Download PDF
ads:
1
Schreber e a clínica contemporânea:
Contribuições de Freud para a clínica das psicoses
Thiago Mesquita Peixoto
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Psicologia Clínica do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica e Cultura do Instituo de Psicologia da Universidade de
Brasília.
Thiago Mesquita Peixoto
SCHREBER E A CLÍNICA CONTEMPORÂNEA:
CONTRIBUIÇÕES DE FREUD PARA A CLÍNICA DAS
PSICOSES.
Orientadora:
Dra. Terezinha de Camargo Viana
Universidade de Brasília
Brasília, DF – Brasil
2007
ads:
3
Schreber e a clínica contemporânea:
Contribuições de Freud para a clínica das psicoses.
Autor:
Thiago Mesquita Peixoto
Orientadora:
Dra. Terezinha de Camargo Viana
Composição da Banca Examinadora:
_______________________________
Dra. Terezinha de Camargo Viana
IP/UNB
_____________________________________
Dra. Isabel Leal
Instituto Superior de Psicologia Aplicada – Lisboa
_______________________________________
Dr. Luiz Augusto Monnerat Celes
IP/UNB
4
Para meus mestres:
Pais, professores e pacientes.
5
Agradecimentos
A conclusão deste trabalho só foi possível graças à ajuda de várias pessoas. Seria
impossível citá-las nominalmente, por essa razão, citarei algumas que estão mais
próximas neste momento. Primeiramente devo agradecer à minha orientadora Dra
Terezinha de Camargo Viana, pelos vários anos de apoio e confiança em meu trabalho e
ritmo. Agradeço também a Meire Marize Dias, pelos anos de supervisão e conversas
construtivas e esclarecedoras. À minha mãe, Dra Dinália de Mesquita, perspicaz leitora,
dura crítica e atenciosa revisora, além de muito paciente. Agradeceria também a ela por
vários outros motivos que não cabem neste momento. A Cecília Costa, pela imensa
paciência, atenção e carinho com que me cercou quando precisei e pelas várias
discussões sobre meus temas. Ao amigo e colega Ricardo Vasquez pelo cuidado na
revisão e pela inteligência com que expõe suas idéias, sempre construtivas. Agradeço
também a todos meus amigos e colegas, pessoas que têm me ouvido e agüentado nos
momentos mais angustiantes, a esses peço desculpas pelo meu desaparecimento último,
mas saibam que minha alma sempre esteve aí.
6
Resumo:
O presente trabalho trata de um estudo sobre a formação da teoria freudiana das
psicoses e da possibilidade de este entendimento ser utilizado em casos clínicos. Para
isso, faz um percurso pela obra freudiana e, em sua segunda parte, faz dois estudos de
caso. Durante seu desenvolvimento, questiona a sexualidade psicótica, a passagem do
psicótico pelo Édipo assim como seus mecanismos de defesa. Para o entendimento da
possível clínica das psicoses, pesquisa também a transferência psicótica.
Palavras Chave: Psicose; Freud; Sexualidade psicótica; Transferência psicótica;
Schreber.
Abstract:
This work concerns a study about de development of Freud´s theory on
psychosis and the possibility of using these understandings for our daily clinic. In order
to achieve that, it goes along Freud´s work and, after that, studies two clinic cases.
Along its pages, questions the psychotic sexuality, the psychotic Oedipus complex so as
their mechanisms of defense. In order to get an understanding of the clinic whith the
psychotic, it also concerns the psychotic transference.
Key words: Psychosis; Freud; Psychotic sexuality; Psychotic transference; Schreber.
7
SUMÁRIO.................................................................................................................Pág.
Introdução .....................................................................................................................8
Parte I .............................................................................................................................13
1.1 Escritos de Freud relacionados à psicose até 1911...................................................14
1.2 O caso Schreber.......................................................................................................19
1.2.1 História Clínica..................................................................................................21
1.2.2 Tentativas de Interpretação................................................................................29
1.2.3 Sobre o Mecanismo da Paranóia........................................................................35
1.3 O Narcisismo, o Inconsciente e as Neuroses Narcísicas.........................................55
1.4 A Segunda Tópica freudiana e o conceito de psicose..............................................63
1.5 Bissexualidade, Édipo e Castração..........................................................................72
1.5.1 Bissexualidade...................................................................................................72
1.5.2 Édipo e Castração...............................................................................................80
Parte II............................................................................................................................91
2.1 Sobre a possível clínica das psicoses .......................................................................92
2.2 Casos.........................................................................................................................97
2.2.1 Caso I......................................................................................................................98
2.2.1.1 Tentativas de Interpretação.. .............................................................................102
2.2.2 Caso II...................................................................................................................103
2.2.2.1 O retorno da teoria.............................................................................................110
2.3 Conclusão................................................................................................................112
Bibliografia....................................................................................................................115
8
Introdução
Este trabalho trata da possibilidade de compreensão e possível clínica
psicanalítica com pessoas acometidas de transtornos mentais graves ou psicoses. Para
tal presunção, conta com dois pressupostos básicos, necessários para a possibilidade da
clínica por nós exercida e, por conseguinte, da existência do próprio escrito. São eles: o
saber que os pacientes ditos psicóticos são capazes de criar vínculos com outras
pessoas; e que se tratam de sujeitos, portanto, senhores e servos da subjetividade. Esses
pressupostos nasceram da convivência e da clínica com sujeitos delirantes.
A convivência com estes sujeitos foi, sem dúvida, o que gerou nosso interesse
em pesquisar o assunto. No entanto, nosso desejo era entender como se desenvolveu o
conceito de psicose em Freud e procurar apreender a forma como suas conclusões
poderiam nos ajudar. Escolhemos pesquisar o tema em Freud para podermos achar, a
partir do caminho traçado por Freud, a melhor maneira de continuar o estudo das
psicoses.
Em nosso percurso vimos a importância dos estudos de Freud sobre a psicose
para o desenvolvimento da teoria psicanalítica. Vimos também um Freud confiante de
que seus seguidores se aprofundariam nas questões relativas à psicose, como no início
do Pós-Escrito ao caso Schreber. Nele, Freud afirma que se restringiu propositadamente
ao mínimo de interpretação em seu escrito, confiante de que leitores com conhecimento
em psicanálise apreenderiam mais do que ele explicitamente afirmou.
“Ao lidar com a história clínica do Senatpräsident Schreber, propositadamente
restringi-me a um mínimo de interpretação; e sinto-me confiante de que todo leitor
com um conhecimento de psicanálise terá aprendido, a partir do material que
apresentei, mais do que foi explícitmamente afirmado por mim, e que não terá
encontrado dificuldade em juntar mais os fios e em chegar a conclusões que apenas
insinuei”. (E.S.B. XII Pág. 105).
Essa afirmação evidencia que Freud não fechou a questão das psicoses. Aponta
também que ele não deu a questão como pronta, abrindo espaço para interpretações
9
futuras. Freud nos entregou, leitores de sua obra, base para a compreensão dos conflitos
e mecanismos presentes ns psicoses.
Para o desenvolvimento da teoria psicanalítica, vimos que a questão das psicoses
foi importante. Como afirma o próprio Freud em 1915, ao falar do Inconsciente. Neste
sentido, os fenômenos psicóticos e seus estudos foram importantes para uma melhor
compreensão dos fenômenos inconscientes. Desta forma, também o narcisismo é um
conceito desenvolvido por Freud de central importância para sua obra. Este conceito,
que está estreitamente relacionado à teoria freudiana das psicoses, foi “um dos
principais motores a impulsionar Freud rumo à nova teoria das pulsões e sua
conseqüência estrutural – a segunda tópica” (Simanke 1994, Pág. 166).
Temos por objetivo, portanto, fazer o percurso freudiano do desenvolvimento do
conceito de psicose para depois, elaborar algo sobre a clínica das psicoses.
Como dissemos, a origem desta dissertação foram inquietações clínicas. Por
essa razão, gostaríamos de ter escrito mais sobre a clínica por nós vivenciada. No
entanto, nos deparamos com algo que, de certa forma, nos surpreendeu. Citaremos um
fragmento em que Paulo Ribeiro pensa sobre uma discussão parecida existente em um
escrito de Piera Aulagnier:
“Não é raro que, ao pretender escrever sobre o tratamento psicanalítico das psicoses,
terminemos por nos estender, mais do que gostaríamos, nas questões preliminares. Na
verdade, nesse domínio, somos sempre surpreendidos pela fragilidade de alguns
fundamentos teóricos que nos parecem sólidos, o que nos obriga a repensá-los”.
(Ribeiro 2000, Pág. 200).
No nosso caso, realmente nos estendemos mais do que gostaríamos nas
preliminares teóricas. A razão pela qual tal acontecimento se impôs à nossa pena (ou ao
nosso teclado) ainda não nos é tão clara. Acreditamos não ter tal conhecimento da teoria
psicanalítica para dizer que seus fundamentos teóricos são frágeis. No entanto, muito
10
tivemos de ‘repensar’ vários deles, pois, no decorrer da obra freudiana, muitas idéias e
conceitos mudam, se adaptam e se acoplam a novos fundamentos.
Não obstante, nos furtar a escrever a clínica (se é que este é mesmo o melhor
termo para designar o trabalho que fazemos), nos seria por demais doloroso. Tal ato
contrariaria idéias que acreditamos sobre a psicanálise. Acreditamos que podemos
falar em psicanálise se unirmos teoria e clínica, pois a psicanálise surge e se desenvolve
a partir desse enlace.
Nosso contato com pacientes psicóticos é intenso quatro anos. Convivemos
com vários pacientes em um hospital dia por treze horas semanais, onde coordenamos
um grupo de psicoterapia, além de atender individualmente por duas ou três vezes por
semana alguns pacientes acometidos por afecções ditas psicóticas. Contudo, nos vimos
impossibilitados de relatar um caso de paranóia que seria bem interessante e ilustrativo
e que acompanhamos individualmente dois anos. O motivo de tal impedimento foi o
pedido desesperado do paciente para que nunca escrevêssemos sobre seu caso ou nem
mesmo comentasse com qualquer um antes mesmo que houvéssemos falado qualquer
coisa a este respeito com ele. O último ponto não deixou de nos surpreender. Apesar
disso, escreveremos, na segunda parte do trabalho dois outros casos que acompanhamos
em supervisão. Um deles tratou de um paciente que freqüentava apenas o hospital dia; o
outro diz respeito a um paciente atendido individualmente duas vezes por semana.
Tentaremos entender, nestes, algo que nos ajude no sentido do tratamento com
psicóticos.
As pessoas fazem vínculos, vínculos diversos. Somos, inegavelmente, sociáveis.
Os psicóticos também fazem vínculos. A questão psicótica, assim como a questão
humana, está nas relações. Acreditamos que os sujeitos ditos psicóticos estabeleçam
11
vínculos no decorrer da vida; o que tentaremos elucidar é o tipo de nculo que são
capazes de fazer.
Qualquer elaboração neste momento se torna complicada se partirmos de uma
rigidez diagnóstica para discutir uma questão humana. Quais critérios serão utilizados
para considerar um sujeito psicótico? Essa questão, apesar de aparentemente ingênua,
traz consigo peso importante. De quais pessoas este estudo tratará? Temos que
estabelecer critérios que estabeleçam o sujeito como psicótico. Critérios
fenomenológicos? Acreditamos que não poderíamos afirmar que alguém é psicótico
apenas pelos sintomas apresentados pelo paciente ou apreendidos pelo analista. Não
tratamos sintomas, ao mesmo tempo, não diagnosticamos sem eles. O diagnóstico em
psicanálise é encontrado por meio da transferência, ou das transferências. Não queremos
nos aprofundar na complicada questão do diagnóstico em psicanálise. Entendemos, no
entanto, que os sintomas, não são o único caminho para o diagnóstico, pois essa
avaliação (diagnóstica) em psicanálise, se realiza a partir do discurso do paciente e da
escuta do analista.
“O estabelecimento do diagnóstico se subtrai aos dados empíricos objetivamente
controláveis. Sua avaliação é essencialmente subjetiva, na medida em que só se
sustenta a partir do discurso do paciente, e toma apoio na subjetividade do analista”
(Dor, J. 1991 Pág. 14).
Portanto este trabalho busca a compreensão de como se esta transferência,
também com o objetivo de auxiliar futuros diagnósticos.
Voltamos então ao ponto de partida: Como vivemos, no contato com o paciente
psicótico, essas transfencias? O que o paciente psicótico revive na transferência com
seu analista? Como o analista se sente diante de um paciente psicótico? Essas perguntas
nos ajudarão a pensar as questões das psicoses sob o prisma psicanalítico.
Neste percurso pela obra freudiana utilizamos a tradução da Standard Edition,
publicada pela Imago e também a tradução para o espanhol da editora Amorrortu.
12
Tivemos também a ajuda importante de autores como Garcia-Roza, Paulo Ribeiro,
Richard Simanke, além dos indispensáveis: Vocabulário de Laplanche e Pontalis; e
Dicionário de Roudinesco e Plon. Para os estudos sobre mitologia utilizamos a coleção
de Junito Brandão e para a biografia de Freud os livros de seu amigo Ernest Jones.
Algumas vezes nos vimos necessitados a buscar a forma como Freud utilizou
certos termos em alemão. Para melhor compreensão deles, utilizamos as citações dos
autores supracitados, a tradução coordenada por Luiz Alberto Hanns qual tivemos
acesso a um volume) e seu Dicionário de Alemão de Freud. Apesar de utilizar, em
alguns termos, uma tradução diferente daquela proposta pela edição Standard, (como
por exemplo, o termo recalque em lugar de repressão para a tradução de Verdrängung),
optamos por citar os fragmentos da maneira encontrada na tradução da Imago, por
entendermos que, desta forma, fica mais cil encontrar as referências citadas. As
citações referentes à Standard Edition terão a sigla ‘E.S.B.’ seguida do número do
volume e então a página; as citações referentes à tradução coordenada por L. Hanns,
terão a sigla ‘E.P.I.’ seguida também do volume e da página.
13
Parte I
“‘Que vem a ser a sabedoria?’ – respondi solícito:
‘Pois é, ai de mim, a sabedoria!
Tem-se sede dela e não se fica saciado,
olha-se para ela através de véus,
procura-se caçá-la com redes’”
Friedrich Netzsche
14
1.1 Escritos de Freud Relacionados à Psicose até 1911.
A questão das psicoses parece ter estado presente desde bem cedo no
pensamento freudiano. em 1894 no artigo entitulado “As neuropsicoses de defesa”,
Freud explica a irrupção de uma “confusão alucinatória” supondo uma defesa do Eu
mais poderosa que a defesa que aparece na histeria e nas obsessões.
“Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o
Eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta
como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido.” (E.S.B. III Pág. 64).
Freud relata neste artigo um caso em que uma paciente sofre do que ele
denomina de “estado de confusão alucinatória”. Neste caso, uma paciente passa a agir
como se o homem a quem ela dirige seus sentimentos românticos estivesse junto dela.
Por dois meses essa moça age daquela maneira. Este estado, que Freud chega a chamar
de “seu abençoado sonho” (E.S.B. III. Pág. 65), irrompe justamente após a frustração de
seu desejo (desejo de que seu amado chegasse).
Vemos que é devido ao sintoma apresentado pela moça que Freud chega a este
diagnóstico de psicose. Vemos também uma idéia de “evolução” da doença, que passa
de uma histeria para uma psicose. Segundo Freud, a paciente que se defendia fazendo
uma conversão histérica, entra depois em confusão alucinatória. Neste momento, ele
explica que uma representação incompatível ligada a um fragmento de realidade é
rechaçada pelo Eu, que assim rompe também com a realidade. Ainda neste artigo, Freud
aponta para a possibilidade das neuroses mistas, que combinariam histeria e outras
neuroses.
15
Apesar de admitir que dificilmente a confusão alucinatória aconteça
concomitantemente à histeria, Freud chama atenção para o fato de que, não raramente,
vemos surtos de uma psicose de defesa irromper no decurso de uma neurose histérica.
Essa idéia nos mostra que Freud utiliza, neste momento, a sintomatologia para
diagnosticar. Ou seja, ainda não estava presente no pensamento freudiano a concepção
de estrutura psíquica. Pouco depois, em um texto encontrado entre os documentos
enviados a Fliess, juntamente com uma carta datada de Janeiro de 1895, Freud apresenta
sua primeira discussão sobre a paranóia
1
.
Neste texto chamado “Rascunho H” e intitulado “Paranóia”, Freud situa a
Paranóia ao lado da “loucura obsessiva” como uma “psicose intelectual”, situando as
idéias obsessivas ao lado das idéias delirantes como distúrbios puramente intelectuais.
Partindo de um paralelo com as idéias obsessivas, Freud conclui que também os
delírios devem ser conseqüência de distúrbios afetivos. Ele explica que as obsessões
encontram força em um conflito e que o mesmo deve valer para os delírios. Mas, ao
mesmo tempo, fala de uma força radicada em um processo psicológico, o que nos leva a
concluir que essa força estaria em um conflito psicológico.
Freud situa a histeria, a neurose obsessiva e a confusão alucinatória ao lado da
paranóia crônica como um “modo patológico de defesa” (E.S.B. I Pág. 254). Neste
artigo, as idéias de doença e defesa se confundem. Em alguns momentos, a paranóia
1
Freud manteve extensa e volumosa correspondência com seu amigo Fliess entre os anos de
1887 e 1902. Segundo Garcia-Roza (1995), a partir de 1893. Freud submetia à apreciação de Fliess
documentos nomeados de manuscritos, quatorze no total. Esses documentos (chamados na ESB de
rascunhos) foram publicados juntamente com parte da correspondência a Fliess em 1950 sob o nome de
Aus den ‘Anfänen der Psychoanalyse’ e traduzidos para o idioma inglês em 1954 sob o título de: The
Origins of Psycho-Analysis’. A publicação destes rascunhos juntamente com parte da correspondência
enviada a Fliess deve-se, principalmente, à princesa Marie Bonaparte que, segundo o editor Inglês da
Edição Standard, “não adquiriu os documentos imediatamente, como teve a extraordinária coragem de
resistir aos intentos do autor deles, e seu mestre, de destruí-los”.(E.S.B. I pp.220). Na Edição Standard
Brasileira, esses escritos chegam com o título de “Extratos dos Documentos Dirigidos a Fliess” (E.S.B. I).
Trata-se de uma seleção (assim como a primeira edição alemã) desses documentos e cartas. A íntegra da
correspondência só seria publicada no Brasil em 1986 pela Imago Editora.
16
parece uma doença e, em outros, uma defesa. Outras vezes é como se a defesa fosse a
própria doença. Também é interessante apontar para o fato de que, neste momento,
Freud considera um comportamento como “defesa” a partir de sua finalidade, ou até
mesmo do seu uso abusivo.
Em 1896, em um texto intitulado "Observações adicionais sobre as
neuropsicoses de defesa" (E.S.B. III), Freud analisará o que chama de "um caso de
paranóia crônica". Neste texto ele cunhará o termo "psicose de defesa" para designar
uma paranóia que "provém do recalcamento de lembranças aflitivas, sendo seus
sintomas formalmente determinados pelo conteúdo do que foi recalcado." (E.S.B. III,
Pag.174), fazendo assim uma distinção entre esse tipo de paranóia e outros possíveis.
Nesta análise de caso, Freud reafirmará sua teoria do recalque e do retorno do recalcado,
encontrando em uma relação incestuosa infantil as lembranças a serem recalcadas.
Freud não faz, neste momento, distinção de terminologia entre um neurótico e um
psicótico, compreendendo a psicose a partir dos mesmos mecanismos que compreende a
neurose. No relato de seu caso de paranóia ele se refere à paciente como neurótica.
Neste caso de paranóia crônica com sintomas claros e clássicos, como roubo de
pensamento, certeza de estar sendo vigiada, vozes que relatam e comentam seus
comportamentos e alucinações visuais, ele encontra toda a explicação para a irrupção da
doença em experiências infantis recalcadas. Este caso mostra claramente a aplicação da
teoria do recalque e do retorno do recalcado por Freud em um caso de paranóia.
Ainda neste artigo, Freud traz a teoria do sintoma como “formação de
compromisso entre as representações recalcadas e recalcadoras” (E.S.B. III, Pág.170),
elucidando o conflito entre o conceito de defesa e doença, que aparecia em seu rascunho
sobre a paranóia. Agora Freud aponta os sintomas como sendo falhas das defesas. Fica
claro neste texto que Freud ainda usava recalque e defesa como sinônimos. Aqui é a
17
primeira vez que o autor usa o termo projeção em uma publicação. Este termo é
utilizado para nomear o processo de defesa próprio da paranóia.
O desenvolvimento do pensamento freudiano levará adiante os conceitos de
defesa, recalque e retorno do recalcado. Na época em que escreveu estes textos, Freud
estava apenas começando a criar seus conceitos, os conceitos de uma nova teoria
psicológica. Com o passar dos anos, o conceito de defesa ou de “mecanismos de defesa”
passa a ser entendido como formas de proteção do Eu contra agressões internas ou
externas (Roudnesco e Plon, 1997). Algo diferente do que vemos no inicio do
desenvolvimento da teoria, em que a defesa confunde-se com o próprio sintoma e com o
conceito de recalque ou repressão (Verdrängung)
2
.
Segundo o tradutor inglês das obras completas de Freud, em nota encontrada no
apêndice ao Projeto de 1895, a última definição de Freud para defesa é encontrada em
seu texto de 1926, traduzido sob o título “Inibição, Sintoma e Angústia”. Neste texto
Freud define defesa como uma “designação geral para todas as técnicas das quais o ego
faz uso em conflitos que possam conduzir a uma neurose” (E.S.B. XX Pág. 158), ou
seja, a defesa é entendida como defesa do ego, ou do Eu
3
. Neste texto, em um dos
adendos dedicados a Modificações de pontos de vista anteriores”, no adendo (c)
dedicado a recalque e defesa Freud revê a diferença entre esses dois termos. Freud
retoma a utilização do conceito de defesa diferenciando-o do de recalque da seguinte
forma: distinguindo a amnésia histérica e o que chama de ‘isolamento’ das ocorrências
patogênicas na neurose obsessiva. Freud diz que este processo na neurose obsessiva tem
finalidade defensiva, mas que se difere do processo de recalque. No início da discussão
2
Optaremos neste trabalho em utilizar como tradução para o conceito de Verdrängung a palavra recalque
em lugar da palavra repressão utilizada na E.S.B., por considerarmos recalque a tradução mais apropriada
e mais utilizada em publicações psicanalíticas ulteriores.
3
Devido a questões de tradução, as palavras ego e Eu (com letra maiúscula) são sinônimas. O fato se
deve à ocorrência da tradução brasileira, a E.S.B., ter sido feita a partir da tradução do idioma inglês que
traduziu o conceito freudiano Ich (Eu), pela palavra latina ego.
18
ele retoma a noção de recalque e formação de sintomas
4
, o que confunde um pouco
quando afirma que o processo de isolamento “encontra manifestação sintomática direta”
(E.S.B. XX Pág. 159), mas difere do recalque.
O caminho percorrido pelos conceitos de defesa e recalque na obra freudiana é
mais bem compreendido no apêndice A do artigo em questão (“Inibição, Sintoma e
Angústia”). Neste apêndice, confirmamos o que havíamos observado nos textos
discutidos acima. Nele, o editor percorre vários textos de Freud em que os conceitos de
defesa e recalque são utilizados como sinônimos. O autor nos mostra que apenas nos
artigos sobre metapsicologia
5
é que o termo defesa é compreendido como mais
abrangente que o recalque. Isto ocorre quando Freud diz que o recalque é apenas um dos
quatro possíveis destinos da pulsão e que estes destinos são compreendidos como
modalidades de defesa contra as pulsões. (“Pulsões e destinos da pulsão”[1915]) .
Entendemos, assim, que o recalque fica restrito ao processo específico descrito
no artigo metapsicológico que leva esse nome. Neste artigo (“O recalque” 1915), Freud
descreve o sintoma como a terceira fase do recalque, como o retorno do recalcado. O
sintoma seria um disfarce do que está recalcado, disfarce utilizado para que os
representantes recalcados possam atingir a consciência ou o consciente.
Como nos aponta Costa (2003), na interpretação dos sonhos, item (H),
designado a tratar das "Relações Entre os Sonhos e As Doenças Mentais", Freud faz
observações fundamentais. Uma delas é quando discorrendo sobre um trecho de
Radestock sobre sonho e delírio aproxima-os como sendo, ambos, formas de realizações
de desejos.
4
Este ponto é mais bem discutido no artigo dedicado ao caso Schreber e no artigo metapsicológico
denominado “O recalque” (Die Verdrängung) e será abordado mais adiante. Neste adendo Freud apenas
cita que estas observações foram inicialmente feitas em relação à histeria.
5
Nome dado aos artigos escritos por Freud em que ele “empreendeu uma exposição completa e
sistemática de suas teorias psicológicas” (E.S.B. XIV Pág. 111). Esses artigos foram escritos em 1915
juntamente com outros sete artigos nunca publicados por seu autor.
19
"(Esse trecho de Radestock é, na verdade, um resumo de uma aguda
observação feita por Griesinger (1861, 106), que mostra com bastante clareza que as
representações nos sonhos e nas psicoses têm em comum a característica de serem
realizações de desejos. Minhas próprias pesquisas ensinaram-me que neste fato
encontra a chave de uma teoria psicológica tanto dos sonhos quanto das psicoses.)"
(E.S.B. IV, Pág.. 126).
Essa idéia do delírio como forma de realização de desejo nos parece o primeiro
passo em direção a uma compreensão psicanalítica dos delírios. A partir deste prisma,
Freud procurará formar uma teoria psicanalítica que explique os distúrbios delirantes.
Assim como disse Freud, a “chave” para a compreensão das psicoses.
1.2 O caso Schreber
No início de seus escritos Freud escreveu de forma breve sobre casos
variados. Mais tarde escreveu alguns casos longos, sendo o caso Schreber um destes.
Mas o caso Schreber é diferente: É o único caso escrito sobre um paciente que ele nunca
chegou a ver o paciente e de quem pouco sabia a respeito além do que estava escrito em
suas memórias.
Sabemos que Freud escreveu um livro sobre Leonardo da Vinci, livro também
importante na construção do conceito de narcisismo. O interessante sobre Schreber é
que Freud o relata como um caso, apesar de não intitulá-lo como tal. O título dado a este
texto pela tradução brasileira (a E.S.B.) é “Notas psicanalíticas sobre um relato
autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides)”, mas o escrito
popularizou-se sob o nome de Caso Schreber. O livro de memórias de Schreber
popularizou-se na época, sendo então estudado e debatido por diversos psiquiatras.
Cremos ser importante ressaltar o fato de que a dificuldade encontrada para
trabalhar este texto sem muitas citações literais, encontra-se no fato de as palavras
usadas serem extremamente importantes para uma melhor compreensão do texto e da
20
análise feita por Freud. Por tal motivo, citaremos o texto de forma literal em várias
passagens. O texto de Freud divide-se em três partes além da introdução, são elas: (I)
História Clínica; (II) Tentativas de Interpretação; (III) Sobre o Mecanismo da Paranóia.
Usaremos também aqui essa divisão por acharmos ser didática e de fácil compreensão.
Freud introduz o relato explicando porque ele encontra dificuldades em
investigar psicanaliticamente a paranóia. Cita motivos concretos, como não estar ligado
a instituições públicas (instituições responsáveis pelo acolhimento e tratamento desses
pacientes) e fala também da dificuldade de manter em tratamento por longos períodos
pacientes acometidos pela enfermidade. Freud afirma que, em alguns casos, submete-se
aos pedidos de parentes do paciente e encarrega-se de tratá-los por um tempo, o que
demonstra certo interesse pelo que ele chama de estrutura da paranóia. Achamos
interessante e fecundo, apontar para o fato de que, na época em que Freud viveu, ainda
não havia acontecido a revolução das medicações neurolépticas. Devido a esta razão,
era muito difícil manter um paciente psicótico fora da internação, impedindo assim o
contato com profissionais que não trabalhassem nas instituições.
O motivo pelo qual o autor da interpretação dos sonhos acha possível escrever
sobre o paciente sem conhecê-lo é que, segundo ele, os paranóicos “têm a peculiaridade
de revelar (de forma distorcida, é verdade) exatamente aquelas coisas que outros
neuróticos mantêm escondidas como segredos” (E.S.B. XII Pág. 21) e que os
paranóicos “só dizem o que querem dizer” (E.S.B. XII Pág. 21), logo um relato escrito
poderia ocupar o lugar do conhecimento pessoal.
21
1.2.1 História Clínica
O doutor em Direito Daniel Paul Schreber sofreu duas vezes de distúrbios
nervosos, ambos, segundo o próprio paciente descreve em suas memórias em passagem
citada por Freud, resultantes de excessiva tensão mental. O paciente associa suas
doenças a seu trabalho, apontando que, nas duas ocasiões, estava sob muita pressão no
mesmo. A primeira doença de Schreber é tratada na clínica de Flechsig
6
por seis meses,
período após o qual o paciente encontra-se completamente restabelecido. Flechsig
descreveu o distúrbio como “sendo uma crise de grave hipocondria” (E.S.B. XII Pág.
23). Nesta época o Dr. Schreber estava casado e descreve que sua esposa ficou
imensamente grata ao Professor Flechsig por haver-lhe restituído o marido, tendo
inclusive uma foto dele sobre sua escrivaninha.
Oito anos se passaram sem que o paciente sentisse nada com relação à doença.
Estes anos são descritos por Schreber como de grande felicidade, com exceção da
contínua frustração de não ter filhos. Depois de ser informado de sua futura nomeação
para Senatspräsident
7
, mas antes de assumir o cargo, Schreber sonhou algumas vezes
que sua antiga doença retornara.
Os sonhos de Schreber sobre o retorno de sua doença corroboram a hipótese
freudiana exposta em longa nota de rodapé aos “Estudos sobre a histeria” (E.S.B. II
Pág. 106/107). Nesta nota, Freud explica que a aproximação de uma crise pode ser
prevista por um paciente, quando este pensa, por exemplo, “Que bom que não tenho
tido dores de estômago”, é provável que ele tenha uma nos próximos dias. Isto se deve
ao fato do indivíduo já estar sensível à aproximação de uma crise. Freud volta ao
6
Clínica psiquiátrica (departamento de pacientes internados) da Universidade de Leipzig. Diretor:
Professor Flechsig. (E.S.B. XII Pág. 19).
7
Um Senatspräsident num Oberlandesgericht é o juiz que preside uma Divisão de um Tribunal de
Apelação” (E.S.B. XII Pág. 21).
22
assunto em 1925, em um curto artigo intitulado “A Negativa” (E.S.B. XIX Pág. 266),
no qual explica que, dessa forma, o recalcado pode ser intelectualizado sem que o
indivíduo tome real conhecimento do mesmo. No exemplo dado por Freud no texto de
1925 é a negação do fato (como no exemplo acima, dado por nós) que possibilita essa
chegada do recalcado à consciência, mas acreditamos que o sonho também pode exercer
a mesma função.
Além desses sonhos, outra coisa nos chama a atenção. Certa vez, nas primeiras
horas da manhã, quando ainda estava entre o sono e a vigília, ocorre a Schreber a idéia
de que “deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula”
(E.S.B. XII Pág. 24). Pouco tempo depois Schreber cai enfermo outra vez. A data era
outubro de 1893, mesmo mês em que assumira seu novo cargo como Senatspräsident
em Dresden. Desta vez sua situação clínica piora rapidamente. Observaram-se idéias de
perseguição, ilusões sensórias, grande sensibilidade à luz e ao barulho, ilusões visuais e
auditivas. Em grande sofrimento o paciente fez várias tentativas de suicídio por
afogamento durante o banho e pedia para que lhe matassem. Seus delírios foram
gradativamente assumindo caráter místico. Pensava estar sendo perseguido por Flechsig
e acusava-o de ser um ‘assassino da alma’.
Freud nos conta, a partir do relatório dado pelo Dr. Weber em 1900, que
Schreber chega à elaboração de um delírio completo e complexo. A partir daí conseguiu
organizar sua personalidade e realizar tarefas e discussões diárias com acuidade, não
negando seus delírios. Ou seja, após estruturar sua rede de delírios o paciente
organizou-se também em seu discurso e convivência social chegando a conseguir seus
direitos de volta junto à justiça em 1902.
Essa idéia pode nos indicar um caminho em direção a algum tratamento
possível em um caso de paranóia ou, até mesmo, arriscamos dizer, em um caso de outro
23
distúrbio psicótico. Vemos, portanto, a construção delirante como uma tentativa de
reabilitação. Assim como em Schreber, acreditamos que a estruturação dos delírios pode
servir como metáfora de mundo, possibilitando, desta forma, que o paciente se relacione
com o mundo. Freud escreveria brevemente sobre o assunto em de seus últimos
trabalho, o artigo “Construções em Análise” (1937). Neste artigo, Freud pontua que
talvez seja característica das alucinações encontradas nos delírios o retorno de coisas
realmente experimentadas na infância e depois esquecidas. O caminho para o trabalho
psicanalítico seria, então, reconhecer no delírio um núcleo de verdade. Desta forma, o
fragmento de realidade ligado ao presente voltaria a ser ligado ao passado ao qual
pertence originalmente. Podemos então pensar, junto com Freud, que os delírios
funcionariam como as construções erguidas no tratamento psicanalítico com pacientes
neuróticos. (E.S.B. XXIII Pág. 273 a 287).
A idéia exposta por Freud para uma possível compreensão da paranóia é que o
psicanalista deve analisar o delírio tentando descobrir seus motivos e a maneira pela
qual essas transformações na estrutura do pensamento se realizaram. Com este enfoque,
procuremos compreender os delírios descritos pelo Senatspräsident de Dresden em suas
memórias.
O delírio original de Schreber é transformar-se em Mulher (ser emasculado). No
início o paciente encara esta situação como grave injúria, pois acreditava que tal
transformação efetuar-se-ia com a finalidade de abusos sexuais. Este delírio se
transforma posteriormente em delírio religioso de grandeza; no delírio secundário,
Schreber tornar-se-ia o redentor do mundo.
No delírio a que estamos chamando de primário, Shcreber seria emasculado
para a satisfação sexual de Flechsig e depois do próprio Deus. Mas a ‘Ordem das
coisas’ não permitiu tal acontecimento. Schreber relata que toda tentativa de assassinar
24
sua alma e de emascular-lhe para “fins contrários à ‘Ordem das Coisas’ (isto é, para a
satisfação dos apetites sexuais de um indivíduo)” (E.S.B. XII Pág. 30), não vingaram.
As vozes ouvidas por Schreber zombavam dele devido à sua transformação em mulher.
O delírio secundário vem, de certa forma, dar lugar especial ao delírio primário.
Freud afirma que “a fantasia de emasculação era de natureza primária e
originalmente independente do motif do Redentor” (E.S.B. XII Pág. 30). A vinculação
entre a fantasia de emasculação e a idéia de redentor, ocorre em um momento em que
Schreber estava descontente com a obrigação de ser emasculado. É aí que entra o delírio
secundário, ou seja, o delírio do redentor. Schreber reconcilia-se, assim, com a idéia de
ser emasculado quando entende que a ‘Ordem das coisas’ exige tal transformação para
que ele possa ser fecundado por raios divinos.
A idéia de ser transformado em mulher resultou-lhe como a única parte de seu
sistema delirante que permaneceu após a cura. Freud insiste na centralidade do delírio
de emasculação. Mostra que Schreber, mesmo após sua cura passa momentos
adornando-se como mulher e chega a dizer que:
“Em contraste com a maneira pela qual colocou em ação sua fantasia de
emasculação, o paciente nunca tomou quaisquer medidas no sentido de induzir
pessoas a reconhecerem sua missão de Redentor, fora a publicação de suas
Denkwürdigkeiten(Memórias) .” (E.S.B. XII Pág. 31).
A atitude de Schreber para com Deus é também objeto de interesse para nós,
pois é tema importante de seu sistema delirante. Para o paciente Schreber, Deus, assim
como os homens, é composto por nervos. A diferença está no fato de que o homem é
composto por corpo e nervos, enquanto Deus não tem corpo, apenas nervos. Outra
diferença é que, no caso de Deus, seus nervos são infinitos, apesar de possuírem todas
as propriedades dos nervos humanos de forma mais intensa. Schreber ainda diz que “o
sêmen masculino contém um nervo que pertence ao pai e une-se com um nervo tirado
do corpo da mãe, para formar uma nova entidade” (E.S.B. XII Pág. 32).
25
Quando Deus entra em contato com “pessoas específicas, altamente dotadas”
(E.S.B. XII pág. 33) , diz-se, na língua fundamental
8
, que ele “estabelece com elas uma
vinculação de nervos” (E.S.B. XII pág. 33). Podemos entender então que se trata de
uma relação sexualizada, ou que pode tratar-se de uma.
O Deus de Schreber não entende nada de pessoas vivas. Por estar
acostumado a lidar com mortos, ele não compreende os vivos. Este Deus, além de tudo
descrito, mostra-se incapaz de aprender com a experiência. A atitude ambígua de
Schreber para com Ele é expressa em diversos momentos do texto. Muitas vezes o
paciente xinga Deus e, posteriormente, alega ser o único homem a ter este direito,
protegendo Deus do escarnecer de outros. Mas apesar da centralidade ocupada por Deus
nesta fase do delírio, a importância da relação com Flechsig não é esquecida. Quando
busca justificativa para as atitudes de Deus para com ele, Schreber, mesmo depois do
delírio estruturado e já havendo deixado Flechsig de ser seu principal perseguidor,
aponta a influência desencaminhadora da alma de Flechsig como uma possível razão.
A “Ordem das Coisas” ou “Ordem do Mundo”
9
, rege a todas as coisas e também
ao próprio Deus, ou seja, rege também as relações entre Deus e Schreber. Esta Ordem
estabelece uma forma de ciclo eterno. Schreber explica que é por causa dela que o
mundo funciona desta forma. Na explicação de Schreber, Deus um pedaço de seus
raios a algo que nasce e, este pedaço, volta para Ele quando este algo morre.
Chama-nos a atenção o fato de que, na estrutura delirante do sujeito ele busque
algo que lhe método. Neste caso, a “Ordem das Coisas” realmente ordena, age como
lei para idéias que estão tão complicadas e confusas. Por vários momentos vemos o
8
Também chamada por Schreber de Língua dos Raios ou Língua dos Nervos. Língua falada pelo próprio
Deus. Essa língua seria ensinada aos mortos que entram novamente em contato com ele e foi também
aprendida por Schreber posto que Deus falasse com ele nesta língua. “Um alemão arcaico, mas vigoroso,
elgante e simples, que se caracteriza por uma grande riqueza de eufemismos e pelo hábito de usar
expressões com o sentido oposto ao da língua humana” (Schreber, 1903. Pag. 366).
9
A expressão “Ordem do Mundo” é a expressão utilizada por Marilene Carone na tradução das
Memórias de um Doente dos Nervos” para o idioma português .
26
adoecimento de Schreber como uma luta entre um homem e o próprio Deus, sendo que
o homem tem a seu favor a “Ordem das Coisas”.
Por outro lado, a importância dessa relação para a humanidade entra em
questão na fase final do delírio, quando diz que “enquanto a maior parte dos raios de
Deus for absorvida por sua pessoa (Schreber)”, (E.S.B. XII pág. 38) os mortos não
poderão entrar em estado de beatitude, o que corrobora com a idéia de paternidade
divina, o que de certa forma faz com que o paciente manténha Deus só para ele.
“Nenhuma tentativa de explicar o caso de Schreber terá possibilidade de ser
correta, se não levar em consideração essas peculiaridades de sua concepção de Deus,
essa mistura de reverência e rebeldia em sua atitude para com Ele.” (E.S.B. XII pág.
38).
Essa alegação de Freud fala da importância de nosso entendimento da relação de
Schreber com Deus.
Devemos compreender agora a forma como essa relação com Deus acontecia.
Para tal compreensão, precisamos entender o que Schreber chama de estado de
beatitude. Esse estado coincide com a voluptuosidade, sendo que o estado feminino de
beatitude seria inferior ao masculino, tratando o feminino de consistir em uma
“sensação ininterrupta de voluptuosidade” (E.S.B. XII pág. 38). Vemos também em
outra passagem que, para Schreber, a mulher é mais voluptuosa que o homem. Ele
afirma que a mulher possui nervos de voluptuosidade em todo o corpo, enquanto o
homem os possui na região genital apenas. Logo, como aponta Freud com certa
animação, o “estado de beatitude celestial deve ser compreendido como sendo, em sua
essência, uma continuação intensificada do prazer sensual sobre a Terra!” (E.S.B. XII
pág. 38). Na verdade, como nos explica Carone no glossário para os termos utilizados
por Schreber (glossário encontrado ao final das Memórias), o estado de beatitude é um
“estado de gozo voluptuoso ininterrupto ao qual se eleva a alma após a morte”
(Schreber, 1903 Pág. 364). A volúpia para Schreber, não se reduziria ao prazer sexual,
27
mas abrangeria também os prazeres estéticos e de sentido. Portanto, para Schreber, a
volúpia seria uma beatitude concedida ao homem antecipadamente.
O paciente descreve também um grande prazer em evacuar e urinar. Freud
chama a atenção para tal fato nos dizendo que este é um dos componentes auto-eróticos
da sexualidade infantil. Podemos pensar em uma regressão quando Schreber diz que,
defecar “produz intenso bem estar nos nervos da voluptuosidade” (E.S.B. XII g. 37),
exprimindo assim que sente prazer no processo excretório. Prazer este compreendido
por Freud como prazer sexual.
Schreber afirma ter sido criado sob normas de moral muito rígidas e revela ter
exercido grande autocoibição (principalmente em assuntos sexuais). Em seus delírios
ele aprende que deve cultuar a voluptuosidade e que assim resolverá todo o conflito
que irrompera dentro dele, pois o próprio Deus exige encontrar voluptuosidade nele,
sendo Schreber obrigado a cultivar a voluptuosidade.
Neste ponto, Freud aponta duas grandes ou principais modificações ocorridas
com Schreber. Tratava-se de um descrente em Deus que se inclinava ao ascetismo
sexual e transformou-se em um crente em Deus e devoto da voluptuosidade. Mas, assim
como sua devoção a Deus não é comum, tampouco o é sua sexualidade (pois ambos
provêm de um delírio). Sua sexualidade era “feminina”
10
, Schreber havia se
transformado na mulher de Deus.
Freud reafirma que a parte dos delírios mais abordada pelo paciente é aquela
concernente à sua transformação em mulher. Quando recordamos o sonho tido por
Schreber logo pela manhã (quando ainda encontrava-se entre o sono e a vigília), aquele
10
Preferimos colocar a definição de sua sexualidade como “feminina” entre aspas, por acreditarmos que
não se trata, obviamente de uma sexualidade feminina adulta. Compreendemos que tal sexualidade
provem de um delírio, levando consigo toda a significação particular contida neste, o que é comprovado
pela frase seguinte, em que afirmamos que Schreber transformara-se na mulher de Deus, ou seja, não em
uma mulher comum, humana. Porém, entendemos que a utilização do termo “feminina” se torna correta
devido ao fato de o paciente expressá-la (a sexualidade) como tal.
28
sonho/pensamento em que tinha a idéia de que deve ser bom ser mulher e submeter-se
ao ato da cópula, percebemos juntamente com Freud, que “seu delírio de ser
transformado em mulher nada mais era que a realização do conteúdo desse sonho”
(E.S.B. XII pág. 43). Com essa afirmação, Freud reitera sua idéia de que os delírios,
assim como os sonhos, são realizações de desejo. Freud utilizaria no caso Schreber um
termo correspondente para “elaboração delirante” e “elaboração onírica”, como nos
explica uma nota do tradutor encontrada na página 48 do artigo sobre Schreber. Tal fato
nos leva a uma melhor clareza sobre a proximidade com a qual Freud enxerga a relação
entre sonho e delírio.
Sobre os delírios aparentemente absurdos, o autor nos explica que os mesmos
devem ser interpretados como os sonhos absurdos. Estes expressam ridículo e derrisão.
Na “Interpretação dos sonhos” (E.S.B. V g. 477), Freud conta que os pensamentos
oníricos nunca são absurdos e que o trabalho do sonho produz sonhos assim quando
quer demonstrar crítica, ridicularização ou escárnio. Do mesmo modo, os milagres
absurdos nos delírios de Schreber demonstram escárnio. Freud afirma que o absurdo é
também zombaria na linguagem do pensamento obsessivo na análise do “Homem dos
ratos” (E.S.B. X Pág. 189).
O paciente fala sobre sua feminilidade da seguinte forma: palavras de Schreber:
“inscrevi em minha bandeira o cultivo da feminilidade” (E.S.B. XII Pág.43). Vemos por
essa frase que essa “feminilidade” estava e precisava ser cultivada. Em outras
palavras, não precisava ser plantada. Neste momento, concordamos com Freud que o
desejo de emasculação já estava presente desde o sonho (feminilidade é plantada) e que
o paciente resistia a essa idéia “com máscula indignação” (E.S.B. XII Pág.43). Depois
da chegada do delírio do Redentor, Schreber decide por cultivá-la, rendendo-se ao
desejo/delírio.
29
Freud delimita os dois elementos principais dos delírios de Schreber (sua
transformação em mulher e sua relação favorecida com Deus) e mostra que eles estão
vinculados a partir de uma atitude feminina para com Deus. Neste momento nos diz que
“Será parte inevitável de nossa tarefa demonstrar que existe uma relação genética
essencial entre esses dois elementos” (E.S.B. XII Pág. 44), apontando este como o
caminho a seguir para uma possível elucidação dos delírios.
1.2.2 Tentativas de Interpretação
Logo no início, Freud demonstra que no relato de Schreber encontramos
“a chave, pelo acréscimo de uma glosa, citação ou exemplo de alguma
proposição delirante de modo aparentemente acidental ou mesmo de negar
expressamente algum paralelo a ela, que tenha surgido em sua própria mente” (E.S.B.
XII Pag45).
Continuando sua idéia, Freud diz que, nestes casos, o que deve ser feito é “seguir
nossa técnica psicanalítica habitual”, ou seja, uma interpretação;
“despir a frase de sua forma negativa, tomar o exemplo como sendo a coisa real, ou a
citação ou glosa como a fonte original, e encontramo-nos de posse do que estamos
procurando, a saber, uma tradução da maneira paranóica de expressão para a normal.”
(E.S.B. XII Pag45).
Freud utiliza-se das cnicas de interpretação analítica com um paciente que se
encontra em forma de texto autobiográfico. Neste momento percebemos que Freud está
pensando em despir o discurso para podermos ver nele o que é recalque. Como no texto
sobre “A negativa” (1925), em que diz que o inconsciente não conhece um ‘não’, ele
propõe despir a frase de sua negativação.
Para a compreensão da enfermidade de Schreber, Freud lança mão da mesma
linha de raciocínio que utiliza para compreender as neuroses: a lógica do recalque e do
retorno do recalcado e a lógica da fantasia. Assim como nas neuroses Freud “utiliza a
30
tríade frustração-regressão-fixação desenvolvida no ‘Três ensaios’” (Quinet 2003,
Pág. 4).
Vemos agora de maneira mais clara o caminho que Freud percorrerá para
procurar compreender o adoecimento de Schreber. Analisando o momento ao qual
denomina de incubação da doença, período entre a data em que soube de sua futura
nomeação e aquela na qual foi nomeado e voltou a adoecer (mais ou menos quatro
meses), Freud busca compreender as causas desse segundo adoecimento
11
.
Foi neste período que o paciente sonhou repetidas vezes que estava enfermo
novamente e que teve, semi- acordado, a idéia de que seria bom ser mulher e submeter-
se à cópula. Percebendo que o autor das Memórias comunica esses fatos em sucessão
imediata, Freud interpreta que, enquanto lembrava da doença (sonho), a fantasia do
paciente assumiu uma atitude feminina. Quando se lembra da doença, o paciente se
lembra de seu médico, logo, desde o início, sua atitude feminina era dirigida a seu
médico, Flechsig. Lembremo-nos que a fase inicial de seu delírio toma exatamente essa
forma, quando o paciente alegava estar sendo emasculado para satisfazer os desejos
sexuais de Flechsig. Freud vai ainda mais longe, interpretando que talvez o sonho de
Schreber fosse simplesmente uma manifertação de seu desejo de reencontrar Flechsig.
“A causa ativadora de sua doença, então, foi uma manifestação de libido
homossexual; o objeto desta libido foi provavelmente, desde o início, o médico,
Flechsig, e suas lutas contra o impulso libidinal produziram o conflito que deu
origem aos sintomas.” (E.S.B. XII Pág.52)
A partir dessa afirmação, compreendemos que transferência entre Schreber e
seu médico, Flechsig. O paciente transferiu para o médico seu desejo homossexual
recalcado, transformando-o em seu perseguidor. A idéia de que existe uma fantasia
11
Segundo adoecimento, pois Schreber já havia sido tratado pelo próprio Flechsig cerca de oito anos
antes, como citamos no início do relato do caso.
31
própria da paranóia pode nos levar mais longe, assim como levou Freud em 1937, no
artigo “Construções em analise”, à idéia de que método e “verdade histórica” na
loucura; idéia esta também defendida por Del Campo(2003). Vejamos Freud:
“Essa visão dos delírios não é, penso eu, inteiramente nova; não obstante, dá
ênfase a um ponto de vista que geralmente não é trazido para o primeiro plano. A
essência dela é que não apenas método na loucura como o poeta já percebera, mas
também um fragmento de verdade histórica, sendo plausível supor que a crença
compulsiva que se liga aos delírios derive sua força exatamente de fontes infantis
desse tipo”.(E.S.B., XXIII pág. 285).
Essa idéia de que método na loucura nos possibilita procurar compreendê-la.
Devemos pensar que esta é, portanto, a base de qualquer compreensão possível da
loucura. Se entendermos também que há verdade histórica na loucura, podemos passar a
buscar, na história do paciente, o que está sendo vivido no sistema delirante.
Freud supõe que um sentimento inicialmente amistoso do paciente em relação a
seu médico é intensificado até assumir a forma de desejo homossexual. Para explicar tal
suposição, ele fala sobre a forma como pode ter acontecido a transferência neste caso.
Segundo Freud, é provável que este sentimento amistoso tenha sido transferido
pelo paciente para Flechsig. Tal sentimento era anteriormente direcionado a alguma
pessoa que lhe era importante então. O investimento libidinal antes dirigido a uma
pessoa, em certo momento da vida do paciente é transferido para outra pessoa (a pessoa
do médico). Sob este ponto de vista, podemos entender que o perseguidor era,
anteriormente, uma pessoa amada, uma pessoa para a qual existia investimento libidinal,
um objeto. Tenhamos em mente, por enquanto, que o paciente fora de sua crise aguda,
foi capaz de fazer laços, dirigir sua libido a objetos. Isto pode parecer banal, mas nos
resultará de grande importância no futuro. Pensemos agora no desenrolar do delírio de
Schreber: seu perseguidor deixa de ser Flechsig para ser o próprio Deus.
Para encontrar a ligação entre Flechsig e Deus, Freud interpreta que os dois
deveriam ter uma “identificação previamente estabelecida entre eles, o que os colocaria
32
como pertencentes à mesma classe” (E.S.B. XII Pág.59). Isto é comprovado em uma
passagem do texto em que Schreber afirma ter ouvido Flechsig informar à esposa que
era Deus Flechsig e sua esposa, ainda no delírio de Schreber, disse a Flechsig que ele
estava louco.
Essa afirmação (a da suposta loucura de Flechsig) o aproxima ao mesmo tempo
do paciente (que provavelmente ouvira várias vezes que estava louco) e de
Deus.Podemos assim entender que a pessoa representada por Flechsig na transferência
tratava-se de alguém mais próximo do paciente do que aquela representada pelo próprio
Deus, assim como um irmão, um igual (louco como ele). Neste sentido, Flechsig
carrega semelhanças com Schreber e com Deus.
Os dois perseguidores pertenceriam, portanto, à mesma classe também enquanto
objetos originais. Chamo de objetos originais aqueles nos quais o paciente investia sua
libido originalmente, antes da transferência. Logo, se a pessoa representada na
transferência por Flechsig era amada por Schreber antes da crise, aquela representada
por Deus também o era, mas a última tratar-se-ia de alguém mais importante, ou mais
distante do paciente. Concluímos, junto com Freud, que Deus representaria o pai de
Schreber e Flechsig seu irmão. “A fantasia feminina que despertou uma oposição tão
violenta no paciente”, segue Freud, “tinha assim suas raízes em um anseio, intensificado
até um tom erótico, pelo pai e pelo irmão”. (E.S.B. XII Pág.59).
Podemos relacionar o Pai de Schreber com seu Deus olhando por vários prismas.
Podemos nos atentar à forma infantil com que Schreber lida com seu Deus, uma mistura
de submissão e insubordinação, como mostramos anteriormente e como afirma Freud.
Lembremo-nos da passagem em que Schreber xinga Deus e, em seguida,
reclama para si exclusividade no direito de fazê-lo (E.S.B. XII Pág. 37/38). Como
poderíamos deixar de associar essa relação com a relação pai-filho? Incontáveis vezes
33
ouvimos alguém falar mal de seu próprio pai e defendê-lo quando ouve outra pessoa
fazer o mesmo. A frase “Só eu posso falar mal do meu pai” é uma frase corriqueira.
Outra passagem que nos lembra esse tipo de relação é quando Schreber diz que
Deus não compreende os vivos. Podemos entender essa frase como aquela de uma
criança que alega copiosamente “Meu pai não me entende”, pois lembremo-nos que
Schreber é o único vivo com quem Deus mantém contato, ou seja, o único a quem Deus
não compreendia. Freud interpreta a relação com cadáveres de outra forma. Segundo
ele, seria uma forma de escárnio, pois o pai de Schreber era um médico muito
conceituado, sendo grande escárnio dizer que ele nada sabe dos vivos, sabendo lidar
apenas com cadáveres.
A divisão no delírio do paciente em Deus superior e inferior abre caminho para
outra interpretação feita pelo autor do relato. Nesta, ele diz que a morte prematura do
pai de Schreber, pode ter feito com que o irmão mais velho ocupasse o lugar de pai. Tal
compreensão poderia, no nosso entender, explicar a origem de sua forma de relacionar-
se com pares mais velhos, a saber, como pais inferiores.
Freud nos explica que a “‘fantasia feminina do desejo’ é simplesmente uma das
formas típicas assumidas pelo complexo nuclear infantil” (E.S.B. XII Pág. 63/64). O
conflito entre o paciente e Flechsig mostrou-se um conflito entre o paciente e Deus,
como um conflito infantil com o pai. O pai proíbe a satisfação sexual da criança em suas
várias fases de desenvolvimento sexual
12
. Os desejos sexuais infantis entram, no caso
do paciente que estamos discutindo, em conflito com o pai. Poderíamos pensar, no
entanto, por que o delírio de emasculação (representação delirante da fantasia feminina
de desejo infantil) é aceito pelo paciente justamente quando Deus (o pai) entra no
sistema delirante?
12
Estas fases serão examinadas mais à frente.
34
Apresentaremos duas hipóteses para tal fato. O paciente recusa-se a aceitar seu
“destino feminino” enquanto entendia que seria transformado em mulher para satisfazer
Flechsig, mas quando entendeu que a transformação se daria para atender aos desejos de
Deus ele aceitou. Um dos caminhos para compreender tal situação seria (1) Pensar que
o desejo do paciente era dirigido ao pai propriamente dito e que poderia ser
concretizado por este. Vejamos que utilizamos a palavra, concretizado. O desejo poderia
ser transferido para outro (um irmão), mas sua concretização estava de alguma forma
ligada àquele objeto primeiro, o pai, o único para o qual ele (Schreber) poderia/queria
realmente ser uma mulher. O pai, objeto da fantasia originalmente. Desta forma, a libido
retornaria àquele objeto ao qual estava originalmente ligada.
Outra hipótese seria aquela em que, (2) A partir do momento em que o pai
mostra que também ele deseja o filho voluptuosamente (para usar um termo de
Schreber), não mais existiria quem proibisse tal relação. Aquele que seria o castrador do
desejo, o que interferiria na satisfação da criança, tornar-se-ia seu cúmplice. Isso nos
parece com mais um desejo infantil. Assim como a criança que sonha ver um dia o pai
passar todo seu tempo em casa com ela, como seu único foco de atenção: um desejo de
fusionar-se ao progenitor. Portanto, esta hipótese diz que, com o consentimento do
proibidor, o proibido tornou-se possibilidade de transformar-se em realidade. No delírio
de Schreber é isto o que acontece: os desejos infantis vencem a proibição paterna.
Freud aponta a frustração de Schreber por não ter filhos com sua esposa como
principal gatilho para o retorno da atitude feminina assumida para com o pai nos
primeiros anos da sua infância. Assim Schreber cuidaria da parte de ter os filhos,
salvaria os Schrebers da ameaça de perecerem e realizaria sua fantasia infantil de ter
filhos com seu pai (Deus). Dessa forma, a frustração de não ter filhos causou em
Schreber uma regressão a um estágio infantil em que sua libido estava direcionada a seu
35
pai. Essa fantasia infantil encontrou ressonância e lugar através da transferência
estabelecida com Flechsig. Schreber, em algum momento anterior já havia associado
seu pai a seu irmão. Essa fusão pai/irmão foi inicialmente transferida para seu médico e,
posteriormente desfeita em seu delírio, fazendo com que a libido voltasse para seu
objeto original.
1.2.3 Sobre o Mecanismo da Paranóia
Neste capítulo o autor procurará, a partir das interpretações formuladas na seção
anterior, traçar uma linha de raciocínio sobre quais mecanismos psíquicos estão
presentes na paranóia. Ele nos mostra que o que encontramos em Schreber é material
presente no que ele chama “outros tipos de neurose” (E.S.B. XII g.67). Estamos
lidando com retorno de desejos infantis recalcados e com o complexo paterno. Freud diz
que a característica própria da paranóia, a forma assumida pelos sintomas, será
determinada pelo “mecanismo mediante o qual os sintomas são formados ou a repressão
(Verdrängung) é ocasionada.” (E.S.B. XII Pág. 67).
Afirmando que o fato de que, para se proteger de uma fantasia de desejo
homossexual, o paciente tenha reagido formando sintomas de perseguição, é o que
existe de caracteristicamente paranóico no caso até agora, Freud diz que esse fracasso
em dominar esse desejo homossexual emergido do inconsciente é presente em todos os
casos de distúrbio paranóide observados também por Ferenczi e Jung e discutidos com
ele nos anos anteriores ao presente artigo. Este grupo de pacientes contava tanto com
homens quanto com mulheres. Estas observações nos levam a crer na veracidade e
possível universalização desta constatação clínica.
36
Existe um estágio do desenvolvimento da libido encontrado entre a fase auto-
erótica e o amor objetal propriamente dito chamada narcisismo. Nesta fase, o objeto
amoroso da criança torna-se seu próprio corpo. A diferença entre essa fase e a anterior
(a fase auto-erótica) é que na fase narcísica existe uma escolha objetal, ou seja, a
libido toma o próprio corpo do indivíduo como objeto de investimento pulsional. É
assim que Freud delimita a fase narcísica neste momento (1911) de sua obra. Poucos
anos depois, em seu artigo sobre o narcisismo (1914), Freud colocaria a fase narcísica
como necessária na constituição da subjetividade, mudando também o destino do
investimento pulsional neste estágio do desenvolvimento para o Eu.
Garcia-Roza (1995) diz que “O narcisismo é condição de formação do Eu,
chegando mesmo a se confundir com o próprio Eu” (1995 Pág. 42). Neste momento, ao
qual Freud denomina narcisismo primário, o Eu é o grande destino do investimento
libidinal. “Posteriormente, o investimento libidinal passa a incidir sobre objetos
(entenda-se: representações-objeto), o que corresponde à transformação da libido
narcísica à libido objetal.” Continua Garcia-Roza: “O retorno desse investimento
libidinal ao Eu, após ter investido objetos externos, Freud denomina narcisismo
secundário” (1995 Pág. 44).
Compreendemos então que a fase narcísica é concomitante ao aparecimento
(desenvolvimento) do Eu, que se identifica a objetos para receber investimento libidinal.
Dessas identificações é formado o próprio Eu. Freud deixa claro que, apesar de parte da
libido ser repassada aos objetos, ela permanece armazenada no Eu. No artigo dedicado
ao narcisismo, de maneira didática ele utiliza a metáfora do protozoário para explicar a
relação da libido com o Eu. Esta metáfora será usada por Freud pra ilustrar a relação da
libido do Eu com os objetos em diversas passagens de sua obra.
“Poderíamos dizer que ela (a libido) se relaciona com os investimentos
realizados nos objetos de modo análogo àquele com que o corpo de um protozoário
37
se relaciona com os pseudópodes que projeta em direção aos objetos”.
13
(E.P.I. Vol. I
Pág. 99).
Todo ser humano passaria por tal fase, sendo ela, como dissemos, estruturante
do Eu. A questão trabalhada por Freud no caso Schreber é a seguinte: Segundo ele,
algumas pessoas passam muito tempo nesta fase, carregando, por esta razão, muitas
características do narcisismo para a próxima fase do desenvolvimento da libido.
Devemos apontar que, neste ponto do desenvolvimento da teoria freudiana, ele ainda
considera que o objeto de investimento da libido na fase narcísica é o corpo do sujeito,
seu eu (self), incluindo seus órgãos genitais. Para Freud, “de importância principal no eu
(self) do sujeito assim escolhido como objeto amoroso podem ser os órgão genitais”
(E.S.B. XII Pág. 69). Sua linha de raciocínio propõe que o desenvolvimento posterior
passaria inicialmente por uma escolha de objeto externo com órgãos sexuais
semelhantes ao do sujeito, e depois, à escolha diferente (heterossexual).
Freud também explica que, mesmo em adultos ditos normais, as tendências
homossexuais não desaparecem totalmente, mas são substituídas por pulsões sociais e
sentimentos de amizade e companheirismo.
Poucos anos mais tarde, em um texto intitulado “Disposição à neurose
obsessiva” de 1913, Freud diz algo que nos faz repensar esta sua afirmação; vamos à
sentença: “A antítese entre masculino e feminino, que é introduzida pela função
reprodutora, não pode ainda estar presente no estádio da escolha objetal pré-genital”
(E.S.B. XII Pág. 346). Como vimos, a fase narcísica é uma “fase de escolha objetal pré-
genital”, portanto ,como o próprio Freud afirma, a antítese masculino feminino ainda
não poderia estar presente; então, de que forma compreenderemos a afirmação anterior
relacionada à escolha objetal inicialmente homossexual e posteriormente heterossexual?
13
. Com finalidade meramente ilustrativa citaremos duas delas, a saber, a “Conferência XXVI” das
“Conferências introdutórias” (1916/17) e em um artigo chamado “Uma dificuldade no caminho da
psicanálise” (1917), artigo originalmente destinado a leigos.
38
Esta construção não perde seu valor com a frase citada do artigo de 1913. Podemos
relembrar as teorias sexuais das crianças.
Freud nos ensina que, em certa fase da vida as crianças assumem que todos os
seres humanos têm o mesmo órgão genital, um órgão genital igual ao dele. Acredito que
durante a passagem pela fase narcísica seja essa a compreensão infantil. Além disso,
podemos afirmar pela observação que, inicialmente, as crianças realmente são mais
próximas de outras do mesmo sexo (escolha homossexual de objeto) e mais tarde
passam a interessar-se pelo sexo oposto. Portanto podemos explicar tal situação pela via
da teoria da “universalidade do pênis”, aquela na qual as crianças crêem que todos têm
um órgão genital igual ao seu. Esta conceitualização freudiana encontra respaldo no
relato de um paciente.
Certa vez um paciente paranóico relatou que quando tinha quatro anos, sua avó
apontou para seu pênis (ele estava nu diante de duas parentas de sua idade e de sexo
oposto) e disse: “Olhem meninas, é por isso que todo homem é mau”. O garotinho ficou
extremamente incomodado com aquela afirmação, pois ele “não queria ser mau”.
Alguns dias depois do acontecido, o menino levou uma priminha para debaixo da cama.
Naquele lugar, protegido das proibições adultas, as crianças tiraram suas roupas. Neste
momento, diante da visão do clitóris da garotinha, o menino pensou: “eu não sou
homem, sou apenas uma menina com um clitóris grande”, o que equivaleria a dizer que
o pênis dela é pequeno. Desta forma todos possuem o mesmo órgão genital.
Este paciente continuou a pensar que era uma menina até atingir a puberdade e
ver o pênis de outros colegas. Neste momento abriu sua primeira crise. Devemos
observar que toda a confusão sexual responde ao desejo do menino de não ser mau.
Poderíamos pensar que tal desejo não levaria a conseqüências tão drásticas. Não
negamos aqui a possibilidade de tal expressão de desejo ser a forma passível de
39
representação (disfarçada) do desejo infantil pelo pai. Utilizamos o relato daquela forma
porque foi até onde chegamos até o presente momento no trabalho com o paciente.
Devemos deixar claro, no entanto, que não concordamos completamente com
essa afirmação de desejo homossexual pelo pai, mas sim com aquela em que dissemos
desejo infantil pelo pai. Concordamos que é desejo sexual, mas não acreditamos que o
adjetivo ‘homossexual’ seja o mais adequado para qualificar tal desejo, pois, como
dissemos, trata-se de um desejo anterior à antítese masculino e feminino.
Compreendemos que o que é recalcado é o desejo por si mesmo refletido no pai. Mas o
desejo por um ‘si mesmo’ pré-genital, ou seja, ignorante da construção subjetiva da
diferenciação sexual e, portanto, um ‘si mesmo’ indiferenciado sexualmente. No nosso
entender, poderíamos chamar um desejo de homossexual a partir do momento em
que exista investimento objetal em objetos externos.
Sobre a relação do psicótico com a diferenciação sexual, concordamos com a
definição encontrada por Richard Simanke em seu livro acerca da teoria freudiana das
psicoses. Segundo Simanke:
“Não é que o psicótico desconheça absolutamente a realidade da diferença sexual;
mas ele não é capaz de subjetivar este conhecimento. A confrontação com esta
realidade não produz, na esfera psíquica, outros efeitos além da desagregação”.
(Simanke, 1994, Pág. 228).
Uma possibilidade de tornar mais clara a apreensão do narcisismo é partir do
estudo do mito grego de Narciso. Penetremos, pois, no mitologema grego. Nosso relato
do mito basear-se-á na descrição feita por Junito Brandão.
Narciso era filho do rio Cefiso e da ninfa Liríope. Após penosa e indesejada
gravidez, a ninfa deu a luz a um menino belíssimo. Na cultura grega a beleza fora do
40
comum era motivo de susto e preocupação. “Competir com os deuses em beleza era
uma afronta inexoravelmente punida” (Brandão, 1986. Vol. II Pág. 175).
O filho de Liríope era dono de beleza jamais vista. Tal fato despertava paixões
de deusas, ninfas e jovens de toda Grécia. Além das paixões, tal beleza despertava
também a preocupação de sua mãe. Preocupação que a levou a Tirésias (famoso
adivinho) para perguntar “Narciso viveria muitos anos?”. Para tal pergunta obteve a
resposta de Tirésias “se ele não se vir...”. Estava traçado então o destino de Narciso, ele
viveria longos anos desde que não se visse.
Os anos se passaram e Narciso continuou a despertar paixões. Uma das
apaixonadas era a ninfa Eco que, por obra de Hera, fora condenada a apenas repetir o
som das últimas palavras que ouvia. Em um dia de verão, Eco seguia Narciso em uma
caçada (sem por ele ser vista). Tendo se distanciado de seus companheiros o caçador
passou a chamar por eles, sons que foram repetidos pela ninfa. Quando esta se desfaz de
seu ‘esconderijo’ e deixa-se ver por Narciso, corre para abraçá-lo. Diante de tal cena, o
filho de Cefiso foge dizendo que morrerá antes que o amor os una.
Tão desprezada, a ninfa “se isolou e se fechou em solidão” (Brandão, 1986. Vol.
II Pág. 178). Depois deixou de alimentar-se e definhou transformando-se em um
rochedo. Tomadas de ódio por Narciso, as outras ninfas pedem a Nêmesis que o puna.
Neste momento, Narciso é condenado a um amor impossível.
Outro verão chegou e Narciso, com muita sede, aproximou-se da fonte de
Téspias para beber água. As águas de Téspias nunca haviam sido tocadas e é neste clima
bucólico e inocente que Narciso aproxima-se da água e vê-se refletido nesta. “Viu-se e
não mais pôde sair dali: apaixonara-se pela própria imagem”. (Brandão, 1986. Vol. II
Pág. 180). Apaixonado por sua imagem refletida, Narciso esquece de tudo. Dali não
41
mais saiu, morrendo de fome, inanição, anoréxico de relações externas. Tornou-se então
flor, flor de raro perfume.
Achamos que o mito de Narciso pode nos dar várias pistas sobre a compreensão
do narcisismo e da paranóia. Para isso lançaremos foco sobre três pontos que
consideramos importantes no desenrolar do mito: (1) Eco (2) o verão e (3) Téspias.
Eco apaixonara-se por Narciso e o seguia na floresta. A ninfa havia sido
condenada por Hera, ‘defensora dos amores legítimos’, a apenas repetir os sons que
ouvia e foi desta forma que Narciso conheceu-a. Pensemos em Narciso ouvindo suas
palavras serem repetidas por Eco. Logo deste fato o filho de Liríope repudia totalmente
a ninfa. Como Eco, Liríope, mãe de Narciso, era uma ninfa. Podemos compreender
então que Eco representava sua mãe. Outra característica desta ninfa que nos leva a esta
associação é a qualidade de repetir os sons, como uma mãe faz com as primeiras
palavras de seu bebê.
Por algum motivo, suas palavras (de Eco e ao mesmo tempo de Narciso) não
seduzem Narciso, apenas sua imagem o fará. O verão nos coloca na questão temporal. O
momento em que Narciso foge de Eco e se apaixona por sua imagem é o mesmo, o
verão. Pensamos que este aspecto refere-se a um mesmo tempo na infância, a uma
mesma fase. Chegamos então ao ponto em que Narciso se apaixona. Vale lembrar que
ele nunca havia se apaixonado antes, apesar de toda sua “popularidade”. Quando o belo
jovem se vê, em meio a todo um clima de inocência (o que nos remete à infância)
apaixona-se prontamente. Narciso se vê refletido em um rio. Narciso era também filho
de um rio, o Cefiso. Logo, ele se apaixona por sua própria imagem refletida no pai.
Essa leitura do mito de Narciso nos ajuda a explicar a questão da sexualidade no
delírio paranóico da forma como a compreendemos. Este apaixonamento pelo pai não
poderia ser perfeitamente descrito como homossexual tendo em vista a idéia
42
homossexual de amar outro homem (no caso dos meninos). Essa descrição seria mais
apropriada como: amar a si mesmo (e a sua sexualidade infantil) e projetar-se em outro
homem (no pai). Acreditamos que o desenrolar das fantasias relacionadas a esse amor,
levará às sexualizações confusas encontradas nos delírios paranóicos. Outras
possibilidades interessantes surgem da leitura do mito. O narciso (ou o narcisista), foge
da mãe (e de suas palavras) para amar a um pai que apenas o reflete. Essa interpretação
abre margem para a compreensão da relação do psicótico com a linguagem (os
neologismos, as vozes) e com a imagem (delírios de transformação corporal).
Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), importante trabalho de
Freud, várias vezes revisto e ampliado por ele durante quase toda sua vida, Sigmund
introduz, além da teoria da sexualidade, a idéia de fixação. Tal idéia, (ou um esboço do
que ela viria a ser), havia sido mencionada por Freud em uma carta a Fliess datada de
Nove de dezembro de 1899, a carta 125. Nesta carta Freud analisa brevemente a questão
da escolha da neurose.
Somente muitos anos mais tarde, no artigo que discutimos agora (O caso
Schreber) e no artigo sobre a “Disposição à neurose obsessiva”, de 1913, é que Freud
realmente trabalha a idéia. Segundo Freud, as fases do desenvolvimento da libido são
também vários pontos possíveis de fixação desta. O sujeito, por alguma razão
14
, tem
parte de sua libido fixada em uma das fases do desenvolvimento libidinal.
Posteriormente, devido a alguma frustração, o desenvolvimento libidinal regressaria a
seu ponto de fixação. Freud explica que, no caso do paranóico, o ponto de fixação da
libido
“deve ser procurado em algum lugar entre os estádios de auto-erotismo, narcisismo e
homossexualismo, e que sua disposição à enfermidade (que talvez seja suscetível de
definição mais precisa) deve estar localizada nessa região”. (E.S.B. XII Pág. 70).
14
Tentaremos explicar essa razão mais adiante.
43
No auge de seu adoecimento, Schreber vê a proximidade do fim do mundo e, por
fim, sua chegada. Neste ponto, ele torna-se o único ser humano na terra, enquanto os
outros seriam ‘homens apressadamente improvisados’. Uma das possibilidades
estudadas por Schreber para tal acontecimento seria Flechsig. Neste caso, o médico
seria responsável por essa catástrofe mundial.
“Em qualquer caso, o fim do mundo era a conseqüência do conflito que
irrompera entre ele Flechsig ou, de acordo com a etiologia adotada na segunda fase
de seu delírio, do vínculo indissolúvel que se formara entre ele e Deus” (E.S.B. XII
Pág.76).
Vemos que, nesta tradução, fica ininteligível a idéia de Freud, a não ser que
insiramos um ‘e’ entre as palavras ‘ele’ e ‘Flechsig’. Ou seja, compreendemos que o fim
do mundo seria conseqüência de sua vivência transferencial com seu médico, vivência
que serviu de gatilho para a irrupção de seus delírios.
Freud ainda tece uma explicação para a existência dos ‘homens apressadamente
improvisados’ a partir da idéia de desinvestimento libidinal no mundo externo (o
narcisismo secundário). Schreber teria retirado o investimento libidinal das pessoas e do
mundo externo em geral, investimento esse que “até então havia dirigido para elas”
(E.S.B. XII Pág. 77). Por tal razão, tudo se torna indiferente e irrelevante para o
paciente. Freud afirma que o fim do mundo externo é uma projeção de sua catástrofe
interna. Com a destruição de seu mundo interno o paranóico o reconstrói com seus
delírios, ou seja, o processo delirante trata-se, na verdade, de uma tentativa de
reconstrução, no qual a projeção é seu principal mecanismo. Afirma ainda que, com
essa reconstrução, o indivíduo retoma uma relação com o mundo.
“A característica mais notável da formação de sintomas na paranóia é o processo
que merece o nome de projeção” (E.S.B. XII Pág.73). Neste processo, explica Freud,
uma percepção interna é suprimida da consciência e, depois de deformada é
experimentada como externa. Esse mecanismo está também presente em outras
44
“condições psicológicas” (E.S.B. XII Pág.74) e também em pessoas normais. Neste
momento, devido ao fato de que “problemas psicológicos mais gerais acham-se
envolvidos na questão da natureza da projeção” (E.S.B. XII Pág.74), Freud deixa sua
investigação e, com ela, o mecanismo de formação de sintomas na paranóia em geral,
para outra ocasião.
O editor nos diz que não parece existir exame posterior deste assunto e que
“talvez Freud tenha tratado do tema em um dos artigos metapsicológicos desaparecidos”
(E.S.B. XII Pag74). Garcia-Roza (1995) nos diz, partindo do que exprime como
testemunho de Ernest Jones, que “Freud não considerava oportuna a publicação naquele
momento”. (1995 Pág. 16). Fato que Garcia-Roza acha estranho. O fato:
“torna-se ainda mais estranho, quando temos notícia de que os artigos não foram
perdidos, mas teriam sido destruídos pelo próprio Freud. A suposição de Jones é que
eles teriam sido destruídos por representarem o fim de uma época, o resumo final de
uma vida de trabalho, e que não se anunciava para Freud, naquele momento, um novo
período de produção individual. Esta me parece mais uma razão para que fossem
publicados ao invés de destruídos.” (Garcia-Roza, 1995 Pág.16).
Ainda segundo este autor, um dos artigos destruídos tinha como tema
“Sublimação e Projeção (ou Paranóia)” (1995 Pág.16).
O paradoxo freudiano se exprime, pois, na seguinte compreensão, a saber: a
doença visível (os sintomas delirantes), consiste na tentativa de cura ou resolução de um
conflito interno. Pelo mecanismo de projeção, o paranóico volta a ligar a libido ao
mundo externo, como se a libido pertencesse a esse mundo externo e ele fosse alvo
desta libido. Compreendemos assim o delírio como tentativa de tornar novamente
possível o amor objetal.
Esta compreensão gera outro paradoxo, desta vez encontrado na clínica. O
trabalho (e principalmente o acolhimento de pacientes delirantes) mostra que, enquanto
o paciente se encontra em crise, ou seja, muito delirante (fazendo a tentativa de voltar a
45
libido aos objetos), torna-se extremamente difícil a construção de vínculos. Desfaz-se o
paradoxo quando percebemos que, com a produção delirante menos intensa, ou seja,
quando o sistema delirante deu conta, pelo menos em parte, de sustentar o mundo
interno do paciente, este se encontra possibilitado a fazer vínculos. Digo produção
menos intensa referindo-me à quantidade de delírios apresentados, o que gera muita
confusão. Logo que o paciente entra em crise, ou quando esta está mais aguda,
observamos que muitos delírios diferentes são “produzidos”. Aos poucos, alguns deles
tomam o primeiro plano tornando-se a referência de realidade para o paciente.
Podemos relacionar tal acontecimento em Schreber em função do status que o
delírio do redentor vai, aos poucos, ocupando. Como vimos anteriormente, o delírio
de emasculação não desaparece, mas se consolida com o do redentor. Desta forma, o
paciente produz vários delírios, alguns ficam e dão respaldo a outros que ajudam a
estruturar o mundo do indivíduo. Neste ponto Freud refaz uma afirmação anterior:
“Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para
o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos que aquilo que foi
internamente abolido (aufgehobene) retorna desde fora.” (E.S.B. XII Pág. 78).
Rememoremos sobre o que dizia Freud no momento de sua primeira afirmação.
Naquele momento, Freud dizia da projeção. Portanto, aquilo que é projetado não teria
sido ‘suprimido’, ‘sufocado’ internamente, mas abolido (aufgehobene), termo que
também poderíamos traduzir por ‘cancelado’, ‘superado’ ‘renunciado’ ou ‘suspenso’.
Freud utilizaria o termo ‘abolido’ uma outra vez, poucos anos mais tarde, em
seu livro Totem e tabu”. Na seção (2) do segundo capítulo, Freud está explicando uma
fobia de contato a partir de uma história clínica que ele chama de típica. Nesta história
clínica criada pelo autor a título de ilustração ele diz que a criança aceita a proibição de
tocar-se e que, por conseguinte a pulsão é recalcada e não abolida. Por tal razão a pulsão
persiste, mas é “banida para o inconsciente”, nos levando a entender que, caso tivesse
46
sido abolida, ela não persistiria. A proibição também persiste “porque, se ela cessasse, a
pulsão forçaria seu ingresso na consciência e na operação real” (E.S.B. XIII Pág. 47).
No caso referente à projeção paranóica, o que teria sido abolido?
Compreendemos que Freud está falando da libido (assim como no trecho descrito
acima), ou seja, daquela libido que foi, no irromper da doença (dos sintomas), desligada
das pessoas. No caso descrito no texto de 1913, por não ter sido abolida, a pulsão
continuaria seu conflito com a proibição. Mas, vemos claramente na descrição de Freud
do caso Schreber, que o conflito entre a chamada libido homossexual (ou criação
projetiva homossexual), representada pelo que Freud chamou de fantasia feminina, e a
proibição, é exatamente o que foi apontado como uma das razões da irrupção dos
sintomas. Uma outra questão surge, a partir da idéia de que, aquilo que foi recalcado
persiste (no inconsciente) e o que foi abolido “não persiste”. Para onde vai o que foi
abolido?
Vimos no início do caso Schreber que a fantasia de desejo homossexual surge
inicialmente em um sonho, logo, oriunda de material inconsciente. Talvez ela (a
pulsão), estivesse em algum lugar inconsciente diferente do lugar destinado às pulsões
recalcadas
15
, ou seja, em um lugar em que não retornasse sistematicamente de forma
disfarçada até a primeira vez que fosse despertada.
Vemos em Garcia-Roza (1995), que a concepção de inconsciente como um
sistema, implica que este se distinga do sistema pré-consciente/consciente e que o
operador desta distinção é exatamente o recalque, sendo ele aquele que “responde pelo
modo de ser do conteúdo do inconsciente” (1995 Pág. 171). Desta forma, devemos
concluir que, no caso da paranóia, estamos tratando com um tipo diferente de recalque e
concordar com Freud em seu artigo publicado em 1924 intitulado “Neurose e Psicose”,
15
É claro que não me refiro a um lugar físico no inconsciente reservado às pulsões recalcadas. Descrevo
desta forma para que possamos visualizar melhor e, por conseguinte, melhor pensar a questão.
47
quando conclui que “resta a considerar a questão de saber qual pode ser o mecanismo,
análogo à repressão (recalque), por cujo intermédio o ego (Eu) se desliga do mundo
externo” (E.S.B. XIX Pág. 171).
No artigo de 1925 de nome “A Negativa” (Die Verneinung), Freud voltaria a
utilizar o mecanismo da ‘abolição’ ou ‘suspensão’, mas desta vez referindo-se ao
recalque. Como nos chama atenção Simanke (1994), neste momento Freud fala da
negação (ou negativa), como uma forma de ‘abolição’, ‘cancelamento’ do recalque.
Uma forma com a qual o recalcado pode chegar à consciência sem ser aceito ou muito
modificado, simplesmente negado.
“A negativa constitui um modo de tomar conhecimento do que está reprimido; com
efeito, já é uma suspensão (aufhebung) da repressão, embora não, naturalmente, uma
aceitação do que está reprimido”. (E.S.B. XIX, Pág. 296).
Neste fragmento percebemos a abolição recaindo justamente sobre o recalque, e
não em contraste com o recalque, como havíamos descrito antes.
Sobre a tradução deste termo, Garcia-Roza assinala que o termo conserva dois
sentidos, o de negar, e o de conservar. Logo, seria uma forma de negar sem nadificar,
sem transformar completamente em nada. Neste sentido, concordaremos com a tradução
feita pela Standard Edition para o termo neste texto, a saber: suspender. Nossa questão
é que, diferentes termos são escolhidos para traduzir um mesmo termo (ou termos
derivados) em alemão, o que nos dificulta no momento em que precisamos fazer
conexões com outros textos.
Observamos, com o decorrer da doença de Schreber, que é a proibição que é
abolida, colocada para fora, acontecendo então justamente o que Freud prevê no trecho
acima retirado do livro de 1913. A proibição cessa e a pulsão força seu ingresso na
operação realizada pelo paciente de reconstrução do seu ‘mundo real’.
48
Devemos apontar aqui que Freud continua a análise das memórias de Schreber
considerando que a libido foi recalcada, ou seja, inicialmente fixada, depois
propriamente recalcada e retornando em forma de sintomas. Nesta última fase do
recalque, a libido desligada do mundo externo vincular-se-á ao Eu e será utilizada no
engrandecimento deste, fazendo assim um retorno ao estágio do narcisismo, evidência
que nos leva a crer que os paranóicos trazem consigo uma fixação neste estágio.
Freud chama atenção para o fato de que o se pode asseverar que um
paranóico retire completamente seu interesse do mundo externo, pois percebemos que
ele está atento a qualquer mudança neste, pois essas mudanças influenciam suas
construções e explicações delirantes.
Ainda no texto destinado à análise das memórias de Schreber, Freud faz sua
primeira descrição detalhada do processo de recalcamento decompondo-o em três
partes. Ele inicia o exame sobre a forma e o mecanismo de recalque próprio da paranóia
sublinhando o fato de que, em psicanálise, encaramos os fenômenos ditos patológicos
como derivados do recalque.
A primeira fase é a fixação, ou o recalque original (Urverdrängung) fase em que
determinada pulsão ou componente pulsional é deixado para trás em um estágio mais
infantil, não acompanhando, assim, o desenvolvimento libidinal. Esse componente
pulsional comporta-se então “como se pertencesse ao sistema do inconsciente, como
reprimida” (E.S.B. XII Pág.74/75). Para compreendermos melhor essa fase devemos
introduzir o conceito de representante-representação (Vorstellungsrepräsentanz). O
termo representante-representação significa “o que representa (aqui, o que representa a
pulsão) no domínio da representação” (Laplanche e Pontalis, 1982, Pág. 455). Devemos
introduzir este termo para compreender que o recalque atua no representante-
representação, e não na pulsão propriamente dita, ou seja:
49
“um recalque original, que consiste em interditar ao representante
[Repräsentanz] psíquico da pulsão (à sua representação mental [Vorstellung]) a
entrada e admissão no consciente.” (E.P.I. Vol.I Pág. 178/179).
O representante-representação continuará existindo enlaçado a esse fragmento
da pulsão em um registro não acessível à consciência, o qual ainda não pode ser
chamado de inconsciente. Freud distingue dois componentes do representante psíquico
da pulsão (a representação e o afeto), sendo que, apenas o primeiro (o representante
representação) passa inalterado para o inconsciente (Laplanche e Pontalis, 1982, Pág
455). O recalque age diretamente sobre o representante-representação. E o que acontece
com o afeto? Para explicar o que acontece com o afeto Freud introduz o termo quantum
de afeto, ou como na tradução coordenada por L. A. Hanns, quantidade de afeto.
Segundo Freud:
“ele corresponde à pulsão, na medida em que se desprendeu da representação e
encontra expressão, de acordo com sua magnitude, em processos que se fazer
perceber à sensação na forma de afetos” (E.P.I. Vol. I Pág. 182).
Quanto aos destinos do afeto Freud aponta três possíveis, a saber: ele pode (1)
ser totalmente reprimido; (2) surgir “como afeto com determinado colorido qualitativo”
(E.P.I. Vol.I g. 182); ou, ainda, (3) ser transformado em medo. Freud diz que se um
quantum de afeto é sentido como desprazer ou medo, podemos entender que o recalque
fracassou pelo menos em parte (com relação ao afeto). Logo, vemos a possibilidade do
recalque falhar ainda na primeira fase.
Devemos voltar à citação em que Freud diz que o componente pulsional passa a
comportar-se “como se pertencesse ao sistema inconsciente”. O ‘como se’ aparece neste
momento justamente porque o sistema inconsciente ainda não existe como sistema
independente. Portanto devemos pensar que o representante-representação permanece
não consciente. “O recalque originário corresponde a um momento anterior à
constituição do sistema inconsciente, o que não significa que não possamos falar em
50
processos inconscientes.” (Garcia-Roza, 1995, pág. 191). Para Laplanche e Pontalis
(1982) é no mesmo ato (o recalque originário), que a pulsão fixa-se ao representante-
representação e que o inconsciente se constitui. Para nós, é neste mesmo momento (o da
constituição do inconsciente) que a libido se inscreve no inconsciente, ou seja, o
inconsciente se constitui com a marca do recalque, marca que definirá o
funcionamento psíquico do indivíduo. Temos agora a idéia de que a fixação refere-se a
duas fixações distintas, a saber, a fixação da pulsão ao representante-representação e
aquela à qual estávamos familiarizados, a fixação da pulsão em um ponto do
desenvolvimento libidinal.
À segunda fase do recalque Freud o nome de recalque propriamente dito.
Essa fase pode ser descrita como uma ‘Pós-pressão’. Podem sofrer recalque: derivados
psíquicos das pulsões originalmente recalcadas pela fixação, ou tendências psíquicas
que gerem aversão. Freud diz ainda que esta aversão não produziria o recalque por si só,
mas caso alguma vinculação tenha sido estabelecida entre essas tendências e aquelas
recalcadas na primeira fase. Em outras palavras:
“o recalque propriamente dito, refere-se a representações derivadas do
representante recalcado ou ainda àquelas cadeias de pensamento que, provindo de
outros lugares, acabam estabelecendo ligações associativas com esse representante”
(E.P.I. Vol. I Pág. 179).
Neste caso, o consciente exerceria sobre essas tendências uma força repulsora
em direção ao inconsciente e este atrairia tais tendências, o que resultaria no recalque
destas. Garcia-Roza nos atenta para o fato de que, mais de vinte anos depois, no artigo
“Análise terminável e interminável” (1937), Freud afirma que “todos os recalques
acontecem na primeira infância”. Sobre esta sentença Garcia-Roza explica que devemos
ter em mente que, os recalques (primário e secundário) realmente ocorrem na primeira
infância, mas o recalque secundário não pára de ocorrer outra e outra vez, incidindo
51
sobre os derivados do representante recalcado pelo recalque original. (Garcia-Roza,
1995, Pág. 196/197).
Percebemos também que o recalque não elimina o representante-representação
completamente. O recalque muda a relação deste representante com o sistema pré-
consciente/consciente. O representante recalcado continua a agir no inconsciente (que é
formado por estes representantes); o representante pulsional recalcado continua
“existindo no inconsciente (não impedido de) continuar a se organizar, a formar novas
representações derivadas e estabelecer ligações” (E.P.I. Vol. I Pág. 179). Pelo contrário,
segundo Freud o representante recalcado se desenvolve
“de forma mais desimpedida e com maior riqueza quando, por meio do
recalque, é retirado da influência consciente. Ele então prolifera, por assim dizer, na
escuridão e encontra formas de expressão extremas.” (E.P.I. Vol.I Pág. 179).
Sobre essas “formas de expressão extremas” encontradas pelo representante
recalcado é que se trata a terceira fase do recalque, ou o retorno do recalcado. A
principal importância desta fase é que, através destes fenômenos é que temos acesso
àquilo que sucumbiu sob o signo do recalcamento. Deduzimos o recalque de forma
retroativa.
No caso Schreber, Freud se refere a esta fase como a fase dos fenômenos
patológicos” (E.S.B. XII Pág. 75) propriamente ditos. Essa fase é a do fracasso do
recalque, do fracasso porque, nesta fase, o que foi recalcado retorna. Dessa forma, o
recalcamento fracassa em relação a seu objetivo que é o de “repelir algo para fora do
consciente e mantê-lo afastado deste” (E.P.I. Vol. I Pág. 178). Aprendemos no artigo
metapsicológico destinado ao recalque que, quanto mais afastadas do representante
recalcado original, mais provável que representações que mantêm relação com o
representante recalcado surjam na consciência. Este afastamento pode se dar por
52
deformações ou pela “interpolação de certa quantidade de elos intermediários” ( E.P.I.
Vol. I Pág. 180).
Além dos sintomas ou formações patológicas, outro efeito produzido pelo
recalque é o que Freud chamou de formação substitutiva. São formações que substituem
o representante recalcado, como os atos falhos. De certa forma, os sintomas são também
formações substitutivas que irrompem do inconsciente. “Esta irrupção toma impulso do
ponto de fixação, e implica uma regressão do desenvolvimento libidinal a esse ponto”
(E.S.B. XII Pág.75)
O mecanismo de formação de sintomas na paranóia exige que percepções
internas e sentimentos sejam substituídos por percepções externas (projeção). No caso
da fantasia de desejo homossexual, Freud propõe a deformação da seguinte sentença:
“eu (um homem) o amo”. A partir das deformações desta sentença (que ocorrem no
inconsciente), ele explica os delírios de ciúme, a erotomania, os delírios de perseguição
e a megalomania.
A primeira deformação proposta por Freud contradiz o verbo: “Eu o odeio”.
Como a formação de sintomas da paranóia exige que as percepções sejam vividas como
externas, o mecanismo de projeção altera esta sentença. “Ele me odeia (persegue)”.
Freud explica que essa afirmação permite ao paranóico que ele odeie o outro. “Eu não o
amo, eu o odeio porque ele me persegue” (E.S.B. XII Pág. 71). Essa explicação também
engloba a noção de que o perseguidor é alguém que foi anteriormente amado.
A segunda deformação, formada para explicar a erotomania, deforma o objeto da
frase. “Eu não o amo, eu a amo”. Novamente o mecanismo de projeção efetua a
externalização da percepção: “Ela me ama”. Desta forma a sentença explica um delírio
muito comum e observável na clínica. O paciente tem certeza que está sendo amado por
sua analista.
53
A terceira deformação explica os delírios de ciúme. “Eu não o amo, ela o ama”.
Neste caso o paciente passa a suspeitar que sua esposa o traia com todos os homens,
outro delírio muito comum. Nesta sentença não existe necessidade da projeção, pois,
desde que o sujeito da frase foi mudado, a externalização está feita. Essa deformação
já é uma forma de projeção.
A quarta proposição é a negação completa da frase. “Eu não amo ninguém”,
como a libido tem que ir para algum lugar, essa deformação é responsável pela volta da
libido para si mesmo, para o próprio Eu. Essa quarta forma de deformação da sentença
original explica o narcisismo e a megalomania, que Freud encara como a
supervalorização sexual do Eu.
Freud defende a idéia de que a paranóia seja “mantida como um tipo clínico
independente” (E.S.B. XII g.82), diferenciado da demência precoce ou da
esquizofrenia
16
.Freud propõe que o termo utilizado para essa outra afecção seja
parafrenia
17
, por não possuir “conotação especial e serviria para indicar um
relacionamento com a paranóia” (E.S.B. XII Pág. 83). Ele aponta que nas parafrenias
(esquizofrenias) o “prognóstico é, em geral, mais desfavorável que na paranóia” (E.S.B.
XII Pág. 83), que a reconstrução vence e a regressão estende-se a um completo
abandono do amor objetal, diferentemente da idéia desenvolvida na paranóia de que a
reconstrução leva a libido de volta aos objetos anteriormente amados, mesmo que de
forma negativa. A regressão ao narcisismo manifesta-se sob a forma de megalomania.
Freud diz que a fixação desta afecção deve situar-se mais atrás do que na paranóia.
Ao fim do relato sobre as memórias de Schreber, Freud afirma que construiu sua
teoria da paranóia antes de familiarizar-se com as memórias do Senatspräsident. Isso é
16
A partir do grego schizen (fender, clivar) e phrenós (pensamento). Pensamento, ou mente dividida.
Termo escolhido por Bleuler ao qual Freud aceita com certas restrições.
17
Termo proposto por Freud em lugar do termo esquizofrenia. Do grego para (contra) e phrenós
(pensamento). O termo foi usado por Freud no plural (parafrenias), também para designar as psicoses de
forma mais geral (esquizofrenia e paranóia).
54
confirmado pelo tradutor na nota que inicia o caso. Nesta, ele afirma que em cartas a
Jung e Ferenczi datando 1908 Freud já havia descrito sua teoria sobre a paranóia.
Naquela época, Freud pensava na relação entre paranóia e homossexualidade.(Quinet
2003 e Del Campo 2003). O segundo autor ainda esclarece que:
“para Freud nesses anos a ‘catexia homossexual’ ou a ‘libido homossexual’
não se referem à homossexualidade como desvio sexual, senão ao desejo sexual
inconsciente de um homem por outro, esconde o ‘chamado amoroso’ ao pai.” (Del
Campo,2003, pág. 146).
Sabemos ainda por Jones (como nos revela a nota do editor inglês ao caso
Schreber) que Freud apresentou, em 1906, um caso de paranóia feminina perante a
sociedade psicanalítica de Viena, caso que não se encontra entre seus escritos. Ainda
segundo o editor inglês, naquela ocasião “Freud aparentemente ainda não havia
chegado” à sua teorização sobre a paranóia e sua relação com a homossexualidade,
apesar de trechos bem anteriores já nos remeterem a tal pensamento:
"As primeiras imagens de um abdome de mulher haviam surgido no estabelecimento
hidropático, poucas horas depois dela ter visto, de fato, diversas mulheres nuas nos banhos;
assim, tais imagens revelaram ser simples reproduções de uma impressão real. Era de se
presumir, portanto, que essas impressões se haviam repetido apenas por causa de um grande
interesse ligado a elas". (E.S.B. III pág. 177).
Logo no início do Pós-Escrito Freud afirma que se restringiu propositadamente
ao mínimo de interpretação em seu escrito sobre Schreber, confiante de que leitores com
conhecimento de psicanálise aprenderiam mais do que ele explicitamente afirmou. Essa
asserção nos diz que Freud não concluiu a questão das psicoses, mas tampouco nos
deixou órfãos deste conhecimento. Freud entregou àqueles que queiram reler sua obra a
base para a compreensão dos conflitos e mecanismos presentes nas psicoses, utilizando
como modelo a paranóia.
55
1.3 O Narcisismo, o Inconsciente e as Neuroses Narcísicas
O artigo sobre o narcisismo, publicado em 1914, que foi terminado por Freud em
fevereiro deste mesmo ano (época em que escrevia, simultaneamente, a “História do
movimento psicanalítico”) é, sem dúvida, um dos mais importantes para trabalharmos
aqui. A palavra narcisismo estava presente em alguns textos de Freud anteriores a
este, como vimos no caso Schreber (1911). O termo também encontra-se presente no
livro sobre Leonardo Da Vinci (1910) e também no livro “Totem e Tabu” (1913). Mas,
a primeira vez que o termo apareceu em uma publicação de Freud foi em 1910, na
segunda edição dos Três Ensaios, edição terminada no fim de 1909.
Paulo Ribeiro nos diz que a discussão sobre a questão do narcisismo estava
presente nos encontros da Sociedade Psicanalítica de Viena desde 1908. A utilização do
termo narcisismo é atribuída a Binet e, posteriormente, foi utilizado por Näcke e Ellis.
No meio psicanalítico este termo foi introduzido por Isidor Sadger, discípulo de Freud.
É também atribuída a Sadger a idéia de que o narcisismo é uma fase anterior à
genitalidade.
Sadger, para explicar uma escolha de objeto homossexual, introduz “impressões
sobre a possível origem narcísica desse tipo de escolha sexual” (Ribeiro, 2000. Pág. 14).
Sadger escreveria, ainda neste ano, seu artigo sobre o narcisismo, em que privilegiaria o
narcisismo e as identificações precoces com a mãe para explicar a homossexualidade.
Freud passa então a pensar o narcisismo e começa a introduzi-lo como conceito
em sua teoria psicanalítica. Nessa atmosfera surge o texto de 1914, cujo título em
português seria mais bem traduzido por: “Sobre a introdução do conceito de
Narcisismo”, ou seja, sobre a introdução do conceito na teoria.
56
Neste texto, extremamente condensado, Freud traçará vários pontos de partida
importantes para o desenvolvimento da teoria psicanalítica. Neste momento, as
dissidências de Adler e Jung estavam muito presentes na mente de Freud, como nos
conta Ernest Jones (1953). Jung havia recentemente criticado o estudo de Schreber feito
por Freud e dito que não podia distinguir a libido do resto da energia mental. Desta
forma, para Jung, o termo libido “deixava de ter qualquer significado específico”.
(Jones, 1953 Pág. 307).
Alguns dos pontos discutidos por Freud neste artigo são: a teoria da libido
(quando traça nova distinção entre ‘libido do Eu’ e ‘libido objetal’); o estudo de dois
tipos de escolha objetal (o tipo narcísico e o tipo anaclítico); a introdução da idéia de
‘ideal do Eu’ (Idealich ou das ideale Ich), que posteriormente seria a base para a
formação do conceito de ‘Super-Eu’ ou ‘Supra-Eu’. Por essa breve descrição, temos
idéia do quão importante este artigo é para a teoria freudiana e compreendemos também
porque Ernest Jones o chama de “perturbador” (1953 Pág. 304/305). Este ensaio de
Freud deu uma boa mexida nos conceitos e bases com que trabalhava o pensamento
psicanalítico da época. Devido à grande densidade e diversidade de temas abordados
neste ensaio, resolvemos escrever apenas sobre as partes consideradas relevantes para
nossa discussão acerca das psicoses.
No início do ensaio, Freud diz que uma posição narcísica dificulta a
possibilidade de influência dos pacientes pela psicanálise. Sobre os parafrênicos, em
conseqüência do desligamento de seu interesse pelo mundo exterior, o ensaio nos fala
que a psicanálise não pode curá-los. Por outro lado, Freud aponta para a importância
dessas afecções para a introdução da “idéia de um narcisismo primário e normal” (E.P.I.
Vol. I Pág. 97).
57
Ainda no artigo sobre o narcisismo, Freud diz que o desinvestimento libidinal no
mundo externo ocorre não somente nos parafrênicos, mas “também o paciente histérico
e o neurótico compulsivo, dependendo do grau de sua enfermidade, desistiram de sua
relação com a realidade” (E.P.I., Vol. I Pág. 98). A diferença assinalada por Freud é que
os neuróticos investem essa libido em fantasias e objetos imaginários, enquanto os
parafrênicos não. Essa substituição seria, na parafrenia, um processo secundário,
fazendo parte da tentativa de cura. O processo primário seria, para Freud, o
investimento libidinal do Eu. Desta forma, o delírio de grandeza seria um retorno a um
estado que existira, a saber, ao narcisismo. A este estado Freud nomeou narcisismo
secundário em oposição ao primário, constituinte do sujeito.
Neste ‘processo secundário’, entendemos que o investimento libidinal está no
delírio, que tenta reconduzir a libido aos objetos. Na parte final do artigo
metapsicológico “O inconsciente”, Freud retomará o tema da forma de recalque da
esquizofrenia e tentará explicar esse desinvestimento libidinal e suas substituições a
partir dos conceitos de representação de coisa e representação de palavra.
Nas neuroses de transferência,
18
a “libido que é retirada do objeto real reverte
primeiro a um objeto fantasiado e então a um objeto reprimido” (E.S.B. XIV. Pág. 224),
mas o investimento objetal persiste no inconsciente, enquanto na esquizofrenia
19
, essa
libido retorna para o Eu. A partir desta afirmação (muito próxima daquela do ensaio de
1914), Freud buscará entender o que acontece no processo de retirada da libido dos
objetos na esquizofrenia.
18
Termo utilizado por Freud neste momento de seu pensamento para designar o conjunto das neuroses
compreendidas pela histeria de angústia, histeria de conversão e neurose obsessiva, em oposição às
neuroses narcísicas. Posteriormente viria a ser usado no sentido de uma neurose ‘artificial’, criada na
relação com o analista.
19
Entendemos que, neste momento, Freud está utilizando a esquizofrenia como exemplo para se referir
aos processos psíquicos presentes nas psicoses (aferimos isso de nossa interpretação do texto).
58
A partir de observações de um caso, Freud percebe que, na fala destes pacientes
as palavras estão sujeitas a um processo de condensação e deslocamento que transfere
integralmente o investimento pulsional de umas (palavras) para outras. Freud nos atenta
para o fato de que esse é “um processo igual ao que interpreta as imagens oníricas dos
processo oníricos latentes – que chamamos de processo psíquico primário” (E.S.B. XIV.
Pág. 227). Deste modo, “o que dita a substituição não é a semelhança entre as coisas
denotadas, mas a uniformidade das palavras empregadas para expressá-las” (E.S.B.
XIV. Pág. 229).
Agora Freud divide o objeto, ou representação consciente do objeto, em
representação de coisa e representação de palavra. A representação de coisa é
investimento nas imagens da memória da coisa ou de derivados desta. A representação
consciente seria a representação de coisa mais a de palavra, enquanto a representação
inconsciente, seria apenas a de coisa. A compreensão desta distinção nos permitirá, a
partir de agora, entender o que acontece com a libido retirada do objeto real na
esquizofrenia.
Nas ditas “neuroses de transferência”, o recalque nega à representação recalcada
a sua tradução em palavras. Desta forma, a representação de coisa (investimento em
memória ou traços de memória da coisa, encontrada no inconsciente) nas neuroses de
transferência permanece preservada, o que explicaria, por exemplo, as conversões
histéricas (importante perceber que o conceito ‘representação de coisa’, já supõe
existência de investimento, catexia). Nas esquizofrenias, o investimento objetal não
seria completamente abandonado, preservando seu investimento nas representações de
palavra.
As representações de palavra têm uma estreita ligação com a consciência, como
nos elucida o Vocabulário de Psicanálise: “As representações de palavra são
59
introduzidas numa concepção que liga a verbalização e a tomada de consciência”.
(Laplanche e Pontalis 1982 Pág. 450). Freud as relaciona e localiza no sistema Pré-
Consciente, explicando que, ligar-se às representações de palavra não significa tornar-se
consciente, mas essa ligação possibilita que esta conscientização aconteça.
Portanto, a frustração é responsável, nas neuroses de transferência, por retirar a
catexia do objeto real e, o recalque, por mantê-la na representação coisa (inconsciente).
Nas denominadas ‘neuroses narcísicas’
20
, a frustração continua responsável pela retirada
da libido, e o investimento nas representações de palavra se trata da tentativa de
recuperação, ou retorno da libido aos objetos, conforme descrito no caso Schreber.
Sendo o recalque um processo que ocorre entre os sistemas Ics. e Pcs.(ou Cs.)
resultando em manter-se algo à distância da consciência” (E.S.B. XIV. Pág 232), nos
juntamos a Freud em seu questionamento acerca do que há (se é que ) de comum
entre o recalque na esquizofrenia e nas neuroses de transferência. Se pensarmos o
recalque como responsável por manter uma representação no sistema inconsciente, essa
nova formulação sobre os destinos pulsionais no adoecimento psicótico nos impede de
conceber um recalque na psicose. Nas neuroses de transferência, o recalque é o
responsável por levar o investimento das fantasias para as representações de coisa. Nas
parafrenias, algo deve levar o investimento do Eu para as representações de palavra,
mas não poderíamos chamá-lo de recalque devido à relação deste termo com conteúdos
inconscientes. Alguma força ou processo psíquico age sobre a catexia libidinal egóica
(narcisismo secundário) para catexizar as representações de palavra. Voltaremos,
portanto, a concordar com Freud; desta vez quando ele afirma que “[essa fórmula do
20
Termo utilizado por Freud para designar uma afecção caracterizada pelo reinvestimento da libido no
Eu. Conceito freudiano que é antepassado direto do conceito psicoses. Como nos conta Simanke (1994),
essa expressão foi sendo aos poucos abandonada com a elaboração da segunda tópica. “Abarca mais ou
menos completamente aquilo que em breve virá a incluir-se sob o rótulo de psicose” (Simanke, 1994,
Pág. 132/133).
60
recalque] deve, de qualquer maneira, ser modificada, a fim de também poder incluir o
caso da demência precoce e outras afecções narcísicas” (E.S.B. XIV. Pág. 232).
Voltando ao ensaio de 1914, Freud diz que o fracasso da manutenção da libido
no Eu nas parafrenias é análogo ao fracasso das formações de fantasia nas neuroses de
transferência. Tais fracassos “correspondem à hipocondria da parafrenia, que é análoga
ao medo [angst] encontrado nas neuroses de transferência” (E.P.I. Vol. I. Pág. 106).
Ainda neste texto, Freud diz que esse medo pode “ser dissolvido através de mais
trabalho psíquico, portanto, por meio de conversão, formação reativa e formação
protetora (fobia)”. (E.P.I. Vol. I. Pág. 106). Nas parafrenias, as manifestações análogas
àquelas descritas para as neuroses de transferência são os delírios, manifestações que
são a tentativa de restituição da libido objetal.
Freud afirma que a parafrenia implica, freqüentemente, em uma retirada
parcial da libido dos objetos. Esta afirmação busca explicar o ‘algo’ de relação que o
parafrênico mantém com a realidade, o que é observável, e Freud chama de
“manifestações residuais observáveis na parafrenia” (E.P.I. Vol. I. Pág. 107). Outros
dois grupos de fenômenos parafrênicos são apontados por Freud no trecho abaixo.
(2) manifestações do processo de adoecimento (retirada da libido dos objetos, incluindo
o delírio de grandeza, a hipocondria, a perturbação afetiva e todas as regressões); (3)
manifestações da tentativa de restituição, por meio de novo esforço de anexar a libido aos
objetos, de modo análogo ao que ocorre numa histeria (observável no caso da dementia praecox,
a parafrenia propriamente dita), ou de modo análogo ao que acontece numa neurose compulsiva
(observável no caso da paranóia)”. (E.P.I. Vol. I. Pág. 107).
Entendemos que a relação feita por Freud entre a histeria e a esquizofrenia e
entre a neurose obsessiva e a paranóia deve-se ao fato dos sintomas predominantemente
corporais na esquizofrenia e da relação da paranóia com uma instância observadora,
algo muito presente na neurose obsessiva, chamada por Freud de neurose de coerção.
61
Achamos esta tradução interessante, pois verificamos no obsessivo este sentimento de
estar sendo coagido a fazer algo por uma instância sobre a qual ele não tem controle.
Freud relacionaria novamente a paranóia e a neurose obsessiva quando, ainda no artigo
sobre o narcisismo, introduz a idéia de Ideal de Eu.
Freud aponta a existência de um Ideal de Eu que seria descendente direto do
narcisismo. O sujeito deixaria seu narcisismo para venerar um Ideal de Eu. Neste
momento Freud conclui que, pautando-se em um ideal, o Eu passa a ser cobrado por
aquele ideal. Essa instância seria como uma consciência moral que seria também
condição para o recalque, dessa forma o recalque partiria de um ideal criado pelo Eu,
para ele mesmo. Essa instância observadora ou consciência moral nos ajudaria a
entender os delírio de estar sendo observado e também no grande vel de exigência
sentido pelos obsessivos.
Associada à influência dos pais e da sociedade, a formação desta instância seria
responsável pela mobilização de grandes quantidades de libido homossexual. Estas
grandes quantidades de libido homossexual encontrariam meio de escoamento “nas
atividades necessárias para a conservação desse ideal” (E.P.I. Vol. I Pág. 114).
Sobre a escolha objetal narcísica, Freud chama nossa atenção para o fato de que,
aquele que faz uma escolha objetal do tipo narcísico, “não se pauta pela imagem da
mãe, mas pela de sua própria pessoa” (E.P.I. Vol. I Pág. 107). Seria, portanto, uma
escolha pautada na própria imagem refletida no outro, ou colocada, projetada no outro,
baseada na identificação.
Em um artigo de 1915, publicado em 1917, junto com os outros artigos
metapsicológicos intitulado "Suplemento Metapsicológico À Teoria dos Sonhos", Freud
volta a fazer um elo entre sonhos e delírios. A partir da teoria do narcisismo, ele mostra
que, durante o sono, as catexias libidinais são voltadas para o Eu, assim como na fase
62
alucinatória da esquizofrenia ou na amência de Meynert. Com o conceito de "teste de
realidade", o autor faz um entendimento do porque a alucinação dá ao sujeito que
alucina a sensação de realidade e de realização de desejo. Ele diz que, na amência,
diante de uma perda afirmada na realidade e insuportável para o Eu, este rompe com
essa realidade desviando a catexia do sistema Pctp/Cs e direcionando para fantasias e
desejos conscientes. Esses avançam para dentro do sistema, de onde voltam com status
de realidade para o sujeito que as percebe. Já na esquizofrenia, Freud considera que o
Eu do paciente deve estar "de tal forma desintegrado, que o teste de realidade não
atrapalha mais a alucinação”. (E.S.B. XIV Pág. 241).
Ainda neste artigo, Freud fala de uma negação (verleugnung) da realidade por
parte do Eu, por ser insuportável. A partir desta negação é que o Eu do sujeito rompe
com a realidade, da forma descrita acima.
Em outro artigo metapsicológico "Luto e Melancolia", Freud descreve a
melancolia e seu modelo normal, o luto, como momentos em que o mundo externo
encontra-se desinvestido de libido. No luto, a retirada da libido acontece após a
percepção (pelo teste de realidade), de que o objeto não mais existe, enquanto na
melancolia o objeto perdido não é consciente. (Knopman, 1989).
Na melancolia ocorre o que Freud chamou de "delírio de inferioridade
(principalmente moral)" (E.S.B. XIV g. 252), devido ao fato de a perda sofrida pelo
melancólico ser "relativa a seu ego"(E.S.B. XIV Pág. 253), acontecendo uma espécie de
divisão do Eu em que uma parte torna-se objeto da outra. Neste momento, ocorreria
uma identificação do Eu com o objeto amado, tipo de escolha objetal narcisista. No
longo trecho que se segue, o autor discorrerá sobre esse tipo de escolha objetal, o que
poderá nos dar uma luz para o entendimento que busca este trabalho.
"Uma ou duas coisas podem ser diretamente inferidas no tocante às
precondições e aos efeitos de um processo como este. Por um lado, uma forte fixação
no objeto amado deve ter estado presente; por outro, em contradição a isso, a catexia
63
objetal deve ter tido pouco poder de resistência. Conforme Otto Rank observou com
propriedade, essa contradição parece implicar que a escolha objetal é efetuada numa
base narcísica, de modo que a catexia objetal, ao se defrontar com obstáculos, pode
retroceder para o narcisismo. A identificação narcisista com o objeto, se torna então,
um substituto da catexia erótica ,e , em conseqüência, apesar do conflito com a
pessoa amada, não é preciso renunciar à relação amorosa. Essa substituição da
identificação pelo amor objetal constitui importante mecanismo nas afecções
narcisistas; Karl Laudauer (1914), recentemente, teve ocasião de indicá-lo no
processo de recuperação num caso de esquizofrenia. Ele representa, naturalmente,
uma regressão de um tipo de escolha objetal para o narcisismo original." (E.S.B. XIV
Pág. 255).
Este longo trecho nos diz do tipo de escolha objetal feita por sujeitos acometidos
de afecções narcísicas, ou psicóticos. O início da citação fala da forma de vinculação
que existiu um dia com o objeto. Essa vinculação, estreita, mas frágil, refere-se a um
modo de escolha objetal narcísica, baseada na identificação, da forma descrita acima.
Como já havíamos dito, acreditamos que nessa forma de escolha objetal o indivíduo
apaixona-se por si mesmo refletido no outro. Esta maneira de se relacionar com o
mundo pode ser vista também nas relações transferenciais, em que a identificação é,
muitas vezes, extremamente necessária para um possível trabalho com esses sujeitos.
1.4 A Segunda Tópica freudiana e o conceito de Psicose
Chama-se segunda tópica a nova divisão do aparelho psíquico proposta por
Freud em 1923 no artigo “O ego e o Id”. Esta nova visão do aparelho psíquico definirá
os conceitos de Isso (Id) Eu (Ego) e Supereu (Superego) e tentará delimitar suas funções
e relações. Na nova concepção freudiana, o Isso será o representante pulsional, O
Supereu será uma instância crítica constituída de interiorizações de exigências externas
64
enquanto o Eu representa os interesses do conjunto do indivíduo. Desta forma, o Eu fica
sendo o responsável pela mediação entre o Isso, o Supereu e as exigências da realidade.
Um “servo de três senhores”.
A reformulação da teoria freudiana não deixou de lado o conceito de narcisismo,
mas modificou-o progressivamente, aproximando o narcisismo do auto-erotismo. Na
verdade, algumas idéias expostas no artigo de 1914 sobre o narcisismo foram de grande
importância para a construção do novo pensamento freudiano, como a idéia esboçada
então sobre o Ideal de Eu e a nova teoria das pulsões que, naquele artigo, reunia as
pulsões do Eu e de Objeto sob a forma de pulsão sexual. Esta concepção pulsional
acabava com a dualidade pulsional, que voltaria a existir a partir do desenvolvimento do
conceito de pulsão de morte.
Partindo da teorização sobre a compulsão à repetição, dos estudos sobre o
Masoquismo e agressividade, Freud concluiu que existia, junto à pulsões sexuais (que
agora seriam rebatizadas de Eros, ou pulsão de vida), uma pulsão de destruição,
responsável pela tendência ao regresso, à não-vida. Deste modo, o narcisismo seria
mortífero, pois, nele, ambas as pulsões estariam voltadas para o próprio sujeito. Como
nos diz Simanke (1994), em “Além do Princípio do Prazer” (1920) Freud levanta a
hipótese de que “é a necessidade de afastar de si a pulsão de morte que move o ego
primitivo rumo à superação do narcisismo primário, externalizando-a sob a forma de
agressividade”. (E.S.B. XVIII Pág. 173/174).
Segundo Jones (1953), o processo antes denominado por Freud de narcisismo
secundário (momento em que a libido, antes ligada a objetos externos retornaria ao Eu),
é agora denominado como o “narcisismo inicial do ego” (Jones, 1953 Vol. III Pág. 283).
Laplanche e Pontalis (1982) relatam que Freud passa a denominar narcisismo primário
um estado primitivo (anobjetal) “caracterizado pela total ausência de relações com o
65
meio, por uma indiferenciação entre o ego e o id” (1982 Pág. 288). O Eu seria formado
por identificações com os objetos externos. Deste modo, para Freud, o investimento
pulsional em um Eu identificado com um objeto deveria ser chamado agora ‘narcisismo
secundário’.
A partir desta nova concepção, Freud viu a necessidade e uma possibilidade de
rever o que descreve como já conhecido, desde outro ângulo. Assim, prevê Freud,
poderíamos descrever o conhecido de forma mais convincente. Desta forma ele inicia o
artigo de 1925 chamado “Neurose e Psicose” vendo a necessidade de escrever sobres
estas duas classes nosográficas a partir de sua nova concepção tópica.
Segundo Simanke (1994), este artigo marca “a introdução da psicose como uma
categoria nosográfica genuinamente freudiana” (Simanke, 1994. Pág. 165). Ainda
segundo este autor, a maneira como Freud utilizava o termo ‘psicose’ até então não
pode ser considerada de outra forma senão descritiva. Com essa nova nosografia, volta a
surgir a necessidade de explicar a psicose metapsicológicamente. Esta tentativa ocupará
o pensamento freudiano até o fim de seus escritos.
Sendo assim, este curto artigo publicado em 1924 e escrito nos últimos meses de
1923 tem grande importância para nós. Logo no início do texto Freud propõe uma
fórmula simples para o entendimento da diferença entre neurose e psicose:
"a neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o
desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo
externo." (E.S.B. XIX. Pág.167).
O próprio autor desconfia da simplicidade da sentença logo em seguida a seu
anúncio. Na verdade, a observação de que a psicose implica um distúrbio com relação
ao mundo externo não poderia ser considerada uma novidade. Este fato é facilmente
66
observável e estava presente em outros escritos do próprio Freud. Mas, como o
próprio autor afirma, essa fórmula pode servir de base para entendimentos que se
seguirão.
Percebemos que as neuroses seriam geradas com conflitos entre instâncias
psíquicas. O Eu se defenderia contra os impulsos do Isso utilizando-se do recalque. O
material recalcado encontraria formas de emergir na consciência pelos sintomas. Freud
afirma que poderíamos pensar que, quando do recalque, o Eu está seguindo comandos
do Supereu, que, em sua origem, seriam também do mundo externo. Logo, em uma
neurose, o Eu ‘tomaria partido’ do Supereu contra os desejos do Isso.
Nas psicoses, (neste momento Freud refere-se à amência de Meynert), o
representante interno do mundo externo, composto por “lembranças de percepções
anteriores, as quais [...] são uma possessão do ego” (E.S.B. XIX. Pág. 191) é
desinvestido, e, o Eu cria, “autocraticamente, um novo mundo externo e interno”(E.S.B.
XIX. Pág. 191). Esse novo mundo seria construído de acordo com os desejos do Isso e o
motivo para tal dissociação seria a frustração (impedimento de ação) de um desejo,
frustração que seria efetuada por parte da realidade.
Simanke (1994) aponta que esta idéia retoma aquela exposta por Freud em 1894
de que aconteceria na psicose uma recusa de um fragmento de realidade e,
concomitantemente, a recusa de parte do Eu associada a este fragmento.
21
Esta mesma
idéia aponta uma etiologia comum à irrupção de uma neurose ou psicose, a
frustração.Esta frustração não seria outra senão a frustração de um desejo infantil.
Pensamento a que Freud permaneceu adepto desde a idéia de fixação.
Nos interessa apontar para o fato de que, aqui, Freud reserva o termo
‘psiconeurose narcísica’, para distúrbios relativos a conflitos entre Eu e Supereu. Neste
21
Essa afirmação freudiana foi apresentada por nós no início deste capítulo, no item dedicado aos textos
de Freud relacionados à psicose escritos antes do Caso Schreber.
67
momento a única neurose narcísica definida por ele será a melancolia, separadamente
das psicoses. Também é interessante ressaltar o fato de que, neste texto, Freud
aproximará as “incoerências, excentricidades e loucuras dos homens” (E.S.B. XIX. Pág.
193) das suas perversões sexuais. A aceitação destas poupariam estes homens de
recalques.
Chegamos então a outra fórmula, não tão simples quanto a primeira, mas muito
próxima daquela. Se, o Eu cede às imposições do mundo externo (na forma do
Supereu), o sujeito se tornará um neurótico; cedendo às pressões do Isso, esse sujeito
será um psicótico. Ao fim deste breve, mas importante artigo, Freud levanta a questão
sobre qual mecanismo, análogo ao recalque, estaria envolvido nas psicoses. Esta
questão, na qual nos havíamos introduzido, será crucial nesta nova fase do
pensamento freudiano.
Pouco tempo depois da publicação do artigo “Neurose e Psicose”, Freud
publicou outro artigo destinado ao entendimento das questões envolvendo a
diferenciação entre a neurose e a psicose. Neste novo artigo chamado “A perda da
realidade na Neurose e na Psicose” (1924), o psicanalista retoma a discussão anterior
introduzindo uma nova observação à questão das neuroses e psicoses. Na neurose,
assim como na psicose, existe também uma perda da realidade. Esta nova observação
poderia ir de encontro à afirmação de que na neurose, a serviço do Supereu, o Eu
suprime um fragmento do Isso, enquanto na psicose, servindo ao Isso o Eu responde
pelo afastamento de parte da realidade. Outra possibilidade trazida por esta questão é
vislumbrar mais uma vez na teoria fato observável na clínica, a saber, de que tampouco
o psicótico perde completamente seu contato com a realidade. Ele (o psicótico) mantém
algum contato com a realidade. Analogamente o neurótico perde algum contato com a
mesma.
68
Para explicar como a perda da realidade se de modo distinto nas duas classes
nosográficas, Freud divide o adoecimento em dois momentos, tanto na neurose como na
psicose. Esta divisão havia sido feita por Freud em outros termos em vários outros
escritos, mas devemos retoma-la aqui para compreender o que o autor nos traz agora.
Na neurose, de forma simplificada, essa divisão seria a seguinte: o recalque e o retorno
do recalcado. Freud insiste no fato de que a doença propriamente dita seria o retorno do
recalcado, momento em que se dá a perda da realidade na neurose.
Na psicose, o processo seria parecido, mas a perda da realidade aconteceria no
momento oposto, visto que o retorno, ou os sintomas, nestas afecções seria a tentativa
de cura. Na psicose, o sintoma seria a tentativa de retomar o contato perdido com a
realidade.
A etiologia das duas classes de adoecimentos psíquicos continua, para Freud,
relacionada à frustração. Neste texto, porém, o autor diz isso relacionando essa etiologia
ao Isso. Ambas seriam uma “expressão de uma rebelião por parte do Id contra o mundo
externo” (E.S.B. XIX Pág. 231). A principal diferença encontra-se, na verdade, na
primeira reação à frustração. Na neurose, este momento corresponderia ao recalque. E
qual seria o mecanismo análogo na psicose? Freud começa a tentar definir este
mecanismo com a seguinte fórmula: “Ou ainda, expresso de outro modo: a neurose não
repudia (verleugnet) a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia (verleugnet) e
tenta substituí-la”. (E.S.B. XIX. Pág. 231).
Este repúdio descrito neste fragmento por Freud trata-se do início do conceito de
‘renegação’ (verleugnung). Este mecanismo que havia sido incluído quando Freud
dizia, neste mesmo texto, da forma como uma psicótica trataria uma realidade
insuportável, será uma tentativa de especificar um mecanismo propriamente psicótico.
Segundo Hanns (1996), não podemos considerar que, em Freud, o termo Verleugnung
69
tenha adquirido papel rígido na expressão de um mecanismo psíquico. Como nos aponta
o mesmo autor, Freud utilizou o termo para falar de uma negação genérica (negação de
algo intolerável) e também da negação da castração. Vemos ainda a utilização deste
mecanismo quando referindo-se à perversão. Neste caso, a renegação referir-se-ia ao
reconhecimento da castração.
O conceito de renegação foi mais amplamente desenvolvido a partir do artigo de
1927, “O Fetichismo”. Para Simanke (1994), neste artigo de Freud o termo recebe “sua
carta de cidadania na teoria psicanalítica” (1994 Pág. 203). Apesar de já haver utilizado
a verleugnung para expressar um mecanismo psíquico que levaria à psicose em 1925, no
texto “Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os Sexos”:
“Ou ainda pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de ‘rejeição’
(Verleugnug), processo que na vida mental das crianças não parece incomum nem
muito perigoso, mas em um adulto significaria o começo de uma psicose” (E.S.B.
XIX, Pág. 314/315)
Freud desenvolve este mecanismo utilizando um caso de fetichismo, mas mesmo assim
não deixa de relacionar tal mecanismo com a psicose. Como faz com a perversão.
No fetichista, o objeto eleito como fetiche é um substituto para o pênis
materno. Pênis este que o menininho nunca conseguiu abandonar. Através deste
mecanismo que significa, ao mesmo tempo negar algo e saber de sua existência, ou,
como traduz Hanns (1996) “(A) Contestar a veracidade da existência; (B) fica em
xeque, sem solução; (C) ambigüidade entre verdade e mentira” (Hanns, 1996 Pág. 306),
o fetichista nega a castração da mãe, mas mantém ativa a força do conhecimento deste
fato (força que dá suporte ao fetiche). A principal diferença entre o recalque e a
renegação é, como nos aponta Simanke (1994), que o primeiro recai sobre o
representante-representação, enquanto o segundo recai sobre uma percepção.
70
A partir da investigação do caso de dois meninos que rejeitam (renegam) a
realidade da morte de seu pai e não desenvolvem uma psicose, Freud procura rever
aquela fórmula sobre a rejeição da realidade e a psicose. Freud percebe a relação
ambígua dos meninos para com a percepção, ou seja, acreditavam às vezes e
desacreditavam outras vezes. A saída encontrada por Freud é a de que duas correntes se
formam, uma condizente com o desejo e outra com a realidade. Neste momento, Freud
diz que esta corrente estaria ausente no psicótico, posição que não seria mantida por ele
por muito tempo.
Alguns anos mais tarde, em um escrito publicado postumamente “Esboço de
Psicanálise”, Freud percebe que, caso o Eu se desligasse completamente da realidade na
psicose, o problema das psicoses seria simples. A partir daí ele revê a posição antiga.
Freud mantém a idéia de que duas correntes coexistiriam na mente, ou seja: no
momento em que a criança renega a castração, uma atitude psíquica leva em conta a
realidade e outra, as pulsões. A solução encontrada por Freud é econômica: o resultado
desta divisão dependeria da força de uma ou de outra corrente.
Esta idéia da divisão do Eu havia sido pensada por Freud (e por sinal ocupou
seus pensamentos no final de seus escritos) no escrito inconcluso “A divisão do Ego nos
Processos de Defesa”. Neste ensaio, o psicanalista explica que o mecanismo de
renegação disponibilizado na infância gera uma “fenda no ego, a qual nunca se cura,
mas aumenta à medida que o tempo passa”. (E.S.B. XXIII g. 309). Neste ensaio,
Freud aponta a divisão (split) do Eu na psicose e na perversão. Já no Esboço de
Psicanálise, ele aponta para este acontecimento também na neurose.
Voltando ao texto sobre “A perda da realidade na Neurose e na Psicose”, Freud
expressa, da seguinte forma, as diferentes relações com a realidade mantidas por
neuróticos e psicóticos:
71
na neurose um fragmento de realidade é evitado por uma espécie de fuga, ao passo
que na psicose ele é remodelado. Ou poderíamos dizer: na psicose, a fuga inicial é
sucedida por uma fase ativa de remodelamento; na neurose, a obediência inicial é
sucedida por uma tentativa adiada de fuga. (E.S.B. XIX Pág. 241).
Este fragmento fala dos dois momentos do adoecimento psíquico em analogia à
sua relação com a realidade. Ou seja, na psicose, haveria, inicialmente, uma tentativa de
fuga da realidade, enquanto na neurose a primeira reação seria de obediência à ela.
A continuação deste fragmento demonstra a posição de Freud quanto àquilo que
poderia ser considerado normal:
“Chamamos um comportamento de ‘normal’ ou ‘sadio’ se ele combina certas
características de ambas as reações – se repudia a realidade tão pouco quanto a
neurose, mas depois se esforça, como faz uma psicose, por efetuar uma alteração
dessa realidade” (E.S.B. XIX. Pág. 231).
Obviamente, Freud fala de uma tentativa sadia de alteração na realidade através
de um trabalho no mundo externo, e não através de um delírio que mudaria a realidade
de dentro para fora (ou mudaria a percepção da realidade).
Este processo psicótico de mudança da realidade é efetuado com grande angústia
e sofrimento psíquico, o que, para Freud, demonstra que ele ocorre opondo-se a outras
forças. Esta visão volta a aproximar a psicose da neurose, assumindo que o fragmento
de realidade renegado “constantemente se impõe à mente, tal como o instinto reprimido
o faz na neurose” (E.S.B. XIX. Pág. 232).
Na psicose, o processo que visa reencontrar a realidade, o faz às custas do
mundo externo, ou seja, ao bel-prazer do Isso. Na psicose criar-se-á um novo mundo
externo. Entendemos que, na neurose, o investimento pulsional no mundo de fantasias,
é, de certa forma, ainda um contato com a realidade. Enquanto na psicose, ocorre um
investimento inicial em um Eu vazio de representações de coisa. Por tal razão, fica
72
impossível sua tradução em palavras. Vemos que no neurótico, este mundo de fantasias
está ligado, mesmo que frouxamente, à realidade. Junto com Freud, acreditamos na
existência de um mundo de fantasias psicótico, mas este mundo seria relacionado às
representações de palavra. Diferentemente das fantasias neuróticas, as fantasias
psicóticas seriam “privadas de seu significado original pelo desinvestimento das
representações de coisa no inconsciente” (Simanke, 1994. Pág. 175).
1.5 Bissexualidade, Édipo e Castração
1.5.1Bissexualidade
O conceito de bissexualidade deve sua origem, segundo Roudinesco e Plon
(1997), ao mito do Andrógino. A figura do ser andrógino (metade homem, metade
mulher), remonta a tempos muito antigos. No livro O Banquete, Platão nos conta
através do discurso de Aristófanes, um antigo mito grego, o mito de Andrógino.
Segundo Aristófanes, Andrógino possuía quatro braços, quatro pernas, duas
cabeças, além de órgãos genitais de ambos os sexos. Naquele tempo, seriam três as
espécies em que se dividia a humanidade, (e não duas como agora): os sexos masculino,
feminino e o andrógino. Andrógino era muito forte, rápido e rebelde, chegando a tentar
escalar o Olimpo. Zeus começa então a pensar uma forma de se livrar dele, mas
tampouco queria perder suas oferendas.
Após muito pensar, Zeus decide por cortá-lo ao meio, feito isso, ameaça dividi-
los mais uma vez, fazendo-os andar em uma perna só, caso continuem a importunar e
desrespeitar o Olimpo. Desta forma, Zeus conseguiu que eles não mais importunassem e
73
ainda dobrou a quantidade de oferendas recebidas. Apolo, então, gira suas cabeças para
frente e estica a pele de seus dorsos deixando o umbigo como marca para que o
acontecido não fosse esquecido. Estas criaturas passam então a vagar pela terra em
busca de sua outra metade, quando a encontrava, abraçavam-se em um abraço tão forte
na tentativa de se refundirem, que se deixavam morrer de fome por nada quererem
separados.
Não Platão falou sobre um mito que pressupõe ao ser humano uma
ancestralidade bissexual. Mitos sobre seres e divindades andróginas são muito presentes
em várias mitologias. O deus Lua Sinn da babilônia e a deusa Tái Yuan da China eram
seres aos quais se atribuíam os dois sexos. A presença de divindades andróginas é
também registrada no budismo, hinduísmo antigo, entre os antigos persas, Assírios,
Fenícios e na mitologia Egípcia.
Na mitologia cristã, Deus criou o homem no sexto dia vindo do pó da terra. Deus
insuflou-lhe as narinas dando-lhe o sopro da vida, transformando-o assim, em um ser
vivo criado à sua imagem e semelhança. Depois criou o Éden e chamou os animais para
que o homem os nomeasse.
Após designar com nomes todos os animais, Deus adormeceu o homem e, de
sua costela, fez outro ser parecido com ele, ser esse ao qual o homem chamou mulher. A
mulher estava no homem, grudada em seu lado, uma costela. O homem era também a
mulher. No momento da criação do homem seguem-se as seguintes frases: “Deus criou
o homem à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele o criou homem e mulher”.
(Gênesis 1, 27). A mulher será criada, (ou separada do homem), no capítulo dois,
versículo vinte e dois, do livro do Gênesis.
Todos esses mitos dizem da condição bissexual do homem logo de sua criação.
Fazendo um paralelo entre a criação e a vida de um indivíduo, podemos entender que,
74
no início da vida, enquanto ainda se locomovia com quatro patas, o homem passa por
uma fase bissexual, uma fase em que tem os dois sexos, antes destes serem separados
por uma força maior. É interessante apontar que nos relatos mitológicos, essa força
nunca mata o homem ou uma de suas metades resultantes, apenas as divide. Essa
divisão atira o sujeito na dor humana da falta e do desamparo. O atira em um processo
de busca que, em última conseqüência, é uma busca por si mesmo. Assim como quando
as metades do Andrógino se reencontram, o cessar dessa falta pulsante seria o fim do
homem. Ao “conhecer-se a si mesmo” ele furará os próprios olhos ou imobilizar-se-á
em gozo até que morra por inércia e fome.
Freud se interessa pelo tema da bissexualidade desde muito cedo, por influência
de Fliess, que defendia o tema da bissexualidade natural, como nos mostra Roudnesco e
Plon (1997). Fliess defendia inicialmente a bissexualidade biológica dos seres humanos
e logo depois desenvolveu uma idéia de que essa continuaria a desenvolver-se até a
bissexualidade psíquica. Mas, ainda segundo Roudnesco e Plon, (1997), assim que
abandona a teoria da sedução, Freud utiliza a idéia de Fliess da bissexualidade psíquica.
Essa idéia, que seria crucial para o desenvolvimento das teorias sexuais de Freud, foi
motivo de controvérsia e acusações de plágio engendradas por Wilhelm Fliess. Fato é
que, vemos pela primeira vez a pena de Freud tocar o assunto da bissexualidade em uma
carta a Fliess datada de Seis de Dezembro de 1896, a carta 52. Sem muito dissertar
sobre o assunto, o pai da psicanálise utiliza a idéia da bissexualidade de todo indivíduo
humano para explicar porque o resultado de uma “experiência sexual prematura às
vezes é perversão e, às vezes, a neurose” (E.S.B. I Pág. 286).
Freud continuaria partidário da bissexualidade até o fim de seus escritos. Alguns
anos depois, em seu célebre livro “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, de 1905,
o tema da bissexualidade é revisitado e trabalhado de forma mais aprofundada e
75
colocado em lugar importante na teoria da sexualidade. Coloca-se a pulsão e o objeto
não estreitamente ligados de forma inquebrável, mas traz a idéia de que a pulsão
existe antes da existência do objeto e que não deve sua existência a este.
Freud discorre sobre a bissexualidade utilizando diferentes termos em diferentes
momentos. Inicialmente aponta para a bissexualidade biológica, ou hermafroditismo
anatômico, para depois partir para o que chama de hermafroditismo psíquico, mas não
para explicar a inversão, como deixa claro em vários momentos do texto. Devemos
apontar, no entanto, que, apesar de não utilizar a bissexualidade para explicar a
inversão, Freud não abandona esse construto teórico. Citando vários autores anteriores
que utilizaram a bissexualidade para explicar a homossexualidade, ele chama a atenção
para o fato de que a maioria deles crê na existência da bissexualidade inclusive entre os
“normais”.
Em nota de rodapé acrescentada em 1915, Freud volta a dizer da possibilidade
de escolha objetal bissexual na infância e questiona a norma dizendo que, no sentido
psicanalítico, “o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um
problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa
atribuir a uma atração de base química”. (E.S.B. VII Pág. 138 ).
Ainda nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud afirma que apenas
“com a puberdade se estabelece a separação nítida entre os caracteres
masculinos e femininos, num contraste que tem, a partir daí, uma influência mais
decisiva do que qualquer outro sobre a configuração da vida humana.” (E.S.B.
Vol.VII Pág. 207).
dizendo que, na infância, começam a aparecer as disposições masculinas e femininas.
Para Freud é “quando se tornam visíveis as pulsões parciais da sexualidade”(E.S.B.
Vol.VII g. 207) que as meninas preferem a forma passiva destas. Logo à frente,
aparece uma questão importante e de difícil resolução para a teoria da sexualidade e das
pulsões, Freud diz que:
76
“se soubéssemos dar aos conceitos de ‘masculino’ e ‘feminino’ um conteúdo
mais preciso, seria possível defender a alegação de que a libido é, regular e
normativamente, de natureza masculina, quer ocorra no homem ou na mulher, e
abstraindo seu objeto, seja este homem ou mulher.” (E.S.B. VII Pág. 207).
fazendo uma alusão à característica ativa da pulsão, o que colocaria em cheque a idéia
de uma possível pulsão parcial passiva. Esta idéia vai de encontro à teoria da
bissexualidade que suporia pulsões masculinas e femininas, ou ativas e passivas,
respectivamente. Diante de tal questão, Freud escreve uma longa nota de rodapé neste
ponto do texto para explicar o uso dos termos “masculino” e “feminino”, afirmando que
o principal uso destes termos pela psicanálise é o que se emprega acima. Mesmo assim
reafirma a existência de atividade e passividade em ambos os sexos, afirmação que
voltaria a fazer em sua conferência XXXIII sobre a feminilidade nas “Novas
Conferências”, publicadas em 1933 e escritas um ano antes, e também em uma extensa
nota de rodapé ao final do capítulo IV de “O mal Estar na Civilização”, nesta descreve o
indivíduo como correspondente a “uma fusão de duas metades simétricas, uma das
quais, segundo certos investigadores, é puramente masculina, e a outra, feminina”.
(E.S.B. XXI Pág. 111 ). Como no mito platônico,o ser humano bissexual aparece
inteiro.
O conceito de bissexualidade havia sido retomado em 1924, no texto “A
dissolução do complexo de Édipo”, em que Freud aponta o complexo de Édipo como
fenômeno central do período sexual da primeira infância e a bissexualidade como
fazendo parte desse fenômeno. Nesse texto, o autor diz que as duas posições (ativa e
passiva) estão presentes nas fantasias de ambos os sexos, como havia dito em 1908
em “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade”:
“Para resolver isso é necessário ter duas fantasias sexuais, uma de caráter
feminino e outra de caráter masculino. Assim uma dessas fantasias origina-se de um
impulso homossexual”. (E.S.B. IX, Pág. 153).
77
Assim como nos explicou Del Campo (2003) que a posição subjetiva
homossexual não corresponde à homossexualidade (relações sexuais entre pessoas do
mesmo sexo), devemos pensar um pouco no tema da bissexualidade.
Acreditamos que a bissexualidade diz respeito a uma posição humana pré-
genital. Referimo-nos a um estágio de desenvolvimento anterior à distinção entre os
sexos. Será que poderíamos então falar em uma bissexualidade?
Como discutimos em outro momento, não pensamos ser possível falar sobre
antítese entre masculino e feminino antes de uma distinção de sexos. Por tal razão, o
termo bissexualidade pode não ser o mais apropriado. Acreditamos estar lidando com
uma indiferenciação sexual, o que é, de certa forma, diferente da idéia de
bissexualidade, pois esta supõe a existência de dois sexos. Da mesma maneira,
compreendemos os mitos andróginos como uma expressão do humano completo.
Pensemos que esses mitos foram criados por seres humanos adultos, ou seja, seres que
conheceram a diferenciação sexual. Portanto, compreendemos que esta forma de
explicação da completude é a que lhes foi possível, ou permitida por suas instâncias
psíquicas responsáveis por suprimir as representações recalcadas.
Além do mais, encontramos na longa nota de rodapé ao final do capítulo IV do
‘Mal Estar na Civilização’ uma afirmação de Freud que propõe a possibilidade de que
cada metade do sujeito (uma masculina e outra feminina) tenha sido originalmente
hermafrodita. Esta afirmação abre possibilidade para a divisão infinita, aproximando-se
da nossa idéia de bissexualidade. Concordamos também com a descrição feita por
Ribeiro (2000), da fase em que a criança é afetada pela sexualidade inconsciente da
mãe: “[experiência] na qual passivo e ativo não são pares de opostos, mas vivências
homogêneas de um gozo sem oposição” (2000 Pág. 279).
78
A libido passa por vários estágios de desenvolvimento durante a vida do sujeito,
assim como sua posição subjetiva diante da sexualidade. Mesmo depois da distinção de
sexos, não podemos pensar que existam duas posições sexuais subjetivas possíveis.
O sujeito passa por diversos momentos subjetivos em sua construção sobre o que é ser
um homem ou uma mulher. Por tal razão, quando falarmos de bissexualidade,
esperamos que seja compreendido desta forma. O termo que utilizaremos será o mesmo
por duas razões. A primeira razão é que este foi o termo utilizado por Freud e a segunda
é que, por enquanto, não encontramos termo melhor.
Após o direcionamento da libido a objetos externos, o sujeito humano
oscilará, durante a vida, entre posições subjetivas masculinas e femininas, ativas e
passivas, mais regredidas ou menos regredidas. Freud afirma, no relato de Schreber, que
todos os seres humanos oscilam entre posições hetero e homossexuais durante a vida.
No texto dedicado a Schreber, podemos encontrar rios vestígios da questão
bissexual no sentido acima. Podemos ver que um delírio constante no paciente em
questão é a divisão das pessoas. Freud afirma que a paranóia divide, assim como a
histeria condensa. O primeiro a ser dividido no delírio de Schreber é Flechsig. O médico
é dividido em “superior e médio Flechsig” (E.S.B. XII Pág. 58). Pensemos no
mecanismo de projeção. Por poderíamos formular a seguinte frase “Não sou eu quem
está dividido, é ele”. Logo, a divisão de Flechsig - e posteriormente de Deus - fala da
divisão interna vivida por Schreber, a divisão em dois sexos. Schreber, assim como
aqueles que criaram os mitos, é um homem adulto, que viveu toda sua vida sob a
compreensão da diferenciação sexual, o que retorna de certa forma no delírio.
Outro delírio que corrobora para nossa interpretação é a divisão entre domínios
superiores e inferiores de Deus. Os domínios inferiores são descritos por Schreber como
as ante-salas do céu. Outra formação delirante, os ssaros miraculados que falam com
79
o paciente, foram, originalmente, as próprias ante-salas do céu. Na pagina 46 da análise
de Shcreber, Freud interpreta que os pássaros miraculados representam moças.
Seguindo o raciocínio, as ante-salas do céu são moças. Freud propõe, portanto, a
seguinte interpretação: a de que os domínios anteriores de Deus simbolizem o feminino
e os posteriores o masculino. Tal interpretação vai ao encontro da nossa idéia de
bissexualidade presente em Schreber.
Continuando com o caso Schreber, vimos que, em alguns momentos do delírio, a
proibição vai dando espaço à realização do desejo infantil, representado pela fantasia
feminina com Deus. Veremos também que a divisão das pessoas perde, em alguns
momentos, esse referencial (bi) da distinção sexual. Nestes momentos do delírio, as
divisões de Flechsig não são mais como antes. Agora Schreber relata que chegam a
coexistir 40 a 60 divisões da alma de Flechsig. Compreendemos que é neste estágio do
delírio que a libido realmente exprime a sexualidade infantil. Sexualidade esta que não
se restringe a duas possibilidades, mas a incontáveis.
Essa interpretação dos delírios de Schreber nos ensina que a fase da sexualidade
vivida na infância e revivida no distúrbio delirante do paciente é definitivamente pré-
genital e anterior ao direcionamento da libido a objetos exteriores, por isso bissexual, ou
seja: completa, ou ‘polissexual’.
80
1.5.2 Édipo e Castração
A tragédia de Sófocles, Édipo Rei”, conta a estória de Édipo. Filho de Laio e
herdeiro natural do trono de Tebas, Édipo é, ao mesmo tempo, vítima e carrasco na
maldição dos Labdácidas. Tal maldição inicia-se com Cadmo, avô de Édipo e pai de
Laio. Cadmo havia matado um Dragão, mbolo do deus Ares, que o condenou a oito
anos de servidão. Após o cumprimento de tal pena, Cadmo voltou a seu reino em Tebas,
mas suas mazelas marcariam para sempre seus descendentes.
‘Édipo Rei’ se inicia com uma criança que é entregue para a morte pelo seu
pai. Laio, rei de Tebas, pai de Édipo, decide que deve matar seu filho após ouvir do
oráculo de Apolo que este o mataria e desposaria Jocasta, sua esposa e mãe de Édipo.
Laio entrega então a criança a um criado, que deveria deixá-la para morrer. Este é o
primeiro oráculo. A análise de Szondi sobre a tragédia, coloca o foco nos três oráculos
que definirão o destino dos personagens. A trama trágica encontra-se nos antagonismos
encontrados por toda a peça. Um deles é que, cada ato destinado a mudar o destino faz
com que a proximidade com o mesmo aumente.
A tragédia inicia-se então, com o tema da criança exposta. Como nos mostra
Junito Brandão, citando Marie Delcourt, este tema prevê que esta criança não morreria,
mas cresceria e vingar-se-ia do pai. Até não vemos grandes surpresas. O fato que
deveras nos chama atenção é que, para evitar o parricídio vingativo consciente, os
poetas gregos ‘criavam estratégias’ para que ele não ocorresse desta forma. No caso da
tragédia em questão, Édipo matará seu pai sem saber quem estava matando. Para aliviar
ainda mais a ‘culpabilidade’ do herói, este teria sido atacado primeiro por Laio.
O criado a quem Laio entrega seu filho, não obedece às ordens, entrega a
criança para outro pastor e este o a Pólibo, Rei de Corinto, e à sua mulher. Édipo é
81
criado, portanto, como príncipe de Corinto. Segundo Sófocles, em uma noite de festa,
Édipo escuta de um dos convivas que é filho adotivo dos reis de Corinto. adulto, o
herói decide ir a Delfos para consultar o oráculo a este respeito. Segundo Brandão, a
tradição anterior a Sófocles liga a saída de Édipo de Corinto a um furto de cavalos.
Édipo haveria saído de Corinto em busca de alguns cavalos furtados do reino de Pólibo.
Chegando no oráculo de Delfos, Édipo pergunta se é filho de Pólibo e Meríope.
O oráculo por sua vez, não revela quem são seus pais, mas faz a mesma profecia, desta
vez para os ouvidos de Édipo, de que ele estaria fadado a matar seu pai e desposar sua
mãe.
Neste momento da tragédia, (o segundo oráculo) a consulta que deveria ser
salvadora torna-se uma armadilha (antagonismo) e Édipo decide fugir de Corinto (não
mais voltar) para não realizar tais ações. “Ele é obrigado a agir (fugir) porque precisa
evitar sua própria ação” (Szondi, 1961. Pág. 92). Mas quando tenta fugir de seu destino
nosso herói está, em realidade, correndo em direção a ele. Na tentativa de não se
encontrar com seu pai (que imaginava ser Pólibo), encontra com seu verdadeiro pai,
Laio, em uma encruzilhada tríplice no caminho para Tebas.
Este encontro é crucial para o destino de todos. Segundo Sófocles conta pela voz
de Édipo, a comitiva do rei vinha em direção a Édipo. O arauto e o próprio rei
empurraram Édipo, que devolveu o golpe ao arauto. Neste instante, o passageiro (Laio)
atinge o herói “com um dúplice aguilhão, de cima pra baixo, em cheio na cabeça”
(Sófocles, 967-968). Utilizando-se então de seu bordão, Édipo desfere um golpe que
mata Laio.
Brandão nos diz que:
“como toda cavidade (antro do dragão, inferno) o trívio é o símbolo do
inconsciente e a luta que ali se trava é projeção de um combate que se desencadeia
no inconsciente de Édipo”. (Brandão, 1986, Vol. III Pág. 277).
82
Esse combate simboliza, portanto, um combate que ocorre no inconsciente do
sujeito. Inconsciente, templo do desejo, palco para a concretização do desejo de
assassinar o pai para desposar a mãe. Esta muito difundida idéia freudiana sobre o
complexo de Édipo está longe de ser tão simples assim. Aos poucos tentaremos explicar
esta complexidade por nós reclamada.
Chegando a Tebas, Édipo depara-se com a terrível esfinge que aterrorizava a
cidade. Esta criatura devorava aqueles que não decifrassem seus enigmas. Colocando-se
na entrada da cidade, ela impedia a entrada e saída de pessoas de Tebas. Laio havia
deixado seu reino para ir ao oráculo de Delfos, onde pretendia descobrir como se livrar
da esfinge que devorava a juventude tebana.
As esfinges, como nos explica Brandão, eram monstros da categoria das sereias.
Almas penadas (simbolizado pelas asas). “Pois bem, todos esses seres possuem um
traço comum: são ávidos de sangue e de prazer erótico”.(Brandão, 1986 Vol. I Pág.
247). Porém, a realização deste ‘prazer erótico’ não lhes era possível, pois, da cintura
para baixo, eram animais. As sereias, especialmente, tratavam-se de animais frios e
assexuados (peixes). Em substituição ao sêmem (símbolo da vida), esses monstros
satisfaziam seu desejo com o sangue (outro símbolo da vida).
Várias são as explicações (de acordo com Brandão) para “a presença hostil da
esfinge às portas de Tebas”. (1986 Vol. III. Pág. 259). Mas a explicação mais aceita é a
de que o monstro havia sido enviado por Hera, protetora dos amores legítimos’, como
punição por um “amor contra naturam de Laio por Crisipo” (1986 Vol. III. Pág. 259).
Laio havia raptado Crisipo, filho de Pélops, enquanto estava hospedado no reino deste e
feito sexo com aquele. Míticamente, este ato de Laio e Crisipo “instaurou a pederastia
na Hélade” (1986 Vol. III Pág. 237). Para punir este amor não natural de Laio, Hera
mandou para Tebas um outro tipo de amor não natural, a saber, a esfinge.
83
A esfinge é compreendida por nós como uma expressão da sexualidade
psicótica. Este delicado tema nos é de enorme interesse. A partir do delírio de um
paciente trabalhado em uma supervisão, tentaremos explicar nossa posição. Neste
relato, o paciente em foco delirava que estava sendo transformado em uma sereia.
O que nos interessará aqui é, principalmente, a visão de uma sexualidade
impossível de ser concretizada. A sereia simboliza o desejo (torso de mulher [mulher
símbolo da voluptuosidade para lembrarmos de Schreber]) e órgão genitais de peixe. A
sexualidade genital deste monstro é impossível. Seu desejo é saciado pelo sangue. A
presença de sangue é também observada em descrições psicóticas (especialmente
esquizofrênicas) de relações “sexuais”. Já ouvimos pacientes relatando o desejo de
“comer alguém”, tratando-se de um desejo canibal, em que muito sangue comparecia no
discurso.Mas o nosso principal ponto é a genitalidade impossível desse ‘homem-sereia’.
Vimos que a perversão sexual de Laio foi responsável pelo aparecimento da
esfinge. Tratamos seu ato como perversão, a partir da idéia mítica de que não existia
homossexualidade antes de então. Caberá agora a Édipo (filho de Laio) matar a esfinge
(sereia) para tornar-se Rei, casar-se e ter filhos, possuindo assim sexualidade genital.
Entendemos que essa perversão’ de Laio simboliza a “ação traumática e
invasiva da sexualidade inconsciente do adulto sobre a criança” (Ribeiro, 2000. Pág.
47), sentida desde o auto-erotismo e que marca os primeiros momentos de formação do
Eu. A partir deste movimento, cria-se uma sexualidade como a citada acima, a
sexualidade da sereia. Esta sexualidade seria marcada por uma indiferenciação sexual
anterior à genitalização e à distinção entre masculino e feminino. Também não
encontramos muita similaridade com a disposição perverso-polimorfa descrita por
Freud, por não tratar de “sentir gosto por todas as sortes de perversão” (E.S.B. XII Pág.
196), mas sim de vislumbrar uma sexualidade impossível e enigmática.
84
Apreendemos esta forma de sexualidade mais próxima daquilo que Freud expôs
sobre a divisão de correntes psíquicas
22
, mas em outros termos. Existe por um lado o
desejo (parte de mulher) e pelo outro o impedimento imposto pela realidade (genitais de
peixe). No psicótico adulto, esta é, obviamente, a realidade construída. Neste ponto é
interessante o paradoxo. A realidade é construída a partir do desejo, mas do desejo
inconsciente. Apontamos para o desejo de realização sexual consciente, mais bem
descrito como vontade, pois nosso ponto abrange, justamente, a impossibilidade da
concretização da sexualidade genital inconsciente. Logo de sua subjetivação.
Esta esfinge criada por influência da sedução inconsciente adulta, coloca-se
diante de Édipo como um rito de passagem para a inscrição subjetiva da sexualidade.
Ou seja, Édipo tem que matar a esfinge para tornar-se Édipo, para tornar-se neurótico.
Para tal tarefa, a esfinge lhe propõe em enigma, do qual a resposta é o homem,
ou o próprio Édipo, homem de aparência provavelmente envelhecida, posto que
caminhava com um bordão para apoiar-se, devido a seu problema nos pés. Esta
dificuldade foi-lhe imputada por Laio, que amarrou seus pés quando de sua exposição.
Desta forma, seu pai marcou-lhe para sempre com uma dificuldade de caminhar,
símbolo de traçar caminhos, o caminho da vida.
Voltemos ao enigma: “Que animal anda sobre quatro patas pela manhã, duas
pela tarde e três à noite?” Esse enigma sobre a natureza do homem é respondido
corretamente por Édipo. A esfinge se mata e Édipo recebe a mão de Jocasta como
recompensa por ter livrado a cidade da Esfinge.
Os anos passam e Édipo, rei de Tebas, tem quatro filhos com Jocasta. Até que
mais uma praga se abate sobre Tebas: as plantações secam e a fome atinge a todos. A
população vai buscar então ajuda em seu salvador, Édipo, que manda seu cunhado (e
22
Pensamento descrito na página 64.
85
também tio) ao oráculo que diz a Creonte (irmão de Jocasta) que, enquanto o assassino
de Laio não for vingado Tebas viverá sob essa praga.
Este terceiro oráculo será também decisivo para Édipo, que promete vingar o
assassino de Laio ainda sem saber que falava de si mesmo. Ao descobrir a verdade
Jocasta se enforca, Édipo fura os próprios olhos e sai de Tebas, deixando a cidade sob
os cuidados de Creonte.
O pensamento de Freud sobre a existência de algo como um ‘complexo de
Édipo’ é antiga, já estando presente nas cartas a Fliess. Contudo, como nos conta
Simanke (1994), somente apareceu em uma publicação em 1910. Apesar disso, somente
com o desenvolvimento da segunda tópica, o complexo de Édipo foi mais bem descrito
por Freud e passou a assumir lugar de destaque em sua teoria.
Este lugar de destaque encontra-se, em nossa pesquisa, relacionado ao fato de
ele ser, como explicam Laplanche e Pontalis no Vocabulário de Psicanálise, crucial para
a psicopatologia psicanalítica. Para a psicanálise, cada psicopatologia está relacionada à
forma como o sujeito ‘resolveu’, ou passou pelo complexo de Édipo. O momento do
Édipo ocorre juntamente com complexo de castração. O primeiro fala do desejo da
criança por um de seus progenitores e o segundo, refere-se à angústia da castração. Esta
angústia é baseada na fantasia da castração. No menino com a possibilidade de perder
seu pênis. Na menina, a ausência do pênis é sentida como um dano que ela procura
negar ou reparar. Tentaremos, então, compreender esses complexos como descritos por
Freud e procurar qual seria saída psicótica para eles.
Precisamos, no entanto, compreender o processo de formação do Eu descrito por
Freud no livro de 1923, “O Ego e o Id”.
Freud relaciona a formação do Eu principalmente a duas formas de relação, a
saber: as sensações corporais e à identificação do Eu a objetos, abandonados ou não.
86
Freud aponta para a possibilidade de que a identificação substitua a relação de objeto. A
possibilidade da identificação do Eu aos objetos explica o investimento da libido no Eu
por parte do Isso. Esta forma de investimento pode ser vista como narcisismo. No
entanto, Freud diz que, nesse processo, ocorre uma dessexualização da libido. Devemos
ressaltar que, no momento desta afirmação, Freud está se referindo ao retorno da libido
ao Eu depois da identificação deste Eu a um objeto perdido. Desta forma, ele entende
que esta é uma “espécie de sublimação” (E.S.B. XIX, Pág. 44). Quando procura
explicar as origens do Supereu, Freud fala de identificações bastante primitivas que não
se trata de resultado de investimento objetal, mas de “uma identificação direta e
imediata” (E.S.B. XIX, Pág. 45). Essa identificação seria anterior ao investimento
objetal.
Escolhemos por falar a respeito do Eu nos termos acima descritos, porque
entendemos que será interessante para a compreensão da psicose. Sobre o papel das
sensações corporais devemos voltar a Freud:
“Isto é, o ego em última análise deriva das sensações corporais, principalmente das
que se originam na superfície do corpo. Ele pode ser assim encarado como uma
projeção mental da superfície do corpo”. (E.S.B. XIX Pág. 40).
A superfície do corpo é a imagem deste (Simanke 1994). Logo, em
última análise, o Eu poderia ser a projeção da imagem do corpo. Imagem que narciso
viu projetada em seu pai e apaixonou-se.
Sobre as identificações formadoras do Eu, devemos dizer que essa possibilidade
poderia nos ajudar a explicar a relação do psicótico com o mundo, aquelas relações que
são mantidas com a realidade. O investimento no Eu é, também, investimento no mundo
externo, posto que o primeiro é formado à semelhança do último. Voltamos a dizer
então da possibilidade dos pacientes psicóticos fazerem vínculos.
87
A identificação primitiva descrita por Freud nos ajuda a juntar o que estamos
falando. Pensamos nesta identificação como capaz de substituir o amor propriamente
objetal. Acreditamos ser desta identificação que falamos nas psicoses. Uma
identificação anterior à distinção sexual.
Entendemos que, um narcisismo como aquele em que o Eu formado recebe
investimento libidinal do Isso, seja posterior a este tipo de identificação na concepção
freudiana, mas reclamamos a possibilidade de que esta forma primária de identificações
seja possível de ser mantida por alguma razão. Mantida no sentido em que ela seria
anterior à relação de objeto (portanto anterior à diferenciação sexual), mas capaz de dar
alguma imagem corporal, mesmo que parcial (como os objetos pelo Eu identificados,
parciais). A razão para que fossem mantidas seria a mesma pela qual o sujeito psicótico
recusa a diferenciação sexual através da recusa da castração. Esta razão também poderia
ser a mesma pela qual ele recusa a saída deste narcisismo pleno no qual entendemos a
existência de uma sexualidade completa, por isso impossível de realização. Apenas
neste sentido poderíamos compreender a utilização do termo homossexualidade para
explicar a sexualidade psicótica. Se o narcisismo compreende que todos humanos são
iguais (indiferenciados), a relação com qualquer humano seria homossexual, pois seria
relação com um igual. Já vimos a tentativa de Freud para encontrar um mecanismo de
recusa da castração, a renegação, para a psicose, mas vimos também a incapacidade
deste conceito dar conta, totalmente, dos fenômenos psicóticos.
Partiremos então para uma descrição do que seriam os complexos de Édipo e de
Castração. A partir daí, tentarmos compreender o que acontece com o psicótico, ou seja,
demarcar seu ponto de fixação.
A criança está, desde muito cedo, intimamente ligada à mãe, originalmente
devido à escolha do seio como objeto. O menino desenvolve, neste mesmo momento,
88
uma identificação inicial com o pai. Concomitantemente, o menino crê na
universalidade do pênis, ou seja, acredita que todos têm um pênis igual ao seu.
Em um segundo momento, ele vê que algumas pessoas (irmãs, a mãe ou
coleguinhas), não têm um pênis. Em um primeiro momento, a primeira teoria que ele (o
menininho) cria para explicar tal situação é a de que o pênis dela ainda é pequeno e vai
crescer. Essa negação da falta do pênis no outro (que, de certa forma, implica no
medo insuportável de que exista alguém sem pênis) será superada para que o menininho
entre no complexo de castração. Além de superar a negação observada inicialmente, o
complexo consistirá também na grande angústia vivida inconscientemente pelo
garotinho. Essa angústia diz da possibilidade de ele perder seu tão estimado órgão
genital. ‘Se existem pessoas sem ele, também posso ficar’. Para assegurar-se da não
mutilação de seu pênis, o garotinho tem que renunciar a seus desejos Edipianos pela
mãe e identificar-se com o pai. Mas claro que não é tão simples assim.
Paralelamente ao complexo de castração caminha o complexo de Édipo, que
consiste, resumidamente, naquilo que segue. Como nos ensina Freud no terceiro
capítulo do livro O Ego e o Id”, capítulo dedicado ao Superego, o complexo de Édipo
de um menino pode ser descrito da maneira que se segue.
Como vimos no complexo de castração, tudo vinha muito bem, o menininho,
sua amada mãe e a identificação com o pai. Com o decorrer do tempo, o desejo do
menino pela mãe toma proporções maiores e aquele passa a ver o pai como rival pelo
amor de sua Jocasta. Esta é a porta de entrada para o complexo de Édipo.
O menino tem sentimentos hostis em relação ao pai, mas e a bissexualidade?
Ela aparece justamente nestes sentimentos em relação ao pai. Ao mesmo tempo em que
nutre um ódio pelo pai, o menino também tem por ele momentos de amor, momentos
em que odeia a mãe, rivalizando com ela pelo pai. Esse segundo caso é o que Freud
89
chamou de Édipo invertido. Nesta dinâmica estão as duas possibilidades, masculina e
feminina.
Ao fim do complexo de Édipo, o investimento libidinal na mãe deve ser
substituído, ou seja, outra forma de relação deve ocupar este lugar. Neste ponto, os dois
complexos se encontram. O menino entende que para manter a mãe como objeto
pulsional deverá abrir mão de seu pênis, pois será castrado pelo pai. Ao mesmo tempo,
para ser objeto de desejo do pai, ele já seria um castrado a priori, pois teria que ser uma
mulher. Então a saída é abrir mão de ambos como objetos e escolher entre uma
identificação com a mãe ou a intensificação de sua identificação com o pai.
No menino, o complexo de castração e de Édipo terminam juntos. Com as
meninas aconteceria o mesmo, ou seja, elas, ao final do complexo de castração,
identificar-se-iam com o pai ou com a mãe, com ressalvas à questão de que, com elas, o
complexo de Édipo inicia com o fim do complexo de castração, pois é aí que ela poderia
se afastar da mãe e aproximar-se do pai. Logo, o complexo de castração está ligado ao
mistério da diferença anatômica entre os sexos, enquanto o de Édipo está ligado a outro
mistério humano, aquele da diferença de gerações. Simanke (1994) nos chama atenção
para o fato de que a resolução do Complexo em ambos os sexos mantém o sujeito, de
certa forma, afastado da castração. Para os meninos, a possibilidade da castração
permanece como uma possibilidade um tanto improvável ou, ao menos, distante. Para as
meninas, a possibilidade de ter um filho mantém viva a chance de voltar a ter um falo,
já que, para Freud, a fase fálica é comum aos dois sexos.
A passagem do psicótico pelo Édipo e pela castração leva consigo a não
diferenciação sexual, portanto, a recusa da castração propriamente dita. No entanto, algo
se mantém de resquício da diferenciação sexual, pois, visto que o psicótico se protege
(se defende), ele se protege de algo (ou seja, alguma marca desta diferenciação
90
impressa). Logo, se não houvesse registro algum da castração, ele não precisaria se
proteger desta. Entendemos também que é no momento em que o psicótico é
confrontado com esta diferenciação que ele entra em crise. Outra comprovação de que
existe um registro desta diferenciação. Como nos aponta Simanke (1994), a castração
representa o limite do desejo pela realidade. O fim da onipotência narcísica. No entanto,
esta onipotência encontra-se tão presente na psicose, que o sujeito vê-se capaz de mudar
a própria realidade, mas não sem sofrimento. Detalhe a partir do qual podemos, junto
com Freud, perceber a existência de forças que vão contra essa ‘re-invenção’ da
realidade mesmo na psicose. Precisamos então de um meio termo.
Acreditamos que Freud buscou este meio termo e deixou várias vezes a idéia de
que seus leitores interessados em dar continuidade a seu pensamento poderiam e
deveriam fazê-lo. Pensamos que Freud, no entanto, não nos deixou uma metapsicologia
capaz de dar conta totalmente das psicoses. Mas diversas formulações posteriores a ele
só foram possíveis a partir de suas observações, formulações e descrições de problemas.
Vimos também, neste sucinto percurso por sua obra, a importância das psicoses para a
formulação da teoria psicanalítica. Pudemos também entender, pelas idéias de Freud,
que o psicótico não perde seu contato total com a realidade e que, portanto, pode fazer
vínculos. O tipo do vínculo feito por estes pacientes e a possibilidade de tratamento
psicanalítico com sujeitos que renegam psicóticamente a castração, será discutida na
próxima parte deste trabalho. Parte destinada à clínica exercida por nós com pacientes
psicóticos.
91
Parte II
“Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem”.
Carlos Drummond de Andrade
92
2.1 Sobre a possível clínica das psicoses.
Tentaremos nesta parte dissertar sobre uma possível clínica das psicoses. Para
tal, utilizaremos a ajuda de outros autores além de Freud, posto que este não se dedicou
extensamente à clínica com pacientes psicóticos. No entanto, não pretendemos perder
de vista as conclusões e delimitações encontradas na parte anterior, na qual discutimos e
apresentamos a teoria freudiana das psicoses.
Ao falarmos de psicose, seria impossível não falar da clínica por nós exercida
com pacientes psicóticos. Entendemos, com Luiz Celes (2003), que a psicanálise não se
trata de uma ciência que informa uma prática (clínica). Se é que poderíamos chamar
assim a prática psicanalítica. Outra questão necessita esclarecimento, a saber:
poderíamos chamar esta clínica que exercemos de psicanálise?
Concordamos com Celes quando este afirma que “‘psicanálise’ é o nome de um
trabalho” (2003 Pág. 148). Mas de que trabalho de psicanálise poderíamos falar no caso
do trabalho com pacientes psicóticos? Como o próprio Celes aponta, Freud diz que
“Temos chamado psicanálise o trabalho por cujo intermédio levamos à consciência do
enfermo o anímico nele recalcado” (2003 Pág. 148). Se, como vimos, não poderíamos
falar de recalque na psicose, assim como não poderíamos nos referir a um ‘levar à
consciência’, uma vez que estas vivências estão na consciência do paciente,
poderíamos então chamar tal trabalho de psicanálise?
Mais alguns fatos corroboram este questionamento. Não utilizamos, em nossa
clínica com psicóticos, a regra da associação livre, única regra para a prática descrita
por Freud. Mas a psicanálise é, além de um método de investigação psíquica que se
daria por intermédio da associação livre, uma teorização e pesquisa de fenômenos
93
psíquicos. Fenômenos que seriam, portanto, apreendidos e explicados por um prisma
psicanalítico, que conta com uma gama de conceitos e compreensões independentes de
quaisquer outras formas de compreender os mesmos fenômenos.
Atingimos, a partir de Celes, que: “O trabalho psicanálise deve, portanto,
caracterizar-se por tratamento, por trabalho de pesquisa e por trabalho teórico” (2003
Pág. 151). E que a transferência é o construto teórico que busca compreender a inserção
da pessoa do analista neste trabalho. A psicanálise não seria uma construção somente
sobre o paciente, mas sobre aquilo que acontece entre paciente e analista.
Como nos explica Lagache (1952) sobre a teoria dinâmica da transferência:
“A disposição para a transferência é a tensão inerente às tendências recalcadas.
Implica a persistência de um conflito infantil não resolvido, constituído de acordo
com a seqüência frustração, recalcamento, regressão, fixação”. (Lagache 1952,
Pág. 122).
Não discutiremos novamente a forma de recalcamento da psicose, ou o
mecanismo análogo àquele, que está presente nas psicoses. Seguiremos a lógica de
raciocínio do próprio Freud. Assim como ele compreendeu a psicose a partir da
seqüência acima descrita, compreendemos que podemos ver também a transferência por
esse prisma. Logo, repetir-se-ia, na transferência, o que Freud chamou de “fantasia
homossexual recalcada”, sobre a qual explicitamos nossa posição. O próprio Freud
afirma isso na “Reunião Científica de 29 de Janeiro de 1908” como afirma Del Campo
(2003) citando Numberg e Federn (1908/1909):
“A segunda característica metapsicológica da paranóia, é o mecanismo de projeção:
o paranóico ‘empurra’ para fora suas transformações internas. Desta maneira, se
formam primeiro as ilusões e depois as distorções da memória como corretamente
observa Adler. Em relação à história clínica, o caso pode ser interpretado em
função de uma retirada do afeto homossexual dirigido ao pai e sua transferência a
Sadger”. (Numberg e Federn, 1908/1909 Pág. 302, Apud Del Campo, 2003 Pág.
147).
94
Podemos entender a forma como Freud pensa a transferência na paranóia no
início de 1909, portanto, antes do estudo de Schreber.
Entendemos que a frustração recolocaria em jogo no psicótico a renegação da
castração no sentido de que o desconhecimento da diferença dos sexos voltaria.
Percebemos também que esta frustração é frustração de um desejo. Portanto,
acreditamos que esta frustração deve dizer respeito a um conflito que exponha
justamente aquilo que foi renegado, a saber, a castração, a diferenciação sexual, a não
igualdade entre as pessoas suposta no narcisismo primário. Por esse ponto de vista, a
situação analítica atualizaria as questões ‘recalcadas’ e colocaria em jogo o seu retorno.
Mas, na psicose, o retorno consiste na irrupção de uma crise muitas vezes dolorosa para
o paciente e que leva muitas vezes à hospitalização. Neste caso, o que fazer com um
paciente psicótico?
Para Calligaris (1989), o psicótico fora de crise procura o analista como a
própria psicanálise. O paciente psicótico procuraria o saber psicanalítico e não o
psicanalista. Neste momento, este autor afirma que o paciente não procura a análise
como algo que poderia organizar seu saber. Esta opinião parece diferir daquela que
assumimos acima, a de que o analista pode ajudar o paciente psicótico a organizar seu
delírio, posição com a qual continuamos de acordo. Sobre a coisa e a palavra, o autor
chama nossa atenção para o peso da palavra no tratamento com esses pacientes:
“no trabalho com pacientes psicóticos em crise a coisa aparece imediatamente
como é: a palavra é algo que comporta um risco absoluto, qualquer significante tem
de ser cuidadosamente pesado”(Calligaris,1989 Pág.82).
Calligaris também aponta a posição do paciente psicótico como alguém que se
oferece ao gozo do analista. O autor fala também de uma possível filiação, o que, a meu
ver, continua atualizando a difícil relação paterna vivida por esses pacientes. Creio que
95
podemos aproximar essa visão daquela que fizemos com relação à transferência de
Schreber com Flechsig.
Sobre esta transferência, podemos examiná-la melhor agora. Depois de
acompanharmos o desenvolvimento do pensamento freudiano acerca das psicoses,
vamos fazer uma leitura da “Carta aberta ao Sr. Conselheiro prof.dr. Flechsig” de
autoria de Schreber. Esta carta precede suas memórias.
Daniel Schreber descreve nesta carta a forma como Flechsig foi decisivo em seu
adoecimento. Busca também como compreender a influência que seu médico exerceu
sobre ele, durante e mesmo depois do encerramento de seu tratamento na clínica de
Flechsig. Schreber diz que “certos nervos extraídos de seu sistema nervoso (...) vêm
exercendo anos uma influência nociva sobre mim” (Schreber, 1903 Pág. 25). O que
Schreber procura entender é exatamente os efeitos da transferência com Flechsig sobre
ele. Vemos que ele fala disso como se viesse de fora (projeção). O paciente relata ainda
que mesmo muito tempo depois de ter visto Flechsig pela última vez, vozes ainda lhe
repetem seu nome diariamente.
Ainda nesta carta, Schreber diz do importante papel exercido por sua relação
com Flechsig para a irrupção de seu adoecimento. Schreber diz que não tem vidas de
que o primeiro impulso para suas alucinações foi “uma influência emanada do seu
sistema nervoso sobre o meu sistema nervoso” (1903 Pág. 26). Esta declaração fala
claramente da importância da relação com Flechsig para o adoecimento de Schreber.
Freud havia apontado tal questão em sua análise de Schreber. Porém, no
entendimento de Freud de então, Schreber adoeceria para se defender de seus impulsos
homossexuais dirigidos a Flechsig. Para nós, o apaixonamento transferencial de
Schreber por Flechsig simplesmente serviu para trazer o paciente de volta ao conflito da
diferenciação sexual.
96
Encontramos também na carta a Flechsig uma clara identificação de Schreber
com seu médico. Schreber afirma que seu médico também passou pelas vivências que
ele passou. Essa forma de relação transferencial (a partir do retorno a uma identificação
primária) talvez possa explicar a intensidade destes vínculos. Como nos contou
Schreber, as vozes repetiam o nome de Flechsig diariamente.
Pommier descreve o sujeito psicótico como “um sujeito indefinidamente
solicitado pelo apelo do Outro e resistente à sua sedução violenta” (Pommier, 1998 Pág.
456). Neste caso, o paciente colocar-se-ia como objeto diante do Outro, o que, como
vimos, pode ser uma armadilha perigosa para o analista. O autor ainda nos fala da
importância da presença do analista e de como sua fala põe em jogo o recalque
originário, o que pode ser benéfico, desde que o analista flutue entre ausência e
presença, possibilitando assim um lugar vazio, passível de construção delirante.
Zenoni (2000) nos ensina a forma como lidar com esses pacientes, a saber, o
não interpretar. “A posição do analista, em relação ao trabalho de interpretação, é, antes,
negativa”. (2000 g. 52). O autor propõe outras formas de linguagem no tratamento
com pacientes psicóticos, como a informática, a matemática ou a lógica. Para Zenoni, a
questão é “abordar a linguagem separada do sentido”. Como vimos em Freud, a relação
entre as representações de coisa e de palavra, encontra-se diferentemente investida no
psicótico. Apreendemos que as representações de coisa desinvestidas de libido, perdem
seu status de representação. Dessa forma, as representações de palavra hipercatexizadas
tornar-se-iam também a própria coisa.
Por este prisma, para Zenoni, o analista pode tornar-se testemunha do processo
de elaboração do paciente. Assim, a construção seria feita pelo paciente e não pelo
analista. Essa idéia é, originalmente, freudiana. O pai da psicanálise chegou a uma
formulação próxima desta em 1937 no texto “Construções em Análise”:
97
“Os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das construções que
erguemos no decurso de um tratamento analítico tentativas de explicação e de
cura, embora seja verdade que estas, sob as condições de uma psicose, não podem
fazer mais do que substituir o fragmento de realidade que está sendo rejeitado no
passado remoto. Será tarefa de cada investigação individual revelar as conexões
íntimas existentes entre o material da rejeição atual e o da repressão original. Tal
como nossa construção é eficaz porque recupera um fragmento de experiência
perdida, assim também o delírio deve seu poder convincente ao elemento de
verdade histórica que ele insere no lugar da realidade rejeitada. Dessa maneira,
uma proposição que originalmente asseverei apenas quanto à histeria se aplicaria
também aos delírios, a saber, que aqueles que lhes são sujeitos, estão sofrendo de
suas próprias reminiscências”. (E.S.B. XXIII Pág. 286).
A partir deste ponto de vista, podemos assumir que a posição
transferencial a ser ocupada pelo analista é aquela de testemunha do percurso do
paciente, depositário de suas palavras, ou como disse Lacan, a de “secretário do
alienado”. O analista deve, portanto, manter-se afastado das interpretações e aberto a
disponibilizar sua presença. Zenoni nos aponta que é comum às posições de secretário e
de testemunha o não saber. Desta forma, “a dimensão do saber é deixada do lado do
sujeito”. (Zenoni, 2000 Pág. 61).
2.2Casos
Dando continuidade ao trabalho, relataremos dois casos e tentaremos
compreendê-los sob o prisma conceitual freudiano estudado na primeira parte desta
dissertação e também a partir daqueles conceitos discutidos nesta segunda parte.
Estes dois casos foram discutidos em supervisão. Os nomes contidos nos relatos
são fictícios.
98
2.2.1 Caso I
Ao começar a trabalhar com pacientes psicóticos, Carlos, ainda na graduação,
tinha em torno de vinte anos de idade e foi chamado para este estágio que queria muito.
Logo que chegou ao centro de convivência, chamou sua atenção um jovem de cabelos
longos que permanecia em um canto, virado para a parede. Conversando com outros
terapeutas mais experientes, soube que esse garoto era um esquizofrênico de difícil
acesso, falava muito pouco e ficava isolado a maior parte do tempo. Parecia sempre
distante e inacessível.
Tratava-se de Francisco. Um paciente de vinte e um anos e que havia adoecido
aos quinze anos de idade. Francisco era alto e magro. Na época em que adoeceu
praticava uma luta marcial e era um atleta promissor, tendo inclusive ganhado
campeonatos.
Um dia o paciente estava bastante agitado e a equipe de terapeutas que se
encontrava envolvida em um projeto, logo, impedida de estar com Francisco, designou
Carlos para ficar com ele. Até então eles nunca haviam conversado. Estavam um ao
lado do outro e o paciente somente olhava para o estudante e sorria. Por cerca de uma
hora ficaram desse jeito, até que o estagiário disse a ele que, que passariam mais
algumas horas juntos, seria interessante se conversassem. Francisco ficou um pouco
desconfiado, Carlos nunca havia ouvido sua voz, apesar de vê-lo sempre, cerca de
cinco meses. O paciente o olhou um pouco, sempre sorrindo, suas mãos transitavam
entre o queixo e a cintura. O estagiário disse mais uma vez que gostaria de conversar
sobre algo, mas que, realmente não sabia o que ou como iniciar um diálogo, posto que
nunca havia visto o paciente falar nada.
99
Aos poucos a voz saiu da boca do jovem paciente. Seus olhos não o encaravam
enquanto falava, mas o som foi saindo de forma mais fácil. Neste instante ele começou
a revelar seu mundo. Naquele mundo estranho e completamente diferente de qualquer
coisa ouvida por Carlos, japoneses filmavam sua vida inteira. Com o tempo, Carlos
entendeu que este filme mudava de gênero. Juntamente a isso mudavam os
comportamentos do paciente. Por exemplo, por um certo tempo, o gênero do filme da
vida de Francisco era luta. Naqueles dias, Francisco aparecia constantemente
machucado por brigar com pessoas na rua ou por se debater sozinho.
Outros delírios compareciam no discurso do paciente. Todos os dias Francisco
passeava pelo inferno. Em algum momento o ambiente se transformava no reino de
Hades e seres do inferno inseriam vermes gigantes em seu estômago. Estes vermes
subiam e desciam em seu esôfago lhe causando imensa dor. Alguns meses depois,
Carlos supôs que, talvez, Francisco sofresse de refluxo gastro-esofágico. Interessante é
que Carlos pensou nisso observando que Francisco falava da presença deste vermes
principalmente depois do almoço e também utilizando seu próprio corpo (de Carlos)
emprestado. Carlos sofria de refluxo. Após alguns exames constatou-se que realmente
Francisco sofria de refluxo, e o paciente pôde iniciar o tratamento para aquele problema.
Suas visões do inferno não passaram, mas mudaram. Impressionado, Carlos disse a
Francisco que talvez doesse menos se o mesmo pudesse dividir o que sentia com ele.
Disse-lhe também que estaria com ele, junto dele.
A partir daquele dia, criaram uma relação bastante intensa. O paciente abordava
Carlos ainda na entrada da clínica e, muitas vezes, passavam horas juntos. Abordagens
de confusão corporal como "Carlos, o meu dedo é seu, ou o seu dedo é meu; não, não...
calma, seu pênis é meu ou meu pênis é seu..." eram comuns. Outras vezes o paciente
confundia-se com a camiseta de outro estagiário na qual estava escrito ‘San Francisco’.
100
O paciente falava daquela camiseta como sendo ele mesmo. Nessa época, Carlos
sonhava constantemente com aquele paciente. O paciente estava presente em vários
sonhos diferentes. Algumas vezes sua presença era clara, como um personagem do
sonho, constantemente como amigo de Carlos. Outras vezes, o estagiário relatava que
Francisco passava pelo sonho, como um transeunte.
O tempo passava e o relacionamento dos dois tornou-se mais intenso. Quando
Carlos dizia a Francisco que precisava fazer outras coisas, ele (o paciente),
regularmente, passava a segui-lo pelo centro de convivência. Francisco delirava todo o
tempo, sofria invasões corporais, era estuprado pelas "malditas mulheres", tinha visões
do inferno e, às vezes, confundia Carlos com Deus ou com o diabo. De qualquer forma,
sua melhora era notável. Melhora no sentido da socialização: o paciente passou a falar
mais, não só com Carlos, apesar de este continuar em um lugar especial.
Certo dia, Francisco chegou à clínica e, como nos outros dias, aproximou-se de
Carlos. Muitas vezes os dois podiam ficar muito tempo sem falar nada, apenas estando
ali, um ao lado do outro. Neste dia o paciente perguntou ao estagiário se o mesmo era
homossexual. Afirmou também que ele era. Carlos respondeu-lhe que não, mas que
respeitava sua escolha.
Essa abordagem continuaria por alguns dias. Sempre da mesma forma, o
paciente perguntava sobre a sexualidade do estudante. Algumas vezes Carlos tentava
fazer com que Francisco falasse sobre mais alguma coisa, mas sem êxito. Até que um
dia o paciente lhe perguntou se Carlos queria fazer sexo com ele.
Carlos havia sido pego de surpresa. Sua inexperiência não o havia levado a
compreender o sentido daquela pergunta anteriormente, e, tampouco, ele havia levado o
caso para sua supervisão. O estudante entendera que, com aquela pergunta, Francisco
buscava que Carlos fosse mais parecido com ele, ou igual a ele.
101
Naquele momento de surpresa e embaraço Carlos falou o que lhe veio à cabeça.
Para defender-se lhe disse que era seu psicólogo e não seu amante. A intervenção foi
desastrosa. A partir dali Francisco passou vários dias isolado e contorcendo-se no sofá.
Não queria conversar com Carlos ou com qualquer outro, isso durou cerca de uma
semana.
Após essa semana Francisco voltou a falar com Carlos, mas, desta vez, queria
"transar com uma mulher". Queria de qualquer forma, passou a atuar de maneira
sedutora com as psicólogas e chamava o estagiário para ver mulheres na recepção, mas
ele queria tocá-las, ver não bastava. Carlos, por várias vezes, falou-lhe sobre as
regras sociais que não permitem agarrar qualquer pessoa. Durante cinco dias Francisco
pedia-lhe ajuda para estuprar uma mulher e dizia-lhe: "o seu problema é que pra você,
tudo é proibido!". Conversaram várias vezes sobre essa proibição e sobre os perigos que
ele corria (de ser preso ou de apanhar), caso tentasse fazer isso na rua.
No fim de semana seguinte (no Sábado), Francisco foi preso por "tentativa de
estupro". Logo sua mãe esclareceu a situação com os policiais e ele saiu da detenção.
Ele havia tirado a roupa e tentado agarrar uma mulher por trás, em um estacionamento.
Apesar da boa estatura e do conhecimento em artes marciais que tinha Francisco, a
mulher facilmente livrou-se dele, imobilizou-o e chamou a polícia. Depois do ocorrido,
a família de Francisco resolveu interná-lo e Carlos não o viu mais.
102
2.2.1.1Tentativas de Interpretação
Devemos apontar, inicialmente, a importância da identificação corporal para o
acontecimento desta transferência. O estagiário em questão era também alto, magro, e
de cabelos longos. Acreditamos que esta relação fala daquela questão sobre a formação
do Eu apresentada por Freud no capítulo III do “Ego e o Id”. Naquele texto
compreendemos a importância das sensações corpóreas da superfície da pele eram
importantes para a formação do Eu. Este Eu seria então a projeção do próprio corpo.
Neste caso seria também a projeção desta identificação no outro.
Após a discussão deste caso, nos interessou a forma como o estagiário em
questão conseguiu se aproximar de um paciente tão difícil. Como falamos,
acreditamos que a identificação corporal foi essencial, mas devemos também apontar
outra coisa. Aquela fala em que o estudante afirma que ficara ao lado do paciente, nos
parece muito importante. Ele assegurou que estaria junto do paciente, acompanhando-o
em sua caminhada, não intervindo. Promessa que, como vimos, não conseguiu cumprir.
Francisco começou a passar por um processo que consideramos comum nesta
clínica: a fusão corporal. No entanto, entendemos que esta fusão sentida pelo paciente
pode também ser sentida pelo terapeuta. Como vimos, Carlos sentia as dores de
Francisco. Mesmo que de forma neurótica, acreditamos que este fato foi essencial para
sua intervenção à qual chamamos, desastrosa.
O estagiário ia bem quando pensava (conscientemente) que a fala do paciente
sobre sua questão homossexual referia-se a igualar os dois. Mas, ao que tudo indica,
inconscientemente ele também tinha medo daquela fusão. Fusão que se tornaria possível
com o pedido do paciente. Naquele instante Carlos respondeu a Francisco como se este
103
fosse um neurótico. Francisco respondeu-lhe então com a realidade (ou com a mudança
desta), vimos então a palavra do terapeuta vindo de um lugar transferencial como
modificadora do delírio do paciente. A palavra do terapeuta foi incorporada pelo
paciente como sendo a própria coisa. Desta forma, o paciente voltou, de sua
reformulação da realidade, novamente identificado a seu objeto de identificação
(entenda-se primária), voltando assim à realização do desejo de igualdade do narcisismo
primário.
Vemos também neste caso uma sexualidade completamente indiferenciada,
“tentando adaptar-se” às exigências da realidade. Esta tentativa leva a um
comportamento estereotipado. Acreditamos que o paciente tinha desejos sexuais pelo
estagiário. No entanto, não acreditamos que a realização do desejo que estava nele
(aquele desejo sentido por ele), seria possível através de uma concretização de uma
relação homossexual. Vemos que esta é a forma estereotipada encontrada pelo paciente
de falar daquele desejo, que não tem forma genital. A maneira como a mulher “atacada”
pelo paciente se livrou dele, parece mostrar que seu desejo não era de realização de um
ato sexual.
2.2.2Caso II
Arthur chega ao consultório por indicação de um colega daquele que será seu
terapeuta. Aos sessenta e quatro anos, Arthur traz consigo o diagnóstico de bipolar
(antiga psicose maníaco-depressiva). Relata sofrer desta mazela há muitos anos: “Desde
que me entendo por gente”. A diferença é que, na infância, não sabiam o que era isso.
Sua mãe cuidava de suas crises com chá de “talo de folha de alface”, ou alguns outros
104
chás dos quais o paciente nunca conseguiria se lembrar. José, o terapeuta, aceitou iniciar
o tratamento após algumas entrevistas iniciais.
Tratava-se de um paciente muito ativo. Acabava de chegar de sua cidade natal,
aonde havia passado por uma grave crise de euforia. Muitos cheques sem fundo, muito
sexo, inúmeras discussões, algumas brigas que resultaram em um olho roxo e um mês
de internação em uma clínica dia e noite. Era mais ou menos assim que Arthur relatava
o que havia ocorrido com ele naqueles dias de crise. Sem muito se sentir culpado.
Seus pais haviam vivido juntos até a morte de sua mãe ao setenta anos. Relatava
lembrar-se de uma infância feliz. Seus pais eram donos de um grande terreno em um
subúrbio no litoral. Neste terreno haviam existido colégios, cinemas e até um clube
(todos de propriedade de seus pais). Tinha apenas um irmão mais velho. Após a morte
de sua mãe, seu pai casou novamente e faleceu cerca de dez anos mais tarde. Poucos
anos depois (dois anos antes do início da terapia), seu irmão morreu deixando uma
esposa e duas filhas.
Homem de muitas estórias, aquele senhor era atendido por José em seu
consultório duas vezes por semana. Horários descritos por seu psicólogo como
agradáveis. Dono de um senso de humor muito apurado, Arthur fazia rir seu terapeuta e
também a si mesmo com estórias de sua vida.
Havia sido um influente jornalista político, formado em uma importante
universidade federal. Casado seis vezes e pai de três filhos, teve uma vida muito
agitada. Usuário de álcool, tabaco e drogas por cerca de quarenta anos, relatava que,
após muito sofrimento, “estava limpo seis anos”. Contava muitas aventuras, com um
discurso organizado, cheio de cuidados lingüísticos e algumas repetições. Tratava-se
sem dúvida de um paciente muito inteligente e sedutor, que, aos poucos, conquistava
seu jovem terapeuta.
105
Elogiava seu psicólogo, mas sem exageros. Contava como havia feito, ao
longo destes mais de sessenta anos, muitas terapias diferentes e como aquela lhe estava
parecendo diferente. Apontava características de José que eram muito parecidas com
suas próprias características aos “vinte e tantos anos”. Algo que de alguma forma
prendia José em um lugar incômodo (lugar sobre o qual falou diversas vezes em
supervisão), mas de algum prazer.
O terapeuta achava seu paciente interessante. Um homem que, até aquele
momento do trabalho, parecia ter muitos recursos psíquicos. Paulatinamente aquela
situação passou a realmente incomodar o terapeuta que procurava ouvir melhor aquele
paciente. No decorrer desta escuta passou a perceber um senhor de estórias repetidas e
de um grande empobrecimento afetivo. Parecia tentar enganar-se. Não trazia sonhos,
não demonstrava desejo de nada, mas parecia bem com isso.
Estava saindo de uma crise maníaca, saindo. Alguns traços daquela crise ainda
estavam presentes. não acreditava ser Jesus Cristo como havia acreditado alguns
meses antes, mas comparava-se sempre a personalidades grandiosas. Santos Dummont,
Van Gogh e até mesmo o próprio Jesus eram personalidades constantes no discurso de
Arthur. Pessoas incompreendidas, que produziram muito em pouco tempo e que tiveram
finais trágicos. Como eles, Arthur relatava grandes produções e invenções. Grandes
projetos, muito dinheiro ganhado e perdido. Muitas vezes incompreendido e sacaneado,
nosso herói seguia a estrada de seu discurso rumo ao destino trágico de seus
antecessores, mas isso não o assustava.
Neste momento do trabalho clínico, haviam passado seis meses. O paciente
nunca havia faltado uma sessão. Demonstrava uma vida extremamente desorganizada.
Contas sempre atrasadas por esquecimento, descrevia sua casa (uma quitinete) como
sempre bagunçada, mas uma coisa era possível visualizar como organizada, sua moral.
106
Possuía crenças sobre o que é ou não correto, que pareciam inabaláveis. Este apego ao
que pensava ser certo havia feito com que ele terminasse seu último casamento pouco
antes de iniciar sua terapia porque sua mulher continuava fumando e bebendo, sendo tal
fato inaceitável: “Eu que corro o país defendendo o antitabagismo e a abstinência
alcoólica, não posso ser casado com uma mulher que bebe e fuma!”. Esta mesma moral
o mantinha sem conversar com um de seus filhos (o único homem que morava em
Brasília) alguns meses, desde que este filho o buscou quando Arthur estava em crise
maníaca.
O tempo passava e José não conseguia perceber sentimento em Arthur. Seus
relatos era desafetados e o paciente se implicava muito pouco neles. José sentia que algo
ligava os dois, algum tipo de transferência. Mas esta ligação era muito estreita, Arthur
precisava de José de uma forma profunda, mas não era um amor transferencial comum.
Chegavam as férias de José e ele vinha avisando a seus pacientes desses
quinze dias de férias cerca de dois meses. Todos os dias em que José falava de suas
férias Arthur reagia como se fosse a primeira vez. Este fato aconteceu cerca de quatro
vezes antes do aviso final na última sessão antes da viagem do psicólogo. O paciente
reagiu muito mal. Ficou muito nervoso por não ter sido avisado disso antes e disse que
seu terapeuta “não tinha o direito de conquistar as pessoas e depois abandoná-las
assim”.
Assim que voltou de férias, José foi contatado pelo psiquiatra que medicava
Arthur. O médico contou-lhe que o paciente havia entrado em grave crise depressiva
com a viagem de seu terapeuta. Falava em matar-se e estava muito . As sessões
seriam recomeçadas alguns dias depois, como combinado.
A imagem de Arthur não deixou de impressionar José. Estava diferente,
descuidado, sujo e falando muito pouco. Já não estava poderoso ou distante de seus
107
sentimentos. Era o “pior dos homens”, dono de um enorme “defeito de caráter”.
Relatava ser um mentiroso, sem moral, um fracassado. Pedia ajuda “por favor, me
ajude, pelo amor de Deus, não me deixe mentir mais, não me deixe mentir pra você, não
me deixe mentir pra mim”.
Sua moral havia desaparecido. O paciente estava realmente muito entristecido,
sentia-se culpado, imoral e uma pessoa de mau caráter.Voltou a falar daquela sua crise
maníaca ocorrida antes do início da terapia, de forma completamente diferente. Desta
vez, o afeto era muito claro.
Contou que havia passado mais de seis meses em crise e não alguns dias, como
havia-se feito entender. Havia voltado à sua cidade natal no intuito de cuidar da herança
deixada por seu pai, que consistia em alguns apartamentos no lugar aonde o paciente
havia passado sua infância. Estes apartamentos estavam sendo ‘administrados’ pela
viúva de seu irmão, que negava dividir com ele os aluguéis. Esta lhe mostrou um
documento assinado por seu pai e seu irmão em que eles tiravam dele os poderes
relativos àqueles imóveis. Tratavam-se de imóveis sem escritura e, por isso, ele tinha
um grande problema em mãos. Estava só. Embora Arthur não soubesse “viver sozinho”,
ele estava literalmente sozinho na casa de seu pai.
“Achei que era Jesus Cristo, peguei o chicote e fui expulsar os invasores da casa
de meu pai!”. Nesta empreitada ele agrediu dois moradores, tirou o telhado da casa de
outro, violou correspondências e fugiu da polícia. Ele era agora um marginal na casa de
seu pai. Relatou que havia feito uso de álcool e drogas. Por seis meses ele gritou para
que alguém o ouvisse ali, onde havia sido, por tantos anos, cuidado.
Durante estes seis meses o paciente passou trinta e três cheques sem fundo (a
idade de Cristo), bateu em algumas pessoas, voltou a beber, foi procurado pela “polícia
mineira” (nome dado pelo paciente a milícias policiais responsáveis por chacinas) e
108
respondia agora a oito processos judiciais. Arthur voltou daquela cidade quando seus
filhos (um casal que morava em Brasília) foram buscá-lo. Esta tinha sido a última vez
em que Arthur falara com seu filho.
A ameaça de suicídio era presente e seu perigo era sentido por José como
iminente. Conversou então com seu paciente, explicou-lhe a situação de risco em que
estava e propôs interná-lo. Falou a seu paciente que, naquele momento, não seria capaz
de ajudá-lo sozinho. O paciente pediu para não ser internado “será que nós dois aqui não
conseguimos resolver este negócio?” Neste momento, José entendeu que seu lugar
transferencial havia mudado. Agora havia uma demanda de amor diferente da primeira.
O pedido de internação não foi aceito pelo convênio de Arthur, e este, que estava
endividado, tampouco poderia pagar por uma internação. Mas, de alguma forma, José
havia dito a ele que não era onipotente, mas que tinha limitações e isso passou a estar
presente também na fala de Arthur, que tomou para si parte de seu destino e de seu
tratamento.
Algumas sessões depois trouxe um sonho em que estava com seu filho em uma
praia. Ambos carregavam prancha de surf. O mar estava muito agitado e a proximidade
das pedras preocupava Arthur. “Sempre nadei muito bem, cresci no litoral e conheço as
correntes marítimas”. Ele passava então a guiar seu filho até um lugar de “maré mais
calma, onde pudéssemos surfar”. Foi o primeiro sonho relatado por Arthur como
prazeroso. Naquele sonho ele havia sido capaz de ajudar seu filho e ensinar-lhe algo, o
que, para ele, possuía enorme valor.
Ao interpretar este sonho, José disse a Arthur que ele o colocava no lugar de seu
filho e que, finalmente, ele estava tomando as rédeas (ou desejava tomá-las) de seu
tratamento, rumo a “marés mais calmas”.
109
O paciente continuava deprimido, mas suas ameaças de suicídio não surtiam
mais o mesmo efeito sobre José. O paciente pôde elaborar algo sobre suas crises, mas o
perigo estava presente. Arthur dizia que “na mania fazia mal para os outros e na
depressão fazia mal para si mesmo”. O terapeuta se sentia chamado a uma relação de
amor mais próxima de uma demanda histérica e sentia-se protegido. Esta demanda,
porém, também se caracterizava por um pedido de cuidado concretamente maternal. O
paciente falava de sua solidão e de seu descuido pessoal e trazia o pedido explícito de
que seu terapeuta “cuidasse destas coisas também”. Queria que o ajudasse a organizar
sua vida, que fosse para sua casa lhe ensinar informática e organizar suas compras de
supermercado.
Algum tempo depois, Arthur voltou a falar com seu filho. Mas seus relatos
continuavam cheios de tristeza e impossibilidades de saída. Neste momento do
tratamento José carregava uma estranha certeza de que com o tempo seu paciente sairia
daquela posição.
Outro sonho traz uma estória interessante. Arthur chegou ao consultório ansioso
para contar este sonho que lhe parecia enigmático e engraçado. Nele, José era um
computador que ficava na sala da casa de Arthur. Possuía braços de robô e não se
movia. Com aqueles braços, segundo Arthur, José podia pegar coisas e resolver. O
paciente ainda conta que não se lembrava muito bem se o computador-José estava
ligado a ele (Arthur) ou a outro computador.
Este sonho explicou para José e para Arthur o lugar em que o paciente colocava
seu terapeuta. Ele queria um terapeuta meio máquina meio gente que cuidasse de sua
vida (resolvesse) e que, ao mesmo tempo, morasse com ele e não andasse. Ou seja,
desta forma o terapeuta estaria à sua disposição todo o tempo.
110
Algum tempo depois, José percebe que seu paciente está, aos poucos, retomando
o contato com o mundo exterior, contato que esteve muito comprometido nestes meses
de depressão. Atualmente o paciente continua em tratamento, contando um ano e dois
meses. Arthur continua deprimido, mas voltou a falar com seu filho e trouxe, na
semana passada, a notícia de que vem falando com sua última ex-mulher e que “parece
que vai rolar alguma coisa”.
2.2.2.1 O Retorno da Teoria.
O início do tratamento trata de uma fase em que o paciente ainda se encontra em
mania. A mania seria uma forma de exteriorização da libido como aquela descrita por
Freud no delírio. Uma tentativa de restabelecer contato com o mundo externo. Por isso a
afirmação do paciente de que ele oscila entre dois momentos, aqueles em que faz mal a
si mesmo e aqueles em que faz mal aos outros. Na mania, esta tentativa de restaurar a
libido aos objetos (mesmo que de forma negativa), como explicou Freud em um
primeiro momento. Poderíamos entender também como investimento de pulsão de
morte. Por isso este narcisismo sentido pelo paciente é sentido como tão ruim, pois esta
pulsão de morte estaria voltada para seu Eu.
A forma de transferência que vemos é baseada em uma identificação especular.
Como aquela descrita no caso anterior. Neste caso, como tratamos de um paciente com
fase de fixação menos primitiva, podemos ver uma variação daquela questão
simplesmente da aparência. Com essa sedução, o paciente conseguiu manter seu
terapeuta em uma armadilha bastante incômoda.
A negação (ou renegação) do paciente a respeito da viagem de seu terapeuta
dava indícios do que viria a acontecer. O conflito do paciente com a castração
111
(representada pela viagem), a impossibilidade de realização de seu desejo, retornará
sua libido objetal para o Eu. Esta volta ao narcisismo segue a idéia desenvolvida por
Freud sobre a melancolia. A introjeção do objeto perdido, traz a libido de volta ao Eu.
Vemos, no entanto, que, no caso descrito, a dificuldade de viver sozinho pode ser
entendida a partir dessa forma de relação de objeto apresentada pelo paciente. Quando
ele fica sozinho sente-se como perdendo o objeto de identificação externo que permite a
existência de seu Eu, logo de seu mundo interno.
Essa vivência totalizante do objeto identificatório é o que faz, em nosso
entender, a vivência da perda ser tão profunda. Seguindo este raciocínio, a mostra de
impotência ou de não completude dada pelo terapeuta, abre para o paciente outras
possibilidades. Esta idéia é comprovada pelo sonho da praia.
Nos ateremos, por último, no sonho do computador. Este sonho simboliza, em
nossa forma de ler o caso acima, a relação transferencial vivida neste segundo momento
do tratamento, a saber, o momento da depressão. Neste sonho o paciente fala de seu
amor pelo terapeuta, querendo que ele estivesse em sua casa, mas fala também daquela
idéia de secretário do alienado. Essa idéia de secretário havia sido exposta pelo
paciente em outros momentos. Mas entendemos que a visão do computador é perfeita.
Outra interpretação feita por nós é a possibilidade de o computador representar a
juventude do terapeuta. Neste caso, se o paciente fosse também um computador em seu
sonho, poderíamos inferir que o sonho falaria da relação de identificação vivida pelo
paciente.
112
2.3Conclusão
Chegamos ao momento de concluir o trabalho desenvolvido por nós nas páginas
anteriores. Falta-nos a certeza de que este concluir possa acrescentar algo ao que foi
dito nas páginas anteriores.
Este trabalho partiu da nossa idéia e da vontade de voltar a Freud para entender o
desenvolvimento da teoria freudiana das psicoses e do questionamento sobre que ajuda
tais compreensões poderiam nos trazer para a clínica diária. Para sua concretização
encontramos várias dificuldades, tais como: a escassez de trabalhos que se propuseram a
fazer tal percurso e a grande quantidade de informação existente no decorrer do
pensamento freudiano que precisaríamos abordar.
Depois do trabalho realizado e da caminhada feita, temos a certeza de que
muita coisa nos escapou à observação. Mas temos também a certeza de que muita coisa
nos salta à vista agora.
A compreensão da importância da teoria do narcisismo e a tentativa freudiana de
encontrar um mecanismo próprio da psicose, nos ensinou muito sobre psicanálise, e
sobre a formação do pensamento freudiano. A forma como suas idéias puderam mudar e
também ser mantidas nos colocou diante de um pensador muito cuidadoso e de mente
plástica. Nos vimos também frente a uma complexa teia de conceitos, sempre em
movimento.
Realmente acreditamos que não podemos vislumbrar em Freud uma teoria
completa sobre as psicoses. No entanto, vemos caminhos claros pelos quais podemos
andar com certa segurança em busca de novos.
113
Não sabemos quão esclarecedor poderá ser este trabalho para outros leitores,
mas acreditamos que, para nós, esta pesquisa e elaboração nos traz tantas certezas como
abre novas questões. Aprendemos também com Freud que, em vários momentos, se faz
necessário e aconselhável deixar pontos em aberto.
Alguns temas que tentamos esclarecer permanecem um tanto obscuros, como: a
sexualidade psicótica (tema que pretendemos estudar futuramente); a forma como se
realmente a identificação primária em conflito com a questão totalizante da vivência
narcísica (a não ser que pudéssemos entender a própria identificação primária como
total e não parcial); a transferência psicótica que, apesar de ser um dos pontos principais
sobre os quais pretendíamos pesquisar, acabou deixada em segundo plano e sobre a qual
conseguimos entendimentos não muito esclarecedores; e, claro, sobre um mecanismo
que dê conta da castração como vivida pelo psicótico.
Sobre a clínica com pacientes psicóticos, entendemos que ela é essencial, muitas
vezes esclarecedora e outras vezes nos confundindo ainda mais. De um ou de outro
modo, essencial. Também essencial é pensá-la como possibilidade de trabalho
psicanalítico.
Para Quinet (2003), Se sintoma neurótico e delírio diferem quanto ao
tratamento a ser dado à sua dimensão de ciframento, ambos comportam o valor de
verdade” (2003 Pág. 98). Entendemos que essa verdade fale do funcionamento do
sujeito. Como vimos em Freud, o retorno do recalcado é a única forma de voltarmos
àquilo que foi recalcado. Mesmo substituindo o mecanismo do recalque por outro,
acreditamos que podemos manter aquela fórmula. Ou seja, o sintoma fala de uma
verdade sobre o sujeito que o próprio sujeito desconhece. Exatamente pelo
desconhecimento do sujeito quanto àquela verdade é que o sintoma faz-se necessário.
114
Desse modo, a questão do “ciframento” não carregaria tanta importância no
trabalho com psicóticos. Pois o delírio fala do psicótico algo que ele não sabe. A
diferença é que, neste caso, não nos cabe decifrar. Participaremos, junto com o paciente,
da construção daquele delírio e, daí, do conhecimento que ele trará. Compreendemos
então, assim como Freud, que na análise de um psicótico é o paciente o responsável pela
construção. (Construções em Análise, 1937).
Concluímos então que, caso consideremos o trabalho do analista como
interpretar e trazer à tona materiais inconscientes, logo não poderíamos considerar a
clínica com psicóticos como psicanálise. Por outro lado, se considerarmos que estar
junto com o paciente nesta caminhada em que ele constrói seu delírio é também trabalho
do inconsciente, ele é trabalho psicanalítico. Outras coisas também se apresentam em
pacientes psicóticos. A idéia de que trabalharemos apenas com delírios é fantasiosa.
Assim como não é apenas o sintoma que aparece na análise, outros materiais mais
“neuróticos” também comparecem na análise com psicóticos. Culpa, questões de
relacionamento, dúvidas... Obviamente estes materiais devem ser escutados a partir de
outro lugar e, muitas vezes, estão instalados sobre pilares delirantes. Entendendo que
essa fala diz de uma vivência sexual diferente da vivência neurótica. Por tudo o que
viemos discutindo neste estudo e pela vivência clínica com estes pacientes, acreditamos
que é possível uma clínica psicanalítica com psicóticos.
Percebemos também que, os conceitos desenvolvidos por Freud e revisitados por
nós, foram de grande ajuda na compreensão dos casos estudados aqui. Esta afirmação
pode ser uma das mais importantes deste texto. Uma das propostas iniciais deste
trabalho foi atingida com sucesso. Percebemos uma possível compreensão do
fenômenos da psicose a partir de uma visão freudiana.
115
Bibliografia:
A Bíblia. São Paulo: Stampley Produções, 1974.
Brandão, J. (1991) Mitologia Grega. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.
Calligaris, C. (1989) Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1989.
Celes, L. A. M. (2003). Psicanálise e Além do mais Metapsicologia.In: Novas
contribuições metapsicológicas à clínica psicanalítica. Taubaté, SP: Cabral Editora
Universitária, 2003.
Costa, I. I. (2003). Da fala ao Sofrimento Psíquico Grave:
Ensaios acerca da
Linguagem Ordinária e a Clínica Familiar da Esquizofrenia
.
Brasília: Gráfica e Editora
Positiva/Abrafipp, 2003.
Del Campo, E. (2003) Lecturas de Freud, desde Baranger, Lacan y Nasio.
Buenos Aires: Letra Viva, 2003.
Dor, J. (1991) Estruturas e Clínica Psicanalítica. Rio de Janeiro: Taurus
Editora, 1994.
Drummond de Andrade, C. (1962) Antologia Poética. Rio de Janeiro: Sabiá,
1973.
Freud, S. (1894) As Neuropsicoses de Defesa. E.S.B. Vol. III. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
Freud, S. (1894) Las neuropsicosis de defensa. A.E. Vol. III. Buenos Aires:
Amorrortu, 1991.
Freud, S (1895) Estudo Sobre a Histeria. E.S.B. Vol. II. . Rio de Janeiro: Imago,
1996.
116
Freud, S. (1950 [1895]) Extratos Dos Documentos Dirigidos a Fliess, Rascunho
H. E.S.B. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1950 [1895]) Projeto para uma Psicologia Científica. E.S.B. Vol. I.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1896) Observações Adicionais Sobre As Neuropsicoses de Defesa.
E.S.B. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1950 [1897]) Extratos Dos Documentos Dirigidos a Fliess, Rascunho
L. E.S.B. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1950 [1897]) Extratos Dos Documentos Dirigidos a Fliess, Carta 52.
E.S.B. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1950 [1897]) Extratos Dos Documentos Dirigidos a Fliess, Carta
125. E.S.B. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1900) A interpretação dos Sonhos. E.S.B. Vol. IV e V. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S (1905) Três ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. E.S.B. Vol. VII.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S (1905) Três ensayos de Teoría Sexual. A.E. Vol. VII. Buenos Aires:
Amorrortu, 1991.
Freud, S. (1908) Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. E.S.B.
Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva.. E.S.B. Vol. X. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1911) Notas Psicanalíticas Sobre Um Relato Autobiográfico de Um
Caso de Paranóia (Dementia Paranoides). E.S.B. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
117
Freud, S. (1913) Sobre a disposição à neurose obsessiva. E.S.B. Vol. XII. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1913) Totem e Tabu. E.S.B. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1913) Totem y Tabu. A.E. Vol. XIII. Buenos Aires: Amorrortu, 1991.
Freud, S. (1914) Sobre O Narcisismo: Uma introdução. E.S.B. Vol. XIV. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S (1914) À guisa de Introdução ao narcisismo. Escritos Sobre a
Psicologia do Inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 2004.
Freud, S (1915) O recalque. Escritos Sobre a Psicologia do Inconsciente. Rio de
Janeiro: Imago, 2004.
Freud, S. (1915) La Represión. A.E. Vol. XIV. Buenos Aires: Amorrortu, 1991.
Freud, S. (1915) O inconsciente. E.S.B. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1915) Lo Inconciente. A.E. Vol. XIV. Buenos Aires: Amorrortu,
1991.
Freud, S. (1917[1915]) Suplemento Metapsicológico à Teoria Dos Sonhos.
E.S.B. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1917[1915]) Luto e Melancolia. E.S.B. Vol.XIV. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
Freud, S. (1920) Além do Princípio do Prazer. E.S.B. Vol. XVIII. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1920) Más Allá del Princípio de Placer. A.E. Vol. XIX. Buenos
Aires: Amorrortu, 1991.
Freud, S. (1923) O ego e o Id. . E.S.B. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1923) El yo y el Ello. A.E. Vol. XIX. Buenos Aires: Amorrortu, 1991.
118
Freud, S. (1924[1923]) Neurose e Psicose. E.S.B. Vol. XIX. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
Freud, S. (1924) A dissolução do complexo de Édipo. E.S.B. Vol. XIX. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1924) A perda da realidade na neurose e psicose. E.S.B. Vol. XIX.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1925) Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica
entre os Sexos. E.S.B. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1925) A negativa. E.S.B. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1926) Inibição, Sintoma e Angústia. E.S.B. Vol. XX. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
Freud, S. (1927) O Fetichismo. E.S.B. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1930[1929]) O mal estar na civilização. E.S.B. Vol. XXI. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1933) Novas Conferências, Conferência XXXIII: Feminilidade. E.S.B.
Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1937) Construções em análise. E.S.B. Vol. XXIII. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
Freud, S. (1940[1938]) Esboço de Psicanálise. E.S.B. Vol. XXIII. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1940[1938]) A divisão do Ego nos Processos de Defesa. E.S.B. Vol.
XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Garcia-Roza, L.A. (1995) Introdução à metapsicologia Freudiana.Rio de
Janeiro: J.Z.E., 2004.
119
Hanns, L. (1996) Dicionário comentado do Alemão de Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
Jones, E.(n1953) A vida e a obra de Sigmund Freud 3vol..Rio de Janeiro: Imago,
1989.
Knopman, E. B. (1989) A evolução do Conceito de Psicose na Obra de Sigmund
Freud. Dissertação de Mestrado, PUC / RJ, Rio de Janeiro.
Lagache, D. (1952) A transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
Laplanche e Pontalis (1982) Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
Nietzsche, F. (1888) Assim Falou Zarathstra. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1977.
Numberg, H. e Federn, E. (1908/1909) Actas de la Sociedad Psicoanalítica de
Viena. Tomo II. Buenos Aires: Nueva Vision. apud Del Campo (2003). Lecturas de
Freud. Buenos Aires: Letra Viva, 2003.
Platão. El Banquete. Madrid: Alanza Editorial, 1989.
Pommier, G. (1998) O Amor ao Avesso: Ensaio sobre a transferência em
psicanálise. Companhia de Freud Editora. Rio de Janeiro, RJ, 1998.
Quinet, A. (2003) Teoria e Clínica da Psicose. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.
Ribeiro, P. C. (2000) O problema da identificação em Freud: Recalcamento da
identificação feminina primária. São Paulo: Escuta, 2000.
Roudinesco, E e Plon, M. (1997).Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro.
J.Z.E., 1998.
120
Schreber, D. P. (1903). Memórias de um doente de Nervos. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1995.
Simanke, R. T. (1994). A formação da teoria freudiana das psicoses.Rio de
Janeiro: Editora 34, 1994.
Sófocles. A trilogia Tebana. Rio de Janeiro: J.Z.E., 1989.
Szondi, P. (1961). Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: J.Z.E., 2004.
Zenoni, A. (2000) Psicanálise e instituição - A segunda clínica de Lacan.
Abrecampos, 2000.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo