na subjetividade
dos indivíduos e dos grupos sociais” (SANTOS, 1997, p.346).
A gente vai ter que fazer uma reunião de todo mundo que tem amor à natureza, amor
à vida, que quer ver seus filhos bem e com saúde, a gente mesmo vai ter que reunir
todos que ainda têm esta vontade de ver que a vida é boa e começar a trabalhar em
cima disto. Fazer uma mudança na sociedade, um trabalho escolar, não sei muito
bem como explicar, mas a gente vai ter que mudar. (Fernando).
Ao que se poderia acrescentar o que Alba Zaluar propõe como possível caminho: a
reconstrução do tecido social, que embasaria novas formas de convivência e novas formas de
legitimidade, com o Estado reassumindo o controle legítimo sobre a violência e a articulação
de múltiplos circuitos de reciprocidade e solidariedade, ao mesmo tempo em que se buscaria a
163
repolitização dos laços sociais. O almejado equilíbrio entre as tensões sociais e a cooperação,
que acontece nas competições esportivas e, no caso brasileiro, nos desfiles de escolas de
samba, seria um bom exercício a ser estendido para outros campos. (ZALUAR, 2004, p.209)
Estar na metrópole, exige exercícios e estratégias diárias de sobrevivência na floresta
urbana. Micro e macropolíticas, articulações cidadãs. Parar um pouco para olhar, diminuir os
ritmos, relativizar. Se ligar a coisas pequenas e grandes causas, tirar o foco das comodidades
do pequeno mundo familiar: “Viver além do imediato, viver do que morreu mas recordamos,
viver do que ainda não nasceu mas esperamos. Mover-se por motivos políticos, motivos de
cidade, que abraçam e ultrapassam motivos só de casa.” (GONÇALVES FILHO, 2007,
p.191). Ter no mundo virtual um aliado para estar conectado com o momento, com o coletivo:
a cidadania, o exercício social na urbis, passa hoje por esse sentimento de conexão
generalizada. [...] Não está em pauta aqui o abandono da cidade física pela cidade virtual, mas
propiciar a sinergia entre o espaço de fluxos planetário e o espaço de lugar das cidades
„reais‟”. (LEMOS, 2004, p.19).
Nesse novo milênio algumas iniciativas no campo virtual anunciam movimentos e
articulações de uma Nova Lima que pode se renovar de maneira criativa, exercitando a
liberdade de expressão e novas inscrições sociais. Uma TV via internet, a TVNL, brinca com
as coisas da cidade, com os tipos curiosos, como no quadro Figuraça, com acontecimentos
das ruas, festas, arte, lugares. O blog Megafone Virtual põe “a boca no trombone” e, a
exemplo do site do Professor Massote, coloca em discussão a vida política local e os
esquemas de poder globais que aqui incidem, com linguagem contundente, fortemente
contestadora dos atrasos e desvios éticos, da corrupção em vários níveis, esmiuçada e revelada
em detalhes. O site/movimento Casa Cidadania & Diversidade traz interessantes resgates
históricos e discute o cenário contemporâneo, apresentando, com bom humor, biografias de
personagens com trajetórias significativas para a cidade.
A busca de saídas para as situações de opressão territorial e existencial em Nova Lima,
talvez passe também pelo que Bauman, no Posfácio de Modernidade Líquida, comenta sobre
o mundo instável e fugidio, sobre a fragilidade que acomete a todos, nestes tempos porosos e
flutuantes. O nomadismo e o desenraizamento seriam então estratégias de transgressão, de
estar dentro e fora dos lugares, numa assumida posição autônoma em relação ao espaço: “O
„enraizamento‟, se existir, só pode se dinâmico: ele deve ser reafirmado e reconstituído
diariamente precisamente pelo ato repetido de „autodistanciamento‟, esse ato fundador,
iniciático, de „estar em viagem‟, na estrada.” (BAUMAN, 2001, p.238). Quem sabe dessa
maneira possamos nos livrar de estranhamentos, amarras e programações, dores das perdas e
164
pesados moldes que nos impedem de usufruir adequadamente da amplitude das grandes
cidades, utilizando a potência da diversidade como alavanca para mover as enferrujadas
engrenagens do capitalismo secular?
Cabe a nós, sim, prestidigitadores do presente, articular as virtualidades apontadas e
vividas, frente a estas realidades duras e caóticas dos nossos espaços vivenciais e das grandes
metrópoles. Como aponta Milton Santos: “Pode-se até imaginar que, a prosseguir como
vamos, as grandes cidades serão tão fragmentadas material e socialmente quanto já o são hoje
os seus moradores. Todavia, tal fragmentação pode levar à recriação de uma vida coletiva
local, não independente da aglomeração como um todo, mas representativa das condições de
vida reinantes em cada fragmento” (2002, p.128). Ou, como assinala Pelbart: múltiplas
cidades em cada ponto de vista, unidas por sua distância e por sua divergência.” (1997, p.36)
Apostemos nisto, trabalhemos para isto.
165
6 DISCUTINDO O VIVER NA CIDADE: IMPASSES E POSSIBILIDADES
É preciso que cada um se afirme na posição singular que ocupa; que a faça viver,
que a articule com outros processos de singularização, e que resista a todos os
empreendimentos de nivelação da subjetividade.[...] Em qualquer escala que essas
lutas se expressem ou se agenciem, elas m um alcance político, pois tendem a
questionar esse sistema de produção da subjetividade. (GUATTARI, 1986, p.50).
Construir em grupo uma visão atual, crítica do tempo/espaço novalimense; construir
estratégias de discussão dessas realidades e de possíveis intervenções. Falar do que não se
fala, tornar públicos sentimentos que dizem respeito ao cotidiano de segregação vivido
secularmente, sob formas variadas, nessa cidade. Assim o grupo focal realizado ultrapassou os
objetivos tradicionais da pesquisa e se lançou por um caminho que promete desdobramentos e
retomadas, em vetores de singularização que se delineiam, nas trajetórias de vida que se
entrecruzam com aspectos sócio-políticos e espaço-ambientais, em nível local e planetário.
A opção por realizar o grupo focal veio da vontade de colocar em discussão a temática
das transformações em Nova Lima, em um grupo heterogêneo, com diferentes inserções
sociais. Se, nas entrevistas individuais, a escuta atenta e a interação dual permitem
pormenorizar o assunto e registrar nuances, no grupo vai se construindo um clima coletivo, no
contato entre diferentes trajetórias e cenários e nas conexões propiciadas pelo momento do
encontro. Tal acontecimento pode se constituir em elemento agenciador de mudanças e
movimentos, tanto no nível das subjetividades quanto na organização social e na prática da
cidadania.
Pensando nos três níveis da Revolução Molecular sugeridos por Guattari: o infra-
pessoal, o das relações sociais e das relações das forças políticas, o trabalho do grupo versou
sobre essas possíveis virtualidades, fazendo circular idéias, impressões, sentimentos, histórias,
propostas de atuação.
Convidei para participar do grupo oito pessoas, usando como variáveis a idade,
profissão, local de moradia, escolaridade e local de trabalho, desses comparecendo sete,
quatro mulheres e três homens, aqui relacionados:
Sara: pedagoga aposentada, 52 anos, coordena uma creche, mora no bairro Boa Vista.
José: técnico em design de interiores, 43 anos, mora no bairro Vila Passos, trabalha no Jardim
Canadá.
Lúcia: aposentada, trabalhava com serviços gerais no Jardim Canadá, 64 anos. Nascida no
Retiro, já morou em S. Paulo por 18 anos, mora agora no Cascalho.
166
Maura: professora, 40 anos, nascida em Itapecerica, está 6 anos em Nova Lima, mora e
trabalha no Jardim Canadá.
Valter: técnico em turismo, 27 anos, trabalha como comprador e mora no Bom Jardim.
Alda: faxineira, 30 anos, nascida em Teixeiras, mora 22 anos em Nova Lima, em Honório
Bicalho.
Ronaldo: eletricista, 53 anos, 1º grau, nascido na Boa Vista, morou no Galo, atualmente mora
na Olaria. Aposentado da Mina de Morro Velho, hoje trabalha em Belo Horizonte.
O local escolhido para realização do trabalho foi o Centro Comunitário Santa Efigênia,
no bairro Bom Jardim, que possui salas amplas e aparelhagem de projeção. As cadeiras foram
dispostas em semicírculo para facilitar a visão da tela e dos participantes entre si. Três
auxiliares se incumbiram das anotações e das gravações do trabalho que durou 2 horas e 35m.
O trabalho, realizado em Maio de 2009, foi construído com base nas entrevistas
individuais feitas anteriormente e na literatura estudada. O roteiro montado sofreu variações e
adaptações, feitas para acompanhar o fluxo da produção do grupo que, com entusiasmo, dava
sinais de não querer interromper as discussões querendo continuar falando e interagindo por
mais tempo. O roteiro proposto foi:
1 Explicações iniciais sobre a pesquisa e regras do grupo focal.
2 Apresentações dos componentes.
3 Exibição de slides para localizar o tema.
4 Discussão.
5 Intervalo para lanche.
6 Trabalho com palavras-chave identificadas nas entrevistas individuais.
6.1 Dinâmica das discussões
Na introdução expliquei rapidamente o tema de minha pesquisa: “Meu tema é a vida
em Nova Lima, eu estou estudando como as pessoas estão vivendo, sentindo, percebendo as
transformações acontecidas nos últimos anos, em Nova Lima. Transformações de vários
níveis. Eu não quero de vocês informação, quero saber o que vocês estão sentindo,
percebendo, pensando do que está acontecendo. Como é esse estar em Nova Lima?”
Recomendei que se evitasse enveredar pelas questões político-partidárias, pois não faz parte
do trabalho esse tipo de análise, mas que as políticas da vida seriam bem-vindas.
nas apresentações, surgiu, em meio à diversidade de situações de vida, uma visão
otimista e a expressão de amor pela cidade, junto com a vontade de colaborar para uma
167
mudança efetiva de suas seculares condições. José falou de sua paixão pela cidade e de seu
interesse em ajudar Nova Lima, mas “ainda não sabe como” e se diz incomodado com o
“parasitismo” dos novalimenses, parados, acomodados, “talvez por influência da mídia”. “Eu
sinto que aqui em Nova Lima as pessoas são um pouco alienadas, têm muito medo de
reivindicar. [...] a gente fica um pouco revoltado, as coisas aqui não mudam.”
Alda, que morava em Teixeiras, diz que gosta de Nova Lima e não quer sair da
cidade e Maura, vinda de Itapecerica, diz ter estranhado, a princípio, o ambiente de seu bairro
(Jardim Canadá), mas que agora tudo está mudando, com as pessoas mais comprometidas.
Lúcia, novalimense, que morou em S. Paulo, expressou sua alegria por poder voltar a Nova
Lima: “Me sinto uma vitoriosa de ter voltado pra minha terra. a gente que sai daqui sabe
dar valor ao que é da gente. Não tem terra como Nova Lima. Pra ganhar dinheiro é S. Paulo,
mas pra viver é Nova Lima.”
Valter, que trabalhava em BH, diz que “é gostoso trabalhar aqui”, mas
incompatibilidade entre as necessidades da população e as políticas públicas adotadas.
Ronaldo diz que acompanha tudo que acontece e acha Nova Lima uma cidade boa de viver,
mas se queixa da droga, “que atrapalha a paz da cidade”. Sara, como outros, aponta a
necessidade de melhorar as áreas de saúde e educação e da cidade “caminhar para frente”, no
sentido de superar os limites e barreiras.
Tudo isso posto, passamos à exibição de slides sobre a cidade. A seqüência foi
montada com imagens recentes da sede de Nova Lima e entorno, evidenciando as
discrepâncias e a multiplicidade de cenários. Foram usadas fotos tiradas por mim em visitas
intencionais a lugares expressivos ou em perambulações criativas; fotos retiradas de
documentos preparatórios ao Plano Diretor da cidade e de sites relativos ao tema.
A intenção inicial era situar o tema, através de imagens, mas a apresentação de slides
provocou um belo diálogo entre as fotos e as vivências, cenas e memórias de cada um,
enredadas na paisagem e no território de Nova Lima. História do presente, genealogia
cartográfica.
Por várias vezes a exibição foi interrompida, pelos participantes, para compartilhar
informações ou expressar sentimentos sobre alguma foto, tendo a discussão se iniciado e
encorpado antes mesmo do término da projeção. Os componentes do grupo estavam, quase
todos, bastante investidos e motivados pelo tema, dispostos a produzir algum saber e algum
fazer que possa ser utilizado em direção à superação dos problemas da cidade e de seus
habitantes.
168
Alguns slides geraram maiores manifestações como os que mostravam as placas de
proibição de entrada e permanência em áreas cercadas do território: Isso é o que vai
podando...” (Ronaldo); “Isso que é a incompatibilidade, que eu digo” (Valter). Os slides
que focalizavam imagens de casas espetaculares dos condomínios despertaram reações entre
irônicas e deslumbradas: “Que lindo!” (Alda); “Isso não é filme americano, não?” (Valter). E
quando as fotos da sede começaram a ser apresentadas: “Agora nós voltamos à realidade”
(Ronaldo)
Uma imagem despertou grande burburinho, por mostrar grande placa da prefeitura,
colocada na MG-30, dizendo “AQUI TEM NOVA LIMA” e apresentando um diagrama dos
condomínios da região: “Então tem os com-domínio, os sem-domínio não aparecem.
(risos) (Valter). Alda se espanta de seu bairro-distrito estar incluído nessa seleta lista: “O que
Honório Bicalho está fazendo nessa placa? Mais tarde concluiria: “Acho que Bicalho vai
virar mesmo condomínio.”
As imagens relativas à mina de Morro Velho e à atividade mineradora causaram
impacto: “Isso é barra de ouro? Gente! É por isso que tudo crescendo desse jeito, uai!”
(Ronaldo). Ao ver fotografia de balde cheio de ouro: “O que é isto? Lavagem?” (Valter). “São
as pedras.” (Ronaldo). “Diamantes!” (Alda).
Duas fotos sobre a represa de rejeitos da usina de ácido sulfúrico no bairro do Galo
provocaram o relato de muitas experiências com relação à poluição de ar e água, nesta e
outras regiões, além de puxar questões como a da silicose e dos impedimentos para o
crescimento da cidade. A imagem da “lagoa de veneno” evoca lembranças, constatações e
uma crescente compreensão dos sentidos desse lugar e de sua conexão com a história da
mineração no município, entrelaçada ao cotidiano de cada um. O diálogo sobre o tema segue
na íntegra:
Ronaldo: Essa é a barragem de arsênico do Galo?
Alda: Hoje parece que não tem tanta água lá, não.
R: Essa é uma delas, tem outras.
Valter: Essa é a primeira lagoa de rejeitos do Brasil. Naquela região o pessoal que tinha
contato com isso não tinha orelha, não tinha a cartilagem, né.
R: Aconteceu isso no bairro do Galo, com o arsênico, o pessoal não tinha essa divisão que a
gente tem no nariz, não.
Lúcia: Eu tive um primo que morreu, todo, todo, todo cortado de arsênico. Ele trabalhava
diretamente com ele lá no Galo, acabou todo...
A: E essas crianças brincando lá não tem perigo?
169
R: Ah, vivem soltas, né. Ficou prejudicado o contato com a terra, a vegetação, tudo muito
poluído...
L: A gente ia buscar goiaba lá, não tinha nem bicho, as goiabas do Galo não davam bicho.
V: Umas goiabonas bonitas, né. Se fosse saudável!
R: A poluição era violenta naquela época, a represa na época da seca, ficava com aquelas
manchas brancas e o capim bem baixinho, o gado comia, morria. Morreu gado demais quando
morei lá perto. O gado come o capim, no outro dia tá morto.
Nina: E agora, você acha que é melhor o nível de poluição?
R: Tem poluição sim. Se você for de madrugada, depois de 11 horas, meia noite, por aí,
você sente que eles soltam lá, eles queimam o produto e sente cheiro violento. Minha mãe
morava lá perto da barragem, na época de laranja, as laranjas ficavam todas queimadas, com a
casca toda queimada...Veneno...Por que tem é ácido sulfúrico...Então eles não queimam
esse produto, não descarregam toda essa queima que eles fazem lá, durante o dia. fazem
isso à noite.
V: Até pra observar, mas à noite, voltando de ônibus, das Quintas, da estrada vovê.
Olha pro Mingú que você vê uma fumaça branca, sempre saindo.
L: Quando a gente vai pra Raposos, naquela volta do Galo ali, o fedor é terrível. Eu passo
quase todo fim de semana pra ir pro sítio, vai chegando até meu neto fala: “Nó que
fedô!”
A: Quando desce ali pra Honório Bicalho também, passando em Bela Fama, o cheiro ali é
muito forte, também.
V: Eu fico imaginando que se tem uma corrente de chuva, isso vai pra nuvem, se espalha e
chove na cidade inteira; sai da represa, pega Raposos, Bicalho, Rio Acima...
R: Se o cheiro chega até esse espaço todo, vai descer, de certa forma pesa e vai
contaminando, vai poluindo.
A: De manhã, quando eu acordo, eu sinto um cheiro muito forte de cloro, mas muito forte
mesmo, eu cismo que é porque eu moro perto daquela fábrica Cataguases. Não sei o que é,
mas é muito forte, chega o nariz ficar seco de tão forte.
N: Fabricação de cloro.
A: Diz que aquela água que sai de lá é um perigo.
R: A pessoa vai respirando, sem pensar, quando vai ver...
José: É uma coisa que a gente não pode ver, mas prejudica.
V: Essa que é a perigosa, a longo prazo.
170
R: É igual silicose. A pessoa trabalha a vida inteira dentro da mina, aposenta com 15 anos,
quando aposenta com 15 anos é porque o negócio é feio mesmo. A pessoa sai acha que
levando a vida normal, quando chega certa idade, que ele vai perdendo as defesas, isso é
normal do ser humano, ela vai acontecendo. Eu fiz exame, eu tenho perda parcial, o cara
que me examinou, pneumologista, que fez raio-X, disse que é silicose parcial, mas ela é
progressiva. Porque progressiva? Quando chega certa idade ela vai tomando conta. Ela
começa a te prejudicar. Você passa a respirar mal e vai, vai até você subir pelas paredes, quer
um pouco de ar e não consegue.
A: Costuma perder a parte de movimentação das pernas, também, a visão...
R: Infelizmente, se você for hoje em qualquer hospital, você vai ver gente subindo pelas
paredes, querendo respirar e não pode. Até a morte. Isso é a realidade.
N: O preço da barra de ouro é caro.
R: Eu conheço gente, tem história demais em Nova Lima, demais da conta. O que eu acho,
que a gente vendo pelas fotos aqui, o que o povo deu pra isso aqui, o que o povo deu de
si, deu de vida pra isso aqui, eu que acho Nova Lima teria que ser um...
L: Um paraíso!
R: Um paraíso. Mas acontece que só vieram, tiraram, levaram embora e deixaram essa
seqüela que é...
A: Tem um senhor que eu cuido, ele trabalhou na mina muitos anos, hoje ele não anda mais,
as pernas não ajudam mais, a visão também ele perdeu... Ele fala que ele aposentou com três
salários, hoje ele ganha um salário e pouquinho. E um auxílio-doença de 225,00.
R: Agora o quê que eu acho disso tudo? A gente vai pensando nas coisas como elas
acontecem. Mineração Morro Velho na época, ela tinha dificuldade de arrumar pessoas pra
trabalhar. Então saía gente em comitiva por aí afora, um ônibus, tinha uma pessoa que
buscava gente fora para trabalhar aqui. Então o quê que aconteceu, posso estar enganado e
se eu tiver falando demais você me corrige, o que eu acho é o seguinte. Quando precisa do
pessoal e está com dificuldade de encontrar, “o quê que nós vamos fazer gente, nós não
podemos deixar isso crescer muito não. Não podemos dar educação, não podemos pagar
salário alto, que esse pessoal daqui uns tempos, os filhos deles não vão querer continuar com
isso aqui não. Então nós vamos ter que limitar esse povo.” Como aconteceu, meu pai
trabalhou na mina, meu filho trabalhou na mina, como muitos e muitos por afora. Eu não
posso estudar meu filho, mandar ele pruma faculdade, eu sou limitado. Então cada um
daquela família, a empresa deu um lugarzinho pra eles morar, quando eles crescerem vão
171
entrar pra dentro da mina, vão dar sequência. É o que aconteceu. Nova Lima poderia ser
melhor. Nova Lima tinha tudo pra ser melhor.
N: Você falou que Nova Lima poderia ser um paraíso, por todo esse preço que foi pago. Ela é
um paraíso, mas não para quem pagou o preço.
V: Siga seu sonho! (aludindo à placa de propaganda de condomínio).
R: Só tem paraíso em volta dela! O povo todo quer usufruir desse paraíso que tá em volta dela
aí.
N: Vamos terminar de ver os slides, pra conversarmos sobre os pontos que chamaram
atenção, mas a gente já viu que a questão da mineração é uma ferida de todo mundo.
6.2 Sobre viver em Nova Lima
Após os slides partimos para a conversa sobre o assunto, sobre as imagens, as
impressões, os sentimentos. Conversa animada, entrelaçando memórias, sonhos, constatações,
desejos. Meu papel de mediadora muitas vezes foi alterado pela minha condição de moradora,
bastante envolvida no debate e na temática abordada.
Durante a discussão apareceram basicamente as mesmas questões colocadas pelos
entrevistados individualmente. Confirmaram-se os dois grandes eixos sobre os quais gira a
problemática sócio-ambiental da cidade e a sua influência na produção de subjetividade:
a presença da atividade mineradora e o acelerado processo de metropolização do município,
com suas resultantes: o estrangulamento espacial e a criação dos condomínios. As referências
e análises relativas à mineração e aos condomínios vão recortando toda a conversa e
reaparecendo em vários momentos, retrançando os fios, atualizando as reflexões.
Alguns aspectos foram agora menos enfatizados que nas entrevistas, como o trânsito,
talvez pela grande utilização, pelos componentes do grupo, do transporte coletivo,
acostumados com sua precariedade e com as longas esperas, percursos demorados. O tema
consumo foi bastante explorado, apesar de não constar das imagens ou das palavras
apresentadas. A ponte dos suicidas, presente em duas imagens, para minha surpresa, foi
apenas ligeiramente comentada. Podemos supor que agiu a, apontada, resistência ao
tema-tabu, fonte de angústia e espanto para a população. Ou realmente, o impacto do fato
seria reduzido, frente a outros sofrimentos de maior amplitude.
Seguem trechos dos diálogos que considerei tocar em questões significativas e que
expressam como o grupo sente e percebe a cidade, seus sentidos, seus desejos, seus fazeres.
172
Coisas daquela época
A conversa se reiniciou com Sara e Lúcia relembrando as boas coisas da cidade que
estão se perdendo:
Sara: Eu não sou saudosista, porque a gente tem que evoluir. Eu acho que eu não tou tão
velha assim, sou cinquentona e tudo, mas eu já sinto minha infância diistaante, sabe, com uma
mudança que teve sem planejamento e acho que a gente não agregando bem, a gente está é
se perdendo. Uma cidade que, não sei se algum governante, autoridade, tem sensibilidade pra
preservar um pouquinho nossas raízes. Tem um futuro, o presente, até o passado atrás, que ele
exige o novo..., mas tem um lado da estrada que a gente tá perdendo, as paisagens, as águas, e
(em off) eu sinto que ninguém faz nada, gente.
Lúcia: Ontem eu tava com meus filhos na cozinha conversando e a gente tava comentando
sobre a droga, porque o bairro que eu moro, infelizmente, é o caos. Você conhece né, José,
você sabe que aquele pedacinho ali do Cascalho, a droga anda solta mesmo. Eu tava
comentando, tava lembrando daquele tempo ali da praça, que nós tínhamos a praça, na minha
juventude, onde os rapazes davam a volta por fora e as moças por dentro. Era uma coisa linda,
maravilhosa, não tinha maldade. Então eu estava passando esses valores pros meus filhos. Eu
falei com eles: “Hoje, vocês não sabem viver, é bar.” Você não mais, é barzinho,
nesse barzinho uma briga, entra droga. Eu falei, pra Nova Lima voltar a ser gostosa,
tranquíla, teria que voltar às raízes nossas. Era pacata, era pacata sim, mas era saudável.
Na sequência, aparece a questão do domínio da mineração sobre o território e sobre a
vida das pessoas:
Lúcia: Eu acho que os valores vão perdendo assim. Agora, a mineração, pelo que eu
conheci dos meus pais, a gente ouviu, a mineração dominou Nova Lima.
Ronaldo: Dominou e limitou.
L: Nem política se tinha, porque tudo na política era em torno da mineração. A mineração
falava assim, assim era. Agora abriu os campos, mas abriu pra quem tem. Pra quem não tem...
R: Porque ela fez o seguinte, ela veio, explorou nosso solo, tirou a riqueza do nosso solo, não
dividiu um pouquinho mais com o povo de Nova Lima essa riqueza, de jeito que limitou as
pessoas. Isso aqui podia ser melhor, muito melhor. E no final agora, que já está chegando no
final, quê que ela fez , ela cercou todo mundo aqui e abriu espaço pra todo mundo fora
cercar a gente. Que são os terrenos que é dela.
(Todos falam ao mesmo tempo, grande envolvimento).
Sara: Isso é coisa do progresso, mas nós tivemos muitas perdas.
173
R: Até isso ela tomou do povo, que é a liberdade de ir e vir e passear por esses matos aí, igual
todo mundo antigamente ia. O quê que ela fez, tirou tudo e cercou. “Isso aqui não é seus não.
Vocês tão de fora. Acabou.”
L: Inclusive, eu tenho um sítio em Raposos, um pouco pra frente de Raposos, 3 kilômetros, eu
tive um problema seríssimo pouco tempo, com a Morro Velho. Meu terreno divide com
um piquete da Morro Velho, dali pra é tudo Morro Velho. Meu terreno não tem água, a
água que eu uso, tinha que tirar de uma nascente que fica dentro do terreno da Morro Velho.
Nós inocentemente, canalizamos a água, quando a gente tava com a canalização pronta,
fomos barrados porque a água pertencia à Morro Velho, água no solo, pertencia à Morro
Velho. Aí eu tive que correr atrás, dei sorte porque tinha pessoas influídas lá dentro, senão eu
não teria água hoje não, porque a minha palavra não valeria não. Eu consegui porque tinha
uma pessoa mais forte do que eu dentro. Hoje eu tenho a água que é da Morro Velho, mas
eu tive que pedir uma autorização pra usar. É um absurdo!
Alda: A água não é de ninguém, é do governo!
L: Ela diz que é dela e quem sou eu que vou poder discutir com ela, que a água é uma
nascente e não pertence a ela.
Nina: pouco tempo saiu no jornal que as pessoas que tiram areia em Honório Bicalho,
queriam criar uma cooperativa, uma coisa assim, para regularizar a venda. Não puderam,
porque a única “pessoa” que pode extrair alguma coisa ali daquela região do rio é a Morro
Velho. Eles tavam tentando fazer um movimento pra pagar ou liberar.
A: São coisas que mexem com a vida da gente...
L: Agora, no meu terreno, eles entraram, furaram pra fazer sondagem, sem me pedir
autorização, sem nada. Olharam se tinha ouro, quer dizer, se tivesse ouro eles me tomavam o
sítio, né. Eu acho que não tem, porque não me tomou até agora. Quer dizer, não me procurou,
não pediu autorização, simplesmente, foi olhar se tem. Ali pros lados de Sabará tem uma mina
ali, eles tavam furando tudo. Quer dizer eles têm essa autoridade de entrar no quintal, que é
meu, e eu não podia usar a água que passava nas terras deles.
N: Quando Sara diz “ninguém faz nada, a gente tem expectativa, a coisa parece que vai...”, eu
ia perguntar assim “porque será que ninguém faz nada?”. A resposta parece ser essa, é um
domínio.
R: É um domínio que não tem como, a gente fica impotente.
É estabelecido então um paralelo entre passado/presente, mineração/condomínios,
salientando a continuidade da grave questão territorial que atravessa o espaço/tempo:
174
Valter: Não sei se pra fazer um paralelo entre passado e presente. A gente tinha em Nova
Lima antigamente os ingleses e tinha o povão. Hoje a gente tem a sede e tem os condomínios.
Uns falam: Nova Lima alta, Nova Lima baixa. Antes os ingleses em cima, o povão em baixo,
hoje você tem os condomínios em cima e a sede em baixo. Você pode falar da Nova Lima do
lado direito e do lado esquerdo, são paralelos que a gente pode fazer entre o passado e o
presente. Antigamente a Morro Velho tinha capangas, na historia dela, então se na frente,
bem longe, o dono dessa terra toda, era tudo uma terra só, lá pros cantão, em Sabará, longe do
escritório, tivesse alguém morando lá, chegava capanga: “olha, você tem uma semana pra sair,
se você não sair, a gente vai vir quebrar tudo”, e fazia mesmo. Hoje você naquelas placas
ali “Propriedade particular”, pro povo não entrar. Quando começou a cercar ali o condomínio
Quintas do Sol, um amigo meu foi tentar fazer uma caminhada lá, apareceu um cara com uma
garrucha “não pode entrar mais não, pode cascar o fora”. A mesma coisa que aconteceu lá
atrás, está acontecendo de novo. Eu acho que é uma coisa assim...
N: Muda, mas não muda.
V: Acho que a mina, apesar de ter mudado em diversos pontos, durante esses anos todos,
existe uma cultura que ficou interna, enraizada, nas suas diretrizes, nos seus diretores, que foi
passando, de geração em geração, na diretoria, lá dentro, essa forma de administrar, de
encarar o município como tal, continua e fixa, a gente sente isso. Eu tenho vontade de
comprar um lote em Nova Lima, eu tenho vontade de morar aqui, que em Sete Lagoas um
lote é 30 mil, aqui é 90 mil. Como é que se compra um lote em Nova Lima? Impossível!
M: Aqui na cidade também, esse preço todo? (Muitos falam juntos) Porque na minha região o
custo de vida é alto, inclusive os lotes também, que eu achei que era pro lado de lá, não
aqui. Aqui também tá alto assim?
V: Num condomínio o lote é um milhão, que me falaram, no Vale dos Cristais. Na sede
você acha lote aqui por 70, 80, 90 mil reais. Como é que compra um lote desses? Fica
difícil, né? De vez em quando aparece um ou outro loteamento popular, assim bacana, mas a
classe média fica sem ser assistida. Pra cada 15, 20 condomínios você pode ter um
condomínio popular ou pra classe média. Diante de tanta terra que tem! É uma ironia falar de
expansão imobiliária em Nova Lima, sendo que você não acha lote pra comprar.
L: Só acha pra quem tem, pra quem não tem...
Encurralados
175
A conversa se dirigiu então para o confinamento dos moradores da sede em restrita
área de tão grande território e os problemas habitacionais daí decorrentes, se arriscando
uma possível saída via educação.
R: Por isso que eu acho que Nova Lima agora tem que preocupar sabe com quê? Esse povo
tem que preocupar muito, mas muito mesmo pra poder sair disso, pra poder melhorar isso aí,
mudar essa história, investir em massa na educação mesmo. Que é assim mesmo que esses
meninos que tão vindo agora vão conseguir vencer essa barra afora. Porque, do jeito que as
coisas vêm aqui, você fechado aqui dentro. Igual você falou, um lote aqui dentro de Nova
Lima é 90 mil. Ocê 90 mil, mas você sabendo que está preso, que à volta é que...
Nova Lima acabou tudo nosso aqui, o direito de sair, de dar uma volta nesses matos,
conhecer, ir pra essas cachoeiras, poço, igual antes. Acabou tudo isto, você ficou preso aqui.
J: Encurralado!
R: Você tá encurralado.
S: E a população constrói...
R: Então o pouco que tem aqui, o que ficou aqui ...
S: E com isso, os filhos de Nova Lima constroem do lado do pai, em cima, no fundo e fica
aquela imagem que mostrou aí, inacabado.
L: Aquela aglomeração!
R: É o famoso puxadinho, né.
S: Puxadinhos. A frente é feia, o lado é feio, o fundo é feio. Você vai em bairros que eram
muito bonitinhos, Boa Vista, Vila Operária tinham estrutura bonitinha, simples. Mas hoje é
sobrado sem acabar, uma barbaridade.
J: Nova Lima até na década de 80, eu lembro, parece que a explosão veio de 80 pra cá.
A geração de 60, em 70 eram adolescentes, em 80 todos eles casaram e a explosão começou e
começaram a disputar o espaço, essas construções no fundo de casa.
S: O último plano de casa própria que teve aqui foi o do BNH, nas décadas de 60 e 70, bairro
mais popular aqui, depois disso não.
L: Nunca existiu, nunca teve nada.
V: O último loteamento que teve aqui na região foi o do bairro Cariocas, que a princípio seria
um bairro popular, mas a carência do município foi tão grande que ficou pra classe média.
L: Igual o BNH, era pra ser casa popular, mas quem conseguiu adquirir era só quem tinha um
pouquinho mais...
176
Aparece, então, na conversa a situação dos moradores da sede frente à realidade dos
condomínios. Fala-se em igualdade, em fé, em educação.
R: Nova Lima vai servir pra dar o quê, pra esses condomínios todos que tem em volta de
nós, vai dar suporte pra esses condomínios. Emprego, eles precisam de faxineira, de
jardineiro, porteiro. Eles vão ajudar Nova Lima é dessa forma.
J: O problema desse povo dos condomínios, é que esse povo não desce para comprar na
cidade.
R: Ninguém, ninguém compra nada em Nova Lima.
J: Tinha que ter uma política de atrair esse pessoal pra cá.
R: Eles não têm estrutura.
J: Não atrai. Acaba ficando só o consumo local mesmo.
L: E com isso tirando a tranqüilidade nossa, né. Porque a marginalidade chega junto,
porque através de tudo isto... Passa na televisão: “Nova Lima, condomínio tal...” Bandido que
tá lá no Rio de Janeiro “Opa,vou pra Nova Lima, é que tá a mina!” e vai acabando com nós
aqui. Chega e entra no meio da gente aí, onde muita droga entrando. Vem de fora! Vai
aconchegando aí e daí vai começando...tira a tranquilidade. Eles ficam tranqüilos, por que eles
têm segurança, nós não temos.
S: Acho que não vai ter não, se não cuidar do povo, eu acho que ninguém vai ter
tranqüilidade. Ninguém.
A: Eu tenho observado que tem aparecido muitas pessoas diferentes por aqui.
S: Nós somos ameaçados mas eles também estão aí correndo risco.
R: Eu acho que a coisa funciona assim, eles tão criando um monstro, pra mais tarde
atormentar. Porque esse pessoal, parece que eles não pensam no futuro, não têm sensibilidade
de ver, “olha, tem que ter igualdade, todo mundo tem que caminhar junto, todo mundo”. Essa
diferença que tem aí de renda, isso é que acaba com tudo. Porque o ser humano pra sobreviver
nessa terra ele não precisa de tanto, não.
S: Nem precisa ser igualdade, ele precisa de teto.
R: Isso daí passa a ser uma doença. Querer sempre mais, mais, mais, isso daí passa a
prejudicar todo mundo.
S: Uma doença que prejudica quem sofre a doença e também quem não sofre mas é vítima
dela.
N: Quem tem que alimentar essa doença.
A: A fé também está bem baixa, né.
R: A educação é que vai mudar isso tudo, a educação.
177
Fala-se de uma crise de identidade e na descaracterização da cidade em meio a tantas
mudanças e interferências que não respeitam sua cultura, sua história, seu espaço de vida.
V: Acho até que Nova Lima, a gente pode falar, que a gente passa por uma crise de
identidade. A questão da educação, a questão daquelas coisas nostálgicas, que apesar da gente
ter que evoluir, mas a gente tem que ter uma referência. A gente pode exemplificar
basicamente nos aspectos culturais de uma cidade. Nem sempre pra você ter o novo, o
moderno, a gente tem que exterminar o que é antigo. A gente tem exemplo de construções no
município, a Casa Sales é destruída, os bonserás simples, não existe nenhuma política, por
exemplo “Ô gente, vamos abater no IPTU, pra que você mantenha a fachada da sua casa”. As
casas todas das Quintas, praticamente, são casas que poderiam ter mantido a fachada. E a
gente pega tudo descaracterizado. Não é só lá em cima não, os bonserás também todos
descaracterizados.
J: O próprio centro da cidade muito fechado, os passeios...
R :Os passeios, não tem como o pessoal andar aqui.
V: A própria praça, descaracterizada totalmente.
R: Quê que tem que fazer? “Ô gente nós vamos dar ocê o cimento e o cascalho, pra
arrumar seu passeio?” Vamos ajudar, vamos fazer o passeio, vamos melhorar a situação.
A: Pintar as casas, né.
R: Vamos pintar tudo direitinho,vamos melhorar o aspecto.
S: E a cota do ...
(Todos falam ao mesmo tempo, não dá para distinguir.)
J: Mas sabe qual que é o problema, a questão é de amor pela cidade, as pessoas que trabalham
nas obras da cidade, fazem de qualquer jeito. A reforma da Praça do Mineiro ficou um horror
gente, dá vontade de chorar.
V: Tirou a identidade toda da praça. A Praça Bernardino de Lima também, todo mundo,
minha mãe, meu pai falam dessa voltinha, mulher fica dentro, rodando prum lado, homens por
fora, rodando pro outro. Mas não, “você tem que deixar na terra, construir uma praça toda
moderna com palmeiras”. tudo bem você tem uma praça toda moderna, mas qual que é a
vida nisso? Você tem uma casa histórica, aí você muda a fachada, qual que é a vida disso na
cidade? Você pode pegar essa não identidade dos nossos patrimônios e jogar naquilo que a
gente está se perdendo, nos nossos aspectos naturais, nossas matas aí. Tudo aquilo que é
referência de Nova Lima... Um slogan de Nova Lima foi, Nova Lima Terra do Ouro. Qual
que é a identidade que a gente tem, o quê que está se formando? O quê que vai ser Nova Lima
daqui a 20 anos? Com sinceridade. Se me fizer essa pergunta, eu não sei responder.
178
A Casa do jardim
A discussão passa então a girar em torno do relato de Lúcia sobre a casa de sua
família, que tinha um belo jardim, presente em postais da cidade e citado no artigo
“Humilhação Social : humilhação política” (GONÇALVES FILHO, 2007, p.187).
L: Então, eu vendi aquela casa onde é a Clínica hoje, perto da igreja de Santo Antônio, aquela
casa era nossa. Era o cartão de visita de Nova Lima, quem conheceu pode falar. Eram 400
metros de jardim.
V: Onde eles tiravam aquelas fotografias?
L: Isso. Era um cartão de visitas de Nova Lima, já saiu no Fantástico, já saiu nos jornais.
J: Onde que era, a da esquina, ali no Retiro? A que tinha um jardim na frente?
L: Era da minha mãe, minha mãe que cuidava. O ano inteiro tinha flores. Quando Dr. W.
comprou, nós tivemos que vender porque nós não tínhamos condição de manter a casa.
Tivemos que vender. Os pais morreram, não tinha condição para um ficar, então com o
coração na mão nós vendemos. Ele ia fazer uma clínica, eu falei “que bom, ele vai fazer uma
clínica do coração, num jardim desses, toda pessoa que chegar aqui mal, vai se sentir bem”
Falei com ele: “você vai manter o jardim?” Ele falou assim: “não sei, eu vou pensar”. Acabou.
Ele pôs cimento. Minha filha foi fazer uma entrevista lá, ela falou assim “Dr. W., minha avó
vai vir aqui te puxar o pé”. Porque ele jogou veneno no jardim, as petúnias nasciam de novo.
Elas ficaram anos e anos, tem 14 anos que minha mãe morreu, e as petúnias voltavam. Agora
ele pôs placa de cimento, pra acabar com tudo.
R: Pra não sobreviver. Não faz isso comigo não.
L: Pra você ver, é uma casa, eu tou contando o caso de uma casa, e no conjunto, e no total?
Quer dizer, chegam assim com ambição, porque ficar pondo cimento num lugar tão bonito, e
ainda tratar do coração, eu não sei...
S: Que coração?
J: É muita insensibilidade!
L: Trazer pedra de cimento, tão duro! O pessoal do Retiro fala assim “Nó, vocês acabaram
com o Retiro”. Mas o quê que eu podia fazer, como é que eu vou manter e não dependia de
nós. Os antigos: “Nó que pena, que dó!... É a vida, né.
N: que é a questão da política, se tem uma política no município para preservar essas
coisas, vai ter uma ajuda numa hora dessas, ser visto com outros olhos. Tentar intervir, né.
179
S: É uma questão de educação também, porque com a modernidade, a mídia, e tudo, é a
educação mesmo, eu sei que em país desenvolvido surgem os contra... Então, eu acho que
essa geração, através da mídia, ela começou a perder um pouquinho, a não dar valor. Por
exemplo, móveis. Quê que você faz, um móvel antigo na sua casa, tem que jogar tudo fora,
pôr tudo a perder. Se você tem uma cama boa, bonita, “não, tem que jogar fora, comprar
outra.” Nem sempre o novo vai te atender muito bem e às vezes o velho poderia ser usado.
Mas hoje o consumo, perdeu-se o controle, então não se tem lugar de pôr lixo. Com isso as
pessoas não dão valor, não observam um belo jardim, uma bela louça, é sempre o novo, e
principalmente o que não dá trabalho.
Maura: Prático.
S: Então, o jardim dá trabalho? Ninguém quer ter trabalho. Joga cimento ali, acabou.
V: Planta tem que cuidar, aguar todo dia... Bota cimento!
S: Por incrível que pareça, vem de um médico! Quê que você espera de um médico? Que ele
tenha sensibilidade pra cuidar de um coração. Se ele não sabe olhar um jardim! Olha procê
ver, tem tudo a ver, não tem? Tá ligado uma coisa com a outra.
J: Tá faltando mais apoio do governo..., mesmo.
S: Não sabe admirar um belo jardim, numa noite de luar. Isso pra ele...
L: Não serve pra nada.
S: Não tem valor. Uma coisa vai puxando a outra.
L: No ano passado, no dia das mães, o meu filho, com uma fotografia, mandou fazer um
quadro, que eu tenho na minha casa. Na hora que ele chegou com o quadro, eu me senti
dentro de casa, eu vi os móveis, eu senti minha mãe mexendo. Eu senti dentro da casa, sabe?
A pessoa que pintou, ela pintou numa perfeição, que eu voltei. Minhas meninas, que ainda
tavam pequenas, falaram, “Nó mãe, que saudade da casa de vovó!” Pra nós ficou a casa da
vovó, ficou a casa da mamãe. Mas num todo, tá lá, virou um nada.
Lanche filosófico
Tento então interromper o trabalho para o lanche, mas os participantes não dão sinais
de querer parar com a conversa, que continua animada, versando agora sobre consumo
irresponsável, o lixo, a descartabilidade das coisas no mundo de hoje. Essa temática,
provavelmente foi provocada pela referência à descartabilidade da cultura e do estilo de vida
novalimense frente ao novo padrão imposto, em detrimento de sentimentos, desejos e
interesses.
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Resolvo trazer o lanche para o meio da roda, sem interromper a conversa, que continua
sobre o tema descartabilidade: profissões que desaparecem, embalagens, chegando à questão
da relação entre as classes sociais. O papo evolui para formas de aproximação entre culturas
diversas, sobre o medo, o novo, a quebra de barreiras e o estilo de vida simples que se almeja
alcançar.
R: O povo paga por essa briga nojenta entre os países.
N: A gente paga e não sabe que está pagando.
R: É ser humano gente, é ser humano...
N: Se a gente pegar essas pessoas que têm poder aqui em Nova Lima, que dominam tudo, e
ficar sabendo do dia a dia deles, vamos ver que são pessoas como a gente, que têm
necessidades, tristezas, têm sentimentos.
L: Às vezes são colocados numa posição, completamente diferente do resto da população.
M: São pessoas que estão fazendo o jogo delas ali dentro daquela estrutura.
L: E a gente fazendo o nosso...
R: Se interagissem, né, se as pessoas tivessem sensibilidade para interagir essas culturas,
melhoraria muito. Ia ser uma troca.
J: Ser humano é uma coisa muito doida, não é gente?
R: Você é bonitão, é ricaço, mas tem uma pessoa simplesinha ali que você pode aprender
muita coisa com ela. Mas tem essa separação aí, essa barreira.
N: E o medo, hem? As cancelas, os guardas, vigias de todo jeito, e as câmaras de vigilância...
Cada dia sofistica mais.
R: Mas sabe o quê que é isso? Isso é por causa do medo, medo de um monstro que eles
mesmos criam. Aí ficam cercando esse monstro pra não entrar na casa deles.
L: E não tem como cercar. Eles escorregam mesmo.
J: E a gente tem muito medo, né. A gente sonha, a gente quer batalhar, mas o medo é maior
que tudo.
R: O que o poder faz com a mente do ser humano, como que a pessoa vai, vai, pisa em tudo,
passa por cima de tudo!
V: E como que o medo envelhece, o medo engessa. Vamos supor, a pessoa pelo medo vai se
isolar, viver numa ilha.
R: Cria impérios e mais impérios. Aí vem, vem a doença, aí é que a mente começa a
trabalhar. Porque tudo isso? Quem vai me salvar agora, o meu poder?
V: Como seria se a gente tivesse coragem de desbravar algumas coisas?
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J: Todos aqueles que foram sofreram muito, Tiradentes por exemplo, todo mundo que passou
por isso.
R: Infelizmente o ser humano não tem sensibilidade pra isso não.
J: Nessa questão dessa insensibilidade, o que esacontecendo com o ser humano pra ficar
tão insensível? Você acha que a dia tá fazendo isto? Tem uma parte que está muito
sensível, mas o outro lado tá muito mais.
V: Eu acho que essa quebra de barreira, nos últimos anos, o que a gente viveu, os meios de
transporte, as comunicações evoluíram e facilitou o contato entre culturas, o diferente
aumentou, ele causa medo. Causa a diferença, causa o risco, aquilo que é minha cultura, que
me garante, porque a minha cultura é minha segurança.
J: A gente é muito baseado na segurança, né.
V: Então o novo, tem que saber. Eu acho que as culturas têm que se comunicar de igual pra
igual. Se ela comunicar assim, “eu posso mais que você”, se tiver hierarquia nessa
comunicação entre culturas, é um risco. Se acontecer de forma harmônica, sem hierarquias,
ela pode ser harmoniosa, mas sempre vão existir os fundamentalistas, aquele pessoal que
não enxerga outra coisa, só enxerga esse Deus é o meu, essa terra é minha.
N: Você pode falar assim “o meu é bom, o meu é ótimo”, daí você não precisa falar que o do
outro não presta. Não precisa desmerecer o do outro.
V: Você pode ter uma segurança do seu e reconhecer o do outro.
(Discussão geral sobre o fundamentalismo.)
(Peço para preparar a tela para a apresentação das palavras)
R: Só que agora o mundo sente necessidade de mudança.
L: Ele evoluiu demais e agora chegou no limite.
(Discussão geral sobre a situação crítica do mundo)
V: A pessoa rala, rala, rala a vida inteira, monta um casão, a maior mansão, quando vai
chegando no final da vida, a felicidade do cara é jogar milho pras galinhas. É o que eu quero
pra mim desde cedo, começar cedo, não tem coisa melhor não.
L: É melhor começar cedo, você começa do fim da linha. Eu comprei o meu cantinho.
Sábado passado padre Gouveia foi lá benzer minha gruta, ele falou: “mas é mesmo, isso daqui
é um pedacinho do céu”. É longe, no alto do morro, onde não passa quase ninguém, a
serenata que eu tenho é dos passarinhos, não tem coisa melhor não. Você acordar de manhã,
com aquele sol alto, dia de lua cheia, aquela lua pertinho, sabe. Não tem nada melhor não.
É barulho, é briga, é não sei o quê. Eu que moro em frente um boteco, tem briga, tem não sei
o quê. Não, lá é minha paz.
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V: Eu gosto é de pegar minha bicicleta, pegar minha trilha, tou feliz, eu volto novo.
6.3 Palavras, palavras
Projetei então 24 palavras, extraídas das entrevistas individuais, para que cada um
escolhesse uma para comentar, dizendo por que a escolheu, qual o seu sentimento sobre ela,
dentro do tema abordado. São elas: COTIDIANO, INVASÃO, ESTRANHOS,
CONVIVÊNCIA, BARULHO, MINA, PERDIDOS, METRÓPOLE, TERRITÓRIO,
SUFOCADOS, DESIGUALDADES, PROGRESSO, VIOLÊNCIA, MUROS E CERCAS,
EXPLORAÇÃO, OPORTUNIDADES, MEDO, ESPAÇO, POLUIÇÃO, SEGURANÇA,
TEMPO, TRÂNSITO, MEMÓRIA.
É importante salientar que, das palavras escolhidas pelos participantes, uma,
violência, teve conotação negativa, as outras seis expressando, de forma esperançosa, as
possibilidades de mudança e de novos caminhos.
A primeira palavra, não por acaso, foi território, escolhida por Maura, que quis
salientar a grande extensão territorial e a separação entre os bairros, com destaque para a
situação do Jardim Canadá, seu crescimento e mudança de perfil, com a expulsão da pobreza,
que não consegue mais sobreviver numa região que se elitiza.
Maura: As pessoas chegam perdidas no lugar, por falta de emprego, se não tiver uma
acolhida, ela se sentir assim, pela situação dela, pra começar, é um problema... Esse custo de
vida por ser alto lá também, muitas pessoas não conseguiram ficar, tiveram que voltar.
Chegaram sem condição de estruturar a vida delas, elas não tiveram como ficar, voltaram.
Conheço muita gente que não teve como ficar aqui. Até o que muita gente sabe, muita gente
de favelas, querendo sair de favelas para morar e não conseguiram ficar, porque o custo
de vida é alto, tiveram que sair. Tanto que tá ficando só quem realmente conseguiu se
estabilizar. Até essa estrutura de espaços, de construções inacabadas que a gente vê, tá
totalmente mudando. Tá todo mundo fazendo sua fachada.
Eu acho assim que o bairro, quem sabe possa até futuramente se emancipar. E agora é
o que eu estou falando, é estranho ser um bairro de Nova Lima, por causa, geograficamente.
O que ficou estranho foi o território, a divisão, essa volta toda que dá. Mas se tivesse uma
política pública para olhar mais por esse lado, aglomerar mais, ter uma atenção especial.
Então essa palavra território me chamou atenção pelo diferencial de Nova Lima, que também
vai crescendo.
V: Tem uma estrada que eles estão fazendo que vai sair pertinho ali.
183
M: Então, por esse lado vai ficar mais próximo.
A: Tem até nome de rico a estrada.
V: Via Rio de Peixe.
A: Não gente, é chique, eles falam, estrada “reaaalll”.
R: Estrada Real.
N: Mas a Estrada Real não é essa não, é aquela que passa por Bicalho.
V: É Via Rio de Peixe.
N: Essa vai sair no Jardim Canadá.
L: Pra facilitar vir pra Nova Lima, do Jardim Canadá.
M: Eu fico assim até comovida com o trajeto que os moradores fazem todo dia para estudar,
trabalhar e fico feliz com a possibilidade de poder ser olhado com carinho, é um perigo os
meninos da escola nessa estrada.
A segunda a falar foi Lúcia, que escolheu a palavra convivência:
L: Eu acho que o que nós vamos ter que fazer, de agora pra frente, é conviver com toda essa
estrutura que está chegando. Porque eu acho que condomínios rodeando, nós vamos ficar um
miolinho, se não tiver estrutura pra suportar tudo isso... Nós temos que criar isto entre nós...
R: Descobrir uma boa maneira de lidar com o que tem aí...
L: De estruturar com isso, porque senão vai ficar assim a parte alta, como é, e em baixo
nós vamos virar uma favelinha. Vai ficar os grandes no alto e nós encolhidos em baixo. Eu
acho que é um direito nosso, que nascemos e crescemos aqui, de ter uma estrutura forte pra
sobreviver em Nova Lima. Igual eu falei, não tem como viver aqui. Eu vivi em São Paulo, que
é uma cidade de pedra, lá é pra trabalhar mesmo. Lá não tem esse prazer que a gente tem aqui.
Mas se a gente deixar que a cidade de pedra toma conta de tudo, nós vamos ficar a mesma
coisa. Então eu escolhi a convivência por isto. Nós temos que aprender a conviver.
O debate se estende à convivência com os condomínios e suas desigualdades.
V: Convivência ou a não convivência. Com esses condomínios não convivência, não
sinergia.
R: Porque não vai ter convivência com o pessoal, não tem como você pular a cerca e dizer
“Oi, comé que tá aí?”. Você vai chegar na portaria lá...
V: O cara com uma garrucha na mão.
A: Mas dá pra conviver com nós que somos empregados deles, sabia?
N: Conta pra gente como que é sua convivência, lá.
A: Eu trabalho lá no Condomínio Veredas das Gerais, sabe. Comigo eles são ótimos, tudo de
bom.
184
J: Tem muita gente de Nova Lima morando lá, também.
A: Nós convivemos num meio aqui que mora lá.
R: Mão de obra vai ser aqui de Nova Lima mesmo, condomínio vai...
L: Tomar conta, né.
R: Com certeza.
A: Agora eu notei uma coisa, tudo do pessoal de condomínio aí, os negócios deles é tudo em
Belo Horizonte. Não é aqui não.
L: Nova Lima é para morar, né.
A: Eles trabalham em Belo Horizonte.
L: Compram em Belo Horizonte.
J: Consomem lá.
A: São dezesseis cômodos.
N: Quantas pessoas moram nessa casa de dezesseis cômodos?
A: Duas pessoas, dezesseis cômodos. eu lavo e passo pra ela também, mas tudo incluído
na faxina. Lavo, passo e ainda faxino a casa toda.
R: Você já pensou, duas pessoas, dezesseis cômodos.
(Todos comentam ao mesmo tempo sobre o assunto)
A: O terreno em volta da casa é enorme, é lindo. Eles gostam muito de verde lá.
J: Tem jardim a casa?
A: Tem jardim. Tudo gramado. Lá não tem é muro gente, igual a gente mura.
M: Não precisa, né, porque tem portaria.
V: Tem cerca pra todo lado...
N: O muro que tem lá é invisível.
V: É a famosa “cerca viva”, segurança armado.
A: Eu achava que era porque eles eram muito íntimos.
Alda escolheu a palavra oportunidades, pensando nas restritas oportunidades de
emprego para quem não tem estudo. Relata também sua batalha para voltar a estudar: “Eu
chego em casa pelas dez, vou dormir, no outro dia levantar cedo de novo, trabalhar. Não é
todo mundo que agüenta fazer isto que eu estou fazendo. Mas a gente tem que fazer.”
É a vez de Sara falar sobre cotidiano, traçando caminhos de sensibilidade, de atenção
ao outro e de pequenos gestos renovadores.
S: Com tantas dificuldades a gente tem que valorizar o cotidiano. Ser mais observadores, ser
gentis, semear amor. Viver bem, ter tranqüilidade. Semeando vai florescer. Acho que a
185
valorização do cotidiano é pra gente não virar pessoas áridas, né, que não observa, que não
enxerga nada além do nariz. A gente olha as pessoas, convive, conversa, observa, deixa uma
palavra boa, ou até escuta mais, porque a gente tem o hábito de falar e é praticamente isto. E a
gente vai florescendo...
A partir do grupo se lembrou da característica de bom acolhimento que a cidade
tem, lembrando o antigo aforismo “Quem bebe água do Rego Grande volta sempre.”, hoje em
dia desmoralizado pelo nível de poluição e contaminação do riacho.
A: A senhora que está mais tempo aqui, eles têm costume de dizer que pessoa que chega
aqui e toma água de Nova Lima, sempre que volta.
L: Bebeu a água do Rego Grande... mas a gente não pode beber ela mais! Porque a gente
bebia a água do Rego Grande. Agora não tem como, não dá. (risos).
Valter fala então sobre progresso.
V: Eu acho que essa palavra, o significado que ela tem hoje é muito daquela idéia do ideal
republicano, logo que surgiu, que é sinônimo de crescimento, a qualquer custo. Eu acho que a
gente isso em Nova Lima, a gente teve a duplicação da MG30, tudo ótimo, mas ela foi
feita, na minha opinião, para atender à expansão dos condomínios. A gente vai ter a belíssima
estrada Rio de Peixe, vai ligar Nova Lima ao Jardim Canadá, tava precisando disso, mas o que
vai ter na margem disso? Condomínio. Ou seja, a gente paga imposto, a gente que tá pagando
essa obra e a gente vai ser beneficiado, com certeza, mas dos beneficiados, a gente é o
primeiro a pagar, mas como beneficiado, a gente deve ser o quarto ou quinto. Então eu acho
que o progresso, esse crescimento a qualquer custo, deveria ser modificado como
desenvolvimento. Como conceito a gente trabalha com essa palavra, porque você sabe que a
mineração é importante, vai trabalhar os recursos naturais que não podem ser perdidos, mas
quando você trabalha o desenvolvimento você sabe que as pessoas também são importantes.
Você criar um condomínio é importante economicamente, mas também o pode esquecer do
pessoal que mora na cidade, que precisa, que tá crescendo e precisa de um loteamento. Vo
vai trabalhar o desenvolvimento, vai trabalhar em todas as margens, você não vai
desconsiderar, “Ah, não vou minerar pra não deixar marca”. Precisa, mas precisa haver
harmonia, e quando você fala progresso, a palavra no decorrer dos anos tomou um sentido
pejorativo, crescimento a qualquer custo, é exterminar o que é antigo. Se o significado dela
passar pra desenvolvimento eu vou ser dessa palavra, mas no momento eu não sou do
progresso.
A conversa se dirige para os privilégios dos moradores dos condomínios.
186
L: Agora você sabe que nós pagamos, né, mas quem dento dos condomínios não paga
não, pra eles pagar um imposto, vai levar anos.
V: Tem dez anos de isenção.
L: A diretora da minha escola no Jardim Canadá, ela morava no Alphaville e ela não
pagava imposto. Durante dez anos, tem uma cláusula que durante dez anos ela não paga
nenhum imposto. Quer dizer, é um disparate, né.
V: E o nosso aumenta.
L: Por aí você vê que a coisa é desproporcional em todos os sentidos.
M: A pessoa mais simples ela paga, tem medo de tomar a casa, perder né.
L: Mas eles já constroem, já fazem a construção com essa autorização, né, durante dez anos.
A: Devia ser o contrário, né, porque se a pessoa não vai morar num condomínio é porque não
tem condição de pagar.
V: É triste, a gente a influência do progresso, o progresso trouxe a luz na MG30, mas até
onde a luz da MG-30 vai? Porque ela não se estende até outros bairros, Bela Fama, Nossa
Senhora de Fátima? A luz da MG30 vai até onde os condomínios estão. Porque a luz da
MG30 não vai até Bicalho, não vai até o Galo, ou até Raposos, até Rio Acima? Então ela é
limitada, a iluminação da MG30. É o progresso.
A palavra escolhida por José foi espaço, segundo ele a coisa que mais o incomoda na
cidade, pois se fosse “bem projetado, mais harmonizado, seria a salvação da coisa”. O assunto
despertou acalorada discussão sobre as limitações e a estagnação impostas pelo controle da
mineração sobre os recursos naturais, econômicos e sociais da cidade.
J: Acho que o que falta muito em Nova Lima é a questão do espaço mesmo, esse
“descuidado” que a população tem com o espaço em Nova Lima. Eu, como novalimense,
tenho vergonha de andar em Nova Lima, com turistas, de levar a pessoa num bar, no centro da
cidade, tem que levar a pessoa numa BR por exemplo. O centro podia ter uma coisa melhor,
não tem nada, não tem um café, um bar-café, por exemplo, uma livraria, Nova Lima não tem.
Pra despertar mais essas pessoas que moram nesses lugares mais pobres pra ter um outro
olhar, outra visão da coisa.
N: Você acha que isso tem a ver com o que a gente conversou antes, de não ter espaço pras
coisas aqui, do dinheiro não ter circulado durante grande parte do tempo, as pessoas não
constituíram uma base, uma condição...
A: Não ter dinheiro pra... aquele limite que eu falei, fica naquilo: “Ninguém pode passar
disso não, tá gente, só até aqui.” (risos). É isso mesmo gente.
J: Nova Lima não tem uma livraria bacana, tem que ir em Belo Horizonte...
187
V: Restaurante, por exemplo, com comida internacional. A Morro Velho, pros diretores dela
que vêm aqui, ela mantém um restaurante de cozinha internacional na Pensão Retiro. Agora
nessa questão do espaço, você vê aquele inferno que é ali a Santa Cruz e aquele espaço ocioso
ali da Morro Velho, que ia fazer Gold City, fez um auê, propaganda e até hoje nada, está lá,
outro elefante branco. Quê que vai ser ali?
R: Esperando alguém chegar ali, com muito dinheiro mesmo e...
V: E às vezes vai fazer uma coisa e não vai nem envolver o município, por exemplo, tá aquele
muro lá, ninguém sabe, a gente olha pelas gretas pra ver o quê que tem dentro, não sei se
rolou uma pesquisa pela cidade, pra saber se o projeto deles vai ser harmonioso pra cidade, se
pode desafogar um pouco o Trânsito ali na Santa Cruz, na Bias Fortes, que está um caos.
J: É falta de interesse político mesmo, não sei o que passa na cabeça desse pessoal, Nova
Lima tem anos que tá nisso.
Questiono a concepção de feiúra de uma cidade e os modelos de beleza dominantes.
Segue-se então uma discussão sobre o cuidado com a cidade, as coisas simples que fariam de
Nova Lima um lugar mais bonito e agradável.
N: Às vezes a gente acha feio aquilo que é nosso, nós achamos que a gente é menos do que
quem tem outro padrão e às vezes a beleza precisa é ser cultivada.
J: A gente vai em outros lugares muito simples, mas a gente sente bem e gente faz essas
comparações. Melhor cuidado, cidade pequenininha, mas tudo muito bonitinho. Nova Lima
podia ser assim, e é fácil ser assim, porque que não é assim?
N: Não é pra sofisticar.
J: Não é pra sofisticar, um quintal bonito, plantar uma árvore, fazer uma coisa com classe,
simples. É simples de fazer, mas não faz.
L: Seria um cuidado.
R: Como que Belo Horizonte mudou! Eu tava vendo a planta da Afonso Pena, de não sei
quantos anos...
J: Olha a avenida Paraná, quem viu a Paraná há dez anos atrás, olha como mudou!
V: Praça da Estação! A Praça da Estação era horrível!
R: Como mudou tudo!
N: Mas considerou o ser humano que estava andando ali.
R: Claro. Agora Nova Lima é uma cidade é o quê, sem projeto. Foi construída, mas sem
projeto. Não tem planejamento não, cada um fez uma casinha aqui, fez a outra ali, “tem esse
beco aqui que nós vamos fazer uma rua pros cavalos passar, pras carroças passar”.
V: Mas pode ser bonito isso!
188
J: Lá na Europa eles fazem aquelas casinhas, pintadas todas de branco, eles põem uma
jardineira, recebem gente do mundo inteiro, fica todo mundo encantado. É isso que eu queria
que Nova Lima fosse. O cara chega enfia uma janela aqui, outro enfia uma porta ali, não tem
estética, não tem harmonia. na Europa, eu vi numa revista, eles pegaram uma cama e
colocaram dentro de um estaleiro, é aquela coisa que surpreende, aqui não tem isto. Dava pra
ser assim.
V: Um exemplo prático disto são os ziguezagues
28
. Nenhuma cidade que eu vou tem o tal do
ziguezague, maravilhoso, mas aqui em Nova Lima, tá faltando pedra, bota cimento, asfalto!
R: Deve ter gente querendo asfaltar o ziguezague!
N: teve vereador que apresentou projeto de asfaltar e tirar o ziguezague, foi uma luta pra
gente conseguir barrar.
S: Colocou asfalto em tudo na Boa Vista, quando chega na ponte, quem tinha poder falou que
não, a parte da Casa Grande da Morro Velho não foi asfaltada. Agora com esse escoamento
de água quando chove, a água desce, até na ponte é uma cachoeira!
(Todos falam sobre o assunto ao mesmo tempo)
R: Faz tudo sem planejamento! É tudo política mesmo.
L: E a cidade de Nova Lima não foi projetada pra crescer. Olha que luta que é pra passar uma
lotação naquela Vila Operária, as casas tudo na rua, não tem um espaço pra você pôr nada.
R: Vou mudar esse seu exemplo pra dentro da Mina. Mina de Raposos, parece que as galerias
foram furadas para anão. Então eles furavam de acordo com o tamanho deles, “tou cabendo
aqui, bom”. O que aconteceu? Chegou a necessidade de modernizar a mina, eles falam
“mecanizar a mina”, colocar máquinas pra tirar o minério. Teve lugar na Mina de Raposos,
quando eu trabalhei lá, que teve picar a máquina em três, para poder descer e passar lá,
baixinho. Lá na frente que eles começaram a expandir com um espaço maior.
N: Nova Lima é a mesma coisa.
R: É, como eu tava falando, que não tem jeito, não tem como eu alargar aqui a Santa Cruz,
Bias Fortes, vão fazer isso daqui bonito. Vão colocar passeio...
N: Restringir transporte de caminhão...
R: Sinalizado, direitinho, nós vamos fazer bonito, isso aqui, pra todo mundo que vier aqui ver
a coisa bonita. É histórica, é antiga, mas é uma coisa boa de se ver.
28
Ladeira feita de escadas em ziguezague, construídas para o transporte por burros, presente em alguns pontos
da cidade.
189
R: Não tem uma legislação, “olha gente, aqui não pode fazer isso, isso, isso”. Então precisa de
projeto, de trabalhar em cima disso, ter interesse de melhorar Nova Lima.
J: É um resgate...
R: Ela tem condição de melhorar sim. Ela vai ficar no meio desses condomínios, mas quando
eles ver a gente de cima, vai ver tudo bonito embaixo. “Ah que coisa bonita que eles
fizeram, olha isto, olha aquilo...” E de repente vão até querer descer pra Nova Lima “ô gente
comé que tá aí”. Acho que isso faz parte, muda a história, muda o visual.
V: Muda muita coisa.
R: É coisa simplesinha, pequenininha, mas com um toque muito bem dado se torna bonito,
aconchegante.
J: Não precisa gastar muito não, o negócio é feito com bom gosto mesmo. Pode ser simples.
A nossa sociedade... tem uma escritora, educadora também, que fala muito isto, eu li um livro
muito bonito dela, ela fala que nós somos muito práticos, a nossa sociedade é muito prática,
imediata e isso é muita praticidade mesmo, pode ser de outra forma. Eu estava vendo outro
dia, a escola Emília de Lima está fazendo cem anos. Se eu pudesse dar um presente pra aquela
escola, eu daria tirar aquele asfalto que vai até na porta da escola. Gente, antigamente não era
aquilo, era aquele pé-de-moleque. Isso já é um resgate, eu acho interessante.
S: Isso é um absurdo...
R: Muito bonito, tem condições sim. Mudar esse visual, mudar essa intenção. Sentar com essa
gente, “Tem condição de mudar isso aqui? Vamos mudar.” Ah, precisa de verba, precisa, mas
tem que mudar isso aqui, vamos ver como é que fica.
J: O pouco que você faz, dá um efeito muito grande.
A conversa caminhou para as invasões e o processo de enfavelamento na cidade.
A: Mas hoje em dia o pessoal mais carente, eles tão chegando num lugar, agradou do lugar
ali, “eu vou construir aqui” e faz a casa ali e pronto. perto do campo, você viu?
Levantaram muitos barracos lá, já tem seis casinhas ali. Eles vão levantando e pronto.
S: Se a prefeitura não tiver um controle, se não tiver o controle de seu espaço... A Mineração
Morro Velho tinha o controle sobre tudo.
R: Ela era poderosa, ela apoderou de tudo.
S: E aqui a gente tá muito perto de Sabará, Santa Luzia, só favela.
V: E não era assim Santa Luzia, nem Sabará.
S: E aqui, acho que as favelas não chegaram até aqui porque na Mineração Morro Velho
tinha controle e bota pra rua. E “é meu, é meu”, igual você falou, você levanta a casa hoje, no
outro dia eles tão lá. Até hoje, onde que eu moro, tem uma família que fez um cômodo, na
190
banqueta, no fundão. Pois eles desapropriaram. Eu acho que é uma coisa justa. Agora, se a
prefeitura perder o controle do espaço dela, um invade aqui, outro invade ali, acho que é a
pior forma, a pior dificuldade que se pode enfrentar. Eu acho que a prefeitura, os órgãos
públicos têm que ser vigilantes nessas invasões, senão a cidade se transforma numa favelinha,
mal urbanizada...
A última palavra a ser trabalhada foi violência, escolhida por Ronaldo, que a relaciona
ao mundo das drogas.
R: Eu fico observando e onde isso aí, droga, gera violência. tem muitos casos
acontecidos em Nova Lima por causa disso.
A: Que eles já tão calando, tipo, calando as pessoas.
R: Tá ficando cada vez mais perigoso isso aqui.
V: Não sabia que tava assim, não.
A: Já foi uns dois ou três já, só esse mês passado.
R: O tráfico de drogas expandindo, expandindo com força e fica tudo apertado, esquisito.
no Retiro, eu moro no Retiro, tem um parque ecológico, eu moro a dois minutos do parque.
Eu ando no parque eu vejo ali, eu tou cansado de ver, eu ando praqueles lados pra ver as
bocas de fumo, tem muita boca de fumo.
J: Aquele parque fica aberto, eles fecham numa certa hora?
R: Não é um parque, o é porteira fechada, fizeram uma cerca lá, arrancaram o portão. Não
tem vigilante, não tem nada. quem vai caminhar às vezes correndo até risco, que a
pessoa sai duma mata daquela, sai dum beco daquele, cai na banqueta drogado. A pessoa
fazendo caminhada de repente pode ser até agredido... Não vai ter jeito não. Isso daqui vai
tomar conta se continuar do jeito que tá... Nós tamos falando de uma cidade pacata, com
disciplina, pá, pá, pá, até quando?
M: Não serve de consolo não, mas...
R: Eu tenho é desses adolescentes que tão por aí, usando droga, essas coisas, não tem um
centro de recuperação em Nova Lima que você fala assim “Ó fulano de tal usando, vão
colocar num lugar assim pra recuperar”. Não existe.
S: Mas eu acho que isso também vem do estímulo de cultura, entendeu?
A: Eu acho que tem, não sei onde é. Só que tem um problema, é trinta no máximo, pode
ficar trinta pessoas lá. É lotado.
J: É uma ONG?
R: É público.
A: Não, tem que pagar. É um salário.
191
R: Existe uma controvérsia. Eles falam que a pessoa tem que querer, não é Nina, a pessoa tem
que querer. Se ela não quiser ela não vai, ela continua. E você acha que as pessoas que tão
nessa vida vão querer? Teria que usar uma outra maneira de tratar dessas pessoas. Sabe o quê
que acontece, isso vai virar uma epidemia.
A: Porque é triste, é duro ver a pessoa assim se acabando.
R: Eu fico com dó é do futuro do país, porque, quem vai dirigir esse país? Será que o cara que
vai estar lá na frente, dirigindo o país, será que ele vai tá com a carreirinha de pó pra cheirar lá
na mesa? Porque já vai pra esse caminho!
Encerro o trabalho, pois ultrapassamos o horário combinado e os participantes da
próxima reunião a ser feita no local já esperam algum tempo. Combinamos novos
encontros para retomar o tema e para um retorno com relação à dissertação.
N: Vocês gostariam de encontrar uma outra vez pra gente conversar?
R: Ô, quando marcar, estamos aí...
L: Um papo tão gostoso, pra gente poder por pra fora o que a gente sente, né.
N: Ter outras formas de falar dessas mesmas coisas, criar outras maneiras.
R: De repente, desses encontros pode surgir alguma solução. Quem sabe, a gente vai colhendo
informações, saber realmente o que está acontecendo e através disto a gente pode procurar
um caminho pra mudar alguma coisa.
V: Se você quiser, eu tenho umas fotos de Nova Lima antiga, tenho muitas.
N: José, você também falou que tem foto, lá do Geraldo Mingau.
V: Das minhas trilhas de bike, também...
N: Então, quem sabe a gente reúne pra ver essas fotos e conversar sobre isto. Quando?
L: Quando for melhor pra você.
N: Se outra pessoa promover, por exemplo, montar o Power Point, pode ser?
V: Tá certo, pode ser.
N: Eu posso ficar por conta de trazer alguma técnica pra movimentar. Muito obrigada, gente.
L: Isso só faz crescer.
A: Eu adorei, aprendi um tantão de coisa com vocês.
(Conversa geral, perguntas sobre a vida pessoal).
192
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O movimento empreendido nessa pesquisa me levou a conhecer, em profundidade,
aspectos da história de Nova Lima ligados à sua trajetória como cidade operária e seus
desdobramentos, sua (trans)formação em cidade dos condomínios e os processos de
subjetivação que nessa passagem se produziram. As questões relativas à modernidade e ao
capitalismo contemporâneo, em sua relação com a grande cidade, que se expande,
metropolizando os arredores, se mostraram conectadas às questões espaço-ambientais
características do território novalimense, monopolizado, recortado, segmentado.
As falas dos moradores entrevistados, aliadas às minhas percepções e concepções,
completaram a montagem do mapa em que as macro-influências se misturam com as
micropolíticas do cotidiano, os pequenos gestos, o exercício da cidadania, as expectativas, as
vontades. Um mapa peculiar como tantos outros que poderiam ser montados por outros
caminhos.
As rápidas mudanças, que se desencadearam nessa região e no mundo desde que esse
projeto foi construído (2006), trazem o risco de que alguns dados e análises se mostrem
desatualizados, apesar dos esforços empreendidos para recompor certos trechos do trabalho.
Alguns pontos me parecem importantes e devem ser ressaltados, como avanços dentro
do campo pesquisado e como caminhos possíveis, caracterizados por:
- Abrir possibilidades de novos estudos e pesquisas a partir das discussões,
levantamentos e relatos aqui colocados lado a lado, em conexão.
- Ter se constituído em dispositivo de escuta e ampliação de vozes não ouvidas pelas
instâncias oficiais, agenciando encontros, reflexões, tomadas de consistência de afetos,
afetações, saberes e fazeres das muitas “nova limas”.
- Poder funcionar como base para futuras ações e movimentos de politização do
cotidiano e de retomada de uma participação cidadã.
- Exercitar metodologias inventivas, apropriadas ao traçado proposto, aderindo, na
prática, à condução rizomática da pesquisa, trabalhando por conexões, entradas múltiplas
para uma certa linearidade. O livro Cartografia e Devires, organizado por Tânia Galli
Fonseca e Patrícia Kirst foi um bom companheiro nesse exercício.
O rumo e os percursos do trabalho foram impulsionados por múltiplas instâncias: uma
fala, uma foto, uma memória, uma demanda, uma teoria. Uns e outros, por conexão e
contágio, se enredaram e se puseram em agenciamento, construindo novas trilhas, pontes,
193
atalhos. Tudo isso funcionou como motor agenciador de movimentos e entusiasmo nos
momentos de cansaço e aridez.
Se, de início, imaginei ter que realizar uma grande investigação documental, ela foi
reduzida por ter encontrado o excelente material produzido pelo grupo de pesquisadores
ligados à UFMG e à PUC-Minas, apresentado em muitos artigos e no livro Novas Periferias
Metropolitanas, organizado por Heloísa de Moura Costa, fonte de informação e
aprofundamento das questões espaço-ambientais que me inquietavam.
A falta de dados no município, ou sua indisponibilidade, me deixou sem algumas
informações importantes, como, por exemplo, a informação atualizada sobre o número de
condomínios instalados no município e a área que ocupam. Essa e outras lacunas estão
certamente conjugadas com alguns excessos, duplicações, redundâncias, que não pude
perceber ou optei por manter que as sutis diferenças, nuances delicadas que conferem sabor
ao texto, me pareceram importantes como registro da riqueza do tema.
Ensaiando uma síntese
É necessário comentar e ordenar alguns aspectos, que se destacaram no desenrolar de
todo processo, seja na pesquisa empírica ou no levantamento de dados e informações.
O grande problema, a questão fundamental para o morador de Nova Lima está ligada
à questão do espaço: à desigualdade de sua distribuição, ao estrangulamento da sede, à
restrição de acesso ao território, às segregações. Também à privatização de espaços públicos e
à dificuldade dos filhos de Nova Lima se fixarem na cidade, pelo alto custo da terra e dos
imóveis. A questão espacial atravessa toda a vida da cidade, as atividades de cultura e lazer, o
convívio, as possibilidades de encontro.
Percebe-se uma revolta, um clamor generalizado com relação à discrepância entre o
espaço destinado aos condomínios e o que sobrou para os moradores da sede, além de se
criticar bastante os altos investimentos públicos para favorecer os grandes empreendimentos
privados. O sentimento de perda perpassa os relatos: perda de espaço, do contato com a
natureza, de um estilo de vida e convívio, da saúde mental.
O cidadão novalimense se sente pressionado pela cidade grande, “de pedra”, que
chega à sua porta, ao seu cotidiano, com a perda de padrões de convivência e de qualidade de
vida cultivados pela população. Pressionados pela perda dos espaços de circulação, lazer e
contato com a natureza, dilapidada e cercada pelos grandes empreendimentos imobiliários;
pressionados pelo acirramento das desigualdades e da segregação herdados do processo de
194
colonização e exploração mineral; pressionados pela expansão urbana da capital, os habitantes
de Nova Lima se angustiam e adoecem. Aumentam a drogadicção, a depressão, as taxas de
suicídio.
A divisão cidade alta/cidade baixa, oriunda da estratificação instalada pela colonização
britânica e atualizada na separação condomínios/sede foi bastante comentada, assim como a
falta de planejamento e o despreparo da cidade para enfrentar o crescimento acelerado que
vivencia, se mencionando um despreparo do poder público, das empresas e da população para
as novas realidades.
em muitas falas uma negação da cidade grande e uma necessidade de reafirmar
modos de vida bucólicos, rurais, simples, despretensiosos, que constituíram as maneiras de ser
novalimense. Ao mesmo tempo se expressa um estado de confusão entre Nova Lima e Belo
Horizonte, uma dissolução dos limites entre os dois municípios, uma mistura dos problemas
de ambos. Não se distinguem mais os contornos de Nova Lima. Uma cidade pequena? Uma
cidade enorme?
A visão que se tem da cidade é ambígua, inconsistente, ambivalente. incertezas,
desamparo, espanto. O contraste entre a vida interiorana que ainda se cultiva e uma nova
cidade, que se diz “de primeiro mundo”, com ritmos e espaços de metrópole, colabora para
que o novalimense se encontre perdido nesse grande território que, no entanto, não oferece
áreas disponíveis para os nativos. O novalimense, acostumado às práticas de acolhida e ao
convívio quase familiar com seus vizinhos, estranha a postura dos novos moradores dos
condomínios, avessos aos contatos e aos laços de amizade. Tentam entender e propõe saídas
para tal situação.
A descaracterização da cidade, de sua arquitetura, de suas praças, foi bastante
destacada, se enfatizando a importância do cuidado com os espaços públicos e com o
patrimônio cultural, para que o cidadão se sinta valorizado e se promovam novas formas de
contato e participação social. Deseja-se preservar uma história demarcada no espaço da
cidade, mesmo que essa história tenha sido de dor e humilhação. É a partir desses marcos que
as singularidades se afirmam e podem se recompor frente à massificação de um sistema de
signos homogeneizante, acachapante, sem história.
Durante a pesquisa as referências à mineração fizeram emergir lembranças, histórias
cheias de resignada ironia, trechos da vida de cada um e de toda coletividade. Uma ferida
viva, mobilizadora de lembranças, atitudes, revolta, orgulho, opiniões.
Apesar das diferentes posturas, os moradores da sede comungaram do sentimento de
amor pela cidade, misturado à vergonha e à indignação com o descaso pelos moradores
195
antigos e pelas raízes da cidade, além da esperança em mudanças conquistadas através da
participação e empenho da população.
Desdobramentos e continuidades
Já se disse que não há pesquisa sem intervenção, que estaria presente, em graus
diversos, em todas as pesquisas. Neste caso isto aconteceu desde quando cada entrevistado se
debruçou sobre o tema e pôde ordenar suas idéias sobre os tópicos propostos no roteiro, que
nesse aspecto foi didático. Muitos entrevistados expressaram o desejo de dar continuidade a
essa possibilidade de falar e discutir as questões que atravessam o viver em Nova Lima. Mais
ainda no grupo focal que, a partir da sinergia entre os componentes e a pesquisadora,
formulou claramente a disposição de dar continuidade aos encontros, chegando a se delinear
como seriam agenciados.
Surpreendi-me com o envolvimento dos entrevistados e com a pulsação do tema no
seu dia-a-dia. O seu potencial de movimentação e sua vontade de continuar falando sobre tudo
isto me assustou um pouco, que não tinha uma proposta clara a esse respeito. Minha
trajetória militante influiu, certamente, nessa postura dos participantes, que alguns
enxergam em mim uma possível organizadora de grupos de atuação que busquem saídas pra
os impasses e incômodos apontados pela pesquisa.
Junto ao meu desejo de ver se desenrolarem novas possibilidades de ação e re-
existência na cidade, é prudente avaliar de que lugar eu estaria atuando e com que
desdobramentos. Já está, entretanto, acertado com o grupo, um encontro para comunicação de
“resultados” da pesquisa e discussão dos efeitos provocados pela sua articulação. A partir daí
poderão se produzir oportunidades de conexões e agenciamentos, re-territorializações
desejantes na cidade que se transforma.
“Mas o que queremos enfatizar até o grito é que também infinitas cidades virtuais,
que apenas esperam fora do tempo chamado útil[...] o momento de atualizar-se como
acontecimentos para revolucionar o espaço chamado urbano.” (BAREMBLITT, 1997, p. 15).
Caminhos Possíveis
Poderíamos dizer, num trocadilho, que os problemas de Nova Lima são O Capital e A
Capital. As soluções almejadas passariam, então, por vários níveis, desde as modificações no
capitalismo globalitário, nos processos de massificação e nos ritmos da metrópole até a
196
alteração da grave questão territorial da região. Passariam também pela instauração de um
“querer viver juntos” que não aconteça pela acomodação acrítica às desigualdades sociais,
nem pela despolitização do cotidiano e se encaminhe à busca das relações gentis e respeitosas
entre cidadãos, companheiros de viagem. Repolitização dos laços sociais, poderes públicos
que representem os cidadãos, seus direitos, suas necessidades: uma fórmula óbvia e pouco
praticada.
Que outros rumos Nova Lima e seus moradores podem apontar para romper com o
silêncio secular, com as impossibilidades instaladas no seu território? saídas para o medo,
a apatia, a alienação, para os estranhamentos e a auto-repressão, que não sejam através do
deboche, da piada, da ironia? Que novos traçados podem romper esses cercados, esse
aprisionamento?
Se Nova Lima vive transformações que impedem a produção de subjetividades livres e
potentes, através de cerceamentos que vão do nível espacial ao dos territórios existenciais, é
urgente a instauração de autênticas transformações produtoras de autoconfiança, de liberdade
de movimentos, de alegria. Que se construa um outro novo nas fissuras do sistema, diferente
do novo fabricado para promover a repetição e o aprofundamento das desigualdades. Desejos,
memórias, reflexões, tudo deve estar disponível para que haja possibilidade de rearticulações,
inclusive as político-econômicas, que propiciem a fluência da vida.
Buscar as virtualidades da cidade. Recuperar a capacidade de expressão do
novalimense, a possibilidade de falar, dizer o que pensa, o que sente. Fazer acontecer coisas
na cidade, através da arte, da política, do exercício do pensamento.
Recuperar a possibilidade de contato com a natureza, com o território negado e
expropriado, com territórios de vida, com o próprio corpo. Recompor laços sociais que se
esgarçaram, romper as barreiras de um individualismo narcísico. Se organizar coletivamente,
reinstaurar platôs de movimentações solidárias, associações entre singularidades que se
afinam e buscam exercitar formas de urbanidade e civilidade.
Fazer a vida acontecer fora das estereotipias, dos lugares marcados, da reprodução dos
moldes capitalistas, do consumismo vazio, dos contatos despotencializados, das falsificações.
Afirmar posturas éticas e estéticas de uma vida baseada na alegria.
Utopias ativas, virtualidades de uma cidade que quer se reinventar, sobre as carcaças
da exploração mineral, da exploração do homem, da invasão de seus espaços de vida.
Exercício cotidiano de cada um e de todos nós.
197
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203
APÊNDICE A
Glossário
Bonserás: habitações constituídas de várias unidades conjugadas, grandes barracões, com
instalações sanitárias e tanques coletivos, destinadas aos trabalhadores menos qualificados.
Carreiros: responsáveis por encher com a pá e empurrar os carros onde é transportado o
minério, se autodenominando “ralé da mina”.
Chocos: Blocos de minério que não caem durante a dinamitação, ficando meio soltos e
podendo desabar posteriormente, soterrando os trabalhadores.
Feitores: chefes de turma, responsáveis pela fiscalização e execução do trabalho no realce e
por “limpar o choco”.
Fogo falhado: dinamite não detonada que fica no interior da pedra, que explodia quando
tocada pela perfuratriz, causando, quase sempre, a morte do mineiro.
Footing: passeio noturno, “depois da reza”, em que moças e rapazes giravam em direções
diferentes em torno da praça da matriz.
Gaiola: elevadores abertos que transportavam mineiros, terra e minério, nas suas subidas e
descidas dentro da mina.
Horizonte: campo de trabalho, com sua trama de galerias e realces, que se abria a cada
“stop”, parada das gaiolas e carros de transporte.
Panelas de gás: acúmulo de gás natural encontrado nas rochas, que se incendiava no contato
com a chama do lampião de carbureto do trabalhador.
Pica-pau: carpinteiro que trabalhava com as escoras e dormentes de madeira dentro da mina.
Realce: salão, tipo caverna, de onde se extrai o minério.
204
Scones: pequenos bolos que acompanhavam o ritual do chá das cinco.
Sambado: se diz pejorativamente do mineiro que, adoecido com o excesso de calor e com a
falta de ar puro, tem transtornos motores e neurológicos que obrigam a sua retirada do
ambiente de trabalho.
Staff: Direção e técnicos graduados.
205
APÊNDICE B
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS INDIVIDUAIS
1 COMO VOCÊ PERCEBE, SENTE A NOVA LIMA DE HOJE? E A DO PASSADO?
2 COMO É VIVER AQUI ATUALMENTE?
3 O QUE VOCÊ SENTE QUE MUDOU? / FALE SOBRE AS MUDANÇAS QUE
ACONTECERAM NA CIDADE. / FORMAS DE VIDA NA CIDADE: O QUE MUDOU? O
QUE PERMANECE IGUAL?
4 FALE SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES:
- ECONÔMICAS / SOBREVIVÊNCIA / TRABALHO
- CONSUMO / PADRÃO DE VIDA
- DIVISÃO ESPACIAL DA CIDADE / HABITAÇÃO
- MEIO AMBIENTE / ESPAÇOS DE CONTATO COM A NATUREZA /
PAISAGENS
- CONVÍVIO SOCIAL / CULTURA / USO DO ESPAÇO PARA LAZER /
INDIVIDUALISMO
- SEGURANÇA / ESPAÇOS PÚBLICOS / RUAS E ESTRADAS
- PROBLEMAS SOCIAIS / MOVIMENTOS DA SOCIEDADE
5 O QUE VOCÊ PENSA DESSAS MUDANÇAS?
6 FALE COMO PERCEBE O TAMANHO DE NOVA LIMA.
7 VOCÊ PERCEBE A CHEGADA DA CIDADE GRANDE? EM QUE ASPECTOS?
8 COMO VOCÊ SE SENTE COM RELAÇÃO A ISTO?
206
9 COMO INFLUENCIA A VIDA DAS PESSOAS? E A SOCIEDADE COMO UM
TODO? VANTAGENS E PROBLEMAS.
10 VOCÊ VÊ RELAÇÃO ENTRE O QUE ESTÁ ACONTECENDO EM NOVA LIMA E
O QUE ACONTECE NO MUNDO? FALE SOBRE ISTO.
11 FALE SOBRE O CIDADÃO NOVALIMENSE DE HOJE E DE ALGUM TEMPO
ATRÁS. E AS CRIANÇAS? E OS ADOLESCENTES? O QUE MARCA O
NOVALIMENSE?
12 QUAIS SÃO SUAS EXPECTATIVAS PARA A CIDADE? QUAIS AS SOLUÇÕES E
PERSPECTIVAS?
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