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Leandro Garcia Rodrigues
Alceu Amoroso Lima: Cultura, Religião e Vida Literária
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Letras do Departamento de Letras da PUC-Rio
como parte dos requisitos parciais para obtenção do
título de Doutor em Letras.
Orientador: Júlio Cesar Valladão Diniz
Rio de Janeiro, abril de 2009.
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Leandro Garcia Rodrigues
Alceu Amoroso Lima: Cultura, Religião e Vida Literária
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-
graduação em Letras do Departamento de Letras do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-
Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz
Orientador
Departamento de Letras – PUC-Rio
Prof. Maria Clara Lucchetti Bingemer
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof. Eliana Lúcia Madureira Yunes Garcia
Departamento de Letras – PUC-Rio
Prof. Marcelo Timotheo da Costa
Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO
Prof. Tânia Regina Oliveira Ramos
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas - PUC-Rio
Rio de Janeiro, 13 de Abril de 2009.
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, do autor e do orientador.
Leandro Garcia Rodrigues
Graduou-se em Letras na UCB (Universidade Castelo
Branco) em 2000. Ingressou no curso de Mestrado em
Letras da PUC-Rio em 2000, tendo recebido o grau de
Mestre em 2003. É professor adjunto de Literatura
Brasileira das FIC (Faculdades Integradas
Campograndense). Participou de inúmeros congressos nas
áreas de Letras e Teologia, tendo publicado artigos e
capítulos de livro. Em 2005, foi aprovado para o
Doutorado em Letras da PUC-Rio. Em 2007, foi
aprovado em concurso público federal para o Magistério
Militar da Marinha do Brasil, sendo empossado como
professor de Língua Inglesa do Colégio Naval.
Ficha Catalográfica
CDD: 800
Rodrigues, Leandro Garcia
Alceu Amoroso Lima : cultura, religião e vida
literária / Leandro Garcia Rodrigues ; orientador: Júlio
Cesar Valladão Diniz. – 2009.
206 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Letras)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
Inclui bibliografia
1. Letras Teses. 2. Lima, Alceu Amoroso. 3.
Catolicismo. 4. Crítica literária. 5. Imprensa. 6. Vida
Literária. I. Diniz, Júlio Cesar Valladão. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Letras. III. Título.
Para Lena e Maria Clara,
pela compreensão e apoio
recebidos.
Agradecimentos
A Deus Pai. Pela despertada em mim, traduzida em confiança nos momentos mais
difíceis da minha vida.
Ao meu orientador Júlio Diniz. Mais do que ex-professor e orientador desta tese, Júlio
foi amigo e irmão, não apenas nas idéias e comentários críticos acerca do trabalho, mas
principalmente na compreensão das minhas limitações e dos momentos dificílimos
pelos quais passei neste período de pesquisa. Digo, com carinho e reconhecimento, que
este meu título de Doutor em Letras também pertence ao Julinho. Obrigado por tudo.
Por tudo mesmo.
Às minhas queridíssimas Lena e Maria Clara. Atualmente, vocês não são apenas as
mulheres da minha vida, são também boa parte da razão desta tese. Obrigado pela
compreensão e desculpem pelo excessivo tempo no qual as abandonei. Partilho com
vocês esta tese, este título, esta vitória.
Aos meus pais e irmãos. Pelo carinho sempre dispensado, pela colaboração nos
momentos complicados, pelo incentivo e pela certeza da minha conquista.
À PUC-Rio. Desde 2000 frequento as aulas e atividades acadêmicas desta instituição,
podendo notar a seriedade e a missão enquanto uma universidade católica. Agradeço,
particularmente, a bolsa de isenção de mensalidade.
Ao Departamento de Letras. Pela a amizade das professoras Marília Rothier e Pina
Coco e das funcionárias Chiquinha, Di e Miriam. Com carinho e agradecimento.
A todos os meus ex-professores. De todos os níveis, desde a Educação Infantil até o
Doutorado. Vocês são co-responsáveis pela minha vitória.
Resumo
Rodrigues, Leandro Garcia; Diniz, Júlio César Valladão. Alceu Amoroso Lima:
Cultura, Religião e Vida Literária. Rio de Janeiro, 2009. 206p. Tese de
Doutorado Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
O objetivo principal desta tese é discutir a trajetória intelectual de Alceu Amoroso
Lima, especialmente no que diz respeito à sua vida literária. Procurou-se compreender
o contexto católico brasileiro do início do século XX, as relações Igreja-Estado, a
imprensa religiosa e a missão exercida pelos intelectuais católicos em “recristianizar” o
país. A análise crítica proposta e realizada por Alceu ganhou relevância neste trabalho,
destacando os pressupostos, teorias e contribuição ao debate sobre o Modernismo
brasileiro.
Palavras-chave
Alceu Amoroso Lima; Catolicismo; Crítica Literária; Imprensa; Vida Literária.
Abstract
Rodrigues, Leandro Garcia; Diniz, Júlio César Valladão (advisor). Alceu
Amoroso Lima: Culture, Religion and Literary Life. Rio de Janeiro, 2009.
206p. Thesis Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro.
The main goal of this thesis is to discuss Alceu Amoroso Lima´s intellectual
trajectory, specially in what concerns to his literary life. We have tried to understand
the Brazilian catholic context from the beginning of the twenty-first century, the
political relations between the Catholic Church and the State, the religious press and the
mission practiced by the catholic intellectuals in “rechristianize” the country. The
critical analysis done by Alceu had some relevance in this work, pointing out the
presuppositions, theories and the contribution to the debate about the Brazilian
Modernism.
Keywords
Alceu Amoroso Lima; Catholicism; Literary Criticism; Press; Literary Life.
Sumário
1. Introdução 10
2. Entre Tensões e Rupturas – O Tristão na Encruzilhada 22
2.1. A Igreja Triunfal 23
2.2. A Arquidiocese do Rio de Janeiro e o Pensamento Católico
Reacionário: Uma Grande Parceria 34
2.3. Intelectuais na Encruzilhada – O Centro Dom Vital 47
2.4. Antes da Conversão – Permanências e Rupturas 53
2.5. O (re)encontro com Deus 59
2.6. O outro lado do debate – Jackson odiado, a Igreja rejeitada
e Mário de Andrade 68
3. Entre a Vida Literária e a Crítica Católica 77
3.1. Sílvio Romero – Controvérsias, Críticas e Influências 80
3.2. A Crítica Literária Católica – Um Gênero Problemático 98
4. Tensões Modernistas 125
4.1. Entre Brigas e Conferências 126
4.2. (Re)pensando o Modernismo 147
4.3. Alceu e os dois Andrades 158
4.4. Lima Barreto – um Caso à parte da Crítica Amorosiana 169
4.5. A Crítica Literária – Avanços e Retrocessos 177
5. Conclusão 194
6. Referências Bibliográficas 200
Mudei e mudei porque vivi, porque viver é mudar.
Alceu Amoroso Lima, Memorando dos 90.
1.
Introdução
Neste ano, Tristão de Athayde, pseudônimo literário de Alceu Amoroso Lima,
completa noventa anos de existência. Desde o seu aparecimento, nas páginas de O
Jornal, em 1919, até os dias de hoje, Alceu e Tristão são sinônimos de erudição e
testemunho das transformações culturais pelas quais a Literatura Brasileira passou
durante o século XX. O nome verdadeiro ou o pseudônimo, juntos, separados ou
confundidos – ambos nos remetem à pessoa e à obra deste intelectual que ajudou a
pensar e realizar o Modernismo brasileiro. Com defeitos ou não, errando ou acertando,
perseguido ou perseguidor, enfim, Alceu Amoroso Lima.
É com estes diversos pares antagônicos que apresentamos este trabalho, fruto de
uma longa e difícil decisão quanto ao tema a ser escolhido. E o tema optado foi Alceu
Amoroso Lima. Mas como delimitar este complexo representante da Cultura
Brasileira? Como falar dele de uma forma a não provocar injustiças, especialmente
deixando determinados assuntos de lado? O que escolher de uma obra com mais de
sessenta livros publicados? Perguntas e mais perguntas. Dúvidas. Decisão difícil de
ser tomada.
Mas falar de Alceu é realmente complicado e desafiador. Ele teve várias faces:
crítico literário, crítico cultural, poeta bissexto, professor, ensaísta, advogado, filósofo,
teólogo e outras mais. Estas para ficar apenas no campo profissional, fora outras da sua
dimensão pessoal. Daí a dificuldade: o que escolher? Que aspecto deve ser mais
analisado? Em qual das faces apoiar a nossa pesquisa?
Depois de uma difícil decisão, optamos. Como o próprio título do trabalho
sugere, falaremos de Alceu Amoroso Lima na sua relação com a Religião – o
Catolicismo – e com a Vida Literária. Tudo numa perspectiva preferencialmente
cultural, na qual não utilizamos preciosismos biográficos. Outro aspecto relevante diz
respeito ao nosso “corte” analítico: o Alceu político, educador e advogado não foi o
objeto da nossa análise. Escolhemos o Alceu católico, crítico literário, memorialista da
nossa literatura, analista do nosso Modernismo.
Na sua interface com a Religião – o Catolicismo – abordaremos os fatos mais
relevantes da trajetória amorosiana, desde antes da sua conversão até o seu pleno
amadurecimento na fé, passando pelas inúmeras mudanças que a Igreja sofreu ao longo
11
do século XX. Na perspectiva da literatura, vamos explorar os critérios que norteiam a
idéia de Vida Literária: grupos de afinidades mútuas, amizades, desafetos, publicações,
editoras, centros de convívio como livrarias, cafés e instituições literárias, como a
Academia Brasileira de Letras, bem como outras sociedades e confrarias onde a
intelectualidade se reunia (ou se digladiava).
É por isso que o primeiro capítulo – Ente Tensões e Rupturas – o Tristão na
Encruzilhada das Decisões – versará sobre as problemáticas vividas pela Igreja Católica
no Brasil e no mundo, bem como suas consequências na obra e no pensamento
amorosiano.
A Igreja Católica viveu uma profunda ruptura do seu pensamento e de sua ação
pastoral e doutrinal na transição dos séculos XIX e XX. A “Esposa de Cristo” vinha de
uma tradição triunfalista corroborada pelo Concílio de Trento, no qual sua existência e
sua missão foram reforçadas e repensadas, especialmente após as conseqüências da
Reforma Luterana. Tal força da Igreja foi ainda perceptível nos séculos XVI e XVII.
Todavia, a partir do século XVIII, com os efeitos ideológicos do Iluminismo e da
Revolução Francesa, o triunfalismo católico começou a sentir um considerável abalo. O
ateísmo cada vez mais forte, o liberalismo econômico e a contestação da autoridade
papal foram alguns dos problemas que a instituição teve de enfrentar.
Toda essa dinâmica contestatória chegou ao século XIX de forma problemática,
principalmente se levarmos em consideração que este século também foi testemunha do
surgimento de outras ideologias contrárias à fé, como o Comunismo, o Socialismo e o
Cientificismo. Enfim, o clima anticlerical estava bem reforçado, fazendo com que a voz
da Igreja fosse uma dentre tantas vozes.
Por isso que verificamos um alto grau de indiferentismo religioso, de
agnosticismo exacerbado no seio da intelectualidade ocidental, especialmente a
brasileira, da qual trataremos com mais afinco.
É neste momento que o nosso trabalho tem início. Demonstraremos o quanto tais
transformações influenciaram determinados intelectuais brasileiros, especialmente
aquela parcela da qual Alceu Amoroso Lima foi representante e fez parte.
A esta avalanche de ideologias contrárias à doutrina católica verificamos uma
forte reação da Igreja, principalmente através da atuação dos “papas fortes”, homens
que não pouparam esforços para resgatar o que já estava perdido em termos de atuação
da instituição, ou o que poderia se perder caso nada fosse feito. Daí os governos
emblemáticos de Leão XIII e Pio X. O primeiro caracterizado pelos diálogos entre a
12
Igreja e as problemáticas sociais do seu tempo, transformando tais questionamentos em
documentos pontifícios de forte influência mundial, como a encíclica Rerum Novarum.
O segundo marcado por um forte sentimento de “caça às bruxas” cultural. Com a
famosa encíclica Pascendi, Pio X entrou para a História Eclesiástica como o papa
inimigo do Modernismo, inclusive criando um “Juramento antimodernista”, que era
proferido pelo clero e pelos leigos mais comprometidos.
Ainda a respeito de Pio X, mostraremos que o seu conceito de Modernismo não se
restringia apenas às posturas bíblico-teológicas condenadas pela Ortodoxia, mas se
estendia a diversas práticas de renovação da Cultura, particularmente à revolução
estética produzida pelas vanguardas artísticas européias. Tudo isso levou o referido
papa a declarar que o Modernismo era “a síntese de todas as heresias”.
Todos esses esforços da Santa Sé ecoaram pela Igreja universal, e a cristandade
brasileira não ficou à margem. Por isso que, ainda neste primeiro capítulo, veremos a
reação da Igreja no Brasil através da Ação Católica.
Para tal intuito, várias atitudes foram tomadas. A principal delas se deu através da
Arquidiocese do Rio de Janeiro, na ação pastoral do seu segundo arcebispo – o cardeal
Dom Sebastião Leme, ou simplesmente Dom Leme. Este recebeu plenos poderes da
Santa Sé para implantar as mudanças necessárias para “recristianizar” a sociedade
brasileira. Missão árdua e desafiadora, senão um tanto impossível. Por isso, Dom
Leme tomou certas decisões que tanta polêmica causaram no meio intelectual brasileiro.
A principal delas foi a criação do Centro Dom Vital, importante órgão ligado à
Arquidiocese carioca. O Centro Dom Vital foi fundado por Jackson de Figueiredo sob
os auspícios de Dom Leme. O cardeal via no Centro a possibilidade de resgatar boa
parte da intelectualidade perdida no forte indiferentismo religioso que reinava no país.
Um ano após esta fundação, veio a revista A Ordem, referência na divulgação do
pensamento católico conservador.
Além dessas atitudes, veremos como Dom Leme soube orquestrar certos acordos
com o Governo Vargas. A receita era bem simples: a Igreja fazia vistas grossas para
determinadas ações espúrias do Estado Novo, procurando não enfrentá-lo ou mesmo
denunciá-lo e, em troca, o governo oferecia certas benesses à autoridade eclesiástica,
como o controle de algumas pastas fundamentais como a Educação. Foi neste momento
que Alceu Amoroso Lima “costurou” a chegada de Gustavo Capanema ao Ministério da
Educação, depois de diversas negociatas e desentendimentos. Capanema foi amigo
pessoal de Alceu e acatou várias decisões deste, principalmente nos embates gerados no
13
ensino superior da Capital Federal, com o fechamento e a abertura de universidades
públicas.
Um assunto particularmente interessante que o primeiro capítulo discutirá diz
respeito à conversão de Alceu Amoroso Lima ao Catolicismo. Alceu em suas cartas ou
textos memorialísticos sempre ressaltava que recebera educação católica, embora sua
família não fosse tão assídua na religião. Mas ainda assim foi devidamente catequisado
e fez sua Primeira Eucaristia, como mandava o figurino das boas famílias burguesas.
Todavia, foi vítima do agnosticismo que reinou durante a Belle Époque. Provou o gosto
do Cientificismo e do Positivismo que dominavam boa parte do pensamento brasileiro
naquele momento levando-o, como consequência, ao abandono do Catolicismo e da
própria fé que professava. Alceu sempre lembrava que esta situação foi comum à sua
geração, todos vítimas de um pensamento filosófico que não admitia a existência de
Deus e a ação da Igreja, principalmente nos meios acadêmicos.
Tal estado de espírito permaneceu aguerrido durante as duas primeiras décadas do
século XX. Em 1922, Alceu conheceu Jackson de Figueiredo. Este já se convertera ao
Catolicismo depois de conhecer a filosofia mística de Farias Brito, e foi devidamente
acompanhado nos seus questionamentos pelo Cardeal Leme e pelo Padre Leonel Franca,
outro grande intelectual do meio católico. Alceu travou com Jackson uma
correspondência ininterrupta de seis anos, com cartas quase diárias, curtas ou
caudalosas.
Com isso, vamos acompanhar, neste capítulo, a tumultuada via crúcis que foi a
reconversão (como ele gostava de chamar) de Amoroso Lima à Igreja. Nestas cartas,
emergem as complexas personalidades de Jackson e Alceu. O primeiro fazendo
experiência de uma fé militante, combatente, por isso mesmo cognominado de “o
cangaceiro da Igreja”. O segundo, sempre na busca, virado do avesso pelas idéias de
Jackson e pela filosofia cristã de Bergson, Péguy e Maritain. O troca de missivas foi
ininterrupta até a Eucaristia que Alceu recebeu do Padre Franca, em agosto de 1928,
simbolizando a sua definitiva volta ao seio da Madre Igreja.
Meses depois, Jackson morreu num acidente ocorrido numa praia do Rio de
Janeiro, o que levou o Cardeal Leme a nomear Alceu Amoroso Lima para a direção do
Centro Dom Vital. Neste momento, teve início a trajetória de católico convicto e
militante que Alceu exerceu até a sua morte, ocorrida em 1983. Foi à frente do Centro
Dom Vital que veremos um Alceu exercendo seu posto de principal liderança leiga do
Catolicismo brasileiro. Foi de lá que suas idéias e atitudes, certas ou equivocadas,
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emergiram com grande força e repercussão, provocando as mais diferentes reações da
intelectualidade brasileira.
A mais interessante delas, na ótica desta Tese, ocorreu com Mário de Andrade. O
poeta e crítico paulista teve uma interessante troca de cartas com Alceu Amoroso Lima,
na qual ficou evidente um forte embate ideológico pró e contra o Catolicismo. Mário
não era um ateu nos moldes tradicionais desta idéia, pelo contrário, mantinha uma
espécie de fé pessoal em Deus, um resquício da sua época de católico fiel e praticante,
congregado mariano e cantor do Coral da Igreja de Santa Efigênia, no centro de São
Paulo.
Segundo Alceu, Mário foi vítima do ceticismo religioso que “dilacerou” a
mentalidade religiosa da sua geração, o que lhe provocou um repúdio pela Igreja e por
“certos católicos”, não por Deus, não pelo Divino. A partir dessas motivações,
acompanharemos o diálogo epistolar entre Mário e Alceu no que se referia às questões
religiosas, especialmente na experiência de Catolicismo que se praticava no Brasil, bem
como suas interfaces ideológicas e estéticas na cultura e no pensamento brasileiros.
Outro tópico importante e curioso que este primeiro capítulo apresentará foi a
atuação cultural, religiosa e intelectual de um frade franciscano – Frei Pedro Sinzig.
Frei Sinzig chegou ao Brasil, vindo da Alemanha, com o objetivo de aqui exercer
o seu projeto evangelizador. Era a época da total escassez das vocações brasileiras, o
laicato estava à deriva necessitando de sacerdotes que levassem adiante a missão da
Igreja. Por isso, a solução de Roma foi iniciar um grande projeto de Evangelização “ad
gentes”, enviando ao Brasil sucessivos grupos de missionários europeus de diferentes
ordens e congregações. Numa dessas levas chegou Frei Pedro Sinzig.
Embora fosse um grande pesquisador e especialista em Música, sua atuação foi
mais preponderante na Imprensa católica. Foi ele quem fundou a Editora Vozes e o seu
arsenal de atividades editoriais, todos voltados para a divulgação e circulação das idéias
católicas, atuando no Brasil inteiro, principalmente através de diferentes periódicos.
Entretanto, a principal contribuição de Sinzig foi o lançamento de Através dos
Romances – Guia para as Consciências, em 1923. Este livro possuía mais de mil
páginas e representou o que havia de melhor na prática da censura literária católica. O
frade-censor analisou centenas de obras e autores da Literatura Brasileira e estrangeira,
sempre com o intuito de levantar suas virtudes ou, principalmente, de denunciar seus
perigos em relação à fé e à ortodoxia doutrinal da Igreja. Com isso, Através dos
Romances foi largamente divulgado e distribuído pelo Brasil, ocupando lugar de
15
destaque nas bibliotecas familiares ou de instituições católicas, servindo de paradigma
para todos que desejavam desfrutar de uma “segurança espiritual” quanto ao que
estavam lendo.
Desta forma, o livro de Sinzig conseguiu realizar seu principal intuito – ser um
Guia para as Consciências. E não só isso, foi também um dos principais mecanismos
de repressão doutrinária e cultural daquele contexto, inteiramente dedicado ao programa
eclesiástico de divulgação e fortalecimento do Catolicismo e, o que é mais importante,
ajudando na criação de uma laicato consciente, culto e livre do pecado que vinha através
da má literatura.
Vamos demonstrar um pouco das ideologias de Frei Pedro Sinzig, sua idéia de
Catolicismo e sua atuação na Imprensa. Mas também analisaremos a Crítica Literária
de cunho católico produzida no seu Guia para as Consciências. Daremos destaque às
considerações do crítico-censor quanto à natureza das obras analisadas, bem como o
estilo e a maneira nos quais estes textos eram produzidos, com o seu peculiar arsenal
linguístico a favor ou contra a obra por ele criticada.
Com isso, encerramos a demonstração dos conteúdos do primeiro capítulo. Esta
parte do nosso trabalho versou nas problemáticas católicas que envolveram Alceu
Amoroso Lima e a sua época, contribuindo sobremaneira para compreendermos a sua
visão de mundo e a sua atuação religiosa e cultural.
O segundo capítulo foi intitulado Entre a Vida Literária e a Crítica Católica. Por
“Vida Literária” de um autor entendemos toda a complexa rede de relações que um
escritor pode ter: sua relação com a Crítica, sua inserção nos debates culturais típicos do
seu momento, as motivações para a escrita da sua obra, as amizades e inimizades
geradas pelo seu trabalho e, de forma particular, os círculos de convivência nos quais o
artista circulou e se fez presente. Todos esses aspectos verificaremos na perspectiva de
Alceu Amoroso Lima, e este capítulo tratará desses assuntos e da Crítica Literária
Católica, gênero complexo no que diz respeito as suas especificidades teóricas.
Começaremos tratando do contexto cultural do Rio de Janeiro nas duas primeiras
décadas do século XX, a chamada Belle Époque carioca com todas as suas dinâmicas
culturais e político-sociais. O Centro do Rio passou por uma profunda transformação
arquitetônica e urbanística, foi o Bota-abaixo promovido pelo prefeito Pereira Passos,
que demoliu prédios e estabelecimentos comerciais antigos para a construção da
Avenida Central. Foi uma clara tentativa de seguir o que ocorrera anos antes em Paris,
quando Haussmann imprimiu uma grande reforma na Cidade Luz.
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A reforma de Pereira Passos não mudou apenas a aparência da antiga Capital
Federal, modificou também o contexto cultural, os costumes e a vida social daqueles
que circulavam pelos circuitos de convivência dos intelectuais e artistas. Alceu
Amoroso Lima foi criado e conviveu neste contexto, e entender a mentalidade desta
época contribui para compreendermos as mudanças ideológicas sofridas pelo próprio
Alceu.
A contrapartida em relação ao Rio de Janeiro se deu com São Paulo, estado que
neste momento (início do século XX) já apresentava uma dianteira econômica em
relação à então Capital da República. São Paulo contava com uma poderosa oligarquia
cafeeira desde os tempos do Império, e também beneficiou-se com os frutos da
imigração estrangeira iniciada no final do século XIX. Além disso, o estado foi
testemunha de um forte processo de industrialização que se traduziu em altruísmo
cultural, isto é, a aristocracia financiou inúmeras iniciativas que fomentaram a
revolução modernista que lá ocorreu, culminando na realização da Semana de Arte
Moderna, em 1922.
Alceu Amoroso Lima registrou as diferenças quanto às posturas modernistas
dessas duas capitais, analisando as especificidades ideológicas e estéticas de cada
proposta. Utilizaremos as memórias amorosianas para acompanhar os diferentes
caminhos percorridos pelo Modernismo, especialmente as experiências tão diferentes
realizadas pelo Rio de Janeiro e por São Paulo.
Outro tema complexo deste segundo capítulo diz respeito à pessoa e à obra de
Sílvio Romero. Todos os historiadores da Literatura Brasileira falam de uma tríade da
nossa Crítica, formada por Romero, José Veríssimo e Araripe Júnior. Por uma escolha
puramente metodológica, não analisaremos a obra de Veríssimo e Araripe Júnior. Tal
opção não se deu por considerá-los menos importante para a nossa Crítica Literária, mas
porque não encontramos muitas referências ideológicas e estilísticas que os
interligassem a Alceu Amoroso Lima. O contrário se deu com Alceu em relação a
Romero, citado e reconhecido em sua importância enquanto pensador e modelo de
intelectual, sempre comprometido e apaixonado por tudo o que defendia.
Sobre Sílvio Romero, veremos um pouco do pensamento deste controverso
intelectual, conhecido como um dos maiores polemistas daquele momento. Romero foi
professor de Alceu na Faculdade Nacional de Direito, principal lócus de divulgação do
seu pensamento. Tal fato ficou registrado nas memórias de Alceu, que sempre lembrou
do antigo mestre como uma das suas marcantes influências da juventude. Além disso,
17
será analisada a importância de Sílvio Romero como intelectual, principalmente sua
complicada ação em defesa dos Centros Literários espalhados pelo Brasil, sua feroz
crítica aos meios acadêmicos do eixo Rio-São Paulo e as suas brigas com José
Veríssimo. Todo este delineamento será no sentido de percebermos o embate de
ideologias no momento que Alceu construía a sua própria personalidade intelectual,
recebendo influências de diferentes fontes e tendências.
Seguindo a linha da Crítica produzida no Brasil naquele contexto, falaremos sobre
um direcionamento analítico que ainda produz controvérsias metodológicas e teóricas –
a Crítica Literária Católica.
Para muitos especialistas, não podemos sequer utilizar a terminologia católica
para certas práticas da crítica de literatura. Todavia, optamos em utilizar o referido
termo pois ele foi o que melhor se mostrou para definir uma corrente particular da nossa
Crítica Literária. Por essas razões, será demonstrado como o Modernismo brasileiro
estava bifurcado ideologicamente entre Direita e Esquerda, entre “continuístas” e
“desbravadores”, para utilizarmos termos comuns daqueles debates.
Embora nos dias de hoje as fronteiras filosóficas e ideológicas entre Direita e
Esquerda estejam totalmente imbricadas, naquela época o contexto era bem diferente: a
Direita era reconhecida naquela pequena fração da sociedade que fazia a experiência do
status quo estabelecido, que usufruía das benesses culturais e econômicas da “situação”
política, enfim, a Direita era a própria política delineada pelas seculares oligarquias
rurais ou então pela moderna burguesia industrial.
Contrariamente, a Esquerda era vista como a voz dissonante que podia reagir
contra tal situação imposta. Seu principal braço de atuação – o Partido Comunista
Brasileiro (PCB) – era a esperança de muitos militantes para a revolução que daria uma
nova cara à História do Brasil, era a materialização dos conceitos de contestação e luta.
A partir dessas considerações, verificaremos que o Modernismo também foi
dividido entre esquerdistas e direitistas, pelo menos na avaliação de alguns artistas,
críticos e historiadores. Assim, a tendência antropofágica de São Paulo foi associada à
esquerda, principalmente no seu caráter vanguardista e revolucionário. Quanto ao Rio
de Janeiro, este ficou com um Modernismo mais brando, não primitivista, católico e
espiritualista, ou seja, de Direita. Por isso que a Crítica Literária Católica foi vista por
muitos como uma Crítica de Direita, com os seus próprios organismos divulgadores das
suas idéias.
18
Acompanharemos o surgimento da revista Festa, vislumbrada por Andrade
Muricy e Tasso da Silveira. Tal periódico foi importante para a expressão do grupo
espiritualista do Rio de Janeiro, tendo sido um importante veículo na divulgação de
idéias e de obras que seguiram um caminho diferente daquele traçado pelo Modernismo
paulista.
E ninguém melhor do que Alceu, um paladino da intelectualidade católica, para
sentir e pensar esta modalidade de Crítica Literária. O crítico carioca achava que a
Crítica era também uma forma de produção artística e, por isso mesmo, deveria abarcar
o ser humano como um todo, vendo-o através das suas inúmeras manifestações
psicológicas e sociais. Foi na revista Festa, em O Jornal e em algumas publicações
específicas que Alceu defendeu tais teses em relação à sua noção de Crítica Literária.
Para finalizar este segundo capítulo, voltaremos a falar sobre a atuação de Frei
Pedro Sinzig, o nosso incansável crítico-censor. Veremos, de forma mais específica,
como foi a produção crítica de Sinzig, assim como outros aspectos do seu livro Através
dos Romances – Guia para as Consciências. Como base teórica, faremos análises
baseadas nas teorias de Perilo Gomes, amigo pessoal de Alceu e seu colaborador no
Centro Dom Vital.
É desta forma que pretendemos concluir o segundo capítulo – com as ações
práticas de Frei Pedro Sinzig, os questionamentos (ou aconselhamentos) teóricos de
Perilo Gomes e a reflexão crítica de Alceu Amoroso Lima, tudo no afã de entendermos
melhor como se realizou a Crítica Literária Católica no Brasil.
O terceiro e último capítulo desta Tese se chama Tensões Modernistas. Como o
próprio título sugere, vamos fazer uma abordagem revisionista do processo modernista
brasileiro sob a ótica de Alceu Amoroso Lima. Este, quando completou oitenta anos de
vida, escreveu as suas Memórias Improvisadas, importante livro memorialístico no qual
o crítico fez uma completa revisão não apenas da sua vida, mas principalmente da
trajetória intelectual e artística brasileira a partir da Belle Époque até o final do
Modernismo.
Iniciaremos tratando do processo modernista brasileiro como um projeto
totalmente fissurado e heterogêneo. Nunca houve um padrão de modernidade a ser
seguido, por isso que afirmamos ter havido Modernismos, e não apenas a sua versão no
singular, como sempre é sugerido. No meio deste caldeirão estilístico, optamos por
comparar as duas principais experiências: a do Rio e a de São Paulo, fazendo sempre
19
um contraponto não apenas dos dois movimentos em si, mas principalmente dos
personagens neles envolvidos.
Tudo isso será possível demonstrar por conta da atuação de Alceu. Ele soube
circular pelas diferentes tendências modernistas, manteve contato com as posturas mais
díspares dentro do movimento – de Jackson de Figueiredo a Oswald de Andrade, como
ele mesmo gostava de lembrar. Tal fato, no Rio de Janeiro, foi mais explícito e
sintomático: na arena cultural da Capital digladiavam-se dinamistas, espiritualistas,
verdeamarelistas e primitivistas – as principais correntes do Modernismo brasileiro.
Veremos a atuação de cada uma, bem como seus esforços de legitimação ideológica e
estética.
O segundo momento deste terceiro capítulo versará sobre os desentendimentos
gerados dentro do próprio movimento, as tensões e rupturas que tanto contribuíram para
criar as diferentes faces desta Escola. A primeira delas é produto dos desentendimentos
que envolveram o escritor e diplomata Graça Aranha.
Alceu sempre afirmava que chegou ao Modernismo através de Ronald de
Carvalho e Graça Aranha. Em 1924, Graça proferiu sua famosa conferência O Espírito
Moderno, na Academia Brasileira de Letras. Nela, defendeu as experiências
modernistas e acusou a Academia de ser um “sarcófago de múmias”, isto é, um templo
das velharias literárias que em nada contribuía para o progresso cultural do Brasil. A
partir deste impasse, foi concretizada sua ruptura oficial com a Casa de Machado de
Assis, fato este que provocou grande repercussão e opiniões contra e a favor do velho
diplomata.
A Imprensa aproveitou o escândalo e deu um toque sensacionalista ao mesmo,
colocando Graça Aranha como a principal liderança do movimento e a voz dissonante
do Modernismo. Pessoalmente, Graça nada fez para retirar o epíteto de líder espiritual
dos modernistas. A partir desses fatos, veremos como a intelectualidade reagiu. Na
ofensiva, os posicionamentos de Mário e Oswald de Andrade. Na defensiva, o próprio
Alceu Amoroso Lima através das suas críticas semanais em O Jornal.
Todos esses questionamentos nos levam a “repensar” o Modernismo, como será
proposto na próxima parte deste último capítulo. Novamente, recorreremos às
memórias amorosianas para problematizar o movimento. Alceu afirmava que a nossa
modernidade foi construída sob duas colunas ideologicamente contraditórias: a Tradição
e a Vanguarda. Ambas caminharam juntas, ora se complementando, ora se estranhando.
20
Alceu viu nesta bifurcação as duas principais tendências do movimento. Com
isso, ele afirmava que dois poetas eram emblemáticos: Mário e Oswald, ou seja, os dois
Andrades. Por esta razão, vamos acompanhar as considerações críticas de Amoroso
Lima no sentido de analisar os diferentes papéis exercidos pelos poetas paulistas,
sempre contrapondo um ao outro, assim como as duas correntes por eles encabeçadas.
Oswald – a destruição vanguardista; Mário – a conciliação estilística.
Seguindo esta linha de acompanhar as rachaduras do movimento modernista,
vamos analisar a relação de Alceu e um outro complexo escritor – Lima Barreto. Alceu
escreveu um interessante artigo sobre a obra de Lima Barreto – Um Discípulo de
Machado – no qual percebemos, pelo próprio título, um tom elogioso e laudatório,
justamente o oposto do que ocorria em relação ao autor de Os Bruzundangas. O
referido artigo tem um certo tom de ineditismo, já que não encontramos outro com o
mesmo teor analítico, lembrando sempre que uma das questões que o romancista mais
reclamava era exatamente do silêncio da Crítica em relação a sua obra, isto quando a
mesma não a execrava por completo.
O último capítulo desta Tese também versará sobre Crítica Literária, porém de
uma forma mais teórica e analítica, procurando acompanhar a evolução do pensamento
de Alceu Amoroso Lima a este respeito, bem como suas diferentes visões quanto à
Crítica, ao crítico, ao autor e à obra em si.
Alceu compreendia a Crítica Literária não apenas como um exercício de erudição
hermenêutica, mas era também uma forma de criação, apoiada no binômio intuição-
expressão. Esta opinião ele foi buscar nas teorias do filósofo italiano Benedetto Croce,
por isso que Alceu afirmava que “a função do crítico não é julgar, porém compreender e
participar”. Por esses direcionamentos, Alceu batizou seu método de “Crítica
Expressionista”, em contrariedade ao Impressionismo Crítico, ainda muito vigente
naquele momento. Faremos diferentes abordagens a respeito deste assunto, procurando
perceber as mudanças paradigmáticas ocorridas não apenas na práxis analítica de Alceu,
mas também na idéia de Crítica Literária praticada no Brasil.
Prestes a finalizar nossa Tese, inverteremos um pouco a lógica da nossa pesquisa:
não falaremos do Alceu crítico, mas do Alceu criticado. Isto é, exploraremos um ensaio
que Mário de Andrade escreveu de título Tristão de Athayde, publicado em Aspectos da
Literatura Brasileira. Neste trabalho, Mário fez sintomáticas análises da pessoa e da
obra crítica de Alceu, denunciando tendências assaz eurocêntricas na práxis amorosiana,
mas também reconhecendo o seu potencial erudito.
21
A última consideração que faremos diz respeito ao afastamento de Alceu da
Crítica especificamente literária. A partir da sua conversão, Alceu repensou sua ação
intelectual e religiosa, desta forma, continuou a produzir textos críticos, porém estes
versavam mais numa crítica cultural-político-social, e não apenas literária. Este
momento testemunhou uma certa distância do Tristão, pseudônimo e pessoa literária de
Alceu Amoroso Lima. Por isso, nosso último texto analisado será uma carta do Alceu
ao Tristão, como exemplo simbólico de cisão entre as duas instâncias.
Em linhas gerais, estes serão os assuntos que trataremos neste trabalho. Como se
trata de uma introdução, fizemos aqui uma panorâmica temática, deixando para as
próximas páginas os respectivos desenvolvimentos de tais propostas.
Uma questão puramente metodológica diz respeito a certas nomenclaturas que
utilizaremos, especialmente aquelas que se referem a posicionamentos político-
religiosos. A primeira delas diz respeito ao trinômio conservador/reacionário/liberal.
Tais termos são de extrema complexidade quanto a sua origem e aplicabilidade,
principalmente nos dias de hoje, quando as fronteiras ideológicas estão cada vez mais
porosas e “contaminadas”. Por isso, neste trabalho, utilizamos o vocábulo conservador
como sinônimo de manutenção e continuísmo de determinados valores antigos e já
canonizados pela Tradição. Já o termo reacionário foi usado como sintoma de defesa
intransigente desta mesma Tradição, como reação ideológica e prática a todo e qualquer
pensamento que desafiasse o status quo da Política ou da Religião. Por liberal
entendemos o oposto de tudo anteriormente afirmado, ou seja, toda e qualquer postura
que se caracterizasse pela flexibilidade de opiniões, pela abertura às novas propostas e
tendências.
Esperamos que o nosso trabalho ocupe um lugar nos debates intelectuais
brasileiros, que contribua na fomentação de novas abordagens não apenas sobre a
biografia de Alceu Amoroso Lima mas, principalmente, sob a sua complexa e caudalosa
atuação como intérprete do Brasil. Mais ainda, pretendemos que esta Tese ajude na
interpretação deste complexo e controverso movimento cultural que foi o Modernismo
brasileiro.
2.
Entre Tensões e Rupturas – o Tristão na Encruzilhada
Permanências, rupturas e, acima de tudo, tensões – inúmeras tensões. Tais
vocábulos resumem um pouco do itinerário espiritual, intelectual e pastoral de Alceu
Amoroso Lima, o Tristão de Athayde. Quando morreu em Petrópolis, no dia 14 de
agosto de 1983, Alceu deixou uma gigantesca obra literária que dialogou com as mais
diferentes áreas do pensamento acadêmico – gigantismo este que também foi verificado
na sua própria vida ao longo dos seus noventa anos.
Em julho de 1920, Capistrano de Abreu escreveu uma carta ao historiador
português João Lúcio de Azevedo na qual anexava um artigo de um certo Tristão de
Athayde, publicado n’O Jornal, e informava ao seu respeito: “Moço formado em
Direito, diretor de Companhia, casado com a filha de um milionário. Seu verdadeiro
nome é Amoroso Lima. Não o conheço.” (Abreu, 1954, p.166). Capistrano aludia a
uma das atividades mais caras a Alceu: a de utilizar a Imprensa como Tribuna de suas
idéias e anseios, de brigas e amizades, de encontros e desencontros.
Alceu nasceu no Rio de Janeiro, em 11 de dezembro de 1893, numa família rica e
tradicional. Seu pai era dono de uma Companhia Têxtil que, mais tarde, o próprio
Alceu presidiu por mais de vinte anos, abandonando-a nos anos seguintes à sua
conversão ao Catolicismo. Tal fato marcou, de forma decisiva e fundamental, toda a
sua trajetória pessoal e intelectual, pois criou uma dicotomia biográfico-ideológica.
Num primeiro momento temos um Alceu católico reacionário, um verdadeiro cruzado
desta Igreja que sempre olha o século XX pelas lentes do ceticismo e da desconfiança
religiosos, tal visão eclesial persistiu ao longo das duas décadas posteriores à conversão
amorosiana. O outro Alceu foi brotando e se construindo aos poucos, numa constante
abertura à modernidade, dialogando com os sinais do tempo e não tendo medo e
suspeita do mesmo. Tal postura foi adotada doutrinalmente pelo Concílio Vaticano II,
sendo Alceu um dos seus maiores entusiastas entre o laicato católico brasileiro. Com
isso, torna-se impossível analisar as rupturas e tensões do pensamento amorosiano
ignorando o papel fundamental que o Catolicismo nele exerceu.
23
2.1.
A Igreja Triunfal
No início do século XX, a Igreja Católica continuava sendo uma das instituições
mais estruturadas do Ocidente, principalmente do ponto de vista hierárquico. Triunfal,
tridentina e estável – adjetivos que se colocam no bojo da sua organização universal.
Desde as resoluções do Concílio de Trento, a Igreja atravessava os séculos e as suas
dificuldades de formar e consolidar o seu triunfalismo, dentro e fora da orbe católica,
aumentava cada vez mais. Sua glória foi demasiadamente questionada pelos
movimentos liberais de natureza política ou cultural a partir da segunda metade do
século XVIII, particularmente a Revolução Francesa e o seu braço acadêmico e
cultural– o Iluminismo.
A difusão desses ideais filosóficos pela Europa abalou significativamente a
influência católica em algumas esferas da vida pública permitindo, desta forma, que o
século XIX tivesse início e se desenvolvesse num clima de forte ceticismo religioso,
sentido não apenas no mundo católico, mas também nas demais denominações cristãs
tradicionais. Somem-se a este clima o surgimento e a circulação de ideologias
contrárias à ortodoxia da Igreja, como o Comunismo, o Marxismo, o Subjetivismo
1
e o
Cientificismo
2
. O Comunismo é considerado como “demônio”, “praga”, “doença” a ser
extirpada pelos “cruzados” da Igreja – clérigos ou intelectuais leigos comprometidos
com a Sé Apostólica (Roma), como foi o caso de Alceu Amoroso Lima após a sua
conversão, bem como de todos aqueles da sua geração comprometidos com os preceitos
da catolicidade. Com a publicação de O Capital, Marx trouxe à baila uma série de
questionamentos colocando em relevo a falácia social promovida pela acumulação de
capital, fato tão comum nas economias capitalistas.
Com essa pluralidade ideológica em circulação pela cristandade, a Igreja teve no
longo pontificado do papa Leão XIII (1878-1903) o início de uma nova era,
especialmente marcada pelo governo pastoral de “papas fortes” dos pontos de vista
1
A Igreja reconhece o Subjetivismo como a vivência exagerada do Individualismo, tão crescente a
partir do século XIX e por isso mesmo condenado, já que o indivíduo tem a possibilidade de criar os seus
“próprios” meios de conduta independente da religião, chocando-se frontalmente com a “sã” Doutrina.
2
Um termo muito usado nos documentos eclesiásticos deste momento é Naturalismo, entendido como
a expressão artístico-comportamental influenciada pela idéia de que a Ciência conduz à Verdade. Uma
outra defesa do Cientificismo é a negação da noção de Transcendência divina, reduzindo a experiência
humana ao materialismo que tanto a Igreja tem repudiado ao longo do seu Magistério.
24
político, hierárquico e doutrinário: Pio X (1903-1914), Bento XV
3
(1914-1922), Pio XI
(1922-1939) e, principalmente, Pio XII (1939-1958).
O século XX se iniciou para a Igreja com o final do pontificado de Leão XIII (em
1903) e a ascendência de Pio X à Sé Apostólica, um dos papas mais reacionários. Este
empreendeu uma verdadeira “caça às bruxas” da contemporaneidade. Convicto de que
a Igreja, como esposa de Cristo, era a detentora da Verdade, Pio X estruturou o seu
governo sobre um intenso trabalho intelectual através da escrita de inúmeras encíclicas e
outros documentos pontifícios.
A mais famosa e tradicionalista é a encíclica Pascendi Dominici Gregis, ou
simplesmente Pascendi, de 08 de setembro de 1907. Tal documento foi inteiramente
dedicado ao então “temido Modernismo” ou “Movimento Modernista”, que para a
Igreja não era apenas o conjunto de manifestações artísticas renovadoras como
comumente se concebe, mas também qualquer forma ou proposta de renovação das
estruturas político-sociais que ignorassem a Moral e a Tradição católica, bem como a
própria ortodoxia doutrinária. Segundo Giacomo Martina,
Perante a crise do Positivismo e um renovado interesse pelos problemas religiosos,
sacerdotes inteligentes e sinceramente zelosos percebiam que o vazio de muitos espíritos
podia ser preenchido somente por um Catolicismo menos ligado a esquemas tradicionais,
que causavam uma insuperável desconfiança na mentalidade moderna. Em geral se sentia
a necessidade de superar o esquema tradicional de uma sociedade organizada
hierarquicamente, de conhecer a validade de um progresso social que não descesse do
alto, mas que fosse conquistado de baixo, por meio da luta, de abandonar o
abstencionismo para participar de modo organizado da vida política. (Martina, 1997, p.
77)
Eram anos marcados pela rebeldia de pensamento, pelas rupturas com paradigmas
canonicamente seguros, de ceticismo e insegurança. Neste sentido, a Igreja percebia
que diversos setores da sua organização não mais concordavam cegamente com as
ordens advindas do Trono de Pedro. A voz do Papa era uma das tantas vozes que
buscavam, naquele momento, algum tipo de ressonância na sociedade. A justiça
desejada não era apenas a divina, mas também a dos homens, conquistada a duras penas
através das mais diferentes lutas de classes. Daí a necessidade de uma militância, de um
engajamento político sócio-transformador. Para Martina,
3
Bento XV é aqui considerado um dos “papas fortes” não tanto pelo envolvimento na política do seu
tempo mas, principalmente, pela dimensão doutrinal do seu pontificado, com as inúmeras encíclicas e
outros documentos de sua autoria que muito influenciaram a Igreja.
25
Difundiam-se, portanto, nos ambientes católicos no início do século, um sentimento de
mal-estar, uma ânsia de atualização, que apresentava todo um amplo leque de atitudes,
ligadas entre si quando muito por um estímulo psicológico facilmente compreensível, não
por um verdadeiro nexo intrínseco objetivo: do genérico reformismo de tipo rosminiano
4
se passava a um movimento social, a uma exigência de renovação dos estudos, sobretudo
positivos, para acabar depois numa tentativa de dar novas bases a todo o Cristianismo.
(Martina, 1997, p.79)
O clima de reformismo era geral, estava impregnado no contexto histórico da
época, especialmente o europeu. Por isso, a Igreja não podia passar incólume por essa
avalanche de transformações, a onda renovadora adentrou pela Praça de São Pedro e se
fez marcar pelas mais diferentes propostas e atitudes, resultando em erros e acertos. A
este respeito, Martina explica:
Em síntese, a Igreja deve ser completamente renovada, abandonando as vestes já
superadas; para atingir esse fim, é preciso agir de dentro da Igreja, não abandoná-la nem
separar-se dela, evitando o erro dos protestantes, que tornou estéril a ação deles. É
preciso, ao contrário, imitar os jansenistas
5
, divulgando na Igreja, de modo escondido e
sem as trair, as novas idéias e, se for o caso, é preciso resistir aos superiores, porque há
uma desobediência à letra que constitui uma autêntica obediência ao espírito. Desses
pressupostos nasce a tática do anonimato, amplamente seguida pelos modernistas, que
contribuiu para enervar a hierarquia e explica em parte seu endurecimento. (Martina,
1997, p. 82)
Certamente, a hierarquia se viu diante de um sério problema – o século XX se
iniciava para a Igreja de forma perigosa, heterodoxa. E havia um dado a ser
considerado: não pairava sobre os ares eclesiásticos nenhum tipo de “nova Reforma”,
isto é, não se cogitava uma separação eclesial com Roma. A busca era por reformas
4
Antônio Rosmini Serbati (1797-1855). Rosmini foi uma das figuras mais controversas do clero
italiano no século XIX., por isso mesmo adquirindo inúmeros inimigos dentro e fora da Igreja, tamanha
era a sua crença na necessidade de reformas estruturais desta instituição. Sua produção intelectual se
concentrou nos estudos filosóficos, produzindo uma gigantesca obra marcada por um alto grau de
complexidade. Suas principais teses foram: a liberdade religiosa, a finalidade do poder temporal, a opção
pelo pluralismo democrático.
5
Com o intuito de reformular globalmente a vida cristã, o holandês Cornélio Jansen (1585-1638) deu
início a um movimento que abalou a Igreja Católica durante os séculos XVII e XVIII. Descontente com o
exagerado racionalismo dos teólogos escolásticos, Jansen - doutor em teologia pela Universidade de
Louvain e bispo de Ypres - uniu-se a Jean Duvergier de Hauranne, futuro abade de Saint-Cyran, que
também pretendia o retorno do Catolicismo à disciplina e à moral religiosa dos primórdios do
Cristianismo. Os jansenistas dedicaram-se particularmente à discussão do problema da graça, buscando
nas obras de Santo Agostinho elementos que permitissem conciliar as teses dos partidários da Reforma
com a doutrina católica. Jansen ensinava que a graça é totalmente imerecida e, por isso, era concedida ao
Homem por Deus através da predestinação. Assim, as teses jansenistas seguiam a tradição do pensamento
agostiniano, e não diferente do pensamento de Calvino. Suas proposições centrais foram declaradas
heréticas pelo papa Inocente X, em 1653.
26
internas, nos diferentes meandros da sua estrutura. Novamente, é Giacomo Martina
quem esclarece:
Justamente naqueles anos, os estudos positivos, históricos e bíblicos tinham feito grandes
progressos, sobretudo por obra dos estudiosos alemãs, em sua maioria protestantes e
racionalistas, e pareciam pôr em discussão muitos dados tradicionais da doutrina católica,
como a natureza da inspiração, a interpretação do Gênesis, a composição do Pentateuco, a
origem do livro de Isaías, o valor histórico dos livros do Novo Testamento. As dúvidas
acabavam se estendendo à própria divindade de Jesus, a natureza da sua mensagem. Era,
portanto, urgente a exigência, vivamente sentida nos ambientes mais abertos, de
aprofundar os problemas e de levar em conta os novos dados, aceitando o que neles havia
de válido. (Martina, 1997, p. 78)
Percebe-se que, para as instâncias mais flexíveis da Igreja, a dúvida e a postura
cética não eram de todo um entrave negativo. Ao contrário, era uma oportunidade de
aprofundar certas pesquisas e questionamentos que contribuiriam, cada vez mais, para o
enriquecimento da própria doutrina, fortalecendo a fé. Desta forma, a razão era um
importante sustentáculo para apoiar a ortodoxia.
Genericamente, é o conjunto dessas mudanças que chamamos de Modernismo ou
Movimento Modernista. Este termo era muito comum naquele momento para expressar
qualquer tipo de renovação: artística, social, intelectual, religiosa e comportamental.
Não demorou muito para que a alta hierarquia se pronunciasse integralmente contrária a
tais rupturas. Por isso, a palavra “modernismo” se tornou sinônimo de vanguarda para
alguns e perigo para outros. Esclarecendo ainda mais o conteúdo do termo
“modernista’, temos a palavra do Cardeal Dom Eugênio Sales:
O nome “modernismo” encobre uma variedade de proposições, cujas raízes mergulham
no liberalismo do século XIX. Incluía o conceito de “Igreja” em relação à ordem política
e social; à renovação da Teologia e Exegese; o tipo de inserção da pastoral no mundo; à
atualização das instituições eclesiásticas. Ao lado de aspectos positivos, essa corrente de
pensamento, condenada pela Santa Sé, induzia ao esvaziamento do conteúdo da mesma
fé. Predomina a ambigüidade, como hoje. Na França, as conseqüências foram
desastrosas, de modo particular, para o clero jovem. No Modernismo, havia o que vemos
atualmente: a pretensão de permanecer na comunidade eclesial, com a esperança de
reformá-la, a partir do interior. Essa expectativa terminou com a “Pascendi” e quase
todos se submeteram.
6
As vanguardas artísticas surgidas pela Europa, especialmente na França, não eram
consideradas pela Igreja como expressão da Arte, eram “distorções” ou simplesmente
“lixo artístico”, utilizando aqui as expressões usadas nos documentos pontifícios. Por
isso, a idéia de “modernismo” não se restringia apenas à abertura doutrinal, mas
6
SALES, Eugênio de Araújo. O Passado e o Presente na Igreja. In: Boletim da Revista do Clero
da Arquidiocese do Rio de Janeiro, ano 45, agosto de 2008, p. 68.
27
também às diferentes possibilidades de renovação e vanguardismo, quer fossem
doutrinárias ou simplesmente artísticas. Desta forma, podemos afirmar que o programa
anti-modernista da Igreja se alargava às diferentes instâncias da sociedade,
principalmente à Educação, à Cultura e à Imprensa. Para Pio X:
Já chegamos aos artifícios com que os modernistas passam as suas mercadorias. Que
recursos deixam eles de empregar para angariar sectários? Procuram conseguir cátedras
nos seminários e nas Universidades, para tornarem-se insensivelmente cadeiras de
pestilência. Inculcam as suas doutrinas, talvez disfarçadamente, pregando nas igrejas;
expõem-nas mais claramente nos congressos; introduzem e exaltam-nas nos institutos
sociais sob o próprio nome ou sob o de outrem; publicam livros, jornais, periódicos. Às
vezes um mesmo escritor se serve de diversos nomes, para enganar os incautos,
simulando grande número de autores. Numa palavra, pela ação, pela palavra, pela
imprensa, tudo experimentam, de modo as parecerem agitados por uma violenta febre. —
Que resultado terão eles alcançado? Infelizmente lamentamos a perda de grande número
de moços, que davam ótimas esperanças de poderem um dia prestar relevantes serviços à
Igreja, atualmente fora do bom caminho. Lamentamos esses muitos que, embora não se
tenham adiantado tanto, tendo contudo respirado esse ar infeccionado, já pensam, falam e
escrevem com tal liberdade, que em católicos não assenta bem. (apud Rausch, 2000, p.
23)
É bem explícita a mentalidade do papa contrária ao movimento renovador que era
“a síntese de todas as heresias”, o câncer que a catolicidade deveria abortar a qualquer
custo, pois a existência da Igreja dependia da manutenção da Tradição e dos valores que
sempre a deram sustentabilidade e autoridade, não importando o que tal “cruzada”
contemporânea provocasse nas opiniões contrárias. Para tal, um dos principais alvos
seria o meio acadêmico e intelectual:
Todo aquele que tiver tendências modernistas, seja ele quem for, deve ser afastado quer
dos cargos quer do magistério; e se já tiver de posse, cumpre ser removido. Faça-se o
mesmo com aqueles que, às ocultas ou às claras, favorecerem o Modernismo, louvando
os modernistas, ou atenuando-lhes a culpa, ou criticando a escolástica, os Santos Padres,
o magistério eclesiástico, ou negando obediência a quem quer que se ache em exercício
do poder eclesiástico. (Idem, p. 24)
Não satisfeito apenas com a encíclica Pascendi, o Santo Ofício apresentou
naquele mesmo ano o documento Lamentabili, que estabelecia certas punições aos
religiosos “envolvidos com o Modernismo”. Mais tarde, em 1910, Pio X lançou um
novo decreto, a Constituição Apostólica Sacrorum Artistitum, que impôs a todo o clero
o “Juramento Antimodernista”, a ser proferido pelos intelectuais e jornalistas católicos,
professores de instituições de ensino ligadas à Igreja e pelos padres aos seus respectivos
bispos, este juramento devia ser repetido anualmente, na cerimônia dos Santos Óleos,
28
isto é, na Quinta-feira Santa, quando se renovam os compromissos sacerdotais. É
interessante conhecer os principais pontos deste “juramento”:
Eu, ______________, firmemente abraço e aceito cada uma e todas as definições feitas e
declaradas pela autoridade da Igreja, especialmente estas verdades principais que são
diretamente opostas aos erros destes dias. [...] Eu acredito com fé igualmente firme que a
Igreja, Guardiã e mestra da Palavra Revelada, foi instituída pessoalmente pelo Cristo
histórico e real quando Ele viveu entre nós, e que a Igreja foi construída sobre Pedro, o
príncipe da hierarquia apostólica, e seus sucessores pela duração dos tempos. [...] Eu
rejeito inteiramente a falsa representação herética de que os dogmas evoluem e se
modificam de um significado para outro diferente do que a Igreja antes manteve.
Condeno também todo erro segundo o qual, no lugar do divino Depósito que foi confiado
à esposa de Cristo para que ela o guardasse, há apenas uma invenção filosófica ou
produto de consciência humana que foi gradualmente desenvolvida pelo esforço humano
e continuará a se desenvolver indefinidamente. Além disso, com a devida reverência, eu
me submeto e adiro com todo o meu coração às condenações, declarações e todas as
proibições contidas na encíclica Pascendi e no decreto Lamentabili, especialmente as que
dizem respeito ao que é conhecido como a história dos dogmas. [...] Finalmente, declaro
que sou completamente oposto ao erro dos modernistas, que mantém nada haver de
divino na Tradição sagrada; ou, o que é muito pior, dizer que há, mas em um sentido
panteísta, com o resultado de nada restar a não ser este fato simples - a colocar no mesmo
plano com os fatos comuns da história - o fato, precisamente, de que um grupo de
homens, por seu próprio trabalho, talento e qualidades continuaram ao longo dos tempos
subseqüentes uma escola iniciada por Cristo e por Seus Apóstolos. (Documentos de Pio X
e de Bento XV, 2003, p.95)
Sabemos que quando foi promulgado, o Juramento era proferido apenas pelo
clero. Mais tarde, o mesmo foi repetido também pelas demais categorias assinaladas,
bem como pelos editores e livreiros das editoras religiosas. Nas catedrais mais
importantes, esta cerimônia era acompanhada de um imenso aparato litúrgico. É
interessante perceber o caráter coeso entre este texto e a própria Pascendi, uma vez que
neste momento existia um verdadeiro programa de controle ideológico por parte da alta
hierarquia em relação às bases, aumentando ainda mais a dimensão dogmática do texto.
O perigo do indiferentismo religioso sempre foi combatido pela Igreja, daí o medo e a
necessidade de se jurar contra as teses modernistas ora em voga: “declaro que sou
completamente oposto ao erro dos modernistas, que mantém nada haver de divino na
Tradição sagrada”. Outra questão a ser considerada é o caráter combativo da
intelectualidade católica deste momento a ponto de alguns, como Jackson de
Figueiredo, adquirirem uma postura tridentina de defesa da fé.
É importante lembrar que Alceu Amoroso Lima recebeu sua formação escolar
neste período, já que se forma em Direito no ano de 1913. Os centros de formação
católicos do mundo inteiro iniciaram a jornada a qual o papa Pio X classificou de
“missão da Igreja”, daí o fato de inúmeras editoras católicas surgirem neste momento,
29
bem como colégios e faculdades reorganizarem seus currículos de modo a “proteger
seus indefesos pupilos das investidas modernistas”. O que dizer da proposta de
Marinetti de “destruir as bibliotecas e catedrais”, proposto no Manifesto Futurista? Por
isso o “bom papa” não cansa de aconselhar, agora em relação às políticas de publicação
de livros:
Compete, outrossim, aos Bispos providenciar para que os livros dos modernistas já
publicados não sejam lidos, e as novas publicações sejam proibidas. — Qualquer livro,
jornal ou periódico desse gênero não poderá ser permitido aos alunos dos seminários ou
das Universidades católicas, pois daí não lhes proviria menor mal do que o que produzem
as más leituras; antes, seria ainda pior, porque ficaria contaminada a mesma raiz da vida
cristã. — Nem diversamente se há de julgar dos escritos de certos católicos, homens aliás
de não más intenções, porém faltos de estudos teológicos e embebidos de filosofia
moderna, que procuram conciliar com a fé e fazê-la servir, como eles dizem, em proveito
da mesma fé. O nome e a boa reputação dos autores fazem com que tais livros sejam lidos
sem o menor escrúpulo, e por isto mesmo se tornam assaz perigosos para pouco e pouco
encaminharem ao Modernismo. (Idem, p.25)
Não é de admirar que tal modelo de Igreja assustou e afastou uma considerável
parcela do mundo intelectual daquele momento
7
(o próprio Alceu), contribuindo para
acirrar cada vez mais a noção de que a Igreja era um eterno sinônimo de retrocesso e
conservadorismo, o que nesta prática pastoral de fato o era. No Brasil, mais
especificamente no Rio de Janeiro, encontramos neste momento um intenso programa
de ajuste da máquina eclesiástica às deliberações de Pio X. Um clérigo e sua ação
pastoral merecem nossos registros: Frei Pedro Sinzig.
Franz Sinzig (nome de batismo) nasceu na Alemanha em 1876 e chegou ao Brasil
em 1893, ordenando-se padre da Ordem Franciscana em 1898, na cidade de Salvador.
A carência de padres no clero brasileiro era muito forte naquela época, o que levou o
episcopado brasileiro a intervir junto ao papa Leão XIII no sentido de que Roma
capitaneasse um movimento de envio de religiosos europeus às terras brasileiras. Era
uma espécie de “re-colonização” religiosa do Brasil, daí o fato de a Província
Franciscana da Imaculada ser de fundação alemã, atuando especificamente nos estados
do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo. Por estas razões entendemos a chegada
de Frei Pedro Sinzig para atuar na missão franciscana aqui sediada.
7
Muitos intelectuais viam com certo ceticismo a possibilidade de uma (re)conversão à Igreja Católica
por sentirem a possibilidade de ter a liberdade ameaçada. É o caso de Mário de Andrade, que na sua fase
adulta da vida artística se dizia “um católico mal resolvido”, oscilando entre a liberdade de expressão e o
medo de não crer em Deus.
30
Sinzig é enviado, em 1910, à região serrana fluminense para ajudar na
estruturação da revista Vozes de Petrópolis, embrião da atual Editora Vozes. Leva
consigo uma impressora Windsbraut para viabilizar a produção de livros, especialmente
os didáticos, já que nesta época o Positivismo era muito forte na incipiente produção
didática brasileira, espalhando sua ideologia totalmente contrária aos assuntos da fé, ao
ensino religioso escolar e à intromissão da Igreja nos assuntos do Estado. Os padres
franciscanos viam tal fato como a principal missão a ser empreendida naquele
momento. O lançamento da revista Vozes de Petrópolis, em 1907, teve uma
considerável repercussão nos meios católicos brasileiros, sendo divulgada e distribuída
nas principais dioceses do país. O periódico era mensal e, em 1909, já possuía 1.700
assinantes e diversas vendas avulsas, um número grande para um país com 18 milhões
de habitantes e uma taxa exorbitante de analfabetos. Sinzig fundou e dirigiu outras duas
revistas religiosas: Eco Seráfico (1912) e A Resposta (1916). Ele controlou essa
produção durante doze anos (1908-1920), dando ênfase a esse “marketing católico” que
girava em torno de periódicos, livros teológicos, didáticos e alguns romances. Segundo
Aparecida Paiva, estudiosa da História da Leitura no Brasil,
O êxito da literatura didática estimulou os franciscanos a imprimir obras de outros
gêneros, sobretudo romances, contos e novelas. Segundo opinião da época, os romances
existentes eram realistas e fortes em demasia. Não havia literatura apropriada para
moças, senhoras e gente de alma limpa. E assim surgiram alguns romances como
Violetas, A Filha de Maria, Ramalhete de Flores e Magma Pecatrix. (Paiva, 1997, p.38)
Destes romances, dois são de autoria do próprio Sinzig: Ramalhete de Flores
(1907) e Violetas (1913). É interessante saber algumas particularidades a respeito do
comércio editorial brasileiro deste momento; a este respeito, Delso Renault dá uma
interessante panorâmica:
É apreciável o comércio livreiro. Inúmeros leilões de obras clássicas. Algumas livrarias
são organizadas. Mas qualquer loja de uma só porta presta-se para o comércio. Quando
atraca no cais algum barco proveniente da Europa, o livreiro anuncia “novidades do
paquete”. São muitas livrarias espalhadas pelo centro urbano. A Garnier vem à frente
como livraria e editora. A Luso-Brasileira, a Luso-Britânica, a de Nicolau Alves, a de
Cruz Coutinho, a Martins e a Econômica, do Largo do Paço, são algumas delas. Em
todas podemos encontrar obras clássicas francesas e inglesas. Livros de literatura e
ciência. Compêndios de Medicina. Numa se vendem obras de Luís de Camões, de João
Francisco Lisboa, do Pe. Manuel Bernardes; noutras se encontra o teatro cômico
português, por Antônio José da Silva, o teatro francês de Moliére, Lamartine, Victor
Hugo; noutras ainda, o leitor pode adquirir o Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes,
a obra de Ortega e Frias; ou Lord Byron e Octave Feuillet, Pinheiro Chagas,
31
Chateaubriand, Júlio Verne e clássicos. [...] São poucas as novidades literárias de autores
do país. As famílias estão a saborear Ressurreição, Histórias de Meia Noite, Contos
Fluminenses e Falenas. Quando o nome de Machado de Assis apareceu pela primeira vez
em público – diz o anúncio da Garnier – disseram todos: é um jovem escritor que promete
muito. (Renault, 1982, p.271)
Por essa longa listagem percebemos um pouco do gosto literário da parcela leitora
daquele contexto. Não se vê nesta seleção nenhum “nome apropriado às moças,
senhoras e gente de alma limpa”, como desejavam Sua Santidade e o nosso Frei Pedro
Sinzig, estes como metonímias da Igreja institucional. A partir da segunda metade do
século XIX, as livrarias tornaram-se pontos de reunião obrigatórios de escritores,
intelectuais, políticos e estudantes. Em 1894, Louis Baptiste Garnier iniciou a
construção e instalação da sua famosa livraria, sendo totalmente concluída por seu
irmão Hippolyte Garnier em 1900. Frequentada pelas figuras mais ilustres do meio
cultural daquele momento, na Garnier circulavam nomes como Machado de Assis, José
Veríssimo, Coelho Neto, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e todas as estrelas literárias da
constelação carioca.
Sinzig lançou, em 1923, o seu mais importante livro: Através dos Romances: guia
para as consciências. Como o próprio título sugestiona, trata-se de uma obra
gigantesca que beira as mil páginas na qual ele analisa, critica e classifica centenas de
obras e autores brasileiros e estrangeiros, especialmente aqueles mais consagrados nas
primeiras décadas do século XX. O autor fez três diferentes classificações: livros
aprovados, obras aprovadas com certas restrições e livros totalmente proibidos e
condenáveis, uma espécie de Índex Librorum Prohibitorum dos tempos atuais. O
manual de Sinzig logo se espalhou por todo o país, recebendo diversos elogios das
autoridades eclesiásticas e dos “leitores de alma limpa”, sendo amplamente divulgado
nas paróquias e nos colégios católicos. Além destes mecanismos, Sinzig aproveitou a
máquina gráfica da própria Editora Vozes através das suas revistas, calendários,
almanaques e comerciais nas capas de diferentes livros.
No prefácio do seu guia, ele diz claramente que a Livraria Garnier, a maior do Rio
de Janeiro naquela época, era um verdadeiro “pomar de laranjas podres com livros
envenenados. A leitura de um só desses frutos infernais estraga a fantasia do leitor
talvez para sempre.” (Sinzig, 1923, p.15). O apostolado de Sinzig e da Vozes não era
uma prática eclesial isolada, estavam ancorados no próprio Magistério da Igreja.
Voltando à Pascendi, de Pio X:
32
No entanto não basta impedir a leitura ou a venda de livros maus; cumpre, outrossim,
impedir-lhes a impressão. Usem pois os Bispos a maior severidade em conceder licença
para impressão. — E visto como é grande o número de livros, é costume em certas
dioceses designar, em número conveniente, Censores, por ofício, para o exame dos
manuscritos. Louvamos com efusão de ânimo essa instituição de censura; e não só
exortamos, mas mandamos que se estenda a todas as dioceses. Haja, portanto, em todas as
Cúrias episcopais censores para a revisão dos escritos em via de publicação. Sejam estes
escolhidos no clero secular e regular, homens idosos, sábios e prudentes, que ao aprovar
ou reprovar uma doutrina tomem um meio termo seguro. Terão eles o encargo de
examinar tudo o que precisar de licença para ser publicado. O Censor dará o seu parecer
por escrito. Se for favorável, o Bispo permitirá a impressão com a palavra Imprimatur,
que deverá ser precedida do Nihil Obstat e do nome do Censor. Nunca se dará a conhecer
ao autor o nome do Censor, antes que este tenha dado seu juízo favorável, a fim de que o
Censor não venha sofrer vexames, enquanto examinar os escritos ou depois que os tiver
desaprovado.
Tais fatos demonstram muito bem os caminhos que a Igreja Católica tomava nos
primeiros anos do século XX. O mecanismo da censura é uma prática antiga no
Magistério da Igreja, remonta ao início dos tempos apostólicos quando havia uma série
de textos apócrifos questionáveis à luz dos cânones eclesiásticos, especialmente alguns
que colocavam em dúvida a dualidade da natureza de Cristo: Homem e Deus ao mesmo
tempo. Tais censores deveriam proceder analiticamente ligados à Tradição: “Sejam
estes escolhidos no clero secular e regular, homens idosos, sábios e prudentes”. A
prudência crítico-dogmática era o ponto principal para a manutenção do aparelho
doutrinário. Por isso que, após as exortações de Pio X, várias dioceses criaram as
chamadas Comissão de Doutrina da Fé, todas com o intuito de acompanhar e monitorar
a produção intelectual, católica ou não. Na Arquidiocese do Rio de Janeiro isto não foi
diferente, D. Sebastião Leme logo apressou-se em criar tal mecanismo de “patrulha
ideológico-doutrinal” que avançou aos limites livrescos, seus censores emitiam opiniões
inclusive sobre os jornais e revistas publicados na época. Para Aparecida Paiva,
É nesse esforço de resistência que a Igreja vai gerar aqueles que pronunciarão o discurso
da censura, do veto, prescrevendo os bons livros e, na maioria das vezes, condenando
muito mais do que promovendo. Fazendo circular uma concepção de leitura que
confunde literatura e apologética, a Igreja ainda reafirma que não cabe a si apenas a tarefa
de transmissão. Ela reproduz, enquanto instituição, a cultura dominante que serve à
manutenção do status quo; simultaneamente, produz cultura com especificidade, na
relação que estabelece com a produção cultural como um todo. (Paiva, 1997, p.59)
Esta manutenção da Igreja gloriosa também será abraçada por Alceu Amoroso
Lima, especialmente nos anos que seguiram ao seu retorno ao seio eclesiológico, em
1928. Alceu se torna esta espécie de “paladino da fé” a combater nas diferentes
33
trincheiras ideológicas do seu momento histórico. Os meios utilizados para tal
empreitada são os de sempre: a imprensa, as publicações, as associações leigas (como o
Centro Dom Vital e diversas congregações religiosas), determinados espaços de
convivência como confeitarias, livrarias, cafés e confrarias. Isto sem dizer no principal
mecanismo da Igreja: o púlpito. É o próprio Alceu quem elogia a pessoa e a atuação
pastoral do Frei Pedro Sinzig:
A pena passou a ser uma espada para esse franciscano cuja vocação não era para a
mansuetude de São Francisco e sim para o seu ardor missionário, que o levou a enfrentar
os infiéis e a provocar literalmente a prova de fogo em face dos mulçumanos. Lançou-se,
então, Frei Pedro numa admirável campanha, hoje registrada no livro O Nazismo sem
máscaras: fatos e documentos, publicados sob o pseudônimo João Bauer dos Reis. Não
era um pensador; um filósofo ou um escritor sutil e original. Era um narrador singelo,
espontâneo, realista, que punha sempre a sua pena ao serviço da verdade da causa
católica. (Apud Paiva, 1997, p.45)
Entretanto, esta batalha ideológica e religiosa vai se estruturar de uma forma
muito mais orgânica e atuante, especialmente com o grupo de intelectuais católicos ao
qual Alceu vai juntar-se logo após a sua conversão.
34
2.2.
A Arquidiocese do Rio de Janeiro e o Pensamento Católico
Reacionário: Uma Grande Parceria
Apesar de modesta, a produção intelectual católica dos anos 20 foi capaz de
revelar alguns pensadores de grande envergadura, como é o caso de Jackson de
Figueiredo, Sobral Pinto e o próprio Alceu. Seus inspiradores estavam ao nível de um
Joseph-Marie de Maistre, defensor da monarquia absolutista e da Igreja e Louis
Veuillot, este representante do catolicismo reacionário que atacava tanto a ciência
quanto a idéia de liberdade. Jackson de Figueiredo logo se transformou em figura
destacada no combate ao Liberalismo e ao Comunismo na década de 20, aproximando-
se politicamente das posições fascistas. O perigo de uma Revolução Comunista depois
da experiência russa de 1917 reforçou as posições reacionárias na Europa e no Brasil
que, após a Primeira Grande Guerra, ganharam grandes reforços na ascensão dos
fascistas, nazistas e outros grupos similares.
Ainda sem o envolvimento direto da alta hierarquia da Igreja, pensadores
católicos conservadores como Jackson de Figueiredo e Plínio Corrêa de Oliveira
promoveram as condições mais adequadas para que os grupos reacionários cerrassem
fileiras contra o Comunismo, e também defendendo a Igreja contra os positivistas,
maçons, espíritas, protestantes e evolucionistas. Essa é uma longa história da reação
àqueles considerados inimigos do Catolicismo, começando pelo epicentro ideológico-
conservador: a Arquidiocese do Rio de Janeiro e o seu então cardeal-arcebispo, Dom
Sebastião Leme.
Nas primeiras décadas do século XX, a Arquidiocese carioca era a mais
importante de todo o Brasil, principalmente pelo fato de que as decisões nela tomadas
repercutiam em nível nacional com rapidez. Leve-se em consideração que o Rio de
Janeiro era a capital federal, o que aproximava ainda mais a Arquidiocese do Rio à
Presidência da República. Por esta razão, a Santa Sé nomeou, em 1905, o então
arcebispo do Rio – D. Joaquim Arcoverde – o primeiro cardeal não apenas do Brasil,
mas de toda a América Latina. Tal tradição de dialogar diretamente com as lideranças
nacionais será uma marca dos prelados da Capital federal. Com a morte de D.
35
Arcoverde, ocorrida em 1930, ascende ao trono do Palácio São Joaquim Dom Sebastião
Leme
8
, que neste momento era arcebispo de Olinda e Recife.
Logo quando tomou posse da Sé carioca, Dom Leme foi prontamente nomeado
Cardeal pelo papa Pio XI e exerceu uma considerável liderança na Igreja Católica do
Brasil. Dom Leme era afinado com os meios romanos do poder eclesiástico, era amigo
pessoal do Cardeal Eugênio Paccelli, futuro papa Pio XII, e comungava da missão que a
chamada “neocristandade” (católicos convictos que defendiam a ortodoxia da Igreja)
deveria exercer em todos os âmbitos da sociedade. É o próprio Tristão de Athayde
quem o define:
Quanto a Dom Leme foi no seio do episcopado que assumiu o papel de precursor. [...]
Como poucos, Dom Leme soube harmonizar idealismo e realismo, autoridade e
tolerância. Tinha um senso agudo de como lidar com as pessoas, conhecendo suas
qualidades, debilidades e fraquezas. [...] Desfrutava ainda de grande prestígio, dentro e
fora da Igreja, coisa, aliás, que não se envaidecia. [...] Mais tarde Dom Leme iria revelar
suas inegáveis qualidades de político ao fundar a Liga Eleitoral Católica, vencendo
inclusive resistências dentro do próprio clero, como foi o caso de um arcebispo da época,
para quem ou se fazia a união da Igreja com o Estado ou não se fazia nada. Creio que
posso afirmar ter sido Dom Leme um precursor no Brasil desse novo espírito do
Catolicismo, fiel à Tradição e ao passado, mas voltado para o futuro. (Lima, 1973, p.
232)
Este aparente paradoxo entre manter a ortodoxia e vislumbrar o futuro será o
drama vivido pelos diversos setores da Igreja, principalmente a partir do pontificado de
Pio XII, de quem Dom Leme era fiel colaborador. O cardeal afirmava que o Brasil era
um país tradicionalmente católico, mas apesar disso havia uma incompreensível e
lamentável contradição: a influência pública do Catolicismo era quase nula. Não havia
presença significativa dos católicos no campo de ação social, na política ou no mundo
intelectual. Verifica-se que sendo a religião da maioria, o Catolicismo atingia
relativamente pouco as lideranças do país. É o próprio Dom Leme quem afirma:
Na verdade, os católicos somos a maioria do Brasil, no entanto católicos não são os
princípios e os órgãos da nossa vida política. Não é católica a lei que nos rege, leigas são
as nossas escolas, leigo o ensino, enfim, na engrenagem do Brasil oficial não vemos uma
só manifestação de vida católica. Somos uma maioria que não cumpre os deveres sociais.
Obliterados em nossa consciência, os deveres religiosos e sociais, chegamos ao absurdo
de formarmos uma grande força nacional, mas uma força que não atua e não influi, uma
força inerte. Somos, pois, uma maioria ineficiente. Nossas trincheiras católicas estão
sendo invadidas pelo inimigo. Espiritismo, Protestantismo, livre-pensamento, ódios
sectários, Anarquismo, o respeito humano, a descrença, enfim, é o indiferentismo
8
O Palácio São Joaquim é, ainda hoje, a residência oficial dos arcebispos do Rio de Janeiro.
36
religioso penetram em nossos arraiás e cidades. Alerta, soldados de Cristo. Mas os
soldados são poucos, os soldados jazem por terra, sonolentos, feridos de tédio, mortos de
torpor. Eis chegado o momento das associações católicas. Elas que saiam no meio dos
católicos que dormem, que saiam gritando: Camaradas, que fazeis? Dormis? Morreis?
Levantai-vos... Jesus Cristo vos chama. Mortos, de pé! (apud Matos, 2003, p.48)
Uma palavra bem define este pontificado – tensão. Pio XII sobe ao Trono de
Pedro juntamente com a Segunda Guerra e encontra uma Igreja profundamente dividida
entre aqueles que querem manter o status quo triunfal e inquestionável, e aqueles que
querem algum tipo de renovação doutrinária e estrutural. Nem sempre este papa define
muito bem em qual das trincheiras ele se coloca, colaborando para uma série de
interpretações errôneas acerca do seu Magistério. Segundo o pesquisador Marcelo
Timotheo da Costa, os anos de governo de Pacelli
Foram dias, portanto, marcados pela tensão. Imagem reforçada pela atuação de Pio XII
que, como já salientei, mesmo permitindo certos avanços (alguns notáveis para a época),
presidiu substancial fechamento teológico-pastoral nos últimos anos do seu pontificado –
comprometendo, inclusive, propostas de renovação anteriormente toleradas ou permitidas
pela Santa Sé. É consenso entre os especialistas que, na primeira metade do século XX,
apesar dos olhares atentos da hierarquia, vêm à lume importantes movimentos que, de
uma maneira ou outra, semearam entre as hostes católicas princípios afinados com a
modernidade. Refiro-me à “nova Teologia” e aos movimentos bíblico, litúrgico, de
leigos e dos padres operários. (Costa, 2006, p.117)
No final dos anos 40, na França, havia um número aproximado de cem padres que
eram operários, trabalhavam normalmente nas fábricas e eram assalariados. O objetivo
deste grupo era aproximar-se, cada vez mais, do laicato operário para sentir suas
mazelas in loco. Aos poucos, Roma repudiou-lhes publicamente, ameaçando-os de
excomunhão caso não largassem definitivamente o trabalho assalariado, o pavor da
Santa Sé era a possível “contaminação”, nestes padres, dos ideais comunistas tão
comuns nos ambientes de trabalho.
Por isso, a decisão final da Sagrada Congregação para o Clero se deu em 1953,
proibindo definitivamente a atuação pastoral de tais sacerdotes. Tal fato despertou a ira
dos meios católicos mais liberais e progressistas, especialmente os dominicanos
franceses Yves Congar e Dominique Chenu, dois dos maiores teólogos católicos do
século XX. Amoroso Lima teve grande interesse pelo fato, disseminando nos seus
artigos e trabalhos o total apoio à causa dos padres operários, tanto que fez questão de
conhecer pessoalmente os padres Congar e Chenu numa de suas viagens à França.
37
Mas voltando ao Rio de Janeiro de Dom Leme e Alceu, temos o cardeal ocupando
a Arquidiocese de 1930 a 1942, quando de sua morte. Dom Leme se esforçava para
consolidar a Ação Católica Brasileira (ACB). A Ação Católica (AC) foi, no mundo
inteiro, um amplo trabalho da Igreja para reafirmar a autoridade da mesma, bem como
sua eternidade e infalibilidade. Entretanto, tal atividade pastoral deveria ser feita com
uma “nova mão de obra”: o laicato comprometido.
A AC foi idealizada pelo papa Pio XI através da encíclica Mystici Corporis
Christi, de 1932, e seu objetivo é bem claro: “Constituída para auxiliar a Hierarquia -
adiumentum ad apostolatum hierarchicum, tem a Ação Católica por finalidade a
dilatação do Reinado de Jesus Cristo, pois para isso foi instituída a Hierarquia
Eclesiástica”
9
. A Ação Católica desenvolveu-se através de mecanismos laicos bem
definidos quanto ao seu lugar de atuação: a JUC (Juventude Universitária Católica), a
JEC – nos meios estudantis secundaristas, a JOC – nos meios operários em geral, a JAC
– nos ambientes agrários e as já conhecidas congregações leigas: Apostolado da Oração,
Legião de Maria, Vicentinos etc.
É bem clara a idéia de colaboração do leigo, porém sob a tutela da hierarquia que
o governa e direciona. O início da “missão” de Alceu está diretamente ligado a este
apelo da Igreja, já que ele atua diretamente nos meios da JUC e do Centro da Boa
Imprensa (CBI), órgão de controle moral fundado por Frei Pedro Sinzig, que será amigo
de Alceu a partir da conversão deste. Daí o caráter apologético dos textos e do
direcionamento intelectual do nosso Tristão de Athayde nas décadas de 20 e 30.
Uma importante associação laica criada neste momento foi o DNIRI -
Departamento Nacional de Imprensa, Rádio e Informação. A Ação Católica Brasileira
(ACB) confiava ao DNIRI a incumbência de organizar uma rede de diários e periódicos
católicos que pudessem envolver todo território nacional a serviço da Igreja e da Pátria.
Acompanhando esse mesmo raciocínio, o DNCT: Departamento Nacional de Cinema e
Teatro foi sugerido para que se pudesse proclamar de maneira eficiente e com urgência
no país a “Legião da Decência”, que segundo os membros da ACB era relevante em
diversas nações censurando as iniciativas que difundiam idéias perniciosas à moral
católica.
Finalmente, de igual importância estratégica para a ACB, era a implantação do
DNDFM: Departamento Nacional de Defesa da Fé e da Moral. Na sua atuação, este
9
Disponível no endereço: http://www.pliniocorreadeoliveira.info
38
departamento devia receber assistência e auxílio dos demais departamentos e de toda a
Ação Católica Brasileira, isto é, era dele e para ele que convergiam todas as grandes
ações da ACB com a finalidade de garantir que os princípios espirituais básicos da
instituição fossem coletivamente respeitados.
A importância da Arquidiocese do Rio se explica: foi através dela que toda a Ação
Católica Brasileira se desenvolveu, pois foi necessária uma série de diálogos e
negociatas com os governos civis para que os trabalhos religiosos se estruturassem
10
.
Confirmando essa tendência ao promoverem alianças tácitas, o Cardeal Dom Sebastião
Leme, considerado o chefe-supremo da Igreja Católica no Brasil e o presidente Getúlio
Vargas “oficializaram” o mútuo apoio Igreja-Estado, proclamando a força do
Catolicismo no país, do qual, aliás, se valeria o novo regime político em muitas ocasiões
para justificar suas ações contrárias aos grupos considerados inimigos da Pátria, da
moral e da ordem e que, portanto, eram também inimigos da Igreja. De acordo com
Henrique Matos, tal “fórmula” cooperativa era bem simples:
A ordem cristã e a ordem e a instabilidade do Estado Novo eram praticamente idênticas.
A Igreja parecia, além do mais, integrada no trabalho social do Estado populista.
Ocasionalmente, o Estado utilizava e financiava as estruturas sociais ou educativas da
Igreja, e a Igreja servia-se das estruturas do Estado (escolas públicas, institutos militares)
para sua obra pastoral. (Matos, 2003, p.84)
Se olharmos para o nosso passado político, sabemos que quando a República foi
proclamada no Brasil, uma série de transformações político-religiosas teve início em
âmbito nacional. Em 7 de janeiro de 1890 é decretada a separação entre Igreja e Estado.
A República acaba com o Padroado
11
, reconhece o caráter leigo do Estado e garante a
liberdade religiosa. Em regime de pluralismo religioso e sem a tutela estatal, as
associações leigas, editoras e paróquias passam a editar jornais e revistas para combater
a circulação de idéias anarquistas, comunistas e protestantes.
10
Levemos em consideração a imensa quantidade de instituições de caridade que surgem neste
momento, como asilos, orfanatos e outros centros filantrópicos, muitos dos quais a partir de doação de
prédios e terrenos por parte dos governos civis, por isso a tessitura de inúmeros acordos entre Igreja e
Estado.
11
O padroado consistia numa complexa relação de poder e autoridade exercidos pelo Estado em
relação à Igreja. Desde a época do Brasil Colônia, era o soberano (português ou brasileiro) quem definia
as principais ações do mundo eclesiástico, como nomeações de padres e bispos, construção de igrejas e
capelas e inúmeros benefícios ao clero, este não podia questionar as ações do Estado. A Igreja Católica,
embora súdita do poder temporal, beneficiava-se de tal regime por ser considerada a religião oficial do
Brasil, sendo proibida a liberdade religiosa no território nacional.
39
Para os mais reacionários, o regime republicano tal como foi implantado no
Brasil, era a síntese de um pensamento anti-religioso que se espalhava por todo o
Ocidente. O Positivismo exagerado que configurou as ideologias da República Velha
era percebido nas diferentes variantes da vida pública e da nova ordem social e
religiosa. O século XX teve início com fortes embates ideológicos entre republicanos e
simpatizantes do antigo regime monárquico. A Igreja se dividia: certos setores mais
liberais viam com certo otimismo tal separação, já que a mesma dava liberdade ao clero
de atuar da maneira como melhor lhe convinha, especialmente no trabalho de
evangelização.
Entretanto, a outra ala mais reacionária se concentrava na classe média alta e
tinha um forte intuito de restaurar o antigo regime, uma vez que o mesmo dava certas
seguranças às instituições católicas, isto sem dizer que a partir do final do século XIX
algumas denominações protestantes chegaram legalmente ao Brasil, dada a liberdade
religiosa oferecida pela República. A respeito de tal fato, o historiador dominicano
Oscar Lustosa oferece certas idéias:
O grande propósito da corrente católica conservadora em favor da Restauração da
monarquia no Brasil concentrava-se em criar um clima de aversão e hostilidade ao regime
republicano. Os partidários do conservadorismo monárquico timbravam em enfatizar a
sua fragilidade política, as carências econômicas e, sobretudo, o “ateísmo social”, vigente
nos textos legais. Ultramontanos
12
por opção, não sediam um palmo de terreno às idéias
políticas liberais e nelas viam a fonte de desagregação da sociedade cristã. (Lustosa,
1993, p.25)
Os católicos afirmavam que o regime republicano estava totalmente afastado de
Deus, e dada a importância do Catolicismo na História do Brasil, tal sistema se
mostrava desacreditado por natureza e fadado à descrença e à desconfiança. Em 1925, o
papa Pio XI publica a encíclica Quas Primas, onde afirma que “por estarem separados
miseravelmente de Deus e de Jesus Cristo é que os homens caíram, da felicidade de
outros tempos, nos abismos dos males atuais” (Pio XI, 1925, p.3). É neste grande
abismo que a mentalidade católica brasileira se via naquele momento, um imenso
12
O termo designa, especialmente no Catolicismo francês, os fiéis que atribuem ao papa um
importante papel na direção da fé e do comportamento do homem. Na Idade Média, o termo era utilizado
quando elegia-se um papa não italiano (“além dos montes”). Ao longo dos séculos XIX e século XX, o
termo “ultramontanismo” apareceu como uma reação ao mundo moderno e como a opção por uma
orientação política desenvolvida pela Igreja, marcada pelo centralismo romano, um fechamento sobre si
mesma e uma recusa ao contato com as diversas idéias e correntes ideológicas da contemporaneidade.
40
quantitativo que não tinha peso de decisão e influência proporcionais. Num dos seus
inúmeros discursos publicados nos jornais da época, afirma Dom Leme:
Felizmente, os mentores da República começam a capacitar-se de que a honestidade do
ideal democrático lhes impõe o dever de não fechar ouvidos aos clamores da alma
religiosa do povo. Que se não desviem deste caminho. É o único que corresponde aos
interesses superiores da pátria. É o único que pode salvar o Brasil. Ou os governantes
tomam conhecimento da alma e da consciência do povo, acabando de vez com esse
laicismo obsoleto que teima em ignorar os valores espirituais, ou o Brasil será o eldorado
eterno da politicagem de nomes que digladiarem no circo em que a alma da pátria é a
única vítima a ser estraçalhada. (apud Matos, 2003, p.59)
Finalmente, o Estado brasileiro passou a ouvir as vozes que vinham dos púlpitos,
especialmente aquelas do Rio de Janeiro. Tal fato se desencadeou a partir do governo
Arthur Bernardes (1922-1926). O ano que teve início o governo deste presidente
“mineiro e católico” é emblemático: 1922 presenciou a Semana de Arte Moderna, o
centenário da Independência, a fundação do Partido Comunista Brasileiro, a Revolta do
Forte de Copacabana e a criação de inúmeros sindicatos, principalmente em São Paulo.
Todos esses eventos prediziam os ares diferentes daquele momento histórico,
especialmente caracterizado por um certo sentimento de anarquia político-cultural.
As primeiras décadas do século XX também presenciaram o soerguimento da
Igreja Católica no Brasil, com a criação de inúmeras dioceses, a definição do trabalho
missionário, o cuidado com a formação clerical e um verdadeiro “agito” no laicato
através dos inúmeros congressos e manifestações apoteóticas da fé, com estádios e
praças lotados para as celebrações de missas campais que atraíam milhares de pessoas.
Toda essa movimentação não passou incólume pelo governo brasileiro, este via na
Igreja uma possibilidade de reorganização política do próprio Estado através de uma
cooperação mútua. Afinal, estamos falando de uma força moral e religiosa que,
segundo o próprio governo reconhecia, unia e sensibilizava a quase totalidade da nação.
Por que ignorar tal atuação religiosa? Neste sentido, o governo de Arthur Bernardes foi
enfático na reaproximação dos poderes temporal e religioso.
Isto se deu através de diversos encontros, jantares, festas e homenagens
concedidas pelo presidente ao então arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Joaquim
Arcoverde e a Dom Leme, seu bispo coadjutor (auxiliar) a partir de 1921
13
. Segundo
13
Dom Leme chega ao Rio de Janeiro em 1921 para auxiliar Dom Joaquim Arcoverde que estava
idoso e doente; todavia, a morte do velho cardeal somente se deu em 1930, quando Dom Leme assume a
Arquidiocese do Rio até 1942.
41
alguns jornais da época, era mais fácil encontrar o cardeal no Palácio do Catete do que
no Palácio São Joaquim, e junto dele um séquito de lideranças, políticos, empresários,
escritores e intelectuais católicos, principalmente Félix Pacheco, então ministro das
Relações Exteriores, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras.
Bernardes solicita de forma explícita a colaboração da Igreja para conter a onda
revolucionária que se espalhava em diversos setores da sociedade, principalmente na
Educação. Ou seja, o governo é vítima das suas próprias políticas educacionais,
incentivou o Positivismo de forma exacerbada e neste momento não vê outra saída
senão “recristianizar” as escolas e institutos de formação, é quando se fala do ensino
religioso na educação pública, um verdadeiro atentado aos ideais positivistas da
República laica. A instituição eclesiástica se torna, desta maneira, um instrumento
eficaz para (re)moralizar o país e restabelecer a ordem e a autoridade.
A articulação entre a Arquidiocese do Rio e o governo varguista foi intensa, tendo
Alceu Amoroso Lima como mediador entre as duas instâncias. A problemática em
torno da Educação se mostrava bem complexa, não eram apenas as novas escolas
protestantes que preocupavam a Igreja Católica, mas também o ensino leigo privado
através de certos estabelecimentos particulares que não tinham qualquer orientação
religiosa. Em 1932 foi lançado o Manifesto Pioneiro da Escola Nova, assinado por
inúmeros educadores, dentre os quais Heitor Lyra, Fernando Azevedo, Anísio Teixeira e
Cecília Meireles. Segundo Riolando Azzi, as principais reivindicações deste
documento foram:
A consideração do aluno como elemento participante de sua própria formação cultural,
através do estímulo à pesquisa; substituição do método memorizador por uma valorização
do raciocínio e da imaginação; ênfase na cultura científica, considerada mais útil e
necessária para a sociedade urbana e industrial em formação; ação do Estado em favor da
democratização do ensino. (Azzi, 2008, p.306)
A Igreja viu estas propostas com um considerável receio, pois as mesmas
contradiziam diretamente o projeto eclesiástico de (re)sacralização da sociedade, no
qual o ensino religioso deveria ocupar um lugar de destaque. Foi neste momento que
teve início a articulação de Amoroso Lima e do Padre Leonel Franca
14
junto às
14
A respeito do Pe. Leonel Franca, lembra Odilão Moura: “Conquistou, no seu tempo, o coração e as
inteligências dos contemporâneos, católicos e não-católicos. Só com o pronunciar de seu nome, impunha-
se respeito e veneração. Onde estivesse trazia sempre ‘a maior glória de Deus’. Atuou o Padre Franca
multiforme e eficientemente nos meios culturais brasileiros. Diretor espiritual de universitários e
intelectuais, estes encontravam nele o orientador prudente e sábio.” (Moura, 1978, p.139). Lembremos
que foi do Pe. Franca que Alceu recebeu a Eucaristia, em 1928, marcando de forma simbólica o seu
retorno ao seio da Igreja.
42
instâncias do poder federal, principalmente do Ministério da Educação. Para Amoroso
Lima, “Só a aliança do Estado com a Igreja Católica e com a família pode dar à nossa
instrução pública a base da realidade nacional, de universidade cultural e de
espiritualidade cristã que o laicismo desastroso lhe roubou.” (Lima, 1939, p.19)
Outra “fórmula” bem simples: recatolicizando o ensino seria possível, nas
gerações futuras, construir um Estado teocrático católico, cujo trinômio de sustentação
ideológica seria orquestrado pela Igreja, pelo Estado e pela família. Tal intenção se
mostra totalmente descabida, principalmente porque as lideranças católicas tinham dois
parâmetros: a época do padroado (o Brasil Colônia, quando a Igreja era suprema no
Brasil) e a Idade Média, quando o teocentrismo e a romanização eram os principais
valores ocidentais.
Por isso, a intelectualidade católica, apoiada pela hierarquia, começou a articular
um nome que atendesse aos interesses da instituição, alguém de confiança que pudesse
reagir contra as inúmeras iniciativas que ameaçavam o projeto da neocristandade
brasileira, este nome foi Gustavo Capanema. Dos diversos colaboradores de Vargas,
vários eram gaúchos de tendências claramente positivistas e contrários à Igreja, Minas
Gerais sempre teve um Catolicismo de tendência e expressão coloniais, com um povo
arraigado das tradições religiosas, o que se verificava também na classe dominante.
Todavia, um outro político mineiro além de Capanema se sobressaiu neste
momento: Francisco Campos, ambos consideravam o suporte da instituição eclesiástica
um fator decisivo para evitar mudanças radicais na ordem social. Segundo John Wirth,
“a geração política de Francisco Campos e Gustavo Capanema estava mais solidária às
causas da Igreja do que seus pais, de pensamento mais livre” (Wirth, 1982, p.180).
Ambos vinham de uma experiência mineira de educação bastante conservadora, já que
na década de 20 o governo daquele estado iniciou uma série de mudanças educacionais
que obrigou o retorno do ensino religioso confessional às escolas públicas, bem como a
criação de cartilhas e livros de caráter dogmático e apologético. Na opinião de Simon
Schwartzman,
Capanema assumiu o Ministério da Educação e Saúde em 1934 como parte de acordo
geral que então se estabelecera entre a Igreja e o regime de Vargas, proposto anos antes
por Francisco Campos. [...] Era homem de confiança da Igreja e encarregado de levar à
frente seu projeto educacional e pedagógico (Schwartzman, 2000, p.48)
Homem forte de Vargas, Capanema manteve um intenso contato com os artistas e
intelectuais da época, principalmente os modernistas. Amoroso Lima o conheceu em
43
1933 por intermédio de Carlos Drummond de Andrade e logo se tornaram amigos,
dados os interesses de Alceu no que dizia respeito às políticas educacionais brasileiras.
Alguns anos, depois Alceu foi convidado pelo ministro para dirigir a Universidade do
Distrito Federal, posterior Universidade do Brasil. Numa carta a Mário Casassanta,
Alceu afirma:
Creio que uma orientação fascista, como teve o movimento legionário em boa hora
iniciado pelo Capanema, pelo Campos, por você, pelos novos mineiros, só pode ser útil a
Minas e ao Brasil, se mantiver o primado da inteligência como meio de defesa da
supremacia da Fé. De outro modo, através do hegelianismo, do primado da razão,
continuaremos apenas no evolucionismo, no relativismo que provocam o ceticismo e que
uma nacionalidade como a nossa, sem estrutura certa, sem ideais definidos, sem unidade
geográfica e sem critério político, poderá ser o nosso desastre definitivo. (apud
Schwartzman, 2000, p.65)
A alusão a uma “orientação fascista” se justifica, uma vez que o regime de
Mussolini era bem visto por diversos setores católicos por associar
desenvolvimentismo, nacionalismo forte e a adoção do Catolicismo como religião
oficial da Itália, a ponto de o Dulce ter criado o Estado da Igreja, isto é, o Vaticano,
através do Tratado do Latrão (1929). Essas experiências políticas no Brasil receberam o
apoio explícito das autoridades eclesiásticas. Efetivamente, a ênfase dada pelo Estado
varguista à ordem, ao patriotismo e ao anticomunismo coincidia com o ideário católico
da época, inspirado no modelo italiano
15
.
Do outro lado das opiniões, estavam aqueles que defendiam com veemência uma
prática educacional totalmente afastada do incenso clerical. A reação do grupo
escolanovista foi muito forte, usando os mesmos mecanismos de sempre, a Imprensa e
algumas associações educativas. O principal embate se deu na fundação da
Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1935, e o principal articulador desta
corrente foi o seu primeiro reitor, Anísio Teixeira. Segundo ele,
Muitos julgaram que a universidade poderia existir no Brasil, não para libertar, mas para
escravizar. Não para fazer marchar, mas para deter a vida. Conhecemos todos a
linguagem deste reacionarismo. [...] Dedicada à cultura e à liberdade, a Universidade do
Distrito Federal nasce sob o signo sagrado, que a fará trabalhar e lutar por um Brasil de
amanhã, fiel às grandes tradições liberais e humanas do Brasil de ontem (apud Azzi,
2008, p.313).
15
Em discurso de 08-01-1923 homenageando Felício dos Santos, fundador do jornal católico A União,
Alcebíades Delamare parafraseou as palavras programáticas de Mussolini quando do seu discurso de
tomada do poder e início do regime fascista: “A Itália deve a sua vitalidade ao Catolicismo que, com seus
preceitos de renúncia, de penitência, de sacrifício, de asceticismo, leva os homens ao combate das suas
paixões. Graças a ele, podemos nós, italianos, conservar o pleno vigor espiritual. A nova Itália será a
campeã do Catolicismo, que é a mais sublime das religiões.” (apud Matos, 2003, p. 95)
44
Interessante esclarecer que tais educadores faziam questão de professar o
Catolicismo como sua religião, sua formação humana, mas eram completamente
avessos à idéia de uma “educação católica”. O próprio Anísio Teixeira não escondia de
ninguém sua sólida formação escolar e humana adquirida quando foi aluno do colégio e
da faculdade dos padres jesuítas, em Salvador. Não precisa dizer que a reação do grupo
ligado a Alceu foi imediata, este mesmo tratou logo de escrever a Capanema se
mostrando indignado com os rumos iniciais da Universidade:
A recente fundação de uma universidade municipal com a nomeação de certo diretores de
faculdades que não escondem suas idéias e pregação comunistas foi a gota d’água que fez
transbordar a grande inquietação dos católicos. Para onde iremos, por este caminho?
Consentirá o governo em que, à sua revelia mas sob a sua proteção, se prepare uma nova
geração inteiramente impregnada dos sentimentos mais contrários à verdadeira tradição
do Brasil, e aos verdadeiros ideais de uma sociedade sadia? É importante organizar a
Educação e entregar os postos de responsabilidade neste setor importantíssimo a homens
de toda a confiança moral e capacidade técnica (e não a socialistas como o diretor do
Departamento Municipal de Educação
16
) – tudo são tarefas de um governo que deve levar
adiante imediata e infatigavelmente, pois delas dependem a instabilidade das instituições
e da paz social. (apud Azzi, 2008, p.314)
Capanema se viu numa difícil situação: conciliar os dois polos inteiramente
contrários que se digladiavam na política educacional federal. Ele tinha por Alceu uma
grande consideração, uma verdadeira dívida, pois foi por intermédio de Amoroso Lima
e Dom Leme (em 1934) que Getúlio Vargas escolheu Capanema para o Ministério da
Educação, fato este que o ministro nunca mais se esqueceria em relação ao velho Alceu,
chamando-o de “meu eterno conselheiro”. Em 1937, com o endurecimento do regime
de Vargas e as constantes pressões da Arquidiocese do Rio, Capanema destituiu Anísio
Teixeira da reitoria da UDF e a entregou a Amoroso Lima.
Na dificuldade de administrar tal instituição já impregnada de valores, currículos e
profissionais contrários à Igreja, Alceu inicia o seu processo de extinção, que se deu de
forma definitiva em 1939. Em carta a Capanema, Mário de Andrade lamentou e
censurou o fechamento daquela universidade. Segundo o autor de Macunaíma, a UDF
era “o único lugar de ensino mais livre, mais moderno, mais pesquisador que nos
sobrava no Brasil” (apud Azzi, 2008, p.314). É o lado dogmático e inflexível de Alceu
que entrava em cena mais uma vez, seguido da sua capacidade ímpar de negociação e
articulação.
A solução encontrada foi fundar uma nova instituição, a Universidade do Brasil
(UB), atual UFRJ, e tal fato ocorreu no mesmo ano de 1939. Alceu deu uma nova
16
Trata-se de Anísio Teixeira.
45
cartada reacionária exigindo que os antigos professores da UDF não fossem
readmitidos, bem como os alunos também não poderiam ser (re)matriculados. Em carta
aberta ao Jornal do Commércio, Fernando de Azevedo declarava que “Amoroso Lima
no seu culto pela ordem, pela disciplina e pela hierarquia representa o que há de mais
conservador no pensamento nacional” (apud Azzi, 2008, p.316).
Alceu teve total liberdade nos rumos desta nova empreitada do governo varguista,
recebendo vários elogios por parte da Presidência da República. Em carta a George
Dumas, Capanema expõe as limitações de Alceu para a contratação de professores e
demais profissionais para esta universidade:
A faculdade vai ficar sob a direção do Sr. Alceu Amoroso Lima, católico, amigo de
Jacques Maritain. Daí não encontrar eu boa acolhida para nomes que sejam conhecidos
por suas tendências opostas à Igreja ou dela divergentes (apud Azzi, 2008, p.315).
Percebe-se um certo tom inoperante do Ministério da Educação quanto à atuação
de Amoroso Lima, lembremos que o principal fator em jogo era o bom equilíbrio dos
interesses do Estado Novo com a Igreja. Uma demonstração clara disso é que em
janeiro deste mesmo ano, no dia de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, o
Cardeal Leme celebrou uma gigantesca missa na Praia do Russel, na Glória, tendo uma
imensa bandeira brasileira como cenário montado atrás do altar-mor. O símbolo
nacional estava ladeado pela bandeira do Vaticano e pelo brasão da Arquidiocese
carioca, numa explícita demonstração de união e compromissos mútuos entre as três
instâncias. Na primeira fila dos participantes estavam o próprio Vargas, sua família e
todo o seu ministério constituído.
Com a redemocratização brasileira a partir de 1946, ficou bem difícil a condução
deste projeto de sacralização do ensino universitário federal. Já afastado por vontade
própria da reitoria da Universidade do Brasil, Alceu empreendeu juntamente com o Pe.
Leonel Franca uma nova missão – a criação da PUC-Rio, antigo sonho de Dom Leme,
já falecido neste momento. A respeito deste feito, afirma Odilão Moura:
Em 1932, Dom Leme fundou o Instituto Católico de Estudos Superiores, com cursos de
Teologia, Filosofia e Sociologia, sob a direção de Heráclito Fontoura Sobral Pinto (1893-
1991). Foi o embrião da futura Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Em
fins de 1939, criou-se a Comissão Organizadora responsável pelo encaminhamento de
uma Universidade Católica. Padre Leonel Franca e Alceu Amoroso Lima iniciaram os
trabalhos preparatórios. No dia 15 de março de 1941, foram instalados oficialmente os
novos cursos. Segundo a aspiração de Dom Leme, a Universidade seria um grande
instrumento, através do qual a Igreja poderia formar uma mentalidade cristã na sociedade
brasileira. Esta foi sua última grande realização como arcebispo do Rio de Janeiro
.
(Moura, 1978, p.138)
46
Anos depois, o próprio Alceu reconheceu o exagero da sua atuação junto à
extinção da UDF e à criação da UB: “Se fiz restrições à criação da Universidade do
Distrito Federal, foi ainda sob a influência desse unilateralismo católico. Minhas
restrições provinham de partir essa criação de um grupo imbuído do mesmo espírito
escolanovista dos pioneiros de 1931” (Lima, 1975, p.228). É o tempo como provocador
de mudanças e narrador das diferentes trajetórias ideológicas.
47
2.3.
Intelectuais na Encruzilhada – O Centro Dom Vital
Num dos tantos encontros com as lideranças católicas, o presidente Getúlio
Vargas reafirmou “a importância da colaboração constante das nossas autoridades
eclesiásticas com o governo do país, auxiliando a manutenção da ordem e promovendo
o progresso nacional” (Matos, 2003, p.52). Vê-se claramente a associação entre
Catolicismo e patriotismo que configurará politicamente os próximos anos.
Como uma espécie de contrapartida religiosa é interessante lembrar que, à parte
dos eventos considerados não-religiosos, vanguardistas e apóstatas do ano de 1922, este
também foi marcado pela construção do Cristo Redentor, pela fundação do Centro Dom
Vital e a organização do Congresso Eucarístico do Rio de Janeiro, demonstração bem
clara de que os diálogos entre os palácios do Catete e São Joaquim caminhavam de
vento em polpa!
17
O bom relacionamento da Igreja com o Estado Novo foi um marco.
Segundo Henrique Matos,
A Revolução de 1930 ocorreu sem derramamento de sangue graças à intervenção pessoal
do Cardeal Leme, quando foi deposto o Presidente Washington Luis (em outubro de
1930). Recém chegado da Europa onde, em Roma, fora investido da dignidade
cardinalícia, Dom Leme conseguiu convencer o presidente da inutilidade de resistir às
forças revolucionárias, encontrando assim uma solução pacífica para o conflito. Getúlio
ficaria eternamente grato ao cardeal-arcebispo por esse gesto humanitário que, afinal de
contas, favorecera o prestígio do próprio Vargas. (Matos, 2003, p. 70)
É comum a reprodução em livros de uma fotografia que alude tal acontecimento,
o Cardeal Leme deixando o Palácio do Catete no automóvel da presidência da
República ao lado do presidente deposto. Isto demonstra a envergadura político-
religiosa que a Igreja assumia nesta época, e que seria reforçada através de diferentes
concordatas ao longo do regime varguista. Entretanto, para que tal prestígio se
confirmasse, era necessária a adesão cada vez maior da sua força secular – os leigos.
A estratégia de mobilização católica na década de 1930 dirigiu-se
preferencialmente à classe média, com a qual a Igreja arregimentou fortes laços de
cooperação. As mulheres – que nesta época já se manifestavam publicamente e
iniciavam sua emancipação social –, alguns empresários e principalmente os intelectuais
formavam e preenchiam as trincheiras ideológicas a favor dos interesses eclesiásticos.
17
Lembremos que tais eventos, especialmente a construção do Cristo Redentor, contou com
financiamentos privados (doações) e estatais. O próprio Cardeal Arcoverde afirmou que o Cristo no alto
do Corcovado era o “coração do Brasil”.
48
Neste momento, presenciava-se o nascimento de um “ideal militante de Catolicismo”,
no qual as palavras de ordem eram defesas apologéticas à religião e à doutrina da Igreja,
bem como ao magistério clerical da sua hierarquia. Não bastava ser católico apenas no
nome, nas estatísticas, o momento urgia uma ação mais sólida e contumaz do laicato
comprometido, como bem atesta Domício Telles:
Católicos indiferentes eram vistos como um perigo para a própria Igreja. Consideravam-
nos “falsos fiéis” e até inimigos! Aliás, em todo canto era comum ver adversários que
ameaçavam a integridade da religião. Por isso, estabelecia-se: a ninguém é lícito recusar
a espada que a religião oferece aos seus soldados nesta fase crítica que atravessa a
nacionalidade. Mister é aceitá-la e manejá-la com destreza e vigor; é obrigação
indeclinável dos verdadeiros católicos. (Telles, 1936, p.4)
Essa Igreja combativa vai ser sentida principalmente nos intelectuais e pensadores
igualmente apologéticos, verdadeiros “soldados de Cristo”, como gostavam de se auto-
denominar. Por isso, os católicos “mornos” não interessavam, o momento era de
“lançar as redes para águas mais profundas”, como ordenou o próprio Jesus no
Evangelho. Neste contexto, as “águas mais profundas” estavam nas editoras, na
imprensa, no mundo universitário, nos cafés, enfim, na vivência ordinária da sociedade.
Como fruto intelectual deste momento surge o Centro Dom Vital
18
, órgão oficial
da Arquidiocese carioca e de crucial importância para a projeção do pensamento
Católico Conservador. Homenageando um dos bispos que lutaram contra a maçonaria
no segundo reinado, causando atritos que ficaram conhecidos como a Questão
Religiosa, o Centro foi fundado em 1922, por Jackson de Figueiredo, congregados
marianos e patrianovistas
19
. Um ano antes ocorrera o lançamento da revista A Ordem
20
,
que divulgava o pensamento dos conservadores. Como lembra Hamilton Nogueira, um
dos fundadores deste periódico:
18
Os fundadores do Centro Dom Vital foram: Jackson de Figueiredo, Plínio Corrêa de Oliveira,
Hamilton Nogueira, Sobral Pinto, Perilo Gomes, Arlindo Vieira e Jônatas Serrano. Os principais
integrantes do Patrianovismo, além de Arlindo Veiga dos Santos, eram: Antônio Paim Vieira, Jackson de
Figueiredo, Paulo Dutra da Silva, Joaquim Dutra da Silva, Paulo Sawaya, Aguinaldo Ramos, Carlos
Prado, Salathiel Campos, Sebastião Pazano, José Carlos Ataliba Nogueira, Oscar Amarante, Manoel
Marcondes Rezende e Ernesto Pereira Lopes. Esses monarquistas tinham como herdeiro do trono
brasileiro D. Pedro Henrique Afonso Felipe Maria de Orleans e Bragança. Há razões para acreditar que
Plínio Corrêa de Oliveira tenha sido o grande representante de Dom Sebastião Leme na Constituinte de
1934, já que fora eleito com maciça votação dos meios católicos.
19
O movimento Pátria Nova era liderado por católicos monarquistas, antiliberais e nacionalistas que
além de lançarem a Revista da Ação Imperial Patrianovista Brasileira, em 1928, sob a direção de Arlindo
Veiga dos Santos, fundaram naquele mesmo ano o Centro Monarquista de Cultura Social e Política Pátria
Nova sendo transformado, em 1932, no movimento Ação Imperial Patrianovista Brasileira, que pretendia
fundar o Terceiro Reinado no país.
20
Quando assumiu a direção do Centro Dom Vital, logo após a morte de Jackson de Figueiredo,
Alceu também se tornou o redator-chefe desta revista.
49
Em agosto de 1921, Jackson convidou um pequeno número para encontrar-se com ele no
Café Gaúcho, situado na rua Rodrigo Silva, esquina da rua São José. Lá chegamos à hora
marcada, numa noite desse mesmo mês; além de Jackson, estavam presentes Perilo
Gomes, Durval de Moraes, José Vicente e eu. Disse então o nosso amigo: ‘Não é
possível trabalharmos para a Igreja se não dispusermos de um jornal para expormos as
nossas idéias’. Não tínhamos capital. Ele então sugeriu que cada um de nós concorresse
mensalmente, com uma pequena quantia. Estava assim lançada A Ordem. (Nogueira
apud Azzi, 2003, p. 49-50)
Tal revista foi idealizada por Jackson de Figueiredo e pelo Cardeal Leme, que
classificou a revista como “a maior afirmação da inteligência cristã no Brasil” (apud
Matos, 2003, p.100), sendo amplamente distribuída pelo país através de assinaturas e
também distribuição avulsa. Os organizadores trataram de conseguir colaboradores nos
principais estados, estes divulgavam e vendiam a revista nos seus respectivos círculos.
Riolando Azzi explica o porquê do nome A Ordem:
A palavra Ordem evoca o lema da República, Ordem e Progresso, estampado na bandeira
brasileira, de sabor positivista. Em face dos movimentos revolucionários que começam a
se manifestar, os católicos, sob a liderança de Jackson de Figueiredo, levantam a bandeira
da Ordem. A religião deve constituir um elemento de ordem na nação, em face dos
movimentos considerados anárquicos. (Azzi, 1977, p.63)
Fica bem claro o teor reacionário na escolha do nome para aquela revista que, sem
dúvidas, foi o principal veículo de circulação dos ideais católicos brasileiros e até
universais, uma vez que este periódico possuía vários correspondentes e colunistas de
outros países. Era uma espécie de “diário oficial”, de leitura obrigatória mesmo para
aqueles que discordavam da ideologia eclesiástica, uma vez que seus articulistas eram
de forte calibre intelectual nos meios acadêmicos brasileiro e francês. O próprio Alceu
reconhece o valor de A Ordem:
Este apostolado intelectual é dos mais necessários e urgentes para salvar os espíritos do
naufrágio agnóstico, materialista, cético e encaminhá-los para os braços da Igreja, onde
vão ter todos os que procuram sinceramente a verdade. (Lima apud Matos, 2003, p.101)
O Centro Dom Vital tomou a dianteira do movimento católico laico em todo o
país. Seus líderes organizaram a Confederação Nacional da Imprensa Católica e
geraram o embrião das Universidades Católicas em todo o país, principalmente da PUC
do Rio. Lançada pelo Centro, a Ação Universitária Católica apareceu em 1930, no Rio
de Janeiro. É através da produção acadêmica dos seus membros que muitos bispos
promovem suas concepções teológico-pastorais sobre a família, educação, política e
ordem social, procurando meios e articulações para que tais assuntos entrassem na
legislação brasileira, ou pelo menos fossem discutidos.
50
A Liga Eleitoral Católica – LEC, outra organização forjada pelos militantes do
Dom Vital, garantiu a presença de um respeitável contingente católico na Assembléia
Constituinte de 1934, destacando-se Plínio Correa de Oliveira, fundador da futura
organização Tradição, Família e Propriedade – TFP, grande divulgadora do pensamento
conservador católico a partir dos anos 60, da qual Alceu foi simpatizante na sua
fundação, mas depois afastou-se em razão do seu alto grau de conservadorismo.
Segundo depoimento do próprio Alceu,
a Liga Eleitoral Católica não era um partido, mas um movimento de idéias. Como era,
em outro plano, a Ação Católica. Interessado a fundo no Catolicismo social, escrevi por
essa época uma série de artigos em A Ordem. Estes artigos, hoje incluídos no meu livro
Indicações Políticas, foram tomados como sendo uma adesão de minha parte ao
Integralismo, o que era absolutamente falso. (Lima, 1974, p.151)
O Centro Dom Vital seduziu os intelectuais que, sem dúvida, simpatizavam com
um nacionalismo deliberadamente reacionário que vinha sendo apresentado no bojo das
transformações políticas do pós 30. Esse nacionalismo conservador também se fez
presente até na Semana de Arte Moderna de 1922, tendo em Menotti Del Picchia um
dos seus maiores representantes. Novamente, é Riolando Azzi que esclarece a respeito
do nome deste Centro de pesquisa:
O nome Dom Vital lembra o caráter combativo do bispo de Pernambuco na defesa dos
direitos da Igreja contra as pretensões do regalismo imperial e contra o poder da
maçonaria. A Restauração Católica será implantada mediante a apologia da fé contra o
liberalismo, o positivismo e o protestantismo. (Azzi, 1977, p.63)
Nesta perspectiva, o pensamento de Jackson de Figueiredo se apoiava na idéia de
que a nação somente sobreviveria se a religião fosse sua base, considerando que esta era
a alma da Pátria e que a verdade religiosa era a única capaz de manter a unidade social
da nacionalidade, ideologia esta totalmente de acordo com os rumos que a Igreja
Universal vinha tomando desde o pontificado de Leão XIII. Tal pensamento era
combativo e ideologicamente armado, como ficou claro até mesmo na escolha do nome
Dom Vital. Segundo o que atestou Alceu, “o Centro Dom Vital, na mente de Jackson,
desde a sua fundação em 1922, estava implicitamente ligado a uma intenção política: a
de defender o princípio de autoridade” (Lima, 2001, p.69). Esta autoridade vinha
daquela Igreja que, desde os primórdios, sempre foi chamada de “a esposa de Cristo”.
Riolando Azzi dá algumas informações acerca do início do Centro:
A primeira fase, dirigida por Jackson, é de intenso envolvimento político, assumindo esse
jornalista católico a defesa intransigente do governo estabelecido e reagindo fortemente
contra as pretensões revolucionárias do movimento tenentista. Sob esse aspecto,
51
mantinha-se coerente com a própria orientação da hierarquia eclesiástica. (Azzi, 2003,
p.13)
Durante a década de 20 (após sua conversão) e início dos anos 30, Alceu manteve
fidelidade aos princípios de Jackson que nortearam a ideologia do Centro
21
.
Inicialmente, opôs-se à Revolução de 30, considerando que a mesma era a conseqüência
de um pensamento essencialmente liberal: “obra da Constituição sem Deus, da escola
sem Deus, da família sem Deus” (A Ordem, outubro de 1930). Entretanto, como já
demonstrado, o mesmo Alceu se valeu do regime varguista a partir dos acordos deste
com a Igreja.
Após a morte de Jackson, ocorrida tragicamente em 1928, Alceu assume a direção
do Centro Dom Vital até a morte de Dom Leme, ocorrida em 1942. A atuação de Alceu
representou o que havia de mais significativo no pensamento católico tradicionalista e
reacionário, participando assiduamente da vida cultural e política do país naquele
momento. Para Marcelo Timotheo da Costa, a atuação de Alceu estava completamente
em acordo com os rumos da Igreja carioca e romana:
Já durante o pontificado de Pio XI, foi associada ao movimento leigo a tarefa de
empreender a ligação entre a Igreja e o século – visto como hostil aos ideais católicos.
Mais que uma “ponte”, dado o espírito beligerante prevalente na hierarquia, tratava-se de
estabelecer na sociedade moderna, através do laicato, uma “cabeça-de-ponte” que
viabilizasse a conquista desta pela Igreja. Vem daí a imagem do leigo como alguém que,
subordinado à hierarquia, contribuiria na cristianização do século. (Costa, 2006, p.128)
Esse “espírito beligerante” foi vivido nos diversos cantos do Brasil, com uma
maior concentração no Rio de Janeiro, capital federal e palco de grandes
acontecimentos de ordem político-sócio-cultural que repercutiram na maneira de “ser
Igreja”, de “servir ao Evangelho”, como muitos afirmavam. Por isso a necessidade de
elucidar o protagonismo da Sé carioca nesta época: a atuação do Cardeal Leme e dos
seus colaboradores mais diretos excederão o terreno puramente espiritual e pastoral,
estendendo-se aos mais diferentes âmbitos culturais – desde a censura propriamente dita
feita ora pela Arquidiocese, ora pelo Ministério da Justiça – até a participação e
militância direta dos intelectuais católicos nas diferentes associações oficiais como a
21
Num interessante artigo homenageando os vinte e cinco anos da morte de Jackson, Amoroso Lima
fornece um curioso aspecto literário do fundador do Centro Dom Vital: “Jackson foi violentamente
contrário ao movimento modernista de sua geração. Hoje o movimento já foi há muito ultrapassado e até
melancolicamente julgado pelo maior dos seus precursores, Mário de Andrade. E, no entanto, tudo o que
há de melhor nas letras brasileiras passou pelo Modernismo ou veio dele. O antimodernismo de Jackson,
acidental, embora perfeitamente lógico, na sua obra, deve também ser explicado aos moços não como
outro aspecto de saudosismo, mas como uma ligação, um pouco violenta, com o seu ‘horror ao artificial’,
ao insincero, ao desordenado, ao mundano, ao ‘revolucionário’.” (In A Ordem, novembro de 1953)
52
Academia Brasileira de Letras, a Associação Brasileira de Imprensa, o Pen Club, a
Associação Brasileira de Escritores, a Sociedade Felippe d’Oliveira e, obviamente, o
Centro Dom Vital. Para o Cardeal, a mais importante de todas era a ABL. É o próprio
Alceu quem lembra:
Quem me levou à Academia foi, sem dúvida, Dom Sebastião Leme, de quem me havia
aproximado e a quem aliás só conhecera no dia seguinte à morte de Jackson. [...] Dez
anos mais tarde, entretanto, já deslocado o eixo de minha vida, da literatura para outros
domínios do Espírito, alterava-se o problema. [...] Alguns companheiros de geração,
entretanto, como Mário de Andrade, julgavam que minha definição religiosa tinha
deliberadamente sacrificado o crítico. Não tinha razão, a meu ver, quanto ao exercício da
minha liberdade de pensamento e da minha isenção de julgamento. [...] É que Mário tinha
do Catolicismo uma concepção reacionária. Esta a razão que o levaria a dizer-me em
carta: Se eu fosse católico... eu era sectário, eu não compreendia o meu adversário senão
convertido aos pés de Deus ou destruído por mim aos meus pés. Foi esta concepção
deformada do Catolicismo que o levou a considerar minha convicção religiosa
incompatível com o exercício da crítica literária. [...] Em 1934, por morte do poeta Luis
Carlos, me pedia Dom Leme, então empenhado na penetração dos leigos católicos em
todas as instituições sociais e culturais – que reconsiderasse meu preconceito
antiacadêmico e me candidatasse. Para não desgostá-lo e depois de alguma resistência,
resolvi aceder. (Lima, 1974, p.101-102)
Tais atitudes de parte significativa da intelectualidade carioca contribuíram, como
se sabe, para redefinir os rumos do próprio Modernismo no Rio de Janeiro,
especialmente em profundo contraste com os demais projetos de modernidade
espalhados pelo Brasil, principalmente a proposta hegemônica de São Paulo. Será um
conjunto de práticas intelectuais que redefinirão o movimento na então capital federal.
Entretanto, dada a complexidade de tal assunto, o mesmo será melhor desenvolvido
numa outro momento desta pesquisa.
Vale lembrar a decisiva atuação de Tristão e de outros pensadores católicos nesta
fase da nossa vida cultural, todos em profunda sintonia com os “sinais dos tempos”
profetizados pela Igreja através da sua ortodoxia. É o combatente Alceu que inicia sua
batalha dentro de si próprio, como veremos a seguir.
53
2.4.
Antes da Conversão – Permanências e Rupturas
Para entendermos melhor a trajetória espiritual e intelectual de Tristão de
Athayde, é impossível não falar do seu retorno ao Catolicismo, ocorrido por influência
direta de Jackson de Figueiredo, em agosto de 1928. A este respeito, é o próprio Alceu
quem lembra:
A minha conversão se fez contra a minha vontade. Por quê? Porque eu temia, me
convertendo, a perda da liberdade. Daí ter levado quatro anos meu debate a respeito com
Jackson de Figueiredo. Pela ortodoxia católica, converti-me pela Graça Divina. Mas
desde o princípio sabia que ia ser duro. O fato é que encontrei na Igreja mais liberdade
do que esperava, mas também mais dureza do que se pensa. O meu choque foi ter que
enfrentar esse problema. A conversão, antes de me afastar dos problemas políticos e
sociais, me levou a neles aprofundar ainda mais a minha consciência. (Lima, 1974, p.
117)
Não podemos compreender um processo de conversão apenas do ponto de vista de
uma “escolha que foi feita”, é algo mais existencial, transcendental, que convulsiona o
todo da pessoa, obriga-lhe um largo questionamento a respeito da vida e dos próprios
objetivos e a faz provar uma certa sensação de “deserto”, de secura espiritual em busca
de algo que lhe preencha o ser. Esta busca é sempre penosa, difícil, onde a pessoa se
depara com inúmeros dramas pessoais, espirituais e até intelectuais. O mais importante
deles é, sem sombra de dúvida, a perda da própria fé e como tal fato se engendra, a este
respeito lembra Alceu nas suas Memórias Improvisadas:
De 1908 a 1928 me fui afastando de toda a prática religiosa, abandonando as minhas
tênues convicções a este respeito. Comecei a perder a fé quando deixei o Ginásio e
ingressei na Faculdade de Direito. Logo depois (1909) fazia a minha segunda viagem à
Europa (a primeira em 1900 com seis anos), o que me obrigou, para não perder o ano
escolar, a realizar exames de segunda época. Na verdade, não sei dizer com precisão qual
o fato substancial que me induziu a abandonar a religião. Creio que a melhor explicação
para isto se deve às próprias condições em que se formou a minha geração. Mas, no meu
caso particular, se quiser dar um símbolo, creio que posso dizer que foi o professor Silvio
Romero, meu mestre de Filosofia do Direito, no primeiro ano da faculdade, quem mais
fortemente contribuiu, na época, para o meu agnosticismo. (Lima, 1974, p.33)
A transição dos séculos XIX e XX presenciou um profundo sentimento de
relativismo religioso, ou mesmo um ateísmo militante por parte de inúmeros cientistas e
intelectuais de um modo em geral. Tal fenômeno foi dominante na Europa, sobretudo na
França e de lá chegou com toda a força à intelectualidade brasileira, tamanha era a
influência ideológica exercida pela cultura francesa sobre a brasileira.
54
A Igreja Católica na França sofreu, após a Revolução Francesa, uma enorme crise
identitária e estrutural. Considerada a “segunda filha da Igreja”, depois apenas de
Roma, a Igreja daquele país viu suas estruturas ruírem ao longo do século XIX,
principalmente após a perseguição religiosa imputada por Napoleão e continuada por
alguns dos seus sucessores. Um importante teólogo dominicano deste momento foi o
Pe. Lacordaire, que foi impedido pela justiça francesa de ingressar no Noviciado de
Saint Jacques, onde São Tomás de Aquino viveu. Como reação a este ato ditatorial,
Lacordaire fez um histórico discurso no púlpito da Notre Dame denunciando o fato de
que o ideal de “Liberdade” da Revolução Francesa fora totalmente esquecido pelo
próprio regime que o instaurou. Aliada a tal fator, a tradição iluminista é considerada
uma importante permanência, especialmente através dos meios universitários e
intelectuais de uma forma em geral.
Sendo Paris considerada a Cidade Luz, o “umbigo cultural” do mundo civilizado,
é normal o já conhecido movimento acadêmico no qual as mentes pensantes se dirigiam
até lá para divulgarem suas idéias. Intelectuais de diferentes países encontravam nas
universidades francesas o local adequado para transmitirem suas opiniões, e de lá tais
conhecimentos eram refletidos a outros lugares, particularmente ao Brasil. A
intelectualidade brasileira era voraz em acompanhar a ordem do dia da capital francesa,
fosse através de publicações ou mesmo pessoalmente, como é o caso de Alceu, que
freqüentou diversos cursos no Collège de France.
Todavia, antes dele, outros também fizeram o mesmo, como é o caso de Silvio
Romero, citado pelo próprio Alceu como o principal responsável pelo seu agnosticismo.
Romero era um forte entusiasta das teorias de Spencer, defendo veementemente as leis
evolucionistas propostas por este cientista e por Charles Darwin. Ora, sabemos que o
Evolucionismo é frontalmente contrário ao Criacionismo defendido pela doutrina cristã,
fortalecendo ainda mais o clima cientificista que reinava naquele momento. Deus
deixou de ser uma certeza e passou a ser a possibilidade para alguns, assim como a total
loucura para outros.
Alceu lembra que o “spencerianismo era considerado a filosofia natural, uma
filosofia agnóstica. E foi este agnosticismo que dominou a todos nós no princípio do
século.” (Lima, 1974, p.34). Contudo, essas teorias contrárias à Igreja não eram as
únicas, conviviam com outras que defendiamo apenas a liberdade religiosa, mas uma
escolha firme e apologética da fé católica, como afirma o próprio Alceu:
55
Em 1913 voltei pela terceira vez à Europa. Por essa ocasião, freqüentei na França os
cursos de Bergson, então no apogeu da fama, como em 1903 os haviam freqüentado
Péguy e Maritain. Aquele iria morrer em 1914 e Maritain seria, no futuro, o meu mestre,
orientando de longe a minha conversão. A verdade é que esse curso, com toda a presença
mundana, em que cientistas e irmãs de caridade se misturavam, sentados pelo chão, dada
a falta de espaço, com cavalheiros e damas da mais alta sociedade européia, teve sobre
mim uma extraordinária influência. Passei do evolucionismo naturalista spenceriano ao
evolucionismo criador bergsoniano. Tanto Spencer como Bergson partem da primazia do
tempo. Apenas, em Spencer há o predomínio da natureza física. A grande novidade de
Bérgson era conceder a primazia ao espírito, teoria largamente exposta em seu livro
L’Evolution Créatrice, de 1907. Começou então minha marcha no sentido do Ser, do
dinâmico para o estático; do vir-a-ser para o ser, do móvel para o imóvel, do tempo para a
eternidade. (Lima, 1974, p. 34)
A filosofia de Henri Bergson exerceu forte influência na França, especialmente no
período entre 1900 e 1920. O ponto máximo de seu pensamento se situa na intenção de
libertar-se do racionalismo e cientificismo do fim do século XIX, bem como um
interesse pela existência e força criadora do espírito. Tal direcionamento encontrou nos
questionamentos de Alceu um terreno fragmentado e poroso, onde o intelectual vai
tentar preencher os seus diferentes vazios com tais filosofias, numa busca constante por
aquilo que Bergson chamava de o “elã vital”, o que para um crente, é a própria força
criadora de Deus que atua de forma dinâmica na constituição dos seres, isto é, na
própria vida. Em entrevista a Medeiros Lima, Amoroso Lima esclarece como o
pensamento daquele filósofo o influenciou:
Em lugar do evolucionismo, baseado num determinismo materialista, como
predominância da natureza física e da evolução biológica, havia um evolucionismo, isto
é, uma sucessão dos acontecimentos no tempo, mas marcado por uma predominância dos
fatores espirituais. [...] E com isto Bergson criava uma espécie de abertura para a
metafísica, tão maltratada pelos positivistas e naturalistas, que a consideravam acientífica
e afilosófica. Eis como através de um evolucionismo naturalista, seguido de um
ceticismo agnóstico, no fim de meu curso e no fim da Belle Époque, chegue à
redescoberta da importância substancial dos valores do espírito. Bérgson, meu velho
mestre de então, ao se aprofundar na metafísica terminou se aproximando do Catolicismo.
(Lima, 1974, p. 58)
A filosofia bergsoniana exerceu forte influência sobre a Teologia produzida na
primeira metade do século XX, especialmente naqueles teólogos que buscavam resgatar
um novo “sentido para Deus” num contexto histórico-cultural que pregava a não
existência do mesmo. A maioria dos intelectuais (re)convertidos à fé católica teve
Bergson como leitura obrigatória para esta “passagem”, para este retorno à Igreja. Em
1927, o Prêmio Nobel de Literatura foi dado a Henri Bergson. Morreu em Paris, em
1941.
56
Outro reconhecimento feito por Alceu foi em relação às influências recebidas da
obra de Charles Péguy. Este foi uma figura diferente no contexto intelectual francês no
início do século XX. Soube, como poucos, unir sua profunda fé cristã com ideais
socialistas e uma vasta criação artística (teatro e poesia), o que provocou uma espécie de
“paixão” por parte da intelectualidade católica de tendência progressista e esquerdista.
Em 1900 fundou a revista Cahiers de la Quinzaine, periódico que muito fomentou os
debates acerca da relação materialismo versus espiritualidade. A principal tese de Péguy
sustentava ser absolutamente possível unir valores tradicionalmente opostos, como o
efêmero e o transcendental, a matéria e o espírito. Certamente, o que Amoroso Lima
mais se identificou com o filósofo francês foi o fato de que este nem sempre foi um
“entusiasta da fé”. A respeito dele, afirmou Alceu:
Foi justamente nos Cahiers de La Quinzaine que se operou sua grande transmutação. Seu
socialismo era de índole sentimental e mística. Nada tinha a ver com o socialismo que a
França herdara de Proudhon, o grande adversário de Marx. Toda a sua concepção social
baseava-se numa transformação profunda e interior do homem. Filho do povo, acreditava
em suas virtudes, em sua mística, na herança de uma convergência da graça divina. Era
aí que seu socialismo deitava raízes, um socialismo extremamente humano, ligado ao ser
humano, ao destino da pessoa humana. Péguy era filho desse socialismo utópico, filho do
humanismo do povo, com o qual convivera na sua infância. (Lima, 1974, p.166)
Péguy não teve educação católica, seu pai era um ferrenho ateu, sindicalista,
agitador social e diversas vezes foi preso pela polícia francesa. Entretanto, tal tendência
se modificou radicalmente em 1908, quando o filósofo se converteu ao Catolicismo e
passou a ser um defensor ardoroso desta doutrina e de sua Tradição. Na sua versão de
Joana D’Arc (1910), tal fato fica muito evidente, tamanha é a “canonização” que sua
personagem sofre, sendo transformada em verdadeira mártir “moderna” da causa
francesa. Ou então num dos seus tantos livros de poesia, como O Mistério dos Santos
Inocentes (1912), antologia de poemas claramente religiosos e apologéticos.
Contudo, para este poeta e pensador, a conversão não significou radicalismo
ideológico dentro das trincheiras da religião, pelo contrário, Péguy convidava
intelectuais de diferentes tendências, inclusive ateus, para o debate no Cahiers de La
Quinzaine, como afirma Alceu nas suas Memórias Improvisadas:
Péguy era um poeta. Como socialista foi pouco a pouco verificando que era mais poeta
do que político. Cahiers de La Quinzaine começou sendo uma revista política para uma
revolução socialista. Mas aos poucos foi percebendo que a sua vocação não era
sobretudo política mas sobretudo poética. Assim é que ao longo dos Cahiers assistimos à
conversão lenta, interior, de uma passagem da primazia do político para a primazia do
poético. Foi uma passagem do socialismo para o cristianismo histórico. (Lima, 1974, p.
169)
57
Amoroso Lima via este filósofo como modelo do “novo intelectual” – aberto ao
diálogo, flexível, porém com a sua fé firmemente estruturada e definida. Charles Péguy
se alistou de forma voluntária no exército francês quando estourou a Primeira Guerra.
Por essa razão, morreu em 1914, numa das tantas batalhas deste conflito. Sua última
contribuição intelectual foi um artigo, no seu periódico, defendendo a filosofia de
Bergson, e condenando veementemente o tradicional Método Científico para a análise
ontológica do Homem e de sua história.
Nesta tentativa de traçar as influências filosóficas que foram determinantes não
apenas na conversão de Alceu, mas em todo o seu “apostolado” intelectual a artístico,
certamente a principal destas foi exercida por Jacques Maritain. Tido como um dos
principais intérpretes do neotomismo, Maritain rejeitava esse nome para caracterizar seu
pensamento, preferia apenas o termo Tomismo para se referir à filosofia de São Tomás
de Aquino e a sua própria.
Nasceu em Paris, em 1882, de família protestante. Contudo, em 1906, se
converteu ao Catolicismo, após um ano sendo aluno de Bergson no Collège de France,
quando se aprofundou no estudo da Suma Teológica. Formou-se em Filosofia e
lecionou esta mesma disciplina no Instituto Católico de Paris, entre os anos 1914 e
1939. Defendeu a primazia de Deus e do "humanismo integral" na análise da condição
humana, especialmente no seu livro De Bergson a Tomás de Aquino (1944); para ele, o
verdadeiro humanismo era aquele capaz de fazer florescer no âmago do ser humano
todas as suas virtudes, que lhes são próprias enquanto filhos de Deus.
Maritain defendia a idéia de uma democracia social cristã, acreditando na relação
existente entre o Cristianismo e os ideais democráticos. Para o humanista, a política tem
por função alcançar o bem comum da população, sem privilegiar determinadas classes,
assegurando o equilíbrio econômico-social. O essencial é democratizar os benefícios
sociais fazendo das riquezas econômicas não um fim em si, mas um meio de promover
a construção de uma sociedade justa. Amoroso Lima reconhece a presença de Maritain
na sua práxis intelectual:
A influência de Jacques Maritain passou a ser em mim de novo tipo, uma influência
caracterizada pela tendência democrática e liberalizante do pensamento católico, tido pelo
direitismo como heterodoxo e até apóstata. (Lima, 1974, p.147)
Nunca propôs uma sociedade igualitária como aquela pleiteada pelos comunistas,
mas acreditava nas políticas sociais que respeitassem as diferenças individuais. Para
Jacques Maritain, a justiça social se fundamenta numa igualdade cristã, principalmente
58
na ética proposta por Jesus Cristo no Sermão da Montanha. Por isso, urge-se a
necessidade de uma “nova cristandade”, não mais sacralizada (no sentido medieval),
mas aberta a valores num sentido pluralista e democrático, como ele propõe neste
fragmento:
A Sabedoria Cristã não nos propõe voltar à Idade Média, mas convida-nos a andar para
frente. A civilização da Idade Média, com efeito, por mais bela e grande que tenha sido, e
certo, a mais bela nas lembranças depuradas da história do que na realidade vivida, ficou
bem longe de realizar plenamente a noção cristã de civilização. Esta noção opõe-se ao
mundo moderno, à medida que este é inumano, mas não à medida que o mundo moderno,
não obstante tudo que lhe falta em qualidade, comporta em crescimento real da história, a
concepção cristã da cultura não lhe é oposta. Ao contrário, ela gostaria de salvar e
reconduzir à ordem do espírito todas as riquezas de vida que o mundo moderno contém.
(Maritain, 1945, p.47)
Todos esses fatores seduziram profundamente Amoroso Lima, ele é parte
integrante desta nova maneira de ser cristão, de ser fermento, de atuar decisivamente
munido de ferramentas poderosas como a ideologia e a espiritualidade. Entretanto, para
que Alceu pudesse, de fato, exercer seu “ministério” de forma mais ordenada e firme,
faltava-lhe aquele importante diferencial: o reencontro definitivo com a sua fé através
de sua conversão e apaixonada adesão às fileiras de combate da Igreja.
59
2.5.
O (re)encontro com Deus
Falar da conversão de Alceu (ou reconversão, como ele gostava de dizer) é uma
tarefa complexa, especialmente por tudo o que envolveu tal fato na sua vida e nas suas
escolhas daí em diante. Outro problema é a idéia de conversão em si, situação difícil
que não quer dizer apenas uma troca religiosa, ou mesmo o abraçar de um novo credo.
Pode-se dizer que a conversão é uma espécie de divisor de águas na vida do convertido,
e isto é claramente reconhecido na trajetória de Alceu Amoroso Lima.
Em vários depoimentos e em todos os seus livros de memórias, Alceu sempre
lembra da grande importância do amigo Jackson de Figueiredo neste episódio, ocorrido
precisamente no dia 15 de agosto de 1928. Foi com Jackson que Alceu travou um dos
mais interessantes diálogos epistolares da nossa Literatura, inteiramente dedicado à
problemática de converter-se ao Catolicismo (ou não). As cartas que ambos trocavam
eram escritas diariamente, salvando-se poucas exceções, chegando algumas a serem
escritas em momentos diferentes de um mesmo dia.
Como acontece com a maioria dos ávidos pela epistolografia, ambos não tinham
grandes contatos pessoais. Jackson vivia em São Cristóvão, enquanto Alceu morava no
Flamengo e ambos trabalhavam no Centro do Rio de Janeiro. Segundo o próprio Alceu,
os encontros eram raros, aconteciam principalmente nos cafés e nas livrarias do Centro
da então Capital da República. Frente a frente, os mesmos não tinham tanto a dizer
como era narrado através da prática epistolar.
Tal fato foi denunciado diversas vezes por Mário de Andrade, certamente o maior
missivista da Literatura Brasileira. Numa carta a Murilo Miranda, em 17 de janeiro de
1940, Mário afirmou: “Sei me abrir nas cartas, mas não sei, em corpo presente confessar
minhas franquezas.” (Andrade, 1981, p.55). Outro caso típico envolvendo Mário e seus
correspondentes diz respeito a Manuel Bandeira, com quem o poeta paulista trocou
perto de quinhentas cartas, algumas gigantescas com mais de dez páginas, porém
quando Mário residiu no Rio de Janeiro foram raras as vezes que se encontrou com
Bandeira, levando este a afirmar, numa carta de 16 de dezembro de 1925: “Há uma
diferença grande entre o você da vida e o você das cartas. Parece que os dois vocês
estão trocados: o das cartas é que é o da vida e o da vida é que é o das cartas.”
(Andrade, 2001, p.110).
60
Neste caso, é possível afirmar que um outro “eu” foi se estruturando ao longo das
trocas epistolares, compondo um quadro imaginário paralelo ao real; além disso, a
estruturação desse “eu” é sempre intencional do ponto de vista de quem escreve, pois
toda a escrita de uma carta é intencional, o remetente o faz propositadamente e sempre
com uma intenção previamente concebida, são práticas produzidas e embasadas num
discurso que não é neutro, tendendo legitimar ou justificar escolhas, posições e condutas
num determinado contexto.
Numa carta a Jackson, de 4 de fevereiro de 1928, Alceu afirmou: “Cada vez estou
mais convencido de que um homem é o que são suas cartas.” (Lima; Figueiredo, 1991,
p.320). De fato, ambos se lançam num diálogo epistolar no qual a principal personagem
é a conversão de Alceu, ou pelo menos tudo o que fosse necessário para que tal
transformação acontecesse. É com Jackson que Alceu partilhará as descobertas
filosóficas e todas as dúvidas suscitadas a partir de então. Mas acima de tudo, essas
cartas demonstram um sentimento de desconforto que é provocado em Alceu desde o
momento em que ele se abre à possibilidade de retornar à fé católica.
Há um antes e um depois claramente definidos, pois o processo de conversão de
Alceu foi lento e difícil, aconteceu aos poucos, etapa por etapa, leitura após leitura,
depois de muito questionamento. Esse modo gradativo de reconsiderar sua fé fica bem
claro quando lemos sua correspondência com Jackson. Entretanto, em certos
momentos, Alceu beira o desespero com tantas dúvidas e medos, sem mesmo saber o
que fazer, é quando o amigo lhe aconselha:
Não tenho natureza para compreender um drama como o que estou vendo desenrolar-se.
Você não deve renunciar a uma só das amarguras que aí vem, e deve esperar como se
você se sentisse integralmente o mesmo homem que era dantes. É esta a hora da
inteligência. Virá a hora da consciência. Resista na posição que Deus lhe deu no mundo,
como se ainda fosse digno dela. E a dignidade se refará. Não tenha medo do sofrimento,
porque se você sofre é que, no fundo, Deus ainda quer salvá-lo. Deus o ama ainda.
(Lima ; Figueiredo, 1991, p. 208)
Jackson é sempre persuasivo quando trata da relação de Deus com os seus filhos,
particularmente Alceu. É comum o uso de afirmações contundentes e de efeito: “Deus
ainda quer salvá-lo. Deus o ama ainda”; onde o advérbio “ainda” exerce uma espécie de
continuidade do plano da salvação de Deus para com certos filhos desgarrados, Deus
não desiste, não esquece e está sempre à espera, assim como aquele pai na parábola
evangélica do filho pródigo. Por isso o conselho de Jackson de que Alceu não deveria
renunciar a qualquer dor advinda, entendendo por dor todo o turbilhão que certamente
61
este passou até decidir-se definitivamente pelo Catolicismo. Daí as diferentes horas da
inteligência e da consciência, ou seja, o homem deve ser suficientemente inteligente
para perceber que sem Deus ele não é nada; e logo após sentir esta verdade, ele deve ter
a consciência de render-se à graça divina.
Esta é a dinâmica da Teologia Mística no que diz respeito à conversão de qualquer
indivíduo, e Jackson tinha clareza do que estava afirmando, pois ele também tinha
passado por tudo isso anos antes quando se converteu. É desta forma que a Igreja trata
das infindáveis conversões ocorridas ao longo da sua história: a conversão é um ato de
inteligência do homem e de misericórdia de Deus. Misericórdia pois Deus preenche o
que falta na natureza humana, dá sentido ao estado nadificado que muitos se encontram,
como afirma o próprio Jackson:
Que nos diz, em última análise, o Tomismo: que, salvar-se, é persistir em si mesmo, isto
é, conforme natureza que Deus definiu em cada um de nós, e, perder-se, nada mais é que
deixar-se cair para fora desse traçado, o que leva ao nada, porque fora do que foi criado
por Deus não há nada, e o inferno é, filosoficamente, o nada, o que não impede de
religiosamente ter-se do nada uma visão por assim dizer material, o que não impede de
que, na realidade, o inferno seja, em tormentos eternos, uma “figura” do nada. (Lima;
Figueiredo, 1991, p.208)
Inevitavelmente, essa nadificação provoca inumeráveis rupturas, especialmente na
situação específica de Alceu, cuja conversão foi prolixa e “pensada” a cada instante, daí
que a principal sensação é a de solidão. Em carta de 09 de agosto de 1927 a Jackson,
Alceu revela um forte sentimento de vazio que atormentava o seu espírito já
convulsionado pelas dúvidas:
Você, dizia eu, luta contra o que tem de mais elevado em si. Mas eu luto contra o que
tenho de mais baixo. Você luta contra um temperamento de revolucionário. Eu luto
contra um temperamento de burguês. [...] Tenho uma posição de fartura que me permite
viver sem preocupação (de momento) alguma de dinheiro, abominável dinheiro. Fiz um
pequeno nome literário. Tenho tudo, tudo, tudo que um homem normal pode desejar na
vida. [...] Entretanto, sinto-me num beco sem saída. Sinto-me ferido de morte. Sinto-me
velho. É exato. Sinto-me sem força. Sinto-me esgotado. [...] Juro-te que se Deus existe
em qualquer parte do universo, ou em todo o universo, aqui ao meu lado ou dentro de
mim, ou no Calvário, juro que se Ele pode acaso ouvir a minha prece, a minha blasfêmia
dirá você, só uma coisa lhe peço: a loucura ou a morte. (Lima; Figueiredo, 1991, p. 137)
No caso de Alceu, este deserto durou quatro anos de intensa troca epistolar com
Jackson. O estado que Alceu demonstra estar não é uma hipérbole do seu discurso
epistolar, é semelhante ao que encontramos nos diários e nas cartas de diversos santos e
místicos da Igreja ao longo dos séculos. A correspondência de Santa Inês de Praga e
sua irmã Santa Clara é um bom exemplo. Clara entrou bem jovem para a vida de
62
clausura, definindo desde cedo a sua vocação religiosa, o que não aconteceu com Inês,
que esperou os filhos ficarem adultos e o marido falecer para decidir, ainda assim com
dificuldades, pela vida num convento. O fato é que Inês não precisou se converter, pois
era uma católica praticante, mas a possibilidade de viver num monastério corroeu-lhe a
alma durante um bom tempo, provocando-lhe imensa dúvida quanto à correta decisão a
ser tomada. Tudo isso foi bem narrado através da longa troca de cartas das duas irmãs.
Por essas razões compreende-se o desespero de Alceu: a loucura ou a morte.
E por falar em morte, é interessante ressaltar que Alceu pensou, pelo menos uma
vez, em cometer suicídio. Três anos antes de sua morte, em 1980, o Brasil recebeu o
papa João Paulo II em sua primeira visita às nossas terras. Quando passou pelo Rio de
Janeiro, um dos compromissos papais foi um encontro com intelectuais na Academia
Brasileira de Letras. João Paulo II foi recebido por Alceu Amoroso Lima e
Austregésilo de Athayde, após o discurso do pontífice e dos cerimoniais próprios desta
visita, o almoço ocorreu na Casa do Sumaré, residência oficial do Cardeal-Arcebispo do
Rio; lá pôde Alceu, de forma descontraída, contar ao papa uma das suas experiências
anteriores à sua conversão:
Pedi licença, então, para contar um rápido episódio dos meus 19 anos de idade, ocorrido
em Veneza, em fevereiro de 1913. Sentado a sós, numa mesa do Hotel Danieli, tendo já
perdido a Fé e saturado de leituras contraditórias, como bom filho da belle époque, apoiei
a face em minhas mãos, dizendo de mim para comigo: se não encontro sentido algum
para a vida, para que viver? E um quase invencível impulso respondeu dentro de mim:
Por que não morrer logo aqui? Foi a única vez que pensei em suicídio. Não víamos, em
torno de nós, nenhum motivo de ser moços, nenhum motivo de morrer por alguma coisa.
Vivíamos intoxicados de sibaritismo, citando paradoxos de Wilde, ou perversidades de
Anatole France, olhando com profundo desdém a mediocridade ambiente e sonhando
sempre com evasões transoceânicas. Tivemos uma mocidade sem mocidade. Tivemos
vinte anos sem ter vinte anos. Éramos filhos de uma nacionalidade que se formava, de
um Continente que é o futuro, de uma raça que começa apenas a desenvolver-se e,
entretanto, carregávamos em nossos peitos um coração de vencidos da vida, uma alma de
desencantados e decadentes. E não era só dos mestres de ironia que nos vinha o
desenfado... Era também por não vermos, em torno de nós, uma grande Causa decisiva, a
que nos entregássemos. (apud Senna, 1996, p. 98)
Amoroso Lima transformou a lembrança deste momento numa belíssima crônica
intitulada Frente a João Paulo II, publicada no Jornal do Brasil, em 01 de agosto de
1980. Alceu é bem claro em reproduzir o clima que pairava não apenas sobre seu
espírito, mas no de toda uma geração profundamente marcada pelo desencanto ou, como
disse Musset: pela dor de viver. Um pouco do clima de mal-do-século que é assecular,
isto é, não é a morte que mata, porém a própria vida e os seus dissabores; nas palavras
de Schoppenhauer: “estamos condenados a viver”. Certamente, foi por isso que
63
Amoroso Lima evocou este momento decadentista da cultura ocidental, fase esta
marcada justamente pelo grande hiato da vida moderna, o vazio existencial.
E neste afã caminhava o Tristão de Athayde nas suas intermináveis dúvidas
quanto à correta decisão a ser tomada, os prós e os contras de um sim ou um não. Num
outro momento de desabafo com Jackson, Alceu confessa o seu cansaço em relação a
este momento da sua vida que ele sempre chama de calvário ou Via Crúcis:
Agora mesmo escrevi ao Franca, pedindo-lhe que me receba amanhã. Vou com muita
angústia. Com muita dúvida. Com muita hesitação. Mesmo pensando que é uma
simples visita de cortesia. Mas no fundo a alma espera mais. E hoje de manhã, ao
murmurar a prece cotidiana com que procuro a Deus, não me olvidei de implorar, se é
possível que um mísero verme da terra possa ser escutado (aonde??!!), se
transcendentalize a esse ponto – pedi que realmente desse encontro possa vir a nascer
futuramente qualquer coisa de mais sério para meu pobre coração desamparado, e quase
sempre triste. (Lima; Figueiredo, 1991, p. 231)
O historiador das religiões, Charles Taylor, faz uma interessante afirmação a
respeito desses difíceis momentos:
A estrada que leva do inferior ao superior, a mudança crucial de direção, passa pela
atenção que prestamos a nós mesmos enquanto interior. Uma frase famosa sintetiza
muitas outras: “não vá para fora, volte para dentro de si mesmo. No homem interior mora
a verdade”. (Taylor, 1997, p.185).
É justamente isso que aconteceu com Alceu enquanto ele passou pelo seu deserto
espiritual, a busca por Deus teve início a partir de uma busca dentro de si próprio, onde
ele (re)encontrou consigo mesmo, deparou-se com seus fantasmas metafísicos,
ultrapassando as grossas paredes do seu castelo interior, para usar uma expressão cara a
Santa Teresa de Jesus, uma das maiores místicas do Catolicismo. Por isso a esperança
na conversa com o Pe Leonel Franca, acompanharam-lhe a angústia, a dúvida, a
hesitação.
Finalmente, Alceu não resistiu mais, rendeu-se ao motivo da sua busca que há
tantos anos o perseguia. Formalizou o seu retorno ao Catolicismo numa missa na igreja
dos jesuítas, no Humaitá, presidida pelo Pe. Franca, como ele informou a Jackson nesta
carta de16 de agosto de 1928, dia seguinte a sua “redescoberta” da fé:
Querido Jackson
Conforme lhe disse, recebi ontem a comunhão das mãos do Padre Franca, que tão bem
soube encaminhar-me e facilitar-me esses últimos arrancos do homem velho
22
. Estou
22
Essa expressão “homem velho” é muito recorrente nos textos católicos para se referir a alguém que
passou por um processo de conversão. Seu primeiro uso se encontra nas cartas de São Paulo, quando este
afirma ter tirado o “homem velho” que havia dentro de si, isto é, convertendo-se à Verdade Maior que é
64
portanto de novo na velha Igreja. Que farei por ela? Poderei fazer alguma coisa? São
tantas as nuvens no horizonte, dentro de mim e fora de mim! Tanta coisa a pesar-me
sobre a alma! Há momentos em que vejo tudo insolúvel. É o que penso neste de agora.
Por isso mesmo prefiro deixar as navalhas interiores e tratar de coisas positivas. (Lima;
Figueiredo, 1991, p. 226)
O Padre Leonel Franca exerceu uma importante atuação entre inúmeros
intelectuais naquele momento, sempre no sentido de arregimentar mais “combatentes” à
causa da Igreja. Um intelectual, porém, o Pe. Franca não conseguiu converter mesmo
depois de inúmeras investidas: Capistrano de Abreu. É conhecida a atuação do Pe.
Franca junto à filha de Capistrano, que era monja carmelita, no sentido de obter a
conversão do historiador, tudo em vão, Capistrano não quis sequer receber em sua
residência o conhecido padre jesuíta
23
. Após sua experiência de “retorno à Casa do
Pai”, Alceu se mostra entusiasmado com a sua nova condição:
Tenho estado com o Franca e ele me tem valido em momentos de aniquilamento terrível.
Tenho comungado todos os domingos. Isso produz uma verdadeira revolução no espírito.
Horas de paz verdadeira, como esta em que estou escrevendo, e que traz sempre a
confissão e a Eucaristia. Neste momento estou sereno. Esperando receber amanhã o
Corpo de Cristo com o coração pacificado por algumas horas. (Lima; Figueiredo, 1991,
p.248)
Alguns teólogos e místicos defendem a idéia de que o indivíduo após a sua
conversão é uma outra pessoa, o homem velho cede lugar ao homem novo,
parafraseando algumas palavras de São Paulo, certamente o melhor exemplo de
convertido dentro do Cristianismo. Para o “apóstolo dos gentios”, a conversão implica
uma total transformação da pessoa, toda a sua vida terá um antes e um depois bem
definidos. Inclusive, nas primeiras comunidades cristãs da Roma antiga, era comum
que os catecúmenos (recém batizados) usassem durante alguns dias uma veste toda
branca como símbolo do seu batismo, isto é, como um sinal visível do seu ingresso no
“Corpo Místico de Cristo”, que é a própria Igreja.
Nesta perspectiva, a participação nos sacramentos é de fundamental importância,
por isso Alceu cita a Confissão e a Eucaristia – reconciliação e participação no banquete
do reingresso à fé outrora perdida. Décadas depois, quando escrevia as Memórias
Cristo. Ao longo da Patrística, os antigos Padres da Igreja também farão largo uso deste termo, sempre
fazendo uma dicotomia entre o antes e o depois da conversão.
23
A respeito deste jesuíta, Alceu comenta com Jackson em carta de 18 de outubro de 1927: “Li a carta
do Pe. Franca mais do que comovido, humilhado. É o termo. Agora, para agradecer e satisfazer um
desejo antigo, eu quisera que você obtivesse dele um encontro comigo. Penso que ele mora no Santo
Inácio. Ele que marque uma hora para podermos conversar à vontade. Quero conhecê-lo de perto. E,
quem sabe, abrir-lhe um pouco este vulcão íntimo.” (Lima; Figueiredo, 1991, p..201)
65
Improvisadas da sua vida, este evento de 1928 foi minuciosamente lembrado pelo já
octogenário Alceu. Acerca do seu momento pós-conversão, lembra ele:
De maneira nenhuma minha conversão importou no abandono de minhas outras posições.
Ao converter-me, não me recolhi a um porto, mas parti para o mar alto. A minha
conversão se fez contra a minha vontade. Por quê? Porque eu temia, me convertendo, a
perda da liberdade. A conversão e as influências de Jackson sobre mim não chegaram a
alterar as minhas idéias liberais anteriores. Continuei sendo o mesmo homem, para quem
a idéia de liberdade estava ligada à idéia de justiça. O sentimento da responsabilidade, a
tradição deixada por ele, a presença dos amigos comuns me empolgaram. A partir daí
caminhei numa outra direção, passando do liberalismo anterior para uma posição
ortodoxamente autoritária, baseada no sentimento da disciplina e da ordem. Fui tomado
da convicção de que o Catolicismo era uma posição de Direita. Esta era realmente a
minha posição à época, uma posição marcadamente de direita, antiliberal, ortodoxamente
autoritária. Viria depois a reconhecer o equívoco. A partir de 1938 fiz uma revisão
dentro de mim mesmo e voltei politicamente ao que era antes da conversão. (Lima, 1974,
p. 120)
A afirmação de Alceu de que “Ao converter-me, não me recolhi a um porto, mas
parti para o mar alto” é deveras intrigante e reveladora. Ao contrário da experiência dos
monges e dos tradicionais ascetas, Alceu viu na conversão uma oportunidade de
evangelizar, de se tornar fermento no meio da grande massa que é o mundo, que é o
cotidiano ordinário de cada um de nós. Daí a metáfora de “partir para o mar alto”, ou
seja, de defender, polemizar, comprar todas as brigas da Igreja num contexto intelectual
tradicionalmente afeito às influências da mesma.
Este era o programa da Ação Católica Internacional: leigos comprometidos,
formados e bem informados na defesa constante da doutrina e da tradição eclesiásticas.
Por esta razão que os especialistas na História da Igreja no Brasil afirmam,
categoricamente, que estes indivíduos formavam a chamada “Geração de Ouro do
Laicato”. Alceu é, sem dúvidas, a figura mais proeminente desta fase, e tal fato se
atesta devido à tamanha complexidade que será sua vida após a decisão de voltar ao
Catolicismo. Ele sempre insistiu que nada tinha mudado após o dia 15 de agosto de
1928, certamente mais uma demonstração de modéstia do seu espírito, pois afinal muita
coisa mudou. Outras permaneceram, como a constante preocupação amorosiana com a
justiça social, tema este que estará presente em considerável parte da sua obra, daí a sua
afirmação de que “Continuei sendo o mesmo homem, para quem a idéia de liberdade
estava ligada à idéia de justiça”. Liberdade e justiça social, dois pilares ideológicos que
Alceu encontrou na obra de Jacques Maritain e que se tornaram ideais a serem
defendidos por ele ao longo de toda a sua vida.
66
Outra interessante declaração a respeito da conversão de Alceu foi dada por
Antônio de Alcântara Machado, num artigo sempre lembrado pelo próprio Amoroso
Lima e por Francisco de Assis Barbosa, na introdução que este preparou para o livro
Memorando dos 90, obra comemorativa dos noventa anos de Alceu:
Afinal de contas, Tristão de Athayde viveu o drama de todos nós. Numa entrevista logo
depois da sua volta à Igreja e que (penso eu) nunca chegou a ser publicada, fez ele esta
declaração a mim transmitida por quem a ouviu: se não fosse católico, seria comunista. É
que a época é de militantes. Cada vez se admite menos a existência dos furta-cores ou
multicores. A gente é ou não é. Não é possível mais, hoje, ao intelectual (para não dizer
a quem quer que seja, mas sobretudo ao intelectual) aquele alheamento que já foi a regra
e chegou a ser orgulho da irritável classe. Agora tudo é ação social. Queira ou não
queira, o homem é empurrado para a encruzilhada, posto diante do dilema: tem de
decidir, os problemas se apresentam como de vida ou de morte. E chega por isso o
momento em que o instinto de defesa acaba vencendo a covardia e o comodismo. Bem
mais crítico de idéias e tendências do que de livros e de autores, evadindo-se sempre do
particular para o geral, do nacional para o universal, Tristão de Athayde se viu forçado a
tomar partido nesse terreno das idéias, das tendências, do geral, do universal. Fixando
assim critério único, objetivo, realista, utilitário. Para um homem como ele, a religião
não podia ser um refúgio, espécie de seguro de vida paga ao próprio segurado, garantia de
uma recompensa futura adquirida por prestações dominicais de comparecimento à igreja e
mais raramente anuais, de presença à mesa da comunhão. (Lima, 1984, p.10)
Amoroso Lima conheceu Alcântara Machado de forma epistolar, pois o poeta
paulista era um dos redatores da Revista de Antropofagia, durante a sua segunda
“dentição”, na explicação de Oswald de Andrade. Alceu iniciou correspondência com
Oswald para travar um debate crítico a respeito dos rumos que o Modernismo estava
levando, já que neste momento (1928), Alceu estava no auge do seu trabalho como
crítico literário, tarefa esta que iniciou em 1919. O primeiro contato com Alcântara
Machado foi, inicialmente, profissional, já que Alcântara era responsável pelas
assinaturas e distribuição da revista. Por isso a ponte com Alceu, uma vez que este
tinha interesse em distribuí-la no Rio de Janeiro, como de fato realizou. Aos poucos, a
amizade foi crescendo e tal fato é testemunhado pela correspondência que foi trocada
entre os anos de 1927 e 1933.
O contato pessoal de Alceu e Alcântara se deu a partir de 1933, quando se reuniu
na então capital federal a Assembléia Nacional Constituinte. A Bancada Paulista por
São Paulo Unido desembarcou no Rio de Janeiro, ocupando um andar inteiro do
Edifício Guinle, na Avenida Rio Branco. Tal Bancada foi dirigida, durante sua
permanência carioca, por Antônio de Alcântara Machado, que também se transferiu de
São Paulo e passou a residir no Rio, quando seu contato com Alceu se estreitou
sobremaneira.
67
Nas suas cartas a Alceu, que Francisco de Assis Barbosa reuniu no volume
Intelectuais na Encruzilhada, Alcântara Machado sempre se define como um “torcedor
da Igreja”, mas nunca um católico por convicção, como podemos perceber neste
fragmento: “Eu sou católico de quatrocentos anos, como meus antepassados, mas não
sou militante. Sou apenas torcedor. Aprecio muito que você esteja na luta, no gramado,
mas eu só de arquibancada.”. (Lima, 1974, p.145). Esta atitude de Alcântara Machado
era comum à maioria dos intelectuais, pois esses tiveram formação católica que, aos
poucos, foram abandonando, porém cada um conservando dentro de si algum tipo de
reminiscência, ainda que apenas uma lembrança.
Ele reconhece a atitude de Alceu em retornar ao Catolicismo mais como uma
espécie de “escolha”, de opção, não como uma busca, uma peregrinação que de fato foi.
Era a época das grandes escolhas pessoais, e principalmente um intelectual não podia
manter-se no marasmo ideológico, pendendo eternamente sobre a balança das escolhas e
decisões – A gente é ou não é – afirmou ele contundentemente. São as encruzilhadas da
vida que nos empurram e nos obrigam a decidir e assumir as nossas decisões.
Muito ainda poderíamos dizer a respeito deste assunto, um dos mais discutidos
por Alceu nos seus diferentes livros de memórias, bem como nos seus inúmeros
depoimentos e declarações dadas ao longo da sua vida pública. Sua conversão não foi
apenas uma volta à Igreja Católica, mas uma peregrinação religiosa e intelectual
acontecida de forma lenta e gradativa, ao sabor de pequenos e grandes acontecimentos
do seu cotidiano, da sua própria história.
Ironicamente, Jackson de Figueiredo – um dos principais articuladores da
profunda transformação em Alceu – morreu três meses depois da conversão do amigo,
no dia 4 de novembro de 1928, num trágico afogamento enquanto ele pescava, na Praia
da Joatinga, na companhia do seu filho e de um cunhado.
68
2.6.
O outro lado do debate – Jackson odiado, a Igreja rejeitada e Mário
de Andrade
Jackson de Figueiredo era natural de Aracaju e formou-se em Direito na Bahia.
Veio para o Rio em 1914 e passou a trabalhar na imprensa local, quando conheceu o
filósofo Farias Brito. O acontecimento mais singular na vida de Jackson foi a saída de
um materialismo exageradamente agressivo (fruto do meio universitário, segundo ele
dizia) ao ceticismo, depois ao espiritualismo de Farias Brito e finalmente ao
Catolicismo, graças ao contato direto com Dom Sebastião Leme e ao Pe. Leonel Franca,
jesuíta, co-fundador da PUC, que muito influenciou a intelectualidade católica. A
respeito do amigo, Alceu afirma:
Jackson, além de autoritário, era um antimodernista. Por isto mesmo não apreciava
muito a minha crítica. Divergindo das idéias esteticistas dos jovens intelectuais
brasileiros, do Rio e de São Paulo, emprenhados na revolução das artes, como dos
“tenentes” de 1922 e de 1924, que se propunham a reformar os costumes políticos,
lançou-se com todo o entusiasmo e energia em promover a Revolução Espiritual,
iniciando o movimento católico de formação intelectual. Jackson era um conservador,
um tradicionalista, um antiliberal, mas ao mesmo tempo um nacionalista jacobino e um
feroz antiplutocrata. Amando a luta, empenhava-se a fundo no combate. Aí revelava-se
um excepcional polemista. O fato de haver nascido no Norte, mantendo intactas as
características de seu temperamento violento e desabusado, era tido como um “cangaceiro
que a Igreja acorrentou”. Detestava os tímidos, os céticos, os desencantados. Manteve
durante toda a vida o culto da intolerância. Firme na defesa de suas idéias, sabia contudo
inspirar confiança entre muitos que não comungavam com seus pontos de vista. (Lima,
1974, p.118)
Jackson via o movimento literário de São Paulo com fortes reservas, não
considerava que eles estivessem “fazendo arte”, seria mais uma onda de
experimentalismos estéticos de caráter combativo e comunista, com forte teor
anarquizante e sem conteúdo, opinião análoga (inclusive em certos termos utilizados) ao
histórico artigo de Monteiro Lobato – Paranóia ou Mistificação – sobre a exposição
modernista que Anita Malfatti organizou em 1917. Não é exagerado dizer que Jackson,
após a sua (re)conversão ao Catolicismo, tornou-se uma espécie de “jacobino da Igreja”,
a ponto de usar quaisquer artifícios para defender a instituição. Todavia, esta sua
postura sempre na defensiva provocou incômodos no meio intelectual. Num artigo
intitulado Tristão de Ataíde, no Diário Nacional de 7 de junho de 1931, Mário de
Andrade fez severas considerações a respeito do pensador católico:
69
A personalidade de Jackson de Figueiredo, confesso que me causa uma espécie de mal-
estar dizer o que sinto dela. E creio que esse mal-estar é mais ou menos geral, porque, a
não ser os louvores excessivos dos amigos, e os panegíricos mais ou menos de sociedade
pela injusta morte dele, jamais vi quem se dispusesse a estudá-lo livremente com
descariciosa justiça. Em geral gosto muito das cartas dele já publicadas, e por elas
compreendo aquela afirmativa do próprio Tristão de Ataíde, de que Jackson de
Figueiredo era principalmente admirável na intimidade. Devia ser. Os livros dele, se
demonstram conhecimentos muito sérios do que versavam, (pelo menos o sobre Pascal e
a Inquietação Moderna), são fracos, não dão calor, nem convicção, escritos num estilo
pouco menos do que medonho. E quanto às atitudes políticas dele, não sei... não conheço
direito, fala-se tanta coisa, talvez os que falam sejam todos do grupo das tais línguas
péssimas. (apud Barbosa, 2001, p.30)
Mário cita aquela que, segundo a crítica, é a única obra interessante escrita por
Jackson de Figueiredo: Pascal e a Inquietação Moderna; neste livro o autor fez boas
análises da condição existencial do Homem no início do século XX, tentando
compreender o crescente indiferentismo religioso que se abateu sobre sua geração. Para
ele, a “inquietação moderna” seria o apelo que algumas pessoas sentem, apesar das
fortes ideologias e opiniões contrárias, de (re)descobrir a fé fazendo uma nova
experiência de Deus, fato este que aconteceu com inúmeros intelectuais, o próprio
Jackson e também Alceu são bons exemplos.
Um aspecto ainda polêmico em relação à obra de Jackson diz respeito à sua
importância dentro do debate intelectual brasileiro. Há aqueles que reconhecem seus
escritos como de grande necessidade, especialmente os grupos católicos mais
reacionários “cultivam” suas idéias e as mantém vivas, sempre no sentido de defender
cegamente a Igreja e a sua doutrina, afirmando ser ele uma espécie de “arauto” dos
tempos modernos, um digno soldado de Cristo sempre pronto para a guerra, sempre
empunhando a espada da Tradição secular que molda a “esposa de Cristo”.
Contudo, outro lado da crítica – este com argumentos bem mais interessantes e
articulados – vê a obra de Jackson como algo secundário, fruto de uma defesa
apaixonante e, por isso mesmo, mais apologética do que científica. É o próprio Alceu
quem o reconhece: “Jamais produziu uma obra à altura do seu talento. O que deixou
escrito é secundário. E ele sabia disso.” (Lima, 1974, p.119)
Esse caráter combativo de Jackson fica manifestado em diversos momentos do
seu epistolário, como neste exemplo no qual ele tenta persuadir Alceu:
O Cristianismo é apenas o Catolicismo. Mas como o Cristianismo não veio alterar a
natureza do homem (e nem mesmo negar a sua decadência) mas lhe dar meios mais
eficientes de realizar os seus fins (o mérito infinito do sacrifício de Jesus Cristo
70
sobrepondo-se “sobrenaturalmente” ao “cisma do ser”) apresenta-se como um corpo de
doutrinas, é orgânico, é social, é Igreja militante. (Lima & Figueiredo, 1991, p.120)
Como geralmente acontece nas intensas narrativas epistolares, os sujeitos vão se
construindo aos poucos, na revelação de dados ou se escamoteando, ficcionalizando-se
em alguns casos, revelando apenas o que interessa. Por isso mesmo, Jackson enquanto
“persona epistolar” vai preenchendo em Alceu aquilo que nele (Jackson) excedia – a fé
católica. É a já conhecida postura do mestre que orienta e lapida a personalidade do
discípulo, convivendo, orientando e opinando
24
, como ele faz neste fragmento epistolar
de 12 de agosto de 1927:
Você, meu caro Alceu, por mais que pareça o contrário, está a aproximar-se do relativo
equilíbrio facultado aos que vivem pela consciência. Não deve, pois, nem por um
minuto, atemorizar-se da “aridez” que o atormenta. É sinal certo de vida interior
realmente vivida. Quando a consciência afirma que a fé é necessária, que a fé completa o
homem, podem rugir as tempestades da dúvida, pode crescer o areal dos subceticismos,
podem subir as ervas más... A situação conquistada é forte demais, é impossível deslocar
a consciência que uma vez a conquistou. (Lima & Figueiredo, 1991, p.146)
Mário de Andrade tinha um profundo descaso por intelectuais que
compartilhavam da mesma postura de Jackson de Figueiredo, arbitrária e
exageradamente inflexível. Para ele, opiniões diferentes serviam para que outros pontos
de vista fossem discutidos e lançados à baila dos debates, não para criar postulados
engessados que não são saudáveis à convivência no mundo das idéias. Num outro
momento deste mesmo artigo, Mário joga ácido no sentimento católico não apenas de
Jackson, mas de uma forma generalizada:
O verdadeiro reino dos católicos é como o da nossa pobre terra paulista depois da
Revolução, não é deste mundo, gente, não é deste mundo não. Fiz um verso. Si eu fosse
católico, eu estava nas mesmas condições do tiro de esquina. Eu era sectário, eu não
compreendia meu adversário senão convertido aos pés do Deus ou destruído por mim a
meus pés. E não será mesmo desse manso apostolado aos já fiéis que o Catolicismo
morre, gelatinoso, acomodatício e cheio de afirmativas inócuas e mais inócuas profissões
de fé? (Andrade, 1968, p.31)
Arlequinalmente irônico e destrutivo! Em várias cartas enviadas a Alceu, Mário
reclamava que Alceu “escreve pra católico e não escreve pra todo mundo”, dado o
caráter de defesa da fé ao qual Amoroso Lima adentrou após a sua conversão. Em
24
O exemplo mais emblemático deste tipo de postura se deu com Mário de Andrade. O autor de Lira
Paulistana teve uma gigantesca produção epistolar que versou sobre os mais diferentes assuntos com
diversos destinatários. Todavia, com alguns destes, Mário exerceu o papel de “mestre a orientar” as
consciências, papel este que ele próprio não admitia e não se permitia. Em sua correspondência com
Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino, esta relação mestre-discípulo ficou claramente
exposta.
71
termos religiosos, Alceu foi a continuação de Jackson e de seu pensamento, pelo menos
até o início dos anos 40, quando ele fez uma reviravolta na sua maneira de encarar o
mundo e a própria Igreja. Todavia, nos anos que seguiram a sua conversão, ele teve
atitudes e pensamentos demasiadamente conservadores e retrógrados, o que despertou a
ira de certos setores e de alguns correspondentes, como Mário de Andrade. Numa longa
carta a Alceu, de 17 de junho de 1943, Mário assim vocifera:
Sim: o Catolicismo é muito maior que você e vocês todos católicos. Mas o Catolicismo
tem esse, pelo menos, perigo de ser além de uma Idéia, uma religião. Vocês têm de pôr a
idéia em ação. E é dentro desta Idéia em ação que com todos os padres que cercam você,
bem ou mal intencionados, úteis ou nefastos; com todos os fiéis que admiram você e
aceitam preliminarmente as suas pregações; com todos os moços safados de carne que se
torturam no espírito e a que você dará suavização e o sabor católico de uma rápida paz;
com todas as boas ações, atos de caridade ocultos, esmolas escondidas que você possa
fazer: é dentro dessa Idéia em ação que eu não aceito você. Que você me irrita. Que
você me afasta porque não quer me atingir. Você e a “religião”, a coletividade terrestre
que guarda a Idéia católica. (Andrade, 1968, p.33)
Em todo o seu epistolário com Alceu Amoroso Lima, este é o fragmento mais
duro, onde o autor de Remate de Males se mostra mais irredutível quanto à idéia de que
ser religioso não é ruim, mas ter uma religião é problemático. Quando ele afirma que
“Catolicismo é muito maior que você e vocês todos católicos” está justamente
corroborando esta premissa. Mário não compreendia a religião na perspectiva de
combate, como queria Alceu e muitos outros, mas buscava a noção básica do “religare”,
isto sim dava-lhe sentido, como ele deixa claro nesta passagem da mesma carta:
Eu não ignoro não os perigos dos meus argumentos para o meu para-catolicismo
25
em que
me debato. Serão argumentos do Diabo. Ou serão argumentos do orgulho. Mas eu quero
bater a uma porta mas essa porta não pode se abrir porque os que estão lá dentro não
podem interromper o Te-Deum. Então eu solto um grande grito pra Deus me escutar. E
como eu “quero” que Ele me escute, Ele me escuta. Mas ainda não pude saltar o grande
grito e me sinto sozinho. Porque os que deviam vir a mim porque eu não vou a eles, não
vêm até mim. E eu não sei si há-de haver tempo para eu saltar o grande grito. (Andrade,
1968, p.34)
Mais uma vez, Mário deixa claro a Alceu que ele também tinha a sua “busca”, não
no sentido de conversão, mas no sentido de religar-se ao Divino: “Então eu solto um
grande grito pra Deus me escutar. E como eu “quero” que Ele me escute, Ele me
escuta”. Mário tinha clareza da presença de divindade na sua vida e no seu eu, ele não
25
O escritor usa constantemente este termo – para-catolicismo – para designar uma espécie de
“catolicismo paralelo”, ou seja, um sentimento católico que ainda permanecia em Mário devido à sua
formação e criação, porém era uma simples permanência quase que como uma “lembrança”, e não como
“prática de um credo”, isto ele sempre deixa bem claro nas cartas não apenas a Alceu, mas a todos os seus
correspondentes que tocavam neste assunto.
72
estava só (como sempre repetia a Alceu), simplesmente tinha liberdade de não querer
institucionalizar esta presença.
Alceu teve grande contato com Mário de Andrade, principalmente através de
extensa correspondência
26
. A década de 20 foi marcada por uma produtiva atividade de
crítica literária, Alceu escrevia em diversos jornais e revistas, nada escapava ao seu
olhar de perito sempre atento às novidades do mundo literário brasileiro. Como Mário
também teve uma intensa produção artística, o contato entre ambos foi uma
conseqüência. Mas Alceu conhecia melhor ainda a sua geração e as dinâmicas
ideológicas que a constituíram, especialmente aquelas que diziam respeito à
problemática religiosa. A este respeito, ele fornece boas explicações não apenas do que
ocorreu com Mário, mas com a sua geração como um todo:
Mário de Andrade foi sem dúvida um demolidor, um individualista e um socialista,
simpático às mais audaciosas revoluções sociais modernas. Como católico, Mário perdeu
a fé depois de uma infância e uma adolescência profundamente religiosa. Mas conservou
a vida inteira uma fé implícita. O problema religioso sempre permaneceu entre suas
preocupações mais absorventes. O que houve com ele é que a partir de certa época,
influenciado pelas novas idéias, inconformado com as grandes injustiças sociais, criou-se
em seu espírito um conflito entre a crença em Deus e a impossibilidade de se curvar ante
as exigências morais e sociais do Catolicismo. A fé religiosa marcou profundamente o
drama de nossa geração. A isto aliava uma profunda irritação contra a pseudo
“civilização cristã”. (Lima, 1974, p.98)
Alceu acertou em afirmar que Mário “conservou a vida inteira uma fé
implícita”, pois é o próprio Mário quem, numa carta a Amoroso Lima de 16 de agosto
de 1930, esclarece sua situação religiosa: “analisando essas palavras que eu não entendo
intelectualmente bem, o que eu percebo é essa ânsia da divindade que jamais não me
abandonou um segundo” (Andrade, 1968, p.15). Isto é, Mário é religioso sem
proclamar qualquer tipo de religião.
A opinião de Alceu é deveras equilibrada, reconhece que no intenso movimento
de perda da fé por alguns da sua geração, a culpa também recai na própria práxis
religiosa, ou melhor, na maneira pela qual a idéia de cristandade foi construída. Muitas
pessoas afirmam que o problema não é Cristo, mas o que fizeram com a sua mensagem
e todas as deturpações daí advindas. Outro problema é que a religião pressupõe a ação
26
Num artigo em A Ordem, no dia 21 de Dezembro de 1930, Alceu comentou a respeito do estilo de
Mário de escrever cartas: “Mário de Andrade, em suas cartas, tinha alguma coisa de Proust. Sua
correspondência era imensa e se perdia em minuciosas explicações que bem demonstram o espírito
sempre ocupado e preocupado em captar todos os entretons dos sentimentos e da realidade. Era um
espírito tremendamente analítico a quem não escapavam os entretons mais sutis, tanto da realidade
psicológica, como das formas sensíveis, e daí o paradoxo dessa combinação estranha de um estilo
derramado, como diria Machado de Assis, mas a serviço de uma inteligência extremamente rigorosa em
sua ânsia de precisão e objetividade.” (Andrade, 1968, p. 20, nota)
73
humana na interpretação e vivência dos valores divinos, e com o Cristianismo não foi
diferente, foi impossível evitar a sua institucionalização ocorrida ao longo dos séculos.
E nessa intenção de organizar a instituição, a mão do homem atua em diferentes
situações, muitas das quais buscando defender os seus próprios interesses na esteira do
divino. Mário escreve a Alceu, em 14 de julho de 1929, onde fornece algumas pistas do
seu sentimento religioso:
Alceu, talvez devido às amarguras, eu tenha exagerado um pouco o meu estado de
espírito de agora. Nada de fundamental se modificou em mim e, se você me permite
chamar de “catolicismo” que sempre tive, continuo tendo. Não sei nem me deitar nem
me levantar sem essa carícia pra Deus, e os nossos intermediários que é a reza. É certo
que estou no momento atual numa irritação muito forte. Mas não é contra o catolicismo.
É principalmente contra os católicos. Os porquês são muito longos e já são vinte e quatro
horas deste meu último dia de férias. Mas você também há de sentir que existe hoje uma
“moda católica” que, profícua ou não para os almofadinhas dela, há de irritar com nitidez
uma espírito como o meu. Minha produção, se tem sido especialmente acatólica, pode ter
certeza que é pela discrição sensibilizada com que me sinto as impossibilidades de jogar
uma coisa pra mim tão sensível e tão elevada como a religião dentro dessas coisas tão
vitais, terrestres e mundanas como as artes. É horrível talvez, mas eu estou nisso. Ateu?
Anticatólico? Nunquíssimo. Católico? Isso agora não sei mais: não por mim, mas por
esse lado das leis sociais da catolicidade, que como toda religião foi obrigado a se dar e a
que eu desrespeito. Desrespeito não porque lhes falte ao respeito, mas porque não estou
dentro delas. Mas eu penso que, em consciência, você me preferiria sempre um sincero
ateu (que não sou) a um católico de nome, um falso católico (que ainda sou menos).
(Barbosa, 2001, p. 98)
Como é próprio da retórica de Mário de Andrade, ele começa a carta se
lamentando, num tom de certo sofrimento e reclamando de alguma coisa. Mário nunca
se afirmou ateu, muito menos militou nas trincheiras do ateísmo, como foi o caso de
alguns intelectuais
27
. Seu problema é com a instituição Igreja, não com Deus (“Mas não
é contra o catolicismo. É principalmente contra os católicos”), embora não seja possível
descompatibilizar os dois elementos. A presença do sentimento religioso permeia sua
obra, de uma forma ou de outra, na prosa ou na crítica, o divino aparece com intensa
força semântica, como no seu ensaio sobre a figura de Aleijadinho ou nas loucuras
vividas na mitologia fantástica de Macunaíma e suas sacerdotisas.
Isto sem dizer “nesse lado das leis sociais da catolicidade, que como toda religião
foi obrigado a se dar e a que eu desrespeito”. Mário tinha um particular pavor de certos
aspectos da ideologia burguesa, sempre que possível, aspergia um pouco de ódio
disfarçado em ode nos ideais burgueses. Sendo o Catolicismo a religião que, naquele
27
Numa carta a Manuel bandeira, de 02 de dezembro de 1930, Mário assim declara a respeito da sua
religiosidade: “Eu nunca sei direito si sou católico, quando ateu me pergunta digo que sou, quando
católico pergunta digo que não”. (Andrade, 1968, p. 14, nota)
74
momento, abarcava a burguesia quase em totalidade, é normal que Mário expressasse o
seu desconforto em relação a tal realidade. Inclusive sendo vítima de certas
perseguições e incompreensão de alguns setores da sociedade paulista. Alceu lembra
esta dimensão sofredora de Mário:
Mário sempre esteve atormentado pelas dúvidas. Sofria terrivelmente com as suas
contradições íntimas, que o acompanharam pela vida inteira. Por isso mesmo nunca
chegou a repousar na fé ou na descrença total. Oscilou entre os extremos, sem contudo se
entregar em definitivo a nenhum deles. Freqüentemente deixava transparecer toda sua
angústia em face da lucidez de seu pensamento e dos sentimentos contrários que
envolviam seu espírito. (Lima, 1974, p.99)
As contradições e os tormentos de Mário eram visíveis, principalmente, no seu
epistolário. Fazendo-se uma leitura comparada de algumas da suas inúmeras cartas,
percebemos diferentes “Mários” que se constroem de acordo com aquele que vai lê-lo.
Num mesmo dia ele escrevia diferentes cartas, cada uma com um aspecto peculiar:
numa diz que está feliz, na outra doente e numa terceira diz que vai se suicidar, tamanha
a sua dor.
Isto corrobora com o que afirmou Philippe Lejeune no seu Pacto Autobiográfico:
“eu sou aquele que vai me ler” (Lejeune, 1990, p.25). No caso da correspondência, o
remetente cria um simulacro de si mesmo para o seu destinatário, constrói-se ou se auto-
destrói para corresponder às expectativas do seu leitor, escreve pensando no ato da
leitura do seu receptor.
Nesta mesma perspectiva teórica, temos algumas opiniões de Beatrice Didier, para
quem a carta pressupõe um diálogo (cumplicidade com o próprio destinatário) e uma
encenação, ou seja, “o remetente atua de acordo com as diversas realidades receptoras
(Didier,1989, p.31). A carta nos revela o espaço onde se encena a postura adotada pelo
sujeito em relação ao destinatário da escrita num determinado momento. O remetente,
através de um processo retórico, cria uma persona para o seu receptor. A mise-en-scène
do eu, ao construir-se como sujeito para o seu leitor, é norteada pela idéia de como ele
quer ser visto pelo interlocutor, levando-o à dramatização da experiência pessoal. Neste
sentido, é instigante a opinião de Silviano Santiago:
Na carta, é a caligrafia do escritor que monta a ele próprio na folha de papel, no preciso
momento em que se encaminha em direção ao outro. Ao querer instigar e provocar o
outro, à espera de reação, de preferência uma resposta, o missivista retroage primeiro
sobre si mesmo, porque o chute inicial da correspondência pressupõe o exercício de certo
egoísmo abnegado, se me for permitido o paradoxo. Antes de tudo, o missivista procura
um correspondente que possa causar efeito benéfico. A carta resposta tem a aparência de
tônico, calmante ou vermífugo. (Santiago, 2002, p.12)
75
Alceu conhecia bem as fragmentações do comportamento de Mário, tanto que em
algumas das respostas que enviava ao poeta paulista ele dava conselhos e tentava se
mostrar solidário com os problemas revelados por Mário. O autor de Lira Paulistana
discordava profundamente de alguns comentários críticos feitos por Alceu, todavia,
Mário nutria pelo intelectual carioca um profundo respeito. No artigo no qual faz
comparações entre as personalidades de Alceu e Jackson, Mário não titubeia em preferir
Amoroso Lima como autêntico líder católico:
Tristão de Ataíde me parece em muito melhores condições pra exercer o posto de líder do
catolicismo social brasileiro. É incontestavelmente a intelectualidade leiga mais
poderosa, mais enriquecida e enérgica do catolicismo nacional. Sem ser um estilista, a
prosa dele cada vez se torna mais clara, mais por assim dizer necessária e essencial. Hoje
ele está a mil léguas do literato que devaneava saudoso sobre a graciosa figura de Afonso
Arinos, e se percebe nele um homem para o qual a palavra tem que servir. Sob esse
ponto de vista ele é mesmo um indivíduo extraordinariamente “moderno”, exatamente
século-vinte, sem nada daquele impressionismo flou em que se embuçaram as
consciências do fim do século passado. (apud Barbosa, 2001, p. 30)
Mário de Andrade e Alceu Amoroso Lima foram dois gigantes da cultura
brasileira. Gigantes complexos em alguns momentos, às vezes até contraditórios,
complicados, porém fascinantes do ponto de vista de suas vastas obras, bem como pela
vida que levaram. Interessantes perfis que nos ajudam na difícil tarefa de compreender
a complexidade cultural na qual o Brasil está inserido.
A relação entre Jackson e Alceu ultrapassou a simples esfera intelectual,
encaminhou-se de uma forma bem mais íntima e religiosa, quando aquele passa de
“mestre de consciência” a “diretor espiritual”, ou seja, uma simbiose muito mais
poderosa e complexa. Por isso mesmo que as cartas de Jackson são imensas, em geral
com mais de cinco laudas, algumas chegam a dez páginas! O trabalho do mestre
espiritual também é catequético, doutrinal, persuasivo, até a obtenção do objetivo final
que era a conversão de Alceu.
Por isso que é impossível analisar os caminhos amorosianos sem compreender o
papel fundamental que o Catolicismo nele exerceu. A religião moldou a sua militância
intelectual e a sua ação cultural. Embora Alceu tivesse criado o seu pseudônimo
artístico – Tristão de Athayde – em 1919, portanto bem antes da sua conversão, é fato
que o mesmo vai encontrar o seu lugar no discurso intelectual, em definitivo, a partir da
militância no Centro Dom Vital. É após esta investida que Alceu ganha voos cada vez
mais distantes: professor universitário, reitor da Universidade do Distrito Federal,
76
crítico literário, ensaísta, tradutor, jornalista, correspondente de inúmeros destinatários,
membro da Pontifícia Comissão para Justiça e Paz (no Vaticano) etc.
Alceu sofrerá constantes metamorfoses ao longo da sua vida intelectual, como
também sua própria fé e militância católicas sofrerão profundas mudanças. Aos poucos,
veremos um Alceu deixando as trincheiras da Igreja triunfante e atuando numa
perspectiva mais liberal, o que o levará a chocar-se com a própria hierarquia,
principalmente após a morte de Dom Sebastião Leme, em 1942. Mas Alceu é daquele
tipo de pensador em constante (des)construção, sempre buscando o novo, cutucando
uma ou outra idéia, fato este que contribuiu para criar a imagem do homem experiente e
eternamente jovem.
3.
Entre a Vida Literária e a Crítica Católica
Uma das principais dimensões da vida de Alceu Amoroso Lima foi, sem dúvida
alguma, a sua contribuição à Crítica Literária brasileira. Alceu surgiu na vida
intelectual do país como crítico literário em 1919, em O Jornal, e só mais tarde se
tornou o grande pensador e articulador católico, explorando na sua vasta obra as mais
diferentes áreas do saber e da cultura geral.
Entretanto, o Alceu crítico profissional foi formado num contexto complexo da
nossa vida literária e cultural, no qual os cânones literários ainda estavam em formação
e sofrendo fortes debates, com idéias e postulados sendo criados ou destruídos com a
rapidez dos “tempos modernos”, para usar uma expressão muito significativa daquele
momento.
O Rio de Janeiro, então Capital Federal, era o palco privilegiado para que as
novidades literárias ali surgissem e se firmassem (ou não). O Rio do “Bota abaixo” do
prefeito Pereira Passos também “botava abaixo” ou levantava certos talentos que volta e
meia apareciam na imprensa, ou simplesmente tratavam de tomar parte em algum
escândalo, em alguma contenda cultural muito comum naquela época. Embora em
alguns estados já existissem os chamados Centros Literários, espécie de confrarias que
congregavam certa intelectualidade local, era na Capital que tudo adquiria relevância ou
vexame.
Houve uma intensa migração de artistas e políticos das antigas províncias,
transformadas em estados após a proclamação da República, rumo ao Rio de Janeiro.
Se São Paulo já tinha neste período a dianteira econômica, com indústria e o porto de
Santos a todo o vapor, o Rio congregava as decisões políticas e as principais
manifestações culturais. Não podemos esquecer que, em torno do Palácio do Catete,
giravam outros “palácios”: a Academia Brasileira de Letras, o Pen Club, a Associação
Brasileira de Imprensa, o Museu Nacional de Belas Artes, a Sociedade Felippe
d’Oliveira, a União Nacional dos Escritores e as sedes dos maiores jornais e revistas do
país.
Segundo os historiadores da nossa vida cultural, à Capital chegavam aqueles que
vinham simplesmente tentar “vencer na vida”, bem como aqueles que queriam algum
tipo de reconhecimento, de notoriedade, fosse política ou cultural. Por isso o fato de
78
que inúmeros intelectuais desta época vinham dos seus respectivos estados e se fixavam
na cidade, tentando ocupar algum “espaço” e garantindo seus lugares à sombra do
Corcovado.
Tal fato implicou uma mudança geográfico-ocupacional, uma vez que o Bota-
abaixo do prefeito Pereira Passos realmente enterrou boa parte do Rio Antigo, num
ávido desejo de transformar a cidade numa Petit Paris, seguindo à risca as instruções da
cartilha que Le Corbusier utilizou na gigantesca reforma operada em Paris, para que a
Cidade-Luz abrigasse a Exposição Internacional do 1900. Nada mais moderno, nada
mais dentro do “concerto geral das nações” (utilizando uma expressão sempre repetida
por Mário de Andrade) do que uma bela e ampla reforma, não apenas arquitetônica, mas
principalmente de costumes.
Prédios são destruídos, a igreja jesuíta do Morro do Castelo, a mais antiga
construção do Rio de Janeiro, o próprio morro do Castelo, velhos cortiços, alguns
resistentes botecos, sobrados e casarões velhos, enfim, tudo isso foi ao chão para que a
suntuosa Avenida Central pudesse sair do mapa, tornando-se um simulacro da Champs
Elisé, contaminada pelo francesismo doentio que reinava nas mentes das nossas classes
dominantes.
Todavia, assim como em torno da avenida cartão postal de Paris, a nossa Avenida
Central também deveria terminar nos nossos “Campos Elíseos”, ebúrneo pela sua
própria natureza, ainda que tupiniquim, ou quem sabe tupinambá! Desta forma,
compreendemos o enorme esforço dos governos em remodelar, totalmente, esta área da
cidade. Daí o nascimento da Cinelândia, palco das principais manifestações culturais
simbolizadas por uma arquitetura suntuosa e invejável: o Teatro Municipal, A
Biblioteca Nacional, o Supremo Tribunal Federal, o Palácio Pedro Ernesto, o Palácio
Monroe (que hoje já não existe mais), a Escola Nacional de Belas Artes (hoje Museu) e,
num outro quarteirão não menos importante, a Academia Brasileira de Letras.
Tudo contribuía para imprimir à cidade os ares civilizados de Paris. Como era
comum nas grandes capitais européias, toda a vida cultural da cidade girava em torno
dos mesmos quilômetros, ou até mesmo metros. De um belo chá da tarde (ou
cafezinho) tomado na Confeitaria Colombo, caminhava-se até a Rua do Ouvidor, espaço
reservado às grandes livrarias, e fumava-se um charuto cubano lendo alguma página de
livro nas confortáveis poltronas da Livraria Garnier, batia-se um bom papo com o
próprio Garnier e com outros ilustres freqüentadores, e estava completa a mis-en-cène
cultural das nossas elites, literárias ou políticas. Ou ambas simultaneamente.
79
Chapelarias, modistas, ateliês, alfaiates de luxo, sapatarias, ou seja, todo o
comércio de luxo se organizava no entorno desses famosos metros quadrados da cidade.
Um bom cheiro de perfumes franceses dominava a atmosfera, certamente o famoso
Almíscar Selvagem, criado pelos indianos mas patenteado pela Maison Azarro, bem
como engomados ternos de linho circulavam num frenesi digno de ser notado por um
bom flanêur. Je suís la rue, femme êternellement verte – já profetizava um dos
personagens andarilhos de João do Rio (Rio, 2007, p.5).
Foi nesse contexto de virada de século, durante a Belle Époque carioca, que Alceu
Amoroso Lima recebeu boa parte da sua formação de scholar, tendo os primeiros
contatos com os clássicos da Literatura Ocidental, isto sem dizer no que era considerado
“clássico” dentro da própria Literatura Brasileira. Alceu estudou na melhor e mais
prestigiada instituição de ensino do Brasil daquele momento – o Colégio Pedro II. Foi
lá que conheceu e foi aluno dos três maiores críticos literários da transição dos séculos
XIX-XX: José Veríssimo (era diretor do Colégio quando Alceu lá estudou), Sílvio
Romero (que tornará a ser seu professor na Faculdade Nacional de Direito) e Araripe
Júnior.
Compreender este momento da nossa vida literária é entender o próprio Alceu na
sua atividade de crítico literário, especialmente no que diz respeito a sua “formação”
profissional como analista/observador de literatura, levando em consideração as
diversas influências culturais e ideológicas que recebeu durante este seu período de
instrução básica.
80
3.1.
Sílvio Romero – Controvérsias, Crítica e Influências
Há muito que se afirma que a Crítica Literária brasileira, militante e profissional,
teve na passagem dos séculos XIX-XX uma controversa tríade – José Veríssimo, Sílvio
Romero e Araripe Júnior. Tal movimento é considerado militante e profissional pois se
percebeu, a partir de 1880, um intenso movimento erudito que culminou em importantes
transformações na forma de se conceber a análise do material literário.
Embora seja comum fazer a análise crítica desses três representantes,
especialmente numa abordagem diacrônica da Crítica Literária Brasileira, neste trabalho
optamos em analisar apenas alguns aspectos concernentes a Sílvio Romero. Não se
trata, de forma alguma, de relegar menos importância às obras de José Veríssimo e
Araripe Júnior; ao contrário, ambos já estão devidamente canonizados na historiografia
literária brasileira. Mas a principal razão desta escolha se deu pelo fato de que Alceu
Amoroso Lima declarou, em inúmeros momentos da sua obra, que Sílvio Romero
exerceu considerável influência sobre a sua formação pessoal e acadêmica.
Alceu não ignorou o papel exercido por Veríssimo e Araripe Júnior na Crítica
brasileira, porém citava-os apenas para fazer algum tipo de referência ou alusão
histórico-literária. Já com Romero a relação foi bem diferente, este era visto como
“mestre” por parte de Amoroso Lima, como alguém que verdadeiramente influenciou
toda uma geração. Por isso a nossa opção em tratar apenas de Sílvio Romero, já que ele
esteve mais presente no reconhecimento de Alceu do que os demais citados.
A transição dos séculos XIX e XX foi muito significativa para a Crítica Literária
brasileira. Foi nesta época que percebemos certas mudanças nos currículos brasileiros,
principalmente quando as antigas cátedras de Retórica e Poética começaram a ser
substituídas pelas de Literatura, provocando mudanças na forma de se avaliar e
conceber o fenômeno literário, nacional ou estrangeiro. Já há algum tempo, os nossos
escritores reclamavam da ausência de uma crítica literária mais profissional, sem
posturas amadoras, sem “achismos” subjetivos motivados, principalmente, por
predileções pessoais, ou então a necessidade de se firmar certos grupos, certas
“panelinhas” de elogios mútuos. No seu Instinto de Nacionalidade, escrito em 1873,
Machado de Assis já denunciava a falta de uma atividade crítica mais séria:
81
Estes e outros pontos cumpria à crítica estabelecê-los, se tivéssemos uma crítica
doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países. Não a temos.
Há e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a espaços, sem a influência
quotidiana e profunda que deveram exercer. A falta de uma crítica assim é um dos
maiores males de que padece a nossa literatura; é mister que a análise corrija ou anime a
invenção, que os pontos de doutrina e de história se investiguem, que as belezas se
estudem, que os senões se apontem, que o gosto se apure e eduque, e se desenvolva e
caminhe aos altos destinos que a esperam
1
.
Tal momento coincidiu com o auge do nosso Realismo, visto também nas suas
diferentes vertentes como o Naturalismo e o Impressionismo (especialmente Raul
Pompéia). A Escola Realista foi chamada por José Veríssimo, na sua História da
Literatura Brasileira, de Modernismo. Veríssimo considerava “moderno” tudo o que
fosse contrário à estética romântica, ainda em voga por conta de certos escritores, como
era o caso de Castro Alves. O crítico fez do Realismo um divisor de águas, no qual as
frivolidades da idealização romântica não mais tiveram espaço de atuação, daí ele
considerar Machado de Assis como um escritor moderno, uma vez que o autor de Brás
Cubas preferiu o ceticismo cáustico à idealização na configuração dos seus principais
personagens. Por isso, a importância de não se confundir o “Modernismo de José
Veríssimo” com aquele estilo propriamente dito, surgido no Brasil nas primeiras
décadas do século XX.
É neste momento que inserimos as nossas discussões a respeito de Sílvio Romero.
No que concerne à atividade crítica de Alceu Amoroso Lima, este nunca deixou de
reconhecer a forte influência que recebeu do polêmico mestre sergipano, principalmente
durante o tempo de estudo na Faculdade de Direito, onde Romero foi seu professor
durante dois anos intercalados. Daí entendermos as constantes lembranças que Alceu
possuía de Romero, não apenas pela razão de que era um dos maiores polemistas do seu
tempo, mas principalmente pelas experiências trocadas com o crítico ao longo do seu
tempo de faculdade. Segundo Alceu:
Foi ele [Sílvio Romero] que me deu a conhecer a cultura brasileira filosófica, a filosofia
da cultura jurídica e a filosofia ligada à sociologia. Tinha eu então 17 anos. Na
Faculdade de Direito ingressei com quinze. Tive então o meu primeiro contato com
Sílvio, que lecionava Filosofia do Direito no primeiro ano e Economia Política no último.
Ensinou-me o Direito, não como matéria dedutiva, processual, formalística, mas como
uma disciplina ligada à filosofia, ao evolucionismo spenceriano, à sociologia. (Lima,
1972, p.42)
1
Disponível no site: http://www.geocities.com/Athens/Olympus/3583/instinto.htm
82
Sílvio Romero foi crítico, ensaísta, folclorista, professor e historiador da
Literatura Brasileira. Nasceu em Sergipe, em 1851, e faleceu no Rio de Janeiro, em
1914. Convidado por Machado de Assis, compareceu à sessão de instalação da
Academia Brasileira de Letras, em 28 de janeiro de 1897, e fundou a cadeira nº 17,
escolhendo como patrono Hipólito da Costa.
Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1875, para assumir, como juiz, o fórum da
cidade de Parati. Em 1878, publicou o livro de versos Cantos do Fim do Século, que foi
mal recebido pela crítica da corte. Depois de publicar Últimos Harpejos, em 1883,
abandonou as tentativas poéticas. Já fixado definitivamente no Rio de Janeiro, começou
a colaborar no jornal O Repórter, neste periódico publicou a sua famosa série de perfis
políticos. Em 1880 prestou concurso para a cadeira de Filosofia do Colégio Pedro II,
conseguindo-a com a tese Interpretação filosófica dos fatos históricos.
Do ponto de vista teórico-metodológico, Sílvio Romero se filiou à corrente da
Crítica Naturalista/Determinista, influenciado sobremaneira pelas ideologias do
Positivismo e do Evolucionismo de Spencer, deixando bem claro o seu acentuado
materialismo e um agnosticismo militante. Romero não estava sozinho, ele é
certamente a figura mais interessante desta tendência crítica, mas não podemos esquecer
as presenças marcantes de Capistrano de Abreu, Rocha Lima e Araripe Júnior.
De forma concomitante, esta tendência crítica também estava eivada de
pressupostos históricos, daí afirmarmos que houve um intenso diálogo metodológico
entre as mentalidades naturalista/determinista e histórica. Para Romero, uma obra
específica alcançava o seu lugar cultural na medida em que a mesma contribuísse para o
engrandecimento da nação, de um povo e de sua cultura. No seu livro Meio Século de
Presença Literária, Alceu fez diversas considerações acerca da Crítica feita por
Romero:
Sua ação militante, pois o tive como mestre entre 1910 e 1913 e a fase de sua grande
atuação histórico-literária fora entre 1870 e 1890. [...] Foi então que ele lançou os novos
termos filosóficos da crítica literária no Brasil. Foi então que ele travou combate contra o
romantismo e tudo o que o acompanhava em sua fase decadente – a ênfase, o verbalismo,
o espiritualismo vago, o sentimentalismo exagerado, o academicismo, a repetição de
fórmulas mortas ou antiquadas. Sílvio Romero foi um revolucionário filosófico e
literário. Veio armado de uma vassoura para varrer os mitos esgotados de uma idade
morta, que sobreviviam a si mesmos depois de ter produzido no passado grandes coisas,
como sempre sucede com as escolas literárias em sua fase final. (apud Teles, 1980,
p.450)
83
Percebe-se que Alceu relegou a Sílvio Romero uma espécie de dianteira na ação
da Crítica como uma prática profissional, pensada, dentro de uma ideia estabelecida,
com objetivos claros, especialmente o de contestação a experiências passadas – neste
caso – o Romantismo. O “vir armado de uma vassoura” simboliza esta noção, era uma
atitude clara de combate, de posicionamento estético-ideológico.
Com essa proposta de Crítica, a Literatura Brasileira presenciou um forte desejo
de consolidação do pensamento analítico em termos rigorosos, embora à luz de
concepções filosóficas e científicas hoje sujeitas a contestação. Contudo, o espírito de
rigor metodológico, da busca de uma base teórica para o exercício da crítica e de uma
criteriologia ficaram como contribuição definitiva, fornecendo uma aplicabilidade um
tanto científica à atividade crítica. Na introdução do seu Novos Estudos de Literatura
Contemporânea, Romero definiu e delimita a sua atividade hermenêutica:
Estavam as coisas neste ponto quando apareceu o autor destas linhas. Era em 1869-1870.
Compreendeu a extenuação e a morte inevitável do romantismo e lançou os germes de
outra fórmula literária para a poesia, para o romance, para a arte em geral. Avaliou
convenientemente a necessidade de rever toda a velha base da estesia pátria e introduziu
na crítica e na história brasileira o verdadeiro princípio etnográfico, até então falsificado
pela mania do indianismo. Quis ser homem de seu tempo, sem deixar de ser homem de
seu país, e aplicou as idéias novas européias sempre a assuntos nacionais, como é fácil
verificar pela simples inspeção dos títulos de suas produções. (apud Martins, 2002, p.
166)
Uma particularidade de Sílvio Romero é o aspecto metalingüístico em alguns dos
seus escritos, isto é, não foram raras as vezes que ele falou e analisou a sua própria
atividade crítica, comparando-se com outros críticos, brasileiros ou estrangeiros. Neste
fragmento, Romero fez alusão a um dos seus “calos” literários – o indianismo
romântico. Sempre que podia, o crítico falava mal de qualquer romancista ou poeta que
fosse simpático ao modelo largamente usado pelo Romantismo brasileiro. Para
Romero, o brasileiro por excelência era o mestiço, fruto das diversas miscigenações
ocorridas ao longo do tempo, como ele mesmo afirma:
A história do Brasil, como deve ser hoje compreendida, não é, conforme se julgava
antigamente e era repetida pelos entusiastas lusos, a história exclusiva dos portugueses na
América. Não é também, como quis de passagem supor o romanticismo, a história dos
tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes do africanismo entre nós, a dos
negros em o Novo Mundo. É antes a história da formação de um tipo novo pela ação de
cinco fatores, formação sextiária, em que predomina a mestiçagem. Todo brasileiro é um
mestiço, quando não no sangue, nas idéias. Os operários deste fato inicial tem sido: o
negro, o índio, o meio físico e a imitação estrangeira. (Romero, 1950, p.39)
84
O problema é que justamente este elemento, o mestiço, não tinha recebido até
então o devido valor nos enredos criados pelos nossos prosadores. O próprio Realismo
não fez força para que tal situação tivesse um outro desfecho. As tramas criadas pelos
nossos escritores deste período privilegiaram a ambientação urbana. Nesses enredos
tipicamente citadinos, o mestiço, quando surge, recebe posições hierárquicas
secundárias, dificilmente alcançando o protagonismo heróico, como é o caso da
mestiçagem que transita na obra de Aluísio Azevedo, especialmente nos romances O
Cortiço, e Casa de Pensão (O Mulato foi uma exceção, como o próprio título do
romance sugere).
Em seus estudos sobre cultura popular, Romero relativizou o que considerava
serem as matrizes desta cultura, e interessou-se mais pelo resultado, ou seja, pelo
homem brasileiro e as suas dinâmicas culturais constitutivas. Segundo alguns estudiosos
de sua obra, esse iniciativa de Romero se deu, principalmente, pelo fato de que o crítico
foi criado num contexto cultural deveras popular, no interior de Sergipe. Tal fato, para
os especialistas, foi fundamental para que Romero se interessasse pelas manifestações
culturais fora do Rio de Janeiro. Ele mesmo sempre foi um enérgico crítico da
soberania cultural exercida pelo Sudeste brasileiro, particularmente a Capital Federal.
No seu livro Estudos Literários, Alceu Amoroso Lima escreveu uma importante
ensaio intitulado Poesia Popular. Nele, o crítico fez interessantes análises a respeito
das diferentes dinâmicas da cultura popular, principalmente aquela de expressão
nordestina. Neste texto, Sílvio Romero foi citado diversas vezes como precursor deste
tipo de pesquisa no Brasil:
Foi nos meados do século XIX, com José de Alencar, e especialmente com os preciosos
estudos de Sílvio Romero, que se iniciou entre nós o interesse pelo folclore, e desde então
têm visados os investigadores a poesia, desdenhando os poetas. Evidentemente, o que
interessa no caso é a própria poesia, pois, como vimos os poetas populares valem tanto
mais quanto fielmente neles vibra a alma do povo. Mas não há razão para desdenhar o
indivíduo que cria, pois se este, e especialmente a sua obra, deve fundir-se no povo, para
realmente exprimir a alma desse povo. [...] Um poeta, popular ou culto, é sempre um ser à
parte. Apenas, participa o primeiro da alma comum, ao passo que o outro dela se alonga.
(apud Teles, 1980, p.281)
Alceu demonstrava possuir as mesmas ideologias de Romero quanto à valorização
da cultura popular. Em outras ocasiões, Alceu afirmou que alguns adjetivos
simplesmente serviam para denegrir certas manifestações poéticas. Neste caso, a idéia
de “popular” sempre foi algo visto de forma pejorativa, que proporciona dúvida quanto
85
à sua qualidade. No referido artigo, Alceu se mostrou contrário a esta opinião, assim
como Sílvio Romero sempre demonstrou em diversos textos e entrevistas.
Em 1908, o jornalista João do Rio fez um interessante “inquérito” intitulado O
Momento Literário. Por idéia de Medeiros e Albuquerque, João do Rio enviou às
principais personalidades da nossa literatura um questionário com cinco perguntas, e as
respectivas respostas foram compiladas sob o título em questão. Nem todos
responderam, o livro não apresenta as respostas dos seguintes escritores: Machado de
Assis, José Veríssimo, Alberto de Oliveira, Graça Aranha, Aluísio Azevedo, Artur
Azevedo, Gonzaga Duque e Emílio de Menezes. A descompostura veio de Veríssimo,
segundo João do Rio:
José Veríssimo, o conhecido crítico, não gostou do inquérito, e numa roda chegou mesmo
a dizer que era esse um processo de fazer livros à custa dos outros. Tamanha amabilidade
impediu-me de insistir, e obrigou-me a pedir a Deus que a produção de literatura nacional
aumente. Só assim o Sr. José Veríssimo não insistirá na pesca da Amazônia para
continuar a sua série de Escritos e Escritores. (Rio, 2006, p.214)
João do Rio usa de sarcasmo para tratar do acontecido, alude ao fato de que boa
parte da obra de José Veríssimo versava a respeito da pesca amazonense, inclusive
alguns títulos eram inteiramente dedicados a alguns peixes daquela região. O Momento
Literário foi (e continua sendo até hoje) um tremendo sucesso, livro de cabeceira de
todos aqueles que têm interesse em crítica e historiografia literárias. João do Rio soube
conciliar o seu faro jornalístico e pô-lo a serviço do debate cultural, bem como dar
início ao hábito de publicar entrevistas nos jornais por onde passou, o que não era
comum no início do século XX.
Dentre as perguntas do referido questionário, uma versava sobre os Centros
Literários presentes em diversos estados brasileiros
2
. Tais Centros eram agremiações
literárias presentes nos mais longínquos lugares deste país, não apenas nas capitais, mas
havia também algumas em cidades do interior. O objetivo era sempre o mesmo:
tentativa de sobrevivência cultural fora dos perímetros urbanos da Capital da República.
2
Transcrevo aqui as cinco questões enviadas aos intelectuais: “Para sua formação literária, quais os
autores que mais contribuíram? Das suas obras, qual a que prefere? Especificando mais ainda: quais,
dentre os seus trabalhos, as cenas ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere? Lembrando
separadamente a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que no momento atual, no Brasil,
atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação, etc.) ou há a luta
entre antigas e modernas? Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores contemporâneos que as
representam? Qual a que julga destinada a predominar? O desenvolvimento dos centros-literários dos
Estados tenderá a criar literaturas à parte?” (Rio, 2006, p.12)
86
Em geral, tais confrarias agregavam poetas e prosadores, de qualidade ou não, que
produziam uma literatura nem sempre em consonância com a moda da metrópole. Em
alguns casos, tratava-se de uma produção amadora, às vezes patética, fruto de arroubos
líricos e tentativas frustradas. Em outras situações havia uma produção de qualidade,
com grupos bem coordenados, com periódico próprio para divulgação da respectiva
produção.
Isso aconteceu com diversas cidades do interior mineiro, cujos Centros Literários
fizeram história, como é o caso de Cataguases. Desde o final do século XIX, esta
cidade viu fervilhar as idéias vindas do Rio de Janeiro através dos membros do seu
Centro. No início da década de 20 do século seguinte, com a constante organização e
chegada de bons talentos, surgiu uma das mais importantes revistas do Modernismo
Brasileiro, a Verde, nome análogo ao do próprio grupo que a criou. Nos primeiros
números deste periódico, temos inúmeros textos de crítica literária escritos por Mário de
Andrade e Alceu Amoroso Lima, que se tornou amigo pessoal de um dos principais
expoentes verdes – Rosário Fusco.
Entretanto, no primeiro decênio do século XX, a polêmica em torno dos Centros
Literários estava criada, e por isso os deuses do Olimpo literário da ABL se
manifestaram, a maioria destruindo qualquer possibilidade de existência de uma
literatura produzida fora dos Campos Elíseos da Capital. Daí entendermos a motivação
de João do Rio em fazer desta situação uma das perguntas do seu inquérito, era um dos
principais debates daquele momento.
Ora, Sílvio Romero foi um dos entrevistados de João do Rio para o Momento
Literário e, como era de se esperar, defendeu a existência dos tais Centros distantes da
Capital, como ele afirma neste fragmento da sua entrevista:
À quarta pergunta respondo sem hesitar: a função literária e intelectual de nossas antigas
províncias não é a de criarem literaturas à parte, como, com alguma ironia, se alvitra no
Rio de Janeiro, depois que o saudoso Franklin Távora falou em literatura do Norte. Não
foi no sentido incriminado o seu pensamento, com o chamar a atenção para as tradições,
os costumes, as cenas nortistas e com o aludir aos bons talentos daquela zona. A sátira é
escusada, ainda que parta principalmente de provincianos acariocados. A função das
províncias, prefiro lhes chamar assim, do norte, sul, centro e oeste, é a de produzirem a
variedade na unidade e fornecerem à Capital os seus melhores talentos. (apud Rio,
2006, p.42)
Os grifos foram do próprio crítico, e João do Rio respeitou-os por ver neles a
referida ênfase que o mesmo queria dar. Se neste fragmento Romero parece equilibrado
87
no que diz respeito à literatura produzida distante do Rio de Janeiro, no prefácio que
escreveu para um livro de Albino Esteves
3
ele foi bem mais veemente, destilando suas
doses de veneno sobre aqueles que discordavam da sua opinião. É interessante esta
passagem:
Na História da literatura brasileira, nos Estudos sobre a poesia popular no Brasil, nos
Novos estudos, nos Outros estudos de literatura contemporânea, nos Ensaios de
sociologia e literatura e em Provocações e debates aparecem em profusão os escritores
das províncias. Se algum merecimento me pode caber como crítico e historiador literário
é ter sido sempre o defensor constante dos talentos provincianos contra a estreiteza de
espírito revelada pelos criticalhos do Rio, no menosprezo sistemático que têm por norma
contra todos os que não fazem parte da panelinha de elogio mútuo, em que se dessoram a
si próprios e fazem moer quantos lhes são adversos, nomeadamente os bons escritores
provincianos. (apud Broca, 2004, p.102)
Interessante notar que Sílvio Romero usa de sua “autoridade bibliográfica” para
legitimar a sua opinião, elenca todos os seus títulos nos quais ele defende os escritores
provincianos. De fato, nos seus livros vemos inúmeras referências a escritores
totalmente desconhecidos da crítica oficial. Romero não apenas cita-os, mas também
fornece aspectos biográficos e faz análises de fragmentos literários produzidos pelos
respectivos artistas. Mais uma vez destrona os “criticalhos” da Capital da República,
não são legítimos no seu ponto de vista, principalmente porque preocupam-se mais em
mútuas defesas corporativistas.
No seu ensaio Poesia Popular, Alceu Amoroso Lima explicou o porquê do
interesse de alguns críticos e pesquisadores pela cultura popular. A partir das suas
opiniões, podemos compreender o interesse do próprio Romero por tal área cultural.
Segundo Alceu,
O interesse por essa cultura popular, sintoma característico das sociedades modernas,
prolonga suas raízes até o século XVII. Foi esse um século de libertações, iniciado no
domínio das idéias, e passando, no fim, ao domínio da ação. [...] Essa nova entidade,
povo, cujos direitos e cujo poder se haviam revelado no século anterior, começou a
interessar todos os espíritos. A literatura, que vivia encerrada na torre de marfim dos
dogmas acadêmicos, começava o seu grande movimento de integração filosófica e social,
clamando por sua liberdade. Ao mesmo tempo que a fantasia e o sentimento
transpunham limites até então vedados, dava-se a renovação dos temas, procurando os
3
Trata-se do livro Árvore Literária, publicado em 1911. Albino Esteves era natural de Juiz de Fora.
Poeta e crítico literário, foi amigo de Sílvio Romero quando este lá viveu, entre os anos de 1911-1912.
Romero foi convidado pelo governo mineiro para dirigir a Faculdade Mineira de Direito. Nesta rápida
passagem pela cidade mineira, o crítico participou ativamente da vida literária local, publicando poemas e
outros escritos nos jornais e revistas da localidade, prefaciando livros e ministrando aulas na referida
Faculdade.
88
artistas explorar o novo veio que se abria à sua curiosidade – a alma e as criações
populares. (apud Teles, 1980, p.287)
Este movimento de descoberta das matrizes culturais populares foi de grande
riqueza, especialmente porque proporcionou ao artista uma infinidade de possibilidades
estilísticas. Para Sílvio Romero, tal opção era uma forma de “nacionalismo inteligente”,
algo bem mais interessante do que as representações indianistas do nosso Romantismo.
Era o Brasil descobrindo a si próprio, fortalecendo-se como nação culturalmente plural,
trazendo à lume as suas principais contribuições populares. Quanto a Alceu, podemos
dizer que ele não apenas concordava com as idéias de Romero, como também
reconhecia ter sido este quem o despertou para esse tipo de questionamento.
Entretanto, a postura de Sílvio Romero foi exceção no meio literário oficial. No
inquérito feito por João do Rio, apenas ele defendeu a existência e preservação dos
Centros Literários estaduais. Os demais, seguindo a tendência ora em voga da
intelligenzia brasileira, tiveram opinião semelhante (ainda que não a expusessem) a do
Padre Severiano de Rezende, que na neste momento era membro da ABL:
Eu detesto tudo quanto é centro literário, como detesto tudo quanto é conciliábulo de
literatos em via de perpetrações literárias. Como penso que o talento que é real tem
fatalmente que se revelar na hora marcada, acho toleima essas concentrações perigosas de
plumitivos que ensaiam voos em grêmios. Os grêmios dos Estados são focos de
insuportáveis esperanças das letras e acostumam o espírito à estreiteza das igrejocas em
que o elogio mútuo cria irredutíveis pedantes e pretensiosos mestrúnculos de sinagogas
improdutíveis, em que se cultiva a flor da retórica convencional. A prova é que tudo
quanto é talento aqui não se formou em centros literários. O talento aparece quando tem
que aparecer, e a sua evolução por meio dos centros literários é uma ilusão. Os centros
literários dos Estados são perigosíssimos e alarmantíssimos. Acho bom não bulir nisso.
É horrível. (apud Rio, 2006, pp. 100-101)
Chega a ser cômico o pavor despertado pelos Centros Literários no Pe. Severiano.
O Diabo está para as tentações assim como tais Centros estão para a literatura. E já que
são “perigosíssimos e alarmantíssimos”, é provável que o velho hagiógrafo, amigo
pessoal de Machado de Assis e de Olavo Bilac, relacionasse os Centros a células
comunistas em pleno solo brasileiro, por isso ele deixou bem claro a total indisposição
de tocar no assunto. Tal opinião preconceituosa corroborava a tese de Romero de que
existia muita “estreiteza de espírito revelada pelos criticalhos do Rio”. Para que não
ressoe apenas as opiniões violentas do reverendo, vejamos o que Luís Edmundo afirmou
no mesmo Momento Literário:
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Centros Literários nos estados parece pilhéria, quando o próprio país não pode criar ainda
um centro de literatura à parte. Nós temos, é verdade, no Paraná, em Minas, em São
Paulo, no Maranhão e na Bahia, facções literárias com moços de bastante talento, mas
não é crível que eles formem núcleos característicos capazes de determinar centros de
literatura à parte. De resto, os olhos estão todos voltados para o Rio, onde a Academia
assenta quarenta imortais que oficializam a Literatura Nacional. (apud Rio, 2006, p.75)
A opinião de Luís Edmundo é calma e segura, não possui a violência oratória do
Pe. Severiano de Rezende. Todavia, Edmundo é claro ao dizer quem realmente ditava e
formatava o gosto literário nacional. Contra a Casa de Machado de Assis, nada podia
ser feito.
Romero atuou num ambiente cultural no qual a especialização praticamente
inexistia, e criou uma obra que abarcou áreas bastante diversas. Câmara Cascudo, em
uma breve notícia biográfica sobre o autor, salienta este aspecto: “Foi o maior
divulgador e agitador de idéias culturais de sua época. Sua bibliografia é extensa,
contando livros sobre quase todos os assuntos. Iniciou a história literária no Brasil”.
(Cascudo, 1984, p. 713)
“Agitador de idéias culturais”, este fragmento de opinião de Câmara Cascudo dá-
nos margem para trazer à baila um aspecto importantíssimo da pessoa e da obra de
Sílvio Romero – o seu papel de polemista, como já foi possível perceber na acalorada
discussão em torno da existência ou não dos Centros Literários estaduais.
Diversos textos que tratam da vida intelectual de Romero enaltecem,
sobremaneira, esta sua dimensão pessoal tão polêmica. O crítico, muitas vezes, não se
sentia satisfeito em apenas discordar de uma ou outra opinião, fazia questão de
“alimentar” uma boa briga, especialmente quando ela se estendia pela imprensa, seu
principal meio de divulgação das idéias.
Foi assim quando ele escreveu e publicou o ensaio Machado de Assis, em 1897.
Romero fez severas considerações críticas sobre a obra do autor de Helena, chamando o
romancista de “macaqueador de Sterne” e “estrangeirado da Literatura Brasileira”,
como podemos perceber neste trecho:
Machado de Assis repisa, repete, torce, retorce tanto suas idéias e as palavras que as
vestem, que deixa-nos a impressão de um eterno tartamudear. Esse vezo é o resultado de
uma lacuna do romancista nos órgãos da palavra. Em prosa falada ou escrita, no estilo
fluente, imaginoso, poético, e no gracioso e humorístico, Machado de Assis não é
superior a Tobias Barreto; é-lhe sempre inferior. (Romero, 1959, p.36)
90
Para Romero, Machado, com seu "pessimismo de pacotilha" e seu "humorismo de
almanaque", nada trouxe de novo à Literatura Brasileira, nem respondeu às suas
necessidades evolutivas. Outro aspecto controverso de se notar é que Sílvio Romero
lançou este livro em 1897, justamente no ano em que Machado o convidou para ser um
dos fundadores da Academia. Levantemos apenas mais uma das suas grandes brigas:
contra José Veríssimo.
Romero e Veríssimo foram amigos nos idos finais do século XIX, no auge
intelectual da Revista Brasileira. Foi na redação deste periódico que ambos se
conheceram, e também foi lá que Machado de Assis convidou os dois ensaístas para o
ajudarem na fundação da Academia Brasileira de Letras. Até então, os ânimos
ideológicos de ambos não se chocavam.
Todavia, uma diferença brutal de temperamento foi se acentuando entre eles à
medida que o tempo passava. Romero era mais apaixonado pelas causas, barulhento,
falante, briguento; Veríssimo mais comedido, tímido, conciliador e diplomático. Neste
sentido, as divergências de ordem política e literária foram os principais motivos de
distanciamento intelectual entre os dois. Segundo Brito Broca,
Veríssimo exercia essa crítica chamada militante, a apreciação regular dos livros do dia,
na qual, embora com imparcialidade, mostrava-se um tanto dogmático, assumindo ares
professorais, que não podiam deixar de suscitar o espírito de pirraça com que Sílvio
Romero costumava se opor à rigidez dos mestres. E o choque tornou-se inevitável,
sobretudo no momento em que se ergueu entre ambos a figura de Tobias Barreto. Sílvio
Romero fizera-se o defensor, o apóstolo do talento de Tobias, e fanático como quase
todos os apóstolos, cometia erros de julgamento quando entrava em jogo a figura do
amigo querido. Não podendo conformar-se com o esquecimento, realmente injusto, em
que figurava Tobias, excedia-se ao reivindicar-lhe os direitos. Estaria sempre mal com
Sílvio Romero quem tocasse na glória de Tobias. Foi um dos crimes cometidos por José
Veríssimo: procurar reduzir as proporções do filósofo e negar a importância e mesmo a
existência dessa “Escola de Recife”, que seria o grande apanágio de Tobias e a que Sílvio
Romero se filiava, como sucessor direto do mestre e amigo. (Broca, 2004, p.266)
Este posicionamento de Veríssimo foi o suficiente para que Romero exercesse a
sua vingança. Em 1909 ele publicou o livro Zeverissimações ineptas da crítica, um
violento ataque pessoal marcado por inúmeras agressões morais a José Veríssimo. O
livro caiu como bomba nos meios intelectuais da antiga capital, criando uma enorme
aversão a Romero por parte dos amigos e seguidores de José Veríssimo, especialmente
Rui Barbosa e Coelho Neto.
Um dos instrumentos usados por Romero neste ataque verbal foi a grande
profusão de apelidos com os quais tratou Veríssimo nas suas considerações. Tal
91
processo de criar pseudônimos para os seus desafetos era bem conhecido, tanto que
voltamos a Brito Broca para conhecermos outros exemplos:
Todos os que provocaram a discussão foram alvos de cognomes depreciativos: Teófilo
Braga tornou-se Mané Teófilo e o Joaquim da Terceira; Valentim Magalhães, Coringa;
Laudelino Freire, Lomelino, o Burregote; Capistrano de Abreu, o Caspento, o Seboso.
Não são de estranhar, assim, as antonomásias ridículas que ele pespega em Veríssimo.
Começa por chamá-lo de Tucano Empalhado, em seguida, passa a tratá-lo por Zé
Bríssimo, Quasimodo – alusão ao físico pouco esbelto do crítico –, dando-lhe, por vezes,
em tom galhofeiro, o tratamento familiar de Zezé. (Id., p.267)
O livro não possui nenhuma linha de considerável valor crítico, apenas uma
verborragia de ataques e insultos de natureza puramente pessoal. No primeiro capítulo,
Romero manda o “Saint-Beuve peixe boi pescar tartarugas nas margens do Amazonas e
deixar de dizer asnidades” (Romero, 1909, p.10). Neste trecho, o autor faz alusão ao
crítico francês Saint-Beuve, criador da Crítica Biográfica, no sentido de relacionar essa
atividade a do próprio José Veríssimo. As referências à cultura amazônica dão-se pelo
fato de que Veríssimo era natural do Pará, e ao longo da sua vida escreveu inúmeras
obras acerca da cultura amazonense, especialmente sobre sua fauna.
Mais adiante, ele continua sua seqüência de disparates e também envolve um
outro amigo de Veríssimo: “Anda, Zezé: pede auxílio ao Capistrano, o famigerado
Bumba, a todo o agulheiro, e vem: quero esmagar-te de vez, patureba.” (Id., p.16). O
“famigerado Bumba” é Capistrano de Abreu, outro que igualmente sofreu na língua
famigerada de Romero. O motivo foi o mesmo: Capistrano também não reconhecia o
status de mestre honorífico que Sílvio insistia em fornecer a Tobias Barreto. Aliás,
Capistrano foi aluno de Tobias, e tal fato ele sempre usava nos artigos que fazia
qualquer alusão ao filósofo, alegando que o conhecera de perto e que, por isso mesmo,
não lhe reconhecia a posição de guru sempre defendida por Romero.
Alguns amigos e admiradores de Veríssimo reagiram através da imprensa. A voz
mais forte e objetiva veio de Assis Chateaubriand que, naquela época, assinava seus
artigos apenas com o seu sobrenome, Bandeira de Melo. Chateaubriand escreveu uma
série de artigos que defendiam, a todo custo, José Veríssimo. Tempos depois, ele os
recolheu e publicou-os sob o título A Morte da Polidez. É interessante ler um
fragmento desta obra:
Quando um pensador esquecido do próprio decoro e abandonado à violência do seu
temperamento, entra a firmar na indeterminação e consistência do doesto chulo, da
92
pacholice pulha, da linguagem mascavada e de probidade defeituosa os seus processos de
crítica; e, muito de indústria, postergando os meios de defesa dos sujeitos educados, elege
a grosseria e o desaforo armas de combate entre homens de letras, vem a pêlo saber se
estamos diante de um cérebro equilibrado, de uma consciência ponderada e justa, ou o
que é melhor, e muito mais acertado, se diante de uma mentalidade em decadência, de
uma inteligência enferma, combalida, impotente para dominar as suas paixões, para julgar
a bête humaine, cuja posse da alma só inspira o desejo de injuriar e de malsinar. (apud
Broca, 2004, p.270)
Chateaubriand usou argumentos persuasivos para deixar claro a sua aversão à
atitude de Sílvio Romero, não apenas porque Veríssimo era seu amigo, mas porque o
futuro magnata das comunicações via neste episódio justamente a antítese do que ele
imaginava ser a liberdade de imprensa. Por isso o cuidado nos adjetivos para classificar
a pessoa e a atitude de Romero.
Alceu Amoroso Lima reconhecia esta dimensão polêmica da personalidade de
Sílvio Romero, tanto que nunca a ignorou nas suas lembranças acerca do velho mestre.
Pelo contrário, para Alceu, era exatamente esta característica que o tornava interessante.
Sobre este aspecto, Amoroso Lima afirmou que
No seu tempo foi imenso o seu prestigio, embora não lhe tivesse faltado adversários e
contraditores. Não fosse ele o polemista apaixonado que sempre foi e tanto prejudicou a
objetividade de sua obra, hoje mais reduzida a um monumento do passado, onde sempre
encontramos riquezas a respingar, do que a um desses organismos vivos que continuam
frescos a despeito do tempo. (apud Teles, 1980, p.452)
Alceu sempre insistiu na idéia de perenidade do pensamento de Silvio Romero,
cuja obra ainda tinha ’riquezas a respingar’. Todavia, tal fato não era devidamente
reconhecido, as novas gerações não identificavam o velho polemista como ícone, como
paradigma a ser seguido. Muitos lembravam de Romero apenas como aquele que
gerava e sustentava os mais diferentes escândalos, sem conhecer com afinco a sua
produção intelectual.
Quanto ao próprio José Veríssimo, agiu conforme era esperado da sua
personalidade, não tomou qualquer atitude de imprudência sensacionalista, não
esbravejou e sequer respondeu à altura pelos ataques diretamente recebidos. Não quis
pagar com a mesma moeda. Sua única reação se deu de forma um tanto silenciosa e
literária. Pouco tempo antes de morrer, Veríssimo escreveu a sua última obra, História
da Literatura Brasileira.
Nela o crítico fez uma minuciosa dissecação da nossa história literária,
diacronicamente, como era comum na época. Falou, escreveu e analisou sobre quem ele
93
pode lembrar que estivesse envolvido no percurso da Literatura Brasileira, inclusive
devotando páginas e páginas a escritores sem muita importância. Quanto a Sílvio
Romero, a este Veríssimo dedicou apenas essas linhas:
Mas o primeiro dos escritores brasileiros que, de parte um breve e malogrado excurso
pela poesia, fez obra copiosa de crítica geral e particular, é o Sr. Sílvio Romero,
simultaneamente discípulo, por Tobias Barreto, dos alemães e, muito mais diretamente,
dos franceses por Taine e Scherer, pelo que é da literatura propriamente dita, e de
Spencer, Haeckel, Noiré e Ihering, pelo que é da filosofia e pensamento geral.
(Veríssimo, 1954, p.225)
É pouco, especialmente se levarmos em consideração a gigantesca obra deixada
por Sílvio Romero nas mais diferentes áreas do saber humano. Vingança silenciosa e
econômica, onde Veríssimo falou apenas o óbvio em relação à obra do polemista, isto é,
sua filiação intelectual e espiritual.
Para finalizar, é interessante demonstrar como a personalidade tão forte de Sílvio
Romero influenciou na formação de Alceu Amoroso Lima. Várias foram as ocasiões
que Tristão de Athayde se referiu à pessoa do crítico, desde os anos do Colégio Pedro II
até a Faculdade de Direito.
Pode-se afirmar que Alceu teve uma imensa admiração por Sílvio Romero. Alceu
não reconhece no ex-professor a figura do polemista nervoso que não perdoava nenhum
desafeto, ao contrário, sempre se refere nestes termos:
Sílvio Romero foi, sem dúvida alguma, o professor que mais marcou a minha vida na fase
da formação cultural na mocidade. Era ele, antes de tudo, um homem que à cultura aliava
um grande sentimento de humanidade. Vivo, cordial, pareceu-me desde logo um ser
tipicamente brasileiro. Quem o via percebia nele imediatamente a negação do
formalismo. Como professor, revelava-se, tanto na exposição da matéria como no trato
com os alunos, o avesso da aridez com que se comportava a maioria dos mestres de meu
tempo. Seu ensino era palpitante, vivo, inteligente, comunicativo, enquanto os outros
professores, afastados, distantes, quase indiferentes à classe, limitavam-se a ler as
apostilas, tal como em Coimbra. O professor era o lente, o que lia. (Lima, 1974, pp.39-
40)
De acordo com essas lembranças de Alceu, parece que temos um outro Sílvio
Romero completamente diferente daquele que há pouco foi descrito. Sem brigas,
apenas com amabilidades para com os alunos, tanto que marcou o ex-aluno Alceu pela
vida inteira. Mestre competente, intelectual seguro numa época que os professores eram
vistos como entidades pedagógicas, verdadeiras divindades que pairavam no solo dos
94
simples mortais transformados em alunos. Mais uma vez, o antigo mestre é coberto de
boas lembranças:
Sílvio Romero era o grande professor que se colocava ao nível dos alunos, conversando
com eles antes e depois das aulas. Aceitava apartes, a que respondia com bom humor,
sem nunca se irritar. Não se limitava, durante suas exposições, ao texto da matéria.
Discorria para lá da Economia Política e da Filosofia do Direito, disciplinas ensinadas por
ele na faculdade. [...] Era dotado dessa qualidade indispensável a qualquer professor que é
o sentido da comunicabilidade, a empatia entre o que recebe e o que dá. Não tinha a
preocupação de encher o aluno de conhecimentos. Pelo contrário. Sua preocupação era
despertar o gosto pelo conhecimento. (Lima, 1974, p.40)
Outro dado interessante das lembranças de Alceu diz respeito à religiosidade de
Romero. Pode parecer estranha tal afirmação, mas é verdade, o intrépido agnóstico
tinha alguns arroubos religiosos, o que entra em choque com a idéia largamente
divulgada do sentimento de total aversão à religião de Sílvio Romero, especialmente em
relação ao Catolicismo. A este respeito, lembra Alceu:
Sílvio Romero, apesar de evolucionista, conservava em segredo certos resquícios de fé.
Contou-me mais tarde seu filho, Nélson Romero, que ele rezava toda a noite o Padre
Nosso juntamente com a mulher e os filhos reunidos. Considerava-se, no entanto, um
demolidor da Igreja. Quando estava para se transferir do Recife para o Rio de Janeiro,
declarou enfático: “Vou derrubar a fortaleza católico-feudal”. Mas o que ele derrubava
era o preconceito que ligava o catolicismo a uma determinada classe social. (Lima, 1974,
41)
Isto é um fato interessante e até mesmo intrigante, o voraz crítico da Igreja, o
grande vassalo do agnosticismo rezava – diariamente – o Pai Nosso, oração cristã por
natureza, excelência e caridade. E tudo isso ele o fazia em segredo, como se tivesse
vergonha, como justificar tal ato de devoção de alguém tão avesso à religião? Romero
era dos tais que via a Igreja Católica como um sinal claro de atraso, de retrocesso
ideológico.
A instituição era, na sua opinião, uma das grandes responsáveis pelo atraso
brasileiro, com freqüência ele defendia que a supremacia econômica dos países
protestantes se dava pela ausência da ideologia católica. Essa opinião ele corroborava,
principalmente, em relação à realidade sociocultural nordestina, a qual ele bem
conhecia. A respeito da sua relação com o divino, o próprio Romero deu algumas
informações no Momento Literário:
95
Outra coisa que me ficou incrustada no espírito, e com tanta tenacidade que nunca mais
ouve crítica ou ciência que dali me extirpasse: a religião. Devo isso à mucama de
estimação, a quem foram, em casa de meus avós, encarregados os desvelos de minha
meninice. Bem cedo aprendi as orações e habituei-me tão intensamente considerar a
religião como coisa séria, que ainda agora a tenho na conta duma criação fundamental e
irredutível da humanidade. Desgraçadamente, ai de mim! Não rezo mais: mas sinto que a
religiosidade jaz dentro de meu sentir inteiriça e irredutível. Muito diáfana, idealizada,
mas é sempre ela. (apud Rio, 2006, pp.36-37)
Trata-se de uma sintomática revelação, pois mesmo que a pessoa se afaste da
religião, o sentimento religioso não deixa totalmente o íntimo daquele que, mesmo em
tempos remotos, teve alguma experiência de fé. Parece ser o caso de Sílvio Romero,
pois teve uma formação religiosa de teor ainda colonial, dada por (ex)escravos que,
certamente, imprimiram-lhe um Catolicismo simples, marcado pela devoção popular
aos santos e santas e pela fé na interseção da Virgem Maria. Tal devocionário é muito
forte no interior nordestino, onde Romero passou sua infância e teve as primeiras
experiências religiosas. Fatos como este sempre estiveram nas memórias de Alceu, em
diversos momentos ele cita exemplos de amigos que aparentemente perderam a fé e, na
maioria das vezes, não extinguiram o sentimento religioso de forma integral.
Alceu foi muito sensível às pessoas, amigos e intelectuais que passaram pela sua
vida, soube aproveitar as diferentes ideologias que circularam no meio acadêmico no
qual ele foi inserido. Para entendermos o Alceu crítico literário devemos ter noção
daqueles que estruturaram a Crítica Literária de caráter profissional e sério, bem como
das vozes dissonantes a este projeto canônico de se analisar as diferentes dimensões do
processo literário. Ao fazer uma espécie de levantamento necrológico dos grandes
nomes da Literatura Brasileira naquele momento, Alceu assim lembra:
Devo lembrar ainda que entre 1901 e 1923 houve uma hecatombe dos grandes nomes da
nossa literatura. Se a minha memória não me falha, posso precisar algumas datas. Em
1901 morreu Eduardo Prado; em 1908 Machado de Assis; em 1909 Euclides da Cunha;
em 1910 Joaquim Nabuco; em 1911 Araripe Júnior e Raimundo Correa; em 1912 Rio
Branco; em 1914 Sílvio Romero; em 1915 Mário Pederneiras; em 1916 Afonso Arinos;
em 1917 José Veríssimo; em 1918 Olavo Bilac; em 1922 Lima Barreto; em 1923 Rui
Barbosa. Entre 1901 e 1923 morreram todos os grandes que dominavam a floresta
espessa de nossa literatura naquele período. Era o fim de uma elite cultural brasileira. Os
três grandes poetas, os três grandes críticos, os três grandes publicistas haviam
desaparecido. (Lima, 1974, p.57)
De fato, em vinte e dois anos a nossa literatura ficou sem os grandes nomes que
influenciaram diretamente na nossa vida literária e cultural, especialmente naquela
transição dos séculos XIX e XX. Nomes que imprimiram, cada um à sua maneira e
96
ideologia, uma forma de encarar a Arte e suas principais manifestações em nível
literário. Em duas décadas, os principais nomes da geração de Machado de Assis
desapareceram, aqueles que tinham ajudado na fundação da tão controversa Academia
Brasileira de Letras atingiram o panteão da imortalidade que eles tanto se orgulhavam
de defender. Sobre o importante desempenho de Silvio Romero, assim Alceu Amoroso
Lima o resumiu
Houve, pois, em Silvio Romero, ao mesmo tempo, uma ação pessoal extraordinária e uma
obra duradoura que o tempo não destruiu nem destruirá. Com ele entra a crítica literária
em uma nova fase, a que chamei de racionalista, porque pela primeira vez saia do
domínio do espiritual individual e do sentimento vago e puramente emotivo, bem como
das formas acadêmicas e convencionais, para entrar no domínio da sistematização
filosófica e da interpretação das letras em união com os fenômenos sociológicos. Com
isso exercia Silvio Romero uma ação direta sobre as letras, em sua posição criadora,
concorrendo decisivamente para a nova coloração que iria distinguir a nossa literatura,
durante toda a segunda metade do século XIX. Quando morreu em 1914, morria com ele
um mundo, morria com ele o século XIX. Começava para as nossas letras brasileiras,
como começava para todo o mundo ocidental, uma nova fase intelectual e social. O
século XX começou em 1918, quando terminou a primeira guerra universal. Com ele
novos valores literários iam surgir, novas escolas, novas personalidades, novo gosto
estético, novos métodos críticos. (apud Teles, 1980, p.451)
Amoroso Lima reconhecia em Romero uma espécie sistematizador não apenas da
nossa Critica, mas também da nossa pesquisa acadêmica e, por conseguinte, da nossa
maneira de ler e interpretar a realidade cultural brasileira. E mais ainda, na opinião de
Alceu, Romero foi uma espécie de divisor de águas na História da Cultura Brasileira,
fazendo a interligação entre os séculos XIX e XX, porem pendendo mais para o
primeiro.
Em linhas gerais, podemos concluir esta parte do nosso trabalho reconhecendo a
forte influência que Silvio Romero exerceu sobre Alceu Amoroso Lima. Certamente,
Romero foi uma das personalidades brasileiras que mais contribuiu na formação
intelectual de Alceu, principalmente com a força da sua pessoa, mais do que a da sua
obra intelectual.
Alceu permaneceu, é a partir de agora que ele vai manifestar as suas idéias quanto
à hermenêutica dos textos literários, bem como de escritores e respectivas obras. Alceu
surgiu na Crítica Literária em 1919. Entretanto, aquela geração de críticos tão afamados
e inquestionáveis como Araripe Junior, José Veríssimo e Sílvio Romero já estava na
prateleira da História, mas suas ideologias estéticas ainda estavam em voga e deixaram
importantes discípulos que se encarregaram de dar continuidade aos seus antigos
97
mestres. Todavia, esta postura canônica de se conceber o fenômeno literário foi muito
questionada por certos setores da sociedade letrada. Outras vozes gritaram,
espernearam e tentaram, cada uma a sua maneira, deixar a sua marca.
98
3.2.
A Crítica Literária Católica – um Gênero Problemático
Esta parte do nosso trabalho começa com uma espinhosa proposta: falar de uma
Crítica Literária Católica. Tal dificuldade se dá pelo fato de que, numa perspectiva
canônica e metodológica, tal delimitação da crítica não existe (pelo menos com esta
nomenclatura). Segundo alguns especialistas, o que nós temos é um exercício crítico
marcado pela ideologia católica, pelos seus pressupostos e, por que não dizer,
atravessado pelo seu teor doutrinal e principalmente apologético.
Para quem gosta de nomenclaturas, alguns críticos preferem considerar a
existência de uma “Crítica Espiritualista” e, por isso mesmo, abandonam o carimbo de
Crítica Católica. Tal fato se deu por ter existido uma considerável produção crítica que
privilegiou certos aspectos do Simbolismo, especialmente o teor
espiritualista/metafísico daquele movimento. Neste sentido, a idéia de espiritualismo
excedia os limites doutrinais do Catolicismo, era algo mais amplo, mais cósmico, mais
universalizante, adjetivo muito caro a este grupo de críticos.
Tal tendência espiritualista era partidária do conceito de “mistério”, palavra esta
tantas vezes utilizadas nos poemas simbolistas, com mais força na obra de Cruz e
Souza, especialmente para nomear o inominável. E para enfatizar, este “Mistério” era
sempre grafado com “M” maiúsculo. Desta forma, abandonavam as posturas puramente
materialistas ofertadas pela propaganda positivista e lembrando, neste afã, todas as
possibilidades e vias materialistas, do naturalismo ao ateísmo, passando pelo ceticismo
degradé da Belle Époque.
Daí que, para alguns especialistas, é mais correto falar de uma Crítica
Espiritualista do que de uma Crítica Católica. Minha opção é pela terminologia
Católica, pois ainda que não encontremos em Alceu Amoroso Lima uma crítica “de
paróquia”, vemos nele um intelectual profundamente atravessado por esta ideologia,
ruminado por esta doutrina e marcado por esta fé. Como grande intelectual que foi, sua
atividade crítica não foi integralmente devotada aos pressupostos da Igreja Católica. A
importância do Catolicismo residiu mais na sua formação acadêmica, na estruturação do
seu pensamento e na práxis da sua atividade criadora. Isto sem dizer das diversas
situações de entrincheiramento ideológico nos quais ele se viu envolvido e imerso,
debatendo de forma ferrenha para defender os seus pontos de vista e os da Igreja, em
algumas situações bem específicas.
99
Minha opção metodológica em tentar desvendar a existência de uma Crítica
Católica se justifica por uma simples questão: o debate ideológico fortemente marcado
entre os defensores e os detratores de tal modalidade crítica. Entre a platéia e os
bastidores da Crítica Literária brasileira daquele momento, estava um palco de análises
hermenêuticas bem diversificado, ocupado sobremaneira por inúmeras correntes cada
uma cobrando a sua razão de existir. Dentre elas, a tendência católica foi
particularmente interessante e provida de algumas especificidades teórico-
metodológicas que valem a pena serem analisadas.
O principal problema se coloca pela própria natureza e função da crítica. Em
princípio, espera-se que as análises críticas sejam marcadas pelo equilíbrio e isenção da
predileção do crítico, no qual o censo de justiça deve sempre prevalecer em relação ao
seu gosto pessoal, já que o mesmo é um leitor especializado e, por isso mesmo, deve ter
um certo senso de responsabilidade na sua atividade analítica. A este respeito, Alceu
tem uma opinião bem clara:
A primazia do ser se manifesta na atividade crítica como na atividade filosófica. O
realismo crítico como o realismo filosófico correspondem à própria natureza das coisas.
Daí ser a verdade o verdadeiro fim do crítico. E de todo juízo de valor que realmente o
seja. A crítica não é um devaneio a propósito de um tema, de um poema, de um romance.
Crítica não é ensaio. Nem crônica. Na crítica, no rigor do gênero, é o elemento objetivo
que domina. De qualquer maneira, o realismo crítico se impõe sobre qualquer idealismo.
A crítica autêntica é tanto mais livre quanto mais fiel ao objeto. (apud Coutinho, 1980,
p.30)
Alceu cita um dos maiores desafios da atividade crítica: a busca da “verdade”.
Mas qual a verdade da Crítica? E quando o crítico possui várias “verdades”? Todas
essas questões certamente interessavam Alceu, pois enquanto ele exerceu tal práxis
através da imprensa e a teorizou em diversas publicações, ele sempre usou de uma
postura um tanto metalinguística no que diz respeito às problematizações teóricas da
Crítica Literária. Criticar uma obra (ou fragmento dela) requer profissionalismo, tanto
que ele claramente enfatiza: “A crítica não é um devaneio a propósito de um tema, de
um poema, de um romance”. Não é exercício amador ou feito pelo bel prazer de
discordar, como em muitos casos acontecia (e ainda acontece!), tampouco para destruir
o elemento analisado, como sempre afirmava Lima Barreto, traumatizado que foi pelas
diversas perseguições que sofreu dos grandes críticos literários do seu tempo. Por isso,
tal atividade não é um “devaneio”, um exercício experimental.
100
Na opinião de Alceu, esta práxis analítica da literatura também não devia ser
confundida com a prática do ensaísmo: “Crítica não é ensaio. Nem crônica”. Neste
aspecto, Amoroso Lima batia de frente com a já conhecida postura dos críticos
ortodoxos, especialmente José Veríssimo, para quem criticar era também um exercício
de erudição, além de hermenêutico e estético. Nisso, Alceu certamente aprendeu com o
mestre, não para copiá-lo, pois depois seguiu um caminho bem diferente e próprio.
Mas voltando à problemática da Crítica Literária Católica, bem como a tentativa
de delimitação teórica deste gênero, sabemos que naqueles idos dos anos 20 e 30 tal
atividade literária era considerada por alguns como uma Crítica de Direita, reacionária,
religiosamente fanática e, por isso mesmo, infrutífera no que concerne aos próprios
objetivos tradicionais da Crítica.
Como já afirmamos, Alceu iniciou sua atividade de crítico literário em 1919, em
O Jornal, três anos depois dois acontecimentos bifurcaram sua vida intelectual: a
fundação do Centro Dom Vital (que viu de perto) e a Semana de Arte Moderna (que
acompanhou de longe), duas manifestações culturais frontalmente opostas em termos de
ideologia. Sem entrar na discussão das fronteiras ideológicas entre esquerda e direita,
podemos afirmar que esta oposição ideológica foi bem clara na produção artística e
também na fortuna crítica produzida durante este momento. Como bem escreveu Jorge
Amado na edição de maio de 1934 da revista Lanterna Verde, editada pela Sociedade
Felippe d’Oliveira, “a situação é de tal modo trágica que aquele que não está de um lado
está necessariamente do outro” (apud Martins, 2002, p.544).
Neste momento, o intelectual engajado era aquele que escolhia o “seu lado”, o seu
métier, os seus locais adequados de convívio social, nos quais trocavam e discutiam
suas idéias e suas propostas político-culturais. Daí compreendermos bem a fala de
Jorge Amado, uma vez que ele conheceu bem este contexto e optou pela direção
esquerdista, já que se filiou e militou no Partido Comunista Brasileiro. A este respeito,
o crítico Gilberto Amado (não confundir com o escritor baiano), afirmou no ensaio A
Crise da Livre Crítica no Brasil:
Desejam dominar o Brasil no momento atual, no campo das preocupações intelectuais,
duas correntes absolutas e intransigentes. Visam ambas a mesma coisa: estrangular o
livre pensamento, a livre crítica: a corrente católica e a corrente comunista. (apud
Martins, 2002, p.544)
101
Nosso objetivo não é falar da crítica comunista, pois tal assunto merece um outro
trabalho mais direcionado para tal. Optamos em analisar a vertente católica,
identificada claramente com a Direita, bem como as respectivas interseções no ramo das
análises literárias. O próprio Alceu Amoroso Lima ajudou na difícil investigação desta
corrente intelectual. Para ele, criticar
É agir, consciente ou inconscientemente, de acordo com um ponto de vista, com uma
concepção geral da vida e, portanto, de acordo com uma metafísica sem, entretanto,
confessá-la ou mesmo sem procurar conhecê-la. Assim como Monsieur Jourdain fazia
prosa sem saber que o fazia, assim também todo mundo faz metafísica sem saber ou sem
querer. Mesmo quando afirma que não o faz, já dizia Aristóteles, pois negar um
pensamento “para lá da física” já é ter uma metafísica. (apud Coutinho, 1980, p.21)
O posicionamento de Alceu foi um tanto paradoxal no que diz respeito ao uso da
metafísica, especialmente quando defende o uso da mesma sem “confessá-la ou mesmo
sem procurar conhecê-la”. Em termos práticos, tal idéia é praticamente impossível de
se realizar, pois uma ação proposital pressupõe um certo conhecimento de causa.
Em linhas gerais, a Metafísica é o estudo de questões que transcendem a realidade
material, que ultrapassam a barreira do visível e do palpável. O ramo central da
Metafísica é a Ontologia, esta investiga em quais categorias os seres estão no mundo e
quais as relações deles entre si. Este ramo da Filosofia também tenta esclarecer as
noções de como as pessoas entendem e sentem o mundo, incluindo a existência pessoal
e a natureza do relacionamento entre os objetos e suas propriedades.
Tais concepções se aplicavam perfeitamente à práxis crítica de Alceu, uma vez
que o crítico sempre expressava a vontade de compreender o seu objeto analisado como
um todo, as motivações do autor, os aspectos existenciais das personagens, suas razões
de existir e até mesmo os títulos das obras analisadas, já que estes também possuíam a
sua “própria natureza” e o porquê de terem sido criados. Ou seja, mesmo sem definir
teoricamente este termo, Alceu não deixou de praticar uma espécie de Crítica
Ontológica.
Este espiritualismo dentro da atividade crítica foi próprio do rumo que a mesma
tomou naquele período, tendo inúmeros entusiastas e adeptos produzindo conhecimento
e debatendo idéias concernentes a este tema . Uma importante demonstração de força
foi a criação da revista Festa, vislumbrada por Tasso da Silveira num evento que
102
ocorreu na casa de Cecília Meireles. A respeito do surgimento de tal veículo de idéias,
afirmou o crítico Carlos Chiacchio
4
:
É preciso reconhecer do mesmo modo no núcleo intelectual de Festa, recentemente
fundado, sob as vistas de Tasso da Silveira, Barreto Filho, Andrade Muricy e outros
entendimentos claros do verdadeiro caminho do Brasil, esse nascente espírito de reação
contra as tropelias mentais dos apressados importadores de escolas literárias inadaptadas
e inadaptáveis ao nosso gosto e à nossa índole. Essa corrente, sim, com algumas
restrições, é que talvez encontre um veio franco de aceitação [...]. Batem conosco esses
corações de tradicionalistas dinâmicos. (apud Martins, 2002, p.528)
Chiacchio faz alusão às diferentes trincheiras estético-ideológicas que o
Modernismo brasileiro possuía na ocasião, especialmente a tradicional disparidade entre
as diferentes propostas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Este último, como se sabe,
empreendeu uma proposta mais vanguardista e, em alguns aspectos, um tanto anárquica.
Eram os “importadores de escolas literárias inadaptadas e inadaptáveis”, difíceis de
serem “engolidos e degustados” pelos mais tradicionalistas e defensores do continuísmo
literário, como é o caso do próprio Chiacchio.
A revista Festa apresentou uma série de alternativas ao entendimento sobre a
modernidade e a idéia de Nação formuladas pelos modernistas do Rio de Janeiro,
principalmente durante as desbravadoras experiências estéticas da década de 1920.
O nome da revista, inspirado na obra A Festa Inquieta, de Andrade Muricy, é justificado
pelo autor como uma remissão a uma forma de alegria que vence a dor.
A revista foi publicada em duas fases, o primeiro número surgiu em agosto de
1927, no Rio de Janeiro, e teve larga divulgação e distribuição, principalmente na
Livraria Católica e no Centro da Boa Imprensa. A publicação foi interrompida em 1929
e retomada para uma segunda fase entre 1934 e 1935. Teve como principais
colaboradores, além de Tasso da Silveira, Ronald de Carvalho, Andrade Muricy,
Jackson de Figueiredo (apenas na primeira fase), Alceu Amoroso Lima, Afrânio
Coutinho, Murilo Mendes, Henrique Abílio, Cecília Meireles, Ribeiro Couto, Manuel
Bandeira, Adelino Magalhães e Adonias Filho. De longe a colaboração vinha de Mário
de Andrade (São Paulo) e Rosário Fusco (Minas Gerais).
A primeira fase, com o nome de Festa: mensário de pensamento e de arte,
representou seu período mais importante, já que por ter sido publicada ainda na década
4
Em 1928, Carlos Chiacchio e Eugênio Gomes criaram, na Bahia, a revista Arco e Flexa. Sua
ideologia era semelhante a de Festa, por isso o julgamento negativo feito por Chiacchio quanto aos rumos
do Modernismo brasileiro, principalmente sua vertente paulista.
103
de 20, participou de um diálogo espinhoso e contemporâneo com os demais grupos
modernistas. Entretanto, Festa se diferenciou deles, sobretudo, pela valorização formal
e temática da tradição literária brasileira, principalmente no reconhecimento e
exploração do legado cultural deixado pelo Simbolismo e pelo Romantismo.
Tal proposta foi uma clara contraposição à ruptura violenta que Oswald de
Andrade delineou no Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924) e, mais tarde, no Manifesto
Antropófago (1928). Para os articulistas de Festa, havia um entendimento e mesmo uma
opção por uma modernidade nascida a partir da continuidade e não da ruptura, numa
completa postura de devotamento ao universalismo cultural e aos diferentes legados
artísticos que recebemos ao longo do processo da nossa configuração literária. O
subtítulo de Festa nessa primeira fase, ao antepor “pensamento” à “arte”, já indica a
preponderância das discussões teóricas sobre as diversas publicações e da produção
artística dos seus colaboradores, bem como as obras de outros artistas analisados pelo
seu elenco de críticos. O último número desta fase foi publicado em janeiro de 1929.
Na segunda fase, na qual é chamada Festa: revista de arte e de pensamento, a
publicação passou a dar mais importância às artes em si do que à discussão teórica,
priorizando eventos e resenhando textos críticos que analisavam tal produção. A edição
do primeiro número foi em 1934, e se deu após o ápice do primeiro momento
modernista e sua revisão pela geração de 1930. Desse modo, as reflexões sobre a
modernidade e o nacionalismo em diálogo com outros modernistas perderam um pouco
de força no ambiente literário brasileiro e, conseqüentemente, a revista ganhou mais
espaço para a divulgação da produção literária e dos diversos lançamentos que
ocorriam. A respeito desta publicação, Mário de Andrade fez alguns comentários um
tanto céticos:
Talvez mesmo devido a preocupações de ordem espiritual um pouco abstrata que o
animam, tem um grupo de literatos no Brasil que vai passando por demais na sombra.
Esse grupo afinal resolveu chamar a atenção do brasileiro leitor para ele e está publicando
uma revista, Festa. Faz muito bem. Se mais ou menos ele vivia na sombra, não se pode
culpar disso os que viviam chamando a atenção, conseguindo em um momento quase
monopolizar a preocupação literária brasileira. [...] A agitação, a vida nova principiou
com essa gente. É possível que o pessoal de Festa não carecesse do movimento
modernista para ser o que é. Mas, é incontestável que viva apagado, numa torre de
marfim, muito orgulhosa e isolada. (apud Gomes, 1999, p.44)
5
5
O artigo de Mário intitulava-se “O grupo de Festa e sua significação”, e foi publicado no número 6
da revista Festa, em março de 1928.
104
A opinião de Mário, ainda que um tanto ácida, é importante. Se ele atacou, é
porque pertencia a um outro grupo contrário e com propostas bem diferentes em relação
aos intelectuais do Rio; se elogiasse, podia parecer que estava num novo affair literário
com os herdeiros do antigo Simbolismo. Certamente, Mário estava bem desinformado a
respeito do tal “pessoal de Festa”, uma vez que o movimento de produção e publicação
de livros no Rio de Janeiro ia bem acelerado e diverso. Isto sem falar na literatura e na
crítica literária que circulavam através da imprensa na antiga Capital Federal. O próprio
Alceu Amoroso Lima, em 1927, quando da fundação da revista, já tinha um histórico de
oito anos de contribuição diária nos principais jornais e revistas do Rio de Janeiro e até
mesmo de outros estados, como é o caso dos diversos artigos de Alceu publicados na
revista Verde, do grupo modernista de Cataguases, cidade do interior mineiro.
Por essas razões, a opinião de Mário de que este grupo vivia “apagado, numa torre
de marfim, muito orgulhosa e isolada” pode ser questionada. Talvez, a dificuldade do
crítico paulista era reconhecer que o projeto modernista hegemônico de São Paulo podia
ser atingido por outras iniciativas. Com isso, a eterna briga literário-ideológica entre
Rio e São Paulo só ganhava um novo ingrediente. Segundo Ângela de Castro Gomes,
O Rio encontrava-se no centro dessa polêmica, não só por ser a capital federal e o polo de
atração de toda a intelectualidade do país, quanto por encarnar os estigmas do “passado e
atraso” a serem por todos vencidos. Como capital, a cidade cumpria a missão de
representar e civilizar o país, o que sem dúvida deve ser considerado um fator que
impunha à sua intelectualidade uma participação ativa em todas as polêmicas culturais
que alcançassem repercussão nacional. Essa espécie de constrangimento que o campo
político mais amplo trazia ao pequeno mundo intelectual carioca, foi aqui entendida como
uma vantagem. Ou seja, como um estímulo à conformação de projetos culturais que
teriam interlocução ampla e seriam numerosos, variados e competitivos entre si. Era essa
condição que inegavelmente facilitava e potencializava as possibilidades de comunicação
da cidade e de nacionalização de seus estilos e valores. (Gomes, 1999, p.63)
Entre os “dois Modernismos”, entre a Direita e a Esquerda e entre as diferentes
maneiras de expressar a Crítica Literária estava a encruzilhada político-cultural do Rio
de Janeiro. Era a Capital da República, engrenagem da máquina política brasileira, mas
os gritos estético-vanguardistas de São Paulo soaram mais alto, pelo menos no que diz
respeito à repercussão nacional de tais alvoroços. Como Mário afirmava, o Rio nunca
perdoaria São Paulo por “ter tocado primeiramente o sino” (neste caso, o próprio
Modernismo).
Mas era na Capital que boa parte da intelectualidade nacional vinha para angariar
subsídios para publicações, acariciar empresários do setor editorial, participar dos
105
homéricos rega-bofes oferecidos nos diversos círculos de convívio social etc. Era no
Rio que passado e futuro brigavam por um lugar ao sol, deixando o presente perdido e
sem direção, relegado aos escombros da memória cultural, bem como os casarios
derrubados durante a Reforma Pereira Passos.
E como fazer tudo isso? Como pôr em prática este projeto de civilização
nacional? Cada grupo teve suas direções, suas teses defendidas. O grupo de Alceu e da
revista Festa deixou bem claro a intenção de avançar, de dinamizar os questionamentos
acerca da nossa identidade cultural, porém não cortando relações com as nossas
tradições. Era com o Passado que se aprendia o que se devia ou não fazer, evitar. Não
vínhamos do nada, tínhamos uma trajetória diacrônica que podia nos ajudar a crescer
rumo à construção de uma cultura forte e reconhecida. Alceu escreveu um artigo em
Festa, em agosto de 1927, no qual dava suas impressões acerca do nacionalismo, tema
muito em voga naquele momento:
Existe, para os espíritos livres e conscientes, a necessidade de reagir contra a brasilidade
forçada da literatura, que é tão falsa quanto a sua imbrasilidade. Não somos apenas
formadores de nacionalidade. Não vivemos apenas integrados no meio social. Vivemos
também em reação contra ele. E se uma das tarefas da nossa e da nova geração deveria
ser o esforço por formar uma cultura brasileira integral (religiosa, filosófica, social,
política, etc.), em que se conserve ao indivíduo, ao homem todo, a sua importância
fundamental de ser livre, - mais um motivo para que, esteticamente, não nos
subordinemos a um preceito de nacionalização forçada. Devemos salvar o humano, o
pessoal, o irredutível de nossas almas em todos os terrenos de nossa realidade nacional.
(Lima, 1948, p.45)
Uma frase de Alceu pode resumir boa parte da sua visão de mundo: “Devemos
salvar o humano, o pessoal, o irredutível de nossas almas em todos os terrenos de nossa
realidade nacional”. Só com esta afirmativa percebemos o imenso abismo entre o
projeto intelectual-modernista de Alceu e os demais grupos modernistas,
particularmente os “futuristas” de São Paulo. Para o crítico, não podia haver nenhum
projeto de modernidade que ignorasse os valores básicos de uma “sociedade sadia”:
religião, política, filosofia etc. Alceu encontrava um certo hiato nos diversos manifestos
modernistas que surgiram na década de 20, especialmente pelo fato de que eles
ignoravam a “formação integral da pessoa humana”, para expressar suas próprias
palavras.
Na edição de Festa de novembro de 1927, foi aberto um importante debate a
respeito dos diferentes caminhos que o projeto modernista brasileiro vinha tomando.
Tal fato teve início com um artigo de Tasso da Silveira intitulado Renovação: a
106
propósito de um livro de Tristão de Athayde. O texto de Tasso analisava criticamente o
lançamento do livro Estudos – Primeira Série, no qual foram reunidos os textos de
crítica literária que Alceu tinha publicado em O Jornal, durante os anos de 1919-1920.
Para Tasso, o Modernismo brasileiro possuía duas tendências claramente opostas
e até conflitantes: a primeira ele batizou de “Dinamista Objetivista”, ancorada nas idéias
defendidas por Graça Aranha e seus súditos intelectuais, principalmente Ronald de
Carvalho. Esta tendência utilizou diversos veículos para divulgação das suas idéias,
especialmente a revista Toda a América, organizada e editada por Ronald.
Para os “dinamistas”, o futuro intelectual e artístico brasileiro estaria na
integração do país ao conceito de Civilização, especialmente na perspectiva européia do
que se considerava civilizado. Era a defesa do culto à Grande Arte, à Alta Literatura,
tudo diacronicamente filiado à Tradição Greco-Latina. Para Graça Aranha, civilizar o
Brasil seria tirá-lo de sua condição originalmente tupiniquim e incluí-lo no “movimento
geral das nações”, isto é, europeizá-lo o máximo possível, pois apenas desta forma a
nossa cultura podia adquirir respeito e confiança.
Segundo Tasso, o projeto de Graça Aranha dialogava com algumas premissas
positivistas, principalmente com a crença de que alcançaríamos o progresso material na
medida que abandonássemos alguns dos nossos vínculos tradicionais. Neste sentido, a
religião era vista como um dos fatores de atraso e retrocesso, especialmente nas
mentalidades conformistas e resignadas que caracterizavam certas práticas religiosas.
Desta forma, a experiência do Catolicismo no Brasil não era vista com bons olhos,
era um conjunto de tradicionalismos estéreis que não contribuíam para o nosso
desenvolvimento enquanto nação civilizada que tentava integrar-se universalmente. A
solução era depurar a razão da fé. É importante ressaltar que as teses defendidas por
Graça Aranha tiveram eco em diversas partes do país, todavia, foi no contexto cultural
do Rio de Janeiro que as mesmas foram melhor difundidas e assimiladas.
A outra tendência modernista analisada por Tasso da Silveira foi denominada
“Primitivismo”, e estava totalmente voltada para os ideais defendidos pelo grupo
paulista, marcadamente vanguardista e oposto a certas opiniões do grupo carioca. Para
os primitivistas, a idéia de civilização pautada nos moldes europeus estava falida;
definitivamente, a Europa “não tinha dado certo” (expressão sempre repetida por
Oswald de Andrade), e por isso mesmo o velho continente não servia mais como
paradigma a ser seguido.
107
Tal opinião é totalmente paradoxal, pois sabemos que as matrizes ideológicas e
estéticas do nosso Modernismo vieram do continente europeu, principalmente das
experiências francesas, que o diga a influência exercida pelos diversos manifestos
modernistas surgidos em Paris naquele momento. O próprio Oswald de Andrade serviu
de ponte para inúmeros contatos culturais entre os dois países, ajudando na
disseminação das idéias futuristas (o termo “modernista” surgiu um pouco mais tarde)
nos meios brasileiros. Na negação da cultura canonicamente instituída residia um certo
fascínio pela mesma. Transgredia-se pela imitação. Em carta a Jackson de Figueiredo,
em 02 de fevereiro de 1923, Alceu fez um sintomático comentário a respeito dos
modernistas de São Paulo, particularmente Mário de Andrade:
É possível que haja muita blague no que escrevem esses novos de São Paulo. Nem algum
deles nega isso, como o Mário de Andrade. Mas é uma blague de combate, um pouco
ingênua, sem dúvida, mas necessária para agitar esse mar morto em que andam
geralmente as nossas letras. Tive mesmo todo o cuidado em acentuar, a cada passo, que o
livro dele era mais um livro de combate do que um livro de poesia. (Lima & Figueiredo,
1991, p.63)
Alceu se referiu ao livro Paulicéia Desvairada, publicado por Mário de Andrade
no ano anterior a esta carta. Para o crítico, a proposta do livro residia melhor num
projeto claro e definido de escandalizar, de romper com o que se vinha produzindo
poeticamente há muito tempo no Brasil. Nesse sentido, a blague era vista por Alceu
como uma ferramenta estilística que ajudava na disseminação dos ideais vanguardistas,
era uma opção que configurava a identidade do grupo paulista.
Para os primitivistas, o passado nada podia oferecer de construtivo, era apenas
uma cronologia de experiências fadadas ao museu das lembranças estilísticas. É claro
que tal opinião não foi uníssona nem mesmo dentro deste grupo, o melhor exemplo foi
Mário de Andrade, para quem a Tradição era importante, pois com ela se aprendia e
evoluía. O que Mário repudiava eram os chamados tradicionalismos (permanência de
certos valores retrógrados, de determinadas práticas estilísticas), pois estes eram
estáticos e não dinamizavam ou mesmo enxertavam o contexto artístico com novidades,
necessárias para a vitalidade cultural. Mário dizia que a Tradição era necessária, pelo
menos para aprender a não repeti-la.
Na edição seguinte de Festa, em março de 1928, Alceu responde a Tasso com o
artigo O grupo de Festa e sua significação. Neste texto, Amoroso Lima deixou bem
claro que ele repudiava as duas tendências apresentadas por Tasso:
108
Nenhuma delas seguirá vitoriosa por parciais e incompletas. Aceitar o dinamismo seria
louvar uma concepção materialista de civilização, prosseguindo num naturalismo
maldisfarçado; aceitar o primitivismo seria disseminar o pessimismo inútil e destruidor:
fazer literatura às avessas. (apud Gomes, 1999, p. 69)
Para Alceu, a solução modernista estaria numa terceira via, que ele chamava
Espiritualista ou Modernismo Continuador. É importante ressaltar que não se tratava de
um neo-simbolismo, como alguns defendiam, tampouco a negação da idéia de
modernidade. Como ele mesmo afirmou no referido artigo,
No velho mundo a arte moderna é apenas um desejo de expressão do novo – um índice de
originalidade, de vanguardismo –, no caso do Brasil, é uma ânsia total de expressão do
que somos, do desejo de realização integral de nosso destino. Nos países adolescentes, de
raça em formação, como o Brasil, a arte moderna é possibilidade não só da libertação dos
velhos ritmos e medidas, como principalmente a oportunidade de criação de um
instrumento mais sonoro e sensível, capaz de manifestar a insatisfação e impaciência
existentes e de afirmar nossa diferença. (apud Gomes, 1999, p.70)
Alceu fez uma delimitação bem clara do que, para ele, deveria ser a produção
estética modernista: a possibilidade de configurarmos a nossa identidade cultural a
partir “da libertação dos velhos ritmos e medidas”, isto é, a produção cultural sendo
feita não mais como cópia ou continuação das matrizes européias, tudo isso no afã de
“afirmar nossa diferença”, nossas especificidades.
Mas voltando à já referida bifurcação crítica entre Direita e Esquerda, tão clara e
explícita principalmente nas décadas de 20 e 30, não é necessário dizer que Amoroso
Lima militava nos flancos direitistas. Tal grupo de intelectuais estava sempre em
choque contra os “cântaros vazios”, expressão utilizada por Jackson de Figueiredo para
designar aqueles que, além de não possuírem fé, criticavam e até debochavam dos que a
tinham e expressavam-na. A este respeito, informa Perilo Gomes, um dos
colaboradores mais próximos de Alceu na direção do Centro Dom Vital:
A mentalidade dos nossos homens de letras, na sua quase totalidade, era agnóstica ou
indiferente do ponto de vista religioso. E mais ainda: alimentava-se dos absurdos
preconceitos contra a religião. De modo que qualquer manifestação literária do
pensamento religioso estaria condenada a ser recebida com frieza, quando não com as
mais insólitas demonstrações de ridículo ou de grosseria. (apud Martins, 2002, p.532)
De fato, os opositores dos espiritualistas – simbolistas ou católicos – ou os dois
simultaneamente, eram cruéis quando se referiam aos intelectuais religiosos. Havia
109
uma cisão clara, bem definida e intransponível de um lado para o outro. Certamente por
isso que Alceu “criou” a sua terceira via para compreender o processo modernista.
Sobre os destemperos contra Amoroso Lima e seus companheiros do mundo católico, é
interessante o comentário mal educado que o ex-governador Carlos Lacerda fez:
Fiquei de pé atrás com Jorge de Lima desde que esse poeta se amasiou com Maria
concebida sem pecado e começou a falar em anjos, fungando muito. Uma vez Jorge de
Lima pensou que os intelectuais revolucionários pensavam pela cabeça dos dirigentes
soviéticos da URSS. Grave burrice, apanhada na convivência infecciosa dos industriais
canonizados no armazém da literatura nacional, onde Amoroso Lima e outros laranjas
vendem a varejo o produto da exploração dos seus escravos da Fábrica Cometa. (apud
Martins, 2002, p.547)
A opinião de Carlos Lacerda, especialmente a maneira como ela foi expressada,
era típica daqueles que destratavam o grupo espiritualista. A ironia, o deboche, a
consideração negativa eram recursos comuns para atacar moralmente os escritores e
críticos católicos. Neste fragmento, Lacerda fez alusão à conversão de Jorge de Lima
ao Catolicismo. Tal fato se deu por influência direta de Alceu e Tasso da Silveira,
amigos e clientes de Jorge de Lima, que era médico e anunciava o seu consultório nos
classificados da revista Festa. Bem ao gosto comunista, Lacerda alude ao fato de Alceu
ter sido empresário e ter herdado do pai a administração da Fábrica Cometa, acusando-o
simplesmente pela sua condição de patrão, associando produção de bens e exploração
profissional dos empregados.
Certamente Lacerda não sabia, mas Alceu tinha uma espécie de complexo de
culpa por ter nascido rico e em berço de ouro. Tal fato ele confessou algumas vezes ao
seu amigo Jackson de Figueiredo ao longo da imensa correspondência trocada. Este
fragmento é significativo no que tange a estes dramas de Alceu:
Quando olho a miséria me sinto mais miserável que todos os pobres. Anteontem fui ao
Cemitério do Caju. E eu, morador em bairro rico, passando por aquelas casinhas
miseráveis, de crianças esquálidas, de homens sem dentes, de mãos estragadas pelo
trabalho, de mulheres deformadas por maternidades sucessivas, de famílias inteiras roídas
de sífilis, de vermes, de vícios, e sobretudo a fisionomia velha das crianças que é a coisa
que mais me horroriza na raça brasileira: a velhice precoce das crianças, a tristeza das
crianças, a lealdade das crianças, que horror!!! Vendo tudo isso senti-me – por que não
dizer? – fariseu. Sim, a palavra é horrível, mas o sentimento foi esse e não outro. [...]
Como eu me sinto miserável para essa luta! Um industrial! Um homem rico! Um
capitalista! Um burguês! (Lima & Figueiredo, 1991, p 115)
110
Esta confissão feita por Alceu a Jackson é deveras reveladora, dela emerge um
artista sensível às problemáticas sociais próprias da realidade brasileira. De fato, o tema
da miséria social permeou uma significativa parcela da obra literária de Amoroso Lima,
especialmente nos livros, artigos e depoimentos nos quais tratou das causas da miséria
humana, bem como as suas nefastas consequências. Para Alceu, a experiência cristã era,
fundamentalmente, a prática da partilha e da distribuição dos bens comuns. Daí
compreendermos a sua reação diante da desgraça social e humanitária presenciada na
sua ida ao Cemitério do Caju.
Outra questão igualmente complexa era a acusação, feita pelos intelectuais
esquerdistas, que os pensadores da direita não tinham qualquer tipo de sensibilidade
social
6
, que ignoravam profundamente o que estava acontecendo na realidade brasileira
daquele momento. Na revista carioca Boletim de Ariel, em agosto de 1935,
encontramos um artigo intitulado A Esquerda e a Direita Literária, assinado por
Miranda Reis. Neste texto, o autor fez uma importante constatação:
O palco literário tem, portanto, uma direita e uma esquerda. A família literária está
desunida, dividida, bipartida. Há, dentro dela, duas tendências contrárias, dois partidos
adversos e não há como furtar-se a gente a uma posição definida, sem incorrer na pecha
de oportunista. Enquanto a esquerda insiste no primado do social, a direita sobrepõe ao
sentido do social o sentido do humano: que, enquanto a esquerda prega misticamente a
revolução, a direita descobre “a verdadeira mística”; que, enquanto a esquerda deblatera
contra as desigualdades e as injustiças sociais, contra a exploração do homem pelo
homem, a direita perscruta o “verdadeiro sentido da vida” e se perde em particularidades,
em profundidades, em densidades, em superposição de planos e outras sutilezas; que,
enquanto a esquerda critica os preconceitos sociais, a direita, emprestando a um não-
sentido, a uma imbecilidade, um sentido profundo, alude ao “preconceito de não ter
preconceito”. (apud Martins, 2002, p.546)
O autor esclareceu a situação que se encontrava o contexto literário brasileiro
daquele momento, um mar de diferenças ideológicas separava as duas tendências
claramente oposicionistas. Miranda Reis explicou bem as idéias defendidas por aqueles
que se diziam da esquerda: revolução e primado do social, o combate renitente às
explorações humanas de qualquer natureza e o repúdio aos tradicionais preconceitos
sociais.
6
Embora demasiadamente reducionista, prefiro optar pela simples nomenclatura de Direita e
Esquerda para designar os dois pólos antagônicos que estão sendo analisados nesta pesquisa. Hoje em
dia, apesar da existência dessa tensão, observa-se uma certa flexibilidade e uma certa relativização do seu
uso.
111
A partir de 1930 surgiu uma nova maneira de vivenciar o Modernismo no Brasil,
uma busca pela realidade pautada na regionalidade. Entretanto, esse tipo de
regionalismo não podia ser comparado com as experiências idealizadas dos escritores
românticos, seria uma tentativa de redescobrir o Brasil a partir das suas diversidades
locais e de seus diferentes modos de vida. Para a censura católica e muitos dos seus
intelectuais, tais obras eram apenas capazes de perverter seus leitores: “Passou a hora
das coisas bonitas”, afirmou Alceu num artigo (Lima, 1948, p.17).
Foi neste momento que a idéia de literatura engajada ganhou força nos debates
literários, sendo o Romance de 30 considerado a oportunidade ímpar para que esta
parcela da intelectualidade expressasse, artisticamente, a sua ideologia. O diálogo entre
literatura e sociedade se encaixava perfeitamente no programa político-estético da
esquerda brasileira. Era a chamada arte consciente, com uma espécie de
responsabilidade histórica, um porquê de existir e uma missão a cumprir.
Todavia, se lembrarmos as palavras de Alceu na carta a Jackson, percebemos o
quanto tais categorias de esquerda e direita podem se engessar ideologicamente e
também na prática cotidiana. Ao lermos essa simples e objetiva oposição apresentada
no artigo de Miranda Reis, a sensação que se tem é que o artista considerado de direita
seja um completo alienado no que concerne à realidade social do país. É justamente o
contrário que se depreende da leitura da carta a Jackson, nela Alceu se mostra
totalmente aberto e atento a sua condição de homem rico, porém ao mesmo tempo
atravessado pela dor da consciência e do compromisso para com o próximo.
A direita tinha os seus próprios instrumentos de expressão. Podemos afirmar que
o seu programa ideológico era frontalmente de acordo com o pensamento religioso e
estético de Alceu Amoroso Lima. Valores como a boa mística, a defesa do humano, a
busca do verdadeiro sentido da vida estavam na pauta literária dos escritores deste
grupo, especialmente Alceu. No seu livro Meditação sobre o Mundo Interior, temos
uma clara demonstração de tal direcionamento:
A observação nos revela que o homem vive sempre em contato com os outros homens e,
quando perde esse contato, algo de estranho se passa com ele: ou melhora muito ou piora
muito. Piora, em regra. Melhora, por exceção. Mas, normalmente, perde. Já que,
naturalmente, o homem é necessário ao homem para que a vida humana se desenvolva
normalmente. O contato com os outros homens é, portanto, uma condição de
humanidade sadia, de aperfeiçoamento natural de uma natureza que recebemos não
formada e perfeita, mas apenas com uma soma de potencialidades que nos cabe atualizar.
A sociedade é, portanto, o elemento natural ao homem, como a água é elemento natural
aos peixes e o ar aos pássaros. (apud Costa, 2006, p. 180)
112
Alceu fala de algumas premissas semelhantes àquelas defendidas pelos
intelectuais esquerdistas, todavia, a maneira como tais práticas são processadas é que
faz a total diferença. O contato entre as pessoas deveria ser uma oportunidade de mútuo
crescimento, não de arregimentação de combates e revoluções, piquetes inflamados por
ideologias efêmeras que passariam mais cedo ou mais tarde. Para Amoroso Lima, o
Homem deveria buscar aquilo que é perene, que constitui a sua integração com o
infinito.
Neste sentido, a troca de experiências entre as pessoas era de fundamental
importância para Alceu, pois este via em tais contatos a possibilidade de darmos
continuidade à própria criação iniciada por Deus. Para alguns teólogos, a criação
acontece constantemente em nossas vidas, não foi um evento isolado no Jardim do
Éden, mas continua sendo um eterno exercício de aperfeiçoamento do próprio eu. Tal
fato fascinava Alceu, tanto que ele repetiu essa idéia em inúmeras entrevistas e
depoimentos, bem como escreveu e teorizou a respeito.
Percebe-se que o caminho traçado por Alceu para conceber o seu exercício de
crítico literário foi totalmente adverso daquele seguido pelos seus detratores. Alceu
estava mais preocupado em compreender o eu humano do que organizá-lo para uma
pretensa revolução política. Seu olhar ia mais adiante do que o simplesmente
observado; para ele, a condição humana atravessava a efemeridade das ideologias
políticas e, de forma contrária, Deus nos criou com uma imensa abertura e necessidade
de Infinito, de Beleza, de transcendência, de eternidade.
Tal situação de oposicionismo ideológico-literário fez com que alguns críticos
defendessem o “fim da Crítica”, já que a mesma estava bifurcada apenas nas direções
católica e não-católica, não se abrangendo para outras categorias ou criando novas
tipologias, como se fazia necessário para o revigoramento da própria Crítica. Um
desses defensores foi o ensaísta Humberto de Campos. Insatisfeito com tal polaridade,
ele fala sobre fim da Crítica:
O grande mal do Brasil tem consistido, proclamam-no todos, na falta de crítica política,
de crítica cientista, de crítica literária, de crítica social. A falta de crítica nas letras, nas
ciências, na política, na orientação coletiva dos homens, é que determina a anulação do
sentimento de responsabilidade, origem de toda a desorganização. (apud Martins, 2002,
p.534)
Como esclarece Wilson Martins, Humberto de Campos escreveu este artigo em
1928. Por esta razão, considero a afirmação de Campos quanto a um certo vazio na
113
Crítica um tanto duvidosa, já que neste ano o próprio Humberto de Campos organizara a
Antologia da Academia Brasileira de Letras, contendo todos os discursos de posse ao
longo dos trinta primeiros anos da ABL (1897-1927). Isto sem dizer que Alceu
Amoroso Lima publicou, também em 1928, o livro Estudos – Segundo Série, bem como
tivemos a publicação de Linguagem Camoniana, de Pedro Pinto, grande sucesso na
época. Talvez o que Humberto de Campos percebia era um total direcionamento de
idéias, uma clara aptidão de valores pelos dois grupos que dominavam o discurso crítico
brasileiro, sem aquela devida neutralidade que se espera de uma atividade crítica,
literária ou não.
Como se percebe, levantar os diferentes caminhos da Crítica Literária no período
entre as décadas de 20 e 30 é uma tarefa árdua, especialmente se levarmos em
consideração as diversas fissuras e entre-lugares que o discurso crítico transitou. Entre
a esquerda e a direita havia o vazio da crítica, quem sabe o seu próprio fim, como supôs
Humberto de Campos. É nesta constelação de idéias e posturas que tentamos desvendar
a existência de uma Crítica Católica, ou espiritualista, ou qualquer outro termo que lhe
dê a devida qualificação.
Para finalizar este sub-capítulo sobre Crítica Literária Católica, faremos agora
uma outra abordagem sobre a atuação intelectual e religiosa do nosso velho conhecido
franciscano de Petrópolis, Frei Pedro Sinzig, que foi trazido à lume no primeiro capítulo
deste trabalho. O nosso referencial continuará sendo a sua principal publicação
Através dos Romances – Guia para as Consciências, publicado pela Editora Vozes em
1923.
Certamente, a trajetória intelectual deste abnegado frade ainda não foi totalmente
levantada. Mais do que um simples reacionário e paladino da doutrina católica, Sinzig
foi um grande pensador e, acima de tudo, um grande articulador e estrategista no que
concernia à defesa da fé e da Igreja. Dizia-se amigo de várias autoridades, utilizando os
seus contatos para facilitar o seu deslocamento nas diversas instâncias do poder e
conseguir a execução de diversos favores.
Foi no livro Através dos Romances que Sinzig nos forneceu importantes idéias
acerca de uma Crítica Católica, sempre a serviço da fé e da Verdade. Vale lembrar que
neste livro, de mais de mil e cem páginas, o crítico fez análises de nada mais nada
menos que 21.553 obras e 6.657 escritores, brasileiros e estrangeiros, sendo até hoje o
único publicado neste gênero e com este objetivo. Por isso nossa opção em retornar a
esta obra para concluirmos alguns aspectos importantes sobre este tema.
114
Os textos críticos produzidos com a chancela da Igreja e veiculados nos meios
católicos eram construídos sob uma pesada argumentação normativa, criteriosa e, acima
de tudo, apologética. Por isso, nada melhor do que ir buscar na Tradição da própria
Igreja as justificativas para este apostolado, para esta nobre missão de iluminar as
consciências, guiando-as na escolha certa do que ler, bem como na rejeição do que se
considerava “lixo literário”, perigoso para a formação religiosa e humana do leitor,
assim como sua possibilidade de danação espiritual.
Em geral, a existência de uma Crítica Católica sempre esteve associada à idéia de
veto, de censura, de uma análise povoada de pré-valores ou pré-conceitos. Como
lembra Mário Casasanta, “É exatamente na religião onde forças conservadoras
preponderam, que se nos apresenta o maior número de casos” (Casasanta, 1938, p.43).
Por essas razões, a obra sempre recorrente para o parâmetro literário-doutrinário dos
críticos (ou censores, em alguns casos) foi o Índex Librorum Prohibitorum.
O Index foi uma lista de publicações e autores proibidos pela Igreja Católica. Seu
objetivo principal era prevenir a leitura de livros imorais ou de obras que contivessem
erros teológicos e, deste modo, prevenir a corrupção moral e espiritual dos fiéis. Em
certas ocasiões, a proibição de livros prevenia que os católicos questionassem certos
pontos de difícil compreensão contidos na doutrina da Igreja. Evitando o
questionamento, mantinha-se a indissolubilidade do edifício doutrinal da Igreja.
Foi criado em 1559 pela Sagrada Congregação da Inquisição, mais tarde chamada
de Santo Ofício, e hoje em dia tem o nome de Sagrada Congregação para a Doutrina da
Fé. Vale lembrar que a existência do Index nos remete às ideologias defendidas pelo
Concílio de Trento, já que naquela ocasião os bispos católicos pronunciaram-se a favor
da criação de uma obra legisladora quanto à produção literária universal. Era o medo,
ainda reinante, dos nefastos efeitos culturais do Renascimento, que estava em vigor.
Sobre a sua criação, assim é afirmado na introdução:
Na podia a Santa Igreja comportar-se diferentemente, já que constituída por Deus, mestra
infalível e guia segura dos fiéis, tem o dever e consequentemente o sacrossanto direito de
impedir que o erro e a corrupção debaixo de quaisquer máscaras entrem para contaminar
o rebanho de Jesus Cristo. (Índex, 1940, p.8)
Percebe-se que sua existência é divina, é parte do próprio Corpo Místico de
Cristo, que é a Sua Igreja, daí compreender o seu sacrossanto direito de legislar sobre a
orbe católica, direcionando seus fiéis a saudáveis leituras que contribuíssem no
115
fortalecimento da fé, bem como repudiando aquelas que fosse destrutivas sob este ponto
de vista. Tal premissa fica bem explícita neste outro fragmento da mesma introdução:
É para os bons filhos da Igreja que a palavra se dirige, para aqueles filhos devotos que
escutam com boa vontade a palavra do bom pastor Jesus Cristo e do seu vigário na Terra,
o Papa. Para aqueles que, afora os casos de verdadeira necessidade, para os quais a Santa
Sé pode dispensar, observarão sempre escrupulosamente todas as regras do Índex,
abstendo-se de ler ou retendo os livros proibidos pela Santa Igreja. (Índex, 1940, p.11)
Observa-se que a norma previa algumas situações nas quais poderia se consultar
os tais livros proibidos, principalmente em leituras destinadas a pesquisas. Mas em
situações como essa, a Igreja deveria instituir um “diretor espiritual”, isto é, um
sacerdote experiente em questões doutrinais que acompanharia o leitor na sua aventura
rumo ao perigo literário. Obviamente, tal exercício não acontecia com a freqüência
esperada, a instituição nunca possuiu um número suficiente de peritos para acompanhar
o seu laicato (e nem mesmo o próprio clero) nessas empreitadas. A solução era ler no
silêncio da transgressão.
O índice foi atualizado regularmente até a trigésima-segunda edição, em 1948,
tendo os livros e autores sido escolhidos pela Congregação ou pessoalmente pelo papa.
Como a entrada no Index provocava imensa repercussão, am alguns casos os autores
revisavam os seus textos e republicavam com diversas omissões e outras mudanças,
tudo isso no afã de evitar a interdição, como era comum em certos países de formação
marcadamente católica. Em outras ocasiões, certos autores faziam festa quando
entravam para o Index, já que tal fato provocava escândalo e aumentava a venda do(s)
respectivo(s) livro(s), bem como fazia com que o escritor ficasse mais conhecido do
público e da crítica
7
. Um exemplo disso foi a festa dada por Balzac, na Galeria Percier,
quando da sua incorporação ao referido índice; ou então os poemas laudatórios de
Flaubert em homenagem ao papa Pio IX por tê-lo incluído na lista proibida.
A última edição do Índex continha aproximadamente 4.000 títulos censurados por
várias razões: heresia doutrinária, deficiências morais, sexualidade explícita,
homosexualismo, satanismo, protestantismo, incorreções políticas, insubordinação
disciplinar à ordem constituída etc. Toda esta efeméride de temas proibidos e tabus
7
Alguns famosos romancistas ou poetas incluídos na lista são: Laurence Sterne, Heinrich Heine, John
Milton, Alexandre Dumas (pai e filho), Voltaire, Jonathan Swift, Daniel Defoe, Vitor Hugo, Emile Zola,
Stendhal, Gustave Flaubert, Anatole France, Andre Gide, Honoré de Balzac, Eça de Queirós, George
Sand, Benedeto Croce, Jean-Paul Sartre e Henry Bergson. Este último é de particular interesse, pois
vimos que Bergson era católico e foi uma das principais influências filosóficas na formação intelectual
deAlceu.
116
provocava imenso pavor nas autoridades eclesiásticas, criando uma idéia de “literatura
podre”, tanto que o Índex informa:
Os livros não religiosos e imorais são escritos em estilo que enfeitiça. Tratam sempre de
assuntos que, ou lisongeiam, afagam e acariciam as paixões carnais, ou lisongeiam o
orgulho do espírito; sempre com artifícios estudados e sofismáticos em cada gênero.
Apontam e fazem presas as mentes e os corações dos leitores incautos. (Índex, 1940,
p.11)
A escassez dos meios de comunicação da época dificultava e até impossibilitava
que a Igreja pudesse se pronunciar e se defender em tempo útil, procurando conhecer as
diferentes versões dos autores e livros perseguidos, por isso era mais fácil para o crítico
literário católico recorrer cegamente ao Índex, no objetivo de verificar a pertença ou não
do objeto criticado naquela listagem.
Esta obra secular teve um grande efeito em todo o mundo católico, e até fora dele.
Por muitos anos, em culturas e continentes os mais diversos, era difícil encontrar cópias
de livros banidos, especialmente fora das grandes cidades, sendo necessário recorrer ao
mercado negro editorial para obter certas publicações. O Índex deixou de ser publicado
em 1966, sob as ordens do Papa Paulo VI, imbuído que estava com os ares de
renovação doutrinária trazidos pelo Concílio Vaticano II.
Outra obra bem mais atual que influenciou sobremaneira o pensamento de Sinzig
foi Romans à Lire et Romans à Proscrire, publicado em Paris pelo padre Bethléem, em
1904. Nesta obra, o autor fez diversas análises literárias dos escritores franceses do
século XIX, especialmente ressaltando o que havia de errado nos mesmos. O alvo
maior foi, sem dúvida alguma, os autores naturalistas, vistos pela Igreja como os mais
perigosos do ponto de vista da fé. A primeira edição deste livro alcançou a tiragem de
120.000 exemplares, um verdadeiro fenômeno literário para aquela época, mesmo em
Paris. A respeito deste autor, é interessante o comentário de Aparecida Paiva:
Bethléem está preocupado, fundamentalmente, com dois pontos: guiar, sem compromisso
com o século, a massa dos fiéis desorientados pela superabundância dos impressos, e de
outro lado, constituir os católicos com força de pressão suficiente para que sua influência
pese eficazmente no espaço público, tanto sobre a cena política quanto sobre o mercado
editorial. (Paiva, 1997, p.66)
Faz parte de qualquer manual de veto a idéia de atemporalidade, isto é, o discurso
do censor independe do momento e do contexto, por isso Aparecida Paiva afirma que a
crítica de Bethléem (como de qualquer crítico literário católico) não tinha qualquer
117
“compromisso com o século”, todavia, o compromisso é sempre com a Verdade, com os
preceitos do Evangelho e, por conseguinte, com a própria Igreja. Era necessário
coragem para tal empreitada, como conclama o Monsenhor Besson, amigo de Bethléem,
no editorial da revista católica francesa Les Nouvelles Lectures, publicada pelos padres
dominicanos de Paris:
Cristãos, menos palavras, menos reclamações e menos protestos inúteis. Traduzam,
principalmente em atos, esses discursos barulhentos nos quais vós afirmais vossa fé. Um
pouco de coragem para caçarem em vossos lares esses maus livros que o sujam. Um
pouco mais de coragem para arrancá-los das mãos de vossas mulheres e de vossos filhos.
(apud Paiva, 1997, p.55)
Observa-se que o tom é de um discurso, com uma linguagem inflamada e que
conclamava os leitores a uma tomada de atitude, neste caso, uma espécie de caça às
bruxas literárias, extirpando qualquer possibilidade de contágio com o vírus da baixa
literatura. A partir dessas considerações, não é preciso dizer que o livro de Frei Pedro
Sinzig se tornou uma espécie de “Índex brasileiro”, lido e seguido pelos católicos mais
devotos e preocupados com a sua salvação.
O momento de atuação cultural de Sinzig e de Alceu Amoroso Lima foi marcado
por uma cruzada artístico-ideológica contra os opositores da Igreja Católica. Levemos
em consideração o profundo movimento de laicização que o Estado brasileiro vinha
sofrendo desde a Proclamação da República, transformando antigas certezas religiosas
em fortes ceticismos.
Por essa razão, o manual crítico de Sinzig surgiu como uma possibilidade de
divulgação e defesa de uma literatura sadia, pronta para ser consumida pelos leitores. A
censura feita pelo frade franciscano destacava-se pela articulação com outras fontes,
sendo abundantes as comparações com diferentes obras e autores. Seu objetivo claro
era neutralizar de alguma maneira as mazelas espirituais e psicológicas produzidas pelas
más leituras, especialmente os perigosos romances, levando em consideração a extensa
proliferação que este gênero narrativo possuía naquele momento. Segundo Sinzig, três
espécies de livros deveriam ser proibidos e banidos:
Os livros voluptuosos, porque só servem para manchar a imaginação e atear no coração
um fogo impuro;
Os livros ímpios, que roubam a fé e abafam o sentimento religioso;
Os livros frívolos, porque não deixam nada no espírito. (Sinzig, 1923, p.15)
118
Em outras palavras, devia-se evitar a leitura de livros anti-religiosos, heréticos,
espíritas, protestantes, maçons, pornográficos e os perigosos romances eróticos ou
naturalistas, como o crítico classificava. Todo esse perigo tinha um alvo certo: a classe
média, consumidora de literatura e formadora de opinião. Por isso que a Igreja apontou
todo o seu arsenal religioso e intelectual para esta camada da sociedade, não medindo
esforços para criar editoras, faculdades, livrarias e uma imprensa atuante e imbuída
desta missão. Para Aparecida Paiva, a missão da Igreja podia ser assim resumida:
Seu grande objetivo, ao guiar as consciências, era orientar literária e moralmente os
cristãos, não deixando que lares católicos fossem invadidos pelo veneno corruptor do
“lixo literário”. Os grandes temas que irá condenar estão em sintonia com as
preocupações do movimento católico de sua época: naturalismo na literatura, crimes,
suicídios, amor livre e adultério. (Paiva, 1997, p.53)
Do ponto de vista literário, é interessante ressaltar o pavor despertado pelo
Naturalismo na alta hierarquia da Igreja. Tal estilo era visto como uma espécie de porta
da corrupção, tanto que o próprio papa Pio IX fez questão de escrever o nome do
escritor Zola no Índex, sem mesmo escrever um processo, como era de costume. A
Igreja via na literatura naturalista uma abertura instigante ao pecado, principalmente por
causa das temáticas exploradas em tais romances, todas diretamente contrárias ao
Magistério eclesiástico. No processo contra Eça de Queirós, o Santo Ofício classificou-
o como naturalista, sendo que o próprio Eça não se identificava muito com tal corrente
literária, preferindo os dramas psicológicos do Realismo. Num outro momento do seu
“Índex brasileiro”, Sinzig defende e justifica a existência de uma Crítica Literária
Católica:
A Crítica Católica é legítima, ela o é de maneira preeminente quando é um padre que a
exerce, pois o padre que critica, o padre que julga os livros para condenar uns e glorificar
outros preenche uma missão sacerdotal. [...] É preciso que os fiéis sejam advertidos sobre
a leitura desses livros, porque os desavisados e os simples poderão se enganar e incorrer
em erros, em detrimento de sua fé, porque ficariam impregnados de opiniões e doutrinas
que contrariariam a integridade dos costumes ou os dogmas da religião católica. (Sinzig,
1923, p.8)
Nas primeiras décadas do século XX, o romance era um gênero que cada vez mais
se popularizava no contexto brasileiro. Primeiramente através dos tradicionais
folhetins, depois já impressos em editoras brasileiras que, aos poucos, formavam um
mercado editorial ainda incipiente, mas que já marcava uma certa presença. Além
119
disso, o movimento de importação literária era muito grande, e as livrarias brasileiras
eram regularmente abastecidas com as novidades que vinham da Europa.
Outro problema para a intelectualidade católica era o alargamento da noção de
literatura enquanto entretenimento, abandonando uma antiga premissa de que a
literatura deveria, unicamente, servir como possibilidade de formação erudita do leitor.
Com isso, a crítica católica se vê num dilema ainda mais forte, pois o leitor comum
estaria correndo grande perigo, uma vez que não tinha muito discernimento para
escolher entre o certo e o errado. Num artigo na revista A Ordem, Alceu Amoroso Lima
expõe esse problema:
O moderno romance brasileiro é alguma coisa de falso, porque se nega a reconhecer a
existência de um drama individual, complexo e interior do homem culto e europeizado, e
entretanto preso pelas raízes mais íntimas à sua terra. É um romance que violenta a nossa
complexidade psicológica, desconhecendo-a, na atividade objetiva de plasmar o universo
visível. É um romance de pura paisagem, e por isso não satisfaz como obra humana, viva.
É alguma coisa de arquitetônico, de pictural; parece que as mãos é que modelam uma
argila exterior a nós mesmos, e que não explica, não abrange por si só toda a significação
do homem brasileiro. (Lima, 1948, p.37)
Este artigo foi publicado, a pedido de Jackson de Figueiredo, em 1923, portanto
ainda no início não apenas da revista, como também da própria atividade crítica de
Alceu. Por isso compreende-se uma visão ainda um tanto cética quanto aos rumos do
romance brasileiro. Para a intelectualidade católica, o romance brasileiro das primeiras
décadas era um tanto superficial, já que a paisagem se sobrepunha ao ser humano.
Particularmente, romances como Canaã,de Graça Aranha e Os Sertões, de Euclides da
Cunha, eram considerados como obras mais sociológicas do que literárias. A Crítica
Católica especializada afirmava que obras dessa natureza eram importantes, porém para
se compreender a formação política e social brasileira, e não para vivenciar o drama
profundo que envolve a existência humana, o “homem todo” e suas problemáticas
espirituais e psicológicas.
O mesmo se dava aos romances e escritores estrangeiros que chegavam aqui.
Neste caso, o medo era ainda maior, pois estes em geral já tinham dado errado na
Europa, já foram condenados moralmente nas instâncias do mundo intelectual católico
do Velho Mundo. Logo, a chegada de determinadas obras ao Brasil era visto como uma
ameaça, um perigo que deveria ser extirpado com rapidez e precisão cirúrgicas. Por
isso compreende-se a altivez dos discursos críticos que se apressavam em condenar tais
120
textos. Um exemplo de tal situação se deu com o escritor franco-americano Julien
Green. A respeito do seu primeiro romance, frei Sinzig faz uma interessante análise:
Figuras apagadas, burgueses medíocres, empregados, criadas, solteironas histéricas,
velhas avarentas ou bisbilhoteiras, professores opacos, eis o mundo cinzento e mesquinho
que o escritor revolve. Almas secas, incolores, egoístas, pútridas, verdadeiros desertos
onde reina sonolentamente o mais bocejante tédio. Mas o sínoco das paixões sopra rijo, e
tudo se agita, freme, grita e morre, sem uma esperança, uma fé, que leve refrigério a tanta
aridez, um aconchego a tanta nudez de alma. Porque o que mais se nota na obra de Julien
Green é essa ausência de Deus. Sem crença, nem esperança, os seus personagens agitam-
se movidos pelos seus instintos e paixões, cegos, desvairados, sobre a atuação infrangível
de um determinismo inexorável. (Sinzig, 1923, p.127)
Julien Green foi o último escritor estrangeiro a entrar no Guia para as
Consciências de frei Pedro Sinzig, já que quando o crítico escreveu essas considerações,
Green só tinha publicado Pamphlet contre les catholiques de France, seu primeiro livro.
Vale lembrar que Julien Green teve formação protestante, contudo, em 1916, após a
morte de sua mãe, converteu-se ao Catolicismo. Toda a sua obra foi profundamente
marcada tanto pela sua homossexualidade como pela sua fé católica, na qual o que mais
se percebe é a eterna luta entre o bem e o mal, o puro e o impuro. Foi eleito para a
Academia Francesa em 3 de Junho de 1971, ocupando a cadeira 22, sucedendo o
também escritor católico François Mauriac. Por razões pessoais e literárias, declarou-se
demissionário da Academia em 1996, mas esta não elegeu nenhum sucessor para o seu
lugar antes da sua morte, em 1998.
Outro aspecto importante de se notar em qualquer texto de crítica religiosa é a
profusão de adjetivos. A adjetivação é sempre farta, positivo ou negativamente, pois ela
ajuda na configuração moral a respeito do objeto analisado, contribuindo na construção
de um valor literário-moral que denigre ou glorifica este mesmo objeto. A este respeito,
Aparecida Paiva fornece uma ótima listagem dessas qualificações:
Para os livros aprovados, os termos utilizados são: inofensivo, decente, proveitoso, útil,
moral, genuinamente católico, aprovado pelas autoridades eclesiásticas, interessante,
sadio, primor de delicadeza, digno de louvor, instrutivo, recomendável e merece um
lugar de honra em todas as bibliotecas.
Para os livros condenados: apaixonados, amorais, atrevido, abjeto, anti-higiênico,
anticlerical, banal, bizarro, baixo, concupiscente, cínico, canalha, deslavado, desonesto,
deplorável, escandaloso, escêntrico, exaltado, erótico, excitante, enervante, escabroso,
frívolo, fatalista, incoveniente, imoral, inenarrável, inverossímil, indigno, infame,
imundíssimo, indecente, ímpio. (Paiva, 1997, p.81), grifos da própria autora.
121
Todos esses adjetivos foram retirados das numerosas análises críticas feitas por
Sinzig ao longo do seu Através dos Romances – Guia para as Consciências. Chama a
nossa atenção a economia linguística quando o texto procurava elogiar o objeto
criticado, ao contrário, impressiona o requinte vocabular usado por Sinzig quando este
queria denegrir o que estava sendo analisado, levando em consideração que a lista de
adjetivos preparada por Aparecida Paiva contempla as qualificações apenas até a letra
“i”.
Tal clamor qualificativo era um aspecto estilístico dos textos produzidos pela
intelectualidade católica, não podemos nos esquecer do clima de quase guerra santa
instaurada pelos católicos contra o Estado laico, por isso urgia um clamor combativo no
sentido de enfraquecer as forças do mal cultural, já que essas insistiam em reinar na
realidade brasileira, “levando à perdição as pobres almas”, segundo palavras do próprio
Sinzig. Seu estilo de escrita era muito direto e objetivo, pois simplesmente citava o
nome do escritor ou da respectiva obra e já tecia as suas considerações, como nestes
fragmentos:
ALBERTINA BERTA. A leitura do romance Exaltação é extremamente perigosa. É a
história de um desordenado espírito concupiscente, obsedado pelo erotismo insaciável de
quem não quer perder tempo em divagações que não concorram para a satisfação carnal
de sua luxúria... Em tudo a escritora descobre a ânsia muito animal da fusão dos sexos. É
um labirinto, uma reunião complexa de cenas sem lógica, sem seriação e sucessão, onde
as figuras andam às tontas num jogo de cabra-cega e as cenas se baralham até uma
confusão inominável. O ambiente social onde se movem essas figuras corre parelha com
a psicologia dessas personagens. É todo vicioso e mal. (Sinzig, 1923, p.30)
Neste outro momento, ele analisa o romance A Carne, de Júio Ribeiro:
A Carne, de Júlio Ribeiro. É um dos romances mais obscenos que mancham a literatura
brasileira. Um rapaz que se hospeda em casa de uma família, no interior, que é
provocado insistentemente por uma rapariga sem educação e a seduz. Este romance é de
um realismo brutal, pornográfico, pintando quadros infames, da mais desbravada
imoralidade. (Sinzig, 1923, p.621)
Finalmente, um comentário positivo:
Quadros da Vida, Stella de Faro [publicado pelo Centro da Boa Imprensa, Petrópolis,
1914]. A obra prima da simpática autora revela os mais raros dons de escritora. (Sinzig,
1923, p.84)
122
Interessante notar a árida economia de palavras e termos quando se tratava de um
texto elogioso e, contrariamente, o largo desenvolvimento de idéias quando a proposta
era destratar, analisar negativamente um autor ou sua obra. Outro aspecto importante
recai na problemática dos gêneros, pois quando Sinzig analisava os escritores, os seus
comentários sempre recaíam sobre a obra em si, sobre o texto criticado propriamente
dito; já quando ele tratava de escritoras, as suas análises se direcionavam sobre a pessoa
e sobre o comportamento da autora. Com as mulheres, o seu julgamento era
exageradamente mais pesado e rígido, numa espécie de misogenia literária e moral.
Por essas razões que para muitos especialistas não existe uma Crítica Literária
Católica, já que a mesma fere o pressuposto básico de qualquer ação crítica que é a
impessoalidade, o equilíbrio, a distância moral entre o profissional e o seu objeto
analisado. Todavia, havia uma grande defesa desse tipo de Crítica, pois a mesma era
necessária na missão que esses intelectuais desenvolviam. Sobre este aspecto, Perilo
Gomes, no seu livro Ensaios de Crítica Doutrinária, fornece importantes
considerações:
Para desempenhar tão elevada missão é imperativo que o crítico parta de princípios
solidamente estabelecidos, de um sistema de idéias homogêneas, enfim, de um sistema.
Não há diferença essencial entre a vida da Arte e a vida dos indivíduos; há apenas
acidental, circunstancial. A vida da Arte é a do indivíduo na sua maior pureza. Daí o
crítico fazer um trabalho de profilaxia espiritual, ou melhor, de higiene social. (Gomes,
1923, p.14)
Desta forma, o crítico católico é moralista e está imbuído da religião que professa,
contribuindo decisivamente na condução dos leitores a Deus e aperfeiçoando a
sociedade, ou seja, a própria criação divina. Neste sentido, vida, religião e atividade
crítica estão profundamente imbricadas e indissociáveis, tanto que “não há diferença
essencial entre a vida da Arte e a vida dos indivíduos”. Em outro momento do seu livro,
Perilo Gomes assim resume a atividade intelectual-religiosa do crítico católico:
Se eu considero ladrão o que furta minhas posses, não posso logicamente aplaudir a
literatura que insinua que propriedade é um roubo. Se eu zelo pela pureza de costumes no
meu lar, serei incoerente animando a literatura que se compraz no adultério e no amor
livre. Se conservo fidelidade aos princípios da Religião, serei insensato celebrando
encantos de obras de impiedade. [...] É que entre nós ainda goza de um imenso prestígio o
que, orgulhoso, Victor Hugo chamava o “liberalismo literário”, filho do liberalismo
político, ambos criaturas da Revolução. (Gomes, 1923, p.19)
123
O que se pedia do crítico católico era uma coerência entre sua vida e sua atividade
intelectual, uma não devia contradizer a outra e ambas eram extensão da própria fé. Por
isso, o que o crítico desconsiderasse em virtude da sua formação religiosa, ele assim
deveria repetir na sua produção hermenêutica.
No que concerne à atividade crítica de Alceu Amoroso Lima, é o tema do
próximo capítulo. Todavia, podemos afirmar que Alceu foi mais profissional ou
diplomático sem deixar de expressar a sua convicção religiosa, principalmente no uso
de um considerável equilíbrio no tocante à parte analisada. Sobre este aspecto, ele
afirmou:
O essencial é saber manter a independência da crítica, sem dissociá-la dos grandes
problemas sociais e metassociais, particularmente da renovação perene da cristandade,
que é a renovação constante, em nós e nos outros, do Caminho, da Verdade e da Vida”.
(Lima, 1948, p.56)
Para Amoroso Lima, o exercício de uma crítica a que chamava construtiva
dependia, antes de mais nada, de assumir uma filosofia de vida e encarar a verdade de
todos os lados e perspectivas. Ver o mundo em todos os seus aspectos era
imprescindível nesse que considerava um exercício de liberdade, ainda que delimitado
pelo universo composto pelas obras, autores e ambiente. O caráter um tanto paradoxal
de Alceu tornou-se mais evidente quando se atenta que, ainda que considerasse que uma
crítica “livre” e “desinteressada” pudesse ser praticada por católicos, agnósticos,
sociólogos ou impressionistas, atribuía justamente à metafísica cristã o poder de
conferir totalidade e legitimidade ao processo hermenêutico.
Em outros termos, Alceu deixava bem claro que a totalidade parecia ser garantida
pelo Cristianismo, pois mesmo que o crítico procurasse conhecer uma outra experiência
de metafísica, esta poderia não ser total, portanto não se estava fazendo uma verdadeira
crítica. Nota-se que, ainda que o crítico alcançasse o equilíbrio necessário para
produzir, o seu referencial deveria ser o Caminho, a Verdade e a Vida, isto é, o próprio
Cristo evangélico – que é Caminho de salvação, Verdade que liberta e que produz Vida
em abundância.
Os textos de crítica religiosa tendem a ser textos doutrinários, de apologia clara à
fé declarada do analista e combate a toda e qualquer ideologia que seja contrária à sua.
Por isso compreendermos a sintomática bifurcação no meio intelectual brasileiro entre
católicos e não católicos, entre direita e esquerda, conforme já analisamos.
124
Esse capítulo demonstrou o quanto é complexo o estudo da Crítica Literária
produzida no Brasil, suas diversas vertentes e múltiplas manifestações. Desde os
tempos de Sílvio Romero e José Veríssimo, quando a Crítica assumiu um caráter mais
profissional e acadêmico, até o momento cultural de Alceu, percebemos o quanto tal
atividade tem sido atravessada pelas mais diferentes ideologias.
Nosso objetivo não foi fazer uma análise pautada apenas na atividade crítica de
Alceu, matéria do capítulo seguinte, mas perceber como Amoroso Lima dialogou e
conviveu com essas diferentes vertentes de análise literária.
Mas enquanto caminhamos junto de Alceu e seus contemporâneos, percebemos
que a própria idéia de Modernismo se estilhaçou, provocando importantes mudanças na
noção de modernidade e de leitura da nossa cultura. Alceu optou por uma ótica
modernista diferente do projeto vanguardista de São Paulo, entrando nas fileiras de um
Modernismo mais conciliador que dialogava, em certos momentos, com algumas
ideologias religiosas, notadamente católicas.
A principal atividade desta vertente foi a produção de uma Crítica Literária
Católica, muito voltada para a defesa intransigente dos dogmas doutrinais da Igreja, e
nem sempre fazendo uma análise propriamente literária, como se espera de uma crítica
de literatura.
Todo esse Modernismo Espiritualista teve em Alceu uma tremenda força criativa,
bem como de arregimentação de novos talentos que ajudassem na difícil tarefa de
propor um diferente projeto de modernidade cultural. Missão difícil e espinhosa, na
qual ele além de amigos e colaboradores, despertou ódio e repulsa em tantos outros.
Entretanto, toda esta vida literária em constante ebulição colabora para que se
modifique a nossa própria idéia de Modernismo brasileiro.
4.
Tensões Modernistas
No terceiro e último capítulo desta tese, focaremos o nosso interesse nas
diferentes contribuições dadas por Alceu Amoroso Lima à tumultuada História do
Modernismo brasileiro. Para muitos analistas e historiadores da nossa literatura, Alceu
foi o principal crítico literário modernista. Outros, talvez querendo fazer justiça,
afirmam que dois nomes foram (e continuam sendo) insuperáveis para se compreender
este movimento tão complexo das nossas letras: Alceu e Mário de Andrade.
Sem querer fazer qualquer tipo de polaridade ideológica e estilística entre os dois
intelectuais, não é nada interessante analisar e mapear este movimento cultural de mil
faces elegendo apenas uma vertente – amorosiana ou marioandradiana. Ambos se
divergem em muitos momentos, porém complementam a nossa pesquisa com as
diversas diferenças e semelhanças no proceder crítico e artístico. Por isso, ao longo
deste capítulo, falaremos muito de Amoroso Lima e sua obra, mas também mostraremos
as inúmeras vozes dissonantes e contrárias aos seus postulados teóricos, especialmente
Mário de Andrade.
126
4.1.
Entre Brigas e Conferências
Como já falamos, Alceu começou sua atividade crítico-intelectual em 1919,
portanto, três anos antes da efervescência futurista ter explodido em São Paulo, cujo
epicentro foi a Semana de Arte Moderna em 1922. Entretanto, Amoroso Lima deve ser
situado num outro contexto sociocultural: o Rio de Janeiro no final da sua Belle Époque.
É lá que encontramos o jovem Alceu recém saído do seu período de formação
acadêmica, ávido em participar dos debates e embates ideológicos que fervilhavam na
imprensa da antiga capital republicana. Voltando alguns anos, temos Alceu lembrando
dos primeiros momentos do século XX:
Com 1902, abertura do século, surge a vontade de renovação, embora mais tarde se vá
verificar que esse século se iniciara sob a influência do século anterior. As palavras
euforia, alegria, satisfação, otimismo vão dominar esse período. Euforia traduzida pelo
novo século, pela consolidação da República, das finanças públicas, do progresso
material do Brasil, tão bem representado pela frase que se fez famosa na época: “O Rio
civiliza-se”. [...] Os últimos anos de 1910 e 1914 representaram o fim da doçura de viver,
da felicidade da vida. Daí a não existência de um sentimento de geração
1
que só vai
surgir vagamente a partir de 1914, definido por uma palavra que seria o grande divisor de
águas, a palavra que marcaria a segunda fase da nossa geração, a palavra inquietação, que
hoje se transformou em angústia, com a qual se exprime todo um novo conceito de vida.
(Lima, 1973, p.60)
Toda transição de século, de milênio, enfim, término e início de novas eras
provocam um duplo e paradoxal sentimento: a vontade de fazer algo novo e a
insegurança de se viabilizar o mesmo. A força do novo é sempre perceptível nas
diferentes manifestações sociais e artísticas, onde o desejo de abandono dos antigos
modelos sempre prevalece. Foi assim na Literatura Brasileira, muitos queriam renovar,
mas sem saber direito como e tampouco por onde se deveria começar. Em outros
textos, Alceu afirma que houve uma vulgarização do termo “modernista”, este virou
justificativa, graça e pecado de várias manifestações literárias que, de modernistas,
tinham pouco ou praticamente nada.
1
A respeito desta questão das gerações, Alceu afirma nas suas Memórias Improvisadas: “O meu
conceito de geração é o mesmo de Francisco Ayala, quando o define como uma comunidade de espírito,
de sensibilidade, de atitudes, de preocupações, de problemas, de traços estilísticos gerais – sem prejuízo
do estilo particular e demais notas da personalidade individual de cada um dos seus membros”. (Lima,
1973, p.69)
127
A outra força igualmente forte diz respeito à insegurança, ou mesmo ao medo de
se pensar e fazer o novo acontecer. Tal fato fica mais sintomático quando se trata do
Modernismo, estilo que desde os seus primeiros passos no Brasil foi marcado por
inúmeros sectarismos e blocos ideológicos, cada um reivindicando a sua razão ou
demonstrando os seus medos expressionais e estéticos. Um excelente exemplo de tal
fato se deu com a exposição de Anita Malfatti, em 1917. Segundo os seus biógrafos, a
pintora nunca mais foi a mesma após esta experiência artisticamente traumática.
Todavia, a euforia típica da Belle Époque cedeu lugar ao ceticismo percebido
durante e após a Primeira Guerra. A intelectualidade caiu em si e percebeu que o
mundo estava se unindo, pela primeira vez, para se autodestruir. Tal fato não passou
despercebido pelas classes pensantes daquele momento, que trataram de expressá-lo das
mais diferentes formas; a principal delas, como afirmou o próprio Alceu, foi a
inquietude.
Tal sentimento é perigoso, provoca diferentes rupturas com as verdades
previamente observadas e defendidas. A inquietude leva o ser à fragmentação dos
argumentos, das opiniões, das ideologias, criando fissuras e deslocando a visão de
mundo da pessoa para os sintomáticos entre-lugares comportamentais. É uma fatigante
busca pela completude do espírito, na qual percebemos os efeitos das boas e más
experimentações. A angústia é simplesmente uma consequência natural desta ebulição
espiritual e existencial.
Desta forma, Alceu deu os seus primeiros passos rumo à idéia de modernidade
estético-literária, isto é, teve as primeiras demonstrações acerca da natureza do
movimento, como ele mesmo lembra:
Foi através de Graça Aranha e de Ronald de Carvalho que se operou a minha
aproximação com o Modernismo, embora de um modo independente e à distância, pois
nunca freqüentei meios literários. [...] O Modernismo ia representar uma ruptura com a
literatura anterior. Em primeiro lugar um insurreição dos jovens, da nova geração contra
o domínio dos velhos, daquilo que chamo de a gerontocracia literária. Era a época em
que dominavam os valores consagrados. Em seguida ia ser um movimento de
consciência de uma nova geração contra a inexistência de geração dominante nos
primeiros vinte anos do século. (Lima, 1973, p.68)
Em várias entrevistas Alceu reiterou o fato de que era independente em relação
aos meios literários, mantendo-se à distância dos mesmos. Tal afirmativa é um tanto
duvidosa e até mesmo paradoxal, pois como já vimos nos capítulos anteriores, o meio
intelectual católico era um grupo em si, com suas dinâmicas e formas de sobrevivência
128
artística e até editorial. Que o diga o arsenal gráfico das editoras e livrarias católicas, já
comuns nesta época, bem como a longuíssima trajetória da revista A Ordem, que
atravessou décadas e era publicada pelo Centro Dom Vital. Isto era participar de
“capelas”, como ele mesmo costumava afirmar.
Quanto ao grupo da revista Festa, é verdade que Alceu nunca fez parte dos seus
conselhos diretor e editorial, mas tal fato não o impediu de participar e atuar através de
vários artigos e resenhas publicados naquele órgão, todos em conformidade com a
proposta estética e ideológica da revista. É tão certo afirmar que Alceu tinha os seus
meios de convívio, que ele próprio afirmou que preferia um “Modernismo espiritual”:
Pouco antes de 1924 eu estava interessado em encontrar na revolução modernista uma
marca de espiritualidade. Havia um grupo, como já lembrei, de que faziam parte Cecília
Meireles, Tasso da Silveira, Andrade Murici, Barreto Filho e outros, a que chamei de
espiritualista. [...] Com o Modernismo coincidiram as minhas inquietações de ordem
espiritual. Ao retornar ao Brasil, depois de demorada permanência em Paris, vinha
imbuído das idéias de Bérgson, do seu espiritualismo evolucionista, de seu vitalismo
criador... Daí procurar no Modernismo alguma coisa que correspondesse a essas minhas
novas tendências. Certa vez cheguei a escrever qualquer coisa nesse sentido, falando de
dimensão mística. Indo a São Paulo encontrei-me com Mário de Andrade, em sua casa,
presente Antônio de Alcântara Machado. Mário, com quem sempre mantive muito boas
relações, interpelou-me: “O que é que você entende por dimensão mística?” Já por essa
época ele havia abandonado o catolicismo. (Lima, 1973, p.144)
Por aí percebemos a decisiva tomada de rumo por parte de Alceu. Mesmo
afirmando não ter participado de grupo algum, fica claro a inserção do crítico nesta
dimensão modernista classificada por ele mesmo como espiritualista. Verdade seja dita,
Alceu nunca alimentou desentendimentos com quaisquer agrupamentos de escritores ou
pensadores. Ao contrário de um Oswald de Andrade, Amoroso Lima nunca deu muita
importância, nunca levou muito a sério as brigas e fofocas do meio literário brasileiro.
Neste sentido, ele de fato sempre se manteve à distância, nunca comprou briga de
ninguém por causa de direcionamentos literários, nunca deixou de falar com um ou
outro por conta das opiniões estéticas e ideológicas divergentes.
As únicas brigas de Alceu foram por conta de opiniões religiosas, como aquelas
quando foi reitor da Universidade do Distrito Federal, no sentido de demitir professores
que contrariassem os principais aspectos da doutrina católica. Ou então seu eterno
desentendimento com Gustavo Corção, um dos principais representantes do Catolicismo
ultraconservador, co-fundador com Plínio de Oliveira da TFP (Tradição, Família e
Propriedade), entidade da extrema direita católica. As brigas com Corção se
129
intensificaram na medida em que Alceu se afastava daquela proposta de Catolicismo
conservador à qual ele se converteu, adquirindo uma postural reconhecidamente liberal
em relação à política e à religião.
Alceu teve diferentes relações dentro do Modernismo brasileiro, manteve contato
com os ideólogos e representantes de cada corrente, procurando ouvir e conhecer um
pouco de cada. Certamente, isto fazia parte do seu programa enquanto crítico literário,
já que ele constantemente afirmava que o crítico deveria conhecer bem o objeto antes de
analisá-lo. Tal fato pode ser demonstrado pela amizade mantida com os chamados
primitivistas ou antropófagos, ideologicamente opostos ao que Alceu defendia enquanto
Modernismo. No trecho a seguir, podemos sentir este clima em relação a dois
importantes nomes:
Sérgio Buarque de Hollanda e Prudente de Moraes Neto, fundadores da revista Estética,
foram as figuras dominantes do Modernismo no Rio. Manuel Bandeira, apesar de
pernambucano e carioca de adoção, na realidade não se filiou a qualquer desses grupos.
Bandeira foi, como o disse Mário de Andrade, São João Batista do Modernismo, e por
isso mesmo solitário, como Agripino Grieco na crítica. (Lima, 1973, p.70)
Primeiramente, surgem as figuras de Sérgio Buarque de Hollanda, Prudente de
Moraes Neto (cognominado por Mário de Andrade como Prudentinho ou Prudentico) e
Manuel Bandeira. Três importantes figuras que estiveram distantes ideologicamente do
grupo espiritualista, que tinha maior prestígio na Capital Federal. Na verdade, esses três
foram importantes como espécie de “ponte” de contato entre Rio e São Paulo.
Prudente de Moraes Neto soube usar do prestígio de ser neto do ex-presidente da
República, tinha contatos poderosos nos meios aristocráticos cariocas, e assim fazia
circular as idéias futuristas que vinham de São Paulo. Manteve um extenso contato
epistolar com Mário de Andrade, sempre comungando das mesmas propostas quanto à
literatura, principalmente poesia. Com Manuel Bandeira, foi jurado várias vezes dos
Salões de Arte promovidos pela Escola Nacional de Belas Artes.
Foi por causa de Sérgio Buarque de Hollanda que Klaxon foi bem divulgada e
vendida no Rio de Janeiro. Sérgio fazia inúmeras peregrinações pelas livrarias ou
mesmo apresentando a revista “boca a boca”, inclusive, numa de suas passagens pelo
Largo da Carioca, encontrou Lima Barreto completamente bêbado e caído num dos
bancos da praça, foi Sérgio quem levou Lima ao hospital para a sua derradeira
internação.
130
Em 1929, Alceu escreveu a Sérgio uma extensa carta que ficou conhecida como
“Adeus à Disponibilidade”. Nela, Amoroso Lima comentou acerca de um artigo crítico
escrito por Sérgio a respeito da primeira edição dos Estudos, livro no qual Alceu
compilou os artigos de Crítica Literária por ele escritos para O Jornal, entre 1919 e
1920. Esta carta foi publicada e ficou conhecida como uma espécie de separação, de
fissura entre os dois Alceus – o agnóstico e o católico militante. O trecho a seguir
demonstra bem essa situação:
Seu espírito, tão penetrante nos entretons do ser, não estará como todo o mundo moderno,
impregnado em excesso de cartesianismo e de kantismo? Você aceita, como dogma da
realidade, como forma da verdade, o que foi de início, em Descartes, um processo de
pesquisa e só mais tarde se converteu em dissociação fundamental, que Kant levou,
depois, a suas conseqüências lógicas e o mundo moderno a suas conseqüências absurdas.
Descartes, Kant e em geral toda a filosofia moderna fundaram sobre o homem o que o
bom senso nos leva a fundar em princípios impessoais e ultra-humanos. Toda a evolução
do pensamento moderno, desde o século XVII, se tem feito no sentido de antropomorfizar
o universo, reduzir a verdade ao nosso espírito (pois o ceticismo moderno, que invadiu
todos os terrenos, inclusive o da ciência, não é mais que o individualismo absoluto).
(Lima, 2001, 171)
De certa forma, Alceu nesta epístola antecede todo o seu programa intelectual
pós-conversão (foi escrita em 1929). Salienta que Sérgio sofre dos males da sua
geração: o indiferentismo religioso, o agnosticismo e a excessiva crença em valores
efêmeros, principalmente o “filosofismo cego”, para usar uma expressão muito querida
do guru Jackson de Figueiredo. Alceu tocou num espinho filosófico-teológico sempre
recorrente àquela geração: “reduzir a verdade ao nosso espírito”.
Para a Doutrina Católica, nesta antropomorfização do universo, o Homem
moderno tinha a tendência de reduzir seus valores ao campo puramente palpável e
visível das experiências negando, desta maneira, qualquer possibilidade de metafísica,
de busca de valores transcendentais e sensíveis. Por isso ele prefere as verdades pela
Verdade, o efêmero pelo Eterno, a parte pelo Todo e todas as demais maiúsculas que
simbolizassem o Divino, como ele afirmou num outro momento da mesma missiva:
O necessário, porém, creio eu, é compreender que o mal é esperar por algum sistema. O
erro é pensar que a realidade se prende em qualquer sistema humano apenas, ou em
qualquer ausência sistemática de um sistema qualquer. [...] As novas gerações adoram o
vir-a-ser, quando eu creio que deve existir uma opção necessária pelo ser. Adoram as
coisas no tempo, quando sustento o dever de não nos deixarmos vencer pelo tempo.
Optam pela subordinação do indivíduo à massa, quando vejo a necessidade de salvar o
indivíduo. (Lima, 2001, p.170)
131
Ou seja, o erro humano é acreditar em qualquer coisa criada pelo próprio Homem.
É um postulado da Igreja, e por conseguinte do próprio Alceu, que a condição humana é
atravessada na sua essência pela experiência da finitude e do passageiro. Ora, Deus é
justamente o oposto, a plenitude da eternidade e, por isso mesmo, algo seguro e
imutável que não se relaciona às vicissitudes humanas. Alceu tinha uma opção
claramente ontológica, no sentido de defender a individualidade do “ser”, e não vê-lo
dissolvido na coletividade da massa.
Ora, se analisarmos bem os principais manifestos modernistas, percebemos
constantemente uma clara opção pelo coletivo, isto é, o Modernismo sempre foi visto
como um movimento expressivo das massas febris, e não individualista. Lembrando o
Manifesto Futurista, de Marinetti, é interessante notar que os parágrafos começam com
Nós pretendemos, Nós afirmamos, Nós queremos, Nós glorificaremos, Nós destruiremos
e outros Nós. Ou então o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, no qual
encontramos expressões deste tipo: Estamos fatigados, Queremos a Revolução Caraíba,
Nunca fomos catequizados ou então Fizemos Cristo nascer na Bahia. Enfim, é a
primazia do coletivo sobre o individual, postura completamente contrária às propostas
ontológicas de Alceu e da própria Igreja. Daí compreendermos as admoestações de
Amoroso Lima a Sérgio Buarque de Hollanda. Décadas depois, Alceu relembrou as
suas motivações quando escreveu a tal carta a Sérgio:
No meu Adeus à disponibilidade de 1928 não houve nem um afastamento deliberado dos
companheiros de geração modernista, nem uma simples “coincidência de momento”. [...]
Tudo isso não como um abandono do passado mas apenas como uma mudança na
hierarquia dos valores. [...] Tratava-se de adeus a uma atitude e não de um adeus aos
companheiros de atitude, a maioria dos quais também disponíveis, no sentido da
irresponsabilidade gideana como um estágio final da vida. Se a carta foi dirigida a Sérgio
Buarque de Hollanda, com quem tanto antes como depois do “Adeus” sempre mantive as
relações mais cordiais e de admiração, se a ele é que dirigi a carta, o fiz não só como
resposta à sua crítica prévia à minha conversão, mas principalmente para mostrar que a
minha ruptura era com uma atitude e não com uma geração. (Lima, 1973, p.96).
Alceu deixou bem claro o que significava dar adeus às diversas disponibilidades.
Tratava-se, antes de tudo, de dar adeus ao seu agnosticismo, à falta de sentido para a
vida da qual ele e sua geração foram vítimas, como ele próprio várias vezes afirmou. O
medo de Sérgio Buarque de Hollanda e de outros intelectuais era que a conversão de
Alceu pudesse ser sinônimo de fanatismo e perseguição intelectual, como de fato
aconteceu com algumas figuras daquele momento, lembrando sempre da postura
combativa pós-convertido de Jackson de Figueiredo, o Cangaceiro da Igreja, como era
132
chamado por muitos. Daí sua afirmação de que “Tratava-se de adeus a uma atitude e
não de um adeus aos companheiros de atitude”.
Tais idéias demonstram como Amoroso Lima circulou entre os diferentes nomes e
grupos modernistas, entre as mais díspares experiências estéticas e ideológicas. Uma
verdade deve ser sempre ressaltada: Alceu soube dialogar com as diferenças mantendo,
sobretudo, as suas opiniões e direcionamentos. Mesmo no período pós-conversão, no
qual estava fortemente imbuído dos ares religiosos, ele soube conviver com as
diferentes propostas modernistas. E por falar em grupos, vamos a mais alguns
problemas criados pelas diferentes correntes modernistas em atividade naquele
momento. As principais eram formadas por intelectuais “dinamistas’ e “primitivistas”,
para usar novamente aquela terminologia proposta por Tasso da Silveira na revista
Festa. A respeito dessas diferentes expressões modernistas convivendo (ou
digladiando), no Rio de Janeiro, Alceu esclarece:
Havia, então, no Rio, três grupos modernistas: o de Graça Aranha, Ronald de Carvalho,
Renato de Almeida, Teixeira Soares, Paulo Silveira, que chamei “dinamistas”, e
publicaram a efêmera revista Movimento. Havia o grupo “espiritualista” de Tasso da
Silveira, Cecília Meireles, Henrique Abílio, Andrade Murici, Barreto Filho e outros
ligados a Jackson de Figueiredo. [...] O grupo de Estética e em seguida da revista Klaxon
estava tão unidos aos chamados “antropófagos” ou primitivistas. [...] Mantive sempre
durante esse longo dissídio uma perfeita eqüidistância entre eles assim como em relação
ao outro grupo paulista dos “nacionalistas” de Plínio Salgado, Menotti Del Picchia e
Cassiano Ricardo. (Lima, 1973, p.70)
Este trecho nos fornece uma idéia de como era o caldeirão literário carioca
daquela época, com inúmeras possibilidades e muita retórica. Analisando este
fragmento de trás para a frente, vemos que os ares integralistas de Plínio Salgado já
tinham chegado à Capital, e com ele o seu braço cultural – o Movimento da Anta ou
Verdeamarelista. Nesta proposta de Modernismo, tínhamos um discurso baseado no
nacionalismo cultural e político, inserido no contexto de ascensão dos movimentos
totalitários europeus, por isso mesmo, a literatura era considerada pelos seus ideólogos
como veículo privilegiado para divulgação das suas idéias.
O outro segmento lembrado por Alceu dizia respeito ao grupo de Festa, ou os
modernistas espiritualistas. Creio não ser necessária mais explicação a respeito deste
grupo, uma vez que foi assunto do capítulo anterior. Entretanto, vale a pena
aprofundarmos um pouco em relação ao chamado Grupo Dinamista, cuja própria
“glória” era a presença e liderança de Graça Aranha, contestada por alguns e defendida
por outros.
133
A origem do termo “dinamista” se encontra nos principais textos filosóficos de
Graça Aranha. Este concebia o movimento modernista como uma “aceleração
dinâmica” em direção ao futuro, superando a apatia, o lusitanismo e o conformismo
ainda presentes na cultura brasileira, especialmente na literatura. Segundo Graça, “O
espírito moderno é dinâmico e construtor. Por ele temos de criar a nossa expressão
própria. Em vez de imitação, criação.” (apud Montello, 1994, p.58). Outro aspecto
deste dinamismo se encontrava num dos pontos mais criticados da filosofia de Graça
Aranha: a alegria do brasileiro.
Graça afirmava que o caráter do brasileiro se definia pela “alegria dinâmica” que
o configurava espiritualmente, e isto faria o diferencial na universalização da nossa
cultura, seria uma espécie de “porta-voz” da brasilidade, idéia esta que foi largamente
ironizada por Mário de Andrade e o seu grupo. Na sua histórica conferência O Espírito
Moderno, proferida na Academia Brasileira de Letras, em 19 de junho de 1924, Graça
Aranha solidificou a sua crença na “perpétua alegria” do brasileiro afirmando:
Aos líricos da tristeza opomos os entusiastas da esperança. Venceremos pela alegria.
Mais inteligente do que a tristeza, a alegria é a compreensão de que tudo é efêmero e
exige ser realizada com vida na plenitude da força criadora. (apud Rodrigues, 2003, p.37)
Para Oswald de Andrade, tal postulado não era Filosofia, mas “filosofice”,
ressaltando-se o “f” minúsculo. A referida conferência caiu como uma bomba nos
meios intelectuais do Rio de Janeiro e de São Paulo, criando logo duas trincheiras pró e
contra, abertas através de vários artigos de jornal.
Como o ano era 1924, o fogo escandaloso da Semana de Arte Moderna ainda
fumegava nos meios literários paulista e carioca. Por esta razão, a figura de Graça
Aranha ainda era bem vista entre os futuristas e futuros antropófagos da paulicéia
desvairada, uma vez que Graça imprimira todo o seu apoio e prestígio de acadêmico e
diplomata renomado àquele evento. Amigo pessoal de Paulo Prado, foi graças à
interferência deste, inclusive pagando um milionário cachê, que Graça pisou no Teatro
Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922, pronunciando a conferência de abertura
intitulada “A emoção estética na Arte Moderna”.
Para falar a verdade, Graça Aranha e muitos que participaram da tal Semana,
ainda não compreendiam bem o que era Arte Moderna. Isto sem dizer na constante
confusão terminológica entre os termos modernista e futurista. Só defendiam que algo
precisava ser feito para “tirar as letras brasileiras do marasmo”, palavras suas na referida
134
palestra. Como diplomata, Graça Aranha possuía uma invejável experiência de viagens
e períodos nos quais viveu no exterior, especialmente em Paris e Londres.
Foi colaborador direto, como secretário particular, de Joaquim Nabuco na
organização da III Conferência Panamericana. Era um espírito instruído e que sempre
buscava novidades. Este, particularmente, era um aspecto sempre lembrado por Alceu
Amoroso Lima. Alceu foi amigo de infância e juventude do filho mais velho de Graça,
Temístocles Graça Aranha, e por isso mesmo gozou de um certo convívio pessoal e
familiar com o autor de Canaã. Alceu sempre comentou a respeito de uma viagem a
Paris, em 1913, na qual encontrou-se com Graça Aranha e o filho no Hotel Ritz. Foi lá,
durante um chá no Mezzanine des Étoiles, que o velho Graça pediu que Alceu, ao
retornar ao Brasil, fundasse no Rio de Janeiro um grêmio literário com o nome de
Centro Goethe, para irradiação das idéias vanguardistas que pululavam na Cidade Luz.
Interessante ressaltar o caráter totalmente paradoxal, do ponto de vista cultural e
literário, de um Centro de nome Goethe para propagar as novidades vanguardistas do
Modernismo.
Foi este Graça Aranha que queria mudanças literárias, mesmo sem saber direito
como fazê-las, que desembarcou no Porto de Santos rumo ao Anhangabaú para proferir
o discurso de abertura da Semana de 22. Por essas razões, o primeiro sentimento
despertado por Graça nos paulistas foi de respeito e admiração, afinal, ele já tinha uma
vasta obra literária e política publicada, destacando-se o romance Canaã e,
principalmente, a organização da Correspondência de Joaquim Nabuco e Machado de
Assis.
O namoro de Graça Aranha com o grupo paulista foi rápido, porém marcante,
tanto que Mário de Andrade dedicou o primeiro número da revista Klaxon ao “mestre
Graça Aranha”, palavras de Mário. Vale lembrar que o autor de Lira Paulistana pagou,
do seu próprio bolso, esta primeira edição, que saiu em 15 de maio de 1922. Mário
recebeu algumas críticas de amigos mais próximos, especialmente Manuel Bandeira e
Ribeiro Couto, todavia ele foi enfático na decisão de “homenagear o homem”.
O romance entre Graça e os modernistas durou mais ou menos dois anos, logo
depois o divórcio chegou de forma enfática e problemática. O principal motivo se deu
com o famoso discurso O Espírito Moderno, no qual Graça soltou uma quantidade
absurda de impropérios contra a Academia Brasileira, chamando-a de Tumba de
Múmias, dentre outras locuções adjetivas.
135
O ano era 1924, o então presidente da ABL, Medeiros e Albuquerque, que
sucedeu Rui Barbosa, declarou no seu discurso de posse a intenção de promover,
mensalmente, conferências públicas sobre temas de “interesses universais”. Alguns
acadêmicos discordaram, não era função da Academia promover qualquer tipo de
democratização da cultura e muito menos encher os seus salões com gente que nada
entendia de Literatura e Arte. Medeiros e Albuquerque não deu ouvidos, e logo tratou
de criar a agenda de palestras daquele ano de 1924. Graça Aranha teve reservado o mês
de junho. O circo estava armado – público, imprensa, curiosos e os próprios
acadêmicos. Do seu longo texto, faço uso de algumas passagens:
A fundação da Academia foi um equívoco e foi um erro. No sentido em que comumente
se entende ser uma academia, é esta um corpo de homens ilustres nas ciências, nas letras
e nas artes, consagrados pelo talento e trabalhos, sumidades espirituais de uma cultura
coletiva. As academias são destinadas a zelar tradições e supõem um povo culto, de que
são os expoentes. Diante desse conceito, a Academia Brasileira foi um equívoco. Somos
um povo inculto, sem tradições literárias ou artísticas, ou pelo menos de tradições
medíocres, que seria melhor se apagassem. O fato de haver raros escritores ou artistas de
primeira ordem não forma uma tradição. E é ridículo supor que as tradições são criadas
pelas academias. [...] A Academia está no vácuo. Não tem função possível a exercer,
segundo a tradição acadêmica. E se tem a função de regulamentar a inteligência e criar o
academismo, ela é funesta. Foi o seu erro inicial. [...] A Academia será uma reunião de
espectros? Nas paredes desta sala, como no túmulo das múmias, a tradição gravou para
deleite dos espíritos, além da morte, o que em vida eles amaram e fizeram as suas delícias
intelectuais, os versos, os dísticos dos clássicos, as glosas dos árcades, as baladas
românticas, as deformações do sentimentalismo, as rinhas gramaticais. [...] Se a
Academia se desvia desse movimento regenerador, se a Academia não se renova, morra a
Academia (apud Montello, 1994, p.60)
Tais palavras explodiram como uma hecatombe cultural. Além do misto de
revolta e paixão, pois na platéia havia quem amou e odiou essas afirmações, a Imprensa
tratou de arregimentar o escândalo literário do ano, todos os grandes jornais do país
publicaram, na íntegra, o texto de Graça, para deleite de alguns e revolta de outros. Foi
no mínimo estranha a decisão de Graça Aranha em apresentar tais idéias, pois ele se
orgulhava em ser chamado de “o último dos helenos”, isto é, o único remanescente da
geração machadiana que fundou a ABL.
Tal fato é uma mentira, pois o próprio Medeiros e Albuquerque era também um
dos fundadores, inclusive foi amigo pessoal de Machado de Assis. Isto sem dizer do
seu principal desafeto – Coelho Neto, também um dos fundadores daquela agremiação.
Além disso, Graça Aranha nunca escondeu o orgulho que tinha em pertencer ao Olimpo
da Casa de Machado, tanto que nas suas conferências no exterior ele se apresentava
136
como representante da ABL, geralmente omitindo as suas insígnias do Itamaraty. Ou
então quando organizou a correspondência de Machado e Nabuco, na qual ele
claramente pensou na memória cultural da própria instituição, além, é claro, dos grandes
missivistas.
Dos acadêmicos daquele momento, apenas Ribeiro Couto e Oliveira Vianna
foram favoráveis às idéias de Graça Aranha. Os demais manifestaram repúdio e alguns,
como Coelho Neto, cortaram definitivamente as relações com o “filósofo da alegria”,
como ironicamente ficou conhecido. Talvez, o pecado de Graça foi ter falado muitas
verdades de forma apoteótica e um tanto sensacionalista, para não dizer sem educação,
pois disse claramente que os acadêmicos eram múmias da literatura, e as paredes da
Academia chamou de túmulo de Tutancâmon. Escolheu palavras e frases fortes, de
efeito oxidante na mentalidade de uma geração arraigada de francesismos e
europeísmos, valores estes largamente defendidos pelo próprio Graça antes da tal
conferência. Em outro momento do seu texto, Graça ataca a fundação da Academia:
O segundo erro da formação da Academia foi copiar a Academia Francesa. A imitação é
uma prática brasileira. Em tudo renunciamos à energia de criar para fazermos
comodamente a cópia, que mal se ajeita à nossa índole e ao nosso ambiente. Copiando a
Academia Francesa, fizemos logo ao nascer ato de submissão e passamos a ser reflexo da
invenção estrangeira, em vez de sermos dínamo propulsor e original da cultura brasileira.
Somos excessivamente quarenta imortais, consagração exagerada para tão pequena
literatura. Justificou-se o quadro forjando-se impropriamente um símile com a adoção do
metro, que também nos veio da França. Insistiu-se no vício da imitação, cuja única
vantagem foi tornar maior o quociente dos mortos e o divertimento das eleições mais
repetido. (apud Montello, 1994, p.61)
Imaginemos a confusão armada no plenário do Petit Trianon, onde a o “quociente
dos mortos” se fazia presente, estupefatos ante à revolta (ou coragem) do nervoso
acadêmico. Mas Graça tocou em assuntos sérios, principalmente o nosso antigo vício
de querer enxergar a cultura brasileira com os olhos voltados para Paris. De fato, a
Academia Brasileira foi pensada como um protótipo da Academia Francesa, e não tinha
como ser diferente, a França era o “umbigo cultural” da humanidade, imitá-la era
sinônimo de erudição, segurança e credibilidade. O estranho é que o próprio Graça
Aranha bebeu, de forma a fartar-se, desta cultura ora repudiada e execrada por ele.
Tal fato é que os demais acadêmicos não perdoavam. Foi uma chuva de artigos e
pronunciamentos, dentro e fora da Academia, contra as idéias de Graça. Interessante
notar que vários eventos foram realizados, como saraus e outras conferências, inclusive
dentro da própria Academia, no sentido de responder às questões levantadas por Graça.
137
Logo formaram-se dois times: os que defendiam o diplomata e os seus opositores, estes
últimos comandados por Coelho Neto e sua trupe, principalmente o crítico Gonzaga
Duque, pai do preciosismo vernacular e herdeiro direto da verborragia retórica de Rui
Barbosa. Graça Aranha terminou seu discurso pondo em destaque aqueles que ele
considerava ser a boa safra modernista:
A Academia ignora a ressurreição que já começa, mas o futuro a reconhecerá. Ela aponta
no pensamento e na imaginação de espíritos jovens. Vem na música de Villa-Lobos, que
dá à nossa sensibilidade um ritmo novo e poderoso, na poesia de Ronald de Carvalho,
libertador do nosso romantismo, criador do nosso lirismo, na poesia de Guilherme de
Almeida, livre da natureza e das duas sugestões subalternas, na poesia de Mário de
Andrade, vencedor do convencionalismo, construtor alegre do espírito verdadeiramente
brasileiro, nas esculturas de Brecheret, onde objetivam dinamicamente o subjetivo, no
pensamento, na crítica, na poesia, no romance de Renato de Almeida, Jackson de
Figueiredo, Agripino Grieco, Manuel Bandeira, Paulo Silveira, Tristão de Athayde,
Menotti Del Picchia, Ribeiro Couto, Oswald de Andrade e mil jovens espíritos sôfregos
de demolição e construção. (apud Montello, 1994, p.64)
Sua seleção é reveladora, pois não se pode negar um certo ecletismo de sua parte,
uma vez que reuniu de Jackson de Figueiredo a Oswald de Andrade, figuras
radicalmente opostas da intelectualidade brasileira. E por falar em Oswald de Andrade,
este ficou revoltado com a inclusão do seu nome na conferência de Graça. Por essa
razão, tratou logo de também escrever um artigo “se defendendo”, este saiu na edição
do jornal paulista Correio da Manhã, em 25 de junho de 1924 (portanto, seis dias
depois da confusão na Academia), intitulado Modernismo Atrasado. Deste artigo,
destaco:
A conferência de Graça Aranha sobre “O Espírito Moderno” ilustrou idéias francesas
com uma porção de exemplos nacionais inconseqüentes. [...] Não posso perdoar a Graça
Aranha me ter posto no meio dos brilhantes renovadores subjeto-dinâmico-objetivos que
com tão sacra fúria amarrotaram a Academia na sua última sessão. [...] Graça Aranha é
um dos mais perigosos fenômenos de cultura que uma nação analfabeta pode desejar.
Leu mais duas linhas do que os outros, apanhou três idéias além das de uso corrente e
faquirizado por uma hipnose interior, crédulo e ingênuo, quer impor à outrance os seus
últimos conhecimentos, quase sempre confusos e caóticos. (apud Montello, 1994, p.160)
O estilo tipicamente oswaldiano é claramente notado, sua linguagem é direta e
ácida, mas ao mesmo tempo irônica e cômica – “faquirizado por uma hipnose interior”.
Na verdade, Oswald queria dar a “sua contribuição” à desordem intelectual provocada
por Graça Aranha, seu temperamento não o fazia perder uma boa discórdia literária.
138
Daí ele se voltar contra o novo “faquir” do Modernismo brasileiro, magricela de
opiniões e filosofias. Mais adiante, ele continua pondo lenha na fogueira acadêmica:
O que estraga em Graça Aranha é a monomania verbal – o foguinho literário de que ele
enche a sua e a cabeça dos outros, cultivado já em Canaã, na abundância das coisas
cacetes. Esse empolado palavrório mental que o faz passar no juízo dos crédulos por
homem de supercultura, tira-lhe toda autoridade para se meter em movimentos
modernistas. [...] A Academia Brasileira está pagando caro a sua incúria. Nunca estudou
os fenômenos estéticos modernos. Fechada numa estreita egolatria parnasiana, usa
apenas sorrir para as renovações que se anunciam em todo o mundo. Agora eis a
Academia assombrada por esse espalhafatoso tiro de pólvora seca, soltado na acústica do
próprio Petit Trianon. Talvez nesse grêmio, onde no entanto vivem e trabalham homens
instruídos e alguns nobres escritores, pouca gente esteja nas condições de igualdade para
a luta. Andam, quase todos, elegendo príncipe dos poetas, como na França dos cafés,
meio século atrás. (apud Montello, 1994, p.162)
Oswald começa atacando uma das principais características de Graça Aranha: a
prolixidade verbal. Especialmente em seus discursos, Graça usava e abusava de todo o
seu conhecimento clássico de língua, fazendo inúmeras digressões para tratar de um
assunto muitas vezes simples. Para Oswald, isto era uma espécie de mecanismo de
persuasão, isto é, o acadêmico tentava convencer seu interlocutor derramando todo a sua
artilharia verbal e lexical, tudo para dar um ar de superioridade intelectual.
Outro aspecto sempre lembrado pelos detratores da Academia era a sua
imobilidade literária, o mundo mudava, a literatura mudava e a Casa de Machado de
Assis insistia em permanecer de portas e janelas fechadas para as novidades, para os
experimentalismos. Era o templo das permanências estilísticas, da manutenção do
cânone sagrado da Beleza literária e artística. Para Oswald, ela estava sendo vítima de
si própria, do seu fechamento infecundo, tudo isso através das atitudes espalhafatosas de
Graça Aranha.
Daí justificar-se a raiva de Oswald pelo fato de Graça tê-lo citado no seu discurso,
o poeta paulista via nisso uma espécie de presságio cultural, não era bom para a sua
reputação vanguardista, ele que era amigo de Blaise Cendrars ser citado por um baluarte
dos antigos tempos machadianos. Não! Oswald decididamente não queria aquela
“honra”, a melhor forma de Graça homenageá-lo era esquecendo-o.
O grande problema entre Graça e os modernistas começou a partir deste fatídico
acontecimento. A Imprensa logo espalhou que Graça era a principal autoridade do
Modernismo, que era o chefe do movimento no Rio e em São Paulo. Prova disso, foram
os títulos escolhidos pelos jornais quando se relacionava ao autor de Malasarte: Papa do
139
Modernismo, Santidade Modernista, Guia do Movimento, Condutor dos Moços e outros
epítetos elogiosos. Não encontrei um texto no qual Graça se autodenominasse chefe de
qualquer movimento, todavia, em nenhum outro escrito ele desdisse tais “cargos”. Isto
é, ele nunca se autoproclamou líder do movimento, mas também jamais desmentiu a
Imprensa quando assim o chamava.
Esta situação irritou o outro “Papa do Futurismo” – Mário de Andrade. Este
sempre acompanhou a confusão das lideranças modernistas à distância, do alto de sua
casa na Rua Lopes Chaves, em São Paulo. Tal atitude era típica de Mário, esperava as
brigas acontecerem e a Imprensa criar o escândalo para depois ele emitir a sua opinião.
Toda a admiração que Mário sentia por Graça Aranha ruiu de forma definitiva, e tal fato
ele partilhou epistolarmente com os amigos, principalmente Manuel Bandeira, como
podemos ver neste longo fragmento de uma carta enviada a Bandeira, em 07 de maio de
1925:
Manuel me parece irremediável: quando se falar do nosso movimento pro futuro o Graça
aparecerá como chefe dele e diretor das nossas consciências, o que é a coisa mais inexata
e injusta que pode haver. Mas me parece irremediável isso. Dá raiva. Não porque eu
pretendesse dirigir o movimento, creio que já bem provei a minha repugnância de ser
diretor de consciência, não tenho coragem de assumir tanta responsabilidade porém dá
raiva ver um homem aparecer de repente de longe e com a reputação que já tinha apossar-
se duma coisa que ainda não sabia o que era mas que inteligente como era viu que viável,
só porque tinha a esperança de que do livro dele, essa Estética da vida que é apenas uma
síntese mal feita de filosofias orientais, saísse a renovação do Brasil. E como chegou no
momento psicológico em que o Brasil estava com o nosso sacrifício se renovando,
afeiçoou-se a essa renovação pra ser o manda-chuva dela. Quando o Osvaldo disse que o
Graça desconhecia inteiramente o modernismo quando chegou no Brasil, disse a mais
verdadeira das verdades. Leu o observou tudo o que estávamos fazendo, bem me lembro
das palavras vagas que pronunciava ouvindo e vendo as nossas pinturas e poesia! E se
apossou de tudo. Isso dói porque o sofrimento nosso embora continue a valer pelo que
traz pelo Brasil foi se tornar pedestal dum homem que em nada nos influenciou. Em
nada. Detesto o Graça. Graça querendo fazer do brasileiro um tipão alegre por... teoria
filosófica e integração no Todo Infinito, com uma incompreensão inteirinha do homem
brasileiro que ele não observou, contrariando a psicologia natural desse homem, fazendo
da alegria um preconceito. (apud Rodrigues, 2003, p.38)
Mário foi bem claro no seu raciocínio, a pseudo-liderança de Graça Aranha o
irritava profundamente, bem como a sua filosofia da alegria. Segundo o polemista, esta
teoria fornecia o diferencial do homem brasileiro, levando-o à universalização e
posterior transcendência, introduzindo-o num “Todo Infinito”, no Universo. Todas
essas idéias de Mário ele colheu nO Espírito Moderno, a tal conferência problemática
que a este momento já tinha sido publicada na imprensa do país inteiro.
140
O rancor de Mário se dava pela esperteza de Graça em se apoderar do que já
existia no Brasil, já que a Semana de Arte Moderna foi uma espécie de conclusão de um
processo renovador que remontava à “bélica” Exposição Malfatti, de 1917, quando a
confusão modernista teve os seus primeiros passos. Isto sem dizer em certas
publicações, Paulicéia Desvairada por exemplo, que antes da Semana de 22 já
indicavam o calor do movimento que estava para estourar. Por essas e outras razões
que, para Mário de Andrade, Graça Aranha foi um tremendo espertalhão, um
aproveitador das idéias e inteligências dos jovens moços futuristas.
Para Mário e o grupo paulista, as idéias de Graça denotavam a sua total falta de
percepção do espírito modernista e das suas dinâmicas ideológicas; ele “apadrinhou” o
movimento e quis dar um credo ao mesmo, inclusive inventando um termo
classificatório para a sua filosofia: Integralismo, nada a ver com Plínio Salgado. Para
evitar a confusão de nomes, Mário criou um outro nome para as teorias de Graça:
Integracionismo. O fato é que um ou outro significava a mesma coisa. O ódio de Mário
continuou, levando-o a escrever a famosa Carta aberta a Graça Aranha, publicando-a
no jornal carioca A Manhã, no dia 12 de janeiro de 1926. Desta carta-artigo, destacam-
se as seguintes passagens:
Você falha como orientador porque em vez daquele que imagináramos no começo, sujeito
de idéias largas, observando a época e condescendendo com o Modernismo tal como ela e
ele são. [...] Você pela preocupação excessiva de si mesmo, pela estreiteza crítica a que
essa preocupação o levou, está hoje sobrando em nosso despeito apenas como dogmático
irritante, passador de pitos inda por cima indiscretos, e um modernista adaptado ao
Modernismo apenas pelo desejo de chefiar alguma coisa. Você em Filosofia não passa
dum interventor que vive abrindo portas abertas. (Rodrigues, 2003, p.40)
Em linhas gerais, podemos dizer que o texto de Mário foi pesado, o poeta não
hesitou em afirmar as suas opiniões num teor duro em certas passagens. O tópico mais
criticado por Mário foi a pseudo-liderança de Graça frente ao movimento. Contudo, um
aspecto que Mário não citou foi que a idéia de tal liderança foi inflamada pela Imprensa,
como já afirmado, e virou uma espécie de verdade que circulava pelos principais meios
acadêmicos. Em outro momento da carta, Mário voltou a criticar a chefia de Graça
Aranha:
É essa imposição de personalidade, essa indiscrição arrogante de si mesmo que faz você
ficar pesando sobre a gente, acabou toda a função orientadora que podia ter. quis ser o
marechal da mocidade brasileira, porém ficou no coronel (por onde se prova que você é
bem brasileiro...): nos deu a moeda-papel que tinha, notoriedade e nome, não nos
141
enriqueceu com a moeda-ouro duma inteligência clarividente e dum saber de verdade.
(apud Montello, 1994, p.242)
Segundo alguns relatos de quem conviveu com Graça Aranha, ele realmente
impunha uma certa postura senhorial. No Itamaraty era conhecido como o herdeiro de
Joaquim Nabuco, seu pai espiritual e profissional. Graça soube aproveitar bem os anos
de convívio com Nabuco e formatou sua personalidade intelectual aos moldes do antigo
mestre de chancelaria. Daí Mário provocá-lo, aludindo nele um certo coronelismo
acadêmico, principalmente com aqueles que faziam parte do seu apostolado, lembrando
que Ronald de Carvalho foi o seu principal discípulo. E o tal discurso sobre O Espírito
Moderno? Mário deu o a sua opinião:
É por causa desse narcisismo enrabichado que o Espírito Moderno com que assustou as
paredes acadêmicas, em vez de ser, como devia pelo título e pela função, uma
demonstração sintética das tendências mais gerais do espírito moderno que não pertence
porém ao mundo, é trabalho dogmático, pregação de teorias pessoais que só tiveram eco
fraco na obra de dois outros. Em vez de exposição crítica, é litúrgica deficiente e
tendenciosa porque toma por ponto de partida e de referência de juízo o integralismo
cósmico e o tal do objetivismo dinâmico aplicado a Schloezer e Stravinsk, de que você se
apropriou e que generalizou afobadamente por conveniência do seu materialismo. Aliás,
sem citar a fonte que você conhecia perfeitamente, sei. (Revue Musicale, dezembro de
1923.) (apud Montello, 1994, p.242)
Mário sabia tocar em cheio na ferida dos seus desafetos, especialmente quando
queria denegri-los intelectualmente, neste caso, apresenta a fonte principal da filosofia
de Graça que este não expõe, mas ele Mário sabia muito bem – a Revue Musicale. Por
isso que, para ele, o Espírito Moderno nada mais foi do que um escândalo num
ambiente – A Academia – pouco afeito às novidades e às novas expressões. Utilizando
uma expressão de Mário, foi mais uma “briga de comadres acadêmicas” do que o
surgimento de um inteligente debate de idéias. Para finalizar, Mário destila as suas
últimas doses de veneno temperado com muito ressentimento:
O Modernismo tem dado muitos blefes como todas as escolas e orientações. Ninguém
pode culpar a uma destas os tubarões que vão de arrasto na esteira do navio. Esta
imagem não se dirige pro seu caso, porém você se tornou o maior blefe do Modernismo,
em vez de pro público, o foi pra nós mesmos, espécie de bala saída pela culatra e
atingindo o atirador em vez da caça. Produziu uma arranhadurinha: desilusão. (apud
Montello, 1994, p.243)
O gran finale da sua carta foi incisivo e certeiro, não deixou qualquer tipo de
dúvida a respeito da sua opinião quanto a Graça Aranha: “você se tornou o maior blefe
142
do Modernismo”. Interessante ressaltar que essas cartas abertas eram normalmente
publicadas na Imprensa provocando, logicamente, uma série de confusões e
desentendimentos entre os sujeitos nelas arrolados. Este costume de publicar cartas teve
origem na imprensa francesa do século XIX, quando o jornal Le Figaro costumava
publicar cartas póstumas de personalidades famosas, apenas com o intuito de
homenageá-las. Na segunda fase do jornal, a partir de 1854, a linha editorial adquiriu
um caráter mais subversivo, polemista, foi quando as cartas abertas começaram a ser
publicadas com o intuito de provocar, ou mesmo de denunciar um determinado fato,
provocando quase sempre um desentendimento entre os envolvidos. A carta aberta de
Mário de Andrade a Graça Aranha se encaixou perfeitamente entre esses limites.
Mas qual a finalidade de termos feito todo esse levantamento a respeito dos
problemas entre Graça Aranha e o Modernismo? Primeiramente, para acompanhar e
analisar o fato em si, seus desdobramentos culturais e as forças ideológicas envolvidas,
procurando sentir os paradoxos de certas posturas. Num segundo momento, extraímos
as diferentes opiniões contrárias à pessoa de Graça Aranha, principalmente a reação
negativa de Mário e Oswald de Andrade como ícones do chamado grupo paulista. Neste
terceiro e último momento, vamos levantar o posicionamento de Alceu Amoroso Lima
no que diz respeito a Graça Aranha, especialmente tentando perceber as gritantes
diferenças da opinião de Alceu e dos demais já analisados.
Como já era de se esperar, Alceu saiu em defesa do velho amigo. Amoroso Lima
aproveitou o clima de hostilidade cultural e também deu a sua contribuição para a
história do Caso Graça Aranha. Tal fato se deu com o artigo Posição de Graça Aranha,
publicado em O Jornal, em fevereiro de 1926, um mês após a Carta Aberta de Mário de
Andrade.
Alceu começou reconhecendo certos aspectos da personalidade de Graça:
“Gostava de aparecer, como gostava que os outros aparecessem. Não desdenhava,
absolutamente, da glória, mas não a queria só para si e sempre se alegrou com o triunfo
daqueles a quem queria bem.” (Lima, 1933, p.27). Tal afirmação contribui para
demonstrar a dimensão da liderança de Graça, senão do Modernismo, mas pelo menos
do grupo que o seguia como guia intelectual, os principais eram Ronald de Carvalho,
Renato de Almeida, Tácito de Almeida, Felippe D’Oliveira, Arthur Neiva, Silva Ramos
e outros. O próprio Alceu pode ser considerado como integrante deste grupo, mas
apenas na sua dimensão ideológica, já que o mesmo não participava das lutas e
143
contendas deste grupo. Mais adiante no seu artigo, Alceu começou a explorar a posição
de Graça no seu contexto:
Fosse qual fosse, portanto, o repúdio com que mais tarde muitos de nós julgássemos
dever marcar o nosso dissídio doutrinário com Graça Aranha (os pré-antropófagos, pela
pena de Oswald de Andrade, poucos dias depois da conferência da Academia, acusando-o
de “modernismo atrasado”; - os católicos, pela pena de Jackson de Figueiredo e mais
tarde de outros, acusando-o de “individualismo pernicioso” ou “naturalismo anacrônico”)
– fosse qual fosse esse abandono das extremas, folgo aqui em trazer o meu testemunho
pessoal de que a renovação literária e intelectual que hoje sentimos em nossas idéias
deveu a Graça Aranha o seu primeiro impulso, muito antes que aqui desembarcasse para
reconquistar o Brasil e reanimar as nossas letras. Porque isso incontestavelmente ele o
fez. Aproximou-se da nova geração. Não apenas pela vaidade de encabeçar um
movimento, o que logo depois das primeiras escaramuças lhe fizeram notar ser inútil, pois
os novos, queriam governar-se (ou desgovernar-se...) por si mesmos. (Lima, 1933, p.30)
É explícita a admiração de Alceu por Graça. Nas entrelinhas podemos sentir o
quanto o antigo pedido de Graça, para que Alceu e seu filho fundassem no Rio de
Janeiro o Centro Goethe, ainda ressoava em seu espírito. Outro aspecto que também
deve ser levado em consideração é o fato de que Graça Aranha, após a sua
aposentadoria, em 1916, residiu em Paris durante bons anos, e se tornou um conhecido
conferencista na Sorbonne, sempre levando ao plenário teorias sobre a cultura brasileira.
Foi nesta época que ele conheceu Paulo Prado, que mais tarde o convidou para abrir a
Semana de 22. Ora, Alceu assistiu a várias dessas palestras, principalmente na época
em que lá residiu para fazer o curso com o filósofo Bergson. Viu, na prática, o prestígio
alcançado por Graça e suas idéias, a ponto de afirmar: “Ele era um chefe, um guia, um
animador” (Idem). Por isso compreende-se o tom elogioso do seu artigo, como ele
continua afirmando:
Procurou animar a todas as tentativas esparsas de renovação que via surgir, procurando
orientá-las, sistematizá-las e enfeixá-las. Foi o que fez em 1922, em São Paulo, em 1924,
no Rio. Estava lançado o Modernismo como movimento dos espíritos. Começava
realmente uma nova fase para a nossa literatura. Condensavam-se os vapores que se
tinham vindo acumulando lentamente pela obra de alguns insatisfeitos e pesquisadores.
(Lima, 1933, p.30)
Aqui Alceu exagerou. Dizer que Graça orientou, sistematizou e enfeixou todas as
tentativas de renovação literária foi, sem dúvida alguma, uma declarada hipérbole,
própria de um fã assumido. Tanto mais que durante o hiato entre a Semana de 22 e a
Conferência de 24, Graça não fez muito para irrigar as sementes lançadas em São Paulo.
Não se tem muita notícia do que o diplomata fez, em termos de literatura, durante esse
144
período. Certamente um ou outro artigo de jornal, todavia uma militância digna de
quem “orienta”, “sistematiza” e “enfeixa” ele não realizou.
Outra questão igualmente polêmica é que, após a Conferência de 24, Graça
Aranha simplesmente colheu os frutos do escândalo, não sistematizando qualquer tipo
de teoria que se dissesse modernista. A única contribuição realmente cultural na qual
esteve envolvido foi a apresentação à Academia Brasileira de Letras do Projeto Graça
Aranha. Dentre as várias idéias, este documento propunha a criação de um novo
dicionário da Língua Portuguesa no qual não fossem contemplados estrangeirismos
linguísticos, especialmente os que vinham de Portugal, que ele chamou de
portuguesismos. Outra proposta é que os concursos literários da Academia não
recebessem poemas parnasianos, simbolistas e árcades, apenas modernistas. A não ser
este seu projeto, que obviamente não foi aprovado pela instituição, Graça Aranha não
realizou qualquer teorização a respeito do Modernismo e de suas especificidades. Por
isso que o tom de Alceu neste artigo de defesa é exageradamente laudatório e até
ufanista. Lembrando o famoso episódio da Conferência de 24, Alceu escreveu:
Graça Aranha teve esse gesto belíssimo, que deixou gravada para sempre, em nossa
memória, aquela sessão memorável da Academia. Foi um momento realmente único, em
que sentíamos nascer qualquer coisa de novo. E na hora em que, depois da conferência,
vimos aproximar-se na sala de entrada, da Academia, Coelho Neto, carregado aos ombros
pelos seus partidários, não hesitamos um segundo em carregar também, Graça Aranha,
em nossos ombros, opondo o futuro ao passado, a nova geração à velha geração! Foi um
momento de emoção inesquecível! Um momento raro de unidade plena em torno de uma
renovação, de um início, de uma porta aberta para o futuro! (Lima, 1933, p.31)
Ou seja, a tal Conferência foi uma verdadeira apoteose de espíritos e idéias
inflamadas, com direito a procissões e tudo, na qual em lugar de imagens tínhamos os
acadêmicos nervosos, em lugar de andores tínhamos os ombros amigos que se
orgulhavam em criar cicatrizes da história cultural brasileira. Tudo isso dentro do
Templo maior, do Parthenon da nossa cultura que era a Academia Brasileira de Letras.
E assim terminamos as metáforas religiosas!
A favor ou contra, passadistas ou futuristas, permanências ou rupturas. Todos
esses pares opostos evidenciam bem o clima que reinou durante a sessão de Graça
Aranha. Entretanto, foi Coelho Neto o seu copo de cicuta acadêmica. O astuto
romancista maranhense liderava o grupo de tendência parnasiana e, por isso mesmo,
aqueles que mais se escandalizaram com as idéias de Graça. Sua principal contribuição
145
ao referido evento foi o artigo Garrafas Vazias, que publicou n’O Jornal do Brasil, em
29 de junho de 1924. Começou afirmando:
O brasileirismo de Graça Aranha, sem uma única manifestação em qualquer das grandes
campanhas libertadoras da nossa nacionalidade, é um brasileirismo europeu, copiado do
que o conferente viu em sua carreira diplomática, apregoado como uma contradição à sua
própria obra. (apud Montello, 1994, p.143)
Coelho Neto tocou no calcanhar de Aquiles de Graça – a acusação de que o autor
de Viagem Maravilhosa reciclava idéias e teorias anteriormente existentes e, por isso
mesmo, que já tiveram o seu momento de causar qualquer tipo de impacto. E o que era
pior: Graça Aranha enxergava o Brasil com lupas francesas, sob a ótica das calçadas da
Champs Elisés, tal fato sempre foi lembrado por Mário de Andrade.
Foi justamente essa luta de gladiadores que deixou certos jovens enlouquecidos de
furor nacionalista e artístico, particularmente Alceu Amoroso Lima. Por isso a
bifurcação das procissões, cada qual levando o seu respectivo padroeiro – Coelho Neto
ou Graça Aranha. Por essas razões que Alceu nunca mais esqueceu tal experiência, era
como a inserção numa liturgia ideológica cheia de complexidades e que, por isso
mesmo, despertava paixão de ambos os lados. Isto sem dizer da sensação amorosiana
de estar fazendo parte, diretamente in loco, da História da Literatura Brasileira,
ajudando a construí-la. Alceu continua seu artigo com um intrigante parágrafo:
Durou pouco, porém, a unanimidade moderna. Oswald de Andrade e Jackson de
Figueiredo marcaram imediatamente os limites das suas extremas, enterrando no terreno
uma lança simbólica, vermelha ou branca. E nós, ainda oscilantes, ainda envenenados
por aquela mesma intoxicação de diletantismo, que o Graça nos censurava em 1913, nós
fomos aos poucos fazendo a escolha do joio e do trigo e marcando por nossa vez os
limites do nosso dos nossos aplausos e os motivos das nossas dissidências. (Lima, 1933,
p.31)
Alceu errou em imaginar que houvesse uma “unanimidade moderna”. Nunca
houve. Desde o seu início, o Modernismo brasileiro foi marcado por um profundo
sectarismo, pela existência de diversos grupos e correntes, cada uma com sua ideologia
e dialogando pouco com as demais. Isto sem dizer das experiências estéticas fora do
eixo Rio – São Paulo, quase todas isoladas e até mesmo esquecidas em suas respectivas
cidades. Enfim, devemos afirmar que houve Modernismos, e nunca um Modernismo no
Brasil.
146
Por isso ter existido horizontes tão díspares um do outro, como foi o caso de
Oswald de Andrade e Jackson de Figueiredo, estes sim eram a encarnação poética da
água e do vinho com uma única semelhança: a paixão em defender as suas idéias.
Tanto um como o outro abraçaram fortemente as suas ideologias, defendendo-as dos
possíveis ignorantes que não as compreendiam. Alceu finalizou ser artigo com as
seguintes idéias:
Graça Aranha não chegou a formar senão um núcleo muito pequeno de fiéis em torno de
si. Mas a sua ação irradiou como a de nenhuma outra figura literária dos nossos dias. E
só não teve mais repercussão porque logo em seguida a atmosfera social começou a
toldar-se e o modernismo literário foi abafado pelo modernismo político. [...] Considerei-
o e considero-o um mestre de idéias “pernicioso” para a nossa geração ou para todas as
gerações vindouras, pois trouxe até nós, revestidos de prestígio do talento e da
modernidade, todos os erros da geração naturalista. Mas devo dar diante dessa admirável
figura que desaparece, o meu testemunho pessoal de tudo o que lhe deve a nossa geração
e em geral toda a nossa literatura. Graça Aranha foi uma das mais altas figuras da nossa
inteligência. (Lima, 1933, p.33)
Nada mal para aquele que foi chamado de o “blefe do Modernismo” pelo
macunaímico Mário de Andrade. Afinal de contas, o artigo e as idéias do discípulo
Alceu eram compactuados por muita gente, principalmente por aqueles moços que se
apaixonavam pelas grandes causas defendidas por grandes homens. Neste caso, Graça
Aranha correspondia perfeitamente a tais quesitos. Era um “lorde das letras e do
espírito” perdido na selvageria tupiniquim do reinado de Pindorama. Daí a sua missão
de vida: catequizar culturalmente determinados talentos jovens para que esses fizessem
alguma mudança nas letras brasileiras.
147
4.2.
(Re)pensando o Modernismo
Quando pensamos nos modernismos que o Brasil produziu, uma certeza solta à
nossa frente: ainda temos muito que pesquisar, muita poeira cultural ainda se esconde
pelos escombros do nosso passado. Só que um problema se torna gritante: antigos
cânones e certezas vão perdendo o caráter engessado que os caracterizava, dando
margem para outras possibilidades e semânticas às vezes intrigantes.
É o caso da participação/contribuição de Alceu Amoroso Lima, que viveu,
interagiu e produziu sua gigantesca obra ao longo deste período que chamamos de
Modernismo. Amoroso Lima circulou pelos principais espaços de produção da
mentalidade modernista, fazendo contato com as mais diferentes correntes que
conviviam nem sempre de forma harmoniosa. Desta forma, podemos dizer que ele
ajudou a “pensar” a modernidade brasileira e acompanhou as suas múltiplas
manifestações e transformações. São esses aspectos que vamos explorar adiante.
Um fato importante de ser lembrado é que os primeiros anos no Modernismo
brasileiro se processaram durante a década de 20, e foi justamente neste momento que
Alceu passava pela sua ebulição/calefação espiritual, que o diga a sua vertiginosa
correspondência de seis anos com Jackson de Figueiredo, quando ao término da mesma
se solidificou o seu retorno definitivo à Igreja. Tudo contribuía para que Alceu tivesse
uma profunda aversão às novidades vanguardistas, principalmente a sua formação
intelectual e o tipo de convívio cultural que tinha. A este respeito, Wilson Martins deu
a dica do que “salvou” Alceu para o Modernismo:
O que o salvou para a literatura e para a posteridade foi justamente a espécie de
disponibilidade espiritual em que então se encontrava e que lhe permitiu encarar com
simpatia aquela revolução de jovens, distinguindo lucidamente o que nela havia de
necessário e, apesar das aparências muitas vezes funambulescas, de sério e até de severo.
(apud Coutinho, 1997, p.592)
Superando as expectativas negativas, a conversão de Alceu não significou o seu
enclausuramento intelectual. O seu “Adeus à Disponibilidade” o fazia disponível às
diferentes ideologias e estéticas, porém conservando os frutos que o trabalho da
conversão fizera produzir. Foi um adeus ao materialismo e à ausência de Deus, não às
idéias. Por isso que teve uma participação ativa nos debates que ajudaram a dar forma
148
ao movimento modernista. Com isso, compreendemos as muitas lembranças desta fase
heróica do Modernismo.
E nada melhor que um livro de memórias para que tais impressões viessem à tona.
Quando foi publicado o seu livro Memórias Improvisadas, em 1973, no auge das
comemorações dos seus oitenta anos, Alceu fez um excelente balanço histórico do
Modernismo com a autoridade de quem vira tudo acontecer e, o mais importante, com
uma larga distância no tempo, pelo menos uns cinqüenta anos em relação aos momentos
por ele aludidos, o que forneceu maior flexibilidade analítica e uma privilegiada visão
de conjunto. A pedido do entrevistador, Medeiros Lima, que fizesse um balanço do
movimento, Alceu assim começou:
O modernismo em princípio foi a negação do marasmo, do academicismo, da
subserviência à literatura portuguesa e a certo e vago cosmopolitismo. [...] Como
manifestações positivas são características: 1) a afirmação da liberdade em arte, o que fez
do modernismo uma espécie de neo-romantismo; 2) o reconhecimento do direito à
pesquisa estética, de um estilo novo, pela ruptura com a arte poética e a vernaculidade
gramatical imposta; 3) a afirmação de temas e inspirações nacionais; 4) o reflexo de
movimentos análogos que se processavam no estrangeiro e que a guerra trouxe à tona,
como o futurismo, o cubismo e o supra-realismo; 5) a afirmação de que o tempo é o
critério de valores; 6) a procura da originalidade, o afastamento dos modelos. (Lima,
1973, p.71)
Em princípio, Alceu não disse nada diferente do que tradicionalmente se relega ao
movimento modernista, principalmente numa perspectiva didática. Foram as bandeiras
apresentadas e defendidas por aqueles que militaram na tal transformação da nossa
mentalidade literária. Contudo, um aspecto é necessário ressaltar: “a afirmação de que
o tempo é o critério de valores”.
De fato, a distância diacrônica entre a fase dos acontecimentos e o momento das
lembranças, fez com que Alceu e outros críticos apresentassem interessantes análises,
especialmente no que diz respeito às diferentes participações de intelectuais neste
período de construção do ideário moderno em nossas letras. A este respeito, afirmou
Afrânio Coutinho:
O Modernismo, de seu lado, beneficiou-se do apoio de dois nomes estranhos aos seus
quadros e, por isso mesmo, tanto mais valiosos: o de Tristão de Athayde que, iniciando a
sua crítica num grande jornal carioca, em 1919, já usufruía, em 1922, de certo prestígio, e
o de Graça Aranha, que representava uma cabeça de ponte na Academia – precisamente o
único lugar em que os primeiros modernistas nenhuma cabeça desejavam estabelecer.
Mas, a presença de alguns “respeitáveis” ao seu lado dava-lhes uma sorte de “aval” de
que, social e subconscientemente, tanto necessitavam. Junte-se, então, mais este
149
paradoxo à história do Movimento: revolução espiritual antiacadêmica por excelência,
não repudiou a lisonja representada pela adesão de três eminentes espíritos acadêmicos e
conservadores: Graça Aranha, Paulo Prado e René Thiollier. (Coutinho, 1997, p.592)
Certamente, este foi a primeira e principal contradição do movimento modernista
brasileiro: a vanguarda e a tradição caminhando lado a lado, imbricando-se
mutuamente, ora convergindo, ora divergindo. A própria organização da Semana de
Arte Moderna foi prova disso. Primeiramente o espaço escolhido, o Teatro Municipal
de São Paulo, que naquele momento era um dos principais monumentos da arquitetura
neoclássica da capital paulista. Imaginemos o que deve ter sido a exposição organizada
no saguão de entrada – as “estranhas” pinturas cubistas de Anita Malfatti e Di
Cavalcante e as esculturas esquisitas de Brecheret – todas sendo devidamente ladeadas
pelas imponentes colunas gregas do prédio, isto sem dizer da imponente rotunda de
tendência renascentista bem ao alto.
E o que dizer de Paulo Prado, principal patrocinador do evento? Simplesmente
foi um dos maiores representantes da agroindústria cafeeira, filho, neto e bisneto de
antigos barões do café, um dos poucos empresários brasileiros que não faliram após a
Crise de 1929. Foi Paulo Prado quem pagou o aluguel do Teatro Municipal para as três
noites do evento, 13-15-17 de fevereiro de 1922, após as negociações pecuniárias feitas
por René Thiollier. Ou seja, dentre os tantos aromas que circularam durante a Semana,
um deles foi o do café, vindo diretamente das antigas fazendas do interior paulista com
suas tradicionais famílias oligárquicas.
Sobre Graça Aranha já falamos bastante. E quanto a René Thiollier? Exploro as
suas próprias lembranças:
Fui, por sugestão de Paulo Prado e Graça Aranha mais que um animador da “Semana”,
fui seu empresário. Basta dizer que o Teatro Municipal me foi cedido, a mim, por alvará
de 6 de fevereiro de 1922, pelo então prefeito da nossa capital, o saudoso Dr. Firmiano
Pinto, que muito me distinguia com a sua amizade; consegui ainda de outro amigo meu o
Sr. Dr. Washington Luiz Pereira de Souza, Presidente do Estado, que seu governo
custeasse uma parte das despesas com a hospedagem dos artistas e escritores que vinham
do Rio. Alem disso, organizei um comitê patrocinador da “Semana”, composto dos Srs.
Paulo Prado, Antonio Prado Junior, Armando Penteado, Edgard Conceição, José Carlos
de Macedo Soares, Oscar Rodrigues Alves, Alberto Penteado, Alfredo Pujol e eu.
(Thiollier, 1930, p.5)
Com essas palavras, entendemos o que disse Afrânio Coutinho quando afirmou
que o Modernismo nasceu sob o signo do grande paradoxo: futurista por um lado,
conservador por outro. E mais ainda, o reconhecimento de Alceu para quem “o tempo é
150
o critério de valores”, encaixa-se aqui perfeitamente. Pois apenas com o passar dos
anos as revisões foram sendo feitas e as arestas ideológicas aparadas
2
. Ainda sobre a
relação passado e modernidade, Alceu forneceu uma outra idéia:
Realmente, esse primeiro período produziu mais idéias que obras. O que caracteriza o
final da década de vinte a trinta são as obras que já agora representam a concretização
dessas idéias. [...] Ao contrário de que muita gente pensa, passado e moderno não se
repelem, mas se completam e conciliam. Foi no final da década de vinte a trinta, com o
aparecimento da geração nordestina, que as obras superaram os manifestos e as idéias.
[...] O que quero dizer precisamente é que a primeira vaga modernista foi mais doutrinária
do que prática. Os próprios doutrinadores de então só posteriormente dariam sua
contribuição definitiva às letras. Todos começaram oferecendo idéias para só depois
produzirem as obras. (Lima, 1973, p.73)
Os primeiros anos do Modernismo foram marcados pela intensa circulação de
idéias. A prosa praticamente inexistiu, toda a concentração estilística estava a cargo da
poesia e de outros gêneros como as conferências, os artigos para a imprensa, a
ensaística, entrevistas etc. Toda essa produção tinha o intuito de fomentar o debate de
idéias e levantar o máximo de propostas, daí a afirmação de Alceu de que o “primeiro
período produziu mais idéias que obras”. Tal opinião foi corroborada pelo crítico
Wilson Martins, que comentou sobre o mesmo assunto: “O Modernismo, em sua fase
propriamente revolucionária ou aguda, nada produzirá como criação, parece
irremediavelmente condenado ao pitoresco e ao efêmero.” (apud Coutinho, 1997,
p.591).
Outra questão que Alceu levantou e que foi muito debatida era a relação entre
Tradição e Modernidade. Alguns espíritos mais aguerridos como Oswald de Andrade,
caracterizavam-se em defender a existência de certo “rolo compressor do passado”, isto
é, o Modernismo era inconciliável com as mentalidades canônicas. Para Oswald,
vivíamos num outro momento da nossa cultura, onde deveria existir a lei do Novo.
2
Já que estamos falando em revisões do Modernismo, foi interessante o que escreveu Yan de Almeida
Prado, em 1972, nas comemorações dos cinqüenta anos da Semana de Arte Moderna: “A Semana de Arte
Moderna pouco ou nenhuma ação desenvolveu no mundo das artes e da literatura. Nem com extrema boa
vontade pode ser comparada à Vila Kyrial de quem pouco se fala. Veio pouco depois dos esforços de
Freitas Vale a favor das artes entre nós, sem o brilho e o alcance da Vila, rapidamente desvanecidos os
sete dias hoje famosos, não fosse o interesse dos Andrades em mantê-los na lembrança do respeitável
público. Pensar-se de modo diverso, crer que a Semana descobriu gênios e influiu na evolução das artes e
das letras da Paulicéia e do Brasil, é imaginação de ingênuos, ou cálculo de espertinhos à espera de que as
loas por eles dedicadas ao tal prodigioso acontecimento possam favorecê-los, como sucedeu a outros
beneficiários de blefes semelhantes aos do jogo de pôquer, mirificamente dadivosos para os que sabem
aplicá-los”. Disponível: http://www.portalartes.com.br/portal/semana_de_22_yan_de_almeida_prado.asp
151
Alceu discordava totalmente deste direcionamento, para o crítico, as duas instâncias
temporais podiam se conciliar, uma enriquecendo a outra.
Para Amoroso Lima, “ser moderno” era também saber selecionar e aproveitar os
valores benéficos da Tradição, e não simplesmente exterminá-la como alguns
defendiam. Devia-se buscar um Modernismo de inclusão, ou seja, um estilo que se
implantasse não ignorando o passado enquanto possuidor de boas e ricas experiências.
Alceu defendia a idéia de que certos resquícios estilísticos não construtivos – os
passadismos – deveriam der evitados, identificados e deixados de lado, pois não
contribuíam para essa nova proposta de estilo. Além de tudo, tal estilo não tinha
nascido no Brasil, foi importado da Europa como todos os outros; por isso mesmo,
como evitar as influências da Tradição? Sobre este tópico, Alceu escreveu:
É incontestável que o modernismo não nasceu no Brasil, como nenhum movimento dessa
espécie eclodiu primeiro entre nós. É preciso não esquecer que somos uma civilização de
repercussão, uma extensão de acontecimentos que se passam fora de nossas fronteiras.
Mas, uma vez incorporados ao nosso meio, começam a sofrer a influência da contribuição
nativa. Já em 1904, Marinetti fazia modernismo. Segundo a lei de José Veríssimo,
chamada lei dos vinte anos, só passado esse tempo as novas idéias então em ebulição na
Europa chegariam ao Brasil. (Lima, 1973, p.74)
Para Amoroso Lima, era impossível ignorarmos a Tradição, fomos moldados
literariamente pelos cânones europeus, e o nosso primeiro grito de socorro e
independência se deu apenas no século XX. É bem verdade que o Romantismo ensaiou
certas experiências de autonomia literária, mas ainda assim o seu espírito era
europeizante, o heroísmo dos nossos índios estava mais para as novelas medievais de
Alexandre Herculano do que para a tradição indígena brasileira. E o que dizer do nosso
mal-do-século? Todo ele bebeu nas canecas cheias de spleen e morte da tradição
byroniana. Daí a justificativa para Alceu ter afirmado que sempre fomos (e somos
ainda) uma “civilização de repercussão”. Repercutimos a Europa nos seus erros e
acertos.
Outro fator importante levantado por Amoroso Lima neste fragmento diz respeito
à problemática da temporalidade, da cronologia dos acontecimentos histórico-culturais.
E neste caso, podemos discordar da lei de José Veríssimo, pois a mesma pode ser
melhor aplicada ao Modernismo. Se olharmos pro passado distante da Literatura
Brasileira, verificamos que o tempo que um estilo demorava para chegar ao Brasil era
bem maior, às vezes um século, que o diga o nosso Barroco, por isso a sempre difícil
152
tarefa de lidar com datas. Mais adiante nas suas memórias, Alceu novamente analisou o
início do nosso Modernismo:
O Modernismo não só se revestiu de características brasileiras como populares, apesar de
liderado por um grupo de elite intelectual e social. Era antes de tudo uma tomada de
consciência da realidade nacional através de um estímulo internacional, que era a
revolução literária que vinha se processando desde o princípio do século mas que dela
não se tomara aqui conhecimento, vivendo-se à sombra da Academia. (Lima, 1973, p.75)
Outra importante problemática levantada por Alceu diz respeito à inserção dos
aspectos da cultura popular na produção modernista. Isto se deu especialmente na
poesia, principal gênero explorado pela primeira geração. Para alguns críticos, foi o
Modernismo que pesquisou e estetizou as manifestações populares, num amplo
programa de valorização da cultura nacional. O principal movimento neste sentido se
deu com Mário de Andrade, especialmente após o início de sua correspondência com o
folclorista Câmara Cascudo.
Luis da Câmara Cascudo era descendente de uma das famílias mais ricas do Rio
Grande do Norte. Nosso maior folclorista manteve uma intensa amizade com os
principais nomes da literatura modernista. Monteiro Lobato discutiu com ele as
primeiras páginas de Reinações de Narizinho. Manuel Bandeira disse-lhe uma vez que
sua Pasárgada era o sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte. Foi Mário de Andrade,
no entanto, quem o tomou por confidente e manteve uma imensa correspondência com o
escritor potiguar, falecido em 1986. Numa carta a Manuel Bandeira, em 13 de Maio de
1960, Cascudo escreveu ao amigo (num tom de lembrança) o que o levou a pesquisar o
folclore:
Eu não achava graça no que se escrevia por aqui. Era tudo na base do “alto gabarito”. Eu
achava graça mais era no trivial cotidiano. Comecei a fazer rodapés, “ronda da noite”,
acompanhava a cavalo a ronda policial e ia descrever o que via, pileques e prostitutas,
brigas e trapaças. O escândalo maior era ser feito por um menino rico. Depois, vieram
naturalmente coisas como a Festa dos Reis Magos. Tanta coisa que Mário de Andrade
não podia compreender. Pensava que eu tinha sido levado à cultura popular pela erudição.
Mentira! A cultura popular é que me levou a esta. Por esta sala já passaram Juscelino e
Villa-Lobos, vários presidentes, mas aqui também vieram Jararaca e Ratinho.
3
Cascudo inverteu a premissa de que foi a partir de uma profunda erudição clássica
que adquiriu o conhecimento da base popular. Segundo ele, o popular é que “iluminou”
o erudito, fato este que seduziu o autor de Lira Paulistana. Mário de Andrade tomou
3
Arquivo Manuel Bandeira, Casa de Rui Barbosa, pasta 47.
153
contato com Cascudo por intermédio do poeta pernambucano Joaquim Inojosa, que lhe
mandou o recorte de um artigo do folclorista. A partir de então, iniciaram-se a
correspondência e a amizade entre os dois.
Mário viajou pelo interior de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte
recuperando histórias e danças populares. Em tal viagem, Mário descobre o Brasil das
danças dramáticas, dos autos que a Idade Média nos legou através da colonização
portuguesa, tendo sempre como cicerone o amigo Câmara Cascudo. No prefácio da
edição parisiense do Turista Aprendiz, o crítico francês Gilles Lapouge escreveria que
esse é o momento em que os modernistas “assaltam seu país para revirar tradições,
canções, lendas, a dor e os homens da terra para decifrar seus silêncios e não para
colecionar índios de comédia, flechas e plumas.” (Andrade, 1983, p.6). Numa de suas
inúmeras cartas a Câmara Cascudo, Mário alertou e até mesmo “direcionou” a pesquisa
do amigo:
Minha convicção é que você vale muito mais que o que já produziu. [...] Você tem a
riqueza folclórica aí passando na rua a qualquer hora. Você precisa um bocado mais
descer dessa rede em que você passa o dia inteiro lendo até dormir. Não faça escritos ao
vaivém da rede, faça escritos caídos das bocas e dos hábitos que você foi buscar na casa,
no mocambo, no antro, na festança, na plantação, no cais, no boteco do povo. Pare com
essa coisa de ficar fazendo biografias de Solano López, conde D'Eu, coisas assim.
(Andrade, 1991, p.85)
Segundo os seus biógrafos, esta carta de Mário foi fundamental na total mudança
de rumos que sua atividade de pesquisador tomou dali para frente. Cascudo (ou
Cascudinho, como Mário passa a chamá-lo) direcionou todo o seu interesse para a
cultura popular, tornando-se um paradigma a todos aqueles que, de uma forma ou de
outra, utilizaram este rico manancial que ajuda a nos configurar culturalmente. Por
esses aspectos percebemos a sua importância para o Modernismo, já que vários artistas
se reportam a Luís da Câmara Cascudo para tirar dúvidas, enviar opiniões, pesquisar
acerca do nosso folclore e, o que mais nos interessa, incluir parte deste conhecimento
nas suas respectivas obras, como muito bem demonstra um estudo mais aprofundado da
sua correspondência.
Desta forma, confirmamos ainda mais a premissa de que o regional pode ser
também nacional e universal, principal desejo da primeira geração. Assim, entendemos
as palavras de Alceu: “O Modernismo não só se revestiu de características brasileiras
154
como populares”. Era um tempo de redescoberta do próprio Brasil e, principalmente, da
sua cultura ainda marginalizada. A “sombra da Academia” ainda era extensa, espaçosa.
Dentro desta problemática da cultura popular, um fato realmente intrigante foi a
valorização, por parte dos principais ideólogos modernistas, de uma figura deveras
instigante da nossa história cultural: Sílvio Romero. O crítico que arrumou tanta briga e
tantos desentendimentos no passado voltava à produzir eco no meio literário brasileiro.
Foi por iniciativa de Monteiro Lobato que a famosa História da Literatura Brasileira,
que Romero publicou em 1902, recebia a sua segunda edição no final dos anos 20. O
motivo do namoro entre os modernistas dos primeiros tempos e Sílvio Romero foi
justamente por causa da defesa, que Romero fazia de forma intransigente, da cultura
popular.
Como analisamos no capítulo anterior, Sílvio Romero repudiava o clima
exageradamente afrancesado da Literatura Brasileira, especialmente da Crítica Literária
então produzida no Rio de Janeiro. Além disso, o exigente crítico também valorizou
muito a produção literária circulada nos Centros Literários de alguns estados, onde a
cultura popular tinha larga aceitação, principalmente na poesia. Daí justificar-se o novo
valor dado pelos primeiros modernistas a este pensamento de Sílvio Romero. Numa
comparação mais ampla, ele encarnava alguns dos principais ideais da primeira geração
modernista, particularmente o rompimento com a cultura estrangeira canonizada.
Estes aspectos levantados fornecem excelentes pistas para reconsiderarmos certas
abordagens da nossa história modernista. O movimento foi extremamente lacunar, com
inúmeros espaços semânticos e estilísticos que ainda hoje merecem uma boa pesquisa.
Neste sentido, as reminiscências de Amoroso Lima são fundamentais, uma vez que
iluminam certas nebulosidades da nossa historiografia literária. Mais uma vez, temos
Alceu relembrando e avaliando a primeira geração deste movimento:
A geração modernista, à qual pertenço, surgiu, assim, sob o peso de influências
contraditórias. Tínhamos um pé no passado e outro no futuro. Em 1922 encontramo-nos
todos diante de uma opção. Mas é claro que então não tínhamos consciência do papel que
estávamos chamados a desempenhar. Não, não se tinha a menor noção da importância
dos acontecimentos que se estava vivendo. Havia uma preocupação de mudança, de
busca, de soluções para os problemas que nos angustiavam. E isto era tudo. (Lima, 1973,
p.85)
Estas afirmações de Alceu nos permitem uma série de análises e provocações.
Primeiro falemos acerca das “influências contraditórias”, do fato de que o crítico tinha
155
um “pé no passado e outro no futuro”, temática sempre recorrente nas suas análises
memorialísticas do Modernismo. Já falamos que Alceu nasceu pra literatura numa fase
paradoxal da sua vida. Após uma formação e um estilo de vida marcadamente clássicos
(no sentido conservador deste termo), ele rompeu para a idéia de modernidade, ora
demonstrando imensa flexibilidade ideológica, ora repetindo certos preconceitos da
crítica tradicionalista.
Entretanto, esse “drama” não foi vivido apenas por Alceu. Ele foi bem claro: era
um problema de geração. Por isso veremos outros casos semelhantes desta mesma
situação. Um excelente exemplo se encontra no epistolário de Mário de Andrade e
Manuel Bandeira, ambos representaram bem toda essa confusão gerada pela
permanência do passado na modernidade. Numa carta a Mário, em 03 de janeiro de
1925, Bandeira afirmou:
Está certo o que você diz no artigo e na carta sobre modernismo e simbolismo. Sou, de
fato, de formação parnasiano-simbolista. Cheguei à feira modernista pelo expresso
Verlaine-Rimbauld-Apollinaire. Mas chegado lá, não entrei. Fiquei sapeando de fora. É
muito divertido e a gente tem a liberdade de mandar aquilo tudo se foder, sem precisar
chorar o preço da entrada. Quando publiquei o Carnaval, ignorava completamente o
movimento moderno. Não sabia que estava “escrevendo moderno”. Ainda hoje, e você
deve ter sentido isso nas nossas conversas de São Paulo, conheço mal toda essa gente.
(apud Moraes, 2001, p.175)
O que mais chama a nossa atenção é o fato de que Bandeira estava produzindo
uma literatura hoje classificada como modernista. Contudo, naquele momento, o poeta
não tinha qualquer noção de tal fato, ignorava totalmente a classificação crítica do seu
livro, isso sem dizer na sua postura confessadamente parnasiano-simbolista e não
modernista, sem sequer “conhecer essa gente”, isto é, ignorando em alguns momentos
os seus contemporâneos de produção artística.
Importante lembrar que estávamos no ano de 1925, portanto, já passados três anos
desde os escândalos da Semana de Arte Moderna, e ainda assim certos artistas não
tinham a exata noção do seu contexto. É quando compreendemos a afirmativa de Alceu
no fragmento anteriormente citado: “Não, não se tinha a menor noção da importância
dos acontecimentos que se estava vivendo”. Tal falta de noção levou Mário a inquietar-
se, tanto que assim expressou a Bandeira, numa carta de 18 de abril de 1925:
Uma queixa irônica e a minha definitiva repulsa do nome de moderno dado pra mim.
Você compreende, Manuel, eu hoje sou um sujeito que tem muitas preocupações por
demais pra me estar amolando com essas burradas de modernismo e passadismo. “Eu é
156
que sou moderno!” Ora, isso hoje pra mim não significa coisa nenhuma. Tenho mais que
fazer. Não estou fazendo blague, não. É uma coisa que está a cem léguas de mim o
modernismo. Que significa ser moderno? Ser moderno, ser antimoderno, ora bolas!
Sou, isso é que é importante. (apud Moraes, 2001, p.201)
Na verdade, nem o próprio Mário sabia a definição do que era ser modernista, o
movimento estava sendo construído, passava por um processo, e os nossos artistas
tiveram o privilégio de participarem dessa construção, sem terem a exata noção do que
estava acontecendo e do respectivo papel de cada um, somente o distanciamento
temporal permitiu-nos avaliar a participação de cada um.
Alceu, enquanto crítico literário, percebeu claramente o problema da sua geração,
por essa razão que escreveu o sintomático artigo A Escrava que não é Isaura, título
homônimo ao livro de Mário de Andrade, que foi publicado em O Jornal, na edição do
dia 26 de abril de 1925. Neste artigo, Alceu fez uma série de análises quanto às
permanências de “valores passadistas” (como era comum denominar naquela época) na
obra de Mário. Destacamos a seguinte passagem:
De tudo o que se depreende, sobretudo, é uma necessidade de construir, de procurar
novos caminhos, sem abandonar o passado, antes procurando sempre o que há de vivo
eterno nele. E isso torna o Sr. Mário de Andrade talvez o elemento mais interessante e
mais valioso do atual modernismo brasileiro. Sinto que nele se embatem agora
modernismo e anti-modernismo. Não no sentido de voltar, mas no sentido de superar.
(apud Moraes, 2001, p.201)
Alceu foi direto ao cerne do problema: em Mário, lira e anti-lira se digladiavam
constantemente. A força que o impelia à transgressão era tão forte como aquela que o
puxava à conservação das tradições. Era o mesmo escritor bifurcado pela vontade de
abandonar Deus e, ao mesmo tempo, com medo de ficar distante do Criador. Era o
poeta que conseguiu escrever Há uma Gota de Sangue em Cada Poema e, quatro anos
depois, fez surgir Paulicéia Desvairada, obras radicalmente opostas quanto à forma e à
linguagem. Por essas considerações que concordamos com a opinião de Alceu, que
percebeu que “nele [Mário] se embatem agora modernismo e anti-modernismo. Não no
sentido de voltar, mas no sentido de superar”. Os comentários de Alceu receberam uma
boa recepção de Mário, tanto que, em outra carta a Manuel Bandeira, do dia 07 de Maio
de 1925, o poeta paulista afirmou:
O Tristão me parece mas é um psicólogo muito esperto. Ele me disse no final alguma
coisa de mim que eu ainda não me dissera. Não que eu lute entre modernismo e anti-
157
modernismo, só que hoje não encontro mais significado pra palavra modernismo. Tenho
coisas mais importantes a fazer e que pensar. Não sei mais se faço modernismo ou
passadismo, faço. Já me basta esta autocrítica que me dá muito sofrimento pra ainda estar
pensando se sou moderno ou não! (apud Moraes, 2001, p.208)
Com essas palavras, percebemos claramente que Mário não se importava muito
em estabelecer definições técnicas que pudessem tolher o sentido artístico da sua obra,
ele simplesmente “fazia”, isto é, produzia sem uma necessidade cega de sistematização
metodológica, como acontece com alguns autores e críticos. Essa sua postura foi mais
defendida nos anos 20, na fase dos primeiros ajustes do Modernismo. Duas décadas
depois, quando ele fez algumas avaliações desta Escola, seu discurso classificatório foi
bem diferente, dando a devida nomenclatura a certos artistas e respectivas obras.
“Tínhamos um pé no passado e outro no futuro”. Alceu não podia sintetizar
melhor os desafios e limites da sua geração artística, era o norte e o sul se batendo
dentro de cada um, às vezes um ou outro com mais força, com mais sangue estilístico.
Para finalizar esse levantamento revisionista do Modernismo, Amoroso Lima forneceu
as seguintes idéias:
O Movimento Modernista, tanto pelas suas fontes de inspiração como pelos elementos
que o lideravam, era um movimento essencialmente estético, sem qualquer vinculação de
ordem política. [...] Estavam todos muito interessados em divulgar e defender suas idéias
esteticistas para se deixarem arrastar por outra ordem de considerações. (Lima, 1973,
p.85)
Todas essas considerações Alceu fazia tendo como referência os produtos obtidos
pela primeira geração. Esta sim, como já analisamos, teve uma atuação estritamente
estética e polemista, onde produção e polêmica caminhavam juntas, uma alimentando a
outra e as duas fortalecendo a nossa complexa vida literária. A vinculação com a ordem
política veio mais tarde, com a próxima geração que tratou de assuntos relativos à
realidade social e à política brasileira.
158
4.3.
Alceu e os dois Andrades
Já que estamos falando da primeira geração modernista e das suas dinâmicas
destoantes, nada melhor do que analisar, sob a ótica de Alceu Amoroso Lima, o papel
fundamental de duas figuras frontalmente opostas: os dois Andrades, isto é, Mário e
Oswald. Alceu conheceu ambos pessoalmente. Com Mário trocou inúmeras cartas,
com Oswald, trocou farpas. Com ambos, discutiu e avaliou os rumos da modernidade
brasileira. Foi o próprio Alceu quem afirmou sobre este par de contradições:
Essa dupla de Andrades, sem nenhum parentesco entre si, me parecia ser a própria
expressão das duas faces da nova escola. Sem negar o valor intrínseco de cada um e sem
querer excluir um pelo outro, Mário me parecia ser o lado construtivo do modernismo.
Oswald, o seu aspecto demolidor, agitado e agressivo. Este chegara ao modernismo
através da sátira, do espírito irreverente e visceralmente revolucionário, de tudo enfim
que o torna hoje muito mais influente e expressivo para as novas gerações do fim do
século XX, do que Mário. Este fora ao modernismo depois de um catolicismo convicto.
De uma grande curiosidade intelectual. De uma procura da verdade com seriedade e
esforço. Dois temperamentos tão opostos, que em pouco uma divergência de ordem
moral, mais do que um simples mal entendido, os iria separar definitivamente. Nos dois,
aliás, eu via a dupla vertente do modernismo. (Lima, 1973, p.92)
Mário falou e escreveu sobre os mais diferentes assuntos, sendo exageradamente
plural quanto aos seus interesses artísticos – do folclore à medicina, passando pela
literatura e a música. Isso fica bem notado no conjunto da sua obra, especialmente na
sua produção epistolar, diversa e sempre em expansão, sendo ainda um desafio para as
críticas literária e artística. Para Alceu, ele representava o lado construtivo do
movimento, suas experimentações estéticas modernistas se fizeram a partir de uma
evolução em relação à Tradição.
Mário soube utilizar o que o passado artístico melhor produziu, sua filosofia de
criação respeitava as experiências de outrora. Para ele, evoluir artisticamente era um
exercício difícil que dependia de estudo e pesquisa, com métodos e rigores, numa
constante “procura da verdade com seriedade e esforço”, não era simplesmente um
“corte” abrupto em relação às práticas antigas da Arte. Daí a importância da Tradição,
ela era mestra e diacronicamente testemunha dos limites e avanços do artista, das suas
idas e vindas na configuração da sua obra. Por isso Alceu viu em Mário um caráter
construtivo de modernidade.
159
Certamente, a admiração de Alceu por Mário se dava por uma profunda
identificação intelectual. Com a mentalidade que tinha, Alceu dificilmente aceitava
uma proposta artística que surgisse de leviandades estéticas, de experimentalismos
vazios e sem razão de existir. Neste sentido, Mário com a sua personalidade de scholar
e pesquisador, encaixava-se perfeitamente nos critérios artísticos de Alceu. Era o artista
estudioso, que atravessava o rio sem se esquecer da margem anterior.
Já Oswald era justamente o contrário, era o “anti-Mário”, o “anti-Alceu”.
Oriundo de uma das famílias mais ricas de São Paulo, aproveitou o que pode da fortuna
que herdou do seu pai, principalmente esbanjando-a em diversas viagens que fez ao
exterior. Paris era o seu destino mais certo. Lá fez amizades com figuras importantes
do meio artístico, tanto que seu livro Pau-brasil foi lançado numa galeria parisiense.
Foi em Paris que Oswald conheceu o poeta Blaise Cendrars, seu grande e amigo e
parceiro em certas aventuras modernistas, como a viagem de Cendrars ao Brasil, em
1924.
Oswald tinha uma personalidade demolidora, seus desafetos diziam que tudo o
que tocasse automaticamente se destruía. De grande criatividade como polemista, desde
cedo soube aproveitar bem os bons efeitos de um escândalo, de um bom bate-boca
literário. Foi o primeiro a defender Anita Malfatti dos ataques pessoais que esta recebeu
de Monteiro Lobato, logo após a fatídica exposição de 1917. Oswald utilizou a
imprensa para atacar Monteiro Lobato, chamando-o de vários adjetivos não elogiosos.
Imprimia paixão em tudo que estivesse inserido, defendia suas opiniões não se
importando se as mesmas ofendiam ou não outros interlocutores.
Quanto à sua visão de literatura, Oswald foi quem melhor vestiu o uniforme da
vanguarda. Desde cedo se apaixonou pela noção de ruptura, de transgressão, de desafio
à ordem cultural estabelecida. Se pudesse, ele mesmo quebraria os museus e as
bibliotecas, como foi proposto pelo Manifesto Futurista.
Oswald era do tipo que não reconhecia nada de esteticamente interessante no
nosso passado. Para ele, Tradição era sinônimo de velharia estilística, de coisa passada,
por isso devia ser excluída ou até mesmo exterminada da produção artística que se dizia
modernista. Oswald achava que o passado existia apenas para não repeti-lo, por isso
que era passado. Seu olhar era sempre para o futuro, para o novo, para o barulho febril
das máquinas e a velocidade endoidecida das grandes metrópoles. A respeito do
controverso poeta e também de Mário, Alceu escreveu:
160
A poesia pau-brasil que Oswald lançava me parecia uma simples imitação à brasileira do
movimento dadaísta de Tristan Tzara e seus companheiros, durante a Grande Guerra, a
partir de 1916, na Suíça e nos Estados Unidos, já que seus principais promotores viviam
exilados na França como “pacifistas” e “derrotistas”, ao passo que Mário de Andrade,
procurando uma expressão lingüística realmente expressiva da fala brasileira, longe de se
perder no movimento cosmopolita, vinha dar ao novo momento estético brasileiro o
caráter de uma revolução para ficar e não apenas de um motim para efêmeros pretextos.
(Lima, 1973, p.93)
Percebe-se claramente o medo de Alceu: que a poesia de Oswald alcançasse o alto
nível de incomunicabilidade das manifestações dadaístas, a começar pela sua própria
Receita de um poema Dadá. Para Alceu, a Arte devia afastar-se do non sense, da
estética do não-dito. O verdadeiro artista deveria ter conteúdo, formação e não apenas
revolta e sentimentos separatistas. De fato, Oswald de Andrade produziu inúmeros
poemas com tendências claramente dadaístas, usando e abusando de experiências
lingüísticas e semânticas, como o poema Tarde de Partida:
Casas embandeiradas
De janelas
De Lisboa
Terremoto azul
Fixado
Ou então, a forte desconstrução lingüística de alguns versos operada no poema
Brasil:
O Zé Pereira chegou de caravela
E perguntou pro guarani da mata virgem
- Sois cristão?
- Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teretê tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
- Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cun Cun!
E fizeram o carnaval
O tom jocoso deste último poema dá-se pelas várias onomatopéias presentes em
alguns versos. Esse era o problema visto por Alceu na poesia pau-brasil de Oswald:
uma versão brasileira para a falta de lógica do Dadaísmo de Tristan Tzara, que o diga o
verso “Canhem Babá Canhem Babá Cun Cun!”. Já com Mário a situação era bem
diferente, o tratamento era outro.
161
Quando Alceu fazia qualquer comentário crítico acerca de Mário, ele sempre
ressaltava o caráter de pesquisador do autor de Losango Cáqui. Sua obra era rica
justamente por isso, a sua capacidade artística estava aliada a um sério trabalho de
investigação de novas formas de expressão. É por isso que Alceu cita a busca de Mário
por uma “fala brasileira”, este tema foi um dos que mais aguçou a pesquisa de Mário.
Novamente recorremos a uma de suas cartas a Manuel Bandeira, de 01 de Julho de
1929, com quem ele debateu longamente a respeito de uma Língua Brasileira:
Quando me senti escrevendo brasileiro primeiro que tudo pensei e estabeleci: Não reagir
contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim. É o que fiz. Inda faz pouco, João Ribeiro
me chamou à fala num artiguete sobre se escrevo brasileiro ou português (Diário
Nacional). E concluía que escrevemos por mais nota forçada, português. [...] Pouco me
incomoda agora que eu esteja escrevendo igualzinho ou não com Portugal: o que eu
escrevo é língua brasileira pelo simples fato de ser a língua minha, a língua de meu país, a
língua que hoje representa no mundo muito mais o Brasil que Portugal: enfim: a língua do
Brasil. (apud Rodrigues, 2003, p.112)
Essa “língua do Brasil” foi aos poucos sendo revelada por Mário através de
vocábulos e estruturas sintáticas usados por ele nos seus textos: o pra no lugar do para;
prá e não para a; prao em vez de para o; si no lugar da conjunção condicional se;
milhor(es) e não melhor(es); sube pelo verbo conjugado soube; inda e não ainda;
exprimentar em vez de experimentar; as formas contractas senvergonha, sencerimônia,
trinteoito, praquê e há-de; e construções sintáticas como a carta de você e não a sua
carta. Para Mário, tais usos provavam a existência do brasileiro enquanto idioma, a
“fala brasileira” citada por Alceu. Numa outra carta bem longa (seis páginas) ao mesmo
Manuel Bandeira, de janeiro de 1925, Mário deu outras informações a respeito do seu
projeto lingüístico:
Vamos logo pra questão do brasileiro. Você compreende, Manuel, a tentativa em que me
lancei é uma coisa imensa, enorme, nunca foi pra um homem só. E você sabe muito bem
que não sou indivíduo de gabinete. Não posso ir fazendo no silêncio e no trabalho oculto
toda uma gramática brasileira pra depois de repente, pá, atirar com isso na cabeça do
pessoal. [...] Careço que os outros me ajudem pra que eu realize a minha intenção: ajudar
a formação literária, isto é, culta da língua brasileira. A parte messiânica do meu esforço,
o sacrificar minhas obras, escrevendo-as em língua que ainda não é língua, não é
sacrifício de Jesus, é uma necessidade fatal do meu espírito e da minha maneira de amar,
só isso. Mas daí se pensar, ou você, como parece pela sua carta, que estou agindo por
leviandade nesta questão de escrever brasileiro, vai um estirão largo, meu Manuel. Não
senhor. Não sou leviano, não. Você diz por exemplo que eu em vez de escrever
brasileiro estou escrevendo paulista. Injustiça grave. Me tenho preocupado muito com
não escrever paulista e é por isso que certos italianismos pitorescos que eu empregava
dantes por pândega, eu comecei por retirar eles todos da minha escrita de agora. [...] Não
162
estou escrevendo paulista, não. Ao contrário. Tanto que fundo na minha linguagem
brasileira de agora termos do Norte e do Sul. Não quero imaginar que o meu brasileiro –
o estilo que adotei – venha a ser o brasileiro de amanhã. Não tenho essa pretensão, juro.
Estudei o português e estou consciente dos meus erros em português. Ao menos da
grande maioria deles. (apud Rodrigues, 2003, p.114)
Por isso se justifica a constante admiração de Alceu Amoroso Lima por Mário de
Andrade, apesar das inúmeras divergências ideológicas que tiveram. Mário era o
scholar por excelência, não era um simples poeta com tendência futurista a
experimentar novas possibilidades poéticas, sem qualquer tipo de critério e razão de ser.
Esse fragmento nos dá uma boa idéia do que realmente Mário considerava ser a
língua que ele estava criando, bem como a sua importância cultural. Aos poucos, ele ia
construindo seu projeto, imbuído de um certo “messianismo” que era traduzido no seu
desejo de contribuir para a formação culta e literária do Brasil. O poeta paulista via tal
desafio como a sua missão de artista e intelectual. Ao perceber que não estava sendo
compreendido por Bandeira, Mário se defende e afirma que não é leviano nessa
“empreitada” lingüístico-nacionalista, e que tampouco estava escrevendo em “língua
paulista”. Os erros e modismos de linguagem criados por Mário eram todos praticados
conscientemente por ele, e os mesmos influenciavam na tentativa de normatização dessa
nova língua.
Essa é outra diferença fundamental entre Mário e Oswald: uma espécie de
metalinguagem teórica, isto é, Mário pensa e debate as suas teorias, confronta-as com as
demais existentes, pede a opinião dos amigos. Já Oswald, quando pensava sobre
alguma teoria, não perdia a oportunidade de também fazer alguma blague, alguma
sátira, tudo regado de um certo sensacionalismo. Não era nem um pouco comedido nas
atitudes e nas palavras. Voltando a Alceu Amoroso Lima e suas lembranças avaliativas
quanto ao processo modernista, temos novamente o pensador católico expressando os
seus juízos de valor:
O primitivismo forçado, o espírito destruidor, o antipassadismo, o sarcasmo e a
preocupação de um novo esteticismo voltado apenas para o estilo verbal inspirado no
destrutivismo dadaísta europeu, era o que me parecia constituir o “convencionalismo
modernista” que arriscava a seriedade e a duração do próprio movimento. Não era um
ataque ao movimento renovador. Pelo contrário. Era uma defesa de sua originalidade e
de sua eficácia, desde que fundado em raízes e na linha de uma literatura cujo passado já
criara obras magníficas. [...] Mantendo-me, como sempre, em posição marginal e isolada,
procurava fazer desde então uma diferença entre o que me parecia definitivo ou efêmero
nessa revolução estética. (Lima, 1973, p.93)
163
Mais uma vez, Alceu deixou claro o seu medo quanto ao direcionamento do
Modernismo para um vanguardismo cego e radical, especialmente seguindo a tendência
mais violenta do ponto de vista expressional – o Dadaísmo. O fato é que Alceu
identificava todos esses perigos da vanguarda à pessoa e à obra de Oswald de Andrade,
ele encarnava perfeitamente o ideal de desconstrução estilística e ideológica. Mais uma
vez, Alceu fez um paralelo entre os dois Andrades:
O que ficou do Modernismo foi sem dúvida e acima de tudo a entrada a fundo no espírito,
nos costumes e na linguagem do povo brasileiro que tanto Mário quanto Oswald de
Andrade, tanto Raul Bopp como Cassiano Ricardo haviam trazido desde sua primeira
fase. Acima de todos, como pioneiros, os dois Andrade. Um, com sua seriedade precoce,
o outro com sua alacridade juvenil. Oswald com a sua irreverência. Mário com os seus
escrúpulos morais e estéticos. Ambos inconformistas e politicamente revolucionários.
Oswald mais radical. Mário mais equilibrado. (Lima, 1973, p.93)
E como estamos falando em avaliações do movimento modernista, Alceu
contrabalanceou o papel dos dois poetas paulistas sempre como pólos opostos, como
personalidades díspares que contribuíram decisivamente para a história do movimento.
Entretanto, a avaliação não foi apenas de Amoroso Lima, Oswald e Mário também
estabeleceram os seus conceitos avaliativos quanto à Escola literária que eles ajudaram
a estabelecer. Vale a pena, para uma visão mais ampla deste movimento, perceber
como ambos sentiram o Modernismo anos após o seu momento de ruptura. Para isso,
exploremos primeiramente o posicionamento de Mário na sua histórica Conferência do
Itamaraty, em 1942 e, num segundo momento, falemos um pouco de Oswald na
Conferência de Belo Horizonte, em 1944.
No final de 1942, o jornalista Edgar Cavalheiro iniciou um audacioso projeto para
o jornal O Estado de São Paulo: um memorial com quarenta personalidades do mundo
da cultura que foram contemporâneos da geração de 22, entre eles estavam Oswald de
Andrade, Alceu Amoroso Lima, Di Cavalcanti, Jorge de Lima e outros. O objetivo era
recolher as principais impressões de cada um no que dizia respeito aos problemas
literários, políticos, artísticos e sociais daquele momento. Um consenso praticamente
unânime era quanto à sensação de que o Modernismo, embora revelador de inúmeros
talentos, não ultrapassou a fronteira do esteticismo. Neste afã, dois convidados não
aceitaram fazer parte da publicação: Monteiro Lobato (já radicado na Argentina por
causa de problemas políticos com o Estado Novo) e Mário de Andrade.
164
Todavia, Cavalheiro não desistiu daquele que era chamado por muitos de “o papa
do Modernismo”, por isso ele insistiu muito com Mário, mas tudo foi em vão. A
contribuição do poeta e crítico nos festejos culturais dos vinte anos da Semana foi de
outra forma, como lembra o próprio Cavalheiro:
Com as comemorações da Semana de Arte Moderna ele foi tentado a repor as coisas nos
seus devidos lugares. Escreveu três artigos para o Estado de São Paulo, nos quais
historiava a famosa semana e explicava sua posição artística e humana no movimento.
Pouco depois, convidado pela Casa do Estudante, reviu esses artigos, transformando-os
numa esplêndida conferência que foi lida no Itamaraty a 30 de abril de 1942. Quem quer
que leia essas páginas admiráveis, de uma coragem rara, verá que Mário de Andrade não
fez outra coisa senão o seu testamento, isto é, que essa conferência serve perfeitamente a
este inquérito, constitui a melhor resposta que poderíamos ambicionar. (Apud Teles,
1992: p.308)
Na sua Conferência, Mário admitiu que sua geração recebeu inúmeras influências
futuristas e que o espírito modernista e as suas modas foram diretamente importados da
Europa, de uma certa forma aludindo a este caráter universal da modernidade, como ele
sempre gostava de afirmar. Em certo momento do seu texto, ele falou acerca da retórica
da destruição praticada pelos artistas deste período: o movimento modernista foi
essencialmente destruidor. Até destruídos de nós mesmos, porque o pragmatismo das
pesquisas sempre enfraqueceu a liberdade de criação (Apud Teles, 1992, p. 310).
Uma das teses que Mário defendeu nesta conferência diz respeito à natureza
apolítica da sua geração, isto é, esta não serviu de exemplo e inspiração para os grupos
vindouros, principalmente os de 40 em diante, tão marcados no plano nacional pelas
políticas do Estado Novo e, no âmbito internacional, pelos efeitos da Segunda Guerra.
O poeta defendeu a idéia de que os envolvidos no debate cultural não contribuíram
muito para um amilhoramento político-social do homem, já que no fundo eram uns
inconscientes (Apud Silva, 2006, p.65), daí a confirmação daquele prognóstico geral
dos participantes do “inquérito cultural” de Cavalheiro, quando afirmaram que as
experiências de 22 prevaleceram mais no campo estético do que político.
O tom de Mário neste texto foi de uma considerável melancolia. Várias foram as
razões para tal estado: a inexistência dos primeiros grupos que marcaram o início do
movimento, o clima de combate vivido diretamente por Mário em relação a
determinados direcionamentos artísticos e a sua situação pessoal e profissional, já que o
poeta fora uma vítima direta das politicagens da Era Vargas (na sua demissão do
165
Departamento de Cultura de São Paulo), fato este que marcou a sua vida para sempre.
Foi quando ele afirmou:
É melancólico chegar assim no crepúsculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo.
Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu passado não é mais meu companheiro. Eu
desconfio do meu passado. [...] Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna
não devemos servir de exemplo a ninguém . Mas podemos servir de lição. (Apud Teles,
1992, p. 310)
Mas Mário sempre volta ao seu tom de mestre de gerações e aproveitou a platéia -
a maioria jovens diplomatas e alguns futuros escritores - para acentuar a sua crença
numa revolução de mentalidades e atitudes: Façam ou se recusem a fazer arte, ciências,
ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida,
espiando a multidão passar. Marchem com a multidão. (Apud Silva, 2006, p.65).
Naquele momento, Mário encarnava o “intelectual completo”, aquele que possuía uma
espécie de “função civilizatória” numa sociedade e nos seus projetos estéticos, sociais e
políticos. É neste sentido que entendemos as palavras de Alceu, nas suas Memórias
Improvisadas, sobre Mário de Andrade:
Mário, com um sentimento moral de responsabilidade, que foi sempre o seu tormento
pessoal, mas também a garantia da probidade e do futuro da dupla revolução que
patrocinava, a estética e a social. Esse sentido de probidade, acima de tudo e em qualquer
terreno, é que me leva a concluir que o que eu via na vertente positiva do modernismo era
fruto primacial da ação de Mário de Andrade. (Lima, 1973, p.94)
É esse sentimento de retidão, próprio de Mário de Andrade, que levou Alceu a
possuir grande admiração pelo poeta paulista, relegando a este o sucesso da empreitada
modernista. Finalizando a nossa avaliação a respeito do movimento modernista, é
interessante notar o papel, também fundamental, exercido por Oswald de Andrade. O
poeta pau-brasil não era apenas rebeldia vanguardista, também teve uma contribuição a
dar para a história do movimento – a sua Conferência de Belo Horizonte.
Em 1944, o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, realizou a
Primeira Exposição de Arte Moderna. Esta teve a participação de inúmeros artistas
modernistas, dentre os quais Portinari, Di Cavalcanti, Volpi, Lasar Segall e Guignard, o
curador da exposição. Além da programação plástica, o evento também contou com a
participação de Oswald de Andrade que fez uma conferência intitulada O Caminho
Percorrido, na qual foi feito um balanço dos vinte e dois anos da Semana de 22. O
evento foi apelidado pela imprensa de “Semaninha de Arte Moderna”.
166
O texto de Oswald é um contraponto direto às idéias de Mário defendidas dois
anos antes no Itamaraty. À tese de Mário de que o artista modernista se isolou numa
práxis puramente estética distanciada do povo, Oswald afirma: de 22 para cá, o escritor
não traiu o povo, antes o descobriu e o exaltou [...] vede o exemplo admirável de Jorge
Amado. (Apud Silva, 2006, p.67). Reconhecimento intrigante o de Oswald quanto a
Jorge Amado, já que no início dos anos 30 foi o autor de Pau-brasil o criador da
alcunha “búfalos do Nordeste”, esta designava os romancistas cujas obras
representavam as mazelas sociais nordestinas, principalmente Jorge Amado e Graciliano
Ramos.
Entretanto, a principal tese de Oswald na sua apresentação seria a articulação
histórica entre a Inconfidência Mineira e a Semana de 22. De acordo com o
conferencista, a Inconfidência e a Semana foram antecedidas por forças revolucionárias
vindas de uma Europa subversiva e revoltada, isto é, a Inconfidência foi tramada
ideologicamente a partir das influências iluministas, com o objetivo principal de tornar
o Brasil livre de Portugal. Enquanto isso, a Semana foi pensada a partir dos moldes
igualmente revoltados das vanguardas artísticas, radicais e destruidores por natureza.
Um ponto de semelhança entre os textos de Mário e Oswald diz respeito a certo
tom confessional que ambos utilizaram nos seus discursos. Se Mário foi um tanto
pessimista quanto à eficácia de todas as propostas modernistas, Oswald foi amargo ao
tratar da sua própria situação enquanto artista, principalmente no que concernia a um
isolamento por parte da intelectualidade e da própria geração de 22. Durante sua
conferência, Oswald fez uma amarga crítica a Alceu Amoroso Lima, ainda por conta do
artigo Literatura Suicida, que Alceu publicara em O Jornal. O trecho a seguir
demonstra um pouco do seu estado de total repugnância em relação a alguns
representantes da geração de 22, particularmente Alceu :
Na elucidação da questão da antropofagia entra um ato de elegância do Sr. Tristão de
Athayde que muito me comoveu. Antes de me referir a isso, quero fazer notar que o Sr.
Tristão de Athayde está tingindo a cabeça de acaju. Esquece-se que há pouco mais de um
ano desejava em grandes artigos que a Rússia fosse esmagada pela Alemanha nazista,
pois seria logo em seguida posta a nocaute pelos vencedores de Cassino. Agora já vê
diferente e deseja retomar a posição contrita de crítico. Mas antes dessa remada para a
esquerda, o leão da Academia que Agripino Grieco chamou de “rei dos animais de farda”,
ou seja, o inodoro e presidencial Sr. Múcio Leão deu à publicidade uma carta de
Alcântara Machado que lhe foi piedosamente passada pelo crítico católico d’O Jornal, a
fim de me xingar pela boca de um morto. Quem havia de publicar essa carta senão a
ratazana em molho-pardo que é o Sr. Cassiano Ricardo? Nesse documento vem à tona o
estado de sítio que proclamaram contra mim os amigos da véspera modernista de 22.
167
Pretendia-se que eu fosse esmagado pelo silêncio, talvez por ter lançado Mário de
Andrade e prefaciado o primeiro livro de Antônio Alcântara Machado. É ele mesmo que
depõe de além-túmulo. (Apud Silva, 2006, p. 69)
Esse “esmagamento pelo silêncio” foi um dos maiores dramas de Oswald no final
da sua vida. Na carta a que ele se refere, Alcântara Machado falou dos motivos que o
levaram a romper com o poeta da Antropofagia. Segundo Machado, Oswald tinha tudo,
menos caráter, chegando a utilizar a Revista de Antropofagia para desferir difamações
morais contra seus companheiros de 22, dentre os quais Mário de Andrade, Paulo
Prado, Guilherme de Almeida e quase todos os poetas e escritores do Rio de Janeiro.
Foi na Revista de Antropofagia que Oswald deferiu diversos ataques morais a
Mário de Andrade, insinuando a homossexualidade deste artista. Em diferentes artigos
e notas, Oswald chamou Mário de “o nosso Miss São Paulo traduzido em masculino”,
ou então de “Miss Macunaíma”. Em outros momentos, para não repetir muito as
expressões, Oswald dizia que Mário era “muito parecido pelas costas com Oscar
Wilde”. Desnecessário dizer que Mário ficou absolutamente transtornado e se afastou
definitivamente de Oswald. Este fez de tudo para reatar a amizade, porém nada surtiu
efeito, em vários momentos ele disse que não “entendia o porquê” de Mário ter brigado
com ele.
Segundo Lúcia Helena, no trabalho Um caminho percorrido, nos seus textos
produzidos a partir da década de 40, Oswald de Andrade adquiriu uma sintomática
“posição de combate” frente ao meio cultural que o relegou às margens do Modernismo.
Nesses textos,
Ressoa o mesmo espírito em que se misturam mágoa, reavaliação, defesa e cobrança pelo
que Oswald interpretava como falta de reconhecimento. [o poeta] destoa da atitude de
Mário de Andrade, que em 1942, na conferência sobre a Semana de 22, desautorizara e
minimizara as vantagens do afã destruidor da voragem modernista. Enquanto Mário fazia
uma avaliação de rumos em que repudiava o “calor da hora”, Oswald nele insistia. (Apud
Silva, 2006, p.70)
Oswald se perdeu nos seus próprios discursos - o da obra e o da vida. A crítica a
partir da década de 40 o excluiu de forma contundente, seus textos não mais
participavam das antologias lançadas no mercado, como foi o caso da Apresentação da
Poesia Brasileira, organizada por Manuel Bandeira e tampouco a sua existência era
lembrada nos principais meios culturais brasileiros. Em 1954, quando faleceu, estava
silenciado e sua obra não era lembrada ou valorizada pela geração depois da sua. Sua
168
ressurreição se deu graças aos concretistas, especialmente o Irmãos Campos, que o
tiraram de um definitivo esquecimento revisando sua obra e apresentando-a aos
tropicalistas, que resemantizaram o conceito de Antropofagia Cultural.
Tentando encontrar uma síntese para a interpretação dos papéis que cada um
exerceu dentro do Modernismo, Antonio Candido deu um palpite:
Para quem estiver preocupado com os precursores de um discurso em rompimento com a
mimese tradicional, seria Oswald. Para quem está interessado num discurso vinculado a
uma visão do mundo no Brasil, seria Mário. Quem construiu mais? Mário. Qual
personalidade mais fascinante? Oswald. Qual individualidade intelectual mais
poderosa? Mário. Qual o mais agradável como pessoa? Oswald. Qual o mais scholar?
Mário. Qual o mais coerente? Mário. Quem explorou mais terrenos? Mário. Quem
pensou em profundidade a realidade brasileira? Mário. Oswald era um homem de
intuições geniais, mas com escalas de valor muito desiguais. Em resumo, foram dois
grandes homens, sendo irrelevante optar entre eles. (Candido, 1992, p.244)
Realmente, não só seria irrelevante ter de escolher entre os dois, mas também sem
sentido, já que ambos ajudaram a escrever e ler o movimento modernista brasileiro.
Cada um interpretou o Brasil de uma maneira frontalmente diferente, porém ambos
contribuíram para diferentes e interessantes leituras a respeito da nossa modernidade.
Os posicionamentos de Mário e de Oswald colaboraram não apenas na avaliação de
certos direcionamentos do movimento, mas serviram principalmente para explicitar
quão diferentes eram as propostas modernistas vivenciadas por cada um, e de que forma
esta diferença foi responsável pelo lugar que ocuparam no processo de canonização do
próprio Modernismo. Daí a crítica de Alceu: “Mário me parecia ser o lado construtivo
do modernismo. Oswald, o seu aspecto demolidor, agitado e agressivo.” (op.cit.)
169
4.4.
Lima Barreto – um Caso à parte da Crítica Amorosiana
Graças à classificação crítica feita por Alceu Amoroso Lima, o período entre
1900-1922 na Literatura Brasileira é denominado Pré-Modernismo. Como toda
classificação crítica, até hoje tal “carimbo metodológico” gera controvérsias. Segundo
Alfredo Bosi (1975), esta fase deve ser entendida em dois sentidos um tanto paradoxais.
No primeiro, o prefixo pré assume conotação de uma certa anterioridade temporal,
algo que “está em preparação”, no qual o período literário por ele designado se
caracteriza por um considerável conservadorismo estilístico, uma espécie de
continuísmo, aglutinando poetas (neo)parnasianos que, sob o aspecto estético-
ideológico, podem ser considerados antimodernistas, no qual a idéia de vanguarda é
sempre vista com desconfiança e até mesmo anti-arte.
No segundo, o prefixo conota forte sentido de precedência temática e formal em
relação aos valores da literatura modernista, especialmente da Geração regionalista de
30, devendo ser visto como movimento renovador, principalmente em relação à prosa
produzida neste momento. Romances como O Triste Fim de Policarpo Quaresma são,
na opinião de alguns críticos, bons exemplos de enredos modernistas, e não pré. Os
escritores representativos desse modo de representar a literatura passaram a interessar-se
pela realidade brasileira, propondo uma revisão crítica de certos valores nacionais e
provocando algumas rupturas que se tornaram sintomáticas durante o Modernismo.
Neste sentido, a posição de Lima Barreto no grupo intelectual de seu tempo
marcou-se sempre pela dissonância e pelo desencontro em relação ao pensamento
acadêmico oficial. Tal postura de profunda inadaptação foi percebida nos diferentes
âmbitos da produção literária, na problemática do julgamento crítico, na maneira de
interagir nos ambientes de convívio e também no que se referia às suas preocupações
políticas e sociais. Esse sentimento de constante deslocamento em relação à vida e a si
mesmo foi uma constante, como ele em diversos momentos relatou no seu Diário
Íntimo, como podemos notar neste fragmento:
Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse
sentimento doloroso que eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela;
é de tal forma nuançoso a razão de ser disso, que para bem ser compreendido exigiria
uma autobiografia, que nunca farei. Há coisas que, sentidas em nós, não podemos dizer.
A minha melancolia, a mobilidade do meu espírito, o cepticismo que me corrói —
cepticismo que, atingindo as coisas e pessoas estranhas a mim, alcançam também a minha
170
própria entidade —, nasceu da minha adolescência feita nesse sentimento da minha
vergonha doméstica, que também deu nascimento a minha única grande falta. Aqui bem
alto declaro que, se a morte me surpreender, não permitindo que as inutilize, peço a quem
se servir delas que se sirva com o máximo cuidado e discrição, porque mesmo no túmulo
eu poderia ter vergonha. (Barreto, 1953, p.13)
Este trecho é do dia 03 de janeiro de 1905, Barreto ainda estava bem jovem e
sequer tinha estreado no mundo literário, mas ainda assim podemos perceber o teor
corrosivo que marcou a sua trajetória. Segundo Alceu Amoroso Lima, tal realidade não
era apenas de Lima Barreto, mas de todo um grupo que mantinha afinidades ideológico-
comportamentais, como ele lembra neste fragmento das suas Memórias Improvisadas:
Só a partir de 1922 surge realmente a idéia de geração, que toma o nome de modernista.
Mas antes não havia causa comum, ideal comum, apenas prolongamento de correntes
anteriores. Existiam algumas personalidades isoladas, como Euclides da Cunha, Lima
Barreto, Augusto dos Anjos, Afrânio Peixoto. Era a época do individualismo. [...] Era a
fase da literatura do Fon-Fon, do penumbrismo, a que se prende as Cinzas das Horas, de
Manuel Bandeira. (Lima, 1974, p.61)
Podemos afirmar que este período chamado Pré-Modernismo foi um tipo de
“entre-lugar”, uma espécie de hiato do nosso processo literário, com uma forte dose de
mal-do-século ainda rondando certas mentalidades, a vida matando a cada experiência
mal sucedida. Até mesmo a idéia de geração estava comprometida, principalmente se
concebermos a relação geração/linhagens. É difícil classificarmos, com total exatidão,
em qual linhagem um Lima Barreto ou um Augusto dos Anjos podem estar inseridos,
tamanha a diversidade temática que eles abordaram.
Os grandes jornais daquele momento davam um prestigiado destaque às letras,
concedendo-lhes seções permanentes diariamente. Era impossível conviver no mundo
da literatura sem passar pela imprensa, conclusão esta tirada por todos os entrevistados
do Momento Literário de João do Rio. Os jornais e algumas revistas especializadas
eram a porta de entrada para o (sub)mundo das rosas e dos espinhos literários. Era a
partir dos jornais que eles conquistavam o público leitor, ainda um tanto incipiente
naquele momento.
Por falar em jornalismo, neste ambiente se processava um dos maiores calos de
Lima Barreto – a Crítica Literária. Sua exclusão como pessoa humana se estendeu até a
exclusão dos principais circuitos da crítica produzida naquele momento. O autor de
Isaías Caminha pouco tinha a oferecer a esse tipo de máfia das letras e, consciente de
sua marginalidade literária e social, nunca esmoreceu no “combate” ou tornou-se
171
agregado de qualquer panelinha, prestando favores aqui ou ali com vistas a uma
aceitação por parte do referido grupo de mútuos interesses. Crítico, ele também,
mostrou-se freqüentemente preocupado com a natureza e a função da Crítica Literária,
como registrou nos seus apontamentos, no fim de 1904:
Um escritor, um literato, apresenta ao público, ou dá publicidade a uma obra; até que
ponto um crítico tem o direito de, a pretexto de crítica, injuriá-lo? Um crítico não tem
absolutamente direito de injuriar o escritor a quem julgar. Não se pode compreender no
nosso tempo, em que as coisas do pensamento são mostradas como as mais meritórias,
que um cidadão mereça injúrias, só porque publicou um livro. Seja o livro bom ou mau.
Os maus livros fazem os bons, e um crítico sagaz não deve ignorar tão fecundo princípio.
Ao olhar do sábio, o vício e a virtude são uma mesma coisa, e ambos necessários à
harmonia final da vida; ao olhar do crítico filósofo, os bons e maus livros se completam e
são indispensáveis à formação de uma literatura. Se o crítico tem razões particulares para
não gostar do autor, cabe-lhe unicamente o direito de fazer, com a máxima serenidade,
sob o ponto de vista literário, a crítica do livro. Em resumo, se o crítico ama as coisas do
pensamento, e sobretudo estas, deve ter sempre em mira a sua prosperidade; e, creio, a
injúria não é o melhor meio para obtê-la. (Barreto, 1953, p.27)
O trecho evidencia as primeiras inquietações de seu espírito acerca do trabalho
crítico, não só aquele que recebia em função de sua obra, mas também o que ele mesmo
iria realizar, comentando e criticando a produção intelectual de sua época, da forma
mais digna: “Um crítico não tem absolutamente direito de injuriar o escritor a quem
julgar”. Para o escritor, criticar não era difamar, não era simplesmente fazer uma
distribuição de avaliações morais que não contribuíssem para um saudável debate de
valores.
Todavia, a face mais cruel da Crítica produzida naquele momento era, para Lima
Barreto, a prática de um total silêncio em relação à produção daqueles que não se
formatavam ao “gosto oficial” vigente. É o próprio quem afirma isso: “A única crítica
que me aborrece é a do silêncio, mas esta é determinada pelos invejosos impotentes que
foram chamados a coisas de letras, para enriquecerem e imperarem” (Barreto, 1953,
p.27).
O campo intelectual do início do século XX foi marcado pela formação de duas
frentes, tanto na produção literária quanto no julgamento da mesma. Desta forma, temos
escritores como Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Olavo Bilac, entre outros, satisfeitos,
adaptados e perfeitamente integrados à realidade sócio-cultural de sua época,
produzindo obras marcantes que eram consideradas porta-vozes do ideário das classes
dominantes, distribuindo de graça sorrisos e amenidades, leveza e alegria, mascarando
uma realidade social dura e triste, brutalizada pelas tensões e conflitos de toda natureza.
172
Paralela à essa produção, observava-se uma face já conhecida da crítica,
preocupada em agradar e expandir a literatura amena e idealizada, marcada pela
linguagem de clichês, pela postura do apadrinhamento de certos escritores e seus
respectivos grupos. Este direcionamento provocava, inevitavelmente, algumas
manifestações de preconceitos, como lembrou Alceu Amoroso Lima:
O que devemos condenar é o crítico preconcebido, que já leva a opinião formada, antes
de ler a obra. [...] O preconceito é uma forma de fanatismo e este uma das muitas
modalidades do irracionalismo. Devemos temer o crítico irracional, que julga os autores,
as obras e os movimentos artísticos segundo as suas próprias paixões. (apud Coutinho,
1980, p.38)
Tal prática de preconceitos não se dava apenas na dimensão da análise literária,
mas também nas políticas ou politicagens de publicação, fazendo com que certos
artistas ficassem, literalmente, à deriva das benesses editoriais. Em outro momento do
seu Diário, em 20 de abril de 1914, Lima Barreto alude este tipo de estado:
Hoje, pus-me a ler velhos números do Mercure de France. Lembro-me bem que os lia
antes de escrever o meu primeiro livro. Publiquei-o em 1909. Até hoje nada adiantei. Não
tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. [...] Para os jornais daqui estou
incompatível. Podia tentar a aventura fora, mas não tenho liberdade; era preciso que
estivesse só, só. Enfim, a minha situação é absolutamente desesperada. (Barreto, 1953,
p.45)
Uma frase de Barreto resume toda esta problemática: “Para os jornais daqui estou
incompatível”. A produção de Lima quer literária, jornalística ou crítica, subverteu os
padrões dominantes, inserindo-se nas contradições e fissuras ideológicas do seu tempo.
Assim, com um projeto criador dissonante em relação ao campo no qual atuava, Lima
Barreto se viu banido do sistema, excluído dos principais meios de debate intelectual.
Num artigo da revista Careta, em 18 de agosto de 1921, Lima manifestou o seu estado:
Não disponho do Correio da Manhã ou do O Jornal para me estamparem o nome e o
retrato, sou alguma coisa nas letras brasileiras e ocultarem meu nome, ou o
desmerecerem, é uma injustiça contra a qual eu me levanto com todas as armas ao meu
alcance. Eu sou escritor e, seja grande ou pequeno, tenho direito a pleitear as
recompensas que o Brasil dá aos que se distinguem na sua literatura. (Barreto, 1953, p.65)
Vemos claramente as conseqüências do limbo intelectual no qual Lima estava
inserido. Tal fato provocou a sua marginalização pela crítica literária oficial de sua
época que, ou ignorou sua obra, ou a criticou de modo a configurar sua menoridade, seu
caráter de ainda não-literatura, uma espécie de experimentalismo, ou ainda de modo a
173
enfatizar seus aspectos negativos, quer biográficos, quer de estilo. Contrariamente a
estas opiniões, temos a consideração de Alceu Amoroso Lima em relação a Lima
Barreto:
Ocorreram alguns ensaios de escritores voltados para o social e a publicação de revistas
de vida efêmera com igual preocupação. Mas não chegou a surgir nenhum grande nome.
A grande figura indiscutível dessa fase é Lima Barreto. Este sim. Leitor de romances
russos, mostrou-se desde cedo profundamente impregnado do social, voltado para o povo,
para suas penas e suas agruras. (Lima, 1974, p.81)
Existiu, todavia, uma importante exceção no tocante à maneira como alguns
críticos enxergavam a obra de Lima Barreto, e tal fato se deu através de um artigo
escrito por Alceu Amoroso Lima em O Jornal, no dia 18 de junho de 1919. Nele,
Alceu teceu numerosos elogios ao autor de Os Bruzundangas, diferindo radicalmente
dos demais críticos daquele momento. O artigo se chamou Um Discípulo de Machado, e
começava assim:
Dos livros de Lima Barreto se evola um grande desencanto de viver. Vencido na vida,
inadaptável, comunica à sua literatura um acre perfume de tédio e amargor. Sua obra é
uma galeria de caricaturas sociais, magistralmente traçadas. O criador de Policarpo
Quaresma, tipo nacional por essência, estiliza o ridículo. Mais do que um ironista, um
cético, ou um revoltado, Lima Barreto é um caricaturista. Ainda nos seus tipos
preferidos, aqueles que falam por suas palavras, não desfalece a feição do autor, a quem
não escapam os defeitos, os tiques, as fraquezas dos melhores. Lima Barreto é um
humorista da estirpe intelectual de Machado de Assis. Pode-se dizer que, depois deste, é
o nosso humorista. (Lima, 1948, p.24)
Se não tivesse escrito este texto, pelo menos o título escolhido por Alceu já soava
de forma extraordinária: Um Discípulo de Machado. Lima Barreto nunca ganhou tão
forte elogio por parte de um crítico literário profissional, e tal fato merece destaque
nesta pesquisa, uma vez que este artigo de Alceu não é mencionado nas suas cartas e
muito menos no seu Diário Íntimo. A opinião de Alceu foi arguta no sentido de
reconhecer a filiação intelectual de Lima em relação a Machado. Era o carimbo crítico
único e memorável, afinal, Machado já em vida era um habitante eterno do panteão dos
deuses da literatura, e nada melhor para qualquer escritor do que ser comparado
positivamente a ele, era um forma de ser reconhecido e incensado pela Crítica.
Este texto de Alceu foi escrito em 1919, ou seja, três anos antes de Lima morrer.
Por isso o crítico já tinha material suficiente para reconhecer os traços fundamentais que
caracterizavam a pessoa e a obra de Lima, particularmente o “desencanto de viver” e o
174
“acre perfume de tédio e amargor” estilizados na sua obra. Mais adiante, Alceu
escreveu:
Se a verdadeira literatura é a que cria tipos duradouros, personagens de ficção mais vivos
que se foram históricos – Harpagon, Don Juan, Werther, D. Quixote, conselheiro Acácio
ou Brás Cubas – Lima Barreto veio enriquecer a nossa escassa galeria. Todos os tipo da
redação do Globo, nas suas Memórias do Escrivão Isaías Caminha, o Policarpo
Quaresma, o Ricardo Coração dos Outros, e agora o Gonzaga ou o Xisto Beldroegas, são
personagens definitivas, símbolos humanos de nossas virtudes e defeitos. (Lima, 1948,
p.25)
Todo o texto é uma apologia elogiosa à obra de Lima Barreto, e uma das técnicas
críticas que Alceu utilizou foi justamente explorar a relação das filiações estilístico-
literárias que ligavam Barreto a outros grandes escritores, neste caso, os mestres da
literatura ocidental como Goethe, Cervantes e o próprio Machado de Assis. De uma
certa forma, ainda que mais branda e até um tanto tímida, Alceu fez uso dos aspectos
teóricos da Escola Francesa de Literatura Comparada, através do velho método das
Fontes/Influências, como já falamos. Desta maneira, Alceu alcançava criticamente o seu
objetivo que era fazer uma análise positiva a respeito da obra de Lima, talvez tentando
imprimir-lhe um pouco de justiça no sentido de incluí-lo entre os grandes escritores
brasileiros. Seguindo no mesmo artigo de O Jornal temos, mais adiante, um
interessante fragmento:
O espetáculo do teatro lírico, as francesas da rua Gonçalves Dias, a gente de Petrópolis ou
o pessoal dos subúrbios, tudo passa pelo seu crivo, como semente de livres cogitações
engenhosas. Um grande amor pelo Rio e uma verdadeira compreensão de sua paisagem
emolduram a ação que é nula, por assim dizer. O suave licor de Machado de Assis
ressuma dessas páginas de viagem sutil pelo mundo das idéias. (Lima, 1948, p.25)
Neste momento da sua análise, Alceu tocou num dos principais aspectos da obra
de Lima Barreto: a larga constelação de tipos humanos e respectivos ambientes de
convívio. Para tal, o autor analisado cruzava de Petrópolis à rua Gonçalves Dias
passando pelos subúrbios cariocas, explorando os principais aspectos que
caracterizavam tais ambientes. Tudo isso, adocicado e temperado pelo “suave licor de
Machado de Assis”. Quanto ao seu estilo de escrita, assim analisa Alceu:
Seu estilo é amplo, corrente, sem formas fixas nem rebuscado de expressão. O absoluto
desinteresse pela forma cuidada leva-o a decaídas acacianas como – “A gabada Avenida
Beira-Mar” ou – “grandiosa Guanabara” –, ou a comparações de gosto duvidoso no
175
gênero de – “cumprimentou petropolimente” – ou “estilo botafogano”. (Lima, 1948,
p.26)
Aqui, o crítico analisa um outro traço fundamental do estilo de Lima Barreto: a
diversidade da expressividade literária. Lima criou uma literatura riquíssima no que
concerne à linguagem utilizada, não são poucos os neologismos (“petropolimente”,
“botafogano”) e, principalmente, os substratos lingüísticos advindos da cultura afro-
brasileira, especialmente os resíduos lexicais dos antigos escravos perpassados aos seus
descendentes. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, é a personagem Nhá Chica quem
não deixava morrer a tradição negra através de inúmeros africanismos, sendo até um
pouco difícil compreender a sua fala, especialmente no momento que o Major
Quaresma foi inquiri-la a respeito das antigas modinhas e lundus do seu povo. O último
parágrafo do seu artigo é a conclusão das suas impressões sobre Lima:
Humorista, caricaturista, com uma visão dolorosa dos males e ridículos sociais,
temperada pelo pudor de sofrer, Lima Barreto procura esquecer o cotidiano. O
desconcerto de sua obra ressente-se da boêmia de seu viver. Contudo é o mais humano
de nossos romancistas, o de mais vasta mirada. Criou tipos imperecíveis e perpetuou os
nossos meios urbanos de mais caráter: a imprensa, a política, a repartição, fixando a
paisagem familiar do Rio. Que o mal de viver não emudeça esse raro e doloroso artista,
que conhece o segredo da arte literária – escrever nas entrelinhas. (Lima, 1948, p.26)
Interessante ressaltar a “profecia” feita por Alceu nas últimas linhas do seu artigo:
“Que o mal de viver não emudeça esse raro e doloroso artista”. Foram vários os
motivos que levaram Lima Barreto ao emudecimento do qual fala Amoroso Lima, o
mais ressaltado foi, certamente, a sua própria vida. Lima foi uma espécie de herói
dramático, no sentido de ser vítima da sua própria história e das suas escolhas. Isto
criou um tipo de personalidade que não era bem vista pela tropa de elite da Literatura
Brasileira do seu tempo.
Outro fator que também o emudeceu foi a própria Crítica Literária. O artigo
assinado por Tristão de Athayde, em 18 de junho de 1919, foi realmente uma exceção,
algo incomum no tocante ao escritor, principalmente pelo alto teor laudatório com o
qual Tristão brindou o estilo e a obra de Lima. O normal, o escritor bem o sabia, era a
fabricação de uma ignorância em forma de silêncio em relação à sua obra, fato este que
atingiu Lima Barreto frontalmente ao longo da sua trajetória intelectual.
Todos os momentos nos quais Alceu falou sobre Lima Barreto foi sempre de
forma elogiosa, reconhecendo suas qualidades literárias, como ficou bem claro no artigo
176
Um discípulo de Machado. Todavia, no início do século, a situação de Lima perante a
fina nata da intelectualidade carioca não era muito confortável, por conta dos motivos
anteriormente aludidos.
Em síntese, Lima Barreto viveu numa espécie de “exílio crítico” que foi motivado
por uma série de fatores de ordem pessoal e intelectual. Estes contribuíram para que o
escritor tentasse sobreviver culturalmente nas rachaduras ideológicas do seu tempo,
oscilando entre uma produção literária de qualidade e uma total incompreensão por
parte da crítica especializada. Por isso, a melhor saída foi ignorá-lo, calando suas
expectativas e possibilidade de crescimento artístico.
Neste sentido, o silêncio não foi apenas uma arma ideológica do opressor,
podendo ser visto também como uma forma de resistência do próprio oprimido. Ao
longo de sua vasta produção, Lima Barreto não se referiu com muita intensidade à
ausência de considerações por parte da crítica, aqui entendendo intensidade por
quantidade de vezes que o escritor aludiu tal fato nos seus escritos. Embora tivesse
mencionado algumas vezes, com forte mágoa, a falta de notícias sobre suas obras na
imprensa, tais menções foram poucas e rápidas, em vista da dimensão de sua produção
literária, jornalística e crítica. Assim, pode-se dizer que, também silenciosamente, Lima
Barreto resistiu ao exílio literário que lhe foi imposto pela crítica eminentemente
tendenciosa, acadêmica e oficial do período.
177
4.5.
A Crítica Literária – Avanços e Retrocessos
Para finalizar este capítulo acerca das tensões provocadas pelo Modernismo, é
impossível deixar de lado o papel de Alceu Amoroso Lima no âmbito da crítica de
literatura. Sua atividade de crítico especificamente literário durou pouco mais de uma
década, até pouco tempo depois da sua conversão, em 1928. Após este período, Alceu
continuou exercendo a crítica, porém esta foi mais direcionada às dimensões política e
social. Como fim desta tese, vamos analisar as principais características deste atividade
amorosiana, bem como problematizar as teorias e o direcionamento que Alceu levou em
consideração para exercer esta tarefa tão marcada pela complexidade.
Primeiramente, devemos lembrar o nascimento da persona crítica de Alceu, seu
pseudônimo Tristão de Athayde. A este respeito, foi o próprio crítico, numa entrevista a
Medeiros Lima, quem esclareceu:
Medeiros Lima: O que o levou a adotar o pseudônimo de Tristão de Athayde ao iniciar
suas atividades de crítico literário militante?
Alceu Amoroso Lima: Já expliquei isto, pelo menos uma vez, quando de inquérito
literário feito por Letras e Artes, em 1949. As razões dessa escolha foram simples e não
resultaram de nenhuma inspiração especial ou de minhas leituras literárias. Já trabalhava
em empresa industrial de meu pai quando enviei para publicação, em uma revista
qualquer, um soneto de minha autoria. Não tinha, contudo, confiança na minha poesia.
Não queria também confundir a minha atividade empresarial com a de escritor. O soneto,
por sua vez, parecia-me particularmente fraco. Assinei-o então com o nome de Vasco
Athayde. Quando comecei a fazer crítica literária em 1919, lembrei-me daquele
pseudônimo, mas lembrei-me também do soneto e de sua assinatura. Temendo ser
identificado, ou receoso de comprometer o crítico que recém estreava, substituí o Vasco
por Tristão, conservando o Athayde. Muito mais tarde, lendo as Décadas, de João de
Barros, em que descreve as lutas dos portugueses na Ásia, lá encontrei um capitão
tristemente famoso que se chamava exatamente Tristão de Athayde. Não havia mais
jeito. O novo Tristão de Athayde já havia adquirido vida própria e notoriedade... (Lima,
1973, p.87)
Foi com este nome realmente clássico que Alceu iniciou, em O Jornal, sua
atividade de crítico literário ou, como ele mesmo costumava dizer, de crítico militante.
O uso de pseudônimos era algo realmente comum na imprensa nacional e estrangeira.
Por detrás de um nome qualquer, estava a verdadeira identidade do autor, salvaguardado
pelo anonimato e até por um certo ar de mistério. O pseudônimo funcionava (e ainda
funciona) como uma espécie de máscara, de personagem, num imbricado
relacionamento com o “eu” de quem escrevia.
178
Outro problema que se levanta são os critérios que levam, determinado escritor ou
jornalista, a escolher os seus apelidos literios. Certamente, na escolha de um nome,
recaem muitos aspectos ideológicos da personalidade de quem o escolheu. Por isso que,
em certos pseudônimos, encontramos um pouco do caráter do seu proprietário. Foi o
que aconteceu com Alceu Amoroso Lima, nas motivações para a escolha do Tristão de
Athayde encontravam-se subjacentes certos direcionamentos da sua própria
personalidade.
Podemos perceber tal fato até mesmo na pesquisa para a escolha do nome, Alceu
buscou o seu Tristão nos relatos portugueses do século XVI, já que João de Barros
escreveu as suas Décadas entre os anos 1552-1563, nas quais encontramos a narração
das aventuras dos navegadores portugueses pelo Oriente, principalmente nos
entrepostos comerciais de Calecute, Goa, Macau, Timor Leste e Melinde. Ou seja, o
porquê do seu apelido literário está intimamente ligado à sua formação clássica e à sua
erudição, demonstrando o quanto é pretensiosa qualquer escolha deste gênero. Com
isso, “O novo Tristão de Athayde já havia adquirido vida própria e notoriedade”, como
ele mesmo admitiu.
Desta forma, entendemos a razão pelo qual a maioria dos escritores e poetas da
geração de Alceu se referiam a ele apenas pelo pseudônimo, era como se o Alceu não
existisse para dar espaço ao Tristão. Muitos leitores, inclusive, desconheciam o seu
nome verdadeiro, e apenas o nome falso fazia as vezes do autor.
E foi nesta atmosfera de ficção e realidade que encontramos Amoroso Lima, não
apenas elaborando os seus textos hermenêuticos, mas também produzindo muita teoria
acerca do ato de criticar, como bem percebemos neste fragmento:
A função do crítico, penso eu, não é de julgar. Quando muito de avaliar. Acima de tudo,
compreender, participar e comunicar. Tentar compreender o espírito da obra e, por
extensão, o do autor. Participar, na medida do possível, da própria criação ou recriação
da obra, já que considero a crítica como uma forma de criação literária e não apenas de
avaliação e reflexo. Finalmente, compete ao crítico comunicar ao seu leitor e ao leitor
das obras o seu próprio depoimento como leitor e participante. (Lima, 1973, p.88)
Com essas opiniões, Alceu reconfigura substancialmente o papel da Crítica e do
próprio crítico de literatura. Ao afirmar que “a função do crítico não é julgar, porém
compreender e participar”, Amoroso Lima bate de frente com as premissas clássicas da
Crítica Literária, estas viam tal atividade como um ato de julgamento, de
estabelecimento de hierarquias valorativas quanto ao objeto analisado e seu respectivo
179
autor. A crítica servia para estabelecer conceitos, jogando por terra ou divinizando
autores e obras, justamente o contrário da proposta de Alceu em “tentar compreender o
espírito da obra e do autor”. Sobre o que devia ser evitado no ato crítico, Alceu
afirmou:
Não está muito longe dessa concepção da cirurgia clássica a imagem da crítica, como a
concebe a opinião pública. Se o serrote fora o emblema do cirurgião é o do crítico a
palmatória. Espírito de contradição, incapaz de entusiasmo, fechado a toda emoção
espontânea, só haveria de natural no crítico a paixão do erro, a paciente investigação de
defeitos pela dissecção da obra, estudada a bisturi e a microscópio. (Lima, 1922, p.14)
Alceu utilizou diversas metáforas da Medicina para analisar o modelo tradicional
de Crítica Literária. De fato, muitos críticos seguiram esses passos anatômicos na
análise de obras e autores, contribuindo sobremaneira na perpetuação da imagem do
crítico como aquele que perseguia o objeto criticado e tentava extrair deste toda sorte de
minúcias temáticas e formais. Era o exagero de uma prática formalista que tanto tempo
configurou a Crítica Literária. No Brasil, o melhor exemplo foi Osório Duque-Estrada.
Neste modelo analítico, salta aos nossos olhos o profissional que o exercia, este
“Espírito de contradição, incapaz de entusiasmo, fechado a toda emoção espontânea”
que fazia do erro a natureza da sua atuação. Era a ideologia da perfeição literária, do
texto “saído da oficina sem qualquer defeito”, para intertextualizar com a Profissão de
Fé, de Olavo Bilac
4
. Daí considerar-se este modelo hermenêutico como uma espécie de
autópsia textual.
Segundo Gilberto Mendonça Teles, a principal razão para esta “diferença”
exercida por Alceu enquanto crítico literário está no seu “globalismo filosófico”, isto é,
Amoroso Lima tinha uma mente aberta às diferentes manifestações do conhecimento
humano, não atrofiando seu pensamento apenas na pesquisa de temas voltados para a
literatura. Segundo Teles:
A sua própria concepção de literatura não permitiria uma atitude isolacionista em face dos
fenômenos artísticos. Para ele, os problemas estéticos estão em relação íntima com os
problemas militares, políticos, econômicos, jurídicos ou religiosos, pois “a arte não se
separa, como nenhuma das demais atividades humanas, de uma filosofia geral da
existência”. (Teles, 1980, p.11)
4
A passagem completa é: “Quero que a estrofe cristalina / Dobrada ao jeito / Do ourives, saia da oficina. /
Sem um defeito”
180
Este aspecto intelectual de Alceu favoreceu seu diálogo com outras manifestações
do pensamento, percebendo que a natureza da literatura estava interligada às demais
ideologias. Enfim, a arte não era uma realidade autônoma, independente das outras
dimensões da realidade humana. Isto favoreceu a visão que Alceu tinha acerca da
Crítica Literária, pois ele não a reconhece como uma verdade, porém como parte
integrante de diversas verdades.
Como em toda concepção de mundo reside uma estética implícita, assim Alceu
definia sua atividade de crítico de idéias, como ele mesmo várias vezes se autodefiniu.
Ao criticar e debater certas ideologias, Alceu o fazia apoiando-se no binômio intuição-
expressão. Para ele, o artista devia ser capaz de intuir mais do que os outros homens e,
por essa razão, ele tinha uma maior capacidade de expressar-se, sempre levando em
consideração que “a arte é uma forma de comunicação”. Segundo definiu Gilberto
Mendonça Teles:
O artista é um ser dotado, capaz de proceder como Deus, isto é, de criar como Deus cria.
Essa criação provém da forma intuitiva de conhecimento de que o artista dispõe de
maneira mais intensa, capaz de realçar a “linguagem” das coisas para que os homens
possam percebê-las melhor. (Teles, 1980, p.14)
Assim, a consequência mais óbvia da intuição é a produção de uma linguagem, ou
seja, de uma manifestação artística dotada de expressividade, que comunicasse a
realidade subjetiva do artista por meio da sua obra. Tais teorias sobre a intuição do
artista e, por conseguinte, do próprio crítico literário, Alceu buscou na obra do filósofo
italiano Benedetto Croce, uma das suas principais fontes de influência filosófica.
Benedetto Croce nasceu na Itália, em 1866, numa família de produtores rurais e
ricos proprietários de terra. Teve uma educação católica de cunho altamente tradicional,
o que mais tarde contribuiu para o seu total repúdio ao Catolicismo. Em 1883 perdeu
seus pais e irmãos num terremoto na ilha de Ischia, em Nápoles. Foi morar com um tio
em Roma, onde começou a estudar Direito, mas sem concluir o curso. Neste mesmo
período, estudou História e Filologia, disciplinas que muito contribuíram para a sua
formação de Crítico Literário. Em 1903, fundou a revista La Critica, onde publicou a
maioria dos seus escritos e analisou criticamente os trabalhos dos intelectuais europeus
mais importantes do seu tempo. A revista durou até 1943, portanto, quarenta anos,
tempo suficiente para Benedetto Croce amadurecer suas teorias críticas.
181
Croce interessou-se primeiramente por História e, mais tarde, por influência do
filósofo Gianbattista Vico, interessou-se por Filosofia. Embora tenha ficado conhecido
como um dos maiores filósofos marxistas, Croce rejeitou as principais teorias do
Marxismo. Elaborou sua própria filosofia, chamada de “Filosofia do Espírito”. Entre
1920 e 1921 foi ministro da Educação, cargo que abandonou após o início do regime
fascista de Mussolini, voltando a ocupá-lo depois da Segunda Guerra. Entre 1943 e
1947 foi presidente do Partido Liberal italiano, quando escreveu seus principais livros
sobre Teoria Política. Em 1947, abandonou definitivamente a política partidária e
fundou o Instituto Italiano de Estudos Históricos, influenciando as teorias
historiográficas daquele momento, na Itália e também fora das suas fronteiras.
O pensamento de Croce exerceu profunda influência no panorama intelectual do
século 20. Benedetto Croce deixou várias obras de Crítica Literária, Crítica de Arte e
Teoria da História, dentre as quais destacaram-se Ariosto, Shakespeare e Corneille,
História da Europa no século 19 e Breviário de Estética. Este último influenciou
profundamente as opiniões sobre Crítica Literária que Alceu Amoroso Lima e outros
críticos da sua geração desenvolveram. A principal tese de Croce reside na idéia de que
a arte é puramente intuição, como ele afirma neste fragmento:
A arte é visão ou intuição. [...] A obra poética é criação e não reflexão, monumento e não
documento. O artista produz uma imagem ou um fantasma: e quem aprecia a arte volta o
olhar para o ponto que o artista lhe indicou, observa pela fenda que este lhe abriu e
reproduz dentro de si aquela imagem. (Croce, 1997, p.20)
“A obra poética é criação e não reflexão, monumento e não documento”. Esta
frase do crítico e historiador exemplifica sua caracterização da autonomia da arte,
apoiada nos conceitos centrais de intuição e expressão, afastando qualquer premissa que
sustentasse a idéia de que a Poesia era uma forma de Filosofia, como muitos a
concebiam. Para Croce, a criação literária em si não era um exercício crítico,
entretanto, a Crítica podia ser uma espécie de criação, co-habitando junto à própria obra.
Tal opinião também era defendida por Amoroso Lima, para quem o ato crítico era uma
espécie de ato criador:
Sempre considerei a crítica literária, portanto, como uma atividade criadora e total, da
mesma natureza da que leva o poeta ao poema, o prosador ao conto ou ao romance, o
ensaísta ao ensaio ou o homem de gosto a saborear, em silêncio, pelos olhos, pelos
ouvidos, pela inteligência, as obras de beleza estética. (apud Teles, 1980, p.36)
182
Daí compreendermos as constantes referências que Alceu fez em relação à obra e
à pessoa do crítico italiano. Croce e Alceu não consideravam o texto crítico apenas
como uma mera produção interpretativa e mecânica, que buscava compreender a
anatomia literária do objeto analisado. Era sim, antes de mais nada, um exercício
criativo e estilístico, dotado de parâmetros e filiado a um determinado gênero textual.
Benedetto Croce morreu em Nápoles, em 1952.
A partir dessas considerações, podemos avançar um pouco mais nas outras
interfaces da práxis crítica de Alceu, especialmente na relação entre crítica e criação,
tantas vezes defendida por ele. Em 1945, Alceu publicou O Crítico Literário, livro-
chave para compreendermos as suas convicções a respeito do profissional e da própria
Crítica Literária. É nele que encontramos essa definição:
Há, pois, uma distinção inicial entre crítica e criação. Mas não há dissociação e muito
menos antagonismo. E por isso é que o segundo elemento de nossa definição é que a
crítica é, também, uma atividade criadora. A crítica supõe, no crítico, qualidades
análogas às do criador: vocação, inspiração, invenção, estilo. Para ser realmente crítica
tem de ser também criadora. [...] Nunca dissociei crítica de criação. Não há criação
autêntica sem crítica, nem crítica autêntica sem criação. (Lima, 1945, p.9)
Alceu deixou bem claro que, embora fossem realidades artísticas totalmente
diferentes, a criação estava associada à crítica, uma vez que ao analisar o objeto artístico
em questão, o texto produzido era também uma realidade criada, pensada. Por isso os
requisitos que o crítico devia possuir: “vocação, inspiração, invenção, estilo”, ou seja, as
mesmas qualidades que se espera de um artista. Contra qualquer possibilidade de
equívoco quanto às suas opiniões, Amoroso Lima sempre fez questão de esclarecer o
caráter de diálogo entre essas duas instâncias criadoras. Mais uma vez, recorremos às
suas Memórias Improvisadas para sabermos um pouco mais acerca desses assuntos:
Como considero a crítica uma forma de criação, deve ser ela, antes de tudo, de tipo
intelectivo, ao passo que a obra, poética ou de ficção é uma atividade antes de tudo
instintiva e intuitiva. [...] Sendo a atividade crítica primacialmente intelectiva, seu campo
de penetração difere, ou por excesso ou por deficiência, dos campos de ação da própria
atividade poética ou ficcionista, de tipo instintivo e intuitivo. Assim sendo, nunca pode
haver uma penetração analítica completa da criação crítica na obra de criação poética ou
ficcionista. (Lima, 1973, p.88)
Alceu delimitou as fronteiras de cada uma das atividades. A crítica pressupõe um
trabalho de inteligência, de associação de conhecimentos, de produção de saberes. Já a
obra puramente literária circula no espaço da intuição, bem como defendia Benedetto
183
Croce, é a criação por natureza, fruto do trabalho intuitivo do artista. E como já
afirmara em fragmentos anteriores, criação e crítica se entrelaçam, se comunicam,
porém mantendo cada uma a sua especificidade, por esta razão que “nunca pode haver
uma penetração analítica completa da criação crítica na obra de criação poética ou
ficcionista”. São processos criativos diferentes, mas não conflitantes, mantendo uma
considerável independência.
Em outros textos teóricos de sua autoria, Alceu analisou a relação nem sempre
pacífica entre crítico e o autor da obra. Segundo ele,
Há um outro elemento, porém, que dá vida e calor à crítica literária, ainda sem lhe tirar o
caráter severo e sistemático. Não basta que a alma do crítico se projete sobre a obra, que
ele se entregue totalmente à sua compreensão, como queria Henry James, - to lend
himself... to feel and feel until he understands
5
. A alma do crítico deve procurar a alma
do autor. Através da obra se o não conhece; fora dela, também, em caso contrário, - deve
o crítico tentar fundir-se, por alguns momentos ao menos, com o espírito daquele cuja
obra pretende exprimir e analisar, colocando-se na situação mental em que ele se encontra
para criar. Sai desse contato de alma a alma uma centelha que abrasa e ilumina, que dá
seiva e calor à inteligência, para a obra que pretende elevar. (Lima, 1922, p.16)
Alceu defendeu tais propostas num texto intitulado A Crítica Hoje, que serviu
como introdução à sua biografia de Afonso Arinos, seu primeiro livro, publicado em
1922. Como primeiro texto crítico-teórico, podemos dizer que Alceu demonstrou
suficiente maturidade ao escrevê-lo, principalmente porque as idéias defendidas em tal
reflexão lhe serviram de paradigmas para a ação crítica durante toda a década de 20, isto
é, durante todo o tempo no qual o Tristão prevaleceu sobre o Alceu.
Desta forma, podemos afirmar que Alceu propôs uma espécie de simbiose entre as
três instâncias da crítica – autor, obra e o próprio crítico. “A alma do crítico deve
procurar a alma do autor”, esta foi uma das fórmulas básicas defendidas por Amoroso
Lima. Acompanhando o percurso histórico da Crítica Literária, vemos quão difícil é
colocar tal idéia em prática, em muitos casos, o crítico já chega “armado” para exercer o
seu papel de censor. Infelizmente, às vezes não é possível separar a crítica
propriamente dita da inquisição literária, isto é, certos textos analíticos serviram mais
para denegrir, condenar e perseguir certos escritores, e não para estabelecer um discurso
crítico sadio e construtivo. Por essas razões que a proposição feita por Alceu – de
fundir as mentalidades do autor e do crítico – sempre foi uma dos grandes desafios da
Crítica Literária. Ainda em A Crítica Hoje, Alceu afirmou que o crítico:
5
“Emprestando-se... sentir e sentir até que entenda.”
184
Para compreender deve sentir, e só o contato da intuição do crítico com o espírito da obra
e com a alma do autor, pode preparar a tarefa da inteligência para o estudo final e
necessariamente objetivo da obra. Tudo isso porque a obra de arte vive não só de vida
própria senão da vida do seu criador. Essa crítica moderna, que poderíamos chamar de
expressionista, se importasse a denominação – cujo conceito repousa, como acabamos de
delinear, numa penetração mais profunda do espírito das obras, numa fusão preliminar da
alma do crítico com a do autor, na transformação da análise objetiva em síntese
expressiva. (Lima, 1922, p.17)
Com tais idéias, Alceu batizou o seu método analítico – Crítica Expressiva. Era
desta forma que ele sempre se referia às suas análises críticas, as mesmas expressavam
sempre os seus pontos de vista. Esse expressionismo se baseava, metodologicamente,
nesta simbiose crítico-literária entre “a alma do crítico e a alma do autor”, algo
totalmente diferente da crítica tradicional, que defendia um patamar diferenciado e
reverenciado para o crítico literário. Este tinha uma missão árdua e nobre – iluminar os
leitores quanto à qualidade da literatura que estava sendo produzida. E claro, neste
mister de analisar a qualidade dos textos, estava também um desejo ávido em ressaltar
os defeitos dos mesmos, seus problemas técnicos, sua expressão nem sempre condizente
com o gênero escolhido pelo autor.
Ou seja, autor e crítico não habitavam o mesmo mundo, não falavam a mesma
língua, enfim, não se entendiam. Esta postura do crítico enquanto defensor da verdade
estética teve como principal representante, na Crítica brasileira, José Veríssimo. Daí a
total reviravolta do método de Alceu Amoroso Lima, no qual as duas principais
instâncias críticas abriam um certo diálogo, pelo menos nas intenções. Alguns anos
depois do lançamento de Afonso Arinos, cuja introdução foi o texto conhecido como A
Crítica Hoje, Alceu fez novamente algumas considerações a respeito da Crítica
Expressionista. Numa artigo intitulado Crítica II, publicado em O Jornal, no dia 21 de
dezembro de 1941, Alceu diferenciou a sua práxis crítica do Impressionismo crítico:
Criticar é saber esperar. É saber perder tempo com a leitura, com a análise e com a
interpretação das impressões recebidas com a leitura dissecadas com a análise. Todo
esforço crítico é uma psicossíntese que sucede a uma psicanálise. Esse duplo movimento
– ou antes tríplice, pois a crítica se faz em três momentos: o da submissão à obra, o da
dissecação da obra e o da recomposição da obra através das impressões recebidas – , esse
movimento crítico não se faz sem demora, devotamento e disposição a sair de si mesmo.
Foi a isso que há vinte anos chamei de expressionismo. Era uma forma de crítica que me
parecia dever suceder ao impressionismo e que era caracterizado, como se sabe, pelo
predomínio do crítico e de suas impressões subjetivas sobre o autor e sobre a obra. (apud
Coutinho, 1980, p.32)
185
Na Crítica Impressionista, cabia ao crítico não mais do que externar o prazer, a
impressão que a obra lhe despertava à leitura. Anatole France, em La Vie Littéraire,
instituíra o padrão dessa atitude, que para ele era a única de validade para o julgamento
da obra literária. Para France, o que importava no trabalho analítico eram as reações do
crítico e não a obra que estava sendo analisada. Os principais critérios eram a
sensibilidade e o gosto do crítico. Desta forma, o ato crítico resumia-se num passeio da
alma do profissional e de suas predileções estéticas através das obras. Este foi o
Impressionismo Crítico, de larga aceitação nos fins do século XIX e primeiras décadas
do século XX.
Para aqueles que discordavam de tal metodologia crítica, o Impressionismo
degenerou-se em meros borboleteios literários, ou mesmo se tornou um tipo de “viagem
intelectual”. Tal opinião concluímos a partir da leitura e análise de inúmeros artigos
jornalísticos que se orientaram por tal tendência. Em geral, todos se caracterizavam por
uma sucessão de textos opiniáticos, de “gostei-ou-não-gostei”, de "achismos" sem
conteúdo doutrinário nem base crítica. Em vez de tentar compreender e valorizar a
obra, a ação do crítico reduzia-se ao registro de impressões, tornando-o uma espécie de
noticiarista literário.
Daí defendermos que o Expressionismo amorosiano foi diretamente contrário ao
Impressionismo Crítico, ainda comum no contexto cultural no qual Alceu vivia,
principalmente na prática analítica de Nestor Vítor. Nesta abordagem expressiva,
percebia-se logo um diferencial, uma linguagem crítica que desde os seus primeiros
passos teóricos foi percebida como literária, ao contrário do que até então se fazia na
Crítica brasileira. Alceu foi bem mais longe, como tentativa de sistematizar a atividade
do crítico e a própria natureza da Crítica Literária, ele criou os Dez Mandamentos da Lei
do Crítico:
1. Amar a Justiça sobre todas as coisas.
2. Não fazer jamais da crítica um instrumento pessoal de êxito ou de paixão.
3. Ler cuidadosamente os livros criticados e, sempre que possível, toda a obra dos
autores.
4. Colocar a obra e o autor estudados em relação com o ambiente geral da Cultura.
5. Procurar compreender totalmente o ponto de vista do autor.
6. Ser absolutamente sincero e claro na exposição do próprio parecer.
7. Não temer o desagrado, nem do autor nem do público, mas temer a sua própria
consciência.
8. Não se deixar nunca influenciar pelas críticas alheias à mesma obra estudada.
9. Evitar todo farisaísmo no julgamento alheio.
186
10. Ser humilde, com toda simplicidade, no julgamento de si próprio e na apresentação
de sua visão pessoal das coisas. (apud Teles, 1980, p.24)
Primeiramente, a idéia de estabelecer como “mandamentos” os seus
direcionamentos críticos, demonstra a clara intenção de Alceu em teorizar as suas
opiniões. Neste sentido, nada melhor do que um diálogo interdisciplinar com Os Dez
Mandamentos da Lei Mosaica, já que a idéia de “mandamento” simboliza autoridade,
regra, critérios a serem empregados no sentido a estabelecer uma ordem, ou pelo menos
a busca da mesma.
Todos os aspectos metodológicos e ideológicos que nortearam a atividade crítica
de Alceu estão sintetizados neste decálogo. Além da teoria claramente literária que
permeia tal “lei”, percebemos também todo o vigor da ideologia católica, não apenas na
motivação dos Dez Mandamentos, como principalmente na idéia de apostolado e
missão exercidos por Amoroso Lima. Tal posicionamento ficou bem claro nesta
afirmação de Alceu: “a Fé, longe de negar a ciência, é o melhor meio de levá-la ao seu
objetivo final – o conhecimento profundo da natureza das coisas. E o que procura, senão
isso, a crítica literária em seu domínio?” (apud Teles, 1980, p.25). Nessa perspectiva
ontológica, Alceu também versou sobre a necessidade de o crítico ter e assumir uma
ética no exercício da Crítica Literária, como ele mesmo afirmou:
O crítico, esse sim, deve obedecer também a um critério moral, já que tem o dever de ser
fiel ao autor e à obra que analisa. Assim como à sua missão de a transmitir aos leitores.
É um dever moral que exerce ao ser honesto consigo mesmo e com os outros, obra, autor,
público. Tudo isso implica na primazia do dever sobre o poder e o fazer e portanto
representa uma atitude ética, preliminar à estética, que é o domínio próprio do poder e do
fazer. (Lima, 1973, p.89)
Mais uma vez, a mentalidade católica subjaz à atividade do crítico, especialmente
na necessidade de uma postura ética por parte do profissional. Com isso, ética e moral
se entrelaçavam como valores não apenas profissionais, mas principalmente humanos,
num exercício constante de amadurecimento e evolução desta atividade artística.
Entretanto, esses direcionamentos de Alceu Amoroso Lima tiveram uma má
recepção na opinião de alguns intelectuais daquele momento. Isto é algo absolutamente
normal, já que nenhum discurso é integralmente aceito e admitido como verdade
absoluta. Vejamos algumas opiniões contrárias a Alceu e à crítica literária por ele
realizada.
187
Como primeiro exemplo, temos uma opinião, no mínimo, inesperada. Trata-se de
Afonso Arinos de Melo Franco, amigo de infância de Alceu. A relação entre as famílias
Amoroso Lima e Arinos era bem antiga, remontava ao pai de Alceu e ao primeiro
Afonso Arinos, amigos de longas datas que tinham outro grande companheiro em
comum: Machado de Assis. Segundo Alceu, os três eram inseparáveis, tanto que
Machado costumava escrever poemetos pueris e dá-los de presente ao pequeno Alceu e
seus irmãos. Foi também Afonso Arinos a motivação para o primeiro livro escrito por
Alceu, uma espécie de biografia na qual o autor ressaltou as qualidades políticas e
literárias de Arinos. Em 1944, Afonso Arinos de Melo Franco (sobrinho do primeiro
Arinos) publicou Mar de Sargaços. Segundo ele, a crítica literária produzida por Alceu
Caracteriza bem a significação do pensamento de Alceu Amoroso Lima, na sua mais alta
qualidade e, a meu ver, no seu mais grave defeito. A obra de Alceu Amoroso Lima, sendo
das mais consideráveis do Brasil, poderia ter uma força condutora e transformadora muito
maior. [...] Se o seu autor tivesse colocado o raro conjunto de qualidades que Deus lhe
deu (inteligência ao mesmo tempo poderosa, equilibrada e inquieta; integridade moral;
imensa capacidade de trabalho) à disposição de temas menos gerais e mais nacionais,
menos culturais e mais sociais, menos dogmáticos e mais críticos. (apud Coutinho, 1997,
p.608)
Contextualizando a opinião de Afonso Arinos, vemos que o mesmo a expressou
devido àquela fissura ocorrida na pessoa de Alceu após a sua conversão. Arinos achava,
como vários intelectuais (inclusive já falamos de alguns), que Amoroso Lima não mais
exerceria a liberdade necessária para a atividade crítica, já que a ideologia católica
combativa era renitente ao liberalismo ideológico presente em boa parte da
intelectualidade brasileira. Daí Arinos discordar de certos direcionamentos tomados por
Alceu no seu exercício de crítico literário.
Todavia, vejo como um tanto exagerada a opinião de Afonso Arinos, já que um
estudo mais aprofundado da produção intelectual de Alceu revela uma preocupação
acentuada do mesmo em relação aos temas nacionais, principalmente as mazelas sociais
produzidas pela miséria econômica. No livro A Experiência Reacionária, foram
compilados inúmeros artigos escritos por Amoroso Lima, nos principais jornais do país,
ao longo de décadas. As temáticas mais recorrentes foram a eclesiologia católica
brasileira, os dramas sociais, o desordenado crescimento urbano, a falta de perspectiva
do pobre e, principalmente, a problemática da Ditadura Militar no Brasil.
Sobre este último assunto, foi Alceu um corajoso defensor das minorias, dos
estudantes, dos jornalistas, sindicalistas e religiosos em geral vítimas da Ditadura.
188
Alceu usou a imprensa como tribuna para os seus pronunciamentos escritos, criticou
abertamente as loucuras cometidas pelo governo ditatorial, não poupando nomes,
mesmo que esses fossem de generais e policiais. Inclusive, o prestígio amorosiano era
tão grande que o presidente Castello Branco proibiu o Exército, ou a polícia política, de
cometerem qualquer ato contra a integridade física e moral de Alceu, dando total
liberdade de voz para que ele publicasse o que quisesse nos seus artigos diários,
especialmente aqueles veiculados pelo Jornal do Brasil.
Por essas razões que considero questionável a fala de Afonso Arinos quanto a
uma possível omissão de Alceu pelas temáticas nacionais e sociais. Talvez, Arinos
equivocou-se com o que ele considerava ser nacionalista. Não sei se para ele
nacionalismo e regionalismo significavam a mesma coisa. Neste aspecto, Alceu, de
fato, não tematizou teoricamente as dinâmicas do Regionalismo em sua obra,
simplesmente as usou para analisar o próprio fenômeno literário brasileiro,
especialmente as experiências de José de Alencar e do Romance de 30 modernista.
Para finalizar estas abordagens da crítica amorosiana, vamos novamente recorrer
às opiniões de Mário de Andrade. O constante uso das palavras e idéias de Mário não é
uma espécie de cacoete desta tese, pelo contrário, é o reconhecimento do brilhantismo
do poeta paulista em sua capacidade de tudo falar, analisar, criticar o que lhe passava à
frente, principalmente nos assuntos concernentes à cultura brasileira. A constante
colaboração de Mário é sempre necessária, pois ele foi um intelectual que “brigou de
frente” com Alceu, argumentando muito bem as suas ideologias, quase sempre
contrárias às do crítico carioca. Todo este embate é fundamental para compreendermos
o papel e a função da crítica literária amorosiana.
No seu livro Aspectos da Literatura Brasileira, Mário publicou um importante
ensaio de título Tristão de Ataíde, escrito em 1931, baseado nas considerações de Mário
acerca da quinta série dos Estudos. Neste trabalho, o autor de Clã do Jabuti registrou as
suas principais opiniões a respeito de Alceu, num misto de homenagem e opiniões
negativas quanto à sua atividade crítica. Após um primeiro parágrafo elogioso, Mário
afirmou:
Como crítico literário, Tristão de Ataíde sofria dos defeitos por assim dizer tradicionais
na crítica literária brasileira desde Sílvio Romero. [...] Apregoando o nosso
individualismo, eles socializam tudo. Quando a atitude tinha de ser de análise das
personalidades e às vezes mesmo de cada obra em particular, eles sintetizavam as
correntes, imaginando que o conhecimento do Brasil viria da síntese. (Andrade, 1972,
p.8)
189
Mário nunca deixou de reconhecer Alceu como um dos maiores intelectuais da
sua época, neste aspecto, nutria uma grande admiração pelo crítico carioca, sempre
enaltecendo a sua pessoa e a sua inteligência. Todavia, quando o assunto era crítica
literária, os dois se estranharam bastante, muito mais Mário de Andrade, já que Alceu
não tinha costume de alimentar brigas e dissidências entre os grupos modernistas.
A crítica negativa de Mário se dava porque, de acordo com as linhas
historiográficas francesas, Alceu e outros críticos analisavam a Literatura Brasileira
pelo seu conjunto estilístico e cronológico, isto é, a velha fórmula de se compreender a
literatura apenas pelas suas respectivas escolas literárias. Inclusive, foi Alceu quem
criou o termo Pré-Modernismo e teorizou ao seu respeito, estabelecendo as suas
características e os seus critérios. Por isso compreendermos a fala de Mário quanto a
uma possível síntese de Amoroso Lima, especialmente na tentativa de compreensão do
nosso percurso literário. Em outro momento do seu texto, Mário continuou
espinafrando Amoroso Lima:
Outros defeitos da crítica literária de Tristão de Ataíde são a quase dolorosa
incompreensão poética; a conversão sistemática de todos os nossos valores individuais e
movimentos a fenômenos de mera importação; e, o que é pior, a sujeição das opiniões
artísticas dele à cour d’amour européia. (Andrade, 1972, p.8)
Aqui Mário faz alusão ao fato de Alceu sempre ter demonstrado uma postura mais
técnica em relação à poesia, analisando-a sob aspectos mais formalistas do que poéticos.
Para Mário, Alceu e outros críticos literários daquele momento eram tributários dos
antigos mestres da Crítica Literária, estavam conectados através de famílias culturais e
estilos em comum. E o que era pior: a sólida formação acadêmica de tendência
evidentemente européia e canônica. Com toda a certeza, Mário ainda via em Alceu a
materialização do modelo do intelectual aburguesado, isolado do seu meio, preso à sua
Torre de Marfim, perdido em tanta erudição. Entretanto, sabemos que com Alceu se
deu justamente o inverso: o crítico utilizou o seu vasto conhecimento para evoluir, para
dar um novo sentido à sua Crítica de literatura.
Em carta a Manuel Bandeira, no dia 06 de janeiro de 1923, Mário escreveu:
“Amanhã deve aparecer no Jornal a crítica do Tristão de Athayde sobre a Paulicéia.
Mas ele não entende de poesia.” (apud Moraes, 2000, p.82). De fato, no dia seguinte,
Alceu publicou em O Jornal um artigo analisando criticamente Paulicéia Desvairada.
Logo de início, o crítico foi receptivo e simpático ao livro de Mário, enfatizando a
190
importância do seu Prefácio Interessantíssimo e associando-o a diversos movimentos
das vanguardas européias. Sobre Paulicéia, Alceu afirmou:
É tanto ou mais um livro de combate do que um livro de poesia. Não que deixe de conter
poesia, e poesia profunda, que leva consigo toda a personalidade e não o simples
devaneio. Mas acima disso, é um livro que rompe barreiras, que arrasta ou afasta os
tímidos. [...] Poesia de impressões vividas, literatura de ação, apesar de todos os excessos
conscientes a que se atira. (apud Moraes, 2000, p.83)
Alceu era um grande conhecedor das vanguardas européias, não apenas porque as
viu acontecendo durante as suas várias idas a Paris, em plena época de efervescência
vanguardista, mas porque as estudou muito, conhecia autores e artistas que sequer
chegaram ao nosso conhecimento aqui no Brasil, esbanjava citações e referências nos
seus textos. Quanto à Paulicéia Desvairada, ele logo percebeu e entendeu o projeto de
Mário, surpreendendo sobremaneira este último, que acreditava no contrário. Acertou
em afirmar que este livro “rompia barreiras” e que era de “combate”, características
estas nunca negadas por Mário de Andrade. Este, após ler este artigo de Alceu,
escreveu, irônico, a Bandeira: “Leu o Tristão de Athayde? Se ele soubesse gostar de
versos!” (apud Moraes, 2000, p.84).
Manuel Bandeira foi outro poeta que teve a amizade de Alceu, mas que também
discordou deste em relação a certas conclusões da sua crítica literária produzida. Em
carta a Mário, no dia 21 de julho de 1925, Bandeira escreveu: “Acho o Tristão
palavroso, atrapalhado, não apanhando o essencial das coisas, por ex. a brasilidade e o
gosto da terra na incoerência destabocada do Oswald.” (apud Moraes, 2000, p.220).
Cinco dias depois, em 26 de julho, respondeu-lhe Mário:
Quanto ao Tristão, tem dito besteira e impertinências a valer. O último artigo dele sobre
o Gui
6
e com aquelas discussões sobre forma não está ruim. Porém negar forma ao verso-
livre é besteira grossa. É mesmo que negar forma pro estilo rococó decorativo que fugia
dos paralelismos. E depois a forma é um pouco mais sutil no conceito dela que o Tristão
pensa. Existe na forma uma realidade ideal subjetiva que escapou inteiramente pra
Tristão. (apud Moraes, 2000, p.222)
Neste fragmento, Mário tocou numa das principais brigas da primeira geração
modernista – a problemática do verso livre. Ao contrário daqueles que consideravam o
uso do verso livre apenas como uma atitude de rebeldia poética, Mário achava que o
verso livre não era tão livre assim, pois quando o poeta tinha a opção de usá-lo deveria
6
Trata-se de Guilherme de Almeida.
191
fazê-lo como uma opção claramente estética e ideológica, fruto de uma intenção, de
uma racionalidade, de um estudo. O verso livre não devia ser usado apenas como uma
espécie de falta de opção versificatória, ao contrário, era uma delineação
ideologicamente pensada e refletida, com um porquê de existir e ser aplicada. De fato,
Alceu não via o verso livre desta forma tão apurada. Para o crítico, seguindo a
tendência de uma formação literária clássica, o verso livre significava unicamente a
radicalidade poética trazida pelas vanguardas européias.
No dia 11 de julho de 1925, Alceu publicou, em O Jornal, um importante artigo
de nome Um girondino do Modernismo I, no qual ele fez algumas análises sobre a
poesia de Guilherme de Almeida. Nesta crítica, Alceu delimitou explicitamente a
direita e a esquerda da primeira geração modernista. Os jacobinos eram aqueles
encabeçados pela ideologia de Oswald de Andrade, loucos e subversivos nas atitudes e
opções poéticas, que defendiam veementemente a “concepção radical e suicida da
poesia”.
Inversamente, os girondinos do Modernismo eram aqueles com opção estética
contrária àqueles, entre os quais Guilherme de Almeida e sua trupe. Desta forma, os
girondinos defendiam
A anuência ao novo sem sacrifício total do antigo. A revolução das formas com a
conservação da essência. [...] Desagregam para melhor exprimirem, julgam eles, uma
sensibilidade mais sutil, ampla, reticente, que se sente insatisfeita em moldes rígidos, em
formas regulares. Procuram, portanto, a destruição da forma não por um radical
pessimismo, por um espírito demoníaco de negação, como os suicidas do pau-brasil –
mas por adaptarem a forma poética à sua sensibilidade dispersa e vaga. (apud Moraes,
2000, p.223)
Entretanto, o problema é que Alceu, a esta altura da sua práxis crítica, ainda
considerava que todos os modernistas de São Paulo fossem da estirpe “suicida do pau-
brasil”, generalizando todos e não poupando ninguém. Por isso a raiva de Mário em
relação ao referido artigo de Alceu.
Voltando ao seu texto crítico Tristão de Ataíde, Mário o concluiu com uma
panorâmica a respeito dos Estudos de Alceu:
Os Estudos de Tristão de Ataíde são um drama enorme. Apaixonantes, irritantes,
sectários, cultíssimos, nobilíssimos, se não representam porventura o mais característico
da personalidade do grande pensador católico, representam melhormente o seu martírio.
E se é certo que já agora ele é das mais fortes figuras de críticos que o país produziu,
desconfio que os futuros não-sei-o-quê vivendo nestas terras do Brasil terão ao lê-lo o
192
espetáculo dum homem querendo desviar uma enchente, apagar o incêndio dum mato, ou
parar um raio com a mão. (Andrade, 1972, p.25)
Mário termina seu texto um tanto dramático, especialmente na sua conclusão
acerca de Alceu e suas intenções para com o Modernismo. Para Mário, na crítica
exercida por Alceu estava muito da sua personalidade, da sua visão de mundo e da sua
opinião quanto ao próprio movimento modernista. Assim, Alceu propondo “frear”
certos radicalismos estilísticos, pedindo calma e equilíbrio às experimentações
enlouquecidas de um Oswald de Andrade estava, unicamente, tentando “desviar uma
enchente, apagar o incêndio dum mato, ou parar um raio com a mão”, ou seja, queria
evitar o inevitável – a revolução modernista de cunho radical praticado por algumas
figuras da primeira geração deste movimento.
A crítica literária produzida por Alceu foi tão intensa e complexa que merece ser
mais estudada, talvez num trabalho específico para esta finalidade. No caso desta tese,
a abordagem da sua produção crítica foi apenas um dos tantos assuntos relacionados e
discutidos, não sendo o leitmotiv da mesma.
Como já afirmamos, a crítica assumidamente literária de Alceu foi produzida
entre o ano de 1919 e o início da década de 30, já que após a sua conversão, Alceu
pensou, inclusive, em abandonar definitivamente a crítica, como ele mesmo afirmou:
Só escrevo de acordo com o que sinto dentro de mim. Não queria fazer crítica. Fui
levado por um amigo, Renato de Toledo Lopes
7
. Naquela ocasião não tinha
preocupações nem política, nem social, nem religiosa. Olhava a vida como expressão
estética. Mais tarde viria a mudar. Insatisfeito com uma filosofia puramente estética da
existência, comecei a voltar-me para outra série de preocupações, tanto de ordem
filosófica como religiosa. O alargamento do meu tempo de investigação levou-me à
procura de uma cosmovisão através dos estudos de filosofia e de uma concepção total da
vida. Esse foi um dos motivos que me induziram a abandonar a crítica. O outro foi de
natureza pragmática. Estava muito chateado com a literatura brasileira, o que me obrigou
a mudar o título do meu rodapé em O Jornal, de “Bibliografia” para “Letras Universais”.
Mas nunca excluí de minhas preocupações o interesse pela literatura. Depois, inclusive, é
que me fiz professor catedrático de literatura (1941), por concurso, na Faculdade
Nacional de Filosofia. (Lima, 1973, p.88)
Desta forma, no seu rodapé Letras Universais, em O Jornal, o crítico não mais
assinava Tristão de Athayde, porém Alceu Amoroso Lima. A mudança do pseudônimo
para o nome verdadeiro foi assaz significativa, era uma mudança de personalidade
cultural. Tristão era um nome pagão, pela sua etimologia e pela sua origem literária,
7
Proprietário de O Jornal.
193
tinha mais a ver com o “primeiro Alceu”, ainda agnóstico, confuso em relação aos
problemas religiosos, cético quanto aos assuntos de fé. Daí o abandono do pseudônimo,
a ponto do Alceu ter escrito ao Tristão:
Dirá você que, realmente, a partir daquele mês de agosto de 1928 você passou por algum
tempo a ser posto de lado. É que os cristãos novos, como os recém casados, são em geral
muito ciumentos. Se nos livros de 1922 em diante era você que aparecia, no rosto das
capas – a partir de 1930, creio eu, você passava a figurar apenas a meu lado, ou antes logo
abaixo de mim... Era evidentemente uma capitis diminutio, pensou você. E passado uma
par de anos você viu mesmo desaparecer de todo o seu nome da capa dos livros e só
aparecer o do seu antecessor... Lembre-se, porém, Tristão amigo, que eu não tive
coragem de o abandonar de todo. Foi seu nome, e só o seu, que continuou a figurar entre
parênteses nas folhas. E até hoje você se vinga do seu ingrato patrono, criando confusões
que nos fazem passar ainda por dois ou mesmo por três, pois o nosso comum e caro
amigo Austregésilo de Athayde entra frequentemente nessa cordialíssima confusão, para
dar um pouco de lustre às cores parcas da nossa própria simbiose nominal. (apud Teles,
1980, p.248)
A brincadeira se explica: em 1969, nas comemorações do jubileu de ouro das
atividades literárias de Alceu, este publicou Meio Século de Presença Literária,
importante livro de memórias suas e do próprio movimento modernista. Foi neste livro
que o Alceu escreveu ao Tristão, para lembrar e saudar “aquele” que tanto causou
alvoroço na crítica literária brasileira dos anos 20.
5.
Conclusão
Ao chegarmos ao fim deste trabalho, muitos questionamentos ainda pululam no
nosso imaginário. Hipóteses, argumentos, teses e possibilidades – uma gama de
questões salta à leitura deste nosso texto. Por isso, concluir torna-se uma difícil
obrigação, já que a idéia de conclusão pressupõe fechamento, decisão, certeza,
justamente o oposto do que interpretamos acerca da obra e da vida literária de Alceu
Amoroso Lima. Mas ainda assim vejamos se conseguimos estabelecer alguns conceitos
e teorias.
A primeira conclusão que surge após a leitura desta tese é o caráter atual do
pensamento amorosiano. Embora tendo iniciado suas atividades intelectuais na década
de 20 do século passado, Alceu ainda permanece novo e provocando diversas reações
no meio acadêmico, seja para confirmá-lo ou negá-lo. Alguns dos seus livros ainda são
referências obrigatórias para determinadas áreas merecendo, por essas razões, novas
edições.
Alceu nasceu “carioca da gema”, como ele gostava de lembrar, num berço
abastado e tradicional de uma família de industriais. Desde cedo provou o bom gosto e
as benesses que tal situação lhe ofereceu, principalmente no fato de ter recebido uma
excelente formação acadêmico-cultural, complementada pelas inúmeras viagens que fez
à Europa e a outras partes do Mundo, alargando consideravelmente sua visão de arte e
de mundo.
Alceu teve uma dinâmica trajetória intelectual, cujo divisor foi decididamente a
sua volta ao Catolicismo. Vítima de um forte indiferentismo religioso que reinou antes
e durante a Belle Épóque, Amoroso Lima costumava dizer que ele e sua geração se
tornaram agnósticos por falta de opção, por quererem dar algum tipo de significado às
suas vidas. Logo, o agnosticismo era mais uma reação do que uma escolha.
Evidentemente, todo o clima anti-clerical típico do século XIX e início do século XX
em muito contribuiu para tal estado, quando filosofias e ideologias políticas defendiam
a tese de que Deus era um conceito criado pelo Homem, especialmente pela típica
necessidade humana de querer entender e alcançar o inalcançável.
195
Por isso seu retorno ao Catolicismo foi emblemático, foi uma atitude contrária ao
que se esperava de um intelectual naquele momento. Inclusive, a conversão de Alceu
produziu críticas negativas no meio da intelectualidade brasileira, pois muitos viram em
tal fato um retrocesso, uma possibilidade de fechamento por parte de Alceu ao debate e
à vida cultural. Felizmente, deu-se o oposto. Amoroso Lima continuou aberto ao novo,
às experimentações estilísticas; todavia, mantinha intactas suas convicções religiosas,
eram o seu paradigma de vida.
Alceu surgiu como pensador católico num momento em que a Igreja brasileira
passava por profundas mudanças doutrinais e pastorais. A instituição se esforçava para
recuperar o espaço perdido, na política e na cultura, desde o fim do padroado. Aliada à
Sé Romana, a Igreja do Brasil não mediu esforços para resgatar o seu prestígio, e uma
das principais decisões foi a aproximação aos principais setores da Classe Média,
particularmente dos intelectuais. Houve todo um trabalho de inserção de alguns
pensadores nas “frentes de batalha eclesiásticas”, daí que a política, a educação e a vida
cultural foram os seus principais destinos, seu novo campo de missão.
Foi como missão que Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima e outras
personalidades classificaram a sua atuação naquele momento. E como a missionaridade
é algo dado por Deus, eles consideravam divina a sua atuação no seio da sociedade
brasileira, eram os cavaleiros de Cristo, paladinos da fé cuja razão de viver estava
associada diretamente ao Corpo Místico de Cristo, isto é, à própria Igreja. Por isso
compreendemos uma certa paixão que utilizavam na defesa do Catolicismo, era uma
espécie de “nova fase dos mártires”, na qual o Coliseu podia ser a Universidade, a
Imprensa, os locais de trabalho ou a própria família. Nesta perspectiva, podemos
afirmar que Frei Pedro Sinzig, por exemplo, foi essa espécie de “novo gladiador”.
Se a Igreja não conseguiu seu intuito maior – o de recristianizar o Brasil – pelo
menos conseguiu deixar sua marca indelével em certos setores da nossa sociedade: os
colégios e universidades católicos, a Imprensa religiosa e uma nova mentalidade
incutida no próprio laicato comprometido e atuante, ou seja, a defesa de um
compromisso na defesa da Igreja e da fé.
Em resumo, todo o trabalho produzido pelo Centro Dom Vital foi fruto desta nova
missão, desde a publicação da revista A Ordem até os posicionamentos dos seus
membros, enfim, tudo concorria para ressignificar a função da Igreja e a atuação dos
seus principais seguidores, clérigos ou não.
196
Este clima serviu também para repensar o próprio sentido da literatura produzida
no Brasil, especialmente o Modernismo. Alceu foi testemunha ocular das grandes
transformações pelas quais este movimento passou desde o seu início. Sempre atento às
novas propostas teóricas e práticas, o crítico carioca soube dialogar com as diferentes
correntes ideológicas e estéticas deste movimento, alcançando um considerável
“globalismo filosófico”.
Como grande revisionista que foi, Alceu utilizou sua capacidade memorialística
para (re)pensar os caminhos tortuosos pelos quais o Modernismo brasileiro trilhou,
realçando suas particularidades e, principalmente, seu caráter lacunar e poroso. Por isso
analisamos as diferentes e sintomáticas rachaduras que este movimento produziu,
demonstrando o quanto o mesmo foi heterogêneo nas ideologias e nas obras produzidas,
corroborando ainda mais a sua pluralidade estilística.
No que diz respeito às teorias sobre Crítica Literária defendidas por Amoroso
Lima, títulos como A Estética Literária e o Crítico, a série dos Estudos e O Crítico
Literário ainda são referências obrigatórias para aqueles que desejam não apenas
entender o desafiador processo crítico, mas também compreender a visão renovadora
que Alceu imprimiu à sua própria análise literária, transformando sobremaneira a
maneira como se produzia Crítica de literatura no Brasil.
Amoroso Lima abandonou conscientemente o Impressionismo Crítico, afirmando
que este era formado por um conjunto de “achismos” pessoais de quem o praticava. No
seu lugar, cunhou a classificação Crítica Expressionista para designar o seu próprio
fazer crítico. Este se apoiava na premissa de que a Crítica não era apenas um simples
trabalho de interpretação literária, mas também de produção artística. Tal tese ele
produziu a partir das suas leituras do método analítico de Benedetto Croce, que defendia
o binômio intuição/expressão.
Em meio às diferentes performances da análise literária produzida no Brasil, uma
chamou atenção durante as nossas pesquisas: a Crítica Literária Católica.
Como foi afirmado, para muitos críticos e historiadores da literatura, tal
terminologia nunca existiu, o que tivemos foram algumas manifestações de crítica
literária produzidas por críticos católicos. Optou-se, neste trabalho, em estabelecer tal
conceito, uma vez que o mesmo possui determinadas especificidades estilísticas e
ideológicas que possibilitam tal classificação. Isto sem dizer que o mesmo foi
intensamente utilizado por muitos artistas e pensadoras que nem católicos eram,
aumentando ainda mais o leque de atuação classificatória de tal modalidade crítica.
197
Para os partidários desta corrente estético-ideológica, a Crítica deveria ser vista
como uma forma de criação que desse dignidade ao Homem, aproximando-o de Deus.
Além disso, ela também estava imbuída da uma missão, isto é, de alertar e prevenir os
leitores de determinadas obras e escritores nocivos à fé e à Igreja, porta-vozes da
perdição eterna e da separação com o Criador. Desta forma, percebemos um tom
confessadamente apologético e tendencioso neste tipo de Crítica, onde a produção
literária era sempre bifurcada entre Bem e Mal, puro e impuro. Foi justamente o que fez
Frei Pedro Sinzig no seu Através dos Romances – Guia para as Consciências, um
verdadeiro manual a respeito da boa e da má literatura.
Tais críticos defendiam a idéia de que a Arte era Deus se revelando à humanidade
através do artista, por isso se deveria ter o devido respeito não apenas àquele que
produziu a obra, mas também ao seu receptor. Por isso a principal justificativa para a
existência de tal modalidade crítica, ela servia principalmente para que o leitor se
protegesse dos textos que fossem comprometedores de forma negativa com a fé.
Finalmente, o outro bloco temático analisado versou sobre as tensões geradas
dentro do movimento modernista. Quanto mais se afirmava como estética própria do
século XX, mais o Modernismo se mostrava plural na sua organização e expressão.
Definitivamente, não foi um projeto harmonioso no que concerne aos direcionamentos
artísticos. Foi fragmentado, fissurado e cheio de entre-lugares, mas nunca homogêneo.
Isto ficou claro na análise bipolar que fizemos a respeito de Mário e Oswald de
Andrade, bom como nas respectivas propostas de modernidade defendidas por ambos.
Mário representou o scholar, praticou uma erudição em pesquisas e experimentos
estilísticos, teorizou e teve atuação em diversas formas de expressão deste estilo.
Segundo Alceu, o posicionamento de Mário foi um excelente exemplo de intelectual
que soube evoluir artisticamente. Ou seja, Mário aproveitou o que a Tradição melhor
produziu em termos estéticos e ideológicos, usufruindo os erros e acertos e,
principalmente, aprendendo com eles.
Já Oswald era o exemplo do que Alceu repudiava em termos de produção
artística. Alceu o classificava de demolidor, destruidor e outros adjetivos nem um
pouco elogiosos, sempre no intuito de reconhecer neste a alma geradora da vanguarda, o
radicalismo puramente proposital. O que Alceu defendia era um porquê, uma razão
plausível para que Oswald e outros de mesma mentalidade agissem daquela forma,
negando de forma contundente tudo o que fosse sinônimo de passado.
198
Enfim, o Modernismo apresentou-se de forma totalmente diferente nas obras e
mentalidade de Mário e Oswald, denunciando o caráter frontalmente contrário de
ambos. Entretanto, para Amoroso Lima, as experiências dos dois Andrades foram de
extrema importância para compreender os diferentes caminhos modernistas.
Outro caminho radicalmente diferente se deu com Graça Aranha e sua filosofia da
Integração no Cosmos – o Integracionismo. Graça foi uma personalidade que gerou
muita controvérsia nos meios intelectuais brasileiros. De uma formação essencialmente
clássica em termos de literatura, ele rompeu com tal direcionamento acusando a
Academia Brasileira de Letras – templo maior do conservadorismo literário – de ser um
sarcófago de múmias, no qual até mesmo as paredes estavam putrefatas pela velhice e
pela não-renovação cultural.
Sensacionalismo ou não, o fato é que a bombástica conferência de Graça Aranha
abalou o meio artístico nacional – fosse para defendê-lo ou para acusá-lo, praticamente
todos comentaram e analisaram a atitude do diplomata. Certamente, a defesa mais
contundente foi feita por Alceu Amoroso Lima, amigo e discípulo de Graça. Alceu foi
um tanto ufanista na defesa de Graça, relegando a ele o fato de o Modernismo ter
chegado ao Brasil. Exagero! Sabemos que muito tempo antes da Semana de 22 já
tínhamos manifestações modernistas. Em termos de Filosofia, seu Integracionismo
Cósmico foi uma verdadeira blague filosófica, “síntese de algumas propostas orientais”,
como afirmou Mário de Andrade.
Desta forma, chegamos ao fim deste trabalho. Sem qualquer tipo de arroubo
sentimentalista, podemos afirmar que a obra e o pensamento de Alceu continuam em
expansão, principalmente naqueles que procuram lançar novas luzes para melhor
compreendê-los.
Alceu foi um artista plural, pensou, analisou e escreveu a respeito de uma
quantidade demasiadamente expressiva de assuntos. Seu olhar foi clínico quando
analisava a realidade social brasileira, especialmente denunciando aquilo que ele
chamava de “o pior escândalo humano”, isto é, a miséria.
Em termos religiosos, foi um católico transpassado pelos valores da divindade e
da humanidade. Desde a sua conversão, Alceu foi um apaixonado pela Igreja de Cristo,
defendeu-a e proclamou os seus valores. Mas soube viver, ou seja, sua reflexão
religiosa evoluiu junto com o tempo, com as mudanças do mundo, com as
metamorfoses do pensamento humano. Uma frase de Alceu resume este aspecto:
“Mudei e mudei porque vivi, porque viver é mudar.”
199
E foi mudando a sua atuação, as suas ideologias e a sua maneira de enxergar a
vida que Alceu criou uma obra que não envelheceu, que ainda merece reedições e
releituras por parte da Crítica.
Neste ano que comemoramos os noventa anos de criação do pseudônimo Tristão
de Athayde, nada mais justo do que (re)pensarmos a trajetória do seu autor, reavaliar os
diversos caminhos trilhados pelo nosso Modernismo, (re)avaliar a importância da
pessoa e da obra de Alceu Amoroso Lima.
6.
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