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Fernando Pessoa levantou-se do sofá, passeou um pouco pela
saleta, no quarto parou diante do espelho, depois voltou, É uma
impressão estranha, esta de me olhar num espelho e não me ver
nele, Não se vê, Não, não me vejo, sei que estou a olhar-me, mas
não me vejo, No entanto, tem sombra, é só o que tenho. Tornou a
sentar-se, cruzou a perna (...) (idem, ibidem, p. 81.)
Pessoa não se aflige com a experiência de não poder se ver no espelho.
Ricardo Reis, ali com ele, também não esboça nenhuma reação que o leve a
imaginar que este acontecimento com Fernando Pessoa talvez não passe tão
somente de uma ilusão de ótica. No entanto, não há paradoxo. Nem o medo tão
defendido por H. P. Lovecraft para a literatura sobrenatural é percebido pelos
personagens, a tal ponto que o leitor também não se incomoda com a ausência da
imagem não refletida pelo espelho. Pessoa e Reis são indiferentes ao
acontecimento que, em uma literatura de H. P. Lovecraft, deveria o fato sobrenatural
despertar um profundo medo no leitor. Em Saramago isso não irá acontecer. Em
suas obras em que o terror é transformado em uma experiência natural e, ainda que
contradiga a realidade, estará em uma posição de equilíbrio ou harmonia com os
fatos reais.
Essa naturalização do sobrenatural está muito evidente no diálogo entre
Pessoa e Reis imediatamente à não-presença da imagem refletida no espelho:
Ricardo Reis perguntou, Diga-me, como soube que eu estava
hospedado neste hotel, Quando se está morto, sabe-se tudo, é uma
das vantagens, respondeu Fernando Pessoa, E entrar, como foi que
entrou no meu quarto, Como qualquer outra pessoa entraria, Não
veio pelos ares, não atravessou as paredes, Que absurda idéia, meu
caro, isso só acontece nos livros de fantasmas, os mortos servem-
se dos caminhos dos vivos, aliás nem há outros, vim por aí fora
desde os Prazeres, como qualquer mortal, subi a escada, abri
aquela porta, sentei-me neste sofá à sua espera, E ninguém deu
pela entrada de um desconhecido, sim, que você aqui é um
desconhecido, Essa é outra vantagem de estar morto, ninguém nos
vê, querendo nós, Mas eu vejo-o a si, Porque eu quero que me veja
(...) (idem, ibidem, p. 82.)