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Elementos da arte sonora
Felipe Fessler Vaz
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura, da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Comunicação Social.
Orientador: André Parente
Linha de pesquisa: Tecnologias da
Comunicação e Estéticas.
Rio de Janeiro, julho de 2008.
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ii
Elementos da arte sonora
Felipe Fessler Vaz
Orientador: André Parente
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Comunicação Social.
Aprovada por:
___________________________________
Professor Doutor André Parente (orientador)
Escola de Comunicação / UFRJ
___________________________________
Professor Doutor Rodolfo Caesar
Escola de Música / UFRJ
___________________________________
Professora Doutora Marisa Flórido Cesar
Escola de Belas Artes / UFRJ
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iii
Resumo
Esta pesquisa investiga a produção artística contemporânea que vem sendo denominada
como sound art ou arte sonora, e busca traços comuns que possam delimitar o uso do termo e
caracterizar tal produção. Este trabalhou buscou, para isso, mapear experiências que possam
ter antecipado os questionamentos e formatos destes trabalhos mais recentes na história da
música e das artes plásticas, e este mapeamento permitiu identificar experimentos pioneiros
em ambos os casos. Com base nisto e na bibliografia, pode-se concluir que talvez seja antes
um movimento de apropriação de um rótulo por interesses ligados ao sistema de circulação
das artes plásticas do que pela introdução de novas formas de pensamento em relação à arte e
à música.
Abstract
This research investigates the contemporary artistic practices that have been called
‘sound art’ recently, and seeks commonalities that may delineate the usage of this term and
this artistic output. We have tried to map experiments that may have anticipated the problems
and the formats, assessed by these recent works, in the history of music and the visual arts
alike, and this mapping has allowed us to pinpoint prior similar experiments in both. Based on
this and in the bibliography we used, we have concluded that this may configure more of an
appropriation of the term ‘sound art’ by the visual arts system than an effective introduction
of new forms of thinking in relation to music and the arts.
iv
para Daniela e Anita, pelos sons de cada dia
v
Agradecimentos
Obrigado aos colegas e aos professores, principalmente ao André Parente, ao Rodolfo
Caesar e ao Rogério Luz, pelas contribuições e discussões ao longo da pesquisa e do
mestrado; à Marisa pela participação na banca, e ao Arlindo Machado pela disponibilidade e
pela compreensão.
Agradeço de forma toda especial à Daniela Labra, pelo carinho e pelo suporte
conceitual e em todos os sentidos possíveis; à Lilian, minha mãe, pela ajuda sempre que
necessário; e ao Hermano Vianna e à Nana Vaz, pela disposição em ajudar.
Agradeço ainda à ECO por ter possibilitado esta pesquisa, e aos colegas de trabalho, em
particular ao José Marcelo Zacchi e aos colegas da Tecnopop, pela flexibilidade que permitiu
que eu levasse este trabalho até o final.
vi
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Luigi Russolo, seus Intonarumori e um assistente ...................................................13
Figura 2: Croquis de Le Corbusier e Xenakis para o Pavilhão Philips (1958).........................21
Figura 3: Visão externa do Pavilhão Philips (1958).................................................................23
Figura 4: Partitura de Metastasis, de Iannis Xenakis ...............................................................25
Figura 5. Cage, Tudor e Mumma executando Variations V (1965)..........................................31
Figura 6. Instalação de Rainforest IV (1973), de David Tudor.................................................32
Figura 7. Untitled (1966), de Donald Judd...............................................................................41
Figura 8: He weeps for you (1976), de Bill Viola.....................................................................45
Figura 9. Earth Tones (1992), de Bill Fontana.........................................................................52
Figura 10. Times Square, Max Neuhaus (1977).......................................................................54
Figura 11. Time Piece Beacon (2006), Max Neuhaus ..............................................................55
Figura 12. Visão externa de The Paradise Institute (2001), de Janet Cardiff e George Bures
Miller........................................................................................................................................56
Figura 13. Villa Medici Walk (1998), de Janet Cardiff .............................................................57
Figura 14. Ishi's Light (2003), Anish Kapoor...........................................................................59
Figura 15. Immaterial Vault (1975), de Bernhard Leitner........................................................62
Figura 16. Sound Chair, (1975-1991) de Bernhard Leitner.....................................................63
Figura 17. Forty-Part Motet (2001), Janet Cardiff, na capela do MACBA de Barcelona.......64
Figura 18. Projeto de Drive In Music (1967), de Max Neuhaus. .............................................65
Figura 19. Guitar Drag (2000), de Christian Marclay.............................................................66
Figura 20: Totó Treme-Terra (2006), Chelpa Ferro..................................................................67
Figura 21: Relief méta-mécanique de Jean Tinguely................................................................68
Figura 22. Nadabrahma (2004), Chelpa Ferro.........................................................................69
Figura 23. Nympheas (2006), de Paulo Vivacqua ....................................................................70
Figura 24: The box with the sound of its own making (1961), de Robert Morris.....................71
Figura 25: À bruit secret (1915), de Marcel Duchamp.............................................................72
Figura 26. Participation TV (1963), de Nam June Paik...........................................................73
Figuras 27 e 28. Schallplatten-Schaschlik (1963) e Random Access Music (1963), de Nam
June Paik...................................................................................................................................74
Figura 29. Apresentação de Pendulum Music no Whitney Museum em 1969, com Bruce
Nauman, Richard Serra, Michael Snow e James Tenney prestes a soltar os microfones, e
Reich ao centro.........................................................................................................................75
Figura 30. Ligeti preparando o Poème Symphonique (for 100 metronomes) (1962)...............76
Figura 31. Alvin Lucier apresentando Music for a solo performer (1965) ..............................78
Figura 32. Torre do relógio do MASS MoCA, onde foi instalado o Clocktower Project de
Christina Kubisch (1998) .........................................................................................................81
Figura 33. Op-era: Sonic Dimensions (2003), de Daniela Kutschat e Rejane Cantoni ...........83
Figura 34. Lugares sonoros (Teclado Decafônico Concreto) (2005), de Paulo Nenflídio.......84
Figura 35. Algumas das locações de Global String (2001), de Atau Tanaka e Kasper Toeplitz
..................................................................................................................................................85
Figura 36. Foto feita durante apresentação de LSP (2004), de Edwin van der Heide..............90
Figura 37. Milch (2000), de Carsten Nicolai............................................................................91
Figura 38. Telefunken (2000), de Carsten Nicolai....................................................................92
vii
SUMÁRIO
1. Introdução........................................................................................................................1
1.1. Considerações...............................................................................................................1
1.2. Tentativa de delimitação do objeto de pesquisa...........................................................2
1.3. Estrutura da dissertação................................................................................................9
2. Música e artes visuais: diálogos e apropriações.........................................................10
2.1. As pontes entre dois campos: antecedentes ou pioneiros?.........................................10
2.2. Música e artes plásticas: expansão.............................................................................10
2.3. Os futuristas e a incorporação do ruído do mundo.....................................................12
2.4. A música concreta e o objeto sonoro..........................................................................14
2.5. Stockhausen e a escola alemã de música eletrônica...................................................17
2.6. Varèse e o poema eletrônico.......................................................................................20
2.7. Xenakis: diálogos entre música, matemática e arquitetura ........................................23
2.8. Outras músicas eletrônicas.........................................................................................26
2.9. John Cage: passagens.................................................................................................27
2.10. Música minimalista ....................................................................................................33
2.11. LaMonte Young e a música conceitual do Fluxus......................................................34
3. Artes plásticas no pós-guerra.......................................................................................37
3.1. Arte processual e conceitual.......................................................................................37
3.2. Instalações e arte site-specific ....................................................................................41
3.3. Videoinstalações.........................................................................................................43
3.4. Artemídia?..................................................................................................................46
4. Elementos da experiência da arte sonora....................................................................48
4.1. Sobre o ouvido como articulador da experiência.......................................................48
4.2. Espaço ........................................................................................................................50
4.2.1. Lugar/contexto............................................................................................................50
4.2.2. Acústica......................................................................................................................58
4.2.3. Espacialização do som................................................................................................60
4.3. Visibilidade dos processos de produção do som ........................................................65
4.4. O tempo na arte sonora...............................................................................................79
4.5. Interatividade..............................................................................................................82
4.6. Um novo formalismo e a sinestesia digital ................................................................86
5. Considerações finais......................................................................................................94
5.1.1. Arte sonora: linha de fuga? ........................................................................................96
5.1.2. Arte sonora: cristalização? .........................................................................................98
6. Referências bibliográficas ..........................................................................................102
Elementos da arte sonora
1
1. Introdução
1.1. Considerações
It's as if perfectly capable curators in the visual arts suddenly lose their
equilibrium at the mention of the word sound. These same people who would all
ridicule a new art form called, say, 'Steel Art' which was composed of steel
sculpture combined with steel guitar music along with anything else with steel in it,
somehow have no trouble at all swallowing 'Sound Art' (…)
Much of what has been called 'Sound Art' has not much to do
with either sound or art.
– Max Neuhaus, em texto de apresentação à exposição Volume: Bed of Sound,
no PS1 Contemporary Art Center de Nova York, julho de 2000.
Esta dissertação enfoca determinado tipo de produção artística que emprega o som
como seu elemento fundamental, e sua crescente aceitação nos lugares tradicionalmente
dedicados às artes visuais. O termo “arte sonora” tem servido para designar os trabalhos de
um crescente número de artistas mundo afora. No Brasil, temos alguns representantes
notáveis: Paulo Nenflídio, o grupo Chelpa Ferro, Marssares, Paulo Vivacqua e alguns outros
vêm encontrando boa acolhida de crítica, mercado e instituições aqui e no exterior nos
últimos anos.
O principal indício da relevância atual deste tipo de produção é o grande número de
exposições ligadas a esta idéia ocupando espaços nobres do circuito das artes plásticas
internacional, a partir de 2000 para cá. Temos como exemplos a galeria Hayward de Londres,
o PS1 e o Whitney Museum de Nova York, o NTT InterCommunication Center de Tóquio,
entre muitos outros. Outro fenômeno recente é o surgimento de espaços dedicados a esta
prática, como a Singuhr Galerie e o espaço Tesla em Berlim, e a Diapason em Nova York.
A expressão sound art ou arte sonora tem sido empregada neste contexto para descrever
produção artística apresentada das mais diferentes formas: instalações, esculturas, arte
ambiental, objetos, performances, soundwalks, net art, instrumentos experimentais, ambientes
interativos imersivos, intervenções arquitetônicas e urbanas, entre outras. Tal tipo de produção
vem sendo freqüentemente caracterizado como uma categoria recente, com questões novas e
exclusivas, a despeito das origens e dos antecedentes desses trabalhos e suas questões. Estas
raízes são verificáveis de um lado na música, começando com experiências à época das
vanguardas históricas do início do século XX, e de outro nas investigações realizadas no
Elementos da arte sonora
2
campo das artes plásticas, em especial a partir dos anos 1950 – assim como na constante
realimentação e interdeterminação dos movimentos e gêneros artísticos destas duas
disciplinas no período que se estende até hoje.
Mas o que vem a ser esta arte sonora, e o que determina o incremento na sua produção
na circulação hoje? De que forma significativa ela se afasta das noções tradicionais de música
– espaço único de uma arte baseada no som nos milênios anteriores? De que formas diferir
trabalhos de arte sonora da produção de artes plásticas e da música experimental, e por que
estes trabalhos vêm florescendo em meio às instituições dedicadas às artes visuais e não nos
espaços tradicionais da música?
A caracterização de arte sonora como categoria à parte nos parece um trabalho
necessariamente arriscado, dado o fato de ser um território em constante movimento, e de sua
produção ser intrinsecamente interdisciplinar, como iremos verificar mais adiante. O que há,
na arte sonora como nas artes plásticas, são situações, propostas e objetos que artistas irão
construir de diferentes modos, ignorando cada vez mais a clivagem entre as disciplinas das
academias das artes, e produzindo híbridos dificilmente classificáveis dentro de cânones do
saber e do fazer artístico. Pretendemos, através da pesquisa que se apresenta, verificar se as
questões, técnicas e abordagens empregadas nos trabalhos que constituem o que vem se
chamando de arte sonora na última década têm de maneira geral correspondentes anteriores na
história da música e das artes plásticas. Caso possamos verificar esta ligação mais direta,
poderemos isolar esta idéia como algo que faz sentido antes pela institucionalização do termo
do que por caracterizar potências artísticas efetivamente novas, como parecem pretender
alguns artistas e curadores.
1.2. Tentativa de delimitação do objeto de pesquisa
O presente trabalho pretende contribuir para a reflexão acerca da produção que emerge
entre as artes plásticas e a música, mais ou menos negligenciada pela crítica ou por uma
pesquisa acadêmica de maior fôlego até recentemente. Se de um lado o termo sound art é
corrente nos últimos anos, a definição deste campo é necessariamente incerta, e assim, a
própria delimitação dele corresponde a uma parte do problema que enfrentamos; por
conseguinte, a disputa nas fronteiras ainda flous desta produção artística é parte constitutiva
do objeto.
A pesquisa visava originalmente investigar aspectos da arte sonora considerando-a um
Elementos da arte sonora
3
conjunto mais ou menos definido de experiências ligadas às media arts, com problemas e
formatos próprios ou introduzidos recentemente, e que utilizassem o som como meio ou
elemento especialmente relevante. Adicionalmente, pretendíamos verificar que mudanças
haviam ocorrido na sociedade, nas tecnologias e no sistema das artes, para que tal produção
ganhasse o volume e a importância que percebemos hoje.
No início do percurso, no entanto, percebemos que não há na verdade consenso sobre o
que representa o termo arte sonora. Mais que isso, verificamos que se uma produção
contemporânea vem conseguindo grande visibilidade nos últimos dez anos, há um sem-
número de experiências anteriores que tomam o som como suporte ou elemento principal, e
que as experiências anteriores, principalmente aquelas que não estão restritas à artemídia, se
relacionam de maneira muito direta com a história da música do século XX e das arte
plásticas na segunda metade do século passado, mesmo quando recebem o nome de arte
sonora.
Apesar da dificuldade em relação às definições, como pretendemos elencar uma série de
artistas e obras recentes e analisá-las contra um pano de fundo constituído pelas experiências
de músicos e artistas ao longo do século XX, e assim verificar de que maneiras os primeiros
se afastam dos mais antigos, é preciso aceitar ou sintetizar alguma definição, para em seguida
indicar um repertório para análise. Assim, buscaremos uma definição para o termo sound art
através dos usos que vem se fazendo dele mais recentemente, mesmo que não haja consenso
sobre qual deve ser esta definição. Se de um lado o termo é problemático e nos parece claro
que o risco das definições fechadas não justificaria o seu emprego, por outro lado não cabe
julgá-lo: é fato que o termo é correntemente utilizado e tem servido para definir um tipo de
produção mais ou menos recente. Vejamos como alguns críticos, curadores e artistas
procuram defini-lo a seguir.
O termo sound art, na acepção aceita atualmente pela maioria dos críticos, artistas e
curadores recentes, foi empregado pela primeira vez por Dan Lander, compositor e artista
sonoro canadense (LICHT: 2007)
, no início dos anos 1990, em contexto ligeiramente
diferente do uso atual, encompassando diversos gêneros de trabalhos que utilizam o som. É
preciso assinalar que o termo já vinha anteriormente sendo usado para apresentar diferentes
formas de música experimental, e não os trabalhos que se convencionou chamar sound art a
partir da virada do milênio. Desde esta época, grandes exposições passaram a empregar o
termo, mas muitas delas faziam apenas associações entre música (especialmente derivações
Elementos da arte sonora
4
do techno) e tecnologia, ou entre música eletrônica e a produção ao vivo de imagens por
meios tecnológicos, notadamente Sonic Process (MACBA, 2002) e Bitstreams (Whitney
Museum, 2001). Outras ainda simplesmente reapresentavam música experimental no contexto
do museu (LICHT: 2007).
Uma das definições mais contemporâneas informa que se trata de um determinado tipo
de produção artística que investiga sobre o som através do som, portanto o toma como objeto
de reflexão e suporte a um só tempo. É este o campo de problemas que propõe o artista e
crítico norte-americano Brandon Labelle. Sua definição nos parece relevante como objeto de
observação, porque em seus trabalhos arrola uma série de exposições e artistas recentes que
coincidem com o que outros curadores e críticos vêm convencionando chamar de sound art.
Além disso, é um dos poucos autores com vários livros publicados sobre o assunto, e é
freqüentemente citado em outros trabalhos. Nas palavras deste autor:
To answer the question “what is sound art” I would propose that sound art is art
about sound; it is art that both uses sound as its medium and addresses sound as its
subject of concern. In this sense, sound is both the subject and object. (LABELLE:
2003)
Labelle avança procurando estabelecer a diferença entre arte sonora e música pela
suposição de que a segunda, ainda que use o som como meio, não se propõe a tomar o próprio
som como objeto de investigação, idéia que nos parece necessário questionar. Ele prossegue:
While operating and overlapping with music, sound art distinguishes itself by the
simple fact that music is not necessarily about sound. It may draw upon acoustics,
expand aurality, and produce sonic experience; but it does not necessarily set up a
reflective relationship between itself and the subject of sound as an investigation.
(LABELLE, op. cit.)
Mas a maior parte da produção de Cage, Schaeffer e tantos outros artistas de diferentes
tipos de música experimental não são investigações sobre o som e a música, através dos
próprios? Se aceitarmos integralmente essa definição, a arte sonora seria necessariamente um
subconjunto da produção musical.
Outra visão mais ou menos corrente para o termo sound art também criando para si
um campo de problemas – opõe-se à definição de música como “som organizado no tempo”
1
,
propondo que a arte sonora corresponda à noção de “som organizado no espaço”. Um dos que
abraça esta definição é o artista norte-americano Stephen Vitiello:
I always come back to this definition, which works for me: Music can be defined
1
Na Wikipedia em língua inglesa (http://en.wikipedia.com), verbete Definition of music, consultado em março
de 2007. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Definition_of_music>
Elementos da arte sonora
5
by sound in time, while sound art may be defined by sound in space. (...) it has
connected to my own definition of what I do and how I think about "sound art"—
creating work that is open-ended, that may be experienced in a few minutes or
hours, exploring sound as a physical medium rather than a temporal one.
(VITIELLO apud COX: 2004)
Esta definição que Vitiello oferece baseia-se, segundo ele, nas idéias de Max Neuhaus,
compositor norte-americano que produz música
2
na forma de instalações em ambientes
públicos desde a década de 1960, explorando a especificidade do lugar da experiência dela.
Traditionally composers have located the elements of a composition in time. One
idea which I am interested in is locating them, instead, in space, and letting the
listener place them in his own time. I am not interested in making music
exclusively for musicians or musically initiated audiences. I am interested in
making music for people. (NEUHAUS: 1994)
Mas o próprio Neuhaus recusa vigorosamente a idéia de arte sonora como algo em
alguma medida desvinculado das experiências da música no século XX. Sua postura está
exemplificada na epígrafe a esta introdução, mas cabe estendê-la:
When faced with musical conservatism at the beginning of the last century, the
composer Edgard Varèse responded by proposing to broaden the definition of
music to include all organized sound. John Cage went further and included silence.
Now (...) our response surely cannot be to put our heads in the sand and call what is
essentially new music something else—"Sound Art."
I think we need to question whether or not "Sound Art" constitutes a new art form.
The first question, perhaps, is why we think we need a new name for these things
which we already have very good names for. Is it because their collection reveals a
previously unremarked commonality?
Let's examine the term. It is made up of two words. The first is sound. If we look at
the examples above, although most make or have sound of some sort, it is often not
the most important part of what they are—almost every activity in the world has an
aural component. The second word is art. The implication here is that they are not
arts in the sense of crafts, but fine art
3
. (...) Much of what has been called "Sound
Art" has not much do to with either sound or art. (NEUHAUS: s/d)
Portanto Neuhaus, ao apresentar uma exposição que é considerada uma das mais
importantes para a sound art, vai apontar para o fato de que quase toda atividade humana
produz som, e que portanto de seu ponto de vista o termo não faz sentido algum.
No caso da definição feita pela pesquisadora brasileira Lilian Campesato em sua
dissertação Arte sonora – uma metamorfose das musas, há a introdução de um dado
2
O próprio Neuhaus trata seu trabalho como música, ainda que de um ponto de vista informado pelas artes
plásticas muitas sejam instalações site-specific.
3
Fine art, em inglês, corresponde às belas artes ou, no contexto, ao campo expandido das artes plásticas, por
oposição a arte manual ou artesanato
Elementos da arte sonora
6
tecnológico como elemento marcante:
Dentre os principais elementos que contribuem para a realização de um
mapeamento da arte sonora podemos destacar: o som e sua relação com o espaço, a
importância das relações contextuais para construir os significados da obra, o forte
uso de elementos referenciais e uma peculiar utilização do tempo na estruturação
dos elementos sonoros.
A princípio, podemos dizer que essas produções caracterizam-se por uma forte
mediação das tecnologias eletrônicas e digitais, pelas mistura de meios de
expressão, pela utilização do espaço como elemento fundamental no discurso, pela
busca de novas sonoridades e expressividade plástica (...) Assim, o som é o
elemento que fundamenta os outros e constitui o ponto central dos trabalhos.
(CAMPESATO: 2007, p. 4)
Outra definição é a da artista Annea Lockwood, que produz instalações site-specific
desde a década de 1960, e cujo trabalho vem sendo enquadrado sempre no conjunto
denominado sound art pelos críticos e curadores contemporâneos. Sua definição transfere o
problema para outra esfera: de forma inocente (ou, ao contrário, muito pragmática), ela deixa
entrever o papel dos espaços institucionais da arte ao explicar o uso que faz do termo:
Sound art. I find it a useful term, but why? I apply it to pieces I make using
electroacoustic resources, and which I intend to be presented in galleries, museums,
other places in which sound is, increasingly, conceived as a medium per se, like
video, lasers, but not as performance. (…) I’m working on a large audio installation
(...) which I think of as Sound Art. I also finished a commission (…) which it
wouldn’t cross my mind to call “sound art”. Theres some distinction to do with the
conceptual, also. I think maybe what’s termed Sound Art” doesn’t intend
connection to the linguistic. Eventually, all style of performance music become
languages, even Cages antilinguistic works, as people become more familiar with
his intentions and sound worlds. Nevertheless, perhaps the term was pragmatically
conjured up for/by museum curators to account for sound’s acceptance into their
world. (Annea Lockwood em entrevista a ALDRICH: s/d)
É preciso ressaltar os elementos que ela aponta como diferenças entre arte sonora e
música: em primeiro, o lugar onde se pretende apresentar os trabalhos, portanto o lugar de
circulação e em alguma medida a forma de incentivo econômico àquela produção; em
segundo, a oposição às noções de performance e de linguagem; e como hipótese
independente, indica o termo como sendo apenas um recurso pragmático, que permite a
curadores rotular – e portanto indiretamente aceitar – trabalhos de som em seus enclaves.
O crítico Alan Licht, autor de um livro recente intitulado Sound Art: Beyond Music,
Between Categories, reproduz as definições de Annea Lockwood e de Max Neuhaus em sua
introdução, e dá alguma medida de definição de sua própria autoria:
Sound art belongs in an exhibition situation rather than a performance situation
(…). Music, especially pop music, unlike sound art, is like an amusement park
Elementos da arte sonora
7
ride: there’s a beginning, middle and an end to it; it’s a short, consolidated
experience of thrills and chills that can be readily reexperienced by simply going
on the ride again (…). Sound art, besides its intended connotation of (…) a trip to a
gallery or a museum, can be a trip to the zoo, the dog pound, the park (…). Sound
art rarely attempts to create a portrait or capture the soul of a human being, or
express something about the interaction of human beings – its main concern is
sound as a phenomenon of nature and/or technology (…). Even sound poetry,
which is sometimes classified as sound art, is bent on exploding language and
exploring varieties of vocal sound that can be produced by the human body rather
than using the voice to communicate to the listener in the usual fashion. (LICHT:
2008, p. 14)
É importante notar que Licht exclui a performance (no sentido do concerto ou da
situação de performance mais comum da música, e não do movimento da performance art, ao
que parece) de sua definição, e coloca o museu e a galeria como lugar de sua experiência por
excelência, mesmo que incluindo os site-specific e obras públicas (portanto contextos já
incorporados às artes plásticas), ao mesmo tempo parece ecoar a definição de Labelle ao
apontar a experiência fenomenológica do som como seu principal objeto, e a de Lockwood
afastando a idéia de sound art da idéia de linguagem.
Douglas Kahn, autor de uma vasta pesquisa sobre o uso do som nas artes
4
, coloca os
diferentes usos do termo sound art em perspectiva histórica, questionando a sua utilidade e
investigando as condições de sua emergência:
I am not particularly fond of the term sound art. I prefer the more generic sound in
the arts. (…) Sound art is a smaller topic, if what is meant is that moment that
artists (…) began calling what they’re doing sound art. In my experience, artists
started to use sound art in this way during the 1980s, although there were plenty of
artists doing similar things with sound earlier and not necessarily calling what they
did sound art. The topic becomes smaller still if what is meant is the term that
refers to what began a few years ago, and it is this meaning that has become well
known. (…) there are good reasons to question the usefulness of the term sound art
(…) Still, most artists, curators and writers seem to think the term sound art is
okay. Perhaps cutting down complicating factors is not a serious problem, and
there is a little transgressive romance to be had by sounding off in the lair of vision.
More likely is that people are swept up in circumstance, using the term as a matter
of convenience no matter how annoying and imperfect. It is clear also that a few
folks see it an opportunity to exploit a momentary and monetary cache in whatever
system of exchange they may trade. (…) My own suspicion comes from the fact
that the term was reinvigorated only when certain metropolitan art centers – their
markets, institutions and discourses, and only then a certain subset of those –
"discovered" this thing called sound art. One New York sound artist said that
sound art started around the year 2000, while in London, it is supposed to have
jumped off with the Hayward Gallery exhibition Sonic Boom. Such representations
seem odd to many artists from Continental Europe, the Nordic nations, Canada,
Australia, New Zealand, Japan, Mexico, and even to Americans outside the art-
4
A bibliografia completa do autor está disponível em: <http://www.douglaskahn.com/biblio.htm>
Elementos da arte sonora
8
market purview of a discrete commercial sector of New York City. Indeed, these
representations are odd everywhere there had been sound art exhibitions and events
prior to 2000. (KAHN: 2006)
Kahn identifica, portanto, três esferas mais ou menos distintas e ligadas ao termo sound
art: aquela do uso mais genérico do som nas artes, e que explica sua preferência por sound in
the arts; outra que é mais ampla e que corresponde ao início do uso do termo por parte dos
artistas nos anos 1980; e finalmente uma terceira que está ligada à institucionalização do
termo em torno dos anos 2000 nos mercados centrais de arte – Londres e Nova York. Mais
adiante, no mesmo texto, acusa inclusive a noção mais restritiva de sound art (esta que surge
nos anos 2000) de carregar em si um contra-senso em relação ao uso mais disseminado do
termo art nos anos 1980. O termo art apontava, segundo ele, para uma abertura em relação a
todo tipo de manifestação artística, dentro da uma perspectiva de “mobilidade pós-moderna”.
Isso se oporia, na visão dele, ao movimento recente do estabelecimento de uma definição
mais formal e estreita daquilo que deveria ser a sound art.
Quanto aos artistas, não há muita confluência em torno de uma definição, e alguns deles
recusam o rótulo de sound artists apesar de serem incluídos nas exposições que o carregam.
Em relação aos críticos e estudiosos, as diferentes visões podem ser sumarizadas mais ou
menos da forma que Douglas Kahn faz: em primeiro lugar, há o uso do som nas artes, em seu
sentido mais inclusivo; em seguida, ele indica que nas últimas três ou quatro décadas há um
emprego que abarca manifestações da fonografia à escultura sonora e a radio art, portanto
ainda bastante inclusiva; e dos anos 2000 para cá, o termo foi apropriado pelos mercados
centrais de arte e se refere a um tipo de arte muito em acordo com as formas mais aceitas
pelos curadores, museus e galerias nos últimos trinta anos (principalmente instalações, ou
alguns casos de arte pública/intervenções) ou às vezes utilizando os suportes tecnológicos das
media arts. Se alguns autores citados acima buscam manter a perspectiva sobre esta
complexidade e apontar o aspecto positivo da abertura acerca do que deva ser a arte sonora
(Kahn e Cox), outros (Labelle, Helga de la Motte-Haber e Campesato, por exemplo, e em
menor medida Alan Licht) preferem indicar o último plano – mais restritivo e aproximado do
sistema e das formas das artes plásticas e da artemídia – como associado diretamente ao
termo, e indicar as outras experiências anteriores dentro das histórias da música e das artes
plásticas como sendo apenas antecedentes de uma categoria específica de arte sonora que
começaria a ganhar forma apenas nos 1960, com os trabalhos de Max Neuhaus e com a
installation art.
Elementos da arte sonora
9
É portanto tendo em vista esta complexidade e estas diferentes acepções sobre o termo –
mas principalmente tendo em vista o seu uso mais recente, corrente e restritivo – que devemos
lê-lo ao longo deste trabalho.
1.3. Estrutura da dissertação
Na introdução ao tema, buscamos descrever o cenário atual e mapear as possíveis
definições para o termo arte sonora, assim como as dificuldades encontradas no
estabelecimento da delimitação deste objeto.
Em seguida, na segunda parte do trabalho, fizemos uma revisão de momento específicos
da história da música do século XX, buscando ressaltar aqueles que possam ter contribuído
mais diretamente para o desenvolvimento da arte sonora.
Na terceira parte fizemos um apanhado rápido das contribuições mais relevantes dos
múltiplos gêneros e movimentos surgidos nas artes plásticas do pós-guerra, buscando indicar
de que formas cada um deles se liga à produção atual de arte sonora.
Na quarta parte, buscamos identificar quais aspectos específicos a audição introduz,
principalmente quando comparada à experiência mais isolada da visualidade. Além disso,
procuramos identificar, dentro de uma perspectiva mais abrangente do uso do termo sound
art, quais os principais problemas e estratégias com que seus artistas lidam; sempre que
possível, buscamos ligar estas estratégias a experiências desenvolvidas ainda no século XX,
historicizadas ora sob a disciplina da música, ora sob a das artes plásticas.
Por fim, buscamos uma conclusão que aponte possíveis razões para a emergência desta
produção hoje, explicando que mudanças se operaram no contexto social, e o porquê do
interesse crescente por tal tipo de manifestação no sistema das artes (e, de forma mais ampla,
na sociedade em geral). Buscaremos esta explicação de um lado no cenário atual da música
popular e da música eletroacústica; e de outro, nos incentivos que vêm fazendo com que
artistas experimentais que trabalham com o som como suporte migrem dos espaços
consagrados à música para lugares anteriormente ligados à circulação das artes visuais apenas.
Elementos da arte sonora
10
2. Música e artes visuais: diálogos e apropriações
2.1. As pontes entre dois campos: antecedentes ou pioneiros?
Se a arte sonora é um campo de difícil delimitação, isso se dá em grande parte pelo fato
de sua origem (e seu permanente caráter) interdisciplinar. Com efeito, na história da música e
no desenvolvimento das artes visuais ao longo do século XX podemos encontrar inúmeros
projetos e obras que antecipam, dentro de seus respectivos campos, questões e técnicas
abordadas atualmente por artistas que hoje se autointitulam sound artists. Mais que isso, no
espaço que engloba os campos mais ou menos definidos das artes plásticas e da música, o
século passado foi um período de constantes e mútuas interdeterminações, com avanços em
um campo repercutindo em outro: ora pesquisas em música viriam a influenciar artistas
plásticos, ora o oposto. De maneira geral, os resultados destas experiências acabaram por ser
historicizados dentro de uma das duas categorias, mas nos interessam aqui as pontes
construídas entre as disciplinas. Interessam também, e de forma especial, trabalhos do período
que se estende do início do século aos anos 1970 que hoje aceitariam facilmente o rótulo de
arte sonora, avant la lettre, dadas as indagações e as estratégias por eles adotadas.
Cabe observar, no que liga e separa as artes visuais da música, que antes da
secularização das artes plásticas e da música a experiência dessas artes no ocidente ocorria de
modo indissociável: o lugar privilegiado de fruição da expressão visual era a igreja, sua
arquitetura, painéis, esculturas e afrescos, ao passo que a forma principal de experiência da
música era a da música sacra – um único dispositivo era o espaço para os dois tipos de
manifestação. A posterior separação, logicamente, é cultural. Com o estabelecimento de
ambas como disciplinas laicas independentes, institucionalizadas em academias e mercados
distintos (e experimentadas ora no museu, ora na sala de concerto) é que vem a distância que
entre elas se criou, e que hoje pode parecer natural.
2.2. Música e artes plásticas: expansão
Até onde vai a música, e até onde vão as artes plásticas? A partir das vanguardas
históricas, diversos movimentos se sucederiam, cada vez mais rapidamente, estabelecendo
novos códigos e empurrando mais adiante os limites de cada tipo de manifestação: o que não
era música antes, passa a ser música algum tempo depois, através da assimilação gradual, por
parte do establishment musical, de novas práticas e elementos propostos pelos artistas. O
Elementos da arte sonora
11
mesmo se dá entre os artistas plásticos, sua linguagem e seu sistema de mercado, escolas e
instituições, também com evoluções rápidas a partir do início do século XX.
Num movimento que se acentua ao longo do século passado, é em grande medida a
própria expansão do vocabulário que passa a ser vista como valor no trabalho do artista – arte
é pensamento, uma forma de pensamento através do sensível. Na música como nas artes
plásticas, como aliás em qualquer linguagem, o vocabulário ou o material a ser trabalhado faz,
sempre, parte de um conjunto ou código metaestável: um determinado estado dele é aceito (ou
é o jogo jogado) por grupos ou sistemas em um determinado momento, em determinada
cultura, pelas forças culturais que ali se enfrentam, mas está em constante mutação. Mas o
pós-modernismo, mesmo em seus estágios mais embrionários, vai incorporar a noção (ora
mais, ora menos articulada) de que fazer arte é fazer vibrar o próprio código – e se
enxergarmos por uma perspectiva histórica, a acumulação das experiências apontando rumo
ao novo ao longo do tempo vai naturalmente determinar a própria expansão do vocabulário de
cada uma destas artes.
As artes plásticas e a música buscaram esta expansão de diferentes formas. Dentre as
muitíssimas formas exploradas por artistas plásticos ao longo do século XX, houve diversas
experiências que empregavam o som ou que de diferentes maneiras iriam abordar questões
relativas à música; conversamente, nas experiências dos compositores houve vezes em que a
pesquisa os levou a experimentar com formas visuais, escultóricas, instalativas, conceituais
etc. No entanto, tais experiências não ganharam em sua época projeção que as configurasse
como escolas ou movimentos autônomos, e estas viriam a constituir, enquanto registros
históricos, apenas algum lugar nas franjas do corpo da música e das artes plásticas, ou apenas
experiências mais ou menos isoladas de músicos e artistas.
Voltando à expansão do material sonoro, mas ainda dentro do campo da música: o
período desta transição que gradualmente a afasta da experiência religiosa (grosso modo, do
século XV ao fim do XIX) coincide com o da exploração através do sistema tonal, partindo do
modal rumo à complexidade, até a crise e a exaustão deste sistema como vocabulário, em
torno do início do século passado:
Assistimos hoje, ao que tudo indica, ao fim do grande arco evolutivo da música
ocidental, que vem do cantochão à polifonia, passando através do tonalismo e indo
se dispersar no atonalismo, no serialismo e na música eletrônica. Esse arco
evolutivo, que compreende o grande ciclo de uma música voltada para o parâmetro
das alturas melódicas (em detrimento do pulso, dominante nas músicas modais), é
um traço singularizador da música ocidental. (WISNIK: 1989)
Elementos da arte sonora
12
Como veremos mais adiante, mesmo este novo léxico do atonalismo (que tem sua
epítome no serialismo de Schönberg) viria a ser desestabilizado, nas rápidas caldeiras
modernistas, por novas demandas de expansão, que iriam por fim se projetar para além do
som apenas. Ainda na primeira metade do XX, estas se configuram principalmente através da
incorporação do ruído (como nos quase clusters de Stravinski, com o próprio ruído em Satie,
com o futurismo); e nos anos 1950 através da incorporação da indeterminação e do silêncio
(com Cage), da sistematização do material sonoro em um novo código, seja pela manipulação
do som gravado (na música concreta) ou pela gênese pura, artificial, dele (como nos
eletrônicos alemães), que detalharemos mais adiante.
Tentamos organizar este percurso em duas grandes divisões, abordando a música e
depois as artes plásticas, e dentro destas buscando organizar movimentos, escolas e
contribuições individuais de forma mais ou menos cronológica. Mas é de suma importância
ressaltar que tais movimentos não obedecem a estas reduções, confundindo-se muitas vezes
entre eles. Da mesma forma, há movimentos e artistas cuja contribuição não se poderia anotar
sob uma disciplina apenas, notadamente as de John Cage e do grupo Fluxus, salvo tendo em
vista essa limitação da estruturação linear do texto.
2.3. Os futuristas e a incorporação do ruído do mundo
Liderados por Filippo Marinetti, os futuristas iriam lançar em 1909 a pedra fundamental
da estetização de uma recém-chegada era máquina e da velocidade, com o seu Manifesto
Futurista, e Balilla Pratella em 1911 o estenderia com seu Manifesto dei musicisti futuristi e o
seu Manifesto tecnico della musica futurista. Concertos de música futurista não eram
incomuns, mas baseavam-se originalmente no mesmo tipo de dispositivo da música de
concerto vigente: amparada em músicos de fraque, regente, violinos, celos e tímpanos, as
peças musicais futuristas disputavam espaço no calendário das salas com óperas de Puccini.
No campo da música, pelo menos até aqui, a estética futurista não avançaria além da retórica,
e pouca importância teria em uma forma musical específica
5
.
5
Robert Morgan aponta o fato de os futuristas serem considerados mais produtores de manifestos do que
artistas propriamente: “Here the frequent objection of Futurism’s critics – that the movement true interest lies
in its manifestos, and is thus more theoretical than artistic in nature (unless one sees the whole movement, as
have some, as “performance art”) - seems justified. (...) Pratella's manifestos nonetheless had a critical role.
They were read by the Futurist painter Luigi Russolo, who, taking them seriously succeeded in imagining a
truly Futurist music. Russolo was an artist of some significance – he was one of the five signatories of the
Elementos da arte sonora
13
Figura 1: Luigi Russolo, seus Intonarumori e um assistente
Somente em 1913, o então pintor Luigi Russolo faria a ligação do projeto futurista com
uma proposta mais efetivamente musical, através do manifesto A arte do ruído, onde propõe
os ruídos das máquinas como elemento construtivo fundamental de uma música do futuro,
organiza-os em uma tipologia (que antecipa a empreendida por Pierre Schaeffer, de muito
maior alcance, mais tarde), e conclama os jovens compositores à produção de sons nunca
antes ouvidos:
We therefore invite young musicians of talent to conduct a sustained observation of
all noises, in order to understand the various rhythms of which they are composed,
their principal and secondary tones. By comparing the various tones of noises with
those of sounds, they will be convinced of the extent to which the former exceed
the latter. This will afford not only an understanding, but also a taste and passion
for noises. After being conquered by Futurist eyes our multiplied sensibilities will
at last hear with Futurist ears. In this way the motors and machines of our industrial
cities will one day be consciously attuned, so that every factory will be transformed
into an intoxicating orchestra of noises. (RUSSOLO: 1913)
two Futurist painting manifestos and the Paris exhibition essay (...). Indeed, the figure of Russolo as theorist-
musician is fully comprehensible only in relation to his work as a painter.” (MORGAN: 1994)
Elementos da arte sonora
14
A partir daí, Russolo abandonaria o pincel e a paleta e passaria a desenvolver ele mesmo
suas intonarumori ou máquinas produtoras de ruído, e escreveria diversas peças para elas.
Cabe observar, porém, que seus instrumentos eram construídos com madeira, peles e
manivelas, e pelo que consta no máximo um ou outro talvez contivesse um motor elétrico. De
toda forma, Russolo foi visionário ao antecipar, já na época, um presente dominado pela
técnica, e buscar no som das máquinas da época uma forma de superar o passado, encarnado
nas convenções musicais vigentes, em favor de um passo rumo àquilo que via como futuro.
A despeito de à época essa música ter tido pouquíssima aceitação e de ter causado pouca
influência mais direta, no presente contexto nos interessa o fato de ter sido um antecessor de
Cage e Schaeffer, advogando a incorporação do ruído do mundo à sua volta (e, por extensão,
de todo tipo de som) à gama sonora disponível aos compositores, mas também o fato de ser
originariamente um pintor que buscou tornar tangíveis seus ideais estéticos lançando mão do
som como meio, contra o senso acerca do que deveria ser, àquele tempo, a música. Robert P.
Morgan vê no trabalho de Russolo um ponto de virada fundamental, que perdura na música
ocidental:
Though Russolo remains a largely forgotten figure in music history, his sudden
appearance on the musical scene in 1913 can be viewed as marking a critical
historical juncture, supplying the final link in a chain initiated in the early
Romantic aesthetics of autonomous music. That he represented not merely a point
of termination, but one of origin, has been made clear by subsequent Western
music. Russolo's vision of a new kind of music, offering materiality as a
replacement for its lost spirituality, has proved remarkably fertile, and has shown
little sign of exhaustion. (MORGAN: 1994)
Mais recentemente, alguns críticos vêm apontando as idéias de Russolo como a própria
origem da música techno e suas variantes (não só sob a perspectiva da incorporação do ruído
como som musical, mas também pela estetização da máquina e da velocidade) (ROTONDI:
2002).
Além disso, é preciso ver em Russolo o espírito de questionamento radical do próprio
material sonoro incorporado ao universo musical, antecipando em décadas, mesmo que sem a
mesma autoconsciência, o espírito filosófico e de reflexão mais ampla sobre a música de
compositores como Cage. Também é importante notar, mesmo que haja antecedentes menos
relevantes na musical ocidental, que é a mais relevante tentativa de reinserção da referência a
elementos externos, de forma sistemática, na linguagem musical até então.
2.4. A música concreta e o objeto sonoro
Elementos da arte sonora
15
Ainda que a musique concrète tenha sido antecedida por outras experiências musicais
empregando de meios de gravação
6
, Pierre Schaeffer foi o responsável pela exploração e
sistematização do vocabulário composicional aberto pelo advento destas tecnologias.
Lançando mão primeiro de um toca-discos e mais tarde empregando fitas magnéticas e outros
aparatos técnicos, muitos deles construídos ou adaptados por ele mesmo e seus colaboradores,
ele sistematizou como música, tanto em suas obras gravadas como em produção teórica, o que
até então era ruído
7
.
Apesar de ter tido instrução em conservatório como celista, Schaeffer formou-se
engenheiro, e se empregou no Office de Radiodiffusion Télévision Française em 1936. Com o
aparato técnico a que tinha acesso, começou a experimentar com o som gravado, e em 1948
produziria os Études aux bruits, com a ajuda do engenheiro de som Jacques Poullin. Nestes
trabalhos, o ruído capturado em discos é o elemento sonoro fundamental. Como exemplo, no
Étude aux chemins de fer, o material sonoro são ruídos de trens, editados engenhosamente de
forma a criar um novo sentido musical. Thom Holmes aponta quatro princípios que
determinam a relevância destes Études: o ato da composição foi realizado por meios
tecnológicos; muito do material sonoro era de origem natural, não musical; o trabalho poderia
ser executado de forma idêntica tantas vezes quanto necessário; e a apresentação não requeria
instrumentistas (HOLMES: 2002).
Da parte do processo, além da inovação em relação ao aspecto tecnológico, cabe
ressaltar que a composição partia do próprio material sonoro, em lugar de um esquema mental
concebido previamente pelo autor, como no caso de uma partitura para orquestra: o trabalho
de Schaeffer era necessariamente experimental.
A produção teórica de Schaeffer foi tão ou mais prolífica que sua produção musical. Seu
projeto estético é teorizado inicialmente em Introduction à la musique concrète (1950), e
depois no À la recherche d'une musique concrète (1952). A partir de 1951, seus principais
trabalhos passam a ser produzidos em parceria com o compositor Pierre Henry.
6
Hindemith, Varèse e Milhaud fizeram experiências mais ou menos limitadas com toca-discos; Cage também
experimentou com toca-discos, em Imaginary Landscape No. 1, em 1939. Antes ainda, o uso do gramofone
para a produção de som foi defendido por Laszlo Moholy-Nagy ainda em 1923 e diversas experiências foram
conduzidas por Norman McLaren e Oskar Fischinger, desenhando diretamente sobre a trilha ótica em filmes
sonoros; ao mesmo tempo em que Dziga Vertov fazia experiências que se poderiam dizer antes sônicas que
visuais com seus filmes experimentais (KAHN: 1990). Anteror ainda, como pura idéia: Rainer Maria Rilke,
em Som Primal (1919), imagina o desenho do fio da rachadura do topo de um crânio sendo percorrido pela
agulha de um fonógrafo, e assim produzindo novos sons (KITTLER, 1999).
7
Mesmo que compositores como Satie e os futuristas já tivessem produzido diferentes experimentos com o
ruído como parte de um vocabulário musical.
Elementos da arte sonora
16
Se à primeira vista o termo “música concreta” (e a própria sonoridade das composições
iniciais concorre para isso) parece remeter à gravação de sons “reais” ou produzidos por
objetos, ou simplesmente de sons diferentes daqueles dos instrumentos musicais
convencionais, a idéia de Schaeffer era diversa:
O termo concreto surgiu como uma referência à pintura figurativa, que se vale do
mundo exterior, do visível. Fazendo um paralelo com o desenvolvimento da
pintura, cujas transformações seguiram o percurso do figurativo para o não
figurativo – este último apoiado em valores pictóricos forçosamente abstratos. P.
Schaeffer entende que o caminho da música foi contrário ao tomado pela pintura.
“Inversamente, a música se desenvolveu primeiro sem o mundo exterior, só remetia
a ‘valores’ musicais abstratos, se faz ‘concreta’, ‘figurativa’ poderíamos dizer,
quando utiliza ‘objetos sonoros’ extraídos diretamente do ‘mundo exterior dos
sons naturais e dos ruídos” (...). A proposta da música concreta era uma experiência
do som, sua apreensão concreta a partir do registro, em oposição à concepção
abstrata de tendência serial, cujo suporte era a partitura. O que se propunha era o
contato direto com o objeto sonoro, no qual o aprendizado da própria sonoridade se
impunha, anterior a qualquer estruturação musical. Existia uma espécie de escolha
pautada em duas situações: 1) usar o material concreto para criar obras; 2)
pesquisar o sonoro para descobrir o musical. A música concreta propunha um
contato direto com o sonoro, uma experiência imediata, ao invés da mediação pela
representação da notação, um trabalho direto com o som. (OBICI: 2006)
Ou como sintetiza Palombini:
Concebida mentalmente, notada em símbolos e executada por instrumentistas, a
música tradicional movia-se da abstração musical à concreção sonora. Descobrindo
corpos sonoros e maneiras de colocá-los em vibração, gravando os sons obtidos,
manipulando estas gravações, escutando-as e experimentando estruturações, a
música concreta se moveria do concreto sonoro ao abstrato musical.
(PALOMBINI: 2002)
O que releva, de toda forma, é o fato de Schaeffer haver incorporado todo tipo de som à
paleta dos compositores. O que havia de referencialidade no uso do ruído feito por Russolo
8
vai, ao contrário, se tornar abstrato na música concreta (ainda que nos primeiros Études seja
fácil identificar a origem do material sonoro, a referência vai se tornando imperceptível – e
indesejada – no desenvolvimento da obra de Schaeffer). Com efeito, com o som registrado e
isolado, prontamente manipulável pela técnica, os avanços nos experimentos de Schaeffer e
Henry levariam a uma quase completa plasticidade do material original, desvinculando-os
completamente de seu contexto e transformando-os, a despeito da limitação tecnológica da
8
“It is necessary”, he [Russolo] wrote, “that these noise timbres become abstract materials for works of art to
be formed from them. As it comes to us from life... noise immediately reminds us of life itself making us
think of the things that produce noises that we are hearing.” (CHANAN, p. 244). Portanto, se ambos usavam
o ruído como material, a intenção de Schaeffer, quanto à referencialidade, era diametralmente oposta à de
Russolo.
Elementos da arte sonora
17
época. Tais sons, no conceito de Schaeffer, configuram objetos sonoros. Ele os define no
Traité des objets musicaux (1966):
Entendemos por objeto sonoro o próprio som, considerado em sua natureza sonora
e não como objeto material (instrumento ou qualquer dispositivo) do qual provém.
(SCHAEFFER apud OBICI: 2006)
Afora a incorporação do ruído e sua sistematização como linguagem musical, a outra
contribuição fundamental de Schaeffer refere-se à própria escuta:
Ao mesmo tempo em que se propunha como música, também se pensava em uma
pesquisa a partir da escuta; ela veio a se configurar em 1966, com o livro Traité des
Objets Musicaux: essai interdisciplines (Tratado dos Objetos Musicais: ensaio
interdisciplinar). O solfejo do objeto sonoro, descrito no Traité, “propõe levar, da
prática de corpos produtores de som, a uma musicalidade universal através de uma
técnica de escuta”. P. Schaeffer propõe “não separar jamais o escutar do fazer”.
(OBICI: 2006)
Ligados a idéia do objeto sonoro estão as noções de música acusmática e de escuta reduzida.
O objeto sonoro se percebe mais claramente quando não temos a referência visual da fonte
emissora de som. Acusmático, um termo usado por Pitágoras e aproveitado por Schaeffer
9
, é
aquele som que ouvimos mas do qual não sabemos a origem, como no caso da experiência do
som, retrabalhado tecnicamente e emitido por alto-falantes, de Schaeffer. Essa situação
desarticula o som de sua referencialidade visual ou espacial, e por conseguinte de uma noção
causal e do condicionamento cultural, conferindo-lhe autonomia e permitindo-lhe oferecer
todo seu potencial musical. Segundo Rodolfo Caesar:
Baseada na 'redução fenomenológica' de Husserl (...) a écoute réduite consiste em
exercitar a escuta dos 'objets sonores' desligando qualquer referência que não seja
exclusivamente pertinente às características internas do objeto: seus critérios de
percepção. (CAESAR: 2000)
Schaeffer seria, por assim dizer, o oposto de Russolo, na medida em que este lançava
mão dos ruídos como forma de fazer referência ao cenário urbano e industrial, portanto como
forma de trazer para dentro do vocabulário musical um contexto e uma referência externa.
2.5. Stockhausen e a escola alemã de música eletrônica
9
“Pierre Schaeffer recupera da escola de Pitágoras a palavra acusmático (...). O termo, apropriado pelo autor a
partir do dicionário Larousse, é usado para denominar a situação na qual se percebe o objeto sonoro
independentemente da fonte que o emite (...). Antes de ser aceito, o postulante [à escola] tinha sua família,
educação e caráter examinados por três anos. Caso fosse considerado digno de entrar na confraria, o noviço
seria recebido na qualidade de discípulo exotérico. Durante cinco anos, o postulante deveria escutar as lições
em silêncio, sem nunca tomar a palavra, nem ver o Mestre, que falava dissimulado por uma cortina. Só
depois desses anos, envolto por uma série de provas físicas e morais, é que poderia se tornar um discípulo
(...) e pertencer plenamente à fraternidade.” (Obici, 2006)
Elementos da arte sonora
18
Em um artigo de 1906, Esboço de uma nova estética musical
10
, o compositor italiano
Ferruccio Busoni, um dos professores de Edgard Varèse, conclama os músicos à rebelião
contra as prisões impostas pela forma da música ocidental, ao modo das vanguardas
históricas. Apesar de não ser listado como um dos participantes do grupo que lançou o
Manifesto Futurista, a contribuição de Busoni é considerada fundamental como antecedente
do movimento futurista11, e ele acabou envolvido em polêmicas como se fizesse parte do
grupo. No artigo, depois de apontar como medíocre o estágio atual e a história da produção de
música no ocidente, Busoni vislumbra uma solução para a escravidão imposta pela limitada
instrumentação orquestral e pela escala temperada em uma matéria da revista literária
americana McClure’s que por acaso havia chegado às suas mãos. No texto se propalavam as
infinitas possibilidades do Telharmonium de Thaddeus Cahill, em especial o controle
matemático do som naquela máquina.
The question is important and imperious, how and on what these tones are to be
produced. Fortunately, while busied with this essay, I received from America direct
and authentic intelligence which solves the problem in a simple manner. I refer to
an invention by Dr. Thaddeus Cahill. He has constructed a comprehensive
apparatus which makes it possible to transform an electric current into fixed and
mathematically exact number of variations. (BUSONI apud SINKER: 1995)
O aparelho pré-válvulas de Cahill, que pesava cerca de 200 toneladas, aqui aparece
como um instrumento quase mágico, e acaba por conduzir o autor do ensaio a uma espécie de
epifania técnico-musical – sem que ele tivesse tido a oportunidade de conhecer o instrumento
de fato:
Who has not dreamt that he could not float on air? And firmly believed his dream
to be reality? Let us take thought, how music may be restored to its primitive,
natural essence; let us free it from architectonic, acoustic and aesthetic dogmas; let
it be pure invention and sentiment, in harmonies, in forms, in tone-colours (for
invention and sentiment are not the prerogative of melody alone); let it follow the
line of the rainbow and vie with the clouds in breaking sunbeams; let Music be
naught else than Nature mirrored by and reflected from the human breast; for it is
sounding air and floats above and beyond the air; within Man himself as
universally and absolutely as in Creation entire... (BUSONI apud SINKER: 1995)
O desejo de um controle matemático e preciso do som, portanto, não era coisa nova
quando o físico alemão Werner Meyer-Eppler, em 1949, publicou ensaios onde discorria sobe
as possibilidades musicais dos aparelhos eletrônicos. Em contato com as idéias de Meyer-
10
Entwurf einer neuen Asthetik der Tonkunst, no original.
11
Para alguns pesquisadores este mesmo Esboço de um nova estética musical a que nos referimos é ele mesmo
o verdadeiro marco inicial do futurismo em música.
Elementos da arte sonora
19
Eppler, o compositor Herbert Eimert visava empregar a nascente tecnologia de síntese na
expansão da música serial de autores como Webern
(HOLMES: 2002). A oportunidade inicial
surgiu com um programa organizado para a WDR (Rádio Alemã Ocidental) de Colônia, onde
em parceria demonstraram as possibilidades da Elektronische Musik. Em seguida, Eimert
seria convidado a dirigir, dentro da WDR, um estúdio voltado para a pesquisa em música
eletrônica.
A música produzida ali, mesmo que contemporânea da musique concrète e igualmente
ligada à pesquisa tecnológica, fundou-se sobre conceitos bastante diferentes. Havia uma
tensão entre os dois estúdios, com desprezo mútuo:
After the war, in the ‘45 to ‘48 period, we had driven back the German invasion but
we hadn't driven back the invasion of Austrian music, 12-tone music. We had
liberated ourselves politically, but music was still under an occupying foreign
power, the Music of the Vienna school. (SCHAEFFER apud HOLMES: 2002)
A música concreta partia de um material sonoro que, uma vez capturado, seria depois
moldado, através de um processo de tentativa e erro, sem descartar o acidental, em sua forma
final. A música do WDR, ao contrário, seguia um processo composicional tradicional, sendo
primeiro concebida pelo compositor, então escrita, e finalmente materializada em som
(BRINDLE apud LABELLE: 2006, p. 28). Ao mesmo tempo, em relação ao ferramental, em
lugar dos sons “naturais” capturados para posterior processamento, o estúdio alemão usava
osciladores para criar sons “puros”, e diferentes tipos de filtros e técnicas de síntese para
trabalhá-los antes de registrá-los em fita magnética.
Inicialmente, as pesquisas no estúdio da WDR se voltavam apenas para a exploração do
serialismo, aplicando séries a parâmetros até então inacessíveis aos compositores, mas pouco
tempo depois outras técnicas de composição foram tomando seu lugar nos estúdios de
Colônia. Usando apenas síntese e partindo de ondas senóides puras, o Studie I (1953) de
Karlheinz Stockhausen, era um exemplo das possibilidades eletrônicas aplicadas ao
serialismo.
Com o tempo, e percebendo a riqueza do material sonoro ao seu alcance, Stockhausen
passou a experimentar além da música serial em vários sentidos, sempre buscando um
controle preciso sobre todos os aspectos do som. Entre seus muitos méritos está o de ter
quebrado dogmas vigentes, com o Gesang der Jünglinge (1955). Na obra, Stockhausen (que
fôra um dia um estudante visitante no GRM de Schaeffer) usou não apenas a síntese a partir
de sons puros (como de praxe no WDR) ou apenas material gravado e reprocessado (como no
Elementos da arte sonora
20
GRM): além do som sintetizado o compositor empregou também a voz gravada de um cantor
infantil, e a processou de diferentes formas. Tempos depois o próprio Schaeffer reconheceria,
no Traité des objets musicaux, uma certa similaridade de resultados, para além dos métodos
inicialmente empregados:
Música concreta e música eletrônica nasceram quase ao mesmo tempo, 1945 e
1950, respectivamente, (...). Por mais de doze anos estes métodos se opuseram
entre si antes de revelar certos aspectos complementares (SCHAEFFER apud
OBICI: 2006, p. 2)
No mesmo Gesang der Jünglinge
12
Stockhausen faria experiências com outro recurso
largamente explorado pela arte sonora contemporânea: a exploração da espacialidade do som,
através da disposição das fontes de emissão. A cada uma das cinco faixas usadas na
composição, correspondia um alto-falante colocado em um ponto específico da sala de
concerto, e o deslocamento dos elementos sonoros entre as caixas era parte integral da
composição.
Mais tarde, em 1970, Stockhausen teria a oportunidade de projetar para a Feira Mundial
de Osaka um espaço pensado especialmente para a performance de sua música (mais ou
menos como Varèse já havia feito em 1958, como veremos adiante). O resultado foi um
enorme globo em cujo centro se acomodavam seiscentos ouvintes, em cujas paredes se
dispunham, em círculos do alto a baixo, sete linhas de alto-falantes. O globo, onde foram
executadas diversas composições de Stockhausen, permitia-lhe o controle espacial completo
do som: “eu podia fazer uma voz subir em espiral durante dois minutos em sentido horário,
enquanto o som de outro músico se movia em círculos, e um terceiro cruzando em linha reta”
(HOLMES: 2002, p. 146).
2.6. Varèse e o poema eletrônico
Edgard Varèse (1883-1965), nascido francês e posteriormente radicado nos EUA, foi
um dos principais compositores da música eletrônica. Aluno do mesmo Ferruccio Busoni que
servira de inspiração a Luigi Russolo, Varèse compôs, desde o início da década de 1930,
12
Stockhausen foi pioneiro nas experiência de espacialização com alto-falantes, mas Gruppen, de 1953, é
anterior ao Gesang der Junglinge. Neste caso, o compositor, que voltou a compor durante algum tempo para
o piano e sopros, dispôs três orquestras completas em diferentes partes de uma sala de concerto, cercando o
público com elas e usando a distribuição espacial como elemento da composição.
Elementos da arte sonora
21
peças explorando as possibilidades do teremim
13
,
e com a súbita desaparição de seu inventor e
a indisponibilidade de seus instrumentos
14
, passou a empregar o Ondes Martenot (outro
instrumento eletrônico, similar ao teremim mas com maior controle sobre o timbre). Varèse,
muito antes do contato com instrumentos eletrônicos, já antecipava sua necessidade,
conforme declaração ao New York Morning Telegraph em 1916:
Our musical alphabet must be enriched. We also need new instruments very badly
(...). In my own works I have always felt the need for new mediums of expression
(...) which can lend themselves to every expression of thought and keep up with
thought (VARÈSE apud HOLMES: 2002)
Figura 2: Croquis de Le Corbusier e Xenakis para o Pavilhão Philips (1958)
Boa parte da produção de Varèse se concentrou nos anos 1920 e 1930, e empregou
instrumentos convencionais, mas ao mesmo tempo o uso intensivo de percussão, e de escalas
13
instrumento inventado pelo engenheiro russo Leon Theremin (Lev Termen, em russo) em 1919, foi o
primeiro instrumento eletrônico produzido em escala (pela RCA, nos EUA), e era executado sem que o
instrumentista o tocasse, apenas aproximando e afastando suas mãos do instrumento. Apesar de ser um
instrumento eletrônico anterior às experiências da WDR, seu uso estava normalmente associado a formas de
pensamento musical antigas: era mais empregado na execução de melodias açucaradas de Tchaikovsky em
shows onde era visto como uma tecnologia exótica do que a serviço de uma nova estética musical.
14
Theremin, que vivia nos EUA, desapareceu em 1938 em circunstâncias não esclarecidas até hoje, e só
reapareceu na década de 1990. O instrumento empregado por Varèse era um teremim controlado com os
dedos, por contato, não produzido em escala e mais similar ao Ondes Martenot.
Elementos da arte sonora
22
microtonais. Ao contrário dos compositores dodecafônicos de seu tempo, focava suas
produções em ritmos e no timbre (portanto antecipando em alguma medida o ideário da
música concreta), o que o diferenciava radicalmente de seus contemporâneos. Varèse cunhou
a expressão “organização sonora” (também utilizada por Cage em outro contexto) em
substituição a “música”, como forma de se esquivar de polêmicas:
I prefer to use the expression “organized sound” and avoid the monotonous
question: “But is it music?” “Organized sound” seem better to take in the dual
aspect of music as an art-science, with all the recent laboratory discoveries that
permit us to hope for the inconditional liberation of music, as well as covering,
without dispute, my own music in progress and all its requirements” (VARÈSE
apud HOLMES: 2002)
A geração de autores da musique concrète tinha na música experimental de Varèse uma
de suas principais inspirações, e o compositor em 1954 utilizou os estúdios do GRM, com o
apoio de Pierre Schaeffer, para realizar Déserts, sua primeira composição utilizando fita
magnética; um jovem Stockhausen, então visitante no GRM, participou de suas primeiras
execuções públicas controlando o console de mixagem
(HOLMES: 2002, p. 132).
Mas dentre as realizações de Varèse, a mais relevante para a reflexão sobre a sound art
foi, sem dúvida, o Poème électronique, desenvolvido em 1958 em parceria com o arquiteto Le
Corbusier e seu assistente à época, o então arquiteto Iannis Xenakis. Le Corbusier havia sido
convidado pela Philips Radio Corporation a projetar um pavilhão para a feira mundial de
Bruxelas. O pavilhão, com capacidade para 500 pessoas, foi concebido especialmente para a
apresentação da música de Varèse. Ele continha 425 alto-falantes dispostos em arcos em seu
interior para o controle e a distribuição espacial da música em fita magnética, que empregava
técnicas de edição e efeitos típicos da música concreta e sons e tratamentos eletrônicos. O
interior do pavilhão era escuro, e a música era acompanhada pela projeção de imagens, filmes
e efeitos de iluminação, selecionados por Le Corbusier e Philippe Agostini. Pode-se afirmar
que ali, há exatos 50 anos, estava o primeiro grande ambiente/instalação multimídia moderno,
trabalhando som, espaço e a visualidade de forma integrada. Cabe ressaltar que não havia, no
projeto, o envolvimento de personagens de relação direta com as artes plásticas.
Vale assinalar ainda que a experiência com a espacialização em música não era
exatamente nova, uma vez que compositores como Giovanni Gabrieli (na virada do século
XVII), Orazio Benevoli (no início do XVII), Gustav Mahler (no XIX), Charles Ives, Cage e
Elementos da arte sonora
23
Stockhausen (no XX), entre outros
15
, já haviam feito experiências de projeção espacial através
da disposição diferenciadas dos músicos em salas de concerto e em igrejas. Mas no
monumental pavilhão da Philips, através de Xenakis e Varèse, a articulação entre o som e o
espaço ganha novas alturas
16
.
2.7. Xenakis: diálogos entre música, matemática e arquitetura
Figura 3: Visão externa do Pavilhão Philips (1958)
Iannis Xenakis (1922-2001) estudou composição com Arthur Honegger, Darius Milhaud
e Olivier Messiaen, mas tinha formação em matemática e era também arquiteto. Trabalhou
como assistente de Le Corbusier por cerca de dez anos desde 1951, mantendo a música como
ocupação paralela. Xenakis freqüentemente entrava em conflito com seus professores de
música, orientados principalmente pelo serialismo; mas de Messiaen iria ouvir o conselho de
aproveitar seus conhecimentos em matemática e arquitetura em lugar de abraçar escolas pré-
existentes, e suas principais contribuições seriam relacionar aspectos espaciais/arquiteturais à
música e o emprego de computadores e recursos matemáticos no processo na composição e na
15
Para uma longa lista de exemplos e uma história da espacialização na música, ver A History Of Spatial Music,
de Richard Zvonar (http://cec.concordia.ca/econtact/Multichannel/spatial_music.html)
16
Zvonar cita experiências do Morrison Planetarium em São Francisco como um antecedente imediato ao
pavilhão de Xenakis e Varèse – mas a música produzida ali foi apenas colhida entre composições prontas, e
não criadas para um espaço determinado.
Elementos da arte sonora
24
execução das peças.
Ainda em 1953, Xenakis iria utilizar um computador para calcular os tempos dos
glissandi de sua peça orquestral Metastasis, que tem as durações baseadas na mesma
seqüência matemática de Fibonacci utilizada por Le Corbusier em seu Modulor
17
. Segundo
Xenakis,
I discovered in coming in contact with Le Corbusier that the problems of
architecture, as he formulated then, were the same as I encountered in music.
(XENAKIS apud FAUVEL: 2003, p. 145)
Os mesmos padrões gráficos dos glissandos dos vários instrumentos, compostos de
linhas inclinadas regulares que descreviam a altura e o tempo em duas dimensões na notação
gráfica empregada na partitura de Metastasis
18
, foram utilizados para criar a estrutura do
pavilhão do Poème Électronique.
Apesar de o Poème électronique ter sido escrito por Varèse, Xenakis, então participante
do GRM de Schaeffer, fez com que sua composição Concrète P. H., baseada na gravação e
transformação em estúdio dos sons de carvão sendo queimado, fosse reproduzida no pavilhão
Philips entre cada duas execuções da obra de Varèse.
17
Escala matemática de proporções aplicada à arquitetura, criada por Le Corbusier a partir da seqüência de
Fibonacci. A escala pretendia obedecer às proporções do corpo humano com o intuito de criar ambientes em
harmonia com seus ocupantes, e foi utilizada sistematicamente pelo arquiteto em suas construções, com
grande influência na arquitetura dos anos 1950 e 1960. O plano inicial concebido por Lúcio Costa para
Brasília é um exemplo de projeto baseado no Modulor.
18
É possível perceber claramente a relação entrea partitura gráfica e a sonoridade da peça no vídeo disponível
em <http://www.uni-ak.ac.at/~p0002015/vor0304/mp4/meta-hp.mov>
Elementos da arte sonora
25
Figura 4: Partitura de Metastasis, de Iannis Xenakis
Apesar de no início dos 1960 Xenakis ter passado a dedicar-se exclusivamente à
composição, deixando de trabalhar para Le Corbusier, a articulação com a arquitetura
continuou ao longo de sua produção musical. Terrektetorh (1966), foi composta para
orquestra, mas previa uma utilização específica do espaço da sala de concerto, misturando
orquestra e público:
The orchestra is in the audience and the audience is in the orchestra (...) a large
ballroom giving a minimum diameter of 45 yards would serve in default of a new
kind of architecture which will have to be devised for all types of present-day
music, for neither amphitheatres no concert halls are suitable (XENAKIS apud
LABELLE: 2006, p. 186)
mais tarde, Xenakis afirmaria que:
Terrektetorh is thus a Sonotron: an accelerator of sonorous particles, a
disintegrator of sonorous masses, a synthesizer” that “tears down the psychological
and auditive curtain that separates him [the audience] from the players”
(XENAKIS apud LABELLE: 2006, p. 186)
Segundo Labelle, Xenakis projetava não só música, mas também “uma arquitetura em
que todos os sentidos se misturam” (LABELLE: 2006, p. 188). Ainda em 1966, Xenakis seria
convidado a projetar um pavilhão da França na feira mundial de Montreal. O Polytope, uma
“estereofonia cinemática” criada por Xenakis utilizando quatro orquestras e principalmente
glissandos, empregava também 1200 luzes estroboscópicas atravessando o pavilhão, no qual
Elementos da arte sonora
26
se operavam de forma automática 90 mil alterações nas luzes ao longo dos seis minutos de
duração da peça, reproduzida em fita magnética.
Em 1970 sua composição Hibiki Hana Ma seria executada em uma performance de
canhões laser na mesma feira mundial de Osaka em que Stockhausen apresentaria suas
composições. Em 1972, ele realizaria o Polytope de Cluny, um show de luzes, lasers, espelhos
e trilha em oito canais para qual foram vendidos mais de 100 mil ingressos, e em 1978
desenvolveu ainda mais um pavilhão, também em Paris, chamado Diatope. O espaço era uma
espécie de tenda, com 1600 pontos de iluminação, onze alto-falantes em círculo, seis canhões
de laser e espelhos, e uma programação de 46 minutos de composições suas.
Em 1972, Xenakis ingressaria como professor associado na Université de Paris I, no
departamento de artes visuais e ciências da arte, onde cria um seminário intitulado
Formalisation et programmation dans les arts visuels et en musique
19
.
Ao longo da segunda metade do século passado, Xenakis promoveu várias inovações
nos métodos de composição, principalmente utilizando a matemática e computadores, com
grande influência sobre compositores da segunda metade do século XX: em sua pesquisa
desenvolveu programas de cálculo probabilístico em computador para posterior emprego em
composições, utilizou diferentes técnicas matemáticas em suas composições, formalizadas
teoricamente no ensaio Musiques Formelles (1962); desenvolveu um sistema (UPIC) para
“interpretar” linhas e formas visuais que determinariam diferentes parâmetros do som,
empregados por compositores como Jean-Claude Risset e outros; e fundou os pólos de
pesquisa Centre d'Études de Mathématiques et Automatiques Musicales (CEMAMu) em Paris
e o Centre for Mathematical and Automated Music, em Londres.
2.8. Outras músicas eletrônicas
Desde as experiências pioneiras na RTF e no GRM, diversos outros avanços ocorreriam
no desenvolvimento do uso de instrumentos e eletrônicos na música experimental. Otto
Luening e Vladimir Ussachevsky, europeus radicados nos EUA, depois de visitar os estúdios
de Paris e de Colônia, conseguiram estabelecer uma cooperação entre as universidades de
Princeton e Columbia e a RCA, com avanços notáveis nas técnicas de síntese ao longo da
década de 1950. Também ao longo desta década inúmeros outros instrumentos eletrônicos
surgiriam, com maior ou menor sucesso, mas sem grande apelo comercial. Já na década de
19
Conforme texto disponível em: <http://www.iannis-xenakis.org/fxe/bio/chrono.html>
Elementos da arte sonora
27
1960, dezenas de instrumentos eletrônicos menos custosos e mais portáteis, em especial os
sintetizadores Moog
20
, permitiriam a popularização destes instrumentos e sua rápida aceitação
para além dos círculos mais experimentais.
Em paralelo, centros de pesquisa em música e tecnologia como o IRCAM
21
, fundado
em 1974 em Paris e dirigido inicialmente por Pierre Boulez, desenvolveriam enormemente
muitas diferentes técnicas de composição por computador, dando seqüência à pesquisa
eletroacústica iniciada por Schaeffer e pelos eletrônicos alemães, e aproximando cada vez
mais o processo de composição nas academias do trabalho científico em laboratório. Compor
música eletroacústica hoje é, em grande medida, criar algoritmos e escrever programas de
computador em linguagens próprias para a música, como CSound, Max/MSP, PD e
SuperCollider. E a despeito das preocupações com espacialização do som e efeitos
psicoacústicos diversos (e da utilidade de linguagens como PD e Max/MSP
22
para a produção
de instalações sonoras) os compositores eletroacústicos atuais não parecem exercer grande
influência sobre os que hoje se intitulam sound artists, ou pelo menos não são listados por
estes como influência ou inspiração (mesmo que muito destes sound artists tenham uma
história prévia ou carreira paralela relacionadas à música eletroacústica). O compositor
Rodolfo Caesar, aluno de Schaeffer, aponta o perigo (ou a opção) do isolamento na crescente
aproximação entre música e ciência:
a tarefa de pesquisar a música traz benefícios mas precisa resistir à fácil tentação de
instrumentalizar um conhecimento musical socialmente mais autônomo, porque
mais vinculado às certezas verificadas pela pesquisa. O refúgio da música no
centro de pesquisa pode transformá-la em ativo e passivo de uma mesma
contabilidade, bastando para isso que ela sacrifique sua existência ‘extra-muros’,
quando se tornar cultura especificamente acadêmica. Neste momento pesquisador e
compositor serão uma e a mesma pessoa. Pesquisa e composição serão um só
produto. Se não quiser este destino, a música ainda precisa de territórios de não-
saberes, de um saudável ignorar, para não cortar, de vez, seus laços com esse outro
indecifrável, o público. (CAESAR: 2000)
2.9. John Cage: passagens
É difícil mensurar a extensão da influência do compositor norte-americano John Cage,
discípulo de Henry Cowell e Arnold Schönberg, não só no campo da música, mas também nas
20
primeiro sintetizador no sentido contemporâneo do termo, produzido em maior escala por Robert Moog
21
Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique.
22
Desenvolvidas originalmente para a criação de música eletrônica, estas duas linguagens/frameworks são as
principais ferramentas de desenvolvimento de muitos artistas em meios digitais, em especial quando se trata
de instalações multimídia.
Elementos da arte sonora
28
artes plásticas. Além de revitalizar o pensamento sobre a música através de composições,
ensaios, manifestos e performances ao longo de quase meio século de atividade, Cage
funcionou direta e indiretamente como um dos motores por trás da seção americana da rede de
artistas Fluxus e do advento do happening como forma de expressão, e ainda teve importância
crucial para a dança moderna através de suas colaborações com Merce Cunningham.
Experimentos como os do Black Mountain College, no qual Cage e outros liam manifestos e
poemas, enquanto Cunningham dançava, David Tudor tocava piano preparado e Robert
Rauschenberg manipulava um toca-discos, viriam a antecipar os happening que Allan
Kaprow, também seu aluno, realizaria no final da década e que desembocariam na
performance art.
Mesmo havendo controvérsia acerca daquilo que se possa definir como “música
experimental”, Michael Nyman categoriza o trabalho de Cage (e outros compositores
americanos como Terry Riley, LaMonte Young, Steve Reich e Morton Feldman, entre outros)
como tal, por oposição ao avant-gardes-guerra europeu (Stockhausen, Xenakis, Boulez)
(NYMAN: 1974). Essa oposição se baseia na idéia de que o avant-garde seria um extremo
dentro da tradição erudita, ao passo que a música experimental seria algo fora, sem
compromisso com a complexidade técnica ou o diálogo mais direto com a herança histórica
da música ocidental. Os compositores europeus estariam, sob este ponto de vista, dialogando
intertextualmente sob o efeito da gravidade de um sistema mais restrito e de longa tradição.
The classical system and its contemporary continuation is essentially a system of
priorities which sets up ordered relationships between its components, and where
one thing is defined in terms of the opposite. (NYMAN: 1974)
Além disso, a música experimental não é necessariamente concebida por compositores
versados nas disciplinas da música, e é muitas vezes produzida por artistas pouco ou nada
informados sobre as escolas musicais ocidentais. Com efeito, e com grande influência de
filosofias orientais, Cage iria advogar uma radical mudança na forma de se pensar a música, e
não apenas avanços pontuais em elementos do seu léxico (coisa que no limite se poderia dizer,
por exemplo, da música concreta ou das composições de Stockhausen).
Há ainda um consenso aparente de que Cage foi vital na passagem do modernismo para
o pós-modernismo na música, mesmo entre críticos que tentam apontar esta passagem em
diferentes momentos de sua obra. Ao mesmo tempo, com sua experiência na Europa, Cage
trouxe o projeto político das vanguardas históricas de mudança política e social através da
arte, e pode ter desempenhado um papel crucial na recuperação destas vanguardas, não só na
Elementos da arte sonora
29
música mas nas artes de forma mais geral, no pós-guerra americano. Além disso, Cage
assumiu a partir dos anos 1940 uma postura de provocador ou agitador cultural próprio destas
vanguardas, promovendo “palestras sobre o nada”, criando polêmicas sobre Beethoven em
suas aulas, ou apresentando composições silenciosas (BERNSTEIN: 1996). É preciso ter em
vista este ímpeto iconoclasta para compreender os movimentos e os métodos de Cage contra a
linguagem musical e artística corrente, utilizando processos como forma de subvertê-la, e
buscando novas formas de experiência do som.
Segundo Labelle, a abordagem de Cage pode ser considerada conceitual, na medida em
que a música é a um só tempo seu meio de operação e seu objeto de reflexão. O crítico
identifica o uso do silêncio de Cage como uma antecipação da arte conceitual dos anos 1960:
este corresponderia a uma “desmaterialização” de um objeto musical em favor do conceito
(LABELLE: 2006, p. 4). Com efeito, através do uso da indeterminação e da introdução do
acaso em suas peças, seja usando o I Ching, números randômicos gerados por computador, ou
partituras gráficas geradas ao acaso, Cage visava evitar toda intencionalidade e por
conseguinte se livrar das linguagens e hábitos musicais vigentes, e como resultado esvaziou o
valor da obra em detrimento do processo (ou da experiência). Em sua palestra Composition as
a process, Cage afirmaria:
An experimental action is one the outcome of which is not foreseen. Being
unforeseen, this action is not concerned with its excuse. Like the land, like the air,
it needs none. A performance of a composition which is indeterminate of its
performance is necessarily unique. It cannot be repeated. When performed for a
second time, the outcome is other than it was. Nothing therefore is accomplished
by such a performance, since that performance cannot be grasped as an object in
time. A recording of such a work has no more value than a postcard; it provides a
knowledge of something that happened, whereas the action was a non-knowledge
of something that had not yet happened. (CAGE: 1961)
Ao propor um deslocamento da importância da obra finalizada, autônoma, para o
processo de criação, ele abre caminho para uma série de mudanças na música e nas artes
plásticas, e antecipa (nas suas técnicas, em suas intenções e no seu discurso) os métodos
através dos quais os artistas plásticos contemporâneos iriam buscar, pouco tempo depois, uma
resposta para a comoditização da arte e a cristalização de suas linguagens e sistemas. Além
desta contribuição indireta rumo à arte conceitual, no que toca à arte sonora, a visibilidade do
processo de produção do som tornou-se ele mesmo um dos principais aspectos desta produção
como veremos adiante.
Se por um lado as operações de indeterminação de Cage buscavam eliminar a
Elementos da arte sonora
30
intencionalidade e a participação direta do autor na organização dos sons, por outro lado estas
configuravam um método de trabalho, um arcabouço conceitual que marcava sua obra como
um todo.
Além disso, ao promover a indistinção entre som musical e ruído (ou ao propor o
silêncio como música), Cage propõe um questionamento sobre o que é de fato musical, numa
indagação filosófica que põe toda a linguagem musical em perspectiva, mais ou menos da
forma que, algumas décadas antes, Duchamp havia feito (mas muito antes das experiências
conceituais das artes plásticas no pós-guerra, promovidas em grande medida por alunos seus).
Schönberg, outrora seu professor, indicaria isso ao declarar sobre Cage, décadas depois, que
“obviamente não se trata de um compositor – é um inventor, genial” (CHANAN: 1998, p.
263).
Além de manter uma relação duradoura com Duchamp, o próprio Cage antes de estudar
composição estudou artes plásticas, e viria a lecionar composição experimental na New
School for Social Research para grande parte dos artistas plásticos (muitos deles sem qualquer
ensino musical) que mudariam o cenário a partir dos anos 1960, em especial os envolvidos
com o Fluxus. Alguns anos antes, em 1925, Cage organizaria happenings no Black Mountain
College que antecipariam aqueles feitos por Kaprow, empregando poesia, manifestos, dança e
música experimental sem muita pré-definição.
Elementos da arte sonora
31
Figura 5. Cage, Tudor e Mumma executando Variations V (1965)
Além de obras mais conceituais como 4’33”, outras teriam uma aproximação mais
direta com as artes plásticas e com os formatos da arte sonora. Variations V, um espetáculo
multimídia apresentado em 1965, era em larga parte improvisado, e contava com Cage, David
Tudor e Gordon Mumma operando diferentes instrumentos e geradores de som, enquanto a
companhia de Merce Cunningham apresentava uma coreografia. O equipamento operado
pelos músicos incluía receivers de ondas curtas, osciladores, gravadores de rolo, microfones
de contato; mas além disso havia nos objetos de palco microfones de contato que captavam
sons dos bailarinos, antenas que captavam seus movimentos como um teremim, e células
fotoelétricas no tablado, realimentando e alterando e os sons produzidos pelos músicos. Se
por um lado a obra não estava aberta à participação do público, captando os movimentos e
sons dos bailarinos apenas, as técnicas antecipam em várias décadas as experiências
interativas realizadas pelas instalações multimídia mais recentes.
Elementos da arte sonora
32
Figura 6. Instalação de Rainforest IV (1973), de David Tudor
Colaborador direto de Cage em Variations V e em inúmeros outros trabalhos (inclusive
como “pianista” na apresentação original de 4’33”), David Tudor
23
, conduziria mais adiante
experimentos que configuram instalações sonoras no sentido mais completo do termo: em
Rainforest IV (1973), Tudor produziu uma série de esculturas/objetos dispostos em um espaço
expositivo e as equipou com transdutores
24
ligados a osciladores e microfones de contato, que
captavam as freqüências ressonantes do interior dos objetos ativados pelos transdutores
criando sons constantes amplificados na sala.
Ainda de Cage, HPSCHD (1969), feito em colaboração com Lejaren Hiller, utilizava
sete cravistas tocando ao vivo, clássicos do repertório erudito e 52 fitas de sons gerados por
computador, sendo executados em dezenas de alto-falantes ao longo de cinco horas em um
ginásio esportivo. Em paralelo, eram exibidos em enormes telas, circundando e cobrindo o
espaço, 6400 slides e 40 filmes, completando o que foi provavelmente a maior instalação ou
espetáculo multimídia de sua época.
Como contribuição mais direta para a arte sonora e o uso do som pelos artistas (além de
23
Tanto Tudor quanto Gordon Mumma e David Behrman, seus companheiros no grupo que chamaram Sonic
Arts Union (e do qual mais tarde participaria Alvin Lucier), construíam normalmente seus próprios
instrumentos eletrônicos, como muitos outros músicos eletrônicos da época – nessa medida se aproximariam
de parte dos artistas sonoros contemporâneos e suas instalações interativas.
24
Aqui, um dispositivo similar a um alto-falante, mas que apenas transmite vibrações para superfícies e não
através do ar.
Elementos da arte sonora
33
sua relação estreita com artistas plásticos ao longo de toda sua carreira), cabe notar que a
defesa dos métodos experimentais abriria sem dúvida o precedente para que artistas plásticos
mais recentes pudessem arriscar-se na produção do som, não mais um domínio exclusivo de
compositores e intérpretes treinados nas academias. Se levarmos em conta o fato de que boa
parte dos artistas sonoros vem de um background de artes plásticas e não de música, lidando
com os sons de forma intuitiva, acreditamos que a contribuição da música experimental – e
indiretamente de Cage – deve ter sido determinante.
2.10. Música minimalista
A música minimalista teve grande importância nas décadas de 1960-1970,
principalmente nos EUA, e tem entre suas principais características o emprego de um número
reduzido de frases ou motivos largamente repetidos, uma harmonia consonante, muitas vezes
um pulso constante, muito pouca ou muito lenta variação dos motivos, e abandono de
recursos decorativos. Entre os principais compositores estão Steve Reich, Terry Riley,
LaMonte Young, Philip Glass, todos norte-americanos; e Michael Nyman, inglês.
A idéia de uma música baseada na repetição exaustiva de elementos não é nova, mesmo
na música ocidental, e Véxations (1893) é um exemplo de Satie nesse sentido
25
. A primeira
composição mais claramente associada ao minimalismo em música, no entanto, é o String
Trio (1958) de LaMonte Young, que emprega técnicas dodecafônicas e explora sons com
longas durações (na peça há notas que duram mais de quatro minutos cada).
No contexto da música, o termo “minimalismo”, tomado de empréstimo à Minimal Art
em voga nas artes plásticas nos anos 1960, vem sendo comumente usado desde que Nyman o
empregou pela primeira vez em 1968; a idéia de uma “música processual” aparece pela
primeira vez no mesmo ano, no manifesto de Reich intitulado Music as a Gradual Process.
Apesar de os dois termos serem utilizados de forma intercambiável por alguns,
principalmente por causa das obras de Reich, a idéia de música processual dele aponta para
uma música “que se origina em um processo, e mais especificamente, música que torna esse
processo audível”
26
. No manifesto, ele ressalta o fato de que sua idéia de música processual é
diferente da de Cage: este último utiliza processos como técnicas de composição, mas sua
25
A peça para piano de Satie consiste em uma seqüência de acordes que se sucedem lentamente. A partitura
indica que a seqüência deve ser repetida 840 vezes, o que pode levar algo em torno de 30 horas.
26
Verbete da Wikipedia. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Process_music>
Elementos da arte sonora
34
música não dá a ouvir o processo diretamente, “não há conexão audível”. Podemos concluir
que, nesta medida, a contribuição de Reich para a arte sonora é mais direta, uma vez que parte
das obras baseiam-se justamente na exposição dos processos de produção do som. Mais tarde,
como veremos adiante, Reich inclusive produziria composições que se apresentam na forma
de instalações, e onde o acento é a visibilidade do processo de produção do elemento sonoro.
2.11. LaMonte Young e a música conceitual do Fluxus
A importância de LaMonte Young para a música vai muito além do seu pioneirismo e de
sua importância como compositor minimalista na virada dos 1960: espraia-se para a
interseção com as artes plásticas ao longo da década, e influencia até mesmo o movimento
punk. Inicialmente um músico de jazz de vanguarda, Young quando jovem acompanhou
Ornette Coleman e Don Cherry. Mais tarde, estudaria com um aluno de Schönberg que levaria
à sua aproximação com o serialismo antes e no início das experiências minimalistas, e depois
com Stockhausen. Na Alemanha, quando assistia ao curso de Stockhausen, iniciou uma
correspondência com Cage.
Pouco depois, Young mudou-se para Nova York, e passou a participar ativamente de
saraus e eventos do Fluxus. O Fluxus consistia em uma rede de artistas, inicialmente em Nova
York, e depois na Europa e no Japão, fundada pelo artista e galerista George Maciunas. Com
espírito provocador, o grupo produziu filmes, livros, composições, eventos e performances
27
.
As obras eram tão simples quanto possível, com performances que muitas vezes consistiam
em um único gesto, às vezes com referências circular à maneira da filosofia Zen, mas também
com humor e cinismo que evidenciavam influência de Duchamp e dos dadaístas do início do
século. Maciunas descreveria o grupo, que tinha forte influência do pensamento de Cage e o
acolheu para algumas palestras, como “uma fusão de Spike Jones
28
, vaudeville, gags, jogos de
criança e Duchamp”.
Entre artistas que participaram em diferentes épocas do grupo estão o próprio Young,
Yoko Ono, Joseph Beuys, Dick Higgins, Nam June Paik, Allan Kaprow, Henry Flynt e Wolf
Vostell. Em grande medida, a própria noção de “arte conceitual” nasceu com o Fluxus: o
primeiro a usar o termo foi Flynt, em um ensaio editado por Young e publicado em 1963.
Nesta época de participação no Fluxus, Young passou a desenvolver composições que
27
Os artistas do Fluxus eram, de acordo com o termo cunhado por Higgins em 1966, “intermídia”.
28
Músico americano dos anos 1940 e 1950 que fez sucesso no rádio com versões cômicas de canções de
sucesso, executadas com artefatos de cozinha e ruídos de objetos do dia-a-dia
Elementos da arte sonora
35
consistiam em pequenos textos com instruções para execução, com caráter altamente
conceitual e muitas vezes performático. Compositions 1960, No. 2, por exemplo, indica:
Build a fire in front of the audience. Preferably, use wood although other
combustibles may be used as necessary for starting the fire or controlling the
smoke. The fire may be of any size, but it should not be the kind which is
associated with another object, such as a candle or a cigarette lighter. The lights
may be turned out.
After the fire is burning, the builder(s) may sit by and watch it for the duration of
the composition; however, he (they) should not sit between the fire and the
audience in order that its members will be able to see and enjoy the fire.
The composition may be of any duration.
In the event that the performance is broadcast, the microphone may be brought up
close to the fire.
Já a Compositions 1960, No. 5 exige uma borboleta para sua execução:
Turn a butterfly (or any number of butterflies) loose in the performance area.
When the composition is over, be sure to allow the butterfly to fly away outside.
The composition may be any length, but if an unlimited amount of time is
available, the doors and windows may be opened before the butterfly is turned
loose and the composition may be considered finished when the butterfly flies
away.
Outros integrantes do Fluxus produziriam “partituras verbais” semelhantes,
notadamente Yoko Ono, como nos exemplos a seguir. Algumas delas trazem o som apenas
como conceito – inclusive há peças cuja execução é impossível.
Bicycle Piece for Orchestra (1962):
Ride bicycles anywhere you can in the concert hall. Do not make any noise.
Laundry Piece (1963):
When you entertain guests, bring out your laundry and explain each item: how and
when it became dirty and why, etc.
Beat Piece (1963):
Listen to a heart beat.
Laugh Piece (1961):
Keep laughing a week.
Collecting Piece (1963):
Elementos da arte sonora
36
Collect sounds in your mind that you have heard throughout the week. Repeat them
in your mind in a different order one afternoon.
Se algumas peças eram apresentadas como partituras musicais, outras se apresentavam
como arte conceitual mais diretamente afiliada às artes plásticas, mas com modo de operação
idêntico. O Instructions for Paintings de Ono consistia do seguinte texto:
Light canvas or any finished painting with a cigarette at any time for any length of
time.
See the smoke movement.
The painting ends when the whole canvas or painting is gone.
Depois do período da colaboração com o Fluxus, LaMonte Young seguiria realizando
diversos outros experimentos, dentro dos quais o Dream House. Para este projeto, ele e sua
esposa Marian Zazeela transformam um prédio em uma instalação de luzes e som, com os
próprios músicos arregimentados por Young morando dentro dele e produzindo música 24
horas por dia. Fazendo de seu lugar de moradia e trabalho uma instalação permanente, Young
promoveria de fato a aproximação entre arte e vida conforme preconizado pelo Fluxus e pelas
vanguardas históricas; e ao fazer do processo (e nesta medida, sua vida) a própria obra, estaria
ecoando os pensamentos artísticos mais radicais do final dos anos 1960.
Elementos da arte sonora
37
3. Artes plásticas no pós-guerra
Além da contribuição das diversas formas de música de vanguarda e experimentais ao
longo do século XX, a arte sonora é diretamente informada pelos desenvolvimentos das artes
plásticas no pós-guerra, e de maneira especial pelos caminhos trilhados a partir dos anos
1960. Essa contribuição se dá não só no aproveitamento dos formatos criados e utilizados
pelos artistas plásticos nas obras de arte sonora, mas também ao definir um campo de
problemas com os quais muitos dos artistas sonoros irão trabalhar (apenas tomando o som
como elemento articulador ou foco de reflexão principal).
Privilegiaremos aqui não uma história destes eventos, mas uma contextualização de
alguns poucos gêneros ou movimentos que acreditamos terem causado influência mais direta
sobre a arte sonora. Preocuparemos-nos menos com os detalhes, as subdivisões internas e a
cronologia (ou com as possíveis reduções que estaremos operando ao abordar estes eventos
como movimentos ou gêneros mais ou menos definidos), e buscaremos verificar de que
formas diferentes eventos contribuíram para o pensamento e os formatos da arte sonora.
3.1. Arte processual e conceitual
Autores como Brandon Labelle (LABELLE: 2006, p. xiv) e Alan Licht (LICHT: 2007,
p. 124) indicam que a sound art começa a tomar uma forma independente da música
experimental na segunda metade da década de 1960, coincidindo com o gradual abandono,
nas artes plásticas, da produção de objetos em favor da produção de ambientes e situações.
Ainda no início deste um caminho em direção a práticas processuais e conceituais dos
artistas da na segunda metade do século, podemos ver no expressionismo abstrato de Willem
de Kooning, Mark Rothko e Jackson Pollock um ponto de inflexão importante: ao mesmo
tempo o ápice da arte moderna e sua própria crise, devido à valorização do gesto do artista. O
ato físico da produção da obra no action painting faz com que o expressionismo abstrato traga
consigo para a frente do palco o processo, uma primeira centelha de um longo movimento no
sentido de uma “desmaterialização do objeto de arte” em direção à valorização de um
processo e do conceito, percurso este que se estenderia por toda a segunda metade do século
passado.
Muitas respostas se contraporiam à hegemonia de mercado e crítica conseguida pelos
expressionistas, notadamente a minimal art e a emergência de movimentos mais ou menos
Elementos da arte sonora
38
afiliados às vanguardas históricas européias, como a arte pop, a assemblage art e os
happening. Os artistas pop, como Liechtenstein e Warhol, abandonariam o foco na auto-
expressão e a preocupação com as qualidades da superfície próprias do expressionismo
abstrato, e passariam a celebrar os ícones da comunicação em massa e da cultura popular,
recuperando em alguma medida o humor antiarte de Duchamp e dos dadaístas (e de seu uso
de materiais modernos). Mas teriam através desta postura uma contribuição importante na
mudança de papel do próprio artista: ao banalizar o objeto de arte, tornando-o próximo
daqueles produzidos em escala industrial e com baixo valor, os artistas trazem a atenção para
a sua condição de pensadores, observadores críticos das estruturas das artes e da sociedade;
passam, em grande medida, a indicar aquilo que deve ser visto, em lugar de propriamente
produzi-lo, e assim pavimentam o caminho em direção a formas mais conceituais.
Novas práticas artísticas como a performance, a arte conceitual e a instalação –
conforme aponta Hans Belting (2000) – surgiram como revolta contra o valor de troca do
objeto de arte, manifesta através da escrita ou da encenação em lugar da produção objetual.
Fazendo-o, no entanto, os artistas “não deixaram de fazer arte: tratava-se simplesmente de
outra arte, liberada do cânon da obra e das determinações a ela ligadas”, e estas manifestações
tornariam-se comentários críticos sobre o que acreditavam ser a ideologia da arte. Neste
mesmo fluxo, ainda que anterior e partindo de condições muito diferentes, impossível não
localizar a arte de Duchamp, cuja produção objetual, se isolada, era irrelevante diante do
aspecto performático desta: ela lhe serviria mais propriamente para questionar a própria idéia
de obra de arte.
Arthur Danto, por sua vez, identifica como marca do século XX o fato de só então se ter
revelado a “natureza filosófica da arte”: toda obra, movimento e ou estilo de real relevância
teria ao longo da história da arte constituído uma reflexão sobre a pergunta “o que é arte?”,
própria ao momento de cada uma, mas somente os anos 1960 vêem o despontar ou a
autoconsciência deste destino filosófico da arte em sua plenitude. Roy Lichtenstein é o artista
escolhido pelo crítico para conduzir esta discussão acerca do devir filosófico da arte:
Lichtenstein é desse século porque ele deu sua opinião no debate sobre os limites
filosóficos da arte – sobre a distinção entre as belas artes e a arte popular, por
exemplo. (DANTO: 2003)
Grosso modo, pode-se argumentar que tanto Belting quanto Danto caracterizam a
produção artística, principalmente a partir da produção conceitual dos 1960, como sendo antes
de mais nada uma espécie de indagação filosófica sobre a própria arte, presentificada através
Elementos da arte sonora
39
de diferentes formas sensíveis.
Ainda no final dos anos 1950, o happening seria uma outra forma de questionar a
linguagem e o caráter objetual da produção artística até então. O termo foi usado pela
primeira vez por Allan Kaprow em 1957 para descrever as situações e performances não-
narrativas que promovia, mas, segundo alguns críticos os primeiros happenings foram os
experimentos promovidos por Cage, um dos professores de Kaprow, no Black Mountain
College. Os happenings põem em questão as fronteiras definidas entre arte e vida, bem como
entre artista e público, e constituiriam a base sobre a qual iria se desenvolver a performance
art a partir do final dos 1960, e configuram mais um avanço no sentido do deslocamento em
direção aos processos e ao conceito como foco da produção artística. É preciso ressaltar que,
como vimos anteriormente, a importância de Cage para as artes plásticas não se limita a
promover tais eventos, ou às aulas que proferiu para os artistas. Cage, através de seus
trabalhos e seu pensamento, chamou a atenção para o processo e a reflexão sobre a linguagem
(musical, no caso) através de seus experimentos com a indeterminação e o acaso, e através da
introdução de novas formas de produção de som e da incorporação destes novos sons ao
vocabulário musical.
Mesmo tendo havido experiências anteriores similares promovidas por Kurt Schwitters
e outros dadaístas, a performance art, na forma mais comum do termo
29
, tem seu início
aproximado na década de 1960, com Kaprow, Vito Acconci, Carole Schneeman, Yoko Ono,
Yves Klein, Joseph Beuys e Wolf Vostell (portanto misturando-se com os concertos intermídia
do Fluxus, os happenings e outros eventos comuns no cenário artístico da época). Apesar dos
artistas acima listados serem bastante comumente lembrados, a performance é mais um
gênero do que um movimento, e segue popular entre os artistas atualmente. Geralmente se
constitui das ações de um artista ou de um grupo de artistas, e não de um dado objeto como na
cartilha modernista, e muitas vezes exigem envolvimento do público – de toda forma, assim
como originalmente pretendiam os happenings, deslocam a importância da produção de
objetos para a realização de processos, com o intuito de colocar em xeque o próprio sistema
da arte e seus mecanismos de troca, uma vez que não há mais, nestes casos, objeto ou produto
a ser vendido.
Por fim, o aspecto conceitual da arte acabaria por tornar-se a preocupação central, em
detrimento da estética e da produção material, na Conceptual Art. Sol LeWitt sintetiza este
29
Não confundir com a idéia mais abrangente da performance nas artes de maneira geral. Em inglês, performing
arts costuma referir-se ao teatro, à dança e à música.
Elementos da arte sonora
40
espírito afirmando que todo o planejamento e as decisões são tomadas antes da execução do
projeto: a execução em si é um detalhe menor, e a idéia é a máquina que produz arte. Pouco
depois, em A arte depois da filosofia (1969), Kosuth sistematizaria e manifestaria
textualmente o projeto filosófico da arte contemporânea que Danto descreve na sua análise da
arte pop, afirmando que arte conceitual é aquela que questiona a própria natureza daquilo que
é considerado arte.
As formas conceituais da arte têm importância fundamental para a arte sonora, no
sentido de fazer com que a prática artística se debruce sobre ela mesma de diferentes
maneiras. Este caráter conceitual é aquele que aparece como traço fundamental na definição
de arte sonora proposta por Brandon Labelle: a de uma arte que vai refletir sobre o som, mas
vai fazê-lo também através do som – portanto, se aceitarmos esta definição, a vocação auto-
reflexiva herdada da arte conceitual é uma pré-condição da emergência da arte sonora.
Além disso, indiretamente, através da realimentação entre formas conceituais de arte e
formas experimentais da música desde os anos 1950, a música pôde se abrir para todo tipo de
som e para novas formas de escuta: apenas a título de ilustração, não é à toa que as White
Paintings de Robert Rauschenberg são indicadas por Cage como inspiração direta para a sua
peça silenciosa (KAHN: 1999, p. 168).
Como contribuição mais direta em relação aos meios utilizados pela arte sonora,
acreditamos que a arte conceitual e o questionamento trazido em relação aos materiais e
formatos até então aceitos no sistema das artes plásticas abririam a possibilidade, estranha ao
vocabulário artístico do modernismo, de experimentação não só com o som, mas também com
o tempo e o espaço, em especial através da instalação, como veremos a seguir. O artista
americano Branden Joseph tem visão similar, e aponta o uso do som feito por artistas como
conseqüência natural da submissão do aspecto material ao conceito:
[Vito] Acconci, [Terry] Fox, [John] Baldessari, and others were coming out of
Conceptual art, which subordinated the medium or material of the artwork to the
idea or strategy being investigated. Sound was one way of pursuing what Lucy
Lippard so famously called the “dematerialization of the art object.” These types of
Conceptual investigations obviously distinguish themselves quite clearly from any
notion of modernist medium-specificity or the investigation of sound as such.
(Branden Joseph em COX: 2004)
Elementos da arte sonora
41
3.2. Instalações e arte site-specific
Figura 7. Untitled (1966), de Donald Judd.
Ainda no início da década de 1960, minimalistas como Robert Morris, Donald Judd e
Dan Flavin iriam também reagir aos excessos dos expressionistas abstratos e suas tentativas
de expressão direta da emoção sobre a tela, bem como aos preceitos modernistas – tipificados
por Clement Greenbergda busca de uma expressão específica de cada meio e da autonomia
da obra de arte. Usando o espaço, materiais e a luz de formas simples, os minimalistas não
buscavam um ascetismo como estilo ou opção estética, mas pretendiam através deste
despojamento deslocar a atenção do objeto em si para as condições da experiência dentro de
um sistema relacional, incluído aí o próprio corpo do espectador e seus mecanismos de
percepção e cognição como um dos elementos em jogo neste sistema (objeto, espaço
expositivo e espectador). Segundo Miwon Kwon, “se a escultura modernista usava pedestais
para separar-se ou para expressar sua indiferença ao lugar onde era exposta, tornando-se desta
forma mais autônoma e auto-referente, e assim transportável, sem lugar e nômade”, o
minimalismo e os site-specific das décadas de 1960 e 1970 forçariam uma mudança radical
neste paradigma moderno, e “a arte site-specific, seja interrompendo ou assimilando,
entregou-se ao contexto de seu ambiente, tornando-se formalmente determinada ou
Elementos da arte sonora
42
direcionada por ele” (KWON: 2002).
O minimalismo traria o aspecto fenomenológico da experiência da obra para o primeiro
plano, requisitando a participação do sujeito, com sua presença corporal, “na imediatez
sensorial da extensão espacial e da duração temporal”, apostando justamente naquilo que o
crítico modernista Michael Fried chamaria pejorativamente de teatralidade (KWON: 2002).
Ao demandar a presença física do participante e seus mecanismos perceptuais como parte
indissociável da obra, os minimalistas implodiriam qualquer possibilidade de autonomia da
obra de arte. Além disso, preparariam o terreno para diferentes formas de envolvimento do
participante, em especial as múltiplas formas da installation art, largamente empregadas pelos
artistas sonoros atuais.
A installation art é mais um gênero do que uma escola ou movimento, e além de
diretamente influenciada pelas experiências dos minimalistas, tem antecedentes nos
readymades de Duchamp e em experiências instalativas dos dadaístas, bem como nas
combinações que Robert Rauschenberg produziu nos anos 1950. Nas instalações, um
determinado ambiente, originalmente a galeria de arte e o museu e depois qualquer arquitetura
ou paisagem natural, tem seu espaço interno transformado ou ocupado pelo artista, usando
qualquer tipo de material e inclusive outras mídias (como som ou vídeo).
Um traço fundamental das instalações para o qual desejamos chamar a atenção é de que
elas são em grande parte site-specific, isto é, dialogam com o contexto de um lugar específico,
seja por seus aspectos físicos e perceptuais, seja por diferentes cargas simbólicas presentes
nestes lugares. Num primeiro momento, como no minimalismo, isto estaria ligado à idéia de
substituir o modelo cartesiano do modernismo (que supõe um sujeito separado do objeto) por
um outro modelo em que a obra não se separa do espectador, que por sua vez vivencia
corporalmente as situações que lhe são propostas.
De acordo com Kwon, em um segundo momento a idéia de uma arte site-specific,
diretamente ligada ao conceitualismo e às artes processuais e seu levante contra os sistemas
de circulação da arte, irão buscar revelar os mecanismos através dos quais estes modelam a
produção e a experiência da arte. O principal mecanismo para isso é o aproveitamento, como
ponto de partida desta crítica, do próprio espaço institucionalizado para o qual as obras são
pensadas e onde estão inseridas fisicamente.
A emergência da instalação e das obras site-specific enquanto formatos experimentados
pelos artistas plásticos nos anos 1960 teve conseqüências diretas para a arte sonora. Antes de
Elementos da arte sonora
43
tudo, ao abolir a separação entre as artes do tempo e do espaço preconizadas pela cartilha
modernista, abriu a possibilidade da experimentação do som, meio e material necessariamente
temporal.
Mais que isso, o aspecto fenomenológico trazido à tona pelo minimalismo (e mais
adiante pela instalação) fará mais adiante com que a separação olho/ouvido não faça mais
sentido, criando campo para a exploração do espaço não como meio específico de uma
escultura autônoma feita para um observador ideal e descolado desta, mas como lugar onde o
observador e seus processos perceptuais se integram à obra em único sistema relacional,
através dos olhos, dos ouvidos, ou quaisquer outros sentidos e processos cognitivos
conjugados.
Finalmente, ao tirar a obra de arte da moldura idealizada e transparente do espaço
institucional e trazê-la para um mundo que a informa e que com ela se relaciona, a idéia do
site-specific cria o precedente para a exploração auditiva do espaço e sua ancoragem ao
contexto nas diferentes formas que verificaremos a seguir: através da exploração dos
fenômenos acústicos de algum lugar; da distribuição espacial do som em espaços que não
aqueles idealizados pela espacialização da música eletroacústica na sala de concerto (real ou
virtualizada); e da contraposição conceitual à carga simbólica de um determinado lugar onde
está inserida.
3.3. Videoinstalações
Para pensar as possíveis relações entre o campo mais expandido do cinema – aí
incluídas a videoarte e as videoinstalações – e a arte sonora, convém lançarmos mão da noção
de dispositivo conforme empregada por diversos críticos e pesquisadores do cinema
(PARENTE: 2007).
O modelo teórico do dispositivo cinematográfico clássico incorpora e interrelaciona
diferentes elementos constitutivos da experiência do cinema como forma de descrever um
território: o aspecto arquitetônico ou das condições de projeção (sala com assentos à maneira
do palco italiano, escura e isolada do exterior, com projetor colocado por detrás da platéia
imóvel); as tecnologias de captura e projeção de imagem (principalmente usando a película); e
a organização discursivo-formal do filme (visando a transparência ou a impressão de
realidade). Ainda que o cinema exportado por Hollywood tenha-se tornado a forma
hegemônica no ocidente, uma investigação da história do cinema expõe uma série de
Elementos da arte sonora
44
variantes a essa forma, algumas anteriores ao próprio estabelecimento da montagem
cinematográfica (como as experiências imersivas do cinema de atração do final do século
XIX).
A teórica francesa Anne-Marie Duguet aponta, dentre as formas que vão questionar o
dispositivo cinematográfico, as videoinstalações como sendo um caso especial. Elas seguem
uma trilha iniciada pela videoarte a partir da década de 1960 e vão complicar ainda mais as
relações entre os elementos constitutivos do dispositivo cinematográfico. Ao investigar um
conjunto de videoinstalações do período de 1969-1975, de artistas como Dan Graham, Bill
Viola, Bruce Nauman e Michael Snow, Duguet identifica um foco no próprio dispositivo
como forma de pôr em crise a representação. Ela vê uma raiz dupla para o interesse
despertado pelo vídeo no campo das artes plásticas nos anos 1960, e que levariam ao
desenvolvimento das obras dos artistas em questão: de um lado, colocam-se as questões da
Minimal Art, e de outro aquelas da arte conceitual. No primeiro caso, como vimos, a obra
perde a autonomia pressuposta pelos críticos modernos, e o foco desloca-se para a experiência
dela, de modo que a atenção não se fixa mais sobre o objeto mas sobre a situação; o
espectador encontra-se, assim, debruçado sobre sua própria atividade perceptiva. Já a arte
conceitual vai exigir o engajamento mental do indivíduo e deslocar a atenção antes devotada
ao objeto para a idéia ou o conceito que governam sua criação. Duguet aponta os métodos
específicos destas videoinstalações, nas quais, de diferentes maneiras, o próprio corpo do
espectador é mobilizado para a reflexão sobre o sistema de representação do cinema, seus
processos de produção de imagens, suas formas de recepção
(DUGUET: 1998).
Como veremos adiante, boa parte das instalações sonoras vai seguir caminhos bastante
similares, voltando-se para a exposição ou para a observação dinâmica de diferentes processos
de produção do som ao mesmo tempo em que este som é oferecido ao participante da obra. O
próprio caráter multimídia do vídeo se encarregou de freqüentemente incorporar o som como
elemento de grande importância nas videoinstalações, antecipando em grande medida as
investigações da arte sonora, e em alguns casos podemos argumentar que o som (seja o som
produzido pelos participantes ou pela instalação) é mais importante que a própria imagem nas
situações criadas, independentemente de a interação afetar diretamente o som ou não.
Elementos da arte sonora
45
Figura 8: He weeps for you (1976), de Bill Viola.
Alan Licht aponta que há uma estreita correlação entre os artistas da arte sonora e os
artistas da videoarte, e que muitos dos principais nomes da videoarte tiveram também
formação em música, como Nam June Paik, Bruce Nauman e Bill Viola
30
. Bill Viola traça um
parentesco físico entre os meios do som e vídeo, creditando a proximidade a um possível
determinismo tecnológico:
The video image is a standing wave pattern of electrical energy, a vibrating system
composed of specific frequencies as one would expect to find in any resonating
object (...) Technologically, video has evolved out of sound (the electromagnetic),
and its close association with cinema is misleading since film and its grandparent,
the photographic process, are members of a completely different branch of the
genealogical tree (the mechanical/chemical). The video camera, as an electronic
transducer of physical energy into electrical impulses, bears a closer original
relation to the microphone than to the film camera. (VIOLA apud LICHT: 2008)
Bill Viola produziria mais tarde trabalhos de arte sonora, mas mesmo as
videoinstalações mais conhecidas trazem um forte componente sonoro, e expõem os
processos de produção da imagem e do som a um só tempo. Em He weeps for you (1976)
31
,
uma tela exibe a imagem de uma gota d’água ampliada no telão, e no interior da gota o
30
Bill Viola era assistente de David Tudor, colaborando na montagem de Rainforest IV. Mais que isso, alguns
destes videoartistas produziriam eles mesmo trabalhos de arte sonora.
31
Em junho de 2008 havia um vídeo da obra disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=rBYWVY-
R9RU>
Elementos da arte sonora
46
participante pode ver sua própria imagem, dependendo da posição em que estiver. A gota em
formação é filmada em circuito fechado, e vai gradualmente aumentado, captada na ponta de
um tubo ligado a uma válvula, até pingar. Ao mesmo tempo em que a gota projetada e a
imagem do próprio participante desaparecem do telão, a gota real cai sobre um tambor
iluminado no chão da sala, cujo som é amplificado e processado com reverb. O ritmo lento e
o som grave, retumbante, produzido pela gota dão um tom marcial à instalação, que funciona
como metáfora da nossa própria fragilidade.
A relevância especial da videoinstalação para o repertório da arte sonora se deve ao fato
de esta aliar os jogos introduzidos pelas instalações e pelo minimalismo (entre sujeito, obra e
espaço), ao mergulho na revelação dos próprios processos de produção de imagem. Na arte
sonora, como veremos, tais métodos são equivalentes, mas deslocam o foco para a produção
do som no lugar da produção da imagem.
3.4. Artemídia?
Ao longo do final do século passado uma série de projetos artísticos híbridos entre
ciência, arte e tecnologia viria a surgir como resposta às profundas mudanças operadas na
sociedade pelas novas tecnologias, em especial as tecnologias digitais da informação, em suas
diversas variantes: imagens produzidas por computador, animação digital, instalações
interativas, filmes interativos, arte telemática, ambientes de realidade virtual, instalações
robóticas, game art e bioarte entre outros. A artemídia ou new media art não configura um
movimento em si, mas antes um gênero de produção artística – e geralmente não participa do
sistema comercial das artes plásticas, circulando em espaços próprios. No caso da artemídia,
os problemas abordados são mais aqueles pertinentes à própria tecnologia e a ciência do que
aqueles com que lidam, de maneira geral, os artistas contemporâneos informados pela história
da arte do último século.
Mas o pensamento da artemídia exerce de fato influência direta sobre a produção de arte
sonora? Pode-se argumentar, tomando determinadas definições de arte sonora, que parte
considerável desta tem forte ligação com as tecnologias recentes (CAMPESATO: 2007). Com
efeito, alguns artistas indicam o fato de a produção haver ganhado agilidade e flexibilidade na
passagem para as formas digitais de registro, processamento e reprodução do som, e a
digitalização permitiu também uma maior facilidade quanto à criação de efeitos sinestésicos,
como veremos adiante.
Elementos da arte sonora
47
Mas não parece o caso de influência direta: as tecnologias determinantes nas questões
exploradas pela maioria dos artistas sonoros são, mais que os meios digitais contemporâneos,
aquelas disponíveis ao longo da maior parte do século passado: estas já ofereciam a maioria
das possibilidades de gravação, manipulação e execução do som permitidas pelos meios
digitais. Parece-nos que a artemídia contribuiu para a arte sonora não como pensamento, mas
apenas através da incorporação de alguns de seus formatos – os recursos da interatividade
digital, imersivos e telepáticos servem de suporte aos discursos poéticos de uma fração do
repertório da arte sonora.
Pode-se afirmar, em todo caso, que a artemídia empresta seu campo de problemas a uma
parte ainda menor da produção de arte sonora. Neste caso, as obras investigarão questões
ligadas apenas às ciências e às especificidades dos suportes tecnológicos, e não os aspectos
discursivos, sociais e formais sobre os quais se debruçam os artistas plásticos há meio século.
Elementos da arte sonora
48
4. Elementos da experiência da arte sonora
Mesmo que as definições acerca do que seja propriamente a arte sonora sejam variadas,
podemos identificar um conjunto de características ou elementos presentes nas obras, sejam
eles técnicas, abordagens ou objetos de questionamento por parte dos artistas. Procuraremos,
a partir de agora, identificar aqueles que nos parecem ser os principais destes elementos, e
indicar de que forma cada um deles se liga aos formatos e às questões da música ou das artes
plásticas.
Para tanto, buscaremos compreender de que formas tais características se apresentam no
repertório da arte sonora. Apresentaremos obras selecionadas de artistas que podem ser
identificados como artistas sonoros dentro da acepção mais recente do termo, ou que por
exemplos tenham sido enquadrados em curadorias recentes que os descrevam como sound
artists. Muitas vezes, haverá antecedentes – historicizados ora sob a rubrica da história da
música, ora sob a história das artes plásticas – em que tais elementos ou características são
plenamente explorados, e em alguns outros casos não. De toda forma, procuraremos mapeá-
los, buscando desta maneira verificar de que formas isso que mais recentemente vem se
chamando de arte sonora trouxe novos formatos, encaixes ou perspectivas para as questões da
música e das artes plásticas, ou se apenas são repetidas estratégias anteriormente levadas a
cabo por músicos e artistas das décadas anteriores.
É importante notar que cada aspecto ou característica aqui descrito não pretende de
forma alguma ser exclusivo: as obras arroladas sob cada um deles normalmente exploram
diversos destes aspectos, isto é, uma obra que explora a visibilidade do processo não deixa de
explorar a espacialidade ou as possibilidades do site-specific. Apenas iremos ressaltá-los em
separado, de modo a buscar uma possível especificidade da arte sonora em cada um destes
aspectos, e facilitar a relação entre as experiências antecedentes e aquelas que vêm se
institucionalizando sob o rótulo recente da sound art. Da mesma forma, isso não quer dizer
que não haja outros elementos e estratégias presentes no repertório, apenas entendemos estes
aspectos sobre os quais discorreremos a seguir como sendo os mais relevantes.
4.1. Sobre o ouvido como articulador da experiência
Antes de nos debruçarmos sobre estes elementos da experiência na arte sonora, é
preciso fazer algumas anotações sobre as articulações entre a visão e a audição no que toca à
Elementos da arte sonora
49
experiência do espaço, normalmente associada apenas à visão no senso comum. Segundo a
crítica de arte sonora alemã Helga de la Motte-Haber, os avanços científicos ao longo do
século passado demonstraram que a divisão axiomática entre processos espaciais e temporais
é uma construção humana, e que a percepção espacial não depende apenas de uma capacidade
de abstração geométrica, mas sim de complicados processos cognitivos que integram
impressões visuais, auditivas e hápticas
(MOTTE-HABER: 1998, p. 213).
De um ponto de vista estritamente perceptual, se a visão tem o privilégio na mensuração
precisa do espaço e é capaz de colher informação sobre objetos e eventos a longas distâncias,
o ouvido é capaz de registrar outras formas de informação em um raio similar, dependendo da
situação. Mas no caso do ouvido, há a diferença de não haver a limitação a um estreito ângulo
de visão e a dependência de uma fonte de luz emitida ou refletida: em certa medida, podemos
enxergar no escuro e através das paredes com os ouvidos, percebendo inclusive as qualidades
do ambiente conforme a reflexão sonora. Além disso, o ouvido é capaz de perceber
movimentos muito mais imediatamente do que a visão, e mesmo o fato de nós e os mamíferos
ouvirmos o tempo todo, até durante o sono, tem certamente um papel preponderante na
sobrevivência destas espécies. Pode-se arriscar dizer que, em comparação com o olho, o
ouvido está ligado a níveis ainda mais imediatos e fundamentais da experiência humana.
Cabe notar também que o som se dá necessariamente através de eventos dinâmicos: não
há som em um mundo estático
32
, entrópico. O som resulta das vibrações mecânicas
produzidas naturalmente ou pelo homem e seus artefatos, e a escuta nos liga a estas
atividades: o som transporta o mundo externo para a nossa consciência
(BLESSER e
SALTER: 2007).
Teóricos de diferentes áreas indicam que, em nossa cultura dominada pela
visualidade, a experiência auditiva foi reprimida (SCHULZ: 2002, p. 14) ou teve sua
importância minada (BLESSER e SALTER: 2007), e Bernd Schulz assinala que nesta cultura,
informada por uma geometria euclidiana, a idéia de espaço regida pelo olho assemelha-se à de
uma caixa vazia, ao passo que “o ouvido nos coloca no centro de um reino dinâmico e cheio
de energia”, recuperando e estendendo em certa medida a perspectiva fenomenológica
introduzida pela arte minimalista (SCHULZ: 2002, p. 15).
No mesmo tom, Motte-Haber (2002, p. 34) chama a atenção para o fato de que a
audição é um sentido de longa distância como a visão, mas também de proximidade como o
tato e o olfato, e que portanto é capaz de criar a noção de proximidade e intimidade: como
32
O que não significa dizer que não se possa remeter, através do som, a uma stasis, que abordaremos na
subseção destinada ao tempo como elemento da arte sonora.
Elementos da arte sonora
50
estes dois últimos, está ligada à sensação
33
; ela coloca ainda que o ouvido (em conjunto com o
olho) cria um espaço subjetivo (por oposição a um espaço geométrico informado pela visão
apenas). É possível, por exemplo, criar a noção de um espaço pequeno e estreito ou a de um
espaço amplo apenas através do ouvido, e a música eletroacústica explorou isso
extensivamente ao longo da segunda metade do século XX.
4.2. Espaço
Podemos enumerar, dentre os modos de articulação das obras de arte sonora com o
espaço, três delas como sendo as principais: uma diz respeito à inserção da obra em um
determinado lugar, ou seja, ao contexto de sua experiência, seja este lugar um espaço natural
ou a arquitetura de um lugar construído – de toda maneira, a obra trabalha com algum tipo de
referência ao lugar específico em que se encontra; a segunda relaciona-se às propriedades
acústicas do lugar em questão, seja este um lugar pré-existente ou através da criação de uma
situação ou ambiente específico; e a última corresponde à espacialização do som, de forma
mais ou menos aproximada às experiências da música eletroacústica – aqui o processo é mais
o da construção de um espaço sonoro do que a referência a um contexto espacial/sonoro pré-
existente. Naturalmente, estas diferentes formas de inserção no espaço não se excluem
mutuamente, muito ao contrário: são concorrentes e muitas vezes se potencializam, como
buscaremos verificar.
4.2.1. Lugar/contexto
Um dos aspectos mais característicos das obras categorizadas recentemente como sound
art é o acento na relação com o contexto espacial de apresentação da obra, em modos
equivalentes àqueles explorados pelas artes plásticas a partir dos anos 1960: instalações,
intervenções urbanas; diferentes formatos articulados à arquitetura, ao ambiente e ao contexto,
mas de maneira geral ligadas à noção de uma arte site-specific. De maneira geral, aspectos
relativos ao contexto, ao site e à arquitetura serão apontados ou potencializados por elementos
sonoros da obra ou pela acústica do espaço em questão.
Uma contribuição fundamental para o pensamento em relação ao contexto da
experiência do som e de sua importância é a do compositor canadense R. Murray Schafer. A
33
Ou “sentimento”: feeling, na tradução inglesa que acompanha o original alemão.
Elementos da arte sonora
51
principal obra de Schafer, The tuning of the world
34
, foi publicada em 1977, e nela ele defende
a idéia de uma “ecologia acústica”. Esta consiste no estudo dos sons em relação à vida e à
sociedade que, segundo ele, é impossível em laboratório: apenas no local original é que se
pode observar os efeitos do ambiente acústico sobre as criaturas que nele vivem. A separação
do som de sua fonte ou causa original, permitida pelas tecnologias contemporâneas de registro
e reprodução do som, caracterizam uma descontextualização nomeada por Schafer como
“esquizofonia”.
Schafer buscava levar uma “consciência aural” ao grande público, e propunha uma série
de exercícios de “limpeza do ouvido” como forma de combater os efeitos da poluição sonora.
Um dos exercícios típicos de Schafer era o soundwalk, espécie de caminhada meditativa, na
qual o objetivo é manter um alto nível de atenção às informações sonoras do ambiente em que
se está fisica e perceptualmente presente. A abordagem de Schafer é holística, e sugere a idéia
do soundscape ou paisagem sonora como uma experiência ou situação composta pela
totalidade dos sons daquele ambiente, a ser investigada em seus menores detalhes. Schafer
busca reverter os efeitos da rápida mudança de uma paisagem natural de alta definição sonora
para uma paisagem industrial onde há uma superpopulação de sons que se misturam e se
confundem.
Pode-se dizer que Schafer transporta para o plano do som uma discussão sobre a divisão
cidade/campo, com uma valorização idealizada do segundo pólo. Nesta medida, por extensão,
Schafer seria um antípoda de Russolo e dos futuristas italianos (que, ao contrário, valorizam
positivamente os sons urbanos: de alto volume, velozes, cacofônicos e maquínicos, ligados ao
cenário urbano e industrial). Ao mesmo tempo, Schafer estaria diametralmente oposto à
cartilha da música concreta quanto à questão da desvinculação de um dado som de seu
contexto: escuta reduzida e experiência do som em si para Pierre Schaeffer, esquizofonia para
Schafer.
Com influência bastante direta do trabalho de Schafer, uma série de artistas passou a
realizar trabalhos, inclusive soundwalks, mas também várias formas de fonografia e de
instalações site-specific, onde a experiência mais ou menos direta da natureza através do
trabalho é a tônica, ou onde conversamente a obra vai inserir um dado sonoro em um
ambiente natural.
34
Livro posteriormente republicado como The Soundscape, usando o título original como subtítulo.
Elementos da arte sonora
52
Figura 9. Earth Tones (1992), de Bill Fontana
Alguns trabalhos vão mostrar uma afiliação mais direta com a land art (e com a arte
conceitual, no caso), como o Chamber Music #19 de Walter Marchetti, que é executada
andando em uma galeria com o chão coberto com 9 toneladas de sal. A aproximação com a
land art é também o caso de Earth Tones (1992), de Bill Fontana, no qual seis grandes alto-
falantes ficam permanentemente instalados, enterrados em um rancho na Califórnia. Na obra,
sons de baixa freqüência e infrassom capturados no Oceano Pacífico são executados através
dos falantes, fazendo com que a terra vibre, “ativada” de forma subliminar
35
.
Outra obra mais recente de Fontana, Harmonic Bridge, parte de princípios similares de
ligação com o contexto da obra, mas não usa o cenário rural. O artista microfonou e captou
vibrações da Millenium Bridge de Londres – tanto as naturais quanto as causadas por
passantes e automóveis – e as transportou, depois de uma série de transformações e processos
digitais aplicados em tempo real, para dentro da Turbine Hall da Tate Gallery e para dentro de
uma estação de metrô
36
.
Outros dentre os trabalhos mais ligados à exploração de uma paisagem sonora natural
usam o vento, como Aeolian Piano (1984), de Gordon Monahan: o artista estendeu longas
cordas e bordões de piano entre duas pontes em um sítio no interior do Canadá, e sobre elas
35
Ver: <http://www.resoundings.org/Pages/Earth%20Tones.html>
36
Ver: <http://www.tate.org.uk/modern/exhibitions/fontana/>. Há ali clipes em mp3 dos sons produzidos pela
instalação.
Elementos da arte sonora
53
colocou um piano de armário e outras cordas de piano, que produzem som em ressonância
com o vento (LICHT: 2007, p. 76). A instalação Música dos ventos do brasileiro Paulo
Nenflídio (2003)
37
é também um exemplo relevante deste tipo de instalação: um complexo
sistema traduzia cada volta de quatro cata-ventos colocados no topo da fachada do Museu de
Arte da Pampulha em sinais elétricos, que por sua vez comandavam motores que percutiam
cordas, gerando uma melodia guiada pelos ventos.
Alguns outros usam a fonografia para transportar uma paisagem sonora, pré-gravada ou
capturada em tempo real em um determinado lugar, para um novo contexto, muitas vezes a
galeria de arte, criando um efeito de sobreposição de dois espaços. A artista norte-americana
Maryanne Amacher vem fazendo isso desde a década de 1970. Em um dos exemplos, No
more miles (an acoustic twin) Telelink World No. 7 (1974), a artista microfonou uma agência
da locadora de veículos Budget Rent-a-car e transmitiu a paisagem sonora, reproduzida
através de múltiplos alto-falantes, no interior do Walker Art Center de Nova York, onde os
visitantes passaram a se encontrar cercados por eventos sonoros que aconteciam a quilômetros
dali.
Inúmeros outros artistas vêm criando nos últimos anos instalações site-specific em
moldes mais ou menos similares, aproveitando ou ligando-se a características próprias das
construções (e aqui portanto a arquitetura é um elemento explorado na mesma medida que o
contexto ou, de outra forma, a arquitetura é o contexto). Alguns fizeram instalações em
catedrais, outros em prédios comuns, explorando portas e janelas ou outras características da
arquitetura; algumas destas pressupõem interatividade, outras não; certas obras capturam e
amplificam ou reprocessam os sons do lugar, ao passo que outras vão ocupar o espaço com
sons concebidos e produzidos especificamente para aquele lugar. É este tipo de instalação,
talvez, aquele que vem se configurando como o formato mais comum de arte sonora nas
galerias e instituições.
37
Ver: <http://paulonenflidio.vilabol.uol.com.br/>
Elementos da arte sonora
54
Figura 10. Times Square, Max Neuhaus (1977)
Se no que se convencionou chamar sound art mais recentemente esta articulação com o
contexto é freqüentemente um dos principais aspectos das obras, não faltam por outro lado
predecessores que exploram os mesmos aspectos ao longo da segunda metade do século
passado, tanto na música como nas artes plásticas. As obras do compositor Max Neuhaus são
um bom exemplo disso: em que pese o fato de ele mesmo recusar o rótulo da sound art,
críticos como o próprio Labelle o incluem no conjunto dos primeiros sound artists.
Times Square, de 1977, consiste em uma trilha executada por um gravador oculto sob a
calçada da Times Square em Nova York, sem qualquer indicação, em meio àquele espaço
atravessado por 30 milhões de pessoas anualmente. Apenas se vê uma grade entre os blocos
regulares de concreto no chão, e dela sai uma rica textura sonora, criando uma espécie de ilha
dentro do largo, delimitada pela presença do som. O trabalho ficou em exposição contínua de
1977 a 1992, e foi reinstalado no mesmo local em 2002.
Elementos da arte sonora
55
Figura 11. Time Piece Beacon (2006), Max Neuhaus
De um ponto de vista exclusivamente aural e desvinculada do seu contexto, a peça de
Neuhaus não passa de uma massa sonora com variação mínima e pouco interesse intrínseco. A
peça pode inclusive ser tomada por desavisados que eventualmente o percebem como sendo
um acidente ou curiosidade acústica qualquer, portanto sequer ser percebida como música. No
entanto, se reancorada ao contexto, do ponto de vista musical ela leva ao paroxismo as
experiências de Cage em testar o acaso e o contexto da produção do som, trazendo toda a
confusão sonora do coração de Nova York para dentro da experiência da composição. Ao
mesmo tempo, como site-specific, intervém diretamente sobre o coração da cidade, criando no
raio em que é percebida uma nova experiência para aquele local, e demandando daqueles que
percebem a obra um novo olhar sobre a cidade à sua volta.
O mesmo Neuhaus tem também em exposição permanente em Nova York, no Dia Art
Center, o Time Beacon Piece. Uma vez por hora, em todos os recintos da galeria, uma
gravação de cinco minutos é disparada. Ao longo de toda sua duração, uma única textura
sonora vai ganhando cor e volume muito lentamente, de forma que mesmo em seu volume
máximo não seja abertamente percebido pelos visitantes. Ao fim dos cinco minutos de
gravação, o final é abrupto, fazendo com que o fundo sonoro se revele pela sua ausência
repentina.
Elementos da arte sonora
56
Figura 12. Visão externa de The Paradise Institute (2001), de Janet Cardiff e George Bures Miller
Em outros casos, espaços virtuais são recriados principalmente através do som. Aqui,
como no exemplo de Maryanne Amacher anteriormente apresentado, trata-se mais da
reconstrução de um site (real ou fictício) do que a ligação ao espaço físico onde é
experimentada a obra. Em The Paradise Institute (2002), os artistas canadenses Janet Cardiff
e George Bures Miller criaram uma instalação que mimetiza o ambiente escuro de um cinema,
mas em menor escala, incluindo a projeção em uma perspectiva simulada e os assentos da
platéia no andar de baixo. Ao mesmo tempo, os visitantes são convidados a utilizar fones de
ouvido, e neles a trilha é especialmente pensada para a configuração, dialogando mas ao
mesmo tempo não correspondendo diretamente a uma trilha mais tradicional de filme de
suspense: o som nos headphones simula, com toda a virtualização acústica apropriada e
enfatizada através de uma técnica de reprodução binaural
38
, situações próprias do ambiente de
cinema: um celular tocando na fileira de trás, os sussurros de uma companheira feminina ao
ouvido fazendo comentários sobre o filme e oferecendo pipoca
39
. Através do som e do
38
Forma de virtualização espacial sonora baseada em apenas dois canais, projetada para o uso em headphones.
Cria a ilusão da colocação de uma fonte sonora em um ponto específico do eixo vertical, além do
posicionamento no eixo direita-esquerda.
39
Há um vídeo da instalação disponível em
<http://www.cardiffmiller.com/artworks/inst/paradise_institute.html>
Elementos da arte sonora
57
ambiente instalativo em diálogo com o filme projetado, os artistas criam uma situação de
meta-cinema.
Figura 13. Villa Medici Walk (1998), de Janet Cardiff
Em obras que intitula audiowalks, a mesma Janet Cardiff recria uma versão dos soundwalks
de Schafer mas com o intuito de adicionar, à experiência do lugar atual, camadas poéticas.
Estas obras de Cardiff são apontadas por Lev Manovich como o melhor exemplo de seu
conceito “espaço aumentado”
40
. Em um exemplo, produzido para o jardim do castelo dos
Medici em Roma, um CD player portátil executa uma trilha onde se ouvem pombos
inexistentes e diálogos ficcionais que poderiam estar ocorrendo naquele espaço; na maior
parte do tempo, os efeitos sonoros são acrescidos de instruções da artista, guiando a
exploração do lugar (como “ande até a porta que está à sua esquerda, onde há uma escada de
pedra, e observe o bosque atrás do pequeno lago”, ou “prenda sua respiração até perder a
consciência”); em outros momentos, misturam-se à paisagem sonora os efeitos de cenas de
guerra que outrora provavelmente ocorreram ali, com tiros e canhonaços. Desta forma, a
artista consegue superpor ao espaço e tempo atuais outros tempos virtuais e novas
possibilidades ligadas àquele espaço.
40
Espaço físico com camadas de informação a ele superpostas, através do uso de tecnologias que difundam e/ou
recolham informação relativa a este espaço. (MANOVICH: 2004)
Elementos da arte sonora
58
4.2.2. Acústica
Every room has its own melody hiding there until it’s made audible
(Alvin Lucier apud LICHT, p. 47)
Muito ligadas às noções de contexto e de arquitetura, as características acústicas são
determinantes da experiência do espaço através do som, e foram exploradas por artistas de
diferentes épocas, mas talvez em menor grau pelos artistas sonoros mais recentes. O artista
plástico americano Michael Asher produziu uma série de instalações site-specific no final da
década de 1960 em que o foco recai sobre o aspecto acústico. Para a exposição Spaces,
acontecida em 1969 no MoMA de Nova York, diversos artistas buscaram produzir não
objetos, mas interferir diretamente sobre o espaço expositivo. A resposta de Asher à proposta
curatorial foi a produção de uma sala completamente esvaziada visualmente, totalmente
pintada de branco, mas cujas superfícies foram recobertas de modo a reduzir ao máximo a
reflexão sonora e a interferência de sons externos, aproximando-a de uma câmara anecóica.
Desta forma, Asher chamou a atenção dos visitantes não para a visualização de um objeto mas
sim para um vazio ou uma diferença acústica imanente ao próprio espaço criado (LABELLE:
2006, p. 88).
Alguns meses mais tarde, o mesmo artista desenvolveu outro site-specific acústico
removendo completamente as portas da galeria do Pomona College, criando ali uma espécie
de funil sonoro ao adicionar paredes e teto falsos ligando a entrada da galeria às duas salas de
exposição. Em intensidades diferentes, mas principalmente na segunda sala, todo o som
externo pôde ser ouvido: pessoas andando, carros passando e todo tipo de ruído característico
da rua diante da galeria. No entanto, na instalação de Asher, os visitantes estavam
espacialmente e visualmente deslocados daquela realidade que era experimentada
acusticamente (LABELLE: 2006, p. 90). É interessante ressaltar o fato de ser uma instalação
imersiva, mas totalmente acústica, trabalhando apenas elementos arquiteturais.
Elementos da arte sonora
59
Figura 14. Ishi's Light (2003), Anish Kapoor.
Artistas plásticos mais recentes tem explorado estas características acústicas de outras
formas: Anish Kapoor é um deles. Apesar de ele não ser normalmente listado entre os sound
artists, sua escultura Ishi’s Light (2003), da coleção da Tate Gallery de Londres, é um bom
exemplo, mesmo que boa parte do efeito da obra seja visual. O trabalho consiste em uma
concha de fibra de vidro coberta de laquê preto por dentro, e o visitante perde-se após entrar
nele, uma vez que a parede reflexiva e escura confunde o sentido visual de profundidade.
Além disso, o material e a forma envolvente da escultura proporcionam uma experiência
acústica muito diferente daquela da sala onde ela se encontra exposta, por conta da reflexão
acústica da sua superfície interna. A sensação é a de estar em um ambiente completamente
diferente de quaisquer ambientes conhecidos: em alguma medida, é a experiência
fenomenológica e o jogo perceptual do minimalismo levados ao paroxismo, ameaçando a
estabilidade e a consciência dos próprios processos de ouvir e ver.
Elementos da arte sonora
60
Já o artista alemão Carsten Nicolai explora características físico-acústicas que irão
determinar de outras formas a experiência do espaço. Em invertone (2007), uma sala é
revestida com painéis de espuma acústica, e dois grandes alto-falantes são dispostos um
defronte ao outro, emitindo ruído branco. Devido ao fenômeno do cancelamento de fase, o
som audível em uma região da sala (no ponto em que os dois dois alto-falantes estão
perfeitamente eqüidistantes) é quase nenhum, e completamente diferente daquele do restante
da sala onde se pode ouvir o ruído, criando também em alguma medida um paralelo com as
obras de artistas minimalistas, em que a experiência visual do espaço implicava um
envolvimento do corpo e da percepção do participante.
4.2.3. Espacialização do som
Helga de la Motte-Haber aponta que desde o início da modernidade metáforas
arquitetônicas vêm sendo usadas para descrever a música, e conversamente a arquitetura foi
muitas vezes classificada como “composição muda” (Goethe) ou “música congelada”
(Schelling). O artista norte-americano Bill Viola aponta que um cuidado judicioso sobre o
som já teve lugar privilegiado na história da arquitetura:
When one enters a Gothic sanctuary, it is immediately noticeable that sound
commands the space. This is not just a simple echo effect at work, but rather all
sounds, no matter how near, far or loud, appear to be originating at the same place
… Chartres and other edifices like it have been described as 'music frozen in
stone'… Ancient architecture abounds with examples of remarkable acoustic
design - whispering galleries where a bare murmur of a voice materializes at a
point hundreds of feet away across the hall or the perfect clarity of the Greek
amphitheaters where a speaker, standing at a focal point created by the surrounding
walls, is heard by all members of the audience (VIOLA apud LICHT: 2008, p. 41)
Pro outro lado, o arquiteto e artista sonoro austríaco Bernhard Leitner lamenta o descaso
com a experiência acústica na arquitetura moderna, e o caracteriza como exemplo de agressão
ao corpo humano típico do iluminismo
41
:
Modern building technology as well as building economics have indeed shown
almost total disregard for the fact that human beings need rooms with good, "live"
acoustic qualities. I am not talking about technical means of sound proofing and the
like. Take the following solutions which are typical for our civilization: people are
buried in rooms built out of concrete, and at the same time we are developing
41
Ainda que haja uma preocupação técnica com a acústica em projetos para situações arquitetônicas especiais,
como salas de concerto ou restaurantes, há arquitetos que propõem uma reorganização das prioridades da
prática em geral, propondo o que chamam de “arquitetura aural” como forma de rehumanizar a relação entre
o homem e o espaço construído. Mais informações em BLESSER e SALTER: 2007.
Elementos da arte sonora
61
highly sophisticated stereo and quadro hifi technologies to allow some sounds to
come alive in these spaces. In all the theory of modern architecture we find very
little or nothing about the relationship of sound, space, and body. The main concern
has been, as we all know, to use architecture and town planning as a means of
resolving social conflicts and problems. But even this effort was essentially
dominated by the powerful hostility with which the Enlightenment regarded the
human body. (LEITNER: 1998, p. 293)
Para Leitner, “é o som que dá ao espaço o seu tempo”, e cita o Taj Mahal, com seu
domo de 20x26 metros, como exemplo de construção em que o som é parte integral da
experiência do tempo: devido aos materiais duros e polidos utilizados, às formas e à massa
das paredes, um som ali dura até 28 segundos depois do fim da emissão na fonte, criando um
efeito de anulação do tempo ou de uma remissão ao eterno (LEITNER apud
TRABER: 1998, p.
293
). O pensamento sobre a acústica é ali, portanto, parte integral do projeto arquitetônico.
Leitner aponta ainda que vivemos um momento especial em relação ao espaço audível,
uma vez que pela primeira vez na história é possível separar a experiência acústica da
arquitetura. Se por um lado sempre houve técnicas para minorar a reflexão dos ambientes com
o uso de cortinas, tapetes e forros, somente recentemente é que se pôde realizar o contrário: já
é totalmente corrente, nas técnicas de gravação e tratamento de som, a virtualização de um
ambiente através do uso de um efeito construído de reverberação (uma vez que nas gravações
em estúdio as características de ambiente do som são idealmente eliminadas como forma de
permitir maior controle e menor ruído).
Ao longo do século passado, como já vimos, as tecnologias de gravação e reprodução
do som permitiram que se descolasse os sons do momento e do lugar em que são gerados,
possibilitando ao material sonoro uma flexibilidade e uma desconexão das fontes até então
inexistentes, e a música concreta é um exemplo precoce da exploração desta potência. Mais
adiante, no final do XX, sistemas computadorizados viriam permitir um controle preciso da
colocação espacial e temporal do som, seja ele gravado ou gerado eletronicamente,
permitindo a criação de espaços imateriais, construídos apenas através do som (MOTTE-
HABER: 1998, p. 13). Ou, como sugere Leitner, as tecnologias permitem hoje que o som
funcione como material estrutural para uma arte espacial.
Elementos da arte sonora
62
Figura 15. Immaterial Vault (1975), de Bernhard Leitner.
Como artista sonoro, Leitner explora desde a década de 1960 diferentes formas de
espacialização com vistas a criar, segundo ele, “objetos áudio-espaciais” ou “arquiteturas
sonoras”. Apesar de sua preocupação recair principalmente sobre a presença espacial do som
e de seus estudos iniciais serem bastante simples visualmente, o artista considera o aspecto
visual de suas obras parte integral da experiência aural (DRECHSLER: 1998, p. 2). Se por um
lado as experiências de Stockhausen, Xenakis e Varèse começaram um pouco antes, por outro
lado tinham intenção diferente: a idéia era a de uma composição musical na qual a colocação
espacial fosse um dado a mais, mesmo que integralmente presente nas performances (e a
favor dessa idéia de uma importância secundária da espacialização, pode-se argumentar que,
de maneira geral, as obras foram também registradas e publicadas em reduções estereofônicas
com o assentimento dos compositores). No caso de Leitner, a situação é o inverso: ainda que a
composição das trilhas executadas não seja dissociável das obras, um registro puramente
sonoro em dois canais não faz qualquer sentido. Neste caso, o artista subordina a escolha dos
tipos de sons ao projeto de espacialização, e por isso mesmo freqüentemente os sons são
Elementos da arte sonora
63
espaçados e consistem em cliques curtos e agudos, uma vez que as freqüências mais altas
favorecem a percepção espacial do som. Com estes e outros sons, Leitner desenha,
controlando os canais independentes de dezenas de alto-falantes, diferentes “formas” que se
movimentam no espaço em torno dos participantes.
Figura 16. Sound Chair, (1975-1991) de Bernhard Leitner
Em outros trabalhos, Leitner explora a percepção do som nas diferentes partes do corpo,
e produz assentos e cadeiras que permitem experimentar a espacialização não somente através
dos ouvidos mas através das pernas, dos braços, da bacia e da nuca. Nas trilhas, diferentes
sons são distribuídos ao longo do tempo para as partes do corpo em contato com o
“instrumento” construído para a execução da obra.
Elementos da arte sonora
64
Figura 17. Forty-Part Motet (2001), Janet Cardiff, na capela do MACBA de Barcelona
O emprego do som nas instalações da artista canadense Janet Cardiff atua em diferentes
níveis. Forty-Part Motet (2001), já instalado em diferentes museus ao redor do mundo e mais
recentemente também na capela do Museu de Arte Contemporânea de Inhotim (MG), consiste
no registro, em canais separados, da performance de um coral. A peça escolhida é um moteto
escrito por Thomas Tallis para quarenta vozes em 1573, e Cardiff as dispôs em círculo de
modo a reproduzir uma distribuição espacial próxima daquela de uma situação de execução
original, empregando quarenta alto-falantes. Além do paradoxo conceitual, trazido pela
situação que evoca uma experiência de escuta de séculos atrás usando tecnologias recentes, o
trabalho permite um exame espacial desta disposição das vozes independentes. Neste sentido,
projeta para o participante um sistema de experiência do espaço equivalente às propostas
desenvolvidas por artistas plásticos a partir dos anos 1960, nas quais o jogo entre a instalação,
seu corpo e sua posição no espaço constituem parte integral do trabalho.
Elementos da arte sonora
65
Figura 18. Projeto de Drive In Music (1967), de Max Neuhaus.
Outro exemplo de utilização do dado espacial em articulação com o som é a obra Drive
in music (1967), de Max Neuhaus, onde o elemento conceitual também é óbvio. Para o
trabalho, o compositor instalou 20 transmissores de rádio de baixa potência ao longo de um
trecho de 600 metros em uma avenida em Buffalo, Nova York. Usando uma única freqüência
comercial, Neuhaus enviou o sinal de diferentes sons para os transmissores, numa
performance usando osciladores controlados em resposta a situações ocorridas no ambiente,
mas sem amplificar o som nas ruas: era necessário um rádio próximo a um transmissor para
que se pudesse sintonizar e ouvir o trabalho. Como resultado, os motoristas que por ali
passavam capturavam em seus rádios diferentes trilhas, variando de acordo com seu trajeto e
sua velocidade. Segundo o próprio compositor, este e outros trabalhos seus “supõem um papel
ativo da parte dos ouvintes, que colocam uma estrutura sonora estática em movimento ao
passarem através dele”
42
.
4.3. Visibilidade dos processos de produção do som
Um dos elementos mais presentes no repertório de arte sonora é a visibilidade do
processo de produção do som, ou diferentes formas de articulação com estes processos e sua
visibilidade. De um lado, este aspecto está relacionado ao engajamento dos mecanismos da
percepção de um visitante: ele é confrontado, de diferentes formas, com os próprios métodos
42
Ver: <http://www.max-neuhaus.info/soundworks/vectors/passage/>
Elementos da arte sonora
66
de produção daquele som que percebe, ou, no mínimo com os alto-falantes que o emitem.
Dois artistas freqüentemente destacados em exposições e críticas sobre arte sonora são o
norte-americano Christian Marclay e o coletivo brasileiro Chelpa Ferro. No repertório de
ambos encontramos trabalhos onde o acento é claramente no aspecto conceitual, e nos quais
ao mesmo tempo o principal veículo ou o principal foco da reflexão proposta é o som, mas
sobretudo através da visibilidade dos processos de sua produção.
Figura 19. Guitar Drag (2000), de Christian Marclay
Christian Marclay é considerado um dos pioneiros na utilização do toca-discos como
instrumento musical, e se apresenta regularmente sozinho ou em parceria com músicos do
experimentalismo mais pop americano como John Zorn e a banda Sonic Youth. Ao mesmo
tempo, seus objetos, vídeos e performances com toca-discos vêm tendo boa acolhida nas
últimas décadas entre galerias e instituições de arte. Talvez a produção mais marcante de
Marclay sejam os seus “discos reciclados”, que compreendem trabalhos datados de 1980 a
1986. Os trabalhos consistem em quebrar ou cortar discos de vinil para depois juntar e colar
cacos de diferentes discos, formando um novo disco. O resultado são discos com fatias de
Elementos da arte sonora
67
diferentes cores, que são colocados para tocar em seguida nas pick-ups de Marclay. Ainda que
produzidos com vinil e cola em lugar de tecnologias digitais, o som resultante da execução
remete a samples caóticos, alternando a cada fração de segundo os trechos dos diferentes
discos originais emendados. A atitude iconoclasta traduz a um só tempo – em discos físicos e
em sua sonoridade – o ideário do pastiche; e ao mesmo tempo incorpora os discos enquanto
símbolos dos meios de comunicação de massa, duas das mais referenciadas características da
arte pós-moderna. Não por acaso, os trabalhos remetem à indeterminação preconizada por
Cage.
No vídeo Record Players (1983)
43
, diversas pessoas batem, quebram e pisoteiam vinis,
produzindo uma cacofonia de ruídos; em outro, Guitar Drag (2000)
44
, uma guitarra ligada a
um amplificador é arrastada por um carro através de estradas de terra do Texas, produzindo
uma gama de sons inusitados no processo. Assim, seja através de performances com os vinis
ou em vídeos, Marclay confronta o espectador com a visibilidade de seus métodos originais
de produção do som.
Figura 20: Totó Treme-Terra (2006), Chelpa Ferro
O grupo brasileiro Chelpa Ferro trabalha com estratégias similares. Em grande parte das
obras, objetos prosaicos descolados de seu ambiente normal servem de fonte à geração de
43
Trecho do vídeo disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=vCeK5vNZepI&NR=1>
44
Trecho do vídeo disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=v_1WhMo8Ke0>
Elementos da arte sonora
68
som, normalmente através de processos que envolvem alguma tecnologia sonora, ou
freqüentemente alguns motores. O que chama a atenção é, além da potência de geração de
som revelada em cada um, o deslocamento destes objetos do dia-a-dia, fazendo com que cada
um seja quase um readymade duchampiano sonoro. Uma ligação facilmente perceptível
destes trabalhos é com os trabalhos cinéticos do suíço Jean Tinguely, cujas instalações
tomavam como matéria-prima sucata e objetos encontrados – em sua maioria, estas
instalações tinham no som gerado a partir de seu movimento uma parte importante e
indissociável da obra, como na série Reliefs méta-mécaniques (1954-55) ou em Homage to
New York (1960), ou ainda em Réquiem pour une feuille morte (1967).
Figura 21: Relief méta-mécanique de Jean Tinguely
Elementos da arte sonora
69
Figura 22. Nadabrahma (2004), Chelpa Ferro.
Na obra do Chelpa Ferro, outro exemplo destes trabalhos conceituais/processuais é
Nadabrahma (2004), apresentado na 26ª Bienal de São Paulo. Neste trabalho, galhos de
árvores secos são presos a motores que os fazem tremer quando um visitante dispara os
motores através de um pedal, criando uma narrativa rítmica ao mesmo tempo em que seu
movimento atrai os visitantes do espaço expositivo; ao mesmo tempo a reprodução do som do
vento balançando as folhas das árvores dentro de uma galeria cria um forte efeito pelo
movimento de recontextualização. Também serve de exemplo o Totó Treme-Terra (2006), em
que uma mesa comum de totó (ou pebolim) tem acopladas a si enormes caixas acústicas e
trinta microfones. Ao usarem a mesa, os ruídos produzidos pelos visitantes/jogadores são
processados e amplificados. Outro exemplo ainda é o Jungle Jam, em que cerca de duas
dúzias de motores de máquinas de costura adaptados fazem sacos plásticos e outros pequenos
detritos girar e bater na parede da galeria. Cada um deles gera uma trepidação de sonoridade
diferente, e são todos cuidadosamente orquestrados, criando padrões rítmicos e uma narrativa
musical. Em todos os casos, é fundamental o traço dado pela revelação dos diferentes
mecanismos de produção do som.
Elementos da arte sonora
70
Figura 23. Nympheas (2006), de Paulo Vivacqua
Outro exemplo de artista brasileiro que trabalha com o processo de produção do som em
seus trabalhos é Paulo Vivacqua. Em Nympheas (2006), por exemplo, pequenos tweeters
sustentam camadas de placas de vidro, e emitem sons eletrônicos produzidos especialmente
para a trilha multicanal da obra. A instalação utiliza a área ocupada pelas placas de vidro
como metáfora de um lago, no qual as ninféias seriam representadas, visualmente e
auditivamente, pelos alto-falantes. Segundo Vivacqua:
Assimilo o equipamento de som em vários trabalhos como elemento visual e
estético. Para isto trato de desconstruir e apresentar seus componentes, fios,
falantes, amplificadores, circuitos etc, como elementos formais da composição,
deslocados de sua origem meramente funcional. O próprio alto falante pequeno de
2-1/4”, o qual uso extensivamente na construção dos objetos escultóricos, é um
elemento estrutural e fundamental na composição destes. O alto-falante (de modelo
genérico mostrado fora da caixa de som) pode ser visto como um ready made com
a peculiaridade de que emite som, ao mesmo tempo apresenta-se como elemento
gráfico de um ponto que, ordenados em série e ligados aos fios, assemelham-se, em
seu conjunto, a um circuito, uma partitura ou código, por exemplo.
O deslocamento da função de seus componentes, faz com que o conhecido
aparelho de som doméstico (o “sound system”, que se popularizou na década de
70) seja exposto em seu aspecto de fetiche, como um objeto que traz uma aura e
nos fascina, como o reduto de uma transcendência. A tecnologia, que nos rodeia e
encanta em nosso dia a dia com magia e frieza de suas formas, se apresenta como
uma espécie de entidade desconhecida que necessita de um nome para ser melhor
compreendida. (VIVACQUA: 2006)
Elementos da arte sonora
71
Figura 24: The box with the sound of its own making (1961), de Robert Morris
Um dos melhores exemplos de obra processual na história das artes plásticas como um
todo é The box with the sound of its own making (1961), de Robert Morris. O trabalho, que
vemos como um projeto pioneiro de arte sonora, é uma caixa cúbica de madeira que levou
aproximadamente três horas para ser construída pelo artista. Os sons de todo o desenrolar da
construção, com marteladas e ruídos de serragem e os momentos mais silenciosos de
mensuração, foram registrados em fita magnética. Ao final da construção da caixa, o gravador
foi colocado dentro dela, e esta foi selada, com o som sendo executado em loop em seu
interior. A caixa, mesmo sendo visualmente um objeto inerte e fechado, revela pelo som seu
próprio processo de construção.
Elementos da arte sonora
72
Figura 25: À bruit secret (1915), de Marcel Duchamp
Retrocedendo ainda mais, podemos encontrar nas artes plásticas outros trabalhos que
vão explorar de maneira conceitual o som e a visibilidade do processo (ou sua ocultação). Um
lado pouco lembrado do trabalho de Duchamp é seu trabalho com o som e com a música, em
diversos níveis. Um exemplo bastante significativo da articulação entre a produção do som e a
visibilidade deste processo é À bruit secret (1916), executado em colaboração com Walter
Arensberg. Trata-se de um readymade em que duas placas de metal presas por parafusos
tampam os dois extremos de um novelo de barbante. No interior do tubo do novelo, Arensberg
colocou um objeto e não revelou a Duchamp qual era, por determinação do próprio. As placas
Elementos da arte sonora
73
têm inscrições misteriosas e sem sentido claro, que misturam inglês e francês. De toda forma,
o trabalho é destinado à interação: deve ser balançado para que o objeto em seu interior faça
barulho. Desta forma, Duchamp lançou mão do som para confrontar a impossibilidade de
saber qual objeto é à óbvia (mas invisível) materialidade do objeto, dada por sua presença
sonora no interior do readymade.
Figura 26. Participation TV (1963), de Nam June Paik
Posteriormente, diferentes instalações relevantes na história das artes plásticas vão
investigar de forma mais direta os processos de produção do som. Alguns dos trabalhos
pioneiros de Nam June Paik, originalmente ele mesmo um compositor de formação, são bons
exemplos do emprego do som em videoinstalações, antecipando em muito algumas das
questões sobre as quais a arte sonora se debruça: em Participation TV (1963), o sinal de um
microfone oferecido ao participante é convertido em sinal de vídeo e exibido em um monitor
de TV. Dependendo do volume e das características do som ambiente ou produzido pelos
visitantes, o conjunto de linhas em movimento exibido pelo monitor se altera em tempo real,
criando uma situação interativa de “visualização” do som, ou uma situação de efeito de
sinestesia.
Elementos da arte sonora
74
Figuras 27 e 28. Schallplatten-Schaschlik (1963) e Random Access Music (1963), de Nam June Paik
Paik tem outros exemplos de instalações interativas simples da mesma época, também
focadas nos processos de produção do som, mas mais lo-tech e mais afastados do vídeo. Em
Schallplatten-Schaschlik (1963), o participante é convidado a experimentar com uma agulha
sobre diferentes discos empilhados em eixos verticais; em Random Access Music (1963), um
cabeçote de gravador é usado pelos visitantes para, movendo-o horizontalmente, ouvir as fitas
magnéticas estendidas como um quadro na parede.
Examinando antecedentes na história da música, é interessante assinalar também
exemplos de conceituais como o Pendulum Music de Steve Reich, o I am sitting in a room de
Alvin Lucier e o Poème Symphonique pour 100 métronomes de Iannis Xenakis. Todos eles,
como os exemplos das artes plásticas e da videoinstalação, se apóiam na revelação de seus
próprios processos de produção. Os três trabalhos, nos parece, não se distanciam das
estratégias experimentadas por artistas mais contemporâneos – apenas foram historicizadas
dentro do campo da música, e curiosamente são desconhecidos por boa parte dos artistas
plásticos contemporâneos.
Elementos da arte sonora
75
Figura 29. Apresentação de Pendulum Music no Whitney Museum em 1969, com Bruce Nauman, Richard
Serra, Michael Snow e James Tenney prestes a soltar os microfones, e Reich ao centro.
Música processual, instalação e performance a um só tempo, em Pendulum Music
(1968), de Reich, quatro microfones ficam pendentes, suspensos por fios; seu sinal é
direcionado para alto-falantes amplificados aos quais estão conectados; executantes os soltam
de um ponto alto, e seu movimento pendular os leva passar diante dos alto-falantes e criar
uma breve microfonia a cada passagem; os movimentos cíclicos dos três microfones
combinados criam fases em que os sons se encontram e desencontram; gradualmente a
duração dos períodos de microfonia aumenta até que os microfones parem, por força da
gravidade, diante dos alto-falantes, criando uma microfonia constante; neste momento os
microfones são desplugados.
Reich, que vê esta obra como uma exceção em meio à sua produção musical, descreveu
a situação em que foi criada a obra em uma entrevista concedida em 2000:
I went up to Boulder to collaborate with a friend of mine, William Wylie, who's a
painter. We were trying to put together a 'happening' with sculpture, black light.
While we were working on that, Bruce Nauman, who was a student of Wylie,
stopped by. (...) I had one of these Wollensack tape recorders (...) I had holding the
microphone, which was plugged into the back of the machine so it could record.
The speaker was turned up. Being out West, I let it swing back and forth like a
lasso. As it passed by the speaker of the machine, it went 'whoop!' and then it went
away. (...)
Sobre a obra concluída, ele diria, na mesma entrevista:
It's the ultimate process piece. It's me making my peace with Cage. It's audible
sculpture. If it's done right, it's kind of funny.
Elementos da arte sonora
76
In my earlier days, I was involved with a lot of visual artists and the context for my
work was art galleries and museums. This was definitely such a piece. The work
of Richard Serra was like that where he would have sheets of lead propped up
against the wall by other sheets of lead. What you see is what you get. This piece
does that and hopefully, its effect is kind of funny at the same time
45
.
Em outras composições suas, mesmo sem uma instalação que explicite o processo
visualmente, o sistema subjacente à música é simples e pode ser inferido pela audição, como
em Clapping Music (1972) caso em que um mesmo motivo ao longo de uma peça é
ligeiramente deslocado (antecipando uma colcheia a cada repetição, neste exemplo). Este foco
sobre o processo é apontado por certos críticos musicais como sendo o principal traço do
minimalismo em música, como vimos anteriormente.
Figura 30. Ligeti preparando o Poème Symphonique (for 100 metronomes) (1962)
Outro exemplo de música processual notória, com estratégia não muito distante daquela
de Pendulum Music, é o Poème Symphonique (for 100 metronomes) composto por György
Ligeti em 1962, época em que trabalhou com o Fluxus: 100 metrônomos mecânicos são
disparados simultaneamente, em andamentos diferentes, criando uma malha de ruído
constante; aos poucos a corda de alguns vai acabando, revelando fases e texturas diferentes,
até que com poucos metrônomos funcionando há uma polirritmia mais clara; quando acaba a
45
Steve Reich on Pendulum Music (entrevista). <http://www.furious.com/perfect/ohm/reich.html>
Elementos da arte sonora
77
corda do último metrônomo a peça se encerra. Além do componente conceitual, o trabalho
tem um forte apelo visual, dado pelo movimento descompassado dos pêndulos dos cem
metrônomos utilizados.
Alvin Lucier, compositor norte-americano integrante do grupo experimental Sonic Arts
Union, também produziu diversas obras com este caráter processual no final no final dos anos
1960 e nos 1970. Sua mais célebre composição é I am sitting in a room (1969), que consiste
em um texto lido por ele em voz alta, gravado em fita magnética e reprocessado de forma
cumulativa. Abaixo, o texto integral:
I am sitting in a room different from the one you are in now. I am recording the
sound of my speaking voice and I am going to play it back into the room again and
again until the resonant frequencies of the room reinforce themselves so that any
semblance of my speech with perhaps the exception of rhythm, is destroyed. What
you will hear, then, are the natural resonant frequencies of the room articulated by
speech. I regard this activity not so much as a demonstration of a physical fact, but
more as a way to smooth out any irregularities my speech might have.
A gravação foi reproduzida em alto-falantes, no quarto em que foi gravada, e gravada
novamente incorporando as ressonâncias naturais do ambiente, e com esta gravação foi feito o
mesmo, e assim sucessivamente. Inicialmente algumas freqüências são acentuadas, mas
gradativamente a voz de Lucier se torna inaudível, restando dela apenas um ritmo e uma
massa de tons contínuos gerados pelas freqüências ressonantes acentuadas cumulativamente.
Desta forma, a revelação das propriedades acústicas também é um componente importante do
trabalho. Além de o texto ser a própria descrição do processo, a transformação gradual da voz
de Lucier gravada é também a cura da gagueira que afeta sua fala e que se ouve na narração,
conforme o próprio texto coloca (“a way to smooth out any irregularities my speech might
have”).
Elementos da arte sonora
78
Figura 31. Alvin Lucier apresentando Music for a solo performer (1965)
Neste mesmo espírito de investigação de fenômenos físicos e acústicos, Lucier compôs
Music for Solo Performer (1965) na qual usa um eletroencefalógrafo para captar as ondas alfa
de seu cérebro, que por sua vez são amplificadas e reproduzidas em alto-falante. Em Vespers
(1969), executantes equipados com osciladores portáteis, gerando ondas em forma de pulso,
exploram as características acústicas de um determinado ambiente, criando um mapa acústico
do ambiente e dos objetos nele.
Lucier compôs ainda Music On a Thin Long Wire (1977), lançada em LP mas também
exibida como instalação em muitos museus e galerias em todo o mundo: um longo fio é
estendido entre duas mesas, e as pontas do fio conectadas a um amplificador que recebe uma
onda senóide produzida por um oscilador; um eletroímã colocado em uma das pontas, com o
campo magnético perturbado pelo sinal amplificado do fio, Põe-no em movimento, fazendo-o
vibrar; e microfones de contato amplificam o som produzido por esta vibração do fio,
mostrando diferentes harmônicos produzidos pelo fio, por suas imperfeições, e pelas
interferências no ambiente ao longo no tempo; a presença visual do fio é acentuada através da
iluminação, de diferentes formas. Apesar do aspecto instalativo, esta obra, assim como as
outras de Lucier, foi gravada e distribuída em LP. O pedido de copyright da composição, no
entanto, foi negado ao autor pela biblioteca do congresso americano, sob o argumento de ser
um fenômeno natural, não sujeito à proteção de direitos do autor.
Elementos da arte sonora
79
Acreditamos ter demonstrado que em boa parte do repertório da música, das artes
plásticas e da produção recentemente categorizada como arte sonora, a visibilidade do
processo de produção é um elemento especialmente relevante, e que as formas através das
quais os trabalhos de arte sonora vão abordar isso estão presentes nos exemplos que lhes
antecedem.
4.4. O tempo na arte sonora
As questões ligadas ao tempo vêm sendo um dos focos de investigação da arte sonora,
de diferentes maneiras, apesar de que, como já vimos, há uma definição simplista da produção
mais recente de arte sonora que a classifica como “sons organizados no espaço”, por oposição
a “sons organizados no tempo” (noção à qual corresponderia a música e apenas ela, ao menos
dentro desta visão dialética).
É de fato interessante assinalar a maneira particular como o tempo estrutura, nos níveis
mais fundamentais, a música das tradições ocidentais. Na introdução à coletânea de textos
Resonanzen, Bernd Schulz cita o compositor e maestro Hans Zender, que defende que uma
série de deformações à percepção auditiva foi causada pelas tradições musicais: estas teriam
reprimido a capacidade natural de um ouvir menos mediado por linguagens rígidas. Asica
clássica desenvolveu, segundo Zender, através do uso da faculdade da memória e da repetição
freqüente de formas idênticas ou similares ao longo do tempo, uma espécie de objectificação
das formas sonoras. No entanto é possível, aponta ele, lançar mão do nosso aparato auditivo e
cognitivo de forma diferente, de maneira que nenhuma identificação interna se constitua no
processo. Schulz aponta isso como um movimento no sentido contrário da memória: em
direção ao esquecimento, e por conseguinte, ao aqui e agora. Isto ecoaria, segundo ele, o
conceito de indeterminação e a equivalência de som e ruído de Cage (SCHULZ: 2002, p. 14).
O trabalho de 9 beet stretch (2002)
46
, do artista sueco Leif Inge, age diretamente sobre o
tempo, e consiste no processamento eletrônico de uma gravação da nona sinfonia de
Beethoven, fazendo com que esta se estenda por 24 horas, sem alteração nas alturas, e sem
aliasing
47
perceptível introduzido. Através do processo, o discurso musical ao qual estamos
acostumados transforma-se em uma textura fluida com lentíssimas alterações ao longo do
tempo, como uma música minimalista levada ao paroxismo, e o trabalho é transmitido em
46
Disponível em: <http://www.expandedfield.net/>
47
Ruído residual que normalmente é introduzido quando a velocidade de uma gravação (ou mais propriamente a
sampling rate ou freqüência de amostragem) é reduzida por meios digitais.
Elementos da arte sonora
80
webcast pela internet 24 horas por dia, sem interrupção. A tensão reside no confronto entre a
idéia musical do concerto ao qual estamos acostumados, e o novo som, aparentemente
completamente desconectado, que ouvimos
48
. Ao mesmo tempo, como em exemplos
anteriores na videoarte
49
, este tipo de uso do tempo coloca em questão o próprio formato do
cinema, da galeria e da experiência mais comum da audição, uma vez que é praticamente
impossível acompanhar a peça em sua duração inteira.
É importante relembrar que foram as tecnologias de gravação que permitiram, ao longo
do século XX, criar uma separação entre a emissão e a reprodução de um som, desvinculando-
a de sua fonte não só no espaço, mas também no tempo. Intimamente ligada à exploração do
contexto, uma forma de investigação sobre o tempo freqüente na arte sonora é o uso da
informação sonora para contrapor um momento espaço/temporal a outro.
Artistas da videoarte como Dan Graham lançaram mão desta articulação de forma
equivalente, mas usando o vídeo, como em Time Delay Room (1974)
50
; e o próprio Graham
viria a fazer uso do próprio som para a obtenção deste efeito em Yesterday/Today (1975)
51
: na
obra, um monitor exibe em tempo real as imagens de um ambiente de escritório, mas a trilha
reproduzida foi gravada no mesmo local, na véspera, gerando um lag de 24h entre imagem e
som.
48
Stockhausen já havia feito experiência semelhante em Hymnen, onde a Marsellaise é ralentada a um oitavo de
sua velocidade original – mas aparentemente a tensão conceitual, aqui não foi explorada.
49
No campo da videoarte há correspondentes bastante diretos, em especial o 24 Hour Psycho de Douglas
Gordon, no qual o filme Psicose, de Hitchcock, é estendido também por 24h.
50
Ver: <http://www.medienkunstnetz.de/works/time-delay-room/>
51
Ver: <http://www.medienkunstnetz.de/works/yesterday-today/>
Elementos da arte sonora
81
Figura 32. Torre do relógio do MASS MoCA, onde foi instalado o Clocktower Project de Christina Kubisch
(1998)
Nos trabalhos mais diretamente relacionados como sound art, há alguns exemplos que
consistem basicamente no uso do som para recuperar um tempo passado, evocando uma
paisagem sonora perdida através de uma trilha registrada (ou recomposta), reproduzida no
espaço de experiência da obra. Um dos exemplos é o Clocktower Project (1998) de Christina
Kubisch, produzido para o MASS MoCA de Massachussets (EUA), museu instalado onde
outrora havia uma fábrica. Na torre do prédio do museu, Kubisch registrou sons produzidos
por ela com um sino hoje desativado, mas que marcou a paisagem sonora do lugar por mais
de um século. Percutindo-o, recuperou sua presença naquele contexto espacial.
Adicionalmente, o som é afetado por sensores de luz que alteram filtros de freqüência em
função da iluminação solar. No mesmo museu e na mesma época, Ron Kuivila executou obra
semelhante, visando reproduzir no interior e no exterior do prédio os sons da fábrica quando
ainda ativa
52
.
Os tempos longos ou repetidos, anulando as construções musicais mais comuns no
ocidente, são apontados por alguns como característica fundamental da arte sonora mais
recente. Lilian Campesato aponta que “talvez a característica mais saliente do conjunto de
obras da arte sonora seja o tratamento dos elementos sonoros no tempo”, e que se na música
os tempos longos permitem a construção de narrativas complexas, mas por outro lado exigem
“um acompanhamento linear (...) do discurso”, na arte sonora o tempo é “geralmente
52
Ver: <http://ps-ca-web-02.artnet-web.artnet.com/magazine_pre2000/reviews/roufail/roufail9-1-98.asp>
Elementos da arte sonora
82
condensado ou suspenso”, permitindo ao espectador determinar o tempo de fruição da obra;
assim “os elementos sonoros não se sustentam em função de seu encadeamento temporal, mas
pelo seu significado imediato e por sua relação com outros elementos não-temporais, como
conceitos ou o próprio espaço” (CAMPESATO: 2007, p. 157). É importante no entanto
observarmos que, se esta é uma das formas mais comuns entre as instalações sonoras recentes,
há por outro lado muitas instalações onde há uma narrativa. Como exemplo entre outras
formas de arte sonora, as performances logicamente admitem uma narrativa construída
através do som, ou no mínimo início e fim demarcados.
Mas acreditamos ver na relação deste tipo especifico de arte sonora com o discurso da
música de outra situação: se as obras são interativas (seja nas formas imersivas dos ambientes
virtuais ou nas formas que dispensam alta tecnologia) e nelas o som faz parte da mensagem
retornada por um sistema de feedback, a construção de um discurso linear através do som é,
na prática, impossível – são modelos radicalmente diferentes de construção de discurso no
tempo, um que liga a informação sonora à memória (no caso da música tradicional) e outro
que liga a informação sonora aos diferentes inputs em tempo real.
Mais especificamente em relação ao uso dos loops, podemos apontar o fato de que em
grande medida isso configura um paralelo com a minimal art e os jogos com o participante
nas instalações dos períodos seguintes. Do ponto de vista da comunicação, o que o loop indica
é um uso da redundância como forma de reduzir o nível de informação em uma dada
mensagem, em um dado meio – assim, da mesma forma como fizeram os artistas minimalistas
em relação ao aspecto visual de suas obras, podemos arriscar dizer que na arte sonora o
despojamento ou a repetição no uso do som apontados por Campesato são na verdade
artifícios que vão permitir ao participante fixar a atenção na experiência do sistema, em
detrimento da experiência pura, isolada, do som. Seria, por assim dizer, um recurso anti-
acusmático, reduzindo a informação em meio sonoro como forma de reinseri-la em um
sistema dinâmico e multi-sensorial.
4.5. Interatividade
Instalações interativas – usando instrumental tecnológico para a captura de estímulos,
seu processamento e a geração de alguma espécie de resposta – configuram uma das
principais formas da arte sonora, principalmente dos anos 2000 para cá, e freentemente
Elementos da arte sonora
83
empregam efeitos sinestésicos
53
. Podemos entender como obras interativas aquelas que
estabelecem um processo de comunicação, respondendo a uma mensagem do fruidor com
outra mensagem relacionada. Na interseção entre arte interativa e arte sonora, podemos
apontar aquelas que dão uma resposta sonora a inputs quaisquer por parte do fruidor, e ainda
aquelas que respondem a um input sonoro de sua parte.
Figura 33. Op-era: Sonic Dimensions (2003), de Daniela Kutschat e Rejane Cantoni
Talvez as instalações sonoras imersivas sejam o melhor exemplo de interatividade na
arte sonora, normalmente produzindo som como resposta a diferentes estímulos da parte de
um visitante. Um dos casos é Op-era: Sonic Dimensions (2003) das brasileiras Daniela
Kutschat e Rejane Cantoni. Em um espaço cúbico, com uma das laterais abertas e com baixa
iluminação, três paredes têm linhas retas verticais projetadas por um data show na ponta
oposta, cada uma correspondente a uma nota musical, como “cordas” de um instrumento
virtual; junto às paredes, para cada uma das centenas de linhas há um sensor fotoelétrico que
percebe a presença de algum corpo junto à parede naquela posição, ou junto àquela “corda”.
Ao tocar a parede, ou ao chegar muito próximo, o visitante recebe como feedback o som da
nota musical correspondente à linha mais próxima, e a projeção visual dela vibra na
freqüência da nota. Adicionalmente, um microfone capta os sons produzidos no ambiente,
incluídos aí os produzidos pela instalação; como resposta aos sons captados, algumas outras
“cordas” vibram também, em menor intensidade, em simpatia harmônica com os sons
53
A sinestesia será aboradada como um outro aspecto freqüente do repertório de arte sonora mais adiante.
Elementos da arte sonora
84
captados. O resultado é similar ao de uma grande harpa virtual interativa, emulando parte da
experiência física e acústica dos instrumentos de cordas.
Figura 34. Lugares sonoros (Teclado Decafônico Concreto) (2005), de Paulo Nenflídio
Outro exemplo, mais simples tecnologicamente e ao mesmo tempo ligado ao contexto, é
a instalação Lugares sonoros (Teclado Decafônico Concreto) (2005) de Paulo Nenflídio. Nela,
o artista coloca à disposição dos visitantes um pequeno teclado de madeira, não muito distante
de um teclado de piano reduzido, que controla dez martelos motorizados, espalhados em
diferentes pontos do espaço expositivo. Através de cada uma das teclas, o fruidor pode
percutir um diferente objeto ou ponto da arquitetura: garrafões d’água, dutos de ar-
condicionado, extintores de incêndio, portas etc., abrindo espaço para um experimento
acústico de diferentes objetos e pontos daquele espaço a partir de um só lugar.
Elementos da arte sonora
85
Figura 35. Algumas das locações de Global String (2001), de Atau Tanaka e Kasper Toeplitz
Global String (2001), de Atau Tanaka e Kasper Toeplitz, faz uso não só da
interatividade mas da possibilidade de comunicação em tempo real pela internet como forma
de intercambiar mensagens entre participantes em lugares distantes. A instalação é
apresentada simultaneamente em dois ou mais espaços em pontos geográficos distintos. Em
cada espaço expositivo, há um grande cabo de aço tensionado, disposto em diagonal na sala, e
sensores detectam vibrações no cabo e alimentam o sistema; as vibrações em todo os cabos
produzem som simultaneamente em todos os espaços onde eles estão fisicamente. Segundo
Tanaka, trata-se de “um monocórdio onde as pontas são físicas, mas onde o meio da corda é a
rede” (TANAKA apud LABELLE: 2006, p. 271). A instalação de Tanaka e Toeplitz permite
portanto uma comunicação musical entre participantes distantes, e cria um novo paradigma de
instrumento virtual e coletivo, parcialmente desmaterializado na rede.
Logicamente é possível argumentar que não necessariamente esta interatividade se dá
através de novas tecnologias, ou das formas interativas mais recentes. O Totó Treme-Terra do
grupo Chelpa Ferro ou as obras que exploram os aspectos acústicos de uma sala são exemplos
da introdução do participante como elemento ativo na criação da obra, da mesma maneira que
qualquer outra obra baseada no feedback de um determinado sinal. Assim, trabalhos mais
antigos como Public Supply I (1966), de Max Neuhaus, antecipam em grande medida as
experiências em rede exemplificadas no trabalho de Tanaka e Toeplitz. Para este trabalho, o
Elementos da arte sonora
86
artista construiu um sistema através do qual o sinal sonoro recebido por dez linhas telefônicas
era transmitido pela rádio WBAI, e ele solicitava que os ouvintes sintonizassem o rádio nesta
mesma estação. Desta forma, sons da própria rede telefônica se misturavam ruídos de rádio e
sons produzidos pelos próprios ouvintes que desejassem participar, criando diálogos sonoros
através da rede telefônica, enquanto Lucier trabalhava na mixagem deste elementos em tempo
real.
4.6. Um novo formalismo e a sinestesia digital
O crítico e filósofo Christoph Cox, ao se referir a parte da arte sonora dos anos recentes,
aponta nela o melhor exemplo daquilo que ele chama um “neomodernismo”. Ele emprega o
termo em uma crítica à seção de obras sonoras de The Moderns, exposição ocorrida em Turim
em 2003. A mostra se constituía majoritariamente de obras de artistas plásticos nascidos a
partir dos 1960, desenvolvidas principalmente sobre meios digitais, e que de diferentes formas
reanimam práticas visuais do modernismo. A crítica de Cox, da qual transcrevemos os trechos
a seguir, se refere a uma seção especial da exposição, dedicada exclusivamente às artes
sonoras. Ele opõe as técnicas e preocupações dos artistas selecionados àquelas próprias do
pós-modernismo:
This revival of modernist strategies of abstraction, reduction, self-referentiality,
and attention to the perceptual act itself – what could be called, without irony,
“neo-modernism” – is nowhere more evident than in sound art.(…) Postmodernist
music and sound art exhibited many of the signature features of postmodernism in
the other arts: quotation, pastiche, and the hyper-speed collapse of time, space, high
art, and pop culture. Exemplary figures such as Christian Marclay, John Oswald,
and John Zorn reveled in jump-cut fragments ripped from the entire archive of
recorded sound. Neo-modernist sound art could not be more different.
Where postmodernism is about mixture and overload, neo-modernism is about
purity and reduction. Where postmodernism is about content and the concrete (the
vertiginous string of recognizable samples), neo-modernism is about form and
abstraction.(…) Like their postmodernist forebears, the new generation (…) begin
with found sound; yet these neo-modernists take care to abstract their raw material
beyond recognition, stretching and layering it into dense drones and loops. (COX:
2003)
É impossível não traçar uma analogia com a música concreta, que em grande medida
trabalhava no sentido de remover a referencialidade de seu material sonoro
54
. Neste sentido, a
54
Ressalvados aí, de maneira geral, os primeiros Études de Schaeffer. Há diferentes pontos de vista sobre a
Elementos da arte sonora
87
música concreta pode ser apresentada também como um paralelo greenberguiano de uma
busca da essência do meio, da mesma forma que Cox aponta em relação à exposição:
(…) for the most part, the neo-modernists adhere to Clement Greenberg's famous
characterization of modernism as foregrounding “that which [is] unique and
irreducible in each particular art.” Hence, they offer up the experience of sound-in-
itself: Before performances of his self-termed “transcendental” sound
compositions, Lopez distributes blindfolds;(…) Ikeda's Matrix, 2000, requires “a
totally darkened anechoic room”; and Chartier notes that his music and
installations “try to remove visual cues” in order to “approach as closely as
possible a state of non-referentiality”. (COX: 2003)
Cabe chamar ainda a atenção para o fato de que algumas definições de arte sonora como
categoria distinta indica “o forte uso de elementos referenciais” (CAMPESATO: 2007, p. 4)
como um de seus elementos constitutivos – o que tornaria as presentes obras totalmente
incompatíveis com tal definição.
Por fim, Cox faz a defesa do que seria um programa político subjacente a tal tipo de
manifestação:
To the postmodernist, the new sound art might seem to retreat from social and
political concerns. But neo-modernism has a politics of its own – a distinctly avant-
gardist one that recalls both Greenberg and Theodor Adorno and implicitly
criticizes postmodernism for its symbiotic relationship with the culture industry. In
eschewing mass-media content, the genre proposes a more radical exploration of
the formal conditions of the medium itself. Against the anesthetic assault of daily
life, it reclaims a basic function of art: the affirmation and extension of pure
sensation. (COX: 2003)
Sob a perspectiva de uma história dos efeitos de sinestesia e da tradução do sonoro no
visual, os filmes experimentais de Norman McLaren e Oskar Fischinger podem ser mapeados
como antecessores diretos, antes do uso de quaisquer tecnologias digitais. Suas animações, se
atuavam de forma interdisciplinar no campo entre as artes visuais, o cinema e música, eram
definitivamente formalistas, e de maneira geral buscavam relação direta entre imagem e som,
utilizando variações de uma técnica de aplicação de padrões gráficos sobre a banda óptica da
película cinematográfica, como no filme Synchromie (1971) de McLaren
55
ou no Komposition
in Blau (1936) de Fischinger.
O exemplo de McLaren é especialmente relevante pelo fato de que efetivamente os
mesmos padrões utilizados nas animações são os que geram as formas de onda quadradas da
referencialidade e a não-referencialidade nos diferentes momentos do trabalho de Schaeffer, mas não cabe
aprofundá-las na presente dissertação.
55
Disponível, na época desta pesquisa, no endereço eletrônico: <http://www.youtube.com/watch?v=Jqz_tx1-
xd4>
Elementos da arte sonora
88
trilha (um contraponto que se aproxima de uma composição bachiana estilizada), criando a
idéia de sinestesia
56
.
Mas Douglas Kahn vai além, e dá exemplos do poder de atração da visualização do som
ainda no século XVIII, numa demonstração feita para Napoleão, e relata o fato de que
Nietzsche, ao tomar conhecimento do experimento em questão, aponta o risco da literalidade
nessa tradução:
In 1787, [Ernst] Chladni drew a violin bow along the edge of a metal plate covered
with a thin layer of sand. The vibrating plate bounced the granules into
symmetrical forms: stars, waves, grids, and labyrinths. Chladni's demonstration
made visible and palpable the hitherto elusive and fleeting materiality of sound.
Napoleon was so impressed that he put Chladni on his payroll. Friedrich Nietzsche
was also intrigued; but he warned of a potential misapprehension of Chladni's
results: "One can imagine a man who is totally deaf and has never had a sensation
of sound," he wrote. "Perhaps such a person will gaze with astonishment at
Chladni's sound figures; perhaps he will discover their causes in the vibrations of
the string and will now swear that he must know what men mean by 'sound.'"
Wary of the attempt to reduce sound to sight, Nietzsche insists that the visual and
the auditory constitute separate spheres and that the relationship between the two
can only ever be a matter of translation or metaphor (in the etymological sense of
"carrying over") that bears the traces of an unassimilated remainder. For Nietzsche,
the distinction between the metaphorical and the literal is simply that the latter no
longer acknowledges the difference that constitutes it, taking itself to be what it
represents. Such literalness is a chief characteristic of the aesthetic discourse of
synaesthesia today. (COX: 2005)
Ainda que haja antecedentes independentes do uso das tecnologias contemporâneas,
como o exemplificado na obra de McLaren, a exploração da sensação de sinestesia ganha um
novo impulso com as ferramentas digitais, e é uma das principais características da arte
sonora apontadas pelo crítico N. B. Aldrich:
(…) one of the most interesting things about the computer as an artistic tool is the
opportunity to interpret any information by translating it into a common language:
computer code. In this translation process, a sort of hyper-synaesthesia ensues in
which all the trackable components of experience can be captured, processed and
re-expressed as a different experience (i.e. sound becomes visual, motion becomes
audible, any discrete activity can be calculated and repackaged for the senses).
Subsequently, interface and instrument design start to define new models of
musical (and overall artistic) activity. (ALDRICH: 2003).
O escritor Friedrich Kittler, autor de vários volumes sobre as tecnologias da
comunicação, faz observação similar sobre a possibilidades dos meios digitais para a
56
Na medicina, o termo sinestesia se refere ao fenômeno neurológico que ocorre quando um estímulo sensorial
leva automática e involuntariamente a uma sensação correspondente em outro de nossos sentidos, mesmo
quando este não recebe estímulo; aqui, a palavra refere-se ao uso estético da simulação deste efeito.
Elementos da arte sonora
89
sinestesia:
The general digitization of channels and information erases the differences among
individual media (…) Inside the computers themselves everything becomes a
number: quantity without image, sound, or voice. And once optical fiber networks
turn formerly distinct data flows into a standardized series of digitized numbers,
any medium can be translated into any other (KITTLER: 1999, p. 1)
Se nem toda obra de arte sonora emprega técnicas digitais, estas novas ferramentas
efetivamente possibilitam a tradução de estímulos e informações de todo tipo em um código
disponível e maleável (ou, nos termos de Lev Manovich, que obedecem aos princípios de
representação discreta e numérica, automação e variabilidade) (MANOVICH: s/d),
possibilitando a variação e a pronta reutilização desta informação vertida para outros sentidos
e formas, mas mantendo a noção de correspondência entre eles. Estas técnicas são
freqüentemente utilizadas por toda uma gama de artistas, de formas interativas ou não.
A respeito da sinestesia, cabe relembrar rapidamente os experimentos de compositores
do século XX nessa direção. Em certa medida, grande parte das partituras gráficas guarda
certo parentesco com experiências em sinestesia; mas as experiências de Iannis Xenakis se
aproximam mais delas, utilizando as mesmas estruturas em composições e projetos
arquitetônicos. De forma ainda mais especial e antecipatória, Xenakis já na década de 1970
empregava o computador para “ler” gráficos que, a partir de suas formas, seriam traduzidos
em som pela máquina
57
. Da mesma forma, as experiências de Tudor e Cage em que se
empregam sensores que traduzem movimento em som são iniciativas neste sentido da
sinestesia, décadas antes do advento das recentes possibilidades dos meios digitais.
57
Ver a seção dedicada a Xenakis nesta dissertação.
Elementos da arte sonora
90
Figura 36. Foto feita durante apresentação de LSP (2004), de Edwin van der Heide
Um exemplo de emprego da tecnologia na criação de sinestesia é LSP (Laser Sound
Performance), trabalho imersivo mas não-interativo do artista holandês Edwin van der Heide,
apresentado ora como uma instalação, ora como performance
58
. No trabalho, lasers são
controlados de forma sincrônica ao som, e desenham em tempo real uma tradução visual das
freqüências sonoras utilizadas. A obra inicia com um simples tom grave, a cerca de 20 Hz,
traduzido visualmente como um plano desenhado pelo canhão laser no ambiente escurecido.
Gradualmente, novos harmônicos do mesmo tom, inicialmente apenas microvariações de
timbre, vão se sobrepondo ao tom original, e aos poucos novos elementos sonoros
sintetizados são introduzidos, aumentando a complexidade do desenho produzido pelos
lasers, mas mantendo sempre a noção de relação imediata entre ambos. O trabalho, que pelo
volume, pelo uso dos graves e pelo ambiente escuro em que é apresentado remete à
experiência de fruição da música techno, é em grande medida formal, exceto pelo princípio de
conexão direta entre som e imagem (e, talvez em segundo plano, pela própria referência ao
techno).
58
Um registro de performance está disponível no endereço eletrônico: <http://video.aol.com/video-detail/edwin-
van-der-heide-lsp-alveole-14-part-1/2298096116>
Elementos da arte sonora
91
Carsten Nicolai é um dos artistas que lança mão de efeitos de sinestesia na maioria de
suas obras de diferentes formas. Não à toa, é um dos participantes da seção de arte sonora de
The Moderns. Várias de suas obras são compostas de instalações em vídeo, com imagens
produzidas a partir da informação sonora, em que podemos enxergar uma atualização do
trabalho de Norman McLaren, apenas lançando mão do recurso de transcrição digital entre os
meios, muitas vezes deixando ver o traço tecnológico; em outros casos, há um forte discurso
científico subjacente, ou uma fetichização estética da tecnologia
59
.
Figura 37. Milch (2000), de Carsten Nicolai
Milch (2000) é uma instalação e uma série de fotografias de Nicolai. A instalação
consistia em uma grande bandeja metálica coberta com leite, diante da qual um potente alto-
falante emitia diferentes tons de forma senoidal e em freqüências de 10 Hz a 150 Hz. Como
efeito físico, a superfície do líquido desenha diferentes formas regulares para cada freqüência
na qual o líquido vibra por simpatia harmônica. Desta forma, por assim dizer, o som torna-se
visível nas texturas criadas provisoriamente sobre o leite. As fotografias, que destacam
detalhes das texturas formadas, levam como nome a freqüência do som usado em cada
59
Cabe notar que Nicolai é também um músico renomado de minimal techno e glitch ou click techno
Elementos da arte sonora
92
ocasião.
Figura 38. Telefunken (2000), de Carsten Nicolai
Em Telefunken (2000), o sinal de áudio produzido por CD players é conectado
diretamente às entradas de vídeo de monitores de TV. O site do autor descreve o trabalho da
seguinte forma, deixando clara a intenção de traduzir um meio em outro:
The audio tracks of the CD (…) are translated by the television into an abstract
image, interpreting the impulse frequencies as horizontal stripes on the television
screen (…) This installation instantaneously demonstrates the visualization of
acoustic material.
60
Christoph Cox, em outro texto crítico, vai chamar a atenção para toda uma leva de
exposições desde o ano 2000 cujo objeto recai mais ou menos dentro das descrições de arte
sonora, mas que têm como principal ponto de articulação a sinestesia: Visual Music (em várias
cidades dos EUA), Sons et Lumières (Centre Pompidou, Paris), Synaesthesia: A Neuro-
Aesthetics Exhibition e What Sound Does a Color Make? (Londres) entre outras. Em paralelo,
Cox aponta que desde 1960 diferentes teóricos, de McLuhan a especialistas em música como
Jacques Attali e Walter Ong dão indicações de uma mudança na hierarquia dos sentidos na
60
Disponível em: <http://www.carstennicolai.com/?c=works&w=telefunken>
Elementos da arte sonora
93
sociedade contemporânea, na qual o som substituiria poria fim ao primado da imagem.
Como conclusão, teoriza Cox, o surgimento das exposições em que a sinestesia é o foco
é parte de uma estratégia de artistas e curadores para lidar com a emergência desta nova
condição da sensibilidade
61
. Segundo ele, é uma estratégia ambígua, permitindo o ingresso do
som nos espaços institucionais das artes visuais, sem ao mesmo tempo abrir mão da
importância do segundo, prejudicando assim o desenvolvimento de uma arte sonora genuína e
independente.
61
COX: 2005.
Elementos da arte sonora
94
5. Considerações finais
That's why I don't like definition; when you succeed in defining and cutting things
off from something, you thereby take the life out of them. It isn’t any longer as true
as it was when it was incapable of being defined.
– John Cage
62
A despeito das dificuldades quanto às múltiplas definições do termo arte sonora,
buscamos investigar de que maneira esta produção mais recente se articula com a música e as
artes plásticas, e em que medida é diferente das duas. Mesmo sem podermos aceitar uma
definição única, há um boom de arte sonora em curso, qualquer que seja a definição que
aceitemos. E isso leva a uma outra questão que permanece sem uma resposta fechada: quais
são as condições da emergência desta produção e sua crescente aceitação nos sistemas
culturais? Podemos arriscar algumas possíveis respostas.
O artista Steve Roden identifica que há um fomento à produção, por parte dos jovens
artistas, caracterizado pela imensa facilidade em adquirir o software e o hardware necessários.
Seguindo, Roden afirma também que algumas bandas de rock (em especial o Sonic Youth)
recolocaram os músicos experimentais e avant-garde em evidência recentemente (COX:
2004) (e o techno, por sua ligação com a música eletroacústica, ajudaria neste sentido
também). O artista Branden W. Joseph, como vimos
63
, vai ligar o caráter imaterial do som à
noção da “desmaterialização da obra de arte” de que fala Lucy Lippard (COX: 2004), portanto
a emergência seria decorrência natural desse percurso na arte.
Do ponto de vista de parte dos críticos de arte sonora, há a indicação de que a própria
percepção como material de trabalho para a construção de discursos poéticos está em alta (e
podemos verificá-lo através da projeção que vêm tendo, no circuito internacional, artistas
como Anish Kapoor e Olafur Eliasson). Segundo Helga de la Motte-Haber, os movimentos
iniciados nos anos 1960 e 1970, com sua rejeição de formas rigidamente guiadas por cartilhas
estéticas, trouxeram uma mudança no papel dos artistas: em lugar de apresentar obras com
formas fechadas, a intenção passou a ser criar uma situação estética específica para os olhos e
ouvidos dos participantes; a separação entre as artes do tempo e as artes do espaço, conforme
preconizadas pelo alto modernismo, estava superada. Na leitura de Motte-Haber, os artistas
62
CAGE apud KOSTELANETZ: 2003, p. 119.
63
Ver a p. 37 desta dissertação.
Elementos da arte sonora
95
passaram com isso a respeitar o fato de que a percepção humana funciona de maneira
holística: todos os nossos sentidos estão abertos à recepção de informação, e o percebido por
cada um deles, não se dá de maneira isolada, mas sempre como parte de complexos processos
de realimentação entre eles e nossa cognição. Motte-Haber defende ainda que as instalações
configuram uma forma de arte que toma o participante dentro desta perspectiva holística,
colocando-o dentro de um campo de energias a ser experimentado, e que as instalações
sonoras trazem o esforço de integração de olho e ouvido como um elemento a mais nesta
direção (do que aquelas que visam apenas o olho) (MOTTE-HABER: 2002, pp. 32-33). Obras
da arte sonora estariam, em sua opinião, trabalhando diretamente com abstrações sobre a
nossa percepção do espaço e do tempo, obrigando-nos a uma recontextualização da visão da
realidade. As experiências em sinestesia feitas por muitos artistas sonoros – assim como
outras que lançam mão da captação da vibração por outras partes do corpo e que empregam
infrassom – parecem também confirmar algo em relação a uma nova atenção voltada à
percepção e ao fenomenológico.
Outro ponto que pode explicar a emergência: como uma forma de arte necessariamente
interdisciplinar, operando sem respeitar as fronteiras estabelecidas ao longo do período
moderno, é de se imaginar que naturalmente tenha uma afinidade com uma sensibilidade pós-
moderna. O trabalho de artistas como Christian Marclay pode, como exemplo, comprová-lo.
Ainda em consonância com as principais características da arte pós-moderna, muito dela está
relacionada antes aos processos do que aos objetos acabados.
Talvez a pergunta com que iniciamos o percurso da pesquisa tenha de ser reescrita: não
mais “quais são as condições da emergência” apenas, mas antes “onde, como e por que aí se
dá essa emergência”. Se a pergunta a ser respondida for a segunda, temos alguns dados
relevantes a serem levados em conta. Independentemente da discussão sobre sua ascendência
na música ou nas artes plásticas, ou sobre qualquer título (artistas plásticos? sound artists?
compositores?) que os artistas escolham para si, queremos chamar a atenção para o fato de
que o sistema que acolheu a produção de arte sonora é aquele das artes plásticas: museus,
galerias, vernissagens.
Este abrigo dentro das instituições das artes plásticas não se dá sem conflito: os espaços
não são apropriados para receber obras de arte sonora, como um dia não estiveram preparados
para receber trabalhos em vídeo. O fato de normalmente não haver isolamento acústico e de
os ambientes das galerias e instituições serem muito reverberantes já é, em si, um problema,
Elementos da arte sonora
96
como apontam os depoimentos de diferentes artistas e galeristas. Uma obra de arte sonora não
pode, devido ao vazamento do som, ser colocada lado a lado com outra (e mesmo com outras
formas de arte para as quais o seu som será uma interferência grave). Michael J. Schumacher,
proprietário da galeria de arte sonora Diapason de Nova York, é um dos que se orgulha de ter
organizado um espaço onde tais interferências são excluídas ou minoradas (LICHT: 2007, p.
116).
5.1.1. Arte sonora: linha de fuga?
Mas por que os artistas sonoros escolheriam os espaços das artes plásticas, se estes não
são suficientemente preparados para os seus trabalhos? Pode-se argumentar que uma
instalação não pode ser experimentada num palco italiano ou em salas de concerto, onde se
poderia contar com um melhor preparo acústico. Mas isto não tem grande importância face ao
fato de que os espaços tradicionalmente dedicados à música contemporânea e à música
eletroacústica são normalmente refratários às pesquisas da arte sonora, ao contrário do museu
e da galeria. É mais ou menos como se o sistema de circulação da música de pesquisa e o
sistema das artes plásticas ocupassem as duas pontas da divisão proposta por Michael Nyman
entre os músicos e compositores experimentais e a avant-garde: a música dialoga com uma
longa história própria, ainda no desenho de um arco evolutivo que liga o início do período
moderno aos tempos atuais; as artes plásticas, por outro lado, abraçam a experimentação e a
missão de questionar seus limites no discurso e no suporte, de forma mais ou menos
independente do resultado.
Colocando a evolução da música ocidental e sua evolução enquanto linguagem em
perspectiva, José Miguel Wisnik aposta que estamos observando um ponto de mutação,
depois de o silêncio, a indeterminação e todo tipo de ruído terem sido incorporados à música:
(...) a música contemporânea é aquela que se defronta com a admissão de todos os
materiais sonoros possíveis: som/ruído e silêncio, pulso e não-pulso (a necessidade
histórica dessa admissão generalizada inscreveu nela, como problema permanente e
assumido, um grau muito maior de improbabilidade na medição ou na configuração
do limiar diferencial entre a ordem e a não-ordem.
Há no ar um suspense, apocalíptico, sobre essa dificuldade generalizada para
instaurar diferenciação, sintoma de um processo de desagregação geral do sentido,
que alguns vêem como estágio terminal da sociedade de massas. Tal situação
também pode ser interpretada como episódio de um grande deslocamento de
parâmetros, que estaria se dando como processo de mutação (WISNIK: 1989, p.
31)
Elementos da arte sonora
97
E ao ser questionado sobre uma arte multimídia e sua relação com a música, o que para
um interlocutor seu parecia indicar uma pretensão similar à obra total wagneriana, o
compositor Rodolfo Caesar respondeu:
(...) manifestei desconhecer uma unidade ‘estética’ dentre a produção que se
enquadra nesta categoria (multimídia), que terá dificuldade para construir um
discurso seu. Tentei há pouco descrever que não são os diferentes suportes que se
conjugam, mas sim os sentidos; e que, seguindo nessa via iniciada a partir da
experiência eletroacústica - esta celebração da escuta - se pode chegar a extremos
em que o próprio som é abolido.
No lugar da hegemonia de uma linguagem sobre outras - a música sobre a poesia, a
visualidade e o teatro (...), estamos ainda em estado de perplexidade diante da
multi-sensorialidade, que eu espero se prolongue o quanto puder antes que
sobrevenha o bafo congelante de projetos estéticos em seus pacotes fechados.
(CAESAR: 2004)
E de outro lado aponta o estado atual da música eletroacústica, acossada entre os
laboratórios de computadores, discursos científicos e as salas de concerto vazias:
Essa perplexidade, enriquecedora, já manifesta um desconforto ao ver a música
eletroacústica engessando seu destino entre as paredes anacrônicas da sala de
concerto - re-legitimada por sistemas de alto-falantes. Aquela arte nascida no rádio,
que buscou o concerto para melhor provocar a música, desmerece sua origem ao se
deixar ‘classicizar’ em frente ao palco italiano, tal como se encontra agora,
confortavelmente sustentada por discursos acadêmicos e/ou tecnocientíficos.
(CAESAR: 2004)
Se extrapolarmos a música eletroacústica, o cenário apresentado hoje é de que a música
popular tornou-se commodity, ou menos ainda que isso: o consumidor a compra por assinatura
na internet, como faz com a água encanada; ou se preferir a obtém de graça, leva-a para
qualquer parte e ouve música 24 horas por dia com tocadores de MP3. Por um lado, isso traz
consigo uma popularização saudável. Por outro, diante de tamanha banalização da experiência
da música gravada, como esperar, dentro deste modelo, a produção de alguma experiência
estética?
Wisnik descreve a sala de concerto como “uma câmara de silêncio (...) [onde] a
representação depende da possibilidade de encenar um universo de sentido dentro de uma
moldura visível, uma caixa de verossimilhança que tem que ser, no caso da música, separada
da platéia pagante e margeada de silêncio” (WISNIK: 1989). Se as novas tecnologias de
gravação e síntese abriram um leque de novos discursos estéticos na ponta da produção (a
música soube aproveitá-las dentro do palco e do suporte gravado), o estatuto da escuta não
sofreu com isso mudanças paradigmáticas: a experiência do iPod pode ser vista em grande
Elementos da arte sonora
98
medida como sendo ainda a mesma da fruição na sala de concerto
64
, apenas mais superficial,
prêt-à-porter.
A arte sonora talvez configure, vista sob esta ótica, uma linha de fuga para a música de
pesquisa: uma música do dispositivo e não mais apenas da auralidade, que vai por em jogo
todos elementos que determinam este modelo, importando para isso os moldes e os
questionamentos das artes plásticas (e de boa parte da música experimental) das últimas
décadas. As instalações e videoinstalações são, já há tempos, bastante instrumentais no
sentido de questionar os processos de produção da imagem (de TV, das artes plásticas e do
cinema) e a influências que os espaços e sistemas institucionais exercem sobre a produção
estética nas artes plásticas. Não seria o momento de a música fazer o mesmo, e desafiar o
modelo de experimentação da sala de concerto e, por extensão, do toca-discos?
Ao mesmo tempo, uma vez definitivamente desintegradas as fronteiras entre as antigas
disciplinas da música e das artes plásticas, é natural que se busque fugir da entropia. É
preciso, talvez, que se defina um campo de problemas com os quais estes novos artistas
possam lidar. Uma arte sonora poderia configurar este lugar, se vier a definir questões
próprias e não se prender aos modos limitados aos quais vem sendo associada por muitos
críticos e artistas (apenas instalações, não-narrativas, com o tempo suspenso, com um forte
componente tecnológico etc.). Ainda dentro desta perspectiva, escolher um termo que se
oponha à música e às artes plásticas pode significar escapar destes campos de gravidade, e
trazer a possibilidade de lidar com toda uma nova gama de questões.
5.1.2. Arte sonora: cristalização?
O que estamos vendo ultimamente é o sistema da arte contemporânea abraçar
alegremente os artistas que experimentam através do som como suporte, bem como os
músicos experimentais insatisfeitos com as instituições engessadas da música:
The artists working with sound couldn't sit around for much longer and got a bit
tired of doing bar gigs and cellar installations (…) the thousands of artists
developing spoken word, frequency investigation, field recordings, and
64
As técnicas de gravação não abolem o modelo da sala de concerto como dispositivo, até o reforçam. Em abril
de 1966, Glenn Gould, contrário a mímese da sonoridade das salas de concerto nas gravações, escreve sobre
o assunto na High Fidelity Magazine e transcreve uma frase de Richard Mohr, então diretor musical da RCA
Victor, que pode bem ilustrar o quanto estava arraigado o modelo da sala de concerto: “The ideal for a
phonograph record is the concert hall illusion, or rather the illusion of the concert hall illusion, because you
can't transfer the concert hall into the dimensions of a living room. What you can do is record a work so that
you think you are in a concert hall when you listen to it at home.” (GOULD: 1966)
Elementos da arte sonora
99
superleveled sonics just had to get out there; and it seems like there was a response
to it. A positive one. The concert halls can now be seen in the rearview mirror, and
their directors are standing there with their pants down. There was a time when
electronic-music composers actually wanted to perform their music in these places;
but I think that time is gone. The acoustics are not good enough, and the spaces are
not flexible enough. Sound installations and new electronic music fit better in the
environment of the Kunsthalle with a curator who might not get the point but still
is open to something new. (Carl Michael von Hausswolf em COX: 2004)
Felizmente os espaços das artes plásticas estão, dos últimos quarenta anos para cá, mais
abertos a uma experimentação (ou pelo menos estão abertos a mais suportes) do que os
espaços da música. Mas não haverá aí também um risco do “bafo gelado dos projetos
estéticos em pacotes fechados” de que fala Rodolfo Caesar?
O fato de a artista e compositora Annea Lockwood nomear o trabalho que ela destina a
galerias e museus como sound art revela que há um motor econômico ligado a esse
movimento. O artista Chris Mann liga o termo a uma marca, em uma entrevista com N. B.
Aldrich:
NBA. What is sound art?
CM. I always thought 'sound art' was a career move. (…)
NBA. Who is sound art a career move for? The musician moving closer to the
visual artist? The poet moving into the recording industry? For it to be a move it
must be different than its other, mustn't it?
CM. A career move is a branding exercise.
65
Alan Licht afirma que, como no caso da Land Art, não há como fazer da instalação
sonora um objeto vendável, e cita novamente o galerista Michael Schumacher:
Sound is experience, so there’s no point in trying to make it into an object as a
collectors piece. So I’m trying to create situations where people come to it as
experience, and value that (SCHUMACHER apud LICHT: 2008)
Se é verdade que poucas instalações podem ser peças de colecionador, por outro lado o
sistema das artes contemporâneas não falha em encontrar caminhos para remunerar a
produção destes trabalhos. Formatos como a instalação e a performance, que nos anos 1960 e
1970 indicavam uma postura política de recusa deste sistema, estão hoje tornando-se suportes
mais comuns nestas mesmas instituições (ou fora de suas paredes, mas dentro dos mesmos
sistemas de circulação).
Quanto às características que dão uma possível unidade ao que vem sendo chamado de
arte sonora: pretendemos com este trabalho verificar se havia características do repertório,
entre as que pudemos observar e as apontadas por outros autores, que pudessem diferenciar
65
Entrevista disponível em: <http://emfinstitute.emf.org/articles/aldrich03/mann.html>
Elementos da arte sonora
100
esta produção de experiências anteriores na história da música e das artes plásticas. Como
procuramos relatar, a exploração do espaço, a interatividade, a visibilidade dos processos e a
sinestesia através do som não são novidade: os questionamentos e formatos apontados como
próprios da arte sonora já foram experimentados antes da sound art. Talvez faltasse apenas, a
estas experiências pioneiras, serem reunidas sob uma palavra capaz de nos dar, em contraste
com a imensa complexidade da história, o conforto de uma redução conceitual que as
apresente como um bloco homogêneo.
Da mesma forma, o uso das novas tecnologias, apontado como um caráter universal
dentro desta possível categoria, não é um traço singularizador desta produção como
pretendem alguns autores: há trabalhos que as utilizam, outras não. Uma aproximação com
um caráter pós-moderno (como em Marclay e no Chelpa Ferro) ou com o moderno (através
da exploração da percepção ou de um formalismo) também não serve, uma vez que são ambos
traços presentes no repertório. Um uso específico do tempo, com o emprego do loop ou de um
tempo em stasis, é outra característica que autores indicam como um caráter exclusivo da arte
sonora – mas este aspecto também não é suficiente para dar unidade à produção, seja ela
recente ou mais antiga.
Se não há novos problemas, formatos ou estratégias que cheguem a definir diferentes
paradigmas, o que constitui, além do emprego do som, a arte sonora? Seria ela então a mera
institucionalização das experiências que outrora se arriscavam a ocupar os limiares da música
e das artes plásticas, mas agora sob um rótulo que, conforme Annea Lockwood
66
, é algo de
que os críticos e curadores de artes plásticas necessitam para que o som adentre os espaços
que controlam? Há indícios neste sentido.
Em uma parcela do repertório da arte sonora, a exposição dos alto-falantes faz parte de
um jogo cognitivo em que um processo de produção do som se dá a ver – e obviamente a
visibilidade dos alto-falantes é pré-condição de muitos trabalhos que incorporam o som. Mas,
por outro lado, os falantes parecem emprestar valor por sua carga simbólica a uma parcela das
obras do repertório mais recente (sinalizando, antes de mostrar qualquer conteúdo, tratar-se de
um trabalho de sound art). É como se estas obras tivessem sobre si uma etiqueta que dissesse:
“veja, tenho um alto-falante e fios espalhados: sou uma obra de sound art!”. Diante disso, os
outros elementos ali – decorativos, metafóricos ou com algum possível conteúdo conceitual –
parecem ter pouca importância.
66
Ver a discussão sobre as definições de arte sonora, inclusive a de Annea Lockwood, a partir da p. 2 desta
dissertação.
Elementos da arte sonora
101
Resta, portanto, uma decisão a ser tomada: o destino da arte sonora poderá ser o da
submissão a uma demanda econômica, aproveitando esta recente onda de popularidade que,
como qualquer moda, pode durar pouco; ou, ao contrário, a escolha poderá ser recusar esta
demanda e assumir o risco de formular questões que nem a música e nem as artes plásticas
souberam ainda responder, justificando a pretensão de categoria à parte. Cabe unicamente aos
artistas, quaisquer que sejam os rótulos que lhes coloquem, decidir qual caminho tomar.
Elementos da arte sonora
102
6. Referências bibliográficas
ALDRICH, N. B. What is sound art?. Texto e entrevistas disponíveis no site da Electronic
Music Foundation: <http://emfinstitute.emf.org/articles/aldrich03/aldrich.html>, 2003.
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Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Definition_Of_Music>
BELTING, Hans. Introduction. In: Qu’est-ce qu’un chef-d’oeuvre? BELTING, Hans (org.).
Paris: Gallimard, 2000.
BERNSTEIN, David W. Here Comes Everybody: The Music, Poetry and Art of John Cage.
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