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Pontifícia Universidade Católica
Do Rio de Janeiro
Jovir Alceu Zanuzzo
Por Uma Ética Mais Humana
Uma reflexão sobre os referenciais éticos da pós-modernidade
e a proposta ética da mensagem cristã.
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Teologia da PUC-Rio como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Teologia.
Orientador: Prof. Alfonso Garcia Rubio
Rio de Janeiro
Março de 2009
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Pontifícia Universidade Católica
Do Rio de Janeiro
Jovir Alceu Zanuzzo
Por uma ética mais humana - Uma reflexão sobre
os referenciais éticos da pós-modernidade e a
proposta ética da mensagem cristã
Prof. Alfonso Garcia Rubio
Orientador
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Profª Bárbara Pataro Bucker
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Profª Maria Joaquina Fernandes Pinto
Centro Universitário de Volta Redonda
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do centro
De Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro,
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Todos os direitos reservados. É proibida reprodução total ou
parcial do trabalho sem a autorização da universidade, do autor
e do orientador
Jovir Alceu Zanuzzo
Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo
RS, em 2002. Graduou-se em Teologia pelo Instituto
Missioneiro de Teologia de Santo Ângelo RS, em 2003.
Participou de diversos congressos e seminários na área da
Teologia e Sociologia. Ministrou diversos cursos de formação
popular, bem como na área espiritual. É tutor do Curso de
Teologia à Distância da PUC-Rio e sacerdote da Congregação
dos Missionários da Sagrada Família desde 2004.
Ficha Catalográfica
CDD: 200
Zanuzzo, Jovir Alceu
Por uma ética mais humana: uma reflexão sobre os
referenciais éticos da pós-modernidade e a proposta ética
da mensagem cris / Jovir Alceu Zanuzzo ; orientador:
Alfonso Garcia Rubio. – 2009.
v., 180 f.: il.; 29,7 cm
1. Dissertação (Mestrado em Teologia) Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Teologia
.
Inclui referências bibliográficas
1. Teologia – Teses. 2. Ética cristã. 3. Ética ecumênica.
4. Pós-modernidade. 5. Hipermodernidade. 6.
Personalizão. 7. Subjetivismo. 8. Individualismo. 9. Gilles
Lipovetsky. 10. Hans Küng. I. Garcia Rubio, Alfonso. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Teologia. III. Título.
Agradecimentos
Antes de tudo, como expressão de minha fé, agradeço a Deus, pelas mais
inexplicáveis razões, mas, fundamentalmente, por ser Deus e pelo fato de meu existir
ser manifestação clara de Seu amor.
Agradeço e dedico a meus pais Gentil Luiz (†) e Gema Izabel, minhas irmãs Niles,
Liete e Lenir, meus irmãos Zadir e Volmir, e meus amigos Donato, Thalita e Sidiclei.
Pessoas que estão ao meu lado e dão sentido à minha vida.
Agradeço a quem é um verdadeiro educador, e foi humanamente admirável no
acompanhamento deste trabalho, meu estimado orientador Alfonso Garcia Rubio.
Agradeço à Província Brasil Meridional dos Missionários da Sagrada Família, que me
possibilitou estudar. Estendo minha gratidão especialmente aos colegas de convívio e
missão, Pe. Lourival Bergmann (†) e Pe. Donato Durães de Vasconcellos Junior, pelo
apoio e compreensão ao longo desta etapa.
Agradeço ao Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro que me possibilitou receber auxílio financeiro mediante a CNPq.
Agradeço aos diversos professores de Teologia da PUC-Rio pelos ensinamentos e
palavras sábias que ajudaram a enriquecer minhas reflexões teológicas.
Agradeço aos colegas de pós-graduação, também orientados pelo professor Alfonso
Garcia Rubio, especialmente à amiga Solange Martins Jordão, pela colaboração, pelas
dicas importantes, sugestões e pelos bons momentos de reflexão e convivência.
Agradeço à Paróquia São JoOperário, da Ilha do Governador Rio de Janeiro, na
qual exerço minha missão e onde minhas reflexões encontram eco e eu posso falar de
Deus.
Resumo
Zanuzzo, Jovir Alceu; Rubio, Alfonso Garcia (orientador). Por uma ética mais
humana Uma reflexão sobre os referenciais éticos da pós-modernidade e
a proposta ética da mensagem cristã. Rio de Janeiro, 2009, 180p. Dissertação
de Mestrado - Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Por uma ética mais humana uma reflexão sobre os referenciais éticos da s-
modernidade e a proposta ética da mensagem cristã aborda a sociedade s-moderna
neste tempo de constantes evoluções técnico-científicas, a “hipermodernidade”. As
manifestações humano-sociais assumem uma configuração própria, conseqüência de
um intenso processo de personalização. As frequentes inovações nem sempre
produzem os frutos esperados. Muitas de suas conquistas são responsáveis por uma
flagrante carência de valores e princípios éticos, por um indiferente subjetivismo e
por um generalizado sintoma de “vazio existencial”. Cada vez mais vigoroso, o
individualismo irresponsável torna-se uma real ameaça à sobrevivência humana. Essa
situação interpela e desafia a todos, revelando a urgência de novos referenciais
comportamentais que dinamizem novos relacionamentos e novas atitudes humanas,
mais solidárias e mais responsáveis. Segundo Hans Küng, pelo poder de influência
que ainda possuem, as grandes religiões são capazes de fomentar e dinamizar novos
princípios e valores éticos. Para isso, é necessário buscar um consenso mínimo,
sustentado no diálogo e no respeito mútuo. Levando em consideração a análise feita
por Gilles Lipovetsky e a proposta ética ecumênica de Hans ng, esta dissertação se
propõe apresentar a mensagem cristã como uma autêntica proposta ética, capaz de dar
uma significativa contribuição à humanidade nestes tempos de vulnerabilidade.
Acreditamos que a Boa Nova do Evangelho se reveste de uma significativa
preocupação com a dignidade humana e com a vida em todas as suas manifestações,
oferecendo as bases fundamentais para edificar um mundo mais justo e mais humano.
Palavras-chave
Ética cristã; ética ecumênica; pós-modernidade; hipermodernidade;
personalização; subjetivismo; individualismo; Gilles Lipovetsky; Hans Küng.
Abstract
Zanuzzo, Jovir Alceu; Rubio, Alfonso Garcia (advisor). For a ethics more
human – A reflection upon postmodernity ethical references and the ethical
proposition of the Christian message. Rio de Janeiro, 2009, 180p. MSc.
Dissertation Departmento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
For a ethics more human A reflection upon postmodernity ethical references
and the ethical proposition of the Christian message presentes the postmodern society
at times of constant technical-scientific evolution, the “hypermodernity”. Being
subjected by constant technical-scientific evolution, postmodern society has achieved
its summit. According to Gilles Lipovetsky, we have reached hypermodernity”, in
which the human-social manifestations take on a particular configuration,
consequence of an intense process of personalization. This society characterizes itself
by frequent innovations which don’t always yield the pretended purpose. Many of its
achievements are responsible for flagrant shortage of ethical values and principles,
indifferent subjectivism and a generalized symptom of existential emptiness”. While
getting more vigorous, the irresponsible individualism becomes a real threat to human
survival. This situation questions e dares everyone, revealing the urgency of new
behavioral references that could stimulate new relationships and human attitudes,
more solidary and responsible. As stated by Hans Küng, through the power of
influence that they still possess, major religions are able to promote and stimulate
novel ethical values and principles. Therefore, it is necessary to search for a minimum
consensus, based on dialog and mutual respect. Reflecting upon the analysis
accomplished by Gilles Lipovetsky and the ecumenical ethical proposition of Hans
Küng, the present dissertation means to present the Christian message as an authentic
ethical proposition, capable of bestowing a significant contribution to humanity in
such vulnerable times. It is believed that Gospel’s Good News overlays itself with
significant worry towards human dignity and life in all its manifestations, offering the
fundamental basis to build a more fair and human world.
Keywords
Christian ethics; ecumenical ethics; postmodernity; hypermodernity;
personalization; subjectivism; individualism; Gilles Lipovetsky; Hans Küng.
SUMÁRIO
Intr
odução Geral
1. Ética na Pós
-
Modernidade
1.1. Pós
-
modernidade: a era do vazio
1
4
1.1.1. Da modernidade à cultura pós
-
moderna .
1.1.2. O processo de personalização
1.1.3. A hipermodernidade
2
9
a) A temporalização
b) O narcisismo
c) A indiferença
3
5
d) A estratégia da sedução e o consumo
de massa
3
8
e) O papel propagador da mídia
4
3
1.2. Da soberania do dever à autonomia ética
4
5
1.2.1. A moral do dever e seu caráter
originalmente religioso
4
5
1.2.2. O crepúsculo do dever e a aurora da liberdade de escolha
5
3
1.2.3. Sociedade do pós
-
dever
5
9
1.3. Novos valores e novos caminhos
6
5
1.3.1. Individualismo
e moral subjetiva
6
5
1.3.2. Renovação ética, “ética indol
or” e minimalismo ético
6
9
a) Moral indolor e minimalismo ético
7
1
b) Ética midiática
7
3
c) Ética nos negócios
7
5
1.3.3. Relações novas e valores novos
8
1
a) A família .
8
1
b) O trabalho ..
8
3
c) Outros aspectos
8
6
1.4
-
Conclusão
8
8
2. Uma ética de sobrevivência
.
2.1. Interpelações de uma nova ética
9
2
2.1.1. Os desenvolvimentos catastróficos e a ameaça à sobrevivência
humana.
9
2
2.1.2. As irrupções inovadoras e a pós
-
modernidad
9
6
2.1.3. Um caminho novo e a urgência ética .
1
0
3
2.2. Proposta de ética mundial
6
2.2.1. Um mínimo de valores, normas e comportamentos comuns
7
2.2.2. Ética de responsabilidade .
2
2.2.3. Ética para a paz e a sobrevivência humana .
1
20
2
.3. Um caminho ecumênico .
3
2.3.1. A força das religiões
4
2.3.2. Diálogo e respeito ao diferente: press
upostos para a paz
1
30
2.3.3. O humano como critério ecumênico fundam
ental
4
Conclusão
8
3. A
mensagem cristã e sua contribuição ética
1
40
3.1. A proposta salvífica de Deus
1
3.1.1. Jesus Cristo: revelação plena de Deus
2
3.1.2. O Reino de Deus
6
3.1.3. Um Deus de amor.
1
50
3.2. Acolhida humana e conversão
4
3.2.1. A fé cristã
5
3.2.2. A prática do amor: caminho de
salvação
7
3.2.3. O compromisso com o Reino.
1
60
3.3. Desafios à vivência cristã na pós
-
modernidade
2
3.3.1. A subjetividade pós
-
moderna e a fé cristã
163
3.3.2. A fragilidade da fé
5
3.3.3. A dimensão ética da proposta salvífica cris
7
3.4.
Conclusão .
174
4
-
Conclusão Geral
5
5
-
Referências
Bibliográficas
8
Introdução Geral
A sociedade pós-moderna vive uma relativa carência de valores e
princípios éticos que orientem o homem no caminho de sua realização plena. No auge
do consumismo e do individualismo, ganha vigor um subjetivismo indiferente, fruto
de um processo de personalização que estabelece o indivíduo como parâmetro para
todo agir humano. As constantes evoluções técnico-científicas, empreendidas pela
sede humana de satisfações e realizações, não eliminam o “vazio” existencial, mas
suscitam realidades preocupantes e claras ameaças à própria sobrevivência humana.
Essa realidade nos interpela e desafia. Urge fomentar referenciais éticos que
dinamizem novos relacionamentos, mais responsáveis e mais solidários, entre os
seres humanos, bem como destes com o meio ambiente. É urgente uma preocupação
ética que assegure a preservação da vida, em todas as suas manifestações.
As reflexões que desenvolveremos neste trabalho se originam, em grande
parte, do contato com as pessoas em nosso trabalho pastoral e em nosso convívio
social. A configuração humano-social de nosso tempo é perceptível a partir das
conturbadas realidades familiares, do desafiante mundo do trabalho, das formas
específicas de se viver a fé e de se acreditar no futuro. Surgem interpelações a partir
da atuação pastoral em realidades distintas nos aspectos religiosos, culturais,
econômicos e sociais. Levando em conta que a dimensão ética é uma das
preocupações centrais deste nosso tempo, pretendemos tecer, dentro de nossas
limitações, uma reflexão acerca das manifestações éticas da s-modernidade.
Reconhecendo a fragilidade ética nos relacionamentos e no agir humano,
apontaremos para a importante contribuição que as religiões, e especificamente o
cristianismo, podem dar à sociedade humana.
Dentro de nossas condições, pretendemos mostrar que, diante da carência
de pólos irradiadores de comportamentos eticamente responsáveis e humanizadores, a
mensagem cristã aparece como uma eficaz alternativa em vista de uma ética que seja
garantia de sobrevivência para a humanidade atual e para as futuras gerações. Nossa
10
hipótese se desenha a partir da convicção de que a proposta salvífica cristã, revelada
por Jesus e acolhida pelo ser humano à luz da fé, é fundamento precioso e
imprescindível para uma ética mais humana. Se, por um lado, o desafio está em
“semear” essa mensagem, por outro lado está a disposição em cultivar a semente.
Uma ética fundamentada na Boa Nova cristã precisa, naturalmente, superar os
recintos sagrados e atingir a todos os seres humanos, crentes e não-crentes.
Nosso trabalho se caracteriza como uma pesquisa bibliográfica, que utiliza
as reflexões de alguns autores que acreditamos serem capazes de nos auxiliar na
reflexão a que nos propomos. Para alcançar nossa meta, tecendo uma reflexão
pertinente, dividiremos nosso trabalho em três capítulos.
No capítulo primeiro faremos uma abordagem da pós-modernidade, com
suas expressões éticas, a partir do filósofo francês Gilles Lipovetsky. Escolhemos
este autor por ser mundialmente reconhecido como um especialista no estudo da pós-
modernidade. Sem assumir um posicionamento pessimista por demais, e evitando um
exagerado louvor à pós-modernidade, ele apresenta uma visão bastante equilibrada
desta. Usaremos diversas obras suas, mas principalmente A era do vazio” e A
sociedade pós-moralista”. Em seus últimos escritos ele utiliza a expressão
“hipermodernidade” para se referir ao tempo atual. O autor reconhece as limitações e
também os alcances positivos das inovações técnico-científicas da sociedade moderna
que, envolvida por um intenso processo de personalização, faz do indivíduo o critério
fundamental para todo agir humano. Segundo ele, com a aurora da liberdade de
escolha, a ética perde seu caráter religioso e assume uma autonomia própria,
instaurando a sociedade do “pós-dever, onde são valorizados os direitos subjetivos
em detrimento dos deveres pessoais. Nas mais diversas dimensões humanas ganha
força uma aparente renovação ética que, por seu caráter marcantemente “indolor”,
fundamenta novos relacionamentos e instaura novos valores.
Considerando a fragilidade e a complexidade da sociedade s-moderna,
que se mostra incapaz de responder satisfatoriamente aos anseios humanos, o
segundo capítulo deste trabalho será desenvolvido a partir da proposta de ética
mundial do teólogo Hans Küng. Na escolha desse autor pesou sua interessante obra
“Projeto de ética mundial”, que aponta para a necessidade de uma ética ecumênica,
11
alicerçada no diálogo e no respeito, em vista da paz e da sobrevivência humana. Essa
proposta ética, no entanto, tem sua viabilidade condicionada à necessidade de se
fomentar um mínimo de valores, normas e comportamentos comuns a toda sociedade
humana. Ressoa, no entanto, a pergunta: onde encontrar uma fundamentação ética de
validade incondicional, que seja aceita e assumida por todos? Sem deixar de
reconhecer a grande influência que outros meios exercem nas sociedades
contemporâneas, Hans Küng evidencia a força que as grandes religiões ainda
exercem na vida de seus bilhões de seguidores. Como veremos, o autor acredita ser
possível instaurar a paz mundial e garantir um futuro promissor à humanidade quando
as religiões assumirem conjuntamente a sublime missão de semear entre seus
seguidores sementes de respeito, diálogo e fraternidade.
Esse caminho em busca da paz mundial, segundo Hans Küng, deve ter
como critério ecumênico fundamental o ser humano. A partir dessa evidência, e sem
deixar de reconhecer a riqueza da mensagem que caracteriza cada uma das demais
religiões, acreditamos que a proposta cristã tenha uma contribuição única e essencial
à sociedade humana nestes complexos tempos pós-modernos. No terceiro e
conclusivo capítulo de nosso trabalho buscamos o auxílio de alguns expoentes da
reflexão teológica atual. Dentre os mais citados, destacamos Alfonso Garcia Rubio,
João Batista Libânio, Jon Sobrino, Karl Rahner, Luiz F. Ladária e rio de França
Miranda. Pretendemos apresentar sucintamente alguns aspectos básicos da mensagem
cristã, capazes de sustentar uma proposta ética de validade incondicional. Veremos
que a dinâmica dessa mensagem tem seu primeiro passo na iniciativa salvífica de
Deus, expressão de Seu amor. A revelação desse plano amoroso se dá na vida
concreta de Jesus, que anuncia e faz acontecer o Reino de Deus.
O segundo passo cabe ao ser humano que, livremente, acolhe ou rejeita a
salvação. A acolhida se na medida em que, a exemplo de Jesus, se cultiva a fé,
inseparável da prática do amor-serviço, em constante abertura à vontade de Deus. A
rejeição, por sua vez, se reflete no fechamento egoísta, por parte do ser humano, a
essa mesma proposta salvífica. Na medida em que a proposta cristã nos é apresentada
como orientações em vista de uma caminhada humana mais justa, mais fraterna, mais
realizadora, enfim, em vista da salvação integral da pessoa humana, evidentemente
12
ela se constitui uma proposta ética. Por sua vez, se a acolhida dessa proposta,
mediante a fé, implica uma vivência do amor-serviço, uma abertura solidária aos
demais, um compromisso com a vida em todas as suas manifestações, então a
proposta cristã oferece bases sólidas para uma vivência ética mais humana.
Concluindo nosso trabalho, apontamos para o desafio que é assumir uma
autêntica cristã em contexto pós-moderno, principalmente devido à absoluta
primazia concedida à subjetividade humana que impede, muitas vezes, a vivência
daquela atitude que é expressão maior do amor a Deus: o amor ao próximo. Veremos,
no entanto, que a Boa Nova de Jesus, assumida concretamente nos relacionamentos
interpessoais, comunitários e sociais, nos possibilita reacender a esperança de um
mundo mais justo, mais fraterno e mais humano.
Esperamos confirmar, assim, nossa intuição em relação à viabilidade de
uma ética fundamentada na proposta cristã. Acreditamos que o tesouro da Boa Nova
revelada por Jesus e, conseqüentemente, sua preciosa contribuição à humanidade, está
na prática do amor, fundamento para toda ética verdadeiramente humana. É por causa
da força transformadora do amor que olhamos para a iniciativa divina e para a
resposta humana como dimica capaz de nos possibilitar sonhar com um mundo
novo.
13
1
Ética na pós-Modernidade
Introdução
Toda sociedade humana está sujeita às constantes transformações. Onde
está presente o homem, o contexto à sua volta se configura a partir de sua ação. Não
apenas no âmbito físico, estrutural, mas principalmente naquilo que diz respeito ao
que lhe é próprio, as relações. Novas formas de se relacionar despontam com o
progresso, em cada descoberta, com o raiar de novos conhecimentos. No
relacionamento com a natureza, com o outro, com o transcendente e consigo mesmo,
o ser humano constantemente descobre e assume novos valores e novos princípios.
Assim, outros são deixados de lado, superados, esquecidos. Se o que caracteriza o
homem são as relações que ele estabelece, os valores que ele assume, os ideais que
ele alimenta e as realizações que ele concretiza, então podemos dizer que a cada novo
tempo, o ser humano se refaz, se transforma, se “atualiza”. E assim é em nosso
tempo, a pós-modernidade.
Partindo da pertinente reflexão de Gilles Lipovetsky, abordaremos neste
primeiro capítulo a sociedade atual com sua configuração própria, conseqüência das
buscas e concretizações humanas que sempre visam satisfazer os anseios do
indivíduo, oferecendo-lhe meios de realização pessoal. No entanto, como veremos,
esse tempo traz em si profundas lacunas, gerando um doloroso vazio existencial.
Usando um termo próprio, o autor fala deste tempo como hipermodernidade”,
reconhecendo características marcantes que denotam a saturação e conseqüente
superação das-modernidade. Uma saturação por excesso e por ausência ao mesmo
tempo. Embora cada vez mais recheado de ofertas, o indivíduo não é capaz de
realizar-se plenamente.
Em suas reflexões, Lipovetsky constata que as inovações técnico-
científicas, pleiteadas pelo sujeito moderno, imprimiram um ritmo acelerado nas
transformações humano-sociais, evidenciando uma nova cultura, alicerçada no
“processo de personalização”, que torna absoluto o sujeito humano. Paralelo a isso,
14
muitas práticas e atitudes próprias da modernidade sofrem substanciais
transformações e os direitos subjetivos ganham mais visibilidade que os deveres
diante da sociedade. Dessa forma, surge a sociedade do pós-dever, onde a liberdade
de escolha ganha plena autonomia. A ética, antes fortemente marcada pelo imperativo
categórico e pelo caráter religioso, aparece livre de imposições exteriores. A religião,
por sua vez, historicamente fomentadora da ética, perde espaço, enquanto ganha vigor
a secularização da sociedade.
Em nossa reflexão, é perceptível como a ética, já desvencilhada da cultura
religiosa e de todo caráter de sacrifício, não deixa de existir, mas assume uma
configuração nova, centrada no “eu”. Tendo como horizonte a realização pessoal, a
sociedade pós-moderna e pós-moralista vai trilhando novos caminhos, fomentando
novos valores e suscitando novas relações. As inquietantes injustiças, que marcam
nossa sociedade dão impressão de que a ética foi esquecida. Veremos, no entanto, que
a ética continua presente, embora tenha assumido características novas. o
flagrantes as manifestações e iniciativas de caráter ético por parte dos mais distintos
segmentos sociais. Naturalmente, não podemos ver nisso uma autêntica renovação
ética. De acordo com Lipovetsky, ganha espaço uma ética “indolor”,
descomprometida e fortemente individualista. A ética torna-se um negócio
interessante, principalmente em relação às iniciativas de empresas e setores do
mercado obstinados pelo lucro. Abordaremos, também, outros aspectos da vida
humana, onde é fomentado um minimalismo ético que não exige sacrifício, mas
tranqüiliza o sujeito e alivia sua consciência. Assim são os novos tempos.
1.1. Pós-modernidade: a Era do Vazio
Nosso tempo é resultado das significativas e profundas mudanças a que se
submeteu a sociedade humana. Muitos estudiosos reconhecem a atual sociedade
como uma época vazia de sentido, onde o ser humano perambula indeciso e inquieto
por veredas sempre novas, sem saber para onde o conduzem. Esse vazio reflete a
ausência de certezas, tão comuns em tempos anteriores. É, portanto, um vazio daquilo
que o sujeito moderno estava saturado. Para Gilles Lipovetsky, esse vazio representa
15
“a derrocada da moral rigorista e o surgimento de uma elaboração ética a la carte”.
1
É o fim de uma época de valorização do sacrifício e condenação do prazer. A era do
vazio é ausência, mas também novidade.
“Mais do que uma ausência, um vácuo, o vazio representa um novo conteúdo. A
modernidade estruturou-se como imaginário do dever e do homogêneo. Cada
indivíduo precisava corresponder ao imperativo moral dominante, mesmo
naquilo que só dizia respeito ao seu espaço privado. A idéia de imperativo serviu
de cobertura para a imposição de visões de mundo e para a exclusão de todos os
que ousaram postular modos alternativos de vida. A corrosão do imperativo
moral, vista por muitos como sinal de decadência da estrutura social, pode ser, na
verdade, considerada uma marca de libertação”.
2
Sem ignorar os aspectos negativos da era do vazio, o autor percebe que ela
está relacionada a uma situação de libertação e abertura, onde o sujeito humano
rejeita os esquemas impositivos, e almeja gozar sua autonomia. Nessa realidade, onde
tudo se move, tudo se transforma, tudo é fluxo, surgem novas liberdades,
acompanhados de novos problemas, novas angústias e novas expectativas.
“Na era do vazio, estamos menos carregados e mais livres, mais lúcidos e menos
dependentes, mais exigentes e menos submissos, mais flexíveis e menos
engessados por engrenagens de poder em nome de verdades que se apresentavam
como transcendentais ou universais, embora não passassem de formas locais de
controle. Em termos de moral, menos é mais. O moralismo caracteriza-se pelo
excesso de valores que não podem ser discutidos. A ética numa sociedade
liberada do sacrifício faz-se do mínimo indispensável à coesão social e ao
respeito ao outro. O vazio salva do excessivo”.
3
A superação da modernidade, com sua sobrecarga moral, identifica-se
com a busca de novos caminhos, novas liberdades, novos parâmetros éticos e
comportamentais. Se junta a isso uma descrença generalizada nos mecanismos
orientadores da vida pessoal e social. A Igreja, a família, o partido, o trabalho, o
saber, o poder, antes absolutos e inquestionáveis, perdem sua credibilidade e cresce,
assim, o deserto de referenciais absolutos.
1
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo, São Paulo,
Manole, 2005, x (a introdução da obra é em numeração romana).
2
Ibid, XI.
3
Ibid., X.
16
“Quem continua acreditando no trabalho, quando o frenesi das férias, dos fins de
semana, dos lazeres, não cessa de se desenvolver, quando a aposentadoria se
torna uma aspiração de massa, um ideal? Quem continua acreditando na família
quando os índices de divórcio não param de subir, quando os velhos são exilados
para casas de repouso, quando os casais se tornam ‘livres’, quando o aborto, a
contracepção, a esterilização se tornam legais? Quem continua acreditando no
exército quando escapar do serviço militar o é uma desonra? Quem continua
acreditando nas virtudes do esforço, da economia, da consciência profissional, na
autoridade, nas sanções? A onda de desafeição se propaga por todo lado,
despindo as instituições de sua grandiosidade e do seu poder de mobilização
emocional”.
4
Embora esse retrato social possa parecer desesperador, as instituições
ainda insistem na tentativa de injetar sentido e valor ondereina um deserto atico.
Com essa desmontagem dos mecanismos de legitimação pela moral, é flagrante uma
considerável perda de poder pelos donos” das sociedades e um re-arranjo das formas
de controle. A desordem de pensamentos é, na realidade, uma desordem de
referências, que atinge, até mesmo, a referência cardeal: o valor da pessoa humana.
5
Onde deveriam reinar princípios e valores reguladores, orientadores, inspiradores do
agir humano, revela-se um vazio. Sem esses parâmetros, a esfera privada se torna
determinante, e viver sem finalidades transcendentais parece algo perfeitamente
possível.
6
Os grandes alcances da sociedade pós-moderna não trazem uma satisfação
plena ao indivíduo de nosso tempo, mas apresentam um inevitável paradoxo: por um
lado saturação de caminhos, por outro lado cada vez mais indecisão e vidas.
“Quanto mais a cidade desenvolve as possibilidades de encontros, mais os
indivíduos se sentem s; quanto mais as relações se tornam livres, emancipadas
das antigas restrições, mais rara se torna a possibilidade de conhecer uma relação
intensa. Por todo lado há solidão, vazio, dificuldade de sentir, de ser transportado
para fora de si mesmo”.
7
Ante a vasta gama de possibilidades de satisfação, ganha espaço uma
estratégia característica deste tempo, a sedução. Em vez de manipular e impor, é
4
Ibid., pp. 18-19.
5
VALADIER, P., Moral em Desordem: um discurso em defesa do ser humano, São Paulo, Loyola,
2003, p. 158.
6
LIPOVETSKY, G., op. cit. p. 33.
7
Ibid., pp. 57-58.
17
preciso seduzir e conquistar. Como veremos, a partir do processo de personalização,
até mesmo os valores, antes impostos, agora são escolhidos.
1.1.1. Da modernidade à cultura pós-moderna
A liberdade e a democracia sempre foram características marcantes da
modernidade, época em que a cultura humana sofreu profundas transformações.
Como frutos de um árduo processo fundado na soberania do indivíduo e do povo,
surgiram as sociedades democráticas e descortinaram-se, assim, novos caminhos para
a humanidade. Amparado no valor precioso da liberdade, o homem moderno passou a
rejeitar todo tipo de submissão, de hierarquias e domínio das tradições. A
modernidade é uma sociedade sem fundamento divino, pura expressão da vontade
dos homens, então reconhecidos como iguais.
8
Uma sociedade que acredita
profundamente na ciência, e se re-inventa constantemente, de acordo com a razão
humana. Segundo Lipovetsky, o endeusamento/absolutização da liberdade na
modernidade não elimina por completo as marcas do rigorismo moral, do sacrifício e
do determinismo que, muitas vezes, impedem a escolha pessoal.
“A moral rigorista ocidental fazia do homem o chefe da família, a autoridade
paterna, a voz incontestável, o esteio da sociedade do microcosmo do lar. A
mulher vivia em situação secundária, praticamente sem direito ao prazer, ao
orgasmo, à liberdade sexual e à vida profissional. Não se estava numa sociedade
de escolha, mas numa teia coercitiva. Família, Igreja, Pátria, Partido e Ideologia
dominavam a cena social e serviam de pastores e de sentido para a existência,
obrigando a conformar-se, a tomar a forma de um mundo moralmente
determinado, sexista e produtivista”.
9
De certa forma, na modernidade, a felicidade pessoal ainda está
condicionada ao bom cumprimento daquilo que é estabelecido. Austeridade e
dedicação são atitudes muito valorizadas no homem moderno, e o espírito sacrificial
alimenta o anseio pela felicidade pessoal. No entanto, é no seio da própria
modernidade que ganham voz inquietações e novas buscas que terão papel importante
8
Ibid., p. 66.
9
Ibid., p. XI.
18
na superação dessa época da história humana. É no contexto do mundo moderno que
o progresso torna-se uma obstinação e o Iluminismo passa a ditar seu ritmo frenético.
“Embora suas raízes se estendam até épocas bem anteriores ao Iluminismo, o
mundo moderno está marcado por seu dinamismo sem precedentes, por sua
rejeição da tradição, ou sua marginalização, e por suas conseqüências globais. O
ponto central da visão de futuro da modernidade se relaciona fortemente com a
crença no progresso e com o poder da razão humana de produzir liberdade. Mas
suas insatisfações procedem da mesma fonte: otimismo não realizado e dúvida
inerente acalentada pelo pensamento pós-tradicional”.
10
Por ser uma época muito dinâmica e de mudanças profundas, incessantes
conflitos marcam a modernidade, que rejeita a tradição e, cheia de confiança no
futuro, aposta na ciência e na técnica. O progresso não sai de cena e a liberdade se
torna valor absoluto. São questionados os modos convencionais de ser e fazer as
coisas. Diferentemente da sociedade tradicional, na modernidade a identidade pessoal
não é transmitida, mas construída.
11
Essas grandes mudanças atingiram as relações
humanas, principalmente na esfera familiar e do trabalho. O sujeito moderno assume
um posto diferenciado e autônomo.
“Com os modernos, a idéia de um mundo real impondo suas leis torna-se
incompatível com o valor da mônada individual ontologicamente livre. A
liberdade dos modernos o poderia admitir limites para a sua ação, pois se
manifesta por um processo hiperbólico de negação das regras heterônomas e,
correlativamente, por uma criação autônoma que decreta suas pprias leis. Tudo
aquilo que se aia em uma independência intangível, tudo aquilo que implica
submissão, a priori não pode resistir à autonomia individual. A liberdade exige
ruptura e insubmissão, destruição das leis e significados recebidos para chegar a
uma criação soberana”.
12
A liberdade é uma conquista moderna que se torna parte do sujeito, para
quem quase nãomais limites, e sim desafios sempre novos, alimentados pelo ideal
de autonomia pessoal. A religião vai sendo relegada, pois se mostra incapaz de
fornecer respostas e soluções aos complexos questionamentos do homem moderno.
Dessa forma, a vida pública passa a ser cada vez mais dominada por princípios
10
LYON, D., Pós-Modernidade, São Paulo, Paulus, 1998, p. 35.
11
Ibid., p. 37.
12
LIPOVETSKY, G., op.cit., p. 73.
19
estranhos à religião.
13
Essa nova organizão social enfraquece, ou faz desaparecer,
certos princípios religiosos, deslocando as pessoas de seus contextos antigos e
comunais. No entanto, segundo Durkheim, as formas essenciais da vida religiosa
persistiriam de maneiras apropriadas à era moderna.
14
É certo que a crença no
progresso não apagou por completo a crença na providência, pois no seio da própria
modernidade surgiam novas formas e místicas religiosas.
Proclamando a autonomia humana, a modernidade permitiu à razão
instrumental ser a regra da vida, dando início a uma mudaa que terminaria
melancolicamente. A promessa do progresso, que enchia os olhos da modernidade,
azedou.
15
Se por um lado as maravilhosas descobertas fizeram o homem moderno
sonhar mais alto, por outro lado esse mesmo homem sofreu profundas desilusões. A
falta de regulação convencional gerava uma sensação de incerteza, de perda de
direção. Como chave da modernidade, a racionalização produziu o desencanto do
mundo”. A aparente sensação de liberdade e autonomia não eliminava as angústias
geradas pela ausência de uma base normativa.
“A modernidade vive com dúvidas e contradições internas desde o começo. Não
somente magia e mistério, mas também autoridade e identidade se dissipam ou
difundem com o advento da modernidade. É a desilusão do mundo. A autoridade
supostamente passa das bases religiosas para as científicas. O eu autônomo
assume o centro da cena, reivindicando novas liberdades que seriam convertidas
em direitos civis, políticos e sociais”.
16
Os valores individualistas ganham força e apontam para uma superação de
toda subordinão. Assim como a revolução democrática emancipa a sociedade das
forças do invisível e do universo hierárquico, o modernismo artístico liberta a arte e a
literatura do culto à tradão. A arte é um aspecto de grande visibilidade na
modernidade. E, embora não se dê uma ruptura absoluta, as fronteiras da cultura
artística se deslocam, na lógica dos novos valores, como a liberdade, a igualdade e a
revolução.
17
A arte assume uma expressão livre e desconexa de qualquer
13
LYON, D., op. cit., p. 57.
14
Ibid., p. 46.
15
Ibid., p. 57.
16
Ibid., p. 56.
17
LIPOVETSKY, G., op. cit. p. 75.
20
enquadramento. O modernismo
18
destrói as regras e convenções estilísticas,
fomentando obras personalizadas, despidas de padrão. A expressão se elabora sem
código preestabelecido, sem linguagem comum, de acordo com a lógica de um tempo
individualista e livre.
19
Na arte moderna, tem papel importante a interveão
manipuladora do utilizador, as ressonâncias mentais do leitor ou do espectador. É
preciso evitar uma interpretação unívoca.
Como vemos, a modernidade não se limita às questões políticas,
econômicas e tecnológicas, mas abrange os mais diversos aspectos da vida humana.
Embora tenha sido o primeiro modo de organização social a alcançar uma
predominância global, a modernidade suscitou preocupações desde o começo.
20
Regrada pelos mais distintos valores, e em permanentes conflitos, a modernidade
começava a gerir sua própria mudança.
“Na modernidade, a Revolução e a luta de classes são suas peças mestras; os
valores consagram a poupança, o trabalho, o esforço; a educação é autoritária e
regularizadora. Contudo, a partir do final do século XIX e da era do consumismo,
estabeleceram-se sistemas regidos por outro processo, maleável, plural,
personalizado. Neste sentido, pode-se dizer que a fase moderna das nossas
sociedades caracterizou-se pela coexistência de duas lógicas adversas com a
evidente preeminência, até as décadas de 1950 e 1960, da ordem disciplinar e
autoritária”.
21
À força da personalização hedonista, da preeminência de valores
subjetivistas, os grandes eixos modernos foram sendo modificados e o otimismo
tecnológico e científico foi perdendo força. A degradação humana e ambiental foi se
18
David Lyon estabelece uma distinção entre s-modernismo e pós-modernidade. No pós-
modernismo, a ênfase recai sobre o cultural, e se refere aos fenômenos culturais e intelectuais. Aí, um
dos fenômenos é o abandono do ‘fundacionalismo’, onde o pós-modernismo questiona todas as
premissas básicas do Iluminismo. Outro femeno é o colapso das hierarquias de conhecimento, de
gosto e opinião e o interesse pelo local em lugar do universal. Aparece também a substituição do livro
pela TV, a migração da palavra para a imagem, do discurso para a representação. Na pós-modernidade,
por sua vez, a ênfase recai sobre o social, e se concentra no esgotamento da modernidade, relacionada
com mudanças putativas. Significa que uma nova sociedade está surgindo, com a proeminência das
novas tecnologias de informação e comunicação, bem como do consumismo. LYON, D., op. cit. pp.
16-17.
19
LIPOVETSKY, G., op.cit. p. 79-80.
20
LYON, D., op. cit., p. 48. No mundo da produção, Marx encontrou capitalistas exploradores e
trabalhadores alienados. Durkheim detectou uma profunda sensação de ansiedade, de incerteza com
relação ao andamento das coisas. Weber temia que a racionalização talvez abatesse o espírito humano.
Simmel sentiu que a sociedade de estranhos produziria novo isolamento e fragmentação social.
21
LIPOVETSKY, G., op. cit. p. 90.
21
tornando uma preocupação cada vez maior. As ideologias políticas perderam a
capacidade de inflamar as multidões. Quebraram-se os tabus e um vazio passou a
reinar.
22
Um vazio, no entanto, sem tragédia e sem apocalipse. Assim criam raízes as
sociedades pós-modernas.
“É a anexação cada vez mais ostensiva das esferas da vida social pelo processo
de personalização e o recuo concomitante do processo disciplinar que nos leva a
falar de sociedade pós-moderna, ou seja, de uma sociedade que generaliza uma
das tendências da modernidade inicialmente minoriria. Sociedade pós-moderna,
maneira de significar a virada histórica dos objetivos e das modalidades de
socialização, no momento sob a égide de dispositivos abertos e plurais; maneira
de dizer que o individualismo hedonista e personalizado tornou-se legítimo e já
não encontra oposição; maneira de dizer que a era da revolução, do escândalo, da
esperança futurista, inseparável do modernismo, está acabada”.
23
A disciplina, que na modernidade tinha a finalidade de controlar os
indivíduos, otimizando-lhes as faculdades produtivas, e produzindo uma conduta
padronizada,
24
se dissolve, assim como também as crenças nos amans radiosos da
revolução e do progresso. O que se busca, na pós-modernidade, é usufruir o momento
presente. Porque ninguém mais defende a ordem e a tradição
25
, está superada a
grande fase do modernismo que viu o desenrolar dos escândalos da vanguarda. o
mais tensão entre os artistas inovadores e o público. O enfraquecimento da
vanguarda coincide com a eclosão de uma expressão cultural de massa. Não significa
dizer que a arte morreu, ou que os artistas não têm mais imaginação, mas que a arte se
torna uma expressão subjetiva e eclética, e não mais um vetor revolucionário.
“Não se trata mais de criar um novo estilo, mas, sim, de integrar todos os estilos.
A tradição se torna uma fonte viva de inspiração, do mesmo modo que o novo.
Os valores até então proibidos de permanecer são tocados à frente, no contrapé
do radicalismo modernista: tornam-se preeminentes o ecletismo, a
heterogeneidade dos estilos no seio de uma mesma obra, o decorativo, o
metafórico, o lúdico, o vernacular, a memória histórica”.
26
22
Ibid., XIX.
23
Ibid., XVII
24
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, São Paulo, Editora Barcarolla, 2004, p. 16.
25
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 83.
26
Ibid., 98.
22
Nesse sentido, o s-modernismo não pretende a destruição das formas
modernas, mas a coexistência pacífica dos estilos, paralelamente a uma sociedade
onde as ideologias rígidas são rejeitadas e as instituições caminham para a opção e a
participação. O indivíduo se torna flutuante e tolerante. Não há mais divórcio entre os
valores da esfera artística e do cotidiano. As obrigações pré-traçadas são substituídas
pela livre escolha, a rigidez da “linha certa” pelo coquetel fantasioso.
27
A cultura pós-
moderna legitima a afirmação da identidade pessoal de acordo com os valores de uma
sociedade personalizada, na qual o importante é ser a própria pessoa. Imbuído do
espírito das sociedades abertas, o pós-modernismo aumenta as possibilidades
individuais de escolhas e combinações.
28
Assim, o modelo geral da vida nas
sociedades contemporâneas é marcado por uma espécie de self-service e pelo
atendimento a la carte. A “era do vazio, segundo Lipovetsky, é a consagração da
possibilidade de viver sem sentido, de não crer na existência de um único e categórico
sentido, mas de apostar na construção permanente de sentidos múltiplos, provisórios,
individuais, grupais ou fictícios.
29
A pós-modernidade é uma sociedade do presente,
sem amarras, livre e constantemente renovada, sujeita à moda da eterna juventude. A
partir de um eficaz processo de personalização, o indivíduo não é mais meio para uma
finalidade exterior, mas é considerado, e se considera, como finalidade última.
1.1.2. O processo de personalização
O homem é sempre expressão do contexto e do tempo em que vive. E a
sociedade, por sua vez, é expressão do homem de seu tempo. Com base na
democracia e na liberdade, a modernidade fomentou a industrialização e o crescente
consumismo. Embora novas questões entrem em cena, com o advento da s-
modernidade, os fundamentos de liberdade e democracia são preservados e
fortalecidos ainda mais. Em muitos aspectos continuidade e aprofundamento, em
outros, uma certa ruptura, como é o caso do modelo de socialização disciplinar.
Alimentado por um constante progresso tecnológico, o consumismo cresce e assume
27
Ibid., 99.
28
Ibidem.
29
Ibid., XII.
23
um papel de grande importância na sociedade pós-moderna. Segundo Lipovetsky,
tudo isso a partir de uma lógica que remodela continuamente, e em profundidade, o
conjunto dos setores da vida social, o “processo de personalização”.
“O processo de personalização procede de uma perspectiva comparativa e
hisrica, determina a linha diretiva, o senso do novo, o tipo de organização e de
controle social que nos liberta da ordem disciplinar-revolucionária-convencional
que prevaleceu até o decorrer da década de 1950. Ruptura com a fase inaugural
das sociedades modernas, democráticas-disciplinares, universalistas-rigoristas,
ideológicas-coercitivas, este é o sentido do processo de personalização”.
30
Esse processo assume, em certo sentido, um papel libertário em relação à
modernidade. O individualismo ganha asas e se torna soberano, expressão de um
sujeito voltado para a escolha permanente, alérgico ao autoritarismo e à violência,
tolerante e ávido de mudanças freqüentes. Essa mutação histórica revela a emergência
de um modo de socialização e de individualização iditos. Como expressão de uma
sociedade flexível, baseada na informação e no esmulo das necessidades, inaugura-
se uma nova fase do individualismo.
“O universo dos objetos, das imagens e da informação, bem como os valores
hedonistas, permissivos e psicológicos que estão ligados a ele, geram,
simultaneamente uma nova forma de controle dos comportamentos, uma
diversificação incomparável nos modos de vida, uma flutuação sistemática da
esfera privada, das crenças e dos modos de agir; em outras palavras, uma nova
fase na história do individualismo ocidental.
31
Com o processo de personalização se uma revolução permanente do
cotidiano e do próprio indivíduo. Instaura-se um novo modo de a sociedade se
organizar e se orientar, bem como um novo modo de gerenciar os comportamentos. O
imaginário rigorista vai desaparecendo, e novos valores aparecem, visando o livre
desenvolvimento e a realização das aspirações subjetivas do homem contemporâneo.
A esfera privada ganha soberania e o ideal moderno de subordinação do indivíduo a
regras racionais coletivas é pulverizado. Ganha valor absoluto a realização pessoal, e
o eu” se torna parâmetro para todo agir humano. É o reinado do indivíduo! O direito
de ser absolutamente si mesmo, aproveitando a vida ao máximo é uma manifestação
30
Ibid., XVI.
31
Ibid., XV.
24
definitiva da ideologia individualista s-moderna.
32
Os costumes são afetados e a
“regra é ser diferente, único, autêntico e espontâneo, fugindo de toda padronização.
“Os costumes também se voltaram para a lógica da personalização. A tônica do
tempo reside na diferença, na fantasia, na descontração; o padronizado e o
afetado não têm mais tanta aceitação. O culto à espontaneidade e à cultura psi
estimulam as pessoas a serem ‘maiselas mesmas. A emancipação individual se
estende a todas as categorias de idade e sexo”.
33
No viés da ideologia individualista, e impulsionados pela aceleração técnica e o
conseqüente consumismo de massa, as mudanças são cada vez mais freqüentes e
avassaladoras. A cultura personalizada, sob medida, permite ao indivíduo viajar no
próprio ritmo, de acordo com os próprios desejos. As aspirações pessoais ganham
asas e a vida pode ser modulada em função das motivações pessoais.
Flexível, aberta e plural, a sociedade s-moderna representa o momento
histórico preciso em que os freios institucionais, que se opunham à emancipação
individual, desaparecem, dando lugar à manifestação dos desejos subjetivos, da
realização individual, do amor-próprio.
34
Com o processo de personalização, o âmbito
social não é mais que o prolongamento do privado, liberando os indivíduos das
amarras institucionais. No embalo da lógica personalista, a s-modernidade
possibilita ao indivíduo realizar os ideais das Luzes, que a modernidade anunciara em
termos legalísticos, mas sem ter-lhes dado força real.
35
Diferentemente da
modernidade, agora a figura do “indivíduo autônomo” não é apenas teórica, mas real.
O dinamismo do Estado moderno teve papel importante nessa mudança, como
reconhece Lipovetsky:
“De fato, foi a ão conjugada do Estado moderno e do mercado que permitiu a
grande fratura, que hoje nos separa para sempre das sociedades tradicionais, e o
aparecimento de um tipo de sociedade na qual o indivíduo se considera
finalidade última e não existe a não ser para si mesmo. Pela centralização efetiva
e simbólica que operou, o Estado moderno desempenhou um papel determinante
na dissolução, na desvalorização dos laços anteriores de dependência pessoal e
32
Ibid., XVII.
33
Ibid., p. 05.
34
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p. 23.
35
Ibid., p. 20.
25
influiu no surgimento do indivíduo autônomo, livre de todas as cargas
tradicionais”.
36
Existindo unicamente para si mesmo e conduzido pela lógica do mercado,
o indivíduo se aprofunda cada vez mais na busca de seus interesses particulares, uma
busca que parece legítima e justa. O é preciso ser absolutamente moderno” foi
substituído pela palavra de ordem s-moderna e narcísica “é preciso ser
absolutamente si mesmo”.
37
A moda assume uma face visivelmente s-moderna,
subjetivando os gostos e costumes, e afirmando a supremacia do individual sobre o
coletivo. Sua difusão dá impulso à pós-modernidade.
Afora o desenvolvimento da autonomia que ela alicerça, a moda desempenhou
igualmente papel fundamental no momento da inflexão da modernidade num
sentido pós-moderno. Isso porque é com a extensão da lógica da moda ao
conjunto do corpo social (quando a sociedade inteira se reestrutura segundo a
lógica da sedução, da renovação permanente e da diferenciação marginal) que
emerge o mundo pós-moderno. É a era da moda extrema, em que a sociedade
burocrática e democrática se submete aos três componentes essenciais (efêmero,
sedução, diferenciação marginal) da forma-moda e se apresenta como sociedade
superficial e frívola, que impõe a normatividade não mais pela disciplina, mas
pela escolha e pela espetacularidade”.
38
A moda se destaca como vetor fundamental na superação da modernidade,
visto que a sociedade se submete à sua força sedutora. As difereas individuais se
multiplicam, a esfera da autonomia subjetiva se amplia e efetiva-se uma sociedade
centralizada no pessoal, enquanto os princípios sociais reguladores se esvaziam e os
modos de vida tradicionais se dissolvem. A liberdade de ação é uma prioridade
absoluta, um direito de todos.
39
Como nos lembra Lipovetsky, o homem pós-moderno
tolera mais as desigualdades sociais do que as ações que ferem a liberdade individual.
“O processo de personalização engendrou uma explosão de reivindicações de
liberdade que se manifesta em todos os domínios: na vida sexual e na familiar, no
vestuário, na dança, nas atividades corporais e artísticas, na comunicação e no
36
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p.162.
37
Ibid., p.101.
38
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p.19.
39
TOCQUEVILLE, de A., De la démocratie en Amérique, Oeuvres completes. Paris, Gallimard, t. I,
vol. II, p. 101-104. Apud LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p.92: Face à afirmação de Tocqueville
de que os povos democráticos demonstravam ‘um amor mais ardente e mais durável pela igualdade do
que pela liberdade’”.
26
ensino, na paixão pelo lazer e pelo aumento do tempo livre, nas terapias novas
que têm por finalidade a libertação do eu”.
40
tamm outros valores que são de importância fundamental para a
sociedade s-moderna. Muitos grupos e segmentos sociais lutam por justiça,
igualdade e reconhecimento social. No entanto, segundo ele, essas reivindicações
ganham força e adesão em razão do desejo de viver com mais liberdade. O ideal da
autonomia individual é o grande protagonista da pós-modernidade. Tem aceitação
crescente, por exemplo, a livre utilização do corpo.
41
É deslocado par ao indivíduo o
direito de gerir e administrar a si mesmo.
“A cultura da obrigação moral foi suplantada pela da gestão integral de si
mesmo; o reino do pragmatismo individualista ocupou o lugar do idealismo
categórico; os critérios do respeito por si mesmo diluíram-se no ciclo estável e
indefinido da personalização, do psicologismo, da operacionalização. O processo
pós-moralista transformou os deveres em relação a si mesmo em direitos
subjetivos, e as ximas obrigatórias da virtude em livres opções e conselhos
operacionais, a fim de obter o máximo de bem-estar das pessoas”.
42
Pela busca do bem-estar e da realização pessoal vale qualquer esforço. O
sacrifício, que na modernidade estava voltado para fora (família, estado, religião,
partido), na s-modernidade volta-se para o próprio sujeito. Centrado em si mesmo,
o indivíduo evita o confronto e assume uma atitude de indiferença e desinteresse pelo
outro. O homem s-moderno tem repulsa à violência. Se a educação disciplinar não
conseguiu realizar a pacificação dos comportamentos, a lógica da personalização
conseguiu.
43
Essa pacificação, no entanto, se mais pela valorização de si mesmo
do que pela eliminação do outro.
“Cada vez mais voltados para as preocupações particulares, os indivíduos se
pacificam o por ética, mas, sim, por hiperabsorção individualista: nas
sociedades que impulsionam o bem-estar e a realizão de si mesmo, os
indivíduos têm mais desejo de encontrar a si mesmos, de se auscultar, de se
40
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 92.
41
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos
novos tempos democráticos, São Paulo, Manole, 2005, p. 70.
42
Ibid., 61.
43
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p.169.
27
‘drogar’ com viagens, músicas, esportes, espetáculos, em vez de se defrontar
fisicamente”.
44
O processo de personalização foi, suavemente, destruindo as normas de
uma sociabilidade viril, responsável por um nível elevado de criminalidade. Para
Lipovetsky, é a redução do relacionamento humano, acompanhada pelo
hiperinvestimento individualista ou narcísico, que se encontra no princípio do
declínio dos atos de violência.
45
Não significa, com isso, que cessam as relões
interindividuais, mas elas são reestruturadas a partir dos valores subjetivos. As
“regras” pós-modernas visam produzir uma pessoa pacificada, satisfeita.
Os átrios religiosos também são perpassados pela força do processo de
personalização. Caracterizada pela ausência de determinismos e imposições, e
respeitando a liberdade pessoal e a autonomia individual, a pós-modernidade rejeita
todo femeno religioso instituído de forma coercitiva. O “trânsito religioso
46
é
próprio deste tempo em que, movido pelas buscas subjetivas, o indivíduo procura
beber das mais distintas fontes, sempre na intenção de auto-satisfação. A religião
entra na onda do self-service.
“O processo de personalização tem como efeito uma deserção sem precedentes
da esfera sagrada, o individualismo contemporâneo não cessa de solapar os
fundamentos do divino. O mais interessante é que a própria religião se deixou
levar pelo processo de personalização: a gente acredita, mas de certa maneira,
aceitando tal dogma e eliminando outro, misturando o Evangelho com o Corão, o
zen ou o budismo. A espiritualidade se coloca na era caleidoscópica do
supermercado e do sirva-se-você-mesmo. Por algum tempo o indivíduo é criso,
por alguns meses, budista e, por alguns anos, discípulo de Krishna ou do Maharaj
Ji”.
47
Mais do que uma simples “válvula de escape” diante de um vazio de
sentido, a espiritualidade pós-moderna assume os contornos do individualismo
narcísico, que condiciona todo agir do homem contemporâneo. Segundo Lipovetsky,
a atração religiosa não é diferente dos entusiasmos efêmeros, próprios da s-
44
Ibidem.
45
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 170.
46
FERNANDES, Sílvia Regina Alves (org.), Mudança de Religião no Brasil – desvendando
sentidos e motivações, Coleção CERIS, Salesiana e Palavra e Prece, 2004.
47
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p.95.
28
modernidade, que caracterizam o indivíduo flexível em busca de si mesmo. O
ressurgimento das espiritualidades e esoterismos aumenta o leque de escolhas e
possibilidades da vida privada.
48
A expressão religiosa faz parte do coquetel
individualista oferecido pelo processo de personalização.
Em outra importante dimensão da sociedade humana, a arte, se o que
Lipovetsky denomina “personalização da cultura”. Sem parâmetros definidos, e
expressando-se à sua maneira, todos podem ser artistas. É a ordem personalizada da
cultura, a eclosão de uma expressão artística de massa, em que povo se torna artista.
“Enquanto a arte oficial é levada pelo processo de personalização e de
democratização, a aspiração dos indivíduos à criação artística não cessa de
crescer: o s-modernismo não significa apenas o declínio vanguardista, como
também, e ao mesmo tempo, a disseminação e multiplicação dos centros e das
vontades artísticas. Proliferação dos grupos de teatro amador, dos grupos de
música rock ou pop, paixão pela fotografia e pelo deo, entusiasmo pela dança,
pelas profissões artísticas e artesanais, pelo estudo de um instrumento, pela
escrita; essa bulimia se iguala à do esporte e das viagens.”
49
No embalo das significativas transformações no campo artístico, a criação
revolucionária, do modernismo, dá lugar a uma fase de expressão livre, do pós-
modernismo. A personalidade narcísica, ávida de expressão de si mesma, de
criatividade, colabora para a democratização espontânea e real das práticas
artísticas.
50
Parece-nos evidente, assim, que a cultura de massa é também expressão
do processo de personalização.
No âmbito sócio-político, por sua vez, a lógica da personalização reforça a
demanda de liberdade, de escolha e de pluralidade, e gerencia um indivíduo aberto às
diferenças. Em paralelo com o crescimento do narcisismo, predomina a legitimidade
democrática. Pelo fato de os indivíduos se absorverem na esfera privada não significa
que eles se desinteressem pelo sistema político.
51
Sua indiferença não é pela
democracia, mas é desafeição emocional dos grandes referenciais ideológicos, é
rejeição de um Estado distante e burocrático.
48
Ibid., pp. 95-96.
49
Ibid., p. 101.
50
Ibid., p. 102.
51
Ibid., p. 105.
29
“A crise do Estado-Providência é um meio de disseminar e multiplicar as
responsabilidades sociais, meio de reforçar o papel das associações, das
cooperativas, das coletividades locais, meio de reduzir a altura hierárquica que
separa o Estado da sociedade. Um meio de adaptar o Estado à sociedade s-
moderna norteada pelo culto à liberdade individual, à proximidade, à diversidade.
O caminho se abre para que o Estado entre no ciclo da personalização, coloque-
se em harmonia com uma sociedade móbil e aberta, recusando as inflexibilidades
burocráticas e o distanciamento político”.
52
O crescimento dessas forças sociais fortalece a tendência pós-moderna de
privilegiar a liberdade em relação ao igualitarismo uniforme. Quer-se menos relação
vertical e paternalismo entre Estado e sociedade, menos regime único, e mais
iniciativas, diversidade e responsabilidade na sociedade e nos indivíduos.
Não podemos negar que o processo de personalização é responsável por
muitas das contradições da sociedade pós-moderna, dinamizando a coexistência
suave das antinomias: por um lado rejeita regras e imposições modernas e por outro
lado impõem “regras” que assumem caráter social determinista; por um lado suaviza
os costumes da maioria e por outro endurece as condutas criminosas, favorecendo o
surgimento de ações bárbaras e estimulando a escalada aos extremos no uso da
violência. Em muitos aspectos, o processo de personalização redefine a sociedade,
dando uma importante contribuição para a efetivação da sociedades-moderna. Seu
desenvolvimento, elevado ao extremo, configura aquilo que Lipovetsky denomina
“hipermodernidade”.
1.1.3. A hipermodernidade
Neste item abordaremos alguns aspectos relevantes da hipermodernidade,
como definição própria de Lipovetsky a respeito da sociedade atual, onde tudo se
passa como se tivéssemos ido da era do pós para a era do hiper. As principais
características da pós-modernidade, que suscitaram uma profunda reorganização no
funcionamento das sociedades democráticas, agora se acentuam mais ainda. Dentre
os aspectos que o autor aponta, destacam-se a expansão em larga escala do
consumismo e da comunicação de massa, o enfraquecimento das normas autoritárias
52
Ibid., p. 110.
30
e disciplinares, a perda dos ideais revoluciorios, o surto da individualização.
53
Com
transformações vertiginosas, movidas pelas tecnologias da última hora e de grande
velocidade, o eficaz e sedutor processo de personalização continua a gerir a
sociedade, determinando um novo tempo, a hipermodernidade.
“Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hipermercado, hiperterrorismo,
hiperindividualismo, hipertexto o que mais não é hiper? O que mais não expõe
uma modernidade elevada à potência superlativa? Ao clima de epílogo segue-se
uma sensação de fuga para adiante, de modernização desenfreada, de
desregulamentação ecomica, de ímpeto técnico-científico, cujos efeitos são tão
carregados de perigos quanto de promessas. Tudo foi muito rápido: a coruja de
Minerva anunciava o nascimento do s-moderno no momento mesmo em que
se esbava a hipermodernização do mundo”.
54
Nesse sentido, é breve a ‘existência’ do pós-moderno, que fenece ao
germinar o mundo hiper. Com o triunfo da tecnologia genética, da globalização
liberal e dos direitos humanos, o rótulo pós-moderno ganha rugas e o serve mais,
tendo esgotado sua capacidade de exprimir o mundo que se anuncia.
55
Naturalmente,
algumas marcas da pós-modernidade, como a eficiência técnica, a gica consumista
e a centralidade do indivíduo não apenas permanecem, mas se fortalecem e passam a
ditar os caminhos deste novo tempo. Nesse contexto, o Estado recua, as instituições
perdem espaço e confiança, a religião e a família se privatizam, e tudo se
individualiza. Embora a liberdade de escolha ainda seja um “direito fundamental”,
não mais escolha, resta evoluir. As transformações técnicas se dão em
velocidade espantosa e é preciso acelerar para não ser ultrapassado pela “evolução”.
56
Enquanto as operações e intermbios se aceleram, o tempo se torna escasso, e o
homem hipermoderno “não tem mais tempo”.
a) A temporalização
Esta é uma das grandes marcas da hipermodernidade, onde se definem as
temporalidades divergentes: admiração ao passado, preocupação com o futuro e
consagração do presente.
53
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p. 52.
54
Ibid, p. 53.
55
Ibid., p. 52.
56
Ibid., p. 57.
31
Instalaram-se sociedades reestruturadas pela lógica e pela própria temporalidade
da moda; em outras palavras, um presente que substitui a ação coletiva pelas
felicidades privadas, a tradição pelo movimento, as esperanças do futuro pelo
êxtase do presente sempre novo. Nasce toda uma cultura hedonista e psicologista
que incita à satisfação imediata das necessidades, estimula a urgência dos
prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-
estar, do conforto e do lazer”.
57
Essa consagração social do presente não se instaura pela falta de
perspectiva de futuro ou pelo enfraquecimento da esperança, mas pelo excesso, pela
saturação de ofertas e opções. Em busca de satisfação a todo momento, o sujeito
assume a cultura do “tudo já”, sacralizando o gozo sem proibições. As religiões
portadoras de esperaas futuristas perderam muito de seu vigor, e a obsessão com o
tempo não se restringe à esfera do trabalho, agora submetido aos critérios de
produtividade, mas abrange todos os aspectos da vida. O ritmo frenético predomina
nas empresas, movidas pela concorrência globalizada e pelas exigências de curto
prazo. É o reinado da urgência e da competição, que enlouquece o homem
hipermoderno e o faz priorizar o urgente à custa do importante, a ação imediata à
custa da reflexão, o acessório à custa do essencial.
58
Essa corrida contra o tempo
atinge a todos, criando uma atmosfera de dramatização, de estresse permanente, bem
como um conjunto de novas doenças e distúrbios psicossomáticos.
Numa época de “agenda lotada”, a falta de dinheiro motiva menos queixa
do que a falta de tempo. Os horários de trabalho, de estudo, férias, lazer, antes
rígidos, se tornam flexíveis e podem ser negociados e ajustados aos interesses e
necessidades individuais. Naturalmente, apesar dessa consagração do presente, nossa
época não se restringe a um presente trancado em si mesmo, mas alimenta certa
preocupação com o que está por vir.
“Nenhuma ‘destemporalização’ do homem: o indivíduo hipermoderno continua
sendo um indivíduo para o futuro, um futuro conjugado na primeira pessoa.
Outros fenômenos revelam os limites da cultura presentista. Ao mesmo tempo
que a cultura liberacionista está fora de moda, manifestam-se numerosas formas
de valorização do duradouro. Ainda que as uniões sejam mais frágeis e mais
precárias, nossa época, apesar de tudo, testemunha a persistência da instituição
57
Ibid., pp. 60-61.
58
Ibid., p.77.
32
do matrimônio, a revalorização da fidelidade, a vontade de contar com relações
estáveis na vida amorosa. (...) A sociedade hipermoderna nova vida à
exigência de permanência como contrapeso ao reinado do efêmero, tão causador
de ansiedades”.
59
O homem hipermoderno não deixa de se preocupar com o futuro, e a fé no
progresso não foi substituída pela desesperança ou pelo niilismo, mas por uma
confiança instável e oscilante, em função das circunstâncias.
60
Embora tenha
diminuído, o otimismo face ao futuro não está morto. Educação e saúde são aspectos
que estão sempre em pauta. Muito cedo os jovens se mostram apreensivos com a
escolha de instrução e profissão. Os pais, por sua vez, assimilaram as ameaças ligadas
às desregulamentações hipermodernas e reconhecem que o prioritário é a formação
com vistas ao futuro.
61
O que todos querem com a educação é ser alguém na vida”,
garantindo uma velhice tranqüila.
Nesse intuito de viver mais e melhor, a saúde se torna uma preocupão
onipresente para um mero crescente de indivíduos de todas as idades. Assim, os
ideais hedonistas foram suplantados pela ideologia da saúde e da longevidade. Em
nome destas, os indivíduos renunciam maciçamente às satisfões imediatas,
corrigindo e reorientando seus comportamentos cotidianos.
62
Sacrifícios, dietas,
mudanças de atitudes e hábitos não visam satisfações imediatas, mas garantir uma
vida mais saudável e longa. A própria medicina, na hipermodernidade, reorienta seu
campo de ação, estimulando o monitoramento, os exames, a vigilância higienista, a
modificação de estilos de vida. No entanto, essa obsessão narcísica com a saúde e a
longevidade, embora esteja voltada ao futuro, visa estender ao máximo o presente.
Se podemos dizer que nossa cultura o abriu mão do futuro, também
devemos reconhecer uma latente valorização do passado, fenômeno mais
hipermoderno que pós-moderno. Na onda do retrô, o antigo é venerado e o passado
adquire dignidade. Ganha força um frenesi histórico-patrimonial com a proliferação
de museus, restaurações, turismo cultural, obsessão comemorativa.
59
Ibid., p. 74.
60
Ibid., p. 70.
61
Ibid., p. 72.
62
Ibid., pp. 72-73.
33
“Os modernos queriam fazer tábula rasa do passado, mas nós o reabilitamos; o
ideal era ver-se livre das tradições, mas elas readquiriram dignidade social.
Celebrando até o menor objeto do passado, invocando as obrigações da memória,
remobilizando as tradições religiosas, a hipermodernidade o é estruturada por
um presente absoluto; ela o é por um presente paradoxal, um presente que não
pára de ‘redescobrir’ o passado”.
63
Esse olhar para o passado é alimentado por interesses mercadológicos, que
agregam ao valor comercial um valor emotivo ligado aos sentimentos nostálgicos.
Diferente de outras épocas, hoje o passado não é para ser imitado, mas admirado.
Como um adorno, o passado nos seduz, ao passo que o presente e suas normas
cambiantes nos governam. Conforme Lipovetsky, “celebramos aquilo que não
desejamos tomar como exemplo”.
64
É por isso que podemos dizer: o sujeito
hipermoderno admira o passado, se preocupa com o futuro, mas consagra o tempo
presente.
b) O Narcisismo
A sociedade hipermoderna, como vimos, não é uma ilha fechada em si,
pois mantém um “laço afetivo” com o passado e uma estreita vinculação com o
futuro. Se a modernidade visava superar a minoridade, tornando o sujeito adulto
(Kant), a hipermodernidade assume uma nova prioridade: ficar eternamente jovem.
65
Nessa obstinação pela juventude se revela um marcante narcisismo, conseqüência do
individualismo pós-moderno fomentado pelo processo de personalização.
Instala-se um novo estágio de individualismo: o narcisismo designa o
surgimento de um perfil inédito do individuo nas suas relações consigo mesmo e
com o seu corpo, com os outros, com o mundo e com o tempo no momento em
que o capitalismo autoritário cede lugar a um capitalismo hedonista e permissivo.
A idade de ouro do individualismo, concorrente no nível econômico, sentimental
no nível doméstico, revolucionário nos níveis político e artístico, chega ao fim e
um individualismo puro se desenvolve, desembaraçado dos últimos valores
sociais e morais que ainda coexistiam. Emancipada de qualquer enquadramento
transcendental, a própria esfera privada muda de sentido, uma vez entregue aos
desejos variáveis dos indivíduos”.
66
63
Ibid., p. 85.
64
Ibid., p. 90.
65
Ibid., p. 80.
66
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 32.
34
O narcisismo não se identifica com um indivíduo inteiramente
desconectado da dimensão social e política, mas suaviza a carga emocional investida
no espo público, em vista de um maior investimento na dimensão subjetiva, que lhe
é prioritária. Com a deserção generalizada dos valores e finalidades sociais,
ocasionada pelo processo de personalização, tudo concorre para a promoção de um
individualismo puro, desembaraçado dos enquadramentos de massa e projetado para a
valorização do indivíduo.
67
Assim como as instituições sociais e os valores
transcendentais, o sentido histórico foi abandonado, e serve como objeto de
veneração distante. Sem força exterior, ganha vigor no indivíduo um entusiasmo sem
precedentes pelo conhecimento e realização de si mesmo. Segundo Lipovetsky, a
sensibilidade política da década de 1960 é substituída pela “sensibilidade
terapêutica”.
“No momento em que o crescimento econômico perde fôlego, o desenvolvimento
psíquico toma impulso e o consumo de consciência se torna uma nova bulimia:
ioga, psicanálise, expressão corporal, zen, terapia primal, dinâmica de grupo,
meditação transcendental; à inflação econômica respondem a inflação psi e o
formidável impulso narcísico que ela produz. Canalizando as paies para o Eu,
que assim se promove a umbigo do mundo, a terapia psi gera uma figura inédita
de Narciso, obcecado por si mesmo”.
68
O narcisismo hipermoderno representa o desprendimento do donio do
Outro, a ruptura com a padronização de massa. Todo empenho externo (nação,
trabalho, família, religião) agora assume uma nova direção: o próprio Eu, centro das
preocupações. Embalado pelo espírito da “eterna juventude”, o corpo é promovido a
um verdadeiro objeto de culto, rodeado de cuidados e investimentos constantes
(saúde, higiene, rituais de controle, cuidados médicos e farmacêuticos, etc). Impõe-se
um novo imaginário social do corpo. Ele perde seu status de alteridade e
materialidade muda, e ganha dignidade e respeito, o que torna intolerável toda
perspectiva de envelhecimento.
69
Essa tendência se comprova no crescimento
desenfreado de meios para cuidar do corpo, de práticas esportivas individuais, onde
67
Ibid., p. 34.
68
Ibid., pp. 35-36.
69
Ibid., p. 42.
35
se busca mais a forma física e a saúde do que a proeza e a força.
70
não é o conceito
de virtude que orienta o esporte, mas a emoção, o êxtase corporal. Esse narcisismo,
no entanto, revela uma clara ambigüidade: por um lado o corpo se torna sujeito, mas
por outro lado se impõem novos e severos padrões.
“Ao mesmo tempo em que exerce uma função de personalização, o narcisismo
realiza tamm uma missão de normalização do corpo: o interesse febril que
temos pelo corpo não é, de modo algum, espontâneo e ‘livre’, pois obedece a
imperativos sociais, tais como a ‘linha’, a ‘forma’, o orgasmo, etc. O narcisismo
joga e ganha em todas as tabelas funcionando concomitantemente como operador
de despadronização e de padronização. A normalização pós-moderna se
apresenta sempre como o único meio de o indivíduo ser realmente ele mesmo,
jovem, esbelto, dinâmico”.
71
Objeto de atenção, preocupação e cuidados como nunca, o corpo é ele
mesmo fonte de prazer para o sujeito narcisista. O investimento nele não visa
necessariamente ser melhor, mas sentir-se melhor. Além de produtos de higiene e
bem-estar, surge uma grande variedade de ornamentos e artes que personalizam o
corpo: piercings, tatuagens e acessórios diversos. A idade não é mais limite para o
narcisismo, como aponta Lipovetsky: “Narciso envelheceu e, se ainda vê o seu
reflexo no espelho, não é mais para enxergar os rastros de sua legendária beleza, mas
para angustiar-se com as rugas que começam a aparecer, com o excesso de peso, com
a aproximação da morte”.
72
Aí se justificam os temores e angústias que assolam
tantas pessoas ante o inevitável envelhecimento.
c) A indiferença
Embora as grandes aspirações se extinguem, a alegre notícia é que
ninguém se angustia com isso. No rastro do narcisismo, a hiper-modernidade revela
uma certa “apatia de massa”. Quando o Eu se torna a celebridade, até os ídolos se
tornam “estrelas de um verão”. Segundo Lipovetsky, o vazio dos sentimentos, o
desmoronamento dos ideais, enfim, o deserto” criado pela pós-modernidade, é todo
feito de indiferença.
70
Ibid., p. 142.
71
Ibid., p. 44.
72
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal: ética, mídia e empresa, Porto Alegre,
Sulina, 2004, p. 11.
36
“As figuras imponentes do saber e do poder se apagam, pulverizadas por um
processo de personalização que não pode tolerar por muito tempo a manifestação
ostentatória de uma tal desigualdade, de uma tal distância. Tudo aquilo que
designa o absoluto, uma altura exagerada, desaparece e as celebridades perdem
sua aura enquanto sua capacidade de galvanizar as massas enfraquece. As
vedetes não duram muito mais tempo do que os cartazes, as novas ‘revelões’
anulam as de ontem de acordo com a lógica da personalização.
73
A inflação galopante da moda contribui com o processo de personalização,
imprimindo um ritmo acelerado no aparecimento e esquecimento de ídolos,
impedindo que as figuras que eso nas primeiras ginas dos jornais se sacralizem.
Se, por um lado o excesso de imagens suscita sempre mais “vedetes”, por outro lado,
cada vez menos investimento emocional em relação a elas. Num tempo onde tudo
é movimento e constante circulação, a identificação com os ídolos é expressão de
entusiasmo passageiro e desafeição instantânea.
Mas nem só de indiferença vive a hipermodernidade. Embora o EU seja o
centro das preocupações, o individualismo produz também um efeito inverso, a
sensibilidade em relação ao outro.
“Paradoxalmente, é à força de levar a si próprio em consideração de maneira
isolada, de viver para si mesmo, que o indivíduo se abre às infelicidades do
outro. Quanto mais existimos como pessoa particular, mais é sentida a aflição ou
a dor do outro; o sangue, os atentados à integridade corporal se transformam em
espetáculos insuportáveis, a dor aparece como uma aberração caótica e
escandalosa, a sensibilidade se torna uma característica permanente do homo
clausus”.
74
Nesse sentido, enquanto a indiferença exterior aparece como reflexo da
prioridade que o indivíduo a si mesmo, a sensibilidade é uma confirmação de que
o homem hipermoderno é ainda capaz de se indignar com situações que vão contra a
dignidade humana. O crescimento acentuado da indiferença ou desinteresse se
confirma, por exemplo, no ambiente de ensino. O prestígio e a autoridade dos
professores desaparecem quase completamente, e seu ensinamento se torna mais um
dentre tantos meios de propagação do saber.
73
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, pp. 53-54.
74
TOCQUEVILLE, A., apud LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 167: “nos séculos democráticos
raramente os homens se devotam uns aos outros, mas demonstram uma compaixão geral por todos os
membros da espécie humana”.
37
“Hoje em dia, a palavra do Mestre deixou de ser sagrada, tornou-se banal e situa-
se em de igualdade com a palavra da mídia e o ensino se transformou em
máquina neutralizada pela apatia escolar feita de atenção dispersa e de ceticismo
desenvolto em relação ao saber. Grande confusão dos Mestres. A escola, onde os
jovens vegetam sem grande motivação ou interesse, é um corpo mumificado e os
professores compõem um corpo fatigado e incapaz de lhe insuflar vida”.
75
Essa situação nos mostra que o saber o é mais uma busca vital que
engrandece a pessoa, e sim uma necessidade profissionalizante. Além do pouco
comprometimento por parte de estudantes, embora se busquem sempre novas
metodologias de ensino, há investimento público relativamente baixo na educação.
A indiferença ou apatia atinge também o campo político, onde é evidente
um desencanto generalizado. Levando em consideração os elevados veis de
abstenções, podemos dizer que o interesse dos cidadãos pelos partidos políticos e
pelas eleições se comparam ao interesse pela loteria, pela previsão do tempo no final
de semana ou pelos resultados esportivos.
76
Seguindo a lógica midiática, onde a
qualidade do divertimento determina a audiência, a política é obrigada a adotar um
estilo de animação na tentativa de mobilizar a população.
77
Vários outros aspectos sociais poderiam ser abordados para confirmar que
a indiferença de nossa época é fruto do excesso, da saturação. Condicionado à
velocidade das transformações, o homem hodierno se apega e desapega facilmente.
Assim, o paradoxo hipermoderno assume nova fisionomia, onde co-existem gostos e
comportamentos mais diversos.
“Quanto mais os políticos se explicam e se exibem na televisão, mais todo
mundo se aborrece; quanto mais os sindicatos distribuem panfletos, menos eles
são lidos; quanto mais os professores querem fazer ler, menos os alunos lêem.
Indiferença por saturação, informação e isolamento. Como agentes diretos da
indiferença, compreendemos porque o sistema reproduz de modo ampliado os
sistemas de sentido e de responsabilização, cuja finalidade consiste em produzir
um engajamento vazio: pense o que quiser da TV, mas assista a ela, vote em nós,
pague suas cotas, siga a palavra de ordem da greve... partidos e sindicatos não
têm outra exigência a não ser essa ‘responsabilidade’ indiferente”.
78
75
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, pp. 21-22.
76
Ibid., p. 22.
77
Ibidem.
78
Ibid., p. 26.
38
Claro está que a indiferença não se identifica com a ausência de
motivação, mas com uma “anemia emocional”, com a desestabilização dos
comportamentos. O sujeito indiferente não se apega a nada, não tem certeza absoluta,
adapta-se a tudo, suas opiniões são suscetíveis de modificações rápidas. Assim, aos
poucos, nos instalamos na crise e nos habituamos, pois aparentemente ela não
interfere no bem-estar pessoal. É preocupante reconhecer que nem as constantes
ameaças econômicas e ecológicas conseguiram transformar a conscncia indiferente
do sujeito hipermoderno que se submete à lógica da sedução, tornando-se um árduo
consumista.
79
d) A estratégia da sedução e o consumo de massa
Seria um erro anunciar o fim da sociedade de consumo, quando está claro
que o processo de personalização não cessa de ampliar suas fronteiras. A recessão
atual, a crise energética, a consciência ecológica não fazem dobrar os sinos de finados
da era do consumismo.
80
Quer dizer, apesar das constantes crises, há sempre um novo
foco, um deslocamento de interesses, que nos faz consumir cada vez mais objetos e
informações, esportes e viagens, formações e relações, música e cuidados médicos.
A multiplicidade de opções é uma poderosa arma do consumismo s-
moderno. Abundante oferta e direito de escolha andam de mãos dadas. O consumidor,
então, precisa ser seduzido. Aparece, assim, como mola propulsora do consumismo
pós-moderno, a estratégia da sedução. Reduzindo eficazmente os quadros rígidos e
coercitivos, o processo de personalização age com suavidade, respeitando as
inclinações individuais, o bem-estar, a liberdade, os interesses de cada pessoa. A
coerção dá lugar à comunicação, e todo discurso consumista é moldado por elementos
atrativos e sedutores, visando “conquistar” o consumidor.
“A sedução nada tem a ver com a representação falsa e a alienação das
consciências; é ela que dirige o nosso mundo e o remodela de acordo com um
processo sistemático de personalização cuja finalidade consiste essencialmente
em multiplicar e diversificar a oferta, em oferecer mais para que você possa
escolher melhor, em substituir a indução uniforme pela livre escolha, a
79
Ibid., p. 34.
80
Ibid, XIX.
39
homogeneidade pela pluralidade, a austeridade pela satisfação dos desejos. A
sedução remete ao nosso universo de gamas opcionais, das nuanças exóticas, da
ambiência psicológica, musical e informativa, no qual cada um tem o prazer de
compor à vontade os elementos da sua existência
81
”.
Como vimos anteriormente, as antigas disposições disciplinares foram
pulverizadas pela onda do self-service, ao passo que se multiplicam desregradamente
as possibilidades de escolha, conseqüência do crescimento desenfreado das novas
tecnologias e inovações. Os imperativos determinantes das sociedades modernas
foram substituídos por novas estragias sociais, com especial ênfase à lógica da
sedução, que passa a regrar o consumo, as organizações, a informação, a educação, os
costumes. Vivemos hoje uma apoteose das relações de sedução,
82
que estão a serviço
de uma sociedade cada vez mais consumista, não pelo simples acúmulo, mas pela
constante necessidade de novas experiências satisfarias.
“Com sua profusão luxuriante de produtos, imagens e serviços, com o hedonismo
ao qual induz, com seu ambiente eufórico de tentação e proximidade, a sociedade
de consumo revela claramente a amplidão da estratégia da sedução. No entanto,
ela não se limita ao espetáculo do acúmulo; mais exatamente, identifica-se com a
repetida multiplicação das escolhas que torna possível a abundância, levando a
maioria das pessoas a permanecerem mergulhadas num universo transparente e
aberto, ao oferecer-lhes cada vez mais opções e combinações sob medida,
permitindo, assim, circulão e escolha livres”.
83
Em ritmo acelerado, as novas tecnologias e o mercado colocam à
disposição do indivíduo uma diversificação cada vez maior de bens e serviços,
absolutizando a lógica da sedução. Toda novidade tende a seduzir e suscitar
experiências novas, embora passageiras. Sintonizada com o processo de
personalização, a lógica da sedução assume o indivíduo como finalidade e investe em
todos os pólos: na medicina, no esporte, nos costumes, etc. Para atingir o indivíduo, a
sedução conta com uma linguagem emancipadora, criando uma socialização suave e
tolerante. Aos partidos políticos, na lógica da sedão, se tornam mais “suaves” e
assumem novos valores, abolindo discursos radicais e finalidades históricas.
84
Tudo o
81
Ibid., p. 03.
82
Ibid., p. 01.
83
Ibid., p. 02.
84
Ibid., p. 09.
40
que se parece com imobilidade e estabilidade tende a desaparecer em proveito da
novidade. A própria natureza não é mais um tesouro a ser explorado, mas um
interlocutor a ser ouvido e respeitado.
A lógica consumista, veiculada pelos meios de comunicação, produz
necessidades e desejos, estimulando permanentemente os critérios de bem-estar
individual. Quanto mais o indivíduo está isolado ou frustrado, mais busca consolos
nas felicidades imediatas da mercadoria, fazendo do consumismo uma lvula de
escape diante das inquietações da vida. Cada compra se torna uma experiência nova,
e o consumidor hipermoderno se torna um “colecionador de experiências”.
“É preciso interpretar o apetite consumista como uma maneira de conjurar a
fossilização do cotidiano, de escapar à perpetuação do mesmo pela busca de
pequenas novidades vividas. Através do ato de consumo, é a rejeição de uma
certa rotina e da coisificação do eu que se exprime. O hiperconsumo é a
mobilização da banalidade mercantil, com vista à intensidade vivida e à vibração
emocional”.
85
O consumismo assume, assim, uma forte conotação emocional, recriando
sempre um universo de satisfação e de prazer. Na concepção de Lipovetsky, a
sociedade do hiperconsumo designa a terceira etapa histórica do capitalismo de
consumo, que ganha força paralelamente à produção em larga escala. A primeira fase
do consumismo caracterizava-se pela fabricação padronizada dos produtos. A
segunda fase, que surge por volta de 1950, se caracteriza pela disseminação do
consumo de massa. Assiste-se aí a extensão a todas as camadas sociais do gosto pelas
novidades, da promoção do fútil e do frívolo.
86
Chegamos, assim, a um momento em
que a comercialização dos modos de vida não mais encontra resistências estruturais,
culturais, nem ideológicas. As esferas da vida social e individual se reorganizam em
função da lógica do consumo. Se a primeira e a segunda fase do consumo haviam tido
como conseqüência a criação do consumidor moderno, arrancando-o às tradições e
arruinando o ideal de poupança, a última fase, do hiperconsumo, estendeu ao infinito
o domínio do consumo.
85
LIPOVETSKY, G., Felicidade Paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo, São Paulo
Companhia das Letras, 2007, p. 69.
86
LIPOVETSKY, G, Os Tempos Hipermodernos, p.24.
41
Com novas tecnologias e estratégias de segmentação e individualização, a
sociedade hiperconsumista amplia sem parar a gama das escolhas e opções, e as
empresas procuram se esforçar para responder o mais precisamente possível às
necessidades de um consumidor sempre mais exigente. Ao marketing de massa, em
vigor desde o século XIX, segue-se um marketing de segmentação, visando faixas
etárias e grupos cada vez mais subdivididos, promovendo necessidades e
comportamentos cada vez mais diferenciados, oferecendo produtos e serviços cada
vez mais dirigidos a um público diferenciado.
87
No hiperconsumismo a preeminência
é a inovação, então crescem mais os setores em que as inovações são mais aceleradas.
Para estimular o consumo, os atores da oferta renovam com mais rapidez os modelos,
seduzindo pela novidade. A concorrência, no entanto, se dá também na qualidade dos
produtos: “Longe de ser considerada como um custo, a qualidade aparece como um
investimento”.
88
Não basta consumir, o prazer está em consumir qualidade.
Na fase III da economia de massa, o consumo atinge seu ponto de
saturação, e é remodelado sob o signo do indivíduo, que se torna um
“turboconsumidor”. Não há mais limites para o consumismo.
“O que está em ação é um processo de organização de um universo
hiperconsumista em fluxo estendido, funcionando ininterruptamente dia e noite,
365 dias por ano. Da mesma maneira que o capitalismo desregulamentado e
globalizado se tornou turbocapitalismo’, somos testemunhas da emergência de
um ‘turboconsumismo’ estruturalmente liberto dos enquadramentos espaço-
temporais tradicionais”.
89
O consumismo contínuo se identifica com um consumidor apressado, para
quem o fator tempo é determinante. O mercado naturalmente precisa se adequar às
necessidades desse turboconsumidor e ficar atento à individualizão das escolhas.
Os critérios sócio-profissionais para o consumo perdem sua força e todos têm direito
e acesso ao consumo, ao supérfluo, ao bem-estar. Fica para traz o consumismo
piramidal, de classes, e ganha força uma nova fragmentação do consumo, estruturada
em subgrupos ou redes. As diferenciações se efetuam a partir da multiplicidade de
critérios, sejam eles de idade, de música, de esportes, de projetos de vida, de
87
LIPOVETSKY, G., Felicidade Paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo, pp. 81-82.
88
Ibid., p. 92.
89
Ibid., p. 109.
42
etnicidade, de orientação sexual.
90
Embora a juventude seja o estereótipo específico
da sociedade hiperconsumista, surgem alvos comerciais específicos em todas as
faixas etárias. A criança ou o pré-adolescente, por exemplo, passam a exercer uma
influência cada vez maior nas compras. Foi-se o tempo, também, em que os idosos
eram sistematicamente negligenciados, descartados pelas políticas comerciais. Livre
do imperativo do trabalho, absorvido apenas pelas preocupações com o corpo e a
saúde, viagens e saídas, prazeres privados e familiares, o aposentado representa uma
figura perfeita do indivíduo hiperconsumidor.
91
A bulimia consumista não é
interrompida pela idade.
Esse desenfreado processo de consumo não está isento de um paradoxo
que suscita preocupações constantes. Se, por um lado, se amplia o princípio de pleno
poder sobre a direção da própria vida, por outro lado, as manifestações de
dependência e de impotência subjetivas se desenvolvem num ritmo crescente.
92
Somos livres e ao mesmo tempo acorrentados.
“O esgio III pôs em órbita um consumidor amplamente emancipado das
imposições e ritos coletivos. Mas essa autonomia pessoal traz consigo novas
formas de servidão. Se ele está menos submetido aos valores conformistas, está
mais subordinado ao reino monetizado do consumo. Se o indivíduo é socialmente
autônomo, ei-lo mais do que nunca dependente da forma mercantil para a
satisfação de suas necessidades. Considerados um a um, os atos de consumo são
menos dirigidos socialmente, mas, juntos, o poder de enquadramento da
existência pelo mercado aumenta. A influência geral do consumo sobre os modos
de vida e os prazeres amplia-se tanto mais quanto impõe menos regras sociais
coercitivas”.
93
Glorifica-se a autonomia subjetiva, a libertação de toda imposição ou
determinação de classe, onde o indivíduo tinha “seu lugar”. No entanto, não passam
despercebidas as implicâncias desse processo libertador. Embora teoricamente
liberto, o indivíduo hipermoderno torna-se escravo de suas próprias buscas e
necessidades, geralmente suscitadas a partir de fora. Nesse sentido, a dia tem um
papel determinante, como meio de suavização das “imposições consumistas, bem
como de propagação de novas “necessidades”, constantemente renovadas.
90
Ibid., p. 118.
91
Ibid., p. 122.
92
Ibid., p. 127.
93
Ibidem.
43
e) O papel propagador da mídia
Ao abordar a atuação dos meios de comunicação na sociedade
hipermoderna, Lipovetsky evita fazer aquelas duras e iteis críticas que muitos
outros fazem. Primeiramente, ele nos lembra que a mídia não surgiu com uma missão
altruísta, mas sempre seguiu a lógica do mercado, o que naturalmente condiciona sua
atividade comunicativa, criando prioridades e relevando aquilo que menos lhe
interessa.
“A imprensa não é orientada somente por um ideal de objetividade e de
transparência. Na verdade, desde suas origens segue uma lógica comercial e
competitiva. Como o objetivo é vender a informação para o maior mero de
pessoas, a mídia, com toda naturalidade, destaque aos títulos chamativos, ao
impacto de choque, ao jamais visto, à dramatizão emotiva. O ideal de
integridade e de responsabilidade moral é algo positivo, mas muito impotente
para constituir um obstáculo às forças do mercado e à dinâmica da informação,
que leva a privilegiar o que é novo e insólito”.
94
Nessa lógica, a mídia busca estar sintonizada com aquilo que atrai e
encanta o sujeito em cada tempo histórico. Atenta aos índices de audiência, ela
procura ser atraente, chamativa, impactante, não necessariamente com a intenção
de enganar, iludir ou explorar, mas com o intuito de manter ligado aquele que não é
apenas um sujeito a ser informado, mas um potencial cliente. A informação, então, é
veiculada sempre de uma maneira atraente e inovadora. E, embora seja perceptível
um esforço em busca de uma atuação mais comprometida com a ética, engana-se
quem pensa que a imprensa sensacionalista está em vias de se refrear. Segundo
Lipovetsky, a corrente ética poderá seccionar ainda mais a galáxia midiática.
95
Mesmo que se atribua à mídia uma grande responsabilidade pelo fracasso da
informação, ela irá sempre justificar seus erros, buscando resguardar o supremo
direito da informação.
Pela sua poderosa influência popular, a mídia é reconhecida como o
“quarto poder”. Mesmo sem impor claramente, ela pode favorecer no público
comportamentos bons ou maus, responsáveis ou irresponsáveis. Também é
94
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 215.
95
Ibid., p. 216.
44
perceptível na mídia a “febre ética” presente nos mais diversos recantos da sociedade
atual. A demanda de uma informação responsável caminha paralelamente à falência
de todas as religiões seculares”.
96
O anseio por uma mídia mais imbuída de valores
éticos e responsabilidade social revela o reconhecimento do poderio midiático, que
não ra de crescer. Numa época onde tudo é “hiper”, nos deparamos com a
“hipertrofia midiática”, onde o essencial é “ver tudo” o mais rapidamente possível,
como se fosse possível abolir a distância entre os fatos e sua representação na tela. No
império do presente, como vimos anteriormente, tudo é instantâneo, “ao vivo”.
Reconhecidamente, a mídia influencia comportamentos, nem sempre
edificantes e humanizantes, ajudando, assim, a configurar uma sociedade
problemática. No entanto, temos que reconhecer também sua positiva contribuição
para a sociedade humana. Aos olhos de Lipovetsky, na história do individualismo
moderno, a mídia desempenhou um papel emancipador fundamental, ao difundir pelo
conjunto do corpo social os valores hedonistas e libertários.
“Ao sacralizar o direito à autonomia individual, promover uma cultura relacional,
celebrar o amor ao corpo, os prazeres e a felicidade privada, a mídia tem sido
agente de dissolução da força das tradições e das antigas divisões estanques de
classe, das morais rigoristas e das grandes ideologias políticas”.
97
A moda, como inovação constante, e a lógica midiática, com
entretenimento constante, se relacionam e caminham juntas em nossas sociedades.
Com seu poder sedutor, a mídia tem grande influência no surgimento de novos
valores, sintonizados com a lógica das sociedades hipermodernas.
Am destes aspectos que apontamos, rios outros poderiam ser
apresentados para descrever essa nova configuração social, à qual Lipovetsky
denomina “hipermodernidade”. A religiosidade, por exemplo, assume uma
caracterização própria, sintonizada com a lógica consumista e sedutora, onde o fiel é
um “consumidor”, que em sua liberdade de escolha busca aquilo que mais o satisfaz.
Compreende-se, assim, porque a espiritualidade dos tempos atuais é
fundamentalmente emocional, pouco comprometida e exageradamente intimista.
96
Ibid., pp. 211-212.
97
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p.42.
45
Assim como a Religião, tamm o Estado, a educação, as estruturas e instituições
acabam por serem lapidadas segundo a lógica hipermoderna, onde o indivíduo tem a
centralidade, conseqüência do marcante processo de personalização. A arte, a moda, o
humor, e tantos outros aspectos, contribuem significativamente para a nova
fisionomia social hipermoderna.
1.2. Da soberania do dever à autonomia ética
Propomos aqui uma breve reflexão acerca das significativas mudanças
sociais no âmbito ético. Primeiramente é importante enfatizar que a configuração
sagrada da moral, de caráter essencialmente religioso, marcou fortemente a cultura
pré-moderna e moderna. Ainda hoje são perceptíveis sinais que revelam a incidência
de uma ética religiosa sujeita ao imperativo do dever. Com as sucessíveis
transformações no âmbito das relações humanas, mudaram significativamente os
comportamentos. A moral do dever, como imposição externa, perdeu espaço para
uma moral mais personalista, onde o critério determinante é o próprio sujeito e seus
“direitos subjetivos”.
O segundo aspecto que abordaremos é exatamente essa mudança: o
crepúsculo do dever de um lado e a aurora da liberdade de escolha de outro lado.
Concomitante à chegada da modernidade e o estabelecimento de uma sociedade
democrática, os condicionamentos morais religiosos perderam grande parte de sua
influência. No entanto, embora a predominância do valor da escolha pessoal, o caráter
de “dever” continua a fazer parte da moral na modernidade, só que a partir do próprio
indivíduo. Por fim, o passo definitivo é a instauração da sociedade do pós-dever,
configuração própria de uma época em que o sujeito humano se reserva o direito de
rejeitar tudo o que não o realiza ou que vai contra sua liberdade. É improvável
sacrificar-se, a não ser por si mesmo, em vista de algo mais realizador.
1.2.1. A moral do dever e seu caráter originalmente religioso
O ser humano é vocacionado a viver em sociedade. No entanto, sempre foi
um grande desafio superar os conflitos inerentes a essa vocação, buscando conviver
46
em harmonia. Desde muito cedo, faz parte da história humana a disseminação de
valores morais e princípios éticos, no intuito de normatizar os relacionamentos
humanos. Além das relações interpessoais, o indivíduo também cultiva,
historicamente, um relacionamento com o transcendente, que extrapola sua realidade
terrena. A dimensão religiosa é, assim, uma característica marcante do ser humano.
Nas épocas pré-modernas, religião e moral eram intrinsecamente unidas e não se
podia concebê-las separadamente. A moral era essencialmente teológica, isto é, Deus
era a fonte determinante de todo agir humano, o alfa e o ômega da moral. Sem o
temor a Deus poderia haver vícios e extravios.
98
O divino era o poder supremo, ao
qual todo ser humano estava submetido. É inegável que, dessa forma, a religião
detinha em suas mãos um inquestionável controle social.
Essa marcante incidência do fenômeno religioso na vida do ser humano
colaborou para que, historicamente, as sociedades se organizassem teocentricamente,
concebendo a Deus como fonte suprema da moral.
“No período anterior ao século das Luzes, irradiava-se a idéia de que, sem o
Evangelho e a crença em um Deus que pune as faltas e recompensa as virtudes,
nada seria capaz de frear o homem na senda dos crimes. Despojadas da religião,
as virtudes são algo ilusório: somente a revelação e a fé num Deus justiceiro são
capazes de assegurar eficazmente a moralidade”.
99
Reinava uma moral de caráter estritamente religioso, onde a fé se revelava
como virtude necessária para o bem-viver. O homem não encontrava em si mesmo,
mas em Deus, as luzes necessárias para conhecer e praticar aquilo que é moralmente
certo e justo. A moral extrapolava o âmbito dos relacionamentos humanos, fazendo-
se presente também no culto que o homem devia prestar a Deus. Era prioridade
absoluta consagrar-se ao serviço de Deus, enquanto os relacionamentos humanos e os
deveres para com o próximo eram secundários. Diante da concepção de que não
virtude possível sem conhecer e amar ao verdadeiro Deus, o que deve levar à prática
da virtude não é o respeito moral ao homem, mas o desejo e a glória do Altíssimo.
100
98
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 01.
99
Ibid, p. 08.
100
Ibid, p. 01.
47
Deus, então, regra a própria vida do homem, por ter em os o poder de premiar ou
castigar, de acordo com as obras humanas.
Do pensar ao agir, o dinamismo religioso perpassava todas as dimensões
da vida humana, e a maneira de viver melhor e mais autenticamente a própria vida era
adequando-a aos desígnios de Deus. Todas as regras morais deviam estar baseadas no
ensinamento revelado e só tinham eficácia mediante a fé, sem a qual nenhuma virtude
tinha valor.
101
Fomentada nos átrios religiosos, a moral se torna uma obrigação para
com Deus, assumindo os moldes de “dever”. O homem se torna capaz de praticar o
bem e promover a justiça na medida em que é impelido por Deus. Sem esse
“impulso” divino, o relacionamento humano bom e moralmente certo não seria
possível. Nessas circunstâncias, de submissão aos preceitos divinos, se condenava
veementemente toda moral dissociada da religião.
Essa configurão primitiva da moral tem aspectos positivos também. Não
se pode negar que essa influência religiosa tenha sido importante no processo de
desenvolvimento histórico das sociedades humanas.
“Os processo civilizatórios precisaram domar o homem. Repressão e religião
foram instrumentos de domesticação dos instintos humanos ao longo dos séculos.
Fazer do animal homem um ser sociável e capaz de respeitar o outro exigiu uma
trajetória disciplinar de milênios. O homem é uma invenção da disciplina, do
imaginário e do controle que conseguiu impor-se a si mesmo como cultura. A
cultura é uma disciplina acumulada, mas é também a acumulação dos processos
de indisciplina e de renovação dos valores. Sem os mecanismos disciplinares,
quase sempre legitimados por uma idéia de transcendência Deus quer, Deus
exige, Deus assim estabeleceu -, certamente não teríamos atingido o grau de
elaboração civilizatória e de autocontrole que alcançamos”.
102
Essa “configuração sagrada da moral prevaleceu ao longo de séculos,
mas não resistiu à modernidade. O processo de secularização da ética, desencadeado
a partir do século XVII, foi uma das mais significativas manifestações da cultura
democrática moderna. À irrupção da modernidade corresponde a elaboração de uma
ciência emancipada do ensinamento bíblico e a afirmação de uma moral emancipada
da autoridade da Igreja e da crença religiosa.
103
A sociedade moderna pretendeu
101
Ibidem.
102
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, xv.
103
Ibid., p. 02.
48
“emancipar-se de Deus” em todas as esferas: social, política, cultural, jurídica. A
idéia da cultura cristã tradicional, de que sem Deus o homem é incapaz de ser
moralmente bom, é arduamente atacada pela ofensiva moderna, que propõem valores
estritamente laicos. Essa tentativa de organizar uma estrutura social e política com
base em princípios éticos não vinculados a confissões religiosas vinha sendo traçada
há mais de século.
“Desde o Iluminismo, os modernos tiveram em mente estabelecer os
fundamentos de uma moral que fosse independente dos dogmas religiosos, sem
recorrer a uma verdade revelada e sem os conceitos de castigo e prêmio em uma
vida as a morte. Essa ofensiva anti-religiosa estabeleceu a primeira vaga
moderna da ética laica que, a título de referência temporal, poderia ser situada
entre 1700 e 1950. Primeiro ciclo da secularização ética que, embora emancipada
de espírito religioso, compartilhava de um dos elementos-chave dessa visão: a
noção de dívida infinita, de dever absoluto”.
104
A pretensão moderna de libertar a ética dos preceitos religiosos não
significou ainda uma libertação do preceito do dever. O que se alcaou foi uma
independência da dimensão transcendente, até então ponto de referência para todo
agir humano. As democracias individualistas, em sua origem, reiteraram a obrigação
moral, os deveres do homem e do cidadão, e criaram normas disciplinares rigorosas e
repressivas no tocante à vida privada. A emergente modernidade democrática se
caracterizou como uma sociedade organizada segundo princípios de uma ética laica,
de base estritamente humano-racional. A paixão pelo dever inculcava nos indivíduos
o espírito de disciplina e de autocontrole. O esquema era o mesmo, mas a fé deu lugar
ao culto das virtudes laicas.
“Promovendo a máxima depuração do ideal ético, professando o culto das
virtudes laicas, enaltecendo o dever da imolação pessoal no altar da família, da
pátria ou da história, os modernos praticamente o romperam com a tradição
moral da renúncia a si mesmo, mas na verdade retomaram o esquema religioso
do caráter imperioso e ilimitado dos deveres. De fato, as obrigações maiores em
relação a Deus foram apenas orientadas numa outra direção, transferidas para a
esfera profana, e se metamorfosearam em deveres incondicionais para consigo
mesmo, para com os outros e para com a coletividade. Assim, o primeiro ciclo da
moral moderna funcionou como uma religião do dever laico.
105
104
Ibid., XXVIII.
105
Ibid., XXVIII.
49
Se antes toda moral era “preceito divino”, com a investida moderna a
obrigação moral não é mais uma prescrição que vem de fora, mas algo que provém
exclusivamente do solo profano da vida humana e social. E já que o exercício dessa
obrigatoriedade não exige um auxílio transcendente, Deus é dispensado. A renúncia
de si continua valendo, mas são outras as razões e os meios. O sacrifício religioso
toma outra direção: a família, o trabalho, a não, o sindicato, o partido, etc. A
sociedade moderna afirma a virtude sem Deus, reconhecendo que “não é de modo
algum impossível que um ateu possa ter consciência moral.
106
Acreditando-se que,
mesmo sem a inspiração de uma crença religiosa, uma autêntica e eficaz vida moral é
um ideal plenamente atingível. Embora nem todos os elos entre moralidade e teologia
tenham sido rompidos, a conexão da ética com as verdades teológicas ficará cada vez
mais comprometida no século XX, com o desenvolvimento do positivismo, do
neoceticismo, do ateísmo e do anticlericalismo.
107
Para muitos pensadores modernos,
a moral se basta a si mesma, e Deus não é o sustentáculo da moral, que pode ter
vida própria sem incutir temor dos castigos eternos.
“A dinâmica de reconhecimento social da moral auto-suficiente prosseguirá,
legitimando sempre mais amplamente o princípio laico-moderno da separação
entre o dever terreno e a vida eterna, mediante a rejeição de uma idéia de
moralidade que seja tributária de uma concepção religiosa de vida após a
morte”.
108
A dinâmica pré-moderna da moral, submetida à esfera religiosa, tinha
como trunfo a crença na vida eterna. O viver era condicionado pela esperança de uma
recompensa justa após a morte. Boas obras seriam premiadas e más obras receberiam
castigo. Dessa forma, o medo tinha grande influência no “discernimento” humano.
Não foi sem resistências que se firmou uma moral autônoma, dissociada da
dependência a um Deus justiceiro e aos dogmas religiosos. Muitos pensadores se
viram às voltas com esse intento.
109
Embora as idéias de inferno e punição eterna
106
Bayle apud LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-Moralista, p. 08.
107
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-Moralista, p. 09.
108
Ibid., p. 09.
109
Segundo Lipovetsky, na concepção de Locke, por exemplo, a tolerância o abarca os ateus; por
estes negarem a exisncia de Deus, no caso ficariam demolidos os próprios fundamentos da vida
moral e da vida civil. As obras de Bayle, por sua vez, semearam vidas acerca dos princípios da
moral e da religião, e foram atacadas por isso. Wolff escandaliza e é destituído de sua cátedra por
50
sejam criticadas por alguns autores, como Voltaire e Rousseau, a linha de pensamento
deísta permanecerá fiel ao imperativo de um “Deus que premia e castiga”, conceito
indispensável para obrigar os homens a honrar seus deveres, como nos relata
Lipovetsky.
“Em todo o decurso do século XVIII, os apologistas da religião cristã, em
oposição aos filósofos iluministas, afirmarão que, se a moral não se apoiar no
temor divino e na recompensa post-mortem, os homens perderão todos os freios,
e nada mais os impedirá de resvalar para o caminho dos vícios e dos crimes”.
110
A rejeão da auto-suficiência da moral adentrou ao culo XX. Entre
ataques e contra-ataques, o dogma da fundamentação teológica da moral foi
solenemente reafirmado, reconhecendo que a moral sem Deus não passa de uma
fórmula sem conteúdo, incapaz de formar pessoas de bem, pois deixa os homens
entregues a si mesmos, gerando revoltados, ladrões, assassinos e bandidos de toda
espécie”.
111
Com excomunhões, julgamentos e críticas acirradas, essa posição
eclesiástica perdura até mais tarde
112
, quando se reforça a busca por um entendimento
entre os setores laico e católico da sociedade. A moral sem Deus” deixa de ser
tachada de escola do crime para se tornar um caminho possível para a modernidade.
A prática da virtude não é mais vista unicamente como um privilégio dos crentes. O
mérito moral é reconhecido como fruto da responsabilidade pessoal humana. O ser
humano pode, sim, praticar o bem, sem que isso seja um “dever religioso”. No
próprio ambiente religioso ganhou força a concepção de que não são os jejuns, as
penitências e as orações que legitimam uma fé autêntica e verdadeira, mas a prática
da virtude.
113
Embora se reconheça a importância das práticas religiosas para o sujeito
haver sustentado que os chineses haviam conseguido descobrir os princípios da verdadeira moral sem
o concurso da Revelação. Ibid., p. 10.
110
Ibidem.
111
Ibidem.
112
Em 1925, numa declaração da assembléia dos arcebispos e cardeais da França sobre as chamadas
leis de laicidade’, consta a afirmação de que ‘o laicismo em todas as esferas da vida social é um erro
fatal para o bem público e privado’. Ibid., p. 10.
113
Na própria Sagrada Escritura encontram-se passagens que levam os pensadores deístas e muitos
cristãos a reconhecerem essa concepção. Podemos citar: Os 6,6: “Porque é amor que eu quero e não
sacrifício, conhecimento de Deus mais do que holocaustos”; Mt 9,13: “Ide, pois, e aprendei o que
significa: Misericórdia quero, e não o sacrifício”; Mt 12,7: “Se soubésseis o que significa:
Misericórdia é que eu quero e não sacrifício, não condenaríeis os que não m culpa”. Fonte: BÍBLIA
DE JERUSALÉM, São Paulo: Paulus, 2002.
51
de fé, o esquema da “moral independente” obtém um triunfo histórico quando se
reconhece que a prática do bem, e de tantos outros valores cristãos, podem estar
presentes em qualquer pessoa, independente da fé.
A era moderna conseguiu fazer vingar a idéia de uma vida moral distinta
da fé, a igualdade de princípio.
114
Assim, o caminho da vida ética está aberto a todos,
crentes e incrédulos, e a virtude não é privilégio único de quem tem fé, visto que ela
não provém unicamente do transcendente, mas é intrínseca à dimensão humana. Caiu
por terra, assim, o princípio de desigualdade que estabelecia uma diferenciação
hierárquica entre os crentes e os não-crentes. A obrigação do “dever extrínseco” é
superada na medida em que o núcleo do agir moral humano encontra sua
fundamentação no próprio sujeito e em suas circunstâncias. O homem moderno terá,
sim, deveres, que provém dele próprio, de seu ambiente, de sua realidade. E o
exercício dessa obrigatoriedade não irá exigir um auxílio transcendente nem uma
coerção do Céu.
115
Suprimida, assim, a desigualdade, socialmente institucionalizada,
entre crentes e não-crentes, a responsabilidade humana se libertou da tutela religiosa.
“Libertada da roupagem religiosa, a responsabilidade moral do homem deixou de
ser formulada em termos de acepção perfeita e acabada, e foi idealizada no
contexto de uma nova economia da dependência profana, do determinismo social
e da descaracterização subjetiva”.
116
A dependência continua, não mais em relação ao transcendente, mas em
relação à própria realidade profana, laica. Nesse processo de secularização da moral
não se afirma simplesmente uma “moral independente”, mas se configura a
preponderância das obrigações éticas sobre as obrigações religiosas. Tal constatação
revela que, para os modernos, a ética enunciou-se como uma escala de valores
superior à própria religião, embora não contrária a essa. Segundo Lipovetsky,a
exigência ética suplantou a adoração mística, os deveres para com os homens
passaram à frente dos deveres para com Deus”.
117
Assim, o advento da modernidade
114
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 11.
115
Ibid., p. 08.
116
Ibidem.
117
Segundo observação de Lipovetsky, uma coisa é verificar a existência de um movimento de
emancipação da moral em face das crenças religiosas; outra, bem diversa, seria admitir, a exemplo de
seus promotores, que a moral possa encontrar sustento unicamente na razão, universal e invariável,
52
traz no bojo essa inversão histórica de prioridades: o dever humano, antes submetido
à religião, fica submetido à lei da razão moral, segundo a qual, as leis naturais estão
acima de qualquer outra lei exterior à realidade humana. Para os modernos, então, a
procura da felicidade, por exemplo, é a primeira e mais fundamental das leis naturais,
o que não o isenta de uma moral do dever, embora esse dever seja para consigo
mesmo.
Rejeitada a subordinação da moral à religião, a democracia foi tomando o
espaço de outras formas de poder e o homem moderno foi assumindo para si
responsabilidades fundamentais no decurso da história, reconhecendo-se como
condutor da sua própria vida. Sustentadas pela idéia de soberania individual e
igualdade civil, as sociedades modernas deixaram de lado os deveres provenientes de
Deus para abraçar os direitos emergentes dos homens. Se antes era Deus, agora o
próprio indivíduo, com seus direitos subjetivos, é parâmetro para todo agir humano.
“A imemorial preeminência das obrigações para com Deus cede lugar à
preeminência das prerrogativas do indivíduo soberano. (...) Enquanto o indivíduo
se torna o mais importante referencial da cultura democrática, o fato moral
primeiro se identifica com a defesa e o reconhecimento dos direitos
subjetivos”.
118
A centralidade moral deslocou-se do céu para a terra. O indivíduo é
soberano e são estritamente laicos os valores que conduzem a história humana,
embora não se pode negar que tenham uma raiz religiosa. No encalço da liberdade e
da igualdade, consagram-se os direitos subjetivos, e a felicidade, como direito natural
do homem, se torna a diretriz central da marcante cultura individualista dos tempos
modernos. Os modernos passaram a encarar a procura da felicidade terrestre como
“uma reivindicação legítima do homem perante Deus, um direito de cada
indivíduo”.
119
Dessa forma, não se pode, em hipótese alguma, tolher do indivíduo
esse direito de buscar a própria felicidade, fundado naquilo que lhe parece mais apto a
alcançá-la. É a aurora da liberdade de escolha.
fora de toda e qualquer raiz cristã. Nisso reside o que se poderia chamar de ilusão original do espírito
laico. Esse aspecto será fortemente frisado, de modo especial por Nietzsche, que colocará os valores
morais laicos na continuidade milenar da mensagem cristã. Ibid., p. 12.
118
Ibid., p. 03.
119
Ibidem.
53
1.2.2. O crepúsculo do dever e a aurora da liberdade de escolha
Com a chegada da modernidade e o estabelecimento de uma sociedade
democrática, a centralidade da moral, antes transcendente, migrou para o próprio
indivíduo. No entanto, mesmo liberta da tutela da religião a moral não perde
definitivamente o caráter de dever: para consigo mesmo, com a família, com a nação,
com o trabalho, com o partido. Mesmo que a sociedade pós-moderna tenha como
características marcantes a liberdade individual e o desprendimento de qualquer
determinação extrínseca à própria realidade pessoal, o imperativo do dever continua a
reinar por mais de dois séculos nas sociedades democráticas. Mas lentamente vai
sendo superado um tempo onde prevalecia a ingrata exigência de vencer a si mesmo,
de sacralizar as virtudes públicas e privadas, de exaltar os valores de abnegação e
mero altrsmo. Uma fase heróica, austera, categórica das sociedades modernas que,
segundo Lipovetsky, chega ao fim.
“As a época da enfática glorificação do dever moral irredutível, entramos num
período em que tal conceito se tornou eufêmico e desacreditado. Desde a metade
do século XX, fixou-se um novo mecanismo social de avaliação dos critérios
morais que não se apóia naquilo que era a mola mestra do ciclo anterior: o
culto do dever”.
120
Não é mais reverenciado o sentido glorioso do dever da imolação, do
sacrifício supremo, da abnegação pessoal. Foge-se de todo comprometimento exterior
e almeja-se um viver desinteressado e não submisso a determinações e prescrições.
Quer-se a liberdade total. A palavra dever, antes poderosa e absoluta, não suscita
encantos, mas rejeição. A submissão incondicional da vontade humana à lei deu lugar
a uma sincrética conciliação entre dever e prazer.
“A fórmula ‘é preciso fazer...’ cedeu lugar ao fascínio da felicidade; a obrigação
peremptória, à excitação dos sentidos; a proibição irretorquível, à liberdade de
escolha. A rerica sentenciosa do dever não está mais no cerne de nossa cultura;
em seu lugar, o que temos são os chamamentos à boa vontade, os conselhos psi,
as promessas de felicidade e de liberdade aqui e agora”.
121
120
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 24.
121
Ibid., p. 26.
54
Desaparecem as injunções da moral e extingue-se a cultura do sacrifício
do dever. São os direitos subjetivos, a qualidade de vida e a realização individual que
impulsionam em larga escala nossa cultura, e não mais o imperativo hiperbólico da
virtude.
122
Mesmo que não deixem de existir por completo, é evidente que o
rigorismo e o espírito de virtuosismo perdem espaço social. E toda tentativa ou sinal
de “revitalização” do imperativo do dever desperta reprovação e até indignação. Em
sociedades democráticas liberais, o moralismo nunca é visto com bons olhos.
Logicamente, isso não significa que o homem hodierno não seja ético. Há, sim, uma
significativa valorização da ética, desde que isso não demande uma imolação ou
sacrifício pessoal.
“De fato, as implicações formais de renúncia e austeridade foram globalmente
remodeladas no sentido de normas que satisfaçam nossas apetências particulares
e anseios de realização íntima. A época atual derrubou a hierarquia moralista das
finalidades, e, uma vez que o prazer em boa medida se tornou um conceito
independente de regras morais, a noção de felicidade subjetiva passou a irrigar
em profundidade a cultura cotidiana”.
123
A felicidade já era um ideal social no período do Iluminismo. No entanto,
estava sujeita a uma escala de valores de ordem mais elevada, que preceituava em
primeiro lugar a abnegação de si próprio. Na s-modernidade, rejeitando qualquer
noção de sacrifício, nos orientamos pela liberdade de escolha, ávidos pelo bem-estar e
pelos prazeres que nos proporcionam uma noção de felicidade. Grande responsável
pelo fim da ideologia do dever, a civilização do bem-estar individual se identifica
com a era do consumo, tirando de cena todas as formas de entraves ao deleite. Com
isso, a busca pela felicidade tem caminho livre.
“A lógica do consumo de massa alterou o universo das prescrições moralizadoras
e erradicou os imperativos coativos, engendrando uma cultura em que a
felicidade se sobrepõe à ordem moral, os prazeres à proibição, a fascinação ao
dever”.
124
122
Ibidem.
123
Ibid., p. 28.
124
Ibid,, p. 29.
55
A era do consumo engendra significativas transformações nas prioridades
humanas. Ao passo que estimula permanentemente o bem-estar individual, ela
aposenta a obrigação moral. O ritual do dever se torna algo impróprio para uma
cultura materialista e hedonista, baseada na auto-exaltação e no estímulo excitante do
prazer a cada minuto. Além do consumismo, diversos outros fatores (intelectuais,
filoficos, socioculturais) também desempenham um papel essencial no processo
histórico de depreciação do referencial moralista.
125
É um período que se caracteriza
pelo esforço em renegar o discurso alienante da moral, cerceador das liberdades, em
nome da liberalização individual e coletiva. E segue adiante a dinâmica de
depreciação e abrandamento do dever. No lugar das rígidas diretrizes morais, salta
aos olhos a obsessão psicológica e o máximo gozo do bem-estar. No encalço dessa
cultura de “felicidade acima de tudo” revela-se um condicionante: o imperativo
narcisista.
“A era da felicidade de massa celebra a individualidade livre, favorece a
comunicação e multiplica as escolhas e opções ao infinito. Entretanto, isso não
equivale a dizer que nenhum padrão seja mais aceito. Com efeito, a cultura da
felicidade não seria concebível sem um conjunto de normas, de informações
técnicas e científicas que predispõem a um constante exercício de autodomínio e
de vigilância sobre si. Após o imperativo categórico, o imperativo narcisista é
celebrado sem trégua pela cultura saudável e esportiva, estética e dietética”.
126
A felicidade individualista aparece indissociável do esforço de
manutenção e gerenciamento otimizado de si mesmo. De certa forma, a negação de
uma forma impositiva do dever dá margem para o surgimento de outra, talvez não tão
rígida, mas com força avassaladora sobre o indivíduo obstinado pela felicidade
pessoal. Por um lado se rejeita a cultura autoritária e puritana tradicional, e por outro
se dá margem a novas imposições: eterna juventude, saúde modelar, peso ideal, forma
perfeita, lazeres harmoniosos, sexo sem culpa; todas voltadas para a realização
125
Entre as décadas de 1960-1970, a difusão das idéias marxistas, freudianas, nitzcheanas e
estruturalistas deu especial relevo à negligência pela religião do dever. Em bloco, os problemas
referentes à revolução, às aspirações pessoais, à vida libertária ocuparam o lugar da retórica do dever;
os temas da livre manifestação individual e emancipação sexual tomaram a dianteira em relação aos
parâmetros de virtude; o referencial psi preencheu aquele espaço antes reservado à fraseologia
condenatória. Por todas as partes, grandes expressões inaugurais da crítica filosófica da modernidade
foram invocadas, citadas e comentadas, no sentido de levar ao descrédito os princípios autoritários e de
promover os valores liberais na vida particular. Ibid., p. 30.
126
Ibid., p. 33.
56
pessoal, adaptadas ao estilo de cada um.
127
Se o trabalho, a busca da qualidade de
vida e a saúde continuam sendo os fatores de mobilização mais importantes para o
indivíduo, o prazer, por sua vez, não é mais excluído, mas se torna legítimo,
valorizado e incentivado. O sujeito escolhe o prazer. Diante disso, uma nova ordem
amorosa transformou por completo a moral sexual tradicional.
“Ao longo de meioculo, cada vez mais o sexo foi sendo dissociado das noções
de mal e de pecado; uma vez que a cultura repressiva dos sentidos se
desacreditou, Eros se tornou uma das manifestações mais expressivas do mundo
do pós-dever. O que era sinal característico da infâmia adquiriu direito de
cidadania. O sexo-pecado foi substituído pelo sexo-prazer”.
128
O Eros encontra legitimidade enquanto instrumento de felicidade,
podendo ser expresso sem constrangimentos nem restrições, desde que não
prejudique a terceiros. Esse processo histórico de dissociação entre sexo e moral é
uma manifestação típica dos tempos de igualdade democrática. Desde a época do
Iluminismo, os modernos colocaram o apreço à felicidade terrestre no mesmo nível
dos demais prazeres da vida. No entanto, desde que o prazer perdeu seu elo com o
pecado, tal noção ganhou certa forma de embelezamento. Na escala de valores, ao
longo da história, a sexualidade passou por grandes transformações. No século XVIII
e XIX, o esforço de moralização e hierarquização dos prazeres classificou as formas
eróticas de deleite no ponto mais ínfimo, ao passo que os prazeres de natureza
intelectual e afetiva eram considerados mais nobres.
129
No entanto, esse dispositivo
de discriminação não resistiu ao processo pós-moralista. Hoje, embora perdurem as
diferenciações de gosto ou preferências individuais, as diversas formas de prazer
gozam de uma idêntica legitimação, um idêntico direito de expressão, sem cair em
um relativismo ou liberalismo total.
“Tenhamos em mente que a extinção da cultura do dever e o enaltecimento social
dos direitos subjetivos à vida livre e consumada não induzem nem um pouco à
total liberdade orgiástica. O desenvolvimento do erotismo se opera sempre dentro
de limites estritos: é bem mais alardeado que praticado, bem mais estável que
inconstante, bem mais contido que paroxístico”.
130
127
Idem, p. 34.
128
Ibid., pp. 36-37.
129
Ibid, p. 38.
130
Ibid., p. 41.
57
Nesse processo de liberalização dos costumes há, logicamente, muitas
atitudes em matéria sexual que não são aceitas.
131
A autonomia da sexualidade em
relação às normas puritanas e imperativas não equivale a uma permissividade
coletiva. Nem a revolução sexual da segunda metade do século passado, nem o
individualismo hedonista foram capazes de “legalizar” todas as proibições. O que
parece claro é que não há mais uma moral sexual homogênea.
“O ímpeto dos valores individualistas solapou o consenso que havia na
demarcação entre o honroso e a desonra, o normal e o patológico. O neo-
individualismo inaugura uma zona cinzenta de fragmentação dos critérios morais
e dos múltiplos juízos de valor, os quais já não têm como esteio fundamental um
dever adstringente. A era s-moralista não comporta mais exortações à prática
da moral, mas ainda aceita microexclusões de acordo com a livre escolha
pessoal”.
132
Não para identificar a expansão social dos direitos individuais à
permissividade desenfreada, à devassidão dos sentidos, às anomalias sexuais. Embora
as minorias sexuais ainda não sejam plenamente aceitas e respeitadas, tem crescido
significativamente a tolerância. A liberdade de escolha, reflexo de uma cultura que
superou o imperativo do dever, dá sempre uma nova caracterização à sociedade
humana, mas não elimina um flagrante paradoxo: a era da autonomia individualista
também é a da desestabilização generalizada, causa de estresse e de ansiedade
crônica. Quando é maior a possibilidade de escolha, maior é a fragmentação social.
Lipovetsky aponta o retorno da fidelidade”, por exemplo, como expressão da
fragilidade narcísica contemporânea. Quanto mais Narciso se retrai sobre si, tanto
mais almeja uma vida compartilhada a dois.
133
Com a sociedade do contra-dever, a
dinâmica histórica da autonomia individualista é desonerada da obrigação interior que
opunha certas formas de conduta individual. Os deveres se tornam direitos.
131
Cita-se, segundo o autor: o incesto, a exploração de menores, a prostituição, atos hediondos,
práticas sadomasoquistas, dentre outras. Ibidem.
132
Ibid., p. 40.
133
Ibid., p. 49.
58
“O processo pós-moralista transformou os deveres em relão a si mesmo em
direitos subjetivos, e as máximas obrigatórias da virtude em livres opções e
conselhos operacionais, a fim de obter o máximo de bem-estar das pessoas”.
134
Sujeito à livre escolha, o indivíduo priorizará, inegavelmente, seu próprio bem-estar,
sem deixar, no entanto, de ter certos “deveres” para consigo mesmo. O liberalismo de
“fazer o que quiser com a própria vidatem nítidos limites. O suicídio, por exemplo,
embora assuma uma nova fundamentação, não deixa de ser um ato indigno. Se antes
era violação dos deveres do homem para com Deus, transformou-se em delito social e
erro moral no tocante à própria pessoa.
135
Mesmo liberto da conotação de pecado, o
suicídio continua sendo um comportamento imoral em si e por si. Suscita, no entanto,
mais compaixão do que rejeição.
“Essa mudança nas atitudes e nas representações revela o desaparecimento da
cultura dos deveres individuais e, de forma correlata, o triunfo da gica dos
direitos subjetivos em suas mais extremadas conseqüências”.
136
Expressão da sociedade individualista pós-moderna, o direito de escolher
emana em todos os aspectos da vida humana. As famílias, mais submetidas aos
interesses pessoais do que a um dever moral, são fragmentadas, a la carte, ao gosto
pessoal. O sexo, como vimos, assume uma conotação mais livre, sem tabus ou
proibições. Os pais não abrem mão do direito de escolha sobre os filhos que terão, ou
não terão, e quando terão. A religião também entra na onda do self service. Até a
própria morte, uma das maiores preocupações humanas, tende a se reciclar na lógica
do direito subjetivo e das opções livremente aceitas e, como expressão última do
individualismo, ganham fôlego os debates sobre a eutanásia.
137
É mais um exemplo
das contradições deste tempo que, por um lado afirma o direito de cada um dispor de
sua ppria vida, e por outro lado redefine-se a proibição ética de proporcionar a
morte de uma pessoa, mesmo com o consentimento livre e consciente do paciente.
134
Ibid., p. 61.
135
Ibid., p. 62.
136
Ibid., p. 64.
137
Ibid., p. 66. Na França, a Associação pelo Direito de Morrer com Dignidade foi fundada em 1980.
Desde que foi criada, reúne em seus arquivos mais de 30 mil adesões. No mundo inteiro, calcula-se um
total aproximado de 500 mil militantes, espalhados em mais de trinta associações do gênero, todas
vinculadas a uma federação internacional.
59
Esse embate revela que, para o homem de nosso tempo, o sofrimento sico tornou-se
algo psicologicamente intolerável, e a morte voluntária é vista como seu último ato de
liberdade.
138
Em consonância com o processo de legitimação social da eutanásia,
como “declaração da vontade de morrer com dignidade”, vários outros aspectos
relativos à própria pessoa fazem eco, como a escolha do próprio corpo.
“Mudança de sexo, transformação do corpo em objeto de consumo e produção,
são outras manifestações que indicam que os deveres tradicionais estão perdendo
força. De modo concomitante, o direito à autodeterminação subjetiva e o direito
individualista à livre utilização do corpo obtêm aceitação crescente”.
139
Cada um faz o que quer com o próprio corpo, indiferente às reações que
podem suscitar à sua volta. É apenas mais um aspecto nessa progressiva supremacia
do direito de cada um dispor de si mesmo sobre os ditames incondicionais. Revela-se,
assim, a fragmentação do consenso moral e a relativização da idéia de dignidade
humana que se segue à diluição dos deveres individuais e à exacerbação dos direitos
subjetivos.
140
A cultura moralista preceituava a dádiva de si e a observância do dever
a perder de vista. Agora não mais deveres, e a esta nova configuração humano-
social, Lipovetsky chama de “sociedade do pós-dever”.
1.2.3. Sociedade do Pós-dever
Essa sociedade, que de um lado assiste o crepúsculo do dever e de outro a
aurora da liberdade de escolha, é a “sociedade do pós-dever”. É a configuração
própria de uma época em que o sujeito humano se reserva o direito de rejeitar tudo o
que não o realiza, ou que não leva em conta sua liberdade. Enquanto a noção de
sacrifício perde sua justificação social, as lições de moral são encobertas pelo fulgor
de uma vida melhor, do irradiante sol das férias de verão, do banal passatempo das
mídias.
141
Ávido pelo reconhecimento de seus direitos subjetivos, o indivíduo não
aceita imposições e deveres. Nessa sociedade, o único fim legítimo o os valores
humanistas. Nada mais é capaz de reprimir o desejo, que é levado à sua exacerbação
138
Ibid., p. 68.
139
Ibid., p. 70.
140
Ibid., p. 74.
141
Ibid,, p. 27.
60
extrema. Segundo Lipovetsky, “a fruição do momento presente, o culto de si próprio,
a exaltação do corpo e do conforto passaram a ser a nova Jerusalém dos tempos s-
moralistas”.
142
Sepultada a religião das obrigações, ganha vida uma marcante desinibição
pessoal, onde o sujeito se deixa levar pelas ondas da auto-realização. O sexo, sempre
atrelado às noções de mal e de pecado, assume uma liberdade ppria e se torna
objeto de consumo de massa, enquanto a cultura repressiva dos sentidos é
desacreditada. Assim, o Eros se torna uma das manifestações mais expressivas do
mundo do pós-dever.
143
No entanto, esse grande impulso subjetivo não significa que a
sociedade pós-moralista esteja órfã de regulamentações sociais ou valores a serem
preservados. Embora o ritual do dever tenha perdido o direito de cidadania”, os
costumes do sujeito individualista pós-moralista não mergulharam numa anarquia.
“O bem-estar e os prazeres são exaltados, mas a sociedade civil anseia por ordem
e moderação: os direitos subjetivos dominam nossa cultura, mas ‘nem tudo é
permitido’. A dissolução do sistema moralista não conduz à devassidão total. O
neo-individualista é simultaneamente hedonista e regulamentado, sedento de
autonomia e avesso aos excessos, hostil aos mandamentos sublimes e também ao
caos ou às transgressões da libertinagem pura e simples”.
144
Existem, claro, situações e atitudes imorais, visto que ganharam
importância fundamental nas opções e práticas do indivíduos-moralista o conforto
sem medida, a recreação, o sensacionalismo. Não significa, com isso, que estamos
livres de certas imposições. O “dever” continua presente e atuante, embora
dissimulado pelas vias da busca pessoal da realização constante e instantânea.
Lipovetsky ressalta o aparecimento de duas tendências contraditórias, atuando nos
diversos ambientes sociais: por um lado um hedonismo que exprime e acentua o culto
individualista do momento presente, impele aos prazeres imediatos e deprecia o valor
do trabalho. Por outro lado uma busca incessante da perfeição, da saúde e higiene,
numa gestão racional” do tempo e do corpo.
145
A esncia do individualismo é
mesmo um paradoxo.
142
Ibid., p. 29.
143
Ibid., p. 37.
144
Ibid., p. 28.
145
Ibidem.
61
“Ante a desestruturação dos controles sociais, os indivíduos, em contexto s-
disciplinar, m a opção de assumir responsabilidade ou não, de autocontrolar-se
ou deixar-se levar. A alimentação é o melhor exemplo: nossa sociedade da
magreza e da dieta é também a do sobrepeso e da obesidade”.
146
Na sociedade do pós-dever, a liberdade é imprescindível e os passos
humanos, antes submetidos ao destino”, são condicionados pelas escolhas pessoais.
Mas essa mudaa, aparentemente tão libertadora, tem um lado mais sombrio que
encobre a espiral para o niilismo, onde tudo é sacudido e posto em discussão.
147
A
superfície, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais é despedaçada e
torna-se difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro. Dissolvidos os
princípios e critérios absolutos, a cultura neo-individualista pós-moralista abala pela
raiz a noção do dever e acentua a exigência da liberdade e do aperfeiçoamento
individual, em vista da felicidade pessoal.
“Em poucas cadas, passamos de uma civilização do dever a uma cultura da
felicidade subjetiva. As implicões formais de renúncia e austeridade foram
globalmente remodeladas no sentido de normas que satisfaçam nossas apetências
particulares e anseios de realizão íntima. No período do Iluminismo, a
felicidade conseguiu impor-se como um ideal social. A época atual derrubou a
hierarquia moralista das finalidades, e, uma vez que o prazer em boa medida se
tornou um conceito independente de regras morais, a noção de felicidade
subjetiva passou a irrigar em profundidade a cultura cotidiana”.
148
O sujeito é envolvido por uma frenética busca de realização. A sedução
tomou o lugar do dever, o bem-estar tornou-se Deus, e a publicidade é seu profeta.
149
Como vimos, a publicidade midiática e o consumismo tornam-se pilares
fundamentais da cultura pós-moralista, onde o indivíduo está sempre se satisfazendo
e, no entanto, está sempre insatisfeito. No mundo do trabalho a cultura pós-moralista
também produz efeitos inovadores. O antigo estilo impositivo é deixado de lado em
vista de uma harmonia entre os objetivos da empresa e a busca pelo bem-estar
individual dos funcionários. Em vez de tornar-se um empecilho, o subjetivismo s-
moralista se torna mais um fator de competitividade na empresa.
146
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p. 21.
147
LYON, D., p. 95.
148
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 248.
149
Ibid., p. 31.
62
“Enquanto antes o que prescrevia regularidade e disciplina era a moral, hoje esta
é um instrumento de flexibilização da empresa. Antes havia um sistema de
autoridade, constrangimento e direção obrigatória, hoje menos hierarquia e
disciplina, maior iniciativa, maior abertura às mudanças e à agilidade com vistas
a uma maior competitividade”.
150
A artimanha da razão s-moralista esvazia o princípio das obrigações,
visando uma maior dinamização e implicação dos homens na empresa. Fatores
psicológicos e relacionais passam a gerir o mundo do trabalho. A motivação para o
trabalho e uma maior responsabilização pessoal, sempre sujeita a uma compensação,
tornam-se protótipo de administração empresarial. Em sintonia com uma ética da
responsabilidade, o se fixam arbitrariamente normas de conduta. Essa se torna
desejável por estar conforme ao progresso de cada pessoa. O espírito de equipe é
valorizado e os objetivos de competitividade das empresas são mais facilmente
alcançáveis na medida em que se incentivam as paixões individualistas de autonomia
e realização pessoal.
151
Os valores e referenciais éticos, aparentemente tão raros na sociedade pós-
moralista, não estão de todo solapados do contexto das relações. A s-moralidade
não é sinônimo de imoralidade. Essa hipertrofia do direito de cada qual viver para
si é a fórmula do individualismo consumado
152
, onde não obrigação de se dedicar
aos outros. No entanto, elementos que possibilitam registrar a persistência de
ideais éticos em contexto individualista.
“Em primeiro lugar, o desaparecimento de uma moral incondicional não teve
como conseqüência a difusão de comportamentos egoístas no conjunto do corpo
social. Em segundo lugar, o relativismo de valores não contribuiu para o niilismo
moral porque perdura um cleo duro de valores democráticos. E, por fim, a
perda dos referenciais tradicionais não resultou no caos social, dado que a
libertação individual não produziu uma anarquia total dos costumes”.
153
A sociedades-moralista não supõe o desaparecimento de todos os
valores éticos, mas permite surgir novas regulamentações. Fascinada pelo frívolo e
150
Ibid., p. 247.
151
Ibid., p. 100.
152
Ibid., p. 108.
153
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p. 39.
63
pelo supérfluo, ela entrou em seu momento flexível e comunicacional, caracterizado
pelo gosto do espetacular e pela inconstância das opiniões e das mobilizões
sociais.
154
As visões religiosas tradicionais estão cada vez mais sujeitas ao encontro
abrasivo com tendências modernas de secularização, conseqüência de um mundo em
que a escolha reina suprema. Quando tudo pode ser escolhido, acompanhamos o
surgimento de comportamentos e atitudes desprovidas de valores.
“Com o desmoronamento dos grandes discursos normativos acerca da moral,
assiste-se a fenômenos inéditos que participam de um individualismo
irresponsável: cinismo generalizado, recusa do esforço e do sacrifício
individuais, comportamentos compulsivos, tráfico de drogas e toxicomania,
violência gratuita, particularmente em relação às mulheres nas periferias urbanas.
O reino do hedonismo coincide apenas em parte com a era da tomada de
responsabilidade.
155
Nesse contexto s-moralista, onde a complexidade o permite
determinações exatas, a responsabilidade pessoal assume um papel determinante na
sociedade. A ausência do dever exterior gera uma inconstância no indivíduo: ao passo
que pode suscitar responsabilidade também pode justificar tanta hesitação, ansiedade,
dúvida e problemas. É o preço a ser pago pela sociedade que absolutizou o sentido de
escolha. Segundo Lipovetsky, essa sociedade pós-moralista se caracteriza como a
terceira era da moral.
A primeira fase, historicamente mais longa, foi a era teológica da moral,
inseparável dos mandamentos divinos.
156
Como vimos anteriormente, esse esquema
moral funcionou até o começo do culo das Luzes, quando os modernos buscaram
estabelecer as bases de uma moral independente da Igreja e de qualquer
transcendência. Surgia, assim, a segunda era da moral, a laica moralista ou moral
natural”, onde os princípios morais eram pensados em termos estritamente racionais,
universais, eternos, e, independente da religiosidade, estariam presentes em todos os
homens.
157
Os modernos estabeleceram, assim, a preponderância dos imperativos
morais sobre as obrigações religiosas. Uma inversão de primazia fundamentada
154
Ibid., p. 40.
155
Ibid., p. 39.
156
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p. 24.
157
Ibid., p. 25.
64
principalmente na tolerância religiosa e no reconhecimento da liberdade de
consciência, como vimos anteriormente. Por fim, Lipovetsky nos situa na terceira
fase da história da moral, a sociedade s-moralista, que exalta mais os desejos, o
ego, a felicidade, o bem-estar individual, do que o ideal de abnegação.
“Nossa cultura cotidiana desde os anos 1950 e 1960 não é mais dominada pelos
grandes imperativos do dever sacrificial, mas pela felicidade, pelo sucesso
pessoal, pelos direitos do indivíduo. Essa evolução se revela especialmente na
antes chamada esfera da moral individual, a dos deveres para consigo mesmo
(castidade, temperança, higiene, trabalho, poupança, interdição de suicídio). No
fundo, todos esses imperativos transformaram-se em opiniões livres, em direitos
individuais, tendo sido, no passado, pensados, ao contrário, como deveres
absolutos do homem para consigo”.
158
O próprio autor assim complementa sua definição de sociedade pós-
moralista:
“Sociedade pós-moralista quer dizer sociedade que se nega a inscrever em
caracteres de bronze os supremos deveres do homem e do cidadão ou a entoar
hinos de exaltação à renúncia pessoal. Isso o significa que os objetivos morais
tenham definhado. De fato, no mesmo momento em que a escola do dever
declina, testemunhamos por toda parte uma redescoberta da preocupação ética,
um reavivar da problemática e da ‘terapia’ moralizadora. As grandes odes
moralistas caem em desuso, mas a ética volta à ordem do dia”.
159
Os grandes imperativos éticos são coisas de um tempo já passado. A
soberania do dever ficou pra trás e, com reconhecida imponência, ganha espaço
uma ética mais subjetiva, mais autônoma, livre de parâmetros externos reguladores.
Falamos, assim, de um “retorno da ética”, como abordaremos mais adiante. Da
soberania do dever à autonomia ética, a sociedade se transformou consideravelmente,
e o ser humano se tornou hipermoderno. A sociedade hipermoderna, então, assume
contornos peculiares, e novos valores direcionam o sujeito humano a trilhar novos
caminhos.
158
Ibid., p. 27.
159
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 185.
65
1.3. Novos valores e novos caminhos
Na onda das constantes transformações, acentuadas com a pós-
modernidade e mais ainda na hipermodernidade, não como impedir que mudem
também os valores, os princípios, as orientações que iluminam os pensamentos e a
prática do indivíduo. Sem partir simplesmente para a crítica, tão comum por parte de
tantos estudiosos, pretendemos mostrar, com o auxílio de Lipovetsky, quais são os
valores fundamentais e como a hipermodernidade os cultiva. Abordaremos, ainda que
parcialmente, como o modo de agir do homem hipermoderno configura novas
realidades, como a família, o trabalho, os relacionamentos interpessoais. Como
vimos, a dinâmica da s-modernidade, refletida na cultura do Eu”, se acentuou
consideravelmente com a hipermodernidade. Intensificou-se o processo de
personalização, dando vigor à mudança da soberania do dever para a autonomia ética.
A sociedade pós-moderna se torna também pós-moralista, visto que o
homem pós-moderno rejeita submeter-se aos valores tradicionalmente cultivados. Os
deveres caem por terra ou se transformam em direitos subjetivos. A tendência de uma
sociedade liberta da tutela dos deveres e que preza pela liberdade de escolha
individual é que cresça a responsabilidade individual, o que nem sempre acontece.
Numa sociedade centrada no indivíduo e em suas buscas pessoais, ganha vigor uma
moral marcantemente subjetivista, e o “eu” torna-se parâmetro para todo
relacionamento interpessoal. Dessa forma, as instituições até então “sagradas”
assumem uma fisionomia mais personalista. Nos mais diversos ambientes desponta
uma renovão ética, marcantemente personalista e indolor”. Não seria, segundo
Lipovetsky, um verdadeiro retorno da ética, mas a constituição de um minimalismo
ético, sempre sujeito à lógica hipermoderna do consumo e da sedução.
1.3.1. Individualismo e Moral Subjetiva
Em uma sociedade “self-service”, onde o imperativo moral social
enfraquece, aumenta a importância da responsabilidade individual, pois cada um se
torna co-autor de seu estatuto moral. Se por um lado o sujeito hipermoderno está mais
perdido e confuso, por outro lado está menos tutelado e, naturalmente, mais obrigado
66
a gerir seu próprio mundo como artista de sua própria escultura. Diante dessa
configuração social marcantemente personalista, pode-se dizer que o individualismo
não é uma opção, mas um caminho do qual o sujeito tem dificuldades para fugir.
“As idéias de soberania individual e de igualdade civil, parte constitutiva da
civilização democrática-individualista, exprimem os princípios básicos e
inquestionáveis da moral universal, manifestam os imperativos imutáveis da
razão moral e do direito natural que não podem ser ab-rogados por nenhuma lei
humana. São ‘verdades evidentes por si’, e simbolizam o novo valor absoluto dos
tempos modernos: o indivíduo humano”.
160
A moral laica, sustentáculo da modernidade democrática, eleva o
indivíduo à condição de valor moral primeiro e último, reconhecendo seus direitos
subjetivos e fazendo da felicidade pessoal uma obsessão. No encalço da busca pessoal
pela felicidade está a moral subjetiva, como diretrizes que apontam o caminho a ser
trilhado. Individualismo e moral subjetiva são, então, duas realidades intrinsecamente
ligadas, que definitivamente excluem as rígidas imposições externas. As exigências
concernentes a cada pessoa não cessaram, mas agora se exprimem em meros termos
de escolha, vantagem, funcionalidade, apagando o lastro da retórica formal
obrigatória.
161
Suplantada a cultura da obrigação moral pela gestão integral de si mesmo,
o reino do pragmatismo individualista ocupou o lugar do idealismo categórico.
Embora silenciadas as exigências de caráter absoluto no tocante à vida de cada um, a
cultura individualista contemporânea o autoriza toda e qualquer atitude,
restabelecendo certas restrições éticas.
162
Lipovetsky acredita que, efetivando-se um
controle social heterônimo que leve em conta o interesse de cada indivíduo, é
possível criar novas regulamentações existenciais sem injunções de natureza
autoritária. O individualismo de nosso tempo é avesso a qualquer autoritarismo, e tem
como “lei fundamental” a realização pessoal, a busca pelo bem-estar, pela felicidade,
enfim, a satisfação individual. Tudo isso paralelo a uma aspiração sem precedente
pelo dinheiro, pela propriedade e pela segurança. Não podemos afirmar, no entanto,
que hoje o indivíduo seja mais individualista do que em tempos passados.
160
Ibid., p. 02.
161
Ibid., p. 61.
162
Ibidem.
67
“O indivíduo contemporâneo não é mais egoísta que em outras eras, mas o
homem hodierno despudoradamente agora o mais titubeia em r a nu o
caráter individualista de suas preferências. Pensar só em si não é mais tido como
algo imoral. O referencial do eu conquistou direito de cidadania”.
163
Não causa espanto uma atitude individualista, um indivíduo que age
preocupado consigo próprio. É uma forma de socialização comum nas sociedades
atuais o indivíduo buscar ambientes onde se identifica e reforça sua individualidade.
É o desejo de estar entre idênticos, junto a quem compartilha as mesmas
preocupações imediatas e circunscritas, os mesmos objetivos existenciais. Segundo
Lipovetsky, a última figura do individualismo não reside numa independência
soberana associal, mas, sim, “nas ramificações e conexões em coletivos com
interesses miniaturizados, hiperespecializados”.
164
Associações e sindicatos surgem
com a finalidade de atenderem aos interesses de seus membros. Quando deles fazem
parte, os indivíduos o fazem por reconhecerem aí uma possibilidade de satisfação de
seus próprios interesses.
Nessa lógica individualista, o sujeito pertence primeiramente a si, e não há
princípio algum acima de seu direito de dispor até mesmo da própria vida. Claro es
que essa concepção é fruto de um considerável enfraquecimento da não religiosa,
aliado à crescente legitimação dos valores da liberdade pessoal. Emancipados da
tutela da Igreja e das tradições, como vimos anteriormente, os indivíduos ficam
mais entregues a si mesmos, e então a busca do interesse pessoal e a obsessão pelo
dinheiro o corroem tendenciosamente.
165
Seria um erro enfatizar unicamente a face bruta do individualismo, não
reconhecendo também seus aspectos positivos. Paradoxalmente, o individualismo traz
consideráveis problemas, mas tamm apresenta um significativo avanço na busca da
autonomia individual.
“Quer na esfera individual, quer na esfera profissional, a autonomia
individualista tem revertido em alguma forma de desequilíbrio existencial. Se,
por um lado, a invectiva contra a burocratização tecnocrática e a exaltação da
163
Ibid., 107.
164
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, xxiii.
165
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 125.
68
responsabilidade individual e criativa merece encômios, por outro lado importa
ter em mente as novas contradições que daí procedem: mais independência,
porém com mais ansiedade; mais iniciativa, porém com mais exigências de
mobilização; mais valorização das diferenças, porém com mais imposição
competitiva; mais individualismo, porém com mais espírito de equipe e de
‘comunidade integrada’; mais exaltação do respeito individual, porém mais
injunções a mudar e a reciclar”.
166
É difícil falar de uma maneira definitiva sobre o individualismo. Todo
processo de modernização ou inovação supõe custos significativos. Com o
individualismo não é diferente: há certezas e incertezas. Apesar das contradições, é de
fundamental importância buscar compreender as circunstâncias em que se dão as
transformações, antes de fazer um juízo. Segundo Lipovetsky, por um lado o neo-
individualismo é tolerante, mas por outro lado é severo em relação a tudo o que seja
uma afronta à pessoa. Quando a prioridade de cada um está voltada para si mesmo, é
permitido pensar e agir livremente, desde que não cause danos a terceiros.
167
Essa é a
gica do individualismo de nosso tempo, um misto de tolerância e precaução. E o
paradoxo se fortalece.
“No momento em que impera o culto do ego é que os valores da tolerância
triunfam; no momento em que perece a escola do dever, o ideal do respeito aos
outros atinge sua consagração suprema. A consciência individualista é uma
mescla de indiferença e repugnância pela violência, de relativismo e
universalismo, de incerteza e imposição absoluta dos direitos do homem, de
abertura às diferenças ‘dignas de consideração’ e recusa às diferenças
‘inadmissíveis’. O relativismo total é apenas uma posição teórica defendida em
panfletos e dissertações filosóficas. Na realidade social, a flutuação das
convicções assinala a margem a partir da qual o núcleo mínimo da ética
democrática se vê ameaçado”.
168
A cultura neo-individualista está vinculada aos valores da liberdade
pessoal. Tudo o que vai contra esse princípio, é rechaçado. Significa que a tolerância
individualista s-moderna não implica renúncia de todas as convicções. , por
exemplo, considerável respeito pela opção religiosa, mas não são bem vistas as
práticas que cerceiam a liberdade, pondo em risco a dignidade humana em nome da
religião. Em matéria de sexualidade e vida familiar a tolerância é ampla, mas
166
Ibid., 254.
167
Ibid., 127.
168
Ibid., p. 127.
69
comedida quanto a certos comportamentos exagerados. Muito valorizados pelo
individualismo, os valores da tolerância e do respeito ao outro nunca se manifestaram
tão intensamente quanto em nossa época, ocasionando uma repulsa generalizada ao
emprego gratuito da violência.
169
Ou seja, nossa época, hipermoderna, pós-moralista,
neo-individualista, não abre o dos valores éticos que visam proteger” a pessoa.
Claro está, dessa forma, que a promoção dos direitos individuais não conduz à
tolerância absoluta e unânime. O individualismo prossegue sua escalada,
“reivindicando o direito de dizer o que bem se entende, menosprezar o que se queira,
negarqualquer realidade, ainda que se trate de um fato histórico evidente”.
170
Ao
passo que certas proibições se dissipam, marcados pela gica da personalização
surgem e se fortalecem novos valores sem, no entanto, abandonar outros
tradicionalmente vitais. Encontra-se a caminho uma importante renovação ética.
1.3.2. Renovação ética, ética “indolor” e minimalismo ético
Diante de uma realidade social hipermoderna, onde as constantes
transformações e inovações deixam o sujeito perdido, sem “porto seguro”, é comum
pensar que os valores éticos desapareceram. Evitando um olhar cético, Lipovetsky
na “derrocada dos valores” o mais que uma mudança vital na maneira de pensar e
agir do homem atual. No embalo do processo de personalização, como já vimos, e
imbuído de uma cultura individualista-narcisista, o indivíduo abandona valores
tradicionalmente importantes e assume novos valores, centrados no eu”, o que não é
equivalente à barbárie. Segundo o autor, “é uma atuação em favor dos valores
humanistas, que remete à definição de novas linhas éticas demarcatórias, em face dos
poderes acrescidos da ciência”.
171
O maior beneficiário dessa renovação ética é o
sujeito humano, não mais um mero cumpridor de imposições ético-morais.
Neste sentido, agir eticamente correto é agir em vista da própria realização
e bem-estar. Essa nova maneira de se reportar aos valores não se inspira nas formas
religiosas tradicionais, mas aceita e preserva seus referenciais humanistas. Constata-
169
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p. 38.
170
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 129.
171
Ibid., p. 70.
70
se que, após um período de relativo ocaso, a ética é reconduzida ao pedestal, mas não
se trata precisamente de uma volta idêntica ao que era antes, e sim de um
distanciamento do sistema em que a moral funcionava no passado, uma diferença no
registro social dos valores”.
172
o seria um retorno, mas uma renovação, que traz em
si uma novidade própria que diferencia substancialmente os valores ético-morais
atuais daqueles tradicionais. Na cultura individualista pós-moralista a renovação ética
encontra uma de suas mais típicas manifestações, que lhe dá um impulso vital.
“Embora a ética tenha readquirido foros de legitimidade, não houve uma
reinstalação da antiga e sólida moral de nossos antepassados no cerne da vida
social, mas apenas a emergência de uma regulamentação ética de um nero
inusitado. A própria efervescência do zelo caritativo e humanitário constitui uma
forma de exteriorização do obscurecimento do senso do dever, pois é sob a
roupagem da velha moral que de fato se insere o sistema s-moralista de
funcionamento social. Aquilo que muito impropriadamente se denomina de
‘retorno da moral serve apenas para acelerar a saída da época moralista das
democracias, que se trata do estabelecimento de uma ‘moral sem obrigações
nem sanções’, segundo as aspirações da massa, que se mostra inclinada por um
individualismo-hedonista democrático”.
173
Esse “retorno da moral” significa uma ética desligada do dever irredutível,
da imposição severa, da imolação ao próximo, ao trabalho, à família, à nação, da
supremacia do esforço sobre as benesses da fruição. Lipovetsky lembra que somos
ávidos por regras justas e equilibradas, mas sem renúncia pessoal: queremos
regulamentações, não imposições; ‘especialistas, não fiscais da moral.
174
Enquanto
uma ética de natureza obrigatória causa repulsa, uma “ética do sentimento evita
tolher a liberdade do indivíduo com normas extrínsecas.
“Não há dúvidas de que alguns sinais indicativos da ordem moral ainda
perduram. Porém, isso não é suficiente para concluir que haja um retorno da
ordem moral, sendo muito mais evidente o fato de que a sociedade atual é
arrastada pelos vagalhões de um processo sistemático de anemização e
desmoralização do espírito do dever. Contudo, também não paira dúvida acerca
da existência de um renovado interesse pelas questões de ordem moral. Essa
renovação ética deve ser entendida como um ímpeto de moral individualista e
indolor, não tendo nada a ver com o restabelecimento de uma moral pautada pelo
sacrifício. Abnegar-se? É impossível ignorar o descrédito em que caiu esse ideal.
172
Ibid., xxvi.
173
Ibid., p. 105.
174
Ibid., p. 26.
71
Sacrificar-se por uma causa superior coletiva? o se acha mais quem defenda
isso”.
175
Esse reaparecimento da ética rejeita toda lógica do dever, do imperativo
categórico, do cerceamento da liberdade individual, ao passo que reflete uma
crescente valorização da ética nos mais diversos aspectos da vida social. É uma
característica própria do neo-individualismo cultivar novos valores éticos, desde que
isso não exija abnegação e sacrifício. Pelo viés da ética, as sociedades atuais buscam
se “proteger” de todo tipo de imposição que possa frear a caminhada individualista. O
autor nos lembra que, na sociedade pós-moralista, a ética não se reinstala como ideal
incondicional, mas “como expediente da sociedade liberal para conter os temores
suscitados pela excrescência das novas instâncias de poder, ora tecnocientíficas, ora
midiáticas”.
176
Essa renovação ética instaura definitivamente a época pós-moralista,
sobrepondo direitos e liberdades às obrigações morais. Ganha força uma demanda
ética o contrária aos interesses pessoais, mas favorável à promoção de um mundo
liberto das rígidas demarcações. Vejamos algumas expressões dessa renovação ética,
com suas características peculiares.
a) Moral Indolor e minimalismo ético
Está claro que o enfraquecimento da moral tradicional não significa uma
ausência total de valores morais. Em consonância com o processo de personalização,
a moral adaptou-se aos novos valores de autonomia individualista, assumindo um
caráter profundamente livre, emocional e indolor. É assim que Lipovetsky define essa
renovação ética.
“Por detrás de toda revitalização ética, vê-se o triunfo de uma moral indolor,
última fase da cultura individualista democrática, desvinculada, em sua lógica
mais profunda, tanto das conotações de moralidade como de imoralidade. (...)
Em nossos dias, o que desperta maior reprovação não é a norma ideal, mas sim
uma eventual reativação do conceito de dever absoluto, a tal ponto que o
moralismo ficou sendo equiparado, socialmente falando, ao terrorismo e à
barrie”.
177
175
Ibid., p. 136.
176
Ibid., p. 211.
177
Ibid., p. 27.
72
Essa moral indolor, libertada de toda imposição externa ao sujeito, é uma
reação evidente a qualquer imolação pessoal ou sacrifício. O sujeito aceita o desafio
da responsabilidade, mas rejeita tacitamente o dever incondicional. Assim configura-
se a fase do minimalismo ético, pleiteando uma ética compatível com o primado do
ego. Neste sentido, toda generosidade, solidariedade, compromisso social e
institucional, não são incompatíveis com o individualismo, desde que não sacrifiquem
o sujeito. Toda atitude moralmente correta intenta, também, uma satisfação pessoal.
Ética indolor e individualismo convivem pacificamente. Não desapareceu a caridade,
e sim o ideal de viver para o outro.
“Não é, portanto, o princípio do aulio caritativo que perdeu sua justificação, e
sim o princípio de viver em benefício de outrem. O individualismo
contemporâneo não está em oposição antagônica com as obras de beneficência,
mas só com o ideal de se doar a si mesmo. Há um desejo de ajudar os outros, mas
sem se comprometer em excesso, doando a si mesmo em demasia. Generosidade
lá, contanto que seja algo fácil e distante, sem ligação com esta ou aquela
forma superior de renúncia”.
178
Em se tratando de caridade o individualismo pós-moralista concebe uma
dedicação restrita, principalmente em situações de urgência, em circunstâncias
excepcionais, quando o sentimental é atingido. Não se pode negar que o sujeito s-
moralista, embora individualista, é sensível à solidariedade. Naturalmente, primeiro
ele se preocupa consigo mesmo, depois se importa com o outro, naquilo que for
possível”. Ainda que denote uma forte tendência para a introversão, o individualismo
não elimina a preocupação ética, mas origina um altruísmo indolor de massa. Os
“shows caritativos”, por exemplo, são uma maneira individualista de sensibilizar com
causas nobres. Essa ética de urgência em favor dos deserdados, com suas numerosas
iniciativas, é o que resta “quando os grandes breviários ideológicos do progresso e da
revolução são abandonados, quando não se cmais nas promessas da política, do
progresso e do Estado”.
179
O sucesso da ética, nesse sentido, corresponde ao fracasso das ideologias
messiânicas, à fancia das grandes representações do progresso e da história. Talvez
não fossem comuns tantas iniciativas solidárias quando se alimentava a esperança de
178
Ibid., p.109
179
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p. 32.
73
um mundo melhor a partir de uma nova forma de poder, idealizados nos partidos e na
revolução. O sucesso da ética minimalista se deve, também, à grande decepção do
sujeito com as estruturas sociais e políticas de seu tempo. No entanto, se antes o
comprometimento era um dever, hoje a solidariedade é expressão de uma
sensibilidade pessoal. A configuração de uma ética indolor traz consigo suas
preocupações.
“O grande perigo não se encontra na formulação de uma ‘ética indolor’, uma
‘ética sem dogmas’ ou de uma ‘moral à la carte’, mas nas reações
fundamentalistas, dos mais variados níveis, a essa desconstrução da lógica
disciplinar do trabalho e da obediência ao sagrado, à tradição, à família, às
instituições de controle e à religião”.
180
Com o crepúsculo do dever, Lipovetsky não aponta para o
desaparecimento total da idéia de dever, mas reconhece uma redução considerável da
retórica maximalista das obrigações e uma simultânea consagração do dever mínimo.
E dentre os grandes responsáveis pela disseminação dessa nova roupagem ética estão
os meios de comunicação de massa.
b) Ética midiática
O culto do dever sacrificial não é mais exaltado em lugar algum, nem na
escola, nem nos livros, nem mesmo na esfera política. No entanto, é interessante
perceber que a caridade, bem como os apelos à solidariedade, nunca alcançaram tanto
sucesso e espaço midiático. A moral emocional foi reciclada segundo as leis do
espetáculo.
181
Com o grande poder de encantamento que tem, a mídia protagoniza a
difusão de novos costumes e práticas. Nesse sentido, a mídia é promotora de uma
nova configuração ética, suave e indolor.
“Agora, os ‘empresários da moral’ não são apenas as associações caritativas e
humanitárias, mas também as redes de TV e os astros da mídia. Quanto mais se
depaupera a religião do dever, mais consumimos generosidade; quanto mais os
valores individuais ganham terreno, mais proliferam e alcançam recordes de
audiência as encenações midiáticas das boas causas. A era pós-moralista não tem
o sentido de uma recusa do referencial ético, mas de uma superexposição
180
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, xxv.
181
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p. 28.
74
midiática dos valores, isto é, de uma reciclagem destes nas leis do espetáculo da
comunicação de massa”.
182
Esse aggiornamento das técnicas de caridade ganhou visibilidade em
meados dos anos 1980, com monumentais concertos, mega-shows e maratonas
televisivas.
183
É inegável que esse grande espaço midiático reservado às mais diversas
experiências solidárias tem como finalidade os interesses da mídia, obcecada pelos
índices de audncia. Temos que reconhecer, no entanto, que a onipresença midiática,
como nova instância de organização da realidade social, e associada a um poder de
irradiação sem precedentes, está na base do avassalador retorno da preocupação
ética.
184
O novo humanitarismo caritativo dispensa a rigidez moral, sendo claramente
avesso ao espírito de disciplina, uniformização e imposição. Sempre num ambiente de
recreação, propaga a caridade por ocasião de grandes desventuras humanas. É uma
bondade de ocasião, uma solidariedade epidérmica, sem engajamento ético. Seguindo
a lógica da sedução, o sujeito é convidado a uma atitude caritativa descomprometida.
“O momento presente é afim com a efusão sentimental de lágrimas, com a
dramatização da existência, com os elos espontâneos e autônomos do coração.
Fica bem longe aquele tom dominante do ‘ser-obrigado-a-fazer’. Com a
teatralização do Bem, a emoção hiper-realista do público eletrizado tomou o
lugar do idealismo da antiga obrigação categórica”.
185
A caridade televisiva não origina compromisso, mas fundamenta e
estimula uma consciência ética efêmera e indolor. Não instaura um reavivamento das
virtudes, mas determina a vitória do consumismo individualista. Com um grande
poder de mobilizão altruísta, a eficácia das campanhas midiáticas está condicionada
ao fato de que não entram na rotina, mas sempre despertam experiências novas. O
“engajamento” se dá de forma superficial, simplesmente emocional, sem
compromisso concreto. E quanto mais cômoda for a possibilidade de ser solirio”,
182
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 110.
183
Bob Geldolf teve a idéia de pôr o rock a serviço do Terceiro Mundo, acossado pela fome. Assim,
uns quarenta astros de rock ingleses fazem o registro dos direitos autorais do disco sem finalidade de
lucro. Ibidem.
184
Ibid., p. 211.
185
Ibid., p. 113.
75
melhor. Se, por um lado, os órgãos midiáticos desencadeiam grandes ímpetos de
solidariedade, por outro lado acomodam e descomprometem os indivíduos.
“Enquanto a mídia motiva circunstancialmente o coração das pessoas, ao mesmo
tempo exonera de culpa as consciências e age de forma a desviar os indivíduos
dos bitos correntes de socorro tuo e benevolência ao próximo. O altruísmo
do pós-dever é acalentado pela distância. Assim, ficamos mais sensibilizados
com a miséria que a tela magnética faz chegar anós do que com aquilo que
somos capazes de tocar com nossos próprios sentidos”.
186
O impacto televisivo nos põe em contato com situões inesperadas e
distantes. Assim, muitas vezes sentimos mais pena de um desconhecido que esteja
sofrendo a longa distância, e cuja imagem apareça na TV, do que de uma pessoa em
condições idênticas, próxima de nós. A mídia não cria vínculos de responsabilidade,
nem proe uma conduta moral, ela apenas comove, despertando um misto de pena e
indignação. O sofrimento alheio aparece como algo intolerável, revelando um
conteúdo participativo nas desgraças do pximo. Mesmo comovido, o sujeito evita
sacrificar-se. Ciente disso, a mídia usa seu poder de comoção para alcançar suas
metas.
“Quanto menos espírito de sacrifício, maior a capacidade de angariar fundos. A
era do marketing humanitário e caritativo é pouco exigente em relação aos
indivíduos, entretanto, mais eficaz; pouco rigorista, entretanto, com maior
capacidade de ‘mobilizar’ as massas, ainda que só esporadicamente”.
187
Sem ignorar os possíveis alcances caritativos, não dúvidas de que toda
estratégia midiática voltada à solidariedade seja fortemente interesseira. Não somente
a TV, mas a maioria dos meios de comunicação procura vincular seu trabalho às
situações e realidades que despertam comoção e fazem “vender o produto”. Nesse
sentido, a onda ética adentra o mundo dos necios.
c) Ética nos negócios
A onda de “revitalização” ética atinge também o mundo dos negócios,
onde as questões ético-morais ganham cada vez mais espaço. O interesse do cliente
186
Ibid., p. 115.
187
Ibid., p. 116 – nota de rodapé 06.
76
consumidor precisa ser levado em conta, sem abrir mão dos interesses empresariais.
Num tempo em que o indivíduo se mostra bastante sensível aos valores humanos, às
práticas inclusivas, solidárias, enfim, a toda iniciativa que lhe para de bom grado,
as empresas assumem a bandeira da preocupação social em seus negócios,
conquistando consumidores e admiradores. Surge, assim, a “responsabilidade social
da empresa.
188
Se na modernidade a empresa era regida pelo anonimato e pela
disciplina, a empresa s-moderna assume uma nova configurão, buscando ser
“portadora de uma mensagem de sentido e valor humanos”.
189
No entanto, seria
exagero dizer que as empresas se tornaram mais “humanas”, ou mais altruístas.
“Hoje, a grande empresa busca atingir um padrão de trabalho digno, um objetivo
nobre, algo que ultrapasse o mero âmbito do lucro; por isso, se faz dotar de um
‘giroscópio ético’, capaz de fornecer um sentido à atividade econômica. À
medida que a concorrência econômica se acentua, as grandes firmas pregam
ostensivamente cartazes demonstrando sua preocupação com os valores, mais
como vetores de adesão e dinamização empresarial, como instrumento jurídico
capaz de atenuar a responsabilidade da empresa, do que como imposições
categóricas da ordem moral. A voga dos códigos e prescrições éticas nada tem de
vago idealismo; em seu núcleo mais interno, é fundamentada no princípio de que
a crença ética é algo essencial para o êxito comercial e financeiro”.
190
Longe de refletir uma consagração ética, o despertar do interesse ético no
mundo dos negócios evidencia sua dimensão utilitarista. A moral torna-se um
instrumento que contribui para o sucesso da empresa. Foi-se a época em que era
constrangedor e desagradável para os negócios falar em princípios éticos e morais ou
em responsabilidade social. Numa visão liberal clássica, a ética aparecia como um
freio, um obstáculo à eficácia econômica, uma utopia contra-produtiva. Mas, nas
últimas décadas, “o respeito aos princípios da moral tornou-se o motor de uma
empresa eficiente, fazendo parte das necessidades do comércio e do próprio
capitalismo”.
191
Hoje, içar a bandeira da ética nos negócios e falar em valores
humanos e princípios éticos é fundamental para toda e qualquer empresa encontrar
maior receptividade social. Ethics is good business.
192
Em pouco tempo, a moral
188
Ibid., p. 221.
189
Ibid., p.224.
190
Ibid., p. 225.
191
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p. 43.
192
“Ética é bom negócio” - LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 228.
77
transformou-se em meio econômico, em instrumento de gestão, em técnica de
administração. Segundo Lipovetsky, é provável que o marketing ético e social, tão
difundido hoje, desapareça quando o ar do tempo não estiver mais favorável à
solidariedade”.
193
Seria, então, mais uma etapa dos inescrutáveis caminhos da
sociedade humana?
“O percurso atual da ética faz lembrar outros trajetos anteriormente realizados;
um favorecia a satisfação dos ‘desejos’, outro a consolidação das ‘estruturas’. Na
situação atual, o que confere valor e credibilidade ao discurso é a simples
renúncia da palavra mágica; hoje tudo pode ser vendido sob os auspícios da
ética”.
194
Quem garante que a preocupação ética seja permanente? Seu sucesso no
mundo dos negócios está relacionado às promessas de eficncia, mas também a uma
cultura sedenta de renovação. As regulamentações, preceitos e projetos empresariais
não são imutáveis, mas atualizados periodicamente, sintonizados com o diversificado
e instável universo econômico, onde tudo se ajeita às circunstâncias. É certo, no
entanto, que o desdém pelo parâmetro ético, na situação atual, torna-se um grande
equívoco e pode representar um custo alto para qualquer empresa ou instituição
social. Embora essa inovão ética no mundo dos negócios transforme
consideravelmente as relações comerciais e as estratégias empresariais, seria exagero
dizer que mudam os objetivos mercadológicos. A finalidade econômica da empresa
não muda.
“O patrocínio de iniciativas de interesse geral não desvia a empresa de seu
objetivo econômico, mas atesta um desejo de ampliar e otimizar a comunicação,
integrando-a em sua lógica de vetores, de alvos, de temas ainda ignorados. As
estratégias éticas são, antes de tudo, instrumentos de comunicação da superfície,
do poder e das modalidades de comunicação tendo como fim aduzir um valor à
marca. Sob o signo ético das iniciativas de interesse geral, a competição das
marcas e a investida sobre novos mercados prosseguem em sua ofensiva”.
195
O parâmetro ético se torna mais uma arma nas batalhas comerciais, dando
uma nova “personalidade” à empresa, mais atenta às exigências dos consumidores.
193
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p. 51.
194
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 229.
195
Ibid., p. 240.
78
Numa época em que a qualidade dos produtos tende a se nivelar, a ética é mais uma
estratégia do mercado, que atua como instrumento de diferenciação e de
personalização da empresa, criando condições para sua boa aceitação social.
196
Tantas
estratégias revelam uma obstinação sedutora por parte do mercado e marcam o
surgimento de um consumidor mais exigente. Mais do que oferecer inovações, com
qualidade e eficiência, é preciso transmitir confiança, ressaltando o senso de
responsabilidade social e ecológica das firmas. Nesse sentido chama atenção em
nossa época o “empenho” de tantas empresas em transmitir uma imagem de “empresa
ecológica”, empenhada em cuidar do meio ambiente.
197
É importante para a empresa
criar novas alternativas de sedução, transmitindo uma imagem sintonizada com as
preocupações e problemas que assolam a sociedade. Se os consumidores e
protagonistas econômicos, de modo geral, fazem suas opções baseadas no nexo com
valores e outras questões de interesse geral, seria um erro estratégico as empresas
ignorarem o critério ético.
198
196
Ibid., p. 244.
197
Vide ancio sobre Responsabilidade Socioambiental do Banco Bradesco, no Brasil: “Transformar
o mundo em um lugar melhor é tarefa de todos. Mas, para isso, é preciso mudar primeiro a consciência
humana. Ao longo dos tempos, o Bradesco se tornou uma das principais referências brasileiras em
comprometimento socioambiental e hoje é a instituição financeira que mais investe nessa área. Foram
anos na construção de valores que agora fazem a diferença. Atualmente, a organização ocupa na
sociedade um espaço que vai além da atividade comercial. Por meio de produtos, serviços e parcerias,
contribui para a formação de valores de todos que, mesmo indiretamente, participam do seu cotidiano.
Aperfeiçoar constantemente a qualidade no atendimento ao cliente faz parte dessa formação. Por isso,
no decorrer de sua história, o Bradesco consolidou sua base organizacional e tecnológica, criando
produtos e serviços com foco na sustentabilidade, evidenciando, assim, a importância do cliente.
Afinal, ele é o grande propulsor das ações do banco. No entanto, responsabilidade socioambiental é
mais que isso. É ter cidadania, é praticar a inclusão social, é contribuir com o meio ambiente. Em
1956, o banco plantou uma importante semente na tentativa de alcançar esses ideais. Nascia nesse ano
a Fundação Bradesco, considerada hoje o maior projeto social do país. Com essa iniciativa foi possível
oferecer a milhares de alunos de todo o Brasil um ensino gratuito e de qualidade. (...) O banco ainda
alinhou as eficiências dos serviços a uma atitude responsável em relação ao meio ambiente. O uso de
papel reciclado; a coleta seletiva de metais, vidros e psticos; a utilização de sacos psticos
biodegradáveis, são algumas das atitudes ambientais adotadas. Além disso, associa alguns de seus
produtos a iniciativas de auxílio ao meio ambiente. Um recente exemplo é o Programa
Ecofinanciamento de Veículos, uma parceria com a S.O.S Mata Atlântica, em que mudas de árvores
o plantadas a cada veículo financiado. Essas são apenas algumas das iniciativas do Banco Bradesco.
Mesmo participando ativamente desse compromisso, a Organização acredita que é preciso ir além,
fazendo sempre mais e aumentando sua contribuição na busca de um mundo melhor. Faça vo
também a sua parte, afinal, cuidar do meio ambiente é cuidar da própria vida!” Fonte: acessado em 26
de agosto de 2008. In:
http://www.bradescorural.com.br/site/conteudo/resp_socioambiental/default.aspx
198
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 244.
79
Diante dessa visível preocupação com o meio ambiente, por parte de
empresas e instituições de interesses mercadológicos, a época s-moralista
corresponde também à ascensão de uma “ética do meio ambiente”. A cidadania s-
moderna é mais ecológica do que política, pois aspira cada vez mais a uma cidadania
“verde”.
199
Sem abandonar o caráter “indolor” da renovação ética, a preocupação
ambiental ganha vigor sem exigir sacrifício humano. Também em relação à natureza,
mais do que deveres, o indivíduo tem direitos.
“As as conquistas históricas dos direitos-liberdades e direitos sociais,
presenciamos o crescimento das reivindicações em favor do direito à qualidade
de vida, expressão característica do individualismo s-moderno. É inegável que
a cultura ecológica e sua preocupação de responsabilidade para com as gerações
futuras representam uma estocada certeira na lógica do individualismo radical,
que subtrai o ônus da responsabilidade. No entanto, a mola propulsora da
‘consciência verde’ das massas será sempre a exigência individualista de viver
melhor e mais tempo”.
200
Embora ganhe notoridade a idéia de obrigação moral em relação ao futuro
do planeta, para a maioria das pessoas isso o implica um verdadeiro compromisso.
Seguindo uma moral minimalista, que não prescreve auto-renúncia nem sacrifício
supremo, basta evitar o desperdício, usar produtos recicláveis, consumir produtos
naturais, respeitar e cuidar dos espaços verdes e apoiar movimentos e redes de
solidariedade. o atitudes que o comprometem verdadeiramente, mas produzem
sentimento de “missão cumprida, de “consciência tranila.
A gica industrial e consumista ganha vigor sob a bandeira da
responsabilidade ético-ambiental. O eco-consumismo propaga um novo estilo de
vida: produtos “bio”, higiene biológica, turismo “verde”, consumo ecológico. Longe
de revelar uma autêntica sensibilidade ecológica, essa reestruturação social é
possibilitada por três fatores: a dinâmica das paixões individualistas, os interesses
econômicos e a sutileza tecnicista.
201
A ética do meio ambiente harmoniza ecologia e
economia, moral e eficácia, qualidade e crescimento, natureza e lucro. Com a
justificativa de respeito ao meio ambiente, se continuidade à concorrência
199
Ibid., p. 193.
200
Ibid., p. 195.
201
Ibid., p. 196.
80
econômica, e os valores vão sendo mobilizados e instrumentalizados a serviço dos
interesses do mundo dos negócios.
202
Lipovetsky essa “renovação ética” a partir de quatro grandes fatores.
Primeiramente, uma sucessão de catástrofes, desastres e perigos,
203
que acelerou a
tomada de conscncia relativa à preservação do meio ambiente e do homem, bem
como a preocupação com as futuras gerações e o destino do planeta.
204
Na esteira de
diversos escândalos, o modelo econômico neoliberal degradou a imagem da empresa
no mundo dos negócios. Diante da crescente desconfiança em relação ao universo
empresarial, a ética nos negócios desempenha um papel de legitimação e reabilitação
das empresas, estampando ambições de interesse coletivo e conquistando a fidelidade
do cliente.
205
Um terceiro fator é a nova onda de marketing, que estimula e lança
produtos que respeitem o meio ambiente e melhorem a qualidade de vida das pessoas.
A ética, assim, funciona como marketing dos valores, estratégia comercial e
comunicacional, um novo instrumento de valorização das empresas no mercado.
206
Por fim está a promoção da cultura empresarial, com ênfase nos recursos humanos e
na mobilização dos empregados. Valorizando a autonomia e a responsabilidade dos
empregados, e dinamizando um clima de confiança interno, busca-se criar uma
imagem humana da empresa.
207
Nessa flagrante renovação ética, a moral transformou-se em meio
econômico, instrumento de geso, técnica de administração. Virtudes e valores estão
a serviço dos interesses vitais das empresas. Diferentemente do imperativo ético
tradicional, agora não se exige dos indivíduos devoção, doação de si ou sacrifício de
qualquer ordem.
202
Ibid., p. 198.
203
Dentre tantos, podemos destacar: a diminuição da camada de ozônio, a poluição atmosférica, a
emissão de gás de efeito estufa, a destruição da floresta amazônica.
204
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p.43.
205
Ibid., pp. 44-45.
206
Ibid., pp. 46-48.
207
Ibid., pp. 48-49.
81
1.3.3. Relações novas e valores novos
Na medida em que a centralidade de todo pensar e agir humano é o
próprio indivíduo, como vimos ao longo deste capítulo, novos relacionamentos vão
surgindo, impregnados de novos valores. Na s-modernidade instaurou-se uma
profunda revolução nas relações interpessoais, onde o que importa é ser
absolutamente si mesmo, desenvolvendo-se independentemente de critérios externos.
O narcisismo e a indiferença são reflexos de uma sociedade que assiste ao crepúsculo
do dever, onde as pesadas armaduras ideológicas e institucionais, os costumes
tradicionais ou disciplinar-autoritários, bem como os princípios religiosos
imperativos, são substituídos e a vida cotidiana perde os referenciais seguros de
outrora. Os mais diferentes aspectos da vida humana são assolados por renovações
constantes. Abordaremos, a seguir, alguns deles, onde o impacto se torna mais
visível.
a) A Família
Diante dos marcantes traços das sociedades contemporâneas, a família
assume uma nova configuração, distinta do modelo tradicional. Há um grande apreço
pela família, mas quase nenhum pelas normas incondicionais. Proliferam, assim, os
casos de divórcios e uniões livres, bem como o número de filhos gerados fora do
matrimônio, sem ver nisso algo destoante, mas como algo cada vez mais comum e
normal. Em benefício da realização pessoal íntima, esvaziou-se o culto às antigas
prescrições e foram suprimidos os deveres que limitavam os direitos individuais,
irrompendo uma nova ordem familiar.
208
A idéia de se casar, conservar a união, gerar
filhos, não é mais vista como uma imposição obrigatória. A “validade” do casamento
está na realização pessoal que ele propicia. A família, assim, é uma instituição s-
moralista, reciclada pela lógica da autonomia individualista.
Nessa situação, a procriação, quer era a principal justificativa para os laços
conjugais tradicionais, se libertou da submissão ao casamento. Não há mais o “dever”
de se casar para procriar, mas o “direito” individualista de gerar filhos, independente
208
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 137.
82
do estado civil. Instaurou-se o reino individualista da geração de filhos e da livre
escolha do tipo de família.
209
Se a ordem moral proclamava o primado da família em
face do indivíduo, com a nova ordem familiar, o indivíduo tem primazia sobre a
família.
“Longe de ser um fim em si mesma, a família tornou-se uma prótese
individualista, uma instituição na qual direitos e aspirações subjetivas
preponderam sobre as obrigações catericas. Durante muito tempo, os valores
da autonomia individual estiveram sujeitos à ordem da instituição familiar. Essa
época foi superada. O extraordinário crescimento dos direitos individualistas
depreciou tanto as obrigações morais do casamento quanto a da prole numerosa.
Sem vida, os pais reconhecem que ainda m deveres a exercer perante os
filhos, mas o a ponto de se acharem na obrigação de se manterem unidos por
toda a vida ou de fazer o sacrifício de seus interesses pessoais”.
210
O consumismo, a multiplicidade de opções e alternativas de
entretenimento e passa-tempos, as preocupações pessoais com estudo, trabalho,
relacionamentos, acabam por tornar cada membro da família uma ilha. pouco ou
quase nenhum convívio, e os costumes tradicionais de refeições, programas e
atividades conjuntas, enfim, aquele tradicional espírito familiar, é do “tempo dos
avós”. Diante dessa configuração familiar, há “famílias” que têm em comum o
mesmo teto. Tão flexíveis são as características da família pós-moralista hodierna que
é viável fazer a montagem ou a desmontagem da mesma segundo a preferência de
cada um. Para Lipovetsky, “aquilo que antes era uma instituição obrigatória
metamorfoseou-se agora em instituição de gênero emotivo e elástico”.
211
Embora a antiga ordem familiar carecia de liberdade, e a família era
submetida a um modelo prescrito, com papéis pré-definidos, muitos valores que então
eram cultivados fazem muita falta hoje. A relação entre pais e filhos foi
profundamente atingida pela dinâmica neo-individualista, e hoje os filhos o são
ensinados a honrar os pais, mas a buscar por vontade própria a felicidade, a procurar
uma vida independente, a escolher um rumo livre e as amizades de sua preferência.
212
Houve uma transformação radical nas relações intrafamiliares: outrora os pais tinham
209
Ibid., p. 138.
210
Ibid., p.139.
211
Ibidem.
212
Ibid., p. 141.
83
a centralidade, agora tudo converge para os filhos. Segundo Lipovetsky, embora a era
pós-moralista enfraqua os deveres em seu conjunto, ela amplia o espírito de
responsabilidade dos pais em relação aos filhos.
213
Agora, os filhos têm mais direitos
e os pais mais deveres.
“A ingratidão dos filhos causa menos escândalo do que a indiferença dos pais em
relação a seus rebentos. A violência exercida contra as crianças passou a ser um
dos delitos mais graves, mais intoleráveis aos olhos da opinião pública”.
214
Essa constatação se confirma com os inúmeros casos, amplamente
divulgados pela mídia, onde a irresponsabilidade dos pais é visível.
215
Claro está que,
na cultura familiar pós-moderna a criança tornou-se o princípio-responsabilidade dos
adultos, um vetor primordial de reafirmação dos deveres. No entanto, essa ênfase nos
deveres não significa uma freada brusca na hipertrofia individualista.
216
Isso porque
esse gênero de obrigações paternas diz respeito à esfera privada, onde a obrigação
tem menos a ver com um imperativo categórico e inflexível e do que com um vínculo
emotivo. Lipovetsky não vê nisso uma imolação” ou “sacrifício” por parte dos pais,
pois em suas obrigações não se qualquer pressuposto de mandamento impositivo
em relação a si mesmo: “realizar-se na vida tamm significa compartilhar alegrias,
constituir família, doar-se aos filhos, vencer o desafio de saber educá-los, sustentá-
los, fazê-los felizes”.
217
A realização dos pais geralmente es condicionada à
felicidade dos filhos. Sua dedicação não é concebida como uma renúncia de si
próprio, mas como instrumento integral de auto-realizão, como uma necessidade de
ser útil, de amar e ser amado.
b) O trabalho
O trabalho é um dos aspectos que interferem diretamente no ambiente
familiar, muitas vezes obstaculizando uma verdadeira relação entre os sujeitos. Na era
213
Ibid., p. 142.
214
Ibid., p. 144.
215
Citam-se os seguidos casos de abandono de crianças recém-nascidas, bem como flagrantes de
vioncia e outros fatos que causam repugnância e revolta pública.
216
Ibid., p. 146.
217
Ibidem.
84
pós-moralista, constata-se que o trabalhador antes disciplinado se tornou um homem
flexível e o trabalho não é mais um dever, e sim uma necessidade em vista da
realização pessoal. A “liturgia da produtividade” foi celebrada com grande pompa por
todos os regimes, liberais ou totalitários, valorizando o trabalho bem feito, o esforço,
o dever de ser útil à sociedade, ao mesmo tempo em que se via a preguiça ou o ócio
como uma fonte de perigo, um “delito social”.
218
Mas essa concepção do trabalho,
própria do século XIX, foi superada.
219
Em consonância com os valores
individualistas e consumistas, ocorreram grandes mudanças no mundo do trabalho e o
trabalhador, antes peça de engrenagem, assumiu espaço maior. Depauperou-se, assim,
a ideologia moralista do trabalho.
“Cada vez menos a idéia de trabalho vem conjugada com a de um dever
individual e coletivo; já não se fazem as grandes exortações sobre a obrigação de
trabalhar. Não se exaltam mais as virtudes da paciência e perseverança, quase
não mais se ensina a coragem do dia-a-dia nem o imperativo moral de ser útil à
coletividade ou a obrigação social de realizar sua ‘microscópica parcela de um
trabalho conjunto, por menor que seja o resultado alcançado. O advento da
sociedade de consumo de massa e suas normas relativas à felicidade
individualista tiveram nisso um papel fundamental”.
220
Em oposição à valorização do trabalho, propagou-se intensamente a busca
pelo bem-estar, pelo lazer, pelo tempo livre. As aspirações coletivas se deslocaram, e
a posse de bens materiais, o gozo das férias, a redução do tempo de serviço,
substituíram o ideal da vocação social do trabalho. O trabalho é importante na medida
em que garante as condições para uma realização pessoal, fora dele, claro. É o
trabalho que permite ao sujeito consumir. A antiga xima do século XIX “viver
para o trabalho” foi substituída por outra: “a vida começa depois do trabalho”.
221
O
final do expediente produz uma sensação de libertação e as férias são aguardadas
218
Ibid., p. 150.
219
Segundo Lipovetsky, naquele século, burgueses puritanos e espíritos laicos, socialistas e liberais
comungaram dos mesmos ideais do trabalho, declamaram todos o mesmo refrão em honra do deus
Progresso, filho primogênito do trabalho”, nas palavras de Paul Lafargue. Os puritanos protestantes
tinham o serviço profissional em conta de um dever indicado por Deus ao homem, uma atividade em
honra da glória de Deus, o meio mais adequado para se ter certeza de receber a graça divina. As
diversas correntes republicanas glorificaram o trabalho, expressão cotidiana da solidariedade de cada
um em relação aos demais, imprescindível para a consecução do progresso indefinido da humanidade.
Ibid., p. 149.
220
Ibid., p.151.
221
Ibid., p.152.
85
ansiosamente. No entanto, como não pra fugir do trabalho, busca-se dinamizá-lo,
para que o seja tão penoso. Atentas às aspirações e motivações individuais, as
empresas estimulam a autonomia individual e a participação tornando o sujeito
gerenciador de seu próprio trabalho.
“Na esteira da procura social do tempo fora-do-trabalho, difundiram-se os
conceitos de horários flexíveis, ambientação e individualização do tempo de
trabalho, trabalho de meio período, jornada contínua, legitimidade crescente dos
feriados prolongados. Outras tantas disposições culturais e organizativas
exprimem, em sua essência mais profunda, não precisamente a abolição do
conceito de dignidade do trabalho, mas o desaparecimento do catecismo laboral,
trazendo a correlata consagração dos direitos subjetivos a uma vida mais simples,
mais voltada para a satisfação das pprias aspirações e do tempo livre de cada
um”.
222
No auge dos valores individualistas, as empresas sabem que não podem
descuidar da satisfação do funcionário. Essa passagem do trabalhador-objeto ao
assalariado-sujeito de direitos requer políticas concretas de negociação e
transparência, de divisão do poder e redistribuição dos lucros, de formação do pessoal
e de gestão interativa das condões de trabalho.
223
Mesmo diluídas as grandes
exortações ao trabalho, não significa que este perde seu valor. Seu valor, no entanto,
está submetido à realização pessoal. Reflexo disso é a busca desenfreada pelo
trabalho, não como cumprimento de uma obrigação moral abstrata, mas no desejo
pessoal de obter êxito.
“No re-investimento contemporâneo no mundo do trabalho, é sempre a busca da
realizão pessoal que está em jogo. A dinâmica da auto-absorção individualista,
portanto, não está em involução, mas passou da esfera privada para a esfera
profissional. Ao menos parcialmente, a era individualista s-moralista se revela
auto-organizadora. O ego aparece em primeiro lugar, porém as aspirações de
autonomia e de afirmação pessoal m conjugadas para legitimar novamente a
atividade do trabalho”.
224
A preocupação do homem com o trabalho na verdade é uma preocupação
consigo mesmo, com a busca de reconhecimento, de promoção, de uma carreira que
lhe garanta um futuro brilhante. Mais direitos subjetivos, menos deveres: os efeitos da
222
Ibid., p. 152.
223
Ibid., p.155.
224
Ibid., p.161.
86
cultura neo-individualista vão sendo decisivamente integrados à esfera profissional.
225
As promessas de lucro fácil, bem como outras sedutoras alternativas vão revelando
uma realidade preocupante, e o individualismo pós-moralista pode assumir duas
facetas.
“Enquanto uma tendência encaminha o indivíduo para a atividade profissional,
outra que o distancia disso. Enquanto uma serve de motivação para fazê-lo
trabalhar, a outra o redime de compromissos. Se uma dignifica o valor do
trabalho, a outra exalta os lucros fáceis; quando uma conduz à reafirmação dos
valores éticos, a outra leva à transgressão dessas mesmas normas (corrupção,
transações ilícitas, delitos, fraudes, etc)”.
226
Desligados dos valores e princípios éticos, o trabalho pode se tornar um
meio prostituído. Atitudes egoístas e irresponsáveis podem suscitar relações injustas e
opressoras. Urge então a necessidade de se fortalecer a responsabilidade humana
diante de suas ações.
c) Outros aspectos
Nas sociedades s-moralistas também surge uma nova relação entre
sujeito e Estado. Os indivíduos demonstram pouca consideração pela coisa pública,
não se cultiva o amor às leis, e a nação não é mais vista como um ideal superior, que
exigia sacrifício e doação por parte dos cidadãos. Segundo Lipovetsky, hoje estamos
livres de qualquer “imposto de sangue”.
“As o período heróico da nação, sobrevêm sua fase eleitoreira e indolor.
Assim, ao invés de cruzadas que exortam ao sacrifício, o que vemos é um
nacionalismo pós-moralista, caricatura de uma ordem moral isenta de obrigações
a cumprir ou de ambição histórica definida. (...) não se ensinam lições sobre os
sagrados deveres para com a pátria; o que se deseja é um engajamento
individualista e responsável para com a comunidade”.
227
O dever de consagrar-se a finalidades superiores perdeu a credibilidade,
enquanto ganha espaço o dever para com o indivíduo. Na mesma lógica se consagra a
preponderância dos direitos individuais sobre as obrigações coletivas. Depauperou-se
a moral republicana e somente a moral inter-individual tem foros de credibilidade
225
Ibid., p.167.
226
Ibid., p.168.
227
Ibid., p.179.
87
social.
228
Apesar disso, Lipovetsky não defende a hipótese de que a democracia esteja
desgastada.
“Se, de um lado, é verdade que, em razão dos novos hábitos s-moralistas, a
democracia vem sofrendo desestabilizões de toda espécie, de outro lado, deve-
se ter presente que nosso sistema de vida democrático, em seus fundamentos
essenciais, nunca obteve um reconhecimento o generalizado como entre nossos
contemporâneos, mais precisamente quanto à unanimidade consensual em torno
da valorizão do princípio do pluralismo democrático”.
229
Mesmo que o relacionamento entre o indivíduo e o poder público seja frio
e distante, não se cogita um poder fora dos moldes democráticos. As eleições, por
exemplo, quase não são fatores de mobilização social. Apesar disso, segundo
Lipovetsky, há um crescimento daquilo que os juristas denominam “autoridades
administrativas autônomas”.
230
A exigência de transparência social, a preocupação
com a legalidade, com os direitos, o fatores que crescem e confirmam a sociedade
democrática. Se antes o dever era o ponto central da existência, agora temos o
“cidadão jurista”.
231
A exigência de moralização do povo foi substituída pela
exigência de moralização do poder público.
Também na questão religiosa é flagrante a incidência da lógica
individualista. Visto que as sociedades pós-moralistas resistem a toda imposição que
não leve em conta a subjetividade pessoal, crescem as seitas religiosas voltadas
estritamente para a satisfação pessoal, fortemente marcadas pela dimensão emotiva.
As orientações religiosas tradicionais enfraquecem quando não remodeladas de
acordo com os anseios de seu tempo. A rejeição de certos princípios e valores
tradicionalmente apregoados pela religião, de certa forma deixa o sujeito humano sem
direção, completamente perdido.
Em seu relacionamento com a natureza, o indivíduo pós-moderno passa a
vê-la não mais simplesmente como uma força a ser explorada, mas como um
interlocutor a ser ouvido e respeitado. Toda renovação ética tem uma preocupação
com o meio ambiente e o futuro humano. O interesse ecológico trabalha no sentido de
228
Ibid., p.181.
229
Ibid., p.182.
230
Ibid., p.183.
231
Ibid., p.184.
88
responsabilizar o homem, ampliando o campo dos deveres, e recusando o modelo
“produtivista”, com o emprego de técnicas suaves, não-poluentes.
232
No mesmo
espírito ecológico há uma mutação no relacionamento do homem com os animais.
Desde a caça predatória, às experiências científicas, os protestos são freqüentes. É
uma característica marcante do narcisismo essa receptividade do indivíduo em
relação ao que lhe é exterior. Nesse sentido, até mesmo a dor sofrida por um animal
torna-se insuportável para ele.
1.4- Conclusão
Neste capítulo, que ora concluímos, procuramos desenvolver nosso
trabalho seguindo a dinâmica de Gilles Lipovetsky, que evita uma crítica pessimista
em relação à sociedade pós-moderna na qual estamos inseridos. Seu estudo reflete
uma tentativa de compreender o dinamismo próprio destes tempos que ele denomina
de “hipermodernos”, caracterizados pela derrocada da moral rigorista e pelo
surgimento de uma ética a la carte, marcada pela ausência de sacrifícios e pelo
excesso de autonomia. Assim, as instituições antes “sagradas” perdem sua
credibilidade e assumem um caráter mais subjetivista. Sem as tradicionais referências
e os princípios norteadores, inspiradores, reguladores do agir humano, dá-se uma
crise de referências, um vazio existencial. A “realização plena”, prometida pelas
inovações da modernidade, não se realizou e o doce progresso azedou. Dominada
cada vez mais por princípios estranhos à religião, a sociedade é secularizada e a razão
instrumental é a regra de vida.
Se na modernidade a felicidade pessoal estava condicionada a fazer bem
aquilo que estava estabelecido, na pós-modernidade a força da sedução, fortemente
personalista, guia o sujeito em suas opções e escolhas. Movido por transformações
vertiginosas e tecnologias da última hora, o eficaz e sedutor processo de
personalização suscita uma revolução permanente na sociedade humana, levando ao
ponto culminante o reinado do indivíduo. Como característica fundamental deste
tempo, o narcisismo representa o desprendimento do domínio do Outro e a ruptura
232
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 11.
89
com a padronização de massa. O Eu torna-se o centro das preocupões e ganha vigor
o espírito da “eterna juventude”, onde o corpo é promovido a um verdadeiro objeto de
culto, rodeado de cuidados e investimentos constantes. A complexidade desse tempo
se revela na flagrante indiferença por um lado, e da marcante sensibilidade por outro.
Com a morte das ideologias, como vimos, visualiza-se um desencanto generalizado
no campo político.
A moral de “configuração sagrada” sofreu uma considerável mudança,
assumindo um caráter mais voltado para o indivíduo humano, com a libertação do
preceito do dever. O crepúsculo do dever, como vimos, representa a rejeição de toda
normatização imposta de fora, e a liberdade de escolha representa a autonomia
humana e a busca daquilo que satisfaz seus anseios. No entanto, a sociedade do pós-
dever não significa necessariamente ausência de deveres, mas rejeição de tudo aquilo
que se opõe à liberdade humana ou que não considera os direitos subjetivos. A pós-
moralidade não é sinônimo de imoralidade, e o relativismo de valores não contribuiu
para o niilismo moral. A partir de um referencial humano, novos valores e critérios
éticos são dinamizados socialmente, fundados no individualismo e na moral
subjetiva. Dessa forma, uma atitude individualista dificilmente causa espanto.
Tudo isso representa, para Lipovetsky, uma renovação ética. Não um
retorno à religião tradicional do dever, mas a instauração de uma ética indolor, que
rejeita toda lógica do dever, do imperativo categórico, do cerceamento da liberdade
individual. No mundo dos negócios esse despertar do interesse ético evidencia sua
dimensão utilitarista. A própria “ética do meio ambiente”, que propaga a idéia de
obrigação moral em relação ao futuro do planeta, para a maioria das pessoas não
implica sacrifícios e nem um verdadeiro compromisso. No embalo das profundas
transformações que envolvem nossa sociedade atual, configuram-se novas relações
que, muitas vezes, representam uma ameaça à sobrevivência humana e refletem uma
carência ética preocupante.
90
2
Uma ética de sobrevivência
Introdução
As nossa exposição sobre as características da sociedade pós-moderna,
acreditamos ser necessário apresentar alguma proposta ética capaz de oferecer
esperança ao homem hodierno. Nossa preocupação com a problemática ética encontra
uma importante contribuição na proposta ética de Hans Küng. Suas reflexões partem
dessa realidade social e buscam apontar caminhos possíveis diante da preocupante
situação em que se encontra o indivíduo pós-moderno.
Em uma sociedade marcantemente pluralista envolta em paradoxos e
incertezas, revela-se de grande urgência uma nova orientação ética, logicamente
desvencilhada das rígidas tradições morais e ao mesmo tempo fundamentada no
princípio incondicional da vida, em todas as suas manifestações. Para que isso seja
possível, é de suma importância que a sociedade ouvidos ao que dizem seus
especialistas e a direção para onde apontam suas pesquisas. E nesse sentido, Hans
Küng destaca-se como um dos grandes expoentes de nosso tempo, capaz de refletir e
orientar responsavelmente aos homens e mulheres contemporâneos. Sem postar-se
como profeta da desesperança, ele é capaz de estender seu olhar crítico sobre a
sociedade humana, e apontar caminhos que, segundo ele, precisam ser assumidos. Do
seio de nossas sociedades contemporâneas brota um grito pela sobrevivência.
O ser humano, como protagonista principal das grandes transformações
dos últimos tempos, se depara com um urgente desafio: assumir sua responsabilidade
diante do mundo que o cerca, cultivando novos comportamentos e trilhando novos
caminhos. Urge pautar o agir humano com uma nova ética, uma ética para a
sobrevivência humana e o futuro do planeta. Ela se torna mais urgente quando se
comprova que os irresponsáveis avanços cnico-científicos caracterizam-se como
desenvolvimentos catastróficos e ameaças constantes à vida. Um novo caminho
precisa ser assumido por toda humanidade, um caminho que conduz ao horizonte da
91
paz mundial. Para assumir uma mesma direção, a humanidade precisa de um
consenso mínimo de valores, normas e comportamentos. Quer dizer, o sonho da paz
mundial passa, necessariamente, pelo projeto de uma ética mundial. E essa é a
proposta de Hans Küng.
No entanto, para a humanidade trilhar novos caminhos, é necessário quem
os indique. E aí entra o papel imprescindível das religiões, como fomentadoras de um
novo agir, comprometido com a vida. Uma vez que as grandes forças sociais, de forte
influência no passado, deixaram de representar uma esperança à humanidade,
suscitando cada vez mais desconfiança, as religiões reaparecem como esperança e,
com sua força e seu caráter metafísico, podem fundamentar incondicionalmente
princípios e valores éticos orientadores para o homem pós-moderno. Aparece como
desafio para as religiões, e critério fundamental de sua missão, o compromisso de
assumir a humanização do ser humano e promover seu desenvolvimento integral.
Uma amadurecida experiência de Deus dará preciosa contribuição ao processo de
humanização. Nesse sentido um longo caminho a ser trilhado pelas religiões,
superando de vez todo e qualquer resquício de desumanidade e assumindo sua
insubstituível responsabilidade diante do humano.
Na conceão de Hans Küng, esse caminho ético deve ser um caminho
ecumênico
233
marcado pelo diálogo e respeito mútuo entre as diferentes
manifestações religiosas. Partindo do princípio de que o haverá paz no mundo sem
paz entre as religiões, o autor reconhece a necessidade de as religiões viverem um
autêntico ecumenismo, sustentado por um consenso mínimo de valores e princípios
humanizantes. Fomentado pelas religiões, esse espírito de abertura e diálogo deve
estender-se também aos não-crentes e a todas as organizões sociais e políticas. Em
sintonia com as configurações pprias destes tempos hipermodernos e suas
complexidades, como vimos no primeiro capítulo, as religiões podem ser
protagonistas de um projeto ético capaz de manter viva a esperança e garantir o
cuidado pela vida. Essa preocupação ético-religiosa, proposta por Hans Küng, é o
caminho por onde haveremos de trilhar, em vista da sobrevivência humana.
233
Hans Küng utiliza o termo “ecumênico” em sentido abrangente, inter-religioso.
92
2.1. Interpelações de uma nova ética
2.1.1. Os desenvolvimentos catastróficos e a ameaça à sobrevivência
humana
As profundas e constantes transformações sociais dos últimos tempos
evidenciaram um risco à sobrevivência humana e ao futuro do planeta. Essa é a
constatação de Hans Küng
234
, que sugere uma nova ética para a humanidade. Com
grande esclarecimento crítico, o autor observa diversos aspectos sociais que revelam
uma situação preocupante, diante da qual é urgente uma mudança radical de
posicionamento por parte do sujeito humano. Evitando um pessimismo estéril, Küng
direciona suas reflexões em vista de um projeto de ética mundial, no sentido de
garantir a sobrevivência humana das próximas gerações.
A partir de dados concretos, fruto de suas constantes viagens e estudos, o
autor inicia sua reflexão revelando o preocupante drama das injustiças e sofrimentos
que assolam grande parte da humanidade, principalmente as regiões e nações menos
desenvolvidas. Embora as mutações humano-sociais mudem constantemente, a
análise de Hans Küng é plenamente válida em nossos dias, visto que os dados por ele
apresentados têm se alterado muito pouco.
* A cada minuto, os países do mundo gastam 1,8 milhão de lares com
armamento militar.
* A cada hora morrem 1.500 crianças por causa da fome ou por causa de doenças
provocadas pela fome.
* A cada dia deixa de existir uma espécie de animal ou vegetal.
* Com exceção do tempo da Segunda Guerra Mundial, na década de 1980, a cada
semana foram presas, torturadas e assassinadas ou tiveram de fugir ou foram
oprimidas de alguma outra maneira por governos repressivos mais pessoas do
que em qualquer outra época da hisria.
234
Hans Küng nasceu na Suíça em 19 de março de 1928. Estudou Filosofia e Teologia na Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma e foi ordenado sacerdote em 1954. Doutorou-se em Teologia em
1957 e, em 1962 o papa João XXIII nomeou-o perito oficial do Concílio Vaticano II. Como um dos
mais importantes teólogos dos últimos tempos, é autor de inúmeras publicações de grande relevância
para a Teologia. Dentre elas, a polêmica “Infallible? An Inquiry(Infalibilidade? Um inquérito”), de
1970, que lhe rendeu, em 1979, a proibição de ensinar Teologia em nome da Igreja Católica.
Atualmente aposentado, é professor emérito de Teologia Ecumênica e presidente da Fundação Ethos
Mundial em Tübingen, na Alemanha.
93
* A cada mês são acrescentados pelo sistema econômico mundial mais 7,5
biles de lares de dívida ao 1,5 trilhão de lares de dívidas existentes,
uma carga insuportável para o Terceiro Mundo.
* A cada ano é devastada para sempre uma parte da floresta tropical
correspondente a 3 ou 4 vezes a área territorial da Coréia.
235
Os dados apresentados pelo autor são retirados do documento preparario
para a reunião mundial das Igrejas cristãs em Seul, em 1990.
236
Tentaremos, na
medida do possível, fazer uma abordagem mais atualizada, o que nos permitirá
compreender melhor a preocupação do autor, que hoje certamente não deixou de
existir. Em muitos dos aspectos a realidade não tem mudado significativamente.
Aliás, tem se tornado mais crítica. Se, por um lado, morrem menos pessoas vítimas da
fome no mundo, por outro lado aumentam as espécies animais e vegetais em
extinção, aumentam os gastos com armamentos militares, aumenta a destruição de
florestas, aumentam as dívidas das nações pobres.
Segundo as fontes do autor, os gastos com armamento militar, que em
1990 alcançavam 1,8 milhões de dólares por minuto, em 2006 ultrapassam 2,2
milhões por minuto, totalizando 1,2 trilhão ao ano.
237
Observação à parte, metade
desse valor corresponde aos gastos de uma nação apenas, os Estados Unidos da
América, onde a média de “investimento” militar per capita é dez vezes maior que a
média mundial.
238
A mortalidade infantil como conseqüência da fome, por sua vez, tem
diminuído. Segundo os dados do autor, no início da cada de 90 o número de
crianças mortas pela fome era de 1.500 por hora, totalizando 36 mil por dia. Em 2002,
a Cúpula Mundial da Alimentação que se reunia em Roma, lembrava a todos que o
mundo tinha 800 milhões de famintos, e que, a cada dia morriam de fome 24 mil
pessoas, totalizando mais de 8,5 miles por ano, em sua maioria crianças.
239
Em
235
KÜNG, H., Projeto de Ética Mundial, p. 16.
236
Fonte usada pelo autor: Gerechtigkeit, Frieden und Bewahrung der Schöpfung. Erster Entwurf für
ein Dokument der JPIC-Weltversammlung in Seoul 1990, editado por Evangelischen Pressedienst,
Frankfurt, 1989.
237
Folha Online. Acesso: 29/09/2008. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u303492.shtml
238
Jornal Brasil de Fato. Acesso: 20/09/2008. Disponível em:
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/internacional/news_item.2006-06-14.2086958440
239
Correio Brasiliense Online. Acesso: 29/09/2008. Disponível em:
http://www2.correioweb.com.br/cw/EDICAO_20020613/vid_mat_130602_17.htm
94
2004, segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e
Alimentação (FAO), morriam 12 crianças por minuto, totalizando pouco mais de 17
mil por dia. Uma queda aproximada de 50% em 15 anos.
240
Em 2005, morriam de
fome em torno de seis milhões de crianças, dentre os mais de 850 milhões de
famintos no mundo.
241
Embora sofram uma pequena queda, esses números não
mudam muito em 2006, quando morrem 16 mil crianças por dia.
242
Diferentemente dos índices de mortalidade causada pela fome, o número
de espécies animais e vegetais em extinção têm aumentado consideravelmente. Em
relatório de 2007, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN)
revelou que o extintas, por dia, de 1 a 2 espécies vegetais e de 2 a 3 espécies
animais, principalmente por causa da atividade humana.
243
Enquanto no passado todo
tipo de extinção era fruto de processos naturais, nos últimos séculos o ser humano
passou a ser o fator fundamental da extinção de milhares de espécies em todo o
mundo.
A destruição de florestas, também abordada pelo autor, é um fator cada
vez mais preocupante, como revelam vários outros estudos. No Brasil, a mata
atlântica foi, de acordo com todas as evidências científicas disponíveis, a maior
floresta tropical destruida pela atividade humana nos tempos históricos e talvez pré-
históricos.
244
O historiador norte-americano Warren Dean
245
na destruição de
florestas tropicais uma realidade irreversível dentro de qualquer escala de tempo
humano. Segundo ele, a impossibilidade de se recuperar os males oriundos do
desmatamento irrefreado em prazos culturalmente viáveis provoca uma “angústia
240
Revista “Mundo e Miso”. Acesso: 20/09/2008. Disponível em:
http://www.pime.org.br/mundoemissao/fomecriancas.htm
241
U2Only LIFE. Disponível em: http://u2onlylife.blogs.sapo.pt/arquivo/857961.html; e UOL
Notícias. Disp. em: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2005/11/22/ult1766u13332.jhtm. Acessos:
29/09/2008.
242
Canção Nova Notícias. Acesso: 29/09/2008. Disponível em:
http://www.cancaonovanews.com/noticia.php?id=242941
243
Morganasonzzone. Acesso: 29/09/2008. Disponível em:
http://morganasonzzone.wordpress.com/category/extincao-de-animais-e-vegetais; Dados: setembro de
2007; UOL Notícias. Acesso: 29/09/2008. Em: http://ciencia.hsw.uol.com.br/extincao-animais.htm
244
DRUMMOND, José Augusto. Mata Atlântica: a história de uma destruição. In: Revista Estudos
Históricos – Rio de Janeiro, n. 17, 1996. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/193.pdf -
Acesso: 30/09/2008.
245
DEAN, W., A Ferro e Fogo: a Hisria e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. o Paulo,
Companhia das Letras, 1994.
95
ambientalista”. Dentre as principais conseqüências e prejuízos ambientais destacam-
se a perda da biodiversidade, a degradação dos mananciais, o aterramento de rios e
lagos, a redução do regime de chuvas, a redução da umidade relativa do ar, o aumento
do efeito-estufa, o comprometimento da qualidade da água e a desertificação.
246
Embora os apelos à preservação sejam constantes, nada detém a voraz destruição da
natureza por parte de setores empresariais preocupados unicamente com seus lucros.
É evidente também a fragilidade do setor público em fiscalizar e coibir atividades
extrativistas irresponsáveis. Em nosso contexto, são freqüentes os casos que revelam
a desoladora realidade, fruto do acelerado ritmo de desmatamento.
247
Outro fator apontado pelo autor, a dívida dos pses de Terceiro Mundo
também aumentou significativamente. Segundo o economista e cientista político Eric
Toussaint,
248
em 2004 os países pobres transferiram US$ 300 bilhões para o mundo
desenvolvido apenas no pagamento de juros e serviços, uma cifra de US$ 25 biles
ao mês, muito acima dos US$ 7,5 bilhões dos anos 90.
249
Essa configuração sócio-
econômica-política mundial denota uma flagrante injustiça entre as nações, bem
como uma preocupante irresponsabilidade com as próximas gerações, com o futuro
da humanidade. O ser humano não realiza, assim, a sublime vocação de administrar
responsavelmente os bens naturais e de relacionar-se fraternalmente com os
demais.
250
Seu agir opressor, injusto, maldoso, irresponsável, desumano, revela que
está descuidando de sua casa, seu habitat. Nos perguntamos, estupefatos diante da
realidade que nos impressiona: “O que está acontecendo com o ser humano?”, “Para
246
Cf. http://www.cultivando.com.br/saude_meio_ambiente_desmatamento_impactos.html Acesso:
30/09/2008.
247
Diário do Pará: “Ritmo de desmatamento da Amazônia dobra em agosto - Dados divulgados pelo
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) nesta segunda-feira (29) revelam que o ritmo de
desmatamento da Amazônia subiu 133% em agosto. O cálculo, feito por meio de imagens de satélites,
indica que nesse mês foram destruídos 756,7 km² de floresta, área equivalente à metade do município
de São Paulo. Em julho, o instituto registrou 323,9 k de florestas derrubadas. A medição foi
realizada pelo sistema Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), que identifica apenas as
áreas desmatadas ou degradadas que tenham área maior que 2.500 m². Devido à cobertura de nuvens,
nem todos os desmatamentos são detectados.” Acesso: 30/09/2008. Disponível em:
http://www.diariodopara.com.br/noticiafull.php?idnot=4660 e O Globo. Acesso em: 30/09/2008.
Disponível em: http://oglobo.globo.com.
248
Presidente do Comi pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), com sede em
Bruxelas, na Bélgica; membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial 2005; autor da
obra “A bolsa ou a vida”, Editora Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 2002.
249
Agência Ibase. Disponível em: http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=520.
Acesso: 30/09/2008.
250
BOFF, L., O Destino do Homem e do Mundo, p. 42 et. seq.
96
onde vamos?. Tais questionamentos são ponto de partida para a proposta ética de
Hans Küng. É urgente a necessidade de repensar nosso modo de “cuidar” do mundo
onde vivemos, fomentando novas relações e comportamentos entre os povos e
nações, em vista da sobrevivência humana. Diante dos meros, não precisamos de
mais justificativas para entender que um projeto de ética seja hoje mais do que
urgente.
Essa situação de crise não se configurou repentinamente, mas é fruto de
grandes transformações nos mais diversos aspectos humano-sociais, que vêem
ocorrendo desde o início do século XX.
“A crise mundial atual não é o resultado de um desenvolvimento recente, mas
está relacionada com as crises de desenvolvimento que vêm de longo tempo.
Quem hoje levanta a bandeira de uma ética global deve estar consciente de que a
situação atual é expressão da irrupção de uma nova época, que teve icio com a
Primeira Guerra Mundial”.
251
As constantes e aceleradas transformações e evoluções de hoje são
conseqüência de transformações anteriores, mais lentas, no entanto não menos
acentuadas. Não cabe simplesmente culpar o homem s-moderno pelas ações
irresponsáveis e desumanas do homem moderno. A culpa pode ser de outros, mas a
responsabilidade é nossa. Cabe-nos, então, fazer o melhor possível com aquilo que
temos em mãos.
2.1.2. As irrupções inovadoras e a pós-modernidade
Uma nova ordem mundial passa a surgir após a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918). É a passagem da modernidade para a pós-modernidade que, segundo
Hans Küng, não inicia somente em 1970 e 1980, como alguns afirmam. Ela já está
em cena com o desmoronamento da sociedade burguesa e do mundo eurocentrista no
início do século 20.
252
O termo “pós-modernidadefoi usado a partir de diferentes
251
KÜNG, p. 17.
252
Segundo o autor, a Primeira Guerra Mundial provocou na Europa Central e no Leste Europeu o
desmantelamento do milenar império alemão, do reino dos czares, bem como o fim dos 400 anos de
cristandade protestante e da moderna teologia liberal. Trouxe, também, a ruína do reino turco e do
império chinês. KÜNG, H., op. cit. p. 18.
97
aspectos. No entanto, não é a palavra que é decisiva, mas o que ela significa. E isso,
para Küng, está claro: a pós-modernidade representa uma virada de época global,
cujas implicações ainda suscitam análises e estudos. Por isso ele emprega o termo
“pós-modernidade” no sentido da história mundial, reconhecendo na Primeira Guerra
Mundial um divisor de águas na história humana.
253
É o momento de recomeçar o
mundo desmoronado da modernidade.
O mundo da modernidade, que havia iniciado em meados do século 17,
com uma filosofia (Descartes), uma ciência (Galileu) e uma compreensão secular do
direito, do Estado e da política moderna,
254
tinha a chance de recomeçar. Surgiam as
evidências de uma nova ordem mundial pós-moderna.
“O domínio mundial das potências européias estava profundamente abalado, e o
eurocentrismo seria substituído por um policentrismo; muitos tinham claro que a
ciência e a técnica modernas poderiam proporcionar às guerras uma qualidade de
destruição basicamente diferente, o que poderia arruinar a Europa; havia um
movimento pacifista que defendia o desarmamento total e até o pacifismo;
havia uma massiva crítica à civilização, e uma percepção de que a
industrialização não somente traria o progresso técnico, mas, com o tempo, viria
a destruir também o meio ambiente; o movimento feminista irrompia de forma
definitiva em muitos países, impondo a igualdade de direitos; começava,
também, o movimento ecumênico que desembocaria na criação do Conselho
Mundial de Igrejas”.
255
Esses e outros movimentos não eram simplesmente “anti-modernistas”,
mas sinais de mudança, de novos caminhos, que assumiam o controle da história e
apontavam para a sociedade s-moderna. O desenvolvimento traria irruões
inovadoras, mas as décadas de 20 e 30 foram marcadas por desenvolvimentos
catastróficos, que culminariam em uma nova guerra. Hans Küng faz coro a outros
críticos que vêem em três aspectos as principais razões do não surgimento de uma
nova ordem mundial pacífica: o fascismo na Ilia, na Espanha e em Portugal e o
nacional-socialismo na Alemanha; o militarismo do Japão, que surgiu na mesma
época; e o comunismo revolucionário que em parte conseguiu entender Karl Marx
e seu programa.
256
253
Ibid., p. 19.
254
Ibid., p. 20.
255
Ibid.
256
KÜNG, H., op. cit. p. 21 et. seq.
98
“Em verdade, todos esses movimentos, que a seu modo procuraram superar a
crise global após a Primeira Guerra Mundial, mostraram-se como tendo pouco
futuro. Eles frearam o desenvolvimento para um mundo relativamente melhor.
Após a Segunda Guerra Mundial levaram a um antagonismo político, econômico
e militar de duas superpotências (Estados Unidos e União Soviética). Esse
antagonismo bipolar perdurou por meio culo e hoje perdeu seus tons fortes.
Seus discursos não eram apropriados para dar ao mundo padrões éticos para
vencer as tarefas do futuro”.
257
O ideal de um mundo mais pacífico ruiu com o fortalecimento de
diferentes potências que buscaram impor um modo próprio de poder, nem um pouco
pacífico. Tanto o socialismo estatal quanto o neocapitalismo revelaram-se como
discursos sem futuro, desastrosos. Os altos ideais de justiça social, solidariedade,
liberdade, defendidos por Marx e próprios do socialismo, esvaíram-se nos regimes
marxistas que se revelaram incompetentes e corruptos. Ainda hoje, em regimes
socialistas, há que se levantar urgentemente a pergunta pelos direitos humanos e pela
ética, pela liberdade intelectual e pelo pluralismo político.
258
Por sua vez, o espírito
da democracia e os ideais da liberdade e da tolerância mostraram-se mais fortes do
que todas as ditaduras marrons, vermelhas ou pretas, o que fez dos Estados Unidos a
potência econômico-político-militar hegemônica no mundo ocidental.
259
Mas nem por
isso pode-se dizer que os discursos neocapitalistas foram capazes de apontar
caminhos promissores. Após um crescimento desenfreado, acompanhado de um
armamento excessivo, os discursos da superpotência americana também se
evidenciaram nefastos.
260
As experiências Americana e Soviética seguem a mesma gica de tantas
outras experiências: após a ascensão e o apogeu seguem-se distensão, esgotamento e
declínio. Mesmo o Japão, que após terrível derrota na guerra, conseguiu se recompor,
mostrando ao mundo sua eficiência econômica e tornando-se a terceira potência
mundial, revela aspectos problemáticos. Segundo Küng, certos postulados
fundamentais dessa eficiência deveriam ser revisados, tais como: eficiência sem
consideração, flexibilidade sem valores fundamentais, liderança autoritária sem
257
Ibid., p. 23.
258
Ibid., p. 24 et. seq.
259
Ibid., p. 25.
260
Ibid., p. 27.
99
responsabilidade, política e economia sem visão moral, comércio sem reciprocidade,
culpa de guerra sem consciência de culpa.
261
Com essas abordagens acerca das
principais potências mundiais e seus desenvolvimentos catastróficos, o autor levanta
um questionamento acerca do futuro da sociedade humana.
“A futura comunidade mundial será simplesmente uma comunidade de
interesses, somente um gigantesco mercado? E se que justamente o mercado
não carece do direito e da ética como complemento e corretivo? Será que no
Japão, assim como na Europa, não se refletirá criticamente sobre aquilo que o
progresso moderno trouxe e sobre aquilo que deixou de trazer?”.
262
A inquietação de Hans Küng reflete a necessidade latente de um
parâmetro ético para o agir humano. Essa necessidade precisa suscitar uma profunda
reflexão principalmente por parte das nações mais poderosas, que fomentaram as
grandes ideologias do século passado, das quais todos colhem os amargos frutos.
Segundo o autor, as conquistas do mundo Ocidental trouxeram ciência, mas o
sabedoria; tecnologia, mas não energia espiritual; indústria, mas nenhuma ecologia;
democracia, mas nenhuma moral.
263
Todo desenvolvimento sem limites provoca
“efeitos colaterais”.
“Na realidade, o progresso eterno e todo-poderoso, lido para tudo e todos, este
grande deus das modernas ideologias com seus rígidos mandamentos – ‘você tem
de ser sempre maior, sempre melhor, sempre mais rápidorevelou suas duas
caras fatais e a fé no progresso já perdeu a sua credibilidade. Entrementes,
tomou-se consciência de que o progresso econômico como objetivo em si mesmo
produziu em toda parte do mundo conseqüências desumanas. Estas
conseqüências, muitas vezes, o minimizadas por parte de cientistas que dizem
tratar-se de efeitos colaterais do progresso científico. Tamm economistas
dizem ser ‘efeitos extremos’ do crescimento ecomico.
264
As conseqüências do progresso desenfreado e irresponsável se manifestam
na destruição do meio ambiente natural das pessoas e também numa desestabilização
social em grande escala. Tornaram-se comuns certas ameaças: escassez de reservas
naturais, problemas de trânsito, poluição do meio ambiente, destruição das florestas
261
Ibid., p. 30.
262
Ibid., p. 32.
263
Ibid., p. 33.
264
Ibid., p. 33.
100
nativas, chuva ácida, efeito estufa, buraco na camada de ozônio, mudaas climáticas,
miséria no lixo, explosão demográfica, desemprego generalizado, dívida externa,
problemas do Terceiro Mundo, superarmamentismo, morte pela ciência atômica. o
precisa ser um melancólico profeta de catástrofes para constatar que a atual sociedade
do desenvolvimento está ameaçada por uma autodestruição.
265
Caminham lado a lado
os maiores triunfos e as maiores catástrofes da técnica, e a razão, deusa da
modernidade e do progresso, agora sofre profundos questionamentos.
“A razão (ligada com a liberdade da subjetividade), que busca colocar-se como
algo absoluto, que a tudo legitima, que não se enquadra em nenhum cosmo e para
a qual nada é santo, decompõe-se a si mesma. Hoje a razão analítica é
questionada por um princípio integral e solicitada a legitimar-se a si própria. A
juíza suprema de ontem transformou-se na acusada de hoje”.
266
Apesar de tudo isso, ninguém pode ser seriamente contra o progresso. Mas
é questionável o fato de o progresso cnico-industrial se transformar em valor
absoluto, um ídolo que se cria incondicionalmente. Surgem questionamentos
profundos: é o homem que deve estar a serviço da ciência, ou vice-versa? A
tecnologia e a indústria serão ainda capazes de se adaptar ao ser humano, ou é ele que
terá que se adaptar a elas? Que sentido m nosso progresso, nossa ciência e nossa
tecnologia, nossa economia e nossa sociedade? Para que serve todo o progresso
tecnológico e científico, senão à realização humana?
267
Para Küng, comunismo e
capitalismo são sistemas já superados.
“Entre pessoas capazes de olhar em perspectiva, o termo ‘socialismo’ (ele
sempre carregou em si traços coletivos) muito foi substituído por ‘social-
democracia’ livre. O termo ‘capitalismo’ (desde o início orientado em sentido
individualista e explorador) foi substituído por ‘economia social de mercado’”.
268
Percebe-se, assim, como nenhum desses dois grandes sistemas sociais
antagônicos respondeu plenamente aos anseios do homem moderno. Naturalmente,
ambos apresentaram aspectos positivos, úteis à sociedade humana. Suas fragilidades e
erros, porém, revelaram a necessidade de superá-los. Uma economia capitalista de
265
Ibid., p. 34.
266
Ibid.
267
Ibid., p. 36.
268
Ibid.
101
mercado, onde os interesses do capital têm prioridade sobre as necessidades do
trabalho e da natureza, revela-se incapaz de germinar uma sociedade de justiça e paz.
Deve-se buscar uma economia de mercado regulada, social e ecológica, onde haja
constantemente a busca por equilíbrio entre os interesses do capital (eficiência e
lucro) e os interesses sociais e ecológicos, isto é, uma economia de mercado
ecossocial.
269
É tempo de avaliar os efeitos do desenfreado progresso técnico-
científico, e buscar um consenso em termos econômicos e sociais.
Küng entende que a social-democracia e uma economia social de mercado
não mais se excluem, mas integram-se mutuamente, apontando para uma constelão
pós-capitalista e pós-socialista, onde as antigas ideologias não oferecem receitas.
270
As irruões inovadoras e experiências limítrofes do homem pós-moderno também
trazem inconstâncias e ameaças cada vez menos previsíveis: a energia atômica que
pode provocar a autodestruição da humanidade; as tecnologias de comunicação que
saturam o indivíduo de informações a ponto de deixá-lo desorientado; o
desenvolvimento de um mercado mundial de ações, de um mercado financeiro
mundial e uma bolsa de valores global fora de controle; a ganância científica e o
desenvolvimento da genética manipuladora; a pauperização e endividamento dos
países pobres.
271
Tudo isso exige da ética uma atuação mais preventiva do que
curativa, buscando avaliar constantemente os efeitos ambíguos da pesquisa técnico-
científica.
Segundo Hans Küng, a revolução industrial do século 19 deu-se em duas
etapas: a primeira, que substituiu o trabalho dos músculos humanos por quinas e
mecanização; e a segunda (após a Segunda Guerra Mundial), que fortaleceu o
trabalho intelectual com o auxílio de máquinas. No lugar das economias agrárias
estáticas, surgiam modernas sociedades industriais.
272
A pós-modernidade anuncia
uma sociedade pós-industrial, com a mudança de toda a estrutura social. No entanto,
as expectativas de um tempo mais digno e humano novamente não se realizavam: “o
instinto assassino de agressão e de destruição permanece nas pessoas e ao
269
Ibid., p. 37.
270
Ibid.
271
KÜNG, H., op. cit. p. 39.
272
Ibid., p. 40.
102
desmoronamento de velhos antagonismos pode surgir o estabelecimento de novos”.
273
Não se pode ignorar, porém, que há irrupções inovadoras que podem facilitar a
sobrevivência da humanidade. Ciente das desastrosas conseqüências de um agir
irresponsável e descomprometido, a sociedade pós-moderna busca desenvolver
aspectos mais humanizantes, e muitas inovações assumem um caráter mais positivo.
A sociedade pós-industrial, com suas evoluções tecnológicas, suscitou
mudanças em toda estrutura social, fazendo surgir “uma nova orientação geral, um
novo macroparadigma, uma nova constelação geral pós-moderna”.
274
Alguns traços
são evidentes e próprios deste tempo chamado “pós-modernidade”.
“Geopoliticamente trata-se de uma constelação s-eurocentrista, agora
policentrista; em termos de política externa, podemos contar com uma sociedade
mundial pós-colonialista e pós-imperialista; em termos econômicos, desenvolve-
se uma economia pós-capitalista e pós-socialista, que podemos chamar de
economia ecossocial de mercado; em termos políticos e sociais, forma-se uma
sociedade s-industrial, de prestação de serviços e de comunicações; nas
relações sociais evidencia-se um sistema s-patriarcal e um relacionamento de
companheirismo entre homem e mulher; em termos de política cultural, estamos
indo em direção a uma cultura pós-ideológica, pluralista e integral; em termos de
política religiosa, apesar das grandes resistências, parece estar surgindo um
mundo pós-confessional e inter-religioso”.
275
Essa transformação sócio-estrutural é acompanhada por uma profunda
mudança de valores ético-morais. Como vimos no primeiro capítulo, com a
relativização das forças sociais, o indivíduo assume um lugar de maior importância.
Embora a s-modernidade propague certos valores desumanos, nela reflexos de
um horizonte humanista. A superação das diferentes ideologias não pode nos levar a
pretender uma ideologia unitária ou uma nova utopia social, mas um caminho que nos
tire das dificuldades da modernidade e nos leve para o futuro, isto é, um caminho pós-
moderno.
276
Hans Küng propõe, assim, a superação da modernidade e não uma
ultramodernidade ou uma contra-modernidade. Para isso, ele aborda a pós-
modernidade não como um pluralismo radical ou um relativismo, o que seria a
modernidade tardia desintegrada, mas num sentido positivo, integrador. Pós-
273
Ibid., p. 41.
274
Ibid., p. 44.
275
Ibid., p. 46.
276
Ibid., p. 48.
103
modernidade não vista como anarquia de linhas de pensamento, arbitrariedade ou
concepção moral de que “tudo é permitido”.
“Pós-modernidade o pode estar direcionada para uma interpretação uniforme
do mundo em que vivemos. Também dentro do novo paradigma haverá uma
multiplicidade e esbos heterogêneos da vida, dos modelos de comportamento,
dos jogos lingüísticos, das formas de vida, das concepções cienficas, dos
sistemas econômicos, dos modelos sociais e das comunidades de fé. s-
modernidade, no sentido aqui apresentado, não significa somente operações
cosméticas na arquitetura e na sociedade. Tamm não significa uma teoria única
da organização social, econômica, política, cultural e religiosa. Positivamente, a
pós-modernidade, no sentido aqui apresentado busca, em uma nova constelação
mundial, um novo consenso fundamental sobre as convicções humanas
integradoras. Se uma sociedade democrática e pluralista quiser sobreviver, ela
deverá estar baseada sobre este consenso fundamental”.
277
Segundo o autor, a pós-modernidade não haverá de superar o pluralismo,
mas deverá integrar a sociedade em vista de um consenso que lhe garanta a conviver
harmoniosamente. Nesse sentido, a pós-modernidade denota uma mudança de época,
e não uma potencialização ou continuação da modernidade, pois as deficiências
básicas da ciência e os grandes estragos da técnica não podem ser superados com
mais ciência e técnica”.
278
Hans Küng reconhece, no entanto, que a modernidade deve
ser afirmada na sua forma humana e negada em seus limites desumanos, buscando
uma nova síntese, diferenciada, pluralista e holística.
279
Esse discernimento, entre os
aspectos positivos e negativos da modernidade, se fundamentará em uma ética capaz
de orientar o homem pós-moderno a uma autêntica realização.
2.1.3. Um Caminho Novo e a Urgência ética
Mais do que uma crise econômica ou política, social ou religiosa, a crise
que assola o mundo pós-moderno, principalmente a cultura ocidental, é uma crise que
atinge diretamente a pessoa humana. Uma crise de valores, que reflete no
comportamento humano. Se, por um lado, o ser humano é vítima, por outro lado ele é
também responsável pelas desastrosas conseqüências de suas ações. o se pode
277
Ibid., p. 50.
278
Ibid., p. 52.
279
Ibid., p. 53.
104
culpar a cnica e a ciência, se essas são manipuladas pelo homem. Diante de uma
sociedade em crise, Hans Küng aponta para a urgência de se fomentar novos valores,
suscitando um comportamento humano mais responsável e mais ético. Segundo o
autor, as catastróficas evoluções econômicas, sociais, políticas e ecológicas do século
20 evidenciaram, por negação, a necessidade de uma ética mundial. Para ele, sem
uma fundamentação ética, os caminhos da humanidade apontam para o caos.
“Sem moral, sem normas éticas comumente aceitas, sem ‘padrões globais’, as
nações correm o perigo de, através do acúmulo de problemas durante decênios,
caminhar para uma crise que pode levar ao colapso nacional, isto é, à ruína
ecomica, à desmontagem social e à catástrofe política”.
280
Toda crise é oportunidade de crescimento. Quando a humanidade se
encontra em tempos difíceis, é momento de rever os fundamentos da caminhada,
buscando refletir sobre os princípios que iluminam seu caminho. Enquanto reflexão
sobre o comportamento humano, a ética se faz necessária, não como uma cnica
corretiva, mas como orientação propositiva que aponte para um novo jeito de
caminhar. Hans ng justifica a necessidade de uma ética orientadora e reguladora
do agir humano a partir de uma pergunta simples, mas difícil de responder: “por que a
pessoa humana não deve fazer o mal?” A mesma pergunta deve ser feita no sentido
positivo: “por que fazer o bem?” A resposta é um desafio a cada indivíduo humano
281
e também à coletividade, às nações e suas decisões.
“Por que a pessoa humana entendida como indivíduo, grupo, nação, religião
deve se comportar humanamente, de forma verdadeiramente humana? E por que
deve fazer isso incondicionalmente? E por que todas as pessoas devem fazer
isso? Por que uma camada, um grupo não pode ser uma exceção? Isso, pois, é a
pergunta básica em qualquer ética”.
282
280
Ibid., p. 54.
281
Para responder à pergunta Hans Küng apresenta vários questionamentos: Por que as pessoas não
devem ser ruins para as outras, enganá-las, roubá-las, matá-las se isto for de alguma vantagem e se, em
alguns casos, não se precisa temer ser descoberto ou sofrer algum castigo?”; por que o político deve
resistir à corrupção se ele pode estar certo de que os que querem suborná-lo jamais falarão sobre
isso?”; “por que um empresário deve limitar seus lucros se a ganância e o discurso do ‘enriquecei’ é
proferido publicamente sem quaisquer temores morais?”; por que, com base em determinação pré-
natal, não se pode eliminar os descendentes indesejados?KÜNG, H. op. cit. p. 55 et. seq.
282
Ibid. p. 57.
105
Para o autor, a viabilidade de uma ética mundial passa pelo critério
incondicional do agir humano. Parâmetros éticos devem ser assumidos por todos, sem
exceção. Uma ética vulnerável acaba por gerar também uma sociedade vulnerável. E,
naturalmente, no tempo atual é inviável também uma ética imposta, como obrigação
ou dever, como vimos no primeiro capítulo. O consenso básico, do qual fala Hans
Küng, há de fundamentar uma ética assim como fundamenta, ao menos teoricamente,
a democracia ocidental. No entanto, ele não acredita que o Estado democrático-liberal
terá condições de fundamentar uma ética global.
“De acordo com a sua constituição, o Estado democrático deve prover liberdade
de consciência e de religião. Também deve considerar a liberdade de imprensa e
de reunião e tudo o mais que faz parte dos direitos humanos modernos. E, mesmo
assim, esse Estado não pode estabelecer por decreto algum sentido ou estilo de
vida. Se não quiser comprometer a sua neutralidade no que tange à cosmovisão,
ele não pode prescrever legalmente valores superiores ou normas últimas”.
283
Hans Küng entende que o Estado democrático-liberal, por sua própria
autocompreensão, deva ser neutro, permitindo a diversidade de religiões e confissões,
filosofias e ideologias. A manifestação social pluralista precisa encontrar respaldo e
respeito na democracia. No entanto, democracia alguma pode funcionar sem um
consenso mínimo, que implica respeito a valores, normas e posturas distintas. Uma
convivência humana digna e harmoniosa supõe, antes de tudo, abertura ao diálogo e a
concordância de que é possível resolver conflitos sociais de uma forma não-
violenta.
284
É um desafio imenso buscar um consenso, e uma fundamentação
incondicional, para o agir humano. A crise moral que atinge a cultura ocidental
desautoriza a tradição e gera um vazio de sentido. As pessoas estão perdidas.
“Muitas pessoas não sabem mais com base em que normas fundamentais devem
tomar as pequenas e grandes decisões do dia-a-dia. Não sabem mais que
preferências seguir, que prioridades colocar e que imagens orientadoras escolher.
Pois as instâncias e tradições orientadoras não têm mais o mesmo valor. Em todo
lugar se percebe uma crise de orientação generalizada. Com ela estão
relacionadas a frustração, o medo, as drogas, o alcoolismo, a aids”.
285
283
Ibid., p. 58.
284
Ibid., p. 59.
285
Ibid., p. 29.
106
A sociedade ocidental está diante de um vazio de sentido, de valores e de
normas. O indivíduo pós-moderno está doente e a sociedade onde esinserido não
lhe oferece medicação adequada. É urgente uma nova maneira de pensar e agir, e
nesse sentido o projeto de ética mundial, proposto por Hans Küng, representa um
importante passo. Esse caminho ético precisa ser “aplainado” para que o ser humano
encontre sentido em seu caminhar, inspirado e fortalecido pelo horizonte de sua
realização plena.
2.2. Proposta de Ética Mundial
Diante da realidade que vislumbramos em nosso tempo, uma ética
mundial, sustentada por um consenso mínimo, se torna uma urgência vital. Hans
Küng reconhece isso e apresenta seu projeto de ética mundial como resultado de
longos anos de estudo, alicerçados em inúmeras experiências a partir do contato com
as mais diversas culturas e realidades do mundo todo.
286
Aqui procuraremos
apresentar as bases e fundamentos principais que levam o autor a afirmar que a única
maneira de garantir a sobrevivência da humanidade e das futuras gerações é
assumindo um caminho ético. Neste caminho, o desafio é iluminar os passos da
humanidade com um conjunto nimo de valores, normas e comportamentos
comuns, aceitos e cultivados por todos.
A responsabilidade recai sobre cada pessoa humana, que precisa assumir
como sua a tarefa de construir, por meio de relações verdadeiramente humanas, uma
sociedade de paz, onde a vida seja não apenas respeitada, mas também cuidada e
defendida. Não apenas a sobrevivência humana, mas a própria natureza e toda forma
de vida, está condicionada à prática humana, que interfere na harmonia natural. Em
sua proposta ética, Hans Küng reconhece a grande responsabilidade que o ser humano
tem e, justamente por isso, atribui a ele o desafio de assumir novos comportamentos,
deixando de lado um caminho que, ao longo de séculos, se tornou desumanizante e
destrutivo, para assumir um novo comportamento, sustentado por novos princípios
ético-morais.
286
KÜNG, H., op. cit. p. 9.
107
2.2.1. Um mínimo de valores, normas e comportamentos comuns
As imeras leis, normas, orientações e costumes das sociedades
contemporâneas, em vez de orientar, deixam as pessoas cada vez mais perdidas e
confusas. As mutações sociais que atingiram a humanidade nos últimos tempos
geraram um certo vazio de sentido no sujeito pós-moderno. Em vista da massa de
informações e da avalanche diária de novidades, o indivíduo parece tornar-se cada
vez mais “ignorante”
287
e carece de um conhecimento orientador abrangente. A
sociedade humana como um todo necessita de uma orientação esclarecedora para
ordenar e discernir seus passos em direção à realização pessoal e social. Diante da
complexidade da situação atual, Hans Küng reconhece que a sobrevivência da
sociedade, sua garantia de futuro, passa por uma busca consensual de valores ético-
morais que dêem um direcionamento novo aos homens e mulheres contemporâneos.
“Nos últimos anos ficou-me cada vez mais claro que este mundo em que vivemos
somente terá uma chance de sobreviver se nele o mais existirem espaços para
éticas diferentes, contraditórias ou aconflitantes. Este mundo uno necessita de
uma ética sica. Certamente a sociedade mundial não necessita de uma religião
unitária, nem de uma ideologia única. Necessita, pom, de normas, valores,
ideais e objetivos que interliguem todas as pessoas e que todos sejam válidos”.
288
Visto que uma “ética comum” o significa uniformização das culturas e
povos, a diversidade ética não é um empecilho para sua constituição. O que o autor
reconhece é que a humanidade necessita de normas, valores e ideais que sintonizem
as pessoas em vista daquilo que é de interesse universal: a vida. Ele condiciona a
possibilidade de sobrevivência humana ao surgimento de uma ética nova, aberta e
acolhedora das difereas, que aponte caminhos novos para toda humanidade, sem
necessidade de conflitos entre nações, povos, raças, etnias, culturas. Entende-se,
assim, que os conflitos e guerras o se originam pelo fato de existirem diferentes
povos e raças, com o que lhes é próprio, mas como conseqüências diretas da
existência de éticas diferentes e até contraditórias. Se, por um lado, o autor reconheçe
que uma ética mundial necessita de uma base religiosa, por outro lado ele entende que
287
Ibid., p. 8.
288
Ibid., p. 9.
108
é inviável uma religião universal, ou uma ideologia universal. O que ele vislumbra é a
possibilidade de uma ética mundial como expressão de valores, ideais, critérios de
ação comuns, germinados e alimentados pelas mais diferentes instâncias sociais,
políticas, religiosas e culturais. A ética, segundo Küng, deve ser assumida como um
propósito público, para além do âmbito privado.
“Na época moderna a ética foi vista cada vez mais como coisa privada. Na s-
modernidade, pelo bem das pessoas e por causa da sobrevivência da humanidade,
a ética deve vir a ser novamente um propósito público de primeira grandeza. (...)
Em virtude da enorme complexidade dos problemas e da especializão da
ciência e da técnica, a ética necessita ela mesma de uma institucionalização”.
289
Nas relões sociais, nas decisões públicas, no horizonte social, em toda
ação humana, a ética jamais pode ser esquecida. Nem pode, tamm, servir de
adorno, mas deve ser o fio condutor do pensamento e do agir humano-social. Se a
ética é uma evidência gritante em nossa sociedade, esta deve ser pensada eticamente,
numa visão global. Nossa sobrevivência e a sobrevivência das gerações futuras está
condicionada ao surgimento e cultivo de parâmetros éticos de ação válidos
universalmente. Hans Küng é enfático em afirmar que, sem normas éticas comumente
aceitas, isto é, sem “padrões globais”, as nações correm o perigo de caminhar para
uma crise que pode levar ao colapso nacional, à ruína econômica, à desmontagem
social e à catástrofe política.
290
Uma constatação assim, mais realista do que
pessimista, nos leva a refletir sobre o comportamento das pessoas. Segundo o autor,
não é possível assumir uma maneira de agir autenticamente humana sem estar ligado
a um sentido, a valores e normas. Sem isso “a pessoa humana não vai, nem nas coisas
pequenas nem nas grandes, portar-se de forma verdadeiramente humana”.
291
É urgente refletir sobre os frutos amargos do entusiasmado progresso,
reconhecendo que muitas das expectativas tecnológicas, dinamizadas pela ética de
mercado, evidenciaram-se traiçoeiras, e com resultados desastrosos. Movida por uma
gica consumista, a ética de mercado se propagou com sua força sedutora, mas
evidenciou-se sem perspectiva de futuro e nefasta à humanidade. Segundo o autor, “a
289
Ibid., p. 66.
290
Ibid., p. 54.
291
Ibid., p. 61.
109
análise do mercado o pode substituir a ética, pois as forças da oferta e da procura
não conduzem automaticamente ao equilíbrio”.
292
Um sentido mais abrangente para a
vida, bem como os padrões éticos imprescindíveis para que não apenas a vida
humana floresça, mas toda manifestação da vida, só é possível quando assumirmos
uma nova atitude, refletida até nas menores práticas.
Ao longo dos últimos culos, com o desenfreado progresso e as
encantadoras inovações tecnológicas, o ser humano abriu mão da reflexão ética sobre
suas ações. Agora é tempo de assumir uma nova postura, e a ética precisa estar
presente no discernimento humano que precede o agir.
“Até agora também a ética, na medida em que esta é uma reflexão sobre o
comportamento das pessoas, chegou atrasada. Por demais vezes perguntamos o
que podemos fazer somente depois que o sabemos fazer. Para o futuro, porém,
seria decisivo o seguinte: nós deveríamos saber o que podemos fazer antes de
saber fazê-lo. Apesar de a ética ser sempre uma reflexão condicionada pelo
tempo e pela sociedade, ela não deveria ser somente uma reflexão sobre a crise.
Quem constantemente olha para o retrovisor para ver o caminho andado,
facilmente erra o caminho que ainda falta ser percorrido. Através de prognósticos
sobre a crise, que sempre contam com a pior possibilidade, a ética deveria ser a
‘profilaxia da crise’”.
293
A ética não deveria ser um aspecto avaliativo das ações humanas, mas
assumir uma atitude preventiva que qualifique responsavelmente toda decisão e toda
ação humana. Uma atitude assim procura cuidar para que a pessoa humana nunca se
torne um meio, mas seja o critério ético fundamental.
“A pessoa humana sempre deve permanecer como objetivo último, deve ser
sempre o objetivo e o critério. Dinheiro e capital sempre são um meio, assim
como o trabalho também é meio. Também ciência, técnica e instria são meios
que devem ser avaliados e utilizados na medida que servem à pessoa humana e
seu desenvolvimento”.
294
Hans Küng acredita que a dignidade da pessoa humana funda as bases de
um consenso ético fundamental para o agir humano. Embora não podemos ignorar a
meta pessoal da auto-realização, esta não pode estar desvinculada da responsabilidade
292
Ibid., p. 27.
293
Ibid., p. 38.
294
Ibid., p. 65.
110
para com as outras pessoas, a sociedade e a natureza. Superando os costumes
tradicionais, a pessoa humana deve usar o seu potencial para uma sociedade a mais
humana possível e para um meio ambiente o mais íntegro possível”.
295
Nenhuma
pessoa é uma ilha e a sua realização não se isoladamente, mas nos enriquecedores
relacionamentos que estabelece, para os quais tem necessidade de boas orientações.
“As pessoas têm, em geral, o desejo insuperável de orientar-se por algo, de poder
apoiar-se em algo. Em um mundo tecnológico tão complexo, e nos acertos e
desacertos de sua vida privada, querem ter um ponto firme, seguir alguma linha
mestra, ter padrões, ter um objetivo. Em resumo, as pessoas sentem a
necessidade de ter orientações éticas fundamentais”.
296
Dessa forma, cabe à sociedade fomentar um mínimo de valores, normas e
comportamentos comuns a todas as pessoas, que servem de luz para iluminar os
passos na dirão certa. Sem esse consenso fundamental não é possível a existência
de uma comunhão maior nem uma convivência humana digna.
297
Nesse sentido,
diante da diversidade humana, abertura e diálogo são imprescinveis para se
concretizar esse consenso. Não são mais leis, deveres e proibições que tornarão as
pessoas mais humanas.
“Uma coisa é certa: não se pode melhorar a pessoa humana com um número cada
vez maior de leis e preceitos. Também a psicologia e a sociologia não conseguem
realizar isso. Tanto nas coisas grandes quanto nas pequenas estamos sempre
confrontados com a mesma situação: saber de conhecimento não é a mesma coisa
que saber de sentido, regulamentações não são orientações e leis ainda não são
costumes. Também o direito necessita de um fundamento moral! A aceitão
ética das leis é o pressuposto de qualquer cultura política”.
298
É perceptível que, quanto mais os Estados criam leis, menos as pessoas se
aplicam em cumpri-las e mais se esforçam para driblá-las. A saturação de leis em
nossas sociedades revela que as pessoas não sabem se orientar por si mesmas e
necessitam de delimitações, proibições e deveres. No entanto, parece que assumimos
uma cultura da desobediência e do desrespeito à lei. Faz sentido o antigo ditado
295
Ibid., p. 64.
296
Ibid., p. 60.
297
Ibid., p. 59.
298
Ibid., p. 68.
111
romano, citado por Hans Küng: “Quid leges sine moribus” - Para que leis sem
costumes?”.
299
Segundo o autor, as leis não solucionam os conflitos de nosso tempo.
“A exigência por maior controle, por mais policiais, por mais presídios e leis
mais severas não pode ser a solução acertada para os problemas difíceis de
nossos tempos. (...) Todos os Estados do mundo têm, com certeza, uma ordem
ecomica e jurídica. Mas em nenhum Estado do mundo ela funcionasem um
consenso ético, sem uma ética dos cidadãos, do qual vive o Estado de direito
democrático”.
300
Claro está que não se edifica uma sociedade mais humana e responsável
com intermináveis pacotes de leis, mas com uma cultura do respeito e da valorização
humana. Uma nova ordem, nesse sentido, não vem pela lei, mas por uma ética
mundial que interliga a todos, tornando-os responsáveis. E se a ética deve funcionar
para o bem de todos, ela deve ser indivisível. Segundo Küng, “o mundo não dividido
necessita mais e mais de uma ética não-dividida”.
301
De que adiantam proibições
eticamente fundamentadas em um determinado país se em outro país elas podem ser
burladas? A humanidade pós-moderna necessita de valores, objetivos, ideais e visões
comuns. Enquanto cultivarmos éticas e interesses diferentes, um consenso ético
mundial será um sonho inalcançável.
Este sonho se torna mais palpável na medida em que se busca refletir a
partir de questionamentos que brotam da preocupante realidade na qual estamos
inseridos: “Sob quais pressupostos a civilização humana pode sobreviver no Terceiro
Milênio?” ou “que princípios fundamentais as forças dirigentes da política, da
economia, da cncia e das religiões devem seguir?”
302
A resposta está nas mãos
humanas. Hans Küng lembra que é o ser humano o arfice da sociedade que está:
“não é o computador, mas é a pessoa humana que salvará as outras pessoas”.
303
É a
pessoa humana que necessita estar imbuída de novas convicções e posturas, de nobres
princípios e valores, assumindo sua responsabilidade planetária. Esse deve ser o
fundamento de uma ética mundial.
299
KÜNG, H., p. 69.
300
Ibid., p. 69.
301
Ibid.
302
Ibid., p. 64.
303
Ibid., p. 66.
112
2.2.2. Ética de responsabilidade
Nas circunsncias atuais, ao se pensar numa ética mundial, é necessário
pensá-la em termos de responsabilidade. A proposta de Hans ng tem um caráter de
urgência, tendo em vista o compromisso humano diante das constantes ameaças que
lhe sobrevêm, conseqüência de seu próprio agir. Sua preocupação alcança as mais
distintas formas de manifestações vitais, desde a fome humana à preservação de
espécies animais e vegetais em extinção. Tudo passa pelo viés da responsabilidade
humana. Os dados apontados no início deste capítulo deixam evidente que temos
agido de maneira irresponsável. Novos valores, novas normas éticas e novo
comportamento humano, com um mínimo de consenso entre pessoas, povos, culturas,
religiões e raças, seo possíveis na medida em que o ser humano assumir a
responsabilidade que, fundamentalmente, lhe cabe, como sujeito e agente principal
das inovações e transformações a que está submetida toda vida, em suas incontáveis
manifestações.
“Exigir uma responsabilidade global significa primeiramente pedir o contrário
daquilo que constitui uma mera ética de sucessos. É o contrário de uma ação,
para a qual todos os métodos são válidos e para a qual é bom aquilo que
funciona, que lucro, poder e prazer. Mas justamente isso pode conduzir a um
puro libertinismo e a um maquiavelismo. Tal ética não terá futuro”.
304
Uma ética de sucessos, onde os fins justificam os meios, se revelou
completamente incapaz de vislumbrar caminhos de realização ao ser humano. O
desgaste das grandes ideologias modernas do progresso sem limites produziu frutos
amargos e conseqüências desumanas por toda parte. A exagerada na razão, bem
como a consciência de liberdade, imbuídas dessa simplista ética de sucessos são
geradoras dessa desestabilização social que hoje ameaça seriamente a harmonia e a
sobrevivência planetária. É um caminho de autodestruição. Por sua vez, uma ética de
responsabilização assume um caminho diferente e aponta para o horizonte da vida e
da realização humana integral. Segundo Hans Küng, muitas vezes também se buscou
304
Ibid., p. 61.
113
uma ética de mentalidade.
305
Uma ética assim, no entanto, também não serve para
nosso tempo. Por ignorar a complexidade da situação histórica e das estruturas
sociais, bem como o jogo de forças existentes aí, uma tal ética é a-histórica e a-
política, podendo até, por motivos de mentalidade, justificar o terrorismo.
306
Para o
autor, uma ética de mentalidade em si não é negativa, mas precisa estar em sintonia
com uma ética de responsabilidade, pois se complementam.
“Sem uma ética de mentalidade, a ética de responsabilidade se transformaria
numa ética de sucesso livre de qualquer mentalidade, para a qual, em vista dos
objetivos, todos os meios seriam lícitos. Sem uma ética de responsabilidade, a
ética de mentalidade ficaria reduzida à manutenção de um sentido interior de
autojustiça”.
307
Integradas, a ética de mentalidade e a ética de responsabilidade podem
edificar um indiduo autenticamente humano, que age mediante o discernimento,
levando em conta princípios nobres, e precavendo-se de conseqüências desastrosas.
Nesse sentido, a preocupação ética se justifica na busca da realização plena da pessoa
humana, na constituição do “homem novo”, nas quatro relações básicas: com Deus,
com o cosmos, com o outro e consigo mesmo.
308
Assim, o humano integrado assume
ética e responsavelmente suas relações em vista de sua humanização, sem se
descuidar do mundo à sua volta.
Movido por uma ética de responsabilidade, o ser humano se pergunta
sempre pelas conseqüências previsíveis de seu agir e assume a responsabilidade por
isso. Em relação ao meio ambiente, é urgente uma maior responsabilização humana.
Para isso, é fundamental abrir o de uma lógica dominadora, agressiva e
irresponsável, em vista de um cuidado maior com a “casa comum” na qual todos
habitamos. A seguir, faremos uma abordagem do “princípio responsabilidade”,
proposto por Hans Jonas
309
, com quem Hans Küng sintoniza seu pensamento quando
305
Segundo Hans Küng, seria uma ética orientada por valores genéricos como a justiça, o amor, a
verdade. Uma ética assim busca somente a pura motivação interna da pessoa, sem se perguntar pelas
conseqüências de uma decisão ou ação, sem se preocupar com a situação concreta, suas exigências e
implicações. KÜNG, H., p. 61.
306
Ibid., p. 62.
307
Ibid.
308
GARCIA RUBIO, A., Elementos de Antropologia Teológica, p. 107 et. seq.
309
O fisofo alemão Hans Jonas (1903-1993) foi aluno de Heidegger na Universidade de Freiburg na
década de 1920. De origem judaica, deixou a Alemanha em 1934, pouco depois da ascensão do
114
nos aponta a urgência de uma ética responsável para a garantia da sobrevivência
humana e a preservação da vida.
No trabalho de Jonas encontramos uma preciosa contribuição para a
viabilidade do projeto de ética mundial, sustentado por Küng. Diante da crise
energética, do esgotamento da natureza, da expansão demográfica, e de tantas outras
ameaças, o auto-restringimento
310
aparece como expressão de uma nova ética, que
respeita a natureza e se compromete com a sobrevivência das pessoas no futuro.
O clamor da natureza exige uma “ética do cuidado”
311
que suscite no
homem uma atitude protetora e amorosa. Essa nova atitude, no entanto, supõe uma
nova aliança das pessoas com a natureza. E não apenas das pessoas, mas também das
mais diversas instituições e organizações que, naturalmente, não podem estar livres
de responsabilidade ética. Nem o pensamento e o agir econômicos estão livres da
observância de valores e princípios éticos. É ultrapassada a idéia de que uma empresa
tem como tarefa exclusiva maximizar lucros, e que estaria sua única contribuição
para o bem da sociedade. Todo empreendimento econômico deve ter, também, uma
responsabilidade social, para além do lucro. A harmonia entre ética e economia,
segundo Hans Küng, traz muito mais benefícios do que prejuízos.
“Quem age eticamente nem por isso age de forma não econômica, mas reage
profilaticamente em relação à crise. Muitas empresas tiveram de sofrer grandes
perdas antes de descobrir que a empresa com maior sucesso não é aquela que não
se preocupa com as implicações ecológicas, políticas e éticas de seus produtos.
Maior sucesso tem aquela que, mesmo temporariamente tendo que arcar com
custos mais elevados, preocupa-se com essas implicações e procura, de saída,
evitar multas ou sanções legais”.
312
Embora não seja negativo o fato de que grande parte das empresas busca
agregar certos valores e princípios ético-morais em seus produtos e serviços
estritamente porque essa seja uma atitude que compensa financeiramente, é
importante reconhecer na ética da responsabilidade uma motivação que ultrapassa o
nazismo ao poder. Viveu na Inglaterra e nos Estados Unidos e escreveu sua obra mais importante em
1979: Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethic r die Technologische Zivilisation, Frankfurt
am Main, Insel Verlag, 1979.
310
KÜNG, H. op. cit. p. 63.
311
BOFF, L. Saber cuidar.
312
KÜNG, H., op. cit. p. 67.
115
interesse particular. Submetido a legislações e imperativos categóricos, o agir ético
responsável perderia seu verdadeiro sentido e, como vimos no início deste trabalho,
estaríamos voltando à era primitiva da moral. Superados os dois sistemas sociais
antagônicos (comunismo e capitalismo), como já vimos, deve-se pensar para além de
uma economia planificada e uma economia capitalista de mercado, buscando uma
economia de mercado regulada, social e ecológica,
313
onde haja equilíbrio entre os
interesses do capital e os interesses sociais e ecológicos.
Com o princípio responsabilidade, Hans Jonas trata de um tema central
para a sobrevivência física e espiritual da humanidade: a busca de uma ética adequada
à civilização tecnológica, e que traz a marca da responsabilidade humana diante do
mundo que está. O grande equívoco da ética tradicional, segundo Jonas, está em
isolar o homem do resto da natureza, imaginando-o desvinculado das outras formas
de vida.
314
Para ele, uma ética que não seja capaz de olhar para além dos limites
humanos perde sua validade. Além disso, a cnica moderna introduziu ações de
magnitudes tão diferentes, com objetivos e conseqüências o imprevisíveis, que os
marcos da ética tradicional não mais podem contê-los. Jonas trabalha a partir de um
novo imperativo ético: “age de tal maneira que os efeitos de tua ação sejam
compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica”.
315
Aponta como
arquétipo primordial dessa ética a relação entre pais e filhos, sendo que aqueles têm
uma responsabilidade vital sobre estes. Mais do que nunca, é tempo de o ser humano
assumir uma atitude de respeito e cuidado em relação a toda espécie de vida existente.
“A responsabilidade é princípio primordial e norteador deste momento da
hisria de utopias caídas e novos paradigmas levantados, no qual o ser humano
busca desesperadamente categorias que o ajudem a continuar vivendo uma vida
digna e que continue merecendo o nome de humana”.
316
Se, por um lado, a vida humana deve estar no centro de toda preocupação
ética, por outro lado não se pode esquecer sua estreita relação com a natureza, com
todo o cosmos. Na ótica de Hans Jonas, nossa civilização e a violação da natureza
313
Ibid., p. 36.
314
JONAS, H., O Princípio Responsabilidade, p. 17.
315
Ibid., p. 18.
316
Ibid., p. 19.
116
caminham de mãos dadas, e isso é fruto da falsa idéia de invulnerabilidade do todo,
imutabilidade da natureza como ordem cósmica.
317
Não se pode mais pensar e agir
como se a natureza e seus recursos fossem imutáveis, eternos e ilimitados. O
opressivo poder humano levou a uma irrupção violenta e violentadora na ordem
cósmica, com a invasão atrevida dos diferentes domínios da natureza.
318
Essa
concepção tradicional fundamentava-se em parâmetros éticos vigentes preocupados
unicamente com o aqui e agora, sem estender seu olhar ao futuro e, naturalmente, sem
preocupar-se com as possíveis conseqüências de um agir humano sem limites.
“Toda ética tradicional é antropocêntrica, isto é, diz respeito ao relacionamento
direto de homem com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo. Todo
o trato com o mundo extra-humano é eticamente neutro. O comportamento
correto possuía seus critérios imediatos e sua consecução quase imediata. O
longo trajeto das conseqüências ficava ao cririo do acaso, do destino ou da
providência”.
319
A técnica moderna, no entanto, introduziu ações novas de tal grandeza que
a moldura da ética antiga não mais consegue enquadrá-las. À primeira vista, segundo
Jonas, vislumbra-se a crítica vulnerabilidade da natureza provocada pela intervenção
técnica do homem.
320
são sentidas as ameaças naturais, conseqüências do próprio
agir humano irresponsável. A atual preocupação humana com a natureza se origina,
então, menos de um homem conscientizado e mais de um homem que se sente
ameaçado. No fundo é uma preocupação consigo mesmo, o que é insuficiente para
fundamentar uma nova teoria ética. Enquanto o destino do homem for a principal
razão que torna o interesse na manutenção da natureza um interesse moral, se mantém
a orientação antropocêntrica de toda ética clássica.
321
Segundo Jonas, historicamente
nenhuma ética levou em consideração a condição global da vida humana e o futuro
distante. E se hoje esses aspectos estão em jogo, exige-se uma nova concepção de
direitos e deveres. E para isso “nenhuma ética e metafísica antiga pode sequer
oferecer os princípios”.
322
Claro es para esse autor que uma ética da
317
Ibid., p. 33.
318
Ibid., p. 29.
319
Ibid., p. 35.
320
Ibid., p. 39.
321
Ibid., p. 40.
322
Ibid., p. 41.
117
responsabilidade precisa levar em conta mais do que o interesse humano. A
compreensão de que a natureza tenha direitos em si mesma sugere alterações
substanciais nos fundamentos éticos.
Segundo Hans Jonas, na busca por uma ética da responsabilidade tem
grande eficiência a heurística do medo”.
323
Segundo esse método de aprendizado,
enxergamos o valor quando o contrário nos afeta. O que nós não queremos, sabemos
muito antes do que aquilo que queremos. Nesse sentido, para uma ética da
responsabilidade, seria mais importante consultar o nosso medo antes do nosso
desejo,
324
principalmente em um tempo em que as descobertas humanas facilmente
ganham “vida própria”, com autonomia e autopropulsão. Segundo Jonas, “temos
liberdade para dar o primeiro passo, mas nos tornamos escravos do segundo e de
todos os passos subseqüentes”.
325
Por isso, é de fundamental importância agir
responsavelmente, precavendo-se de indesejáveis conseqüências desse agir.
“No tempo de que ainda dispomos, as correções tornam-se cada vez mais
difíceis, e a liberdade para realizá-las é cada vez menor. Essas circunstâncias
reforçam a obrigação de vigiar os primeiros passos, concedendo primazia às
possibilidades de desastre seriamente fundamentadas em relação às
esperanças”.
326
Os primeiros passos significam os experimentos, as “apostas” da
humanidade, que podem ter sucesso ou não. Hans Jonas entende que o princípio ético
fundamental é o de que a existência do homem nunca pode ser transformada em
apostas do agir. Assumindo a prudência como valor fundamental, em qualquer
processo decisório, a ética de responsabilidade dapreferência aos prognósticos de
desastre em face dos prognósticos de felicidade.
327
Jonas acredita, tamm, que o
lado emocional do indivíduo deva entrar no jogo, na busca por uma nova ética. É o
323
Segundo a “heurística do medo”, não saberíamos sobre a sacralidade da vida caso não houvesse
assassinatos; não saberíamos o valor da verdade se não houvesse a mentira, nem o da liberdade sem a
sua ausência. Precisamos da ameaça à imagem humana para, com o pavor gerado, afirmarmos uma
imagem humana autêntica. Enquanto o perigo for desconhecido, não se saberá o que para se
proteger e por que devemos fazê-lo. Por isso, contrariando toda lógica e todo, o saber se origina
daquilo contra o que devemos nos proteger. Ibid., p. 70.
324
Ibid., p. 71.
325
Ibid., p. 78.
326
Ibid., p. 79.
327
Ibid., p. 86.
118
que ele chama de “sentimento de responsabilidade. Segundo ele, a ética tem um
aspecto objetivo (razão) e outro subjetivo (emoção), que se completam mutuamente.
Sem levar em conta o apelo emotivo, mesmo a demonstração mais rigorosa e
racionalmente impecável seria impotente para produzir uma força motivadora no
indivíduo.
328
A histórica fragilidade ética se deve ao fato de se ter absolutizado seu
aspecto objetivo. A proposta de uma ética da responsabilidade só é viável se for
atingida também a dimensão afetiva da pessoa, como nos explica Hans Jonas.
“Em primeiro lugar está o dever ser do objeto; em segundo, o dever agir do
sujeito chamado a cuidar do objeto. A reivindicação do objeto, de um lado, na
insegurança da sua existência, e a consciência do poder, de outro, culpada da sua
causalidade, unem-se no sentimento de responsabilidade afirmativa do eu ativo,
que se encontra sempre intervindo no Ser das coisas. (...) É a esse tipo de
responsabilidade e de sentimento de responsabilidade e não àquela
responsabilidade formal e vazia de cada ator por seu ato que temos em vista
quando falamos na necessidade de ter hoje uma ética da responsabilidade
futura”.
329
Mais do que uma simples obrigação, a responsabilidade carrega uma
identificação emocional, um sentimento de solidariedade. Para Jonas, o femeno do
sentimento torna o coração receptível ao dever, não lhe questionando a razão e
animando a responsabilidade assumida. “O coração tem suas razões que a razão
desconhece” (Pascal).
330
Movido pelo coração, a responsabilidade aparece ao
indivíduo como um dever. Segundo o autor, o conceito de responsabilidade implica
primeiramente um “dever ser” de algo e, como resposta, um “dever fazer” de alguém.
A objetividade precisa brotar do direito intrínseco do objeto.
331
Confirma-se a idéia
de que uma ética da responsabilidade não pode ser fomentada única e exclusivamente
a partir da preocupação antropológica. Dessa forma, o futuro da humanidade não
deve ser uma preocupação humana por causa do homem de hoje, mas por causa do
homem de amanhã que, embora não exista, “deve” existir e reivindica esse direito.
“O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento coletivo humano
na idade da civilização técnica, que se tornou ‘todo poderosano que tange ao
328
Ibid., p. 156-157.
329
Ibid., p. 167 et. seq.
330
Ibid., p. 183.
331
Ibid., p. 219.
119
seu potencial de destruição. Esse futuro da humanidade inclui, obviamente, o
futuro da natureza. Mas, mesmo independentemente desse fato, este último
constitui uma responsabilidade metafísica, na medida em que o homem se tornou
perigoso não só para si, mas para toda a biosfera”.
332
Todo reducionismo antropocêntrico é ofensivo à dignidade da natureza e
se configura como uma desumanização do próprio homem. Não deve haver “disputa
entre natureza humana e natureza animal ou vegetal, entre a vida humana e as demais
espécies de vida. Hans Jonas reconhece o precioso valor da natureza e de todo o
sistema vital, mas admite que a natureza humana goza de uma dignidade superior.
“Quando a luta pela exisncia freqüentemente impõe a escolha entre o homem e a
natureza, o homem, de fato, vem em primeiro lugar”.
333
No entanto, a prioridade
humana não exclui o dever em relação à natureza, pois esta tem direta relação com a
qualidade da vida humana. Conduzido por suas ambiciosas “utopias”, o homem
extrapolou seus limites e ignorou seus deveres para com a natureza.
“Tais limites se tornam perceptíveis quando os efeitos nocivos das nossas
intervenções começam a afetar os ganhos e ameaçam superá-los. Os limites são
ultrapassados, talvez sem volta atrás, quando esses esforços unilaterais arrastam
o sistema inteiro, dotado de um equilíbrio múltiplo e delicado, para uma
catástrofe do ponto de vista das finalidades humanas. Tal catástrofe é resultado
direto das agressões humanas à natureza. Isso impõe um amortecedor aentão
desconhecido à crença no progresso”.
334
Dentre os principais problemas que causam preocupação à sociedade
humana, Jonas cita a questão da alimentação, das matérias-primas e das fontes
energéticas. São questões que, segundo o autor, eso longe de encontrarem uma
solução tranqüilizadora, pois certamente ningm estaria disposto a reduzir seu nível
de vida em vista dos demais. E, na lógica atual, elevar o vel de vida de toda a
população humana implicaria uma agressão mais violenta ainda da natureza. Diante
disso, uma ética da responsabilidade supõe uma radical mudaa de comportamento
por parte da pessoa humana. É fundamentalmente importante que o sujeito humano
assuma essa responsabilidade, pois dessa atitude depende a sobrevivência das futuras
gerações, bem como de toda espécie de vida na pluralidade de suas manifestações.
332
Ibid., p. 229.
333
Ibid.
334
Ibid., p. 301.
120
2.2.3. Ética para a paz e a sobrevivência humana
A partir da proposição de Hans Jonas, acerca de uma ética de
responsabilidade, nos fica clara a possibilidade de se caminhar na direção de um
mundo melhor. Para isso, no entanto, é fundamentalmente necessária uma ética que
ajude o ser humano a assumir seu compromisso diante do mundo que aí está,
preocupando-se com a sobrevivência sua e das futuras gerações. Nessa preocupação é
preciso incluir o flagrante clamor da própria natureza e das mais diversas
manifestações da vida. Sob os cuidados do ser humano está a preciosidade da vida.
Cheio de convicção, Hans Küng afirma que “não haverá sobrevivência sem uma ética
mundial”.
335
A preservação da vida, humana ou não-humana, está condicionada ao
agir humano. A proposta ética de Küng pretende orientar o agir humano em nível
mundial, para além de povos, raças ou nações. Só um mundo de paz pode viabilizar
uma sobrevivência humana digna. A paz, no entanto, se constrói a partir do diálogo e
da junção de forças por parte de todos, e aí aparece a força das religiões.
A paz é uma das maiores exigências da humanidade nestes tempos pós-
modernos. Um mundo de paz depende, antes de tudo, da superação das injustiças,
respeitando-se os direitos de cada pessoa humana.
“Para isso, devem ser dados alguns passos: superar as diferenças que dividem
pobres e ricos, poderosos e pessoas sem poder; deixar para trás as estruturas que
provocam fome, privações e morte; superar o desemprego de milhões de pessoas;
modificar um mundo onde os direitos humanos são violados e as pessoas são
torturadas e isoladas; superar uma forma de vida em que os valores morais e
éticos são burlados e até desprezados”.
336
A paz será apenas um sonho se as injustiças e desigualdades
permanecerem. A superação destas, no entanto, implica uma nova ordem social, uma
mudança radical no pensar e agir principalmente por parte de quem estipula as regras
que dão mobilidade à vida humano-social. Küng entende que a questão da justiça
ultrapassa os tribunais ou escritórios de advocacia e perpassa a sociedade de cima
para baixo e de um lado para outro, o que exige uma profunda mudaa estrutural,
335
KÜNG, H., op. cit. p.07.
336
Ibid., p. 116.
121
envolvendo todos os níveis da vida humana e cósmica, e fazendo desabrochar o
compromisso pelo bem comum e pela dignidade de todos os seres vivos.
337
Desigualdade, miséria, desemprego, corruão, e tantas outras mazelas que assolam o
homem pós-moderno, refletem a grandeza do desafio que se impõe nos tempos atuais.
A dignidade da vida humana, sem distinção ou exclusão, deve ser reconhecida e
valorizada, respeitando-se a diversidade e a pluralidade humana.
“Neste Terceiro Milênio devemos achar um caminho que contemple a
diversidade de culturas, tradições e povos, a fim de que vivam de forma
reconciliada. Para tanto, são necessários alguns procedimentos: devem ser
superadas as divisões excludentes, que são promovidas por discriminações
racistas, étnicas e culturais; deixar de lado a marginalização de dois terços do
mundo; deixar para trás a herança do anti-semitismo e suas trágicas
conseqüências em nossas sociedades e em nossas Igrejas”.
338
Pluralidade e diversidade não impedem a paz, mas enriquecem a cultura
humana, ao passo que a uniformidade é empobrecedora e, deveras, inviável. Aqui o
desafio está em buscar a reconciliação entre os povos e culturas. Certamente aquilo
que deve unir as nações é mais importante do que aquilo que historicamente as
separou. Ainda no âmbito da diversidade humana, outra exigência que Hans Küng
apresenta é a questão de gênero. É grande o desafio diante da necessidade de
estabelecer relações mais fraternas entre homens e mulheres.
“Superar as divisões entre homens e mulheres na Igreja e na sociedade; deixar
de lado a desvalorização e a falta de compreensão para com a contribuição
irrenunciável das mulheres; superar os pais e os estereótipos
ideologicamente fixados para homens e mulheres; superar a negação de
reconhecer as dádivas dadas às mulheres em prol da vida e para o processo de
decisão na Igreja”.
339
Foi-se o tempo em que a mulher não era reconhecida em seus dons,
valores e experiências. No respeito mútuo e no empenho conjunto, mulheres e
homens devem ser protagonistas de um mundo de paz. Embora muitos passos
tenham sido dados na busca de uma harmonia entre homem e mulher, há muito para
337
SELLA, A., Ética da Justiça, p. 6.
338
KÜNG, H., op. cit. p. 117.
339
Ibid., p. 117.
122
se caminhar ainda, principalmente no seio de algumas Igrejas e religiões, onde a
função e a atuação feminina é bastante restrita.
A guerra, por sua vez, é a mais evidente ausência de paz. Como desafio às
sociedades s-modernas, Hans Küng aponta a necessidade de superar pacificamente
seus conflitos. Persistir nos conflitos ou buscar superá-los com mais violência
distancia mais ainda o sonho da paz e da harmonia entre os povos, culturas e raças.
340
É grande o desafio, pois a lógica da guerra alimenta monstruosos interesses
financeiros. Outro problema oriundo da volúpia mercantil do homem é a exploração
da natureza. Historicamente visto como fonte inesgotável de recursos, o meio
ambiente demonstra sinais claros de esgotamento e, como vimos, traz graves
conseqüências ao sujeito humano. Esse também se constitui num desafio ao homem
pós-moderno, que deve buscar meios que possibilitem a comunhão com todas as
criaturas. Uma comunhão que observe os direitos e a integridade das mesmas.
“Para tanto, devem ser dados estes passos: superar a compreensão de divisão
entre as pessoas e o resto da criação; deixar de lado um estilo de vida e um
modo de produção que prejudique profundamente a natureza; superar o
individualismo que danifica a integridade da criação em prol de interesses
privados.
341
Assim se constrói uma ordem “amiga da natureza”, onde o ser humano se
reconhece como parte do todo. Essa atitude se torna salvadora na medida em que
buscar cuidar daquilo que nos garante a própria vida.
Por fim, Hans Küng apresenta como uma exigência pós-moderna a busca
de um ecumenismo mais autêntico por parte das religiões e Igrejas. Não basta a
tolerância, é necessário construir pontes para uma comunhão, mediante o perdão e o
respeito mútuo. Mas isso é possível deixando de lado as lembranças paralisantes
do passado e superando as divisões que ainda persistem nas Igrejas.
342
As religiões,
que historicamente são portadoras e dinamizadoras de princípios e valores ético-
morais, m importância fundamental na busca de uma ética mundial. Consciente da
responsabilidade para com seu próprio futuro, o homem pós-moderno sente o desafio
340
Ibid., p. 118.
341
Ibid.
342
Ibid., p. 119.
123
de empreender um caminho novo que seja a garantia de que a vida não deixará de
existir.
2.3. Um caminho ecumênico
Ao longo da história da humanidade as religiões sempre tiveram um papel
de significativa importância em questões referentes à moral comportamental das
pessoas. Como vimos anteriormente, por muitos séculos a ética estruturou-se sobre a
base religiosa e, embora a sociedade moderna tenha levantado a bandeira da
“libertação” ética em relação à religião, não como negar que ainda hoje perduram
sinais remanescentes de uma época em que ética e religião eram inseparáveis. Tal
situação é perfeitamente justificável, visto que, ao longo dos milênios, as religiões
legitimaram, motivaram, sancionaram sistemas orientadores, fundamentando, assim,
princípios e valores morais determinantes.
343
Mesmo que em alguns casos os sistemas
morais religiosos sejam frágeis, é evidente a força das religiões na sua propagação.
A partir da proposta de Hans Küng, esse “caminho novo” emoldurado por
novos parâmetros ético-morais deve ser um caminho marcantemente ecunico. As
grandes religiões o detentoras de um grande poder de orientação moral para seus
milhões de seguidores. Certamente seria de grande valia se esse poder fosse usado a
serviço do respeito tuo e do diálogo inter-religioso. Como grande parte dos
conflitos existentes na sociedade humana têm caráter religioso, a paz religiosa é
condição para a paz mundial. “Não haverá paz no mundo sem paz entre as
religiões”.
344
Mais do que o diálogo entre si, as religiões são desafiadas a dialogar com
todas as forças sociais, construindo uma coalizão de crentes e não-crentes”.
345
O
ponto de partida para uma pacífica convivência passa pela capacidade de abertura ao
diferente. E embora a sociedade comporte diferentes credos ou amesmo a ausência
deles, o critério fundamental para todo agir humano deve ser o próprio ser humano e
343
Ibid., p. 70.
344
Ibid., p. 07.
345
Ibid., p. 70.
124
a dignidade da vida. A viabilidade de um caminho verdadeiramente ecumênico se
confirma quando se leva mais em conta o que nos une do que aquilo que nos separa.
2.3.1. A força das religiões
Como fator de propagação, e garantia de incondicionalidade de sua
proposta ética mundial, Hans ng se apóia na força das religiões. Em questão de
valores éticos e princípios orientadores para a vida das pessoas, as religiões podem
prestar um belo serviço à humanidade. Apesar de toda ambigüidade das religiões, seu
propósito original é sempre o de motivar pessoas para normas, valores, ideais e
objetivos.
346
Constituída de pessoas humanas, as religiões naturalmente estão sujeitas
às transgressões e condicionamentos próprios da realidade humana. Não há como
negar, no entanto, que, originalmente, as grandes religiões têm um instrumental de
validade inquestionável, que procura alimentar nos seus adeptos orientações e valores
positivos, em vista de um bem comum. Sem defender um conceito idealista de
religião, Hans Küng reconhece que o tempo está maduro para que as religiões
assumam o desafio de fundamentar em suas ações as bases para uma ética mundial
capaz de edificar um mundo de paz.
“No presente tempo mundial cabe às religiões mundiais uma responsabilidade
especial: a paz no mundo. No futuro, a credibilidade de todas as religiões,
também das pequenas, vai depender da sua capacidade de acentuar mais aquilo
que as une e menos aquilo que as divide. A humanidade pode cada vez menos se
dar ao luxo de ver as religiões incentivando guerras em vez de promover a paz,
praticando fanatismo em vez de fomentar a reconciliação, comportando-se com
superioridade em vez de incentivar o diálogo”.
347
Não há vidas de que as religiões possuem um grande poder de
orientação junto a seus adeptos e seguidores. No entanto, essa grande influência nem
sempre é aproveitada positivamente. Diante da necessidade, este é um tempo propício
para que as religiões assumam sua insubstituível responsabilidade diante do mundo
no qual estão inseridas e sejam elas as primeiras propagadoras da paz. Antes de levar
a cabo essa nobre missão universal, as religiões deverão buscar a superação dos
346
Ibid., p. 09.
347
Ibid., p. 10.
125
desafios particulares, internamente e proximamente. A paz mundial é missão conjunta
e poderá se concretizar quando houver empenho coletivo. O meio religioso deverá
fomentar, assim, a sociedade como um todo, envolvendo o maior mero possível de
instituições e organizações humanas, principalmente representantes da política e do
mundo econômico e financeiro.
348
Por mais bem intencionada que seja, sem uma coalizão social essa
finalidade poderá cair no vazio. Hans Küng reconhece que, embora as religiões
tenham uma missão tão nobre, elas não deixam de ser instituições humanas, com suas
qualidades e fragilidades.
“Assim como todo fenômeno humano é ambivalente, ninguém pode negar que as
religiões realizaram a sua função moral de forma ambivalente. Somente quem
está imbuído de preconceitos deixará de reconhecer que as grandes religiões
contribuíram grandemente para o desenvolvimento espiritual e normativo dos
povos. Mas também o se poderá negar que justamente essas religiões muitas
vezes frearam e até impediram tal desenvolvimento”.
349
Embora tenham uma fundamentação metafísica, as religiões são
fenômenos humanos, sujeitas aos condicionamentos e fragilidades próprias do sujeito
humano. Se por um lado possuem aspectos positivos, por outro têm erros e
escândalos, geralmente mais reprimidos pelos seus adeptos e seguidores. As grandes
religiões protagonizaram, e não no passado, situações de caráter profundamente
antiético e desumanizante.
350
Seus erros, no entanto, por mais escandalosos que
sejam, não são capazes de destruir a preciosa riqueza que as religiões têm para
colocar à disposição da humanidade. Ela pode, melhor do que a ciência, a filosofia, a
democracia, a economia, oferecer as bases fundamentais para uma proposta ética
mundial. Nela podemos encontrar os padrões que nos orientarão e, se necessário,
apontarão nossos limites.
351
Diante de tantas outras organizações humano-sociais, a religião desponta
como a mais capacitada para dar embasamento a uma ética que tenha validade
348
Ibid.
349
Ibid., p. 70.
350
Vide os grandes exemplos ao longo da história, com “guerras santas”, dogmatismos e condenações.
Não são incomuns os exemplos, como a mulher morta a pedradas na Somália, em 27 de outubro de
2008. Fonte: O Globo Online: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL839627-5602,00.html
351
KÜNG, H., op. cit. p. 76.
126
universal e seja reconhecida por todos. Mesmo reconhecendo a importante
contribuição da cncia, para Hans ng “os males produzidos pela ciência e pela
tecnologia não podem ser superados com mais ciência e mais tecnologia”.
352
O
pensamento científico e tecnológico moderno evidenciou-se, desde o início, como
incapaz de fundamentar padrões éticos e valores universais. Os desbravadores passos
dados pela cncia, no auge da modernidade, não foram acompanhados por uma
preocupação ética, o que resultou em graves problemas para a humanidade, como
vimos anteriormente. Seria improvável, após toda crítica suscitada em relação à
ciência, buscar nela fundamentação para uma nova ética mundial.
A filosofia, por sua vez, embora nas últimas décadas tenha se preocupado
mais com a prática e com a fundamentação racional de uma ética válida para todos,
também teria dificuldades para fundamentar uma ética universal.
353
Muitos filósofos
preferem deixar de lado normas universais em vista de um horizonte mais estreito, se
restringindo às realidades dos diferentes mundos e formas de vida. Estes, segundo
Hans Küng, fora um pretenso ‘compromisso’ transcendental, não conseguem
demonstrar um comprometimento plausível e incondicional.
354
Para ele, os modelos
filoficos falham no que diz respeito à experiência concreta da vida, em casos em
que se exige das pessoas uma ação que não serve ao seu próprio interesse. Ali onde se
exige um “sacrifício” a filosofia chega ao seu fim,
355
o que, segundo Küng, não
acontece com a religião.
Na modernidade, por ser considerada em oposição às ciências naturais, à
tecnologia e à democracia, a religião foi sendo mais e mais ignorada e passou a ser
vista como “uma grandeza em extinção”.
356
Hans Küng rechaça a idéia de que, diante
das crises por que passaram e ainda passam as religiões institucionalizadas, estamos
acompanhando o surgimento de uma “época pós-religiosa”.
“É um pensamento fruto de uma época em que se falava de religião como sendo
projeção ou alienação (Feuerbach), em que a religião era identificada como
352
Ibid., p. 77.
353
Ibid., p. 78.
354
Ibid., p. 80.
355
Ibid., p. 81.
356
Ibid., p. 82.
127
repressão ou ópio do povo (Marx), ou vista como regressão e imaturidade
psíquica (Freud)”.
357
Segundo o autor, as projeções modernas, que apontavam para o fim da
religião, revelaram-se enganosas e não se pode, por negligência, ignorância ou
ressentimento, excluir da análise esse fenômeno geral da humanidade. Hoje, uma
análise de conjuntura que exclua a dimensão religiosa é deficiente.
358
Nem o
humanismo ateísta de Feuerbach, nem o socialismo ateísta de Marx, nem tampouco a
ciência ateísta de Freud e Russel conseguiram substituir a religião. E embora vivamos
numa sociedade secular, estamos longe de uma era pós-religiosa: uma sociedade
secular de modo algum é a mesma coisa que uma sociedade sem religião”.
359
A busca
pessoal pela religiosidade não desapareceu, mas revela-se como uma característica
própria da pós-modernidade.
As profundas críticas sofridas pela religião nos últimos séculos não são
sem fundamentação, visto que muitas práticas desumanas tinham motivação religiosa.
No entanto, quando bem orientada, a religião certamente serve para a libertação das
pessoas, uma libertação não simplesmente psíquico-terapêutica, o que também pode
acontecer, mas principalmente na dimensão político-social. Segundo Hans Küng, em
todos os lugares evidenciou-se que a religião pode social e psicologicamente
contribuir para promover a liberdade, a observância dos direitos humanos e também
contribuir para o ressurgimento da democracia.
360
Convivendo com a ambigüidade, ao longo da história as grandes religiões
protagonizaram “cenas indecentes”, isto é, contrárias à essência religiosa. No entanto,
ao longo dessa mesma história, as religiões foram protagonistas de admiráveis
iniciativas libertadoras junto à humanidade, nos mais diversos recantos do mundo.
Não se pode negar, segundo o autor, que as religiões correm o risco de serem
autoritárias, tirânicas e reacionárias (como muitas foram), produzindo medo,
cegueira espiritual, intolerância, injustiça, frustração. Podem inclusive legitimar
imoralidades, injustiças sociais e guerras. No entanto, as religiões também podem
357
Ibid.
358
Ibid., p. 83.
359
Ibid., p. 85.
360
Ibid., p. 86.
128
promover uma renovação espiritual nas pessoas, com atitudes libertadoras, fraternas e
solidárias. Podem dinamizar a tolerância, a caridade, o engajamento social, a
promoção da justiça e até a paz mundial.
361
Enfim, a força das religiões pode
contribuir significativamente para uma transformação nos valores e princípios
comportamentais da humanidade, isto é, podem fundamentar uma ética mundial.
Mas as religiões não podem caminhar sozinhas. Por isso, se propõe um
caminho de coalizão, deixando de lado as diferenças e dinamizando a força
revolucionária de uma ética da não-violência.
362
É princípio fundamental desse
projeto ecumênico rejeitar todo e qualquer tipo de violência, por mais necessário que
possa parecer ser. Outro desafio é reconhecer que, nestes tempos s-modernos, não
se pode apelar a uma autoridade, por mais alta que ela seja, para tirar das pessoas a
autonomia, a liberdade ou o direito de escolha. Além disso, como expressão de uma
realidade tão diversificada, mutável e complexa, as religiões o poderão abrir mão
de métodos científicos para analisar o mais objetivamente possível a sociedade na
qual estão inseridas.
“Uma ética moderna necessita hoje do contato com as ciências naturais e
humanas. Ela precisa do contato com a psicologia e a psicoterapia, com a
sociologia e a crítica social, com a pesquisa do comportamento, a biologia, a
hisria cultural e a antropologia filosófica. Nesse particular, as religiões, seus
líderes e mestres, não deveriam ter receio do contato. Justamente as ciências
humanas oferecem uma quantidade cada vez maior de conhecimentos
relativamente seguros e também informações que podem orientar a ação. E estas
podem ser utilizadas como aulios de decisão verificáveis, mesmo que não
possam substituir a fundamentação última e a normatização da ética humana”.
363
Quando propõe uma ética mundial fundamentada na força das religiões,
Hans Küng não sugere que uma pessoa sem religião esteja impossibilitada de levar
uma vida verdadeiramente humana e, neste sentido, verdadeiramente moral. O autor
reconhece, no entanto, que uma coisa a pessoa sem religião não pode realizar se ela
assume para si determinadas normas éticas: “ela não pode fundamentar a
incondicionalidade e a universalidade de obrigações éticas.
364
Segundo ele,
361
Ibid.
362
Ibid., p. 87.
363
Ibid., p. 91.
364
Ibid., p. 94.
129
permaneceria incerto o porquê a pessoa deveria, em todo caso e em todo lugar, seguir
determinadas normas, mesmo que fossem contrárias aos seus próprios interesses. Ele
nos esclarece:
“Das condicionalidades finitas da existência humana, das urgências e
necessidades humanas o se pode derivar uma validade incondicional e um
assim-deve-ser ‘categórico’. Também uma ‘natureza humana’ ou uma ‘idéia
humanaautônoma e abstrata dificilmente pode comprometer pessoas para algo
incondicional como instância de fundamentação. Mesmo a ‘obrigação de
sobrevivência da humanidade’ dificilmente pode ser demonstrada racionalmente
de forma elucidativa”.
365
Para Hans Küng está claro que somente algo incondicional pode
comprometer incondicionalmente. Não podemos, hoje, contar mais com um
“imperativo categórico, congênito a todas as pessoas, de tomar o bem de todas as
pessoas como critério do próprio agir. O categórico da exigência ética, da
incondicionalidade daquilo que se deve fazer não pode ser fundamentado a partir da
pessoa humana, da pessoa multiplamente condicionada. Ele só pode ser
fundamentado a partir de um “incondicional”, a partir de um absoluto, que consegue
transmitir um sentido mais geral e que abarca e permeia a pessoa humana e toda a
natureza humana.
366
Independentemente de como é denominada pelas diferentes
religiões, só uma realidade transcendente incondicional pode fundamentar o agir
humano incondicionalmente. Nas religiões proféticas (judaísmo, islamismo e
cristianismo) o único incondicional é Deus.
367
Está claro para o autor que as religiões podem fundamentar suas
exigências éticas com uma autoridade bem diferente da simples insncia humana,
pois elas falam com uma autoridade absoluta, não expressa somente através de
palavras e conceitos, doutrinas e dogmas, mas também por meio de símbolos e
orações, ritos e festas, de forma racional e emocional.
368
Essa autoridade religiosa se
revela em muitos aspectos próprios das religiões. Vejamos:
365
Ibid.
366
Ibid., p. 96.
367
Ibid.
368
Ibid., p. 98.
130
* A religião consegue transmitir uma dimensão mais profunda, um horizonte
interpretativo mais abrangente diante da dor, da injustiça, da culpa e da falta de
sentido. Ela consegue transmitir um sentido de vida último ante a morte: o
sentido de onde vem e para onde vai a existência humana;
* A religião consegue garantir os valores mais elevados, as normas mais
incondicionais, as motivações mais profundas e os ideais mais elevados: o
sentido (por que) e o objetivo (para que) de nossa responsabilidade;
* Através de símbolos, rituais, experiências, objetivos comuns, a religião
consegue criar uma pátria de confiança, de fé, de certeza, de fortalecimento do
eu, de abrigo e de esperança: uma comunidade e uma pátria espiritual;
* A religião pode fundamentar protesto e resistência contra situações de injustiça:
isso já é o desejo insaciável e atuante pelo “Totalmente Outro”.
369
Hans Küng distingue, no entanto, uma religião verdadeira (que se refere
àquele uno absoluto) de qualquer semi-religião ou pseudo-religião. Uma falsa
religião, segundo ele, absolutiza ou diviniza algo relativo, seja a ateísta “deusa razão”
ou o “deus progresso” com todos os seus “subdeuses”: o mercado, o capital, a ciência,
a tecnologia.
370
Muitos desses falsos deuses” que assumiram, na modernidade, status
de absolutos, a s-modernidade já tratou de desmitologizá-los e desendeusá-los. Não
foram capazes, como vimos, de responder plenamente aos anseios e buscas do
homem pós-moderno. Nesta nova constelação mundial, esses falsos “deuses” não
podem ser substituídos por outros, igualmente relativos, mas sim por uma fé renovada
no Deus verdadeiro.
371
E certamente cabe à religião o papel mais importante nessa
desafiadora jornada.
2.3.2. Diálogo e respeito ao diferente: pressupostos para a paz
Hans Küng reconhece na foa das religiões uma real possibilidade de
assumir a dianteira na busca por uma ética mundial que venha garantir a
sobrevivência humana. Esse poder” religioso, no entanto, pode facilmente se tornar
estéril se, antes de se preocuparem com a sociedade humana, as religiões não
buscarem viver em harmonia entre si. o se pode anunciar aquilo que não se vive.
Para construir um mundo de paz é imprescindível que se viva na paz. Ninguém é
verdadeiramente capaz de assumir e promover a paz se não traz essa paz em si
369
Ibid.
370
Ibid., p. 99.
371
Ibid., p. 99.
131
mesmo. O diálogo e o respeito, tão importantes em um mundo cada vez mais
pluralista e multifacetado, são atitudes imprescindíveis para as religiões. O diálogo é,
pois, princípio para o agir comum das religiões e sua ausência pode levar a situações
desastrosas, como foi o caso do Líbano, na década de 80,
372
e como é o caso de
muitas nações ainda hoje.
373
Na ausência de diálogo muitas discussões, conflitos, “guerras santas”,
massacres sangrentos e impiedosos foram religiosamente fundamentados. E a lógica é
sempre a mesma: “Se Deus está conosco, com nossa religião, confissão, nação,
partido, então parece lícito fazer qualquer coisa contra o partido adversário”.
374
É
perceptível que as religiões têm uma evidente dificuldade em aceitar o diferente, o
que se torna uma barreira para o diálogo e a paz. Mas o desafio extrapola os átrios
religiosos, e o diálogo se torna imprescindível também entre crentes e não-crentes. As
pessoas religiosas devem reconhecer que pessoas não-religiosas, a seu modo, também
se engajam pela dignidade humana e pelos direitos humanos, e também elas podem
defender uma ética mais humana.
375
Reconhecemos, e reafirmamos, que as pessoas religiosas têm uma certa
“vantagem”, embora às vezes apenas teórica, na fundamentação incondicional de uma
ética. No entanto, é dever respeitar e reconhecer que os não-crentes também são
responsáveis, e podem colaborar significativamente na promoção dessa ética. Não é a
ausência de uma crença que os isenta da responsabilidade ético-social. A inviolável
autonomia humana
376
, abrange também a dimensão ética, revelando a necessidade de
372
Hans Küng relata o exemplo do Líbano, onde em abril de 1967 realizaram-se palestras com
professores cristãos e muçulmanos, por ocasião do jubileu dos 100 anos da “American University, o
instituto científico mais importante do Oriente Médio, em Beirute. Num ambiente de divisão tão
expcita entre o cristianismo e o islamismo, essa parecia uma ótima oportunidade para uma
aproximação. Mas, em vez de ser um trabalho em conjunto, o que aconteceu foi um trabalho dividido.
Questionando o presidente do referido congresso, sobre a razão de não terem sido realizadas sessões de
trabalho conjuntas, a resposta foi: “Cher Professeur, c’est trop tôt!“É cedo demais!”. A catástrofe
que assolou o Líbano, anos depois, e que teve motivação também religiosa, poderia ter sido evitada, se
o diálogo e a paz entre as religiões tivesse acontecido. Ibid., p. 122 et. seq.
373
Também o Estado de Israel e a cidade de Jerusalém poderão achar a paz e a firmeza através de um
diálogo religioso e político entre judeus, muçulmanos, israelenses e palestinenses. A paz não será
achada através de uma sétima ou oitava guerra. H.K. p. 123.
374
Ibid., p. 124.
375
Ibid., p. 73.
376
Cada pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, cf. a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo 18. KÜNG, H., p. 73.
132
respeito mútuo entre crentes e não-crentes. Ambos m responsabilidades comuns em
relação à sociedade e ao futuro da humanidade.
Mesmo que a iniciativa seja das religiões, uma proposta ética que
fundamentação a um mundo de paz deve também ser assumida por não-crentes. Não
nos parece que estes rejeitariam uma proposta ética que estivesse, de fato, orientada
por valores universalmente válidos e comprometida com a superação das mazelas que
afligem a todos.
“O que aconteceria para o mundo de amanhã se os líderes religiosos de todas as
grandes e também das pequenas religiões hoje se pronunciassem decididamente
em favor da responsabilidade pela paz, pelo amor ao próximo, pela o-
violência, pela reconciliação e pelo perdão? Se em vez de ajudar a provocar
conflitos, elas se engajassem na sua solução? E isso de Washington a Moscou, de
Jerusalém a Meca, de Belfast a Teerã, de Amitsar a Kuala Lumpur! Todas as
religiões do mundo devem hoje reconhecer a sua co-responsabilidade pela paz
mundial”.
377
A superação dos conflitos e inimizades, em busca da harmonia entre as
religiões, passa necessariamente pela complicada pergunta pela verdade. o perigo
é cair em dois extremos: o fanatismo pela verdade ou o esquecimento da verdade.
Segundo Hans ng, nada na história das Igrejas e das religiões causou tantos
conflitos como a pergunta pela verdade. O fanatismo pela verdadecausou mortes e
ferimentos em todas as Igrejas e religiões de todas as épocas. Ao contrário, o
esquecimento da verdade provoca falta de orientação e falta de normas, levando
muitos a abandonarem qualquer tipo de crença.
378
Haveria um caminho
teologicamente cito que permita aos cristãos e adeptos de outros credos aceitarem a
verdade das outras respectivas religiões sem perder a identidade, isto é, sem renunciar
à verdade da própria religião? Muitas estratégias se propõem a solucionar a questão
da paz. Mas, para o autor, nenhuma delas traz relevante contribuição.
Primeiramente, apresenta-se a estratégia da fortaleza
379
ou de auto-
justificação, onde se reconhece somente a própria religião como verdadeira. Esse
aspecto de exclusividade e superioridade, aliado ao medo do relacionamento, bem
377
Ibid., p. 126.
378
Ibid., p. 129.
379
Ibid.
133
como ao espírito de intolerância e de absolutismo da verdade, podem ser encontrados
ainda em muitas Igrejas e religiões. A esse imperialismo e triunfalismo religioso,
muitas vezes está vinculada uma apologia, que sempre busca ter razão e é incapaz de
aprender”.
380
Essa estratégia traz mais problemas do que soluções.
Outra estratégia é a da harmonização,
381
que reconhece cada religião
como verdadeira a seu modo, e o problema da “verdade” não existe realmente. A paz,
neste sentido, se realiza na medida em que se ignoram as diferenças e as contradições.
Acaba-se por nivelar não somente as diferenças fundamentais entre religiões místicas,
proféticas e sapienciais, mas também as inevitáveis contradições entre as religiões. O
lema do tudo é possível” não pode silenciar as perguntas fundamentais da vida
humana pela verdade, pelo sentido, pelos valores e critérios, pelo compromisso e pela
confiabilidade últimos.
382
Essa estratégia harmonizante e sem originalidade de
pensamento se torna um “sopão religioso” e não traz solução ao problema da verdade.
Se, por um lado, deve-se evitar o absolutismo exclusivista, por outro lado, deve-se
evitar o relativismo que nivela todas as verdades, valores e critérios.
Uma terceira estratégia que aparece é a do abraço,
383
que reconhece uma
única religião verdadeira e todas as que se desenvolveram historicamente têm parte
nessa religião. Segundo essa concepção, defendida por muitos cristãos e não-cristãos,
a paz religiosa se alcança através da integração das outras religiões. Para Hans ng,
“aquilo que parece ser tolerância, mostra-se na prática como uma espécie de
conquista através do abraço”.
384
Esse inclusivismo generoso e tolerante tampouco se
constitui numa solução real para o problema da pergunta pela verdade e não pode dar
uma real contribuição para a paz entre as religiões e nações.
Rechaçando todas essas estratégias, Hans ng apresenta a sua estratégia
ecumênica: a autocrítica. Segundo ele, nem tudo nas religiões é igualmente bom e
verdadeiro e uma estratégia verdadeiramente ecumênica desafia a olhar para a própria
história de falhas e culpas: “uma crítica à outra posição somente é legítima com base
380
Ibid., p. 130.
381
Ibidem.
382
Ibid., p. 131.
383
Ibid., p. 132.
384
Ibid., p. 133.
134
numa decidida autocrítica”.
385
A pergunta pelo verdadeiro e pelo falso é verificável
em todas as religiões, pois nãouma religião que seja isenta de culpa. A autocrítica
deve se realizar em cada religião, buscando seus fundamentos em sua própria origem.
As origens, com seus escritos e figuras normativas ajudam a discernir a verdade nas
religiões. Essa “essência” original e própria de cada religião constitui o “critério
interno válido para discernir a verdade e garante ao mesmo tempo a respectiva
identidade da própria”.
386
Na busca pelo diálogo, os critérios próprios de uma religião podem ser
aplicados, com menor intensidade naturalmente, à outra religião. Diálogo não
significa autonegação, e a crítica aos outros continua sendo necessária. Segundo o
autor, “se num diálogo, uma religião devesse insistir somente nos seus próprios
critérios de verdade, um verdadeiro diálogo já estaria desde o início fadado ao
fracasso”.
387
É possível, diz o autor, ir além dos critérios próprios de cada religião
sem relativizar aqueles que são critérios absolutos para a própria religião. Ele propõe,
então, uma nova estratégia ecumênica, os critérios éticos comuns a todas as religiões.
E nesses critérios, a dignidade do ser humano aparece como prioridade.
2.3.3. O humano como critério ecumênico fundamental
A dimensão religiosa é própria do ser humano que, movido por sua
crença, dinamiza e configura as religiões. Na busca pelo diálogo e pela paz entre as
religiões, é imprescindível que o ser humano seja o critério ecunico fundamental.
As religiões caminharam significativamente em direção a uma valorização maior
do humano, mas ainda perduram sinais remanescentes de atitudes que agridem a
dignidade humana. Em parceria com outras organizações sociais, as religiões estão
buscando, cada vez mais, dinamizar novos propósitos no sentido de uma maior
observação dos direitos humanos e da responsabilidade pela paz.
388
Nesse sentido,
385
Ibid., p. 134.
386
Ibid., p. 139.
387
Ibid.
388
O autor relata a experiência do primeiro colóquio religioso na UNESCO, realizado em Paris, de 08
a 10 de fevereiro de 1989, onde se enfatizou o significado das religiões mundiais para o programa
Educação para os direitos humanos” da UNESCO. Em seu discurso de abertura, o diretor geral,
135
Hans Küng reconhece a força dos fundamentos que justificam sua esperança em um
projeto de ética mundial ecumênica. Na busca por critérios éticos fundamentais, Hans
Küng levanta uma pergunta sica: o que é bom para a pessoa? Ao que responde: é
bom pra pessoa aquilo que a ajuda a ser verdadeiramente humana. Vejamos como ele
esclarece isso:
“O critério ético fundamental deveria ser: a pessoa não deve ser desumana, não
somente instintiva, ‘bestial’, mas humanamente sensata, verdadeiramente
humana, enfim, viver humanamente! Eticamente bom seria, pois, aquilo que
duradouramente promove a vida humana em suas dimensões individual e social.
Aquilo que permite um desenvolvimento da pessoa em todos os seus níveis e em
todas as suas dimensões”.
389
Eticamente correto, então, é aquilo que faz bem à pessoa humana, que a
realiza. Nesse sentido, as religiões podem dar uma preciosa contribuição ao indivíduo
pós-moderno, fragilizado e carente de orientações. Na ótica de Hans Küng, é
importante que o homem seja religioso, pois está claro que as grandes religiões
desempenham uma função importante para a consciência do indivíduo, dando-lhe
sustentação, apoio emocional, aconchego, consolo e coragem para a resistência.
390
Segundo ele, a religião consegue fazer isso melhor do que a psicologia, a pedagogia,
a jurisprudência e a política.
“Na luta pelo humano, a religião consegue fundamentar, sem subterfúgios, aquilo
que a política não consegue realizar. Consegue evidenciar porque a moral e a
ética são mais do que uma questão de gosto pessoal, de oportunidade política, de
julgamento individual, de convenção social ou de comunicação. Em outras
palavras: a religião consegue fundamentar claramente por que a moral, os valores
éticos e as normas devem valer incondicionalmente (e não somente ali onde me
parece ser conveniente) e de forma geral (para todas as camadas, classes e
raças)”.
391
Se apenas o incondicional pode comprometer de forma incondicional, e
somente o absoluto pode amarrar de forma absoluta, o humano é salvo justamente à
Frederico Mayor, afirmou que a percepção das diferenças entre as religiões de modo algum precisa
excluir a procura por valores comuns. KÜNG, H., p. 145.
389
Ibid., p. 146.
390
Ibid., p. 142.
391
Idem. P. 142.
136
medida que for fundamentado pelo divino.
392
Dessa forma, a religião tem condições
de ajudar o indivíduo a humanizar-se, a pautar sua vida pelo bem, afastando-se do
mal. Se pudermos definir o que é eticamente bom para o indivíduo, é possível
distinguir também nas religiões o que é fundamentalmente bom ou mau, o que é
verdadeiro e ou falso.
“Positivamente: a religião é boa e verdadeira à medida que ela serve à
humanidade, à medida que, em suas doutrinas de fé, de ética, em seus ritos e
instituições, ela promove a identidade humana, o sentido e sentimento de valor
das pessoas. Negativamente: a religião é falsa e ruim à medida que ela difunde a
desumanidade, à medida que, em suas doutrinas de e de ética, nos seus ritos e
instituições, ela freia as pessoas em sua identidade humana, na sua busca de
sentido, no senso de valores, dificultando, assim, uma existência frutífera e com
sentido”.
393
Quanto mais humana for uma religião, mais verdadeira ela é. E quanto
menos humana, isto é, quanto menos aponta caminhos de realização ao ser humano,
mais falsa e negativa ela é. A “humanidade” e autenticidade eso condicionadas às
suas práticas e orientações fundamentais, isto é, ao direcionamento que lhe é dado por
suas lideranças. Nesse sentido, igrejas ou religiões visivelmente preocupadas com a
questão financeira, por exemplo, devem ter sua autenticidade questionada.
Naturalmente, não podemos esquecer que toda religião deve ter uma finalidade social
clara. Condicionando a veracidade das religiões à promoção humana, Hans Küng nos
ensina que o verdadeiramente humano pode ser fundamentado no “divino”.
Aquilo, porém, que é desumano, o pode remontar àquilo que é “divino”.
394
Ele
estabelece uma relação dialética entre religião e humanidade, e a descreve da seguinte
forma:
“A verdadeira humanidade é o pressuposto para a verdadeira religião! Isso
significa que o humano (o respeito à dignidade humana e aos valores
fundamentais) é uma exigência mínima a cada religião. Onde se procura realizar
verdadeira religiosidade deve haver pelo menos humanidade. A verdadeira
religião é a realização da verdadeira humanidade! Isso significa que a religião
(como expressão de um sentido mais abrangente, de valores mais elevados, de
compromissos incondicionais) é o melhor pressuposto para a realizão do
392
Ibid., p. 143.
393
Ibid., p. 147.
394
Ibid.
137
humano. Deve haver religião (critério máximo) ali onde se busca realizar a
humanidade como um compromisso verdadeiro, incondicional e universal”.
395
Para direcionar sua reflexão a um possível consenso entre as religiões,
Hans Küng relata a significativa experiência da conferência de Paris, com
representantes de diversas religiões,
396
e reafirma o humanismo como base para uma
ética das religiões mundiais. O diálogo entre as religiões, condição para a
possibilidade da paz entre as mesmas e tamm para a paz no mundo, não prejudica a
identidade das religiões individuais. Não , segundo o autor, contradição entre a
disposição ao diálogo e a firmeza de posição. A verdade não é relativizada na
pluralidade. A disposição ao diálogo não significa, necessariamente, falta de posão
própria. É possível, eno, aceitar a verdade, a real e essencial verdade, das outras
religiões sem renunciar à verdade da própria religião e com isso a própria identidade.
No entanto, para bem relacionar abertura e verdade, pluralidade e identidade, firmeza
de posição e disposição ao diálogo, precisamos desenvolver uma posição ecumênica
nos seguintes moldes:
* Não um indiferentismo, para o qual tudo é apático, mas mais indiferença em
relação a qualquer pretensa ortodoxia que se coloca como medida para a salvação
ou a perdição das pessoas e busca impor a sua verdade.
* Não um relativismo, para o qual não existe um absoluto, mas sim, mais
sensibilidade para a relatividade em relação a todos os absolutismos humanos, os
quais bloqueiam uma coexistência produtiva das diferentes religiões.
* Não um sincretismo, no qual tudo é misturado e fundido, mas mais vontade
para a síntese, para a paulatina junção em face de todas as contradições e
antagonismos confessionais e religiosos.
397
O puro indiferentismo, relativismo ou sincretismo não colabora para um
caminhar ecumênico. Nenhuma religião tem o monopólio da verdade, mas também
não pode renunciar ao testemunho da verdade. A posição sica de um verdadeiro
ecumenismo não conhece nem a agressividade em relação àquelas pessoas que
395
Ibid., p. 148.
396
Conferência realizada em 1989. Segundo o autor, todos os representantes das religiões concordaram
que, para sua religião, o humanodeve estar enraizado no absoluto; todos aceitaram a autocrítica
como pressuposto para o diálogo inter-religioso; todos concordaram que nas religiões existe um déficit
no que tange à educação das pessoas para o humanismo e para o pacifismo; ninguém contestou a
palavra programática de todo o simpósio: não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões”.
KÜNG, H., p. 149.
397
Ibid., p. 155.
138
pensam diferente nem a fuga de decisões, mas busca o diálogo dentro da firmeza de
posição.
398
Só uma autêntica disposição para o diálogo revela uma clara disposição
para a paz, da mesma forma que uma religião que constrói relações ecumênicas
dialógicas e pacíficas está qualificada para atender e orientar o ser humano. Então o
ser humano pode ser o critério ecumênico fundamental, e a dignidade da pessoa
humana o fundamento de toda vida ética.
Conclusão
Na reflexão desenvolvida no primeiro capítulo deste trabalho buscamos
apresentar a configuração ética da atual sociedade humana a partir do olhar de Gilles
Lipovetsky. As constantes transformações que suplantaram a modernidade e fizeram
germinar a pós-modernidade evidenciaram, também, sinais de uma renovação ética
centrada no “eu”. Esse dinamismo ético suscitou novas relações e preocupações.
Neste segundo capítulo partimos da preocupação ética de Hans Küng, que nos
irresponsáveis desenvolvimentos técnico-científicos uma constante ameaça à
sobrevivência humana. Paralelo a isso surge uma forte interpelação ética que exige do
sujeito hodierno um comportamento mais humano e responsável. Em sua proposta de
ética mundial, Hans Küng sugere um nimo de valores, normas e comportamentos
comuns, capazes de garantir a preservação da vida, não apenas humana, mas em suas
mais diversas manifestações.
Com o precioso auxílio de Hans Jonas, nosso autor entende que uma ética
de sobrevivência passa necessariamente pelo fortalecimento da responsabilidade
humana. Uma responsabilidade que necessita ser fomentada teoricamente e assumida
concretamente. Como vimos, Hans Küng tem clareza de que as constantes crises e
ameaças que envolvem a humanidade, gerando um vazio existencial que deixa o ser
humano perdido, é fruto das próprias ões humanas. Cabe, então, às instituições e
organizações humanas, incluídas naturalmente as igrejas e religiões, assumirem o
papel de gerenciar uma nova ética, onde a dignidade humana esteja em primeiro
lugar. Na proposta de ética mundial, apresentada neste capítulo, vimos que a
398
Ibid., p. 163 et. seq.
139
superação dos conflitos entre nações, povos, raças e religiões, passa necessariamente
pela dimensão ética. A paz é possível quando houver disposição para o diálogo e
respeito ao outro, na busca de um caminho conjunto.
Ficou evidente, a partir da proposta de Hans Küng, que esse novo caminho
ético precisa ser, necessariamente, um caminho ecumênico, com o empenho de todas
as religiões. Ciente de que grande parte dos conflitos e guerras entre povos têm
fundamentação religiosa, o autor entende que a paz mundial pressupõe a paz entre as
religiões. Para isso, no entanto, é imprescindível que cada religião busque dinamizar e
propagar princípios e valores essencialmente voltados para o bem, rejeitando todo
tipo de violência. O diálogo e o respeito ao diferente aparecem como uma
necessidade vital na busca pela convivência pacífica e pelo caminho conjunto. Isso
exige, por parte de cada religião, a capacidade de reconhecer nas demais a existência
de bons valores e princípios, sem com isso abrir mão do que lhe é pprio.
Não apenas as religiões, mas também a política, a educão, a mídia, e as
mais diversas instituições humanas devem assumir o compromisso com uma ética de
sobrevivência. Se por um lado os admiráveis processos de desenvolvimento e
inovação, empreendidos pelo homem moderno e acentuados pelo homem s-
moderno, trouxeram alegrias e realizações, por outro lado trouxeram, com incertezas
e inseguranças, um vazio existencial. Não bastasse, o homem deste tempo convive
com as ameaças constantes por parte do meio ambiente. Uma ética de sobrevivência,
como proposta neste capítulo, implica uma preocupação por parte das religiões, e de
toda pessoa, com a vida humana, mas também com o meio ambiente, com a natureza
da qual depende a qualidade de vida. Confirmamos, assim, a preocupante e realista
afirmação de Hans Küng, de que o futuro da humanidade está sujeito ao compromisso
humano com uma ética mais soliria e responsável, uma ética de sobrevivência.
140
3
A mensagem cristã e sua contribuição ética
Introdução
Neste último capítulo de nosso trabalho, com a contribuição preciosa de alguns
expoentes na reflexão teológica cristã, iremos apontar alguns aspectos da fé cristã que
servem de suporte para uma fundamentação ética em nossos tempos. Buscaremos
apontar alguns elementos da mensagem cristã que, em nossa opinião, podem dar ao
homem pós-moderno uma resposta às suas inquietações, dinamizando princípios
autenticamente humanos, em vista de uma sociedade mais justa e fraterna. Veremos
que, em conformidade com o Novo Testamento, a vida de Jesus aparece como critério
determinante para toda experiência cristã. E aí estaria a essência da ética cristã.
Mediante as palavras e práticas de Jesus, como revelação plena do Pai, o
Reino de Deus se realiza e é oferecido livre e gratuitamente a todos. A partir dessa
iniciativa divina depreende-se a certeza de que Deus é amor e que deseja a salvação
de todos. Cabe a cada ser humano responder positiva ou negativamente, acolhendo ou
não a proposta salvífica. A acolhida, que se mediante a fé, implica um processo de
conversão, de abertura e fidelidade à vontade de Deus, a exemplo de Jesus. O
seguimento de Jesus, mediante a prática do amor-serviço, é apresentado como
caminho de salvação, de concretização do Reino de Deus. Sem vida, um caminho
profundamente ético. O compromisso com o Reino se expressa, sobretudo, em
atitudes de caridade para com os pobres e sofredores. Atitudes assim implicam,
naturalmente, um empenho na luta pela justiça, que é inerente à caridade. , no
entanto, a possibilidade de uma resposta negativa ao Reino, o que implica no
fechamento e na prática da injustiça. Superar esse fechamento egoísta e impulsionar
sempre mais uma abertura soliria é o grande desafio para a fé cristã.
Na parte final deste capítulo, abordaremos brevemente a dificuldade de
uma vivência autêntica da fé na pós-modernidade, em consonância com a
configuração ppria deste tempo, como vimos no capítulo primeiro. Observaremos
141
como a fragilidade da na pós-modernidade é uma das conseqüências da
supervalorização subjetiva, constituindo-se, assim, empecilho para uma verdadeira fé
cristã. Colaboram para isso as características marcantes da sociedade neoliberal, onde
os valores interpessoais assumem um caráter mais personalista e menos solidário.
Veremos como uma meramente subjetiva mais dificulta do que colabora para a
edificação do Reino. Por fim, buscamos mostrar como uma fé vivida de maneira
amadurecida, integral, comprometida, pode colaborar significativamente na
instauração de uma sociedade mais justa e mais humana. A proposta cristã, quando
aceita de forma esclarecida, se torna um eficaz meio de dinamização de valores e
princípios que fomentarão a esperança para a sociedade pós-moderna. A abertura a
Deus impulsiona o homem ao seu semelhante, e o faz solidário. É a base cristã para
uma ética mundial.
3.1. A Proposta Salvífica de Deus
O Deus cristão é um Deus que anseia pela salvação do ser humano. É um
Deus que se compadece e, movido por amor, se aproxima e revela seu projeto
salvífico. Nossa salvação é uma iniciativa de Deus, uma iniciativa totalmente gratuita
Dele.
399
Dizer que é totalmente gratuita é dizer que não é movida por condição
alguma. Nada forçou, nem pode forçar e nem tem porque forçar essa aproximação,
visto que ela é dom e graça.
400
A única justificativa dessa iniciativa divina é o amor.
A salvação humana é uma caminhada conjunta do homem com Deus. É Ele quem a
propõe e quem o primeiro passo também. Essa aproximação divina alcança sua
plenitude em Jesus Cristo. A partir da proposta divina chegamos, por meio da fé, a
reconhecer que nosso Deus é um Deus de Amor. Quem no-Lo revela assim é o
próprio Jesus.
399
FRANÇA MIRANDA, M., A Salvação de Jesus Cristo - a doutrina da Graça, p. 83.
400
SOBRINO, J., A Fé em Jesus Cristo - ensaio a partir das vítimas, p. 301.
142
3.1.1. Jesus Cristo: revelação plena de Deus
“Quem me viu, viu o Pai!” (Jo 14,9). A partir dessa afirmação bíblica, a fé
cristã reconhece em Jesus a revelação mais autêntica de Deus. O Filho de Deus que
apresenta a proposta salvífica de Deus, o Messias que vem salvar. Se Jesus é, para os
cristãos, o Salvador, certamente “tudo o que podemos afirmar sobre a salvação tem
sua fonte na pessoa, na vida e na pregação de Jesus Cristo”.
401
Ele é o único caminho
para a salvação: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não
ser por mim! (Jo 14,6). Segundo as Escrituras, Jesus viveu em constante sintonia
com aquela que, segundo ele, era a verdadeira vontade divina, e ensinou a todos a
fazerem o mesmo (Mc 3,35; Jo 15,15b), em vista da própria salvação (Mt 7,21b). A
fé de Jesus implica deixar-se conduzir pela vontade de Deus, entregando a Ele sua
própria existência. Essa entrega pressupõe a experiência do Pai como Alguém que o
ama infinitamente.
402
A partir da certeza desse amor, Jesus vive uma obediência filial,
descentrado de si mesmo e centrado no Pai. Todo seu agir, toda sua vida, girou em
torno dessa certeza.
Essa maneira de viver, no entanto, preserva a liberdade de Jesus. Sua vida
está perpassada pelo espírito de liberdade e discernimento.
“Ao serviço daquilo que discerne está a liberdade de Jesus. A lei, o templo, as
tradições religiosas foram relativizados, denunciados ou abolidos, conforme o
caso. E o importante é que o exercício dessa liberdade o foi para defender um
ideal liberal, mas para defender o amor, a justiça, a misericórdia”.
403
Uma vida em conformidade com a vontade do Pai necessariamente exigia
de Jesus constante discernimento diante das situações concretas na sociedade onde
estava inserido. Uma sociedade humana que amargava situações de maldades e
injustiças que, para Jesus, se opunham à vontade do Pai. Alimentado e movido pela
experiência amorosa com o Pai, Jesus faz de sua vida uma existência para os outros,
uma doação constante aos pobres, pecadores e marginalizados. Sua relação com estes
está fundamentalmente sintonizada à sua relação com o Pai. “Se Jesus foi um homem
401
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 32.
402
Ibid., p. 72.
403
SOBRINO, J., op. cit., p. 485.
143
para os outros, isto se deveu a que Ele fosse primeiramente um homem para Deus.
404
O modo como Jesus tratava os que estavam à sua volta, seus semelhantes,
correspondia à sua imagem de Deus.
“Sua vida foi coerente com sua imagem de Deus, um Deus cuja bondade e
misericórdia a ninguém exclui. Um Deus que aceita o ser humano por ser tal, e
não pelo que ele realiza no campo religioso ou moral. O agir concreto de Jesus
demonstra e revela o agir e o ser de Deus”.
405
Havia uma coneo profunda, uma sintonia perfeita, entre a de Jesus,
que o levava a confiar no Pai, e sua prática, que o levava a fazer a vontade do Pai.
Seu agir libertador, aliado à denúncia de toda injustiça, e sua mensagem de esperança
delineavam a proposta do Reino de Deus como uma novidade absoluta, a Boa Nova.
Seu anúncio por meio de palavras e seu testemunho prático chamaram atenção,
suscitando seguidores e perseguidores.
“Os pobres encontraram em Jesus alguém que os amava e os defendia, que
procurava salvá-los simplesmente porque estavam em necessidade. Seus
seguidores, discípulos, homens e mulheres próximas sentiram o impacto de sua
autenticidade, verdade, firmeza e, em última instância, de sua bondade”.
406
Para o povo sofrido, Jesus representava uma esperança de libertação, de
salvação. Em Jesus Cristo está o sublime exemplo de que a ação salvífica de Deus se
pela mediação humana.
407
Em seu agir encontram resposta os apelos do próximo,
da viúva, do órfão, do pobre, do injustiçado, do oprimido, do marginalizado, do
egoísta solitário, do inimigo, enfim, de todo necessitado. Em cada ação libertadora de
Jesus, Deus revela sua essência, seu modo de ser: amoroso, misericordioso. Muito
mais do que um mero sentimento, essa misericórdia é uma reação ao sofrimento que
alguns seres humanos infligem a outros. É um assumir o sofrimento das vítimas.
408
Essa ão salvífica de Deus se manifesta em sua plenitude na ressurreição de próprio
Jesus, núcleo central de nossa fé. Visto que o ressuscitado é uma vítima, produto da
404
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 77.
405
Ibid., p. 35.
406
SOBRINO, J., op. cit., p. 320.
407
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 139.
408
SOBRINO, J., op. cit., p. 132.
144
opressão, a partir d pode-se chamar a Deus de “o Deus das vítimas”.
409
Dessa
forma, a mensagem cristã é esperança de salvação para todos os sofredores. Em
Jesus, essa proposta divina se revela plenamente.
À luz da cristã, a salvação que Deus nos propõe tem sentido em
consonância com a pessoa de Jesus. Desvinculada da existência concreta de Jesus de
Nazaré, a salvação não passa de uma expressão formal, vazia e insignificante.
410
Jesus
é o amor de Deus tornado visível na história e assim provocando o nosso amor.
“Jesus é não a manifestação, mas também a realização histórica do amor
incondicionado de Deus para com a humanidade. Essa realização implicou não
somente assumir nossa condição humana, não somente solidarizar-se com os
pecadores, pobres e excluídos, mas ainda a entrega da própria vida por nós
pecadores”.
411
A totalidade da vida de Jesus, nesse sentido, é manifestação plena da
misericórdia divina, que assume a humanidade para salvá-la. A partir da vida de
Jesus, de seus feitos e de suas palavras, até sua morte e ressurreição, chega-se à idéia
de que ele é o Filho enviado ao mundo pelo Pai, no qual o próprio Pai se a
conhecer.
412
O Evangelista João apresenta as obras de Jesus como “sinais” que
expressam a realidade de Deus e exprimem Seu amor (Jo 5,19-20). No entanto, para
reconhecer em Jesus a presença do próprio Deus (Jo 10,38), é preciso estar em
sintonia com Deus, isto é, estar disposto a amar como Ele ama.
413
Dizer que Jesus é a
revelação plena de Deus não significa dizer simplesmente que as palavras e ões de
Jesus apontam para Deus. Muito mais do que alguém que fala sabiamente de Deus ou
que realiza fielmente a Sua vontade, Jesus é a carne de Deus em nossa história”.
414
Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado como homem aos homens”, “fala” portanto
“as palavras de Deus (Jo 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou
realizar (Jo 5,36; 17,4).”
415
Não fosse assim, não teria sentido a afirmação evangélica
“Quem me viu, viu o Pai! (Jo 14,9).
409
SOBRINO, J., op. cit., p. 133.
410
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 74.
411
Ibid., p. 79.
412
LADÁRIA, L. F., O Deus Vivo e Verdadeiro - O mistério da Trindade, p. 57.
413
SOBRINO, J., op. cit., p. 281.
414
Ibid., p. 303.
415
Dei Verbum, n. 04.
145
“Em palavras que todos podem entender, quando Jesus acolhe os pobres e
pecadores, Deus os acolhe; quando Jesus fustiga os opressores, Deus os fustiga;
quando Jesus se alegra comendo com publicanos e prostitutas, Deus se alegra;
quando Jesus sofre na cruz, Deus sofre na cruz... Quando nos perguntamos
intelectual e existencialmente quem é Deus, a resposta é ‘olhemos para
Jesus’”.
416
Nesse sentido, para a cristã, Jesus é a máxima expressão histórica da
realidade de Deus. E não outro acesso ou ponto de partida para o conhecimento de
Deus que não a economia salvífica, isto é, a proposta de salvação divina revelada a
nós por Jesus. Imprescindível para isso é o que nos diz o Novo Testamento sobre
Jesus. Só podemos, então, conhecer a misteriosa realidade divina mediante a
revelação salvadora que Jesus faz de si mesmo. “O modo como a Trindade se
apresenta a s na economia da salvação deve refletir como é em si mesma.
417
Em
Rahner encontramos uma preciosa contribuição à refleo da unidade entre a
manifestação de Deus na história, isto é, sua comunicação, e a realidade divina em si
mesmo, imanente.
418
Segundo ele, Deus se autocomunica, se revela, assim como é em
si mesmo. Dessa forma, não é uma representação divina, mas o próprio Deus
existindo em condição humana. É Deus que amorosamente sai de si e se aproxima do
ser humano, encarnando-se e assumindo a história humana.
“O âmbito da aproximação de Deus é a vida e a história dos seres humanos em
tudo aquilo que estes têm de necessitados: de perdão e de cura, de pão e de
esperança, de verdade e de justiça, como aparece na vida e na atividade de Jesus.
Deus não se aproxima separado dessa vida e dessa história, mas nelas; nem
outorga a salvação separando o ser humano dessa vida e dessa história, mas
416
SOBRINO, J., op. cit., p. 303.
417
LADÁRIA, L. F., op. cit., p. 39.
418
Para entendermos melhor a relação entre a Trindade em si e a Trindade que se revela na história,
citamos uma explicação de Rahner: “Se pressupormos e retermos radicalmente que a Trindade na
história da salvação e revelação é a Trindade ‘imanente’, visto que, na autocomunicação de Deus à sua
criatura pela graça e encarnação, Deus realmente se doa a si mesmo e surge realmente como é em si
mesmo, então, tendo em vista o aspecto histórico e ecomico-salfico presente na história da auto-
revelação de Deus no Antigo e no Novo Testamento, podemos dizer: na história da salvação, quer
coletiva quer individual, vêm ao nosso encontro imediato não quaisquer forças numinosas que
representem a Deus, mas nos vem ao encontro e nos é dado na verdade o próprio Deus único, que em
sua absoluta singularidade que nada pode substituir ou representar advém ele próprio onde nos
achamos e onde o recebemos a ele próprio e como ele próprio em sentido estrito”. RAHNER, K.,
Curso Fundamental da Fé, p. 168.
146
curando-o, humanizando-o, revigorando-o e comunicando-se a si mesmo
nelas”.
419
A fé cristã reconhece nesse gesto de Deus uma motivação especificamente
divina: Ele se aproxima porque é bom e porque deseja a salvação da humanidade. É
assim que Jesus apresenta a Deus, como alguém que perdoa os pecados, cura,
humaniza e plenifica. Nesse sentido, a aproximação de Deus é ativa (não meramente
“ficar aí”), permanente (não só esporádica) e irrevogável (não depende da resposta do
ser humano).
420
Com sua atuação salvífica, Deus convida o ser humano à mesma
ação. Perdoando, convida a perdoar; amando, convida a amar; solidário, convida à
prática da caridade. Em Jesus encontra-se o sublime exemplo para todo homem e toda
mulher: sua obedncia até a morte é mostra de sua perfeita acolhida do amor do
Pai.
421
Com sua vida, Jesus responde ao amor paterno e ao mesmo tempo manifesta o
amor que o Pai tem por nós. Em rias de suas parábolas, Jesus fala desse amor
incondicional de Deus pelo ser humano, e em todas as suas atitudes ele o pratica. O
Reino de Deus, essência de todo anúncio de Jesus, se concretiza em seu agir.
3.1.2. O Reino de Deus
Como revelação plena de Deus, Jesus anuncia e realiza a salvação
mediante sua fidelidade à vontade do Pai. Essa fidelidade, a que todos os seus
discípulos e seguidores são chamados, supõe a acolhida de Sua proposta salvífica,
que torna possível o Reino de Deus. Fazer a vontade de Deus é professar a soberania
do perdão e da misericórdia, estruturando as relações humanas a partir do amor.
Entendemos, assim, que o centro de todo anúncio e prática de Jesus foi o Reino de
Deus, que ele acolheu e ensinou a acolher como dom, como gratuidade total da parte
de Deus. Ele não é fruto do esforço humano ou de suas realizações históricas, mas da
iniciativa amorosa de Deus. “O ser humano pode pedir sua vinda (Mt 6,10), buscá-lo
(Lc 12,32), estar preparado para sua chegada (Mt 24,44; 25,13), mas é o Pai quem o
419
SOBRINO, J., op. cit., p. 199.
420
Ibidem.
421
LADÁRIA, L.F., op. cit., p. 319.
147
(Lc 12,32)”.
422
O Reino de Deus é a configuração de um mundo novo, permeado
de relações novas, onde os famintos são saciados, os que choram são consolados, os
pecadores são perdoados, enfim, onde o sofrimento é afastado.
Implica um mundo novo em que o mal e o sofrimento o vencidos; um mundo
novo onde prevalecem a justiça, a fraternidade e a paz. A imagem do paraíso
talvez seja a mais indicada para ilustrar o que seria a novidade do Reino de Deus.
A harmonia com Deus propicia relações dialógicas entre os seres humanos, um
relacionamento responsável entre estes e o meio ambiente, bem como uma
relação de cada ser humano consigo próprio vivida na verdade e na
sinceridade”.
423
O Reino de Deus é iniciativa exclusiva da parte de Deus, é dom valioso
que não pode ser conquistado ou comprado, pois é oferecido gratuitamente a todos.
Da parte do ser humano, no entanto, espera-se abertura e alegre acolhida. Sempre que
Deus é acolhido e aceito como Deus surge o Seu reinado.
424
Falar do Reino de Deus,
que se realiza em Jesus, é falar do próprio Deus, que se revela em Jesus. A Sagrada
Escritura apresenta a vinda do Reino como a manifestação da glória de Deus, o que
não implica um conjunto de leis a serem observadas, mas a soberania do amor e da
misericórdia.
425
Quem mais necessita de amor e misericórdia, que se revela no
perdão, na solidariedade, na prática da justiça é, sobretudo, o carente e sofredor.
Embora seja um convite a todos, o Reino de Deus tem como destinatários
privilegiados aqueles queom “vida em abundância” (Jo 10,10), isto é, os pobres,
as crianças, os pecadores, os doentes. Esses, que certamente estavam longe da
salvação segundo a lei, poderão encontrar na gratuidade do Reino um caminho para a
salvação. A gratuidade do Reino se evidencia nos seus destinatários: eles o têm
como pagar, não são merecedores, mas são necessitados, sofredores. Então, felizes
são eles, pois o Reino lhes pertence! (Lc 6,20; 4,18; Mt 11,4-5).
Ao apontar o pobre como destinatário do Reino, o evangelista Lucas leva
em conta a situão objetiva de marginalização e de injustiça em que este se encontra.
Imbuído de compaixão e misericórdia, e sem levar em conta merecimento da parte
422
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 33.
423
GARCIA RUBIO, A., O Encontro com Jesus Cristo Vivo: um ensaio de cristologia para os
nossos dias, pp. 37-38.
424
Ibid., p. 38.
425
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 33.
148
dos destinatários, Deus ouve o clamor dos sofredores e, por meio de Jesus, os convida
a participar gratuitamente do Reino.
“O pobre é convidado a participar do Reino não porque seja melhor, mais
hospitaleiro ou mais solidário do que o rico. O pobre pode ser tudo isso, mas
Lucas não está falando no merecimento nem nas qualidades dos pobres. É a
situação miserável e injusta em que a pessoa do pobre se encontra que faz com
que o Deus do Reino intervenha em seu favor.
426
Condicionado ao critério de merecimento, o ser humano tem dificuldade
em aceitar que a proposta do Reino seja expressão total de gratuidade. Da mesma
forma como geralmente procuramos méritos nos pobres para justificar a afirmação
evangélica, também o fazemos em relação às crianças, a quem Jesus afirma pertencer
o Reino (Mc 10,13; Mt 11,25-26). Jesus também surpreende a todos com um
comportamento radicalmente novo em relação aos pecadores e necessitados (Mt
21,31; Mt 9,12-13): prostitutas, cobradores de impostos, doentes, paralíticos, etc. O
Reino de Deus se destina a eles, que eram desprezados e marginalizados. Excluídos
pela lei e pela sociedade “sem pecado”, restava-lhes serem acolhidos pela bondade
divina. Agindo divinamente, Jesus se aproxima deles, cura-os, vai à casa deles, come
com eles, perdoa-os.
“Este comportamento de Jesus, em conexão com a reconciliação e o perdão,
gratuitamente oferecidos, constitui um sinal dos mais importantes da atuação do
Reino de Deus no coração da história humana”.
427
Movido por tão nobres sentimentos, Jesus ensina que os pobres, as
crianças, os pecadores, e todo tipo de sofredores vítimas da injustiça, são destinatários
da intervenção graciosa do Deus do Reino.
428
Ao mesmo tempo, lança o desafio de
aceitar o Reino de Deus como um dom, um presente, uma realidade estupenda que
vai muito além de qualquer merecimento humano, como uma realidade assombrosa
que só o amor de Deus pode oferecer!
429
Na atuação de Jesus, o Reino de Deus é mais
do que palavras. É realidade, é vida nova, é salvação.
426
GARCIA RUBIO, op. cit., p. 40.
427
Ibid., p. 45.
428
Ibid., p. 41.
429
Ibid., p. 42.
149
“De fato, a salvação que Jesus faz acontecer diante das insuficiências humanas se
revela pluriforme: cura doenças, reintegra leprosos na sociedade, prega a Boa
Nova aos pobres, restitui ao ser humano o seu lugar diante da Lei, perdoa
pecados, revela a misericórdia de Deus, possibilita experiências que despertam
esperança e amor, numa palavra, traz vida a seus contemporâneos.
430
Em Jesus, o anúncio da chegada do Reino de Deus vem acompanhado de
sinais que demonstram já, agora, a atuação desse reinado. O Reino manifesta-se na
própria pessoa de Cristo, que veio “para servir e dar sua vida em resgate de muitos”
(Mc 10,45).
431
A meta é a libertação e conseqüente salvação de cada ser humano,
especialmente os marginalizados, em quem a dor é maior. A libertação, no entanto,
implica a luta pela justiça. Se, por um lado, quem abraça a causa da justiça sofre
perseguição, por outro lado uma certeza: deles é o Reino (Mt 5,10). A partir do
Sermão da Montanha, onde Jesus revela a gratuidade do Reino, podemos
fundamentar uma nova experiência de vida, que torna possível pagar o mal com o
bem, amar o próximo com um pouco mais de gratuidade.
432
Aberto à escandalosa
gratuidade do amor de Deus, o ser humano é interpelado a amar como Jesus, irmão
primogênito que nos deixou o caminho que ele mesmo percorreu, o caminho do
Reino.
433
Em cada ensinamento, em cada gesto seu, em cada milagre realizado, Jesus
espalhou sementes de esperança que, ao germinarem tornam presente o Reino de
Deus.
O Reino de Deus é uma proposta que nos ensina a olhar para além de
qualquer merecimento e reconhecer na vontade de Deus um caminho de vida nova,
capaz de fazer este mundo mais fraterno, mais justo e mais humano. A maravilhosa
novidade do Reino com sua radical gratuidade é a sublime manifestação de um Deus
que transborda de amor pela humanidade.
430
FRAÇA MIRANDA, op. cit., p. 19.
431
Lumen Gentium, 05.
432
GARCIA RUBIO, op. cit., p. 56.
433
SOBRINO J., op. cit., p. 215.
150
3.1.3. Um Deus de Amor
A proposta salvífica de Deus é uma atitude amorosa. Iniciativa divina
incondicional. Jesus no-la revelou, como vimos anteriormente, através de sua própria
vida. Em suas palavras e ações realizou em tudo a vontade do Pai, mediante o amor-
serviço. Sua atuação, até a morte de cruz, foi sempre impulsionada por um amor
profundo e verdadeiro, como nos relatam as Sagradas Escrituras: “Assim como meu
Pai me amou, eu também amei vocês” (Jo 15,9). Como afirmávamos anteriormente,
Jesus é a revelação plena de Deus. É por meio dele que chegamos à afirmação
evangélica: Deus é amor!
“Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus e todo aquele
que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que o ama não conheceu a
Deus, porque Deus é amor. Nisto manifestou o amor de Deus por nós: Deus
enviou o seu Filho único ao mundo para que vivamos por ele. Nisto consiste o
amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou e enviou-
nos seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. Amados, se Deus
assim nos amou, devemos, nós tamm, amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,7-
11).
434
A fé cristã reconhece em Deus a fonte de todo amor. Um amor que
transborda generosamente, sem qualquer motivação externa. Deus ama porque amar
faz parte de Sua essência, e não porque possamos ser merecedores de Seu amor. A
iniciativa amorosa de Deus se dá mediante o envio de Seu Filho com a missão de
salvar. Seu desejo de salvar é expressão de Seu amor. Seu amor, assim manifesto, é
benevolência primigênia, e o é reão a algo de bom que sejamos ou façamos nós
seres humanos”.
435
A gratuidade desse amor está sempre na origem da ação divina. É
iniciativa amorosa. É ação de amor. O que caracteriza nosso agir é expressão do que
caracteriza nosso ser. Claro está que um Deus que age movido por um amor tão
gratuito e verdadeiro, pode ser um Deus de amor. O que impressiona é a
gratuidade escandalosa do gesto de Deus. Criação e salvação são iniciativas livres e
sem condicionamentos.
434
BÍBLIA DE JERUSALÉM, São Paulo, Paulus, 2002.
435
SOBRINO, J., op. cit. p. 301.
151
“O querer divino não pode ser movido por motivo algum, que é a liberdade
absoluta, a absoluta autodeterminação. Assim não é levado por algo que
provocasse essa sua liberdade, nem por algo que a necessitasse para nos criar e
salvar. Nesse sentido, nada pode ser causa ou motivo, ocasião ou condição da
criação ou da salvação: nem o ser humano, nem o pecado e nem mesmo Jesus
Cristo. Nada tendo a ganhar com a criação e a salvação, sendo perfeitamente
livre ao nos criar e salvar, identifica-se o ‘motivo’ da ação divina com o amor
gratuito, livre, desinteressado, amor infinito”
436
.
A mais pura e verdadeira manifestão de amor encontra-se em Deus. Um
amor que se torna parâmetro para o amor humano (“assim como eu vos amei!Jo
15,12). Como vimos na proposta do Reino de Deus, o Deus cristão age movido
exclusivamente por amor. Um amor que não pode prescindir de mediações concretas
que o plasmem e expressam.
437
Conteúdo fundamental da revelação divina, o mistério
do amor de Deus é algo que não podemos abarcar. Em Cristo, no entanto, se a
máxima manifestação do amor de Deus pelos homens.
438
A partir de Cristo podemos
haurir a imagem de um Deus apaixonado pelo ser humano, que o ama sem impor
condições. Na prática de Jesus a “lei do amor” sempre foi absoluta.
“A vida concreta de Jesus, sua práxis e sua proclamação, demonstra que lei ou
mandamento, sábado ou culto, prescrições ou tradições, são relativizadas diante
do amor de Deus pelo ser humano, especialmente pelo mais pobre e necessitado.
Esse, e não mais a Lei, é o livro sagrado onde se exprime a vontade de Deus”.
439
Nas palavras e nasões de Jesus é visível sua preocupação em manifestar
a todos o amor misericordioso do Pai, ao mesmo tempo em que interpela a amar da
mesma forma: “Sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu(Mt
5,48); “se vocês obedecem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor,
assim como eu obedeci aos mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor(Jo
15,10). Seus seguidores e discípulos são chamados a cultivar o mesmo amor que
provém de Deus. A maior prova de amor, no entanto, está em dar a vida pelos amigos
(Jo 15,13). E essa prova de amor se concretiza no mistério pascal, momento
fundamental da revelação do mistério de Deus amor. Na morte de Jesus manifestou-
436
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 42.
437
Ibid., p. 132.
438
LADÁRIA, L.F., op. cit., p. 25.
439
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 34-35.
152
se o amor que ele nos tem, mas também o amor do Pai por nós pecadores.
440
Se no
agir de Jesus se revelava o agir de Deus, na cruz se realiza a doação total de Deus.
Nessa entrega se concretiza o supremo momento de amor. O amor mais profundo e
verdadeiro. Amor até as últimas conseqüências. Para o cristão, a cruz de Jesus está no
centro da revelação amorosa de Deus.
441
Ela não representa uma derrota, e sim a mais
radical prova de amor. É a partir da atuação amorosa de Jesus que conhecemos o ser
amoroso de Deus.
“A partir da definição de Deus do Novo Testamento podemos dizer que Deus é
amor, e para os seres humanos o amor tem também um como, sem o qual não é
amor, ainda que fosse algo benéfico e libertador. Esse como que possibilita que
Deus seja conhecido como amor é o modo de ser de Jesus e, reciprocamente, esse
modo de Jesus é em si mesmo boa notícia”.
442
Em seu modo de amar, Jesus nos mostra até onde pode chegar o amor
humano quando inspirado pelo amor de Deus. É importante uma diferenciação entre o
modo humano de amar e o modo divino. Geralmente o amor humano surge porque o
outro é digno de amor, ao passo que em Deus o amor é expressão de gratuidade total.
Em Jesus o amor chega ao seu mulo, à máxima realização, assim como chega ao
cúmulo a revelação da Trindade.
443
A meta de toda pessoa deve ser o amor divino,
pois só assim é possível uma convivência verdadeiramente humana, onde há respeito,
perdão, solidariedade, justiça e fraternidade. “Ninguém jamais contemplou a Deus. Se
nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu Amor em nós é
realizado. Nisto reconhecemos que permanecemos Nele e Ele em s: ele nos deu seu
Espírito (1Jo 4,12-13). Se o amor humano é tão limitado em relação ao amor de
Deus, é porque não o acolhemos plenamente. Em Jesus de Nazaré, plenamente
humano, o amor de Deus encontrou acolhida e o Espírito Santo o fez capaz de amar
“como o Pai” (Jo 15,9). Uma verdadeira experiência de Deus supõe uma relação de
amor: ... e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus” (1Jo 4,7b).
440
LADÁRIA, L.F., op. cit., p. 83.
441
Ibid., p. 92.
442
SOBRINO, J.,op. cit., p. 319-320.
443
LADÁRIA, L.F. op. cit., p. 93.
153
“Deus, como transcendente, inacessível, é mistério para o ser humano, e nunca
pode ser experimentado na forma de um ‘objeto’. Sua ação salvífica em s, que
nos leva ‘para fora’ de nós mesmos em direção ao outro, que nos faz realizar o
amor, é onde Deus pode, de algum modo, ser por nós ‘atingido’,
‘experimentado’. Como o amor acontece sempre entre pessoas, é nessa relão
interpessoal que Deus se faz presente e, de certo modo, percebido pelo ser
humano”.
444
Nesse sentido, o amor auntico a Deus não pode prescindir da experiência
do amor humano autêntico. O real significado do amor a Deus pode ser captado
numa verdadeira relação amorosa com o outro. “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’,
mas odeia seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a
Deus, a quem não vê, não poderá amar” (1Jo 4,20). A prática do amor é o centro da
vida do cristão, pois testemunha concreta e visivelmente sua fé na Trindade. O perigo
fundamental da fé cristã se encontra exatamente na incoerência de se afirmar uma fé
na Trindade que não corresponda à prática do amor aos irmãos.
“O ágape cristão é simultânea e necessariamente amor a Deus e amor ao
próximo. O ato de amor a Deus está fundamentado nessa experiência mais
primordial do amor fraterno. nessa experiência sabemos se o amor a Deus é
autêntico ou se não passa de palavras vazias”.
445
Um Deus que age movido pelo amor só poderia ter como primeiro e
fundamental mandamento o amor, que se materializa na prática da caridade àqueles
que necessitam. Paulo vê no amor ao próximo o cumprimento pleno da lei, que
todos os mandamentos se resumem no amor (Rm 13,10). João estabelece como o
grande mandamento de Jesus que nos amemos uns aos outros da mesma maneira
gratuita, generosa, livre e extrema, como ele nos amou (Jo 13,34). Tal maneira de agir
é salvífica porque expressa o jeito divino de agir, revelado por Jesus. O amor
concretizado em atitudes é o maior desafio da fé cristã para os nossos tempos.
444
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 132.
445
Ibid., p. 133.
154
3.2. Acolhida Humana e Conversão
Diante da amorosa proposta salvífica de Deus, revelada por Jesus, o ser
humano precisa livremente dar uma resposta. Uma resposta positiva, de acolhida,
implica uma atuação em vista do Reino. Uma resposta negativa significa a rejeição da
salvação. Em Jesus o cristão encontra o exemplo mais autêntico de abertura e de
acolhida da salvação. Fazendo de sua existência uma vida para os outros, Jesus
testemunhou, com suas palavras e ações, o Deus de amor a quem se entregava todo e
a quem invocava como seu Pai.
446
Essa atitude certamente contagiava aos discípulos,
que se sentiam aceitos e radicalmente amados por Deus e também experimentavam o
apelo a viver como Jesus, respondendo ao amor do Pai na entrega aos semelhantes.
Mais do que nunca, hoje o amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, nos estimula
a uma resposta positiva a Deus.
Embora o ser humano seja livre para acolher ou rejeitar a oferta salvífica
de Deus, sua aceitação é graça de Deus. A graça torna o homem capaz de dar os
passos necessários para sua salvação.
447
Nesse sentido, tudo o que ele realiza em vista
de sua salvação é dom de Deus. A aceitação da graça salvífica não é um simples ato
de escolha, mas se no nível da orientação profunda da vida para Deus. Essa
orientação se manifesta em opções concretas de acordo com a vontade de Deus.
Aceitar Sua proposta é fazer Sua vontade, o que supõe a conversão. Conversão, aqui,
entendida como mudaa de vida, abandonando atitudes “velhas”, injustas,
desumanas, e assumindo atitudes novas”, fomentadas pelo amor. Nesse sentido, a
conversão está a serviço da humanização. Em seu apelo à conversão (Lc 3,8-14), João
Batista aponta para a necessidade de se produzir frutos que provem essa conversão. A
profissão de fé deve estar enraizada numa prática correspondente.
448
Dessa forma, a
autenticidade da supõe a conversão, isto é, assumir atitudes novas em relação a
Deus e aos semelhantes. A expressão concreta de uma verdadeira fé cristã é uma vida
em conformidade com a vontade de Deus.
446
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 56.
447
Ibid., p. 101.
448
GARCIA RUBIO, op. cit., p. 28.
155
3.2.1. A fé cristã
A confissão de fé cristã aponta para Jesus e tem nele seu fundamento, a
“pedra angular” (At 4,12), onde os cristãos encontram um sentido definitivo e
universal para a sua compreensão de Deus e para a sua salvação.
449
Por meio dele, os
cristãos conhecem os desígnios de Deus e, vivendo como discípulos seus, buscam
responder concretamente Seu apelo salvífico. O cultivo da cris implica viver
segundo a vontade de Deus, isto é, assumir uma prática sintonizada com a prática de
Jesus, que foi obediente ao Pai até a morte (Fl 2,8). Dessa forma, a vitalidade da fé
cristã se manifesta em atitudes concretas, em frutos de justiça, sem os quais a está
completamente morta (Tg 2,17).
Assumir a fé em Jesus como único caminho para a salvação não foi
tranqüilo para o cristianismo primitivo. Para a cultura judaica a Lei era o caminho
“oficial” para a salvação. Reconhecendo que o homem não se justifica pelas obras da
Lei, mas pela fé em Jesus Cristo (Gl 2,16), Paulo apresenta a fé como “alternativa
salvífica” à Lei: significa acolher o gesto de Deus oferecendo-nos gratuitamente, em
Jesus Cristo, a salvação.
450
Não mais mediante as obras da Lei, mas mediante as obras
da é que o cristão responde positivamente à proposta salvífica de Deus. A fé
apresenta-se como atitude básica, ou abertura total, para acolher a salvação (Rm 3,21-
31) e vivê-la na prática.
“A não é uma simples formulação doutrinal, dogmática. Não se restringe nem
se entende prioritariamente como adesão às verdades reveladas. Ela é a práxis do
cristão no conjunto de toda a sua vida. Envolve espiritualidade, liturgia, prática
pastoral, luta pela justiça, compromissos sociais, vida moral etc. É dela que se
parte em vista de mais lucidez, quer reforçando práticas anteriores, quer
abandonando outras, quer criando novas.”
451
Embora essa práxis se vê fortemente questionada nos tempos atuais, é
fundamental reconhecer que a autêntica fé cristã está intrinsecamente unida a atitudes
449
SCHILLEBEECKX, E., Por uma Igreja mais humana: identidade cristã dos ministérios.
Coleção Teologia Hoje, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 41.
450
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 109.
451
LIBANIO, J.B., Eu Creio, Nós Cremos, p. 12.
156
concretas. A é uma resposta do homem a Deus que se revela e a ele se doa.
452
No
entanto, uma resposta que não se restringe às palavras, mas que ressoa no
compromisso com a prática do amor-serviço, a exemplo de Jesus. A fé, nesse sentido,
é o segundo momento da relação humana com Deus. O primeiro passo, como vimos,
a iniciativa, é sempre de Deus que age livremente e amorosamente. Pela fé o cristão
se mostra receptivo e acolhe livremente essa proposta, assumindo uma prática sempre
articulada com a caridade. A fé see a servo da caridade, iluminando-a, salvando-
a de falsas interpretações. E a caridade, por sua vez, impede que a fé se perca na
abstração, na alienação.
453
Não há uma verdadeira fé sem práxis, não há uma doutrina
correta (ortodoxia) que não implique uma práxis correta (ortopráxis).
454
Diferentemente da obrigatoriedade das obras da Lei, a fé é um ato de dupla liberdade:
de Deus e do ser humano.
455
Deus criou o homem em liberdade e respeita essa
prerrogativa no diálogo que estabelece com ele. Assim como é livre a proposta
salvífica de Deus, deve ser livre a resposta humana.
A fé cris tem como certeza fundamental o amor de Deus. Se o medo
suscita temor, insegurança, a suscita confiança e permite entregar a própria vida
para que Deus a conduza por meio do seu Espírito, como conduziu a vida de Jesus.
Cultivando a fé, o cristão busca superar as inevitáveis tensões e fragilidades de sua
condição humana iluminando sua vida com a luz do Evangelho. Assumida de maneira
autêntica, a ajuda o cristão a continuar sua caminhada mesmo quando o caminho
lhe parece difícil.
“A cristã é profundamente positiva e otimista. Sem desconhecer o pecado, a
tendência egocêntrica presente no ser humano, as conseqüências desastrosas do
egoísmo, ela afirma primariamente a Boa Nova de um Deus que nos ama e nos
aceita, que se alegra em nos perdoar, que se revela como amor e misericórdia,
suplantando assim o pecado humano”.
456
Vivendo de maneira autêntica sua fé, o cristão não foge aos desafios do
mundo em que está inserido, mas se torna protagonista de iniciativas em vista de uma
452
Catecismo da Igreja Católica, nº 26.
453
LIBANIO, J.B., op. cit., p. 288.
454
Ibid., p. 165.
455
Ibid, p. 214.
456
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 11.
157
sociedade sempre mais justa e fraterna, onde se cultiva o respeito e o diálogo com o
diferente. Enfim, procura manter-se fiel ao precioso mandamento divino do amor,
ciente de que “uma atitude só é atitude cristã se for gestada e dinamizada pelo
amor”.
457
uma relação intrínseca e profunda entre a fé professada e o amor vivido
na prática das relações cotidianas. Segundo a Sagrada Escritura, a fé é determinante
para a salvação humana na medida em que se materializa em atitudes de caridade
para com o necessitado.
“O evangelista o Mateus faz girar o juízo final, com o duplo sentido definitivo
de salvação e condenação, em torno da caridade prestada ao faminto, sedento,
estrangeiro, nu, doente, encarcerado (Mt 25). A parábola do samaritano encarna,
de outra forma, o mesmo ensinamento. Não o o levita e o sacerdote que se
tornam modelo da cristã, mas o cismático samaritano que pratica a caridade
(Lc 10, 29-37)”.
458
Quer dizer, o ser humano pode até reconhecer a Deus como “Senhor” mas
se não fizer a vontade desse mesmo Deus que, como vimos, consiste no amor, não
participará do Reino (Mt 7,21). Não porque o Reino lhe é negado, mas porque não
assumiu a radicalidade da fé em sua totalidade. Acolher a gratuidade da proposta
salvífica, assumindo atitudes de amor, é imperativo da cristã. A luta contra todo
tipo de injustiça é, também, uma exigência da fé cristã. “É um passo primeiro para
que o projeto de Deus possa armar sua tenda entre os homens”.
459
Dessa forma, a
eficácia salvífica, como nos lembra Paulo (Gl 5,6), vem pela fé em Jesus que se
transforma em caridade. No impulso da fé, o desafio do cristão esem assumir a
prática do amor como único caminho de salvão.
3.2.2. Prática do amor: caminho de salvação
Talvez já nos tenha ficado claro que o caminho da salvação implica
necessariamente uma atitude de amor em relação ao semelhante, como expressão
concreta da fé cristã no Deus de amor. Vimos que a iniciativa salvífica da parte de
Deus é uma atitude impulsionada pelo amor e que a fé, como acolhida da salvação, é
457
Ibid., p. 131.
458
LIBANIO, J.B., op. cit., p. 282.
459
Ibid., p. 203.
158
uma resposta livre e amorosa. em Deus e amor a Deus são correlatos. Não , no
entanto, amor a Deus sem a mediação do próximo, do necessitado, daquele no qual o
próprio Deus se faz necessitado (Mt 25,40). Nesse sentido, a caridade é constituída de
atos que nos arrancam de nosso egoísmo e nos tornam solirios. Essa “conversão” é
fruto da fé, dom de Deus. e caridade são realidades inseparáveis, que se
complementam mutuamente.
“A fé salva a caridade ao apresentar-lhe o modelo normativo do amor na maneira
como Deus ama a humanidade e no modo como Jesus historicamente vivenciou o
amor. E a caridade salva a fé no sentido de que o a deixa perder-se na
ortodoxia, no dogmatismo”.
460
A acolhida da proposta salvífica de Deus suscita conversão, mudança de
atitudes. Nesse sentido, de acordo com o apelo de João Batista (Lc 3,8), a conversão
se comprova com frutos, isto é, com atitudes práticas. A caridade, então, é a
“verificação” da fé, a prova concreta da conversão. Verificamos, na passagem bíblica
de Mt 21,28-32, que fazer a vontade do Pai implica a conversão. Em vez de palavras,
o que agrada a Deus é a disposão para trabalhar em Sua vinha. Aí compreendemos,
também, o que significa amar a Deus: fazer sua vontade. Respondemos, então, ao Seu
imenso amor, amando ao próximo. E o próximo, segundo as Escrituras, é o
necessitado que está “à beira do caminho(Lc 10,29-37). O amor fraterno é, assim,
critério de autenticidade do nosso amor a Deus. Confirma-se, assim, que, para a fé
cristã, segundo o ensinamento de Jesus, o amor a Deus (“com todo o seu coração,
com toda sua alma, com toda a sua força e com toda a sua mente”) e ao próximo
como a si mesmo (Lc 10,27) é garantia de vida eterna: faça isso e viverá!”.
“Do ponto de vista salvífico, que é o mais central para a fé cristã, o amor fraterno
(que inclui necessariamente o amor a Deus) se reveste de tal importância que
todos os demais atos bons, todas as demais expressões cristãs lhe são
subordinadas e dele recebem sentido e pertinência. Como expressa
magistralmente Santo Agostinho: o fim de tudo é a caridade, e Deus é caridade.
Este é o fim, o objetivo. O resto é caminho. Não te prendas ao caminho com o
risco de não chegares ao fim. Busca onde passar, não onde ficar”.
461
460
LIBANIO, J.B., op. cit., p. 289.
461
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 133.
159
Não se destitui de importância a prática da oração, os exercícios de
piedade e tantas outras “manifestações de fé”, mas tudo é relativo diante da absoluta
primazia do amor para a fé e conseqüente salvação cristã. Àqueles que não em em
prática suas palavras Jesus dirá: “nunca vos conheci!(Mt 7,23). Nesse sentido, até
mesmo o reconhecimento de Jesus como “Senhor” é menos importante do que a
prática do amor. Um ato de fé, por mais admirável que seja, é vazio e sem sentido se
não for acompanhado da caridade.
“O Deus de Jesus Cristo se encontra menos nos recintos sagrados do que no
compromisso desinteressado do homem com seu semelhante. Essa importante
conclusão vem claramente confirmada no Novo Testamento. O mandamento do
amor a Deus aparece sempre unido ao mandamento do amor ao próximo (Mt
22,39s; Mc 12,31). Mais ainda, o nosso comportamento diante do nosso
semelhante necessitado será critério decisivo para nossa salvação, pois Deus com
ele, de certo modo, se identifica, como nos mostra a cena do juízo final (Mt
25,34-46)”.
462
O compromisso desinteressado com aquele que necessita, a exemplo do
bom samaritano, é expressão visível de uma prática verdadeiramente cristã, agradável
a Deus. Segundo Rahner, o amor ao próximo não é apenas mandamento a ser
cumprido, mas é a realização pura e simples do cristianismo.
463
“Foi a mim que o
fizeste” dirá Jesus àqueles que, desinteressadamente, praticaram a caridade. A
verdadeira meta cristã é anunciar a proposta amorosa de Deus como caminho
salvífico ao qual todos são chamados. A caridade é constitutiva de toda ação cristã.
“O objetivo último de toda e qualquer ação pastoral da Igreja pode ser o de
levar homens e mulheres a viverem, sempre com maior verdade e autenticidade,
o amor fraterno. Uma ação evangelizadora que não seja movida por essa
finalidade nem merece o nome de cristã, por mais que possa impressionar pela
sua organização perfeita, formação teológica, beleza litúrgica ou prática
sacramental”.
464
Como sacramento de salvação, a Igreja não foi constituída para buscar
glórias terrenas, mas para dar a conhecer, também em seu exemplo, a humildade e a
abnegação. A exemplo de Cristo, enviado pelo Pai ao mundo para evangelizar os
462
Ibid., p. 133.
463
RAHNER, K., op. cit., p. 364.
464
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 134.
160
pobres... proclamar a remissão dos presos” (Lc 4,18), “a procurar e salvar o que
estava perdido(Lc 19,10), também a Igreja deve estar condicionada a orientar sua
missão em vista desses sujeitos sociais que mais sofrem.
465
A Igreja deve elucidar
qual é o caminho que o ser humano deve seguir para chegar à salvação. Neste sentido,
o Novo Testamento nos oferece uma síntese: “a salvação depende fundamentalmente
do amor”.
466
E a Igreja, imbuída de caridade, humildade e abnegação, tem a missão
de apresentar a todos o caminho da salvação que conduz ao Reino, sendo ela mesma
germe e início desse reino.
467
Esse compromisso com o Reino é conseqüência de um
autêntico amadurecimento da fé, na adesão incondicional à vontade divina.
3.2.3. Compromisso com o Reino
Acolhendo a proposta salvífica de Deus, mediante a fé, o ser humano se
abre à prática da caridade, edificando um mundo mais justo e fraterno. Assim, ele se
compromete com o Reino de Deus, anunciado e realizado por Jesus. Aderir à
proposta do Reino significa fazer sua aquela atitude fundamental que caracterizou a
vida de Jesus, como vimos anteriormente: uma vida de abertura à vontade do Pai na
prática do amor-servo aos irmãos. A gratuidade do Reino está relacionada ao amor
divino e à situação de sofrimento daqueles que são seus destinatários privilegiados: os
pobres, pecadores, crianças, doentes.
Assumir a proposta do Reino implica um olhar solidário na direção dos
empobrecidos, acompanhado de atitudes de caridade, bem como um compromisso
pela transformação das estruturas que estão na origem da desfiguração do rosto do
pobre.
468
Diante das flagrantes injustiças que fazem sofrer o pobre, o amor a Deus
desafia ao compromisso na luta contra toda injustiça que ameaça a vida dos mais
fracos. Assim foi a vida de Jesus, assim deve ser a vida de todo aquele que deseja
seguir seus passos e fazer parte do Reino por ele anunciado. O compromisso com o
465
LUMEN GENTIUN, nº 08.
466
GARCIA RUBIO, A., Teologia da Libertação, p. 120.
467
Lumen Gentium, nº 05.
468
GARCIA RUBIO, A., Unidade na Pluralidade, p. 457.
161
Reino faz parte da identidade cristã, e seu esquecimento é motivo de profundas
preocupações.
“Desaparecendo da preocupação do cristão o Reino de Deus, desvirtua-se a
proposta de Jesus e, conseqüentemente, se distorce a realidade de Deus. Enfim,
desaparece a identidade cristã. Isso acontece quando é ignorada a centralidade
dos pobres na proposta do Reino”.
469
A possibilidade de esquecer os pobres é um grave risco à própria essência
do cristianismo e à concretização do Reino de Deus. Por um lado, o ser humano é a
mediação necessária para que o Reino de Deus se concretize na história, na medida
em que acolhe a proposta salvífica de Deus, sintonizando sua vida à vida de Jesus.
Por outro lado, esse mesmo ser humano pode se tornar obstáculo ao Reino, na medida
em que rejeita a salvação e assume atitudes injustas. O Reino de Deus é “já” e “ainda
não”. Ele já se concretiza em Jesus e nas atitudes e iniciativas humanizantes por parte
de cada pessoa. Mas ainda não se realiza plenamente, visto que ainda está presente o
anti-reino: injustiça, maldade, exploração, opressão, etc. O Reino é ação conjunta de
Deus, enquanto promessa, e do ser humano, enquanto realizão histórica concreta.
“O Reino de Deus é captado em um conceito de esperança, mas é também um
conceito práxico, de modo que não pode ser apreendido só como o esperado, mas
tem que ser também captado como o que se deve construir, algo a cujo serviço se
deve estar”.
470
O compromisso com o Reino supõe uma espera ativa e “vigilante”,
lutando contra todo anti-reino, isto é, tudo o que não está de acordo com a vontade de
Deus porque desumaniza e faz sofrer. Nessa vigilância o cristão, e todo ser humano, é
chamado a permanecer firme na fé, cultivando a esperança e fazendo tudo com amor
(1Cor 16,13-14). A esperança surge do amor, e onde esperança se põe o amor a
produzir”.
471
Podemos dizer que o Reino de Deus se edifica sobre as bases da fé, da
esperança e do amor, sinais da ação do Esrito Santo em nós. O amor é o que
permanece, quando tudo passa (1Cor 13,13). O compromisso com o Reino, dessa
forma, possibilita a experiência salvífica.
469
SOBRINO, J., op. cit., p. 494.
470
Ibid., p. 75.
471
Ibidem.
162
“A experiência da ação salvífica de Deus em nós é uma experiência da ação do
Espírito que nos leva a sair de nós mesmos, a superar nossos limites, a
comprometer-nos e entregar-nos aos outros. Essa foi a ação do Esrito em Jesus
Cristo. Assumir sua vida é obedecer a essa ação como Ele obedeceu, é
experimentar na doação de si a ação do Espírito que nos capacita a tal doação. O
fruto do Espírito é o amor.”
472
Como manifestação de total gratuidade por parte de Deus, o Reino precisa
ser acolhido como dom. O próprio Espírito é quem capacita para isso, assim como
capacitou e conduziu Jesus (Lc 4,1) e seus discípulos (At 4,8.31; 2,4; Ef 3,16). Na
vida de Jesus o cristão encontra o sentido último e a realização plena de sua vida, já
que “ele é a plenitude do humano e a presença do divino entre nós”.
473
Suas palavras
e ações são normativas e inspiradoras para a vida cristã e para um autêntico
compromisso com o Reino.
3.3. Desafios à Vivência Cristã na Pós-modernidade
Vários fatores dificultam uma autêntica vivência cristã na pós-
modernidade. Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, a configuração social
pós-moderna assumiu valores muitas vezes opostos ao espírito cristão. Mas nem por
isso a mensagem cristã não encontra eco em nosso tempo. Pelo contrário, mais do que
nunca, a proposta salvífica revelada ao mundo dois mil anos continua com seu
inigualável valor e importância para o ser humano. Os anseios e as buscas mais
profundas de cada homem e de cada mulher de nosso tempo, envolvidos por suas
inquietações e fragilidades, podem encontrar na Boa Nova cristã um ‘porto seguro’,
um sentido para a vida, a plenitude humana.
O que torna maior o desafio cristão é exatamente as grandes resistências
que, naturalmente, encontra em um mundo onde valores laicos, mas não
necessariamente negativos, ganharam uma considerável importância. Se nos tempos
hodiernos o desafio é grande, não o é, certamente, comparável ao desafio inicial, dos
primeiros cristãos, quando surgiu, à margem da religião judaica, a novidade cristã. Na
472
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 183.
473
LIBANIO, J. B., op. cit., p. 271.
163
coragem, perseverança e testemunho dos primeiros seguidores de Jesus a humanidade
pode encontrar verdadeiros exemplos. O desafio é buscar inspiração nasfontes” sem
esquecer da realidade na qual estamos inseridos. Para isso, naturalmente, se faz
necessária uma fé amadurecida que seja capaz de integrar os aspectos positivos da
cultura pós-moderna e os preciosos valores da mensagem cristã. A partir disso,
afirma-se a proposta cristã como uma preciosa contribuição ética à sociedade atual,
tendo como meta central a humanização integral do ser humano e a garantia de sua
sobrevivência.
3.3.1. A subjetividade pós-moderna e a fé cristã
Temos visto, anteriormente, que a s-modernidade é profundamente
marcada por uma acentuada valorização do indivíduo e de suas buscas subjetivas.
Diante de uma sociedade marcantemente individualista, Lipovetsky aponta para a
necessidade de fomentar um individualismo mais responsável, em vista de um
compromisso maior com a superação das injustiças e com a garantia de sobrevivência
das futuras gerações. Mediante a indiferença e o narcisismo, frutos de um eficaz
processo de personalização, o indivíduo pós-moderno se fechou em si mesmo, não
deixando de ser solidário, mas promovendo uma pseudo-solidariedade” não
comprometida. Na ótica cristã do amor-serviço, comprometido e transformador, é
flagrante a necessidade de uma urgente articulação entre as dimensões humano-
sociais, principalmente no que tange à centralidade dos pobres no anúncio do Reino.
Por conta do neoliberalismo e de muitos fatores culturais da pós-modernidade,
cresceu o risco do esquecimento do pobre e do acirramento de uma subjetividade
egocêntrica desligada de todo compromisso social.
“Propugna-se aqui um caminhar para um momento novo, em que a subjetividade
é afirmada em seu valor insuperável de autonomia, mas em construção com a
hisria, com a sociedade, com o cosmos em articulação com o compromisso
com os pobres. Não se trata de negá-la pelo social, mas de perceber que o social,
que o olhar de compromisso com os pobres lhe são um momento intrínseco e
permanente”.
474
474
LIBANIO, J. B., op. cit., p. 23.
164
É compreensível que a subjetividade pós-moderna esteja dominada por
uma avidez de satisfação em todos os campos, inclusive no religioso. Como vimos, o
modelo consumista se estende a toda a realidade humano-social. E aí, o pobre não é
foco, mas problema. Quando a religião entra no jogo do mercado, certos valores e
princípios cristãos vão sendo esquecidos ou sofrem uma radical transformação. A
caridade, por exemplo, não desaparece da prática cristã, mas assume uma
configuração pós-moderna descomprometida. mais assistencialismo e menos
comprometimento com a luta pela justiça social. Se a opção preferencial pelos pobres
está implícita na cristológica, os cristãos são chamados a contemplar nos rostos
sofredores o rosto de Cristo
475
, pois eles também são criados à imagem e semelhança
de Deus.
476
Esse caráter subjetivista da s-modernidade não é apenas uma clara
barreira à vivência autêntica da fé cristã, mas é também um empecilho à verdadeira
maturidade humana.
“A tendência da s-modernidade é exacerbar a subjetividade a as raias do
puro subjetivismo, relativismo. Dessa maneira, tanto o compromisso com a
hisria e com a realidade social, quanto a autêntica vivência da cristã tornam-
se impossíveis. Esse encurtamento da subjetividade humana é prejudicial ao ser
humano”.
477
Essa característica da s-modernidade se reflete no comportamento do
indivíduo pós-moderno, que assume uma atitude de ceticismo, devida e, a
mesmo, de niilismo perante a modernidade.
478
Religiosamente, não se confirmou o
arrefecimento da dimensão religiosa por parte da modernidade extremamente racional
e técnica. O que se percebe são manifestações religiosas, sempre mais incontidas,
com uma característica própria, onde se busca saciar os desejos espirituais “vivendo
momentos de gratuidade dica e festiva em ambiente religioso, como verdadeira
terapia e desafogo de tanta repressão imposta pela sociedade moderna”.
479
Conseqüência natural desse tipo de manifestação religiosa é uma fé desvirtuada,
475
DOCUMENTO DE APARECIDA, n. 393.
476
DOCUMENTO DE PUEBLA, n. 1142.
477
LIBANIO, J. B., op. cit., p. 89.
478
Ibid., p. 53.
479
HERVIEU-LÉGER, D., Vers un nouveau christianisme? Introduction à la sociologie du
christianisme occidental, In: LIBANIO, J. B., op. cit., p. 53.
165
fragilizada e incapaz de ajudar o sujeito humano a assumir autenticamente o projeto
do Reino apresentado por Jesus.
3.3.2. A fragilidade da fé
Como expressão da cultura humana, a fé também assume um caráter mais
subjetivo na pós-modernidade e sente o peso desafiador de um mundo cada vez mais
secularizado.
“Desafia-nos aprofundar essa subjetividade moderna e s-moderna e seu
impacto sobre a nossa fé. Emergem novas tendências na maneira de viver a
nos dias de hoje. Acentuam-se a decisão, a ecumenicidade, a vivência do
cotidiano, a dimensão simlica, estética e comunicativa, o lado emocional-
carismático. Muitos fatores históricos e culturais têm influenciado a mudança de
orientação e prática da fé”.
480
O acentuado valor da subjetividade incidiu de forma significativa no
âmbito da fé, suscitando manifestações religiosas cada vez mais estranhas à
religiosidade tradicional. Assim, surgem conflitos entre as mais distintas
manifestações da fé. Claro está que, se por um lado a fé cristã não pode prescindir da
subjetividade, por outro lado também não pode esquecer da dimensão social e do
compromisso com os pobres. Revela-se estéril uma fé que não se compromete com a
libertação humana diante de situações e estruturas injustas.
481
E a fé cristã desvirtuada
corre sério risco de desvirtuar a proposta do Reino, compactuando com uma realidade
social desumana. A experiência social latino-americana de injustiças e pobreza
extrema é um sinal acusador de que, historicamente, a fé não teve a força necessária
para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis da liderança
ideológica e da organização de nossos povos.
482
É questionador reconhecer que se
impuseram estruturas geradoras de injustiças em povos de arraigada fé cristã.
É necessário reconhecer a fé como expressão do universo cultural onde
estamos inseridos, pois o ser humano que responde a Deus vive dentro de um
480
LIBANIO, J. B., op. cit., p. 22.
481
Ibid., p. 50.
482
DOCUMENTO DE PUEBLA, n. 437.
166
determinado contexto social.
483
E as transformações a que ele está sujeito
socialmente, também o influenciam em matéria de fé, pois não há como separar as
dimensões humanas.
“Seus sentimentos, experiências, desejos, problemas, perguntas, movimentos
afetivos e emocionais ocupam lugar fundamental na vivência da fé. E, mesmo
quando praticam obras de caridade, as pessoas procuram aquelas em que o lado
afetivo e emocional próprio e do destinatário desempenha papel decisivo”.
484
A virada antropocêntrica que atingiu o homem moderno, também atingiu
sua fé, deslocando o lo dinamizador desta mais para a experiência pessoal do que
para o simples acolhimento da tradição e da doutrina formulada. O sujeito que crê
anseia por experiências novas, marcantemente emocionais e subjetivistas. Assim,
assistimos a uma “inflação do sagrado”, numa linha terapêutica, de curas e
libertações.
485
Na medida em que o sagrado é usado a serviço próprio, o espírito
comunitário fica ameaçado e fica visível a carência de marcos sólidos para estruturar
a existência humana. Há, nos tempos pós-modernos, uma busca precipitada por
referências vitais, sobretudo de cunho religioso. É uma tentativa de superar aquele
vazio de que nos falava Lipovetsky. Muitas vezes, no entanto, ao deixar-se levar
pelos apelos da sociedade neoliberal, a fé carece de clareza e revela-se ingênua.
“A sociedade neoliberal oferece ao ser humano, como alívio e analgésico para
suas frustrações, entretenimentos múltiplos e consumismo desenfreado, que
contrastam com as carências e os sofrimentos dos pobres e marginalizados nesta
sociedade de enormes desigualdades sociais. Contudo, a sede profunda do ser
humano por felicidade, paz, segurança, sentido, amor, permanece sem resposta,
traduzindo-se no crescimento da indústria da droga e da violência, na crise da
família e da ética profissional e política”.
486
A não pode abrir mão da lucidez, sob o risco de se tornar uma atitude
infantil. Quando os elementos ideológicos são capazes de perturbar a pureza da fé é
sinal de que falta a essa uma verdadeira fundamentação. As constantes preocupações
com questões supérfluas revelam uma fé epidérmica, sem raízes profundas, sem uma
483
LIBANIO, J. B., op. cit., p. 41.
484
Ibid., pp. 64-65.
485
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 14.
486
Ibid., p. 14.
167
verdadeira fundamentação teológica. Dentre os reais perigos a que a fé está
submetida, há duas ameaças preocupantes: capitularmos totalmente diante das
imposições da sociedade sem nenhum discernimento crítico ou querermos viver
alienados da sociedade expressões de fé de outras eras.
487
Claro está que nenhum
dos extremos é producente no que diz respeito à maturidade da fé. Esta, às vezes,
precisa ser contra-cultural, sem deixar de ser contemporânea.
3.3.3. A dimensão ética da proposta salvífica cristã
A ética foi expressão da fé, na era do dever categórico, quando agir
eticamente era sinônimo de agir de acordo com as orientações religiosas. Como
vimos no início deste trabalho, esse tempo tinha sérias lacunas e seria impensável um
retorno, submetendo a ética à dimensão religiosa. No entanto, neste tempo que carece
de referenciais éticos, acreditamos que a proposta cristã do Reino aparece como um
caminho eficaz na busca por um mundo mais justo e mais humano. Não seria absurdo
afirmamos também que o nível ético-histórico pode ser vivido num contexto
religioso, visto que, para muitas pessoas, a religião é o espaço em que a ética adquire
sentido absoluto.
488
Como vimos no segundo capítulo deste trabalho, a partir de Hans
Küng, somente o incondicional pode fundamentar incondicionalmente valores éticos.
E nas religiões proféticas, o único incondicional é Deus.
489
Para os cristãos, como
vimos acima, é a vontade de Deus que ganha contornos de “incondicional”,
fundamentando todo seu viver.
Certamente as religiões possuem uma grande força no que diz respeito à
orientação ético-moral. Em sua essência, elas possuem princípios e valores
autenticamente humanos, que orientam para a humanização e realização plena da
pessoa humana. Na mensagem cristã, a vida em plenitude assume um posto de
destaque: “eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância! (Jo 10,10).
Como fundamento do cristianismo encontramos a preocupação divina com aqueles
487
LIBANIO, J. B., op. cit., p. 125.
488
LIBANIO, J. B., op. cit., p. 269.
489
Supra item 2.3.1.
168
que têm a vida ameaçada, os pobres e oprimidos.
490
A dignidade humana,
preocupação ética fundamental, é também a preocupação cristã fundamental. No
entanto, historicamente a preocupação com os pobres e necessitados nem sempre
esteve no centro das preocupações cristãs. Eis o desafio de “voltar às fontes” e
fortalecer esse compromisso essencialmente cristão.
Mais do que nunca, em nosso tempo o ser humano permanece com
dúvidas, questionamentos, insuficiências e anseios. Buscas às quais nem sempre ele
encontra respostas satisfatórias. Porque não se basta a si mesmo, o homem busca algo
que vai além de si próprio. É nisso que as religiões encontram sua razão de ser.
491
O
Cristianismo, com base na gratuita proposta salvífica de Deus, revelada em Jesus,
oferece ao ser humano a possibilidade de encontrar sentido para sua vida na
fidelidade à vontade de Deus, a exemplo de Jesus. Na mensagem evangélica os
cristãos são convidados e desafiados a assumir atitudes novas, semelhantes às do
próprio Deus, que, em Jesus, se aproxima da humanidade, movido por Seu imenso
amor.
“O fato de Deus se aproximar e participar na condição e no destino das vítimas e
isso ocorrer para salvá-las é visto como algo de bom, e algo que inclusive
confirma suas lutas, algo que infunde ânimo e esperança, que não é paralisante
nem alienante”.
492
Em Jesus, os Evangelhos nos revelam o jeito de Deus agir como protótipo
para todo agir humano. Agindo como Ele, o ser humano colabora com a salvação que
Deus realiza. Embora seja expressão de total iniciativa e bondade divina, a salvação
cristã não se realiza no ser humano fechado em si mesmo, pois “só acontece quando o
ser humano se volta para seu semelhante, especialmente o mais necessitado”.
493
Em
nosso tempo, diante das perceptíveis ameaças à sobrevivência humana, a prioridade
salvífica estendeu-se também à natureza, diante da qual tamm faz-se necessário
uma atitude de conversão. A grave crise ecológica desenha um novo rosto necessitado
490
Levando em consideração a ambivalência do termo “pobre”, mas sempre reconhecendo uma
referência ao sofredor e necessitado, citamos algumas das inúmeras referências bíblicas que situam
esta como uma das maiores preocupações cristãs: Mt 19,21; Lc 4,18; 6,20; 7,22; 14,13; Rm 15,26;
2Cor 9,9.
491
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 10.
492
SOBRINO, J.,op. cit., p. 140.
493
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 11.
169
e nos desafia a reconhecer que a salvação cristã está intimamente relacionada com a
defesa do meio ambiente.
“A destruição acelerada da natureza nos faz temer pelas condições de vida das
gerações futuras, tal o grau de deteriorização que pode alcançar seu habitat vital.
Resulta assim evidente que a salvação cristã tem tamm uma dimensão
ecológica, como conseqüência do imperativo evangélico do amor ao próximo”.
494
Claro es, a partir do que vimos sobre a iniciativa salvífica de Deus, que a
salvação é ação divina em benefício do ser humano. Movido por compaixão, como
nos sinais realizados por Jesus, Deus age em favor do ser humano necessitado.
Acolhendo gratuitamente a proposta amorosa de Deus, e cultivando atitudes de
caridade, o ser humano torna-se colaborador de Deus. Esse empenho pessoal se
mediante a força do Espírito, como acontecia com os discípulos (At 2,4). A vivência
autêntica da fé cristã tem necessariamente uma dimensão social e política, que lhe é
intrínseca, que deve ser expressa e da qual depende hoje sua credibilidade.
495
Isto
posto, é critério de autenticidade para a cristã a luta contra todo tipo de injustiças e
o compromisso com um mundo de paz. Dessa atuação no mundo depende a
credibilidade da cristã. Em um mundo de injustiças, guerras e violência, onde se
faz ouvir o clamor pela paz, a mensagem cristã se apresenta como um caminho de
esperança, um autêntico caminho na busca pela paz.
“A paz buscada é a paz positiva, orientada por valores humanos como a
solidariedade, a fraternidade, o respeito ao ‘outro’ e a mediação pacífica dos
conflitos, e o a paz negativa, orientada pelo uso da força das armas, a
intolerância com os diferentes’, e tendo como foco os bens materiais.
496
A busca pela paz, abrindo o de todo tipo de violência, implica o
compromisso com a justiça. “A paz é fruto da justiça”.
497
Se a proposta cristã oferece
bases fundamentais para a promoção de uma cultura da paz nas pessoas, na família,
na sociedade, é porque também nos oferece orientações fundamentais para a prática
da justiça (Mt 6,33). No entanto, a busca pela paz tem seu preço. A fé, vivida na
494
Ibid, p. 26.
495
Ibid, p. 27.
496
CNBB – Campanha da Fraternidade 2009 Texto-Base, p. 15.
497
Lema da Campanha da Fraternidade 2009, da CNBB.
170
fragilidade da condição humana, não torna o cristão imune aos conflitos, às tensões,
às tentações e a possíveis desvios e retrocessos.
498
Ao assumir a radicalidade da ,
ele precisa ter consciência de que é uma opção de vida que lhe trará realizações, mas
também acarreta riscos e grandes tribulações. Em Jesus está o exemplo maior: sua
morte é uma conseqüência histórica do tipo de vida assumido por ele messianismo
de serviço em conformidade com a vontade do Pai.
499
Claro está, no entanto, que
essa opção de Jesus é expressão de sua liberdade, que o Pai respeita e valoriza.
A liberdade é um direito absoluto para o homem pós-moderno. A proposta
cristã não vai contra essa liberdade, mas pode impregnar-lhe um caráter enriquecedor:
o amor. Para o cristianismo, “o homem livre é aquele que ama e afinal de contas
ama, sem que nenhuma outra perspectiva o desvie do amor”.
500
Como vimos, é livre
o amor de Deus pelos homens, pois nada lhe impõe limites ou obstáculos. O desafio
do cristão é “amar como Deus ama”, isto é, não permitir que algo o impeça de poder
amar: nem as tribulações, nem as angústias, nem a fome, os perigos ou a espada (Rm
8,35). Um amor assim, plenamente sintonizado com a proposta do Evangelho, é fruto
de uma abertura total à vontade de Deus, e de um compromisso radical com o
próximo, com a sociedade, com o mundo em que se vive. Na vida de Jesus encontra-
se o fundamento para uma vida cristã de amor-serviço, e em sua ressurreição o cristão
encontra fundamento maior para sua esperaa.
“O egocentrismo nunca é princípio hermenêutico cristão, e menos o é o egoísmo.
Com certeza é o amor. Quem ama as vítimas, quem sente última compaixão para
com elas, quem está disposto a entregar-se a elas e a correr o seu mesmo destino,
este pode ver também na ressurreição de Jesus uma esperança para si”.
501
A pós-modernidade é marcada por um expressivo individualismo, onde o
“eu” tem status de absoluto e são legítimas suas buscas subjetivas. A mensagem cristã
reconhece e valoriza a subjetividade, mas rechaça todo tipo de fechamento,
ensimesmamento e manifestações egoístas. Fomentar um “individualismo
responsável” tem sua validade inquestionável, conforme nos propõe Lipovetsky, mas
498
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 223.
499
GARCIA RUBIO, O Encontro com Jesus Cristo Vivo, p. 93.
500
SOBRINO, J.,op. cit., p. 123.
501
Ibid.,, p. 74.
171
uma autêntica compreensão da fé cristã supera essa proposta e aponta para uma
perspectiva de humanização integral da pessoa, isto é, à realização da plenitude
humana. Em sua obra Evangelização e Maturidade Afetiva, o teólogo Alfonso García
Rubio tece uma interessante reflexão acerca desse tema, distinguindo duas
manifestações humanas possíveis: a “subjetividade fechada” e a subjetividade
aberta”.
502
Vejamos resumidamente a distinção proposta:
“Fechado em si mesmo, o ser humano coisifica e instrumentaliza todo tipo de
relação. Se for uma pessoa religiosa, aceitará Deus na medida em que este
responde à sua expectativa. Utiliza o divino apenas para o interesse próprio, tal
como utiliza as relações com os seres humanos. O outro só é ‘aceito’ quando
pode responder às suas necessidades; e seu relacionamento com a natureza
também é meramente utilitário. Quer dizer, o outro (Deus, homem, mulher,
natureza, etc.) não é aceito como outro”.
503
Essa reflexão parece sintonizada com a caracterização do homem pós-
moderno, como vimos no primeiro capitulo deste trabalho. A preocupante realidade
humano-social que ameaça a existência humana é conseqüência natural dessa
subjetividade fechada, que instaura e desenvolve relações desumanizantes. Uma
autêntica humanização, e conseqüente salvação, bem como a garantia de
sobrevivência às gerações futuras, dependerá de uma mudança substancial por parte
do ser humano. E a proposta cristã tem uma inestimável contribuão a dar. No
tocante ao sujeito humano, a Boa Nova do Evangelho propõe uma “subjetividade
aberta”, capaz de fomentar a vivência autêntica da alteridade.
“Na subjetividade aberta, o ser humano vivencia a alteridade, isto é, o
reconhecimento, a aceitação e a valorização do outro como outro, na sua
diferença. Na relação com Deus, a pessoa é capaz de abrir-se à Sua novidade, de
aceitar a Sua transcendência e de acolher a Sua interpelação. Deus não é
manipulado nem instrumentalizado. Na relão com Ele, o ser humano pode
encontrar resposta às carências de ser criado. Mas, o prioritário é sempre Deus.
(...) A pessoa, nas suas relações interpessoais, se abre aos outros seres humanos,
respeitados e aceitos como diferentes. Todavia, no primeiro plano está a pessoa
do outro. É superada, assim, a tentação de coisificá-la ou instrumentalizá-la. Na
relação com o meio ambiente, a pessoa supera a perspectiva meramente utilitária
e mecanicista e visa a uma utilizão responsável dos recursos naturais,
502
GARCÍA RUBIO, A., Evangelização e Maturidade Afetiva, pp. 35-39.
503
Ibid., p. 36.
172
respeitando o ritmo da natureza e colocando-se a serviço da preservação da
vida”.
504
Podemos dizer que aí está refletida a proposta cristã de salvação. A mesma
abertura que se propõe a cada pessoa, a cristã encontra em Jesus. Em seu
ensinamento e em suas ações, Jesus demonstra uma abertura radical a seus
contemporâneos, sem distinções e reservas, sem discriminações e diferenças,
atropelando, muitas vezes, costumes e tradições moralizantes.
505
A proposão cristã
mais coerente com a mensagem bíblica é aquela que desafia cada pessoa a superar
todo tipo de atitudes egoístas e empenhar-se na luta contra todo tipo de injustiça,
assim como Deus, que “se manifesta através da vida, mas defendendo-a da morte;
através da justiça, mas contra a injustiça; através da libertação, mas agindo contra a
escravidão”.
506
Tão nobre proposta não se restringe aos cristãos, mas se revela como
um caminho necessário, pelo qual deverá trilhar a humanidade toda, se desejar manter
viva a esperança de um mundo melhor.
A salvação trazida por Jesus Cristo não se confina aos limites da Igreja
institucional e nem mesmo do Cristianismo. Nos relatos bíblicos é perceptível como a
pregação de Jesus sobre o Reino ultrapassava as fronteiras do povo judeu (Jo 4,39-
40). Uma ão salvífica que corresponde à vontade de Deus pode ser realizada por
qualquer um, como mostrou Jesus com a parábola do bom samaritano (Lc 10,30-35).
Isso quer dizer que mesmo aqueles que não professam a cristã podem agir em
conformidade com o Evangelho e fazer, assim, experiências salvíficas.
“Os adeptos de outras religiões fazem experiências salvíficas, chegam à paz
interior, à felicidade, à liberdade de espírito, à temperança, ao respeito pelo
semelhante ao amor fraterno. Seus itinerários salvíficos podem ser diversos das
rotas cristãs, pois a ação do Espírito não pode ignorar o contexto em que atua, a
visão religiosa dominante e a ética que lhe corresponde. Práticas diferentes das
cristãs podem também conter autêntica ação do Espírito. O que chamamos
atitude fundamental de Cristo pode se configurar de um modo que o nos é
familiar”.
507
504
Ibid., p. 38.
505
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 71.
506
SOBRINO, J., op. cit., p. 136.
507
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 211.
173
Toda atitude de caridade se identifica com a proposta de Jesus, revelada
no Evangelho. Para a cristã, toda obra boa é inspirada pelo Espírito Santo e é
caminho de salvação (Rm 2,6-7).
508
A partir disso, entende-se a afirmação cristã de
que Cristo, como único e universal salvador da humanidade, se faz presente e atuante,
por intermédio de seu Espírito, também nas demais religiões.
509
Em vista de um
mundo de paz, como abordamos no capítulo anterior, faz-se necessário buscar, por
parte da fé cristã, o diálogo com as demais religiões e também com os não-crentes.
“Em diálogo com os que estão mais distantes na expressão da fé, a saber, com os
não-crentes, busca-se encontrar um ponto comum no referente aos direitos e
valores fundamentais do ser humano. Com as religiões, o diálogo nasce da
plataforma comum da em Deus, de suas revelões, verdades, experiências,
tradições. A partir dos elementos comuns, busca-se avançar para um mútuo
enriquecimento e reconhecimento”.
510
Toda sociedade humana passa a ser beneficiada quando se viabiliza um
horizonte de paz e se busca, das mais diferentes formas, concretizá-lo. O diálogo
inter-religioso amadurecido e respeitoso tende a enriquecer as religiões. Por parte
do Cristianismo certamente aperfeiçoaria e purificaria certos conteúdos da tradição e
dinamizaria uma universalização maior da própria mensagem cristã.
511
Claro está que
o diálogo sempre é possível, desde que se tenha pré-disposição para tal e que se leve
em consideração sempre mais o que une as religiões do que aquilo que as separa e
divide. Com os não-crentes, por sua vez, o diálogo deve ter como base o próprio ser
humano e sua dignidade fundamental. Tanto adeptos de outras religiões quanto não-
crentes, podem encontrar no cristianismo preciosa base para fundamentar novos
valores e princípios éticos para a sociedade pós-moderna.
É necessário, no entanto, que tanto crentes quanto não-crentes reconheçam
a urgência em assumir atitudes novas, como expressão de caridade, em favor dos
mortos da sociedade.
512
um compromisso transformador será capaz de superar de
vez as ameaças catastróficas que atingem homens e mulheres de nosso tempo.
508
Dei Verbum, n º 03.
509
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 212.
510
LIBANIO, J. B., op. cit., p. 61.
511
FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 215.
512
SOBRINO, J., op. cit., p. 78.
174
Dinamizada pelo espírito evangélico, traduzido no amor-serviço, a sociedade humana
terá menos necessidade de leis, pois saberá conviver pacificamente.
513
Enfim, a lei do
amor, cerne da revelação divina em Jesus Cristo, é parâmetro ético para qualquer
povo, raça ou nação. Onde convivência humana é possível instaurar qualquer um
dos preciosos imperativos éticos cristãos: “Tudo o que vocês desejam que os outros
façam a vocês, façam vocês também a eles” (Mt 7,12) ou Amai-vos uns aos outros
como eu vos amei! (Jo 15,12).
Conclusão
Concluindo esta última parte de nosso trabalho, queremos afirmar a
pertinência da reflexão acerca da mensagem cristã, bem como da valorosa
contribuição que ela pode dar à sociedade s-moderna. Carente de valores e
princípios que respondam suas inquietações mais profundas, o ser humano encontra,
na mensagem do Evangelho, uma proposta de vida plena. Vimos que Jesus, como
revelação plena de Deus, mediante suas palavras e práticas, desafia todos a um
autêntico compromisso com o mundo que aí está. Esse compromisso supõe a luta pela
superação de toda maldade e de todo sofrimento, em vista da justiça e da paz, bases
para um autêntico e integral desenvolvimento humano. Essa é a vontade de Deus que,
em seu infinito amor, nos chama à conversão em vista da salvação. Na proposta do
amor se revela a universalidade do Reino. Não cultura, povo ou raça que não seja
chamado à prática da caridade.Na busca por um mundo mais justo, fraterno e
solidário, a proposta cristã fornece as bases sólidas do Evangelho, destacando a
necessidade de se cultivar entre todos as mesmas atitudes de Jesus. Dessa forma, fica-
nos claro que assumir autenticamente a proposta cristã é dar passos significativos no
caminho ético. No entanto, é grande o desafio à fé cristã, que vê na marcante
subjetividade fechada em si uma resistência à prática do amor-serviço. Mais do que
promover uma responsabilidade descomprometida, a reflexão cristã busca sensibilizar
toda humanidade ao clamor dos injustiçados deste mundo, interpelando-a em vista de
uma prática transformadora. Assim são semeadas as sementes do Reino, germina a
esperança e floresce um mundo mais humano para todos
513
GARCIA RUBIO, Encontro Com Jesus Cristo Vivo, p. 58.
175
4
Conclusão Geral
Ser ético na atual sociedade humana é um desafio. No início deste
trabalho, reconhecendo a complexidade desse desafio, devido à situação em que se
encontra o ser humano pós-moderno, nos propomos desenvolver uma reflexão acerca
da possibilidade de se ter referenciais éticos capazes de resistir às constantes
transformações e mudanças a que está submetido o ser humano. Buscando uma
resposta positiva à hipótese inicialmente apresentada, procuramos, ao longo do
trabalho, apontar para a possibilidade real de se estabelecer uma ética mais humana e
de validade legítima universal. Entendemos que tal possibilidade, no entanto, está
condicionada às mudanças substanciais no comportamento humano e nas estruturas
humano-sociais responsáveis pela dinamização de valores e costumes. Para
desenvolver melhor nossa reflexão, estabelecemos três passos: primeiramente uma
abordagem ético-social a partir de Gilles Lipovetsky, seguida de uma proposta de
ética mundial de caráter ecumênico, de Hans Küng, e concluímos com uma refleo
acerca da contribuição cristã para uma ética atual, fundamentada em alguns teólogos
contemporâneos.
No primeiro capítulo, nos propusemos apresentar, na ótica de Lipovetsky,
alguns aspectos relevantes da ética na pós-modernidade. Este tempo, denominado
pelo autor como “hipermodernidade”, é fruto de um processo histórico de constantes
e profundas transformações, principalmente a partir da modernidade. De um tempo
em que era soberano o imperativo categórico do dever, de caráter marcantemente
religioso, passamos a uma época de significativa autonomia ética, a sociedade do pós-
dever. Nesse contexto, como vimos, os mais diversos aspectos humano-sociais são
afetados por um intenso processo de personalização, que atinge também a dimensão
ética. Libertando-se de uma fundamentação de caráter religioso-transcendental, a
ética assume uma feição mais subjetiva e o indivíduo passa a estar no centro de suas
preocupações. Ao observar o surgimento de novos valores ético-morais, dinamizados
pela cultura pós-moderna, Lipovetsky nos deixa claro que a aparente “renovação
176
ética” dos tempos atuais não representa um retorno à tradicional ética do dever, mas a
configuração de uma ética “indolor”, fortemente subjetivista e descomprometida.
Instaurando novos relacionamentos interpessoais, a ética pós-moderna
destrói as bases sólidas de uma cultura em que a nação, a família, o trabalho, o
partido, a religião, etc., eram instituições dignas do sacrifício pessoal. Nossa reflexão
mostrou como os deveres, antes absolutos, forçosamente foram cedendo espaço aos
direitos subjetivos e, cada vez mais sedento por auto-realização, o ser humano se
deixou conduzir pelas promessas sedutoras das inovações técnico-científicas.
Fazendo uso da proposta ética de Hans ng, no segundo capítulo de
nosso trabalho, apresentamos algumas características da sociedade pós-moderna que
revelam a urgência de um repensar ético. Como vimos, as irrupções inovadoras e os
desenvolvimentos provocados pelo homem moderno se revelaram como reais
ameaças à sobrevivência humana e à vida planetária. Esse contexto faz ecoar fortes
interpelações por uma nova ética, mais responsável e mais soliria, capaz de
responder satisfatoriamente às inquietações humanas e preencher o “vazio
existencial” do homem contemporâneo.
A ética mundial, proposta por Hans Küng, assume os contornos de uma
ética “de sobrevivência”, articulada sobre um mínimo de valores, normas e
comportamentos comuns a todas as sociedades e seriamente comprometida com a
vida, em todas as suas manifestações. Em sintonia com a proposta do autor,
destacamos a urgência dessa ética e a referência ao “princípio de responsabilidade”,
apresentado por Hans Jonas como imprescindível para uma ética que pretenda ser
esperança em tempos de inconstância. Sem ignorar a crise pela qual passam as
instituições religiosas tradicionais, apontamos para a força e influência que, segundo
Hans Küng, as religiões ainda têm na sociedade atual. Um mundo de paz, como
finalidade ética soberana, passa necessariamente pelo empenho das grandes religiões
em fomentar entre seus seguidores atitudes de respeito e diálogo com o diferente. É
de suma importância, como vimos, que a dignidade da vida humana seja o critério
ético fundamental nesse desafiador caminho ecumênico.
Levando em consideração essa significativa proposta ética, no terceiro
capítulo de nosso trabalho, buscamos apresentar a mensagem cris como um
177
autêntico caminho ético capaz de dar uma importante contribuição à sociedade
contemporânea. Com a preciosa colaboração de alguns teólogos atuais, nos
fundamentamos naquilo que é essencial no Cristianismo, a saber, a proposta salvífica
de Deus ao ser humano. Abordando alguns aspectos importantes da vida e da
mensagem de Jesus de Nazaré, percebemos nele a revelação plena de Deus que,
movido por um amor incondicional, nos propõe livre e gratuitamente o Seu Reino.
Essa proposta divina, segundo a revelão neo-testamentária, é um convite a fazer
deste mundo um lugar da realização humana, imperfeita, porém real, procurando
superar todo tipo de injustiça que ameaça a vida e, naturalmente, contradiz a vontade
de Deus.
Como resposta a essa interpelação divina, a fé cristã apresenta uma atitude
de acolhida e de compromisso com a vontade de Deus. Tendo em Jesus o arquétipo
fundamental, o cristão, e todo ser humano, é desafiado a viver o amor-serviço,
edificando um mundo mais justo, mais fraterno e mais humano. No entanto, algumas
características marcantes da pós-modernidade, como vimos no início do trabalho, se
apresentam como rios obstáculos à vivência cris. A indiferea, o individualismo
egoísta, o narcisismo, bem como a corrupção, a violência, a fome e tantas outras
mazelas humano-sociais tornam maior o desafio cristão. Cientes de que toda causa
nobre implica grandes desafios, acreditamos na proposta cristã de humanização
integral e, conseqüentemente, de salvação, como um caminho de esperança para toda
humanidade. Um caminho que, pela universalidade da Boa Nova de Jesus, se abre
indistintamente a todos os homens e mulheres de nosso tempo. À pergunta sobre a
possibilidade de ser ético, hoje, respondemos com uma certeza de fé: a essência da
mensagem cristã é fundamento para um verdadeiro compromisso ético.
A temática que desenvolvemos neste trabalho se revela cada vez mais
urgente e necessária. Nossa reflexão, não pretendeu ser uma palavra isolada.
Acreditamos que seja oportuno um aprofundamento acerca da ética pós-moderna à
luz da fé cristã. Que outros possam continuar desenvolvendo esse tema tão vital para
nossas sociedades atuais.
178
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