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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
CURSO DE DOUTORADO
ANDREYA MENDES DE ALMEIDA SCHERER NAVARRO
A CULTURA DA INDIFERENÇA
Ground Zero da Barbárie
Rio de Janeiro
Outubro, 2009
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Livros Grátis
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
CURSO DE DOUTORADO
ANDREYA MENDES DE ALMEIDA SCHERER NAVARRO
A CULTURA DA INDIFERENÇA
Ground Zero da Barbárie
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título
de Doutor em Psicologia Social.
Orientador: Prof. Dra. Regina Gloria Nunes Andrade
Rio de Janeiro
Outubro, 2009
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
NAVARRO, Andreya Mendes de Almeida Scherer.
A Cultura da Indiferença / Andreya Mendes de
Almeida Scherer Navarro, 2009 - 236 f.
Orientadora: Regina Gloria Andrade.
Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Instituto de Psicologia.Bibliografia: f 213 -226
1. Psicologia Social – Teses. 2.Social – Teses. 3. Cultura da
Indiferença – Teses. I. Andrade, Regina Gloria. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Psicologia. III. Título.
NAVARRO, Andreya Mendes de Almeida Scherer. A cultura da indiferença (Ground Zero
da Barbárie). Tese de Doutorado em Psicologia Social, UERJ, Departamento de Pós-
Graduação em Psicologia Social, novembro, 2009. 249 f.
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________
Profª. Drª. REGINA GLÓRIA NUNES ANDRADE
ORIENTADORA (UERJ)
_______________________________________________________
Prof. Dr. MUNIZ SODRÉ DE ARAÚJO CABRAL
(ECO /UFRJ)
___________________________________________________________
Prof. Dr. JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES
(DIREITO/UFMG)
___________________________________________________________
Prof. Dr. GERALDO LUIZ MASCARENHAS PRADO
(DIREITO/UFRJ)
______________________________________________________________
Profª. Drª. TANIA MARIA DE FREITAS BARROS MACIEL
(EICOS/UNESCO)
UFRJ
Examinada em: 13 de Novembro de 2009
Conceito: APROVADA
A todos os Pais
A todos os Filhos
que perderam seus entes queridos
vitimados pela indiferença das guerras
e do terrorismo em todas as suas formas.
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas me acompanharam no trajeto do Curso de Doutorado e, em especial, no
processo desta tese. Gostaria, neste momento, não de agradecer-lhes a solidariedade e os
incentivos, como também de prestar-lhes homenagem.
Profª. Drª. REGINA GLÓRIA NUNES ANDRADE, por abrir meus olhos para um mundo
novo e plural, por sua disponibilidade irrestrita, imensa generosidade, orientação exigente e
criativa e pelo privilégio de grandes e inesquecíveis encontros.
Profª. Drª. SUELENA WERNECK PEREIRA, por me compreender além das palavras. Asas
que me erguem.
Prof. Dr. JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES, por suas ideias sempre brilhantes e
inquietantes, pelo carinho calado e pelo jeito simples de ser genial.
SONIA BAHIA, o olhar mais atento .Os heróis da Resistência, por permanecerem ao meu
lado nas horas mais escuras antes do amanhecer.
Meus pais, ANTONIO LUIZ e SUELY, cujos exemplos de vida permitiram que eu
convivesse com a busca incansável da justiça, com alteridade radical e jamais fugisse ao bom
combate. A vocês, minha gratidão maior e afeto infinito.
Meu tio, DOM LUCIANO PEDRO MENDES DE ALMEIDA (in memoriam), a bondade que
desarma o preconceito e a indiferença.
Meu marido, CARLOS ALBERTO, em quem reconheço minha verdadeira face.
Meus filhos, KAROL e RAPHAEL, eternidade e amor incondicional.
Meus irmãos, FLAVYA e ANTONIO LUIZ JR, força e incentivo.
Meus ALUNOS, fé e esperança de um mundo melhor.
Meus “anjos da guarda”: MARCO ANTÔNIO DA SILVA, MONIQUE IMPIERI e ANÍBAL
WERNECK e aos demais membros do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social -
PPGPS - da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, pela competência, cuidado e
colaboração especial.
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro FAPERJ, que me concedeu
uma bolsa durante a realização deste doutorado.
“Pois aqui está a minha vida.
Pronta para ser usada (...)
Não tenho caminho novo.
O que tenho de novo é o jeito de caminhar.
Aprendi (o caminho me ensinou)
a caminhar cantando como convém a mim
e aos que vão comigo.
Pois já não vou sozinho”.
Thiago de Mello.
Santiago do Chile 1964.
Ai miserável de mim e infeliz!
Apurar, ó céus, pretendo,
já que me tratais assim,
que delito cometi
contra vós outros, nascendo;
que, se nasci, já entendo
qual delito hei cometido:
bastante causa há servido
vossa justiça e rigor,
pois que o delito maior
do homem é ter nascido.
E só quisera saber,
para apurar males meus
deixando de parte, ó céus,
o delito de nascer,
em que vos pude ofender
por me castigardes mais?
Não nasceram os demais?
Pois se eles também nasceram,
que privilégios tiveram
como eu não gozei jamais?
Nasce a ave, e com as graças
que lhe dão beleza suma,
apenas é flor de pluma,
ou ramalhete com asas,
quando as etéreas plagas
corta com velocidade,
negando-se à piedade
do ninho que deixa em calma:
só eu, que tenho mais alma,
tenho menos liberdade?
Nasce a fera, e com a pele
que desenham manchas belas,
apenas signo é de estrelas
graças ao douto pincel,
quando atrevida e cruel,
a humana necessidade
lhe ensina a ter crueldade,
monstro de seu labirinto:
só eu, com melhor instinto,
tenho menos liberdade?
Nasce o peixe, e não respira,
aborto de ovas e lamas,
e apenas barco de escamas
por sobre as ondas se mira,
quando a toda a parte gira,
num medir da imensidade
com a tanta capacidade
que lhe dá o centro frio:
só eu, com mais alvedrio,
tenho menos liberdade?
Nasce o arroio, uma cobra
que entre as flores se desata,
e apenas, serpente de prata,
por entre as flores se desdobra,
já, cantor, celebra a obra
da natura em piedade
que lhe dá a majestade
do campo aberto à descida:
só eu que tenho mais vida,
tenho menos liberdade?
Em chegando a esta paixão
um vulcão, um Etna feito,
quisera arrancar do peito
pedaços do coração.
Que lei, justiça, ou razão,
nega aos homens - ó céu grave!
privilégio tão suave,
exceção tão principal,
que Deus a deu a um cristal,
ao peixe, à fera, e a uma ave?
MONÓLOGO DE SEGISMUNDO
(LA VIDA ES SUEÑO, Ato I, Cena I)
de Pedro Calderón de la Barca
1635
RESUMO
A presente TESE DE DOUTORADO teve como objetos de investigação a cultura da
indiferença na contemporaneidade, os múltiplos reflexos dos ataques terroristas de 11 de
setembro de 2001 e o terrorismo global. O acontecimento de 11 de setembro de 2001, nos
Estados Unidos da América, revelou-se como o marco inicial da barbárie atual, expondo as
fraturas de um mundo desigual e ferido mortalmente pela indiferença moral. Minha primeira
hipótese sobre a cultura da indiferença reside na percepção de que o terrorismo, a intolerância,
o medo e a indiferença constituem os sintomas atuais do mal estar na civilização, tal como
definido por Freud em sua obra homônima “O mal estar da civilização”, de 1929, na qual ele
evidencia o sofrimento humano diante da apatia, das guerras e da violência social. Numa
segunda hipótese, viso a confirmar que, dentre os sintomas citados, a indiferença é uma
patologia social e a marca de uma sociedade consumista e predatória, na qual seus sujeitos
manifestam alheamento em relação ao outro, isto é, atitudes de distanciamento, na qual a
hostilidade ou o vivido persecutório são substituídos pela desqualificação do sujeito como ser
moral, gerando violência e mais indiferença. Utilizamos, como método de investigação
bibliográfica, a pesquisa analítica transdiciplinar, apoiada no pensamento complexo. A
fundamentação teórica baseou-se em ampla bibliografia, onde figuram autores como Zizek,
Lévinas, Baudrillard, Badiou, Sontag, Lipovetsky, Derrida, Morin., Bauman, Levi, entre
outros teóricos das ciências sociais. Quatro conceitos-chave foram articulados ao longo do
trabalho e nortearam a análise criteriosa e interpretativa de livros, periódicos, textos legais,
documentos, constituições, sites, estatutos, normas, filmes e documentários: a cultura da
indiferença; o acontecimento de 11 de setembro de 2001 e seus efeitos sócio-políticos; e o
terrorismo global.
Palavras chave: Cultura; Indiferença; Terrorismo; 11 de setembro; Ética.
ABSTRACT
The following Ph.D. thesis points up the culture of indifference in contemporary times, the
multiple reflections of the terrorist attacks of September 11
th
, 2001 and the global terrorism as
objects of research. The September 11
th
event, has proved to be the landmark for the current
barbarism, exposing therefore the fractures of an unequal and mortally wounded by the moral
indifference world. My first hypothesis related to the culture of indifference is based on the
perception that terrorism, intolerance, fear and indifference consist in the current symptoms of
malaise present in the human civilization, as defined by Freud in his 1929’s "Civilization and
its discontents”, in which he successfully shows the human suffering regarding the apathy,
wars and social violence. Another view would refer to the acceptance of indifference, among
the symptoms above, as a social pathology as well as the prove of a purchaser and predatory
society, in which the authors express their "alienation in relation to the others, as moral beings
i.e. attitudes of detachment, whose experienced hostility or persecution are replaced by the
disqualification of the author, resulting in more violence and indifference. This study was
conducted at the Social Psychology Pos-Graduate Center, in the State University of Rio de
Janeiro. The investigation method used is based on the literature search-analytical
transdisciplinary supported by complexity. The theoretical foundation was based on extensive
bibliography, featuring authors such as Zizek, Lévinas, Baudrillard, Badiou, Sontag,
Lipovetsky, Derrida, Morin, Bauman, Levi and other theorists of social sciences. Four key
concepts were articulated throughout the work and guided the theoretical aspects as well as
the careful analysis and interpretation of books, periodicals, legal texts, documents,
constitutions, sites, statutes, laws, films and documentaries: the culture of indifference, the
event of September 11
th
, 2001 as well as its socio-political effects and the global terrorism.
Keywords: Culture; Indifference; Terrorism; September 11
th
.; Ethic.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................
CAPÍTULO I – GROUND ZERO DA INDIFERENÇA...............................
1.1 11 de Setembro de 2001: Além do Princípio da Realidade....................
1.2 Ideologia e Indiferença..............................................................................
1.3 Sentidos da Indiferença.............................................................................
1.3.1 O Sentido Real....................................................................................
1.3.2 O Sentido Político e Econômico.........................................................
1.3.3 O Sentido Histórico.............................................................................
1.4 A Indiferença do Terrorismo....................................................................
CAPÍTULO II – TERROR E BARBÁRIE....................................................
2.1 A História do Terror..................................................................................
2.2 Do Direito e da Justiça...............................................................................
2.3 Geopolitica do Terrorismo Global............................................................
2.4 Terrorismo Cotidiano................................................................................
CAPÍTULO III – FRAGMENTOS DA INDIFERENÇA SOCIAL............
3.1 Muito Além do Mal-Estar.........................................................................
3.2 Sob o Olhar de Eros ou Sobre a Dificuldade de Amar o
Próximo.............................................................................................................
3.3 Alienação do Consumo e o Marketing da Indiferença...........................
3.4 Internet: Fuga e Fascínio...........................................................................
CAPÍTULO IV – ESTRATÉGIAS DA DESUMANIZAÇÃO.....................
4.1 Memória, Reconstrução e Literatura.......................................................
4.2 Indiferença e Esquecimento Humano......................................................
4.3 Terror, Cinema e Ideologia.......................................................................
4.4: Olhar Indiferente e Reumanização.........................................................
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18
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105
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131
CAPÍTULO V – ÉTICA DA RESISTÊNCIA...............................................
5.1 O Sujeito Pós-11 de Setembro...................................................................
5.2 Da Tolerância à Indiferença......................................................................
5.3 O Resgate Ético...........................................................................................
5.4 Vulnerabilidades da Autonomia...............................................................
CAPÍTULO VI – A CULTURA DA INDIFERENÇA..................................
6.1 Frágeis entre os Frágeis..............................................................................
6.2 A Totalidade do Eu Definindo Identidade, Alteridade e
Singularidade.....................................................................................................
6.3 O Poder da Impotência..............................................................................
6.3.1 O Poder................................................................................................
6.3.2 A Impotência.......................................................................................
6.4 Barack Obama: Muito Além da Indiferença...........................................
6.4.1 Os Anos da Faculdade.........................................................................
6.4.2 Carreira Política...................................................................................
CONCLUSÃO..................................................................................................
BIBLIOGRAFIA...............................................................................................
HEMEROGRAFIA..........................................................................................
FILMOGRAFIA...............................................................................................
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153
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230
INTRODUÇÃO
O objeto de estudo principal desta tese é a Cultura da Indiferença como Ground Zero
da barbárie humana. Há anos tenho refletido sobre os efeitos que o despedaçamento da
sociedade atual tem provocado, levando o ser humano a produzir uma cultura da indiferença,
identificada não só em certos tipos de atitude, mas também pela expressão de ideias e posturas
que nos afastam das verdadeiras questões nas quais estamos submersos.
Como jurista, assisto a absurdos sociais, sintetizados na citação do historiador francês
Lucien Febvre (1942), no Avant la guerre: “pour toujours, peur par tous” (para sempre,
medo em toda parte), que me mobiliza profundamente a procurar respostas às minhas
indagações. Como pesquisadora de psicologia social, discuto a problemática da passagem do
registro da natureza para o da cultura, tratada no discurso freudiano como fundamental para o
surgimento do sujeito social Partindo da análise preliminar da entrada de Freud na discussão
da filogênese, passo por uma discussão da teoria do narcisismo e através desta entra em cena a
pulsão de morte. Analiso esse conceito em sua dimensão essencial: a agressividade.
Considerando o contexto de reformulações no aparelho psíquico, vemos no discurso freudiano
o sujeito como "inimigo em potencial da civilização”, a cultura como produzida por conflitos
inconscientes e inconciliáveis e as psicologias individual e social como inseparáveis.
Minha trajetória acadêmica foi permeada pelo questionamento ontológico, jurídico e
ético sobre a paradoxal natureza humana diante das atrocidades das guerras, em especial, do
horror nazista da Segunda Grande Guerra Mundial. “Crimes contra a humanidade: A criação
do tribunal Penal Internacional” foi o tema de minha monografia de conclusão do curso de
graduação em Direito, em 1989. Desde então, venho pesquisando o tema, sobretudo como
docente de Filosofia do Direito, Direitos Humanos e Direito e Psicanálise.
A mesma motivação também me levou a produzir uma dissertação de mestrado em
Direito, em 2002, intitulada “Obscuro objeto do poder: Ética e Direito na sociedade
biotecnológica”, orientada pelo Prof. Dr. José Luiz Quadros de Magalhães, da UFMG.
Quando me candidatei à seleção para o Doutorado no Programa de Psicologia Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a intenção era encontrar um espaço franco e aberto
que me permitisse ampliar o campo de conhecimento, aliando investigações acadêmicas aos
conceitos da Psicologia Social, no desenvolvimento de um pensamento complexo, com base
no referencial teórico da Psicanálise.
Ao longo dos últimos quatro anos de preparação e pesquisa, com minha orientadora,
Prof
a
. Dr
a
. Regina Glória Nunes Andrade, e outros mestres, dividi descobertas, dúvidas e
confrontos pertinentes à produção de uma tese de doutorado múltipla, materializada neste
trabalho.
Sob o meu olhar, o acontecimento trágico de 11 de setembro de 2001, nos Estados
Unidos da América, revelou-se, como o marco inicial da barbárie atual, expondo as fraturas de
um mundo contemporâneo desigual, mortalmente ferido pela indiferença moral. Entendo que
as ilusões prometidas pela globalização neoliberal de um mundo pacífico, harmônico e
integrado, com o fim da Guerra Fria, diluíram-se no ambiente de pânico e insegurança,
generalizado após aquele evento.
Minha primeira hipótese sobre a cultura da indiferença reside na percepção de que o
terrorismo, a intolerância, o medo e a indiferença constituem os sintomas contemporâneos do
mal-estar na civilização, tal como definido por Freud (1856-1939), em sua obra O mal estar
da civilização (1930), na qual evidencia o sofrimento humano diante da apatia e da violência
social.
Pretendo, como segunda hipótese, investigar se dentre os sintomas supracitados, a
indiferença é uma patologia social e a marca de uma sociedade consumista e predatória, na
qual seus sujeitos manifestam “alheamento em relação ao outro”, isto é, “atitudes de
distanciamento, na qual a hostilidade ou o vivido persecutório são substituídos pela
desqualificação do sujeito como ser moral”, gerando violência e mais indiferença (COSTA,
1997, p.67).
Entendo a indiferença como a não sensibilidade ou apatia em relação a algo ou
alguém, o que significa “ausência de afetos e paixões, falta absoluta de energia”. Dessa forma,
desenha-se um amálgama entre alienação (falta de afetos e paixões) e inação (falta de
energia), resultando na insensibilidade frente ao outro, que leva à inércia e à anestesia – estado
de não dor, de não sentir, diferente de neutralidade e de abstinência.
A terceira hipótese presente é a de que o homem contemporâneo é potencialmente
perigoso para si mesmo, constituindo-se em seu próprio risco absoluto. Esse fato instaura um
claro paradoxo na atualidade: ao mesmo tempo em que a sociedade atual se liberta dos seus
valores de referência, surge a crescente demanda por ética e preceitos morais. Para lidar com
tal desafio, utilizo os conceitos de autonomia, tolerância, vulnerabilidade e justiça, para
construir uma ética da resistência à cultura da indiferença.
O pensamento complexo é a tônica do meu estudo, fruto da forte influência do
pensamento de Edgard Morin (1921) e de outros pensadores, que forjaram em mim a urgente
necessidade de contrapor-nos à cultura da indiferença, através do resgate da Ética como
racionalidade primeira. Para tanto, serviu-me de inspiração a notável obra de Emmanuel
Lévinas (1906-1995).
A questão nuclear defendida por Lévinas consiste na tese de que, se nossas interações
sociais não forem sustentadas pelas relações éticas de uns para com os outros seres humanos,
o pior poderá advir, ou seja, o desconhecimento da humanidade do outro. Para Lévinas, foi o
que aconteceu no Holocausto e em outras inúmeras barbáries do século XX: o ser humano
tornou-se apenas um rosto sem face na multidão, alguém por quem simplesmente passamos,
como um transeunte, um turista, alguém cuja vida ou cuja morte não nos importa. Uma
relação ética pressupõe que, quando deparo com outro indivíduo, o reconheço em sua
humanidade e guardo distância, porque distância significa respeito.
Encontrei duas outras fontes de inspiração em Jean Baudrillard (1929-2007) e
Zygmunt Bauman (1925), notadamente por suas perspectivas face ao terror global, a
fragmentação e “liquefação” da sociedade pós-moderna, marcada pela discriminação e pela
exclusão.
Uma inspiração metodológico-analítica, fundamental em todo o estudo, provém de
Jacques Derrida (1930-2004), com sua marcante posição sobre a diferença que o conduziu à
indagação sobre fragilidade e exclusão humana. Derrida elaborou o hoje chamado “método de
desconstrução” e formulou a ética como uma experiência original, o núcleo
“ïndesconstrutível” da desconstrução. Reconheço que encontrei neste pensador e em suas
obras Ética e desconstrução: Justiça e linguagem (2002); Force de loi: Le fondement
mystique de l‘autorité (1990) – uma chave de acesso à compreensão da cultura da indiferença.
Não posso deixar de citar que minha formação jurídica incitou-me a trabalhar com
Jurgen Habermas (1929), valendo-me de sua teoria discursiva, aplicada à filosofia do direito
em prol da integração social e, como consequência, da democracia e da cidadania. No que
concerne à vulnerabilidade humana e ao principio da responsabilidade para construção de uma
ética plural, valho-me dos ensinamentos de Hans Jonas (1903-1993).
O corpus do meu trabalho refere-se às obras de Gilles Lipovetsky (1944) e Pierre Levy
(1956), no que tange à sociedade do hiperconsumo e à indiferença cibernética, e às de Slavoj
Žižek (1949), cuja “Visão em Paralax” foi tomada como modelo de pensamento.
A metodologia utilizada constitui-se da leitura, análise e correlação da bibliografia
selecionada. Portanto, foi tecida uma investigação bibliográfica correlativo-analítica. No que
diz respeito à abrangência, a metodologia proposta contemplou leitura criteriosa e
interpretação de livros, periódicos, textos legais, documentos, artigos, Constituições, sítios da
internet, estatutos, normas, filmes, documentários. Todo o material que recolhi foi submetido
a uma triagem, a partir da qual foi possível estabelecer um plano de leitura e de análise.
A composição da minha tese estrutura-se em três focos, distribuídos em seis capítulos:
Os dois primeiros Ground Zero da Indiferença e Terrorismo e Barbárie compõem o
primeiro foco, que trata dos conceitos centrais e subjetivações derivadas do terror global, em
suas diversas formas de demonstração e questionamentos jurídicos.
O primeiro capítulo trata da relação intrínseca entre o poder, a ideologia e a
indiferença, ressaltando os sentidos da indiferença aplicados ao real, ao simbólico e ao
imaginário. O segundo investiga a história do terrorismo, suas tipificações e implicações
jurídicas, assim como a geopolítica do terrorismo global e suas manifestações no cotidiano
das diversas sociedades.
O segundo foco compreende o terceiro e o quarto capítulos Fragmentos da
Indiferença Social e Estratégias da Desumanização, respectivamente –, com uma abordagem
sobre o mal-estar na atualidade, as dificuldades de amar ao próximo e os efeitos alienantes do
hiperconsumo, revelando os novos hábitos da sociedade contemporânea, o fascínio da
internet, e a exclusão social, fomentada pelas novas tecnologias.
O quarto capítulo pretende utilizar a memória para a reconstrução do humano,
evidenciando a indiferença e o esquecimento sustentados em produções cinematográficas,
criticando os acontecimentos pós-11 de setembro, em “Leões e cordeiros” (2007), e revelando
as complexidades humanas, diante do choque de civilizações e da cultura da indiferença, em
“Ensaio sobre a cegueira” (2008) e “Babel” (2007).
Finalmente, o terceiro e último foco desenvolve-se ao longo dos capítulos quinto
Ética da Resistência e sexto A Cultura da Indiferença. É o foco das interações humanas,
dos modos de subjetivação, da construção da ética através do reconhecimento do outro.
Dediquei especial atenção para a eleição de Barack Obama para a presidência dos
Estados Unidos da América, em 2008, com todas as mudanças que a quebra de paradigmas
promete trazer para a comunidade mundial. Sirvo-me de fragmentos do discurso por ele
proferido na Universidade do Cairo, em 4 de junho de 2009, como epígrafes de todos os
capítulos de minha tese.
A conclusão segue uma perspectiva pluralista, segundo a qual o debate ético
contempla múltiplas moralidades.
Esta tese ainda propõe ao leitor uma visão alternativa sobre as possíveis motivações
ocultas por trás de comportamentos massificados de revolta, medo e indiferença. Coloco em
discussão o desinteresse pelos problemas vizinhos e distantes como eco do sentimento de
desamparo e da falta de solidariedade humana. Questiono a ausência de voluntariado em
países onde flagrantes desigualdades sociais, a restrição de acesso a produtos fármacos
para populações devastadas por epidemias, entre outras contradições que agridem o valor da
mensagem de amor ao próximo. Como catalisador da Cultura da indiferença no século XXI,
encontrei, no espetáculo visual da desintegração das torres gêmeas em Nova Iorque, uma
mensagem de descrédito para o modelo ocidental de economia de mercado, de liberdade de
pensamento e de comportamento.
Procurei elos de ligação entre as reações em cadeia mundial de medo e insegurança,
transmitida pelo atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, com o temor provocado pelos
regimes autoritários do século XX. Procuro traçar paralelos entre a desintegração da União
Soviética, o fim da guerra fria, e a consequente inutilidade de inúmeros projetos
armamentistas, com o ressurgimento de um inimigo poderoso, onipresente e capaz de
provocar tragédias em qualquer cidade global, como Londres, Madri, Tel Aviv, Bali,
Islamabad, entre outras.
O terrorismo global é gerado pela indiferença social, mantendo o ser humano refém do
medo e da desconfiança e retroalimenta-se da indiferença de indivíduos isolados, grupos
sociais, grupos religiosos, empresas e governos. A eleição de Barack Obama como presidente
americano surge como um farol no cenário geopolítico atual, a serviço do diálogo e dos
direitos humanos entre as nações.
Entendo que este trabalho terá cumprido seu papel se atrair novos pesquisadores em
busca do aperfeiçoamento das relações entre indivíduos, povos, nações e culturas, se despertar
a consciência daqueles que detêm poder de minimizar o sofrimento dos seus governados, se
lembrar aos meus leitores que compaixão não é um tributo imposto aos mais afortunados e se
aumentar a compreensão de que todos podemos ampliar nossas opções ao decidir fazer a
diferença.
CAPÍTULO I – GROUND ZERO DA INDIFERENÇA
(...) Além disso, as rápidas mudanças trazidas pela modernidade e pela globalização
levaram muitos muçulmanos a ver o ocidente como hostil às tradições do Islã.
Extremistas violentos exploraram essas tensões em potentes minorias e muçulmanos.
Os ataques de 11/9/2001 e os continuados esforços daqueles extremistas em ações de
violência contra civis levaram alguns, no meu país, a ver o Islã como inevitavelmente
hostil, não só aos EUA e aos países ocidentais, mas hostil também aos direitos
humanos. O que alimenta mais medo e desconfiança.
Barack Hussein Obama, 4 de Junho de 2009.
1.1 11 DE SETEMBRO DE 2001: ALÉM DO PRINCÍPIO DA REALIDADE
No início da manhã nova-iorquina de 11 de setembro de 2001, os americanos
contabilizavam seus milhares de mortos, assassinados de uma vez só, gratuitamente, sem
nenhum motivo. Brancos, negros, amarelos, cristão, nacionais, estrangeiros, judeus,
mulçumanos, ricos ou pobres, funcionários da limpeza ou banqueiros, todos que se
encontravam naquela cidade, fosse no shopping center, na estação do metrô, no trabalho ou no
restaurante, subitamente converteram-se em vítimas de um desejo de matar indiscriminado e
inexorável.
Em estado de choque e aturdidos, os cidadãos dos Estados Unidos da América ficaram
ainda mais estupefatos ao constatarem que um número considerável de cidadãos do mundo
inteiro manifestava complacente compreensão pelos perpetradores da tragédia criminosa.
Provavelmente, apenas um resquício de pseudomoralidade impediu que alguns aplaudissem
abertamente o evento macabro. Outros demonstraram nitidamente sua alegria. Alguns fizeram
comentários sobre a pirotecnia que mal acabava de consumir seus semelhantes.
Por que tanta indiferença diante da dor dos Outros?
Infelizmente, oito anos depois e uma guerra civil no Iraque, os próprios americanos
descobriram, por intermédio de fotos, que alguns dos seus soldados não mais conseguiam
dissimular prazer e indiferença ao infligirem humilhações e sevícias a prisioneiros indefesos,
inferiorizados no interior da prisão militar de Abu Grabi, sob a complacência de escalões
superiores que, no mínimo, toleraram e encorajaram o crime de tortura.
A crueldade revelada abertamente no interior das prisões militares nada tem de
excepcional, além da indignação que desperta em alguns não contaminados pela cultura da
indiferença.
Sem ser exclusivamente de natureza bélica ou de nacionalidade especifica, em regiões
distantes dali, de forma equitativa, insidiosa e obscura a indiferença dialoga conosco todos os
dias. A atualidade anuncia-se impiedosa: os poderes da cultura da indiferença, aliados à
cultura da violência e do medo, provocam perigosa mutação no sentimento de humanidade.
As tramas da história contemporânea se efetivam em meio a rupturas inesperadas. O
11 de setembro é apenas o mais recente dos eventos inquietantes e questionadores para o
pensamento ético e moral – novo abismo a interrogar nossa condição humana.
Se, durante a Segunda Guerra Mundial, existisse a cobertura televisiva em candeia
mundial, os horrores do nazismo hitlerista não perdurariam por tanto tempo. Provavelmente, a
opinião pública mundial teria apoiado uma ação militar veemente contra o nazismo alemão. A
ausência da televisão em cadeia mundial retardou o esforço gigantesco e a união de forças
para vencer o avanço do totalitarismo.
Hoje, assistimos, passivamente, ao terrorismo global, porque vivemos imersos na
cultura da indiferença. Segundo o educador e economista Cristovam Buarque (1944), há
tempos somos testemunhas apáticas dos genocídios de etnias inteiras que ocorrem na África,
no Oriente Médio e na Europa Oriental, anestesiados pela indiferença.
No Oriente Médio, anos assistimos, pela televisão, ao momento quase exato em
que jovens palestinos se suicidam assassinando jovens israelenses e em que soldados
israelenses se embrutecem matando jovens palestinos. Cada qual, dizendo defender
sua própria terra, sacrificam e se sacrificam diante da indiferença do mundo, porque o
mundo vem treinando há décadas para ficar indiferente (BUARQUE, 2008, p. 105).
apenas cinquenta anos, as fotos dos campos nazistas de concentração, publicadas
em jornais e revistas, horrorizavam o mundo mesmo anos depois de terem sido registradas.
Atualmente, assistimos, no conforto do nosso lar, ao vivo e em cores, através de televisores de
última geração, a cenas ainda mais chocantes e dramáticas dos atuais campos de concentração
e extermínio contemporâneos, sem muros, cercas de arame farpado ou guardas fardados.
E deparamos com o nosso silencioso olhar, apático, alheio ao sentimento de
indignação e horror, e tacitamente aceitamos os fatos e acontecimentos mais cruéis.
Os filmes sobre os horrores nazitas, stalinistas, sobre a resistência do Gueto de
Varsóvia, atrocidades racistas cometidas no apartheid da Africa do Sul e nos estados do sul
americano pelos terroristas da Ku Kux Klan, chocam até hoje. Paradoxalmente, não nos
sensibilizam mais cenas reais como a dos favelados pobres, miseráveis e excluídos de todo o
mundo (guetos modernos), crianças morrendo de fome num mundo com excedente de
alimentos, milhares de africanos morrendo de AIDS, quando a ciência é capaz de oferecer
medicamentos que a torne, ao menos, uma doença crônica.
Testemunhamos impassíveis a crianças “trabalhando” nos sinais de trânsito das
grandes cidades, nos canaviais da agroindústria, nos porões das fábricas da globalização, a
violência urbana das balas perdidas, ao extermínio de menores abandonados na porta das
catedrais, nas esquinas de um mundo consumista e consumido pela corrupção; a um mundo de
adultos desempregados, famílias sem atendimento médico ou acesso a educação e a justiça
tudo isto diante da indiferença dos organismos internacionais, dos governos e da opinião
pública. Só não podemos alegar desconhecer o que está acontecendo, tal como a população à
época da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Vivemos a “Era dos Extremos Morais”, diante de todas as formas de perversão que
caracterizam a sociedade contemporânea, na sua extrema riqueza e extrema pobreza, no seu
fantástico avanço cnico e científico somado a assombrosa marginalização dos excluidos do
progresso. Como salienta Buarque:
A revolução econômica, científica e tecnológica das últimas décadas criou as
condições para resolver os problemas de todos os excluídos, criar uma globalização
includente, capaz de incorporar toda a humanidade no acesso ao essencial, mas isso
não foi feito. No lugar de usar recursos econômicos, cientificos e tecnológicos
disponíveis para incluir, os recursos são usados para garantir a exclusão. No lugar de
investir na solução de problemas sociais sicos dos países da África e da América
Latina, usam-se vastos recursos para que países europeus e os EUA impeçam a
imigração dos pobres. Porque a indiferença domina as relações sociais, nesta Era da
Indiferença (ibidem, p. 108).
Percebemo-nos, dessa forma, vitimados pela cultura da indiferença, que nos
transforma em seres sem indignação, sem conseguir deter a trágedia dos nossos dias;
consumimos, em cadeia internacional, imagens de ataques terroristas, explosões, massacres,
torturas, tiros, destruição e morte, porque fomos absorvidos pela cultura da indiferença,
treinados por ela como espectadores inertes.
1.2 IDEOLOGIA E INDIFERENÇA
A palavra ideologia poderia, durante os últimos vinte anos, ser compreendida como a
relação do homem (produtivo-explorador) com a natureza e seus recursos. Essa relação é uma
matriz inváriavel, a despeito das construções da filosofia política acerca de distintas formas de
organização social da produção, da distribuição de rendas e do comércio de bens. Para o
pensador esloveno Žižek (1949),
(...) pode-se afirmar categoricamente a existência da ideologia, qual matriz geradora
que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem
como as mudanças. Nesta relação, é fácil discernir essa matriz na dialética do “velho”
e do “novo”, quando um evento que anuncia uma dimensão ou época inteiramente
novas é (des)apreendido como uma continuação do passado ou um retorno a ele, ou,
no caso inverso, quando um acontecimento inteiramente inscrito na ordem existente é
(des)apreendido como uma ruptura radical (ŽIŽEK, 2004, p. 7).
Os ataques terroristas ao World Trade Center, de acordo com Žižek, coloca o homem
na difícil tarefa de resistir aos julgamentos ideológicos, fazendo-o ver que, se não for
“neutro”, corre o risco de ora apoiar a ideologia imperialista americana, ora endossar ataques
terroristas como o do 11 de setembro. O que existe, na verdade, é que estamos de fato apenas
diante de um choque de fundamentalismos.
(...) se nos limitarmos a simplesmente condená-los incondicionalmente, estaremos
dando a impressão clara de que o endossamos a espalhafatosamente ideológica
posição de inocência americana sob o ataque do mal que vem do Terceiro Mundo; se
chamarmos a atenção para as causas cio-políticas mais profundas do extremismo
árabe, poderá parecer que nos limitamos a lançar a culpa sobre as vítimas, que afinal
receberam apenas o que mereciam... A única solução possível é rejeitar exatamente
essa oposição e adotar simultaneamente as duas posições, o que somente poderá ser
feito se nos valermos da categoria dialética da totalidade: não existe escolha entre as
duas posições; cada uma é tendenciosa e falsa. Longe de oferecer um caso em relação
ao qual podemos adotar uma clara posição ética, encontramos aqui o limite da razão
moral: do ponto de vista moral, as vítimas são inocentes e o ato um crime abominável,
mas essa inocência não é em si inocente adotar essa posição de “inocente” no
universo do capitalismo global é em si uma falsa abstração (idem, 2002, p. 66, 67).
Žižek (2002), em sua coletânea “Bem vindo ao deserto do real”, aborda os
acontecimentos de 11 de setembro de 2001 e suas consequências, valendo-se de uma
interrogação “Com essa esquerda, quem precisa de direita?para criticar a atuação da
esquerda nos períodos posteriores aos ataques terroristas de 11 de setembro. Tal atuação,
segundo ele, permitiu que uma ideologia hegemônica se apropriasse da tragédia e impusesse a
mensagem de que é necessário escolher um lado na “guerra contra o terrorismo”. Dessa
forma, reforça que a tentação de escolher um dos lados deve ser evitada, uma vez que as
escolhas, quando parecem muito claras, permitem que a ideologia se apresente em seu estado
mais letal, ocultando as verdadeiras opções.
O terrorismo atual é alimentando pela cultura da indiferença, age como uma força
consciente; é poderoso ímã que atrai a indiferença e a converte em oposição. O indiferente se
torna o inimigo.
Por exemplo: durante a Revolução Francesa (1789-1799), quem não era partidário da
Revolução nem contra revolucionário (ou seja, indiferente em relação à revolução) era visto
como inimigo. O terrorismo global atual convida ao questionamento desse modelo, através do
consenso ou da censura. Para desvendar as articulações desses novos tempos de indiferença e
de ameaças do terrorismo ideológico, Žižek denuncia que a busca de uma realidade pura e
objetiva da compreensão sobre o que por trás das aparências é falsa, é apenas um
“estratagema definitivo para evitar o confronto com o real”. Suas conclusões vão além de um
simples diagnóstico sobre as razões da tragédia de 11 de setembro e suas consequências
aparentes.
O estado que vivemos hoje, da “guerra ao terror”, é o estado da ameaça terrorista
eternamente suspensa: a catástrofe (o novo ataque terrorista) é considerada certa, mas
ela é indefinidamente adiada o que vier a acontecer, ainda que seja um ataque muito
mais horrível do que o de 11 de setembro, não será aquele”. E aqui é crucial que se
entenda que a verdadeira catástrofe já é esta vida sob a sombra da ameaça permanente
de uma catástrofe (ibidem, p. 12).
Žižek, na verdade, chama atenção para um fato devastador: o terrorismo é basicamente
uma estratégia de luta que consiste em usar a violência para causar um efeito psicológico
intimidador. O objetivo não é provocar estrago militar no inimigo, mas assustar quem de
fora o atentado pela televisão, por exemplo. O efeito disso na população costuma ser maior
do que o ato em si. O terrorista é, em geral, um inimigo mais fraco que as forças de segurança
nacionais e, por isso, precisa esconder-se para atingir seu objetivo de destruição.
Falar desses novos tempos de indiferença não remete imediatamente a radicalismos ou
a guerras de extermínio e destruição em massa, mas a uma contaminação lenta e silenciosa no
âmago da sociedade atual, um câncer devastador e insidioso que invade e cria metástases no
organismo da nova ordem social.
Ver impõe uma dor insuportável e, através dos mecanismos naturais de defesa,
preferimos substituir o real pela fantasia, o consenso pela ideologia, ainda que percebamos o
terrível engano, exemplificado pelo holocausto de seis milhões de judeus e outras vítimas da
máquina de extermínio nazista (1939-1945). Testemunhamos os julgamentos de Nuremberg
(1945) e aceitamos o pressuposto de Hannah Arendt (1906-1975) de que uma conexão
entre a banalidade do mal e a falta de imaginação como explicação para um indivíduo ser
capaz de executar crimes atrozes sem pensar, sem julgar seus próprios atos. O álibi da
“ausência de imaginação do oficial nazista”, capaz de transformar a perversão em regra,
condiciona-se a um contexto. O sistema nazista lhe outorgava reconhecimento e prestígio por
seus resultados obtidos. Este oficial não deveria questionar, apenas obedecer à cadeia de
comando, com rigor e disciplina. Não basta sabermos que nossa consciência e “ausência de
imaginação” entregaram-se à impotência, como se estivéssemos condenados a um destino de
indiferença inexorável. Desvendar os trajetos e os desvios no plano da Ética, da compaixão e
da responsabilidade sócio-moral é dever que nossa ainda humanidade nos impõe.
Após a Segunda Grande Guerra (1939-1945), o mundo viveu grandes transformações,
de ordem social, econômica e política. Um novo contexto mundial, caracterizado por
fragmentações territoriais e agrupamento de países em função de seus interesses políticos e
econômicos, marcou a metade do século XX. A partir de 1947, um novo sistema de relações
internacionais começou a vigorar. O embate político-ideológico entre Estados Unidos da
América (EUA) e União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS), duas nações
consideradas superpotências mundiais, colocou em confronto dois sistemas políticos -
capitalismo e socialismo.
Um dos efeitos dessa situação foi o controle da Alemanha pelos países vencedores da
Grande Guerra, como Estados Unidos, Reino Unido e Grã-Bretanha, além da França. A região
controlada pelas forças militares dos países capitalistas se uniu e formou a Alemanha
Ocidental. Em contrapartida a esta situação, a região controlada pelos soviéticos transformou-
se na Alemanha Oriental. O antagonismo ideológico foi traduzido em alterações na estrutura
de uma nação, conforme interesses, principalmente dos EUA e da URSS.
A rivalidade entre americanos e soviéticos ganhava um novo nome: Guerra Fria. O
panorama político dividiu diferentes regiões do planeta, principalmente na Europa. Por parte
dos Estados Unidos da América, surgiu a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN), que reuniu, inicialmente, os países da Europa Ocidental, como Espanha, França,
Grã-Bretanha, Suécia, Irlanda, Finlândia, Noruega, Bélgica, Países Baixos e Alemanha
Ocidental. Por outro lado, a União Soviética fez uma aliança militar com os países sob sua
influência política, definido como Pacto de Varsóvia: Polônia, Alemanha Oriental,
Tchecoslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária.
A partir da década de 50, os conflitos armados em diferentes locais do mundo (Guerra
da Coreia, Guerra do Vietnã, descolonização da Ásia e África e guerras civis), a corrida
espacial, a construção do Muro de Berlim, a expansão do arsenal de armas nucleares e a
criação do bloco dos países não alinhados definem as características da geopolítica mundial,
influenciadas pelo confronto EUA-URSS. Contudo, com as reformas econômicas e políticas
realizadas na URSS, na segunda metade da década de 80, grandes mudanças aconteceram na
Europa Oriental. A Glasnost, de 1988, foi uma medida política implementada, juntamente
com a Perestroika, na URSS, durante o governo de Mikhail Gorbachov (1931).
A Glasnost contribuiu em grande parte para a intensificação de um clima de
instabilidade, causado por agitações nacionalistas, conflitos étnicos e regionais e por uma
agravada insatisfação económica, sendo um dos fatores para o fim do controle soviético nos
países satélites estimulando as ondas de liberação política na Tchecoslováquia, Hungria,
Polônia, Bulgária e Romênia. A palavra Glasnost em russo significa “transparência”
1
.
Outro importante efeito da “transparência russafoi o estímulo da queda do Muro de
Berlim, em 9 de novembro de 1989, e a reunificação alemã. Tais acontecimentos levaram o
mundo a uma grande transformação na ordem econômica, social e política, pondo fim à
Guerra Fria.
Como afirma Hobsbawn (2007), o século XX foi a era mais extraordinária da história
da humanidade, combinando catástrofes humanas de dimensões inéditas, conquistas materiais
substanciais e um aumento sem precedentes da capacidade de transformação e, talvez, de
destruição do planeta (HOBSBAWN, 2007, p. 9).
Mais uma vez, a percepção do mundo foi violentamente alterada pós-11 de setembro
de 2001. Realidade, crenças, valores morais, ideias e representações simbólicas mudaram, e os
princípios éticos não deram conta da complexidade na qual estamos imersos. As contradições
e ambiguidades morais que cercam a análise dos atos terroristas cometidos em New York e
Washington, no dia 11 de setembro de 2001, traduzem os limites da reflexão sobre a cultura, a
civilização, o mal, a barbárie, a indiferença e a ética nas relações humanas. Os aviões civis
1
Disponível em: http://www.diario-universal.com/2007/04/aconteceu/a-glasnost/. Acesso em março de 2009.
sequestrados por terroristas radicais islâmicos atingiram o World Trade Center e o Pentágono,
matando milhares de pessoas e provocando graves repercussões na sociedade global.
Pode-se perceber que uma das vítimas do 11 de setembro é a moral liberal das
sociedades ocidentais. Acrescente-se a isso o tom apocalíptico em que as dimensões ainda
cartesianas da moral se chocam na contemporaneidade.
Houve a retificação da consciência ao reducionismo extremo, adensado sobre toda a
transparência das representações da realidade. A catástrofe extirpa do homem todo o seu
contexto cultural, enquanto o coloca no “tudo aqui, agora e ao mesmo tempo”. Baudrillard
(2003) denunciou o excesso de informação no impacto da queda das torres gêmeas. Segundo
ele, a simetria da figuração interferiu na queda do World Trade Center e isso deu origem à
"civilização do medo", inaugurando o abate ao outro, num terrorismo sem face. Esse gestual
cego pode ser o da violência irrecorrível, como o protesto à expropriação definitiva das
subjetividades, em face ao mundo hegemônico da razão. Os pactos de sobrevivência
evidenciam que os jogos sociais estão em fase terminal em sua dinâmica de progresso.
A mídia americana dedicou imensa cobertura aos ataques e às suas nefastas
consequências; porém, omitiu-se a um debate crítico sobre o contexto em que os fatos
ocorreram. Em seu artigo “Otros efectos colaterales del 11-S”, publicado na obra coletiva La
television em tiempos de guerra (2002), o jornalista espanhol Ferrand (1940) afirma que os
atentados de 11 de setembro, em seu elemento dramático, batizou o século XXI, inaugurando
uma época regida pela destruição.
Próxima das Torres Gêmeas, em pleno World Trade Center, havia a sede de outro
símbolo ainda mais representativo do império mundial dos Estados Unidos: The wall
Street Journal, o jornal de economia (...) mais influente do mundo. Suas instalações
foram completamente destruídas pelo atentado. No dia 12 de setembro, em Nova
Jersey, do outro lado do rio Hudson, continuou a publicar sobre a tragédia, levado
pela onda da mídia expansiva do atentado. Não deixou de circular um dia, apesar
da adversidade da situação (...) Porém o mal “efeito colateral” da ão terrorista
havia excitado aos responsáveis do jornal e já se encontrava em marcha uma
superação do passado. Diante das anteriores 80 páginas, o jornal apareceu com 96
páginas redesenhado e disposto a (voltar a) ser um dos maiores do mundo dentro de
poucos dias (FERRAND, 2002, p. 22-23).
O fato acima narrado é extremamente simbólico, em função da localização do jornal
próxima ao epicentro dos atentados e à sua rápida capacidade de regeneração. As
circunstâncias do acontecimento 11 de setembro definem o ritmo da globalização midiática.
A análise de um acontecimento midiático instiga a indagar sobre o significado do que
seja um acontecimento: muito além de um evento factual trata-se de um fenômeno de sentido
que rompe com a continuidade esperada e afeta aqueles que o vivenciam. Como define o
filósofo francês Claude Romano (1967), um acontecimento é “radicalmente imprevisível,
pois, antes de tudo, fundamentalmente inexplicável (...); o acontecimento dilacera a trama de
nossas expectativas e transtorna o desenho de nossos projetos” (ROMANO, 1999, p. 164).
Durante o culo XX, havíamos nos acostumado a morrer de fome, a morrer de
doenças, de miséria, de raiva, de indignação. Os atentados de 11 de setembro demonstraram
que é tão possível e simples morreremos vitimados por balas perdidas, por bombas terroristas
e por indiferença quanto por as razões rotineiras e clássicas.
A familiaridade com a morte tornou-se corriqueira. Nos últimos anos, os telejornais e
jornais impressos de todo o mundo, a exemplo do que ocorreu com a impressa ao final da
Primeira Grande Guerra, estampavam La sangre a la primera página”, ou seja, “Sangue na
primeira página” (idem, p. 23).
Durante muitas horas e por dias, fomos capturados por transmissões que
“hipnotizavam” com notícias incompletas e inacabadas, devido à ausência de muitos
elementos quem, como e por quê. Também em função de um obrigatório “código moral”,
foram censuradas as informações e imagens mais dolorosas. Sabíamos que milhares de
pessoas haviam sido mortas, porém não vimos um só cadáver.
Quais seriam as razões para que a mídia mundial proporcionasse uma perspectiva tão
limitada, imprecisa e acrítica?
Quando o presidente norte americano George W. Bush (1946) declarou que “a
América foi alvo desse ataque porque somos o farol mais luminoso da liberdade e da
oportunidade em todo o mundo”, a maioria da mídia ocidental limitou-se a fazer eco a essas
palavras. Uma análise no New York Times afirmava que os criminosos haviam agido por “ódio
aos valores nutridos no ocidente como liberdade, tolerância, prosperidade, pluralismo
religioso e sufrágio universal” (CHOMSKY, 2005, p.13).
A cobertura da mídia ocidental em sua maioria absteve-se de buscar uma explicação
completa e realista das possíveis razões que motivaram os atentados em 11 de setembro no
solo americano e fazer uma reflexão critica e imparcial sobre a política externa americana e
seus efeitos em todo o mundo.
Entretanto, alguns meios intelectuais e midiáticos ocidentais valeram-se dos atentados
de 11 de setembro para ressaltarem uma pretensa mensagem terrorista, a mensagem
antiimperialista; nesse sentido, foram chocantes e surpreendentes os comentários políticos
proferidos e que persistem numa crítica obstinada aos Estados Unidos da América –, como
se esse país encarnasse o próprio Demônio, como foi propagandeado pelos terroristas radicais
da Al-Qaeda
2
.
O fator ideológico é flagrante nas posições antiamericanas de regozijo aos ataques ao
World Trade Center ou às criticas indiscriminadas às ações de guerra americana no
Afeganistão. O assassinato em massa de 3.000 civis, com um saldo de 1.500 crianças órfãs,
foi rapidamente relegado a um segundo plano, em nome de supostas lutas ideológicas contra
os símbolos do capitalismo mundial.
Quando os bombardeios legalmente anunciados pelos americanos começaram,
dirigidos a alvos militares, dentro da tática militar de destruição dos centros de comando e
sustentação do terrorismo, uma outra versão da mesma vertente ideológica antiamericanista
surgiu, alardeando que os Estados Unidos estariam suprimindo as liberdades civis. Como
assinala o filósofo brasileiro Rosenfield:
Um Estado em alerta máximo, numa situação de guerra não clássica, deve tomar
medidas excepcionais de defesa de seus cidadãos contra um inimigo esquivo, que não
mostra sua face. A lógica do velamento está precisamente inscrita na orfandade em
que ficou a esquerda depois da queda do muro de Berlim; o antiamericanismo,
substituindo as posições, consideradas “exemplares”, da União Soviética, da China,
da Albânia e de Cuba. Durante décadas, a esquerda ocidental teve nesses países
“ícones”, modelos de “boa” sociedade. Quando esta representação se esfacelou em
termos mundiais, houve uma desorientação em termos ideológicos, que procura,
agora, orientar-se, retomando a bandeira da luta antiimperialista. Face ao estiolamento
ideológico, surge um modelo negativo, unindo setores de esquerda à representação
fanática do “Grande Satã” (ROSENFIELD, 2002, p. 28).
No período subsequente aos ataques, rios acadêmicos e chefes de Estado
argumentaram que os dezenove terroristas identificados inauguraram uma forma inédita de
terrorismo: sem causa, que não faz exigências nem permite acordos. Radicalmente diferente
dos terroristas tradicionais, cuja tática de sequestros de aviões tinha por objetivo forçar os
Estados a abrirem negociações, como, por exemplo, para liberarem aliados presos em troca de
2
Al-Qaeda é uma organização fundamentalista islâmica internacional, e sua sigla significa, em árabe, “a
fundação ou a base”.
reféns, essa mutação de terroristas se apresenta como máquina de destruição em massa,
utilizando ataques violentos como um fim em si mesmo.
Apesar de ser uma forma nova de terrorismo, os genocídios nazistas do século XX e os
proponentes da Jihad
3
internacional do culo XXI, que louvam um retorno ao Estado
islâmico medieval, têm muito mais em comum do que aparentam: ambos são violentamente
utópicos. Os adeptos desses movimentos acreditam, fervorosamente, em sua virtude, mesmo
que seja preciso quebrarem as leis morais da compaixão para atingirem seus fins.
Smeser, professor de sociologia da Universidade de Berkeley, na Califórnia, afirmou
que a resposta americana ao terrorismo, logo após o 11 de setembro, “foi realmente algo
monolítico (...), entendendo o terrorismo como um mal antiamericano, mais do que um
fenômeno a ser compreendido” (SMESER, 2002, p. 29). Seu relatório também sugere que
intervenções eficazes do governo, tal como as ações terroristas o fazem para ganhar a simpatia
dos islâmicos moderados, devem tentar atingir grandes plateias, ao drenar o suprimento de
novos adeptos do terrorismo islâmico radical e combater a propaganda ideológica
antiamericana.
O relatório constatou que uma ação militar é capaz de desencorajar o terrorismo,
afirmando que houve um verdadeiro retrocesso em relação ao impasse vivido durante a
Guerra Fria, baseado no fato de ter de cada lado oponentes de força comparável e que tinham
algo a perder. Se Guerra Fria possuía um acordo implícito entre os antagonistas, algo similar à
confiança, essa condição não está presente quando se trata de grupos terroristas sob a proteção
de Estados, pois que representam vasta gama de ideologias, estratégias e forças.
Quando falamos de terrorismo islâmico contra o Ocidente, falamos de desconfiança
mútua e pode ser difícil para o Ocidente fazer ameaças reais a grupos profundamente
radicalizados, sem direitos e alienados dentro de seus próprios países. O relatório de Smeser
afirma ainda que é “tentador para os Estados Unidos assumirem principalmente uma postura
ameaçadora ou punitiva diante desses Estados, uma abordagem mais realista utilizaria a
influência que os Estados protetores têm contra grupos terroristas” (idem, p. 14-15).
Outro ponto importante é ressaltado pelo autor: a necessidade de encontrarem-se
formas de trazer os movimentos terroristas para a corrente da vida democrática e, dessa
maneira, abortar na fonte as causas que alicerçam o terrorismo.
3
Jihad é um conceito essencial da religião islâmica e pode ser entendida como uma luta, mediante vontade
pessoal, para se buscar e conquistar a fé perfeita.
Os Estados Unidos, ao lidarem com regimes de países onde se desenvolveu o
terrorismo, m de trabalhar o mais perto possível desses regimes, mas deve resistir à
tentação - forte, dada à ameaça terrorista - de reprimir simplesmente os grupos
radicais terroristas, por causa da contraprodutividade de uma repressão simples e
brutal (ibidem, p. 28).
Intolerância, ideologia e ignorância são aliadas indissolúveis em um cenário de
mudanças, medo e ressentimento. A construção de uma paz possível, de uma reconciliação da
humanidade com o gênero humano, perpassa pelo (re)conhecimento e aceitação da
diversidade cultural das nações. Apesar de vivermos a era da informação, estamos muito
longe de compreender o Outro, somos vitimas de uma avalanche de imagens, relatos, dados,
propagandas, lendas urbanas que mais obliteram do que permitem uma visão lúcida do mundo
complexo em que vivemos. As consequencias negativas da globalização reforçaram a
obsessão das nações em defender suas identidades individuais. Em outras palavras: o mundo
multiculural, interdependente e imerso em complexidades, não proporciona facilmente a
compreensão das diferenças entres os seres; pelo contrário, inibe o reconhecimento delas,
numa tentativa de torná-los uma massa disforme e indiferente.
Nosso planeta experimenta a superpopulação; nunca fomos tão numerosos, variados e
diferentes em estilos de vida e valores e, ao mesmo tempo, acorrentados por circunstâncias
políticas, econômicas e sociais em comum. É bastante sedutor buscar uma fuga para tanta
complexidade, optando por ser indiferente a ela. Dessa forma, religiões fundamentalistas e
ideologias extremistas tornam-se muito atraentes, visto ambas reduzirem a complexidade do
mundo à simplicidade medíocre de palavras de ordem, slogans de propaganda e frases de
impacto.
A compreensão cultural e histórica das diferenças e similaridades do Outro constitui a
base essencial para um mundo mais tolerante. Se o conhecimento e o entendimento mínimo
do Outro são fundamentais, o autoconhecimento também o é; afinal, somente sociedades que
estão livres em âmbito interno são capazes de construir relações saudáveis entre si.
“O mundo nunca mais será o mesmo” ouviu-se repetidas vezes depois do atentado,
como representação de uma fratura. Com as Torres, caiu também o centro simbólico do(a)
maior poder/potência mundial. Primeiro, caiu a torre norte e, depois, a torre sul. Tudo
transmitido em tempo real em emissões mundiais para todos os países. Sobre o
acontecimento, o filósofo francês Baudrillard (1929-2007) argumenta:
O desabamento das torres é o acontecimento simbólico maior. Imaginem se não
tivessem desabado, ou que apenas uma delas desabasse, o efeito da fragilidade da
potência mundial não teria sido a mesma. As torres, que eram o emblema dessa
potência, ainda a encarnam nesse fim dramático, que lembra um suicídio.
(BAUDRILLARD, 2003, p.14)
O inesperado ataque fez com que os meios de comunicação provocassem uma
repetição eletrônica exaustiva. Houve como uma ilusão de ótica, uma embriaguez na
simulação de imaginários. Todos viram mais do que viram na realidade.
Quando a segunda torre foi atingida confirmou-se o ato terrorista. Encerrou-se a ilusão
do acidente e fez com que o mundo ocidental duvidasse de sua poderosa potência. A
angustiante questão sobre o possível triunfo do Mal levou Baudrillard a inspirar-se na
“Genealogia da moral”, de Nietzsche (1887), para proferir que:
O raciocínio da consciência moral é este: dado que somos o Bem, quem nos ataca
pode ser o Mal. Mas se, para esses que pretendem a encarnação do Bem, o mal é
inimaginável, então pode ser Deus quem os ataca. Para puni-los, no fundo, pelo
que por um excesso de virtude e de poder e por essa falta de cabimento, que é a
divisão do Bem e do Poder (idem, p. 32).
O Mal tem muitas faces e várias hipóteses surgirão para explicar o terrorismo.
Baudrillard circula por pontos de vista específicos porque pensa o objeto pelo deslocamento
em perspectiva ao Sujeito. O pensamento radical do qual é intérprete pretende levar a ideia ao
extremo, e se traduz no seguinte conceito:
O 11 de setembro levantou com violência a questão da realidade, cuja hipótese
fantasiosa do complô é subproduto do imaginário (...) Deve-se, antes de tudo, salvar o
princípio de realidade. O negacionismo é o inimigo público número um. Ora, na
verdade, vivemos já amplamente numa sociedade negacionista. Mais nenhum
acontecimento é real. Atentados, processos, guerra, corrupção: nada mais escapa aos
truques e tudo está fora da possibilidade de decisão. O poder, as autoridades, as
instituições são as primeiras vítimas dessa desgraça dos princípios de verdade e
realidade (idem, p. 46-47).
Na visão de Derrida (1930-2004), filósofo francês de origem argelina, o 11 de
setembro é o sintoma de uma crise autoimune, ocorrida dentro do sistema que a deveria ter
previsto. Condições autoimunes consistem no suicídio espontâneo do próprio mecanismo de
defesa que deveria proteger o organismo da agressão externa. Como ele descreve: “Um
organismo vivo trabalha para destruir sua própria proteção, para se imunizar contra sua
própria imunidade” (DERRIDA, 2003, p 14).
Para Derrida, a crise autoimune se divide em três fases, e o sintoma é o 11 de
setembro. O sintoma aqui tem a compreensão lacaniana, ou seja, a marca daquilo que se
mostra, que aparece e que pode ser visto ou percebido. A primeira fase é a Guerra Fria (1945-
1989) conflito combatido no sentido psicológico mais do que em campo ou no ar, tecido de
ameaças silenciosas, exibições ostensivas de poder bélico e previsões catastróficas de uma
guerra nuclear entre superpotências que aniquilaria o mundo. “Possivelmente, o 11 de
setembro poderia ser interpretado como o final implosivo da Guerra Fria, assassinada por suas
próprias circunvoluções e contradições” (ibidem, p.16).
A segunda fase da crise autoimune é o que Derrida denomina de “pior do que a Guerra
Fria” e que se refere a eventos tanto de natureza psicológica quanto histórica.
Enquanto a Guerra Fria se caracterizava pela possibilidade de equilíbrio entre duas
superpotências, esta segunda fase caracteriza-se pela impossibilidade em construir um
equilíbrio por causa do terrorismo, visto que a ameaça não vem de um Estado, mas de forças e
de responsabilidades incalculáveis. Na condição de total insegurança, a disseminação do
arsenal nuclear e a relativa disponibilidade de armas químicas e bacteriológicas são partes da
realidade sob a qual o terrorismo se impõe. Do ponto de vista psicológico, esta fase traz, em
primeiro plano, a temporalidade do trauma, que se desdobrada para o futuro. Jogando com a
palavra francesa a tradução de “futuro”, “avenir”, Derrida utiliza as homofonias e homogenias
lacanianas para alegar que, uma vez que a ameaça assola o futuro, o sentido desta ameaça
ainda está por vir, ou seja, “a venir”.
A ênfase na temporalidade do trauma, tão defendida por Derrida, é uma sequência
direta da discussão sobre o significado da escolha de 11 de setembro como nome para os
ataques. Como o 4 de julho, reconhecido como o Dia da Independência Americana,
(Independence Day), ou o 1 de maio, reconhecido como o Dia do Trabalho na Europa e na
maioria do mundo, assim é que o 11 de setembro tem o objetivo de monumentalizar os
ataques terroristas.
Ainda na segunda fase da crise autoimune, a monumentalização será responsável por
outra característica fundamental: a de ser um ato findo ali começou, ali terminou. Pura
ficção da esperança: apesar da data de 11 de setembro ser reconhecida como sendo a data dos
ataques terroristas, é também ilusoriamente a data de que eles acabaram com a fase “o que é
pior do que a Guerra Fria”. O pior não foram os ataques terroristas, mas a possibilidade real
da ameaça futura, de que o pior ainda esteja por vir.
A terceira e última fase da crise autoimune denomina-se “o circulo vicioso da
repressão”, por ser a mais evidente e mortal de todas. Nessa fase, descreve-se que, ao declarar
guerra contra o terrorismo, a colisão ocidental engendra uma guerra contra si mesma.
Num comentário lacônico e breve, penso que Derrida foi sombrio quanto à dificuldade
de vencer a dinâmica perversa da autoimunidade. Nenhuma das partes envolvidas no combate
ao terrorismo pode evitar falar sobre ele e, agindo assim, mais reforçam sua causa,
conferindo-lhe, por mínimo que seja, a visibilidade. Dessa forma, tanto o sistema de
informação como o sistema político, que a rigor deveriam proteger o cidadão, se enfraquecem
diante da ameaça do terrorismo global. A necessidade de que tanto a liderança política como a
mídia ajam responsavelmente irá se intensificar diante do que Derrida teme ser o futuro do
terrorismo: os ataques virtuais. Sob seu ponto de vista, a “tecnociência” transformou a relação
entre terror, terrorismo e território, três termos que compartilham da mesma raiz a palavra
latina terra. Deste ângulo, exclamou Derrida: “O 11 de setembro ainda é parte do arcaico
teatro da violência destinado a chocar a imaginação (...) um dia pode se dizer: 11 de setembro
aqueles foram os (bons) e velhos tempos da última guerra. As coisas ainda estavam na
ordem do gigantesco: visíveis e enormes!” (ibidem, p.163).
O sinistro pensamento de Derrida é que a virtualização do terrorismo venha a apagar
as fronteiras de distinção entre terrorismo e guerra e entre guerra e paz. Ele vislumbra
cenários mais catastróficos do que dois aviões comerciais se chocando contra arranha-céus e
causando sua destruição.
Pelo menos, os ataques de 11 de setembro foram realizados contra determinados
lugares, em determinados tempos. Sabemos exatamente quando começaram e quando
terminaram. Em contrapartida, o bioterrorismo é muito mais devastador, invisível e poderoso,
com capacidade de infiltrar-se por toda parte.
Habermas (1929), filósofo e sociólogo alemão, herdeiro da Escola de Frankfurt,
salientou que o 11 de setembro foi o “primeiro acontecimento histórico mundial”:
Talvez, o 11 de setembro pudesse ser chamado de o primeiro acontecimento histórico
mundial no sentido mais estrito: o impacto, a explosão, o lento colapso tudo o que
não era mais Hollywood, mas, na verdade, era uma realidade medonha, teve lugar
literalmente diante da “testemunha ocular universal”, composta de um público global
(HABERMAS, 2004, p. 61).
Fomos convidados a assistir uma construção da mídia, em 11 de setembro fomos
“testemunhas oculares da história”. O pedido de apoio feito pelo governo americano, não
para seus aliados, mas também para todo o “mundo civilizado” é, para Habermas, uma
característica do mundo pós-11 de setembro. Outra é que a ameaça real do terrorismo global
acelerou a necessidade de uma transformação da lei internacional clássica numa nova ordem
mundial.
A noção de patriotismo nacional é um conceito chave para entender a visão de
Habermas de uma nova ordem mundial, que ele vislumbra como o desafio mais urgente com
que confrontamos após os ataques de 11 de setembro. Para ele, a política é apenas uma troca
comunicativa cuja exigência máxima é chegar a um acordo mediado pela razão sobre o que
realmente queremos dizer quando falamos com o Outro, ou seja, a política é parte
indistinguível da modalidade comunicativa; dessa forma, tanto na política quanto na fala
cotidiana, manipulações e mentiras não podem dominar, sob pena de inviabilizar a
comunicação.
Objetivamente, o terrorismo só pode adquirir conteúdo político se tiver metas políticas
realistas, de outra forma é mera atividade criminosa.
Para Habermas (2003), vincular a prática do terrorismo às suas metas cria a
possibilidade de classificá-lo em três tipos, a saber:
1- O primeiro é representado pelo terrorismo palestino, em que o assassinato é
praticado por um militante suicida; seria a guerra de guerrilha.
2- O segundo é a guerra de guerrilha paramilitar, característico dos movimentos
de libertação nacional e legitimado pela formação de um Estado.
3- O terceiro é o terrorismo global, que não possui metas políticas realistas, a não
ser explorar a vulnerabilidade dos sistemas complexos. A fugacidade e a
intangibilidade representam o terrorismo global, a total indiferença e apatia
em relação ao sofrimento humano.
Habermas enxerga claramente que o terrorismo global engendra a deslegitimação dos
governos democráticos, haja vista o risco latente de que uma reação exagerada por parte dos
Estados Unidos pudesse trazer implicação paradoxal e trágica: a deslegitimação da
democracia.
O terrorismo é um efeito colateral da globalização negativa, já que a globalização dos
danos e prejuízos resulta na globalização do ressentimento e da vingança. Para o sociólogo
polonês Bauman, a vulnerabilidade humana é a tônica do mundo negativamente globalizado:
O espectro da vulnerabilidade paira sobre o planeta negativamente globalizado.
Estamos todos em perigo, e todos somos perigosos uns para os outros. apenas três
papéis a desempenhar perpetradores, vítimas e baixas colaterais (...) Aqueles de nós
que já se encontram na extremidade receptiva da globalização negativa buscam
freneticamente fugir e procurar vingança (BAUMAM, 2006, p.129).
O que torna o mundo atual tão vulnerável o os perigos de probabilidade não
calculável que aparecem num ambiente irregular onde as anormalidades se tornam regra. As
raízes de nossa vulnerabilidade são de natureza política e ética.
O filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993) apresenta, em Princípio da
responsabilidade (1979), a clássica teoria da ética da responsabilidade, onde resta claro que a
ética não conseguiu e ainda não consegue dar conta do rápido avanço das responsabilidades.
A intensa rede de intercomunicação e interdependência cio-econômica de um mundo
globalizado torna todos objetivamente responsáveis; portanto, se agirmos ou não, se
desejamos ou não esta responsabilidade, estamos incondicionalmente subjugados a ela. A
ética ensina que somos responsáveis pelo sofrimento de todos, e este é o ponto crucial da
Ética da Alteridade.
O gap entre a responsabilidade objetiva e a responsabilidade aceita e praticada vem
aumentando em função do que o matemático e filósofo francês Dupuy (1941) apontou como a
tendência tradicionalmente autorrestritiva da fórmula ortodoxa da responsabilidade normativa,
que consiste em se basear nos conceitos de intenção e motivo, completamente inadequados
para lidar com o desafio de um mundo globalizado.
A distinção entre um assassinato por ação individual intencional e um assassinato em
resultado de cidadãos egoístas de países ricos que concentram suas preocupações no
seu próprio bem-estar enquanto os outros morrem de fome se torna cada vez menos
defensável (DUPUY, 2002, p.154).
A busca desesperada dos motivos para determinar os responsáveis por um crime de
nada valerá enquanto não entendermos os códigos morais e as tramas sócio-político-
econômicas que originaram o atual estado de vulnerabilidade e medo em que vivemos.
Estamos diante do assombro e da impotência, do vácuo ético. No dizer de Hans Jonas:
Trata-se de saber se, sem restabelecer a categoria do sagrado (...), é possível ter uma
ética que possa controlar os poderes extremos que hoje possuímos. (...) Diante de
ameaças iminentes cujos efeitos ainda podem nos atingir, frequentemente o medo
constitui o melhor substituto para a verdadeira virtude e a sabedoria (JONAS, 1979, p.
65).
Os ataques terroristas de 11 de setembro representam a profanação do sagrado, a
quebra de todo raciocino lógico de causa e efeito. A semente do terror germina no vazio ético
que não pensa a diferença e o agir humano. Diante da maior profanação ao sagrado direito a
vida, instaura-se, como necessidade, a busca por uma cultura da ética da alteridade, visto sua
existência ser tão ou mais necessária quanto maiores forem os poderes de agir que ela precise
regular. Com isso se inicia a tarefa propriamente dita de buscar uma resposta, uma cura para o
mal da indiferença em uma sociedade global.
1.3 SENTIDOS DA INDIFERENÇA
1.3.1 O Sentido Real
Em 11 de setembro de 2006, foram apresentadas duas produções cinematográficas
americanas em memória das vítimas dos atentados terroristas do 11 de setembro de 2001.
Exatamente cinco anos após a tragédia, as duas produções procuraram distanciar-se ao
máximo do modelo de cinema em Hollywood: United 93 (2006), em português Vôo 93, de
Paul Greengrass, e World Trade Center (2006), em português As torres gêmeas, de Oliver
Stone, centram-se na coragem das pessoas simples, sem recorrer às grandes estrelas, aos
efeitos especiais ou a atos heróicos, oferecendo uma representação realista e lacônica dos que
vivenciaram uma situação extraordinária.
Nessas produções, um toque de autenticidade, e a maioria da crítica celebrou a
sobriedade e a medida de seu estilo, principalmente o fato de haver renunciado a todo
sensacionalismo. Com certeza, essa presença do realismo autêntico suscita algumas questões
controversas, que, ambas as produções não impedem que adotemos um ponto de vista
político sobre os fatos que narram, como também que possamos descobrir o contexto mais
amplo em que se situam os fatos.
Os passageiros de United 93 e os policiais e bombeiros de World Trade Center não
possuem uma visão global do acontecimento; eles estão repentinamente imersos numa
situação de horror e buscam enfrentá-la da melhor maneira possível. A ausência de
“cartografia cognitiva” é crucial. As produções representam pessoas comuns, afetadas pela
intrusão brutal e repentina da História como causa ausente, afetadas pelo impacto do real
invisível. A mensagem política das duas películas reside no fato de se absterem de dar uma
mensagem política explícita; o que transmitem é uma confiança tácita no Governo: “Quando
nos atacam, temos que cumprir com nosso dever” esclarece o Chefe dos Bombeiros no
filme World Trade Center.
Tal fala assinala o verdadeiro problema: a ameaça invisível e onipresente do terror
legitima as medidas defensivas demasiadamente visíveis. A guerra contra o terror se distingue
das precedentes lutas mundiais do século XX, pelo fato de que nestas o inimigo estava
claramente identificado com o império comunista existente, ou seja, a ameaça terrorista é
constitutivamente espectral, está desprovida de um centro visível.
A potência que se apresenta como estando continuamente ameaçada e que afirma estar
defendendo-se de um inimigo invisível corre o risco de converter-se num poder manipulador.
Podemos realmente confiar nessa potência ou ela apela a essa ameaça para impor-nos uma
disciplina e para exercer o poder de controle. A lição que emerge é de que no combate contra
o terror, é mais indispensável que nunca que a política de Estado seja democraticamente
transparente. Infelizmente, estamos hoje vivendo sob os efeitos negativos da globalização
tecnoeconômica em descompasso com a globalização humanista, como afirma o sociólogo
francês Edgard Morin (1921):
Não é a globalização da economia que deve ser lamentada, mas, pelo contrário, o fato
de ela não estar institucionalmente regulada. É preciso, portanto, que haja uma
autoridade reguladora legítima de alcance planetário... Dessa forma, desenvolve-se a
dialógica entre globalização econômica e globalização humanista (MORIN, 2005, p.
68-69).
1.3.2 O Sentido Político e Econômico
Atualmente, pagamos o preço das manipulações dos governos neoliberais, do consumo
diário da mídia sensacionalista e, principalmente, de nossa indiferença narcísica, alimentada
pela sociedade do consumo global e cujo ponto máximo vem com a especulação/afirmação
sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque (março de 2002). Vivemos
sobre o alarme de novos atentados terroristas e tragédias anunciadas, pandemias e catástrofes
naturais. Sem dúvida, o alarme é real, afirmar o contrário seria excessivamente paranóico.
Não podemos evitar pensarmos que todo esse assunto é um espetáculo posto em cena sobre a
consciência, para acostumar-nos ao estado de emergência permanente, ao estado de exceção
como estilo de vida. Podemos indagar que margem oferece esses acontecimentos à
manipulação política e econômica, quando as únicas coisas publicamente visíveis são as
próprias medidas antiterroristas.
O sociólogo polonês Bauman afirma que o ser humano vive hoje em meio a uma
ansiedade constante. Temos medo de perder o emprego, medo da violência urbana, do
terrorismo, medo de ficar sem o amor do parceiro, da exclusão sócio-econômica. As certezas
da modernidade sólida se foram e, com isso, a utopia do controle sobre os mundos social,
econômico e natural desmoronou. “Uma pessoa que tenha interiorizado uma visão de mundo
que inclui a insegurança e a vulnerabilidade recorrerá rotineiramente à sensação de medo,
mesmo na ausência de ameaça genuína” (BAUMAN, 2006, p. 9).
Essa sensação de constante ameaça é bastante lucrativa para determinados Estados e
setores das sociedades capitalistas, que mercanciam valores como segurança, ordem, justiça e
direitos humanos.
Os direitos humanos continuam na primeira linha da estratégia pedagógica e retórica
dos ideais democráticos, contrapondo que o terrorismo é um crime contra a humanidade. Ao
perseguir o terrorismo islâmico como a depravação da violência sem razão, as democracias
ocidentais pretendem responder através da vigilância, da sofisticação dos serviços secretos, do
controle dos movimentos das forças que ameaçam, procedendo a escutas, destruindo alvos,
infiltrando as células terroristas. Mas a pergunta maior continua sem resposta: de que maneira
será possível ultrapassar o terrorismo e consolidar os direitos humanos?
O filósofo americano Louis Pojman (1935-2005) pretendeu responder a este fenômeno
e ao desafio que ele significa, ao defender, no livro Terrorismo, direitos humanos e a
apologia do governo mundial (2007), a tese de que o terrorismo emergiu com a globalização
e o cosmopolitismo e poderá ser debelado através da cooperação internacional, com a
consolidação de um cosmopolitismo democrático e com um governo mundial limitado. Na sua
argumentação, o filósofo distingue o terrorismo antigo do terrorismo moderno, sugere formas
de combater o radicalismo, mostra-se favorável à compatibilidade entre o nacionalismo
moderado e o cosmopolitismo democrático e defende contratos mundiais que permitam um
desenvolvimento dos direitos humanos à escala mundial.
O terrorismo atual não está confinado a alvos específicos, são-lhe indiferentes pessoas
inocentes e prega uma violência horrífica que não poupa civis. Invoca sempre a autoridade de
Deus e oferece recompensas de felicidade interna. Joga com a insatisfação cultural ou a falta
de pátria dos prosélitos que se sacrificam à morte, muitas vezes sob a forma de homens-
bomba. Estes terroristas dividem o mundo entre estados islâmicos e não islâmicos. Este
terrorismo moderno usa tecnologias avançadas e o seu objetivo é a destruição ilimitada. Entre
as muitas diferenças entre terrorismo antigo e o moderno, temos o armamento, que agora o
que interessa é qualquer arma que mate o maior número de inimigos possível.
antes, em 2006, em sua obra Democracia, Pojman afirma a necessidade de
existirem formas políticas e morais. As políticas passam por quatro princípios: não fazer
concessões nem fazer acordos com os terroristas; levá-los aos tribunais; isolar os Estados que
apoiam o terrorismo; estabelecer alianças com todos aqueles que precisam de ajuda na luta
contra o terrorismo. Dentre as respostas morais, a mais urgente é abandonar o apoio aos
golpistas não democratas, corruptos e inimigos dos direitos humanos. Sem essa estratégia
claramente assumida, nunca se chegará a um contrato mundial moralmente responsável. Diz o
filósofo: “O nacionalismo é a tese de que devemos ser primariamente leais ao nosso Estado-
Nação”, enquanto “o cosmopolitismo é a tese de que devemos ser primariamente leais com a
humanidade no seu todo” (POJMAN, 2006, p. 67). O nacionalismo é uma extensão do
particularismo moral. Está enraizado nas nossas relações íntimas com a família, com os
amigos e a comunidade, “indo, no entanto, além dessas relações de modo a incluir todos os
que pertencem ao mesmo grupo político e cultural que nós” (idem, p. 69). Não podemos viver
sem a força poderosa do nacionalismo, a matriz da nossa identidade, a proteção da nossa
cultura e o Estado-Nação.
O cosmopolitismo não é em si o oposto do nacionalismo, mas, sim, de cidadania
mundial; funciona acima da raça, da classe ou do Estado-Nação. Este fenômeno decorre das
forças globais, do peso das multinacionais, do mercado mundial, das novas correntes
migratórias, da aceleração das comunicações, das ameaças ambientais globais, do perigo da
guerra química e biológica, entre outros. A lei internacional tem permitido o funcionamento
desta globalização tecnoeconômica, mediante as forças policiais e militares e os tratados sobre
armamentos e segurança.
Há, pois, vantagens numa contratação mundial para evitar a deflagração de riscos e
prevenir ameaças: criar uma agência central para manter a paz, ter uma força policial
permanente, que se caminhe para uma paz positiva, que Pojman define como a que “ocorre
onde existem mecanismos para resolverem-se conflitos de interesses através de negociação ou
da Lei”. Tais mecanismos existem entre as nações da União Europeia e entre os vários estados
dos Estados Unidos (ibidem, p. 55).
Este cosmopolitismo poderá ser defensável se garantir a igualdade moral das pessoas,
a igualdade das oportunidades e a melhoria da qualidade de vida. Põe-se agora a equação qual
seria a natureza do governo mundial mais adequado, e o filósofo sugere um governo mundial
mínimo cujos Estados, ao mesmo tempo, renunciem à soberania no que diz respeito às
relações externas, mas retêm a completa soberania sobre assuntos internos. No momento em
que se gerar em nível de escala mundial, essa confiança poderia passar a uma etapa posterior:
a de um governo mundial moderado.
Por último, o filósofo disserta sobre a matriz do governo mundial a Declaração
Universal dos Direitos do Homem. Convém enfatizar que a Declaração Universal dos Direitos
do Homem foi associada, nos Estados Unidos da América, às quatro liberdades universais do
Presidente Roosevelt (liberdade de expressão e de religião, direito à satisfação das
necessidades básicas e à ausência de ameaças). Tais direitos são construções sociais que
visam a produzir um mundo melhor.
A humanidade avançou em termos morais pós-1948, mas continua sem uma
teoria/prática ética adequada: um quinto da humanidade continua a viver na pobreza extrema,
ainda é constrangedora e profundamente imoral a insatisfação das necessidades básicas, da
justiça, da habitação e da educação, que vertiginosamente escasseiam em diversas partes do
planeta. Esta a grande promessa para quem decididamente quer apostar na derrota do
terrorismo internacional, do obscurantismo e nas profundas deficiências do desenvolvimento
humano. Interessa agora saber se os políticos estão dispostos a perceber que o terrorismo
internacional não se resolve só com vigilância e policiamento.
Uma pequena peça de teatro de Oswald de Andrade (1890-1954), intitulada
Panorama do fascismo (1937), possui uma cena alegórica em que o Chefe, personagem
emblemática, discursa ante uma multidão. Ele, um ditador pintado como um palhaço,
lembrando "O grande ditador", de Charles Chaplin, depois de propor "matar todos os
desafetos" e ser ovacionado, completa: "Os indiferentes também!", sendo novamente
aclamado pela multidão
4
.
A cena parece estar muito menos relacionada a um fato histórico específico do que a
uma força latente e sempre presente na política: ao retomar a peça em 1945, logo após o fim
da Segunda Grande Guerra, Oswald de Andrade argumentou que ela continuava "mais que
oportuna, pois hoje o fascismo não anda às claras como em 1937, quando a publiquei, mas
parece oculto e camuflado nas roupagens mais inesperadas" (ibidem). Do mesmo modo, no
seu discurso de encerramento ao I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado no mesmo
ano, uma advertência análoga é feita a respeito do perigo da ocultação do fascismo, este
"conúbio do Capital, do Oportunismo e do Terror" (ibidem). De algum modo, poderia dizer-se
que a curta passagem que citamos parece conter a quintessência de um fenômeno que
ultrapassa a mera circunstância histórica e que, aceitando a sugestão do autor, chamaremos de
terrorismo.
1.3.3 O Sentido Histórico
Doze anos antes, aos nove de novembro de 1989, caía o muro de Berlim. A derrocada
do comunismo era vista em todas as partes como o fracasso das utopias políticas: hoje, depois
de se ter aprendido, não sem dor, que as utopias políticas nobres se convertem em terror
totalitário, vivemos numa época pós-ideológica de administração pragmática. É preciso
assinalar que a este suposto fracasso das utopias sucedeu o reinado, durante uma década, da
última grande utopia: a utopia da democracia liberal capitalista em escala global.
O nove de novembro de 1989 anunciava os felizes anos 90, o sonho do fim da história,
previsto pelo filósofo e economista americano Francis Fukuyama (1952). Ele, em 1989,
observou que os movimentos reformistas emergentes na então União Soviética e na Europa
Oriental, além de propagarem a cultura do consumo em escala mundial, são a marca da vitória
do mundo capitalista. Os resultados do que Fukuyama percebera começaram a mostrar-se
corretos. O 11 de setembro é o grande símbolo do fim desta utopia, uma volta à História Real.
Anuncia-se uma época na qual se levantam novos muros por todas as partes: entre Israel e a
faixa de Gaza, ao redor da União Europeia, na fronteira entre Estados Unidos e México, entre
Espanha e Marrocos. Uma época com novas formas de apartheid e de tortura “legal”.
4
Disponível em: www.culturaebarbarie.org/cg. Acesso em: janeiro de 2009.
Tal como afirmou o presidente George W. Bush imediatamente após o 11 de setembro,
os Estados Unidos estão em guerra. O problema está precisamente no fato de os Estados
Unidos evidentemente não estarem em guerra, ao menos não no sentido convencional do
termo para a maioria da população, a vida cotidiana segue seu curso, e a guerra é assunto
exclusivo do âmbito estatal. Desse modo, a própria distinção entre o estado de guerra e o de
paz fica alterada, a ponto de configurar-se uma época na qual a própria paz pode coincidir
com o estado de exceção.
Em sua glorificação do desejo de liberdade nos países pós-comunistas, George W.
Bush o comparou a um “fogo dos espíritos”. A ironia involuntária da afirmação está em que
utilizou uma frase de “Os demônios” (1872), do escritor russo Fiódor Dostoievski (1821-
1881), na qual este qualifica de impiedosa a ação dos anarquistas radicais que incendiaram um
povoado. Sobre essa comparação do presidente americano George W. Bush, Slavoj comenta
em artigo publicado no jornal El País, Madrid, Espanha, de 20-9-2006: “O fogo está nos
espíritos, e não nas casas”. O momento exige cautela e lucidez, não podemos permitir que a
cultura da indiferença dominada por discursos ideológicos acenda as fogueiras de uma
inquisição maniqueísta pós-11 de setembro.
1.4 A INDIFERENÇA DO TERRORISMO
A simples aceitação da sociedade em que vivemos, sem críticas, questionamentos
internos, análises políticas, econômicas e sociais e, especificamente, sem o desejo de que ela
possa ser diferente, transmite a falsa imagem de que tudo está bem com o projeto
civilizacional. Tal fato remete a outro: aceitar que vivemos “apaticamente” num ambiente de
terror e miséria pressupõe que fomos “anestesiados” pelo medo paralisante de estarmos
cercados por todos os males.
A cultura da indiferença está presente na sociedade alimentada por ideologias,
preconceitos e interesses políticos e econômicos. O crescente desamparo, bem como toda
forma e espécie de corrupção, anarquia e criminalidade, torna imperativa a construção de uma
consciência ética plural, como um farol para sociedade global.
O sofrimento do 11 de setembro abateu-se sobre todos nós, sobre as pessoas de muitos
credos e muitas nações. Todas as vítimas, inclusive muçulmanas, foram mortas com a mesma
indiferença pelo terrorismo global. Os terroristas violaram os princípios de todas as religiões,
inclusive daquela que dizem seguir. É necessário refletirmos sobre as possíveis razões por trás
das discrepantes reações vivenciadas na sociedade atual. Os atos terroristas que deram origem
a milhares de vítimas inocentes e deixaram um rastro assustador de sofrimento e de destruição
não geraram um sentimento universal de indignação e consternação, mas sentimentos
contraditórios de “celebração” por parte dos que se julgam oprimidos pela política externa
norte-americana e total indiferença diante do sofrimento e morte de inocentes.
Quando a indiferença é a principal reação a uma catástrofe que acontece aos Outros
que não compartilham nossa cultura e raça, e que não pertencem a nossa esfera de influência
social e política, percebemos que nossas várias diferenças abrem um abismo entre nós,
tornando os Outros tão estrangeiros que tendem a desaparecer por completo como entidades
de nossa própria consciência. A capacidade de empatia para com os sofrimentos alheios e a
responsabilização pelos crimes cometidos contra eles se tornam parcialmente obliteradas.
Alguns de nós sentiram com toda a força o impacto dos ataques terroristas em 11 de setembro,
porém nem todos tiveram o mesmo sentimento de indignação e assombro em relação às mais
de cinco mil vítimas civis dos bombardeios aéreos no Afeganistão.
Percebemos que a obliteração da noção e da percepção do sofrimento do Outro está na
raiz da indiferença. As mídias globais, sem dúvida, desempenham fundamental papel para
influenciar e sustentar operações psicológicas. Os meios de comunicação social e as elites
políticas estão bem conscientes do imenso poder das imagens. Jamais vamos esquecer as
imagens chocantes dos aviões guiados para as torres gêmeas e a consequente tragédia
humana, mostrado repetidamente, dia após dia, em nossas telas de televisão. Em
contrapartida, é bastante reduzido o número de imagens de mães enlutadas por seus filhos e
maridos que morrem no Iraque, no Sudão, no Afeganistão, na Bielo Rússia.
A cobertura mediática reforça a negação e a indiferença, que permitem apagar a
consciência de que, no final dos bombardeios de alta precisão, guiados a laser, restarão apenas
os restos de seres humanos que foram um dia de carne e osso. É relevante destacar que as
pessoas tocadas diretamente pela tragédia de ataques terroristas, que perderam seus entes
queridos, resistem corajosamente a serem capturados pela cultura da indiferença, como os pais
de Greg Rodriguez, um jovem que morreu no ataque terrorista ao World Trade Center. No
artigo “Terrorismo e vitimização”, de Sverre Varvin, ela relata o que os pais disseram:
Não basta ler a notícia de que o nosso governo está avançando em direção a uma
violenta retaliação; temos certeza de que a perspectiva de filhos, filhas, pais e amigos
morrendo em terras distantes só acarretará mais sofrimento e mais queixas contra nós.
Este não é o caminho a percorrer não em nome do nosso filho. Para esses pais
enlutados, a guerra de retaliação a uma distância asséptica, sem suscitar defesas, é
considerada como um crime (VARVIN, 2008, p. 51).
A filósofa alemã e judia Hannah Arendt (1906-1975), em sua obra Eichmann em
Jerusalém, de 1963, determinou que o mal seria o problema fundamental a ser estudado na
sociedade após os horrores nazistas da Segunda Grande Guerra. Infelizmente, poucos autores,
com exceção dela mesma, publicaram obras de reflexão sobre o tema. Diante de Auschwitz,
os filósofos permaneceram, em sua maioria, em silêncio, provavelmente porque os
acontecimentos ocorridos nos campos de extermínio nazistas desafiaram a própria capacidade
de compreensão humana. Hannah Arendt teorizou sobre a incapacidade de a Humanidade
julgar os crimes da Segunda Guerra Mundial, por estarmos lidando com uma nova forma de
mal sem precedentes, e estarmos diante da ausência absoluta de conceitos históricos acerca de
tamanha barbárie.
O ser humano, privado do conhecimento de conceitos históricos capazes de dar
significado a tais eventos, viu-se impossibilitado de fazer juízos de valor e de identificá-los
com o mal. Para Arendt, alguns dos fatores que acarretaram a gradativa banalização do Mal: a
necessidade de realizar punições no período do pós-guerra e de acalmar a comunidade
mundial, a indiferença sobre as razões desse novo agir maléfico.
Arendt (1963), utilizando como ferramenta para a compreensão das novas formas do
Mal a noção kantiana de “Mal Radical” “A deflexão moral do homem fundamenta a sua
máxima moral no ‘amor de si’. A máxima moral que traz o amor de si como móbil tem a
humanidade como meio e nunca como fim moral” (KANT, I., 1992, p. 339) –, criou um novo
esboço do conceito de natureza humana. Na descrição feita pela filósofa sobre o julgamento
de Adolf Karl Eichmann, ela apresenta uma forma diferente de vê-lo.
Eichmann era oficial da Alemanha nazista, membro da Schutzstaffel (em português,
“tropas de proteção”), abreviada como SS ou , em alfabético rúnico, pertencia a uma
organização paramilitar ligada ao partido nazista alemão. Seu lema era "Mein Ehre heißt
Treue" ("Minha honra é a lealdade"). Inicialmente, a força paramilitar nazista era a
"Sturmabteilung", ou "Divisões de Assalto", que utilizava o terror junto aos inimigos do
nazismo, por meio da tortura e do assassinato. O grupo quase saiu do controle dos líderes e
precisou ser transformado numa nova instituição. A Schutzstafell compunha-se de um grupo
de elite, que contava com homens racialmente selecionados e disciplinados. Eichman era parte
dessa elite responsável pela chamada “lógica do extermínio”; cabia-lha organizar o transporte
dos judeus para os diferentes campos de concentração.
Arendt argumenta que Eichmann não pode ser visto como um pobre coitado que
apenas cumpria ordens, mas como um homem que fazia parte de um sistema e que se omitiu
da sua capacidade de julgar. Essa mesma crítica ela fez à comunidade mundial e à
comunidade judaica, que, durante a Segunda Guerra Mundial, cometeram o mesmo erro. Para
ela, a omissão acontece quando o ser humano abre mão da sua capacidade de julgar, não por
ignorância, mas, sim, por interesses. Segundo sua interpretação, a banalização do mal é a
própria banalização da humanidade, que se torna meio para fins e não um fim moral em si
mesma. Os seres humanos se omitem dos seus julgamentos morais em troca de benefícios
pessoais. Assim, a comunidade mundial abriu mão do ousar pensar e, num momento posterior,
procurou punir os culpados para esquecer os próprios crimes, sem imaginar que tal evento
apresentasse mais uma nova forma de mal.
Quando Arendt acompanhou o julgamento de Eichmann, em Jerusalém, em 1961, ela
foi tomada por uma dúvida: “Como se a relação entre o pensamento e a moralidade?” O
que mais a assustou foi a superficialidade da figura de Eichmann, o que tornou difícil
identificá-lo como o grande monstro capaz de cometer crimes tão bárbaros. Para ela, o
pensamento tem o poder de nos abster de cometer grandes males à sociedade e seu objeto
maior é a experiência e nada mais. Assim, o pensamento precisa estar enraizado na
experiência e só tem algo a dizer sobre o mundo se permanece nessa condição; portanto,
faz sentido se não se desvincula das experiências que o desencadearam. Não só: o pensamento
precisa sempre ser repensado e é simplesmente inconcebível sem o discurso, pois precisa dele
para entrar em atividade, numa relação de interdependência.
A linguagem é o veículo e a forma do pensamento. A ausência de pensamento com
que Arendt se defrontou no julgamento de Eichmann não vinha nem do esquecimento de boas
maneiras e dos bons hábitos, nem da estupidez ou “insanidade moral”. Em sua obra “A vida
do espírito”, ela afirma que a ausência de pensamento “era igualmente notória nos casos que
nada tinham a ver com as assim chamadas decisões éticas ou os assuntos de consciência”
(ARENDT, 1993, p. 6). O que pode nos privar de cometer o mal é o pensamento, o qual tem a
habilidade de distinguir o certo do errado. “Deveríamos exigir de toda pessoa o exercício
do pensamento, não importando quão erudita ou ignorante, inteligente ou estúpida essa pessoa
seja” (idem, p. 12).
Tal assertiva contradiz a afirmação kantiana de que “a estupidez é fruto de um coração
perverso”, uma vez que pode ser comum em pessoas muito inteligentes, e “a causa disso não é
um coração perverso; pode ser justo o oposto; é mais provável que a perversidade seja
provocada pela ausência de pensamento” (idem, p. 13).
Hannah Arendt foi severamente criticada por intelectuais judeus por não “demonizar”
Eichmann e ao contrario, não ser indiferente a “sua “condição humana”, por pensar além das
aparências e evidencias e denunciar que a verdadeira compreensão dos fenômenos como o
totalitarismo deveria levar em consideração a complexidade da natureza e da motivação
humana. Uma gradativa banalização do Mal, importando então manter permanente vigilância
em prol da nossa segurança e da defesa das liberdades individuais.
As atrocidades praticadas no último quartil do século XX contra a minoria mulçumana
na ex-Iugoslávia, os massacres de Ruanda e o sangrento início do milênio com os atentados
terroristas em Nova York, Washington, Bali, Madrid ou Londres exemplificam a falta da
valoração moral ou de sentido de culpa por parte de fanáticos partidários dos mais diversos
extremismos.
Para Baudrillard, “o terrorismo, sob todas as suas formas, é o espelho transpolítico do
mal” (BAUDRILLARD, 1990, p. 89). E prossegue, colocando que a grande questão é
sabermos para onde foi a maldade, o grande Mal: “a anamorfose das formas contemporâneas
do Mal é infinita” em nossa sociedade hedonista, consumista e fragmentada:
Numa sociedade em que à força de profilaxia, de extinção das referências naturais, de
embranquecimento da violência, de exterminação dos germes e de todas as partes
malditas, de cirurgia estética do negativo, se quer tratar com a gestão calculada e
com o discurso do Bem, numa sociedade em que já não há possibilidades de enunciar
o Mal; este se metamorfoseou em todas as formas virais e terroristas que nos
obsessionam (idem).
Baudrillard (1990) afirma que numa relação de forças políticas, militares e econômicas
negativas, a recusa dos valores ocidentais de progresso, racionalidade moral política e,
democrática e a negativa em construir um consenso universal sobre o Bem confere ao
islamismo radical a energia do Mal:
A energia satânica do reprovado, o fulgor da parte maldita. ele detém a palavra,
porque só ele a assume contra todos a posição maniqueísta do principio do Mal, só ele
(O Islã radical) assume pronunciar o mal e exorcizá-lo, ele aceita encarná-lo pelo
terror. O que leva a isso é para nós ininteligível. (...) Pois o poder existe por força
simbólica de designar o Outro, o inimigo, o desafio, a ameaça, o Mal (ibidem, p. 90).
Diante da denúncia de nossa vulnerabilidade e impotência pela palavra negada, não
podemos mais enunciar o Mal. O terrorismo global nos roubou o poder simbólico da palavra,
deixando-nos condenados às fraquezas do Bem, à deficiência dos direitos humanos, à exibição
débil de nosso arsenal bélico e às flutuações “tsunâmicas” de mercados globalizados de
capital. “O poder simbólico é sempre superior ao das armas e do dinheiro” (ibidem, p. 91).
No próximo capítulo, trataremos da história do terrorismo e do direito aplicado, bem
como analisaremos as relações estabelecidas entre os sistemas coletivos e os individuais de
intolerância e indiferença.
CAPÍTULO 2 - TERROR E BARBÁRIE
Por fim, assim como os EUA jamais tolerarão a violência dos extremistas, jamais
alteraremos nossos princípios. O 11/9 foi enorme trauma para nosso país. O medo e a
ira que provocou foi compreensível, mas em alguns casos levou-nos a agir ao
contrário de nossos ideais. Tomamos ações concretas para mudar de curso. Proibi
inequivocamente o uso de tortura pelos EUA, e ordenei que a prisão da baía de
Guantânamo seja fechada até o início do próximo ano. Portanto, os EUA defender-se-
ão, respeitando a soberania das nações e sob o império da lei. E o faremos em parceria
com comunidades muçulmanas que também são ameaçadas. Quanto antes os
extremistas sejam isolados e não se sintam bem-vindos nas comunidades
muçulmanas, mais rapidamente todos teremos mais segurança.
Barack Hussein Obama, 4 de junho de 2009.
2.1 A HISTÓRIA DO TERROR
A ação terrorista é um fato inscrito na era atual, mas sempre esteve, infelizmente,
presente na história da humanidade. Muito antes que ataques militares premeditados contra
civis fossem chamados de terrorismo, a tática recebeu vários outros nomes e tem como
método afetar o comportamento de nações e líderes.
Do tempo da república romana até o final do século XVIII, a frase mais utilizada era
guerra destrutiva ou punitiva, desde que muitas campanhas militares romanas fossem, de fato,
empreendidas como punição, por traição ou rebelião; sua origem emanava do simples desejo
de impactar os povos recém conquistados com o temível poder de Roma, a fim de minarem
possíveis líderes de resistência locais.
O exemplo de Roma incorpora quase todas as possibilidades de operações de guerra
contra civis. O maior Estado da Antiguidade forneceu um imenso número de precedentes para
muitas repúblicas e impérios que, mais tarde, surgiram no Ocidente. Para o historiador
americano Carr (1955), há dois grandes legados de Roma para o mundo:
As ideias de que as guerras não exigiam maiores justificativas que a exaltação do
poder, e de que não havia nenhuma razão para tratar não combatentes com menos
rigor do que os guerreiros, confirmando, assim, e até mesmo legitimando o
comportamento que já caracterizava a maioria dos Estados e tribos não romanas,
colocava essas tradições amorais bem no centro de quase todos os conflitos
internacionais que se seguiram à dissolução e ao colapso o império (CARR, 2002, p.
46).
O colapso do Império Romano do ocidente ocorreu em 476 d.C., com as invasões
bárbaras e a derrocada final do Estado Romano. Ao tomar conhecimento do saque à cidade de
Roma, em 410 d.C., por Alarico (395-415 d.C.), rei dos Godos, cujo exército, em sua maioria,
era constituído por bárbaros do exército romano, o bispo e filósofo cristão Agostinho de
Hipona (354-430 d.C.) escreveu um tratado que enumeraria as terríveis discrepâncias entre as
“cidades dos homens” e a “cidade de Deus”. Suas reflexões abrangiam a condução da guerra
internacional e apresentavam um dos mais conceituados preceitos da história da filosofia
militar, o da “guerra justa”. Para que uma guerra fosse considerada “justa”, não poderia ser
fruto dos caprichos e dos interesses particulares de impérios e seus governantes. O filósofo
afirmava o seguinte sobre a “cidade dos homens”:
É uma cidade de disputas, com as opiniões divididas por guerras externas e discussões
domésticas e pelas exigências de vitórias que ou terminavam em mortes ou são apenas
pausas temporárias para guerras futuras (...) É errado, porém, negar que os objetivos
da civilização humana sejam bons, pois este é o fim mais elevado que o homem pode
atingir (...) O propósito da guerra é a paz. Mesmo quando os homens tramam para
perturbar a paz, é apenas para moldar uma nova paz mais próxima dos desejos do
coração. Quando a vitória vai para o lado cuja causa era mais justa, certamente é
motivo de júbilo, e a paz deve ser bem vinda (SANTO AGOSTINHO, 1990, p. 35-
36).
Dessa forma, o primeiro requisito de uma guerra justa é trazer a paz em vez de
perpetuar o ciclo de vandalismos, violência e pilhagem, o qual beneficia alguns enquanto
destrói a vida de milhões. Quanto às razões para as guerras serem travadas, Agostinho
apresentava apenas uma:
Uma guerra justa (...) é justificada pela injustiça de um agressor; e essa injustiça
deve ser fonte de pesar para todo o homem de ‘bem’, porque é injustiça humana. (...)
A injustiça é qualquer coisa que obstrui a vontade de Deus de que as pessoas vivam
em “confraternização controlada” (idem, p. 47-48).
Esta “confraternização controlada “quer dizer que os homens deveriam evitar o
derramamento de sangue descontrolado e a desordem caótica nas instituições” (idem).
Infelizmente, Agostinho morreu em 430 d.C., sem vislumbrar nenhuma cidade de Deus na
terra, mas a semente de suas ideias pacifistas noção de que as guerras deveriam ter causas
justas e de que os homens deveriam controlar a brutalidade de seus comportamentos, tanto por
razões práticas quanto idealistas mostrar-se-ia resistente e germinaria no mundo cristão nos
séculos seguintes.
A teoria da guerra justa, contudo, teve um nefasto efeito colateral: quando Agostinho
falava em restaurar a paz, referia-se à paz de Deus, do Deus cristão; contudo, a violência
perpetrada em nome da cristã, implicitamente justa, tornou-se uma das razões para o início
de outras guerras contra os infiéis.
Enquanto isso, a segunda mais poderosa religião mundial desenvolvia-se na Península
Arábica. Sua doutrina também ensinava vigorosas lições sobre como a guerra deveria ser
conduzida e sobre como os civis deveriam ser tratados no decorrer dela. A dificuldade era, e
continua sendo até os dias atuais, que, desde o início do movimento no século VII, o profeta
Maomé e seus seguidores precisaram lutar por sua fé e também por um território onde
pudessem viver e praticá-la. Esse sentido de conveniência momentânea confere ao seu texto
sagrado, o Corão (século XII), um caráter especial, um tom geralmente marcial, necessário
para a época.
Tal fato cria uma singular discrepância com seu igualmente apelo à compaixão. Por
exemplo, como o Islã compartilha muitos profetas e tradições sagradas com o judaísmo e o
cristianismo, os membros desses credos deveriam ser alvo de misericórdia e de tolerância por
parte dos mulçumanos (isto é, quando fosse possível); mas, quanto aos pagãos, aos politeístas
idólatras e aos gentios, a ordem era clara: “Mate-os onde quer que estejam”. O mesmo
capítulo do livro sagrado, entretanto, parecia, ao mesmo tempo, restringir um pouco essa
crueldade: “Lutai por amor a Deus contra aqueles que lutam contra vós”, dizia, “mas não os
ataqueis primeiro. Deus não ama agressores” (Corão, apud CARR, 2002, p. 51).
Como o cristianismo, o islamismo não nasceu em um vácuo cultural ou histórico; tinha
raízes em territórios e sociedades acostumados a longos séculos de guerras destrutivas. Os
conflitos tribais da Arábia, do norte da África e do Oriente Médio não eram livres das práticas
de aterrorizar e saquear civis. Quaisquer que sejam as exortações, tanto do Islã quanto da
cultura ocidental cristã, desde o início e por muito tempo, foram tradições militares de
combate que não podiam ser erradicadas apenas por boas intenções.
Mesmo depois de o cristianismo se ter tornado a oficial do império romano e de
Estados limítrofes, as desenfreadas tendências belicosas desses Estados pouco diminuíram, e
as guerras tribais continuaram a caracterizar as terras incorporadas ao império islâmico.
Nas palavras de Carr:
Passaram a ser coerentes e cruentas as hostilidades entre várias facções mulçumanas
rivais – sunitas, xiitas, abássidas, umaiades, fatímidas, entre outras – para não dizer da
periódica matança dos gentios. Os hábitos de guerra destrutiva teimavam em persistir
na verdade, nunca deixaram de existir e, com o passar do tempo, cada um desses
mundos, o cristão e o mulçumano, tornou-se tão atormentado pelas consequências
desses costumes que seus líderes começaram a procurar com afinco meios de, se não
erradicar o conflito, pelo menos de redirecioná-lo. Infelizmente, ambos chegaram à
mesma solução (ibidem, p. 53).
O vertiginoso crescimento das práticas terroristas aponta para a mais violenta
expressão de barbárie e criminalidade no globalizado mundo atual.
A palavra terror existia em latim, derivada do verbo terreo, terrere, com o sentindo
de fazer tremer, atemorizar. Mas como estratégia de ação política teria suas raízes na
Renascença italiana, quando surgiram atividades capazes de justificar atentados contra tiranos.
Na clássica obra O príncipe, de Maquiavel (1469-1527), está presente a completa indiferença
moral: em nome do patriotismo, os caminhos e meios de adquirir e conservar o poder político
se justificavam, assim como seus riscos.
A expressão "terrorismo" surgiu, pela primeira vez, no Suplemento do Dicionário da
Academia Francesa, de 1798, e remonta à Revolução Francesa, resultado da ditadura
jacobina que dominou pelo terror, executando 17.000 pessoas, no período entre setembro de
1793 a julho de 1794. No tribunal, os acusados não tinham direito de defesa, porque, segundo
se dizia na época, tal direito não se aplicava aos conspiradores e, sim, aos patriotas caluniados.
A questão fundamental que se coloca é saber o que se entende por terrorismo e se será
possível encontrar uma definição global precisa do fenômeno, que permita classificá-lo. Qual
será o melhor enquadramento: o jurídico, o político, o social ou o híbrido? A Organização das
Nações Unidas (ONU) ainda hoje não chegou a uma definição do terrorismo que fosse de
aceitação universal.
Terrorismo é notoriamente um conceito de difícil definição. De fato, corre-se o
risco de agregar sobre um mesmo nome naturezas distintas, impossibilitando a
análise, a identificação de alternativas adequadas para se lidar com o fenômeno,
induzindo ao erro quanto à avaliação da eficácia dessas alternativas. Sob o mesmo
nome de “terrorismo”, a análise da eficácia que também manifestará a mesma
confusão, condenando equivocadamente alternativas razoáveis. Uma das
dificuldades do termo “terrorismo” é que seu uso é marcado por tentativas de
desqualificar politicamente o adversário. Como diz o cientista político Adolf Gibbs, “o
terrorismo é, ao mesmo tempo, um fenômeno político, um termo depreciativo”
(GIBBS, 1989, p. 329).
Sem dúvida, o "atentado terrorista" caracteriza-se por criar um estado de
alerta e terror e pelo emprego de meios aptos a produzirem um estado geral de
perigo e insegurança. Fatos como acontecimento de 11 de setembro e o atentado
bioterrorista com o veneno Sarin
5
, no metrô de Tóquio, fizeram o jurista Jimenez de
Asúa afirmar que “o terrorismo é um crime ou uma série de crimes que se tipificam
pelo alarma que produzem” (ASÚA, 1951, v.9, p. 53).
Alguns autores destacam que o terrorismo tem a marca de um fim político-
social. Ele seria um meio de afirmação política vêem no terrorismo um crime de
intimidação, praticado através de meios desleais, odiosos e vandálicos, para obter
vantagens políticas. Esta exigência política não está em todos os doutrinadores, pois
muitos se contentam com a provocação do terror e intimidação, acrescida de danos
consideráveis. O projeto da Comissão Jurídica Interamericana, aprovado no Rio de
Janeiro, em 1970, omite esse fim político.
Os autores que o negam ressaltam que, ao lado do terrorismo político, há o
terrorismo de direito comum, criminoso, cometido para fins patrimoniais, às vezes
mascarado de político. Oportuno é lembrar o terrorismo de Estado, praticado através
de agentes ou grupos que recebem proteção e financiamento de Estados,
empregando meios insidiosos, como incêndios e explosões, ou a prática da tortura
sistemática, sequestro e desaparecimento de pessoas. Podemos afirmar que, em
parte, o sucesso do terrorismo no século XX está ligado ao fato de que muitos
países que sofreram ações terroristas haviam lançado mãos desses métodos no
passado.
Na verdade, não existe uma figura típica penal específica denominada
"TERRORISMO". O penalista Heleno Cláudio Fragoso entende que não existe um
terrorismo de direito comum, pois se trata de fato político, pois que seus autores
sempre se dirigem contra a ordem política e social vigente. Acrescenta que os
atentados e extorsões praticados pelas organizações do tipo máfias constituem-se
em crimes comuns e só impropriamente podem ser chamados de terroristas.
5
O sarin é um gás desenvolvido na Alemanha, em 1938. Ao ser inalado, ele age rapidamente sobre o sistema
nervoso, levando à paralisia muscular e à cessação da respiração, até a morte. Seu nome deriva dos nomes dos
cientistas que o desenvolveram: Schrader, Ambrose, Rudriger e van der Linde (1997).
O terrorismo internacional foi objeto de amplo debate em Siracusa, no III
Simpósio Internacional, realizado em 1973, pelo Instituto Superior Internacional de
Ciências Criminais, tendo sido elaborado um documento conceituador dessa espécie
de terrorismo, tido como uma conduta coercitiva individual ou coletiva, com emprego
de estratégias de violência e terror, dirigidas contra alvos internacionalmente
protegidos, visando a um resultado de poder (atos contra civis inocentes, civis
internacionais, diplomatas, membros de forças armadas não beligerantes etc.).
Segundo a consideração de Thomas Schelling, meu dicionário define
terrorismo como (...) o emprego de terror, violência e intimidação para obter um fim.
E aterrorizar é coagir por intimidação ou medo” (SCHELLING, 1982, p.66). A partir
daí, torna-se complexo fazer a distinção entre um ato terrorista e um ato criminoso
qualquer, uma vez que o termo, em si, depende sempre do ponto-de-vista pessoal,
imprimindo-lhe um caráter inevitavelmente subjetivo.
A título de exemplo, apontar uma arma para alguém e obrigá-lo a entregar
sua carteira pode ser considerado coação por intimidação ou medo, visando a atingir
“um fim”; no caso, obter dinheiro, pura e simplesmente. No caso de um sequestro-
relâmpago para obrigar alguém a sacar dinheiro de um caixa eletrônico e entregá-lo
ao sequestrador, também seria coagir por intimidação ou medo para atingir um fim.
Ou, ainda, para atingirmos o paroxismo: como distinguir entre um ato terrorista e um
sistema legal, cuja eficácia assenta, em última análise, sobre o emprego da
intimidação contra eventuais transgressores. Poderíamos também identificar
qualquer sistema jurídico com o terrorismo.
Uma forma clássica de definir terrorismo foi adotada pela Rand Corporation,
instituição americana sem fins lucrativos dedicada aos estudos e à análise crítica dos
principais desafios da atualidade, no campo do Direito, da Educação e da Economia e que, ao
longo dos seus quase sessenta anos de pesquisa sobre o assunto, estudou o terrorismo. Em um
trabalho recente, Jenkins assim expôs o entendimento de terrorismo ali prevalecente:
(...) era necessário definir terrorismo de acordo com a qualidade do ato, não a
identidade do perpetrador ou a natureza da causa. (...) Concluímos que um ato de
terrorismo era, antes de mais nada, um crime no sentido clássico, como homicídio ou
sequestro, embora por motivos políticos. Mesmo que aceitássemos a alegação de
vários terroristas de que eles travavam uma guerra e eram, portanto, soldados ou
seja, combatentes reconhecidos no sentido estritamente legal –, táticas terroristas, na
maioria dos casos, violavam as regras que governavam o conflito armado, como, por
exemplo, tomar civis deliberadamente como alvo ou agir contra reféns.
Reconhecíamos que o terrorismo continha uma componente psicológica: dirigia-se às
pessoas que observavam. As identidades dos alvos ou vítimas concretos do ataque
frequentemente eram secundários ou irrelevantes para o objetivo dos terroristas de
disseminar o medo e o alarme ou garantir concessões. Essa separação entre as vítimas
concretas da violência e o alvo do efeito psicológico pretendido era a característica
definidora do terrorismo (JENKINS, 1999, p. 5).
claramente alguns avanços. Em primeiro lugar, uma restrição em termos de
finalidades: os motivos são políticos. Portanto, motivações estritamente econômicas,
desvinculadas de um determinado propósito político, estariam excluídas. Da mesma forma,
ficam automaticamente excluídos propósitos apocalípticos, uma vez que sua meta é a
destruição pura e simples. O principal exemplo desse fato é a seita japonesa Aun Shinrikyo,
responsável por atentados com as substâncias tóxicas dos produtos Antraz
6
e o Sarin
7
. Por
outro lado, ao circunscrever o terrorismo como um comportamento criminoso, o entendimento
exposto acima permite excluir os sistemas judiciais da definição de terrorismo.
Infelizmente, essa caracterização também não serve. Ao contrário do que
Jenkins afirma, ela não circunscreve o fenômeno terrorista a partir da natureza do
ato, mas, sim, a partir de uma definição normativa prévia, que é a do ato criminoso, e
que está longe de ser universal e permanente. De acordo com esse entendimento,
uma mera mudança na legislação poderia subitamente transformar determinado ato
de não terrorista para terrorista, ou vice-versa. Como comparar atos e processos que
ocorrem em situações jurídicas, políticas, históricas distintas a partir desse
entendimento? Quais serão as implicações em termos de atuação acerca do
fenômeno terrorista?
Embora construída com mais cuidado, com uma perspectiva teórica mais ampla, a
tentativa de definição feita por Gibbs padece de problemas semelhantes. Segundo ele, uma
definição satisfatória de terrorismo deveria responder a cinco questões básicas:
· Primeira, o terrorismo é necessariamente ilegal (crime)? Segunda, o terrorismo
é necessariamente empregado para se realizar algum tipo particular de objetivo
e, se sim, qual? Terceira, como o terrorismo necessariamente se distingue de
operações militares convencionais numa guerra, numa guerra civil, ou da assim
chamada guerra de guerrilha? Quarta, necessariamente apenas oponentes de
6
Antraz é uma infecção aguda causada por uma bactéria que forma esporos, o Bacillus anthracis.
7
Sarin é uma substância xica que atua essencialmente sobre o sistema nervoso. Muito utilizada em guerra
química.
um governo empregam o terrorismo? Quinta, o terrorismo é necessariamente
uma estratégia distinta de emprego da violência e, se sim, qual é essa
estratégia?” (GIBBS, 1989, p. 330).
Na tentativa de respondê-las, Gibbs apresenta a seguinte definição: “Terrorismo é o
emprego ou a ameaça de emprego ilegal de violência contra objetivos humanos ou não, desde
que”; apresentando cinco condições:
(1) seja utilizado ou ordenado com vistas a alterar ou a manter ao menos uma norma
presumida, em pelos uma unidade territorial ou população particular;
(2) tenha características de sigilo, furtividade e/ou clandestinidade, esperadas pelos
participantes, de modo a camuflar suas identidades pessoais ou sua localização futura;
(3) não seja utilizado ou ordenado para propiciar a defesa permanente de alguma área;
(4) não seja uma guerra convencional e, em função do mascaramento de suas
identidades pessoais, sua localização futura, ameaças e/ou mobilidade espacial, os
participantes se percebam como menos vulneráveis à ação militar convencional.
(5) seja percebido pelos participantes como contribuindo para o objetivo normativo
descrito anteriormente (supra), através da disseminação do medo da violência em indivíduos
(possivelmente uma categoria indefinida deles) que não os alvos imediatos da violência
concreta ou ameaçada e/ou pela publicização de alguma causa (ibidem, p. 330).
Vejamos os problemas de tal definição. Em primeiro lugar, ela padece do problema
apontado anteriormente: a definição depende de um critério normativo variável (a
ilegalidade), que lhe antecede logicamente. A rigor, a primeira pergunta colocada por Gibbs
não pertence à definição propriamente dita; de fato, embora legítima, a resposta à pergunta
sobre a legalidade ou ilegalidade (necessária ou não) do terrorismo deveria ser possibilitada
pela definição de terrorismo. Essa seria até mesmo uma das funções da definição de um
fenômeno a não ser, claro, que se tratasse simplesmente da tipificação de um delito, o que
não é nosso propósito aqui.
Naturalmente, o ponto (2) da definição acima só faz sentido se decorrer
basicamente dessa pressuposição de ilegalidade. Do contrário, tratar-se-á apenas
de uma generalização empírica, inteiramente dispensável para a definição.
Para Gibbs, os pontos (2), (3) e (4) de sua definição permitiriam distinguir o
terrorismo de operações militares convencionais (idem, p. 332), ou seja, responder à
sua terceira pergunta formulada anteriormente. Um exame mais detido mostrará que
essa alegação é improcedente, que a parte (2) da definição também é
improcedente ou dispensável.
Em segundo lugar, o ponto (4) da definição é de uma tautologia inacreditável quando
faz incluir na própria definição de terrorismo que “não é guerra convencional”. Por outro lado,
Gibbs não pode se furtar a essa tautologia, pois: a) afirmou anteriormente que era
indispensável, para uma definição adequada do terrorismo, mostrar como este difere
necessariamente de operações convencionais; b) afirma posteriormente que:
A questão [como o terrorismo necessariamente se distingue, se é que se distingue, de
operações militares convencionais numa guerra, guerra civil ou na assim chamada
guerra de guerrilha] não pode ser respondida prontamente porque não definições
claramente aceitas de operação militar convencional, guerra, guerra civil e guerra de
guerrilha (ibidem, p. 332).
Naturalmente, sua única saída é, portanto, resolver a questão por decreto. Para
suavizar a brutalidade da tautologia, temos ao menos o ponto (3) da definição, que,
infelizmente, é inútil. Afinal, são legião as situações em que guerras foram travadas e
territórios inteiros ou parte deles foram ocupados apenas para forçar uma situação mais
favorável em negociações posteriores, sem nenhuma intenção de defendê-los
permanentemente. Assim, o ponto (3) também não ajuda em nada a distinguir o terrorismo de
“operações convencionais”, guerra, guerra civil ou guerra de guerrilha.
Sobram-nos os pontos (1) e (5) para os quais faremos uma argumentação especial. O
ponto (1) tem o mérito de restringir o escopo da definição, ao vincular o terrorismo a fins
políticos. O problema é que ele restringe demais. O que dizer, por exemplo, quando o
propósito de determinado ato (digamos, um sequestro de avião) é simplesmente tornar
conhecido um determinado grupo, cujo objetivo final fosse simplesmente modificar uma
correlação de forças políticas? Se o entendimento constante do ponto (1) contempla essa
possibilidade, menos mal, embora isso não esteja imediatamente claro e seja mais uma falha
da definição.
Por fim, em terceiro lugar, quanto ao ponto (5), temos uma série de problemas. Um
deles é a alternativa colocada: “contribuir para o objetivo normativo” do ponto (1), através da
“inculcação do medo da violência em pessoas (talvez uma categoria indefinida delas) que não
os alvos imediatos da violência concreta ou ameaçada e/ou pela publicização de uma causa”.
Ora, publicizar uma causa não caracteriza o terrorismo, a não ser quando essa publicização é
feita a partir da disseminação do medo da violência; aqui a condição se torna abrangente
demais, e sem necessidade. Além disso, não há, em tese, por que excluir os “alvos imediatos
da violência concreta ou ameaçada” de também sofrerem a inculcação do medo da violência;
aqui a condição se torna excessivamente restritiva, e não conta do fenômeno. Por fim,
como saber de fato se um determinado ato foi ou não “percebido pelos participantes como
contribuindo para aquele objetivo normativo” a não ser que presumamos, de antemão, que,
se a violência foi cometida ou ameaçada por um determinado grupo, ela deve contribuir de
alguma maneira para o objetivo do grupo; aqui a condição se torna simplesmente prolixa.
2.2 DO DIREITO E DA JUSTIÇA
Vários países elaboraram leis novas e mais severas para a punição do terrorismo,
embora os juristas ainda não tenham conseguido estabelecer uma conceituação geral que
permita uma tipicidade clara desta modalidade criminosa. Esta atitude abrangeu tanto países
dominados por ditaduras, como aqueles em que a democracia vige e que, para sua proteção, se
viram compelidos a restringir o exercício de certos direitos e garantias individuais, por
favorecerem a proliferação das ações terroristas.
A expressão "terrorismo" é utilizada para significar determinada figura delituosa. No
Brasil, a Lei de Segurança Nacional (Lei 6.620/78) já se referia a "praticar terrorismo"
(art.26). A atual legislação, que define os crimes contra a segurança nacional e a ordem
política e social, Lei 7.170, de 14/12/83, repete a dogmática, mencionando "atos de
terrorismo" no seu artigo 20. Contudo, essas leis jamais definiram o que significa "atos de
terrorismo".
No direito penal brasileiro, vige o princípio do "nullum crimen nulla poena sine lege",
ou da reserva legal. Segundo os melhores doutrinadores, para que esse princípio seja
respeitado, não basta a existência prévia de uma lei ou a mera denominação do crime. É
indispensável que a lei descreva concretamente uma ação, criando a figura típica penal e
permitindo que se conheça claramente a conduta proibida por lei e a o compreendida na
proibição, sendo certo que o princípio afasta a incriminação vaga, que, na afirmação de muitos
tratadistas, é defeito tão grave quanto o emprego da analogia no direito penal.
A atual Constituição brasileira, no seu artigo 5º, item XLIII, considera o terrorismo
como um crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Essa menção, no entanto, em
nada concorre para o esclarecimento doutrinário do tema, pois que a dificuldade dos
tratadistas está na conceituação doutrinária do que seja terrorismo. Certo, portanto, que
enquanto não for obtida uma definição teórica, dificilmente o legislativo brasileiro conseguirá
formular um projeto de lei que o tipifique, dando efetividade à norma constitucional
ressaltada.
Existe um esforço mundial no sentido de firmar o terrorismo na órbita dos
crimes comuns, o que impedirá lhe conceder os privilégios conferidos à criminalidade
política, caminho adequado à realidade atual do mundo. Com efeito, a noção de
crime político não é uniforme, tanto que, em caso de pedido de asilo político, o
conceito será firmado pelo país concedente, podendo não se coadunar com a
repercussão do atentado terrorista no país vitimado.
O terrorismo, consistindo-se sempre em ações que causam grande mal à
sociedade organizada como um todo, retirando a paz, a segurança e a tranquilidade
de que ela necessita para viver e progredir, o deve merecer privilégios. Contudo,
se o terrorismo for conceituado no campo penal, continuará a gramar as dificuldades
do cumprimento das noções do direito penal internacional.
No Brasil, parece ainda não haver urgência na edição de legislação
específica, porque não tivemos em nossa história problemas consideráveis em face
de ações que pudessem ser consideradas como terroristas. A discussão do tema
entre nós está sendo provocada por fatos vindos do exterior. Trata-se de
preocupação real, que deve servir de alerta, até porque os movimentos sociais e
políticos não são previsíveis a ponto de podermos determinar com precisão as suas
deflagrações, e os sinais exteriores podem e devam ser percebidos pelos órgãos
governamentais. Muitos desses fatos, em razão da enorme facilidade das
comunicações internacionais, acabam sendo aprendidos e praticados por mera cópia
e repetição, sem que na prática estejam presentes motivos idênticos.
O resultado nefasto provocado pela ação terrorista, em termos de vidas
humanas, patrimônio e sentimento de insegurança, bem justifica uma nova tomada
de posição, não só em relação à modificação de certas leis, mas na forma do
exercício de certos direitos, realidade que está sendo vivenciada pelos Estados
Unidos da América (USA), após o atentado de setembro de 2001 em Nova Iorque.
Nesse ponto, é valioso relembrar a declaração dos direitos do homem, advinda da
Revolução Francesa, onde se afirmou textualmente que o direito à liberdade
poderia ser exercido se não causasse prejuízo a outros, pois ao cidadão não era
permitido desobedecer ao estabelecido nas leis, que estavam acima dos direitos.
É fato que ações normalmente tidas como terroristas poderão ser
enquadradas no Código Penal Brasileiro. Com efeito, o evento morte será
considerado homicídio qualificado, e as agressões à saúde constituem-se em lesões
corporais. No capítulo dos crimes contra a liberdade individual, estão as figuras do
constrangimento ilegal, da ameaça e do sequestro; no artigo 159, pune-se a
extorsão mediante sequestro, crime considerado hediondo, e, no artigo 163, o dano,
este com penas ridículas e ação penal inadequada. Nos crimes contra a
incolumidade pública, está prevista a punição das figuras delituosas do incêndio, da
explosão, fabrico, posse e transporte de explosivos ou gás tóxico, inundação e
desabamento.
No capítulo dos crimes contra a segurança dos meios de comunicação e
transportes, punem-se o desastre ferroviário e os atentados contra o transporte
marítimo, fluvial e aéreo; no capítulo dos crimes contra a saúde pública, as figuras da
epidemia e do envenenamento de água potável, todos com penas que não estão
adequadas à gravidade do terrorismo, sobretudo porque foram ditadas em época
que o flagelo não tinha significação; no capítulo dos crimes contra a paz pública,
estão a incitação ao crime e a formação de quadrilha ou bando, assim como os
sequestros. Dependendo do dolo dos agentes e da interpretação do STF sobre sua
constitucionalidade, a lei de segurança nacional permitirá a repressão dos crimes
que atentarem contra o Estado e a ordem social.
Em termos doutrinários, muito dependeremos da conceituação que dermos ao
chamado terrorismo. Será que deveremos vê-lo somente como crime praticado
contra o Estado e a ordem social? Neste caso, estaremos reconhecendo que na sua
prática sempre existirá um fim político, o que traz consequências: aceitaremos que
poderá igualmente existir o terrorismo comum, praticado sem intenções políticas e
tenderemos a reconhecer que a prática terrorista poderá também ser utilizada por
criminosos comuns, com o fim de lucro. Dar permanente tratamento político a esse
crime dificultaria a adequada repulsa, face aos privilégios que seus autores
reivindicarão, muita vez incompatíveis com a ofensa causada, ao ver das vítimas.
A questão, contudo, está em aberto às diversas colocações doutrinárias.
Correto será afirmar que, no combate penal às ações de cunho terrorista, não
estamos descobertos em matéria de lei. Mesmo assim, uma vez firmado o conceito
jurídico dessas ações, algumas inovações deverão surgir na legislação.
No campo penal, haverá a criação de novas figuras típicas, a alteração do
montante das penas de crimes tipificados e a mudança radical no regime do
cumprimento das penas, considerando-se hediondas todas as infrações do gênero.
No tocante ao terrorismo comum ou político, a ação deverá ser pública, inexistindo
ação penal privada, senão aquela subsidiária, motivada pela teórica inação do
Ministério Público. Na hipótese do terrorismo comum, o seu julgamento deverá caber
à justiça comum.
A melhor definição sobre terrorismo fornecerá critérios que permitam avaliar a
designação de um ou outro agente como terrorista, funcionando também como uma forma de
analisar criticamente discursos enviesados.
2.3 GEOPOLÍTICA DO TERRORISMO GLOBAL
Após a Primeira Guerra Mundial, algumas nações começaram a ajudar grupos
revolucionários de outros países. A Itália e a Hungria, por exemplo, apoiaram, nessa época, os
revolucionários croatas. Em 1920, um dos expoentes da revolução russa, Leon Trotski,
preconizava que o terror era a "continuação natural da insurreição armada", e que a
intimidação era o "mais poderoso meio de ação política".
Depois da Segunda Guerra Mundial, particularmente a partir dos anos 60, o
financiamento estrangeiro ao terrorismo tornou-se regra.
União Soviética, Argélia e Líbia, entre outros, fomentaram o terrorismo no mundo, a
fim de que fosse feito o "trabalho sujo" da política internacional. A cada de 70 registrou o
apogeu das grandes organizações terroristas de cunho eminentemente político, como as
"Brigadas Vermelhas", na Itália, a "Ação Direta", na França, e o "Baader Meinhof", na
Alemanha.
Sequestros e grandes atentados à bomba foram a marca registrada desses grupos.
Nas décadas de 80 e 90, o terrorismo disseminou-se em inúmeras organizações espalhadas
pelo mundo, todas elas tendo como objetivo último a destruição. No próprio Oriente Médio,
que sempre esteve mergulhado em violência e sangue desde o final da Segunda Guerra, os
atos terroristas eram acontecimentos esporádicos durante as décadas de 50 e 60; porém, a
partir da década de 80, espalhou-se na região como um câncer incontrolável, atingindo tanto o
bloco muçulmano como o israelita.
hoje várias dezenas, talvez centenas, de grupos terroristas atuando em todos os
cantos do planeta. Algumas dessas organizações ostentam nomes absurdos, quando
comparados às suas formas de ação e seus objetivos: Grupo Antiterrorista de Libertação
(Espanha anos 80), Partidários do Direito e da Liberdade (França anos 80), Grupo da
Justiça Internacional (Egito – 1995), Hezbollah – Partido de Deus (Israel – anos 80 e 90).
A tônica dos atentados terroristas são os carros-bombas e os "mártires" suicidas, que,
com explosivos presos a seus corpos, procuram causar o maior número possível de mortes e
destruição, geralmente em locais com grande concentração de pessoas, como a saída de uma
escola, um ônibus lotado etc.
Mas as novidades no campo do terror não se restringem apenas à explosão de
"idealistas kamikases". Já há, pois, quem alerte contra possíveis atentados com armas
nucleares, químicas e biológicas, além de sabotagens cibernéticas. Em relação à primeira
possibilidade, podemos acrescentar que é cada vez maior o número de apreensões em
vários países de material radioativo roubado.
A título de ilustração, indicam-se abaixo os dados coletados na internet, seja em sites
da anistia internacional
8
, seja nos de debates filosóficos
9
, abrangendo as ações terroristas de
grande porte no mundo:
A maior parte dos atentados terroristas dos últimos anos foi praticados com carros-
bombas ou caminhões-bombas, detonados por controle remoto, e também através de
motoristas suicidas, como foi o atentado contra a força multinacional estacionada em Beirute,
em 1983 o pior até hoje registrado (março de 1997) –, onde morreram 241 americanos e 58
franceses.
As embaixadas americanas nessa região do mundo são hoje verdadeiras fortalezas,
com portas de aço de 30 cm de espessura e vidros à prova de bala. Os atentados suicidas
praticados com carros, e também aqueles onde o terrorista explode bombas presas em seu
próprio corpo, são, em sua quase totalidade, consumados por fanáticos religiosos. Esses
8
Disponível em: www.amnesty.org. Acesso em: junho de 2009.
9
Disponível em: http://www.library.com.br/Filosofia/terroris.htm. Acesso em: junho de 2009.
extremistas acreditam estar participando de uma "guerra santa", e assim nada mais fazem
senão executar uma determinação divina quando exterminam os infiéis, isto é, todos os que
não professam a mesma crença.
Os extremistas muçulmanos que praticam atentados suicidas acreditam que suas ações
lhes garantem o direito de ingressar no Paraíso, onde terão dezenas de virgens à sua
disposição para satisfazê-los sexualmente. Também lhes é assegurado que suas famílias farão
jus a vagas já lá reservadas. Talvez seja por isso que a família de um terrorista suicida colocou
na entrada da casa, para recepcionar as pessoas que foram oferecer condolências, pequenos
cartazes com os dizeres: "Não aceitamos pêsames e, sim, congratulações".
Na Argélia, o Grupo Islâmico Armado (GIA) ala radical da insurreição islâmica,
especializada em terrorismo urbano invoca a prática do Mut'a (casamento temporário), para
abordar as famílias e exigir suas filhas. Às vezes, quando não as consegue, o grupo corta a
garganta das moças em represália. Em seis anos, as ações terroristas do GIA deixaram o país
mergulhado na guerra civil, com mais de 65 mil mortes.
Os terroristas argelinos chegaram ao requinte de criar uma máquina de degolar: uma
espécie de guilhotina rudimentar, transportada em caminhão e utilizada inclusive em mulheres
e crianças. Em alguns casos, as mulheres têm o couro cabeludo arrancado e o ventre aberto a
facadas antes de serem degoladas, para que não possam gritar o nome de Alá e, dessa forma,
ficarem impedidas de ingressar no Paraíso.
Todas as formas de ódio alimentadas continuamente pelos povos da região ajudam a
manter o terrorismo sempre atuante.
No mundo palestino, as letras de rock do grupo Hamas, incentivando à guerra santa e
aos ataques suicidas contra os israelenses, vendem mais do que qualquer outro gênero nas
lojas de disco. No Egito, mulheres muçulmanas que se convertem ao cristianismo são
violentadas e os homens assassinados.
O assassinato do presidente egípcio Anuar Sadat (1918-1983) foi “comemorado” com
um selo postal e virou nome de rua no Irã. Nesse ponto, é importante esclarecer que a
insanidade religiosa, utilizada como justificativa para atos terroristas, não é exclusividade de
extremistas muçulmanos.
Em fevereiro de 1994, o extremista judeu Baruch Goldstein entrou na mesquita da
cidade de Hebron, onde uma multidão de fiéis árabes estava reunida para a oração da sexta-
feira, e disparou diversas rajadas de fuzil, matando 29 pessoas e deixando 125 feridas, antes
de ser morto pelos sobreviventes. No seu túmulo, onde foi construída uma espécie de templo,
está escrito: "O santo Dr. Baruch Goldstein, morto quando santificava o nome de Deus".
Logo após o assassinato do primeiro ministro de Israel, Yitzhak Rabin, por um
terrorista judeu, em novembro de 1995, apareceram nos noticiários televisivos cenas
inconcebíveis: extremistas judeus, de um lado, e árabes, de outro, festejando com o mesmo
ardor aquele assassinato. Ambos os grupos estavam satisfeitos por poderem continuar com a
sua justa "guerra santa". O jornalista Issa Goraieb comentou assim o espetáculo dantesco:
Os ‘ultras’ judeus e os ‘ultras’ muçulmanos celebrando com a mesma alegria o trágico
acontecimento. (…) Os loucos de Jeová revelando-se aliados objetivos dos loucos de
Alá, já que uns e outros se opõem violentamente a uma paz de compromisso e
desejam perpetuar uma guerra a que chamam de ‘santa’, convencidos de que ela é
comandada de fato pelo Criador
10
.
Constata-se, de forma muito nítida, que na década de 90 o terrorismo político foi
sobrepujado pelo religioso.
A diferença agora é que os crimes são cometidos sob a invocação do Criador, assim
como ocorrera na época da Inquisição. Essa circunstância bizarra não escapa ao
questionamento de muitos, que não encontram resposta para tal inversão de conceitos e
valores.
Não é possível descrever todo o horror que o terrorismo proporcionou ao mundo
desde o século passado. Uma breve sinopse de alguns fatos mais relevantes, porém, servem
para dar uma ideia do ponto a que já chegou essa materialização do ódio humano:
Uma estatística demonstra que houve apenas um grande atentado no século XIX nos
Estados Unidos, quando, em 4 de maio de 1886, um grupo de anarquistas fez explodir uma
bomba durante uma passeata de sindicalistas em Chicago, matando 11 pessoas e ferindo mais
de cem. Já na segunda metade do século XX, os atos terroristas se foram sucedendo
ininterruptamente e, somente no período compreendido de 1989 a 1993, o FBI qualificou 32
atentados como sendo produtos do terrorismo em solo americano.
Nos Estados Unidos, um terrorista desconhecido enviou cartas-bombas pelo correio
desde 1978, na tentativa de combater a "revolução industrial". Até agosto de 1995, ele já havia
matado 3 pessoas e ferido outras 235. Em 15 anos de atividades, o grupo terrorista peruano
"Sendero Luminoso" provocou 25 mil mortes e danos de mais de 22 bilhões de dólares. Em
1986, um terrorista árabe explodiu o Boeing em que viajava, matando 166 pessoas. Em
10
Disponível em: http://www.library.com.br/Filosofia/terroris.htm. Acesso em: junho de 2009.
dezembro de 1988, uma bomba fez um avião explodir sobre a cidade escocesa de Lockerbie,
matando 270 pessoas. O atentado foi atribuído a terroristas líbios. Em julho de 1994, um
carro-bomba destruiu o prédio de uma entidade israelita na Argentina, matando 98 pessoas.
Nos Estados Unidos, no ano de 1994, a Ku Klux Klan, uma das 17 mil organizações
racistas atuantes no país, cometeu 18 assassinatos, 146 agressões, 228 atos de vandalismo e
provocou 12 incêndios. Em março de 1995, uma seita apocalíptica japonesa, intitulada
"Ensino da Verdade Suprema" cometeu um atentado com gás venenoso no metrô de Tóquio,
matando 12 pessoas e intoxicando cerca de cinco mil. Em abril de 1995, um grupo terrorista
americano de extrema direita destruiu, com um carro-bomba, um prédio federal na cidade de
Oklahoma, nos Estados Unidos, matando 168 pessoas e ferindo 460.
Mais de cem pessoas morreram em vários ataques suicidas em Israel, desde setembro
de 1993, com explosões dentro de ônibus. Testemunhas falaram de cabeças e membros
voando pelas janelas dos coletivos. Uma dessas explosões foi tão poderosa que restos
humanos foram encontrados nos andares superiores de edifícios das redondezas. O Hamas
prometeu suspender as ações contra Israel se o governo daquele país "parasse com o
terrorismo contra o grupo".
Em setembro de 1995, as "Forças de Libertação do Calistão" explodiram duas bombas
na Índia, ferindo 50 pessoas, com o objetivo manifesto de "pôr um fim às atrocidades
cometidas pelas autoridades contra a minoria sikh". De janeiro a julho de 1995 a Colômbia
registrou 592 sequestros, repartidos entre quatro organizações terroristas que atuam no país;
em dezembro de 1996, 600 municípios do país, de um total de 1024, haviam registrado ações
terroristas contra 173 municípios nesta situação em 1985.
Nos meses de setembro e outubro de 1995 a França sofreu seis atentados terroristas,
um por semana. Em janeiro de 1996, a explosão de uma bomba no prédio do Banco Central
do Sri Lanka matou cem pessoas. Em março de 1997, dois terroristas suicidas, cada qual
transportando 10 quilos de trinitrotolueno (TNT, um explosivo), misturados com pregos,
explodiram seus corpos num mercado de Jerusalém, matando 13 pessoas e ferindo 170 de
acordo com especialistas em explosivos, 100 gramas de TNT são suficientes para provocar a
ruptura de uma tonelada de rocha.
Em abril de 1997, num massacre de 31 civis na Argélia, três mulheres grávidas
tiveram o ventre aberto e os fetos arrancados; em agosto de 1997, entre 100 e 300 pessoas
foram degoladas ou queimadas vivas pelo GIA. Em setembro de 1997, um atentado suicida
triplo matou quatro pessoas e feriu 192 em Jerusalém. Uma testemunha conta que a medula
espinhal de um dos terroristas entrou dentro da sua loja e a cabeça parou diante da porta de
entrada. Ainda em setembro, 252 pessoas foram degoladas ou executadas a tiros pelo GIA.
Um repórter da agência France Presse descreveu dessa forma o local da tragédia: um
cenário de horror. Corpos de adultos e crianças mutilados e carbonizados, casas fumegando..."
O primeiro ataque ocorreu um dia depois de o chefe do governo argelino ter ocupado a
televisão para anunciar que "o terrorismo residual estava praticamente extinto". Uma
sobrevivente do segundo ataque contou que os terroristas jogavam bebês dos terraços das
casas e os despedaçavam com machadadas. O mês terminou com os terroristas degolando 11
professoras de uma escola rural diante dos olhares apavorados dos alunos. Os que
conseguiram escapar disseram que durante a ação os extremistas gritavam: "Sangue! Sangue!
Destruição! Destruição!"
Em outubro de 1997, uma bomba matou 15 pessoas no Sri Lanka e feriu pelo menos
110, no que foi considerado "um dos mais graves episódios de violência nos 14 anos de guerra
étnica". Em novembro de 1997, um ataque de integristas islâmicos a um grupo de turistas no
Egito deixou um saldo de 57 mortos. Uma sobrevivente disse que os terroristas dançavam
entre os cadáveres gritando: "Alá! Alá!" O Ministro do Turismo, procurando minimizar o
acontecimento, declarou o seguinte: "É um fato da vida que estejamos num mundo violento".
O ano de 1998 começou com algumas centenas de argelinos queimados vivos e 117 degolados
em mais dois ataques do GIA em janeiro.
De acordo com o psicanalista alemão H. Shmuel Erlich (1939), em seu artigo
“Reflexões sobre a mente terrorista”, o argumento de que os homens-bombas suicidas são
incitados por desespero pessoal ou pela pobreza é totalmente rejeitado pelos ativistas do
Hámas entrevistados. Um deles diz:
Quando eu vi crianças que atiravam pedras nos tanques serem mortas, quando meus
amigos na universidade foram mortos (...) eu decidi afiliar-me. Não sabia como
segurar uma arma nem como usá-la. Fui movido por um sentimento de vingança para
defender a pátria (...) É a emoção o que incentiva alguém como eu, e ade que Deus
irá protegê-lo e ajudá-lo a conquistar a vitória (ERLICH, 2008, p. 144).
O maior trabalho dos governos ocidentais, nos próximos anos, deverá ser a luta sem
piedade contra todas as formas imagináveis de terrorismo. “Se perderem essa luta, nossa
civilização corre o risco de sofrer ferimentos irreparáveis" disse o jornalista francês Gilles
Lapouge, num desabafo quase sem esperança, e compreensível, em vista da situação caótica
provocada pelo terrorismo no mundo. A solução, contudo, não está nas mãos dos homens.
Nenhuma autoridade constituída teve o poder de eliminar essa doença do século XX, pois ela
fez parte do processo de fermentação e depuração por que atravessa a humanidade.
Oito anos se passaram desde o 11 de setembro e tudo que se previa saiu ao contrário:
herdamos a patologia do terrorismo dos séculos passados com uma mutação mais letal: a
indiferença. As mudanças que se esperavam não surtiram efeitos fundamentais para combater
o mal da cultura da indiferença aliada ao terrorismo global.
Com 3000 vítimas mortas num dia, em frente à dia mundial, os Estados Unidos
sofreram, revoltaram-se, foram para as duas invasões, desrespeitaram direitos humanos.
Contudo, como é próprio dos grandes, autocriticaram-se e agora, com a eleição do presidente
Barack Hussein Obama, prometem mudar o curso dessa história de horror e barbárie.
2.4 TERRORISMO COTIDIANO
11 de setembro de 2001 (Nova Iorque e Washinton, EUA), 12 de outubro de 2002
(Bali, Indonésia), 16 de maio de 2003 (Casablanca, Marrocos), 11 de março de 2004 (Madrid,
Espanha), 7 de julho de 2005 (Londres, Inglaterra)... Desde 2001, o mundo depara com, pelo
menos, um grande atentado terrorista por ano, em que os alvos são meros cidadãos, a caminho
de mais um dia de trabalho ou até em plenas férias. E eles (terroristas) se riem de nós, pelo
menos uma vez por ano, e tendo uma grande aliada: a indiferença.
As autoridades britânicas têm gerido a informação dos atentados de forma inteligente.
Nada de muitos pormenores; imagens, as suficientes para mostrar ao mundo como existem
mentes tão sujas a ponto de planearem a morte de inocentes, que têm mãe, pai, irmãos, filhos,
vidas.
Houve pessoas que desceram as escadas do metrô com o intuito de matar. Houve
alguém que subiu para um ônibus e que até deixou transparecer o nervosismo (segundo relato
de uma testemunha). Alguém comprou explosivos (a polícia diz que não eram de fabricação
artesanal), alguém alugou uma casa nos arredores de Londres, pouco tempo e por pouco
tempo. Sem dúvida alguém deixou escapar alguma palavra, em algum momento. E se tivesse
existido alguém mais atento e sem receio de dar um alerta? E se alguém, sem medo de poder
estar enganado, sem medo de comentar com os vizinhos e parecer ridículo, tivesse alertado as
autoridades? Se esse alguém existiu, em qualquer uma das fases de planejamento de mais um
macabro atentado, será que tudo isto não podia ter sido evitado?
Os terroristas conhecem as fraquezas humanas; sabem que a segurança no metrô, nos
trens ou nas grandes cidades é imperfeita, e, às vezes, conivente com pequenas contravenções.
Mas sabem também que vivemos com indiferença em relação aos outros. Não falamos com os
vizinhos, não queremos saber quem são ou o que fazem. Não reclamamos. Não denunciamos.
Não agimos. Não gritamos. Não queremos saber. Se a pequena Tilly Smith, com a inocência
de uma criança, não tivesse dado o alerta de tsunami naquela manhã de 26 de dezembro, não
teria salvo a família e outras cem pessoas que estavam na praia de Maikhao, em Phuket, na
Tailândia. De nada lhe teria servido a aula de geografia que tinha tido duas semanas antes da
tragédia se não tivesse a coragem de avisar.
Não teve medo do descaso das pessoas. Não foi indiferente. E salvou vidas. Se todos
pensássemos sobre isso, se uma reflexão servisse para "mover consciências", se todos
fizéssemos um esforço para estarmos mais vigilantes, será que provocaríamos uma mudança,
uma revolução ética de resistência à cultura da indiferença? Algo precisa ser pensando,
repensado, construído para que, um dia, a notícia de abertura dos "telejornais" não seja um 11
de setembro, um 12 de outubro, um 16 de maio, um 11 de março, um 7 de julho. Mais uma
bala perdida vitimando crianças nos subúrbios do terceiro mundo, mais terríveis cenas do
terrorismo cotidiano da faixa de Gaza, mais assombrosas cenas de guerras étnicas na África
que morre de AIDS e do desamparo mundial –, mais soldados mortos em nome de ideais de
nacionalismo exacerbado, mais crianças mortas pela fome, miséria, abandono violência e
indiferença de nosso mundo globalizado.
No ano passado, o número de atos de terrorismo internacional diminuiu em
comparação com 2004, com 266 incidentes que fizeram 443 timas fatais, contra 393
incidentes e 733 vítimas há dois anos. Já o terrorismo caracterizado por ser da autoria
de cidadãos de um país contra alvos nesse mesmo país conheceu forte aumento entre 2004 e
2005, tendo o número de incidentes e de vítimas aumentado, respectivamente, 90 por cento e
60 por cento. O conflito no Iraque, apresentado como um elemento da guerra contra o terror,
contribuiu para fazer do país o epicentro, hoje, do terrorismo global. O estudo baseia-se em
dados da Rand Corporation e do Instituto Memorial Nacional para a Prevenção do
Terrorismo, dos Estados Unidos
11
.
A dolorosa questão do terrorismo no Oriente Médio, que muitas décadas constitui
real ameaça à paz universal, está sempre presente nos noticiários; é uma guerra cotidiana, que,
às vezes, desperta reações no Ocidente.
Por ocasião do sequestro de dois soldados israelenses, em 17 de julho de 2006, houve
o consequente ataque de Israel ao Líbano, que, praticamente um país desarmado, tem tido
baixas em quantidades surpreendentes, sendo um terço de crianças
12
.
As reações variaram em todas as partes do mundo. O escritor e jornalista uruguaio
Eduardo Galeano (1940), famoso socialista latino americano, autor de As veias abertas da
América Latina (1972), pronunciou-se da seguinte maneira sobre o ocorrido:
Um país bombardeia dois países. A impunidade poderia ser assombrosa, se não fosse
costumeira. Alguns tímidos protestos dizem que houve erros. Até quanto os horrores
continuarão sendo chamados de erros? Esta carnificina de civis começou a partir do
sequestro de um soldado. Até quando o sequestro de um soldado israelense poderá
justificar o sequestro da soberania palestina? Até quando o sequestro de dois soldados
israelenses poderá justificar o sequestro de todo o Líbano?
A caça aos judeus foi, durante séculos, o esporte preferido dos europeus. Em
Auschwitz, desembocou um antigo rio de espantos, que havia atravessado toda a
Europa. Até quando palestinos e outros árabes continuarão pagando por crimes que
não cometeram? O Hezbollah não existia quando Israel arrasou o Líbano em suas
invasões anteriores. Até quando continuaremos acreditando no conto do agressor
agredido, que pratica o terrorismo porque tem direito de se defender do terrorismo?
Iraque, Afeganistão, Palestina, Líbano... Até quando se poderá continuar
exterminando países impunemente?
13
O jornalista Mauro Wainstock, diretor do jornal virtual ALEF, por outro lado, protesta:
Chega de nos acusarem de atingirmos civis, notoriamente utilizados pelos terroristas
como escudos humanos, quando foram eles mesmos que treinaram os homens-bombas
que, em nome de Alá, destruíram a vida de quase 4 mil inocentes no World Trade
Center, que jogam a todo momento bombas em shoppings, pizzarias e no meio de
cerimônias de casamentos em Israel; que mataram até mesmo uma brasileira... São
estes mesmos covardes que atacam cidadãos em pleno metrô na Europa e que, na
quarta-feira (dia 02 de agosto), explodiram sem piedade, e propositadamente, um
campo de futebol no Iraque, matando 12 crianças que apenas disputavam uma
despretensiosa pelada. É evidente que a morte de civis comprovadamente inocentes
11
Disponível em: http://jn.sapo.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=537433. Acesso em: dezembro de
2008.
12
Disponível em:pt.wikinews.org/.../Conflito_entre_Israel_e_Hizbollah_aumenta_a_tensão_no_Oriente_Médio.
Acesso em: dezembro de 2008.
13
Disponível em: venus.rdc.puc-rio.br/agape/vida_academica/.../orientesolucoes.doc. Acesso em: janeiro de
2009.
não justifica uma reação que tenha a mesma consequência do outro lado. Mas,
infelizmente, as guerras não podem ser controladas, nem mesmo nos mais avançados
videogames. As eventuais desobediências e excessos é que podem e devem ser
averiguados, reprimidos e condenados.
Enquanto crianças judias aprendem o significado da palavra ‘Shalom’, crianças árabes
aprendem em livros escolares a ‘varrer Israel do mapa’. Esta é a proporcionalidade
sugerida pela mídia?
Chega de timas de um lado. E as crianças israelenses que estão traumatizadas,
vivendo em bunkers e aprendendo os horrores da guerra quando a elas deveria ser
ensinado o significado da palavra Shalom? Não podemos esquecer que foram as
“crianças” judias que ganharam 30% dos “Prêmios Nobel de Medicina”. Foram as
“crianças” judias que se transformaram em Einsteins, Sabins, Freuds, Marxs,
Spielbergs e Wiesels. Isso considerando que somos apenas 0,3% da população
mundial... Por outro lado, crianças árabes aprendem em livros escolares que morrer é
a única forma de ser "alguém", de virar herói, de ajudar a fazer com que o Estado
Judeu seja “varrido do mapa”
14
.
Enquanto isso, na web, recebemos mensagens diariamente sobre os conflitos. Uma das
mais famosas que circulam na internet exibe crianças israelenses de Kyriat Shmona, perto da
fronteira do Líbano, escrevendo mensagens com canetinhas coloridas nos mísseis israelenses
que, quase seguramente, serão usados para bombardear o território libanês. O lugar onde as
fotos foram feitas é um posto avançado de artilharia e a entrada de crianças em tal lugar
pode ter se realizado com uma autorização especial do exército.
De fato, em uma das fotos, vê-se um soldado em cima de um tanque olhando
placidamente as crianças escrevendo seus recados endereçados ao lado de do conflito.
Alguns dos recados estão em inglês e, nas fotos em power point que compõem a mensagem,
pode-se ler o que várias crianças escreveram: “De Israel, com amor”.
A mensagem afirma que as crianças estão sendo ensinadas a aceitarem com
naturalidade o fato de que seu país bombardeie outros quando consideram seu território
ameaçado. O fato de serem estimuladas a escrever recados nos mísseis seria uma das técnicas
pedagógicas usadas com esse fim. Parece-me uma autêntica barbaridade que tudo isso seja
parte de uma estratégia montada para fazer a cabeça das crianças, no sentido de uma visão
banalizada da violência.
Todos os episódios dessas guerras cruéis e sangrentas, orquestradas pelo terrorismo
global, são absurdos e sem sentido. Tão brutal quanto o Estado de Israel bombardear com seu
poderoso arsenal um país quase desarmado é o fato de que os países árabes não aceitam a
existência do Estado de Israel e o consequente direito de o povo israelense ter uma terra.
14
Disponível em: www.conib.org.br/site/?p=218. Acesso em janeiro de 2009.
Ambas as intolerâncias estão na raiz do absurdo e cruel conflito, do qual as vítimas mais fatais
acabam sendo as crianças. A solução para o problema aparentemente sem solução está em dar
passos concretos em direção ao diálogo e à paz. É necessário que os envolvidos exercitem a
ética da alteridade e, ao invés de buscarem apenas os próprios interesses, pensem no bem de
toda a humanidade.
Depois da Guerra do Golfo, em 1991, os árabes sentiram-se excluídos do mundo
ocidental, como se aos olhos do Ocidente todos eles, da Argélia ao Iraque, fossem iguais; após
o 11 de setembro, todos os mulçumanos sentiram-se excluídos do mundo de modo geral,
como se todos eles fossem terroristas em potencial.
Não resta dúvida de que os mulçumanos sofrem segregação política, racial, social,
sexual, cultural e urbana. Nas palavras do cientista político e jurista francês Dominique Moïsi
(1946), especialista em política internacional e geopolítica:
(...) havia o sentimento de que, enquanto os ataques de 11 de setembro fossem
condenáveis e talvez tivessem consequências negativas para as comunidades
mulçumanas no mundo inteiro, seriam, portanto, compreensíveis. A arrogância dos
Estados Unidos precisava ser punida. Os mulçumanos não eram os únicos a terem
esses pensamentos (...) alguns intelectuais como Jean Baudrillard, na França,
expressaram sentimentos similares em seus escritos depois de 11 de setembro. e
nenhuma simplificação é mais danosa – ou perigosa – do que a identificação do
islamismo ou até mesmo dos islamitas com o terrorismo. Essa identificação faz o jogo
dos islâmicos, que argumentam que a frase “guerra ao terror” é apenas um eufemismo
ocidental para o que é realmente: “guerra ao islamismo” (MOÏSI, 2009, p. 80).
Enquanto o então Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, atônito, falava do
combate entre as forças do Bem contra as forças do Mal, diversos pensadores começaram a
observar e a questionar a natureza da resposta democrática aos métodos terroristas, que
passavam a tratar os alvos civis como se fossem alvos militares. O terrorismo islâmico
acabava por se assumir como uma ausência de valores, um niilismo indiferente a qualquer
dignidade humana.
O fundamento da civilização contemporânea está assentado nos direitos do Homem,
no pluralismo e na Justiça para todos. No polo oposto, a comunidade dos fundamentalistas
declara uma “guerra santa” em que as convicções religiosas se sobrepõem aos direitos
humanos ou justificam o massacre indiscriminado de vítimas. A escritora feminista holandesa
Ayaan Hirsi Ali (1969), nascida na Somália, em seu ensaio The Gaged Virgin (2006),
denuncia que os problemas são inerentes ao islamismo. Em suas palavras: “o relacionamento
mulçumano com seu Deus é de medo”. O segundo elemento do problema, prossegue, “é que o
islamismo conhece apenas uma fonte de moral, o profeta Maomé”, enquanto que o terceiro
está no fato de que “o Irã é fortemente dominado por uma moralidade sexual proveniente de
valores árabes tribais que datam da época em que o profeta recebeu os mandamento de Alá”.
Por esta razão a presença de mulheres nos exército americano estacionado em território
islâmico pode ser visto como uma forma de agressiva humilhação. Para Ali, esses
componentes explicam porque as nações mulçumanas estão ultrapassadas em relação ao
Ocidente.
Da mesma forma, por ocasião da visita do presidente do Irã, Ahmadinejad, à Columbia
University, em sua viagem para participar da Assembleia Geral das Nações Unidas, em
setembro de 2007, enfatizou, contra todas as evidências, que as condições das mulheres no Irã
eram as melhores do mundo. Também declarou que não havia homossexuais, levantando a
questão da razão pela qual seria necessário prescrever o enforcamento como punição para um
crime que evidentemente não existe
15
.
Infelizmente, nem todas as democracias do mundo respeitam os direitos humanos, e a
prova disso são os conflitos que ocorreram no Kosovo, na Chechénia, no Sinkiang, no Tibete,
na fronteira Israel-Palestina, no Afeganistão, no Iraque, na Somália, em Drafur ou em Ruanda.
Os democratas estabeleceram suas prioridades e desrespeitam flagrantemente os direitos
humanos e, quando lhes convém, protegem terroristas, golpistas ou fascistas, seja em qual
continente for, desde que o pretexto seja conter uma ameaça maior.
É claro que o Islã radical não tem como prosperar nos dias atuais, ao procurar
subordinar os direitos humanos à vontade de Deus, não reconhecendo a liberdade de
consciência nem, tampouco, a religiosa. O seu fanatismo mobiliza os “condenados da terra”,
teme a igualdade de oportunidades, persegue mesmo aqueles que, no mundo árabe, são a favor
do modelo da secularização, em nome da modernização nacional. O islamismo extremado
encontrou as suas próprias finalidades e legitimação para a “guerra total”: através da
globalização perversa da ocidentalização. Moïsi (2009) salienta que:
A mesma cultura da humilhação é subjacente à atração de muitos mulçumanos à
violência do terrorismo. Sem a cultura da humilhação, como poderiam os
fundamentalistas manipular e empurrar um jovem bretão mulçumano educado para
matar colegas bretões num ataque suicida no metrô de Londres? Como poderiam
jovens alemães, convertidos ao islamismo, conspirar ataques assassinos a seu próprio
país? Esses instintos autodestrutivos surgem com a combinação de condições
15
Artigo publicado no NEW YORK Free Press, em 2007.
psicológicas, culturais e socioeconômicas, que levam da humilhação à violência
(ibidem, p. 74).
O “Relatório Árabe do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas”, publicado em
2002, constituiu uma espécie de difícil despertar para os deres árabes. Nele estava contida
uma série de estatísticas alarmantes, que variava de um nível muito baixo de investimento em
educação e pesquisa, com a exceção dos países do Golfo, à falta de competitividade
econômica, à ausência de progresso democrático e ao aprofundamento das desigualdades. A
propagação do islamismo além das fronteiras tradicionais é reação à desvantagem dos
mulçumanos num mundo globalizado e competitivo.
Outro relatório também impressiona: o do diretor do Escritório Europeu de Polícia
(Europol), Max-Peter Ratzel, para o Parlamento Europeu, em abril de 2007, conforme
informações vinculadas pelo jornal Gazeta do Povo
16
. Tendo como base estudo elaborado
com informações fornecidas por diversos países do continente, Ratzel alerta para o fato de que
a União Europeia sofreu quase 500 ataques terroristas durante 2006, em sua maioria de cunho
independentista, e dirigidos, principalmente, contra a França (294) e contra a Espanha (145).
Sempre dando ênfase às estatísticas, a reportagem também destaca que:
A França foi o país europeu onde ocorreram mais atentados em 2006, com 283
atentados dos independentistas córsicos e outros onze cuja origem não se sabe, num
total de 294. A Espanha é o segundo membro da UE mais afetado pelo terrorismo.
"Apesar do cessar-fogo declarado pelo ETA", o país sofreu 136 ataques de
separatistas e mais oito da extrema-esquerda e um de origem "não especificada",
somando um total de 145 – destaca o relatório.
Em seguida, estão, entre outros, a Grécia, onde a extrema-esquerda provocou 25
atentados no ano passado, a Alemanha (dez de extrema-esquerda e dois não
especificados), a Itália (onze de extrema-esquerda) e o Reino Unido (quatro de
separatistas e um não especificado).
Os ataques foram cometidos por separatistas (424), organizações de extrema-esquerda
(55), grupos não especificados (17), pela extrema-direita (1) e por islâmicos (a
tentativa fracassada contra dois trens em Colônia).
No total, foram detidos 706 indivíduos suspeitos em 15 Estados-membros durante o
ano passado.
Apesar de nenhum ataque islamita ter obtido êxito em 2006, a metade das detenções
está relacionada a grupos fundamentalistas (257), seguidos de separatistas (226). A
grande maioria das detenções aconteceu na França (342), no Reino Unido (156) e na
16
Reportagem publicada pelo jornal Gazeta do Povo, com acesso em setembro de 2009.
Disponível em: http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/mundo/conteudo.phtml?id=651822.
Espanha (85). Para o Europol, o alto número de detenções de islâmicos demonstra que
esse tipo de terrorismo é "a prioridade clara dos Estados-membros".
A Espanha é a primeira em número de condenações por terrorismo (205 de 303) e no
tempo de prisão para esses crimes: 8.236 anos.
(...) O estudo da polícia europeia conclui que a França, a Espanha e o Reino Unido
são os países "mais severamente afetados pelo terrorismo", quando se leva em conta
tanto o número de ataques como o de detenções e de penas de prisão.
Em resposta a esses índices, os europeus, em sua maioria, estão olhando para a
conjuntura interna para explicar por que os extremistas islâmicos fizeram do continente um
alvo preferido, enquanto os Estados Unidos vêm sendo poupados, apesar do ódio que o
governo daquele país provocou ao fazer guerras em dois países muçulmanos.
Nesse processo, estão vindo à tona questões a respeito de como populações
minoritárias de muçulmanos estão integradas ao cotidiano da Europa, bem como dúvidas
referentes ao próprio islamismo.
Diante da constatação francesa de que, mesmo antes do 11 de setembro de 2001,
houve 11 tentativas por parte de jihadistas islâmicos de explodirem alvos nos últimos dez
anos, isso demonstra que o fato de a França ter criticado o governo Bush e se mantido distante
do Iraque não conferiu-lhe imunidade contra o terrorismo.
Mas são os espanhóis que enxergam maiores riscos em cooperar com a política norte-
americana. Juan Aviles, professor de história contemporânea da Universidade Nacional de
Educação à Distância de Madri, observa importante dado: a maioria dos espanhóis acredita
que, se Jose Maria Aznar não tivesse enviado tropas espanholas ao Iraque em uma aliança
com os norte-americanos quando era primeiro-ministro, o ataque contra os trens de
passageiros, em março de 2004, não teria ocorrido
17
.
Mas ele diz que uma pesquisa feita em 2005, pelo Instituto Royal Elcano, uma
instituição de pesquisas de Madri, revelou que 63% dos entrevistados acham que o terrorismo
islâmico é principalmente um resultado do fanatismo religioso, e somente 17% afirmaram que
tal fenômeno é primordialmente uma reação à política norte-americana.
Por todo o mundo ocidental, prevalece uma profunda intranquilidade quanto à
disseminação do islamismo radical, afirma Christoph Bertram, ex-diretor do Instituto de
Questões de Segurança Internacional, na Alemanha.
17
Disponível em: controversia.com.br/.../em-busca-de-respostas-para-o-terrorismo-europa-olha-para-a-sua-
conjuntura-interna. Acesso em março de 2009.
Existe, nas nossas sociedades, a sensação de que o radicalismo não foi criado pelos
Estados Unidos e, sim, que foi provocado pela falta de integração. Um dos pontos que
todos reconhecemos é que tem sido extremamente difícil integrar os muçulmanos de
terceira geração
18
.
É importante ressaltar que cada país do ocidente está descobrindo o seu próprio
conjunto de problemas e de soluções ao tentar lidar com o terrorismo cotidiano e a população
muçulmana excluída e, por vezes, humilhada.
Na França, por exemplo, as rebeliões de 2005, em Paris, entre indivíduos que eram, em
sua maioria, imigrantes norte-africanos, muitos deles muçulmanos, foram motivadas
principalmente pela discriminação econômica. No Reino Unido, a população muçulmana é,
em sua maioria, paquistanesa, e está razoavelmente bem integrada sob o ponto de vista
econômico, mas muitos deles possuem laços culturais mais intensos com o islamismo e com o
Paquistão do que com a Grã-Bretanha.
Em resposta aos ataques de 2005 contra o sistema de transporte público de Londres,
realizado por quatro homens-bomba suicidas, e antes do ataque frustrado na Alemanha, em
Colômbia, os governos britânico e alemão estavam procurando maneiras de integrar melhor as
suas populações muçulmanas.
Constanze Stelzenmuller, a diretora do Fundo Marshall Alemão dos Estados Unidos,
em Berlim, diz que as atitudes de governos anteriores de “indiferença mascarada de
tolerância” foram colocadas de lado. Segundo ela, agora cursos de alemão são fornecidos a
imigrantes turcos, particularmente às mulheres, a fim de integrar melhor os indivíduos que se
encontram nas margens da população de origem turca na Alemanha, cujo total é de 2,7
milhões
19
.
Em resumo, o terrorismo é um fenômeno típico do século XX. Não que crimes e
guerras sempre tenham existido na história da humanidade, mas os atos terroristas, que, em
violência, podem ser situados entre esses dois, é uma característica do século passado. É
verdade que em séculos anteriores houve atentados contra autoridades e órgãos públicos, mas
quase sempre resultaram da ação deliberada de uma pessoa ou, no máximo, de um grupo
formando um complô, montado exclusivamente com aquele objetivo e que, depois de
consumado o atentado, se dissolvia.
18
Idem.
19
Ibidem.
O terrorismo é diferente. Trata-se de grupos organizados que agem sob uma bandeira
qualquer, sempre com o objetivo de destruição, sem comprometimento com os códigos éticos
e morais vigentes, num total desrespeito às legislações internacionais. Amparados por
recursos tecnológicos sofisticados e acobertados por fanatismo religioso, seus integrantes são
capazes de agir em qualquer lugar dos continentes devido à sua capacidade de infiltrar-se
naquele meio –, não importando que seus atos atinjam civis. Nenhuma nação pode, assim,
desprezá-lo, pois, a qualquer momento, pode virar um alvo em potencial.
Capítulo a parte mereceria o chamado "terrorismo de estado". Nesse caso, a violência
dos governantes em relação à população se estende, geralmente, durante vários anos, e as
vítimas são contadas em dezenas de milhões. Seria mais apropriado denominar esses
acontecimentos de genocídios ou guerras civis abertas, invariavelmente desencadeadas "em
nome do estado", "da segurança nacional", "contra revolucionários", "contra subversivos" etc.
Em todos os casos, a motivação é política.
Considerado também como um fenômeno social, o terrorismo será igualmente assim
tratado nesta tese, e não apenas como uma questão jurídica.
E a melhor maneira de fazê-lo é definindo-o com relação a seus fins e a seus meios. A
consideração dos meios guiará a distinção entre a ação terrorista e outras ações cujas
finalidades sejam igualmente violentas; e a consideração dos fins ajudará a distinguir a ação
terrorista de outras ações que empreguem meios similares.
Os diversos entendimentos sobre o terrorismo relacionam-no com o emprego ou a
ameaça de emprego da força física. Entretanto, esse emprego ou ameaça tem uma
característica específica: sua indiscriminação, ou seja, qualquer pessoa que tenha algum tipo
de ligação, por mais frágil e distante, com o alvo último de um grupo terrorista pode ser alvo
imediato de uma ação do terror, sem que tenha o menor indício prévio sobre isto.
Assim, é possível deparar com um atentado numa discoteca (Bali, 2002) ou num
shopping center (New York, 1993), sem que estejam ocorrendo bombardeios próximos. Basta
que alguém telefone para a polícia ou para o estabelecimento e diga que uma bomba em
determinado lugar, programada para explodir em determinadas condições. A polícia ou a
segurança do local o esvaziará e encontrará ou não o artefato.
Quando isso acontece e as pessoas ficam sabendo, generaliza-se o pânico. E o efeito é
muito maior que o da destruição efetivamente causada.
E quanto mais pessoas ficam sabendo, maior é o efeito. Na verdade, o efeito advém
exatamente de as pessoas estarem cientes; é seu efeito psicológico que importa.
A importância do efeito psicológico e do emprego da força foi salientada por diversos
comandantes de atentados e por escritores, tendo sido incorporada teoricamente no estudo
sobre as guerras pelo general prussiano Carl von Clausewitz. (1780-1831).
Ao longo da sua principal obra, Da guerra (1996), o general salienta não só a
existência, mas também a preponderância dos fatores morais” sobre a mera superioridade ou
inferioridade numérica. Quanto a isso, não há novidade. O que parece ser específico do terror,
não necessariamente do terrorismo, é a virtual irrelevância, “para a relação numérica ou
material de forças, da destruição material (pessoas, equipamentos, suprimentos causada)”
(CLAUSEWITZ, 1996, p. 27).
Nesse sentido, um reconhecimento importante para uma circunscrição mais precisa do
fenômeno é que seu meio não é o emprego ou a ameaça de emprego da força, mas o emprego
ou ameaça de emprego da força de uma maneira específica, o terror. Algumas consequências
teóricas relevantes já podem ser extraídas dessa simples consideração.
Por exemplo, não mais como confundir conceitualmente um sistema
jurídico, que emprega a força para intimidar e coagir, com o terrorismo. Afinal, o
sistema penal está longe de ser indiscriminado: age sobre indivíduos que se
supõem, a partir de procedimentos investigativos e judiciários, diretamente
relacionados a determinados acontecimentos, sendo que os indivíduos em questão
terão conhecimento dos processos, poderão defender-se e estarão cientes dos
acontecimentos que os envolvem. Nenhum dos elementos do terror está presente.
O entendimento de que é o emprego do terror e não o da força o que imprime caráter
ao terrorismo permite-nos também distingui-lo de outras formas de luta mais tradicionais, que
também empregam a força.
Comecemos pela guerrilha. Guerrilheiros agem fundamentalmente sobre outras forças
combatentes, visando a diminuir-lhes o impacto e miná-las psicologicamente, para,
eventualmente, aumentar sua própria força à custa dos inimigos. Mas esse emprego da força
nada tem de indiscriminado nem de irrelevante em termos materiais; apenas aposta num
horizonte de tempo diferenciado, manifestando sua disposição de lutar e, a partir daí, fazer
variar em seu favor a correlação de forças, psicológica e material, inclusive atraindo, a partir
de seus sucessos pontuais, mais gente para a sua causa.
O mesmo vale para operações ditas convencionais. Se, por exemplo, um governo
bombardeia diretamente as forças do inimigo, seu interesse mais palpável é reduzir-lhe
imediatamente a capacidade material de continuar lutando. Embora isso produza um efeito
psicológico ou moral, espera-se que o efeito material seja significativo. Bombardear uma
fábrica de munições ou de equipamento bélico, por exemplo, reduz a disponibilidade efetiva
de recursos combatentes do inimigo. O fato de civis morrerem não deve ofuscar o fato de que
não se trata de alvos indiscriminados, sem relação com o efeito material na capacidade de
combater do inimigo. Indo mais longe, se bombardeiam as instalações elétricas que permitem
a um conjunto de fábricas continuar produzindo, visa-se ao mesmo efeito: reduzir a
capacidade material de combater do inimigo, ainda que isso produza efeitos colaterais na
população civil. Por mais doloroso que seja, não se trata de emprego do difuso do terror.
A caracterização dos meios, aliada à semelhança dos termos, possibilita definir o
terrorismo como sendo, pura e simplesmente, o emprego do terror. Porém isso é insuficiente.
Por exemplo: se um grupo de pessoas armadas invade agências bancárias e faz os clientes e
funcionários de reféns, eventualmente assassinando alguns com o propósito de viabilizar sua
fuga e apropriar-se do dinheiro, esses fatos se sucedem com alguma frequência e são
amplamente repercutidos pela mídia, gerando uma relutância de os cidadãos irem a agências
bancárias. Trata-se de uma situação em que os elementos envolvidos dificilmente poderão ser
considerados como “terrorismo”, embora sejam claramente empregados como terror.
É preciso, portanto, considerar os fins. É um entendimento comum que o terrorismo
tem motivações políticas. Por mais que o termo “políticas” possa estar carregado de
ambiguidade, restringir essa motivação última do terrorismo provoca mais prejuízos que
vantagens, pois estaríamos diante de uma enumeração exaustiva das motivações ideológicas,
excluindo arbitrariamente outras possibilidades que venham a surgir no futuro; com isso,
outros fenômenos ficam claramente excluídos da caracterização de terrorismo, mesmo
levando-se em conta a ambiguidade do que seja “motivação política”. O exemplo dado logo
acima é um caso evidente: o emprego do terror exclusivamente para ganho privado não
configura um grupo como terrorista.
Um caso menos evidente de exclusão, por exemplo, é o da seita japonesa Aun
Shinrikyo, que ficou famosa após a utilização de sarin no metrô de Tóquio. Ao que tudo
indica, trata-se de uma seita apocalíptica, cujos propósitos são a destruição e a morte em si
mesmas, para que uma nova sociedade possa surgir da eliminação de uma suposta ordem
corrupta existente.
Poderíamos, portanto, definir o terrorismo como “o emprego do terror para fins
políticos” ou, mais simplesmente, “o emprego político do terror”; entretanto, esse uso não
forçaria demais o uso corrente do vocábulo “terrorismo” como o colocaria sob o mesmo
rótulo fenômenos diferentes, com características distintas. Uma doença social percorre a
Terra, contaminando as nações com a pestilência da morte. “O terror colhe sua safra sinistra
em todas as partes do planeta” este o início de um dos muitos editoriais de jornais
publicados nos últimos tempos sobre o terrorismo no mundo.
As nações assistem, perplexas, ao aumento quase inacreditável desse tipo de violência
que, com carros-bombas, cartas-bombas e até homens-bombas, dilacera cidadãos e abala
governos, em nome de causas religiosas, políticas, econômicas, sociais e étnicas.
O jornalista Luis Carlos Lisboa resumiu desta forma a sua visão do fenômeno que
estamos enfrentando cotidianamente: "Entre os horrores de um final de século apocalíptico,
que incluem a corrupção moral generalizada e a indiferença diante da pobreza absoluta, surge
da sombra o terrorismo para mostrar ao mundo o lado mais cruel do homem
20
".
De fato, o terrorismo global, sem fronteiras, sem razões políticas, sem negociações,
sem ideais, sem defesa, apresenta-se como um fenômeno ampliado pela cultura da
indiferença, que condena todos ao clima de medo e ao sentimento apocalíptico de que seremos
vitimados pela patologia da insensibilidade moral.
No próximo capítulo, abordaremos os sintomas do mal-estar contemporâneo, as
dificuldades de amar ao próximo e os efeitos alienantes do hiperconsumo, revelando os novos
hábitos da sociedade atual, o fascínio da internet e a exclusão social, fomentada por novas
tecnologias.
20
Disponível em: www.library.com.br/Filosofia/terroris.htm. Acesso em: maio de 2009.
CAPÍTULO 3 – FRAGMENTOS DA INDIFERENÇA
SOCIAL
Sei que, para muitos, a face da globalização é contraditória. A internet e a televisão
podem trazer conhecimento e informação, mas também sexualidade ofensiva e
violência a mais absurda. O comércio pode trazer riqueza e oportunidades, mas
também enormes rupturas e mudanças nas comunidades. Em todas as nações, também
na minha, essa mudança pode provocar medo. Medo de que, por causa da
modernidade, percamos o controle sobre nossas escolhas econômicas, nossas políticas
e, mais importante, sobre nossa identidade tudo o que mais prezamos nas nossas
comunidades, nossas famílias, nossas tradições e nossa fé.
Barack Hussein Obama, 4 de junho de 2009.
3.1 MUITO ALÉM DO MAL-ESTAR
Indiferença, violência, miséria, intolerância e exclusão são males definitivamente
inscritos na sociedade atual. Quando caminhamos pelas grandes metrópoles do globo
terrestre, somos invadidos por desalentadoras imagens dos miseráveis, dos dependentes
de drogas, das crianças abandonadas nos sinais de trânsito, dos famintos do olhar
humano; essas imagens provocam sentimentos contraditórios e diversos: medo, angústia,
nojo, culpa, indiferença ou revolta. A presença desses excluídos não só perturba a
consciência como também os ideais sociais, que o narcisismo nos leva a imaginar que
vivemos numa sociedade fundada sobre a justiça e a racionalidade.
Em especial, a indiferença e a incapacidade de indignação, somadas à falta de
projetos pessoais ou coletivos, parecem ser a tônica desse amargo início de século. No
momento de globalização das economias e da crise daí advinda, estamos assistindo a um
vertiginoso aumento da intolerância religiosa e da violência em todas as suas
manifestações.
A psicanalista francesa de origem iugoslava, Zygouris (1998), adverte que esse
cenário é o ideal para o aumento do sentimento de insegurança, acarretando terríveis
efeitos colaterais, como a intolerância e o fundamentalismo:
(...) quando seu tempo subjetivo não pode ser projetado num futuro, o projeto sendo
aquilo que se vem interpor entre o tempo presente e a morte certa, em que discursos
racistas, fundamentalistas, vêm inserir-se onde faltam projetos de vida capazes de
enlaçar o singular e o social (ZYGOURIS, 1998, p. 17).
Indiferença, em todas as suas formas, e intolerância o os maiores sintomas
contemporâneos do mal-estar na civilização atual, tal qual definido por Freud, em sua
obra O mal-estar da civilização (1930), onde revela que a finalidade da civilização não é a
felicidade humana, bem como defende a tese de que o mal-estar infligido aos homens
advém das pressões sócio culturais, do projeto civilizacional, as quais devem limitar a
agressividade humana e reduzir suas manifestações com a ajuda de reações psicológicas
de ordem ética. Freud salienta que:
Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere
àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o
propósito e a intenção de suas vidas. (...) Esforçam-se para obter felicidade;
querem ser felizes e assim permanecer. A felicidade apresenta dois aspectos: uma
meta positiva e uma meta negativa: por um lado, visa à ausência de sofrimento e
de desprazer, por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu
sentido mais restrito, a palavra “felicidade” se relaciona a esses últimos. (...)
Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do
principio do prazer (...) o que chamamos de felicidade (...) provém da satisfação
(de preferência repentina) de necessidades represadas em alto grau (FREUD,
1930, p. 24).
E que o conceito de felicidade é personalíssimo e constitutivo do próprio
indivíduo na forma que este administra a satisfação de seus desejos:
A felicidade, no sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um
problema da economia da libido do indivíduo.o existe uma regra de ouro que
se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo
específico ele pode ser salvo (idem, p. 33).
Na impossibilidade de uma fórmula geral de felicidade, pode-se deduzir que ela
consistiria num ideal ético singular, isto é, num valor relativo e diferencial, que
remeteria o sujeito às suas exigências pulsionais, de forma a extrair prazer tanto das
coisas como das suas relações com os demais sujeitos.
Uma vez constatada a impossibilidade de se conceber uma bem-sucedida
economia de prazeres e gozos, somos constrangidos a reconhecer a existência de algo no
psiquismo humano que inviabiliza a real construção do ideal ético da sociedade. Freud
afirma que: A questão fatídica para a espécie humana parece-me saber se, e até que
ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida
comunal, causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição” (idem, p. 90).
Dessa forma, o que inviabiliza o projeto civilizacional ético universalista é a
existência do narcisismo e da pulsão de morte. É na dinâmica desses dois elementos que
se funda o debate freudiano sobre do mal-estar na civilização.
(...) o decisivo passo à frente consistiu na introdução do conceito de narcisismo,
isto é, a descoberta de que o próprio ego se acha cataxizado pela libido, de que o
ego, na verdade, constitui o reduto original dela e continua a ser, até certo ponto,
seu quartel-general. Essa libido narcísica se volta para os objetos, tornando-se
assim libido objetal, e podendo transformar-se novamente em libido narcísica. O
conceito de narcisimo possibilitou a obtenção de uma compreensão analítica das
neuroses traumáticas, de várias das afecções fronteiriças às psicoses, bem como
destas últimas” (ibidem, p. 76).
Freud chegou à conclusão de que as pulsões não poderiam ser todas da mesma
espécie. Em Além do princípio do prazer (1920), definiu que, ao lado da pulsão que
buscava preservar a vida para reuni-la em unidades crescentes, seria necessário que
houvesse uma força contrária, que tendesse a dissolver essas unidades para remetê-las a
seu estado inorgânico original, sendo que os fenômenos da vida poderiam ser explicados
pela ação concorrente dessas duas pulsões. A partir daí, apresentou a enunciação do
conceito de pulsão de morte:
(...) uma parte da pulsão é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz
como uma pulsão de agressividade e destrutividade. Dessa maneira, a própria
pulsão podia ser compelida para o serviço de Eros, no caso de o organismo
destruir alguma coisa, inanimada ou animada, em vez de destruir o seu próprio
eu. Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora
estaria fadada a aumentar a autodestruição (...). Ao mesmo tempo, pode-se
suspeitar, por exemplo, que os dois tipos de pulsão raramente - talvez nunca -
aparecem isolados um do outro, mas que estão mutuamente mesclados em
proporções variadas e muito diferentes ( FREUD, 1930, p.78 ).
Entretanto, esse é o espaço possível para as tentativas de construção de um
projeto comum que, acomodando interesses, torne possível a alteridade.
Etimologicamente, “interesse” é estar entre, estar em e tomar parte; portanto, pressupõe
uma relação entre o indivíduo e a sociedade, corresponde a um estado interno que
depende da satisfação e excitação, tensão e distensão. A indiferença opõe-se ao interesse,
a forma latina acédia, derivada do grego, significa apatia e prostração, cuja conotação
ética é entendida como “o homem que não cuida do seu dever”. A despreocupação com o
destino social leva o indivíduo a transformar-se em um estranho entre seus pares,
motivado pela ameaça e pela violência, frutos do individualismo e da busca exclusiva por
satisfação plena de todos os desejos, sem respeitar interditos proibitórios.
Para lidar com essa tendência humana potencial de destruição e de indiferença
social, a teoria freudiana compactua com o pensamento do filósofo político inglês
Thomas Hobbes (1588- 1679), que identifica no medo da morte violenta o impulso
humano para a vida social. Há uma renúncia parcial do direito ao pleno gozo e a
imposição de um limite para as exigências das forças pulsionais, em prol da possibilidade
de um diálogo que construa as relações políticas e sociais; enfim, um contrato social que
nos “proteja” de nossas pulsões autodestrutivas.
(...) apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e
matá-lo Homo hominis lúpus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e
da história, terá coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel
agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum
outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais
brandas, (...) Os horrores da recente Guerra Mundial, quem quer que relembre
tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade dessa opinião (ibidem,
p. 68).
Em função do bem-estar social e da preservação da própria espécie, torna-se
mandatório a renúncia à plena satisfação de todos os desejos singulares em função da
necessidade da segurança coletiva.
Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do
homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque
lhe é difícil ser feliz nessa civilização. (...) O homem civilizado trocou uma
parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança
(ibidem, p. 72).
Para Freud, o medo da morte se traduzirá como a ameaça da desintegração do
corpo, onde o narcisismo encontra lugar de sobrevivência. A própria filosofia cristã que
preconiza “o amor ao próximo na mesma intensidade e forma com que nos amamos”,
seria emblemática da civilização, à medida que exibe a total antítese entre os interesses
desta com as do sujeito narcísico: nada seria mais contrário à natureza deste que
semelhante proposição. No entanto, a única forma do ser humano garantir minimamente
sua integridade física, e consequentemente, narcísica, seria colaborando na manutenção
e conservação do narcisismo do outro.
Freud salienta que todo indivíduo pode tornar-se um potencial inimigo da
civilização, uma vez que em todos os homens existem tendências destrutivas, antissociais
e anticulturais. A civilização, que engloba tanto o controle do homem perante a Natureza
como o conjunto de regulamentos que regem os relacionamentos humanos, está em
constante estado de tensão quanto ao homem isolado e à sua liberdade singular.
Aconselha também cautela nessa irrefreável necessidade imediata de satisfação de
desejos pessoais:
Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como o método
mais tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo
antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo (ibidem, 60).
Freud ainda chama a atenção para o fato de que, no âmago do desejo humano, reside
algo de agressivo e desestabilizador. Não é apenas um simples instinto de defesa diante
de um perigo iminente, mas é um instrumento e a causa de seu gozo. Diz ele:
(...) essa tendência à agressão, que podemos perceber em nós mesmos e cuja
existência supomos também nos outros, constitui o fator principal da
perturbação em nossas relações com o próximo; é ela que impõe tantos esforços à
civilização (ibidem, 65).
Em O mal-estar na civilização, Freud retoma seu texto Totem e tabu (1912-13), ao
descrever a passagem da natureza à cultura. Segundo o mito da “horda primeva”,
existiria, inicialmente, um pai onipotente, possuidor de todas as mulheres e de uma
vontade arbitrária e absoluta. Esse pai seria assassinado pelos filhos e, a partir disso, um
contrato social seria estabelecido para garantir que nenhum deles tomasse o lugar do
pai. Após o parricídio, uma nova organização social seria constituída e marcaria a
origem da civilização. A proibição do incesto surge como a primeira lei que fundamenta
uma sociedade.
A catástrofe não pertence somente ao passado ancestral, mas persevera nos dias
de hoje, no âmago da complexidade humana, acentuando-se em virtude dos avanços
tecnológicos a serviço da guerra e que são infinitamente mais poderosos e destrutivos
que aqueles dos quais dispunham nossos antepassados.
Esse primeiro conflito fratricida, seja qual for seu caráter mítico, longe de estar
resolvido ou esquecido, continua em ação. Para Freud, a humanidade nasce de um
assassinato e este crime a caracteriza; a violência, pois, está no cerne do humano, e cada
um de nós carrega potencialmente em si o vírus letal da guerra e da rebelião.
Em Reflexões para os tempos de guerra e de morte, de 1915, escrito enquanto seus
dois filhos se encontravam na frente de batalha, Freud recorre à metapsicologia para
refletir sobre os horrores da Primeira Guerra Mundial catástrofe que, de fato,
inaugurou o século XX e se pergunta se a humanidade constituída no crime e através
do crime tem como não se dirigir inevitavelmente para a destruição.
Constata que o homem, desde que existe, nunca cessou de fazer guerras e de
exterminar seu próximo e, como ele mesmo aponta, a motivação seria “a satisfação
narcísica de se poder pensar que se é melhor do que os outros” (FREUD, 1930, p. 109).
O homem primitivo, diz ele, levava a morte tão a sério que, quando se tratava do
estrangeiro inimigo, a morte era bem-vinda e desejava-se provocá-la. Pior e mais cruel
que os animais, nada o impedia de matar e devorar outros seres da sua espécie. Quanto a
nós, somos descendentes de ancestrais sanguinários e, se renunciamos a tais pendores, foi
única e exclusivamente porque fomos forçados pela civilização, cujos valores morais
devem lembrar a verdadeira natureza do homem: a de que o ser humano não é nem bom
nem ruim; é ambivalente, coabitando nele ódio e amor, altruísmo e egoísmo.
O que não impede de perguntarmos por que, em certos momentos da história,
prevalecem momentos de amor e altruísmo e, em outros, de ódio e egoísmo. E é
justamente isso que ocorre. Por exemplo: se, diante desse ser humano excluído e
miserável, morador nas ruas, temos duas opções, a de estender-lhe a mão ou a de subir o
vidro do carro e agredi-lo, por que, cada vez mais, a segunda opção vem generalizando-
se e a primeira desaparecendo?
Freud apresenta uma resposta, em seu livro Luto e melancolia, de 1915, ao
chamar atenção para o fato de que tanto o luto quanto a melancolia têm sua origem
numa perda sofrida pelo indivíduo. A diferença entre eles reside no fato de que,
enquanto o enlutado paulatinamente assimila a ausência do objeto amado e retorna à
conduta normal, o melancólico é incapaz de livrar-se de seu tormento.
Comentando a indiferença que caracteriza nosso final de século, Caterina Koltai
ressalta que “pode ser uma manifestação melancólica da impossibilidade de fazer o luto
de certas ideologias e sonhos de fraternidade que alimentaram, em parte, o homem do
século XX” (KOLTAI, C., 1999, p. 76-80).
Essa manifestação melancólica, representada pela indiferença diante dos
atentados terroristas, das cruas manchetes diárias sobre crimes violentos e do consumo
abusivo de drogas, avaliza a exploração econômica, o uso indiscriminado do próprio
corpo e do alheio, e a pedofilia na internet. A cultura da Indiferença é um sintoma
melancólico do sonho perdido, da promessa de igualdade, liberdade e fraternidade em
um mundo sem fronteiras.
Será que ainda é possível unir os homens uns aos outros pelo amor? Será que,
para isso, seja preciso que alguns fiquem de fora, para receberem as manifestações de
agressividade e serem julgados e punidos, a fim de “aprenderem” a merecer afeto? Essa
proposição é uma crítica severa de Freud ao mandamento cristão do “Ama a teu
próximo como a ti mesmo”, que ele confessa não entender e afirma ser estranha aos
primitivos.
Meu amor é algo infinitamente precioso que não tenho o direito de desperdiçar
sem prestar contas (...) Se amo um outro ser, de alguma forma, ele tem que
merecê-lo (...) Ele o merece se é tão melhor que eu que me oferece a possibilidade
de amar nele meu próprio ideal. Mas, se me é desconhecido, se não me atrai por
nenhuma qualidade pessoal e ainda não desempenhou nenhum papel em minha
vida afetiva, me é bastante difícil ter por ele a menor afeição (...) E, olhando mais
de perto, esse estrangeiro não apenas não é digno de amor como, na maioria das
vezes, para ser sincero, devo reconhecer que ele pode ser alvo da minha
hostilidade e a de meu ódio. Ele não parece ter por mim a menor afeição.
Quando lhe é útil, o hesita em me prejudicar (...) pior ainda, mesmo que não
lhe seja útil, desde que encontre aí algum prazer, não tem o menor escrúpulo em
me ofender, em me caluniar (ibidem, 62-63).
em 1927, O futuro de uma ilusão, Freud afirma que a cultura e a civilização
preenchem uma função primária de interdições que se exercem de maneira privilegiada
sobre três desejos instintivos: assassinato, canibalismo e incesto. Tais imposições são
progressivamente internalizadas, o que não impede que os desejos oriundos desses três
instintos sejam sempre suscetíveis de obter realização. O mal-estar na civilização começa
onde o anterior terminou, com uma discussão com Romain Rolland em torno do
sentimento religioso. Logo a seguir, Freud se pergunta o que querem, afinal, os homens.
Eles aspiram à felicidade, embora tudo pareça se opor a tal programa, embora a
infelicidade seja muito mais frequente, devido à dor do corpo, à hostilidade do mundo
exterior e, principalmente, à insatisfação decorrente do relacionamento com os outros.
Ele não se contenta com a simples constatação e tenta analisar as mediações que o
esforço humano elaborou coletivamente para compensar o desamparo, Hilflosigskeit”.
A função de tais mediações, entre elas o trabalho, a magia, a arte, a religião e o
conhecimento científico, é assegurar a regulamentação da relação do homem com a
natureza e com seus semelhantes.
Freud aprofunda uma das três fontes do sofrimento humano: aquela que nasce
do caráter insatisfatório das relações humanas, em virtude da universalidade da
hostilidade dos homens uns em relação aos outros e da crueldade inerente ao ser
humano.
Para isso, levanta a hipótese de que o sofrimento humano poderia derivar, em
geral, da insuficiência dos dispositivos que regulamentam a relação dos homens entre si.
Coloca, assim, o problema do sofrimento humano frente a frente com o conjunto do
campo simbólico. A insuficiência dos dispositivos não decorre da imperfeição de uma
faculdade que figuraria no inventário humano, mas da ambivalência inerente ao campo
simbólico. Mais que tais dispositivos, o que está em jogo é a própria necessidade de os
humanos recorrerem a eles.
No campo dos fenômenos de civilização, é essa ambivalência que sugere a Freud
(1930) a formulação de que, em decorrência de suas próprias invenções, o homem
contemporâneo vê-se às voltas com uma extrema dependência e com um perigo
ameaçador. Parece que o sujeito humano é incapaz de inventar dispositivos que aliviem
seu sofrimento. O mal-estar no plano coletivo é o resultado da ambivalência dos sujeitos
com relação àquilo que os humaniza. “Nunca o destino do gênero humano esteve tão
ameaçado, na medida em que jamais os indivíduos estiveram tão aptos a se
exterminarem uns aos outros” (idem, p .67).
3.2 SOB O OLHAR DE EROS OU SOBRE A DIFICULDADE DE AMAR O PRÓXIMO
A invocação cristã de “amar o próximo como a si mesmo”, segundo Freud, é um
dos preceitos fundamentais para o convívio na sociedade civilizada e, ao mesmo tempo, o
que mais contraria a racionalidade civilizacional, o que promove a busca da própria
felicidade e a satisfação dos interesses pessoais.
A questão natural “por que devo amar ao próximo?” convida a refletir sobre o
valor do afeto e seu merecimento. Bauman (2003) pondera:
(...) Eles o merecem se são tão parecidos comigo de tantas maneiras importantes
que neles posso amar a mim mesmo; e se são tão perfeitos, mais perfeitos do eu
que posso amar neles o ideal de mim mesmo (...) Mas, se ele é um estranho para
mim e se o pode me atrair por qualquer valor próprio ou significação que
possa ter adquirido em minha vida emocional, será difícil amá-lo (BAUMAN,
2003, p. 97).
A condição preliminar dos afetos torna-se ainda mais desconfortável e vazia pelo
fato de que, com bastante frequência, não encontramos evidencias suficientes de que o
Outro, estranho a mim e a quem devo amar, me ama ou, ao menos, demonstra por mim
a mínima consideração. Como garantir a reciprocidade dos afetos, quando estamos
cientes, alertados por Freud, de que os indivíduos, quando os convêm, não hesitarão em
injuriar, caluniar e difamar apenas para sua satisfação pessoal e demonstração de poder
superior? Segundo Bauman, o amor ao próximo:
É um mandamento que, na verdade, se justifica pelo fato de que nada mais
contraria tão fortemente a natureza original do homem. Quanto menor a
probabilidade de uma norma ser obedecida, maior a obstinação com que tenderá
a ser reafirmada (idem, p. 98).
Provavelmente, nenhuma outra obrigação ou lei tenha maior possibilidade de ser
desobedecida do que esta, no que a mesma possui de contrário à natureza humana.
Aceitar a condição de amar ao próximo é a norma fundamental da humanidade.
Bauman diz que “amar o próximo pode exigir um salto de fé. O resultado, porém, e o ato
fundador da humanidade, também é a passagem decisiva do instinto de sobrevivência
para a moralidade” (idem, p. 98).
Esse movimento, essa travessia, confere à moralidade uma categoria de condição sine
quo non da sobrevivência. Com esse elemento, a sobrevivência de um único ser humano
se torna a sobrevivência da humanidade no humano. “Amar ao próximo como a si
mesmo” como uma cláusula pétria, indiscutível, convida a mais uma investigação sobre a
natureza do amor-próprio. O amor-próprio pode ser entendido como um estímulo para
nos mantermos vivos e capazes de resistir e enfrentar o que ameace a vida. Bauman,
porém, adverte que:
Os caminhos dos instintos de sobrevivência e do amor próprio podem correr
paralelamente, mas também em direções opostas (...) o amor-próprio pode
rebelar-se contra a continuação da Vida. Ele nos estimula a convidar o perigo e
dar boas-vindas à ameaça (idem, p. 100).
Visto que o que amamos em nosso amor-próprio é a possibilidade de nos
apropriarmos de muitos “eus” para serem amados, amamos o encantamento e a
esperança de sermos amados, dignos de afeto e de sermos reconhecidos como tais. Em
síntese, para termos amor-próprio precisamos receber amor a priori. Como postula
Bauman, “a negação do status de objeto digno do amor alimenta a auto-aversão. O
amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros (...). Outros
devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a nós mesmos” (ibidem, p. 100).
Como podemos saber que não fomos desmerecidos do afeto? Quando o Outro me
oferece seu olhar atento e me respeita em minha singularidade. O respeito é um
movimento, não um mero movimento mecânico, como um deslocamento de um lugar
para outro. A noção de movimento, que serve para definir o respeito, é mais profunda,
ampla e também imprecisa do que a mecanicista e se aproxima do que Aristóteles
chamava dýnamis. Essa ideia incluiria os “movimentos da vida”; dessa forma, por
exemplo, Eros é um movimento que não apenas faz com que os amantes se unam
fisicamente, como também dialoguem.
O conceito de respeito pode parecer um tanto paradoxal e, ao mesmo tempo,
extremamente significativo. Como um elemento importante da condição humana, o
movimento do respeito é um aproximar-se que guarda a distância, uma aproximação
que se mantêm à distância. Sobre a atitude moral, a atitude ética, o filósofo espanhol
Esquirol afirma que ela que nos vincula diretamente com as coisas, com o mundo, “e o
que é essencial do respeito é dado pelo olhar” (ESQUIROL, 2006, p. 8).
O olhar tem algo de paradoxal: a total facilidade de olhar contrasta com a
dificuldade de ver. Se há luz, só de abrir os olhos e as coisas que nos rodeiam se
apresentam; porém, é preciso querer ver, prestar atenção para perceber, conforme os
aspectos da realidade, o que realmente as coisas são. “O olhar ético é o olhar atento”,
como definido por Sócrates (470-399 a.C.).
Na maioria das vezes, negamos esse olhar atento, tratamos os outros e as coisas
automaticamente, seguindo normas de conduta, geralmente assumidas sem maiores
reflexões.
O movimento da atenção não é apenas para resgatar o sentido do outro, mas
também de si mesmo, diante da repetição de discursos, da aceitação de esquemas
ideológicos de que nos servimos para justificar opiniões ou as ações e inações que as
seguem. O olhar atento se converte em uma tarefa ética do sujeito responsável e
convocado a assumir sua autenticidade no mundo. Como assinala Esquirol:
E ninguém se engane pensando que somente as “massassão manipuladas pelos
slogans da propaganda e pelos preconceitos ideológicos; também os intelectuais e
os políticos e os cientistas (...) repetem os tópicos, só que, às vezes, adornados com
uma retórica um pouco mais refinada (idem, p. 12).
O olhar é empregado aqui num sentido mais amplo, em que o ato de baixar ou de
afastar o olhar pode ser uma atitude de respeito. Essas situações ilustram bem o quanto
de paradoxal na natureza humana, pois quem afasta o olhar é quem melhor vê, e
também existe aquele que não afasta o olhar porque, como não soube olhar bem, não
percebeu, o que, por respeito, mereceria distanciamento. Por outro lado, isso ensina que
o olhar atento não é precisamente o olhar insistente e indiscreto, mas o que sabe ver com
discrição.
A ação de afastar o olhar, além de mostrar que o mais lúcido dos olhares não é o
dos olhos, começa ainda a ensinar algo muito mais importante: a dimensão ético-moral
do olhar atento. Olhar atento começa a ser sinônimo de olhar ético. A importância de
falar do olhar ético também se manifesta se recordamos que, nas relações interpessoais.
Para Esquirol, “a ignorância ou a indiferença que um pode exibir em relação ao outro já
tem significação moral” (ESQUIROL, op. cit., p.13). Nesse sentido, a atenção é o
primeiro movimento com significação ética.
O respeito é uma aprendizagem de como olhar e manter a devida distância. A
supressão da distância pode ter significados muito distintos: em um extremo, a união
amorosa, em outro, a violência. Ao manter-se o respeito, a distância se diferencia em
ambas, mas, não, da mesma maneira. A violência é antípoda do respeito, não deixa de
ser significativo que a violência coincida precisamente com a supressão de toda a
distância. muitos tipos de violência, mas o denominador comum a todas consiste na
existência de um tipo de força física ou psicológica que se exerce sobre alguém.
Violação tem a mesma raiz que violência. A violência é a violação do outro, da
pessoa do outro, em cada uma de suas dimensões: sobre o corpo, sobre a presença social,
sobre o espaço íntimo, sobre ideias ou crenças. “A violência máxima é o homicídio e, na
realidade, toda forma de violência é uma variação sobre esse tema (...) se trata sempre de
anular o outro, de diminuí-lo, de aniquilá-lo de mil formas e maneiras” (idem, p. 50).
Quando olho para alguém de quem me aproximo é mais esse outro que atua
sobre mim do que eu atuo sobre esse outro; aproximar-se é encontra-se comprometido, e
este movimento traz consigo um aumento de vulnerabilidade e real afetação. O filósofo
francês Lévinas aborda brilhantemente esse aspecto, ao descrever o que acontece
quando o outro me olha: “Na proximidade do outro, seu olhar cai em mim
imperiosamente” (LÉVINAS, 1991, p. 92).
A distância que se guarda opõe respeito à violência, porém também distingue
entre o amor e o respeito. No respeito se exclui o solipsismo e a totalidade, em invasão do
outro, nem dissolução em um outro ou no outro. Pode-se chamar esse outro de
sociedade, cultura ou natureza. Respeitar o outro é assumir a própria finitude; por essa
razão, ele é um elemento integrante da condição humana, e a ideia que melhor esclarece
seu sentido é o olhar atento.
O ataque de 11 de setembro reúne todos os elementos de violência capazes de
fascinar todos os olhares. Repentinamente, em uma fração de segundos, diante de
televisores de todo o mundo ou in loco, as camadas de cultura se esgotam frente à
violência inaudita; o respeito e a civilidade de regras de interação são substituídos pela
visão brutal do assassinato em massa.
O que impulsiona um indivíduo ou determinado grupo a se arrogar num acesso
de fúria de tamanha onipotência? A investigação psicológica mostra claramente que
uma concentração ambivalente no movimento do indivíduo e da multidão, em simbiose
de amor e ódio, é capaz de converter o egoísmo em altruísmo e a perversidade em
compaixão. Segundo o psicólogo Goldberg (1937):
A idolatria da massa pelo carisma, numa antítese sentimental, não raras vezes desvia
para a mesma pessoa um ódio descontrolado, desenvolvido a partir de um estado
infantil cujas raízes mergulham na necrofilia, no amor à morte. Para este reduto hostil,
o sorriso é provocação, a alegria é insulto e o sucesso é o pecado (GOLDBERG,
2004, p. 110).
A civilização convida, implicitamente, à boa ação, ao respeito, ao olhar ético; porém,
quando essa comunhão exclui certos indivíduos ou grupos, e a exigência, em si, é imposta,
apenas o recalque de impulsos destrutivos não é capaz de impedir manifestações e
compensações instintivas, descontroladas e devastadoras da alma coletiva.
3.3. ALIENAÇÃO DO CONSUMO E O MARKETING DA INDIFERENÇA
A grande filosofia moral da atualidade preconiza que cada ser humano deveria
encontrar, em seu meio, aquilo com o que se satisfazer plenamente.
A impossibilidade de satisfação plena acarreta um déficit, um dolo, um dano, e
qualquer reivindicação nesse sentido encontra-se legitimada pelo direito de ser satisfeita. O
psicanalista francês Charles Melman (1933) identifica uma nova “economia psíquica” a reger
comportamentos:
Essa nova economia psíquica revela uma mutação que nos fez passar de uma
economia organizada pelo recalque a uma economia organizada pela exibição do
gozo. A sociedade moderna tem, na liberdade, na autonomia individual e na
valorização narcísica do indivíduo seus grandes ideais, pilares de novas formas de
alienação, direcionados para o gozo e para o consumo (MELMAN, 2003, p. 56).
A crise atual agravou-se nas últimas décadas do século XX, com o declínio da era
industrial e da ética do sacrifício, cuja crença católica tomista preconiza que vale a pena ser
bom. O resultado imediato é que a nova economia do desejo gera parte das atitudes de
consumo, cujos maiores lucros provêm a partir do boom da informática e, em consequência,
da indústria tecnológica das comunicações virtuais. O consumo desenfreado de bens
supérfluos, de serviços e de lazer ocupa o lugar do desejo, do prazer e do gozo, ultrapassando
as margens do suficiente.
Acima de tudo, verifica-se que a produção de grandes e rápidas concentrações de
riqueza se alimenta de um tipo de bem que exclui enormes fatias da população mundial.
Apesar de a globalização ter desenhado um novo mapa mundi, no qual empresas
multinacionais representam interesses milionários, mais da metade da humanidade encontra-
se marginalizada, fora do mapeamento.
No quadro de exclusão, os indivíduos não se tornaram indiferentes à Lei, mas, esta, em
contraposição, rígida e implacável, perdeu sua sustentação na cultura. A plena satisfação dos
desejos é tão excludente e impossível de realizar-se quanto a renúncia absoluta a qualquer
forma de prazer. O fato de vivermos sob o imperativo dos desejos, talvez sem Lei, não
significa que estejamos libertos de outra Lei maior: a que impõe certa renúncia.
Se a violência contemporânea parece ser efeito da falta de identificação com o outro,
com a família, com a comunidade, conferindo lugar privilegiado aos atos destrutivos e às
demonstrações de onipotência, tornando-os irrefutáveis, o aumento efetivo da delinquência,
que tanto ameaça a sociedade, pode ser uma espécie ambígua de autorização implícita dos
códigos morais contemporâneos, que se confundem com a privação e a castração.
Os atos de barbárie estarão assim autorizados pela falta de identificação, que será
consequência também do prazer e do gozo na sociedade pós-moderna, uma vez que:
As formações imaginárias organizam-se em torno do Eu narcísico, das identificações
e das demandas de amor e reconhecimento. Existir por intermédio da imagem torna
insuportável qualquer forma de exclusão. Diante deste fato, qualquer forma de
alteridade se torna ameaçadora. quem se autorize a tirar a vida alheia ou mesmo
prefira pagar com a própria vida o preço de quinze minutos de fama, aos quais
supostamente teríamos direito, que a “fama” é o substituto da cidadania na cultura
da imagem (KHEL, 2002, p. 23).
Um dos trágicos sinais da barbárie está aliado à cultura da imagem, faz parte da
descoberta dos ativistas do terror global: sempre há um vulto suficiente para aparecer nas telas
do mundo em que se o assassinato em massa de homens, de mulheres e de crianças, quer
em lugares públicos, quer em lugares privados, como os atentados em escolas americanas.
Quanto mais intensos forem, mais valor possuem como provocadores de manchetes
sensacionais. Os alvos de bombas das cidades atacadas, como é o caso do Iraque, nada mais
são do que atrativos morteiros de acertos.
A barbárie espalha-se também sobre as formas de exclusão e de formações imaginárias
na indústria das comunicações, por um paradoxo inexplicável: ocupam um espaço que, a
princípio, deveria ser preenchido pela “instituição pública”. A interface entre o imaginário
social, a “realidade” e as fantasias compartilhadas com o “mundo que deve ser” é viabilizada
pelo funcionamento abrangente das telecomunicações e suas mensagens subliminares, que
insistem em gerar uma nova ética:
(...) a linguagem televisiva predomina na organização das informações a que temos
acesso. São colagens de elementos imaginários que remetem os telespectadores a um
mundo de fantasia no qual, ainda que sejam fantasias de horror, somos todos
poupados da dúvida e da incerteza, dispensados da necessidade de pensar. A
linguagem televisiva nos infantiliza a todos, pois o impacto das imagens produz a
falsa certeza de que as coisas “são como são” (ibidem, p. 32).
A opinião pública torna-se refém e participante de uma cena totalitária, cujas
alternativas estão contidas nos termos que a imagem comporta, dispensando a capacidade
humana de questionar as versões oficiais, criar fatos novos e inventar soluções para as grandes
crises sociais.
A sociedade de consumo, que gera o individualismo selvagem, acrescido do desejo
obsessivo de riqueza, remete ao “discurso do capitalismo” lacaniano. Como ressalta Souza
(2003), ao analisar os conceitos que Lacan apresenta sobre os discursos, no Seminário XVII,
“foram produzidos, primeiramente, o discurso do mestre, o discurso do histórico, o discurso
do universitário e o discurso do analista”, para, a seguir, ser concebido “o do capitalismo”.
É o discurso capitalista que, segundo compilação de Souza, “passa a se constituir num
dispositivo que procura dar conta de alguns sintomas da contemporaneidade e busca
determinar uma sujeição do objeto mais-de-gozar à tecnologia e às leis de mercado” (SOUZA,
2003, p. 10).
Na contemporaneidade vão surgir questões da identidade, outrora organizada a partir
de um reconhecimento de si pelo Outro; logo, por uma figura diferente do semelhante, uma
figura que representa uma alteridade radical. Os traços específicos que hoje permitem a
identificação fundamentavam-se em caracteres éticos marcados pela dignidade, honra,
coragem, sacrifício, dom de si e interferências culturais e sociais. Antigamente, conhecia-se o
“ideal do cavalheiro” que, a partir do culo XIX, com o crescimento do capitalismo, veio
chocar-se com o “ideal do financista”. O único reconhecimento de si para o capitalista, e para
todo sujeito inserido nesse “regime”, é a acumulação do capital.
O reconhecimento social que provocava a identidade de acordo com o “modelo
antigo” era adquirido quando o sujeito se fizesse reconhecer por coadunar qualidades e
atributos, quando sua “passagem” para determinado estatuto fosse admitida e definitiva. Já o
“sujeito capitalista” contemporâneo busca ansiosamente esse reconhecimento, expondo-se a
todos os acasos do futuro econômico, arriscando-se à ruína, à prisão e podendo até sucumbir
na trajetória.
São duas gicas completamente diferentes: uma fundada na assunção do traço que
assegura a identidade e a outra organizada pela busca incessante das marcas de uma
identidade, apenas reconhecida pelo olhar do semelhante e que pode ser validada por um
efeito de massa e do reconhecimento público, midiático como o desejo, ela nunca será
definitivamente realizada.
Passamos de um regime organizado pelo recalque do desejo para outro em que o
desejo não é mais recalcado e as manifestações do gozo dominam. A participação da vida na
sociedade, o laço social, não passa mais pelo compartilhar de um recalque coletivo,
denominado “usos e costumes”, mas, ao contrário, por uma reunião, uma espécie de festa
permanente, para a qual cada um é convidado. O atual encargo do sujeito é manter-se na
corrida pela satisfação imediata dos desejos. Condenado à juventude eterna, ele se ressente de
certo desamparo e sofre de uma falta de referências, o que se traduz, entre outras coisas, pelo
cansaço, pela carência e pela ansiedade.
Na sociedade do hiperconsumo, prevalece a confusão entre desejo e gozo. Hoje o
sujeito não está mais ávido de preservar sua singularidade, muito pelo contrário: está em
busca de todas as identificações coletivas onde se poderá dissolver. A preocupação em ser
cuidado, em confiar em sistemas religiosos, culturais e políticos para dar uma direção a sua
existência é mais evidente que nunca, evidenciando um estado letárgico e indiferente.
Esse é o dispositivo que subverte a mutação cultural introduzida pelo liberalismo
econômico, ao encorajar um hedonismo sem rédeas. Não se trata mais da avaliação de uma
economia psíquica centrada no objeto perdido e em seus representantes; ao contrário, é uma
economia psíquica organizada pela apresentação de um objeto doravante acessível pelo
cumprimento, até seu termo, do gozo. Daí, lidarmos constantemente com a barbárie ou com a
exclusão.
O que é “real ou não” tornou-se uma dimensão tão improvável que não sabemos mais
o que é realidade e o que é virtualidade. Como saber se estamos na verdade ou na
representação?
É uma questão que não data de ontem, mas que tomou, hoje em dia, uma feição
totalmente diferente, pois não temos mais os meios de saber o que é real e o que é
virtual, sendo dado que, eu diria, o que funda o campo da realidade é que este seja
bordejado por um real; ora, se esse campo da realidade não é mais bordejado por um
real, como o liberalismo nos propõe, ao mesmo tempo não podemos mais saber se
estamos ali verdadeiramente, nem mesmo o que fazemos ali (SOUZA, op. cit., p.
180).
O indivíduo, assim solicitado pela economia de mercado, não tem nada a ver com
alguma exigência singular real do sujeito. Essa economia apenas interpela um consumidor
abstrato, que deve adaptar-se às ofertas mirabolantes que lhe são feitas: são elas, agora, que o
subjetivam. E, por girarem em torno do objeto disponível e descartável, os próprios indivíduos
se transformam em objetos, que não é a identidade específica do desejo deles que impõe a
escolha de objeto, mas, inversamente, é a promoção midiática que lhes impõe um objeto, o
qual induz a um apetite identificável pela marca do produto.
Os primeiros a identificarem o número crescente desses “novos homens” foram os
publicitários. Em função da busca incessante do esteticismo, os profissionais do marketing,
para aumentarem a eficácia de suas mensagens independente da natureza do objeto por
exemplo, um carro, uma margarina ou uma campanha de prevenção da AIDS –, buscam
validar um único sentido: “é belo e desejável, então é bom”.
Os jornalistas seguiram essa tendência de reconhecimento, as cifras das vendas
confirmaram, e vimos crescer, nos jornais, as páginas de catálogos das grandes marcas, bem
como as dos lazeres, diversões, viagens, conselhos sexuais, suplementos vitamínicos e
fórmulas “milagrosas” de embelezamento. Em contrapartida, a parte informativa diminuiu
consideravelmente quanto às notícias “da atualidade”; interessa ao leitor o que o toca
diretamente ou por participação afetiva. Os políticos tiveram de aprender a reter a atenção do
eleitor de outro modo, que a imagem passou a constituir a mensagem. Eles precisaram,
inclusive, ficar atentos para que o conjunto de traços que constituem sua imagem seja coerente
e sedutor.
A questão é saber se esse novo homem trará consigo a perempção do modelo antigo,
ou seja, se esse “homem liberal pós-moderno”, seguro da legitimidade de seu desejo, vai
definitivamente dominar o sujeito “falante”, aquele a que Lacan chamou de parlêtre, sempre
obrigado a pagar o preço de seu desejo. Esse sujeito, submetido às leis da linguagem, vai
definitivamente deixar-se submergir na busca do gozo imediato? O sujeito, advindo da
“Sociedade do Desejo”, encontrará com que se sustentar ou se poderá cumprir na
autodestruição? Os shoppings são ilhas da fantasia, de sonhos e ilusões, onde tudo é muito
lindo, com vitrines apelativas, perfazendo um clima totalmente criado, inventado, com o
objetivo de assimilar o consumidor como parte, nem que seja por algumas horas, de um
mundo, onde as coisas funcionam, são aparentemente perfeitas e nada de mal acontece. A
população estaria protegida com seus seguranças fardados, dando a impressão de que ali
estaríamos fora de perigo. Como Lipovetsky argumenta:
O grande magazine não vende apenas mercadorias, consagra-se a estimular a
necessidade de consumir, a excitar o gosto pelas novidades e pela moda, por meio de
estratégias de sedução que prefiguram as técnicas modernas do marketing:
impressionar a imaginação, despertar o desejo, apresentar a compra como um prazer.
Os grandes magazines foram, com a publicidade, os principais instrumentos da
elevação do consumo à arte de viver, e emblema da felicidade moderna
(LIPOVETSKY, 2007, p. 31).
Sabemos que os ditos especialistas costumam legitimar o discurso do marketing.
Fazem-nos acreditar em verdades absolutas, valem-se do saber lapidado pela ciência. Um bom
exemplo é o produto “café”: quando se deseja que este produto seja mais consumido, pode
surgir uma propaganda, embalada por teorias científicas, afirmando que a bebida faz bem à
saúde e, para estimular seu consumo, enumeram-se os benefícios que o café poderá trazer para
o organismo se consumido no dia a dia.
Se, pelo contrário, for preciso tirar de linha outro produto, seja por necessidade
econômica ou porque a matéria-prima está em falta, acena-se com uma explicação científica
“fundamentada” para que as pessoas deixem de usá-lo. Como a manipulação torna-se notória,
é preciso refletir sobre o verdadeiro objetivo da “jogada”: o aumento do consumo.
Wolfgang F. Haug, professor de filosofia da Universidade de Berlim, ilustra com
vários exemplos como a sociedade do hiperconsumo se revela. Ele observa que a mercadoria
está condicionada a uma forma estética, para que o comprador a deseje e se sinta motivado a
consumir. Por exemplo, o carro é um meio de transporte eficaz. A mensagem subentendida,
porém, é que o veículo é um símbolo de status, de poder e de força, capaz de nos fazer atingir
o sucesso. Para estimular o consumo, faz-se uma associação de mensagens implícitas,
sensualizando e subjetivando mercadorias, que deveriam apenas valer por sua utilidade.
Com isso, surge novo conceito: a tecnocracia da sensualidade, definida como “o
domínio sobre as pessoas, exercido em virtude de sua fascinação pelas aparências artificiais
tecnicamente produzidas” (HAUG, 1997, p. 67).
Marcas são criadas e se distinguem apenas por um rótulo, não importando o conteúdo.
É o consumo desenfreado, razão de existir do capitalismo, que cria mecanismos de ordem
estética ou cientificista ou ambas que, em última instância, informam-nos o que, como e por
que comprar.
Haug traz um exemplo fantástico, que ilustra bem o processo de transformação da
simples mercadoria em objeto de desejo:
Quando o truste Oetker lançou uma nova marca de cerveja no mercado, o
comentarista do caderno econômico do Frankfurter Allgemeine Zeitung analisou: ‘E
mais uma vez fica claro para nós em que mundo vivemos. Hoje, uma cerveja é
projetada em uma prancheta e construída como sabão em ou um rádio. Acabou-se
o tempo em que o bravo mestre cervejeiro fabricava, de acordo com as normas dos
antigos mestres, nada mais que suco de cevada’ (idem, p. 84).
A sociedade inventa nossas necessidades e oferece produtos feitos em pranchetas. Os
sujeitos estão sendo absorvidos por estes mecanismos, como aponta Lipovetsky:
Exaltando os ideais da felicidade privada, os lazeres, as publicidades e as mídias
favoreceram condutas de consumo menos sujeitas ao primado do julgamento do outro.
Viver melhor, gozar os prazeres da vida, não se privar, dispor do ‘supérfluo’
apareceram, cada vez mais, como comportamentos legítimos, finalidades em si
(LIPOVETSKY, op.cit., p.39).
A sociedade legitima e faz tornar tais comportamentos naturais, a ponto de que, quem
não se comportar dessa forma, será visto como fugitivo do comportamento adequado, como
um desviante.
Outro ponto relevante remete ao fato de que não existem mais as culturas de classes
claramente diferenciadas, como antes observadas. O chique e o vulgar, o alto e o baixo
tendem a se tornar indiscerníveis, ou categorias sem sentido. O autor descreve que “o culto às
marcas é o eco do movimento de destradicionalização, do impulso do princípio de
individualidade, da incerteza hipermoderna posta em marcha pela dissolução das coordenadas
e atributos das culturas de classe” (ibidem, p. 50).
Evidencia-se, assim, a necessidade de o sujeito aparecer com marcas valorizadas pela
sociedade, como forma de inserção no mundo a que diz pertencer. O mesmo se com a
hipervalorização das viagens de férias, como “meio” de inclusão numa parcela da sociedade,
sob pena de virem à tona sentimentos de inferioridade: “À hora do hiperconsumo, é preciso
apreender esse fenômeno como uma das manifestações do individualismo igualitário, que
conseguiu estender suas exigências até o universo imaginário dos jovens” (ibidem, p. 51).
Por trás da aparente autonomia e independência, ocorre com o sujeito a infelicidade da
solidão que está sendo suprida com o ato de comprar, numa tentativa de proteção contra a
angústia, a falta. Mas, naquele momento, extremamente breve, tem-se certa compensação,
que, infelizmente, só dura apenas segundos, sendo, logo depois, seguida pelo vazio.
Ir ao shopping passou a ser uma saída, uma espécie de válvula de escape, um paliativo
para aplacar, momentaneamente, os sentimentos. “Sofro, logo, compro: quanto mais o
indivíduo está isolado ou frustrado, mais busca consolos nas felicidades imediatas da
mercadoria” (ibidem, p.60).
Na atualidade, vemos, de forma crescente, o aumento do consumo em forma de
lazeres. O que vale, agora, são as experiências vividas, as experiências emocionais, o que
imprime, por exemplo, um fascínio a músicas e a viagens “especiais”. O foco do consumo
passa a ser atrelado ao divertimento e às mercadorias culturais. Lipovetsky aponta o aumento
dos orçamentos e do tempo consagrados aos lazeres e o marketing como os elementos que
“fornecem cada vez mais uma apresentação experiencial à oferta hedônica” (ibidem, p.62).
A busca pela felicidade em pequenas experiências e momentos emocionais traduz a
mais recente conduta do hiperconsumidor, que está em busca de prazeres novos, sentimentos e
experiências estéticas diferenciadas; e, quanto mais alto for o poder aquisitivo, maior será a
demanda pelas novidades.
Numa época evidenciada pelo consumo emocional, devemos deixar clara a
importância do tempo existencial – a intensificação do presente vivido.
O sujeito busca o bem-estar, deixando-se seduzir pelo marketing que o aterroriza com
o fato de envelhecer e a possibilidade de morrer. Isso significa a hipervalorização do tempo
presente: tudo que está ao nosso alcance deve ser aproveitado, não se pode deixar nada para
depois e é preciso sentir-se mais vivo e mais jovem. Lipovetsky afirma:
O hiperconsumo, este tem a cargo ‘rejuvenescer’ incessantemente o vivido pela
animação de si por experiências novas; é um hedonismo dos começos perpétuos que
alimentem o frenesi das compras (ibidem, p. 70).
Na sociedade do hiperconsumo, o lema principal é a consagração social da juventude
como ideal da existência de todos. Observa-se a impaciência dos jovens em se tornarem
adultos (embora não queiram envelhecer) e a busca de sensações de prazer vividas na
infância, estimulando-se a compra de mercadorias que estejam ligadas à infância. Adultos
comprando cadernos de bichinhos, canetas em forma de bonecas e os próprios bichinhos de
pelúcia são produtos que jogam com a nostalgia dos consumidores, ligadas aos apelos afetivos
infantis.
Em um texto já antigo, Lévi-Strauss notava que o consumo moderno fazia dos
americanos uma espécie de crianças sempre à espreita de novidades. A se observar os
parques de lazer, os jogos de vídeo e televisuais, os produtos que parecem brinquedos,
é forçoso reconhecer que a hipótese se confirma cada vez mais a cada dia. De um
lado, a Arcádia da mercadoria impele os sujeitos a responsabilizarem-se por si,
informarem-se, tornarem-se gestores adultos de sua vida. Do outro, ela funciona como
um agente de “infantilização” dos adultos. Uma das propensões do hiperconsumidor é
menos para impor-se como “gente grande” diante do outro que para voltar a ser
“pequeno” (LIPOVETSKY, op. cit., p. 71).
Nossa sociedade hoje depara com um fenômeno da hipermodernidade, notando-se que
encontramos em todos os setores um consumo frenético, o que fez aumentar absurdamente
o consumo.
Em 1954, 8% das famílias operárias possuíam um automóvel, 0,8%, uma televisão,
3%, um refrigerador, 8% uma máquina de lavar. Em 1975, essas porcentagens
elevaram-se respectivamente a 73%, 86%, 91%, 77%. No fim da década, mais de dois
terços dos lares estão bem ou muito bem equipados de linha branca. Nesses mercados,
o consumo atinge seu ponto de saturação (idem, p. 98).
Observamos a transformação do consumo que entra na era da individualização e da
psicologização de massa, ou seja, impera o domínio do consumo determinante em todas as
camadas da população. uma exacerbação do desejo e, por isso, todos aspiram aos
supérfluos, modas, lazeres e férias.
Surge, neste momento, o autosserviço, que funciona com um consumidor que não
precisa do vendedor, pois por si mesmo consome. Isso gera a despersonalização da relação
comercial; o contato entre oferta e procura é direto, uma lógica de despersonalização que
funciona igualmente como meio de autonomização do consumidor.
O sujeito da própria satisfação é livre para escolher; a venda torna-se independente e
auto suficiente. A nova sociedade, dominada pela cultura do desejo e da felicidade, promove a
satisfação tida como imediata, o “aproveitar a vida”; é um momento de euforia consumista,
relacionado com as aparentes alegrias de bem estar material. Espalha-se toda uma cultura que
convida a apreciar os prazeres do instante, a gozar a felicidade aqui e agora, a viver para si
mesmo. Nasce não uma paixão pelas rias, como também o endividamento das famílias,
comprometidas no orçamento doméstico com vários cartões de crédito, cheques especiais,
empréstimos.
Lipovetsky diagnostica um novo tipo de consumidor
Um hiperindividualismo consumidor concretizado em atividades dessincronizadas,
práticas domésticas diferenciadas, usos personalizados do espaço, do tempo e dos
objetos, e isso em todas as idades e em todos os meios (ibidem, p. 105).
Na verdade, observa-se que a hiperindividualização gera uma maneira independente de
criar o próprio espaço-tempo do indivíduo. Ele decide o que vai fazer, o que quer fazer, se vai
consumir ou não, na hora que bem entender, como se fosse totalmente livre e independente de
outras células sociais. É o momento do não-encontro, do afastamento dos relacionamentos e
de viver na solidão, cada um com sua própria satisfação, com seus objetos, seu uso e ritmo
próprio de vida, com a contínua negação do olhar ético, da aproximação do outro.
um novo ritmo de vida ligado ao novo espaço-tempo de consumo. Onde quer que
estejamos, o espaço transformou-se em espaço de consumo. Todos os lugares se tornaram
zonas comerciais; visa-se a não parar de se consumir. Consumiremos também nossas
angústias, questionamentos e valores e seremos sempre levados a comprar e a nos dissolver na
alienação do consumo.
Tudo isso leva a crer que vivemos um tempo comercial, que defrontamos com um
universo de alto consumo que funciona de maneira sem limites: não existem mais feriados,
não existe mais descanso aos domingos, todos os dias parecem iguais, tudo funciona 24 horas.
uma generalização comportamental. Mudamos de país e, cada vez menos, o
diferencial é sentido como “experiência do estrangeiro”. Existem, sim, diferenças culturais,
mas, quanto ao aspecto comercial, o exterior não apresenta tantas novidades, sem falar na
possibilidade de compras pela internet.
3.4 INTERNET: FUGA E FASCÍNIO
Hoje, tudo se faz pela internet, sempre com esse movimento individual, cada um
buscando satisfazer-se sozinho. Pode-se comprar a qualquer hora do dia ou da noite,
informação em tempo real sobre aquilo que se deseja, sem a pressão do tempo, porque a loja
não vai fechar. Não somos mais obrigados a estar fisicamente num lugar para conhecê-lo ou
ter acesso aos seus serviços – esse espaço foi abolido.
Outro aspecto marcante é a preocupação excessiva de não perder tempo; as coisas
precisam ser resolvidas quase que instantaneamente, quase on-line. De acordo com
Lipovetsky:
Nesse contexto de estilhaçamento dos enquadramentos espaço-temporais do consumo,
afirmam-se novos comportamentos, marcados pela exigência de eficácia e de rapidez,
pela preocupação obsessiva de ganhar tempo (LIPOVETSKY, 2007, p. 111).
O indivíduo torna-se acelerado, e o fator tempo é um referencial importante,
ordenando a organização do cotidiano.
Hoje podemos dizer que nosso tempo se tornou quase que instantâneo. Tudo é
ultrarrápido; cada momento pode ser crucial.
A velocidade das trocas é absurda. Quase ninguém tem paciência para esperar. A
época do “saber esperar”, em que a experiência da espera era um elemento de felicidade,
recua em favor de uma cultura da impaciência e da satisfação imediata dos desejos:
A obstinação em comprimir o tempo foi interpretada como um dos signos do advento
de uma nova condição temporal do homem, marcada pela sacralização do presente,
por um presente absoluto, autossuficiente, cada vez mais desligado do passado e do
futuro (idem, p.112).
Aproveitar ao máximo a vida no tempo instantâneo é quase uma imposição para ser
feliz; ganhar tempo para aproveitar melhor os instantes vivenciais parece ser a tônica
hedonística existencial da sociedade. Na sociedade do hiperconsumo, o estímulo da
individualidade à aquisição de objetos pessoais – telefone celular, laptop, i-pod, i-touch,
máquina digital –, que, a princípio, deveriam garantir uma condição de autonomia e
independência, com o forte motivo de facilitar o ganho de tempo e ter maior controle do
universo, em geral.
No entanto, as mensagens instantâneas de texto, através do celular, do Orkut e do
MSN (messenger short notification), funcionam como um tipo de comunicação entre as
pessoas, por meio da qual lhes bastam teclar o computador, mas, paradoxalmente, são também
formas de não-encontros. O indivíduo fica paralisado nas telas do computador e cada vez mais
isolado e sozinho com seus aparelhos, subtraindo-se à obrigação de cumprir determinadas
regras sociais.
Onde começa a tecnologia e onde começa o ser humano?
As novas tecnologias da comunicação não excluem nem concorrem com as formas
genuínas de contato humano. O filósofo da informação Pierre Lévy (1956) afirma que as
pessoas que mais as utilizam são também as que mais buscam o contato presencial. A solidão,
o individualismo e a precariedade dos laços fraternos são questões inerentes a uma sociedade
que se organiza a partir do modo de produção da economia capitalista. Segundo Lévy:
A humanidade nunca consagrou tantos recursos a não estar lá. Metade da atividade
econômica mundial baseia-se nos serviços de transporte, e a atividade que apresenta
mais lucros é o turismo. No entanto, não é apenas a desterritorialização que marca
presença na virtualização da economia. Existem invenções ou mecanismos que
acentuam a virtualização da economia: os bancos on-line, por exemplo. Também a
informação e o conhecimento passaram a ter uma nova relevância na nova economia
após a Segunda Guerra Mundial: tornaram-se bens primordiais. São importantes, pois
assistimos a uma “emergência de uma economia de abundância” (LÉVY, 1996, p.
160).
Porém, é interessante observar como, além das trocas econômicas, se estabelecem as
interações sociais. É importante ressaltar que o virtual e a realidade se diferenciam entre si
quanto à natureza das experiências que oportunizam aos sujeitos que delas participam.
Reconhecidas as diferenças entre os dois meios ou realidades, caberia perguntar: por que não
é possível a transposição dos fenômenos observados nas relações virtuais para as presenciais?
Como a sociedade do hiperconsumo nos transforma em sujeitos alienados da alteridade,
embora, através da web, possamos exercer o poder de sedução e consumo, completamente
alheios e indiferentes às realidades sociais e econômicas que nos cercam?
O que representam as salas de bate-papo na internet: seriam como os antigos Bailes de
Máscaras? Como os bailes de Carnaval? Que tipo de relação se estabelece no meio virtual?
Por que exerce tanto fascínio sobre os participantes? Qual o sentido da personagem construída
para se apresentar aos outros?
Nos bailes medievais, damas e cavalheiros, no anonimato garantido pelas vestes
festivas, abandonavam-se a toda sorte de extravagâncias, a tudo o que não seria permitido se
identificados estivessem. Nas relações virtuais, consideradas aqui como aquelas formas de
relacionamento que prescindem da presença física dos participantes, é possível conhecer o
outro a partir daquilo que sua mensagem comunica. Logo, a Internet, assim como o baile de
máscaras, possibilita aos internautas o anonimato.
A máscara é a metáfora do anonimato; ela dificulta o olhar social que reconhece e
amarra cada um ao seu próprio lugar, à sua própria identidade e ao que dela se espera. A
suspensão do olhar coletivo, a ausência de censura, autoriza a fala do indizível; faz surgir
outra palavra, outra ação e, por que não dizer, outros habitantes da nossa subjetividade.
Este é um exemplo do não-lugar abordado por Marc Auger (1998) para dizer que, de
fato, qualquer lugar é um lugar. A recíproca também é verdadeira, um lugar é qualquer lugar.
Mas é essa questão do espaço que vai modificar a subjetividade e criar novos paradigmas.
Se os templos do consumo, os shopping, os serviços de Unidade Intensiva (UTI) e os
aeroportos modelam uma subjetividade subjacente ao sujeito, são os teóricos dos Estudos
Culturais, como o argentino Nestor Canclini (1939), que vêm discutir a subjetividade, a
identidade e as questões de globalização e de cultura. Canclini sustenta que os processos
culturais na interação com os câmbios econômicos e sociais conduzem à reformulação da
questão da identidade. Em seu livro Diferentes, desiguais e desconectados, Canclini (2005)
afirma que:
A reconstrução mais radical da subjetividade vem sendo realizada por procedimentos
genéticos e sócio-comunicacionais, que favorecem a invenção e a simulação dos
sujeitos (CANCLINI, 2005, p. 184).
Mas, nem mesmo a fantasia de estarmos em total liberdade “a ilusão de sermos
sujeitos inteiramente livres, que poderíamos mudar de identidade nacional, de classe e de
gênero, facilitada pelo anonimato e pela distância das interações virtuais” (idem, p. 197)
modificaria nossa identidade; somos sujeitos interculturais que se formam em processos
interétnicos e internacionais.
No ciberespaço, o internauta tem total liberdade para construir a imagem com a qual
deseja apresentar-se e que poderá estar desvinculada da realidade do organismo. É possível
modificar o gênero, a idade, os atributos físicos, o nome, entre outras características.
Além disso, em segundo lugar, existe uma consciente intencionalidade na adoção da
personagem, mesmo que as escolhas realizadas sejam determinadas por forças inconscientes.
A rede da internet exerce fascínio sobre as pessoas justamente porque instaura uma
nova forma de relação do sujeito com sua fantasia. O sujeito deixa o silêncio da imaginação e
passa a compartilhar socialmente essas fantasias. A rede, espaço lúdico de puro exercício da
criatividade, é o meio pelo qual podemos dar asas à imaginação, onde é possível brincar com
a possibilidade de ter um corpo sem órgãos, liberto das determinações (de gênero, raça,
classe).
O internauta, quando constrói para si uma personagem, muitas vezes dotada de
atributos físicos e de uma história de vida, aproxima-se da posição ocupada pelo escritor
criativo. Dele, porém, se diferencia por não ser aqui sua produção subjetiva página morta de
um livro, mas, sim, algo que se constrói em interação com muitas outras personagens.
A ocasional ilusão de fama no e-mundo e o ritmo imposto pelo local de trabalho geram
necessidades de relacionamentos externos diferentes ou de mudanças em sua natureza.
muita ilusão a ser criada. Muitas decisões em relação ao que é ou não importante. Escolhas
demais. Pessoas e coisas demais a levar-se em conta. Como decidir o que é importante?
Segundo Canclini, as redes virtuais alteraram todas as formas de comunicação e de
expressões afetivas, bem como as maneiras de ler e ver, de reunir-se, falar e escrever, de amar
e saber-se amado a distância e possibilitaram:
Outras formas de ser sociedade e de fazer política emergem das “mobilizações-
relâmpago” ou flash Mobs (Rheingold), convocadas por e-mail ou por celular,
reivindicações não ouvidas por organismos internacionais, governos e partidos
políticos conseguem coordenação e eloquência fora da mídia (...) também servem para
causar transtorno e destruição, como a circulação maciça do spam .,o uso de celulares
para realizar ataques terroristas islâmicos em capitais ocidentais e para que as máfias
planejem e ordenem da prisão, sequestros ou tomadas de cidades na America Latina
(CANCLINI, 2008, p. 54-55).
Com certeza, o consumo de relacionamentos e a satisfação imediata de desejos nos
tornarão cada vez mais dependentes da mídia eletrônica, camuflando o perigo de nossa
passividade, pois os métodos refinados de marketing e a força de organizações influentes
provocam uma intensificação no comportamento alienado de consumir.
O indivíduo é abastecido com informações: a oferta de programas variados é imensa; a
tentação de entregar-se a essas influências faz-se sentir no dia a dia. Tem-se a impressão de
que a maioria de nós é um rebanho dócil de usuários de alguns poucos produtos de sucesso,
guiados por seus espertos produtores que objetivam provocar a dependência da tecnologia da
informação.
Antes se podiam esperar dias, talvez meses, por uma carta; com o aparecimento do
correio-expresso, esse tempo foi reduzido a 24 horas, no máximo. Com o e-mail, tudo tem de
estar imediatamente à disposição. A internet e as comunidades virtuais permitem não apenas
assumir muitos papéis e identidades, mas também ocasionam o “vício computacional”, a
dependência de computadores, que se mostra mais forte entre usuários esquizóides e com
inibições sociais.
Apesar do fascínio total, o risco da perda da identidade. O ser humano está situado
em duas realidades – a real e a virtual e nelas permanece. Sofre pela omissão, pela
supressão, pela perda da realidade tal como fosse a amputação de um membro. Há o perigo de
que se consolide uma nova forma de esquizofrenia, de dissociação da personalidade. Com a
internet é possível produzir muitas realidades; cada um cria, concebe sua própria realidade.
Essas múltiplas realidades permitem a cada um assumir muitas faces, mascarar-se,
desempenhar vários papéis, mudar de sexo, raça, idade, voz, humor e atitudes, apresentar
muitas identidades, identidades falsas, mutantes. A identidade, os papéis e as aparências
masculina e feminina passam a ser intercambiáveis, e os joguetes com a identidade,
numerosos. A internet torna-se, em parte, substituto dos parceiros reais.
O “cibersexo” toma cada vez mais o lugar do sexo real, da proximidade, do calor, do
tato, e torna supérflua a pessoa. Estamos fazendo de nós mesmos elementos supérfluos, como
acontece nas fertilizações in vitro e na clonagem de seres. O perigo torna-se maior ainda
quando a manipulação da informação genética associa-se às manipulações da informação
sobre a sociedade.
Tudo isso significa a dissolução da identidade, da pessoa, do eu, da essência humana,
do gênero, e cria anonimato e distância. A interface ameaça a identidade, a existência, a
qualidade de vida, a dignidade, a liberdade e o semblante do ser humano. Podemos listar
sintomas desse fenômeno:
1- O favorecimento das soluções fáceis, da religião à alimentação;
2- O temor e o culto à internet;
3- A confusão entre o real e o falso;
4- A banalização da violência;
5- A vida distanciada, indiferente e distraída.
O título do livro do artista britânico Damien Hirst
21
, Quero passar o resto dos meus
dias em todos os lugares, com todas as pessoas. Um a um. Para sempre, é a perfeita
metáfora para a internet e para a maneira como sentimos quando estamos conectados por meio
de telefones celulares, e-mails e modens. A internet está cheia de milhões de websites
pessoais, pessoas compartilhando suas vidas privadas com todos, expondo-se em todos os
lugares, agora e para sempre. Sentar-se sozinho num quarto, falando numa sala de bate papos
pela internet é um novo fenômeno social, mas não constitui uma comunidade. Hoje, estamos
vivendo juntos em isolamento. Estamos indiferentemente vivendo sob a égide do terror global
e do vácuo ético.
No próximo capítulo, trataremos das estratégias da desumanização da memória, como
resistência à indiferença do esquecimento, e do cinema, como processo de reumanização e
questionamento moral.
21
O texto original é I Want To Spend The Rest Of My Life Everywhere, With Everyone. One to One. Always
Forever, Now.
CAPÍTULO 4 – ESTRATÉGIAS DE DESUMANIZAÇÃO
Em todo o mundo, o povo judeu foi perseguido, e o antissemitismo na Europa
culminou num Holocausto sem precedentes. Amanhã visitarei Buchenwald, um dos
campos da rede de campos nos quais os judeus foram escravizados, torturados,
executados a tiros e em câmaras de gás pelo Terceiro Reich. Seis milhões de judeus
foram mortos (...). Negar esses fatos é pensamento sem fundamento, é ignorância e é
manifestação de ódio. Ameaçar Israel de destruição – ou repetir estereótipos vis sobre
os judeus – é erro grave e só serve para evocar, na mente dos israelenses, suas
memórias mais dolorosas, impedindo que haja a paz que o povo daquela região
merece. Por outro lado, é inegável o sofrimento dos palestinos – muçulmanos e
cristãos – em busca de uma pátria. mais de 60 anos sofrem a dor do deslocamento.
Muitos esperam, em campos de refugiados na Cisjordânia, em Gaza e em terras
próximas, por uma vida de paz e segurança que jamais puderam ter. Sofrem
humilhações diárias maiores e menores resultado da ocupação. Aí, tampouco, não
cabem vidas: a situação do povo palestino é intolerável. Os EUA não darão as
costas às legítimas aspirações dos palestinos, por dignidade, oportunidades e um
Estado seu.
Barack Hussein Obama, 6 de junho de 2009.
4.1 MEMÓRIA, RECONSTRUÇÃO E LITERATURA
Num sábado de primavera de 1987, a opinião pública mundial foi acordada com a
notícia da morte violenta do escritor italiano Primo Levi (1919-1987), conhecido por seu
trabalho sobre o Holocausto e, em particular, por ter sido um prisioneiro de Auschwitz-
Birkenau (1945). Seu livro, Se isto é um homem, de 1947, é considerado um dos mais
importantes trabalhos memorialísticos do século XX.
A morte de Levi, sobrevivente do famoso e cruel campo de extermínio, embora
inesperada, parecia, a posteriori, explicável, como consequência do peso insuportável das
recordações do Holocausto.
Porém, seu suicídio contradizia e questionava a mensagem central de sua obra e de sua
própria vida, como testemunho positivo de um sobrevivente do horror nazista, que tinha
dedicado sua existência a manter viva a memória do Holocausto.
Levi morreu em 11 de abril de 1987, depois de cair no vão da escada interna do prédio
de três andares onde vivia. Especula-se, até hoje, a natureza de sua morte, se ele teria
cometido suicídio ou não. À época, Elie Wiesel disse que “Primo Levi morreu em Auschwitz,
quarenta anos depois”
22
.
Embora muitos parentes argumentassem que a queda foi acidental, os biográfos mais
conhecidos de Primo Levi, entre os quais a escritora suiça Myriam Anissimov (1943), que
dedicou-lhe um livro, Primo Levi ou a tragédia de um otimista (1997), aceitam tacitamente a
hipótese de suicídio. Anissimiov encontra um paragráfo no livro Se isso é um homem (1947),
que faz pensar que a a ideia de suicídio, atirando-se do terceiro andar, não era estranha para
Levi:
Ninguém, nem nós nem eles, pensava que a promiscuidade inevidavél com os nossos
doentes tornasse muito perigosa a estada no nosso quarto, e que adoecer com difetria
naquelas consdições era sem dúvuda mais mortal do que se atirar de um terceiro andar
(LEVI apud ANISSIMOV, 1997, p. 51).
Em 27 de janeiro de 2005, celebrou-se o aniversário de sessenta anos da liberação do
campo de extermínio nazista de Auschwitz, na Polônia, pelo exército soviético, tal como
relembra a historiadora Irene Pimental.
Os soviéticos, quando chegaram depararam com um grupo de cerca de 7.500
prisioneiros, formado basicamente por aqueles que estavam demasiado doentes para
imcorporarem as tristemente famosas “marchas da morte”, em que os naziastas,
perante a iminente chegada das tropas soviéticas, tentamvam arrastar os prisioneiros
para o oeste, para os campos de extermínio, localizados em território alemão, como
Bergen-Belsen, Buchenwald e Dachau. Um dos prisioneiros, nesse dia frio de 1945
(...), foi o químico italiano Primo Levi (PIMENTEL, 2005, p.24).
Durante sua estada no campo de exterminio Primo Levi, como o nomeia Anisissimov,
em Auschwitz, Levi observava e registrava tudo; nada lhe fugia. Analisava os
comportamentos mais anódinos, as reações mais aparentemente insignificantes, que lhe
revelavam os abismos do comportamento humano (ANISISSIMOV, op. cit., p. 142).
22
Disponível em: www.mgrande.com/weblog/index.php/.../07/. Acesso em abril de 2009.
Numa fase inicial de adaptação à liberdade, Levi sofreu os sintomas habituais de stress
pós-traumático: pesadelos durante a noite e pensamentos e imagens invasivas durante o dia,
misturados aos sentimentos de culpabilidade por haver sobrevivido.
A poesia “O sobrevivente”, escrita em 1984, descreve as imagens que o atormentavam
continuamente e a terrível sensação de culpa por ter sobrevivido.
Uma hora incerta
Desde então, à hora incerta, / aquela pena regressa.
E se não encontra quem a escute. / Queime no peito
o coração. / Olha de novo os rostos dos companheiros,
lívidos na primeira luz, / Cinzentos do pó de cimento,
imperceptíveis na bruma. / Os seus sonhos
manchados de morte e angústia. / À noite apertam
as suas mandíbulas / e sob o peso longo dos sonhos
ruminam invisíveis nabos. / Não usurpei o pão de
Ninguém, / ninguém morreu em meu lugar. Ninguém.
Retornem às suas brumas. / Não é a minha culpa se vivo
e respiro / Se como e se bebo. / Se durmo e estou vestido.
PRIMO LEVI (2005, p. 142).
Levi foi impelido, segundo suas próprias palavras, “pela necessidade de contar aos
outros, de tornar os outros conscientes”. Segundo um mandamento ético interior, Levi começa
a escrever o que seria seu primeiro livro testemunho, na tentativa de evitar que o acontecido
tornasse a acontecer. A este primeiro livro seguiram outras duas obras que formaram a trilogia
de Auschwitz: Se isso é um homem (1947), A trégua (1963), e Os afogados e os
sobreviventes (1986). Para a sua obra decidiu escolher, como explica no apêndice do
primeiro livro, “a linguagem mensurada e sóbria da testemunha, não a lamurienta de vítima,
nem a iracunda do vingador” (LEVI, 2005, p 164). O seu papel de testemunha não se limitou
apenas à escrita, interveio também em várias palestras em escolas, com o objetivo declarado
de evitar que a História do Holocausto caísse no esquecimento. Uma das grandes obsessões de
sua vida, talvez fruto de seus sentimentos de culpa por ter sobrevivido, era a sua consciência
de que nos campos de extermínio desapareceram os melhores; para ele, tinham sobrevivido
“os mais aptos”, isto é, “os piores, os egoístas, os violentos, os insensíveis, os colaboradores
da zona cinzenta, os espias” (LEVI, 2005, p. 466).
Apesar dessa reflexão crua do terror, a mensagem final de Levi é de esperança. No
início de seu primeiro livro, faz-nos saber sobre o que aprendeu acerca da sobrevivência
humana:
Também neste lugar pode-se sobreviver, e por isso é preciso querer sobreviver, para
contar, para testemunhar. E que para viver é importante esforçarmo-nos para salvar,
pelo menos, o esqueleto, os pilares, a forma da nossa civilização (...) Temos, portanto,
sem dúvida, de lavar a cara sem sabão, na água suja, e limparmo-nos ao cansaço.
Temos de engraxar os sapatos, não porque tal obriga o regulamento, mas por
dignidade e propriedade. Temos de caminhar direitos, sem arrastar as socas,
certamente não em homenagem à disciplina prussiana, mas para nos mantermos vivos,
para não começarmos a morrer (LEVI, 2001, p. 40).
Para o médico psiquiatra português Adrian Gramacy (2006), Primo Levi aprendeu que
“era necessário manter o rito da higiene pessoal para conservar a sua dignidade como pessoa e
manter viva a sua rejeição à barbárie. A sua foi uma luta contra a decisão alheia de o anula-lo
como homem para depois matá-lo lentamente” (GRAMACY, 2006, p. 54).
A luta de Primo Levi contra a decisão alheia de anulá-lo como homem para depois
matá-lo é exatamente o que propomos como a Ética da Resistência em face à Cultura da
Indiferença, presente em nossa sociedade atual globalizada e refém do terror global.
A partir daí, seguem-se algumas reflexões, científicas e psicológicas sobre o poder da
memória como resistência e do esquecimento como indiferença.
O conceito generalista da memória pressupõe registro ainda que tal registro seja
realizado em nosso próprio corpo. Ela é, por excelência, seletiva; por isso, reúne as
experiências, os saberes, as sensações, as emoções, os sentimentos que, por um motivo ou
outro, escolhemos arquivar. A psicanalista Sonia Alberti associa memória à identidade, pelo
que afirma: “A memória é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de sua
identidade. Ela é o resultado de um trabalho de organização e de seleção do que é importante
para o sentimento de unidade, de continuidade e de experiência, isto é, de identidade”
(ALBERTI, 2005, p. 167).
A memória constrói-se continuamente e particulariza-se em duas categorias bastante
marcadas em sua origem que terminam por se diluir em uma nova reconstrução de sentido e
registro. Convivemos com nossa memória individual, que cada indivíduo carrega dentro de si
através de suas próprias experiências de vida, impressões, aprendizagens. Não é possível
arquivarmos todas as vivências, visto que uma das características da memória é a sua natureza
seletiva. Vale ressaltar que os critérios que definem o que é significativo ou não estão
condicionados ao tempo e ao espaço em que a experiência foi vivida. A história de cada um
contém a história de um tempo, dos grupos a que pertence das culturas em quem esta imersa e
as pessoas com que se relaciona.
Ao lado da memória personalíssima, construímos e somos construídos pela memória
coletiva ou social vista aqui como o conjunto de registros eleitos pelo grupo como
significativos e formadores de sua identidade, o jeito próprio de ser e compreender o mundo
que decorre de parâmetros culturais e históricos. A possibilidade de compartilhar essa
memória é o que estabelece no sujeito o sentimento de pertencimento e dinamiza suas trocas
criativas o grupo. É mister fazer uma dissociação entre memória e história, com base no fato
de que a memória está imersa no vivido enquanto os “acontecimentos históricos
desempenham o mesmo papel que as divisões do tempo marcadas sobre um relógio ou
determinadas pelo calendário” (HALBWACHS, 1977, p. 101).
A história está sempre detida e circunscrita a uma temporalidade, é uma narrativa
organizada por alguém em determinado tempo e implica uma seleção de acontecimentos
cronológicos. Essa construção ocorre num tempo fora, puramente exterior ao vivido
existencialmente ao passo que a memória é interna, sólida, concreta e pode ser experimentada
diversas vezes no tempo e no espaço pelo seu protagonista, é atemporal como o conceito
freudiano de inconsciente. A construção histórica ocorre invariavelmente no presente por um
ou mais autores. Segundo o historiador francês Jacques Le Goff (1924):
A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em
primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode
atualizar impressões ou informações que ele representa como passadas. Deste ponto
de vista, o estudo da memória abarca a psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia,
a biologia e, quanto às perturbações da memória, das quais, a amnésia é a principal, a
psiquiatria (LE GOFF, 2003, p.419).
A memória é provavelmente uma das funções psicológicas que mais define o ser como
indivíduo. Nossas lembranças traduzem experiências no mundo real e são elementos
formadores de nossa identidade. Entender os mecanismos de funcionamento da memória
humana constitui um dos grandes desafios da ciência atual e a simples tentativa de
conceituação a cerca do tema demonstra sua complexidade. Isso porque o conceito de
memória varia de acordo com a especialidade no qual seaplicado. No entanto, uma das
definições mais usadas é a de memória como capacidade de reter e manipular informações
adquiridas anteriormente. Segundo o filósofo e professor de psicobiologia da Universidade de
São Paulo, José Lino Bueno: “A memória é um conjunto de procedimentos que permite
manipular e compreender o mundo, levando em conta o contexto atual e as experiências
individuais, recriando esse mundo por meio de ações da imaginação” (BUENO, 2007, p. 147-
160). Diante da complexidade desse fenômeno, tanto em linguagem coloquial como na
linguagem erudita, lançamos mão de analogias e metáforas para descrever nossas
experiências, na tentativa de preservá-las no tempo.
Segundo os psicólogos da cognição, a mente equipara-se a um computador com dois
tipos fundamentais de memória: uma de curto prazo, que elabora informações temporárias e
uma de longo prazo que conserva dados por longo tempo com uma enorme capacidade de
armazenamento. Com relação à memória de longo prazo os psicólogos do conhecimento
propõem importantes distinções:
A distinção mais relevante é entre a memória declarativa e a memória processual. Por
memória declarativa, entende-se todas aquelas informações que uma pessoa consegue
descrever e sobre as quais é capaz de refletir (...). Por memória processual, entende-se
aquelas informações que a pessoa não é capaz de descrever e que não é objeto de sua
reflexão, por exemplo, algumas habilidades que possui (LONGONI, 2003, p. 17).
A memória declarativa subdivide-se em memória episódica e memória semântica. A
primeira refere-se a eventos com um contexto espaço-temporal preciso e a segunda contém o
conhecimento geral que possuímos do mundo: regras, leis, linguagens, filosofias, conceitos. A
sua principal característica é que podemos utilizar os conhecimentos nela contidos sem nos
referir às circunstâncias em que foram adquiridos. Ambas possuem em comum o fato de
serem acessíveis à consciência e de poderem ser comunicadas a terceiros.
Em situações cotidianas de vida os diversos tipos de memória interagem entre si
construindo comportamentos que se modificam no tempo.
Uma outra distinção é feita entre a memória implícita e a memória explícita, baseando-
se na relação entre consciência e memória. Por memória implícita entende-se aquelas
situações nas quais o comportamento de uma pessoa é influenciado por um evento passado,
sem que ela tenha consciência disso” (idem, p. 20).
O ato de lembrar consiste em uma busca na memória de longo prazo através da qual as
informações coligadas a um evento são localizadas e reportadas à consciência. Esse ato não
requer apenas a procura, mais a reconstruções de acontecimentos passados, que são
suscetíveis às mudanças que se verificam durante a existência e ao contexto social atuante.
O fato de lembrar ser um processo de reconstrução abre espaço para especulações sobre a
veracidade e exatidão das lembranças e para o poder de influência das circunstâncias na
recriação. A psicóloga Ana Cecília Carvalho salienta que:
Quando nos lembramos de algo, vem à tona apenas uma parte de uma quantidade
muito maior de elementos que provavelmente estão submetidos aos diferentes graus
da censura que existe entre o inconsciente e a consciência (CARVALHO, 1999, p. 10-
11).
Os estudos da Psicanálise possuem uma contribuição fundamental para o estudo da
memória porque em seu modelo teórico opera uma inversão do objeto de estudo ao invés de
privilegiar o que é lembrado, prioriza, ao contrário, o que é esquecido (não lembrado), e que
fica retido no inconsciente. Para a teoria psicanalítica o mais importante é justamente o que se
gostaria de esquecer.
Muitas memórias “esquecidas” estão na verdade reprimidas no inconsciente por se
tratarem de lembranças passíveis de acarretar sofrimento para nós. Em alguns momentos ditos
como “lapsos de memória”, em sonhos ou através de um tratamento psicanalítico, essas
memórias seriam recuperadas e voltariam para o consciente. Também existiriam
características relacionadas à nossa formação e experimentação individual, que influenciam na
capacidade ou facilidade com que memorizamos as informações. “Parece que acontecimentos
conscientemente percebidos precisam assumir algum tipo de dimensão afetiva” (BUENO, op.
cit., p. 147).
A memória para a psicanálise é um campo no qual as significações feitas por alguém,
a partir das suas experiências vividas ou imaginadas, articulam-se em uma linha de
continuidade que pode estar interrompida em alguns pontos pela ação de certos
processos defensivos (CARVALHO, op. cit., p. 11).
Algumas lembranças emergem com mais facilidade do que outras bem como algumas
condições são mais propícias do que outras para a recuperação mnemônica. Lembrar, pois é
um processo no qual a informação disponível no momento da lembrança interage com aquela
armazenada na memória. Quanto mais semelhantes forem as duas informações, tanto maior
será a probabilidade de lembrar-se delas corretamente.
Os estudiosos do assunto distinguem três maneiras de lembrar: através da reevocação
livre, como, por exemplo, pedir ao indivíduo que repita as palavras de uma lista, em ordem
aleatória; através da reevocação sugerida, o fornecidas dicas que possibilitem uma
associação e, através do reconhecimento, os termos que fazem parte da lista de palavras
prévias são misturados a outros termos novos e pede-se ao indivíduo que indique quais faziam
parte da primeira lista. Os melhores resultados dos testes para medição da capacidade de
memória apontam melhor desempenho através do teste de reconhecimento e o pior através do
teste de reevocação livre.
No caso do reconhecimento, sobreposição absoluta entre duas informações,
enquanto na reevocação livre uma sobreposição parcial da informação fornecida no
momento da recuperação coincidir com a que já está previamente armazenada. A sugestão não
exerce grande influência se a informação nela contida não fizer parte das lembranças.
Nessa abordagem, a noção de contexto exerce papel preponderante, se conceituarmos
contexto como todas as informações que são associadas a uma lembrança específica e que a
diferencia das outras. Não podemos deixar de mencionar o mecanismo inconsciente das
lembranças encobridoras, a ideia de lembrança encobridora remonta às memórias esquecidas,
que se originaram com o objetivo de deslocar ou substituir uma lembrança em detrimento de
outra. É um processo substitutivo, de fluxo temporal regressivo ou progressivo, que surge
como método involuntário de esquecimento ou bloqueio mental às situações que geraram
trauma, desprazer, angústia, medo, etc.
Faz-se necessário, para uma melhor abordagem do termo lembrança encobridora, fazer
uma breve referência sobre a ideia de funcionalidade das Lembranças encobridoras, de
Freud (1899). O pensamento freudiano ocupa-se da forma como a lembrança de eventos
passados, sobretudo ocorridos durante a infância, ficaram marcados na memória é são trazidos
à tona pelos elementos não essenciais. Desde os primeiros tratamentos psicanalíticos Freud
observou um paradoxo da memória relativa aos acontecimentos da infância: fatos importantes
não são armazenados, enquanto outros aparentemente banais são conservados como
lembranças. Fenomenologicamente, algumas lembranças apresentam-se tão nítidas que
contrastam com a inocência de seu conteúdo.
Para a psicanálise freudiana essas lembranças são encobridoras na medida em que
camuflam experiências sexuais recalcadas ou fantasias. “Trata-se de um caso de deslocamento
para alguma coisa associada por continuidade ou examinando-se o processo como um todo, de
um caso de recalcamento acompanhado de substituição por algo próximo” (quer seja no
espaço ou no tempo). (idem, p. 291).
Trata-se, portanto, da repressão de conteúdos da memória, que pode ter natureza tanto
regressiva, quanto progressiva, dependendo da relação temporal que se estabeleça entre o
encobrimento e a coisa encoberta. Além disso, tal tipo de lembrança é promovido por dois
tipos de forças do psiquismo que se opõem entre a importância de lembrar um fato relevante e
a resistência devida para impedi-lo de vir à tona. O que é registrado como força resultante
desta interação não é a imagem mnêmica da experiência principal e sim, prevalecendo à
resistência, registra-se o elemento de importância secundária.
Freud (idem) traz à tona a existência de uma lembrança periférica que visa encobrir,
involuntariamente, fato que tenha trazido dor, trauma, desprazer, tristeza ou qualquer outro
sentimento negativo no passado que queira ser esquecido pelo indivíduo.
É uma forma de deslocamento da lembrança, em que a pessoa encobre o que é
negativo, emergindo as informações que não provoquem sensações similares às da causa de
seu encobrimento.
O fenômeno está longe de restringir-se aos seus aspectos fisiológicos. Freud o trata
como um conjunto de informações que está suscetível ao fluxo e ao percurso temporais, vale
relembrar, de forma progressiva ou regressiva. “Quando consigo relembrar um acontecimento,
por muito tempo após sua ocorrência, encaro o fato de tê-lo retido na memória como uma
prova de que ele causou em mim, na época, uma profunda impressão” (FREUD, 1899, p.
287).
Fica evidente, também, a relação temporal entre o armazenamento da informação e a
recordação de uma experiência anterior por analogia. “Eis, então dois efeitos da memória: um
deles é uma sensação que volta tão vivamente como se estivesse se exercendo sobre o próprio
órgão; outro é uma sensação da qual resta apenas uma ligeira lembrança” (CONDILLAC,
1993, p. 74).
Freud diferencia várias espécies de lembranças encobridoras: positivas ou negativas
conforme seu conteúdo esteja ou não numa relação de oposição com seu conteúdo recalcado;
com significação retrogressiva ou prospectiva conforme se deva relacionar a cena manifesta
que elas figuram com elementos que lhe são anteriores ou posteriores.
A psicanálise confere à lembrança encobridora imensa importância, na medida em que
condensa expressivo número de elementos infantis reais ou fantasiosos.
As lembranças encobridoras contêm não alguns elementos essenciais da vida
infantil, mas verdadeiramente todo o essencial. Basta saber apenas explicitá-lo com o
auxílio da análise. Representam os anos esquecidos da infância tão corretamente
como o conteúdo manifesto dos sonhos representa os seus pensamentos (FREUD,
idem, p. 307).
A partir das considerações sobre a memória, feitas pela Psicanálise, a própria História,
por incorporar a influência dupla da Psicanálise e da Teoria da Literatura, passa a ser também
considerada como ficção de forma positiva. A historiadora Marialva Barbosa diz que:
E a memória, por articular-se, em liame social, com as fantasias imaginárias, deve,
principalmente no Brasil, ser crivada pelas agudas e simbólicas lentes das
identificações: narcísica, à função paterna e seu traço unário, e histérica, bem como
pela interpretação ficcional de nossa história cotidiana (BARBOSA, 1996, p. 77).
Essa interpretação, ainda que “ficcional, de nossa história cotidiana, revelada por
Marialva Barbosa, pode ser entendida como um método para melhor compreender o que
vivemos, organizar os pensamentos, as ideias e compreender o sentido das coisas para
memorizar, persuadir, para manipular e comandar. A escrita comporta múltiplos poderes,
pode nos conscientizar e despertar para ação, solidária, como também pode nos envenenar
com preconceitos e ideologias totalitárias.
Quando Anne Frank (1929-1945), a mais famosa diarista do século XX, morreu no
campo de concentração de Bergen-Belsen, em março de 1945, ela ainda uma total
desconhecida, tendo sua individualidade arrancada pelo governo nazista e reduzida a
simplesmente a mais uma entre os seis milhões de judeus, homens, mulheres e crianças,
levados à morte durante o Holocausto. Mas seu diário venceu o esquecimento e combateu a
indiferença. Seu diário exclama, a cada página, que Anne Frank não era apenas mais uma
judia; como todos os seres humanos, fez-se conhecer como uma tapeçaria de desejos,
sentimentos, defeitos e qualidades, pois possuía todos os tons complexos de uma vida.
Ela desejava tornar-se escritora, era apaixonada por um garoto chamado Peter, tinha
uma melhor amiga, chamada Hannah, e amava a mãe na mesma medida que sentia raiva dela.
Relata seu sonho, sua esperança de um dia ela e sua família pudessem ser “pessoas
novamente” e não apenas judeus.
Toneladas de documentos foram redigidos durante os anos do nazismo, e os nazistas,
cientes da probabilidade de perderem a guerra, dedicaram-se à destruição dos artigos que os
condenariam com a mesma sistematicidade com que apagavam as vidas daqueles que não
faziam parte de sua visão do Estado Alemão perfeito. Os nazistas eram a perfeita encarnação
da indiferença em sua forma mais letal.
Nesse cenário, podemos imaginar a população judia da Europa lendo, pela primeira
vez, as restrições que o governo alemão impôs a ela. Ou as jovens mulheres do Afeganistão
lendo as leis determinadas pelo Talibã, durante os anos 1990, que restringiam dramaticamente
suas vidas e o seu direito à educação.
Stalin assinou milhares de sentenças de morte durante os expurgos comunistas (1936-
1938). Um simples gesto indiferente bastava para exterminar a vida de uma pessoa cujo rosto
não vira e cuja voz jamais ouvira.
Contra esse abuso da escrita surge uma resistência da palavra, da memória. Nos
pedaços rasgados de papel, em meio à escuridão das celas, em velhos cadernos de caligrafia
nos porões à luz de velas, em blocos num campo de batalha, jovens voltam seus olhares para
dentro, para observar os efeitos que as horríveis circunstâncias têm sobre suas personalidades,
e para fora, para registrar e denunciar o fardo e a indiferença das guerras, e dos ataques
terroristas.
A poetisa e artista inglesa Melanie Challenger e a escritora, natural da Bósnia,
Herzegovina Zlata Filipvic (1980) resgataram catorze diários de conflitos, todos escritos por
crianças ou jovens, da Primeira Guerra Mundial a mais recente invasão do Iraque, passando
pelo Vietnã, pela Intifada e por diversos momentos da Segunda Guerra Mundial.Em destaque,
alguns casos: o da jovem russa, que ingressa no front em 1940 atrás de um grande amor. O do
rapaz nipoamericano, colocado com a família num campo de concentração em pleno Estados
Unidos, para depois se alistar no Exército americano e ainda assim defender os aliados. Ou da
menina de Cingapura, que narra as agruras de sua vida numa prisão japonesa.
Esses diversos pontos de vista compõem um mosaico dos conflitos que abalaram o
século XX e o XXI. No Oriente Médio, por exemplo, acompanhamos tanto o dia-a-dia de uma
garota palestina durante a ocupação como o de uma jovem judia, vivendo sob o pavor dos
ataques terroristas. Sem se ater a lados políticos ou visões específicas, Zlata e Challenger dão
voz àqueles que a guerra procurou, direta e indiretamente, calar. Challenger comenta:
Como poeta, fiquei especialmente marcada pelo caso de uma revista de poesia
fundada secretamente por alguns jovens em meio aos horrores do campo de
concentração de Terezin, que sobreviveu à guerra. Através de Vedem, que significa
“Na vanguarda”, os adolescentes expressavam sua ira, estupefação e esperança numa
série de poemas surpreendentes. Esses poemas servem de testemunho do
extraordinário valor da escrita enquanto instrumento de expressão humana nas
circunstâncias mais proibitivas e adversas. Através da obstinação de sua escrita, as
vozes desses jovens indivíduos sobreviveram até muito depois de os nazistas terem
sepultado prematuramente os autores numa vala comum (CHALLENGER, 2008, p.
24).
Os conflitos e genocídios ecoaram por todo o século XX e numa sequencia de sinos
lúgubres batendo sem interrupção desde a primeira Grande Guerra Mundial da história
humana, ressoando desoladoramente no século XXI.
Os diários de guerra são poderosos instrumentos de resistência e sobrevivência.
Apresentam ao mesmo tempo um sentido de individualidade e a universalidade de nossas
vivências, desmascarando a verdade de que os seres humanos são inerentemente similares
através das nações e das culturas assim negando o mortífero sistema de crenças que imaginam
alguns indivíduos como o Outro, uma raça alienígena e inferior, algo para ser apagado e
esquecido.
Após os ataques de 11 de setembro de 2001 aos Estados Unidos da América, o
presidente George W. Bush descreveu os regimes que promoviam o terror como “o eixo do
Mal”. Tal generalização incluía o Iraque, que acabou por ser definido como uma ameaça à
paz, principalmente em ralação ao seu suposto acervo de armas de destruição em massa.
Mísseis americanos atingiram os primeiros alvos em Bagdá nas primeiras horas do dia
20 de março de 2003, sinalizando o inicio de uma campanha militar, cujo objetivo era a
remoção do líder iraquiano. O regime de Saddam Hussein (1937-2006) caiu em abril de 2003,
três semanas após o início da campanha militar americana. Em terra, as forças de coalizão
lideradas pelos Estados Unidos enfrentaram rebeliões armadas e ataques de guerrilha.
Terroristas suicidas usaram como alvos as agências internacionais e civis que trabalhavam
para a colisão
23
.
A transferência da soberania para o governo interino deu-se em 28 de junho de 2004.
Os principais desafios do Iraque pós-guerra são a restauração da ordem civil, a criação de um
sistema político estável e a reconstrução do país
24
.
Hoda Thamir Jehad é uma jovem de 18 anos, iraquiana, filha de advogados e
professores, que vive em Bagdá. Iniciado em 2003, seu diário relata o desenvolvimento da
guerra no Iraque com a chegada das tropas americanas e inglesas para depor o regime de
Saddam Hussein. Passaremos a transcrever alguns fragmentos de seu diário:
23
Disponível em: www.tempopresente.org/index.php. Acesso em agosto de 2009.
24
Disponível em: www.tempopresente.org/index.php. Acesso em agosto de 2009.
20 de março de 2003 Uma impressão dos dias de guerra... Nestes dias difíceis pelos
quais estamos passando, gostaria de expressar meus sentimentos. O que escrevo agora
é a maneira como me sinto, mas não sei como os outros enxergam esta guerra. que
hoje é o primeiro dia. (...) Está não foi uma manhã comum, porque o cantar dos
pássaros estava misturado ao tiroteio (...) Este é o último estágio da minha escola,
quando o meu destino será decidido; não pode imaginar o otimismo que sentia ou a
felicidade que eu tanto queria alcançar (CHALLENGER& FILIPOVIC, 2008, p. 326-
327).
A guerra do Iraque começa e arrasta com ela os sonhos, desejos e expectativas de uma
nação marcada pela indiferença de seus governantes e a brutalidade de várias guerras.
5 de abril de 2003 De manhã cedo, enquanto eu estava no jardim da casa, ouvi um
barulho do lado de fora e descobri que o distúrbio foi causado pela chegada de um
grande carro que trazia muitas cebolas. De repente, a maioria dos filhos da vizinhança
na qual moro se reuniu ao redor do carro, deleitados com aquilo que havia chegado
até eles. Um desses jovens era o meu irmão, que é dois anos mais velho do que eu, e
ele nos comprou um monte de cebolas. Então uma pergunta me veio à mente: será que
a felicidade dos iraquianos depende de um punhado de cebolas ou foi a necessidade
que nos levou a esse Estado? Mas, no fundo, eu me recuso totalmente a acreditar
nisso, porque as esperanças e anseios dos iraquianos vão muito além (...) e, portando,
o desespero jamais poderá nos dominar, desde que haja esperança de que um dia
viveremos num país governado pela democracia (ibidem, p. 336).
Apesar do desencanto, medo e a necessidade de sobreviver em trágicas circunstâncias,
o ser humano é capaz de manter seu poder de observação e reflexão e a em um bem maior,
a esperança nada indiferente ao futuro de uma nação.
6 de abril de 2003 E a cidade desperta para mais um dia de miséria e crise, e as
pessoas estão divididas em dois lados, um deles procurando abrigo e proteção do
medo e o outro procurando uma solução para sua situação financeira. (...) Você
poderia perguntar que tipo de tragédia uma garota da minha idade poderia estar
sofrendo. É claro que esses seriam assuntos triviais para uma menina vivendo em
qualquer parte do mundo, fora do Iraque, assuntos como, por exemplo, viver num país
onde a paz, o desenvolvimento e o aperfeiçoamento contínuo são dominantes, bem
como o acesso a boas escolas e às faculdades que eu gostaria de cursar (ibidem, p.
337).
A consciência de nossa alteridade radical, das diferenças entre s mais nos
aproximam do que nos afastam. Não somos tão estrangeiros como imaginávamos nossos
anseios e medos nos igualam.
15 de dezembro de 2003 É o maior dia na História do Iraque, mesmo na História
dos árabes. Não, é o maior dia na História de toda a Nação Árabe! É um dia que acho
muito difícil de compreender quando penso a respeito dele. (...) É o dia em que
Saddam foi preso. É de fato um sentimento difícil de expressar; injustiça que emana
de sua tirania me deixa perplexa e triste; e o mais difícil é expor a verdade àqueles que
não conhecem, aos árabes que nos condenam na maneira como falam a nosso respeito
e a respeito daquilo que nos aconteceu. E quanto ao que fizeram os americanos, foi
um ato testemunhado por toda a nação. Hoje é realmente o dia do nascimento do
Iraque verdadeiro. Parabéns a todos nós (ibidem, p. 342).
A chama da esperança ilumina a possibilidade de um futuro, denuncia a indiferença
entre as nações que compartilham a mesma etnia.
A consciência da complexidade do momento em que se vive e da imensa dificuldade
em compreendê-lo não nos isenta da responsabilidade diante dos fatos que vivemos, como
autores, vitimas ou algozes.
20 de dezembro de 2003 Não resta nada além de esperanças frustradas, o que, do
meu ponto de vista, são apenas expectativas desenganadas. Nossa vida tornou-se uma
coleção de manchas de sangue espelhadas por cada rua e esquina, e nos limitamos a
torcer para que o dia termine sem o desperdício de vidas (,,,). Chegamos ao ponto de
evitar um ao outro de toda a forma para nos proteger. (..) Mesmo as leis comuns que
governam o mundo, como a dignidade e o respeito (...) estão hoje transformadas,
quando todos atacam a todos (ibidem, p. 343).
Esse relato sensível, comprometido, e ferido de mortal realidade, nos convida a
questionar até onde a humanidade é capaz de esquecer seus valores e princípios mais sagrados
como dignidade e respeito à vida humana.
20 de janeiro de 2004 O mundo me parece sombrio e deserto e as pessoas parecem
apenas monstros esperando para devorar sua presa e fugir. Eu sou essa presa, perdida
entre a multidão, assustada e com medo e sem saber como fugir. Devo ficar aqui bem
quieta até ser devorada e feita em pedaços? Ou devo fugir deste mundo alienígena?
Seria fraqueza minha? Mas a minha fuga não seria uma demonstração de fraqueza; em
vez disso, seria a canção de minha injustiça. (...) Mas estou sempre pensando nos
eventos que fizeram de mim um ser humano tão devastado, fugindo do tempo e da
verdade (ibidem, p. 345-346).
Enquanto nossa memória e consciência persistirem será possível construir uma ética
de resistência à cultura da Indiferença.
4.2 INDIFERENÇA E ESQUECIMENTO HUMANO
O esquecimento do sujeito sob o véu obscuro das guerras, dos ataques terroristas, e os
olhares vazios eivados de indiferença diante das tragédias que ocorrem na vida dos Outros é
combatido pela defesa escrita, através da exploração de si e das estórias cotidianas de suas
nações, povos, religiões e culturas, reveladas pelos autores em seus diários de guerra, em suas
fotos, mensagens na internet, torpedos nos celulares, fragmentos de papel em garrafas atiradas
ao mar da esperança em um futuro melhor. Como salienta Challenger, esses relatos entalham:
Indelevelmente, as minúcias mais profundas e íntimas da vida na sepultura dos
desconhecidos detalhes da vida que são a um tempo pessoais e coletivos em sua
abrangência. Apesar de empunharem suas penas em tempos de guerra, quando o ar
estala com a ameaça de remoção dos vestígios de seus corpos suas existências e seus
países, os escritores contemplam e observam toda a glória da vida (CHALLENGER &
FILIPOVIC, 2008, p. 26).
Ao adentrarmos no século XXI, fechamos nossos olhos para os milhares de conflitos e
ataques terroristas esquecidos, negligenciados pelos livros de História. Existem vários países
no mundo onde a população sofreu atrocidades no mais completo silêncio e indiferença das
demais nações do planeta.
Lévi-Strauss (1908) analisa a força motivacional do esquecimento sob dois aspectos:
como defeito da comunicação para outrem, referindo-se ao mal entendido e como excesso de
comunicação para outrem, referindo-se a indiscrição.
Exemplos da mitologia grega reforçam a hipótese de que o esquecimento ocupa lugar
no mesmo campo semântico do mal-entendido. O motivo do esquecimento fundamenta
interdições, prescrições e transforma o estado das coisas:
(...) Ora, se o motivo do esquecimento, tal como aparece nos mitos, assinala uma falta
de comunicação consigo próprio e se em sociedade e em épocas diferentes, esse
motivo serve, sobretudo para fundar práticas rituais, dresta que a função do ritual é
exatamente preservar a continuidade do vivido (LÉVI-STRAUSS, 1981, p. 67).
Dessa forma, o esquecimento seria responsável pela continuidade da memória e pela
lembrança. Segundo Lévi-Strauss é justamente o esquecimento que vem quebrar a
continuidade na ordem mental, possibilitando a criação de uma nova ordem. Apresenta-se,
portanto a noção da quebra, da queda, para reconstruções como uma morte provisória que se
faria seguir da ressurreição. Nos mitos antigos, estão presentes o duplo sentido simbólico de
morte e o retorno à vida.
Em Tradição e esquecimento (1997), o medievalista e poeta Paul Zunthor (1915)
afirma que a memória alia-se a tradição no sentido de que ambas são coletivas e instauram
padrões que arquivam experiências do grupo social desta forma a “Memória do grupo tende
assegurar a coerência de um sujeito na apropriação de sua duração: gera a perspectiva em que
se ordena uma existência e, nesta medida, permite que se mantenha a vida” (ZUNTHOR,
1997, p. 13-14).
O tema da memória está presente desde a antiguidade clássica e ocupa lugar de
destaque na mitologia grega e romana. A deusa Mnemosyne, ou Memória, amada de Júpiter e
mãe das nove musas, é representada como uma mulher que apoia o queixo na mão, numa
atitude de meditação; ostenta um penteado enriquecido por pedras preciosas e pérolas e segura
a ponta da orelha com os primeiros dois dedos da mão direita.
Calíope (nome de origem grega que significa um belo rosto) é a musa inspiradora da
poesia heróica e da eloquência. Ë representada como uma moça de ar majestoso traz à testa
uma coroa de ouro, emblema que segundo Hesíodo, indica sua supremacia sobre as outras
musas. É enfeitada por guirlandas e carrega em das mãos uma trombeta e na outra um poema
épico. Calíope é mãe do herói Orfeu.
As sereias (...) eram filhas do rio Aquelóo e da musa Calíope. O oráculo predissera às
sereias que elas viveriam enquanto pudessem deter os viajantes à sua passagem, mas
que tão logo um só passasse sem ser detido para sempre pelo encanto das suas vozes e
de suas palavras, elas pereceriam. Por isso, essas encantadoras criaturas, sempre
despertas, não deixavam de deter com sua harmonia todos os que chegavam perto
delas e que tinham a imprudência de ouvir seus cantos. Elas os enfeitiçavam, os
encantavam a tal ponto que eles não pensavam mais em seu país, em sua família, em
si mesmos; esqueciam-se de beber e de comer e morriam por falta de alimento. (...)
No entanto, quando os Argonautas passaram por suas paragens, elas fizeram esforços
inúteis para atraí-los. De pé no barco Orfeu pegou sua lira e encantou-as, a tal ponto
que permaneceram mudas e jogaram seus instrumentos no mar (COMMELIN, 2008,
p. 123).
O historiador e antropólogo francês Jean-Pierre Vernant (1914–2007), especialista em
mitologia grega, em seu estudo “Aspectos míticos da memória” (1973), analisa o papel das
divindades na antiguidade e revela o relacionamento estreito da memória com as intervenções
sobrenaturais, onde a poesia é vista como uma forma de possessão e de delírio divino
(VERNANT, 1973, p. 71-97).
Possessão divina que resgata da memória afetos e lembranças de tempos perdidos,
trava a batalha da palavra contra o esquecimento, contra o silêncio, o desamparo e a fria
marca da indiferença.
A primeira pesquisa científica sobre o esquecimento foi realizada há mais de um
século e seus resultados ainda são utilizados nos livros de psicologia sob a forma de curva do
esquecimento que descreve o quanto somos ou não capazes de reter informações recém
adquiridas. No âmbito da pesquisa psicológica, foram propostas diversas teorias sobre as
causas do esquecimento.
Algumas foram particularmente influentes como a que remonta 1920 e preconizava
que o ritmo do esquecimento seguiria uma lei do desuso, que definiria a deterioração natural
das lembranças, com o passar do tempo, se não forem reutilizadas. Portanto, o esquecimento
era conceituado como um processo natural, fisiológico e inexorável.
Trata-se de uma teoria difícil de ser verificada no plano experimental, era e ainda é
atualmente, complexo isolar a influencia do tempo sobre as lembranças independente de
outros fatores. Se o intervalo temporal entre aprender e testar a lembrança for longo, o que
acontece nesse meio tempo não é passível de ser analisado em laboratório. Provavelmente
outras variáveis atuam além do tempo no que tange a conservação ou não das lembranças.
Uma explicação alternativa sobre a qual os psicólogos têm se concentrado por muitas
décadas é a da interferência. Segundo essa teoria, o tempo não é o principal agente para o
esquecimento, mas sim, a interferência que ocorre quando lembranças diversas são associadas
a um mesmo elemento, que pode ser uma palavra, um conceito, um objeto físico ou uma
situação.
Na vida cotidiana é possível detectar situações em que se pode reconhecer a ação da
interferência. Por exemplo, quando trocamos de carro mecânico para automático temos que
nos adaptar a novos mecanismos e esquecer os antigos, temos de mudar o modo de raciocínio
do cambio de marchas.
Em termos simples, a teoria da interferência apresenta, em sua base, a hipótese de que
todo o aprendizado consiste em formação de associação. A interferência pode agir de dois
modos: em um deles interferência pró-ativa –, a associação anterior interfere diminuindo o
aprendizado da nova (freadas espetaculares, quando se buscava arrancar), isto é, há um
distúrbio por parte do que foi aprendido sobre aquilo que se deve aprender; em outro, a nova
associação interfere na antiga interferência retroativa –, caracterizando-se como um tipo de
interferência que atua conforme o tempo passa enfraquecendo a lembrança do que foi
aprendido a priori.
Ainda que o fenômeno da interferência seja evidente e esteja demonstrado não é capaz
de esclarecer todo ou grande parte do ato de esquecer. “O limite maior da explicação do
esquecimento como efeito de interferência está no fato de se basear numa concepção de que o
conhecimento humano é um aglomerado de simples associações” (LONGONI, op.cit, p. 32).
Outra explicação para o ato do esquecimento é a do armazenamento falho, que
defende a teoria de algumas informações são esquecidas porque nunca foram transmitidas
para a memória de longo prazo.
Na base dessa explicação está o conceito de consolidação, segundo o qual existem
processos biológicos que tornam estáveis um traço da memória. Quando esses processos
biológicos são de alguma maneira contrastados, por exemplo, pelo uso de medicamentos a
informação ainda presente na memória de trabalho não passa para a memória de longo prazo e
se perde.
Nesse momento utilizamos a metáfora espacial das lembranças no “lugar–memória”,
várias pesquisas revelam que, quando o contexto da recuperação é semelhante àquele em que
se deu o aprendizado, a lembrança é mais forte do que quando existem dois contextos
diversos. Contexto é definido como: “O conjunto de informações que são associadas a uma
lembrança específica e que o tornam distinguível dos outros” (ibidem, p. 33).
Basicamente, existem quatro formas de esquecimento, duas delas consistem em tornar
as memórias menos acessíveis, geralmente sem perdê-las totalmente: a extinção e a repressão.
As outras duas consistem em perdas reais de informação: uma por bloqueio de sua aquisição,
e a outra por deterioração e perda da informação. O esquecimento real não é uma cura para
memórias dolorosas, mas um acontecimento geralmente não voluntário. O esquecimento não é
resultante de um componente bioquímico, ou de uma misteriosa formula de secreções neuro-
humorais. “A maior parte dos esquecimentos resulta da falta de uso das sinapses; ou seja, das
conexões entre as células nervosas” (IZQUIERDO, 2004, p. 46).
Acredita-se que grande parte das memórias é perdida, ao longo do tempo pelas
sinapses que as carregavam, entretanto muitas memórias são perdidas pelo efetivo
desaparecimento das sinapses, devido à morte celular. O esquecimento real ocorre por desuso
ou desaparecimento das células nervosas e/ou de suas sinapses. “O esquecimento (...) não
constitui uma arte; a arte radica principalmente na prática da memória para impedir o
esquecimento” (idem, p. 51).
O radical latino da palavra esquecimento é excadescere que significa cair, perder,
deixar sair. A humanidade através das artes e da literatura sempre lutou contra a “queda”,
contra o supremo esquecimento: a morte. Contra essa “queda” no esquecimento resistimos
pela palavra.
Os trechos que se seguem abaixo foram extraídos do diário virtual de dois irmãos
Harry de nove anos e Sam de 12 anos que testemunharam o dia 11 de setembro de 2001 em
Nova York e possuem uma história sobre o 11 de setembro e as mudanças em suas vidas no
ano que se seguiu. Pretendem, com esse registro eletrônico na web, não deixar que as pessoas
esqueçam o que aconteceu.
Harry e Sam vivem apenas 5 quadras de onde estava o World Trade Center, em
Manhattan. Sua mãe trabalhava em um prédio conhecido como World Trade Center, e a
escola de Harry também está a poucos quarteirões de distância.
Ambos os irmãos relatam:
Harry (9 anos): Naquela manhã, minha mãe foi trabalhar e eu fui para a escola. Um
dos meus colegas entrou e disse à minha professora o que aconteceu, e meu professor
disse à turma. Então, o diretor falou pelo alto-falante e disse que cada sala de aula
que tinha uma janela voltada para o World Trade Center devia fechar suas cortinas,
era o caso da nossa classe. Eu senti muito medo, porque eu sabia que minha mãe
trabalhava muito perto.
Sam (12 anos): Os pais dos meus amigos começaram a aparecer na minha escola para
buscar seus filhos, mesmo que algumas crianças não tivessem ainda sido informadas
do que tinha acontecido. Eu me senti estranho. Todos nós sabíamos que algo estava
errado, mas não conseguimos descobrir o que era. Assim que eu ouvi, eu comecei I a
chorar, porque eu sabia que minha mãe trabalhava no sétimo andar do World Trade
Center, e ela trabalhava no World Trade Center em 1993 (quando sofreu o
primeiro ataque terrorista), e eu estava com muito medo do que poderia acontecer
com minha mãe, comigo e meu irmão
Harry: Eu fiquei muito feliz quando minha mãe chegou à escola, junto com um monte
de outros pais, para me pegar. Voltamos para nossa casa, e foi que ouvimos o
colapso da primeira torre. Eu não sabia o que estava acontecendo e eu estava ouvindo
aquela explosão gigante. Eu perguntei a minha mãe se íamos morrer, e ela apenas
disse que tudo ia ficar bem. Deixamos nosso apartamento e fomos até a casa de um
amigo, assim que tocamos a campainha a a segunda torre desmoronou. Então o seu
apartamento e o nosso tiveram de ser evacuados, e fomos para a escola do meu irmão.
Quando estávamos andando lá, vimos um homem que tinha um cartaz que dizia:
"Free Hugs!" (Abraços de Graça).
Sam: Eu recebi uma mensagem da minha mãe dizendo que ela estava bem, e os pais
dos meus amigos não deixar a escola até que ela chegou lá, o que realmente me
ajudou a passar por esse estágio de manhã. Minha mãe e meu irmão levaram uma hora
e meia para chegar até a minha escola por causa de todo o tráfego em Manhattan.
Harry: Depois que estávamos longe de nosso bairro e o podia ver o que estava
acontecendo, e peguei meu irmão e eu ouvi a voz do meu pai ao telefone, e aí eu
soube que tudo ficaria bem.
Sam: Reunimo-nos com algumas pessoas que conhecíamos e só começamos a andar e
ai descobrimos onde estávamos indo para dormir naquela noite. Eu me senti muito
diferente, andando pela rua. Havia tantas pessoas correndo em todas as direções.
Alguns estavam com raiva, alguns estavam dando abraços grátis. Todos tiveram uma
emoção diferente em seu rosto, e basicamente mostrou a diversidade de todos.
Naquela noite, eu fiquei tão irritado, porque o WTC tinha ido embora e de repente
minha vida era tão diferente. Eu disse para minha mãe: "Gostaria que as torres
fossem reconstruídas exatamente da mesma maneira assim como vida poderia voltar a
ser da mesma maneira que foi". E ela disse: "Isso é o que muita gente estava
pensando, e provavelmente não vai ser exatamente o mesmo, mas será reconstruída e
vai ficar melhor".
Harry: A primeira coisa que realmente me incomodou foi que todos os dias, todos os
canais que não costumam mostrar notícias, estavam todos mostrando a tragédia Eu
queria saber quando eles parariam com as notícias. Eu só queria minha vida de volta.
Sam: Foram dois dias e meio antes que pudéssemos voltar para nossa casa. Nós
tivemos que esperar na fila por duas horas por uma escolta policial para nos levar ao
nosso apartamento, e então tivemos apenas dez minutos para pegar as nossas coisas!
Nós já sabíamos o que tínhamos de pegar. Pegamos nossa roupa, o meu piano e
teclado para que eu pudesse praticar e o meu material escolar.
Harry: A nossa escola foi fechada porque estava muito perto de Ground Zero, então
primeiro nós tivemos que ir para uma escola diferente por duas semanas, e depois
tivemos que partilhar uma outra escola com outras classes. s ficamos em salas
minúsculas, mas depois mudamos para nossa escola que foi reconstruída e é que
nós sentimos como se fôssemos capazes de sermos normais de novo. Ficamos na
outra escola por cinco meses.
Sam: Enquanto eu estava me sentido deslocado o que ajudou a me sentir melhor foi o
fato de que em minha escola por cerca de três meses, havia uma pessoa especial e,
se você precisasse falar com alguém sobre o que tinha acontecido, ela estava lá para te
dar suporte. Minha escola é centrada em torno da ideia de que a escola deve ser a sua
segunda casa, e sempre haverá alguém lá para cuidar de você.
Harry: A nossa escola recebeu tem um monte de pacotes “Take Care” (cuide-se)
enviados por pessoas de todo, o mundo com uma bandeira americana. Um pacote
tinha 3.000 pombas feitas de papel de origami, e nós penduramos cerca de 1.000 em
um lugar. Recebemos s coisas individuais como lápis e borrachas também. Foi
muito saber que as pessoas se importavam com a gente.
Sam: Quando finalmente voltamos para casa depois de dois meses, foi muito difícil
dormir. s pensamos sobre comprar cortinas blackout, porque as luzes da cidade
ficaram muito fortes e brilhantes [no local de recuperação]. Nos acostumamos com o
cheiro diferente que saia do Ground Zero. Eu não sinto medo de viver no meu bairro,
mas ele definitivamente mudou. Um monte de coisas mudou; as pessoas estão mais
preocupadas com a família. Acho que isso é uma coisa boa.
Harry: No ano após 11 de setembro, nós fomos viajar de férias divertidas. Fomos para
a Itália. A primeira vez que eu estava em um avião, senti medo e pensei que algo
estava para acontecer, mas quando cheguei ao aeroporto e vi o quanto havia de
segurança, eu me senti melhor.
Sam: Quando estávamos na Itália, as pessoas perguntavam-nos sobre as nossas
experiências, mas eu não acho que eles entenderam o que realmente se passou. Eles
sabiam o que tinha acontecido, mas não podiam imaginar o quão ruim era. .
Harry: Espero que o próximo ano letivo seja apenas um ano normal.
Sam: Minha esperança para o próximo ano é que as pessoas superem o 11 de
setembro, em vez de viver falando sobre ele. Minhas experiências m tido muito
impacto sobre mim, mas um monte de coisas que eu achava erradas mesmo antes
de 11 de setembro que não foram alteradas. A única coisa que mudou é que agora eu
realmente entendo o que é terrorismo. O que não mudou são as coisas básicas, como a
importância da minha família, a importância da minha religião, e de manter uma vida
normal. Aprendi também que mesmo quando as coisas parecem piores, também
um lado bom para ser aprendido. Ainda naquele dia, quando tudo parecia perdido e eu
pensava que minha mãe poderia estar morta, aprendi a valorizar cada minuto da
minha vida ao lado dela, tem sempre uma coisa boa que você pode tirar de uma coisa
ruim coisa, aprendi a importância de ter minha família junto de mim
25
..
Naquele dia 11 de setembro de 2001, todos nós experimentamos uma profusão de
sentimentos complexos e contraditórios, a felicidade quase obscena de estarmos seguros, a
empatia com a dor das vitimas, a indiferença em relação ao evidente choque de civilizações, a
perplexidade diante do inexorável, do evento, da possibilidade real de uma catástrofe
apocalíptica após a barbárie e a tragédia. Fomos confrontados com nossa própria humanidade
e nossos limites éticos e morais.
Segundo o mito grego, depois de séculos passados no Inferno, as almas dos justos e
dos maus que expiaram seus pecados aspiravam a uma nova vida e obtinham o favor de voltar
à terra para habitar um corpo e se associar ao destino deste. Contudo, antes de sair das
moradas infernais, precisavam perder as lembranças da vida anterior e, para isso, beber as
águas do Lete, o rio do esquecimento.
A porta do Tártaro que abria para esse rio era oposta à que dava para o Cocito. as
almas puras, sutis e leves, bebiam com avidez essas águas cuja propriedade era apagar da
memória toda sombra do passado. Tornadas aptas a voltar à vida e a suportar suas provações,
eram chamadas pelos deuses para sua nova encarnação.
O Lete corria com lentidão e silêncio. Era, “dizem os poetas, o rio de azeite, cujo curso
tranquilo não fazia ouvir nenhum murmúrio” (COMMELIN, op. cit., p. 203).
Separava o Inferno deste mundo externo do lado da vida, do mesmo modo que o
Estige e o Aqueronte separavam-no do lado da Morte. O Lete costuma ser representado pela
figura de um ancião que segura com uma das mãos uma urna e, com a outra, a taça do
esquecimento. Uma das razoes de ser desta tese é combater com as palavras a indiferença que
25
Disponível em: www.pbkids.org. Acesso em março de 2009.
se instala na sociedade acometida pelo mal da indiferença diante do Outro, aprisionada pelo
medo provocado pelo terror global. No decorrer do meu trabalho, senti-me como Caronte, o
barqueiro dos Infernos, que tem como ofício a difícil travessia do rio Lete: o desafio de
enfrentar a memória e o esquecimento, o mistério da vida que nos assombra e escapa
diariamente no passar dos dias, das horas.
A barca de Caronte é imensa e desafiadora em suas cores negro e ocre. Grande objeto
que cinge o rio da memória é a faca sutil da diferença que desenha nas águas do Lete as
diversas formas do esquecimento. A tragédia da memória não vivida, as conquistas da
lembrança como onipresença vigilante, a nos afastar, por algum tempo da Indiferença, do
Medo, da Morte e do esquecimento.
4.3 TERROR, CINEMA E IDEOLOGIA
Diante de breve análise das produções de cinema americanas, vamos perceber que
uma diferença entre aquelas feitas antes e depois dos atentados terroristas às torres gêmeas,
em Nova York.
Antes de setembro de 2001, eram comuns filmes no estilo catástrofe/atentado
terrorista; a lista é longa: - “Nova Iorque sitiada” (The Siege, 1998): um agente do FBI
(Denzel Washington), uma oficial da CIA (Annette Bening) e um general (Bruce Willis)
unem forças para capturar perigoso grupo de terroristas que plantam bombas em diversos
lugares de Nova York; - “Força aérea Um” (Air Force One, 1997): o avião do presidente dos
EUA (Harrison Ford) é sequestrado por terroristas (russos, diga-se); - “Inimigo íntimo” (The
Devil’s Own, 1997): um jovem terrorista do IRA (Brad Pitt), que precisa realizar uma missão
nos Estados Unidos, hospeda-se sem revelar sua identidade na casa de um policial local
(Harrison Ford). “O pacificador” (The Peacemaker, 1997): uma cientista nuclear (Nicole
Kidman) e um tenente-coronel (George Clooney) investigam o possível roubo de ogivas
nucleares, que pode trazer resultados catastróficos para a paz mundial.
Depois dos terríveis atentados, a tônica no cinema mudou. As salas foram inundadas
de produções do gênero ficção e fantasia, como “Quarteto Fantástico”, “A era do gelo”, “As
crônicas de Nárnia”, “Harry Potter”, “King Kong”, “Shrek”, “Homem-Aranha”, “Demolidor”,
“Mulher-Gato”, “Batman Begins”, “Electra”, “Superman” e “Piratas do Caribe”. O importante
é que a fantasia substitua ao máximo a realidade durante o maior tempo possível
26
.
Um outro aspecto a se considerar foram os remakes. Nunca se produziu tanta
refilmagem quanto nos últimos anos: “A fantástica fábrica de chocolate” (Charlie and the
Chocolate Factory, 2005), “O destino do Poseidon” (Poseidon, 2006), “Assalto à 13ª DP”
(Assault on Precint 13, 2005), “A feiticeira” (Bewitched, 2005), “Os produtores (The
Producers, 2005), “King Kong” (King Kong, 2005), “Guerra dos mundos” (War of the
Worlds, 2005). E ainda apareceram aqueles personagens que ressurgiram de filmes da Disney
dos anos 70: “Herbie, o fusca” (Herbie: Fully Loaded, 2005), “O exorcista” (Exorcist: The
Beginning. EUA, 2004), “O exterminador do futuro” e “Rocky”, ambos a caminho
27
.
A impressão é a de que, se um porto seguro, pode-se refazer o que deu certo no
passado, sem correr mais riscos. Produções de guerra foram praticamente abolidas, atentados
terroristas, bombas explodindo, tudo isso saiu de cena. Steven Spielberg filmou Munique
(Munich, 2005), porém voltou o foco para o conflito ético “do bom moço que é assassino por
uma boa causa judia”, além de o fato histórico ter mais de 30 anos.
Fecha-se uma porta, abre-se uma janela: filmes sobre a intolerância racial, antes
restrito aos afrodescendentes, tornam-se mais comuns e incluem todas as minorias. “Crash”,
produção de 2004, recebeu Oscar de melhor filme, melhor roteiro original e melhor montagem
(em 2006) e retrata muito bem a intolerância; sutilmente, o filme explora a questão do
preconceito racial generalizado, inclusive entre as próprias minorias. “Plano perfeito” (Inside
Man, 2006) também aborda a questão étnica de forma sutil, porém contundente. “Paradise
Now” (2005) acompanha a trajetória de dois amigos palestinos, Khaled (Ali Suliman) e Said
(Kais Nashef), que são recrutados para serem homens-bombas num atentado. Entretanto, a
operação errado, e eles se separam, sendo obrigados a lidar com o fato de terem bombas
presas ao corpo. O filme é despido de preconceitos e apresenta a versão dos homens-bomba.
Com boa repercussão de crítica, foi o vencedor do Globo de Ouro de Melhor Filme
Estrangeiro (2006) e recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
“Syriana, a indústria do petróleo” (Syriana, 2005), com George Clooney e Matt
Daemon, também aborda a questão do terrorismo árabe. Aos poucos, Hollywood vai
26
Disponível em: www.cinemaemcena.com.br/. Acesso em: junho de 2009.
27
Idem.
formando um amplo retrato das relações sociais entre os países envolvidos diretamente com o
assunto
28
.
“Vôo 93” (United 93, 2006) e “As torres gêmeas” (World Trade Center, 2006) vão
direto na ferida. “Brigada 49” (Ladder 49, 2004) conta a história dos bombeiros heróis. Aliás,
terror a bordo de aviões pode não ficar a cargo de terroristas no cinema: “Serpentes a
bordo” (Snakes on a Plane, 2006), “Vôo noturno” (Red Eye, 2005) e “Plano de vôo”
(Flightplan, 2005) são formas diferentes de representar ameaças dentro de um avião.
Um pouco além das aeronaves, um exemplo mais sensível de como os atentados
mudaram o rumo das produções cinematográficas, a Disney voltou a investir
consideravelmente em produções cinematográficas
29
. Em cinco anos, foi lançada uma enorme
quantidade de produções como “A lenda do tesouro perdido” (National Treasure, 2004),
“Operação babá” (The Pacifier, 2005), “Pooh e o efalante” (Pooh’s Heffalump Movie, 2005),
“As crônicas de Nárnia: O leão, a feiticeira e o guarda-roupa” (The Chronicles of Narnia: The
Lion, the Witch and the Warbrobe, 2006), “Resgate abaixo de zero” (Eight Below, 2006), “O
galinho Chicken Little” (Chicken Little, 2005), “Irmão urso selvagem” (The Wild, 2006),
“Carros” (Cars, 2006) e o citado “Herbie”. E o mais impressionante: um dos grandes
sucessos das minisséries de tv é Lost, com igual produção da Disney. Eles também fizeram
uma parceria bilionária com o Pixar.
Não como negar que um novo filão surgiu dentro dos filmes de ação: as tramas
sobre terrorismo. Lógico que, depois do 11 de setembro, seria um caminho mais que natural
procurar entender como funciona a mente das pessoas que promovem verdadeiros massacres
em nome da religião. No entanto, há que se questionar uma coisa: por que todas essas
produções se parecem tanto e apresentam o mesmo discurso de fanatismo islâmico e
destruição total, como em “Rede de mentiras” (Body of Lies, EUA, 2008), de Ridley Scott,
protagonizado por Leonardo di Caprio e Russel Crowe, e em “O traidor” (Traitor, 2008),
dirigido por Jeffrey Nachmanoff e estrelado por Don Cheadle. Entre os dois, semelhanças
como o vilão (normalmente um senil fundamentalista), a câmera com movimentos agitados,
as cores saturadas e muitas explosões
30
.
28
Ibidem.
29
Disponível em: www.guiademidia.com.br/SITES/cinema.ht. Acesso em junho de 2009.
30
Disponível em: www.cinemaemcena.com.br/. Acesso em: junho de 2009.
“Rede de mentiras” conta a história de um agente da CIA infiltrado no Iraque e na
Jordânia que tenta desmantelar células do terror. No entanto, ao mesmo tempo em que tem
que atender ao chefe (Russel Crowe) precisa negociar com líderes islâmicos.
O filósofo e crítico cultural Slavoj Žižek, em seu livro Em defesa das causas perdidas
(2008), faz o seguinte comentário em relação à ideologia atual americana e aos thrilers de
espionagem produzidos pelo cinema americano:
Em contraste com a oposição simplista entre bons e maus, thrilers de espionagem,
com pretensões artísticas que buscam exibir todas as “complexas realidades
psicológicas” dos personagens do “nosso” lado. Bom. Longe de sinalizar uma
perspectiva equilibrada, no entanto, este "honesto" aviso do nosso próprio "lado
negro" significa muito para o seu oposto, para a afirmação da nossa supremacia
escondida: somos "psicologicamente complexos", cheios de dúvidas, enquanto que os
adversários estão de uma forma dimensional e fanática matando como máquinas
(ŽIŽEK, 2008, p. 16).
Em “Batman – O cavaleiro das trevas” (The Dark Knight, 2008), de Christopher
Nolan, aparecem todos os tons da complexidade psicológica da luta entre o “Bem” e o “Mal”
que há em todos nós, devido ao conflito ético que se instala num mundo de medo e incertezas.
Esta a tônica do filme: um mergulho em direção aos medos de cada ser humano, que é
obrigado a imaginar como reagiria às situações extremas provocadas pelo Coringa.
Essencialmente, é a jornada do próprio Batman, desde a traumática morte dos pais até a
sequência de relacionamentos infrutíferos. Agora, o Homem-Morcego coloca sua moral e seus
conceitos em xeque, em função de seu novo inimigo. Como enfrentar alguém sem limites e
manter sua própria sanidade? O coringa, em suas próprias palavras, é "um cachorro
perseguindo carros", ele é o mal e a violência pelo simples fato de ser mau e violento;
promove o caos por causa do caos. O Joker não tem complexidade psicológica, não trava uma
luta moral interna, é uma "fanática máquina assassina".
O Batman da turbulência interna funciona como um sinal de sua supremacia sobre as
forças a que ele resiste, personificada no Joker. Batman movimenta-se entre o reino do herói e
do anti-herói, e é nesse lugar que ele se faz verdadeiro, ele sempre pertenceu ao “entre
mundos”, inscrito na complexidade das relações éticas.
Žižek refere-se, em suas observações, sobre o “nosso lado”: a ideologia liberal
democrática do Ocidente, e dos Estados Unidos, em particular.
The Dark Knight atua como poderoso espetáculo em defesa da América no mundo de
hoje (pós-11 de setembro): na impossibilidade de manter suas heróicas pretensões e
nobres liberdades, é legitimo, diante da complexidade do terror global, que os Estados
Unidos da América travem uma guerra ilegal, rompendo com cláusulas da ONU e
pactos internacionais de não agressão e segurança mundial? É lícito recusa-se a
respeitar decisões tomadas pelo Tribunal internacional? A América já não pode ser
sustentada com histórias de inocência, e heroísmo, e ficções sobre cowboys e
selvagens. Essa inocência foi perdida, e muitas das ações americanas em resposta aos
ataques terroristas de 11 de setembro podem parecer moralmente ambíguas (ŽIŽEK,
2008, p. 27).
De acordo com a ideologia militar americana contemporânea, eles estão conscientes
do seu dever moralmente ambíguo e serão injustamente julgados por engajarem-se em ações
violentas, porém necessárias para o bem-estar de todos (como ir para a guerra para salvar o
mundo do terror), ainda que os outros não desejem sua própria salvação. Dessa forma, os
Estados Unidos tornaram-se anti-heróis.
Batman exemplifica isso bem: é um vigilante, realizando ações ilegais que
condenamos, em prol de um bem maior; representaria os Estados Unidos e os seus aliados,
enquanto o Joker representa todas as forças do terror que os Estados Unidos precisam
enfrentar.
Há cenas bastante semelhantes com o terror vivido em 11 de setembro, em Nova York:
quando Batman está de pé no local de uma explosão devastadora, em meio à imensa nuvem de
e destroços retorcidos, à semelhança do “Ground Zero”, ou quando o Batman decide usar,
de forma dissimulada, tecnologias ilegais de espionagem e invasão de privacidade para vigiar
e “controlar” possíveis criminosos ato lamentável, mas necessário, visto a existência do
Joker ser o álibi para o "estado de exceção”. A presença do 11 de setembro também é evidente
na forma como o filme foi comercializado. Num dos cartazes publicitários, Batman aparece
embaixo de um edifício de escritórios; algumas das janelas do edifício foram arrancadas para
fora, e estão em chamas. Bruce Wayne, o Batman na sua “identidade real”, é retratado como
um dos homens mais ricos do mundo fato de significativa importância, não porque
permite que ele tenha a melhor tecnologia para seus carros e outros brinquedos, como também
o evidencia como um ser sem necessidades materiais, ressaltando sua natureza altruísta. Os
atos de Bruce Wayne não visam ao próprio bem, ou à autodefesa, mas à dos outros,
especialmente daqueles que não podem defender-se. A par do seu altruísmo, das boas ações e
intenções, Batman é injustamente proscrito e banido, tornando-se um mártir para o bem das
massas a que tanto ama. Žižek faz a seguinte comparação: “Os Estados Unidos podem ser
identificados com o Batman, e aqueles que lutam violentamente contra Os Estados Unidos e
seus interesses - nomeadamente grupos que estão marcados como jihadistas fanáticos - não
deveriam ser identificados com o Coringa” (ibidem, p. 45).
Žižek defende a importância de explorar as crenças ideológicas ocultas que inspiram e
sustentam as ações que realizamos. É necessário expormos essas ideologias e indagarmos “por
que ela é especialmente atraente para determinada pessoa. Existe, talvez, alguma boa ou
compreensível razão pela qual essa pessoa detém certa crença digamos, por exemplo, a
resistência ao comunismo” (ibidem, p. 49). No entanto, esse é precisamente o tipo de
discussão que os Estados Unidos não pretendem envolver-se. É mais seguro e melhor
promover a ideia de que os terroristas são loucos, adoradores da morte e do caos, que operam
fora do estritamente inexplicável, simples loucura e ódio. Assim, o Joker representa
perfeitamente o “inimigo” terrorista a ser combatido e exterminado, e a atitude política de
mentir e enganar é justificada.
The Dark Kinght demonstra que toda a vez que o povo tem de lidar com conflitos,
estes rapidamente se transformam em violência anárquica e em caos autodestrutivo. A única
forma de manter a Ordem é, paradoxalmente, pela transgressão da Ordem (estado de exceção,
novamente). Mas isso tem um preço: "O preço que pagamos por isso é que a Ordem, assim
que sobrevive, é uma paródia de si mesmo, uma imitação, uma blasfêmia ao Direito" (ibidem,
p. 53).
Tornamo-nos incapazes de ver que esse tipo de ordem é realmente desordem, e que
esse tipo de estrutura é apenas a sistematização do caos - a mesma coisa a que alega ser
contrária ela perpetua: a América é sempre uma nação em guerra, de forma direta ou indireta
incentivando, fornecendo, financiando as guerras dos outros. Segundo Žižek, os Estados
Unidos e The Dark Knight gostariam de nos fazer acreditar que precisamos ser salvos de nós
mesmos. Consequentemente, eles retratam a si próprios como salvadores e, nesse ato,
continuam a exercer o controle indistintamente sobre todos.
4.4 O OLHAR INDIFERENTE E A REUMANIZAÇÃO
Neste tópico da tese, três filmes serão analisados três olhares sobre o que estamos
vivendo em sociedade pós-11 de setembro, anestesiados pela cultura da indiferença e
aprisionados pelo medo que o terror global representa.
O primeiro filme, “Leões e cordeiros” (Lions for Lambs, EUA, 2007), de Robert
Redford, é um drama político que ataca a política externa beligerante americana. O filme
convida setores apolíticos a assumirem uma postura crítica diante do assunto, e denuncia
abertamente a juventude e a mídia, chamando-os, respectivamente, de indiferente e covarde.
“Leões e cordeiros” é cinema de engajamento do explícito. O cineasta entende que é
preciso despertar a juventude indiferente para a situação lamentável em que se encontra o
mundo, em especial os Estados Unidos, enfrentando uma guerra contra o terror global. Deixa
bem claro que os Estados Unidos é atualmente governado por demagogos e políticos sem
escrúpulos, que endossam qualquer aventura bélica que gere lucros para quem os financia, e
arrastam a opinião pública, valendo-se de distorções publicadas na imprensa. Para isso,
Redford constrói um roteiro que divide a ação em três tempos narrativos que não se cruzam,
mas se relacionam tematicamente.
Em Washington, um jovem e ambicioso senador republicano (Tom Cruise) tenta
convencer uma repórter veterana (Meryl Streep) a publicar matéria sobre a nova estratégia dos
militares norte-americanos no Afeganistão. Ao mesmo tempo, nas montanhas geladas afegãs,
Ernest (Michael Peña) e Arian (Derek Luke) são soldados que estão lutando de acordo com
essa estratégia. No mesmo horário, do outro lado do país, um professor universitário (Robert
Redford) tenta convencer um aluno promissor (Andrew Garfield) a se aplicar mais nos
estudos. Cada dupla em um ponto diferente, e as histórias são sutilmente interligadas:
enquanto o senador ressalta as qualidades da "estratégia bélica", os soldados feridos expõem o
seu fracasso os dois foram alunos do professor e se alistaram para fazer “diferença” e dar
um novo sentido à vida; o professor tenta convencer o aluno brilhante a continuar nas aulas; o
aluno brilhante expõe as feridas políticas dos EUA e do Senado.
No contraponto entre a fala do Senador e os acontecimentos no campo de batalha, fica
óbvia a inutilidade da guerra e seu uso eleitoreiro.
O filme não fica nas acusações. Somos convocados a despertar do comodismo
indiferente diário e a indagar sobre como fazer diferença. "Leões e cordeiros" possui enfoque
no discurso antibélico, ocupando um vácuo deixado pela imprensa: a de superego da nação.
No primeiro foco, a experiente jornalista da imprensa corporativa, interpretada por
Meryl Streep (Janine), é convidada a visitar um jovem senador republicano, Tom Cruise,
conservador e moralista. O político deseja passar a ela, em primeira mão, informações vagas
sobre a nova tática de guerra implantada pelo exército americano, sob ordens diretas dele,
"para vencer o “mal" no Afeganistão. A jornalista, que semelhanças trágicas com a guerra
do Vietnã e percebe tratar-se apenas de outra jogada de marketing para tirar o foco do fracasso
no Iraque, tenta em vão extrair mais informações do senador. O Senador segue lhe expondo a
"nova estratégia", mas ela percebe os furos no discurso que sustenta a "guerra contra o terror".
A sensação é confirmada depois que Janine se recusa a contribuir para a propaganda pró-
guerra. Nesse diálogo, a conivência entre a imprensa e o governo é apontada com palavras
inteiras.
A imprensa não podia como devia opor-se aos absurdos da guerra. Mas se calou,
indiferente. E continua calando-se, mesmo com a indignação de Janine. São exemplares os
discursos hipócritas e falso-moralistas e as ameaças veladas que o senador republicano usa
para tentar convencê-la a divulgar a notícia mentirosa, para ajudá-lo a preparar terreno
numa possível disputa pela presidência da república. Nesse ponto, o filme é preciso ao
mostrar como jornalistas da imprensa corporativa se deixam usar por políticos cujos interesses
coincidem com os dos donos da mídia, que pagam seus salários. Uma das cenas mais fortes e
esclarecedoras é a de Janine (Maryl Streep), em Washington, passando de táxi por
monumentos em homenagem aos mortos em guerras anteriores e pelo cemitério de
Harlington, onde vários soldados estão enterrados. Tudo é uma grande repetição, reedição do
Vietnã. Tudo será reduzido a pó!
No segundo foco, acompanhamos o início da inútil operação militar no Afeganistão,
onde recebem destaque um militar americano negro (Derek Luke) e outro latino (Michael
Pena), que caem para fora do helicóptero depois de um ataque surpresa em pleno ar; ambos
passam o resto da narração lutando para sobreviver à medida que os soldados afegãos se
aproximam, numa montanha, na linha de tiro dos talibãs. Tudo isso é acompanhado, via
satélite, pelos oficiais que comandam a operação e são incapazes de engendrar um resgate
adequado. É comovente a relação entre os dois soldados, feridos, deitados na neve, usando as
últimas balas contra o inimigo e expondo o sofrimento e a solidariedade entre cidadãos
patriotas que jamais foram indiferentes.
O terceiro foco narrativo mostra uma reunião entre o professor universitário (Robert
Redford) e um de seus alunos (Andrew Garfield), cujo potencial para o debate político ele
tenta despertar novamente depois que o jovem perde o interesse pelo tema. É nesse momento,
em especial, que “Leões e cordeiros” revela seu discurso ético.
No confronto entre aluno e professor, o lado humano, íntimo dos sofrimentos
provocados pela guerra, é apresentado de forma mais explícita. É admirável o discurso do
mestre convocando os jovens de seu país para que se engajem politicamente, ao invés de se
renderem ao discurso “antipolítica”, vendido pela mídia corporativa com o objetivo de deixar
as futuras gerações alienadas e alijadas do processo, o que interessa aos conservadores e
reacionários em geral a serviço das elites oligárquicas.
A construção narrativa de Leões e Cordeiros” tem o propósito de nos deixar
angustiados. Ao intercalar as duas conversas de gabinete com as cenas de guerra, Redford cria
uma sensação de tensão que vai aumentando na medida em que piora a situação dos soldados
- dois de seus ex-alunos que optaram, para desgosto do professor, em se alistar no exército
para ingenuamente tentar fazer alguma diferença. Não por acaso, os protagonistas olham
constantemente para seus relógios e a alegoria é novamente clara: “enquanto jogamos
conversa fora, a vida de pessoas está em perigo”.
Há muito de verdade e inteligência na análise política levada a cabo por Robert
Redford. Embora seja curto e direto, com poucas cenas de ação, o filme é, em grande parte,
construído com base em longos diálogos inteligentes, espirituosos e bem construídos, a cargo
do roteirista Matthew Michael Carnahan. Dois terços do enredo se passam dentro de gabinetes
e consistem em personagens conversando. A estrutura narrativa é compacta.
São três histórias aparentemente independentes e, embora simultâneas, vão sendo
contadas de forma alternada, numa montagem paralela. Aos poucos, o espectador vai
descobrindo as ligações entre elas. Assumindo sem medo um tom panfletário, Redford
constrói um drama com a tensão de relógio, o andamento em tempo real, e o clima de
urgência se estabelece igualmente nas três frentes distintas. O diretor demonstra coragem ao
afirmar que a mídia, os grandes jornais e as redes de TV têm parte da culpa do fracasso
americano no Iraque, por ter apoiado (ou, no nimo, se esquivado de criticar) os planos da
invasão ocorrida em 2003.
“Leões e cordeiros” contribui para adicionar duas novas abordagens críticas ao
contexto social em que aconteceram as reações dos EUA à agressão terrorista de 2001. Por
um lado, faz críticas abertas aos bastidores da política externa, assumindo que ambições
individuais e partidárias sempre estiveram acima do conceito de nação e, por outro, tem o
mérito de abrir um debate político sério sobre a política americana de combate ao terror
global, denunciando a indiferença de sua juventude.
O segundo filme aqui analisado é “Ensaio sobre a cegueira” (2008), co-produção entre
Canadá, Japão e Brasil, baseado no livro homônimo de José Saramago (1998). "Se podes
olhar, vê. Se podes ver, repara" palavras de José Saramago, na apresentação pública do seu
romance.
A estória do escritor português José Saramago (1922) gira em torno de uma misteriosa
epidemia de cegueira que domina a população de uma cidade não identificada, causando caos,
tumulto e violência. Como, a princípio, acredita-se que a cegueira é contagiosa, os doentes são
trancafiados num sanatório, onde precisam aprender a sobreviver e a superar diversas
limitações existenciais e psicológicas.
O imagético de uma epidemia de indiferença abate-se sobre a humanidade e contamina
todas as relações sociais, econômicas e jurídicas. A estória se dá em grande centro
cosmopolita – espaço sem localização, análogo a qualquer grande e indistinta cidade do globo
terrestre.
A atemporalidade se faz presente no romance e é enfatizada na produção
cinematográfica cujas referências típicas de lugar são desconstruídas. Ao criar um texto em
que as marcas de identificação espacial-temporal revelam-se enfraquecidas, Saramago faz
dele um espelho onde o leitor poderá mirar-se e refletir sobre o seu papel, enquanto cidadão
do mundo, na construção da história da humanidade.
A supressão da identidade a partir do nome está associada à cegueira indiferente que se
espalha. As personagens são identificadas por outros meios: pelas profissões que exerciam
antes de ficarem cegas, pelas relações de parentesco ou por traços físicos marcantes. Ao
assumirem que os nomes são desnecessários ao seu relacionamento no confinamento imposto,
as personagens deixam implícita a trajetória que terão de seguir na descoberta assombrosa de
si e do Outro.
Dessa forma, o lugar antropológico cultural, temporal e espacialmente definido é
substituído pelo não lugar, pela redução dos códigos de convivência social a um estado de
barbárie, em que será preciso reaprender a viver, instituindo novos regulamentos para os
relacionamentos sociais, e parâmetros para as identidades. Do ponto de vista histórico e dos
três conceitos fundamentais à compreensão histórica, o tempo, o espaço e a identidade, tanto o
romance quanto a produção cinematográfica lidam com a impossibilidade de situar sua
narrativa em tais categorias. É essa impossibilidade que faz da obra um espelho visceral da
condição humana.
Em Não-lugares, ensaio do antropólogo e etnólogo francês Marc Augé (1935), é
analisada a relação do sujeito com o espaço, a identidade e a coletividade. Ele designa "não-
lugar" todos os dispositivos e métodos que visam à circulação de pessoas, em oposição à
noção sociológica de "lugar", isto é, à ideia de uma cultura localizada no tempo e no espaço.
Segundo Augé, os espaços necessitam de uma reavaliação, pois "vivemos num mundo que
ainda não aprendemos a olhar" (AUGÉ, 1994, p. 16).
É fácil perceber a analogia entre a afirmação desse antropólogo e a epígrafe escolhida
por Saramago: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara".
A cegueira branca é descentralizadora; indiferente, não privilegia classes sócio-
econômicas:
Aqui não gente discreta e bem educada, alguns são uns mal desbastados que se
aliviam matinalmente de escarros e ventosidades sem olhar a quem está, verdade seja
que no mais do dia obram pela mesma conformidade, por isto a atmosfera vai se
tornando cada vez mais pesada... (SARAMAGO, 1995, p. 99).
A babel de indivíduos de naturezas tão distintas quanto às suas origens à mulher do
médico a impressão de que as distâncias que separam os seres no mundo exterior se
encurtaram, e a diversidade de problemas que aflige os homens se limita ao instinto de
sobrevivência. Essa impressão se resume numa frase: "O mundo está todo aqui dentro"
(ibidem, p. 102).
A narrativa cinematográfica inicia-se com um motorista parado no sinal de trânsito e
que se descobre subitamente cego, mergulhando em névoa assustadora e inquietante. De cada
um dos seus encontros, produz-se o fenômeno do mal indiferente da cegueira contagiosa.
Uma a uma, cada pessoa com quem ele encontra – sua esposa, seu médico os pacientes
do médico se acomete da mesma doença. Chamada de cegueira branca, a doença se espalha
pela cidade ou pelo país... Os vertiginosos acontecimentos, desde os primeiros contágios ao
encarceramento dos acometidos pelo mal, são apresentados em toda a crueza da sua
indiferença. Os personagens são mantidos em seu anonimato; além de cegos, são invisíveis
socialmente, conhecidos apenas como "a mulher do médico", "o homem da venda preta", "a
mulher dos óculos escuros" ou "o cão das lágrimas”.
À medida que a doença se espalha, o terror e a paranoia dominam a cidade. As novas
vítimas da “cegueira branca” são cercadas e colocadas num hospício abandonado em
quarentena. A exclusão do grupo infectado é extremamente relevante como denúncia social e
política: a sociedade civil e o poder público segregam os diferentes, os dissonantes, os
potencialmente “perigosos”, os estranhos, quando os teme e não sabem o que fazer com eles,
confinando-os aos sanatórios e prisões.
Frente ao desconhecido, desmascaram-se o abandono, a indiferença, o desrespeito, a
intolerância, o preconceito e a brutalidade humana.
Em suas diversas éticas e estranhamentos morais apresentados no filme, a abordagem
contundente da complexidade humana coloca o indivíduo no centro dos processos de
desumanização pós-11 de setembro. A prisão de Guantánamo, base americana na Baía de
Guantánamo, ilha de Cuba, foi criada para manter suspeitos de terrorismo capturados
principalmente no Afeganistão. Suspeitas de maus tratos a presos no local contribuíram para
prejudicar a imagem dos EUA no exterior.
O cientista político, advogado, catedrático em Direito Constitucional da Universidade
de Harvard e atual presidente norte americano, Barack Hussein Obama (1961), afirmou, em
entrevista coletiva (21 de maio de 2009), que a criação e a manutenção da prisão de
Guantánamo foi um duro golpe à reputação dos Estados Unidos, pois, em vez de servir como
um instrumento contra terroristas, o local se tornou "um símbolo" que ajudou a Al-Qaeda a
recrutar terroristas para sua causa. "A existência de Guantánamo provavelmente criou mais
terroristas pelo mundo"
31
. Uma das primeiras determinações do Presidente Obama, nos
primeiros dias de seu mandato, em janeiro de 2009, foi a desativação da Prisão de
Guantánamo, cujo complexo abriga atualmente 240 prisioneiros de 30 países suspeitos de ter
praticado supostos atos terroristas contra alvos americanos.
A cegueira indiferente e contagiosa do temor ao terrorismo, bem como a cegueira
ideológica fanática e destrutiva dos terroristas, abateu-se sobre a humanidade como uma
epidemia.
Análogos à personagem “a mulher do médico”, que estranhamente não foi
contaminada pela epidemia, somos testemunhas oculares, secretas e podemos ver as
aterrorizantes e belas imagens narradas, como a dos cachorros que devoram cadáveres nas
ruas e a do abençoado banho de chuva das mulheres na varanda.
Não sabemos se somos abençoados ou amaldiçoados por podermos enxergar numa
terra de cegos. É uma fábula que nos confronta com a nossa própria natureza humana, frente a
uma situação de caos, terror, abandono e indiferença. Paulatinamente, todos se tornaram cegos
31
Disponível em: www. ultimosegundo.ig.com.br/mundo. Acesso em maio de 2009.
e reduzidos a meros seres lutando por suas necessidades vitais, seguindo seus instintos mais
primitivos e ancestrais.
Os cegos da epidemia inexoravelmente adaptam-se à nova condição, num convite à
reflexão sobre a própria atitude frente ao desespero de estar cego, “estar sem ver”. O
personagem “o homem da venda preta”, em determinado momento, assinala que “a cegueira
espalhou o pânico ou o pânico espalhou a cegueira”.
Chama a atenção o comportamento amoral de um cego de nascença que está menos
vulnerável que os demais a cegueira natural lhe confere autonomia e poder frente à
fragilidade e ao desamparo dos outros.
O foco do filme, no entanto, não é desvendar a causa da doença ou sua cura, mas
mostrar o desmoronar completo da sociedade que perde tudo aquilo que considera civilizado.
Ao mesmo tempo em que vemos o colapso da civilização, o descortinar de como as
autoridades agiriam, em uma situação como essa, e de como o medo tem capacidade de fazer
vir à tona os instintos mais escondidos dos homens.
Trata-se da “cegueira” do ser humano em relação ao outro; vemos, porém não
enxergamos. Se, de repente, parássemos de ver o que aconteceria? As coisas perdem o seu
sentido. Quando não se vê, desfaz-se o senso estético, acabam-se as diferenças, perde-se a
identidade, a possibilidade de viver-se dignamente. O grotesco dessa trajetória é exatamente o
fato de sermos o que somos, quando nos encontramos longe das regras da civilização.
Outro ponto fundamental é quanto à fragilidade da civilização; de acordo com o
personagem “o velho da venda preta”, quando uma coisa cai, tudo desmorona. Estamos cada
vez mais vulneráveis a situações de risco. O sociólogo francês Peretti Watel (2000) afirma que
estamos sujeitos a riscos a que antes não tínhamos a menor percepção de estarmos
subjugados; esses riscos não são apenas relativos às forças da natureza, mas também aos
aspectos da barbárie humana.
A história representa um registro da sobrevivência física das multidões cegas, dos seus
mundos emocionais e da dignidade que tentam manter. Mais do que olhar, importa reparar no
outro. dessa forma o homem se humanizará novamente. É assim que os homens
verdadeiramente são? É preciso cegarem-se todos para que enxerguemos a essência de cada
um?
O terceiro filme que analisaremos é Babel” é uma co-produção dos Estados Unidos
e México, de 2006, do gênero drama, dirigido pelo mexicano Alejandro González Iñárritu e
com roteiro do premiado escritor mexicano Guillermo Arriaga. O roteirista foi premiado pelos
fimes “Amores Brutos” (2000), “21 Gramas” (2003) e concorreu com “Babel” ao Oscar de
melhor roteiro original em 2007. Este filme é a terceira parte da "trilogia da morte", de
Iñarritu, iniciada pelos demais citados. As três produções cinematográficas apresentam o
estilo marcante do roteirista na construção de um grande novelo de personagens
desconhecidas que se encontram ao longo dos seus percursos.
A trilogia sublinha a fragilidade das escolhas, a vulnerabilidade dos vínculos afetivos
das personagens e, em última análise, da nossa própria vida assombrada pelo medo simbólico,
terror imaginário e indiferença real.
O modelo labiríntico do diretor soma-se a uma disposição sociológica de denunciar a
banalidade do mal, o abandono, a indiferença e a condição humana através de histórias
paralelas e de seus entrelaces e inter-relações.
“Babel” denuncia os efeitos negativos da globalização num mundo pós-traumático.
Três histórias distintas, em quatro continentes (EUA, Marrocos, México e Japão), cujos
fragmentos narrativos compõem um drama, tendo uma arma de fogo como ponto de
convergência. A primeira ponta da pirâmide está no Marrocos, onde dois adolescentes
camponeses recebem de seu pai um rifle para matar chacais e proteger o rebanho de cabras.
Tomados pelo súbito de testar a nova aquisição da família, os jovens pastores testam a
potência da arma tomando por alvos os carros que passam na estrada. Atirando num ônibus de
turismo, eles atingem Susan (Cate Blanchett), casada com Richard (Brad Pitt) que, ao ver sua
esposa gravemente ferida, faz o ônibus mudar seu rumo e parar num povoado, até que outra
condução os leve a um hospital.
Na segunda ponta da pirâmide, está Amélia (Adriana Barraza), que, amavelmente,
cuida das crianças do casal. Imigrante ilegal, que mora dezesseis anos nos Estados Unidos
da América, Amélia, às voltas com o casamento de seu filho no México e sem ter com quem
deixar as crianças, resolve levá-las consigo sem a autorização dos pais. Na volta, as coisas
complicam-se na fronteira, e ela e as duas crianças ficam perdidas no deserto após perigosa
fuga.
Na terceira ponta da pirâmide, e a mais distante, está Chieko (Rinko Kikuchi), uma
jovem adolescente japonesa que perdeu a mãe num suicídio e parece rumar para o mesmo
caminho. Surda e muda, lança-se numa saga para transar pela primeira vez. Seu pai Yasujiro
(Kôji Yakusho), um homem permanentemente ocupado com o trabalho, foi quem levou o rifle
para o Marrocos numa viagem de turismo e deu-o como presente de agradecimento ao seu
guia marroquino de caçadas.
É marcante a forma como são retratadas as diferentes manifestações culturais.
Abordando temas polêmicos, como a pobreza e exclusão de alguns países e a riqueza e
políticas sociais de outros, o filme traz a globalização refletida em todas as culturas, como
uma colcha de retalho que a todos envolve e sufoca. O roteiro destaca, em especial, a
“eficiência” da cultura americana. Os EUA são retratados como um país onde tudo funciona
de maneira organizada e eficaz, uma nação produtora de bens de qualidade e o grande centro
gerador de tecnologia, modelo de bem-estar social.
Analisamos a transversalidade de fenômenos presentes na trama do filme enfocando os
aspectos culturais, políticos e econômicos em cada história.
O filme possui este título em referência à Torre de Babel, relatada na Bíblia como uma
construção bem alta cujo objetivo era alcançar o céu. Deus, irritado com a ousadia humana,
criou diversas línguas para que as pessoas não pudessem comunicar-se, tendo de parar a obra
para, por fim, se dispersarem pelo mundo inteiro. E assim é o filme, múltiplo nas linguagens,
nas culturas e na geografia. A questão comunicacional é o tema central do filme. Como diz
Edgar Morin (1997), “nós somos sistemas fechados do ponto de vista comunicacional, pois
temos dificuldades de nos comunicarmos inclusive dentro de um mesmo contexto cultural”.
São dificuldades que tendem a se exacerbar diante de culturas distintas cujos códigos
desconhecemos. Sob este aspecto, o filme aponta para um paradoxo: vivemos em culturas o
distintas e, ao mesmo tempo, interconectadas por um mundo globalizado.
A coexistência cultural é um desafio para o nosso século, claramente evidenciado no
filme, numa época em que as fronteiras são cada vez mais tênues e difusas. O tema da
globalização aparece através do que Peter Singer (2002) coloca como sendo um dos signos
que apontam para o fato de vivermos numa comunidade: o terrorismo. A trama começa
com um tiro disparado acidentalmente, e de imediato traduzido como “ataque terrorista”, por
ter atingido uma jovem senhora que viajava com o marido. O grupo de americanos viaja ao
Marrocos a turismo um país muçulmano do norte da África mantendo-se, entretanto,
amedrontados e fechados frente à cultura desconhecida.
O tiro disparado traz à tona a paranoia coletiva vivenciada pelos americanos, ao
subverter a relação de arrogância tão própria de sua cultura: aquelas pessoas ricas, viajando
em ônibus com ar-condicionado e sem contato real com as pessoas do local, “protegidas” do
olhar do outro, vêem-se reféns do medo, sentindo-se impedidas de demonstrarem
solidariedade com o drama do casal atingido dentro do mesmo veículo onde se encontram.
Aliás, o tema do estranhamento entre culturas perpassa o filme em diversos momentos. Susan
e Richard, completamente entregues à boa vontade das pessoas da comunidade local e ainda
mergulhados no medo e no preconceito, surpreendem-se com a disponibilidade dos
marroquinos em ajudá-los.
O casal tem de decidir, ao serem confrontados por uma situação limite, entre confiar
no desconhecido ou nos seus próprios códigos de referência. A arma que foi utilizada no
disparo do tiro evidencia outro paradoxo. A mesma arma que foi dada à família marroquina, e
que acaba sendo usada contra os turistas americanos, é fabricada pela poderosa indústria
bélica mundial, da qual os Estados Unidos é o principal fabricante.
O filme, do ponto de vista político, também retrata a desigualdade social entre países e
a cultura da indiferença marca do processo de globalização econômica –, refletindo o outro
lado da moeda: o aspecto sombrio da economia capitalista contemporânea, que cria abismos
entre as camadas sociais de um mesmo país e profundas desigualdades entre países ricos e
pobres. Metafórica e propositadamente, são as famílias do terceiro mundo as mais penalizadas
na trama do filme.
A própria polícia marroquina se submete à soberania americana, conduzindo uma
investigação com violência e desrespeito aos direitos humanos de sua própria população, para
mostrar aos que comandam as relações internacionais que o Marrocos não é um país de
bárbaros.
Ao analisar a história de Amélia, o acontecimento que recai com maior intensidade
sobre o expectador é a constante ameaça de degradação e humilhação pela qual continuam
passando os mexicanos que tentam cruzar “La linea”.
O filme também propõe reflexões acerca das relações humanas, evidenciando
situações que mobilizam sentimentos inerentes ao ser humano, que sofre com a solidão,
apesar de estar vivendo na era da comunicação.
O deserto do México parece o deserto do Marrocos que, por sua vez, se assemelha com
o “deserto” de Tóquio, traduzindo o “deserto afetivo” em que vivem as pessoas das grandes
metrópoles.
O casal americano encontra solidariedade real numa pequena aldeia e, ainda assim,
tem dificuldade de distinguir entre o que é ajuda humanitária e troca de serviços.
O surgimento do inesperado marca rupturas nos padrões inter-relacionais e afetivos em que
estavam aprisionadas. O inusitado se revela quando as situações estão aparentemente estáveis.
No Japão, o mundo que Chieko percebe é um mundo atual: cheio de estímulos, mas
vazio de conteúdos. Sente-se perdida e incompreendida no isolamento comunicacional em que
vive, tentando desesperadamente transpor a barreira entre ela e os outros.
Ao final do filme, Cheiko consegue aproximar-se de seu pai. No Marrocos, o casal de
americanos passa por uma situação limite entre a vida e a morte, que os leva finalmente a
conseguir falar sobre o sofrimento pela morte de um filho. E, no México, Amélia, deportada
dos EUA, é confortada nos braços do filho quando retorna ao país. O filme revela que as
situações de perda ou da sua iminência acabam por aproximar as pessoas, devolvendo-lhes
sua humanidade.
Conforme afirma Hellinger (1998), “o processo de aceitar perdas opera na alma e pode
trazer algo de positivo num nível completamente diverso” (HELLINGER, 1998, p. 90).
As histórias se desenrolam paralelas, como se fossem filmes diferentes; no entanto, a
desconexão é apenas aparente. Mesmo que eles nunca venham a se conhecer, as vidas dos
personagens estão interligadas em diversos aspectos, dentre eles a relação forte e intensa entre
pais e filhos, de todas as famílias. Além disso, surge sempre algo inerente à condição humana:
o sofrimento. Ele está igualmente presente em todas as histórias.
Os personagens se conectam pela dor e mostram-se extremamente humanos, ao
remeterem ao espectador um sentimento que lhe é familiar, não importando as diferenças
geográficas, culturais, econômicas, religiosas ou raciais. A análise do filme remete, assim, aos
três pilares fundamentais do pensamento sistêmico, de acordo com Vasconcellos (2002):
complexidade, instabilidade, intersubjetividade. O pressuposto da instabilidade reconhece que
o mundo está em processo de tornar-se; portanto, a indeterminação, a imprevisibilidade e a
incontrolabilidade dos fenômenos presentificam-se na trajetória humana, independente de
fatores quaisquer.
O pressuposto da intersubjetividade remete ao fato de que cada um percebe a realidade
a sua maneira e, se queremos construir um mundo junto, necessitamos do diálogo. O
pressuposto da complexidade remete à inter-relação e à interdependência de todos os
fenômenos e à necessidade de se fazer referência ao contexto. “Babel”, dessa forma, consegue
traduzir com muita riqueza uma nova forma de conceber os fatos, dentro do chamado novo
paradigma da ciência.
O pensamento sistêmico mostra o que descortina o filme: situações e pessoas não são
lineares. Não podemos prever os acontecimentos em relações de causa-efeito; as causas se
transformam em efeitos e vice-versa.
As vidas estão interligadas, mesmo que não o saibamos, e o acontecimento mais
anódino tem repercussões totalmente imprevisíveis. Como sugere o filme “Efeito borboleta
(1989), o bater de asas de uma borboleta pode provocar um tufão do outro lado do mundo. A
chamada de “Babel” faz uma reflexão: “Se você quer ser entendido, escute”.
Após essa interconexão de histórias, o filme apresenta uma finalização bastante
sugestiva, pois coloca em xeque as possibilidades de segregação das culturas existentes, ou
mesmo das sociedades: todas as histórias relatadas permanecem interdependentes antes,
durante e ao final do filme.
Finalizando, é possível perceber, por meio de um dos maiores ícones americanos as
produções cinematográficas –, focos de resistência ética, autocrítica e engajamento político e
social para pensar em uma sociedade reumanizada e solidária.
No próximo capítulo, trataremos do sujeito pós-11 de setembro, da tolerância, do
resgate ético como elementos para a construção de uma ética da resistência à cultura da
Indiferença e falaremos ainda sobre as vulnerabilidades da autonomia.
CAPÍTULO 5 – ÉTICA DA RESISTÊNCIA
(...) Enquanto nossas relações forem definidas por nossas diferenças, mais força
daremos aos que semeiam ódio, não a paz; e aos que promovem conflitos, não a
cooperação, que pode ajudar nosso povo a alcançar justiça e prosperidade. Esse ciclo
de suspeitas e discórdia tem de acabar. Vim até aqui em busca de um recomeço entre
os EUA e os muçulmanos de todo o mundo; recomeço baseado em interesse mútuo e
mútuo respeito; e baseado na verdade de que os EUA e o Islã não são excludentes e
não precisam viver em competição. Em vez disso, somam-se e partilham princípios
comuns princípios de justiça e de progresso; de tolerância e de respeito à dignidade
de todos os seres humanos.
Barack Hussein Obama, 4 de junho de 2009.
5.1 O SUJEITO PÓS-11 DE SETEMBRO
Usado em várias acepções, o conceito de sujeito de Aristóteles (384 a.C. - 321 a.C.)
traduz “aquilo que está sob”. É empregado tanto para falar do gênero sujeito “ou daquilo de
que as coisas são predicados” como também como um modo de designar a matéria e a
substância como o “sujeito primeiro ou aqueles seres que são denominados substâncias
porque não são predicados de um sujeito, mas tudo o mais é predicado deles”
(ARISTÓTELES, 2006, p. 14).
Com Descartes (1596-1650), o sujeito foi identificado primeiro como o EU consciente
de si próprio, revelado pelo cogito ergo sum “Penso, logo existo”, embasando, assim, a
fundamentação da predicação.
Kant (1724-1804) aceitava o conceito de sujeito como EU, por ser uma condição
lógica e formal da experiência. Afirmava que todos os juízos, sejam eles sintéticos ou
analíticos, constituem modos de pensar a relação de um sujeito com um predicado. No juízo
analítico, todos os corpos são extensos; no juízo a priori sintético, todos os corpos são
pesados.
O conceito de corpo é o sujeito, os conceitos de extensão e de peso são os predicados
do juízo. Kant postulava que o EU consciente de si é o próprio sujeito do conhecimento e da
ação, porém relutava em conceder a este sujeito qualquer existência substancial:
O EU como sujeito absoluto é uma função lógica e não um ser existente. Assim,
conquanto seja possível representar-me algo que pode existir como sujeito e nunca
como predicado (...) ignoro, porém, quaisquer condições pelas quais esse privilégio
lógico possa convir com qualquer coisa. Por conseguinte, ignora-se se alguma vez
esse conceito significa qualquer coisa (KANT, 1985, p. 10).
Portanto, para Kant (ibidem, p. 11), o sujeito é apenas um mero prefixo ou uma
representação vazia, o que aponta para o fato de esse autor ser extremamente cauteloso em
relação ao perigo de converter o sujeito lógico e seus predicados na substância e acidentes da
ontologia. O sujeito lógico do conhecimento é aquilo que permanece depois de eliminados
todos os acidentes e predicados (ibidem, p. 46). Kant aceita o cogito do “eu penso” como a
proposição de um EU absoluto ou sujeito, mais resiste ao ergo sum de que esse sujeito é um
ser substancial. O sujeito em Kant é, acima de tudo, o do conhecimento:
Até hoje, admitia-se que o nosso conhecimento devia ser regulado pelos objetos;
porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que
ampliasse o nosso conhecimento malogravam-se estes pressupostos. Tentemos, pois,
uma vez, experimentar, se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica,
admitindo que os objetos deveriam se regular pelo nosso conhecimento [...] (ibidem,
p. 57).
Kant, dessa forma, colocará o sujeito do conhecimento no centro da questão sobre a
epistemologia, e não a realidade ou objetos e predicados que o cercam. Uma coisa existe
quando pode ser compreendida pelo sujeito que a conhece, e este é entendido não como um
ser individual, mas como sujeito universal ou estrutura a priori universal da razão humana – o
Sujeito Transcendental.
Kant transfere a responsabilidade e o cuidado com o mundo como objeto do
conhecimento para o homem, enquanto este é capaz de realizar a ciência no mundo. Ao buscar
e explicar a capacidade do entendimento humano, ele cria uma simbiose entre o homem e o
mundo no processo de conhecimento. As condições humanas a priori estão vinculadas à
experiência, o que inibe que o sujeito do conhecimento se esquive de conhecer e, dessa forma,
anule-se existencialmente em relação ao objeto que deve ser conhecido. É fundamental para a
construção do conhecimento a ação consciente do sujeito no processo de conhecer, desvendar,
decifrar o objeto do conhecimento.
É inaceitável uma postura de indiferença perante o objeto ou o predicado, sob pena de
o homem perder sua condição de sujeito. O sujeito atuante ocupa o domínio inteligível da
Liberdade. E é um ser transcendente, uma vez que o termo transcendental, para Kant, significa
uma forma de conhecimento, não dos próprios objetos, mas dos modos como somos capazes
de conhecê-los, ou seja, as condições da experiência possível. Kant distingue transcendental
de transcendente, contrastando os princípios transcendentes que “nos convidam a derrubar
todas as barreiras e passar a um terreno novo que não reconhece, em parte alguma, limites de
demarcação com o abuso transcendental das categorias que estendem sua aplicação para além
dos limites de experiência possível e é meramente um erro da faculdade de julgar” (ibidem, p.
352). Transcendente é o termo usado para descrever aqueles princípios que “reconhecem
transpor os limites da experiência em oposição aos princípios inerentes cuja aplicação está
inteiramente dentro da experiência possível” (idem, ibidem). Tais princípios incluem as ideias
psicológicas, teológicas e cosmológicas.
Longe de fazer do EU um simples sujeito do pensamento e da ação, Kant insistiu em
que seu caráter nunca pode ser conhecido, exceto por analogias. Os seus sucessores imediatos
foram muito menos inflexíveis em converter o EU num sujeito transcendental cujo caráter e
modos de agir eram, em princípio, cognoscíveis.
Idealistas transcendentais, sobretudo Fichte (1794) e Schelling (1800), fizeram do Eu
transcendental todo o conhecimento e a ação. Hegel (1807) criticou Kant por formular uma
distinção formal dentro do EU da consciência de Si, e Ficht e Schelling por dissolverem todas
as distinções do Eu transcendental. Em vez disso, por meio da fenomenologia, Hegel
descreveu as formas históricas assumidas pelo desmembramento do EU, pensando o sujeito
como substância. Feuerbach (1830) e Marx (1843) procuraram subsequentemente unificar o
Eu transcendental e o Eu empírico num sujeito humano, desenvolvimento este que teve
enorme influência e poder de persuasão através dos existencialistas, como Sartre (1960), ao
longo de todo o período após Segunda Guerra Mundial. Entretanto, em décadas recentes, a
identificação de sujeitos empíricos e transcendentais no sujeito humano foi questionada por
estudos estimulados principalmente por Nietzsche (1844-1900) e Freud (1856-1939). Estes
Estudos separaram, uma vez mais, o Eu Transcendental (do inconsciente) do Eu empírico e
resistiram à tentação de atribuir um sujeito último, humano ou não, à capacidade de
pensamento e ação.
O que o filósofo francês existencialista Jean Paul Sartre, em 1960, e a fenomenologia
criticaram na teoria psicanalítica é o fato de ela não ser suficientemente compreensiva.
Compreender um homem, segundo eles, é colocar-se no interior de suas vivências, é aprender
a maneira como sente o mundo, como vive as suas relações com o Outro e como estrutura
suas angústias, frustrações e paixões. Diante desse ideal, a insuficiência da psicanálise reside
no fato de ela fazer referências aos fatos psíquicos não como maneiras de viver o mundo, mas
como coisas no interior do sujeito. A psicanálise comete o engano, entre os outros, de
transformar o sujeito em objeto.
O próprio projeto da metapsicologia freudiana, estudando a estrutura do psiquismo,
revela o desconhecimento da realidade humana como “ser no mundo”. Dessa falta de
compreensão decorre, para a psicanálise, a incapacidade de conceber que os comportamentos
humanos possam referir-se a uma liberdade primordial (MOUSSEAU, 1984, p.75).
Para os fenomenólogos, a vida é uma série de soluções para problemas concretos,
impostos pelas circunstâncias, e, em sentido amplo, uma solução para o próprio problema da
vida. Soluções a cada momento construídas pelo sujeito, e que ele não experimenta no
exterior. Para a psicanálise, ao contrário, o homem parece sempre suportar a sua vida, sendo
manipulado por forças que não domina. A psicanálise serve-lhe, então, de álibi para
desvencilhar-se das suas responsabilidades, para lhe fazer acreditar,, que ele não é o senhor de
seu destino ou, ainda, que é apenas um objeto.
A psicanálise, ainda para a fenomenologia, teve o enorme mérito de compreender que
todos os atos humanos possuíam uma significação e que todos os comportamentos eram
reveladores da personalidade. Entretanto, atribuiu essas significações a uma força exterior ao
sujeito, que o dominaria: o inconsciente o que ininteligível, pois toda a significação supõe a
consciência. De fato, para compreender-se um ser humano, é necessário admitir que ele não é
manipulado por uma força exterior e reconhecê-lo plenamente responsável por todos os seus
comportamentos, escolhidos por ele e existentes através deles.
Na segunda tópica de Freud (1920) da estrutura do inconsciente, o EU assume o lugar
que a consciência ocupava na primeira tópica (1915). Há, porém, uma diferença relevante,
pois em vez de se encontrar face a um inconsciente global, o EU estava agora situado entre
duas estruturas de exigências contraditórias: por um lado, o ID, onde estão as pulsões; por
outro, o SUPEREGO e tudo que este acarreta de moral, de interditos e de lei parental.
Entre ambas, o EU é a instância onde reina o princípio da realidade e onde se
delineiam os processos secundários (tempo e lógica). Uma outra diferença separa-o da
consciência da primeira tópica: os mecanismos de defesa são, eles próprios, em grande parte
inconscientes. Agora, o EU é o termo que designa a pessoa humana, como consciente de si, e
o objeto do pensamento. Designando, num primeiro momento, a sede da consciência, o ego
foi delimitado na primeira tópica como um sistema, que abrangia o consciente, o pré-
consciente e inconsciente.
A partir de 1920, o termo mudou de estatuto, sendo conceituado por Freud como uma
instância psíquica, no contexto de uma segunda tópica que abrangia outras duas instâncias: o
superego e o id. O ego tornou-se, então, em parte, inconsciente.
Depois de Freud, toda uma tendência da psicanálise orientar-se-á para a psicologia do
eu; todo o problema da cura estará em constituir um eu forte, e a cura será uma adaptação
(idem, p. 177). O EU tornou-se um agente da adaptação e, como Freud concluiu que o ID é
completamente amoral, o EU tende para ser moral, enquanto o SUPEREGO pode revelar-se
hipermoral e cruel, portador do sentimento de culpa. Uma culpabilidade que leva a refletir no
mais profundo de nós mesmos, como Franz Kafka (1833-1924) expôs, ao observar que “não
se encontra nenhuma diferença entre um assassinato projetado e um assassinato cometido”
(KAFKA, 1999).
Nesta tese, estamos à procura do sujeito da ética, não apenas daquele vitimado pelo
seu superego cultural, mas, sobretudo, do sujeito muito além do jurídico “de direito e de
deveres”, na medida em que, como pontua Badiou (2002), procuramos definir para ele uma
nova categoria filosófica, tendo em vista o sujeito construído a partir do evento trágico de 11
de setembro de 2001.
Segundo Badiou (2002), o sujeito é raro, tão raro quanto as verdades. Em outras
palavras, o sujeito:
1) Não é uma substância, um ser, uma alma, uma “coisa pensante”, como diz
Descartes. Ele depende de um processo e acaba;
2) Não é, tampouco, um nada, um vazio, um intervalo; podem-se determinar seus
componentes;
3) Não é uma consciência, uma experiência, nem uma fonte de sentido; de fato, é
constituído por uma verdade, e não por fonte da verdade;
4) Não é invariante ou necessário. Nem sempre sujeito ou sujeitos. É preciso
para isso condições complexas e, particularmente, eventos, que são frutos do
acaso;
5) Não é uma origem. Não é por haver sujeito que verdade; pelo contrário:
porque há verdade há sujeito (idem, p. 42).
Para falar de sujeito, é preciso partir de uma teoria da verdade, uma vez que “o sujeito
não é outra coisa senão um ponto de verdade ou dimensão puramente local do processo de
uma verdade” (idem, p. 44). O pensamento contemporâneo se afirma como uma critica da
verdade como adequação, como uma forma limitada de juízo; para Hegel (1770-1830), a
verdade é um percurso. Uma vez que o conhecimento é dado através da consciência e por sua
particularidade, ele não é um produto imediato e instantâneo e, sim, um processo. Portanto, a
verdade deve ser compreendida como um sujeito e não como uma substância imóvel. Uma
maneira de entender a filosofia hegeliana é exatamente através de sua afirmação de que a
verdade é um sujeito e não uma substância, conforme acentua Silveira (2001, p. 27).
Badiou (2002) parte da seguinte ideia: uma verdade é, primeiramente, uma novidade;
o que se transmite, o que se repete, é um saber, sendo fundamental a distinção entre ambos.
Se toda a verdade é uma novidade, precisamos pensá-la como um dever, como uma aparição.
Necessário é, pois, entender-se uma verdade como um processo real e não como um juízo.
Para que comece o processo de uma verdade, é preciso que alguma coisa aconteça.
Pois o que há – a situação do saber tal como é – só proporciona a repetição.
Para que uma verdade afirme, sua novidade deve haver um suplemento entregue ao
acaso. “Ele é imprevisível, incalculável. Ele está além daquilo que é. Eu o chamo de um
evento (BADIOU,2002, p. 44).
Um evento está ligado à ideia do que não pode ser decidido, do que não pode ser
calculável ou controlável e é por esta razão que o axioma de verdade de Badiou se inicia pela
decisão de afirmar que um evento teve lugar. O fato de não termos controle sobre a aparição
do evento nos torna um sujeito do evento e este sujeito é constituído pelo seguinte enunciado:
“Isso teve lugar, não o posso calcular nem mostrar, mas lhe serei fiel. Um sujeito é, antes de
tudo, aquilo que fixa um evento indecidível porque assume o risco de decidi-lo” (ibidem, p.
45).
Žižek (1998) critica a imagem de subjugação e desamparo que Badiou teria feito do
sujeito. Para ele, o filósofo francês denunciou as teorias da subjetividade, principalmente a
psicanalítica, como incapazes de diferenciar o Evento do Ser. O Evento constitui um sujeito e,
dessa forma, revela uma verdade, aparece como princípio criador e inesperado. Segundo ainda
Žižek, a teoria do sujeito de Badiou propõe uma retificação na ênfase dada por Lacan ao
sujeito do desejo como o sujeito da Lei. Badiou opõe a este sujeito comprometido com a
necessidade a permanência e a moralidade do Ser e da Lei, o sujeito do Evento caracterizado
pela ‘raridade’, pela ‘emergência local-transitiva-frágil-contingente’” (ŽIŽEK, 1998, p. 257).
Žižek alerta que Badiou cometeu um equívoco ao alegar que Lacan distinguiu sujeito e
subjetivação, ou seja, o que Badiou idealizou como sujeito no vazio da estrutura não é o que
Lacan define como sujeito. Žižek prossegue, ressaltando que, para Lacan, “o sujeito anterior à
subjetivação é pura negatividade da pulsão de morte, anterior à sua identificação com algum
significante-mestre” (idem, p. 257). O sujeito proposto por Lacan estaria presente no intervalo
da estrutura, mas não pertenceria à estrutura nem seria estruturado por ela.
O sujeito é, ao mesmo tempo, a lacuna ontológica (...) entre o Ser e o Evento e o gesto
de subjetivação que a fecha (...) Subjetividade é o nome dessa irredutível
circularidade, desse poder que não luta contra uma força externa ou resistente
(digamos, a inércia de uma dada Ordem substancial), mas que é um obstáculo
absolutamente inerente, que, em última instância, é o sujeito ele mesmo (idem, p.
258).
Žižek identifica o poder negativo da pulsão de morte com o sujeito, como uma
irrupção criativa do Real na ordem ontológica estabelecida. O trauma do Evento (Badiou) ou a
emergência do sujeito do Real (Žižek) não são análogos a uma entidade ontologicamente
impotente:
Se existe uma lição ético-política a ser ensinada pela psicanálise, ela consiste no
insight que as grandes calamidades de nosso século (do Holocausto ao desastre
stalinista) resultaram, não do fato de termos sucumbido à mórbida atração pelo vazio,
mas, ao contrário, do fato de termos nos esforçado em evitar a confrontação com ele e
impor regras diretas de Verdade e/ou de Bem (idem, p. 258).
O vazio, o real e o nada “não são as causas do desamparo e da indiferença”. O
desamparo se interpõe quando lidamos com o vazio e as consequências do Evento, a
indiferença quando por medo, negação ou mecanismos inconscientes de defesa fugimos ao
risco de tomar decisões, de agir e recorremos ao saber totalitário que se expressa na Lei. O
sentimento de desamparo e a indiferença poderiam conduzir a uma visão do Bem ou de uma
Verdade que terminam em discriminação, opressão, terrorismo e destruição.
A ética da resistência refere-se ao agir ou ao omitir; ela valoriza o fazer, independente
da moral social. Quem é o sujeito que age ou se omite, que valoriza o fazer nesses tempos
dominados pela cultura da indiferença? Sem dúvida, um sujeito construído e marcado pela
alteridade, um eu estruturado e pensado a partir e além dos conceitos ontológicos gerais das
instituições, da sociedade, da cultura, da religião e das ideologias. De certa forma, é um
sujeito universal que se manifesta num discurso ético conforme as regras da filosofia
transcendental que se ergue sobre as experiências singulares e constrói-se conforme estruturas
abstratas.
O eu torna-se sujeito quando seus conceitos ocupam o transcendental no qual é aceito,
de acordo com os postulados formais da razão, e quando suas operações seguem a
generalidade ou a objetividade. Por esse viés, o sujeito transcendental alcança sua
autonomia pela sua natureza intersubjetiva abstrata. O caráter abstrato permanece na
passagem do conceito para a realidade, ao se pensar em instituições que garantam objetiva e
universalmente a instância ética.
O sujeito transcendental, no processo do conhecimento, identifica tudo com que se
relaciona, sem de sua parte nada interpor nem sofrer. A objetividade requer tal atitude e
procedimento. Saber equivale a ser neutro e a poder dominar o outro de tal forma que este se
torne objeto. A correlação entre objetividade e saber requer que ao sujeito transcendental nada
se oponha na ordem do conhecer e, consequentemente, possa vislumbrar o Outro como a si
mesmo. Em se pensar o Outro, neste sentido, Bruseke (2009), em seu texto Mística, moral
social e a ética da resistência, diz que:
O homem começou cedo a refletir sobre os outros e sentiu cedo a ambivalência da sua
presença. Os outros eram fonte do calor humano que amenizava o frio das noites
escuras nos longos invernos. Os outros eram proteção, durante o sonho, contra os
perigos fora da caverna. Também sabiam detalhes importantes sobre como viver na
selva, dividida como habitat e sem grade de ferro no meio com animais ferozes. Os
outros eram também fonte dos prazeres sexuais, e cedo acompanharam o moribundo
nas suas últimas horas devidas. Os outros também eram aqueles que viveram na
memória dos mais velhos, que apareceram nos sonhos e falaram palavras enigmáticas
em momentos difíceis momentos difíceis
32
.
A partir do novo milênio, os eventos que o homem vivencia trazem a necessidade de
construir-se um novo sujeito capaz de assumir os riscos de suas escolhas, de tomar decisões,
de estabelecer regras, juízos e valores sobre a nossa sociedade global após o 11 de setembro.
A sociedade apresenta-se fragmentada, caótica, acelerada e onipresente espacialmente.
A complexidade dos eventos da nossa era tem levado à perda ou ao deslocamento do sentido
de quem somos e provocando uma "descentração do sujeito". Tal fenômeno conduz a uma
metamorfose do paradigma transcendental, no qual o sujeito pode vislumbrar o outro como a
si mesmo. Essas mudanças provocaram uma crise de identidade, visto que, como diz Hall, “as
velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio,
fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como
um sujeito unificado” (HALL, 1999, p.7).
O surgimento do conceito do sujeito fractal de Baudrillard (1990) caracteriza-se por
múltiplas identidades culturais, que podem ser contraditórias, ou não, provisórias, variáveis e,
muitas vezes, problemáticas. O indivíduo pós-moderno assume uma identidade "móvel" e
"temporária" possibilidade dentre as múltiplas possíveis –, de acordo com o momento e o
local. Isso ocorre porque a construção da identidade se na interação com os outros e “pelas
formas através das quais nos imaginamos ser vistos por outros, ao longo da vida, constituindo
um processo em constante mudança e formação” (idem, 1990, p. 39). Essa "mobilidade" na
identidade, segundo Turkle (1997), torna-se mais latente e perceptível no espaço cyber
cultural visualizado, sobretudo, na Internet. A linha tênue entre o real e o virtual é esmaecida,
de forma que as "janelas", acionadas através de softwares, possibilitam à pessoa "estar" em
vários contextos simultaneamente, ou seja, a tecnologia possibilita a configuração de uma
32
Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/ethic@/ETICA7.PRN.pdf. Acesso em janeiro de 2009.
identidade formada pela onipresença no ciberespaço. Turkle completa seu raciocínio dizendo
que esta estrutura encoraja o ser humano a se perceber como fluido, descentralizado, flexível,
múltiplo e em constante mutação.
Baudrillard (1991), em Simulacros e simulação, afirma que “o sujeito não mais
possui transcendência”:
Como fragmentos de um holograma, cada parte contém o universo inteiro. A
característica do objeto fractal é que toda a informação relativa ao objeto está contida
nos mínimos detalhes. Da mesma maneira, podemos falar hoje em dia de um sujeito
fractal que se desfragmenta em uma multidão de egos miniaturizados, todos parecidos
uns com os outros, se dividindo segundo um modelo embrionário como uma cultura
biológica, que satura seu meio por simples divisões até o infinito. Como o objeto
fractal se assemelha parte por parte a seus componentes elementares, o sujeito fractal
não deseja mais do que se assemelhar com cada uma de suas frações. [...] Distribuído
em todos os lugares, presente em todas as telas, mas em todos os lugares fiel à sua
própria fórmula, a seu próprio modelo. [...] Já não é a diferença entre o sujeito e o
outro, é a diferenciação interna do mesmo sujeito ao infinito. [...] É como dizer que já
não estamos por inteiro... O sujeito atual não está alienado, nem dividido, nem
lacerado (BAUDRILLARD, 1991, p. 27).
Mais tarde, Bauman vai propor as definições deste sujeito pós-moderno e
fragmentado, que ele nomeia como turistas e vagabundos (BAUMAN, 1998, p. 114). Os
turistas são defendidos como sujeitos que ligam e desligam o mundo, sem deixarem nele
qualquer marca duradoura. Para os turistas, as chaves do mundo funcionam com tanta
facilidade que tornam o mundo “flexível, dócil, esborrável”. Na formulação de turistas
encontra-se uma analogia com computadores, com máquinas frias e indiferentes: “É
improvável manter-se qualquer configuração por muito tempo” (idem, p. 115). Para explicar
os vagabundos, Bauman os contrapõem aos turistas e os define como seres que “se movem
porque acham o mundo insuportavelmente inóspito” (idem, p. 118). A interseção entre os
turistas e os vagabundos encontra-se, justamente, neste ponto de movimento permanente,
apontando para a incapacidade de fixar raízes e construir vínculos: “O eixo da estratégia de
vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se, mas evitar que se fixe” (idem, 114).
Essa conceituação de sujeito pós-moderno, fractal ou fragmentado vai percorrer os
novos caminhos do pensamento social, filosófico e cultural. Despido dos mais sólidos
arcabouços, compartilhado com valores que orientavam seus antepassados, este sujeito é
sujeitado. Agora, tudo está em risco, tudo é provisório, tudo é questionável, tudo é paradoxal.
5.2 DA TOLERÂNCIA À INDIFERENÇA
Historicamente, a noção de tolerância surgiu nos séculos XVI e XVII, devido a
conflitos religiosos. No que se refere às religiões, a sociedade de hoje é muito tolerante, mas
nem sempre foi assim. Durante os séculos XVI e XVII, a Europa tornou-se o palco de
diversas guerras entre católicos e protestantes. Desesperados com esses sangrentos conflitos,
desencadeados pela Reforma e pela Contrarreforma, os filósofos europeus da segunda metade
do século XVII, como Baruch Spinoza (1632-1677) e John Locke (1632-1704), procuravam
encontrar uma alternativa ao fanatismo religioso. Estabeleceram, então, os “fundamentos
teóricos para a prática da tolerância”, em vez do uso da força bruta contra cada igreja que
consideravam herege A exposição dessas doutrinas, que defendiam a compreensão mútua e o
entendimento entre os cristãos, abriram caminho para que, no século seguinte, o chamado
Século das Luzes, a implantação do Estado laico não religioso, desligado de qualquer igreja
– ganhasse força. Isso permitiria a existência e a convivência, debaixo do mesmo governo, das
diversas igrejas e credos. Em caso de problemas, um magistrado civil entraria em ação para
evitar agressões ou mesmo o arrastamento do conflito.
Locke pode ser considerado como o primeiro teórico moderno da separação entre
Igreja e Estado. As funções do mundo sacerdotal e as do mundo civil ficaram demarcadas por
lei, de maneira definitiva, a fim de evitar-se a confusão existente entre o que concerne à Igreja
e o que se refere à comunidade, ou seja, a mistura entre “salvação das almas” e “segurança da
comunidade e do Estado que a representa”.
Definindo a comunidade como uma sociedade de homens constituída para a
preservação e melhoria dos bens civis (a vida, a liberdade, a saúde, a libertação da dor e a
posse de terra, dinheiro e móveis), Locke declara que o magistrado civil (o representante do
Estado) deve assegurar e determinar leis uniformes e a posse justa das coisas. Além disso,
deve reprimir os violadores e impedir a espoliação dos bens, da liberdade e da vida, como
fazia a Inquisição. Em hipótese nenhuma, cabia ao Estado intrometer-se na salvação das almas
ou legislar ou prescrever artigos de fé, muito menos fixar e aplicar punições e castigos físicos
motivados por tais questões.
Se a essência da religião é a persuasão, não cabe ao Estado assumir tarefas
coercitivas. Se cada príncipe acredita ter o seu próprio portão para o céu, como
alguém, em seu nome, poderá determinar qual deles é o certo? Que a Igreja cuide das
almas e as proteja contra os pecados, e que o Estado preserve os bens e as vidas,
afastando os ladrões e os predadores (LOCKE, J., 1999 p 67).
A palavra tolerância nasceu dos conflitos religiosos, no séc.XVI, na época das guerras
religiosas entre católicos e protestantes. O filósofo francês André Lalande (1867-1963), em
seu livro Vocabulário técnico e crítico da Filosofia, diz que “os católicos acabaram por
tolerar os protestantes, e reciprocamente. Depois foi reclamada a tolerância em face de todas
as religiões e de todas às crenças” (LALANDE, 1993, p. 172).
A partir do século XIX, o conceito de tolerância estendeu-se ao livre pensamento e, no
século XX, passou a ser objeto de acordos internacionais com intenção realmente de ser
exercida, através da Carta aos Direitos Humanos, em 1948, e através de algumas ONGs e de
governos não totalitários. O conceito de tolerância, a partir de então, foi automaticamente
associado à democracia. Desvinculada de um contexto geográfico, jurídico ou histórico, a
noção de tolerância é aceita de modo mais universal do que o conceito de direitos humanos,
excluindo-se daí as conotações que remetem a uma atitude de condenação moral, à capacidade
fisiológica de suportar determinados medicamentos ou a uma decisão dos poderes públicos
tomada com base em considerações de ordem política, teológica ou jurídica.
A análise filosófica inclui, em qualquer definição contemporânea de tolerância,
determinado número de elementos. A tolerância é, essencialmente, uma virtude pessoal que
reflete a atitude e a conduta social de um indivíduo ou um comportamento de um grupo. Pode
ser a ideia, a capacidade ou o gesto de voltar-se para uma realidade diferente de sua própria
maneira de ser, de agir ou de pensar. Pode ser uma postura indiferente ou voluntariamente
neutra de reconhecimento da existência da diferença ou, então, uma atitude de resistência
paciente, mesclada de desaprovação. Pode também consistir em aceitar a diferença, vendo
nela uma fonte de enriquecimento, em vez de demonstrar permissividade em relação às coisas,
boas ou más, sem julgá-las.
Graças à tolerância, diz-se que se podem evitar o ódio e os conflitos e recorrer a
métodos não violentos para resolver controvérsias; entretanto, é forçoso reconhecer que, na
natureza, a agressividade e a violência são rotineiras no processo de sobrevivência e que,
provavelmente, são reflexos atávicos que subsistem no ser humano.
A democracia identificada com a tolerância, segundo o jurista indiano Andhra
Chelikani (1940), é:
O compromisso assumido por determinado número de pessoas de viverem juntas
pacificamente e de guiarem-se em função de certos valores, tendo em vista a
satisfação de suas necessidades e aspirações individuais e coletivas (CHELIKANI,
1995, p. 35).
Para serem universais, os valores propostos deveriam ser o denominador comum dos
valores divergentes, ou até mesmo antagônicos, aos quais aderem todas as etnias, culturas e
religiões presentes na sociedade; para serem pertinentes, é necessário que esses valores
correspondam à evolução histórica das sociedades consideradas. Em um mundo ligado pela
grande rede, interdependente e extremamente mutável, é ainda possível acelerar essa
evolução, a fim de se chegar a um consenso sobre determinados valores comuns. Chelikani
salienta que, observando de perto, as democracias atuais parecem ter alguns problemas
estruturais.
O aparelho de Estado Moderno, em particular o Exército e a burocracia, não mudou
de filosofia, ainda que as formas de governo tenham evoluído. Mesmos nos Estados
nos quais os ritos mais democráticos são praticados, parecem existir três setores com
interesses distintos e contraditórios (ibidem, p. 37).
O autor refere-se, especificamente, a três setores:
1) Razão de Estado – Os interesses de Estado são ditados por obrigações políticas,
diplomáticas e históricas e por imperativos de segurança interna, se necessário
aos seus interesses os Estados estabelecem relações profundas com redes de
tráfico de drogas, armas ou contrabando e colaboram até com governos
terroristas, fanáticos e antidemocráticos, com o pretexto de troca de
informações.
2) Interesses financeiros e comerciais do complexo militar e industrial, inclusive
de empresas multinacionais Os atores desse setor intervêm tanto fora quanto
dentro da estrutura política: financiam partidos políticos, corrompem o governo
nacional ou os governos estrangeiros, vedem armas proibidas, substâncias
nucleares, projetos ou obras impossíveis de gerir.
3) Considerações humanitárias O governo pode oferece ajuda ao
desenvolvimento e auxilio dos países mais pobres em situações de emergências
através de ONGS/ONCIPS nacionais ou por intermédio de organismos
intergovernamentais do sistema das Nações Unidas.
Esses três setores de interesse atuam de forma independente, conhecem-se
mutuamente, sabem que representam interesses diferentes, porém trabalham juntos, a serviço
da segurança, da prosperidade e da boa consciência da nação. Graças à liberdade de expressão
de que a impressa escrita e audiovisual desfrutam, a opinião pública exerce pressão crítica
sobre eles (quando não é indiferente).
A tolerância é, sem dúvida, uma questão de postura individual, porém de postura em
relação ao outro, comportando, em consequência, uma dimensão social. Segundo Chelikani:
Nenhum governo pode ensinar a tolerância; pode, no máximo, dotar-se de direito civil
e penal que iniba expressões de intolerância excessivas. Mas nas relações sociais entre
os diversos grupos religiosos, étnicos, culturais e linguísticos, os valores democráticos
desenvolveram-se apenas entre indivíduos que adotam uma postura de tolerância.
Assim, a tolerância é o fundamento necessário da democracia social (CHELIKANI,
1995, p. 45).
O mundo entra em uma fase de metamorfose acelerada, o processo de globalização
provocou inúmeras modificações em nível mundial, sobretudo quanto à tolerância. Houve um
inegável avanço tecnológico e científico, em setores como medicina, administração, telefonia,
informática, comunicação e outros. O mundo sem a conexão planetária não pode mais ser
concebido e, além disso, a conexão global pode ser é uma das fontes da tolerância social.
Segundo definição de Pierre Lévy:
O imenso hiperdocumento planetário da web integrará progressivamente o conjunto
das obras do espírito. Se somamos a isso o correio eletrônico e os grupos de
discussão, a interconexão mundial de computadores passa a adquirir um sentido
diante dos nossos olhos: ela materializa (...) o contexto vivo, mutante, em contínua
expansão da comunicação humana. O mesmo quanto à cultura (...) observemos: a
aparição do hiperdocumento produzido e lido virtualmente por todos, a emergência de
um metatexto que contém potencialmente todas as mensagens e os entretecidos.(...) E
a web opera pela primeira vez na escala da espécie, uma meditação no conjunto do
sujeitos. O grande tecido do sentido se materializa sob os nossos olhos (LÉVY, 2001,
p. 140).
Infelizmente, o fato de estarmos conectados numa meditação em conjunto não garante
que sejamos tolerantes uns com os outros. Os sinais de esquizofrenia coletiva multiplicam-se.
Com efeito, assiste-se a incidentes que testemunham reações irracionais, cruéis, imprevisíveis,
nas quais não nos podemos reconhecer como humanos.
Para a promoção da tolerância, precisamos nos examinar constantemente, para
assegurarmo-nos até que ponto somos toleráveis aos hábitos de vida, ao vestuário, à
alimentação, a expressões físicas e emocionais, às palavras e escritos, às crenças, às práticas
religiosas, culturais e sociais dos que são diferentes de nós. A ausência de tal sensibilidade por
parte dos governos e da maioria de uma comunidade conduz a muita opressão, sofrimento e
frustração e, por parte dos mais fracos e das minorias, gera conflitos e violência.
Em outros termos, a intolerância origina-se, de fato, de duas fontes: de indivíduos
fracos, infelizes e sofredores e de indivíduos poderosos e dominadores.
Após os ataques de 11 de setembro de 2001 e a invasão anglo-americana ao Iraque, o
filósofo Žižek analisa o paradoxo da tolerância numa democracia, ou seja, uma democracia
deve ou não impor limites de tolerância, tendo em vista a ânsia dos intolerantes pelo poder?
Seria possível ser tolerante para com um partido antidemocrático, vencedor das
eleições livres, com a plataforma de abolição da democracia formal? (como já
aconteceu na Argélia). Seria possível ser tolerante para com uma invasão militar, com
a justificativa de derrubar um ditador sanguinário para impor a democracia? É
possível confiar numa democracia imposta? Democracia é um regime que se impõe
autoritariamente, ou acontece segundo determinantes específicos e temporais da
cultura? (ŽIŽEK, Folha de S. Paulo, cad. Mais! 20/04/2003).
Em trabalho mais recente, Žižek dá uma significação à tolerância como vista hoje:
Vamos tolerar o outro desde que “ele fique a uma distância segura”. O que não quer
dizer outra coisa além de: “Eu realmente não tolero sua proximidade, não chegue
muito perto de mim". Tolerância, no multiculturalismo, é apenas o outro nome da
intolerância (ŽIŽEK, 2008, p. 55).
O multiculturalismo ocidental, em sua tentativa de reconhecer diferentes culturas,
estilos de vida, identidades sexuais, étnicas e religiosas, procura levar em conta apenas a
lógica do reconhecimento própria ao multiculturalismo e esta tenta simplesmente obliterar a
lógica dos conflitos político-econômicos.
O fundamento de tais conflitos é deslocado para o terreno da cultura, a fim de esvaziá-
lo. O autor não acredita que o reconhecimento das diferenças seja suficiente para
enfrentarmos as complexidades sócio-políticas atuais: “Para reconhecer vocomo diferente,
nós devemos partilhar um campo mínimo de solidariedade. Sem isso, a diferença não é
interessante para o pensamento. A diferença não vem primeiro” (idem, p. 71).
O grau de tolerância que prevalece em uma sociedade depende de seu nível de
civilização. As formas de intolerância são, sobretudo, expressões de insensibilidade moral e
indiferença. O que deve ser tolerado é decidido pelo indivíduo e o que não deve sê-lo é
decidido pela coletividade, em especial numa democracia. A intolerância é da alçada,
portanto, da manutenção da ordem, quando atenta contra a liberdade e a dignidade de todo
indivíduo que pertença a essa sociedade.
5.3 O RESGATE ÉTICO
O pensamento do filósofo francês de origem lituânia Emmanuel Lévinas (1906-1995) é
de fundamental importância, em função da contemporaneidade de suas teorias, sempre
alicerçadas na construção de um homem eticamente responsável, resistente à cultura da
indiferença. A base epistemológica do seu pensamento parte da ideia de que a ética, e não a
ontologia, é a filosofia primeira. É no face a face humano que se constroi todo o sentido; diante
do rosto do Outro, o Sujeito descobre-se responsável e lhe vem a ideia da transcendência e do
infinito. Lévinas resgata o “Rosto” do homem que, por diversas vezes, está desfigurado,
ultrajado e maltratado pela situação de dor, morte, abandono e ignorância intelectual, sem falar
da ausência de trabalho com justa remuneração que dignifique a sua pessoa e lhe garanta, em
consequência, a própria sua dignidade.
O que Lévinas apresenta na sua obra é uma chamada de atenção sobre a situação
lastivel e deplovel em que se encontram milhões de seres humanos excldos, que têm
olhos, mas não vêem: são cegos para o mundo, para a vida e para a história. Para ele, a ética
presentifica-se, antes de tudo, no encontro com o outro, que nos constitui como unidade, a
unidade da condição humana:
Ser eu ético significa não se poder fintar à responsabilidade, como se todo o edifício
da criação repousasse sobre meus ombros. Mas responsabilidade que esvazia o EU de
seu imperialismo e de seu egoísmo, seja ele egoísmo da solução não transformada em
momento da ordem universal, porém confirma a unidade do Eu (LÉVINAS, 1980, p.
61).
A relação ética com outrem não é um ato ontológico que compreende o interlocutor a
partir de um horizonte do ser, nem é orientada pela ontologia, ou seja, no outro ser humano
anuncia-se algo que o pode ser captado nas malhas do saber ontológico. O outro está
sempre para além de qualquer ideia que possamos ter sobre ele. O modo do outro em mim,
Lévinas denomina de: “o rosto” (idem, p. 21).
Nesse sentido, a face humana é um termo-chave; contudo, não em sentido fisiológico,
nem mesmo psicológico, mas algo que transcende à simples fenomenalidade da face humana.
O ser humano é o rosto enquanto transcende o meramente fenomenal. A transcendência divina
insinua-se na face do outro. A epifania do infinito no rosto humano não se deixa desvelar nem
ontológica, nem fenomenologicamente, mas na sua eticidade. A ética nos põe em contato com
o sentido cuja origem escapa. O rosto não é desvelado por nós, mas nos é revelado. A
experiência absoluta não é desvelamento, mas revelação (idem, p. 37).
A relação ética realiza uma verdadeira transcendência, um salto para a exterioridade,
para a alteridade, por excelência: aquilo que a razão não pode prever nem antecipar. É no
contexto ético que “o transcendente, infinitamente Outro, nos solicita... o outro não é a
encarnação de Deus, mas precisamente por seu rosto em que está desencarnado a
manifestação da altura em que Deus se revela” (ibidem, p. 51).
Apenas a partir da ética o mundo poderá tornar-se tema de humanização e receber,
objetivamente, uma relação dialogal e igualitária do eu e do outro (ibidem, p. 57). A relação
ética realiza nossa condição de criaturas, e o relacionamento ético implica que estamos
realmente separados e independentes do outro, embora o outro me comprometa, e dele minha
liberdade deve receber a “investidura” – completa o filósofo (idem).
A ética em Lévinas é uma relação entre termos, os quais, ao mesmo tempo,
permanecem absolutamente separados. O fato de o homem constituir-se um ser temporal
exige maior aplicação pelo zelo do outro. A filosofia leviniana presta muita atenção à
condição do indivíduo como único, enquanto meu próximo, sem deixar, contudo, de ter um
ponto de vista mais amplo, que se estende até o social. Nesse âmbito, é preciso perceber o
outro como ele é apresentado, na epifania do rosto, do nosso reconhecimento no rosto do
outro que me olha, interroga e desconstroi: O que funda a eminência e a transcendência do
outro é o fato de ele englobar a miséria e o expatriamento do pobre, da viúva e do estrangeiro”
(ibidem, p. 229). E, mais adiante, prossegue: “O outro, enquanto outro, tem a face de pobre,
de estrangeiro, da viúva e do órfão” (ibidem, p. 230); por que, então, não dizer de
desempregado, de excluído, de miserável,de terrorista ? E no meu olhar, resplandece os olhos
deles.
Contudo, a categoria do pobre e do estrangeiro, do órfão e da viúva retorna, mais uma
vez, soando como um refrão impregnado do significado bíblico, mas ao qual Lévinas quer dar
um significado muito concreto. A alteridade exprime-se na pobreza, na ignorância intelectual,
no despojamento e na miséria de não ter consciência de que é consciente, de que tem
potencial, mas depende de ter oportunidades para desabrochar-se como pessoa humana e
como cidadão. Com isso, surge uma pergunta: quem é o pobre, o órfão, a viúva e o
estrangeiro, o excluído na nossa sociedade de hoje? Por tratar-se de uma situação de
marginalização social e intelectual, que na cultura hebraica, a qual Lévinas fora educado, era
simbolizada por tais categorias que representam os marginalizados de hoje, são os excluídos
da globalização, sujeitos a pressões e manipulações sociais, à indiferença e à guerra. São seres
invisíveis, espectros da condição humana, que, expatriados pela cultura da indiferença, sofrem
os efeitos do desamparo e da intolerância, os que não têm voz nem vez.
O Outro é uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é um simples
inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma
alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma
alteridade que não limita o Mesmo, porque, nesse caso, o Outro não seria rigorosamente
Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. O
absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo ‘tu’
ou ‘nós’ não é um plural de ‘eu’. Eu e tu não são indivíduos de um conceito comum (ibidem,
p. 26).
Quando Lévinas fala da pobreza do rosto, podemos, num sentido mais radical, referir-
nos à pobreza dos marginalizados da globalização, dos refugiados da miséria, das vítimas
inocentes das guerras, da indiferença, do terrorismo global.
A epifania do rosto enquanto rosto é referente à ofensa feita a milhões de homens,
mulheres e crianças que levam uma vida subumana por lhes tirarem os direitos fundamentais.
O fato de este refrão ser repetido várias vezes afirma a escolha de vinas por uma condição
social, que precisa estar sempre presente, implícita ou explicitamente: a que faz do meu
próximo qualquer homem, como exemplificada na parábola bíblica do Bom Samaritano.
A principal característica do rosto parece estar no servir ao outro, no de que outro
assim necessita o que está implícito no seu rosto e, neste sentido, faz-se dele o próximo,
embora ele seja, em geral, desconhecido. Eticamente, trata-se do sentir-se responsável pelo
outro, pela alteridade, pelo Rosto do próximo, personalizado nos homens, mulheres e crianças
que são diariamente vitimados pela Cultura da Indiferença. Portanto, para Lévinas, o sentido
do humano está implícito na dimensão da ética como expressão de todo relacionamento com a
alteridade.
O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do Outro em mim,
chamamo-lo, de fato, rosto. Esta maneira não consiste em figurar como tema sob o
meu olhar, em expor-se como um conjunto de qualidades que formam uma imagem.
O rosto de Outrem destrói em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele me
deixa, a ideia à minha medida e à medida do seu ideatum – a ideia adequada (ibidem,
p. 38).
Lévinas não concebe a subjetividade sem a alteridade; é necessário ao eu que tenha o
outro: devo ser para o outro aquele que se preocupa e está aberto para o relacionamento, para
acolher a alteridade que vem a mim. A ética resgata aquilo que é singular e próprio tanto da
alteridade quanto da subjetividade: a sua dignidade, o ROSTO.
Para haver uma verdadeira transcendência, a relação entre eu e o outro não pode abolir
a distância entre ambos. A transcendência realiza-se como uma relação entre termos que
permanecem absolutamente separados e exteriores um ao outro, ou seja, “a partir de um ponto
separado da exterioridade tão radicalmente, que se mantém por si mesmo, é o eu” (ibidem, p.
266).
De forma subliminar, Lévinas aponta para o fato de que só quem se torna SUJEITO do
seu agir e de sua própria história será protagonista da própria vida. A constituição da vida
interior do eu separado é como o primeiro momento da relação ética que produzirá a
transcendência; é nesse compromisso interminável que se realiza a transcendência do infinito,
o EU tem existência por causa do TU; se eu me fecho em mim mesmo, não tem sentido a
ontologia do Ego, porque o EU é solidão, não há diálogo: a pessoa escuta o eco de suas
próprias palavras. O outro é real, não apenas o eco do eu, um alterego (ibidem, 267).
Baudrillard questiona-se sobre a possibilidade de termos sido capazes de
experimentar a alteridade radical proposta por Lévinas.
Não sei se tivemos relação de alteridade radical (...). Tenho a impressão de que o
estado em que estamos seria antes o da metamorfose e de que a natureza não existe
como tal. Existem animais, plantas, mas isso está no mesmo ciclo da metamorfose, e
não há, portanto, identidade verdadeira, portanto também não alteridade, não
eu e um outro, há fases sucessivas
33
.
Baudrillard fundamenta nossa resistência ao Outro porque tememos o encontro com a
finitude individual, com a inescapável certeza da morte. Isso está no ciclo da metamorfose,
onde todos nos situamos. Em um dado momento, o medo advém porque é preciso encontrar
uma individualidade e, portanto, resistir a isso por meio da morte individual. Se há um
indivíduo que morre, todo o resto torna-se o Outro. Há outra coisa que não morrerá ao mesmo
33
Entrevista ECO 92. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/folha/.../ult90u69174.shtml.
tempo em que ele, o outro é aquele que não sou eu, certamente, mas é, sobretudo, aquele que
não morre comigo; daí, sou forçado a considerar que o que sobrevive, o mundo, é
radicalmente diferente porque não vai morrer, é outra vida. A revolução biocientífica vem
para reinventar o humano e a natureza, com a total indiferença às escolhas pessoais, às
identidades culturais; indiferentemente, somos apenas objetos artificiais (idem).
Pela primeira vez, podemos conceber que a espécie humana é mortal e apreender todo
o contexto que a envolve. Ela não possui privilégios, ela compartilha da mesma mortalidade
que a natureza; é preciso sobreviver enquanto espécie não-natural, artificial, é preciso criar
uma espécie-artefato em simulação. É o que estamos fazendo através da genética, da biologia.
É a substituição de uma espécie humana não-natural por uma espécie humana natural, e tudo
isso pode desaparecer porque não há, justamente, o ciclo da metamorfose (ibidem).
Antigamente, não experimentávamos o medo da morte real, tangível em qualquer
esquina, fruto de ataques terroristas de todas as ordens: havia apenas o ciclo da natureza no
seu eterno e contínuo movimento de nascimento, vida, juventude, idade madura, velhice e
morte. Não havia o medo da morte porque tudo era transferido de uns aos outros. Um ciclo
sem interrupção simbólica. Hoje a possibilidade da morte. É preciso, portanto, escapar
dela, por uma espécie de prótese, de projeção sob a forma de clone, de máquina (ibidem).
Impõe-se, dessa forma, o grande desafio de construir uma ética de resistência à
indiferença que habita em nós. sabemos que somos vulneraveis a nossa própria
humanidade, que a morte nos espreita com a marca fria da banalidade. O Outro não é
somente meu colaborador, meu conhecido, meu amigo, meu objeto de adimiração ou fonte de
compaixão.
Se as nossas relações interpessoais e sociais não forem sustentadas por relações éticas
com as outras pessoas corremos o sério risco de fracassar em reconhecer a humanidade do
Outro. Para Lévinas, foi exatamente isso que ocrreu durante o Holocausto, quando a outra
pessoa “tornou-se um rosto sem face na multidão; o transeunte simplesmente passa, alguém
cuja vida ou morte é para mim um problema indiferente (HADDOCK-LOBO, 2006, p.18).
Precisamos criar a consciência de que exixte algo na outra pessoa, um código, um segredo,
uma subjetivação que precisa ser desvendado e que escapa a nosso compreensão. “Isso que
excede os limites do meu conhecimento demanda reconhecimento” (idem, p.18).
Precisamos portanto aprender a reconhecer o que não se pode saber e à respeitar o que
nos separa do Outro, podemos ser estranhos morais,mais estamos eticamente ligados.
Para Lévinas, se o Outro se perde na multidão,a transcendência se esvai,Uma relação
ética é a Relação em que eu encaro a outra pessoa e quardo distância, porque distância implica
respeito. É essa relação ética com a outra pessoa que se perdeu no antissemitismo do
nacional-socialismo e em suas apologias filosoficas (idem, p. 19).
Para construirmos uma ética restente à cultura da indiferença, é preciso reconhecer o
estranhamento moral e a irmandade ética na codição de seres humanos jamais excluídos do
diálogo.
O senso comum entende a Ética como o estudo dos princípios e do comportamento
moral e da natureza do bem. O termo provém do radical grego ethos, que significa “costume”
e “caráter”. Subdivide-se a ética em ética normativa e metaética; a primeira propõe os
princípios da conduta correta, e a segunda investiga o uso e a fundamentação de conceitos
como certo e errado, bem e mal.
Quando se fala em ética, geralmente se refere à ética normativa. Na maioria dos
sistemas, a conduta ética é interpretada em termos de realização pessoal (a procura do bem) e
de obrigação para com os outros ou para com certos princípios aceitos, como a preocupação
com a justiça, por exemplo. A realização pessoal pode ter origem na felicidade ou no prazer,
na luta por um ideal, o bem em si, ou num potencial totalmente concretizado.
A obrigação é não respeitar o próximo e as normas estabelecidas, mas também a
responsabilidade perante Deus, cujos mandamentos constituem a autoridade suprema para a
maioria dos sistemas morais de todo o mundo.
A metaética tem sua raiz no pensamento de Sócrates (469-399 a.C.) e de Platão (428-
347 a.C.), que investigaram a natureza da bondade como distinta de qualquer bem. Na
tradição grega, as questões da ética giraram em torno do problema geral sobre o que constitui
uma vida bem vivida, em vez de questões específicas com relação ao certo e ao errado.
Os estóicos (155 a.C.) foram os primeiros a analisarem decisões éticas em termos de
adequação à harmonia universal e à vontade divina, que também é o método fundamental no
sistema de valores judaico-cristãos.
No século XVIII, Immanuel Kant ampliou a metaética, com sua tese do imperativo
categórico – princípio ético absoluto e universal, que trouxe novo alicerce para a legitimidade
da moralidade. As teorias metaéticas contemporâneas negam a validade ética da moralidade
convencional. A noção marxista (1872) de “moralidade burguesa” afirma que a classe
dominante impõe seus valores a toda a sociedade. Outros teóricos descobriram a garantia da
validade ética na interação social, substituindo a vontade de Deus. Jurgen Habermas (1991),
por exemplo, acredita que é possível resolver questões morais através do discurso livre e
racional.
A maioria dos filósofos distingue ética de moral, argumentando que a primeira é fruto
da cultura social, da prática, enquanto a segunda parte de uma reflexão filosófica. Os
problemas éticos são caracterizados por sua generalidade, enquanto os morais reportam-se à
vida cotidiana com fins de regularem ações humanas e de permitirem uma visão total do
homem como ser social, histórico, transformador, inovador, destrutivo, operando vários
conceitos: liberdade, necessidade, valor, consciência, responsabilidade. Uma teoria ética da
resistência deveria atender à pretensão da universalidade, respeitando as características
próprias das diversas formações culturais e históricas.
Importante notar que, ao interagir com o ambiente interno-biológico e externo-social,
o homem cria e transforma culturas, revolucionando a sua própria história e a da humanidade.
Não podemos fugir da necessidade do outro para nos conferir existência.
A globalização é de mercados e, não, de um consenso ético de resistência à cultura da
indiferença. Tal crise ética é alimentada pelas demandas crescentes do capital e pelo desprezo
às condições de acesso ao capital.
um perverso sistema: sem ações políticas pluralistas, não autônima ética, e sem
esta não é viável a construção de uma política no plural. Tanto uma quanto a outra se tornam
inimagináveis. Questionar as verdadeiras causas por trás desse trágico fim da alteridade,
absorvida pela cultura da indiferença é o dever que a condição humana atual impõe. Se, no
passado, a força revolucionária da modernidade residia na constatação de que tudo era fruto
do trabalho racional e instrumental e de que este trabalho era capaz de produzir o bem e o mal,
a verdade e a mentira, hoje somos foi obrigados a lidar com a mudança radical de paradigmas
e valores e com a intrínseca conexão entre a contemporaneidade e a violência, entre
racionalidade e a indiferença.
Os ataques de 11 de setembro, um dos acontecimentos mais documentados pela mídia,
são exemplares neste sentido. Ficamos fascinados, capturados pelo horror daquelas cenas
chocantes e não encontrávamos palavras para explicar o inexplicável, até restar a indiferença e
o silêncio. Vencido o impacto da tragédia, a mídia mundial, encarregando-se de manipular os
ânimos e transformando o horror num grande espetáculo, reduziu-o à tradicional disputa entre
o Bem e o Mal, cujo nome passou a ser plural: cultura da indiferença, terrorismo global,
racismo, intolerância religiosa e exclusão sócio-econômica.
Freud havia refletindo sobre o totalitarismo que assombrava o mundo, culminando
com o nazifascismo; contundo, absteve-se de emitir julgamentos morais, mesmo ao responder
uma carta de Einstein, em Por que a guerra (1933). O filósofo francês de origem marroquina
Alain Badiou (1937), referenciado em Freud, salienta que “toda vontade coletiva de Bem faz
o Mal” (BADIOU, A., 1995, p. 28).
As guerras são geradas no vazio ético e nutridas pela indiferença e alienação, pelo
desconhecimento de si na face do Outro. Quando somos incapazes de aceitar e conviver com
as diferenças entre nós essenciais, inclusive, para construção da própria identidade –, o
Outro é transformado em inimigo a ser destruído.
Somente na alteridade é possível o esquecimento de si mesmo em prol do coletivo.
Vencer a guerra contra o terrorismo com o terrorismo não é uma vitória e, sim, a afirmação
dele. Assistimos o retorno desse paradoxo no conflito do Oriente Médio, nas guerras urbanas
do terceiro mundo, nas guerras étnicas da África, na guerra do Iraque e também na guerra
contra o terrorismo global.
5.4 VULNERABILIDADES DA AUTONOMIA
Para Beauchamp e Childress (2002), a palavra autonomia deriva do grego autos
(próprio) e nomos” (regra, governo ou lei). O ser autônomo é aquele que possui a capacidade
de autogoverno, o que inclui a compreensão, o raciocínio, a deliberação e a escolha
independente. Contudo, nossas escolhas são influenciadas por vários fatores, sejam eles de
ordem social, cultural, econômica e moral. Podemos considerar que as decisões são
determinadas por diversos fatores externos e internos à individualidade. O termo
“vulnerabilidade” é empregado em diferentes contextos, com diversos significados, podendo
ser entendido como: redução da voluntariedade, espontaneidade, liberdade, autonomia,
capacidade e autodeterminação, suscetibilidade, fragilidade, desigualdade, compartilhamento
de responsabilidade e solidariedade (GOLDIM, 2004).
Vulnerabilidade é uma palavra de origem latina, derivada de vulnus (eris), que
significa “ferida”. Dessa forma, a vulnerabilidade pode ser compreendida como
suscetibilidade de ser ferido. Contudo, na década de 1980, o desenvolvimento da bioética na
Europa determinou uma alteração substancial no entendimento da noção de vulnerabilidade,
influenciada pelos filósofos Emmanuel Lévinas e Hans Jonas. A vulnerabilidade é
reconhecida como constitutiva do humano, entendida como condição universal do vivente.
Seu conceito surge como substantivo e não como adjetivo. Por isso, não pode ser
compreendida ou utilizada como um fator de diferenciação entre pessoas e populações.
A condição humana é marcada por um extenso grau de fragilidade, devido às
características temporal e finita de toda vida humana. Só se pode aprender a viver em
segurança quando se reconhece a própria vulnerabilidade e a do outro, protegendo-as e
sabendo conviver com elas. O respeito pela dignidade da pessoa humana significa, acima de
tudo, a promoção da sua capacidade de pensar, decidir e agir. Portanto, respeitar a autonomia
de outrem não é apenas recorrer a sua autodeterminação, mas ajudar essa pessoa a ir ao limite
de si mesma, ajudá-la a descobrir e a escolher o que está de acordo com o sentido do respeito
à dignidade humana (DURAND, 2003).
Existem pessoas com redução de autonomia temporária ou definitiva. Crianças,
adolescentes, enfermos, prisioneiros têm redução temporária da autonomia porque estão
impedidos de manifestar sua vontade e, espera-se que, cessado o impedimento, possam fazê-lo
de maneira inequívoca. Mas há seres para os quais não existe possibilidade de reversão do seu
estado e, por isso, são considerados como tendo redução definitiva da autonomia.
Para algumas delas, a abdicação da autonomia foi voluntária, como acontece com as
pertencentes a ordens religiosas ou militares. Muitas outras, entretanto, não são capazes de
manifestar sua vontade por doença física grave ou mental. De qualquer modo, quando se fala
de pessoa com autonomia reduzida, fala-se por decorrência de alguém que possa representá-
la, pai ou representante legal, em todos os seus impedimentos.
A autonomia está ligada à pessoa e não é extensível para um grupo ou população, pois
a expressão da liberdade de conseguir concretiza-se no consentimento informado, e este é
dado por cada sujeito, individualmente. O consentimento deve ser dado por cada sujeito,
individualmente, pois ninguém pode consentir por outro dotado de autonomia plena. E este
conceito é de natureza ética.
Quem são, então, os sujeitos vulneráveis pós-11 de setembro? São pessoas que, por
condições sociais, culturais, étnicas, religiosas, políticas, econômicas, educacionais e de
saúde, têm as diferenças estabelecidas entre eles e a sociedade envolvente transformadas em
desigualdade. A desigualdade, entre outras coisas, os torna incapazes ou, pelo menos,
dificulta-lhes a capacidade de livremente expressar-se.
A condição de autonomia reduzida pode ser transitória; porém, para eliminar a
vulnerabilidade é necessário que as consequências das privações sofridas pelo sujeito ou
grupo social sejam ultrapassadas e que haja mudanças drásticas na relação que mantém com o
grupo social mais amplo onde estão inseridas.
A exacerbação da vulnerabilidade leva à redução ou à perda total da liberdade
individual os mesmos fatores que conduzem à vulnerabilidade contribuem para impedir a
livre escolha. Por outro lado, a necessidade de sobreviver cotidianamente supera as
possibilidades das conquistas democráticas e dos processos de decisão que não estejam
imediatamente ligados à estratégia de sobrevivência.
Mecanismos éticos devem ser desenvolvidos, a fim de assegurar os direitos humanos
aos sujeitos pós-11 de setembro, ainda que eles não tenham plena consciência de seus direitos.
É condição maior que os sujeitos sejam informados sobre o real estado quanto ao que se está
pedindo a eles e que sejam deixados livres para decidir.
O discurso do Presidente norte americano Barack Hussein Obama, na Universidade do
Cairo, no dia de 4 de junho de 2009, convida os mulçumanos, transitoriamente vulneráveis e
marcados pela cultura da humilhação, ao diálogo, para que juntos – ocidente e ocidente
(igualmente vulneráveis) diante dos ataques do terrorismo global construam uma ética de
resistência à cultura da indiferença.
Antes de sermos sujeitos das religiões, das etnias, das nacionalidades de origem, das
políticas econômicas e sociais, somos, acima de tudo, sujeitos da condição humana, que nos
iguala e irmana.
A redução da autonomia e a vulnerabilidade são fenômenos que podem estar ou não
associados. A autonomia é um conceito ético e individual, enquanto a vulnerabilidade
pressupõe o estabelecimento de relações desiguais entre indivíduos ou grupos. Ela se
manifesta quando as relações estabelecidas entre indivíduos ou entre um grupo minoritário e
outro, além de diferentes, são desiguais.
A autonomia de muitos sujeitos não é, pois, tão ampla quanto a exposta acima, por
causas temporárias ou definitivas de ordem biológica (crianças ou menores de idade, pessoas
hospitalizadas), social (pessoas pertencentes a ordens religiosas de clausura, membros das
Forças Armadas, prisioneiros, políticos ou não) ou política (imigrantes ilegais, refugiados
políticos).
A autonomia está ligada a cada pessoa e não é extensível a um grupo ou população. A
expressão da autonomia do sujeito, da sua liberdade para consentir, se concretiza no
consentimento após-informação e esta permissão é dada por cada sujeito, individualmente.
Ninguém pode, eticamente, consentir por outro que possua autonomia plena e, quando isto se
faz, a decisão é nula e eticamente incorreta. É importante lembrar que nos casos de autonomia
reduzida, quando o responsável ou tutor legal decide pelo outro, a decisão deve ser respeitada
mesmo quando, no entender de um observador neutro, possa estar errada.
Pessoas vulneráveis podem sê-lo mantendo sua autonomia, pessoas de autonomia
reduzida podem não ser vulneráveis, pessoas podem ser, ao mesmo tempo, vulneráveis e
terem autonomia reduzida. Em outras palavras: não uma clara relação entre ausência de
autonomia e vulnerabilidade. A diferença muito significativa entre elas é que a autonomia é
individual, diz respeito à pessoa enquanto indivíduo, e a vulnerabilidade é decorrência de uma
relação histórica entre segmentos sociais diferenciados, cuja diferença entre eles se transforma
em desigualdade. Enquanto, em muitos casos, a condição de autonomia reduzida pode ser
passageira, a eliminação da vulnerabilidade necessita que as consequências das privações
sofridas por uma pessoa ou grupo, nos âmbitos social, político, educacional ou econômico,
sejam ultrapassadas. Por outro lado, pessoas, grupos ou populações são vulneráveis e
continuarão a sê-lo, se não houver mudanças drásticas na relação que mantêm com o grupo
social mais amplo em que estão inseridas.
O sujeito vulnerável é alguém que possui uma cidadania frágil, que ignora a relevância
do direito à integridade física, como condição de acesso aos direitos sociais, econômicos,
políticos e trabalhistas. Dito assim, a primeira condição para que um sujeito vulnerável
abandone esta condição parece ser o investimento do Estado naquilo que constrói e constitui a
cidadania, naqueles atributos que transformam o indivíduo em cidadão, que transformam o
animal laborans em homem político. Para Hannah Arendt, essa transformação é “um
pressuposto da democracia, pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o
reino da liberdade” (ARENDT, H., 2000, p. 37).
Ficar à espera de que as condições econômicas de um país se transformem para que as
sociais também sejam transformadas e, com isso, obter-se o fortalecimento da cidadania, é
perigoso porque a cidadania frágil pode significar que "pode estar em curso nesta sociedade
um processo coletivo de desativação dos mecanismos de autocontrole moral e que, também,
as desigualdades econômicas, sociais e políticas afetam a capacidade legal dos indivíduos e
garantem a desigualdade perante a lei” (idem, p. 42).
Sobre o medo e a ocultação da vulnerabilidade, o bioeticista Márcio dos Anjos salienta
que:
É importante ter presente que atualmente, em nossa cultura Entusiástica do poder,
tem-se certo medo da vulnerabilidade e Se procura ocultá-la,Há o medo das
imperfeições (...) e lidamos com certa dificuldade ;com a tolerância à imperfeições
funcionais perdeu-se sobretudo a experiência de lidar com a morte(...) É certo que
nossa participação nesta cultura de poder e medo é variável mas de que se ter em
conta de que a cultura é um grande ambiente que nos possibilita a afirmação de
significados e em grande parte, também nos condiciona, A ocultação da
vulnerabilidade aparece também por meio da ficção de autonomia.Afirma-se a
capacidade de livre escolha,quando esta na verdade não existe ou é bastante limitada
(ANJOS, M. F., 2006, p. 182).
A consciência de nossa vulnerabilidade como sujeitos autônomos é fundamental para
que se compreenda o próprio exercício da autonomia. A vulnerabilidade e a autonomia,
embora sejam epistemologicamente distintas, precisam ser entendidas como complementares,
isto é, como condição estrutural do sujeito transcendental, consciente dos eventos e filiado à
ética da resistência.
O sentimento de poder e de autonomia, com uma correspondente diminuição de
espaço para se admitir a fragilidade e a vulnerabilidade, aumenta a susceptibilidade à cultura
da indiferença.
Os cenários da vulnerabilidade que permeiam o mundo globalizado, inflado de poder,
podem ser, entretanto, evidenciados por uma consistente reflexão ética, visto que poder e
vulnerabilidade caminham juntos.
Um primeiro cenário destaca-se no próprio fascínio pelo poder tecnológico. O termo
fascínio visa aqui sugerir uma empolgação que dificulta a percepção dos limites e o
reconhecimento das vulnerabilidades. Com a perda dos limites, emerge uma “sociedade de
riscos”. A humanidade, inebriada de Poder, não mede os riscos que corre. Para Cárdia, o
risco:
Não cristaliza mais ou cada vez menos uma concepção ontológica da
incompletude humana. Ele não é mais o sinal irredutível da impotência fundamental
do homem em face de um mundo que o ultrapassa: ele é, ao contrário, percebido
como o preço a pagar do poder sobre este mundo (CARDIA, 1994, 15-58.).
Um segundo, que vem exemplificar a vulnerabilidade desse momento sócio-cultural,
transparece nas formas como se distribuem sociologicamente o poder de produção e de
consumo no mundo globalizado. Vivemos hoje a maior das concentrações de poder
conhecidas na história da humanidade, tanto em termos de produção como de consumo. Ao
lado do desenvolvimento vertiginoso, experimentamos enormes iniquidades. Assim, existem
nações, e quase que continentes inteiros, extremamente pobres, populações famintas e
morrendo antes do tempo por baixíssimas condições de vida, enquanto ao lado pode estar
outra com índice altíssimo de qualidade de vida.
Essas assimetrias de poder instalam-se na estruturação da sociedade e dificultam o
vigor da reflexão ética, pois significam, de algum modo, a legitimação das iniquidades. As
dívidas (internas e externas) dos países é um bom exemplo.
Assim como Copérnico rompeu com a arrogância de conceber a Terra como centro do
cosmo, também Freud colocou em crise as suposições em torno de tomadas livres de decisões.
O domínio científico sobre as vulnerabilidades, além de permitir enfrentá-las, presta-se, ao
mesmo tempo, a explorá-las por quem tem o poder. Em síntese, o próprio avanço das ciências
sugere contar sempre com a dúvida sobre a situação real de autonomias.
Márcio dos Anjos (2006) pondera que alguns filósofos contemporâneos entendem que
a liberdade e a autonomia consistem, antes, em se ter controle sobre as emoções e os desejos,
e não de raciocinar independentemente deles. Mas, contrapõe o autor, persiste a questão mais
profunda do entrelaçamento entre razão e motivação moral: “quando agimos, procuramos
produzir um resultado com nossa ação. Nosso desejo ou interesse num resultado explica
porque agimos. Sem o desejo, interesse ou intenção, fica difícil ver porque a ação é racional”
(ANJOS, 2006, p. 179).
Em outros termos, na racionalidade estão os desejos e interesses. Uma saída para este
problema, é denominada autonomia procedimental (FRANKFURT apud ANJOS, p. 180). Tal
posição diverge de Kant quando este coloca a existência da autonomia quando o raciocínio
do sujeito é imparcial e independente de desejos, emoções e inclinações. Anjos afirma, ao
contrário, que se uma autonomia procedimental quando a pessoa avalia criticamente suas
crenças e desejos, e os endossa sem excessiva interferência de autoridade externa. Embora
essa proposta procure compatibilizar a autonomia com as motivações morais, “falha em
garantir algum conteúdo para a moralidade, ou requer tais motivos”. A autonomia relacional é
uma proposta alternativa, que associa o fato de sermos seres sociais e, como tais,
desenvolvemos a capacidade para a autonomia por meio de interações sociais. Entende-se a
autonomia no sentido de que nossa capacidade, no exercício da autonomia, depende da
habilidade em entrar na variedade de relações e mantê-las. A proposta realça dois tipos de
relações importantes para a construção da autonomia:
a) as relações interpessoais, que se tornam educativas para a ação independente e
adulta, bem como as relações institucionais, que garantem liberdade política, informação,
educação, saúde, recursos econômicos e uma proteção básica contra uma variedade de
ameaças;
b) o contexto sócio-cultural, enquanto ajuda a construir o modo atual de definirmos a
autonomia e o valor que ela tem para nós. Nossa autonomia é, de algum modo, paradoxal,
pois, pensada em sua construção social, a independência se faz por intermédio da
interdependência com outras pessoas.
Outro aspecto está numa espécie de autocrítica kantiana, resgatada por Bruno Forte,
(2006), que enfatiza as dificuldades de Kant em combinar a autonomia da razão com o
problema do mal. Em sua análise, admite no próprio ser humano um princípio de bem e um
princípio de mal, em relação aos quais se exige a luta pela “libertação do domínio do princípio
mal”: “(...) Todavia, o ser humano permanece sempre exposto aos ataques do princípio mal e,
para conservar a própria liberdade, constantemente ameaçada, é necessário que se mantenha
sempre e pronto para a luta” (KANT, I., apud FORTE, B., 2006, p. 66).
O que aqui se aponta como mais importante é que Kant admite, dessa forma, a
vulnerabilidade ética da autonomia na sua própria condição:
Assim como nos é impossível apontar a causa de uma propriedade fundamental
pertinente à nossa natureza, do mesmo modo somos absolutamente incapazes de
explicar porque em nós este mal corrompeu diretamente a máxima suprema, embora
este mal seja um ato totalmente nosso (ibidem, p. 71).
Podemos acrescentar a estas considerações um aspecto que menos tem a ver com a
autonomia, no sentido kantiano, e mais com o uso que dela se faz. Na verdade, trata-se de uma
distorção do pensamento kantiano, ao transformar o exercício da autonomia numa decisão
sem necessidade de racionalidade crítica. Entende-se a liberdade para decisões morais
autônomas simplesmente como liberdade de tomar decisões. Em tal contexto, o pretenso
diálogo das razões de cada um não passa de mera curiosidade sobre os sentimentos uns dos
outros. Anjos acentua que “o individualismo parece estar na base desta concepção. Leva a
esquecer que a subjetividade é, diante da razão, a ‘mediação do encontro’ com outras
subjetividades” (ANJOS, op. cit., p. 129).
É um pressuposto para o diálogo e não o simples refúgio intocável do sujeito Sob a
concepção de autonomia se subentende frequentemente o direito de as pessoas tomarem
decisões simplesmente embasadas em suas subjetividades.
No máximo, é exigido que as decisões não molestem a tranquilidade do outro. A
sociedade passa a viver um ethos do individualismo que pulveriza a razão da responsabilidade
interpessoal: domestica a capacidade de indignação diante das iniquidades, reduz a ética a
aspectos defensivos e inibe seu dinamismo afirmativo e criativo.
O termo vulnerabilidade é derivado do Latim (vulnus: ferida) e, de modo geral,
expressa, ao referir-se a pessoas, a possibilidade de alguém ser ferido. Em sua conceituação
ampla, a vulnerabilidade pode ser entendida como condição humana persistente (enquanto
somos limitados e mortais), e como situação dada (nas quais limites e “feridas” se verificam
concretamente). A vulnerabilidade pode referir-se a toda humanidade, a grupos sociais
concretos e a indivíduos. Por referência à ão, pode, simplesmente, estar assimilada na vida
relacional ou estar exposta e, neste caso, estar sendo defendida ou explorada nas relações
(quando a vulnerabilidade se torna vulneração). Por sua qualidade, pode ser moral, ética ou
operacional, quando se refere à falta não deliberada de condições pessoais ou ambientais para
o viver como sujeitos.
Como se percebe, o termo torna-se útil para salientar a “possibilidade de ser ferido”,
para provocar a identificação das situações em que isso se e para chamar atenção sobre o
modo como lidamos eticamente com tais situações.
A ocultação da vulnerabilidade aparece por meio de uma ficção de autonomia. Afirma-
se a capacidade de livre escolha, quando esta, na verdade, não existe, ou é bastante limitada. A
ilusão da autonomia desafia, particularmente, a formação de uma consciência crítica. Por ela
se podem discernir os processos individuais e sociais pelos quais se dá a construção de
sujeitos livres.
A ocultação da vulnerabilidade é igualmente perversa na ocultação de suas causas
sociais. De fato, expressa-se em vítimas e, por isso mesmo, pode transformar-se muito
rapidamente em acusação das injustiças no uso do poder. A tentativa de ocultar as causas da
vulnerabilidade leva a fazer da autonomia um discurso de responsabilização das vítimas por
suas próprias tragédias.
Em escala política, o discurso da autonomia aprisiona grupos-sociais e nações inteiras
às suas próprias condições de pobreza. Como dos Anjos sustenta, “a vulnerabilidade é
suspeita da própria autonomia” (ibidem, p. 173).
A vulnerabilidade é um conceito necessário para que o próprio conceito de autonomia
possa se dar sob ótica da razão crítica. Em outros termos, somos seres sociais por condição e,
isoladamente, não subsistimos afirmação desdobrada por dois filósofos franceses
agnósticos, que vêem nela as exigências de um pensamento ético: “O respeito ao Outro é,
dessa forma, um valor absoluto, e não relativo. É até mesmo um valor ontológico, pois eu
tenho necessidade do Outro para eu ser eu mesmo, e ele tem necessidade de mim para ser ele”
(KAHN & LECOURT, 2004, p. 38.). E Dominique Lecourt completa dizendo:
O que importa é que cada um reconheça em si mesmo a parte que pertence aos outros.
Tudo o que vai no sentido deste reconhecimento favorece, na prática e na teoria, a
dinâmica transindividual não digo inter-individual que, unicamente, pode
contrabalançar hoje os efeitos deletérios do isolamento dos indivíduos (idem, p. 40).
O reconhecimento da própria vulnerabilidade é ponto de partida para uma construção
maior, possibilitando o encontro construtivo com o Outro e os primeiros passos em busca da
superação das fragilidades. Nesse reconhecimento, dar-se-á uma realidade aparentemente
paradoxal, formulada por Paulo de Tarso, na segunda carta aos Coríntios (12,9-10): “Quando
sou fraco, então é que sou forte”.
No próximo capítulo, faremos considerações sobre o sujeito fundado pós o evento de
11 de setembro, suas interações sociais e enfrentamento dos estigmas e das fragilidades
humanas diante da indiferença. Analisaremos o poder da impotência, circunscrevendo os
reflexos do 11 de setembro na sociedade global. E traçaremos um perfil biográfico, político e
filosófico do atual presidente norte americano Barack Hussein Obama.
CAPÍTULO 6 – A CULTURA DA INDIFERENÇA
Mas é nossa responsabilidade nos reunirmos em nome do mundo que buscamos um
mundo no qual os extremistas não ameacem nosso povo; (...) um mundo no qual
israelenses e palestinos vivam seguros em seu próprio Estado; (...) um mundo no qual
os governos sirvam aos cidadãos, e os direitos de todos os filhos de Deus sejam
respeitados. Esses são interesses mútuos. Esse é o mundo que buscamos. Mas o
poderemos alcançar juntos. (...) Todos partilhamos esse mundo apenas por pequena
fatia de tempo. A questão é se consumiremos esse tempo dedicados ao que nos
mantém separados, ou se nos comprometeremos, num esforço sustentado, para
encontrar uma base comum a todos. (...) É mais fácil começar guerras do que pôr-lhes
ponto final. Mais fácil culpar os outros, do que olhar para dentro; ver o que é diferente
em alguém, do que ver o que temos em comum. (...) regras que regem, no coração
de todas as religiões, que façamos aos outros como queremos que nos façam a nós.
Essa verdade transcende nações e povos uma crença que não é nova; que não é nem
branca nem negra nem mulata; que não é cristã, muçulmana ou judia. Uma crença que
pulsava no berço da civilização, e que ainda pulsa no coração de bilhões. É uma fé em
outro povo, e é o que me trouxe hoje aqui. Temos o poder para fazer o mundo que
buscamos, mas só se tivermos coragem para produzir um novo começo, sem perder de
vista o que está escrito. O Santo Alcorão diz: O humanidade! Homem e mulher te
criamos; e em nações e tribos, para que se conheçam uns os outros”. O Talmud diz:
“A Torá promove a paz”. A Bíblia Sagrada diz: “Abençoados os que fazem a paz, pois
serão chamados filhos de Deus”. Os povos do mundo podem viver juntos e em paz.
Essa é a visão de Deus. Agora, esse tem de ser nosso trabalho aqui na Terra.
Obrigado. Que a paz de Deus esteja com vocês. Em árabe, no orig.: “Que a paz esteja
contigo.
Barack Hussein Obama, Discurso na Universidade do Cairo, 4/6/20/09.
6.1 FRÁGEIS ENTRE OS FRÁGEIS
Circunscrever uma ideia do humano, em termos analíticos, é condição necessária para
dizer daquilo que nos destroi, daquilo que nos mantêm vivo, daquilo que nos irmana e separa.
No primeiro capítulo de sua obra intitulada Política, publicada originalmente em 1603,
Johanes Althussius, ao falar das acepções gerais da política, apresenta uma contundente
concepção da condição humana.
(...) O Homem nasce privado de toda assistência, desnudo e inerme, como se houvesse
perdido todos os seus bens em um naufrágio, fosse lançado nas desgraças dessa vida
e não se sentisse capaz de, por seus próprios meios, alcançar o seio da mãe, suportar a
inclemência do tempo, nem mover-se do lugar aonde foi arremessado. Sozinho nesse
começo de vida terrível, com tanto pranto e lágrimas, seu futuro se afigura uma
ingente e miserável infelicidade. Carente de todo o conselho e auxílio de que, não
obstante, precisa, ele não tem como ajudar a si próprio senão com a intervenção e o
socorro de ambos (ALTHUSSIUS, 2003, p. 103-104)
O autor associa a viabilidade existencial dos náufragos-humanos à necessidade do
outro, do olhar ético do outro. Claramente, o laço social é apresentado como um resgate dos
naufrágios da vida.
A escritora e crítica cultural americana Susan Sontag (1933-2004), em seu livro Diante
da dor dos outros (2003), levanta questionamentos sobre a representação de imagens de
violência e reflete sobre os meios de difusão e recepção das imagens de guerra e do
sofrimento a que somos submetidos diariamente pela mídia cultural. A autora investiga o uso
e as funções que as imagens de guerra desempenham em diferentes meios e analisa suas
possíveis significações. O entrelaçamento desses aspectos leva à compreensão de como as
imagens podem denunciar as mais variadas formas de sensações, incluindo violência,
desprezo, apatia, medo, insensibilidade e indiferença.
A obra incita a descobrir quais sentimentos e sensações os seres humanos podem
vivenciar através das imagens de fotos de guerra, que mostram corpos lacerados de adultos e
crianças, e que despertam repugnância, a ponto de sentirmos vontade de não vê-las, de as
rejeitarmos. As fotos mostram “como a guerra despovoa, despedaça, separa, arrasa o mundo
construído” (SONTAG, S., 2003, p.12).
As imagens de 11 de setembro, por exemplo, são cenas chocantes que mobilizaram
milhões de espectadores. O ataque terrorista foi impactante e representativo por atingir a
nação mais forte e invunerável, sob o ponto de vista militar e econômico, expondo as
fragilidades da maior democracia do planeta. Pessoas do mundo todo ficaram estarrecidas
diante das notícias e imagens transmitidas ao vivo, procurando entender quais os motivos para
tanto horror.
Dentro do Word Trade Center, o desespero tomou conta de muitas pessoas; algumas
que estavam nas proximidades dos primeiros andares atacados se jogaram pelas janelas, na
tentativa de escaparem de uma morte dolorosa. Entre as chamas e a fumaça, corpos caíam a
todo instante, diante da impotência de milhares de presentes no local e de milhões de
expectadores televisivos.
As câmeras mostravam os prédios pegando fogo, e os apresentadores das emissoras de
televisão tentavam explicar o que parecia inexplicável. A cidade foi tomada por espessa
nuvem de poeira, houve grande alvoroço e pessoas corriam para fugirem da catástrofe
tramada pelo terrorista fundamentalista saudita Osama Bin Laden (BURKE, 2007, p. 40), que
revelou ao mundo a fragilidade do mais poderoso de todos os países.
As cenas jamais poderão ser esquecidas; foram por demais chocantes e repudiadas
pelos principais governantes, de diversas nações. As mortes de milhares de civis, as pessoas
jogando-se das janelas, o fogo tomando conta rapidamente das torres gêmeas, os rostos
cobertos pela poeira, num ataque como aquele, reforçaram o sentimento de solidariedade, ao
mesmo tempo em que causaram repúdio quanto às atrocidade praticadas; enfim, dentro de
cada um de nós, formou-se um repertório das cenas visuais mais horrendas.
As imagens mostradas em tempo real captaram todo o drama que as pessoas estavam
sofrendo: as imagens de destruição – retratadas, seja pelas cenas dos edifícios em chamas, seja
pela fumaça de contornos satânicos, seja pelos corpos irreconhecíveis no chão mostraram,
por um lado, a realidade nua e crua, sem máscaras, do que o ser humano é capaz de fazer
quando assim o deseja e, por outro, sua fragilidade e fraqueza ou “sua essência de vidro”, nas
palavras do escritor francês Jean-Claude Carrière (1942) (CARRIÈRE, 2007, p. 10).
O atentado ao World Trade Center, no dia 11 de setembro de 2001, foi classificado de
“irreal”, “surreal”, “como um filme”, em muitos dos primeiros depoimentos das pessoas que
escaparam das torres ou que viram o desastre por perto. Sontag (2003) indaga sobre o sentido
e a finalidade dessas imagens, fazendo uma análise sobre as motivações dos conflitos e
questionando o comportamento individual e coletivo da população diante de certas
barbaridades, e a ligação entre todos os que foram testemunhas do evento. Aquelas imagens,
através das quais são passados os horrores dos conflitos, de tal forma se presentificaram que
atingem o ethos humano.
A falsa sensação de segurança, incluindo-se a ideia sobre o que é real ou não, fica
abalada diante da avalanche de imagens chocantes, que coloca o homem diante dos seus
medos, preconceitos e estigmas. Porém, essa visão distanciada dos fatos não nos exime de
saber de sua existência, como afirma Sontag:
De fato, muitos usos para as inúmeras oportunidades oferecidas pela vida moderna
de ver a distância, por meio da fotografia a dor de outras pessoas. Fotos de uma
atrocidade podem suscitar reações opostas. Um apelo em favor da paz. Um clamor de
vingança. Ou apenas a atordoada consciência, continuamente reabastecida por
informações fotográficas, de que coisas terríveis acontecem (SONTAG, 2003, p. 16).
De acordo com o filósofo brasileiro Lima Lins (1955), em sua obra A indiferença pós-
moderna (2006), a época atual é marcada pela busca de um sonho revolucionário que traga
modificações e mude a fisionomia do planeta; porém, nosso mundo globalizado está
vinculado à ideia de inércia, apatia, insensibilidade moral, e o autor usaram o termo “dar os
ombros”, para representar a marca gestual dos nossos tempos de indiferença. O próprio
conceito de tempo foi modificado, o que importa é o tempo presente e, mais ainda, a rapidez e
fluidez do momento. Durante o século XX as atividades econômicas de produção tornaram-se
o centro de nossos esforços; consequentemente, estabeleceu-se um distanciamento de nós
mesmos, o que refletiu diretamente nos relacionamentos sociais, despersonificando o homem,
naquele momento os seres humanos eram considerados pelo que produziam e não por quem
realmente eram.
Hoje, o indivíduo está naufragando em si mesmo, chegando ao ápice de seu
individualismo.
Um indivíduo indiferente não sairia de seus embaraços para olhar e interferir no
exterior. Voltado para um “euque se dobraria ao peso da angustia, não possuiria
disposição para mergulhar nas dificuldades alheias, por mais agudas que se
mostrassem. A tal ponto permaneceria anestesiado que não perceberia aquilo que o
ameaça em família, na pracinha ou no meio da multidão, partindo de um conhecido ou
de um estranho (LINS, 2006, p.8).
Quem seria esse novo indivíduo? Um indivíduo incapaz de sentir e de ser sentido?
Que homem surgiu no mundo contemporâneo, cujo olhar estaria focado em si próprio e traria
em si a marca desse novo tempo: a indiferença do outro? Além de não sentir, ele não vê, não
enxerga o que está em sua presença, como pontua o autor:
Ver impõe, às vezes, uma dor insuportável. Por instinto de defesa, preferimos
substituir a realidade pela fantasia, o balanço pela versão ideológica, mesmo quando
sentimos que se trata de um fragoroso engano, vide, novamente, a sociedade alemã e o
holocausto (idem, p. 17).
Quando cita o holocausto como uma forma de entender as atrocidades, o autor assinala
que o indivíduo é capaz de cometer crimes sem pensar. E como o próprio mesmo coloca:
O resultado se reflete no olhar, num exercício do ver sem enxergar, como se um
dispositivo da lucidez abrisse e fechasse as comportas da emoção de acordo com as
circunstâncias (ibidem, p.112).
Indivíduos perdidos no tempo, vagando em um cotidiano célere e caótico, aos poucos
vão tornando-se alheios ao presente, como que desconectados de si mesmos, náufragos de si.
Para o filósofo Lima Lins,
Sem um futuro onde fixar os desejos, ficamos com os resíduos do passado. Com ele
recuperamos fragmentos de esperança, mas também as formas de opressão que,
congeladas, cristalizam as formas da experiência. Um processo de acomodação toma
conta dos hábitos. Sem notar, a impressão de que usufruímos o possível, embora não o
ideal, neutraliza a rebeldia no nascedouro, mesmo onde deveríamos conservá-los. O
resultado ergue um ingrediente de frieza com que, nos atritos do cotidiano, levamos
para casa a imagem de nossos semelhantes (LINS, op.. cit., p. 11).
Como o mundo e os acontecimentos são maiores do que as pessoas, o ritmo da
existência se consagra, supera as opiniões. De um modo ou de outro, imagina-se, a maioria
concorda com o status quo e não deseja mudá-lo.
O que dizer, no entanto, das sociedades atraentes, aquelas nas quais o insatisfatório se
equilibra com o sedutor e não estremece, não abala ideologias? O espírito de acomodação daí
proveniente aceita sem reclamar pressões que, por outro lado, em outros tempos, explodiriam
em conduta.
Note-se que deixar de perceber a crueldade é deixar de denunciá-la, aceitando-a como
uma das (inelutáveis) condições. Estamos a um passo, agindo assim, do holocausto,
experimentado antes e anunciado (uma vez que dele fomos capazes) em proporções maiores,
se não terminais.
A indiferença: aquela insensibilidade frente a algo que nos deixa parados, em estado
de não-dor, de não-sentir. Falar em indiferença não remete a extremos, a uma guerra,
maremoto social. Enquanto estado d’alma, passa-se no interior de um tecido, como
uma doença que invadisse e consumisse o organismo (ibidem, p.17).
Saber que coisas horríveis acontecem em várias partes do planeta e que ninguém fez
nada para impedir ou minimizar a dor dos outros revela a face mais cruel da cultura da
indiferença: o aumento das distâncias entre nós, o afrouxamento do ethos e a pérfida criação
de estigmas sociais.
Já faz tempo que os instrumentos utilizados nas guerras deixaram de ser apenas
“aparatos bélicos”; hoje, são empregadas técnicas de propaganda e guerras psicológicas que
visam ao controle do pensamento dos povos.
E é relativamente fácil inculcar “pré-conceitos” nas pessoas, basta espalhar o medo e
manipular o inconsciente social da população mundial (FROMM, 1992, p. 15).
A manipulação, que atualmente parece ser a mais perigosa é a que associa a ideia de
terrorista ao povo do Oriente Médio, estigmatizando todos os mulçumanos. Também na
Segunda Guerra Mundial, Adolf Hitler utilizou-se de técnicas da propaganda, com tamanha
maestria macabra, que foi capaz de convencer o seu povo de que os judeus, os ciganos e
outros eram uma espécie de subraça que não merecia permanecer sobre a terra e que nem
mesmo algum sentimento de piedade lhe era cabível.
Será que não aprendemos a lição? A mensagem que a mídia passa é a de que a maioria
do povo do Oriente Médio é extremamente violento, inculto, composto de fanáticos religiosos,
mas isso é, no mínimo, irresponsável, e estigmatizante.
O termo “estigma” indica um atributo depreciativo, que pode ser visível ou imputado
ao outro pelos que se consideram “normais”. Em casos como raça, religião, postura político-
ideológica, classe social etc., o estigma expressa uma postura não apenas de animosidade, mas
também de percepção ideológica valorativa de quem se considera superior ou normal. O outro
é categorizado como não natural, fora do comum.
O estigma também pode ser uma defesa assumida pelo estigmatizado, caso ele adote a
postura de vítima e procure, até, tirar vantagens da situação. Muitas vezes, o estigma funciona
como um elemento subjetivo que protege o indivíduo e justifica seus fracassos pessoais,
determinados não necessariamente pela condição pela qual o estigmatizam.
Outros adotam o estigma: assumem-se como normais; os outros é que não seriam
plenamente humanos. Para Goffman, “esta possibilidade é celebrada em lendas exemplares
sobre os menonistas, os ciganos, os canalhas impunes e os judeus ortodoxos” (GOFFMAN,
1982, p. 16).
Em muitos casos, a tendência é que os estigmatizados agrupem-se, o que lhes o
sentimento de pertencimento a uma comunidade; os iguais defendem-se e estabelecem formas
de reação. Por compartilharem o estigma, apoiam-se uns nos outros. Mas, há também a
possibilidade de esse apoio vir dos “informados”, que, na definição de Goffman, são:
Os que são normais, mas cuja situação especial levou a privar intimamente da vida
secreta do indivíduo estigmatizado e a simpatizar com ela, e que gozam, ao mesmo
tempo, de uma certa aceitação, uma certa pertinência cortês ao clã. Os “informados”
são os homens marginais diante dos quais o indivíduo que tem defeito não precisa se
envergonhar nem se autocontrolar, porque sabe que será considerado como uma
pessoa comum (idem., p. 37).
Os informados são as pessoas que trabalham diretamente com os estigmatizados:
enfermeiras, psicólogos, funcionários treinados para agir diante de determinados públicos etc.
Um segundo grupo de informados é composto por aqueles que se relacionam intimamente
com o que sofre o estigma: amigos mais próximos, família, prestadores de serviços etc.
O informado aparece como o normal na relação, ainda que compartilhe o estigma. O
problema é que esta relação é complexa, tanto do ponto de vista do normal quanto do
estigmatizado. O primeiro poderá não conseguir superar a difícil tarefa de ver o outro como
uma pessoa tão comum quanto ele, de forma que o estigma não lhe tire o caráter de humano e
o diferencie do gênero. Por outro lado, ao compartilhar o estigma, no caso da família, por
exemplo, o sujeito pode não suportar as consequências de também ser estigmatizado.
Quem sofre o estigma também terá a difícil tarefa de evitar o isolamento autoprotetor e
não adotar uma postura agressiva e sectária diante do outro que o estigmatiza. Como lembra
Goffman:
O estigmatizado pode, também, questionar abertamente a desaprovação semioculta
com a qual ele é tratado pelos normais, e esperar aapanhar o “informado”, que se
autodesignou, como tal, “em falta”, isto é, continuar a examinar as ações e as palavras
dos outros até obter um sinal fugaz de que as suas demonstrações de aceitação do
estigmatizado são apenas na aparência (ibidem, p. 125).
Toda vez que a possibilidade do estigma se faz presente, isto é, quando o indivíduo se
encontra numa situação em que sua aceitação social não é plena, a relação de alteridade é
complexa. Pode ocorrer, por exemplo, que não lhe imputemos o estigma. Mas não nos
iludamos: o signo que tal pessoa incorpora, como sua condição étnica, induz à estigmatização
social, ainda que na relação individual isto não ocorra.
Quando ocorre o estigma, existe um paradoxo: ao mesmo tempo em que
estigmatizamos, exigimos do estigmatizado que se comporte de maneira a demonstrar que o
atributo originário do estigma não significa uma carga pesada nem que o torna diferente de
nós. Por outro lado, impomos um distanciamento que assegure que isto é verdadeiro:
Em outras palavras, ele é aconselhado a corresponder naturalmente, aceitando com
naturalidade si mesmo e aos outros, uma aceitação de si mesmo que nós fomos os
primeiros a lhe dar. Assim, permite-se que uma aceitação-fantasma forneça a base
para uma normalidade-fantasma (ibidem, p. 133).
Em suma, por mais que os normais ou informados se recusem a ver no outro um ser
cuja humanidade se diferencie por algum atributo qualquer, isto não anula o estigma, que se
manifesta em relações intraindivíduos, marcadas pelo preconceito e descrédito em relação ao
outro. Segundo Goffman:
A situação especial do estigmatizado é que a sociedade lhe diz que ele é um membro
do grupo mais amplo, o que significa que ele é um ser humano normal, mas também
que ele é, até certo ponto, “diferente”, e que seria absurdo negar essa diferença. A
diferença, em si, deriva da sociedade, porque, em geral, antes que uma diferença seja
importante ela deve ser coletivamente conceptualizada pela sociedade como um todo
(ibidem, p. 134).
Ainda que o fato de uma pessoa ser negra ou pertença à religião judaica ou muçulmana
não tenha a menor importância em si, no sentido que a vemos como um ser humano igual, o
estigma já está socialmente dado e não podemos desconsiderá-lo. O mesmo vale para o
estigmatizado. A alteridade intra e extragrupo é uma componente da sua identidade.
Em geral, adotamos estigmas. Assim, alienamos o humano do seu SER e definimo-lo
pela sua identidade/singularidade. Se o estigma se manifesta nas relações entre os indivíduos,
resta-nos analisar a relação entre os indivíduos e os grupos, ou seja, os indivíduos reagem ao
grupo e vice-versa. Se há uma interação entre ambas as esferas e se o indivíduo consegue
manter sua autonomia em relação ao grupo ou é submetido a este.
Goffman ajuda a responder estas questões. Seu ponto de partida é o conceito de face:
O termo face pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa
efetivamente reclama para si mesma através daquilo que os outros presumem ser a
linha por ela tomada durante um contato específico. Face é uma imagem do self
delineada em termos de atributos sociais aprovados (ibidem, p. 76).
Vivemos como se fôssemos atores cujo palco é a vida. O objetivo é obter efeito sobre
os outros, resguardar-se nas relações, controlar o ambiente, não colocar a face em risco.
Tendemos à construção de imagens (papéis) que se adaptem aos diferentes contextos. Na
esfera pública representamos vários papéis conforme as necessidades circunstanciais. Na
esfera privada é como se fôssemos outra pessoa, outro EU. Em ambas dissimulamos. O
indivíduo é cindido de acordo com as esferas da sua atuação.
Em outras palavras, não podemos ser o EU genuíno sob pena de sermos ridicularizado
ou cairmos em desgraça no grupo, ou seja, de perdermos a face. certas regras e
procedimentos que devemos seguir: para salvar a face é preciso adequar-se à formalidade e à
informalidade do grupo. Nos termos de Goffman, na ânsia da segurança, de salvar a face,
representamos o tempo todo.
Essas dinâmicas não dependem apenas da vontade individual; resultam de
determinações sociais:
A face dos outros e a própria face são construtos da mesma ordem; são regras do
grupo e a definição da situação que determinam a quantidade de sentimento ligado à
face e como esse sentimento deve ser distribuído entre as faces envolvidas (ibidem, p.
76-77).
Se, como afirma Goffman, estamos submetidos à coerção do grupo, o que ocorre
quando nos rebelamos ou não nos identificamos com o grupo ou não obedecemos a suas
regras? No extremo, corremos o risco do isolamento, da exclusão do grupo. É simples: o
grupo também tem determinadas expectativas quanto aos seus membros, e caso esses não
correspondam às expectativas, descarta-os. Os atributos do grupo e sua relação com a face
transformam seus membros nos próprios carcereiros.
“Trata-se de uma coerção social fundamental, mesmo que todo homem goste de sua
cela”, afirma Goffman (ibidem, p. 81). O fundamento para o autoaprisionamento em torno de
uma imagem determinada pelo grupo e pela necessidade de salvar a face está na própria
estrutura da sociedade atual, cada vez mais competitiva. Submeter-se ao grupo é essencial
para a sobrevivência e/ou ascensão social. Talvez esta seja a melhor forma de definir o que
Goffman chama de face positiva.
Ao longo da sua exposição, Goffman deixa subentendida a ideia de que, ainda que
existam diferenças culturais, todos são iguais em todos os lugares, sobretudo, porque temos a
mesma natureza humana universal. Se somos tão iguais, também nos igualamos na
necessidade de dissimular, de adotar e representar papéis conforme as circunstâncias e as
exigências do grupo. Isso seria uma deformação do indivíduo; afinal, como explicar os
preconceitos, a submissão dos indivíduos à coerção do grupo, se somos todos membros de
uma mesma natureza humana universal?
O fato de sermos negros ou não, feminino ou masculino, heterossexual ou
homossexual, judeus ou cristãos, não deveria ter tanto peso nas relações dos indivíduos entre
si e perante os grupos sociais.
Se as pessoas têm uma natureza humana universal, não é a elas que se deve observar
para explicá-la. Deve-se, em vez disso, observar o fato de que qualquer sociedade, se
quiser ser uma sociedade, deve mobilizar seus membros como participantes auto-
reguladores em encontros sociais. O ritual é uma forma através da qual se pode
mobilizar o indivíduo para este propósito. Ensina-se o indivíduo a ser perceptivo, a ter
seus sentimentos ligados ao self através da face, a ter orgulho, honra e dignidade,
consideração, tato e uma certa aplomb. Estes são alguns dos elementos de
comportamento que devem ser embutidos na pessoa, caso se queira fazer qualquer uso
da mesma como um integrante, e são esses elementos a que as pessoas, em parte, se
referem quando falam de uma natureza humana universal (ibidem, p. 107).
O desconhecido é o estrangeiro de outro país, de outra língua, de outra religião; é o
outro que está também em nós. A psicanalista búlgaro-francesa Julia Kristeva (1941) salienta
que o estrangeiro é, na verdade, o outro que habita em nós, um duplo de nós mesmos. Em suas
palavras: “O estrangeiro habita em nós, ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que
arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia”
(KRISTEVA, 1994, p. 9).
É uma resposta possível que levanta novas questões e indica novos caminhos.
6.2 A TOTALIDADE DO EU DEFININDO IDENTIDADE, ALTERIDADE E
SINGULARIDADE
É na relação entre o EU e o OUTRO que se constrói a identidade do EU, isto é, cada
indivíduo se completa e se efetiva no relacionamento com os que estão a sua volta, em seu
convívio. Segundo o psicanalista escocês Ronald Laing (1927-1989), “não podemos fazer o
relato fiel de uma pessoa sem falar do seu relacionamento com os outros” (LAING, 1986, p.
78).
Mas não se trata de indivíduos abstratos, isolados do contexto social; uma estrutura
sócio-político-econômica que interage e influencia a efetivação da identidade. O filósofo
francês Pierre Felix Guattari (1930-1992) e a psicanalista brasileira Suely Rolnik (1947), ao
deslocarem o foco da sua análise para a micropolítica, oferecem uma contribuição importante
para a compreensão das relações entre os indivíduos e as estruturas sócio-econômicas. De
início, os autores diferenciam identidade e singularidade, conferindo à primeira um conceito
existencial e à segunda um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros
de referência, que podem ser imaginários (GUATARRI & ROLNIK, 1986, p. 68).
Enquanto a identidade diz respeito ao reconhecimento, a singularidade articula todos
os elementos que costumeiramente constatamos quando definimos a identidade do indivíduo:
sentimentos, desejos, atitudes, considerando-se determinados contextos.
A singularidade não é vista apenas como “sinônima” de “diferente”; é mais ampla. Se
afirmo “sou fulano e estou aqui”, apenas me identifico. A singularidade é muito mais
complexa do que a afirmação de “quem sou eu”; ela resulta do cruzamento das várias formas
do meu SER, em relação às pessoas e às estruturas que me cercam. Nas palavras de Guattari
& Rolnik, “a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de
existir por um só e mesmo quadro de referência identificável” (ibidem, p. 68-69).
É interessante observar que a identidade está relacionada a processos de identificação,
a partir da simples afirmação do nome próprio até a sujeição a procedimentos policiais,
burocráticos, documentais etc.
Tais formulações são um convite à reflexão crítica sobre a complexidade do real e do
lugar da subjetividade, por se referirem tanto à dimensão sócio-econômica, quanto à das
relações entre os indivíduos, ou seja, dizem respeito a processos de singularização, marcados
e consubstanciados na subjetividade capitalista. Temos ainda de considerar a relação entre os
sujeitos e as instituições, cujo caráter capitalista permeia a singularidade e determina a
subjetividade. Com efeito, a subjetividade burguesa envolve todos os aspectos da vida social,
em suas esferas econômicas, sociológicas, antropológicas, privada e pública, individual e
coletiva.
Até que ponto é possível escapar da subjetividade capitalista, arraigada no ser
humano? Se o “inimigo” se infiltra em todos os interstícios da sociedade, até que ponto a
crítica ao status quo não se resume à retórica? Qual a exata medida da coerência se
escondemos, no e pelo discurso pretensamente revolucionário, o mais desvairado e pervertido
desejo de dominar, de controlar o poder, de submeter coisas e pessoas aos desígnios
burocráticos e particularistas? Em suma, será possível escapar à subjetividade capitalista?
São perguntas necessárias para delimitar claramente o ser contraditório que somos na
pós-modernidade. Se tivermos consciência de que somos incompletos, justamente pela
condição humana (só os deuses não erram e, mesmo assim, temos divindades que representam
o bem e o mal), o risco da apologia ou do maniqueísmo é menor.
Essa reflexão teórica permite relacionar o indivíduo e as instituições que compõem a
estrutura sócio-econômica da sociedade, além de pensar o micro e sua relação com o macro.
Se, como afirmam Guattari & Rolnik, “a questão da micropolítica é a de como reproduzimos
(ou não) os modos de subjetividade capitalista”, torna-se possível apreender as diversas
formas de ser do indivíduo tanto no nível macro quanto no micro (ibidem, p. 21).
Somos determinados pela relação com o meio: transformamos e somos transformados
através da interação; daí, tomarmos como dialética a relação entre o indivíduo e as
instituições. É verdade que a subjetividade capitalista (em outras palavras, seus valores,
ideologia etc.), submete singularidades e influencia práxis; no entanto, não somos apenas
reflexo do meio. Aliás, a capacidade de interação com o meio possibilita condições de
compreendê-lo criticamente e também de transformação e de libertação das suas amarras.
É certo que esse poder é relativo: não escapamos de forma absoluta às artimanhas do
“inimigo”. Do ponto de vista da subjetividade, somos todos burgueses: pensamos e agimos de
acordo com os valores ideológicos que predominam na sociedade e dos quais estamos
imbuídos.
Mais uma vez, o conceito de identidade vem reforçar a teoria: “A primeira identidade
social da pessoa lhe é conferida pelos demais. Aprendemos a ser quem nos dizem que somos”
(LAING, op. cit., p. 90).
Se concordarmos com Laing, devemos indagar sobre quem é o OUTRO que determina
identidades. À primeira vista, parece absurdo determinar-se o EU pelo que o OUTRO pensa
dele. De fato, nossas ações são determinadas na relação com os outros, os quais nos
influenciam ao ponto de desempenhamos papéis diferenciados. Assim, nossa autoidentidade é
fortemente sugestionada pelo que pensamos sobre o que o outro pensa sobre nós. É na
relação com o outro que pode ocorrer a complementaridade.
Essa complementaridade, contudo, nem sempre é genuína. Ela pode ser negativa, no
sentido da anulação do EU em função do OUTRO. Como escreve Laing, “o OUTRO, por
intermédio de suas ações, pode impor ao self uma identidade indesejada” (idem, p. 78).
Guattari & Rolnik (ibidem) vão além; para eles, “identificar” as pessoas pelas
características que as diferenciam é como colocá-las em oposição aos demais.
Terminamos por construir dualidades que se excluem. Assim, definir os indivíduos
pela cor, opção sexual, etnia etc. significa afirmar identidades não necessariamente
complementares (Laing) ou singulares (Guattari & Rolnik).
Assim, é mais apropriado a referência às singularidades, no sentido de que há
processos diferentes (GUATTARI & ROLNIK, op. cit., p. 79).
Afirmar as singularidades implica a ideia de um devir, ou seja, “a possibilidade ou não
de um processo se singularizar” (idem, p.74).
A afirmação étnica, de gênero, opção sexual etc., não é, para eles, “uma questão de
identidade cultural, de retorno ao idêntico”, mas, sim, “uma problemática da multiplicidade e
da pluralidade”. Só pelo processo de singularização será possível as chamadas minorias
romperem com as “estratificações dominantes”: “Toda vez que uma problemática da
identidade ou do reconhecimento aparece em determinado lugar, no mínimo estamos diante de
uma ameaça de bloqueio e de paralisação do processo” (ibidem., p. 77).
Uma forma capaz de evitar esse bloqueio e de impedir que a afirmação da
singularidade, sob determinadas circunstâncias, resulte na “retificação de um devir individual”
seria a micropolítica. “Esta forma singular de conceber a política, a partir das microrrelações,
sem descartar a esfera macroestrutural”, consiste precisamente em “criar um agenciamento
que permita, ao contrário, que esses processos (de singularização) se apoiem uns aos outros,
de modo a intensificar-se” (ibidem, p.79).
Buscamos nos ver como iguais, como portadores de uma mesma identidade humana.
Contudo, por mais que reconheçamos esse ideal igualitário, a problemática se mantém. O que
é ser negro, judeu, mulher ou homossexual, numa sociedade excludente? O negro reconhece-
se como negro, o judeu enquanto tal e assim sucessivamente. Nesse ponto, coloca-se uma
questão: se é possível ver o outro apenas como uma singularidade em detrimento de vê-lo
simplesmente como mais um membro da espécie humana – e se tal reconhecimento evita que
ele se veja como uma singularidade. O não reconhecimento de que o Outro é uma alteridade
singular que se diferencia de mim por diversas características culturais não deveria impedir
que eu o veja como um igual, no sentido de que pertencemos à mesma humanidade.
Na vida real, as respostas nem sempre são positivas. Goffman (1982) mostra como as
pessoas são categorizadas de acordo com atributos que a sociedade estabelece e reconhece
como válidos para que sejamos identificados como normais. Se temos alguma característica
considerada incomum ou antinatural, imputam-nos um estigma.
O negro, o judeu, o pobre, o homossexual, a prostituta, o que tem deficiência corporal
etc. sabem e sentem o que é ser estigmatizado. Com efeito, a palavra “estigma” tem sua
origem entre os gregos, na Antiguidade. O povo que legou à cultura ocidental a filosofia e a
ideia de política democrática usava este termo quando se referia a:
(...) sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de
extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram
feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo,
criminoso ou traidor uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser
evitada, especialmente em lugares públicos (GOFFMAN, op. cit., p. 11).
Na Era Cristã, o estigma se expressa através de sinais corporais, indicativos da graça
divina no indivíduo ou, simplesmente, da presença de um distúrbio físico. A verdade é que a
anomalia corporal, ou uma característica qualquer que o categorize entre os que não são
normais, induz ao estigma. Mas, como escreve Goffman, o termo estigma “é mais aplicado à
própria desgraça do que à sua evidência corporal” (ibidem, p. 13).
6.3 O PODER DA IMPOTÊNCIA
6.3.1 O Poder
Vivemos numa época complexa e paradoxal, onde o desenvolvimento tecnológico de
última geração faz o homem sentir-se onipotente, a priori, para, a seguir, torná-lo impotente.
Instaura-se, dessa forma, o domínio do vazio e da impotência um viver à beira da
insuficiência e da incerteza.
A insuficiência que acompanha o desamparo também é constitutiva da condição
humana. Estamos cientes de que nunca teremos ou saberemos tudo, que algo sempre escapará
do poder de apreensão e compreensão. Informações sobre uma outra “versão” dos atentados
de 11 de setembro, em documentários independentes, assombram na internet, por exemplo,
não importando a veracidade dos fatos, coloca o sujeito diante da impotência de que nunca
saberá toda a verdade; nesse momento, a escolha ética é preciosa, sob pena da indiferença e da
concordância com o jogo brutal da manipulação dos fatos e da opinião pública, para servir a
interesses escusos de um poder avassalador e invisível. Procurar respostas para as motivações
que levaram aos ataques terroristas nas últimas duas décadas impõe um questionamento sobre
as raízes desta ameaça. O habitual pragmatismo norte-americano, abraçado por algumas
nações europeias, prefere “cortar o mal pela raiz”, ainda que isto custe um desmatamento
linear de arbustos, coníferas e de extensas áreas de lavoura. Tudo se justifica para impedir que
algumas plantas carnívoras, escondidas na mata, possam causar mais danos aos povos
“civilizados” do mundo.
O jornalista americano Jason Burke (1967) usa um termo do ex-presidente George W.
Bush que, em resposta ao atentado de 11 de setembro, conclamou a nação dos homens livres a
encurralar esta “gangue de malfeitores” e, para alcançar êxito, usou a propaganda com toda a
sua força. “Políticos dos EUA e do Reino Unido, funcionários do FBI e da CIA, divulgaram
relatórios sobre as responsabilidades pelas atrocidades terroristas nos Estados Unidos em 11
de setembro de 2001, visando a preparar um público relutante para a guerra contra o Iraque”
(BURKE, 2007, p. 36).
Para vencer o medo do desconhecido tribos ancestrais já sabiam que era preciso
nomear o inimigo, desta forma foi atribuído um poder ímpar de organização e logística a Al-
Qaeda, que passou a ser o inimigo público número um de todos os países que precisassem de
alguma justificativa para obter apoio político, financeiro ou militar dos EUA.
Diversos crimes passaram, a partir de 2001, a ser atribuídos a Al-Qaeda e a Bin
Laden, mentor, financiador e estrategista desta rede de terroristas internacionais, dispostos a
destruir a confiança de países invasores no Afeganistão, Arábia Saudita, Bósnia, Argélia e
demais nações muçulmanas que são ou foram alvo de alguma intervenção militar, política ou
cultural nas últimas décadas. Guardando as devidas proporções, há semelhanças entre a
propaganda nazista contra o judaísmo que lhe imputou responsabilidade por inúmeras mazelas
da sociedade alemã, e o papel atribuído a Al-Qaeda pelos países aliados aos EUA no século
XXI. Ambas visaram mudar o foco da sociedade dos seus verdadeiros problemas como falta
de empregos, moradia, mobilidade social, acesso a educação, corrupção, etc.
Segundo Burke, Al-Qaeda, que significa entre outras coisas: base, fundações,
princípios, não é uma organização terrorista pronta para atacar em qualquer parte, comandada
por um líder rico e religioso que, se for eliminado estaremos vivendo em um mundo melhor,
mas sim, um sistema de crenças, uma forma de pensar e interpretar o mundo e seus eventos, a
partir de experiências vividas pelos participantes da militância islâmica, baseada em tradições
que remetem aos primórdios da fé muçulmana.
O crédito de diversas ações terroristas atribuído a Bin-Laden estaria longe de ser
merecido, apesar da sua participação na vitória dos Mujahedin afegãos sobre os invasores
soviéticos, houve, entre seus pares e colaboradores importantes divergências sobre métodos,
crenças políticas e religiosas. O que a sua personalidade enigmática tentou a partir de 1996 foi
cooptar os inúmeros movimentos independentes pela liberdade das nações islâmicas, em uma
força única, a partir de sua base de operações oferecida pelos Talibãs no Afeganistão. Muitos
líderes muçulmanos, responsáveis ou não por ações terroristas, preferiram evitar aproximar-se
de Bin-Laden ou vincularem-se à Al-Qaeda, visando a manter sua autonomia e a atuar
somente na luta de seus próprios países, ignorando por completo objetivos políticos ou ações
de repercussão internacional (idem, p. 31).
uma referência na obra de Burke (idem, p. 32), que chama atenção para o perigo
crescente que a influência de Bin Laden exerceu entre 1996 e 2001, pelas inúmeras
solicitações de jovens suficientemente motivados para devotar suas vidas e energia em favor
da face mais extrema da militância islâmica. Pedidos de apoio “logístico” vindos desde o
Marrocos até a Malásia, para ataques-bombas, assassinatos e execuções em grande escala.
Difícil imaginar que as agências de informação ocidentais não tenham tido
conhecimento deste tipo de ameaça, de uso de violência contra alvos simbólicos das nações
que representam uma afronta à militância islâmica. Mais difícil talvez seja compreender que o
argumento utilizado para iniciar uma guerra contra um inimigo identificado voltou-se contra
seu idealizador, pois como explicar que a maior potência militar do planeta, apoiada ou não
por um mandado das Nações Unidas, não conseguisse localizar e neutralizar um grupo de
fanáticos, dispersos num país pobre e desprovidos da tecnologia e de um exército? Os
recursos aliados parecem insuficientes para vencer uma mentalidade intolerante, dissuadir
uma convicção fundamentada em crenças religiosas e sobrepor-se à ignorância e indiferença
de uma miríade de grupos e indivíduos movidos por um orgulho ferido que remonta aos
tempos bíblicos.
Burke comenta que os terroristas vêem-se engajados numa guerra cósmica entre o bem
e o mal, entre crença e descrença, cuja participação enche de orgulho e prestígio aqueles
guerreiros que se dispõem a lutar. Como em todas as guerras, está implícita a possibilidade de
vitória que pode ser entendida como uma ascensão social ou espiritual, caminho para
transposição das atuais limitações terrenas. Como citado pelo intelectual e sociólogo Mark
Juergensmeyer: “Ficar sem estas imagens de guerra é quase como ficar sem a própria
esperança”. O Islã por ser uma religião politizada, potencializa as possibilidades de
interpretação de justificativas para “salvar o mundo” e utilizar meios (tecnologias) que lhes
pareçam instruções do profeta Maomé para viver neste mundo. Cabe citar que o próprio
Maomé, além de profeta, foi guerreiro, mercador, filósofo, juiz e reformador social radical
(BURKE, p. 45).
“Enfrentai e matai os pagãos onde os encontrardes e capturai-os, cercai-os e deitai à
espera deles” Versículo (9:5) do Corão, conhecido como versículo da espada, citado por
Bin-Laden para explicar o significado da verdadeira Jihad e lutar em nome de Alá.
Os verdadeiros crentes nunca se desviarão desta tarefa “A suprema Jihad é ter o seu
sangue derramado”. A luta cósmica entre o bem e mal, conforme explicada pelo pensador
radical egípcio Syed Qutb, visa a abolir os sistemas políticos opressivos afirmando que:
“Depois de aniquilar as forças tirânicas, seja de ordem política ou racial, seja a dominação de
uma classe sobre a outra dentro da mesma raça, o Islã estabelece um novo sistema social e
econômico em que todos os homens gozam da verdadeira liberdade”. Numa versão mais
radical da percepção generalizada no Oriente Médio, o Ocidente nunca desistiu do projeto das
cruzadas e, portanto, representa uma ameaça para a comunidade muçulmana.
Atos de terror espetaculares, principalmente envolvendo o suicídio dos terroristas não
devem ser vistos como a realização de um objetivo mundano. São antes uma demonstração de
realizada diante de Deus por um indivíduo. Os objetivos ou inimigos locais diretamente
afetados são irrelevantes, demonstrando, que, segundo Burke (p. 50), a Jihad não espera um
resultado ou vitória imediata com seus atos, pelo contrário, o escopo desta luta não se limita
ao plano terreno ou ao período de uma vida, aumentando ainda mais o aspecto de indiferença
para com o outro e para consigo próprio.
6.3.2 A Impotência
As terríveis evidências, relatos de testemunhas e ausência de respostas convincentes
por parte das autoridades norte-americanas têm provocado crescente clamor de parentes das
vítimas do atentado terrorista nos EUA
34
. Críticos do relatório 9/11, publicado, em 2004, pela
comissão de investigação oficial do governo Bush, e a maioria da população do Estado de
Nova Iorque
35
reivindicam a instalação de uma nova comissão independente, para averiguar
os fatos ocorridos naquele fatídico episódio.
As fotos liberadas pelas agências autorizadas a reportarem os danos causados no
Pentágono não mostram destroços de aeronaves. Por sua vez, o desaparecimento das quatro
caixas-pretas dos aviões envolvidos no ataque e a forma como as torres gêmeas
desmoronaram têm sido questionados, em entrevistas e nos sites de discussão relacionados
36
,
sobre a capacidade destrutiva provocada pelo impacto daquelas aeronaves.
Críticos da versão oficial, como Hufschmid (2002) e Sonnenfeld (2009), levantam
dúvidas sobre as causas do desabamento do edifício no.7, que pertence ao complexo do World
Trade Center
37
, que não foi diretamente atingido pelos aviões envolvidos no atentado e, no
entanto, mais de 6 horas após o ataque, ruiu como um castelo de cartas, como costumam
desmoronar os edifícios que têm seus alicerces implodidos para desabarem de forma ordenada
e simultânea.
A relutância do governo americano em divulgar imagens gravadas pelas câmeras dos
edifícios próximos ao Pentágono, que revelariam altitude, rota e características da aeronave
que atingiu o prédio, impede esclarecer as reduzidas dimensões dos estragos causados,
consideradas incompatíveis com os danos que provocariam um avião do porte do voo da
AA77
38
.
Documentaristas americanos internacionalmente conhecidos, como Michael Moore
39
,
questionaram a indiferença do governo Bush ao risco de ataques terroristas. Outras produções
investigativas procuraram analisar o conjunto de fatos os quais antecederam e sucederam o
34
Sites relacionados: WWW.911forum.org.uk; WWW.truthforum.co.uk ; WWW.911review.com;
WWW.reopen911.org ; WWW.HugeQuestions.com. Acesso em setembro de 2009.
35
Pesquisa de opinião: “Reopen 9/11 Investigation, publicado no sítio WWW.zogby.com em 2 de setembro de
2004 acessado em 20 de setembro de 2009.
36
“El camarógrafo de USA que podria probar que el atentado al WTC fue un trabajo interno”, publicado no sítio
WWW.urgente24.com em 12/6/2009, acessado em 20 de setembro de 2009.
37
Vídeo “El edifício WTC7” URL: http://youtube.com/watch?v=OT9PoG7zusO, acessado em 20/9/09.
38
Vídeo “Misterios del 9-11” URL: HTTP://www.youtube.com/watch?v=P6JLjcxDEns, idem.
39
Vídeo “Fahrenheit 9/11” lançado no Brasil em 30/7/2004.
atentado de 11/9/2001, como: WTC 7 - Evacuation came BEFORE WTC COLLAPSE”,
publicado pelo History Channel
40
; investigações de outros jornalistas e escritores, dentre elas
o comportamento anormal na Bolsa de Valores de Nova Iorque, com extraordinária
negociação de ações das companhias United Airlines e American Airlines, nos dias que
antecederam os ataques, comentados por Dylan Ratigan, da Bloomberg Business News
41
, e
por John Kinnucan, da Broadband Research
42
.
Parte da sociedade norte-americana tem manifestado suspeitas quanto à omissão do
governo Bush nos atentados de 11/9/2001, questionando o conhecimento prévio do serviço
secreto dos EUA e, possivelmente, de países aliados, de que a Al-Qaeda estaria planejando
um ataque com uso de aeronaves a pontos estratégicos dos EUA. Tomando por base que o
governo americano vem seguindo os passos de Bin Laden desde o governo Clinton, não é
exagero supor que a CIA, agência de informações dos EUA, e o FBI estivessem a par de um
ataque de tamanha complexidade.
Os autores e os sítios de discussão supracitados, que pedem a reabertura das
investigações, sugerem que o governo Bush teria planejado o uso político do ataque terrorista
como pretexto para obter apoio popular para uma intervenção, a título de retaliação, nos
países que apoiam a Al-Qaeda, o Iraque e o Afeganistão.
Supostos interesses econômicos da indústria armamentista, das empresas de
reconstrução de infraestrutura de países destruídos por guerras e de países produtores de
petróleo, inimigos de Sadam Hussein, poderiam ter apoiado uma intervenção militar para
depor o regime ditatorial iraquiano, sob alegações de que este estaria produzindo armas de
destruição em massa, como alegado pelo Secretário de Estado à época, General Colin Powell.
Imaginar que os Estados Unidos da América seriam capazes de cometerem um crime
tão brutal contra sua população e contra a própria humanidade vai muito além da mera
compreensão humana sobre fenômenos extremos.
Nesse ponto, é preciso ressaltar que incluímos essas informações sobre o que circula
nos meios de comunicação mundial, numa tentativa de exemplificar o caos do terror, o
terrorismo virtual, o terrorismo das teorias de conspiração. A cultura do medo, aliada à cultura
da indiferença, não nos permitirá a audácia da esperança?
40
URL: HTTP://www.youtube.com/watch?v=Wf52SayA1w8 , acessado em 20 de setembro de 2009.
41
ABC News em 20 de setembro de 2001.
42
Associated Press 18-9-2001 e San Francisco Chronicle de 19-9-2001.
6.4 BARACK OBAMA: MUITO ALÉM DA INDIFERENÇA
Eu aprendi a ir e a vir entre o meu mundo branco e o meu mundo negro (...), certo de
que, com um pouco de tradução da minha parte, os dois, no final, entrariam em
convergência.
Barack Hussein Obama, A Origem dos meus Sonhos 2008.
Barack Obama (1961) assume a presidência dos Estados Unidos da America num
momento em que a globalização enfrenta os terríveis efeitos de sua primeira guerra, os
imensos desafios da economia global sustentável e do desenvolvimento humano. O momento
pode ter convocado Obama, mas este momento comporta grandes responsabilidades e
dificuldades. Entramos em uma recessão mundial de confiança, de solidariedade, de respeito e
tolerância entre os povos. A chegada de Obama ao poder sinaliza a derrota de uma política
militar, agressiva e desumana. Depois do 11 de setembro, o governo do presidente George W.
Bush (de 2001 a 2009) impôs ao mundo uma dolorosa agenda bélica com conotações racistas
que feriram mortalmente os direitos humanos.
Portanto a chegada de Barack Obama a presidência americana é uma resposta contra
este modelo e a esperança para um novo mundo, menos indiferente É um momento histórico e
um indício de que o mundo está entrando em uma nova era.
Barack Hussein Obama II nasceu no Havaí, em 04 de agosto de 1961. Seu pai, Barack
Obama pai, nasceu e se criou num pequeno vilarejo do Quênia, onde cresceu cuidando de
cabras ao lado do próprio pai, que era um empregado doméstico de ingleses.
Ann Dunhham, a mãe de Barack, cresceu numa pequena cidade do Kansas. O pai de
Ann trabalhou com equipamentos de petróleo durante a Depressão, e, depois de Pearl Harbor,
alistou-se para a II Guerra Mundial, quando cruzou a Europa no exército do General Patton.
Sua mãe foi trabalhar numa linha de montagem de bombas e, depois da guerra, eles estudaram
no G. I. Bill, compraram uma casa por meio de um programa imobiliário federal e mudaram-
se para o Havaí. “Eu sei que ela foi a alma mais doce e generosa que eu conheci na vida, e que
devo a ela as melhores coisas que tenho na vida” (OBAMA, 2008, p. 9).
Foi na Universidade do Havaí, que os pais de Barack se conheceram. Sua mãe
estudava e seu pai tinha ganhado uma bolsa de estudos que lhe permitia deixar o Quênia e
correr atrás de seus sonhos na América. O pai de Barack, posteriormente, retornou ao Quênia,
e Barack cresceu com a mãe no Havaí, viveu por poucos anos na Indonésia, mudou-se mais
tarde para Nova York, onde se graduou na Columbia University, em 1983
43
.
6.4.1 Os Anos da Faculdade
Relembrando os valores da empatia e do trabalho, ensinados por sua mãe, Barack foi
morar em Chicago, em 1985, onde se tornou um agente comunitário de um grupo baseado em
uma igreja que procurava melhorar as condições de vida da vizinhança, afligida pelo crime e
alto desemprego.
O grupo teve algum sucesso, mas Barack observou que, se ele quisesse
verdadeiramente melhorar a vida das pessoas daquela comunidade e de outras comunidades,
não deveria conseguir apenas uma mudança de padrões locais, mas outra bem maior: a das
leis e da política. Com isso, ele concluiu o curso de advocacia em Harvard, em 1991, onde se
tornou o primeiro presidente afro-americano da Revista de Direito de Harvard. Pouco depois,
retornou para Chicago para praticar como advogado de causas civis e ensinar Direito
Constitucional, onde prestou serviços pro oito anos. Em 2004, tornou-se o terceiro afro-
americano, desde a Reconstrução, a ser eleito Senador dos Estados Unidos.
6.4.2 A Carreira Política
As experiências políticas da vida de Barack Obama têm sido ricas e variadas; crescer
em diferentes lugares, deu-lhe a chance de conviver com pessoas que possuíam ideias
diferentes e animaram sua jornada política. Entre o partidarismo e a briga do debate blico,
ele ainda acredita na capacidade de unir as pessoas em torno de um objetivo político maior,
que busca a solução dos desafios diários do cidadão à frente dos planos partidários e de
ganhos políticos. “Existe um determinado tom para se expressar na política ao qual eu
aspiro – que me permite discordar das pessoas sem ser desagradável” (OBAMA, 2004).
No Senado do Estado de Illinois, independente do partido pelo qual foi eleito, resolveu
trabalhar tanto com Democratas quanto com Republicanos para ajudar famílias de
trabalhadores a terem êxito. Sua meta foi a criação de programas como o Crédito do Imposto
43
Disponível em: http://www.barackobama.com/index.php.
de Renda sobre ganho estatal que, em três anos, forneceu mais de 100 milhões de dólares em
cortes fiscais para famílias de baixa renda.
Como afirma o Jornal The New York Times:
Os políticos mais promissores não circulam pelos corredores acadêmicos, e poucos
jovens que se dedicam à teoria do Direito são vistos na legislatura pública. O Sr,
Obama firmou um em cada lado, dividindo sua semanas entre uma faculdade de
Direito de elite e a atmosfera muito menos rarefeita do Senado Estadual De Illinois
44
.
Ele também expandiu o período de educação da pré-escolar e, depois que certo
número de prisioneiros na fila da morte foram descobertos como inocentes, o Senador Obama
trabalhou junto com funcionários de execuções legais para requerer gravações em vídeo de
interrogações e confissões em todos os casos de pena capital.
Ainda no Senado, concentrou-se em atacar os desafios do século XXI, num mundo
globalizado, com uma nova maneira de pensar e com ações políticas que não mais se baseiem
em denominador comum muito baixo. Sua primeira lei aprovada com o Republicano Tom
Coburn foi uma medida para restabelecer a confiança no governo, permitindo que cada
americano possa ver on line como e onde é gasto cada centavo dos impostos que pagam. Ele
também foi a principal voz em patrocinar uma reforma de ética que extirparia a corrupção no
Congresso
45
.
Como membro do Comitê de Assuntos de Veteranos, o Senador Obama lutou para
ajudar os veteranos de Illinois a conseguirem o pagamento da pensão por invalidez que lhes
foi prometida. Reconhecendo a ameaça terrorista imposta por armas da destruição de massa,
viajou à Rússia, para iniciar uma nova geração de esforços despendidos para evitar a
proliferação de armas mortais ao redor do mundo e também para torná-las seguras.
Quantas barreiras e fronteiras interiores Obama teve de superar para atingir seus
objetivos? Ele não foi indiferente aos outros. Seu caráter, essência, temperamento e atributos,
no decorrer de sua trajetória, foram sendo apurados e lapidados, fazendo-o eclodir como um
meteoro ao ser eleito Presidente dos EUA, para cumprir mandato desde 20 de janeiro de 2009.
Sua trajetória demonstra que o menino Barack Obama enfrentou dificuldades, desde a
infância, na cada de 60, com a separação de seus pais; mesmo num país democrático como
44
Extraído de “Dando aulas de Direito e testando ideias: Obama ganha destaque”, por Jodi Kantor, The New
York Times, 30 de julho de 2008.
45
Disponível em: http://www.barackobama.com/index.php. Acesso em julho de 2009.
os EUA, em plena era dos “Anos Dourados”, não se pode negar a existência de tabus, de
preconceitos e do “ranço” do tradicionalismo e das convenções.
No seu discurso observa-se sua proveniência de uma minoria étnica, Obama tornou-se
ainda mais diferente porque passara à condição de filho de pais separados, de um lar
desfeito.Vejamos o que diz em 18 de marco de 2008:
Se trabalharmos juntos podemos ir além de algumas de nossas antigas feridas raciais.
(...) Não podemos solucionar os desafios de nosso tempo a não ser que os
solucionemos juntos (OBAMA, 18 de março de 2008).
Já como jovem, ele depara com a tragédia de perder repentinamente o pai num
acidente automobilístico, tornando-se órfão, criado por avós fato que reforçou a sua enorme
discrepância com o “normal”, preestabelecido pelas convenções da década de 60.
Barack Obama, desde muito cedo, fortaleceu-se na diferença. A crise também abre
portas para o ser humano repensar suas escolhas e aproveitar oportunidades para transcender e
desvencilhar-se de antigos padrões, passando, muitas vezes, a assumir postura “visionária”
quanto à própria vida e à humanidade. Cabe ressaltar que ele viveu sua juventude permeada
por “drogas, sexo e rock-and-roll”, mas, apesar de tudo, não sucumbiu.
Provavelmente, desse meio adquiriu forte tendência a uma abordagem liberada e a
uma busca por inovações e por assuntos diferentes, já que é irrefutável ter ele atitudes não
convencionais no universo político. Em sua próprias palavras, “sempre que as pessoas agiam
com simpatia, indiferença e, às vezes, até com hostilidade, eu me esforçava ao máximo para
ficar de boca fechada e ouvir o que elas tinham a dizer” (OBAMA, 2007, p. 55).
Com determinação ilimitada, quando tem certeza de suas ideias, agarra-se
teimosamente a elas, sendo capaz de derrubar tudo aquilo que não convém ao momento,
correndo, inclusive, o risco de ser destrutivo. Basta lembrar o episódio da disputa acirrada
para vencer Hillary Clinton, em que quase arruinou seu próprio partido, o Democrata.
Também vivenciou a época dos maiores avanços tecnológicos e das reivindicações de
oportunidades iguais pelas minorias raciais. Obama não se deixa pressionar. Com seu espírito
analítico e técnico, sugere um determinismo que beira ao perfeccionismo sendo, por vezes,
demasiadamente crítico.
De modo geral, entretanto, o equilibrio entre valores conflitantes é dificil. As tensões
surgem não por termos tomado o curso errado, mas simplesmente porque vivemos em
um mundo complexo e contraditório. Acredito veementemente, por exemplo, que,
desde 11 de setembro, fomos negligentes com os princípios constitucionais na luta
contra o terrorismo. Mas reconheço que mesmo o presidente mais sábio e o Congresso
mais prudente lutariam para equilibrar as exigências críticas da nossa segurança
coletiva e igualmente premente necessidade de garantir as liberdades civis. Acredito
que nossas políticas econômicas dão muito pouca atenção ao desemprego de
trabalhadores da indústria e à destruição de nossas industrias, mas não posso deixar
de levar em conta as frequentemente conflitantes exigências da segurança da
competitividade econômica (Idem, p. 67).
Durante seu discurso de posse, em 20 de janeiro de 2009, discorreu com entusiasmo
exacerbado, típico de um líder natural, com autoconfiança e postura digna, sempre ativo,
generoso, jovial e otimista, sem abrir mão, quando necessário, de uma abordagem dramática
da situação mundial. Prendeu a atenção do público interno e do exterior. Em quase 20 minutos
de pronunciamento, prometeu reconduzir os Estados Unidos à liderança mundial e anunciou
uma nova era de responsabilidade, com vistas a resolver alguns dos principais problemas que
vai enfrentar: crise econômica, pobreza no mundo e terrorismo. Seu discurso foi ouvido com
atenção pelos dois milhões de pessoas que compareceram à cerimônia
46
.
Obama acentuou que os países ricos não podem mais aceitar com indiferença o
sofrimento dos países pobres e que agora se inicia um novo capítulo na história americana. O
discurso pedia mudança na relação do país com o resto do mundo:
Lembremos as antigas gerações que venceram o fascismo e o comunismo não com
armas, mas com alianças e convicções duradouras. Eles entendiam que nosso poder
apenas não pode nos proteger, nem deixar que façamos o que bem quisermos
47
.
Reconheceu, com isso, a necessidade de dialogar com os países islâmicos. Ele
confirmou a promessa feita de campanha para a retirada das tropas no Iraque. “Para o mundo
muçulmano, nós buscamos uma nova alternativa baseada em interesse e respeito mútuos.
Vamos começar a deixar, com responsabilidade, o Iraque para o seu povo”. Quanto à
economia, reconheceu os problemas financeiros do país, num ano em que o déficit no
orçamento passou de um trilhão de dólares.
Citou Deus e a Bíblia e pediu o fim das atitudes infantis que dividem o país e o
Congresso Americano, impedindo a tomada de decisões rápidas. Na parte que mais
emocionou a multidão, falou que esses são tempos de mudança. Lembrou que, no passado,
seu pai não podia frequentar os mesmos lugares que os brancos, mas que hoje impera a
46
Disponível em: www.band.com.br. Acesso em fevereiro de 2009.
47
Idem.
igualdade e o respeito entre as pessoas, a ponto de o filho de um negro ser eleito Presidente
dos Estados Unidos.
Suas máximas bíblicas foram empregadas num estilo de prosa que lembra a tradição
retórica protestante, particularmente na forma de evocar exemplos de virtudes para o
governante e seus súditos, de definir ameaças a serem superadas e de desafios em face ao
futuro incerto. No entanto, desde o início, essa tradição retórica é preenchida,
semanticamente, com imagens canônicas da história dos EUA que possam servir como
inspiração para a unidade do povo e para a cobrança de persistência em enfrentar dificuldades,
sem abrir mão dos “preceitos de liberdade”, dos “Pais Fundadores” da nação norte americana
e da Constituição.
É também possível perceber que o primeiro presidente negro dos EUA filho de
americana branca, protestante, e de pai queniano, muçulmano, como se enfatizou tantas vezes
durante a campanha presidencial escolhe temas da história do seu povo, a fim de figurar-se
como “autêntico americano” e “vencedor”, por meio das “virtudes caras à América” em sua
visão, seu país é forte justamente por ser obra de uma imigração multicultural de pessoas
laboriosas e crentes.
Afro-americanos choraram e dançaram nas ruas na terça-feira, dizendo que uma nação
outrora relutante por fim revelou a promessa democrática. Pessoas de todas as cores
vibraram nas pequenas cidades e metrópoles. E eleitores brancos maravilharam-se
com o que haviam feito ao virar a página de uma história racial pungente (The New
York Times 5 de novembro de 2008).
Obama olha para o passado para legitimar parte de sua própria história pessoal e criar
ganchos conciliatórios para a nação, num momento de alta rejeição à gestão Bush cujas
ações puseram em risco os “princípios fundamentais” da pátria.
Nesse sentido, as lembranças das dificuldades e sacrifícios do “passado” luta pela
independência, guerra civil, segregação racial são bastante instrutivas no seu discurso e
devem servir como inspiração para o enfrentamento dos problemas atuais, dentre eles o que
envolve a imigração ilegal, o terrorismo, a recessão, o desemprego e a pobreza, ainda
racialmente circunstanciada.
Outro ponto marcante é sua tentativa de distinguir-se da gestão de George W. Bush,
sem, contudo, demonstrar fraqueza no que tange aos desafios da política de segurança e da
liderança mundial. Os “valores da terra da liberdade” devem permanecer caros e inspirar o
mundo, pois é o seu destino, definido por Deus, levar a liberdade, a segurança e a
prosperidade para o mundo através da economia de mercado. Em todo caso, parte de seu
discurso quer demonstrar que é possível enfrentar os problemas internos e externos de forma
distinta daquela adotada pelo governo Bush.
No campo das relações internacionais é perigoso fazer generalizações a partir da
realidade de um único país. Cada nação é única, com sua História, geografia, culturas
e seus conflitos. (...) Um mundo no qual a globalização e o sectarismo, a pobreza e a
abundância, a modernidade e a antiguidade colidem constantemente (OBAMA, 2007,
p. 296).
A estratégia preventiva e o unilateralismo da gestão Bush que restringiram, por
exemplo, direitos civis dentro dos próprios EUA e em bases militares no exterior com
escandalosos casos de restrição à imprensa americana e de tortura e estupro em Guantánamo,
Iraque e Afeganistão –, mostraram-se ineficazes para construir qualquer estabilidade ou
legitimidade para as suas matérias políticas e econômicas no mundo, evidenciando a
necessidade de ações coletivas com efetiva cooperação e consenso com outros países.
Por isso, esta estratégia preventiva e o unilateralismo da gestão Bush são apresentados
pelo novo Presidente como a escolha equivocada (“velho dogma”) para se conseguir a paz, a
segurança, a defesa dos interesses estratégicos e a prosperidade; tal política teria criado uma
equação perigosa: para aumentar a segurança era necessário diminuir os direitos civis
fundamentais, o que ameaçava os “princípios fundamentais” da Constituição/Fundação dos
EUA e aumentava a maré antiamericana pelo mundo, tornando vazia a retórica “livre-
mundista”. A recorrência das imagens canônicas da Constituição e da Independência no
discurso de Obama teria por objetivo demonstrar que Bush foi, efetivamente, “menos
americano” do que ele.
Dentro dessa avaliação, outro equívoco estratégico teria sido o fato de o governo Bush
portar-se como o herói do “livre-mundismo” nos termos seletivos dos interesses do lobby do
petróleo, o que, além dos desgastes materiais, humanos e emocionais no Iraque e Afeganistão,
criou uma onda interna de perda de confiança quanto às instituições públicas, particularmente
depois das eleições de 2004. Ademais, como a gestão Bush suscitou uma maré mundial de
rejeição antiamericana, isso aumentava o risco de novos ataques terroristas que, por sua vez,
serviam para justificar restrições seletivas a direitos civis e humanos dentro e fora do país.
Portanto, esse ciclo vicioso ou “velho dogma” deveria ser rompido.
A vinculação da política externa norte-americana aos interesses do lobby do petróleo
representou um retrocesso nas metas de redução de emissão de gás carbônico na atmosfera, na
política de preservação do meio-ambiente e na busca de fontes de energia alternativas limpas,
renováveis e sustentáveis. Por outro lado, o aumento do orçamento militar – que beneficiou os
complexos industriais e de serviços que se vinculavam em contratos com o Ministério de
Defesa significou uma transferência de renda pública para os setores A e B da população,
que viveu uma onda especulativa desregulada de prosperidade nos mercados financeiros, de
crédito e imobiliário, enquanto os setores C, D e E da população sentiam os efeitos imediatos
do aumento da desigualdade social e da redução com os gastos sociais, que se refletiam na
precarização do acesso a hospitais e escolas públicas de qualidade e livres da violência
urbana.
Ora, tudo isso explica a recorrência das “máximas de virtude” que Barack explora em
seu discurso para demonstrar que pretende romper o ciclo vicioso da gestão Bush, pois esta
estaria na contramão da herança dos “Pais Fundadores” que, de forma exemplar, mesmo
estando em meio às ameaças tangíveis da Guerra de Independência, ofereceram ao seu povo a
Constituição, em vez da restrição dos direitos civis. Ora, lembrar isso significava demonstrar
que todas as consequências jurídicas, civis e ideológicas da “estratégia preventiva” eram
traições evidentes aos ideais da Nação.
“Ao reafirma a grandeza de nossa Nação, compreendemos que grandeza jamais é algo
dado. Precisa ser conquistada” (OBAMA, Discurso de Posse, 20 de janeiro de 2009).
Ao colocar-se como o defensor efetivo dos “fundamentos americanos do livre-
mundismo”, o governo de Barack Obama propõe um ciclo de redenção para a América e para
o mundo. Os trechos abaixo
48
resumem, de modo geral, as mudanças de rumo político a serem
adotadas pela América do Norte e estão aqui expostos com o fim de estabelecerem uma
comparação entre a nova era e a antiga.
· Se, durante o governo Bush, houve a invasão do Iraque e do Afeganistão, com
o consequente desrespeito à soberania de seu povo e a indistinção entre alvos
civis e militares, a alternativa a isso seria devolver, de forma responsável,
ambos os países a seus povos, assegurando uma paz duradoura, a soberania, os
canais de diálogo e o interesse mútuo com o mundo muçulmano, em geral.
· Se, durante o governo Bush, houve a arrogância em relação aos fóruns
mundiais, e a indiferença aos problemas sociais, econômicos e ambientais das
15 Disponível em: http://www.cpgss.ucg.br/ Acesso em abril de 2009.
nações mais pobres, a alternativa a isso seria que todas as nações ricas, em
cooperação, investissem nos países pobres de forma responsável, para que uma
ampla parcela da população mundial pudesse sair do risco social, ter emprego
assegurado e frequentar boas escolas. Deste modo, poder-se-ia evitar que os
jovens fossem recrutados por grupos integristas, pelo narcotráfico, por
guerrilhas ou que se envolvessem em empreitadas arriscadas de imigração e
trabalho ilegais, prostituição ou tráfico de mulheres, crianças e órgãos.
· Se, durante o governo Bush, houve negligência em relação ao protocolo de
Kioto, a alternativa a isso seria conseguir dos governos dos países ricos o
compromisso de uma prática de consumo responsável, para não se esgotar os
recursos ou a sustentabilidade econômica e ambiental do planeta.
· Se, durante o governo Bush, o interesse do lobby do petróleo teria aumentado a
dependência dos EUA aos inimigos que, supostamente, estaria combatendo, a
alternativa a isso seria justamente valorizar a pesquisa de outras fontes de
energia que possibilitassem a autonomia na matriz energética e a
sustentabilidade e preservação do meio-ambiente, pois isso diminuiria a
dependência dos EUA em relação ao Oriente Médio, Venezuela/Colômbia e
Ásia Central o suposto “eixo do terrorismo”, definido desde a presidência de
Bill Clinton.
· Se, durante o governo Bush, a especulação financeira e os gastos com
segurança teriam aumentado a desigualdade social e o desemprego nos EUA, a
alternativa a isso seria aumentar o controle sobre os usos das reservas do país e
sobre o sistema de crédito bancário e as práticas financeiras, além de se
valorizar a parte “mais laboriosa” da população, como as pessoas de formação
média e os cientistas, através de investimentos em pesquisa, educação e
construção civil, pois isso não apenas geraria empregos imediatos, mas
também criaria infra-estrutura para investimentos produtivos futuros o que
Obama chama de “novos fundamentos para o crescimento econômico”.
Para Obama, o “livre empreendedorismo” dos homens anônimos e comuns aqueles
que efetivamente “fizeram a América” seria algo importante a ser lembrado no presente,
pois contrasta, tipológica e moralmente, com aqueles que buscam riqueza e fama fáceis. No
discurso presidencial, a exploração de tais retóricas representa o uso estratégico de emblemas
éticos nostálgicos, que se reportam, na verdade, às noções artesanais oitocentistas da
“respeitabilidade social” do “trabalhador honrado”. Aliás, é digno de nota o fato de esse texto
recorrer a metáforas e expressões “artesanais rancheiras” para expressar conceitos ou ideias
políticas elaboradas.
Ao proceder assim, o objetivo de seu discurso é construir um senso de empatia com o
“homem médio”, desempregado, ou com aquele que virtuosamente aceita reduzir os seus
salários ou turnos de trabalho para não ver um “companheiro de labuta” perder o emprego.
Em outras palavras, é uma exortação aos homens anônimos e comuns as principais vítimas
da recessão e do mercado livre da especulação financeira dos ricos nas bolsas de valores
para terem paciência, continuarem a ser laboriosos e voltarem a confiar no País e nas
instituições que o representam.
Além disso, Barack Obama apela, paradoxalmente, para noções da tradição democrata
de resgate da América pela cooperação entre classes, sem questionar um mecanismo cruel da
desregulamentação econômica, pela qual as grandes empresas pressionam politicamente o
governo com a ameaça do desemprego em massa porque não querem reduzir as margens de
lucro; com isso, esperam conseguir algum tipo de subsídio (empréstimos a juros baixos),
proteção fiscal-alfandegária ou redução de encargos trabalhistas e fiscais, para, no final das
contas, quando muito, manterem os trabalhadores com salários baixos, turnos reduzidos e sem
plano de saúde.
Como pretende conciliar forças sociais contraditórias num momento de crise, Obama
não questiona as virtudes do mercado e seu poder de gerar riqueza e expandir a liberdade, mas
é taxativo em afirmar que suas operações não podem acontecer sem nenhum controle e que é
importante pensar em investimentos ou subsídios que se revertam para o trabalhador médio na
forma de emprego. Por isso mesmo, o horizonte de nacionalismo econômico é combinado
estrategicamente com apelos de sacrifício, confiança e paciência; enfim, o status quo não é
questionável, mas sim alguns detalhes de estilo na forma de geri-lo.
No final das contas, a forma de Obama pensar “novos fundamentos para o crescimento
econômico” significa, na prática, transferir dinheiro público para outros nichos de
investimentos prioritariamente produtivos, em vez de especulativos, mas beneficiando os
mesmos setores sociais (A e B), que mais concentraram renda entre 1975 e 2005, na esperança
de que criem ou mantenham empregos em solo americano.
Enfim, a conciliação da Nação e a restauração da confiança no governo ocorreriam
através de incentivos públicos para investimentos produtivos que pudessem criar empregos
para homens e mulheres comuns – anônimos que “fazem a América”.
Quando Obama afirma, evocando a Bíblia, que é “tempo de crescer”, de abandonar as
“coisas infantis”, isso significa: tomar para si as responsabilidades dos efeitos das escolhas
equivocadas do passado recente e tentar corrigi-los; estar preparado para fazer escolhas
difíceis que não firam os princípios constitucionais; ter maturidade para estender a mão ao
inimigo, propondo paz e prosperidade e dando exemplo de superioridade moral e fortaleza
d’alma; evitar novas escaladas militares e aumentar investimentos socioculturais; estar
disposto ao diálogo para resolver antigas diferenças antes de colocar civis em risco de ataques
militares e/ou terroristas; agir com transparência no uso do dinheiro público para que as
famílias em necessidade possam ser ajudadas a encontrar empregos; ser capaz de expressar
atos de autocontenção, humildade, cooperação, solidariedade e tolerância.
E, então, no dia 11 de setembro de 2001, o mundo partiu. (...) Não finjo compreender
o niilismo absoluto que dirigiu os atos terroristas daquele dia e que dirigi seus irmãos
desde então. Minha capacidade de empatia, minha habilidade para alcançar o coração
dos meus semelhantes, não consegue penetrar o olhar vazio daqueles que assassinam
inocentes com uma obscura e serena satisfação (OBAMA, 2008, p. 12).
O discurso de Obama aponta para um ciclo global e moral de redenção e superação da
“era Bush”. “Esta é a Promessa dos Estados Unidos - a ideia de que somos responsáveis por
nós mesmos, mas que também ascendemos e decaímos como nação” (OBAMA, 2009, p.129).
No entanto, podemos questionar se, para além da retórica, seu governo poderá, de fato,
distinguir-se dentro de uma configuração institucional que vive, paradoxalmente, da
especulação financeira, do complexo industrial-militar flexível, de um protecionismo
econômico seletivo, da matriz energética do petróleo, da corrosão crescente do emprego como
agente de integração social, do mito do “destino manifesto” e da saga “livre-mundista” que
têm justificado a escalada de investimentos em segurança à custa da seguridade social e da
soberania de outros países.
Afinal, as tópicas religiosas da paciência, do sacrifício e da conciliação/expiação
comunal precisam de uma base social, econômica e política efetiva para não desembocarem
numa nova crise de confiança.
Eu sei, eu vi o desespero e a confusão dos menos favorecidos: como se arruína a vida
das crianças em Jacarta, na Indonésia, ou em Nairóbi, da mesma maneira, que se faz
com as crianças na zona sul de Chicago; como é difícil o caminho para elas entre a
humilhação e a fúria sem limites; como facilmente elas deslizam para a violência e a
desesperança. Sei que a resposta dos poderosos a essa desordem alternando, como
de costume, complacência indiferente e, quando a desordem extrapola os limites
impostos, a aplicação dura e irrefletida da força, de longas sentenças de prisão e de
equipamentos militares mais sofisticados é inadequado à tarefa. Sei que o
endurecimento das políticas, o acolhimento do fundamentalismo e das tribos
condenam a todos nós (OBAMA, 2008, p. 13).
Em política, a esperança é uma matéria volátil que deve ser manipulada com muito
cuidado, pois a não realização de seu horizonte de expectativa cria um “pântano de
desespero”, cujos gases fétidos podem ter consequências destrutivas duradouras para a ética
intersubjetiva e para a confiança no aparato parlamentar-constitucional de representação
política. Quando isso ocorre, a arena política pode ficar polarizada entre a absoluta apatia do
indivíduo e as reações violentas esporádicas de indivíduos e grupos.
Como disse o presidente americano em seu discurso de posse:
“Estamos reunidos neste dia porque optamos pela esperança em lugar do medo,
pela concordância de objetivos em lugar do conflito e da discórdia” (OBAMA, 2009,
Washington D.C.).
CONCLUSÃO
Vivemos um período em que a noção de “indiferença” parece ter extrapolado os
campos da filosofia e da subjetividade para se implantar solidamente no domínio do real. Se
até a pouco era possível circunscrever os questionamentos à razão iluminista, hoje, na linha
traçada premonitoriamente por Nietzsche, a desconstrução do sujeito, gradativamente sugerida
nas obras de teóricos como Baudrillard, Morin, Derrida, Zizek, Habermans, Badiou, dentre
outros pensadores, pode ser evidenciada, tanto no Ocidente quanto no Oriente, em
manifestações concretas da história, que se assemelham no redespertar de mitologias,
crendices e ódios ancestrais, como se o racionalismo não tivesse passado de um sonho.
A contemporaneidade abraça o efêmero, o fragmentário, o descontínuo e o caótico.
Portanto, na medida em que não tenta legitimar-se pela referência ao passado, o momento
pós-11 de setembro enfatiza o profundo caos da vida moderna e a impossibilidade de lidar-se
com ele através da racionalidade. Na base da ética pós-11 de setembro, jaz uma crise de
autoridade que envolve todos os setores da sociedade: família, Estado, Justiça, religião,
educação e segurança.
Vivemos uma sociedade que idolatra a juventude, o momento presente e o consumo;
“ser” consiste em “consumir, usar e desperdiçar”. A época atual, refém da cultura do medo,
estabeleceu o individualismo, a desvalorização de causas humanitárias e a indiferença quanto
ao bem público e aos direitos e deveres da cidadania, como comportamentos sociavelmente
aceitos. Tudo isso tem lugar na conjuntura de um axioma aplicado a todos nós: minimizar a
austeridade e maximizar o desejo.
Ao mesmo tempo, os meios de comunicação são os principais formadores da opinião
pública, ditam as normas do comportamento e do consumo e fazem interpretações éticas e
religiosas, construindo “verdades” muito além dos conceitos do Bem e do Mal. Construir uma
ética que conta da idolatria do EU, em tempos de terror globalizado e indiferença
endêmica, é o desafio de cada dia. Temos de domar nossas “inclinações naturais” (a lei da
selva), em favor do bem estar comum, da qualidade da convivência humana e do resgate de
um Ethos que nos devolva a humanidade sacrificada pela libido econômica.
Assim é que a desconstrução do Eu em favor do nós é fruto da alteridade a marca
da ética da resistência. É nesse contexto que o Outro é a fonte na qual o Eu pode se alimentar
para restabelecer seus humores vitais ou, na pior das hipóteses, para impedir a sua
constituição como Eu isolado. Entrar nos tempos de terror global pós-11 de setembro é
encontrar o Outro, o guardião de nossa própria humanidade.
Ao discutir a questão da alteridade, Baumam (1997) vem referenciar Lévinas,
afirmando que o nó da subjetividade consiste em se relacionar com o Outro, sem se importar
com seu relacionamento em qualquer direção: Eu e Outro, ou Outro e Eu. Ou, mais
precisamente, consiste em se aproximar do Outro, de tal sorte que, acima e além de todas as
relações recíprocas que não deixam de se estabelecer entre mim e o próximo, eu tenha dado
sempre um passo a mais rumo a ele.
Invertendo os princípios da ética moderna, vinas concede ao Outro a prioridade que
se atribuiu antigamente ao Eu. Ontologicamente, cada um de nós estáa separado um do outro
e, no máximo, estamos unidos através dos laços afetivos e interesses sociais “um com o
outro”. Dois seres separados e fechados em si, cada um existindo para guardar sua ipseité
(Paul Ricoeur,1990), sua identidade consigo mesmo, seu próprio espaço e território.
Estabelece-se, então, um paradoxo: estar com significa estar separado. O Outro não é senão o
“não-Eu”, o lugar que o Outro ocupa é um lugar onde não estou. A distância entre nós jamais
será vencida sob pena de se perder a identidade do Eu. No entanto, podemos lançar uma ponte
de conexão com o Outro para meu conhecimento; porém, as pontes são frágeis e precisam ser
protegidas e vigiadas através da Lei ou da Ética. A ética, como uma filosofia primeira, vem
antes da condição moral; o Eu se torna moral pela escolha do “face a face” do sujeito com o
Outro.
Na dimensão individual, a ética filosófica ocidental propõe, na base, a idéia de luta
por: sobrevivência na satisfação das necessidades básicas, impondo-se ao peso do existir; um
“lugar ao sol”, na esfera da economia e da sociedade, rompendo o cerco da solidão e da
evasão; emancipação e autonomia na esfera educativo-política; possibilidade de ser contra a
angústia da morte sempre iminente; sobrevida na perspectiva da imortalidade, contra a queda
na impessoalidade ou no nada. Na base de toda essa inspiração está a concepção da ordem do
ser como expansão em todas as dimensões ou como essência.
O existencialismo designa várias tendências filosóficas que enfatizam temas comuns,
como o indivíduo, a experiência da escolha e a ausência de uma compreensão racional do
universo – com o conseqüente temor ou sentimento do absurdo da vida humana.
As lutas que se processaram por milênios, em que os homens faziam sua história, iam
tecendo sua própria imagem, moldando sua sociedade e perfaziam sua realização, ensejaram
variadas formas de organização e estruturas culturais, codificações de ética em leis civis e
penais, traduziram suas aspirações em cultos e símbolos variados, procurando diminuir os
resíduos de arbitrariedade e rumando na perspectiva de um bem viver.
As experiências por que passou a humanidade no século XX estão a confirmar que a
ética que se instaurou, mesmo com foros universais, a partir das instituições que têm por base
a velha ordem do ser, não consegue ter validade para nortear a sociedade atual sem uma
ruptura profunda desta mesma e velha ordem do ser diante da nova ordem ser-poder-saber.
Tudo que é real e nada do que é irreal pertencem ao domínio do Ser, esse conceito ocupa um
lugar central na filosofia de Parmênides a Heidegger. A questão que se coloca é: por que
algo e não nada? Este pensamento suscitou uma reflexão lógica sobre a questão de saber em
que consiste o era que é, o que existe e permanece/ ser-em-si / para-si.
O fiasco humano de que dão testemunho as crises éticas e morais do nosso tempo parte
do princípio de que o homem existe através do olhar do outro, da sua relação com o
próximo.
Várias teses afirmam a singularidade irredutível de cada homem, com seu valor único,
que precede sua universalização no saber e na política; a ética instaura-se na relação inter-
humana; a ética é o sentido profundo do humano e precede à ontologia.
Em 12 de abril de 1999, o intelectual judeu sobrevivente do holocausto nazista e
Prêmio Nobel da Paz em 1986, ELIE WIESEL, fez uma palestra na Casa Branca para
convidados especiais do Presidente Clinton. O tema foi "O que é a Indiferença". Em sua
palestra (Los Discursos del Poder -página 233- Ed. Belacqua), Wiesel diz que “para a pessoa
que é indiferente, seu vizinho não tem nenhuma consequência, e, portanto, sua vida carece de
sentido. Suas preocupações, ou inclusive, suas angústias visíveis não têm qualquer interesse.
A indiferença reduz o outro a uma abstração".
Além disso, afirmou que a indiferença, além de tudo, é mais perigosa que a raiva e o
ódio, uma vez que estes podem, inclusive, ocasionalmente inspirar alguma veia criativa,
quando se escreve um grande poema ou uma grande sinfonia.
A indiferença, contudo, nunca é criativa. Da indiferença não se obtém resposta
alguma. A indiferença não é um principio, é um fim em si mesmo.
E, como tal, retroalimenta-se da apatia, alienação, cansaço, covardia ou do simples
primário mecanismo de defesa daqueles que ainda não fizeram a escolha por uma vida mais
ética, segundo Zizek. Mas, para que tal escolha seja feita, precisaríamos encontrar em nós
mesmos o que ele chama de Coragem Ética” uma nova coragem, que, em última
instância, é a de questionar a sua própria posição.
É preciso muita consciência de que, ao assumir uma posição, cada sujeito sabe da
relatividade de todas as posições, e que estas são condicionadas por constelações históricas
contingentes e, por conseguinte, ninguém está na posse de uma solução definitiva, mas apenas
de soluções temporárias e pragmáticas. Basta comparar o combate e o sofrimento do
fundamentalista radical com a paz do democrata liberal que, protegido na sua posição
indiferente, rejeita qualquer comprometimento ético, qualquer defesa sob o ponto de vista da
alteridade, como aponta Zizek.
Nesse caso, deveríamos completar a citação judia, evocada muitas vezes a propósito
do Holocausto (“Quando alguém salva um homem da morte, salva toda a humanidade”), e
ampliá-la para: “Quando alguém mata, nem que seja um só inimigo da humanidade, não está a
matar, mas a salvar toda a humanidade”. O verdadeiro esforço ético não está apenas na
decisão de salvar vítimas, mas também e talvez muito mais na dedicação impiedosa de
aniquilar aqueles que fazem delas vítimas.
Quanto à primeira hipótese desta tese, afirmo que o terrorismo global é alimentado
pelo medo do Outro; sem dúvida, é um crime contra humanidade e se sustenta pela
indiferença de milhões de sujeitos em que o pós-11 de setembro justifica sua omissão, seu
olhar indiferente, como vítimas “ainda que distantes” da barbárie comtemporânea.
Todos somos vitimados pela cultura da indiferença, alimentada através das mídias de
última geração, que bombardeiam informações diárias sobre intolerância, vandalismo,
crueldadade e violência letal dos Outros, como se estes não fizessem igualmente parte da raça
humana, como se, em nosso silêncio, consumismo átavico e egoísmo extremado, não
contribuíssemos para o aumento vertiginoso da indiferença patológica.
A condição preliminar dos afetos torna-se ainda mais desconfortável e vazia pelo fato
de que, com bastante frequência, não encontramos evidencias suficientes de que o Outro,
estranho a mim e a quem devo amar, me ama ou, ao menos, demonstra por mim a mínima
consideração. Poderíamos ampliar esta discussão , mas me limito as conclusões.
Confirmo a segunda hipotese deste trabalho, ao afirmar que o principal inimigo da
excelência moral é a fantasia pessoal exarcebada, a trama do autoengrandecimento e dos
desejos que impedem os sujeitos de enxergarem o que fora e além deles mesmos. Essa
conduta medíocre é a mais fria confirmação da singularidade.
A cultura da indiferença é analisável tanto como característica existentencial em
determinada sociedade – e, sem dúvida, a sociedade global a promove –, quanto como
tendência que surge do mais profundo do ser humano. Ao negarmos nosso olhar aos
miseráveis da terra, ao ignorarmos as crianças que dormem ao relento das grande cidades,
desconhecemos nosso prórpio rosto refletido na face do Outro.
A relação ética com outrem não é um ato ontológico que compreende o interlocutor a
partir de um horizonte do ser, nem é orientada pela ontologia, ou seja, no outro ser humano
anuncia-se algo que não pode ser captado nas malhas do saber ontológico. A alteridade
exprime-se na pobreza, na ignorância intelectual, no despojamento e na miséria de não ter
consciência de que é consciente, de que tem potencial, mas depende de ter oportunidades
para desabrochar-se como pessoa humana e como cidadão.Isto pode ser entendido como
confirmação de hipóteses de elucubrações teóricas e sensíveis sobre uma cultura vilipendiada
pela indiferença.
E isso nos condena à triste confirmação da terceira hipotese desta tese: somos
potencialmente destrutivos para nós mesmos e, dessa forma, nos constituímos em nosso pior
inimigo; fomos sujeitados aos efeitos da globalização negativa, e aprendemos a estigmatizar
os diferentes, a ignorar os direitos culturais e prórpios de cada nação, a substimar o que não
conhecemos, a temer nossa prórpia face perdida no olhar do Outro. A cultura da Indiferença,
aliada à Cultura do Medo, virou refém do terrorismo global.
Esta tese não estaria completa sem considerar dois eventos marcantes na minha
trajetória como advogada, psicanalista e docente. Por ocasião dos ataques terroristas de 11 de
setembro de 2001, eu estava em classe, ministrando Filosofia do Direito, para o sétimo
periodo do curso de Graudação em Direito na Universidade Candido Mendes ,bairro de
Ipanema na cidade do Rio de Janeiro.
Na sala de aula, havia uma televisão. Aos poucos, mas de forma contundente, meus
alunos foram cercados por outros discentes, e eu pude perceber o medo e a perplexidade em
seus olhos. Ligamos a televisão e, juntos, testemunhamos a queda da primeira torre do World
Trade Center. Confesso que procurei me convecer e aquietá-los de que era apenas um terrível
acidente aéreo, e recordo que continuei a ministrar minha aula sobre Foucault e seu livro As
diferentes formas da verdade (1988). De repente, a sala foi invadida por uma segunda onda
de expectadores atordoados e confusos, que anunciavam o impensável: a segunda torre do
WTC fora atingida. Naquele momento, todos nós não sabíamos mais nada; no silêncio do meu
olhar de mestre impotente diante de fatos tão atrozes, estava decretada a bábarie, se a
entendermos como o conjunto de forças que ameaçam tanto a ordem social quanto a paz de
espírito pessoal, nos submetendo ao desencadeamento de pulsões violentas e incontroláveis.
Dispensei minha classe, que, por longos minutos, permaneceu inerte, hipnotizados frente a
initerrupta repetição das imagens da catástrofe na tela global.
Oito anos depois, em 20 de janeiro de 2009, eu estava novamente em classe,
lecionando Políticas Públicas para a Pós-Graduação em Educação, da Universidade
Americana de Assunción del Paraguay, e tivemos, juntos, eu e minha classe, o privilégio de,
ao vivo, testemunharmos a posse do 44º presidente norte americano, Barack Husseim Obama,
o primeiro presidente transracial, transcultural a ocupar a Casa Branca.Talvez tenha se
iniciado aqui alguma relfexão sobre a Cultura da Indiferença .É a audácia da esperança
democrática, capaz de contemplar a alteridade entre as nações, a acender em mim e em todos
ao meu redor a chama dos ideiais de justiça, equidade e liberdade.
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FILMOGRAFIA
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA (2008) - (Blindness)
• ELENCO
Mulher do Médico JULIANNE MOORE
Médico MARK RUFFALLO
Mulher dos Óculos Escuros ALICE BRAGA
Primeiro Homem Cego YUSUKE ISEYA
Mulher do Primeiro Homem Cego YOSHINO KIMURA
Contador MAURY CHAYKIN
Velho da Venda Preta DANNY GLOVER
Rei da Ala 3 GAEL GARCÍA BERNAL
Criança MITCHELL NYE
• FICHA TÉCNICA
Diretor FERNANDO MEIRELLES
Roteirista DON MCKELLAR
Baseado na obra de JOSÉ SARAMAGO
Produtores NIV FICHMAN
ANDREA BARATA RIBEIRO, SONOKO SAKAI
Produtores Executivos GAIL EGAN
SIMON CHANNING WILLIAMS, TOM YODA,
AKIRA ISHII, VICTOR LOEWY
Co-produtores BEL BERLINCK & SARI FRIEDLAND
Cinematografia CÉSAR CHARLONE ABC
Production Designer TULÉ PEAKE
Montagem DANIEL REZENDE
Figurino RENÉE APRIL
Música MARCO ANTONIO GUIMARÃES/UAKTI
Elenco SUSIE FIGGIS & DEIRDRE BOWEN
Em associação com ALLIANCE FILMS, FOX FILM DO
BRASIL, GAGA COMMUNICATIONS,
ASMIK ACE ENTERTAINMENT INC,
IFF/CINV, TELEFILM CANADA, ANCINE,
POTBOILER PRODUCTION
Com a participação T.Y. LIMITED, CORUS ENTERTAINMENT,
FIAT, BNDES, PAULÍNIA MAGIA DE CINEMA, C&A
Produção O2 FILMES / RHOMBUS MEDIA / BEE VINE
PICTURES
• SINOPSE
O vencedor do Prêmio Nobel de literatura, José Saramago, e o aclamado diretor Fernando
Meirelles (O Jardineiro Fiel, Cidade de Deus) nos trazem a comovente história sobre a
humanidade em meio à epidemia de uma misteriosa cegueira. É uma investigação corajosa da
natureza, tanto a boa como a má – sentimentos humanos como egoísmo, oportunismo e
indiferença, mas também a capacidade de nos compadecermos, de amarmos e de
perseverarmos.
O filme começa num ritmo acelerado, com um homem que perde a visão de um instante para
o outro enquanto dirige de casa para o trabalho e que mergulha em uma espécie de névoa
leitosa assustadora. Uma a uma, cada pessoa com quem ele encontra – sua esposa, seu
médico, até mesmo o aparentemente bom samaritano que lhe oferece carona para casa terá o
mesmo destino. À medida que a doença se espalha, o pânico e a paranóia contagiam a cidade.
As novas vítimas da “cegueira branca” são cercadas e colocadas em quarentena num hospício
caindo aos pedaços, onde qualquer semelhança com a vida cotidiana começa a desaparecer.
Dentro do hospital isolado, no entanto, há uma testemunha ocular secreta: uma mulher
(JULIANNE MOORE, quatro vezes indicada ao Oscar) que não foi contagiada, mas finge
estar cega para ficar ao lado de seu amado marido (MARK RUFFALO). Armada com uma
coragem cada vez maior, ela será a líder de uma improvisada família de sete pessoas que sai
em uma jornada, atravessando o horror e o amor, a depravação e a incerteza, com o objetivo
de fugir do hospital e seguir pela cidade devastada, onde eles buscam uma esperança.
A jornada da família lança luz tanto sobre a perigosa fragilidade da sociedade como também
no exasperador espírito de humanidade. O elenco conta com: Julianne Moore (Longe do
Paraíso, As Horas), Mark Ruffalo (Zodíaco, Traídos Pelo Destino), Alice Braga (Eu Sou a
Lenda, Cidade de Deus), Yusuke Iseya (Sukiyaki Western Django, Kakuto) Yoshino Kimura
(Sukiyaki Western Django, Semishigure), Don McKellar (Monkey Warfare, Childstar), Maury
Chaykin (Verdade Nua, Adorável Julia), Danny Glover (Dreamgirls Em Busca de Um
Sonho, A Cor Púrpura) e Gael García Bernal (Babel, Diários de Motocicleta, E Sua Mãe
Também).
LEÕES E CORDEIROS (2007)
Filmografia Diretor Robert Redford
1. 2007 - Leões e Cordeiros (Lions for Lambs)
2. 2000 - Lendas da Vida (The Legend of Bagger Vance)
3. 1998 - O encantador de cavalos
4. 1994 - Quiz Show - A Verdade dos Bastidores (Quiz Show)
5. 1992 - Nada é para Sempre (A River Runs Through It)
6. 1988 - Rebelião em Milagro
7. 1980 - Gente Como a Gente (Ordinary People)
• SINOPSE
O senador Jasper Irving (Tom Cruise) pretende lançar sua nova "estratégia completa" para a
guerra dos Estados Unidos no Afeganistão e, para divulgá-la, precisa convencer a jornalista
Janine Roth (Meryl Streep). Simultaneamente o dr. Stephen Malley (Robert Redford), um
professor idealista, tenta convencer Todd (Andrew Garfield), um de seus alunos mais
promissores, a mudar o curso de sua vida. Ao mesmo tempo Ernest (Michael Peña) e Arian
(Derek Luke) são soldados que estão lutando nas montanhas geladas do Afeganistão,
buscando se lembrar do porquê de terem se alistado no exército americano.
• FICHA TÉCNICA
· título original: Lions for Lambs
· gênero: Drama
· duração: 09hs 27 min
· ano de lançamento: 2007
· site oficial:http://microsites2.foxinternational.com/br/leoesecordeiros/
· estúdio:United Artists / Cruise/Wagner Productions / Brat Na Pont Productions /
Andell Entertainment / Wildwood Enterprises
· distribuidora:20th Century Fox Film Corporation
· direção: Robert Redford
· roteiro:Matthew Michael Carnahan
· produção:Matthew Michael Carnahan, Tracy Falco, Andrew Hauptman e Robert
Redford
· música:Mark Isham
· fotografia:Philippe Rousselot
· direção de arte:François Audouy
· figurino:Mary Zophres
· edição:Joe Hutshing
· efeitos especiais:Tweak Films / Industrial Light & Magic / NAC Co. Effects & Prop
Animation / New Deal Studios
• ELENCO
· Robert Redford (Dr. Stephen Malley)
· Meryl Streep (Janine Roth)
· Tom Cruise (Senador Jasper Irving)
· Peter Berg (Wirey Pink)
· Michael Peña (Ernest)
· Derek Luke (Arian)
· Andrew Garfield (Todd)
· Louise Linton (Srta M.)
· Tracy Dali (Entourage)
BABEL (2006)
Filmografia do Diretor Alejandro Gonzalez-InarrituFilmografia de Alejandro Gonzalez
Inarritu
· Rudo y Cursi 2008, Produção.
· Babel 2006, Gerente.
· Nine Lives 2005, Produção Executiva.
· 21 gramas 2003, Gerente.
· In the Cut 2003, Gerente.
· The Haunted Mansion 2003, Gerente.
· Setembro Eleven 11'09''01 2002, Gerente.
· Amores perros 1999, GerenteCada um com Seu Cinema (2007) (Longa-metragem),
(segmento "Anna")
· Babel (2006) (Longa-metragem)
· 21 Gramas (2003) (Longa-metragem)
· 11 de Setembro (2002) (Longa-metragem)
· Amores Brutos (2000) (Longa-metragem)
• FICHA TÉCNICA
Título Original: Babel
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 142 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 2006
Estúdio: Dune Films / Zeta Film / Anonymous Content
Distribuição: Paramount Vantage / UIP
Direção: Alejandro González-Iñárritu
Roteiro: Guillermo Arriaga, baseado em idéia de Guillermo Arriaga e Alejandro González
Iñárritu
Produção: Steve Golin, Alejandro González Iñárritu e Jon Kilik
Música: Gustavo Santaolalla
Fotografia: Rodrigo Prieto
Desenho de Produção: Brigitte Broch
Direção de Arte: Rika Nakanishi
Figurino: Michael Wilkinson
Edição: Douglas Crise e Stephen Mirrione
Efeitos Especiais: Intelligent Creatures Inc. / Lola Visual Effects
• ELENCO
Cate Blanchett (Susan)
Brad Pitt (Richard)
Gael García Bernal (Santiago)
Jamie McBride (Bill)
Kôji Yakusho (Yasujiro)
Lynsey Beauchamp (Isabel)
Nathan Gamble (Mike)
Adriana Barraza (Amelia)
Elle Fanning (Debbie)
Rinko Kikuchi (Chieko)
Aaron D. Spears (Oficial Lance)
Boubker Ait El Caid (Youssef)
Said Tarchani (Ahmed)
Clifton Collins Jr. (Policial)
Michael Pena (John)
Jamie McBride (Bill)
• SINOPSE
Um ônibus repleto de turistas atravessa uma região montanhosa do Marrocos. Entre os
viajantes estão Richard (Brad Pitt) e Susan (Cate Blanchett), um casal de americanos. Ali
perto os meninos Ahmed (Said Tarchani) e Youssef (Boubker At El Caid) manejam um rifle
que seu pai lhes deu para proteger a pequena criação de cabras da família. Um tiro atinge o
ônibus, ferindo Susan. A partir daí o filme mostra como este fato afeta a vida de pessoas em
vários pontos diferentes do mundo: nos Estados Unidos, onde Richard e Susan deixaram seus
filhos aos cuidados da babá mexicana; no Japão, onde um homem (Kôji Yakusho) tenta
superar a morte trágica de sua mulher e ajudar a filha surda (Rinko Kinkuchi) a aceitar a
perda; no México, para onde a babá (Adriana Barraza) acaba levando as crianças; e ali
mesmo, no Marrocos, onde a polícia passa a procurar suspeitos de um ato terrorista.
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