Download PDF
ads:
WODISNEY CORDEIRO DOS SANTOS
QUANDO A MORTE SE APAIXONA: UMA REFLEXÃO SOBRE IMORTALIDADE
E FINITUDE EM AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO
Dissertação de mestrado apresentada
ao Programa de Pós-graduação em
Cultura, Memória e Desenvolvimento
Regional do Departamento de Ciências
Humanas Campus V da Universidade
do Estado da Bahia, como requisito
básico para a obtenção do título de
Mestre em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional.
Orientador: Prof. Dr. Paulo de Assis de Almeida Guerreiro
Santo Antônio de Jesus
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
S237 Santos, Wodisney Cordeiro dos.
Quando a morte se apaixona: uma reflexão sobre imortalidade e
finitude em As intermitências da morte de José Saramago / Wodisney
Cordeiro dos Santos - 2008.
115 f.:
Orientador: Prof. Dr. Paulo de Assis de Almeida Guerreiro.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa
de pós-graduação em Cultura, memória e desenvolvimento regional,
2008.
1. Saramago, José - Análise. 2. Literatura Portuguesa Crítica e
interpretação. 3. Prosa (literatura) - Ensaios I. Guerreiro, Paulo de Assis
de Almeida. II. Universidade do Estado da Bahia, programa de pós-
graduação em Cultura, memória e desenvolvimento regional.
CDD: B869
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.
ads:
3
WODISNEY CORDEIRO DOS SANTOS
QUANDO A MORTE SE APAIXONA: UMA REFLEXÃO SOBRE IMORTALIDADE
E FINITUDE EM AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Cultura,
Memória e Desenvolvimento Regional do Departamento de Ciências Humanas
Campus V da Universidade do Estado da Bahia, como requisito básico para a
obtenção do título de Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional.
Linha de pesquisa: Cultura, memória, linguagens e identidades
Aprovação em, _______ / ________/ _________
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo de Assis de Almeida Guerreiro - UNEB
___________________________________________________________
Prof. Dr. Vitor Hugo Fernandes Martins - UNEB
___________________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Henrique Seidel - UEFS
4
DEDICATÓRIA
Dedico esta dissertação a três
mulheres em minha vida:
A minha mãe Hilma, pela
simplicidade de vida;
minha esposa Cláudia, pela
paciência e incentivo
e ao meu presente de Deus e filha
Mabelle, pela alegria constante.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, que no seu livre arbítrio nos permite pensar e comunicar;
Aos meus pais, que desde muito cedo me deram o apoio necessário para que eu
prosseguisse nessa dura caminhada;
A minha esposa, pela paciência, apoio e dedicação constante;
A minha filha, que, sem saber, me proporcionou o prazer de descansar nas suas
travessuras;
Ao meu orientador, pelo amigo que sempre demonstrou ser;
Aos colegas de curso, que me auxiliaram incontáveis vezes;
A todo o corpo de professores e funcionários que compõe o mestrado Cultura,
memória e desenvolvimento regional;
E a Andréia, que durante o período como secretária no mestrado foi sempre
competente e disposta a auxiliar.
6
“O que pretendo, sim, é evitar que se esqueça que
ela existe, que é o que se costuma fazer. Tentamos
apagar a morte. As pessoas não mais morrem,
simplesmente desaparecem”. (José Saramago)
7
RESUMO
A presente dissertação é uma discussão de como a arte e a literatura em
especial constituem uma ponte entre a vida e a morte e sobre a literatura como um
valioso instrumento de confrontação do homem com a morte. O romance investigado
aqui é As intermitências da morte, José Saramago. Ele nos fará refletir a morte a
partir da sua não existência, fazendo uso do sobrenatural para criar uma reflexão
com o real. No romance, o uso do sobrenatural presente servi para nos fazer
pensar a morte sob outra perspectiva, um tanto quanto inusitada, ou seja, pela de
sua ausência. Pois é isso que é discutido no romance: como ficaria a humanidade
sem a existência da morte, sem que as pessoas morressem. Veremos que a arte
então, e a literatura em especial, torna-se uma ponte entre a vida e a morte. A
literatura passa a ser um valioso instrumento de confrontação do homem com a
morte, uma vez que o texto literário acaba servindo para atenuar o medo que tal
certeza provoca.
8
ABSTRACT
The following work is a discussion about how art and literature put life and
death together and about literature can be a rich instrument of men’s confrontation
with death. The investigated novel, José Saramago’s Death at intervals, leads us to
think about death from its inexistence, by using the supernatural to make a
connection with the reality. In the novel, the usage of the supernatural makes us think
about death under a different perspective, a little unusual, because of its non-
existence. This is what is discussed in the novel: how the humankind would be if
death did not exist, if people could not die. We will see then that art, especially
literature, becomes a bridge between life and death. Literature becomes a rich
instrument for men to face death, since the literary text sometimes softens the fear
caused by the certainty of mortality.
9
SUMÁRIO
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................
2. CAPÍTULO I – A LITERATURA DOMANDO O MEDO ...........................
2.1. DOS MEDOS .....................................................................................
2.2. DO FANTÁSTICO .............................................................................
2.3. DO ESTRANHO.................................................................................
2.4. DO MARAVILHOSO..........................................................................
2.5. A PRESENÇA DO INSÓLITO NO FANTÁSTICO, NO ESTRANHO
E NO MARAVILHOSO..............................................................................
3. CAPÍTULO II – JOSÉ SARAMAGO E A MIRABILIA DA MORTE............
3.1. O NOVO REALISMO ........
................................................................
3.2. O MARAVILHOSO EM SARAMAGO ...............................................
3.2.1. A JANGADA DE PEDRA ....................................................
3.2.2. O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS.............................
3.2.3. AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE.....................................
4. CAPÍTULO III – A MORTE, A RELIGIÃO, A FILOSOFIA E ARTE...........
4.1 A EXPERIÊNCIA DA PRÓPRIA MORTE NA MORTE DO OUTRO..
4.2 MORRER É ALGO NATURAL ..........................................................
4.3. DOMINADOS PELO MEDO .............................................................
4.4. CONFRONTRANDO OS NOSSOS MEDOS ....................................
4.5. FILOSOFAR COM ARTE .................................................................
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................
REFERÊNCIAS...............................................................................................
10
14
15
16
29
36
40
52
53
57
57
63
69
80
80
84
88
93
103
110
112
10
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente trabalho é um diálogo estabelecido com o romance de José
Saramago, As intermitências da morte, no intuito de se compreender alguns
aspectos utilizados pelo autor na construção da imagem da morte.
Embora sejam muitos os autores que fizeram da morte a temática ou o
personagem das suas obras, são poucos que conseguem um nível de
desobrenaturalização da imagem da morte nos domínios da ficção. E é exatamente
isso que nos intriga: Saramago consegue impregnar a imagem da morte de um tal
teor de humanização que os efeitos da narrativa conduzem o leitor a uma nova
forma de vislumbrar a relação do homem com essa verdade inexorável, isso no
sentido de dizer que o autor português traz à tona zonas obscuras ou inusitadas e,
talvez, nunca dantes pensadas sobre o tema da morte. Portanto, a escolha desta
obra deveu-se ao fato de nos interessarmos por uma prática literária que, ao assumir
determinadas possibilidades, denomina-se ora de realismo fantástico, ora de
realismo estranho, ora de realismo maravilhoso. Essas três perspectivas, ao que
tudo indica, possuem uma zona de interseção que é o sobrenatural que poderá ser
confirmado ou não como uma forma de manifestação concreta em uma determinada
obra. Melhor explicando, em algumas obras fatos ditos sobrenaturais e que,
posteriormente vêm a ser explicados, anulando com isso toda a extraordinariedade
que nelas se fazem presentes, como acontece no realismo estranho.
No primeiro capítulo desta dissertação, para começarmos a tratar de como a
arte trabalha o medo da morte, analisaremos as manifestações do medo a partir de
Howard Phillips Lovecraft em El horror en La literatura, que afirma que a narrativa
sobrenatural deve ser observada pela forte carga de emoção que causa no leitor,
contudo, notaremos que Todorov em Introdução à literatura fantástica, apontará para
outro caminho, a saber, que nem toda sobrenaturalidade é capaz de gerar esse
pavor.
Em seguida, uma comparação entre o fantástico, o estranho e o
maravilhoso que, sem embargo, são categorias que serão utilizadas para
11
esboçarmos algumas inferências sobre a imagem da morte em As intermitências da
morte.
No segundo capítulo, procuraremos evidenciar a predileção de José
Saramago pela temática da morte em algumas de suas obras, o que culminará
finalmente no romance As intermitências da morte. Inicialmente, falaremos do novo
realismo tão difundido na América espanhola e observaremos como José Saramago
dele se utiliza para a manifestação do seu pensamento. Para tal demonstração,
rastrearemos algumas de suas obras e elegeremos basicamente três delas para
ensaiarmos algum nível de análise. São elas: A jangada de pedra, O ano da morte
de Ricardo Reis e As intermitências da morte, nosso corpus investigativo.
Ainda no segundo capítulo, como um exercício de reflexão sobre o que vêm a
ser as três possibilidades de realismo segundo as idéias de Todorov, Irlemar
Chiampi, Filipe Furtado e outros autores, ousamos inserir algumas obras elencadas
de José Saramago no maravilhoso como forma de demonstrar a escolha do escritor
por esta prática de realismo, ou seja, a não-predileção pelas ambigüidades ou
incertezas, visto que ele se propõe a manter um diálogo franco com o seu leitor sem,
no entanto, optar pela hesitação o presente no realismo fantástico. As imagens
fantasmagóricas utilizadas nos seus romances tendem a ser encaradas como
naturais, anulando assim o terror defendido por Lovecraft causado pela presença do
sobrenatural.
O uso do sobrenatural presente em As intermitências da morte servirá para
nos fazer pensar a morte sob outra perspectiva, um tanto quanto inusitada, ou seja,
por meio de sua ausência. Pois é isso que é discutido no romance: como ficaria a
humanidade sem a existência da morte, sem que as pessoas morressem.
Por outro lado, ao nos debruçarmos sobre a temática da morte, estaremos
tentando compreender um importante papel que tem a arte e, mais especificamente,
a literatura, que é o de aproximar o homem do seu maior inimigo, de sua maior
angústia. Como coube ao ser humano entre os demais seres vivos ter a consciência
de sua finitude, restou a ele criar mecanismos que o fizessem refletir essa sua não-
permanência entre os viventes, e de ter a certeza de que o seu tempo de vida é
12
breve. A arte então (e a literatura em especial) torna-se uma ponte entre a vida e a
morte, passa a ser um valioso instrumento de confrontação do homem com a morte,
uma vez que o texto literário acaba servindo para atenuar o medo que tal certeza
provoca.
No terceiro capítulo, discutimos a morte a partir de um diálogo possível entre
algumas perspectivas da religião, da filosofia e da arte em As intermitências da
morte. Analisamos como a literatura contribui para a ampliação desse diálogo.
Assim, veremos que o homem tem a sua experiência de morte na morte do outro.
Por outro lado, observaremos também que, neste seu romance, Saramago rompe
com esta experiência humana ao não permitir aos seus personagens tal vivência.
Como uma forma de fazer a morte ser pensada e imaginada de outra maneira, ele
anula, inicialmente, a presença da morte que se torna um fenômeno tão natural
como o amanhecer e o anoitecer. Ele nos faver a ausência da morte como algo
que faz parte da natureza, do existir. E com isso, possibilitará um amplo diálogo com
autores como Françoise Dastur, Schopenhauer, Roberto DaMatta, bem como com o
próprio José Saramago.
Outra análise contida neste terceiro capítulo é a que irá tratar do medo e as
suas implicações. Esta discussão nos fará ver que, por conta do medo da morte, o
homem torna-se mais frágil em suas emoções e, por conta disso, se torna um alvo
fácil para toda e qualquer promessa de vida eterna. Poderemos ver o quanto o autor
do romance critica a religião cristã e, em especial, a igreja católica, ao afirmar que o
que mantém os fiéis em constante profissão de fé é o medo que as pessoas têm em
não continuarem a existir após a morte. Observaremos como a igreja se posiciona
como o verdadeiro caminho que conduz o homem à glória eterna, como a religião
atua à maneira de um instrumento de controle social e como o homem faz uso dela
para a manipulação das pessoas. Em seguida, analisaremos a morte por outra
perspectiva, ou seja, pela capacidade que tem o homem de confrontá-la.
Perceberemos que a religiosidade humana é mais uma maneira de manter a certeza
da morte o mais distante possível, de maneira que se possa viver sem o domínio
dessa aflição. Notaremos que outra forma de manter a morte distante do homem é a
não realização dos funerais nas residências. Além disso, analisaremos o quanto a
despedida do morto o mais será a sua despedida da sua cidade, da sua
13
sociedade, pelo fato de a cidade não comportar mais tais festividades em razão de
uma extrema velocidade do existir. Observaremos como podemos confrontar os
nossos medos fazendo uso da religião, da filosofia e das artes como uma maneira
de resistir a nossa maior angústia. Utilizaremos também outras linguagens artísticas
como um modo de ampliar a discussão e para isso, analisaremos dois filmes: O
primeiro será À espera de um milagre e o segundo, O homem bi-centenário. Como
ambos os filmes trazem uma boa abordagem sobre questões como a morte e o
envelhecimento, acreditamos que contribuirão para o enriquecimento das nossas
discussões. Por fim, veremos como é possível filosofar com arte, ou melhor, como
as artes auxiliam o homem em suas reflexões mais profundas.
Portanto, se “no dia seguinte ninguém morreu(SARAMAGO, 2005, p.11), foi
para nos fazer refletir sobre a importância da morte em nossas vidas e o quanto
morrer e viver são, em verdade, uma unidade, são, por assim dizer, indissociáveis.
14
2. CAPÍTULO I
A LITERATURA DOMANDO O MEDO
15
2.1. DOS MEDOS
Lovecraft escreve que “la emoción más antigua y más intensa de la
humanidad es el miedo, y el más antiguo y más intenso de los miedos es el miedo a
lo desconocido” (LOVECRAFT,1989,p.7). E como reagir a tão forte sentimento? Sem
dúvida, enfrentando-o, porém como enfrentar o maior de todos os desconhecidos,
ou seja, a morte? A religião, a arte, a filosofia e a ciência, cada uma em seus
domínios, contribuem para minimizar o impacto desta que é a maior das aflições
humanas. No caso da literatura, ao fazer da morte um dos seus temas principais, o
resultado é que o que, a princípio, é desconhecido e, por isso mesmo, temeroso,
passa a ser um pouco mais familiar, ou seja, um pouco menos desconhecido e,
dessa forma, o temor da morte é atenuado.
Ao referir-se às grandes histórias, diz Umberto Eco: (...) “Os contos “já feitos”
nos ensinam também a morrer.” (ECO, 2003,p. 21). Há muito tempo, a literatura tem
sido um importante instrumento de reflexão sobre os nossos temores. Um bom
exemplo deste tratamento de revelação das agruras da morte está contido na obra
de Aleilton Fonseca, O desterro dos mortos. No conto O avô e o rio, a naturalidade
com que a morte é apresentada ao leitor deixa claro o quanto o morrer faz parte da
vida.
foi ficando menos forte. enchia menos cada carro, mas sem
coragem para me mandar fazer o mesmo. Demorava tanto no
percurso que dava tempo de eu encher o carrinho e esperar. Um dia
fiquei preocupado. pegou a velha e tirou do carro que eu quase
enchera, três bons punhados. Pôs as mãos nas costas, à altura dos
quadris, e vergou o corpo duas vezes, consertando-se. Eu o observei,
primeiro surpreso. Ele me olhou em silêncio, e triste. As lágrimas se
insinuaram em meus olhos. Um dia, vô não me veio chamar na cama
como fazia. Abri os olhos e não ouvi o intenso canto dos pássaros da
manhã. Era tarde, as réstias de sol entrando pelas telhas vãs me
mostravam. perdera a hora? Meu coração apertou como nunca eu
sentira. Minhas lágrimas inundaram o sol que fazia fora. No quarto
ao lado, dormia, o semblante plácido no corpo fatigado, para
sempre... (FONSECA, 2001, p. 35-36)
16
Entretanto, a literatura tem trabalhado a temática da morte de outras maneiras
que, sem embargo, constituem-se em formas alternativas ao realismo que
predomina em obras que apresentam a morte como um fato inexorável da
existência. Uma dessas maneiras é o que se convencionou denominar de fantástico,
ou seja, uma tendência que utiliza os limites da realidade em que vivemos e o que
pode ser imaginado como além desses limites uma presença ambígua constante
entre o real e o sobrenatural em que os nossos fantasmas passam a conviver
com as nossas imagens lógicas.
Outra tendência próxima ao fantástico é o maravilhoso. A relação entre
ambos é o estreita que seria difícil tentar compreender um sem buscar entender o
outro. Todorov nos faz entender que o maravilhoso é a aceitação do sobrenatural
(TODOROV, 1975, p. 60).
Como o escopo deste trabalho dissertativo é uma reflexão sobre a imagem da
morte na obra de José Saramago As intermitências da morte e, como pretendemos,
nos limites da ficção literária, conhecer até que ponto dispomos de outra maneira de
pensarmos o desconhecido, torna-se imprescindível que saibamos estabelecer as
possíveis diferenças entre uma ficção de tendência fantástica, uma de tendência
estranha e uma de tendência maravilhosa, três possibilidades de se trabalhar temas
que envolvem o desconhecido como a morte e que, mutatis mutandis, foram
largamente exploradas por autores contemporâneos como José Saramago.
2.2. DO FANTÁSTICO
Se recorrêssemos a um dicionário para sabermos a definição de fantástico,
por certo encontraríamos: 1) que ou aquilo que só existe na imaginação, na fantasia;
2) Que é extravagante, caprichoso; 3) que é fora do comum; 4) que não tem
veracidade
1
. No fragmento abaixo do romance Pedro Páramo, obra do escritor
mexicano Juan Rulfo, Juan Preciado se envolvido em um ambiente ambíguo em
1
HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva Ltda., 2001.
17
que realidade e incertezas se mesclam a todo instante. Percebemos que na trama o
personagem acaba por contaminar o leitor com as suas dúvidas, com suas
imprecisões.
- Iré con usted. Aquí no me han dejado en paz los gritos. ¿No
oyó lo que estaba pasando? Como que estaban asesinando a
alguien. ¿No acaba usted de oír?
- Tal vez sea algún eco que está aquí encerrado. En este cuarto
ahorcaron a Toribio Aldrete hace mucho tiempo. Luego condenaron
la puerta, hasta que él se secara; para que su cuerpo no encontrara
reposo. No cómo has podido entrar, cuando no existe llave para
abrir esta puerta.
- Fue donã Eduviges quien abrió. Me dijo que era el único cuarto
que tenía disponible.
- ¿Eduviges Dyada?
- Ella.
-
Pobre Eduviges. Debe de andar penando todavía. (RULFO,
1991, p. 44-45)
Tradução:
- Vou com você. Aqui os gritos não me deixam em paz. Você não
ouviu o que aconteceu? Era como se alguém estivesse sendo
assassinado. Você não ouviu?
- Talvez seja algum eco que esteja fechado aqui dentro. Neste
quarto Toribio Aldrete foi enforcado muito tempo atrás. Depois a
porta foi condenada até que ele ficasse seco; afim de que seu corpo
não encontrasse descanso. Não sei como você entrou, que não
há chave para abrir a porta.
- Foi Dona Eduviges quem a abriu. Ela me disse que era o único
quarto que tinha disponível.
- Eduviges Dyada?
- Ela mesma.
- Pobre Eduviges. Talvez ainda ande penando por aí
2
.
O texto sugere-nos algumas questões: tinha ou não Juan Preciado escutado
gritos? Estaria ou não Eduviges a andar penando? Foi ela mesma quem abriu a
porta? Notamos então que, no texto, a realidade está contaminada de situações que
2
Todas as traduções presentes nesse trabalho dissertativo foram realizadas pelo seu autor.
18
remetem o leitor a um mundo de incertezas. Em outro excerto, o clima de
desconfiança com a realidade apresentada é mantido.
- Ya te he dicho que yo no sueño nunca. No tienes consideración
de mí. Estoy muy desvelada. Anoche no echaste fuera al gato y no
me dejó dormir.
- Durmió conmigo, entre mis piernas. Estaba ensopado y por
lástima lo dejé quedarse en mi cama; pero no hizo ruido.
- No, ruido ni hizo. Sólo se la pasó haciendo circo, brincando de
mis pies a mi cabeza, y maullando quedito como si tuviera hambre.
- Le di bien de comer y no se despede mí en toda la noche.
Estás otra vez soñando mentiras, Susana.
- Te digo que pasó toda la noche asustándome con sus brincos.
Y aunque sea muy cariñoso tu gato, no lo quiero cuando estoy
dormida.
-
Ves visiones, Susana. Eso es lo que pasa. (RULFO, 1991, p.
113)
Tradução:
- Eu te falei que eu não sonho nunca. Você não tem
consideração por mim. Ontem à noite você não colocou o gato do
lado de fora e ele não me deixou dormir.
- Ele dormiu comigo, entre minhas pernas. Ele estava todo molhado
e por pena deixei que ele ficasse em minha cama; mas ele não fez
nenhum barulho.
- Não, barulho ele não fez. Ele ficou fazendo malabarismo,
pulando dos meus pés a minha cabeça, e miando quietinho como se
estivesse com fome.
- Eu lhe dei bastante comida e ele não se afastou de mim durante
toda a noite. Você está outra vez está sendo enganada pelo sonho,
Susana.
- Eu te digo que passou toda a noite me assustando com seus
pulos. E ainda que teu gato seja muito carinhoso, eu não o quero
perto de mim quando eu estiver dormindo.
- Você está tendo visões, Susana. Isso é o que está acontecendo.
Era ou não o mesmo gato que estava na cama com Susana? Estaria ela
sonhando ou o que acontecia era real? Tinha Justina dormido e não percebeu que o
gato saíra e fora estar na casa com Susana? Este clima de imprecisão norteia o
fantástico, a presença constante da dúvida é o que o constitui.
19
No fantástico, as respostas podem ser várias e uma possível escolha por uma
ou outra possibilidade poderá nos remeter às outras espécies vizinhas, ou seja, ao
estranho ou ao maravilhoso. No estranho, a condição é que um fato contido na obra
deverá vir a ser explicado por fenômenos ditos naturais; o leitor é inserido em fatos
que estão a fazer parte de sua realidade e os fenômenos sobrenaturais surgem para
confundi-lo. No fantástico, menos se necessita de uma explicação para os fatos, do
que uma convivência inquietante entre o narrado e o vivido.
... o gênero tenta suscitar e manter por todas as formas o debate
sobre esses dois elementos cuja coexistência parece, a princípio,
impossível. A ambigüidade resultante de elementos reciprocamente
exclusivos nunca pode ser desfeita até o termo da intriga, pois, se
tal vem a acontecer, o discurso fugirá ao gênero mesmo que a
narração use de todos os artifícios para nele conservar. (FURTADO,
1980, p. 35-36)
Com efeito, o que faz o fantástico são esses nós de imprecisões que devem
se manter até o fim, evitando assim somente uma resposta para os acontecimentos
apresentados.
Na obra de Frederik Forsyth, O pastor, um acontecimento passaria
despercebido se, ao final da trama, um questionamento não pairasse no ar, dando
assim ao leitor e ao personagem a dúvida e a possibilidade de mais de uma
resposta: um piloto inglês que ia passar suas férias de natal na Inglaterra com sua
família, num vôo que saiu da Holanda, se em apuros ao atravessar o Mar do
Norte. Em um ambiente de muita neblina e escuridão, há uma pane nos
equipamentos que o deixa sem comunicação, perdido e quase sem combustível; eis
que surge outro avião e o auxilia, conduzindo-o a uma pista na qual consegue fazer
um pouso tranqüilo e seguro. Entretanto, ao questionar o salvamento com um
comandante de uma torre após o pouso e, ao saber que o avião que o auxiliou não
mais fazia parte das aeronaves que eram utilizadas nos resgates de outras,
inevitavelmente lhe sobreveio a pergunta: quem o salvou? Estando seguro em
20
terra e acomodado, encontra uma fotografia na qual imagina ver o piloto e o avião
que o resgatou:
Tirei os olhos da fotografia e apaguei o cigarro do cinzeiro ao lado
da cama. Joe estava a caminho da porta.
- Era um homem notável disse eu com toda a sinceridade. Ainda
agora, já de meia-idade, era um piloto soberbo.
- Sem dúvida, era excepcional disse Joe. Ainda me lembro de
Johnny me dizer um dia, mesmo nesse lugar onde o senhor está
diante do fogo: “Joe, sempre que houver alguém perdido fora, no
meio da noite, tentando voltar, hei de sair ao encontro dele a fim de
trazê-lo para terra”.
Fiz um sinal comovido de assentimento. Era evidente que o velho
adorava o seu oficial do tempo de guerra.
- Bem, ao que parece, ele ainda está fazendo a mesma coisa,
sabia?
O velho sorriu.
- Infelizmente, isso não é possível. Johnny saiu no seu último vôo de
patrulhamento na noite de natal de 1943. Fez exatamente quatorze
anos esta noite. Caiu com o avião em algum ponto do Mar do Norte.
Boa noite, Tenente. Feliz Natal. (FORSYTH, 1975, p. 68 e 70)
O piloto e o leitor o inseridos na imprecisão que os leva a questionar sobre
quem realmente serviu de pastor ou guia para o piloto perdido. Não fica claro se o
salvamento foi obra de alguém que estava disposto a ajudar pessoas em perigo ou
obra do desconhecido. Tais acontecimentos desviam-se das características lógicas
do que se convencionou chamar de realidade, sobretudo da lógica que permite
algum grau de certeza, de confiabilidade, e remetem, em algum momento, para o
que se poderia chamar de alternativa à experiência de realidade, ou seja, à
sobrenaturalidade que é pregada, divulgada e aceita, em maior ou menor grau, em
praticamente todas as sociedades ocidentais.
Outro recurso muito utilizado para produzir a incerteza da narrativa fantástica
tem sido o uso do sonho.
- ¡ Justina ! – le dijeron.
Ella volvió la cabeza. No vio a nadie; pero sintió una mano sobre su
hombro y la respiración en sus oídos. La voz en secreto: Vete de
aquí, Justina. Arregla tus enseres y vete. Ya no te necesitamos.”
21
- Ella me necesita dijo, enderezando el cuerpo - Está
enferma y me necesita.
- Ya no, Justina. Yo me quedaré aquí a cuidarla.
- ¿ Es usted, don Bartolomé? y no esperó la respuesta. Lanzó
aquel grito que bajó hasta los hombres y las mujeres que
regresaban de los campos y que los hizo decir: “Parece ser un
aullido humano; pero no parece ser de ningún ser humano.”
La lluvia amortigua los ruidos. Se sigue oyendo aún después de
todo, granizando sus gotas, hilvanando el hilo de la vida.
- ¿Qué te pasa, Justina? ¿Por qué me gritas? Preguntó
Susana San Juan.
- Yo no he gritado, Susana. Has de haber estado soñando.
-
Ya te he dicho que yo no sueño nunca. (RULFO, 1991, p. 112 e
113)
Tradução:
- Justina! – disseram.
Ela virou a cabeça. Não viu ninguém. Mas sentiu uma mão em seus
ombros e a respiração em seus ouvidos. A voz secretamente: “Sai
daqui, Justina. Pega tua mobília e sai. Não precisamos mais de
você”.
- Ela sim precisa de mim. Disse levantando o corpo. – Está doente e
necessita de mim.
- Não mais, Justina. Eu ficarei aqui e cuidarei dela.
- É o senhor, Sr. Bartolomé? E não esperou a resposta. Gritou
para os homens e mulheres que voltavam do campo e que fez com
que eles dissessem: “Parece ser um grito humano; mas não parece
ser de nenhum ser humano”.
A chuva amortece o barulho. Segue-se ainda escutando depois de
tudo, as gotas de granizo, dando continuidade ao fio da vida.
- O que está acontecendo contigo, Justina? Porquê você está
gritando? – Perguntou Susana San Juan.
- Eu não gritei. Susana. Talvez você esteja sonhando.
- Eu já te disse que eu nunca sonho.
Esta prevalência em criar e manter uma forte atmosfera de ambigüidades é
que faz do realismo fantástico uma temática diferente ao anular toda e qualquer
possibilidade de haver “verdades”. O que a todo instante são dúvidas em que o
verossímil nada mais é que uma camuflagem utilizada no processo narrativo.
Segundo Furtado, “uma organização dinâmica de elementos que mutuamente
combinados ao longo da obra conduzem a uma verdadeira construção de equilíbrio
difícil” (FURTADO,1980,p.15). E ele vai além ao afirmar que “é da rigorosa
22
manutenção desse equilíbrio, tanto no plano da história como no do discurso, que
depende a existência do fantástico na narrativa” (idem, ibidem).
Pode-se definir o fantástico como a existência de um mundo em que
acontecimentos estranhos acontecem, mas sem que estes possam ser explicados
como se explicam os fenômenos naturais com os quais estamos acostumados a
lidar. Todorov vai ainda mais longe ao dizer que:
Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo
que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos,
sílfides, nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode
ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o
percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se
trata de uma ilusão de sentidos, de um produto da imaginação e
nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o
acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade,
mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para
nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário; ou então existe
realmente, exatamente como os outros seres vivos: com a ressalva
de que raramente o encontramos. (TODOROV, 1975, p. 30-31)
Ao penetrarmos nessa prática literária, somos conduzidos a uma realidade na
qual nos reconhecemos, ao mesmo tempo em que estamos familiarizados com
personagens como demônios, seres alados, anjos, fadas e outros. Personagens que
abundam em nosso imaginário e que servem de farto material para a construção das
narrativas fantásticas. No entanto precisa ser mantido o caráter ambíguo do
fantástico, a dúvida deve manter-se presente até o fim numa relação constante entre
o real e o imaginário.
Todorov aponta para outra particularidade que é a hesitação. Segundo ele, “é,
pois a primeira condição do fantástico” (TODOROV,1975,p.37) que, no entanto,
pode não se fazer presente em todas as obras de teor fantástico, mas que está
contida na maior parte delas.
Em El otro yo, de Mario Benedetti, a presença do duplo – o eu que se divide –
sinaliza a presença do fantástico sem que haja a hesitação como condição de
23
prevalência: o jovem Armando possuía um outro eu com o qual divergia em
pensamentos e atitudes. Um dia, de tão indignado, resolve gritar com o outro eu que
o atormentava. No dia seguinte, o outro eu de Armando havia morrido e então ele
pôde ver-se livre do incômodo. Mas, ao passear feliz por uma rua por onde alguns
dos seus amigos caminhavam e se aproximavam dele, percebe que estes o
ignoram. Os amigos não o reconhecem e ele nota que eles sentiam a falta do outro
eu que era parte integrante da sua vida. Neste conto não há a hesitação, no entanto,
a ambigüidade está presente. Ao não ser reconhecido, Armando sente uma falta de
ar, porém não pôde ficar triste, porque o outro eu lhe havia levado toda a tristeza,
logo,
o fantástico implica portanto não apenas a existência de um
acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no herói;
mas também numa maneira de ler, que se pode por ora definir
negativamente: não deve ser nem “poética”, nem “alegórica”
(TODOROV, 1975, p. 38)
E não somente isso, mas numa “nova” forma de escrever. Evidentemente não
tão nova assim. Atribui-se a presença do fantástico “desde Homero e As mil e uma
noites: Dorothy Scarborough (1917), Montague Summers (1969), Luis Vax (1970),
Jorge Luis Borges e outros”. (RODRIGUES,1988, p.16 e 17).
Em outro conto de Mario Benedetti, Los bomberos, do livro La muerte y otras
sorpresas, o autor inverte a realidade. Aquilo que é estranho, torna-se digno de
louvores: Olegário, que podia prever o futuro e era parabenizado sempre por seus
amigos por isso, tem a visão de que sua casa estava em chamas. Ao tomar um táxi
em direção ao lugar onde reside, verifica um grande movimento dos bombeiros. No
trajeto, ele sempre está a dizer que sua casa está em chamas. Ao chegar, desce do
táxi emaravilhado que a sua adivinhação era verdade e espera ser parabenizado
pelos seus amigos por este grande feito.
Neste caso, prever o futuro é uma expectativa de grande positividade. Seria
humanamente improvável alguém ver a sua própria casa ardendo em chamas e não
movimentar-se para apagá-las. E mais, ter a capacidade de antever o fato e, no
entanto, esperar que este se confirme para que se pudesse ter a certeza da
24
existência dos poderes, no caso de Olegário, “suscita no destinatário do enunciado
uma ilusão de confiança na “imparcialidade” do narrador, tornando-se assim um
importante fator de verossimilhança” (FURTADO,1980, p.67). De maneira que, “o
verossímil deverá ainda atuar como elemento de dissimulação, tornando-se, afinal,
uma espécie de máscara dos processos que utiliza” (idem,ibidem, p.47). Até porque,
quando se opta por esta modalidade, quer escritor, quer leitor, empreende-se um
desafio aos limites que estabelecemos para a leitura do real e, com isso, indagamos
sobre um mundo que vai muito além do real. E fica o leitor, em especial,
condicionado a encontrar-se com um mundo distante do que entende por real.
Na prática do fantástico, pode parecer fácil a idealização, contudo, o que se
observa é que, “longe de resultarem da completa e desenfreada liberdade de
imaginação que quase sempre procuram aparentar, a história e o discurso
fantásticos são, pelo contrário, objeto de calculada contenção e censura” (idem,
ibidem, p.51).
Estamos diante de uma narrativa blindada por uma camuflagem que expressa
uma verdade para fatos irreais. O escritor Juan Rulfo, por exemplo, elabora sua
narrativa com essa camuflagem e consegue alterar a realidade por meio de uma
“racionalização de tudo o que de alucinante acontece”. (idem,ibidem, p.64.)
Como usted sabe, no es fácil ajuarear las cosas en un dos por tres.
Para eso hay que estar prevenido, y la madre de usted no me avisó
sino hasta ahora.
- Mi madre – dije - , mi madre ya murió.
- Entonces ésa fue la causa de que su voz se oyera tan débil,
como si hubiera tenido que atravesar una distancia muy larga para
llegar hasta aquí. Ahora lo entiendo. ¿Y cuánto hace que murió?
- Hace ya siete días.
- Pobre de ella. Se ha de haber sentido abandonada. Nos
hicimos promesa de morir juntas. De irnos las dos para darnos
ánimo una a la otra en el otro viaje, por si se necesitara, por si acaso
encontráramos alguna dificultad.
- (…)
- Yo creía que aquella mujer estaba loca. Luego no creí nada.
Me sentí en un mundo lejano y me dejé arrastrar. (RULFO, 1991, p.
16 e 17.)
25
Tradução:
Como você sabe, não é possível ter tanta certeza assim das coisas.
Para isso, é importante estar prevenido e tua mãe não me avisou
senão agora.
- Minha mãe – disse – minha mãe morreu.
- Então essa foi a causa de que ouvi a voz dela tão distante,
como se tivesse que atravessar uma distancia muito longa para
chegar até aqui. Agora eu entendo. Faz muito tempo que ela
morreu?
- Faz sete dias.
- Pobre dela. Ela se sentiu abandonada. Nós fizemos uma
promessa de morrermos juntas. De irmos as duas para que
déssemos ânimo uma à outra na outra viagem, caso fosse
necessário, se por ventura encontrássemos alguma dificuldade.
- (...)
- Eu achava que aquela mulher estava louca. Depois não achei
mais nada. Me senti em um mundo distante e me deixei levar.
Notamos neste fragmento de Pedro Páramo que Rulfo tenta e consegue
manter a dúvida, a incerteza: Eduviges afirma a Juan Preciado que havia escutado a
mãe dele e que, ao mesmo tempo, ambas prometeram morrer juntas para que se
fortalecessem no caminho para o outro mundo. Além disso, ele, Juan Preciado,
pensa estar Eduviges louca e, em seguida, não pensa mais em nada disso. Rulfo,
na tentativa de manter as amarras da ambigüidade psicológica, cria este efeito de
certezas e incertezas.
Outra importante obra em que estas incertezas se manifestam é Manuscrito
encontrado em Saragoça, de Jean Potocki. O jovem Afonso Van Worden, capitão
dos Guardas Valões, faz uma viagem de quatorze jornadas pela Espanha,
acompanhado de um criado e de um garoto. Na primeira, seus criados desaparecem
e, sem mantimentos, abriga-se faminto em uma estalagem abandonada. Cansado e
preocupado com o desaparecimento dos criados, alimenta a sua mente com os mais
sombrios pensamentos: “à medida que a noite se ia tornando mais escura, mais
sombrios se iam tornando os meus pensamentos” (POTOCKI,1971, p.16). De
madrugada, ao ouvir as doze badaladas de um sino na estalagem, surpreende-se
com a presença de uma negra seminua que o convida a comer juntamente com
umas damas.
26
A negra foi-se aproximando, fez uma profunda reverência e disse-
me em espanhol muito correto:
- Senhor cavaleiro, umas damas estrangeiras que estão a passar a
noite nesta pousada, rogam-vos que queirais compartilhar com elas
a sua ceia. Tende a bondade de seguir-me. (POTOCKI, 1971, p.
17.)
Apresentado a duas lindas irmãs chamadas de Emina e Zibedéia, vestidas
com roupas poucas e transparentes, cercado ainda por outras negras seminuas,
Afonso Van Worden se encantado pela beleza dessas mulheres, surgidas na
madrugada.
As duas desconhecidas dirigiram-se a mim com ar natural e afável.
Eram duas belezas perfeitas; uma grande, esbelta, deslumbrante, a
outra enternecedora e tímida. A mais majestosa tinha uma figura tão
admirável como o seu rosto. A mais nova era roliça, os lábios um
tanto carnudos as pálpebras semicerradas, mal deixando ver as
pupilas ocultas pelas pestanas de um comprimento extraordinário.
(idem, ibidem, 1971, p. 18.)
O ápice deste encontro se dará quando o jovem capitão começa a questionar
a realidade que está vivenciando, quando ele se sente acompanhado por demônios
disfarçados de mulheres.
Durante algum tempo pude contemplá-las com serenidade. Porém
os seus movimentos, animados por uma cadência cada vez mais
rápida, o ruído perturbador da música mourisca, o meu espírito
agitado por uma refeição inesperada, tudo se aliava para me
perturbar a razão. não sabia se eram mulheres, se demônios
disfarçados de mulheres. não ousava olhá-las não queria vê-
las. Cobri os olhos com as mãos e senti-me desfalecer. (POTOCKI,
1971, p.19.)
Com efeito, o personagem é afetado justamente na área que nos distingue
dos outros animais, a razão. Ele tem os seus sentidos alterados pelos vários
27
acontecimentos que se sucedem durante o seu encontro com Emina e Zibedéia. A
lógica tão fundamental nas ações humanas é posta de lado uma vez que a vida
deve prevalecer. Segundo Mclnerny, “ser lógico pressupõe forte consciência do
modo como os fatos que são nossas idéias relacionam-se com os fatos que são
objetos do mundo, pois lógica tem a ver com verdade” (MCLNERNY, 2004, p.19).
Roger Caillois
3
assevera: “Todo o fantástico é ruptura da ordem estabelecida,
irrupção do inadmissível no seio da inalterável realidade”. Além disso, “a absoluta
como a incredulidade total nos leva para fora do fantástico; é a hesitação que lhe
a vida” (TODOROV, 1975, p.36). É quando duas outras práticas vizinhas podem vir
a surgir: o estranho, como o sobrenatural explicado; o maravilhoso, como o
sobrenatural aceito. Para Todorov, no realismo estranho:
Relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados
pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra,
incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes,
insólitos e que, por isso, provocam na personagem e no leitor reação
semelhante àquela que os textos fantásticos nos tornaram familiar.
(idem, ibidem, 1975, p. 53.)
Por outro lado, “no maravilhoso os elementos sobrenaturais não provocam
qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito”
(TODOROV, 1975, p. 60.) Sobre o efeito que causa no leitor por intermédio das
ações dos personagens e do narrador, diz Max Milner:
El género fantástico, tal como se desarrolla... confirma esta
connivencia de base entre lo imaginario y la óptica, y la pone en
acción en relatos en que el rebasar los límites, la puesta en
comunicación de espacios incompatibles, la manipulación de las
dimensiones y de las distancias, la creación de dobles artificiales o
de copias, el dominio de la ilusión y la puesta en duda de sus
prestigios dan lugar a una experimentación mental, de una
intensidad y de una audacia sumamente particulares.
(MILNER, 1990, p. 33 e 34.)
3
CALOIS, R. Au coeur du fantastique. Paris: Gallimard, 1965. Apud TODOROV, p. 32.
28
Tradução:
O gênero fantástico tal como se desenvolve... confirma esta
conivência de base entre o imaginário e a ótica e a põe em ação em
relatos que ultrapassam os limites, põe em comunicação espaços
incompatíveis, a manipulação das dimensões e das distancias, a
criação de duplos artificiais ou de cópias, o domínio da ilusão e o por
em dúvida as suas verdades dão lugar a uma experimentação
mental, de uma intensidade e de uma audácia sumamente
particulares.
E ele ainda acrescenta:
Gracias a la óptica fantástica, el hombre moderno despliega ante
sus propios ojos, no sólo la escena de sus fantasmas con lo que en
ella se desarrolla, sino también el propio mecanismo por el cual esos
fantasmas surgen a la luz y las vías por los cuales se transforman
en textos, es decir, en fuentes de goce para otro y en objetos de
cultura. (MILNER, 1990, p. 33 e 34.)
Tradução:
Graças à ótica fantástica, o homem moderno realiza diante de seus
próprios olhos, não somente a cena de seus fantasmas com o que
nela se desenvolve, mas também o próprio mecanismo pelo qual
esses fantasmas surgem à luz e os caminhos pelos quais se
transformam em textos, ou seja, em fontes de gozo e em outros
objetos de cultura.
É graças a esta ótica fantástica e, por que não dizer ilusão de ótica, que os
sujeitos envolvidos na realização da leitura do texto fantástico, a saber, os
personagens, o narrador e o leitor o iludidos por uma ambigüidade que lhes afeta
29
os sentidos. Não é em vão que tal realismo foi cunhado por Franz Roh, em 1925, de
realismo mágico
4
.
Segundo Chiampi:
... a adoção do termo realismo mágico revelava a preocupação
elementar de constatar uma nova atitude” do narrador diante do
real. Sem penetrar nos mecanismos de construção de um novo
verossímil, pela análise dos núcleos de significação da nova
narrativa ou pela avaliação objetiva de seus resultados poéticos, a
crítica não pôde ir além do “modo de ver” a realidade. E nesse modo
estranho, complexo, muitas vezes esotérico e lúdico, foi identificado
genericamente com a “magia”. (CHIAMPI, 1980, p. 21.)
Independentemente da terminologia, que atualmente parece sedimentada,
temos assim a possibilidade de, neste mundo mágico-literário, transitar por três
práticas que se assemelham e que, ao mesmo tempo, possuem suas
especificidades: o fantástico, o maravilhoso e o estranho.
2.3. DO ESTRANHO
Conforme foi observado, o fantástico é uma tendência da ficção que
apresenta como principal característica um determinado grau de hesitação que o
leitor experimenta por meio das ações, do discurso dos personagens e da forma de
narração. O fantástico também se situa numa zona intercessora entre duas outras
tendências ficcionais que são o estranho e o maravilhoso. Acreditamos que o
entendimento do estranho servirá para um aprofundamento na compreensão do
maravilhoso.
4
ROH, Franz. Realismo mágico. Postexpresionismo. Madrid: Revista de Occidente, 1927. Apud
CHIAMPI, 1980, p. 21.
30
Segundo Todorov, se o leitor ou o personagem, ao estabelecerem o contato
com a narrativa de tendência fantástica, optarem por uma determinada solução que
os conduza a sair dessa tendência, então eles estarão indo em direção ao estranho
ou ao maravilhoso: “Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e
permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a outro tema:
o estranho” (TODOROV, 1975, p. 48).
Todorov auxilia-nos de maneira muito positiva na identificação dessas
tendências tão próximas. No caso específico do estranho, em geral, a narrativa
encontra-se repleta de fatos inexplicáveis que nos iludem a imaginação fazendo-nos
crer que tais acontecimentos pertencem verdadeiramente ao mundo da
sobrenaturalidade. Por certo, ante a leitura de uma obra que pertença ao estranho,
numa leitura isolada, analisando e nos prendendo a determinadas partes do texto, a
ligaremos, de imediato, ao fantástico. Sendo este o jogo estabelecido por nós,
leitores, fica claro então que, nessa leitura, o fantástico poderá desaparecer e não se
manterá em toda a narrativa e, além disso, ler a obra até o final é que nos dará a
condição de nos posicionarmos sobre a sua natureza, se realmente estranha ou
fantástica.
Começamos por dizer, então, que, no estranho, a sobrenaturalidade
imaginada é tão somente um efeito criado para disfarçar uma realidade conhecida,
ou seja, “acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história, no
fim, recebem uma explicação racional” (idem, ibidem, 1975, p. 51). um porém
que é preciso ser observado. Como estamos tratando de texto literário, a sedução
que leva o leitor a titubear diante da tendência que lhe é passada é construída por
palavras, ou seja, seduzido pela palavra, o leitor é enganado e direcionado a
acreditar numa “verdade” forjada pelo escritor e vivida pelo narrador e pelos
personagens. Essa manipulação também acontece no fantástico que, caso tenha os
seus acontecimentos insólitos explicados em algum momento da narrativa, lugar
ao estranho.
Um exemplo dessa passagem do fantástico para o estranho está na obra,
citada anteriormente, Manuscrito encontrado em Saragoça de Jean Potocki: o jovem
Afonso Van Worden se envolvido em fatos inexplicáveis que confundem a sua
31
mente sem, no entanto, impedirem que ele avance no seu objetivo de viajar para
Madrid sob a ordem do rei D. Felipe V.
Conforme foi citado, no caminho, o jovem capitão dos Guardas Valões perde
os seus dois criados que desaparecem de maneira inusitada, levando consigo
animais, comida e bebida. À noite, nas doze badaladas do sino, eis que uma negra
surge e o conduz a duas irmãs, cercadas de negras que se vestiam com pouca
roupa. Afonso, seduzido então pelas duas irmãs, Emina e Zibedeia, imagina estar
diante do próprio Satanás
5
. Todos os fatos, toda a atmosfera em que o jovem
encontra-se, o levam a imaginar que, em verdade, o que ele vive são eventos
sobrenaturais e que o local é amaldiçoado, porém, estando ele um dia em um
ambiente tranqüilo, tendo acordado mais cedo que o habitual, pôde refletir melhor
sobre tudo o que lhe havia acontecido até aquele presente momento:
Acordei mais cedo do que habitualmente e fui ao terraço para
respirar mais à vontade, antes que o sol tivesse aquecido a
atmosfera. O ar estava calmo. A própria torrente parecia ecoar com
menos força e deixava ouvir o canto dos pássaros. A paz da
natureza inundava a minha alma, e pude pensar com tranqüilidade
no que me tinha acontecido desde o dia em que saí de Cádis.
(POTOCKI, 1971, p. 109.)
Ora, toda esta reflexão de Afonso somente acontece na sua décima jornada
de um total de quatorze. Os eventos que o confundem são iniciados desde a
primeira e muitas coincidências ou não fazem com que ele vivencie fatos que, até
então, faziam parte de um acervo de memórias conhecidas, contudo, não-vividas.
Observa-se também que todo um clima é criado visando inserir o personagem e o
leitor na narrativa fantasmagórica. Cabe ao narrador, que é o próprio personagem
principal, fazer esta introdução:
O conde de Olavide ainda não tinha estabelecido colónias
estrangeiras na Serra Morena e esta imponente cadeia de
5
Como não é objetivo nosso neste trabalho abordar questões étnico-raciais, não discutiremos aqui a
demonização da mulher negra na obra de Potocki.
32
montanhas que separa a Andaluzia da Mancha era habitada apenas
por contrabandistas, bandidos e alguns ciganos que, segundo a
lenda, comiam os viajantes que assassinavam. É esta a origem do
provérbio espanhol: “As ciganas da Serra Morena querem carne de
homens”. (
POTOCKI
, 1971, p. 11.)
Esta introdução da primeira jornada deixa claro que Afonso possuía
informações sobre o ambiente hostil que ele deveria enfrentar durante a travessia,
entretanto, sendo jovem e cheio de coragem, se disposto a superar o medo e a
seguir adiante a serviço do rei Felipe V. E ele segue descrevendo o que poderá
encontrar na sua viagem:
Mas isto não é tudo. O viajante que se arriscava por esta região
selvagem sentia o sangue gelar-lhe nas veias, assaltado por mil
terrores, capazes de pôr os cabelos em ao mais valente: ouvia
grandes lamentos que se misturavam com o ruído das torrentes e
com o bramir das tempestades; luzes enganosas empurravam-no,
como mãos invisíveis, para abismos sem fundo.
Verdade seja que não faltavam, nessa estrada perigosíssima,
algumas ventas ou albergues, muito afastados uns dos outros.
Contudo, as almas do outro mundo, mais diabólicas que os próprios
estalajadeiros, tinham obrigado estes a ceder-lhes o seu lugar e a
retirarem-se para regiões onde o seu repouso apenas fosse
perturbado pelos remorsos das suas consciências, fantasmas a que
os estalajadeiros acabaram por se habituar. (
POTOCKI
, 1971, p.
11.)
O narrador nos insere num ambiente de medo, a fim de que vivamos também
as mesmas emoções sentidas pelo personagem que, neste caso, são a mesma
pessoa. Continuando:
O dono da pousada de Andújar, invocando o testemunho do
apóstolo Santiago para os seus relatos maravilhosos, assegurou-me
que os archeiros da Santa-irmandade se tinham recusado a
acompanhar toda e qualquer expedição à Serra Morena e que os
viajantes evitavam este percurso e tomavam o caminho de Jaen ou
da Extremadura. A isto respondi que esses caminhos poderiam ser
os mais convenientes para os viajantes vulgares, mas que tendo-me
o rei D. Felipe V feito a graça de me honrar com o grau de capitão
dos Guardas Valões, as leis sagradas da honra me obrigavam a
33
viajar para Madrid pelo caminho mais curto, sem perguntar se esse
era o mais perigoso.
- Meu jovem Senhor advertiu-me o estalajadeiro. Vossa Mercê
permitirá que lhe observe que se el-rei vos honrou com uma
companhia de guardas antes que a idade vos tivesse honrado com o
mais pequeno buço no vosso queixo, não será demais dar algumas
provas de prudência. Nunca se sabe o que pode acontecer quando
os demônios se apoderam de uma região.
(
POTOCKI
, 1971, p.
11-
12.)
Enfim, chega-se ao ponto em que definitivamente é feita a introdução no
mundo dos acontecimentos insólitos. Ao narrar de forma direta a fala do
estalajadeiro, o narrador assinala o início do fantástico, tão necessário para o
desfecho final que irá inserir a obra no estranho. O leitor então é influenciado a
acreditar não somente na existência de tais seres espectrais, bem como que o
caminho a ser percorrido por Afonso lhe reserva muitos perigos. Isso evidencia o
quanto a palavra é capaz de envolver os sentimentos humanos e levar o leitor a crer,
ainda que momentaneamente, na informação que lhe é passada. Em Manuscrito
encontrado em Saragoça, narrador (que é o personagem principal) e leitor se
deixam envolver pela mensagem recebida. Ambos são lançados no caminho em que
o medo será o companheiro constante.
Diferentemente do fantástico e do maravilhoso, o estranho solicita que haja
um esclarecimento dos fatos ocorridos. É então que o autor busca trazer à luz o
acontecimento que ocasionou um instante de interrogação, de dúvida, que fez com
que houvesse um momento de forte ambigüidade típica do fantástico. Cabe ao autor
dar um desfecho no intuito de direcionar tanto leitor como personagem para os fatos
conhecidos no mundo real:
Algumas palavras que se escaparam de Manuel de Sá, governador
daquela cidade, e que recordei mais tarde, fizeram-me suspeitar
que tinha algo que ver com a misteriosa existência dos Gomélez e
que conhecia uma parte do seu segredo. Foi ele quem me forneceu
os meus dois criados, Lopes e Mosquito, e suspeito que foi por sua
ordem que me abandonaram à entrada do maldito vale de Los
Hermanos. Minhas primas tinham-me com freqüência dado a
entender que ia ser posto à prova. Pensei que me deviam ter dado
em La Venta uma beberagem que me adormeceu, e que durante o
sono me tinham transportado ao lugar da forca e me deixado
34
debaixo dela. Pacheco talvez tivesse perdido o seu olho em
qualquer outro acidente e não pelas suas relações amorosas com os
dois enforcados. Provavelmente a sua terrível história era um conto.
Quanto ao eremita, tentando sempre surpreender o meu segredo
por meio da confissão, era sem dúvida um agente dos Gomélez que
queria por a prova a minha discrição. (POTOCKI
, 1971
, p. 109.)
Em outro momento da narrativa, Afonso é surpreendido por outro
acontecimento que o deixa confuso, apesar de haver tido experiências anteriores
que não tinham nada de sobrenatural.
Uma manhã Ambrósio veio pedir-me que o substituísse por outro
criado, que fosse valente, pois depois da meia-noite não era
agradável estar ali, menos ainda na casa em frente. (...) Ambrósio
tinha-me dito que este era o momento em que aparecia o fantasma.
A luz passava de uma sala para outra, e de um andar para o outro,
mas as persianas impediam-me de ver donde procedia a luz. (...) Na
noite seguinte, instalei-me de novo no meu observatório e ao chegar
a meia-noite, voltei a ver a mesma luz. Mas desta vez vi bem donde
vinha. Uma mulher vestida de branco e levando uma vela
atravessou lentamente todas as salas do primeiro andar, passou ao
segundo e depois desapareceu.
Na manhã seguinte, muito cedo, fui ver a duquesa, mas não estava.
Dirigi-me à habitação do meu filho e notei certa inquietação e
agitação entre as criadas. (...) Por fim a ama confessou-me que na
noite anterior uma mulher vestida de branco tinha entrado no quarto
do menino com uma vela na mão, o tinha abençoado, e se tinha ido
embora. (...) Quando bateu a meia noite instalei-me no meu
observatório da janela, donde podia ver o menino dormindo e a sua
ama. Logo apareceu uma mulher vestida de branco com uma vela
na mão. Acercou-se do berço, olhou longamente para o menino e
abençoou-o. Depois, foi à janela e olhou durante algum tempo para
onde eu estava. Finalmente, saiu da sala e vi luz no piso superior. A
mesma mulher apareceu depois no telhado, passou ao telhado
vizinho e desapareceu da minha vista.
Confesso que a visão me deixou confuso. Mal dormi. (idem
,
ibidem,
p. 215 e 216.)
Ao que parece, as experiências passadas, relacionadas ao mundo
sobrenatural, não foram suficientes para dar a Afonso a certeza de que não poderia
ser um fantasma o que ele estava vendo. Deveria haver uma explicação racional
para tal fato. No entanto, mais uma vez ele é confundido e levado a pensar na
possibilidade de estar diante de um espectro. De maneira que o leitor sempre
35
imagina que existe a possibilidade de haver manifestações espectrais. Assim,
Afonso se aturdido ante tal situação vivenciada, porém, como havia sido citado
anteriormente, no estranho haverá sempre uma explicação racional para tais
acontecimentos, exatamente o que acontece em seguida. A duquesa de Ávila, que
não mais queria dar-se em casamento, apaixonou-se por Afonso, contudo,
desconfiada do amor dele, fez-se passar por Leonora Avadoro, com quem ele se
casou. Entretanto, para a duquesa seria muito difícil permanecer guardando tal
segredo, de modo que se retirou para passar uns meses em uma de suas
propriedades em Ávila. Afonso havia sido informado que a sua mulher Leonora
estava morta e ele acreditava que talvez a mulher vista tivesse sido o fantasma de
sua esposa. Sem embargo, coube ao cavaleiro de Toledo explicar-lhe o que
realmente aconteceu. Ou seja, a duquesa havia se passado por duas pessoas, para
assim poder disfarçar-se e não permitir que alguém se apaixonasse por ela tão
somente pelo seu título e riqueza. Tendo a certeza do amor de Afonso, ela não
suporta mais se manter longe dele, visto que ele deu toda a demonstração de amor
que ela precisava. É quando Toledo lhe expõe a verdade dos fatos:
A duquesa, vendo que recusáveis os partidos mais brilhantes
apenas para permanecer fiel a ela, decidiu ser vossa esposa.
Ficastes, pois, casado perante Deus e perante a Igreja, mas não
perante os homens. (...) Depois da vossa boda, a duquesa decidiu
passar alguns meses nas suas propriedades de Ávila para se
subtrair ao olhares dos curiosos. (...) para despistar enviámos
Leonora para o campo. Depois, pareceu-nos conveniente que
partisses para Nápoles, pois não sabíamos já o que vos dizer acerca
de Leonora, e a duquesa não se queria dar a conhecer, senão
quando uma prova forte do vosso amor aumentasse os vossos
direitos.
Agora, meu querido Avadoro, devo implorar-lhe que me concedais o
vosso perdão. Feri-vos profundamente ao anunciar-vos a morte de
uma pessoa que nunca existiu. Mas o vosso amor nada perdeu com
isso. A duquesa está comovida ao ver que a amastes tão
completamente sob duas aparências tão diferentes. Desde oito
dias arde em desejos por vós. Mas novamente devo declarar-me
culpado de obstinar-me em fazer Leonora voltar do outro mundo. A
duquesa acedeu a representar de novo o papel de mulher vestida de
branco, mas não foi ela que correu tão rapidamente pelo cume do
telhado da rua de Retirada, mas sim um pequeno limpa-chaminés
que se prestou a isso e que na noite seguinte voltou, disfarçado de
diabo coxo. Sentou-se na janela e deslizou até à rua com a ajuda de
uma corda de antemão preparada.
(idem
, ibidem, p. 219.)
36
Como é possível notar, houve uma lógica explicação para o que se presumia
ser um fenômeno do além. Não havia mortos, nem fantasmas. Todos os fatos
apresentados foram feitos por vivos.
As explicações, enfim, dadas no final da narrativa, eliminam as dúvidas
criadas e contribuem para retirar as ambigüidades que porventura foram
manifestadas. O fantástico então desaparece, transformando-se no estranho, ou
seja, torna-se um fantástico explicado. Ficando claro que para que haja o estranho,
faz-se necessário que todo um cenário fantástico instale-se e, depois, tudo saia de
forma racionalmente explicada.
2.4. DO MARAVILHOSO
Irlemar Chiampi, em seu livro O realismo maravilhoso, contribui para uma
definição muito clara para o entendimento do que se pode entender como o
maravilhoso. Para ela, essa tendência se quando os acontecimentos relatados
numa obra são oriundos da sobrenaturalidade. Logo, não uma explicação
racional para os fatos narrados. Segundo Chiampi,
(...) o maravilhoso difere radicalmente do humano: é tudo o que é
produzido pela intervenção dos seres sobrenaturais. (...) não se
trata de grau de afastamento da ordem normal, mas da própria
natureza dos fatos e objetos. Pertencem a outra esfera (não
humana, não natural) e não tem explicação racional. (CHIAMPI,
1980, p. 48.)
Diferentemente do fantástico, no maravilhoso não a presença da
ambigüidade; a hesitação como conseqüência do sobrenatural é nula. Difere
também do estranho, uma vez que, para os fatos narrados, não uma explicação
racional. No maravilhoso, o sobrenatural acontece, sem causar no leitor nenhuma
reação de estranhamento. Ao contrário, o leitor aceita normalmente tudo o que é
37
descrito no texto. “No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não
provocam qualquer reação particular nem nas personagens nem no leitor implícito”
(TODOROV,1975, p. 60).
A Bíblia, em alguns de seus livros, contempla este tipo de relato. No Gênesis,
a formação do homem ocorre mediante um efeito sobrenatural. O homem é feito do
da terra por Deus que, em seguida, sopra-lhe nas narinas e lhe o fôlego da
vida. Aliás, toda a criação é resultante de fenômenos sobrenaturais. Não se concebe
uma racionalização para tais fatos. “Maravilhoso é o extraordinário, o insólito, o que
escapa ao curso ordinário das coisas e do humano” (CHIAMPI, 1980, p.48). O
diálogo entre Eva e a serpente comprova isso:
Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o
Senhor Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse:
Não comereis de toda a árvore do jardim?
Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim podemos
comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse
Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais.
Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis.
Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão
os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.
(Gen. 3:1-5.)
Observa-se que o diálogo entre a serpente e a mulher ocorre muito
naturalmente como se a palavra, ou seja, logos, estivesse presente na serpente,
pois, como sabemos, o uso da palavra na comunicação é algo estritamente humano.
Podemos também observar, na obra Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift,
vários aspectos do maravilhoso. O romance é uma crítica à sociedade inglesa do
século XVIII e encontra no extraordinário a rmula de dialogar com o leitor. Após o
naufrágio do barco em que navegava, o médico Lemuel Gulliver salva-se depois de
nadar por um longo tempo até aportar em uma ilha desconhecida. A salvo e em terra
firme, ele dorme por várias horas. Ao despertar, nota que não podia se movimentar
pelo motivo de estar amarrado por uma grande quantidade de linhas que o
impediam de libertar-se. O incomum está no fato de que as linhas foram postas por
homens bem pequeninos que viviam num país chamado Llliput, onde cavalos,
38
carneiros, carros, homens e cidades eram diminutos. Tudo era tão pequeno neste
reino que, ao impedir uma batalha entre Lilliput e Blefuscu dois povos inimigos
Gulliver amarra todos os barcos blefuscuanos e os leva para Lilliput.
Em outro momento da obra, Gulliver, após ter retornado à sua família, resolve
fazer outra viagem e se vê agora na situação inversa, ou seja, ele agora é o
pequenino em terras de gigantes. O que podemos notar é que o fato narrado foge
completamente ao que entendemos por natural. No entanto, o maravilhoso o
naturaliza. Isso significa dizer que cabe ao narrador a função de acomodar o seu
leitor ante o texto, eliminando o desconforto que o sobrenatural lhe venha a causar,
naturalizando-o. então uma consciência centralizadora que manipula a distância
entre o natural e o sobrenatural, de modo a controlar a confiança de quem o texto
no intuito de atrair a sua simpatia.
Vejamos este fragmento:
Mal peguei no sono, um baque muito forte me acordou. Senti que a
caixa tinha sido levantada pela alça. Abri a janela e comecei a gritar:
- Será que você não percebe que está balançando a caixa? Não
podia ter me acordado antes?
depois de ter falado tudo isso, notei que continuava subindo.
Olhando pela janela, percebi que a praia estava muito abaixo do que
estaria se o pajem estivesse me carregando. E as pernas do rapaz
não se encontravam ali, pelo menos não as enxergava pelas três
janelas existentes na caixa. Via apenas nuvens e céu...
Fechei tudo rapidamente quando ouvi um som semelhante ao
produzido por um bater de asas. Não havia dúvida: algum pássaro
enorme levava a caixa pela alça. Talvez uma águia. As águias têm o
costume de pegar tartarugas, por exemplo, atirá-las contra alguma
rocha, para quebrar sua casca, e então comer sua carne. Mas...
seria uma águia? E eu, seria para ela uma tartaruga?
O barulho de asas batendo aumentou. A caixa balança para cima e
para baixo. Depois senti que caía verticalmente, durante um
interminável minuto. (SWIFT, 1998, p. 74.)
Notamos que a presença de um pássaro gigante não altera em nada o
conforto do leitor ao deparar-se na leitura com um animal de enormes proporções.
39
Aliás, tais relatos na literatura não são novidades. Em As mil e uma noites
6
, é
contado que um pássaro gigante chamado Roca possuía tamanha altura que
somente suas patas eram do tamanho de uma árvore. Este tipo de exagero, Todorov
o nomeia de maravilhoso exótico, visto que, segundo ele:
Narram-se aqui acontecimentos sobrenaturais sem apresentá-los
como tais; supõe-se que o receptor implícito desses contos não
conheça as regiões onde se desenrolam os acontecimentos; por
conseguinte, não tem motivos para colocá-los em dúvida.
(TODOROV, 1975, p. 61.)
A sobrenaturalidade evidentemente se dá pelo dimensionamento exagerado
no tamanho dos seres encontrados. Se por um lado Gullliver, em sua primeira
viagem, é um gigante em Lilliput, na segunda viagem, ele é quem será o pequenino
em uma terra em que tudo será exageradamente enorme para ele. O mistério que
existe no fantástico inexiste no maravilhoso. Rompe-se também o limite entre o real
e o imaginário, porém o desconhecimento do espaço onde os acontecimentos são
produzidos sossegam o leitor. Caberá então ao narrador, utilizando-se da sua voz,
criar este efeito encantatório no leitor conduzindo-o e mantendo-o numa leitura
representativa e experimental ao mesmo tempo. Representativa, já que poderá estar
tratando de algo inerente ao seu tempo, algo contemporâneo. Experimental, uma
vez que novas práticas narrativas são utilizadas.
De maneira que o maravilhoso apresenta-se como uma nova opção de
descrever a realidade, bem como de reconhecê-la no processo de leitura. É a
maneira de combinar o natural e o sobrenatural sem que ambos se desagreguem.
O discurso realista maravilhoso, articulado sobre a negação do
princípio da contradição, enuncia poeticamente esse impossível
lógico e ontológico. Ao dizer-se “é possível que uma coisa seja e
não seja” estamos diante de algo mais que um objeto verbal. Sendo
uma distorção da lógica habitual, a ideologia do realismo
6
Foi usada a versão digitalizada de Las mil y una noches, editada pela Ediciones elaleph.com e
baixado de sua página na internet: www.elaleph.com em 13/08/2008, com a tradução ao espanhol de
Vicente Blasco Ibáñez, a partir da tradução ao francês de J. C. Mardrus, publicada em 1903.
40
maravilhoso persegue a reviravolta da concepção racional-positivista
da constituição do real (...) (CHIAMPI, 1980, p.155.)
Ou seja, o maravilhoso é concebido sob a égide da contradição harmoniosa.
A distorção não é negada, antes, é aceita. Portanto, não logicidade nos
acontecimentos narrados no maravilhoso, no entanto, de acordo com Todorov, “os
fatos se encadeiam de uma maneira perfeitamente lógica” (TODOROV, 1975, p. 63).
Todorov contradiz D. Q Mclnerny, já que, para este, “lógica tem a ver com a
verdade” (MCLNERNY, 2006, p. 19). Ser lógico presume-se relacionar-se com as
verdades do mundo. No entanto, literatura é ficção. E nem por isso deixa de ser
verdade. E tampouco deixa de estabelecer uma relação de verdade com o mundo. É
por isso também que o leitor se identifica com essas “mentiras” literárias. Enfim, o
maravilhoso funde a realidade com a fantasia. Ou vice-versa.
2.5. A PRESENÇA DO INSÓLITO NO FANTÁSTICO, NO ESTRANHO E NO
MARAVILHOSO.
Neste trabalho, algumas vezes, referimo-nos a fatos insólitos, estranhos,
sobrenaturais. Segundo a definição do Houaiss
7
, insólito significa: 1) que não é
habitual, infreqüente; 2) que se opõe aos usos e costumes; que é contrário às
regras. Do ponto de vista literário, é possível ao leitor penetrar nessas perspectivas
extraordinárias criadas pelo autor, contaminando-se pela imaginação deste,
adentrando num mundo ilusório, pois “a fantasia, da qual somos e estamos dotados,
é um dom demoníaco” (LLOSA, 2003, p. 24). Dom este dado a um artista que “es
continuamente abrindo um abismo entre o que somos e o que gostaríamos de ser,
entre o que temos e o que desejamos” (Idem, ibidem); algo que nos arranca da
realidade e nos faz imergir no ficcional, libertando-nos das injunções gicas e
costumeiras de nosso próprio mundo. Esse arrancar parte de um pacto estabelecido
7
HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva Ltda., 2001.
41
entre o autor e o leitor. O autor compartilha com o leitor os seus medos, as suas
ânsias, angústias, cultura, entre outras coisas; isso permite que dráculas e
lobisomens passem a fazer parte do acervo mítico literário e do cinema também.
Logo, a arte é uma poderosa rompedora de fronteiras culturais. Por conseguinte, no
que se refere ao insólito, vejamos como, em muitos romances, nos é apresentado.
Em As intermitências da morte, de José Saramago, um acontecimento
extraordinário sem igual na história da humanidade modifica toda a estrutura
organizacional de uma determinada sociedade. No dia seguinte ao 31 de dezembro
de um determinado ano, simplesmente as pessoas deixam de morrer. Além desse
fato, outros se sucedem, tais como a personificação da morte que se apaixona por
um determinado artista e com isso não consegue matá-lo. Seja esta ou não uma
alegoria, a verdade é que, por meio desse manuseio do significado da morte, o
homem, ao menos, pode imaginar algo que se avizinha da imortalidade. Outro fato
incomum nesta obra é que a morte personificada começa, depois de certo tempo, a
enviar correspondências às pessoas anunciando o dia em que morrerão. Uma
espécie de grande exercício de inverossimilhança.
Uma importante obra da literatura hispano-americana que nos apresenta fatos
insólitos é A casa dos espíritos, de Isabel Allende. Considerada por muitos críticos
um texto pertencente ao fantástico, dentre os vários fatos incomuns contidos neste
romance, o da morte de Férula, irmã de Esteban Trueba, é sem dúvida uma forte
imagem construída pela autora. Havendo morrido isolada, Férula retorna à casa de
seu irmão de onde havia sido expulsa, a fim de despedir-se de Clara, cunhada e
amiga. Nesse relato, a riqueza de detalhes contada pelo narrador amplia no leitor
um sentimento de confusão psicológica. Um misto de medo, incredulidade e
perplexidade juntos é sentido por todos que se encontram naquela casa no
momento em que Férula surge de repente. Essas reações o repassadas ao leitor
pelos personagens e pelo narrador no instante mesmo dos acontecimentos. Sobre
isso diz Lovecraft:
La única prueba de lo verdaderamente preternatural es la siguiente:
saber si despierta o no en el lector un profundo sentimiento de
pavor, y de haber entrado en contacto con esferas y poderes
42
desconocidos: una actitud de atención sobrecogida, como tal fuese
a oír el batir de unas alas tenebrosas, o el arañar de unas formas y
entidades exteriores en el borde del universo conocido.
(LOVECRAFT, 1989, p. 11 e 12.)
Tradução:
A única prova do verdadeiro preternatural é a seguinte: saber se
desperta ou não no leitor um profundo sentimento de pavor, e de
haver entrado em contato com esferas e poderes desconhecidos:
uma atitude de atenção surpreendente, tal como se fosse o ouvir a
batida de umas asas tenebrosas, ou o aranhar de umas formas e
entidades exteriores na fronteira do universo conhecido.
Sentimento este vivido na cena da aparição de Férula no romance de Isabel
Allende:
Todos que viveram aquele momento, dizem que era por volta das
oito da noite, quando apareceu Férula. Todos puderam -la com a
blusa engomada, o molho de chaves à cintura e o coque de
solteirona, tal como a tinham visto sempre em casa. Entrou pela
porta da sala de jantar no momento em que Esteban estava
trinchando o assado e reconheceram-na imediatamente, apesar de
não a verem fazia seis anos e estar muito pálida e muito mais velha.
Era um sábado e os gêmeos, Jaime e Nicolas, tinham saído do
internato para passar o fim de semana com a família, de modo que
também estavam ali. O seu testemunho é muito importante porque
eram os únicos membros da família que viv.iam afastados por
completo da mesa de pé-de-galo, preservados da magia e do
espiritismo pelo rígido colégio inglês. Primeiramente sentiram um frio
súbito na sala de jantar e Clara mandou fechar as janelas, porque
era uma corrente de ar. Logo a seguir ouviram o tilintar das chaves
e quase em seguida abriu-se a porta e apareceu Férula, silenciosa e
com uma expressão distante, ao mesmo tempo que a Ama entrava
pela porta da cozinha, com a travessa da salada. Esteban Trueba
ficou com a faca e o garfo de trinchar no ar, paralisado pela surpresa
e os três meninos gritaram, tia Férula! Quase em uníssono. Blanca
levantou-se para ir ao encontro, mas Clara, que sentava ao seu
lado, estendeu a mão e segurou-a por um braço. Na realidade, Clara
foi a única que percebeu, ao primeiro olhar, do que se estava
passando devido à sua grande familiaridade com os assuntos
sobrenaturais, apesar de que nada no aspecto da cunhada
denunciasse o seu verdadeiro estado. (ALLENDE, 1995, p. 159 e
160.)
43
E o acontecimento macabro se segue:
Férula deteve-se a um metro da mesa, olhou-os a todos com os
olhos vazios e indiferentes e logo avançou para Clara, que se pôs
de pé, sem nenhum movimento agitadamente, como se estivesse
incubando um dos seus ataques de asma. Férula aproximou-se dela
pôs-lhe uma mão em cada ombro e deu-lhe um breve beijo na testa.
Na sala de jantar se ouvia a respiração ofegante de Clara e o
tilintar metálico das chaves na cintura de Férula. Depois de beijar a
cunhada, Férula passou ao seu lado e saiu por onde tinha entrado,
fechando a porta nas costas com suavidade. Na sala de jantar ficou
a família imóvel, como se fosse um pesadelo, a ama começou logo
a tremer tanto que lhe caíram as colheres da salada e o barulho da
prata ao cair no parquet sobressaltou todos. Clara abriu os olhos.
Continuava a respirar com dificuldade e caíam-lhe lágrimas pela
face e pelo pescoço, manchando-lhe a blusa.
- Férula morreu – anunciou. (Idem, ibidem, p. 160.)
Percebemos que o narrador utiliza-se bastante de detalhes que possam
verdadeiramente marcar o tom sobrenatural do acontecido. Houve inclusive a
necessidade de se assinalar a presença das crianças para que tal fato pudesse se
mesclar com a realidade tal como a conhecemos e, desse modo, permitir a
identificação com essa atmosfera sombria.
É evidente que nem todos os fatos insólitos contemplam a presença do medo
como algo necessário, imprescindível. Contudo, a presença de signos do medo
contribui positivamente no efeito psicológico da leitura do texto. que se ter um
grande cuidado, é claro, para o que Todorov chama a atenção, em especial para o
fantástico. Ele enfoca que tanto “a absoluta como a incredulidade total nos levam
para fora do fantástico” (TODOROV,1975, p. 36). Este, porém, parece que não foi
muito bem compreendido por Selma Calazans Rodrigues ao afirmar que, segundo
Todorov, o “fantástico dependeria do sangue frio do leitor” (RODRIGUES,1988, p.
29). Todorov deixa claro que a hesitação é uma das condições do fantástico. Além
disso, ele discorda de que o somente o medo seja preponderante na construção
da narrativa sobrenatural. Além disso, caberá sempre ao leitor decidir ou não sobre
a obra fantástica, ou qualquer obra, ao ser contagiado pela narrativa do autor. Para
Llosa, “a irrealidade da literatura fantástica se transforma, para o leitor, em símbolo
44
ou alegoria, quer dizer, na representação de realidades, de experiências que se
pode identificar na vida” (LLOSA,2007, p.14). O leitor é induzido a acreditar
momentaneamente em algo contado por um mentiroso que é o autor, “porque todo
bom romance diz a verdade e todo mau mente” (Idem, ibidem, p.16). Por outro lado,
“um tema recorrente na história da ficção é o risco que implica levar ao da letra o
que dizem os romances, em crer que a vida é como eles a descrevem (idem,
ibidem, p.16 e 17).
Outro relato insólito, porém sem o pavor bem elaborado por Isabel Allende,
está presente em Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Remedios a
bela, que atraía a atenção dos homens, demonstra não estar em juízo perfeito e
começa a agir como uma pessoa que ficou louca. É então que algo acontece:
Remedios é arrebatada ao céu na presença de Amaranta e de Úrsula.
Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem
cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos,
nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários,
nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até
uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis
de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal havia
começado, quando Amaranta advertiu que Remedios, a bela,
chegava a estar transparente de tão intensamente pálida.
- Você está se sentindo mal? – perguntou a ela.
Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve
um sorriso de piedade.
- Pelo contrário – disse – nunca me senti tão bem.
Acabava de dizer isso quando Fernanda sentiu que um delicado
vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em
toda sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas
rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não
cair, no momento em que Remédios, a bela, começava a ascender.
Úrsula, quase cega, foi a única que teve serenidade para
identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis
à mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus
com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que
subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e
das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da
tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos
ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam
alcançar. (MÁRQUEZ, 1994, p. 228 e 229.)
45
Alguém dado à leitura e que porventura tenha se debruçado sobre a Bíblia,
livro considerado sagrado pelos cristãos e que reúne relatos extraordinários,
incomuns, notará uma grande semelhança entre este ascender de Remedios e o
ascender do profeta Elias. No segundo livro de Reis, Capítulo 2, versículo 11, vemos
algo semelhante ao narrado em Cem anos de solidão:
Indo eles andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos
de fogo, os separou um do outro; e Elias subiu ao céu num
redemoinho.
O que vendo Eliseu, clamou: Meu pai, meu pai, carros de Israel e
seus cavaleiros! E nunca mais o viu e, tomando a suas vestes,
rasgou-as em duas partes.
Então, levantou o manto que Elias lhe deixara cair e, voltando-se,
pôs-se à borda do Jordão.
Tomou o manto que Elias lhe deixara cair, feriu as águas e disse:
Onde está o Senhor, Deus de Elias? Quando feriu ele as águas,
elas se dividiram para um e outro lado, e Eliseu passou. (BIBLIA. II
Rs, 2: 11-14.)
Algo particularmente importante nesta analogia é o fato de ambos
apresentarem acontecimentos incomuns semelhantes, bem como a observância de
que um foi escrito quase 4 mil anos e o outro, no século XX. O que significa que
os relatos extraordinários acompanham o homem desde muitos e muitos anos.
por parte do ser humano uma necessidade de criar e estar em contato com
narrativas que contenham tais exposições e que, com o tempo, vão, cada vez mais,
se aperfeiçoando. Para Lovecraft:
... el relato preternatural ha sobrevivido, se ha desarrollado, y ha
alcanzado cotas notables de perfección, dado que se funda en un
principio profundo y elemental cuyo atractivo, si no siempre
universal, debe ser necesariamente intenso y permanente para las
mentes dotadas de la necesaria sensibilidad. (LOVECRAFT, 1989,
p. 7.)
Tradução:
46
... O relato preternatural sobreviveu, se desenvolveu, e alcançou
cotas notáveis perfeição, dado que se fundamenta em um princípio
profundo e elementar cujo atrativo, se nem sempre universal, deve
ser necessariamente intenso e permanente para as mentes dotadas
da necessária sensibilidade.
Kafka, em seu livro A metamorfose, nos uma idéia do desenvolvimento da
mente criativa do escritor no que se refere a um relato insólito. Ele consegue não
somente relatar o incomum, como também é minucioso nos detalhes mais
repugnantes. Assim como outros escritores, ele observou a grande aptidão do
público para a leitura de textos que contivessem tais acontecimentos. De maneira
que, na tentativa de refletir sobre determinados problemas sociais, muitos autores
encontram nessas narrativas a forma de se comunicar com o leitor.
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos
intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num
inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como
couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado,
marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta,
prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas
pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do
resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.
- O que aconteceu comigo? – pensou. (KAFKA, 1997, p. 7.)
Além de criar essa realidade no texto, Kafka se utiliza de outro instrumento
muito comum no fantástico que é o sonho, porém o sonho citado serve para
camuflar, para o leitor e no personagem, o que verdadeiramente havia acontecido a
Gregor. Kafka também usa o sonho para desviar o personagem do pensamento de
aceitação do que lhe acontecia. Logicamente, o leitor é induzido pelo narrador a
imaginar a mesma situação pela qual passa Gregor Samsa, visto que seria
impossível no mundo real alguém transformar-se em um inseto.
O olhar de Gregor dirigiu-se então para a janela e o tempo turvo
ouviram-se gotas de chuva batendo no zinco do parapeito deixou-
o inteiramente melancólico.
Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esquecesse
todas essas tolices? Pensou... (KAFKA, 1997, p. 8.)
47
Em A metamorfose, o real é o mundo extraordinário e o sonho é a saída ou
fuga do mundo incomum no qual o personagem está inserido ao despertar. Para
Llosa, “somente a literatura dispõe de cnicas e de poderes para destilar esse
delicado elixir da vida: a verdade escondida no coração das mentiras humanas”
(LLOSA, 2004, p. 21). Notamos aqui uma enorme paixão de Llosa pela literatura ao
fazer tal afirmativa. Evidentemente outras artes também são capazes de fazer com
que loucuras sejam, em verdade, pensamento organizado, lógico, coerente, como é
o caso do cinema, por exemplo. Contudo, nas artes em geral e mais
especificamente na literatura não há enganos, porque nela,
(...) acomodamos nosso ânimo para assistir a uma representação na
qual, sabemos muito bem, nossas lágrimas ou nossos bocejos
dependerão exclusivamente da boa ou da má feitiçaria do narrador,
para nos fazer viver como verdades, suas mentiras, e não da sua
capacidade para reproduzir fidedignamente o vivido. (
LLOSA,
2004, p.
21.)
Assim, podemos perceber quão inimaginável é a capacidade de produção de
relatos insólitos pelos escritores nas diversas regiões do planeta, em diferentes
momentos da história literária da humanidade. Isso caracteriza a necessidade do
homem em, além de imergir em outra realidade por meio da ficção, encontrar nesta
mesma ficção um mundo totalmente distanciado daquilo que humanamente possa
ser compreendido como possível. A ficção é a não-realidade. Os relatos insólitos
inseridos na ficção atuam como uma não realidade dentro do ficcional. Ou seja,
presentes na ficção, o extraordinário diverge dos fatos reais tão comuns na vida de
quem se dá ao prazer de ler uma obra literária. E o fantasmagórico:
permite así, al que se abandona a sus encantos, colmar el vacío
que deja en el mundo la desaparición de las creencias tradicionales,
no reemplazándolas por otras creencias y aún menos por
certidumbres científicas sino abriendo un espacio con el del
sueño. (MILNER, 1990, p. 19.)
48
Tradução:
permite assim, ao que se abandona aos seus encantos,
preencher o vazio que deixa no mundo o desaparecimento das
crenças tradicionais, sem mudá-las por outras e ainda menos por
verdades científicas – mas sim abrindo um espaço... com o do
sonho.
Pois, “es en el sueño que vivimos, es allí donde nuestra alma goza de toda su
autoridad sobre la naturaleza” (MERCIER apud MILNER, p. 20). E por ser um
terreno no qual a fantasia pode aflorar, o sonho é um recurso muito utilizado pelos
escritores que usam o relato insólito em suas narrativas. Por outro lado,
diferentemente do que é preconizado por Lovecraft, Kafka não faz uso do terror
fantasmagórico em A metamorfose e, no entanto, o sobrenatural encontra-se
presente na narrativa, sem que haja o sentimento de pavor, mas sim de repulsa.
Lovecraft também adverte que:
Como es natural, no podemos esperar que todos los relatos
sobrenaturales se ajusten cabalmente a un modelo teórico. Las
mentes creadoras son distintas, y los mejores tejidos tienen sus
defectos. (LOVECRAFT, 1989, p. 11.)
Tradução:
Como é natural, não podemos esperar que todos os relatos
sobrenaturais se ajustem cabalmente a um modelos teórico. As
mentes criadoras são diferentes, e os melhores tecidos têm seus
defeitos.
Além disso, ainda que certas narrativas insólitas não se insiram no modelo
teórico de alguns críticos como Lovecraft, estudos recentes como os de Todorov e
os de Chiampi poderão incluir uma obra no fantástico, no estranho ou no
49
maravilhoso ainda que esta não venha a conter o medo como premissa, como é o
caso dos contos de fadas. Em Metamorfosis, conto de Ramón Gómez de La Serna,
é notável a presença do insólito sem que o pavor fique evidenciado.
No era brusco Gazel, pero decía cosas violentas e inesperadas en el
idilio silencioso con Esperanza.
Aquella tarde había trabajado mucho y estaba nervioso, deseoso de
decir alguna gran frase que cubriese a su mujer asustándola un
poco. Gazel, sin levantar la vista de su trabajo, le dijo de pronto:
- ¡Te voy a clavar con un alfiler como a una mariposa!
Esperanza no contestó nada, pero cuando Gazel volvió la cabeza
vio cómo por la ventana abierta desaparecía una mariposa que se
achicaba a lo lejos, mientras se agrandaba la sombra en el fondo de
la habitación. (SERNA, 1945, p. 128.)
Tradução:
Gazel não era um grosseiro, mas dizia coisas violentas e
inesperadas no idílio silencioso com Esperanza.
Naquela tarde trabalhou muito e estava nervoso, desejoso de dizer
alguma frase que envolvesse sua mulher e a assustasse um pouco.
Gazel, sem levantar os olhos do que estava fazendo, disse:
- Eu vou enfiar um alfinete em você igual como se faz com uma
borboleta!
Esperanza não disse nada, mas quando Gazel virou a cabeça viu
que pela janela aberta uma borboleta que desaparecia ia diminuindo
de tamanho com a distância, enquanto a sombra no fundo do quarto
ia aumentando.
Neste pequeno conto, demonstra-se que é possível criar o efeito fantástico
sem que necessariamente precise haver o terror que o sobrenatural possa vir a
causar. No conto não fica claro se Esperanza transformou-se ou não em borboleta.
Porém fica com o leitor a responsabilidade de manter-se ou não no fantástico.
Poderá ele imaginar que realmente uma borboleta sai voando coincidentemente à
fala do personagem Gazel ou que Esperanza tenha se metamorfoseado e,
conseqüentemente, fugido na forma de borboleta. Este conto também nos mostra o
quanto a imaginação do artista busca explorar, usando da linguagem, o efeito
psicológico necessário para confundir o leitor.
50
Vale lembrar que os estudos relacionados ao fantástico são ainda muito
recentes e necessitam de maior aprofundamento. O fato é que tais temas, o
fantástico, o estranho e o maravilhoso são muito próximos e somente um olhar
atento é que poderá qualificá-los, solicitando então do crítico literário um maior
cuidado ao defini-los.
Por outro lado, na perspectiva do leitor, há “narrativas que contêm elementos
sobrenaturais sem que o leitor jamais se interrogue sobre sua natureza”
(TODOROV, 1975, p. 38) e mais: este mesmo leitor entende “perfeitamente que não
deve tomá-los ao pé da letra” (Idem, ibidem,p.38).
Vejamos este exemplo no conto de Manuel Mújica Láinez,
8
El hombrecito del
azulejo. Um pequeno azulejo fabricado na França é enviado a Buenos Aires por erro
da indústria que o fabricou e que deveria destiná-lo a outro lugar. Dentro de uma das
caixas e diferente dos demais azulejos, ele é posto num canto isolado da casa entre
o saguão e o quintal. No azulejo, uma figura parecida com um duende que,
isolado, não é percebido por ninguém na casa. Um dia, um jovem garoto chamado
Daniel, deitado em seu leito e estando à beira da morte, nota a presença do azulejo
e estabelece uma relação de amizade com o homenzinho presente na cerâmica.
Daniel lhe um nome e passa a chamá-lo Martinito; este percebe que a senhora
Morte está na casa de Daniel contando as horas para levar o jovem enfermo.
Martinito, que havia se afeiçoado a Daniel, distrai a senhora Morte e ela não
consegue levar o jovem, visto que a hora da morte de Daniel havia passado.
Daniel então se recupera e não morre mais. Revoltada, a senhora Morte ao perceber
que tinha sido enganada pelo homem do azulejo, retira a pedra da parede, quebra-a
em duas e as lança num poço que servia a casa. recuperado, Daniel sai ao
encontro de seu amigo Martinito e, não o encontrando, se entristece. É quando dois
homens contratados para limpar o poço acham as partes do azulejo e as entregam
ao garoto. A morte enfim não pôde matar o homenzinho do azulejo, pois este não
8
LÁINEZ, Manuel Mújica. El hombrecito del azulejo: Disponível em:
<http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/esp/mujica/hombreci.htm>. Acesso em: 14/01/2008.
51
morria jamais. Quanto a Daniel, recuperado, revive a felicidade na amizade de seu
amiguinho incrustado na parede, o seu Martinito, o homenzinho do azulejo.
No conto apresentado, notamos claramente a presença do insólito sem, no
entanto, detectarmos que venha o leitor a tomar como verdade tal acontecimento.
Nele não há a hesitação, nem a ambigüidade, o que poderia remetê-lo para o
fantástico, nem são explicadas as ações insólitas dos personagens, o que poderia
incliná-lo para o estranho. Vale salientar também que este não se trata de um conto
de fadas. Para Peter Penzoldt: “Com exceção do conto de fadas, todas as histórias
sobrenaturais são histórias de medo que nos obrigam a perguntar se o que se crê
ser pura imaginação não é, no final das contas, realidade” (PENZOLDT apud
TODOROV, p. 41). Ora, estamos assim diante de um caso que contradiz a fala de
Penzoldt. O conto de Manuel Mújica inez apresenta a sobrenaturalidade na figura
quase duende de Martinito, assim como na imagem funesta da morte à espera do
momento exato de levar o jovem Daniel consigo. Portanto, fica claro que é possível
a elaboração de um relato sobrenatural sem o medo, sem o pavor,
independentemente de pertencer ou não aos contos de fadas. Cabe à imaginação
do escritor ampliar as possibilidades da criação artística, fazendo com que temáticas
como estas estejam abertas a novas criações, novas descobertas.
52
3. CAPÍTULO II
JOSÉ SARAMAGO E A MIRABILIA DA MORTE
53
3.1. O NOVO REALISMO
Depois que o realismo como estilo literário, seja o de caráter científico da
segunda metade do século XIX, seja o de linha socialista, não conseguiu manter-se
como uma das principais formas de fingir a realidade, outras formas precisavam ser
encontradas para traduzir os anseios criados pelas novas relações que se
estabeleciam na sociedade ocidental. Era necessária uma nova maneira artística de
discutir o homem.
O realismo mágico (ou fantástico) surge enfim como uma nova possibilidade
de representação ficcional, sem que, para tanto, houvesse o rigor da influência
positivista de Augusto Comte e o culto à ciência nas obras elaboradas sob esta nova
tendência. Para Bella Josef, o romancista realista deixou de ser aquele que
“compreendia e aceitava o universo e as razões de suas harmonias ou desarmonias,
correspondendo a um mundo estável, de princípios imutáveis” (JOSEF,1993, p.25).
Coube ao realista da imaginação, da fantasia, sucedê-lo, pois este novo romancista
é o da “indagação em face de um mundo instável, massificado, em acelerada
metamorfose, cujas causas ele procura compreender” (Idem, ibidem,p.25).
Em face das atuais exigências do fazer artístico, a arte
contemporânea tem procurado novos rumos, elaborando novos
modelos de criatividade, alterando os esquemas básicos e
implicando uma necessidade intrínseca de experimentação.
Transforma-se, assim, em instrumento de investigação e
conhecimento. Seu objetivo é o questionamento da realidade, que
procura refletir e influenciar, ao mesmo tempo em que se examina
para se transformar e aos seus próprios conceitos. (idem, ibidem, p.
20.)
A essa nova prática de escritura irão aderir diversos nomes da literatura
americana, em especial da América espanhola. Podemos citar Alejo Carpentier,
Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges,
Juan Rulfo e outros.
54
A América espanhola então se destaca como um grande celeiro que irá reunir
renomados escritores que encontrarão nesta prática de retratar a realidade, quer
seja fantástico, estranho ou maravilhoso, uma nova maneira de fingi-la.
Para Davi Arrigucci Jr., fazendo referência a essa nova escritura romanesca
hispano-americana adotada:
As principais facetas da renovação técnica se manifestam na
profunda mudança do ponto de vista, na desintegração do tempo
cronológico (muitas vezes acompanhadas de uma nova organização
espacial), na dissolução da categoria da causalidade como princípio
lógico de construção do enredo e na ameaça, às vezes efetivada, de
fragmentação da personagem. Todos os aspectos, centrais às
poéticas contemporâneas da narrativa, representam uma quebra da
“ilusão” realista, construída a partir da posição privilegiada da
consciência individual, cuja ordenação do mundo, feita, desde o
Renascimento, segundo as categorias do senso comum e da
realidade empírica, assume a aparência de absoluto. Os novos
procedimentos não desmascaram essa visão aparente da
realidade, mas também transformam o relativismo no próprio
princípio de construção artística. (ARRIGUCCI, apud CALBUCCI, p.
22 e 23.)
Um bom exemplo desta desintegração do tempo cronológico é possível
observar em Cem anos de solidão. No quarto de Melquíades o tempo não passa. No
entanto, uma coexistência de vários episódios na casa dos Buendía como que se
o tempo ali estivesse fragmentado. Isso fica evidente na epígrafe contida no
pergaminho: “o primeiro da estirpe está amarrado à árvore e o último está sendo
comido pelas formigas” (MÁRQUEZ,1994, p.300). Em Macondo, no entanto, o tempo
é passado como no tempo real ainda que os fatos aconteçam em um lugar mítico.
também em Cem anos de solidão uma repetição dos josés e dos aurelianos
buendías que altera a percepção do leitor, confundindo-o, que eles mantêm as
mesmas características e vicissitudes.
Para Irlemar Chiampi, uma clara razão para que se justifique o sucesso
deste novo realismo na América. Explicando a proposta de Carpentier sobre esta
nova prática de escritura, Chiampi esclarece que tal realismo:
55
(...) estabelecia uma verdadeira profissão de fé como escritor e (que
Carpentier)
9
exortava os narradores latino-americanos a se
voltarem para o mundo americano, cujo potencial de prodígios,
garantia o autor, sobrepujava em muito a fantasia e a imaginação
européias. (CHIAMPI, 1999, p. 32.)
Ou seja, Carpentier evoca a redescoberta do potencial artístico do latino-
americano e conclama a que os artistas acreditem na sua capacidade imaginativa
em criar algo novo. Carpentier sente uma profunda angústia por desejar falar mais
da América na Europa e fazer conhecida naquele continente a literatura americana.
Isso o levou a dedicar parte de sua vida aos estudos relacionados a tudo o que
havia sido escrito no novo mundo. Era preciso que a Europa conhecesse a América
literária. Daí o seu esforço em conclamar os artistas americanos, em especial sul-
americanos, a que produzissem algo novo, inovador. Porém, não nos ateremos a
esta discussão. Centraremos nossos esforços na consolidação do realismo
maravilhoso, que o nosso foco investigativo.
Mas a Europa não fica totalmente de fora dessa nova possibilidade de
escritura no século XX. Surge um escritor que contribuirá de maneira significativa
para essa forma de reescrever o realismo: o português José Saramago. Possuidor
de um estilo diferente e inconfundível, o escritor inova os seus romances ao abolir
praticamente a pontuação, mantendo somente as rgulas e os pontos finais.
Contudo, notamos que ao se deparar com os seus textos, o leitor encontrará algo
que vai muito além do real: encontrará a mirabilia.
10
Em suas diversas obras, o
escritor se utiliza sobremaneira do incomum para fingir determinadas realidades.
Jangada de pedra é um bom exemplo:
Partindo do ditado anônimo, segundo o qual “a Península Ibérica
tem a forma duma jangada” Saramago descreve uma série de atos
insólitos (ocorridos com anônimos) que precedem o cmax do
9
Grifo inserido pelo autor do trabalho dissertativo.
10
Palavra do latim que deu origem à palavra maravilha no português.
56
romance, estranhamente colocado no início da narrativa, a saber, o
rachamento dos Pirineus, com a Espanha se separando da França e
a Península Ibérica, como uma jangada feita de pedra, a navegar
desgovernada pelo Oceano Atlântico. (CALBUCCI,1999, p. 50 e 51.)
Nesse texto, Saramago utiliza-se do insólito para, de forma dura, criticar a
participação de Portugal na União Européia. Assim, usando-se da palavra, da
literatura, ele arranca Portugal da Europa e o faz distanciar-se do continente
navegando-o pelo Atlântico.
Então, a Península Ibérica moveu-se um pouco mais, um metro,
dois metros, a experimentar forças. As cordas que serviam de
testemunhos, lançadas de bordo a bordo, tal qual os bombeiros
fazem nas paredes que apresentam rachas e ameaçam desabar,
rebentaram como simples cordéis, algumas mais sólidas arrancaram
pela raiz as árvores e os postes a que estavam atadas. Houve
depois uma pausa, sentiu-se passar nos ares um grande sopro,
como a primeira respiração profunda de quem acorda, e a massa de
pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas,
matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus
animais, começou a mover-se, barca que se afasta do porto e
aponta ao mar outra vez desconhecido. (SARAMAGO, 2006, p. 39.)
E, nesse novo realismo presente em Saramago, a língua portuguesa tão
valorizada por ele, passa a ter relevante papel na sua identidade como escritor. Para
Miriam Braga, Saramago:
(...) investe na própria Língua no sentido de que ela assuma um
papel de instrumento da consciência que favoreça seu povo a refletir
sobre um passado e um presente que carregam as transformações
sociais, para que o conhecimento de suas diferenças possa gerar
soluções favoráveis que balizem o progresso ético. (BRAGA, 1999,
p. 24.)
Além disso, Saramago não incorpora o escritor que escreve tão somente para
encantar o seu leitor. O encanto, ao contrário, se pela reflexão do que está
escrito. Para ele, “o romancista não pode ser um mero contador de histórias, e
57
deveria esforçar-se para ser uma espécie de voz” (BRAGA,1999, p.28). Ele não
recrudesce a sua narrativa no sentido lato, mas sim, satisfaz o leitor com a sua
mágica construção literária ao incorporar acontecimentos extraordinários em suas
obras. O leitor, ao adentrar nos romances deste autor, magistralmente se encontrará
envolvido pelos fatos narrados sem, no entanto, experimentar instantes de hesitação
tão presentes no fantástico.
Saramago não leva ambigüidades para o seu leitor, mas sim reflexão,
questionamentos. Talvez por isso ele o opte pelo fantástico, ou seja, ele prefere
um diálogo mais franco, mais aberto. Por outro lado, não significa que haverá uma
rápida compreensão do que está escrito em seus romances. Para ele:
Todo texto é um texto por decifrar e, por mais claro que esteja, com
todas as pistas dadas, todas as indicações, por mais que eu diga
como se deve entender o que ali está, ainda assim é preciso decifrá-
lo. (ARIAS, 2004, p. 75.)
Ou seja, pode-se dizer que com a sua linguagem o autor instiga o leitor a
decifrar as idéias contidas na narrativa. E nessa nova maneira de fingir o real,
Saramago introduz o leitor na sua obra ao criar um ambiente que permite a este
examinar a própria consciência, a própria realidade.
3.2. O MARAVILHOSO EM SARAMAGO
3.2.1. A JANGADA DE PEDRA
Após Joana Carda riscar o chão com uma vara, cães começaram a latir
deixando os moradores daquele local em estado de pânico. Um fato curioso é que
os cães daquele local eram mudos e de repente, começaram a ladrar, o que poderia
significar o fim do mundo. Outro insólito acontecimento chama a atenção à medida
58
que a leitura do texto avança. Joaquim Sassa passeando pela praia pega uma pedra
muito pesada e a lança no mar. Achava ele que a pedra cairia a poucos metros de
seus pés, no entanto, a pedra flutuou no mar e só foi afundar a uma longa distância.
Sem acreditar no feito, esperava ele que houvesse alguém próximo que confirmasse
o que ele havia acabado de fazer. Outro personagem, Pedro Orce, sente a terra
tremer a seus s quando tudo parece estar em perfeita ordem e tranqüilidade.
José Anaiço por onde quer que caminhe é seguido por um monte de ssaros que
sempre estão a acompanhá-lo.
Percebemos, portanto, o cuidado que tem o narrador em conduzir o leitor na
trama, sem que haja o questionamento sobre a veracidade dos fatos relatados. Por
fim, há ainda Maria Guavaira, que tendo encontrado um pé-de-meia velho, feito de lã
e não havendo mais utilidade para ela, começa a desfazer a malha e qual não foi a
sua surpresa, pois o fio da malha não acabava nunca de sair da meia. Ora, todos
estes fatos incomuns são característicos do maravilhoso, uma vez que neles a
sobrenaturalidade é posta no mundo das coisas normais. Contudo, isso não significa
que não haverá inquietação por parte de quem se depara com um romance que
contenha tal temática. Pierre Mabille, tratando do maravilhoso, dirá:
Ele é suficientemente actual para nos atrair, em qualquer
circunstância, ao apelo do seu nome, mas também para que, à
audição de certos poetas, sintamos uma perturbação inusitada e
tenhamos a necessidade imperiosa de renunciar aos velhos hábitos
que continuam a pesar sobre todos nós. O maravilhoso é o peixe
das grandes profundidades (...) (MABILLE, 1977,p. 56,57)
Com efeito, quando tal peixe emerge e é encontrado, será sempre algo raro,
inusitado. É assim que se apresenta a obra de Saramago: inusitada e com um
conteúdo sempre renovado. Irlemar Chiampi afirma que “a capacidade do realismo
maravilhoso de dizer a nossa atualidade pode ser medida por esse projeto de
comunhão social e cultural, em que o racional e o irracional são recolocados
igualitariamente”. (CHIAMPI,1980, p.69.)
59
No entanto, essa mescla não impossibilita a compreensão da realidade; ao
contrário, atua como um mecanismo de percepção desta mesma realidade.
Saramago, em A jangada de Pedra, cria a base para que o leitor compreenda o que
ideologicamente ele se propõe afirmar, a saber, que Portugal não cabe na Europa e
que Portugal é um país esquecido naquele continente.
De um habitante do norte não ouviríamos o que iremos ouvir, se
pararmos para perguntar àquele homem que ali vai, escarranchado
num burro, o que pensa do extraordinário caso de ter-se separado a
Península Ibérica da Europa, puxará o bridão ao asno, Xó, e
responderá sem papas na língua, Que todo es una bufonada.
(SARAMAGO, 2006, p. 60.)
Alegoricamente, o discurso aqui empreendido demonstra claramente que para
os da Península quiçá não haja nenhuma dúvida de que sejam europeus e que toda
a Europa reconheça tal pertencimento e qualquer possibilidade de distanciamento
desta realidade seja uma bobagem.
A jangada, ou melhor, a península corta o Atlântico seguindo um rumo às
cegas. O perigo é que tal deslocamento possa vir a causar uma grande tragédia. As
autoridades seguem mobilizadas na esperança de que nada de grave aconteça e,
por isso, todo o serviço de emergência está em alerta. O caos é geral.
Tem-se falado dos perigos que Portugal corre se vier a chocar com
os Açores, e também nos efeitos secundários, se directos não
chegarem a ser, de que está ameaçada a Galiza, mas muito mais
grave é, por certo, a situação da população das ilhas. Afinal, que é
uma ilha. Uma ilha, neste caso um arquipélago inteiro, é o
afloramento de cordilheiras submarinas, quantas vezes apenas os
agudos picos de agulhas rochosas que por milagre se sustentam de
pé em fundos de milhares de metros, uma ilha, em resumo, é o mais
contingente dos acasos. E agora vem o que, também de ilha não
passando, é tão grande e veloz que grande perigo de
assistirmos, oxalá que de longe, à decapitação sucessiva de São
Miguel, ilha Terceira, o São Jorge e o Faial, e outras ilhas dos
Açores, com perda geral de vidas, se o governo de salvação
nacional, que amanhã tomará posse, não encontrar soluções para a
deslocação, em tempo curto, de centenas de milhares e milhões de
60
pessoas para regiões de suficiente segurança, se as há.
(SARAMAGO, 2006, p. 184 e 185.)
Saramago assevera a sua crítica em relação ao descaso evidente da Europa
Central para com Portugal e Espanha. Para ele, esta parte da Europa sempre se
negou a ter os dois países da Península Ibérica como integrantes do bloco europeu.
Por causa desse distanciamento existente entre as partes envolvidas, Portugal e
Espanha sempre estiveram à deriva no desenvolvimento econômico da região. Certa
vez, comentando sobre uma viagem que fizera de trem pela Europa na qual
encontrou com alguns funcionários do, na época, Mercado Comum Europeu,
observou que ali todos falavam em francês. Alguns perguntaram de onde ele era e
Saramago lhes propôs uma adivinhação.
Saramago falou qual era o regime político português, a população, a
extensão territorial, a religião predominante, a origem da ngua, a
topografia, tudo o que se podia falar sobre o seu país, e ninguém
conseguiu adivinhar nada. (CALBUCCI, 1999,p. 50)
Segundo o autor português e em suas próprias palavras, ao falar sobre este
episódio ele afirma:
Durante meia hora, fui italiano, húngaro, romeno, albanês, tudo
quanto é possível ser na Europa, menos português. Percebi que
aqueles homens não viam Portugal no mapa da Europa. Hoje, por
obra da nossa adesão a UE, a Europa sabe onde está Portugal,
mas mantenho a dúvida de que saiba o que Portugal é.
(SARAMAGO apud CALBUCCI, 1999, p. 50)
É por isso que Saramago cria personagens que, guiados por um cão que tem
um fio de na boca, transitam entre os dois países sem saber onde irão parar, sem
nenhuma certeza do que lhes irá acontecer, viajando em uma jangada de pedra
totalmente desgovernada. E mais uma vez uma alegoria é posta na tentativa de
61
expressar a realidade. Duas nações completamente órfãs como um cão-sem-dono
não têm um destino final. Com efeito, o acaso terá prevalência sobre a certeza.
José Anaiço travou o carro, o cão parou, a olhar, e Joana Carda
resumiu finalmente, Quer que vamos com ele. Levaram tempo a
perceber uma coisa que era evidente desde que o animal
atravessou a clareira, digamos que o momento logo avisou, mas
as pessoas nem sempre estão atentas aos sinais. E mesmo quando
deixou de haver razão para dúvidas, ainda teimam em resistir à
lição, é o que Joaquim Sassa, que pergunta, e porque é que nós
havemos de segui-lo, que disparate é esse de irem quatro pessoas
crescidas atrás dum cão vadio que nem sequer traz recado na
coleira, salvem-me, ou a chapinha de identificação, chamo-me
piloto, se alguém me achar levem-me ao meu dono, senhor fulano
de tal, ou fulana, em tal parte assim assim, Não te canses, disse
José Anaiço, tão absurda é esta história como outras que têm vindo
a acontecer e que pareciam não ter sentido, Ainda duvido que o
tenham completo, Não te dêem cuidado os sentidos completos, isto
disse Pedro Orce, uma viagem não tem outro sentido que acabar-
se, e nós ainda estamos a meio caminho, ou no princípio dele, quem
é que o pode saber, diz-me que fim tiveste e eu te direi que sentido
pudeste ter, Muito bem, e enquanto esse dia o chega, decidimos
quê. Fez-se ali um silêncio. (SARAMAGO, 2006, p. 132 e 133.)
Podemos notar que na última parte deste fragmento há na fala de Pedro Orce
uma referência ao existir. Em síntese, ele está dizendo que o destino dos vivos é a
morte e para ela todos irão. Miriam R. Braga, ao tratar da obra de Saramago, afirma:
O dito saramaguiano evidencia que o romancista deve assumir a
responsabilidade de ser a voz do povo de onde vem, e do qual faz
parte. Isso significa que o romancista, participante do mundo real,
não pode ignorar o que nele se passa, porque não pode ser um
mero expectador que conta o que a distância. (BRAGA, 1999,
p. 89.)
E é com esse realismo cheio de fatos totalmente incomuns que Saramago
exprime os seus pensamentos e sua ideologia sobre temas conflitantes que não
podem deixar de ser discutidos. Saramago não se ausenta na sua obra, ele a narra.
O escritor tão-somente buscou e encontrou uma maneira especial de dialogar com o
62
seu leitor. O insólito é então uma parte muito importante desta forma de diálogo. A
outra é a sua escrita que, segundo Braga:
(...) apresenta um trabalho de escolhas temáticas em que surgem
coordenadas históricas, ideológicas, filosóficas e míticas, tão
estrategicamente imbricadas, que lhe permitem criar um dialogismo
com elas, sem parecer inclinado a nenhuma. É por isso que sua
escritura não lhe serve como representação de sua ideologia ou de
ideais políticos, porém lhe serve na medida em que os refrata,
depositando-os como pano de fundo que sutilmente sustenta certas
argumentações dos narradores e das personagens (...)
(BRAGA,1999, p. 89 e 90.)
Miriam Braga equivoca-se ao dizer que Saramago parece não inclinado aos
temas discutidos em seus romances ou que não corrobora com ideologias postas
neles. O próprio romancista em uma entrevista concedida a Juan Arias e que
resultou no livro José Saramago: o amor impossível, deixa muito clara a sua posição
de dialogar com o seu leitor. Saramago diz:
- Creio que deve haver poucos autores que se entregam tanto aos
seus leitores como eu, não no sentido de falar de si, referindo-se à
sua vida, não, é outro tipo de comunicação, que tem mais a ver com
o modo de entender o mundo, a vida, as relações humanas, E é
uma conseqüência do fato de o narrador confundir-se com o autor.
(ARIAS, 2004, p. 29.)
E ele acrescenta:
- No meu caso, creio que existe muito coerência entre quem sou, a
vida que levo, a vida que tive e aquilo que escrevo. Não sei se é
uma coerência absoluta, mas acho que é uma conseqüência de eu
não utilizar ninguém, refiro-me ao narrador, para contar coisas. Eu
mesmo as conto. O espaço que existe entre o autor e a narração é
ocupado às vezes pelo narrador, que age como intermediário, às
vezes como filtro, que está para filtrar o que possa ser muito
pessoal. O narrador muitas vezes se apresenta para tentar dizer
certas coisas sem demasiado comprometimento, sem comprometer
demais o autor. Eu diria que entre o narrador, que neste caso sou
eu, e o narrado não nenhum espaço que possa ser ocupado por
essa espécie de filtro condicionante ou algo impessoal ou neutro
63
que se limitasse a narrar sem implicações. Pode-se dizer que estou
pessoalmente envolvido no que escrevo. (Idem, ibidem, p. 29 e 30.)
Notamos que as fantasias maravilhosas criadas pelo autor são, em verdade,
uma maneira de manter um diálogo constante que ele estabelece com seus leitores.
uma troca de informações capaz de elucidar verdades, criando um meio propício
para retirada do homem da ignorância.
Enquanto isso, a jangada que faz sua trajetória sem leme nem ssola
estaciona no oceano. Os jornais anunciam o acontecimento das mais diversas
maneiras e alguns chegam a dar pelo surgimento de uma nova Atlântida. Outros
anunciarão que se preciso um novo Tratado de Tordesilhas. Algumas pessoas
dizem sentir a terra mover-se, ainda que lentamente, em sentido circular até que, ao
completar uma volta, a verdade se estabelece e a península toma novo destino,
agora em direção ao sul. José Anaiço, Joana Carda, o cão, Pedro Orce e Joaquim
Sassa vagueiam sem destino juntamente com Maria Guavaira. Pedro Orce, doente,
espera a chegada da morte. A península pára em algum lugar. Pedro Orce morre e o
cão não se afasta da sua cova. A vara de negrilho com a qual Joana Carda riscou o
chão, agora está verde e é possível que ela floreça no ano seguinte. O leitor finaliza
A jangada de pedra e se manterá por alguns instantes, ou quem sabe dias, sob o
efeito contagiante que tais relatos lhe causarão aos sentidos e no desejo de que os
personagens encontrem finalmente a razão de tão longa caminhada.
3.2.2. O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS
Em uma lacuna deixada por Fernando Pessoa, Saramago elabora o romance
O ano da morte de Ricardo Reis. Fernando Pessoa, ao criar os seus heterônimos,
preocupava-se em lhes dar data de nascimento, de falecimento, dava-lhes profissão,
formação acadêmica, tipo físico, além de um estilo próprio que os individualizava.
Uma das lacunas deixada foi justamente a data de falecimento de Ricardo Reis.
Neste espaço deixado por Pessoa, Saramago início a sua criação. Pessoa faz
64
seu personagem nascer em Lisboa e ir morar no Rio de Janeiro e exercer a
medicina. Saramago o faz retornar no Highland Brigade dezesseis anos após haver
deixado Lisboa. Ricardo Reis hospeda-se no Hotel Bragança e ali se fixará por um
bom tempo até se estabelecer definitivamente na cidade. Acomodado, diante da
leitura dos jornais locais, ele tem o conhecimento de que o grande amigo Fernando
Pessoa havia morrido e tal notícia o deixa consternado. Ricardo Reis então toma a
iniciativa de ir visitar o cemitério em que seu amigo fora enterrado.
No hotel os clientes entram, saem, almoçam e se conhecem. Salvador, o
gerente, acompanha a vida de todos os que nele ali se hospedam. Porém, uma
presença em especial não é notada por todos, exceto por Ricardo Reis que a recebe
demonstrando haver uma união de longos anos. São amigos. Abraçam-se e
conversam amavelmente. É Fernando Pessoa. Ricardo Reis o vê e não tem dúvidas.
(...) reconheceu-o imediatamente apesar de não o ver há tantos
anos, e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à
sua espera Fernando Pessoa, disse Olá, embora duvidasse de que
ele lhe responderia, nem sempre o absurdo respeita a lógica, mas o
caso é que respondeu, disse Viva, e estendeu-lhe a mão, depois
abraçaram-se (...) Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão
contentes por se terem reencontrado depois de longa ausência, e é
Fernando Pessoa quem primeiro fala, soube que foi me visitar, eu
não estava, mas disseram-me quando cheguei(...) (SARAMAGO,
2000, p. 79.)
Por qual motivo um diálogo tão prosaico entre dois grandes amigos suscitaria
discussões? Pelo simples motivo de que se trata de uma conversa entre um vivo e
um morto. Nota-se também que Fernando Pessoa não é um morto solitário. Ele foi
avisado por outro(os) como ele, ou, quem sabe, por alguém vivo, da visita de
Ricardo Reis ao cemitério.
Eles seguem conversando:
(...) Pensei que estivesse, pensei que nunca de saísse, Por
enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade,
65
explicou Fernando Pessoa, Oito meses por quê, perguntou Ricardo
Reis, e Fernando Pessoa esclareceu a informação, Contas certas,
no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que
andamos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão
de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem ver mas
todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de
poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo
casos excepcionais nove meses é quanto basta para o total olvido
(...) (Idem, ibidem, p. 79 e 80.)
Sobre tal diálogo, Eduardo Calbucci afirma:
O lado fantástico desse diálogo é evidente: um fantasma
conversando com um sujeito que nunca existiu. Porém a
naturalidade das falas um tom suave à fantasia, e o leitor
consegue tranquilamente aceitar os encontros entre Reis e seu
criador.
(CALBUCCI, 1999, p. 40.)
Calbucci demonstra equivocar-se neste excerto. Ao falar de fantástico, ele se
esquiva. Ele se desvia ao não afirmar que este fragmento possui características que
o façam ser inserido no tema da literatura fantástica. Não, tão somente cita de forma
ambígua que o diálogo é fantástico. Porém, fantástico por ser um diálogo entre um
morto e um vivo? Fantástico por ser entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa? Ou é
fantástico por pertencer à narrativa fantástica? Isto nos parece não estar evidente.
Entretanto, Calbucci algumas pistas do que supostamente seja o que ele queira
dizer, ou seja, que é tema da narrativa fantástica. Vejamos: 1°) Um fantasma
conversando com um sujeito que nunca existiu. Quanto ao fantasma, muitas obras
literárias exploram a fantasmagoria, no entanto, ele afirma que o fantasma está
conversando com alguém que nunca existiu. Em se tratando de ficção, tanto Ricardo
Reis como Fernando Pessoa, em O ano da morte de Ricardo Reis, são personagens
criados por Saramago, além disso, não é um diálogo entre criador e criatura, mas
sim, um diálogo entre dois amigos que são personagens extraídos do universo
literário, personagens de Saramago. Um como um grande escritor que foi Fernando
Pessoa, o outro como um heterônimo criado por Pessoa. 2°) O diálogo se de
forma tranqüila devido ao que fora dito anteriormente, a saber, que Saramago
evita a ambigüidade, ele se esforça para ser o mais direto possível e para manter
66
uma troca de idéias sem muita interferência ou ruídos. Não há a presença da dúvida
neste diálogo. Não a imprecisão e em nenhum momento ocorre a vacilação por
parte do leitor ou personagens. De modo que inseri-lo no fantástico não seria o
correto. A narrativa aqui deve ser inserida no maravilhoso por contemplar a
aceitação do leitor que não titubeia, que não se desconcerta diante da
sobrenaturalidade. Segundo Chiampi, “os personagens do realismo maravilhoso não
se desconcertam jamais diante do sobrenatural, nem modalizam a natureza do
acontecimento insólito” (CHIAMPI,1980, p. 61). É por esta razão que a conversa
entre Pessoa e Reis é apresentada muito naturalmente. Ambos conversam de
maneira natural, pois no maravilhoso a sobrenaturalidade é posta em situação de
igualdade com o real.
Continuado o diálogo:
(...) Ricardo Reis tirou a carteira do bolso interior do casaco, extraiu
dela um papel dobrado, fez menção de o entregar a Fernando
Pessoa, mas este recusou com gesto, disse, não sei ler, leia
você, e Ricardo Reis leu, Fernando Pessoa faleceu Stop Parto para
Glasgow Stop Álvaro de Campos quando recebi este telegrama
decidi regressar”. (SARAMAGO, 2000, p. 80.)
É Álvaro de Campos, outro heterônimo de Fernando Pessoa, que dará a
notícia do falecimento de Pessoa para Reis e diz ainda que viajará a Glasgow.
Portanto, Saramago se utiliza de Fernando Pessoa bem como de seus heterônimos
para elaborar este grande romance.
Ao escutar a leitura da carta, pois fantasmas não lêem, Pessoa toda a
certeza de que ela foi escrita por Álvaro de Campos. Tanto tempo de amizade, ele
ainda conversa por bastante tempo com Ricardo Reis até o momento em que ambos
se despedem. Um fato curioso chama a atenção durante este diálogo: Pessoa não
consegue se ver no espelho ao deter-se diante de um, enquanto conversava com o
seu amigo Ricardo Reis. Ele não se incomoda com a situação e a naturaliza como
se fosse alguma coisa muito comum:
67
Fernando Pessoa levantou-se do sofá, passeou um pouco pela
saleta, no quarto parou diante do espelho, depois voltou, É uma
impressão estranha, esta de me olhar num espelho e não me ver
nele, Não se vê, Não, não me vejo, sei que estou a olhar-me, mas
não me vejo, No entanto, tem sombra, é o que tenho. Tornou a
sentar-se, cruzou a perna (...) (idem, ibidem, p. 81.)
Pessoa não se aflige com a experiência de não poder se ver no espelho.
Ricardo Reis, ali com ele, também não esboça nenhuma reação que o leve a
imaginar que este acontecimento com Fernando Pessoa talvez não passe tão
somente de uma ilusão de ótica. No entanto, não paradoxo. Nem o medo tão
defendido por H. P. Lovecraft para a literatura sobrenatural é percebido pelos
personagens, a tal ponto que o leitor também não se incomoda com a ausência da
imagem não refletida pelo espelho. Pessoa e Reis são indiferentes ao
acontecimento que, em uma literatura de H. P. Lovecraft, deveria o fato sobrenatural
despertar um profundo medo no leitor. Em Saramago isso não irá acontecer. Em
suas obras em que o terror é transformado em uma experiência natural e, ainda que
contradiga a realidade, estará em uma posição de equilíbrio ou harmonia com os
fatos reais.
Essa naturalização do sobrenatural está muito evidente no diálogo entre
Pessoa e Reis imediatamente à não-presença da imagem refletida no espelho:
Ricardo Reis perguntou, Diga-me, como soube que eu estava
hospedado neste hotel, Quando se está morto, sabe-se tudo, é uma
das vantagens, respondeu Fernando Pessoa, E entrar, como foi que
entrou no meu quarto, Como qualquer outra pessoa entraria, Não
veio pelos ares, não atravessou as paredes, Que absurda idéia, meu
caro, isso acontece nos livros de fantasmas, os mortos servem-
se dos caminhos dos vivos, aliás nem outros, vim por fora
desde os Prazeres, como qualquer mortal, subi a escada, abri
aquela porta, sentei-me neste sofá à sua espera, E ninguém deu
pela entrada de um desconhecido, sim, que você aqui é um
desconhecido, Essa é outra vantagem de estar morto, ninguém nos
vê, querendo nós, Mas eu vejo-o a si, Porque eu quero que me veja
(...) (idem, ibidem, p. 82.)
68
Neste fragmento Saramago neutraliza o absurdo tornando-o mais humano e o
mais real possível, ao minimizar todo o terror fantasmagórico que a cena causaria
em outro tipo de literatura. Ele privilegia o diálogo ao não optar pelos efeitos
contrários que a presença de um fantasma causaria em uma cena como esta.
Na caminhada de análise de obras de Saramago observamos que o autor
esforça-se pela coerência ao não desviar-se do estilo que o caracteriza. José
Saramago é o autor do diálogo. As imagens presentes em sua narrativa criam um
ambiente profícuo para que narrador e personagens possam, com suas vozes,
ampliar a percepção do leitor ao fazê-lo interagir com o ambiente, sem que a palavra
deixe de ser o principal foco da narrativa. E aqui quando dizemos a palavra,
queremos referir ao que o autor está tentando comunicar ao leitor, pois é isso que
Saramago faz o tempo todo.
No final de O ano da morte de Ricardo Reis, Pessoa irá aparecer como fez
em outras oportunidades, porém desta vez com a finalidade de despedir-se de seu
amigo Reis, para sempre. Reis que não verá sentido manter-se distante do grande
amigo, o acompanhará nessa caminhada. Ao baterem à porta da casa de Reis, ele
vai ao encontro da porta, imaginando ser a sua mulher que em lágrimas ia ao seu
encontro. Era Fernando Pessoa. Ambos conversam rapidamente e o visitante
explica as razões da chegada inesperada.
Vim para lhe dizer que não nos tornaremos a ver-nos, Porquê, O
meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que tinha
para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo
Reis subiu o da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à
mesa-de-cabeceira buscar “The god of the labyrinth”, meteu-o
debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai,
Vou consigo, (...) E esse livro, para que é, Apesar do tempo que tive,
não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo
todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-
se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns
riscos pretos, uma página suja, me custa ler, disse (...) Estavam
no passeio do jardim, olhavam no passeio do jardim, olhavam as
luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então
vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis (...)
(idem, ibidem, p. 414 e 415.)
69
Ricardo Reis opta por seguir Fernando Pessoa ainda que isso significasse
que ele não mais regressaria ao mundo dos mortais. Antes de sair, entretanto, Reis
até tenta levar um livro, porém para onde iriam não haveria mais a necessidade da
leitura. A literatura tem importância e valor no mundo dos vivos. A morte deixa
para trás coisas muito significativas como o simples prazer de ler e leva consigo as
pessoas que simplesmente não mais morrem, mas sim, desaparecem.
Pudemos notar ao analisarmos A jangada de pedra e O ano da morte de
Ricardo Reis, que ambas se diferenciam quanto à discussão da temática da morte.
Neste rastreio que culmina na análise de As intermitências da morte, em A jangada
de pedra, o tema morte não é tão aprofundado como em O ano da morte de Ricardo
Reis, entretanto, ambas sinalizam a predileção do autor pelo assunto. Tal predileção
culminará em obra específica sobre esta temática, ou seja, As intermitências da
morte.
3.2.3. AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE
Em sua trajetória como escritor, José Saramago demonstra uma predileção
pela morte, como um importante tema a ser discutido. Em suas diversas obras, ele a
aborda de modo que o leitor sempre possa refletir sobre ela e confrontá-la com
outras maneiras de se tratar o tema.
Em As intermitências da morte, Saramago mais uma vez encontra no
realismo maravilhoso um meio de criar um ambiente de reflexão sobre esta temática
conflituosa e, no transcurso desta investigação, fizemos assim uma caminhada no
desejo de demonstrar como o autor se utiliza do maravilhoso para estabelecer com o
seu leitor outro diálogo, agora mais específico, com um tema que para todos é muito
árduo: a morte ou o morrer é sempre uma discussão difícil. Assim, o autor nessa
nova linha romanesca de escritura, encontra a forma ideal para tratar da morte sem
ser demasiado realista e manter a atenção do seu leitor.
70
No primeiro dia do ano novo em uma localidade não revelada, as pessoas
passam a não morrer. Por horas e horas nenhuma notícia é dada sobre um único
falecimento, acontecimento que começa a criar grande perturbação. Nem colisões
entre veículos, nem doenças e quedas fatais o capazes de gerar óbitos. Doentes
terminais são interrompidos de morrer e assim seguem agonizantes pela hora da
morte. Muitas pessoas aguardam ansiosas pela confirmação de que seja verdade o
que está acontecendo, no entanto outros se mantêm preocupados imaginando as
conseqüências em virtude da ausência da morte. O não-morrer então começa a
modificar a rotina daquela sociedade e os mais diversos setores questionam a
procedência da veracidade das informações que a todos chegam desencontradas.
Ninguém mais está morrendo. Evidentemente, somente um fenômeno sobrenatural
poderia contribuir para que tal desarranjo social pudesse acontecer. Não caberia em
nenhuma sociedade onde vida existisse que a morte ali não se manifestasse. Tal
fenômeno sobrenatural, porém, se manifesta em toda a sua totalidade quando a
morte é enfim personificada, surgindo em toda a sua beleza feminina e frieza de
morte. A morte é, de fato, uma mulher:
O mal foi que, concluída a intervenção do especialista estrangeiro,
uma vista pouco treinada admitiria como iguais as três caveiras
escolhidas, obrigando portanto a que investigadores, em lugar de
uma fotografia, tivessem de trabalhar com três, o que, obviamente,
iria dificultar a tarefa da caça-à-morte como, ambiciosamente, a
operação havia sido denominada. Uma única cousa havia ficado
demonstrada por cima de qualquer dúvida, a saber, que nem a
iconografia mais rudimentar, nem a nomenclatura mais enredada,
nem a simbólica mais abstrusa se haviam equivocado. A morte em
todos os seus traços, atributos e características, era,
inconfundivelmente, uma mulher.
(SARAMAGO, 2005, p. 128.)
Porém não era uma mulher qualquer. Era uma mulher de grande beleza e
jovem. Portanto, uma investigação que conduzisse ao conhecimento e
reconhecimento, via de regra, tornava-se fundamental.
Não houve portanto outro remédio, aliás como havia sido previsto
em caso de necessidade, que regressar aos métodos da
investigação clássica, ao artesanato policial de cortar e coser,
71
espalhando por todo o país aqueles mil agentes de autoridade que
de casa em casa, de loja em loja, de escritório em escritório, de
fábrica em fábrica, de restaurante em restaurante, de bar em bar, e
até mesmo em lugares reservados ao exercício oneroso do sexo,
passariam revista a todas as mulheres com exclusão das
adolescentes e das de idade madura ou provecta, pois as três
fotografias que levavam no bolso não deixavam dúvidas de que a
morte, se chegasse a ser encontrada, seria uma mulher ao redor
dos trinta e seis anos de idade e formosa como poucas.
(Idem,
ibidem, p. 129 e 130.)
Para aumentar a angústia humana, após um período entre transtornos e
felicidade por não mais ter havido uma morte, as pessoas começam a
desesperar-se, que a morte voltou a matar e porque o recurso utilizado por ela
agora é muito mais doloroso. A morte passa a enviar cartas que informam ao
destinatário o dia em que ele ou ela irá morrer.
Percebemos nesta construção narrativa o caminho utilizado pelo autor para
chamar a atenção não somente para a necessidade que a sociedade humana tem
da existência da morte, como também para a luta que o homem empreende para
tentar encontrar uma maneira de não mais morrer. Na obra, no momento em que
investigadores tentam encontrar a morte na tentativa de conhecê-la para, quem
sabe, dominá-la, evidencia-se uma construção metafórica da corrida frenética
empreendida pela humanidade na busca do elixir da longa vida, no desejo de vencer
a morte.
Notamos, portanto, que o sobrenatural utilizado para discutir a temática da
morte, em nenhum momento causa estranheza ou pavor nos personagens ou no
leitor. O incômodo principal é o morrer ou a falta da morte. O morrer sempre foi um
incômodo para o homem, no entanto, a falta da morte configura-se um fato novo,
haja vista que o homem sempre soube que um dia iria morrer e o não-morrer passou
a gerar um desconforto social em função da desestrutura de ter que caberem tantas
pessoas vivas num lugar. A desordem do não-morrer contrasta-se com a euforia
do viver infinitamente. Contudo, o retorno da morte trará esperanças para os que
tinham nesta a reestruturação social e, para outros, a angústia de terem que passar
por tudo de novo, a saber, a certeza de que um dia deixariam de viver.
72
Saramago, utilizando-se do maravilhoso, encontra uma maneira distinta de
fazer reflexão de um tema que a ele não encanta muito, porém é um assunto tão
importante como falar da vida. A morte ou o morrer fazem parte das duas faces da
mesma moeda. Perguntado em uma entrevista do por quê falar da morte, ele
responde:
Porque é da morte que sempre temos de falar. As pessoas morrem,
mas tratamos a morte como se fosse um episódio a mais na vida,
nós a banalizamos, e não deveria ser assim. Em Todos os nomes se
fala muitíssimo da morte, mas fala-se muitíssimo da morte para falar
da vida. O que acontece é que pretender falar da vida evitando a
morte, como se ela não existisse, é uma mentira. O que eu pretendo
é afrontar-me com a morte, não com a minha morte, não com o final
da minha vida, o desastre que vai ser, a dor que sentirão quando me
forem ver: coitadinho, morreu. Não é isso. Trata-se do fato em si da
morte, de que a gente tem que morrer e o quanto isso ilumina ou,
pelo contrário, escurece a própria vida que se leva. está tudo: a
vida, o amor, tudo está contido nesse final, tudo o que se diga ou se
tenha feito aponta nessa direção e aí tudo se cumprirá. Não há nada
de mórbido no que estou a dizer, nada, não nenhuma morbidez.
Não gosto de falar da morte, mas ela está aí. O que eu quero é
afrontar-me com ela, e que aquilo que eu escreva tenha essa
referência, que não é a expressão definitiva do pessimismo, não. O
pessimismo é anterior, e não é pelo simples fato de afrontar-se com
a morte que se resolve tudo. O que pretendo, sim, é evitar que se
esqueça que ela existe, que é o que se costuma fazer. Tentamos
apagar a morte. As pessoas não mais morrem, simplesmente
desaparecem. (ARIAS, 2004, p.63 e 64.)
E a morte volta então a existir em As intermitências da morte para que as
pessoas não se esqueçam dela. Na forma de uma mulher ela segue matando e o
ser humano se conta de que o que houve foi uma pausa. Todos passariam a
morrer agora. Todos devem morrer. Todos irão morrer.
(...) porque o morrer é, afinal de contas, o que de mais normal e
corrente na vida, facto de pura rotina, episódio da interminável
herança de pais a filhos, pelo menos desde adão e eva, e muito mal
fariam os governos de todo o mundo à precária tranqüilidade pública
se passassem a decretar três dias de luto nacional de cada vez que
morre um mísero velho no asilo de indigentes. (SARAMAGO, 2005,
p.130 e 131.)
73
Portanto, as pessoas deveriam seguir morrendo a fim de que a ordem fosse
mantida. Em As intermitências da morte, a mulher pela qual a morte se passa, segue
a sua atividade enviando cartas para os escolhidos. As pessoas que as recebem
passam a reagir das mais diversas formas ao que estaria para acontecer. Alguns
deixam de pagar os impostos, outros se entregam às orgias, ao sexo, às drogas e
ao álcool. Outras, contudo, não esperam tanto, suicidam-se.
É com este relato em que a sobrenaturalidade se faz presente que o autor
nos ajuda a compreender a vida e o seu significado. A pensar no que podemos fazer
ou no que deixamos de fazer enquanto a vida passa e a presença da morte se
aproxima. No relato maravilhoso, o somos surpreendidos pela sobrenaturalidade,
mas com ela conseguimos enxergar-nos e ao semelhante. Saramago não deseja
esconder a morte da realidade que o homem vive, ele espera contribuir para que o
seu leitor desperte e não se esqueça de que o morrer e o morto constituem o nosso
contexto.
Segundo Saramago:
11
A morte se banaliza para ocultar a sua realidade. Até os mortos
reais que aparecem na televisão, pelo fato de aparecerem na
televisão, tornam-se de certo modo irreais. Se você nunca se
afrontar diretamente com a morte, neste caso com a morte do outro,
nunca saberá o que é. (ARIAS, 2004, p. 64.)
A morte segue a sua atividade como sempre fez e sabe fazer. Aterrorizando,
angustiando, deprimindo, matando. A pressa para ela é irrelevante e surpreende-se
quando alguém, por sua conta e atitude, dá fim à própria vida. Com efeito, a exceção
também surge quando por uma razão inesperada uma das cartas retorna ao
remetente.
11
Entrevista que Saramago concedeu a Juan Arias em sua casa em Lanzarote, nas ilhas Canárias. A
entrevista foi publicada originalmente em 1998 pela editora Planeta na Espanha, pouco antes de José
Saramago ter recebido o Prêmio Nobel de
Literatura. Em 2004 o livro é lançado no Brasil sem
retoque e no original. Segundo Arias, Saramago na época chegou a considerar que ali estava a sua
biografia uma vez que ele não pensava em escrevê-la.
74
Diz-se, di-lo a sabedoria das nações, que não regra sem
excepção, e realmente assim deveser, porquanto até mesmo no
caso de regras que todos consideraríamos maximamente
inexpugnáveis como são, por exemplo, as da morte soberana, em
que, por simples definição do conceito, seria inadmissível que se
pudesse apresentar qualquer absurda excepção, aconteceu que
uma carta de cor violeta foi devolvida à procedência.
(SARAMAGO,
2005, p. 135.)
A morte não compreende o motivo do retorno da carta violeta e a observa
friamente na busca por respostas de um acontecimento até o momento sem
explicações. Usando de seus poderes, a morte reenvia a carta ao destinatário que
se recusa, ainda que sem saber, a recebê-la.
A morte olhou fixamente o sobrescrito de cor violeta, fez um gesto
com a mão direita, e a carta desaparece. Ficámos assim a saber
que, contrariamente ao que tantos criam, a morte não leva as cartas
ao correio. (SARAMAGO, 2005, p. 137.)
Um leitor das obras de Saramago não irá se surpreender com o uso de cartas
utilizadas pela morte em As intermitências da morte para anunciar o dia final de
alguém. O autor antecipa em O ano da morte de Ricardo Reis esse recurso
quando o narrador discute sobre a possibilidade de as pessoas passarem a tomar
conhecimento da própria morte por meio de jornais que anunciassem o dia, a hora e
o lugar em que se iriam morrer. Portanto, o autor somente modifica a maneira de
como as pessoas passariam a saber da própria morte. Não seria mais pela leitura de
um jornal, mas sim, por meio de uma correspondência cor violeta, endereçada ao
futuro falecido. Saramago relê a sua própria obra e a intertextualiza. Ou, quem sabe,
extrai de seus pensamentos uma idéia que já havia sido usada antes e a transforma,
transportando-a para outra de suas obras. Recursos sobrenaturais antes citados,
como possibilidades em O ano da morte de Ricardo Reis, tornam-se realidade em
As intermitências da morte.
(...) e melhor seria ainda que aparecesse publicada a lista dos que
iriam morrer, milhões de homens e mulheres lendo o jornal da
manhã, no café com leite, a notícia de sua própria morte, um destino
75
marcado e por cumprir, dia, hora e lugar, o nome inteiro, que fariam
quando soubessem que os matariam, que faria Fernando Pessoa se
pudesse ler, dois meses antes, O autor de Mensagem morrerá no
dia trinta de novembro próximo (...) (idem, 2000, p. 50 e 51.)
Em As intermitências da morte, o uso sobrenatural das cartas é utilizado para
anunciar o dia tão indesejado pelo ser humano. O dia da sua morte.
O sobrescrito encontrava-se sobre a mesa do director-geral da
televisão quando a secretária entrou no gabinete. Era de cor violeta,
portanto fora do comum, e o papel, de tipo gofrado, imitava a textura
do linho. Parecia antigo e dava a impressão de que havia sido
usado antes. Não tinha qualquer endereço, tanto de remetente, o
que às vezes sucede, como de destinatário, o que não sucede
nunca, e estava num gabinete cuja porta, fechada à chave, acabara
de ser aberta nesse momento, e onde ninguém poderia ter entrado
durante a noite. (idem, 2005, p. 87.)
Não da parte do diretor-geral, ao abrir a carta, nenhuma incerteza sobre a
veracidade do que ele está vivenciando. Não existe dúvida, tampouco hesitação. O
diretor-geral acredita no que acabara de ler e o conteúdo da carta foi capaz de
desestruturá-lo, ele não podia compreender como que tal correspondência pôde ali
chegar, sem destinatário, sem remetente e com uma mensagem aterradora. O
diretor então percebe que necessita conversar com alguém sobre o que lhe sucede
e ao mesmo tempo chega a pensar que provavelmente seja uma piada ou uma
brincadeira. É então que, com as mãos trêmulas, ele telefona ao primeiro-ministro,
pois algo desta magnitude deveria ser considerado como de segurança nacional. O
primeiro-ministro ao tomar conhecimento do conteúdo da carta se defronta com dois
pensamentos distintos, já que o retorno da morte resolveria uma infinidade de
problemas, afinal, sete meses sem uma morte sequer, pois este foi o tempo em que
as pessoas ficaram sem morrer, resultaram em graves prejuízos. Na carta, a morte
afirmava não ser a verdadeira Morte. Para ela, nenhum ser humano poderia ter idéia
da dimensão do que seria tal contato com a Morte. Segundo a morte, o que os
homens conhecem é a morte cotidiana. Ela é esta morte. A morte se diz limitada em
sua atividade de matar, visto que, aem desastres de dimensões catastróficas, ela
era incapaz de impossibilitar que alguém dali saísse vivo. Algo que jamais
76
aconteceria se fosse a Morte que estivesse à frente do acontecimento calamitoso,
ou seja, não sobraria ninguém vivo. Na carta a morte dizia ao senhor diretor:
(...)preocupe-se com explicar bem aos seus leitores os comos e os
porquês da vida e da morte, e, agora, regressando ao objectivo
desta carta, escrita, tal como a que foi lida na televisão, de meu
punho e letra, convido-o instantaneamente a cumprir aquelas
honradas disposições da lei de imprensa que mandam rectificar no
mesmo lugar e com a mesma valorização gráfica o erro, a omissão
ou o lapso cometidos, arriscando-se neste caso o senhor director, se
esta carta não for publicada na íntegra, a que lhe despache, amanhã
mesmo, com efeitos imediatos, o aviso prévio que tenho reservado
para si daqui por alguns anos, não lhe direi quantos para não lhe
amargar o resto da vida, sem outro assunto, subscrevo-me com a
atenção devida, morte. (idem, ibidem, p. 112.)
Bella Josef afirma que “todo o romance discorrerá entre a nostalgia da fala
reconstruída e a necessidade de transgredir a realidade imediata através dela”
(JOSEF, 1993, p. 167). Portanto, Saramago ao escrever utilizando-se da vírgula e
do ponto, tenta acercar-se da fala aproximando-se mais do seu leitor. Porém ao usar
o maravilhoso, ele rompe a todo instante com a realidade fazendo uso dessa fala ou
palavra, sem que tal recurso impeça ou impossibilite uma reflexão profunda dos
temas abordados por ele. Ao contrário, ele instiga ainda mais o refletir por meio de
um realismo em que o sobrenatural prevalece. No entanto, os seus textos são
diretos, ele não deseja fazer-se ou tornar-se obscuro. Daí, talvez a não-opção pelo
fantástico, mas sim pelo maravilhoso. Vincent Jouve, ao escrever sobre leitura,
afirma:
Se o leitor está ao mesmo tempo “orientado” e “livre” no decorrer da
leitura, é porque a recepção de um texto se organiza em torno de
dois pólos que podemos chamar, como M. Otten (1982), de
“espaços de certeza” e “espaços de incerteza”. Os “espaços de
certeza” são os pontos de ancoragem da leitura, as passagens mais
explícitas de um texto, aquelas a partir das quais se entrevê o
sentido global. Os “espaços de incerteza” remetem para todas as
passagens obscuras ou ambíguas cujo deciframento solicita a
participação do leitor. (JOUVE, 2002, p. 66.)
77
Portanto, Saramago evita os “espaços de incerteza” ainda que se utilizando
do insólito para comunicar-se. A sua opção pelos “espaços de certeza” definidos por
Jouve dá ao seu leitor o direcionamento na medida exata do que ele, o autor, deseja
dividir com aquele que o lê. Ao personificar a morte, ao ausentá-la ainda que
temporariamente da vida humana e ao trazê-la de volta, José Saramago nos faz ver
o quanto o não morrer seria desastroso para a humanidade, como se pode observar
no excerto abaixo:
Porque se os seres humanos não morressem tudo passaria a ser
permitido, E isso seria mau, perguntou o filósofo velho, Tanto como
não permitir nada. Houve um grande silêncio. Aos oito homens
sentados ao redor da mesa tinha sido encomendado que
reflectissem sobre as conseqüências de um futuro sem morte e que
construíssem a partir dos dados do presente uma previsão plausível
das novas questões com que a sociedade iria ter de enfrentar-se,
além, escusado seria dizer, do inevitável agravamento das questões
velhas. (SARAMAGO, 2005, p. 37.)
Percebemos assim que o autor é direto. Ele insere o leitor no âmago da
reflexão, sem que possa haver muitos espaços vazios para a indeterminação. Para
ele, o não-morrer contribuiria para o total caos da humanidade e de toda a
estruturação da sociedade. Ou seja, ainda que indesejada, a morte é tão necessária
quanto a vida. E ele vai mais além. Em outro fragmento, a voz do narrador nos faz
saber que a morte nos acompanha a cada instante de nossa vida e que vivemos
como se, por ela, fossemos vigiados esperando pacientemente a chegada da nossa
hora. A morte nos ronda e ainda que o a vejamos, está à espera do momento em
que nos levará para o destino final a que todos um dia se dirigirão.
A morte viajou sentada ao lado dele no táxi que o levou a casa,
entrou quando ele entrou, contemplou com benevolência as loucas
efusões do cão à chegada do amo, e depois, tal como faria uma
pessoa convidada a passar ali uma temporada, instalou-se. Para
quem não precisa de se mover, é fácil, tanto lhe dá estar sentado no
chão como empoleirado na cimeira de um armário. (idem, ibidem, p.
169.)
78
No entanto, a dona morte encontra-se agora às voltas de um grande
problema por não estar conseguindo fazer com que um simples violoncelista receba
a carta de cor violeta. À primeira devolução, percebia ela que alguma coisa
estranha sucedia. Logo, divagava sobre a possibilidade de o carteiro a tê-la posto
em outra caixa de correio e por esta razão a carta retornou. No entanto, não
carteiro. A carta retorna uma segunda vez e a morte então se queixa bastante, pois
nunca semelhante fato aconteceu. Era uma situação inusitada e que fazia com que o
mais poderoso dos seres sobrenaturais, pela primeira vez, questionasse a própria
majestade. Observando a sua lista de mortuários, nota que o violoncelista não
constava na relação. Ele que deveria morrer aos quarenta e nove anos, acabava de
chegar aos cinqüenta sem que a sua hora final chegasse. A morte se irrita, se
impacienta. A carta retorna uma terceira vez. A morte tem a idéia de alterar a data
de nascimento do violoncelista e nem isso tem o efeito esperado. Um violoncelista
como tantos outros, sem fama, sem dinheiro e solitário, que vive na companhia de
um cachorro e que a morte não consegue levá-lo. Ela o acompanha, o observa e por
três dias não saiu do seu rastro. Aparenta ser uma jovem mulher, equipa-se de
óculos escuros, veste-se de tal maneira que, pode parecer irônico, sua beleza
contagia. Pela primeira vez, ela irá assistir a um concerto. Com o seu vestido novo
ela está mais uma vez diante do violoncelista, agora, por um motivo especial. Ela
espera o fim do concerto para felicitá-lo. Ambos conversam e se despedem.
Intrigado com aquela imagem, o violoncelista não consegue retirar dos pensamentos
a mulher com a qual pôde trocar poucas palavras. Um dia, passeando com o seu
cachorro, em um dos bancos do jardim, ele a encontrou e confessou o quanto por
ela se apaixonou. Ela se vai. Melhor dizendo, desaparece. Certo dia, ela o visita e os
dois conversam. Ela pede para que ele toque algo e, ao fazê-lo, as mãos da dona
morte perdem a sua frieza e começam a arder de tamanha emoção que aquelas
cordas vibrantes liberando um som tão imperceptível por ela antes, passam a dar-
lhe um certo sentido, uma certa alegria. A morte e o violoncelista se amam ali
mesmo e ela, que nunca havia dormido, cai em um profundo sono para no dia
seguinte ninguém morrer.
Saramago alegoricamente nos chama a atenção para uma constatação: a
morte não mata a arte. Vão-se os artistas, vão-se as pessoas. A arte para sempre
permanece e o artista é imortalizado pelo seu trabalho. É a sua arte que o consagra,
79
que o torna imortal. Em As intermitências da morte o sobrenatural serve como um
meio de fazer-nos ver a importância da vida e da arte e como a arte cheia de vida é
passada de geração em geração, sendo capaz de vencer a morte.
Nessa trajetória, acompanhamos como a escritura de Saramago tem um
objetivo claro, a saber, criar um leitor consciente e reflexivo. Nesse realismo
chamado por muitos de gico, a magia no realismo maravilhoso está em fazer uso
do sobrenatural, naturalizando-o. O objetivo traçado até aqui foi o de inserir o autor
neste tipo de narrativa tão fortemente adotada no continente americano, mas que
tem na Europa um expoente que magistralmente a enriquece e a dignifica.
80
4. CAPÍTULO III
A MORTE, A RELIGIÃO, A FILOSOFIA E A ARTE
81
4.1 A EXPERIÊNCIA DA PRÓPRIA MORTE NA MORTE DO OUTRO
Que vamos morrer todos sabemos. Por milhares de anos, nós os seres
humanos, acompanhamos dia a dia o viver e o morrer dos nossos amigos, dos
nossos parentes, bem como dos demais seres vivos. Sabedores que este momento
chegará, vivemos intensamente como formigas que durante o verão precisam juntar
o máximo possível de alimento. No nosso verão, nos esforçamos para acumular
riquezas, conhecimento e tecnologia a fim de garantir com isso a sobrevivência da
espécie. Precisamos ser rápidos uma vez que, diferentemente das formigas, nosso
inverno seeterno. Não em vão, tentamos camuflar o medo da chegada do dia da
morte com recursos inteligentes e, porque não dizer, eficazes. A religião, a filosofia,
as artes e a ciência são instrumentos importantes na amenização da dor que a
morte causa ao homem. Com efeito, cada uma destas áreas do conhecimento busca
cumprir o seu papel que é o de minimizar o impacto que o medo da morte produz.
No campo das artes, por exemplo, a literatura desempenha um relevante trabalho no
que tange ao enfrentamento do homem com esta realidade que o espera. Escritores
em diversas épocas ao expor a temática têm contribuído para que o morrer e mais
especificamente a morte, não seja pelo homem ignorada, esquecida. No conto Nhô
Guimarães, Aleílton Fonseca
12
nos faz entender que o somos eternos, que somos
finitos: “O tempo foi indo, Manu ficando velhinho, com pouco se foi dessa pra
melhor. Eu fiquei sozinha, neste pé de serra. É verdade: ninguém fica para semente,
pois não é?” (FONSECA, 2001, p.11). Logo, sempre um escritor pronto a nos
relembrar sobre esta limitação que nos impõe a natureza. Evidentemente, cada um à
sua maneira ou ao seu estilo, nos alerta a respeito desta nossa agonia. De forma
distinta, José Saramago em As intermitências da morte inicia a sua narrativa dizendo
que “No dia seguinte ninguém morreu” (SARAMAGO, 2005, p.11). É possível
perceber, de imediato, que as obras acima citadas se diferenciam pelo tipo de
realismo utilizado. A primeira opta por um realismo mais próximo aos fatos do
cotidiano, às nossas vivências. A segunda opta pela sobrenaturalidade. Entretanto,
notamos que em ambas as obras o tema principal é a morte. Contudo, é instigador
12
Seleção de 12 contos que compõe o livro O desterro dos mortos. Sua primeira edição foi publicada
em 2001 pela Relume Dumará.
82
sermos convidados a pensar a morte sob o prisma da imortalidade proposto por
José Saramago.
E como pensar a vida humana sem a existência da morte? Em As
intermitências da morte passamos a refletir a vida sob a perspectiva da imortalidade
humana. Em geral, ao falarmos de morte o que temos por referência é sempre a
morte do outro. Neste romance de Saramago a morte do outro deixa de existir e esta
referência então desaparece. Passamos a não contemplar no outro o fim da nossa
existência. Começamos, assim, a pensar numa sociedade forjada sob o maior
anseio do homem: viver eternamente. Como tal realidade se concretiza na
imaginação, nesta obra, a literatura, enquanto ficção, aborda esta temática sem que
a certeza efetiva do morrer esteja presente inicialmente. Mikhail Bakthin, nos
uma importante afirmação quando diz:
Em minha vida, vivida por dentro, não posso vivenciar os
acontecimentos do meu nascimento e da minha morte; o nascimento
e a morte, enquanto o meu nascimento e minha morte, não podem
tornar-se eventos da minha vida. (...) Ter medo de morrer e ter
vontade de viver-ser neste mundo são sentimentos que diferem
substancialmente do medo que sinto ante a morte do outro, de quem
me é próximo, e dos cuidados em que me desdobrei para
salvaguardar-lhe a vida. (BAKTHIN, 2000, p.119)
Esta asserção de Bakthin pode ser observada em vários excertos do romance
de José Saramago. Nela, todos passam a observar que ninguém mais está
morrendo. Desde o primeiro dia do ano seguinte os rumores são gerais, visto que
não havia registro de mortes por doença, por acidentes, suicídios, nem mesmo em
colisões nas quais jamais se imaginaria alguém sair vivo. O pensamento reinante
era: houve vítimas fatais. Retomando Bakthin, toda esta observação, notamos, é
feita pelo olhar do outro que, neste caso, é o narrador. É sempre o outro que a
morte do seu semelhante. Enquanto experiência a ser passada, não coube ao
homem externar o seu nascimento, tampouco a sua morte. O nosso nascer e o
nosso morrer são eventos que não podemos compartilhar; não temos como externar
os detalhes deste momento único em nossa vida.
83
Segundo Françoise Dastur, (...) não experiência da morte como tal, mas
somente experiência da morte do outro e instituição, nesta experiência primeira de
luto, da própria referência a si como mortal (DASTUR, 2002, p.14). É quando a
finitude se realiza no outro, no semelhante. A experiência humana materializada no
outro o abala fazendo-o sentir-se inseguro e abandonado. Em muitos casos é
evidenciada a falta de preparo para tal enfrentamento dada a inevitabilidade que é o
morrer e, por conseguinte, a forte angústia que a morte provoca. O morto, então, se
configura num reflexo do espelho visto pelo vivo. Olhá-lo é ver-se. Logo, tentar
desviar-se de tal visão suaviza o homem do seu confronto final, do seu maior
inimigo. No entanto, em As intermitências da morte este confronto desaparece. O
morrer em determinado período deixa de acontecer. Logo, as pessoas passam a
não se ver mortas na morte do outro, de modo que o medo de morrer desaparece.
Vejamos o fragmento:
Com o passar dos dias, e vendo que realmente ninguém morria, os
pessimistas e os cépticos, aos poucos e poucos no princípio, depois
em massa, foram-se juntando ao maré magnum de cidadãos que
aproveitavam todas as ocasiões para sair à rua e proclamar, e gritar,
que agora sim, a vida é bela. (SARAMAGO, 2005, p.24)
Com efeito, com a não-morte, a perda definitiva deixa de existir e aquilo que é
intelectual, físico e afetivo, permanece. Ou seja, o conhecimento se eterniza e o
homem, fisicamente e afetivamente, pode desfrutar da imortalidade. Além disso, a
dor da perda não necessitará ser substituída por uma nova informação, a saber: um
ideal, um trabalho, um novo amigo, uma viagem, etc. Isso significa que o homem
não necessitará mais buscar novos pensamentos que venham a preencher a
saudade deixada pelo seu ente querido. Ainda segundo Dastur, (...) a morte é objeto
de espanto e não parece poder ser enfrentada, a não ser na medida em que se
relativizada e aparenta ter domínio apenas de uma parte do nosso ser (DASTUR,
2002, p. 6). Criamos, então, mecanismos que nos distanciam do pensamento atroz
que nos naturaliza e nos coloca em situação de igualdade perante os demais seres
vivos. O saber que vai morrer impõe ao homem uma luta interior gigantesca que
é amenizada por instrumentos quase perfeitos de reação a morte. Porém, sentir o
gosto da imortalidade em As intermitências da morte, também nos faz repensar o
84
quanto de imprescindível é a morte do homem. Por outro lado, a festa e a alegria por
tal possibilidade demonstrada no fragmento da obra citado anteriormente, não deixa
de evidenciar o nosso desejo interno de festejar algo que desejaríamos que fosse
real. Tal alegria demonstrada no romance é justificada visto que não relatos na
história da humanidade de alguém que tenha vivido eternamente.
É importante observar que, como um homem que discute o seu tempo,
Saramago inicia o seu leitor na discussão sobre a longevidade e as conseqüências
do longo viver. Todos os esforços científicos têm sido feitos no intuito de permitir ao
homem viver mais e mais. De modo que a sua obra “da directrizes e ensinamentos
para a vivência do presente” (SEIXO, 1999, p.54-55), ao mesmo tempo em que
lança o olhar para o futuro.
4.2. MORRER É ALGO NATURAL
Acostumados a ver as pessoas morrendo, todos se mantêm sob grande
expectativa referente ao que está ocorrendo naquele país. Em verdade, desde o
momento em que somos gerados, desafiamos a morte ainda que ela esteja sempre
pronta a nos levar. A cada dia vivemos e morremos, morremos para viver. O dormir
é uma morte temporária. Quando nos despertamos temos mais uma oportunidade
de sentir a vida, de viver. Porém, sempre a certeza da chegada do dia em que
não mais haverá o prazer de vermos a luz do sol uma vez que a escuridão se
eterna. A imortalidade em As intermitências da morte se apresenta como um sonho
da humanidade, um desejo que ardorosamente se tenta conseguir. Contudo, as
informações passadas ao público são difusas e o contribuem para uma exata
idéia do que está acontecendo. Como o morrer sempre se configurou como uma
regra por mais que o homem lute para reverter tal verdade sempre tal confronto
resultará ser ineficaz. Em conversa com o ministro da saúde, um jornalista expressa
a sua incompreensão para os fatos que se verificam naquele lugar:
85
(...) Senhor ministro, permita-me que lhe recorde que ainda ontem
havia pessoas que morriam e a ninguém lhe passaria pela cabeça
que isso fosse alarmante, É natural, o costume é morrer, e morrer só
se torna alarmante quando as mortes se multiplicam, uma guerra,
uma epidemia, por exemplo, Isto é, quando sai da rotina, Poder-se-á
dizer assim, Mas, agora, que não se encontra quem esteja disposto
a morrer, é quando o senhor ministro nos vem pedir que não nos
alarmemos, convicomigo que, pelo menos, é bastante paradoxal
(...) (SARAMAGO, 2005, p.16)
No diálogo apresentado acima, fica claro o quanto que o morrer é comum,
aceitável e natural. É possível perceber o grande desconforto da parte do governo
pelo motivo deste encontrar-se diante de uma situação completamente atípica. As
respostas do governo aos questionamentos devem ser comedidas e o cuidado com
o emprego correto das palavras deverá demonstrar a cautela governamental na
condução do problema ora enfrentado. A preocupação tem toda uma lógica de
existir. É sabido por todos que a longevidade das populações tem contribuído para a
reformulação de diversas políticas econômicas na área da saúde e previdência
social em diversos países, devido ao aumento da expectativa de vida das pessoas.
Imaginar que a longevidade passará a ser substituída pela imortalidade, gera nas
mentes administrativas um enorme mal-estar. Primeiramente, acredita o governo
poder conduzir com desvelo tal fenômeno.
(...) o primeiro ministro terminava afirmando que o governo se
encontrava preparado para todas as eventualidades humanamente
imagináveis, decidido a enfrentar com coragem e com indispensável
apoio da população os complexos problemas sociais, econômicos,
políticos e morais que a extinção definitiva da morte inevitavelmente
suscitaria, no caso, que tudo parece indicar como previsível, de se
vir a confirmar. (idem, ibidem, p.17)
Notamos que Saramago é, verdadeiramente, um escritor contemporâneo.
Neste romance ele faz uma ampla discussão política, econômica, social, religiosa e
filosófica, com uma boa pitada de humor, sem perder o foco principal que é o de
permitir que o seu leitor participe das suas inquietudes. Observando o grande
avanço científico e tecnológico em diversas áreas e mais especificamente, na saúde,
ele sabe que o homem tem feito com quem vários especialistas em finanças revejam
86
constantemente os gastos do governo na saúde e, de modo mais específico, na área
da aposentadoria. Viver mais é, para a sociedade contemporânea, administrar
diversos problemas financeiros. No romance, a imortalidade gerará um caos nas
contas governamentais.
(...) com que dinheiro o país, dentro de uns vinte anos, mais ponto,
menos vírgula, pensava poder pagar as pensões aos milhões de
pessoas que se encontrariam em situação de reformados por
invalidez permanente e que assim iriam continuar por todos os
séculos dos séculos e às quais outros milhões se viriam a reunir
implacavelmente, tanto fazendo que a progressão seja aritmética ou
geométrica, de qualquer maneira sempre teremos garantida a
catástrofe, será a confusão, a balbúrdia, a bancarrota do estado, o
salve-se quem puder, e ninguém se salvará. (SARAMAGO,2005,
p.77-78)
A prédica contida no fragmento acima nos remete aos conflitos atuais entre
governo e sociedade. Ao governo cabe zelar pelas finanças públicas porém, a
sociedade luta para que os privilégios das aposentadorias sejam mantidos sem que
haja uma reflexão de onde entrarão os recursos. A sociedade atual vive mais e,
portanto, utiliza por mais tempo o dinheiro das aposentadorias. Ao contrário, a
massa trabalhadora em idade de contribuição previdenciária diminui
consideravelmente. Além disso, as populações em diversas regiões têm diminuído
em função do não aumento da taxa de natalidade. As intermitências da morte se
configura, então, como uma ficção que discute a sociedade, presente e futura. É um
alerta que sinaliza os problemas que poderão advir caso medidas não sejam
tomadas. Medidas essas que possibilitem uma adequação entre população
economicamente ativa e contributiva de um lado, e a população de aposentados do
outro. E essa reflexão é aprofundada:
Efectivamente, voltando às inquietantes razões do economista, os
cálculos eram muito fáceis de fazer, senão vejamos, se temos um
tanto de população activa que desconta para a segurança social, se
temos um tanto de população não activa que se encontra em
situação de reforma, seja por velhice. Seja por invalidez, e portanto
cobra da outra as suas pensões, estando a activa em constante
diminuição em relação a inactiva e esta em crescimento contínuo
87
absoluto, não se compreende que ninguém se tenha logo
apercebido de que o desaparecimento da morte, parecendo o auge,
o acme, a suprema felicidade, não era, afinal, uma boa cousa.
(ibidem, ibidem, p. 78)
O romancista, por este fragmento, uma clara demonstração do seu
envolvimento pelas questões que afligem a sociedade. Entretanto, podemos notar o
que culminou nesta discussão foi toda uma reflexão sobre a morte. Morte e vida em
Saramago são, em verdade, faces de uma mesma moeda e se complementam.
Quando pensamos na morte dificilmente analisamos as conseqüências de uma vida
sem sua existência. De modo que, essa inversão proposta pelo autor, ou seja,
observar a vida sem a presença da morte faz-nos perceber o quanto o morrer
harmoniza toda a cadeia dos seres viventes. No caso específico do ser humano,
Schopenhauer argumenta que o que deve prevalecer é a humanidade e não o
indivíduo. Segundo ele:
Exigir a imortalidade do indivíduo é querer perpetuar um erro até o
infinito. No fundo, toda a individualidade é um erro especial, um
equívoco, alguma cousa que não deveria existir. O verdadeiro
objetivo dele é libertarmo-nos dele.
(SHOPENHAUER, 1943,60)
Para Schopenhauer, “a duração dever ser assegurada à humanidade e não
ao indivíduo” (SHOPENHAUER, 1943,60). Notamos, portanto, que esse jogo de
idéias de proporcionar ao homem a imortalidade em As intermitências da morte é de
fundamental importância, pois permite que o leitor tenha a exata noção de nossa
não perenidade e o quanto a cessação da vida contribui para a manutenção da
própria vida. No romance, os diálogos presentes entre alguns setores da sociedade
como os filósofos, o governo, e a igreja católica, apontam para a preocupação de
uma crise impensável. As pessoas não estão a refletir sobre o presente, tampouco o
futuro que se desenha. O mais agravante é que o desaparecimento da morte se
tão somente em um país que não tem o seu nome citado, enquanto os demais
mantêm as suas taxas de natalidade e de mortalidade equânimes.
88
Façamos aqui uma observação para a estratégia utilizada pelo romancista em
não nomear o país afetado pela ausência da morte. Ao não nomear o país,
Saramago permite que cada um que As intermitências da morte possa incluir-se
numa temática que é universal já que a morte afeta a todos, nos atinge por igual, em
qualquer lugar. Mas, retomando Schopenhauer, se a imortalidade deve ser
assegurada à humanidade, logo este mundo não se do indivíduo, mas sim de
todos. Dos que se foram, dos que estão e dos que virão. O eu é tão somente parte
dos que comporão a história da vida. O eu é aquele constituído na vida e na morte
pelo olhar do outro. O eu pertence a este universo que compõe os outros e este eu
terá que deixar de existir para que outros ocupem o seu lugar. Portanto, a morte ou
o morrer como fenômenos naturais, reduzem o nosso individualismo ao nos mostrar
que somos parte de um corpo e que o que é, deixará de ser para dar lugar aos que
um dia serão.
(...) porque morrer é, afinal de contas, o que de mais normal e
corrente na vida, facto de pura rotina, episódio da interminável
herança de pais a filhos, pelo menos desde adão e eva, e muito mal
fariam os governos de todo o mundo à precária tranqüilidade pública
se passassem a decretar três dias de luto nacional de cada vez que
morre um mísero velho(...) (SARAMAGO, 2005,130-131)
Logo, é isso que o romance também tenta deixar claro. A morte é um
fenômeno natural e como tal, devemos aceitá-la.
4.3. DOMINADOS PELO MEDO
Se o medo da morte é um obstáculo com o qual nos defrontamos
constantemente e que nos fragiliza, é evidente que este temor nos torna vulneráveis
de nós mesmos. O medo nos paralisa ao limitar as nossas reações ante o que nos
aflige. Atemorizados, externamos a nossa fragilidade o que permite que sejamos
conduzidos e manipulados. Um setor da sociedade que se utiliza do medo da morte
para conduzir as pessoas ordeiramente citado no romance, é o religioso. Em As
89
intermitências da morte, Saramago não poupa críticas ao cristianismo nem a religião
católica. A prova disso são os diálogos contidos no romance que anunciam a
derrocada não somente da religião cristã, bem como de toda e qualquer religião. Ele
é muito duro nesse embate o que o faz uma pessoa não bem aceita pela Igreja
Católica, bem como no seu país, lugar em que o catolicismo predomina e, por conta
disso, o escritor não foi premiado com o maior laurel da literatura européia. Ele
transparece os seus sentimentos sobre o que pensa da igreja católica e não deixa
pedra sobre pedra quando impelido a tratar do tema.
De fato, quando ele escreve, não tem papas na língua e sua crítica
ao poder da Igreja é implacável, sobretudo em “O Evangelho
segundo Jesus Cristo”, obra que mais aborrecimentos lhe causou
em sua própria terra e que, em um primeiro momento, teve sua
indicação ao Prêmio de Literatura Europeu vetada pelo governo
português, sob a alegação de que não representava os portugueses.
(ARIAS, 2003, p.12)
Em As intermitências da morte, a ausência da morte destituirá do trono
sagrado o deus dos cristãos uma vez que, pelo fato deste habitar no mundo dos
mortos, o não morrer significará uma ruptura na caminhada do homem mortal em
direção ao mundo da vida perpétua e harmônica nos céus. Como afirma Leach,
A religião está voltada, em toda a parte, para a preocupação com o
primordial, a antinomia entre vida e morte, procurando negar o
vínculo binário entre as duas palavras. Isso é feito por meio da
criação da idéia mística de “outro” mundo, um mundo dos mortos
onde a vida é perpétua. Os atributos desse mundo são
necessariamente aqueles que não são deste mundo; a imperfeição
daqui é compensada com a perfeição lá. Mas essa ordenação lógica
das idéias traz uma conseqüência desconcertante: Deus passa a
pertencer ao outro mundo. O “problema” central da religião consiste,
portanto, em restaurar alguma espécie de ponte entre o Homem e
Deus. (LEACH, 1983, p. 59)
E como esta ponte é estabelecida pelo morrer, o seu rompimento deflagra
toda uma desestruturação da ordem religiosa no mundo dos vivos, uma vez que
90
todo o discurso que perfaz a construção ideológica em torno da religião cristã cai por
terra com a não existência da morte. Sendo assim, a religião que atua como um
caminho que conduz o vivo ao mundo dos mortos, que leva o impuro ao puro, o
mundano ao espiritual, o imperfeito ao mundo perfeito, deixa de servir de farol para
aqueles que nela crêem e nela depositam a sua confiança. Ora, notamos então que
o discurso de Saramago recria o real pela ficção e pela palavra, remodela a
realidade na tentativa de construir significados no leitor. É provável que Saramago
não proponha aos seus leitores que abandonem suas crenças religiosas, por outro
lado, refletir sobre essa temática que nos domina e nos faz acreditar em um discurso
religioso que nos conduz a morada eterna é, por assim dizer, imprescindível.
...os delegados das religiões apresentaram-se formando uma frente
unida comum com a qual aspiravam a estabelecer o debate no único
terreno dialéctico que lhes interessava, isto é, a aceitação explícita
de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do
reino de deus e que, portanto, qualquer discussão sobre um futuro
sem morte seria não blasfema como absurda, portanto teria de
pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer
simplesmente desaparecido. (SARAMAGO, 2005, p. 35)
A não presença da morte, como podemos observar, representa o
esfacelamento, a ruína de toda uma idealização de vida após a morte, de uma vida
eterna no paraíso celestial. Cai então o mito do paraíso. A certeza de vida em um
lugar antagônico a terra, um lugar em que tudo o que é bom, belo e maravilhoso ali
será encontrado e desfrutado. Em entrevista a Juan Arias, Saramago afirma:
O escritor também diz que, se, como afirmam os crentes, existe um
paraíso para os homens, seria injusto que não houvesse outro para
aquelas criaturas incapazes de odiar, coisa que sabem fazer, e às
vezes com infinita crueldade, alguns dos orgulhosos humanos.
(ARIAS, 2003, p. 20)
Ou seja, como uma forma de vencer a morte, o homem criou um paraíso
somente para si. Por esta razão é que vivemos, em grande maioria, na esperança
de que, ou iremos a um lugar eterno e ali viveremos para sempre ou então, seremos
91
em nossas almas reciclados até estarmos em condições de partirmos em paz para a
morada eterna. Então, extraindo-se os ticos que duvidam da existência de outra
vida após a morte, que é o mesmo que afirmar a não existência de vida eterna
quando deixamos de existir, o certo é que somos conduzidos religiosamente a
acreditar na possibilidade de um dia desfrutarmos das benesses celestiais. Com
efeito, temerosos do porvir, nos deixamos comodamente ser conduzidos a uma
certeza, pouco provável, de que um dia nos dirigiremos ao paraíso. Logo, este
desejo latente em seguir vivendo, ainda que no plano espiritual, exige certos
comportamentos que deverão ser seguidos para enfim, haver a recompensa
almejada. A igreja cristã, como a condutora divina nesta jornada, se autorizada a
ditar as normas com as quais os seus membros deverão se nortear para que haja
uma ligação entre o terreno e o celeste. Com efeito, a partir do instante em que não
há mais a morte, o paraíso deixa de existir.
As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos não têm
outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela
como do pão para a boca. ... Tem razão senhor filósofo, é para isso
mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida
com o medo pendurado ao pescoço e, chegada sua hora, acolham a
morte como uma libertação, O paraíso, Paraíso ou inferno, ou cousa
nenhuma, o que se passe depois da morte importa-nos muito menos
que o que geralmente se crê, a religião senhor filósofo, é um
assunto da terra, não tem nada que ver com o céu. ... Algo teríamos
que dizer para tornar atrativa a mercadoria, Isso quer dizer que em
realidade não acreditam na vida eterna, Fazemos de conta.
(SARAMAGO, 2005, p. 36)
Como podemos notar é impossível não refletir sobre este diálogo que investe
contra a pedra angular do catolicismo. Os diálogos que ocorrem no romance
contribuem para ampliar a análise, constituindo assim um forte instrumento
convincente de que o céu e o inferno são em verdade, frutos da imaginação humana
e que se fazem presentes na bíblia e por ela foram disseminados através dos
tempos. Percebemos que Saramago abunda seus textos com ironias que
dessacralizam toda e qualquer ordem religiosa baseada na bíblia.
92
Por nossa parte, igreja católica, apostólica romana, organizaremos
uma campanha nacional de orações para rogar a deus que
providencie o regresso da morte o mais rapidamente possível a fim
de poupar a pobre humanidade aos piores horrores, Deus tem
autoridade sobre a morte, perguntou um dos optimistas, São as
duas caras da mesma moeda, de um lado o rei, do outro a coroa.
(SARAMAGO, 2005, p. 37)
Ele faz ver que Deus e a morte são uma coisa só. “Sendo assim, talvez tenha
sido por ordem de deus que a morte se retirou” (SARAMAGO, 2005, p. 37). No livro
de Lucas 20:38 é possível ler que “Deus não é um Deus de mortos, e sim de vivos;
porque para ele todos vivem”, entretanto, o encontro com Deus se mediante o
morrer visto que nos us Ele reinará com os que lhe foram fiéis. Portanto, a não
presença da morte, destrona o rei já que o reino passou a não mais existir:
Assim sendo, somos seduzidos pela palavra e por ela conduzidos a acreditar
numa realidade que existe somente no mundo místico. Logo, essa mesma palavra
que nos distingue dos demais seres vivos, esse fantástico instrumento que nos
possibilita adquirir e transferir conhecimentos para os de nossa espécie, também
nos torna presas fáceis dos discursos aos quais estamos sujeitos. E organizados
como somos, por meio dos mitos, a vivermos cordialmente em sociedade, a
preocupação ante o caos existente se fundamenta: “Porque se os seres humanos
não morressem tudo passaria a ser permitido, E isso seria mau, perguntou o filósofo
velho, Tanto como não permitir nada. Houve um novo silêncio” (SARAMAGO, 2005,
p. 36). Houve um silêncio pela grande preocupação resultante das impossibilidades
em se resolver um problema de tamanha grandeza. E segundo Orlandi, “o silêncio
do sentido torna presente não a iminência do não-dito que se pode dizer, mas o
indizível da presença: do sujeito e do sentido” (ORLANDI, 1997,72). Retomando ao
mito, Para Leach,
Todas as estórias que ocorrem na Bíblia são mitos para o cristão
devoto, quer correspondam aos fatos históricos ou não. Todas as
sociedades humanas têm mitos nesse sentido e, normalmente, os
mitos aos quais se maior importância são aqueles que têm menos
possibilidades de realização. A não racionalidade do mito é a sua
verdadeira essência, pois a religião exige uma demonstração de fé
que se faz suspendendo-se a dúvida crítica. (LEACH, 1983, p. 57)
93
Com isso, a construção do mito e a sua perpetuação se dá na medida em que
ele vem a se constituir em uma narrativa pouco ou nada racionalizada. Questioná-lo
é romper com a organização a qual estamos submetidos. Ele nos mantém de forma
ordeira, submetidos a um rigor disciplinar que, ainda que legalmente livres,
psicologicamente nos encontramos atados. Foucault afirma que, “a disciplina é um
princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de
uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”
(FOUCAULT, 1996, p. 36). Portanto, a pregação da vida eterna nos céus é, sem
dúvida, um discurso de manutenção e reatualização das regras que resultam
disciplinar a todos os que comungam da ordem religiosa a qual pertencem. Vemos
assim, como nos é difícil abster de uma construção social que nos direciona a ver o
mundo sob uma ótica que não necessariamente precisaríamos. Saramago enfim,
passeia com as suas idéias em suas obras deixando que cada leitor construa as
próprias num diálogo constante entre autor, narrador, personagens e leitor. Não
necessariamente nesta ordem.
4.4. CONFRONTANDO OS NOSSOS MEDOS
Duas facetas nos chamam a atenção ao analisarmos a obra de Saramago: se
por um lado a morte causa no homem uma forte angústia, por outro a morte ressalta
a capacidade que este mesmo homem tem em confrontá-la. Observamos que, ao
fazer uso da religião, a humanidade encontrou um caminho que viesse a amenizar o
terrível medo proporcionado pelo conhecimento de que irá morrer. Apegando-se a
uma crença que o imortaliza, o ser humano suaviza então a chegada do não
esperado fatídico dia. O dia da própria morte. Ao depositar as suas forças neste
instrumento de confronto, a religião, ele consegue viver acreditando que parte de
seus medos está superada. No México, por exemplo, a festa católica do dia dos
mortos, demonstra como as pessoas daquele país realizam o seu confronto com a
morte. Ao levarem comidas aos cemitérios, ao participarem com todos os seus
familiares dos festejos do dia de finados, ao se lembrarem do morto de modo que a
sua comida preferida seja levada e depositada no dia da festa, cria a sensação da
imortalidade tão desejada pela humanidade. No entanto, as manifestações do povo
94
mexicano não param por aí, ao reverenciarem a santa morte como uma santa
protetora, uma santa que sorte, eles conseguem ter uma relação com a morte de
maneira diferenciada. Isso não significa que haja o desejo de morrer ou que o medo
da morte não se faça presente. A questão é que a relação com a morte se de
maneira mais proximal. A santa morte passou a ser uma amiga, uma protetora e não
uma assustadora e terrífica presença. Tal adoração no México é, em verdade, a
manifestação do pavor que carregamos ao saber que iremos morrer. Vale salientar
que tal fenômeno de adoração a santa morte se expande principalmente num grupo
social que está sempre mantido no limiar entre a vida e a morte, que são os
narcotraficantes. Logo, tal adoração se constitui num grande amuleto, numa grande
barreira edificada com o objetivo de manter distante o mal que aflige a humanidade
e, em forte contradição, mantê-lo próximo na forma de santa que representa este
mesmo mal, como uma maneira de amenizar tamanho sofrimento interior.
Mas essa meditação sobre a morte, pelo próprio fato de pretender,
como Montaigne o disse tão bem, dela se “avizinhar”, manifesta uma
vontade de domá-la”, de assegurar sobre ela um certo domínio,
tirando-lhe, desse modo, seu caráter de pura possibilidade.
(DASTUR, 2002, p. 82-83)
Algo assim tão excepcional poderia se constituir na mente humana. Por
anos e anos esta luta infinita se veste e reveste de características cada vez mais
diversas e fascinantes. Com efeito, percebemos o quanto que a religião depende da
morte para que assim se mantenha viva. Sem morte não igreja. Em As
intermitências da morte, essa necessidade da igreja cristã de que haja a morte para
com isso manter-se viva, fica clara no fragmento abaixo, quando o cardeal mantém
um diálogo com o primeiro-ministro:
(...) o próprio cardeal já havia apontado o dedo ao busílis que
significaria esta versão teológica da quadratura do círculo quando,
na conversação telefónica com o primeiro-ministro, admitiu, ainda
que por palavras muito menos claras, que se se acabasse a morte,
não poderia haver ressurreição, e que se não houvesse
ressurreição, então não teria sentido haver igreja. (SARAMAGO,
2005,36)
95
Portanto, essa idéia de vencer a morte entre os cristãos o é fato recente. A
própria convicção do Cristo ressuscitado é uma forte marca criada pela humanidade
e que um amplo poder religioso, ao criar certezas sobre fatos improváveis de
acontecer. Contudo, tais acontecimentos presentes no mundo místico acabam por
acalentar as esperanças das pessoas e fortalecem as suas convicções na vida
eterna. Menos crente que muitas pessoas, Saramago afirma a Juan Arias:
O que é evidente para mim é que quando a humanidade acabar,
não haverá mais Deus, porque não haverá ninguém para dizer a
palavra de Deus ou para nele pensar. (...) Do meu ponto de vista de
ignorante de todas as coisas do mundo, e principalmente de todas
as coisas do céu, somente um lugar onde existe Deus e o diabo
e o bem e o mal, que é a minha cabeça. Fora da cabeça do homem,
não há nada. (ARIAS, 2003, p. 100)
Por esta fala de Saramago, notamos que o escritor dá uma chinelada em tudo
o que constitui o pensamento construtivo da existência de Deus e, por conseguinte,
da igreja católica, tão amplamente criticada por ele. Ao ampliarmos o seu
pensamento, chegaremos à conclusão de que Deus é criação da mente humana e
que o homem necessita menos de Deus do que ele pensa. Deus, neste caso, é
quem mais precisa do homem para que se mantenha existindo. Por outro lado, se
Deus é uma criação da mente humana não podemos deixar de considerar esta
grande invenção da humanidade. Deus saiu da mente tomou forma e passou a ditar
a conduta das pessoas. A santa morte no México também deixou esta mesma
mente e passou a ter uma forma corpórea com a qual os seus adoradores se
identificam e a adoram. Saramago ainda diz mais em sua entrevista:
A capacidade que tem o ser humano de construir sobre o nada é
incrível. Sim, como você dizia, acho que foi a humanidade que
inventou os deuses de que foi necessitando a cada momento, por
isso todos os deuses são históricos. Amanhã, daqui a mil anos, o
Deus de hoje acabará, e não saberemos o que se inventará então.
(ARIAS, 2003, p. 101)
96
Assim sendo, a cada momento estamos criando e recriando os nossos
deuses segundo as nossas necessidades, segundo os nossos medos. A cada
momento histórico o ser humano cria as suas divindades no intuito de estabelecer
com ela uma relação de segurança. Ou seja, à mercê de sua finitude o homem se
ampara em suas criações religiosas para nelas se agarrarem. É claro que não
podemos deixar de considerar como uma estratégia de sucesso. A vitória desta
invenção está no fato dela se auto-sustentar. O seu alicerce é edificado de modo
que sua estrutura sempre se mantenha firme. E a firmeza que mantém a estrutura
religiosa está na sua base que é a morte. E no caso específico do cristianismo a
ressurreição de Cristo é sem dúvida o seu indestrutível fundamento. De Cristo
nasceu tudo o que se derivou chamar de cristianismo.
É a todos os respeitos deplorável que, ao redigir a declaração que
acabei de escutar, o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado
daquilo que constitui o alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a
chave de abóboda da nossa santa religião, Eminência, perdoe-me,
temo não compreender aonde quer chegar, Sem morte, ouça-me
bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não ressurreição, e
sem ressurreição não igreja, Ó diabo, não percebi o que acaba
de dizer, repita, por favor, (...) Dizia o que qualquer católico, e o
senhor não é uma excepção, tem obrigação de saber, que sem
ressurreição não há igreja.(SARAMAGO, 2005,18)
Portanto, não tendo como matar a Deus o escritor, no seu realismo
maravilhoso, retira a morte de cena e então tudo se desmorona como numa fileira de
dominós, quando derrubada a primeira peça. Como toda a construção necessita de
uma base e colunas de sustentação, as religiões são edificadas sob a morte. É a
morte que as sustenta, é com a morte que são erigidas. Entretanto, é importante
observar que toda essa ideologia religiosa se constrói desde criança. São as
crianças que darão continuidade à crença que lhes se incutida. Para Bacon, “o
costume é mais perfeito quando tem origem nos primeiros anos de vida: é o que
chamamos educação, que, com efeito, não passa de um costume cedo adquirido”
(BACON apud THOMPSON, p. 14). Cedo, as crianças são educadas a temer a
morte e a encontrar na religião a segurança necessária. Na bíblia, várias são as
97
passagens que fundamentam esta afirmação. Jesus Cristo, por exemplo, disse
13
que
as crianças deveriam ir até ele por ser delas o reino dos céus. Porém, como
sabemos o reino dos us não está localizado no mundo dos vivos, mas sim no
mundo dos mortos. As crianças são, então, a continuidade ideológica desta
dicotomia chamada mundo dos vivos e mundo dos mortos. Entre céu e terra. Entre o
mundo dos homens e a casa de Deus. Esta blindagem que nos é posta desde
crianças atua como uma proteção contra o nosso maior conflito. Contra o nosso
maior adversário. Necessitamos de algo que nos possa confortar da certeza de que
iremos morrer. A religião é um desses instrumentos. Porém, é um dos mais eficazes,
senão o mais eficaz que temos conhecimento.
Outra maneira encontrada para coibir a presença constante deste pavor é o
manter ausente o que nos faz sentir a morte, a saber, o próprio morto. Nós, os
homens, sentimos a morte na morte do outro. Assim, a sociedade tem buscado e
encontrado maneiras de fazer com que a presença do morto não mais seja
necessária nos ritos funerários. O desfile fúnebre, a despedida social do agora ex-
morador local deixou de ser um evento das cidades. Cidades estas que não tem
mais tempo para tão lenta despedida. O ritmo frenético dos automóveis impossibilita
a lentidão que a passagem do defunto provoca. Além disso, os mortos deixam cada
vez mais de ser velados em suas casas e passam a ser homenageados em lugares
em que o capital condicionou ser apropriados para tal acontecimento. A morte
definitivamente não pode e nem deve fazer parte desta nova sociedade em que a
beleza prevalece e tudo aquilo que não é agradável ou belo, deve ser descartado.
Exceção tão somente para pessoas que detêm um grande apresso público e para
tanto, necessitam de uma despedida em grande estilo a exemplo de políticos,
artistas, líderes religiosos, entre outros. Ariès discute isto em sua obra.
Uma forma absolutamente nova de morrer surgiu durante o século
XX, em algumas das zonas mais industrializadas, urbanizadas e
tecnicamente adiantadas do mundo ocidental e, sem dúvida,
estamos presenciando apenas seus primórdios. (...) A sociedade já
13
A passagem encontra-se no livro de Mateus 19:14. BÍBLIA. Português. A Bíblia da Mulher.
Tradução de Neyd V. Siqueira et al. São Paulo: Mundo Cristão e Sociedade blica do Brasil, 2003.
1728 p.
98
não faz uma pausa: o desaparecimento de um indivíduo não mais
lhe afeta a continuidade. Tudo se passa na cidade como se ninguém
morresse mais. (ARIÈS, 1990, p. 613)
E ele acrescenta:
(...) a sociedade expulsou a morte, salvo a dos homens de Estado.
Nada mais anuncia ter acontecido alguma coisa na cidade: o antigo
carro mortuário negro e prateado transformou-se numa limusine
banal cinza, que passa despercebida no fluxo da circulação. (idem,
ibidem, p. 613)
De maneira alegórica, Saramago também adverte para tal fato. Como as
pessoas não mais morriam, muitos viviam agonizando, viviam em constante
sofrimento e não conseguiam ter as suas dores aliviadas com a própria morte. Numa
família citada Em intermitências da morte, o patriarca e o seu neto seguem no limite
entre a vida e a morte. A morte não os alcança o que gera um conflito familiar
intenso visto que os familiares sabiam que do outro lado da fronteira a morte seguia
matando. O quê fazer então? A idéia então é levar a ambos para o outro lado da
fronteira para ali morrerem e ali fossem enterrados. Por outro lado, era preciso que
as pessoas do lugar não notassem aquilo que iria ocorrer. A população local
suspeitava que algo estivesse para acontecer. Portanto, era preciso ter certeza que
nada sairia errado. Então, todos resolvem sair quando a cidade dorme em silêncio, à
meia-noite. Ao chegarem próximo à fronteira, se despedem. O ae o seu pequeno
neto são postos lado a lado em uma cova, que foi muito bem apilada para que
ninguém a encontrasse. Esta tem sido uma das maneiras que a sociedade
encontrou de não expor o morto à cidade. Se não morto, a morte não se faz
presente. Atualmente, vemos as lojas funerárias cada vez mais oferecendo os seus
serviços com discrição. Tais empreendimentos empresariais estão se
metamorfoseando como se fossem espaços de eventos ou em requintados
ambientes, no intuito de não expor o seu real serviço que é tão antigo quanto à
própria existência do homem. Ou seja, o de enterrar pessoas.
99
Outra forma engendrada em confrontar a morte é a de não dar a ela a sua
devida notoriedade. As pessoas não querem mais falar sobre a morte. Não querem
mais vê-la. Tampouco, anunciá-la. Contudo, esse fenômeno não é recente. Um
conto de Liev Tolstói reflete muito bem esta forma social de esconder a morte. No
conto, um marido se em uma situação de aflição por não querer informar à sua
esposa que ela irá morrer. Para ela não mais saída. A tuberculose afeta os
seus dois pulmões. Contudo, o marido tenta poupar-lhe de tão horrenda informação
que podeacarretar prematuramente a morte da esposa. Sem coragem o marido,
encontra na prima da mulher uma aliada para dar-lhe a triste notícia. É assim que
tem agido a sociedade. Ela vem omitindo aos seus a notícia derradeira. De outra
maneira, quando guerras, desastres naturais ou acidentes fatais, os mortos m
sendo transformados em números. Não é mais João, filho de Maria, primo de José.
João é tão somente um número. Um dado estatístico. João não foi criança, não teve
uma infância feliz, não brincou, não viveu, não tem referências. Para Saramago:
Agora a morte não se vê, os mortos são levados ao necrotério e
desaparecem. Quanto menos forem vistos, mais à vontade sentir-
se-á a sociedade que conseguiu ocultá-la para que não
incomodasse. Mas ela continua ali, com sua força inescapável.
(ARIAS, 2003,64-65)
Portanto, significa dizer que estamos tentando camuflar a maior certeza da
vida. A nossa existência está diretamente relacionada com o nosso
desaparecimento. A nossa finitude é o que realmente temos de concreto. Todos
iremos morrer. Logo, podemos afirmar que estamos diante de uma luta inútil. Iremos
perecer, um dia. Todos.
A filosofia, ciência que tem como pedra de toque a morte, constitui-se também
como uma grande forma de conhecimento que auxilia o ser humano a confrontar-se
com a morte. Schopenhauer dirá que “A morte é o gênio inspirador, a pedra de
toque da filosofia... sem ela dificilmente se teria filosofado. Nascimento e morte
pertencem igualmente à vida e contrapesam-se” (SCHOPENHAUER, 1943, 59). Em
As intermitências da morte, os filósofos começam a entoar suas preocupações ante
o desaparecimento daquilo que faz da filosofia a mãe de todas as ciências, a saber,
100
questionar a morte e o morrer. Perguntar de onde viemos e para onde vamos,
deixaria em parte, de estar no rol dos questionamentos infindáveis da vida. Em parte
porque o perguntar de onde viemos continuaria a estar presente na consciência
humana.
E nós, perguntou um dos filósofos optimistas em um tom que parecia
anunciar o seu próximo ingresso nas fileiras contrárias, que vamos
fazer a partir de agora, quando parece que todas as portas se
fecharam, Para começar, levantar a sessão, respondeu o mais velho,
E depois, Continuar a filosofar, que nascemos para isso, e ainda
que seja sobre o vazio, Para quê, Para quê, não sei, Então porquê,
Porque a filosofia precisa saber que morreremos, monsieur de
Montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer.
(SARAMAGO 2005,38)
Portanto, diferentemente dos religiosos que passaram a contemplar o fim de
suas crenças, os filósofos reagem com preocupação, contudo entendem que seria
necessário manter os questionamentos uma vez que tais interrogações são a
essência deles, fazem parte deles e é o que eles acreditam. Nota-se que ao
contrário dos religiosos que “em realidade não acreditam na vida eterna”
(SARAMAGO, 2005,36), os filósofos se vêm compelidos a seguir pensando naquilo
que crêem. Roberto DaMatta assevera:
A morte, parece-me, é um problema filosófico e existencial moderno.
Mas não é assim nas sociedades tribais e tradicionais, em que o
indivíduo não existe como entidade moral dominante e o todo
predomina sobre as partes. Aqui o problema não é bem a morte,
mas os mortos. (DaMatta, 1991, 143-144)
DaMatta equivoca-se nessa sua afirmativa em alguns pontos. Primeiramente,
a morte não é um problema filosófico existencial moderno. Desde a Grécia antiga
vemos a filosofia questionando a morte, o morrer, a vida após a morte. Além disso, a
morte é uma experiência individual. Ela deixa de ser social na medida em que um
indivíduo não a passa a outro. Logo, esta pode ser experimentada de forma
individualizada tão somente. O que nos resta aos vivos é perceber a morte na morte
101
do outro. Agora, questões como a banalização da morte, a perda da crença na vida
pós-morte esta sim, se configura um problema da modernidade e da pós-
modernidade. Faraós buscavam na mumificação vencer a morte. Jesus Cristo
para o cristão representa a vitória sobre a morte. E várias sociedades sempre
encontraram e ainda encontram um meio de superar esta angústia. Assim sendo, é
necessário chamar a atenção das pessoas para os temas que o dia-a-dia tende a
esquecê-los. Conseqüentemente, sempre surgem aqueles que, preocupados com
estes temas, os reavivam para que nossas memórias sempre se mantenham vivas e
nossas reflexões, constantes.
Sendo assim, os textos de Saramago são suas inquietações compartilhadas
com o seu leitor. Além disso, ele confirma e reafirma em As intermitências da morte
o que a filosofia compreende como a maior das angústias do ser humano visto que,
em pleno Séc. XXI, o homem ainda não se livre desse incômodo eterno. E nisso
resulta aquilo que será sempre eterno, ou seja, a certeza de que um dia o ser
humano irá morrer. Pois,
Estar morto, eis em que consiste precisamente a tarefa do filósofo e,
como é dito explicitamente por Platão em uma fórmula que
anuncia Montaigne: “Aqueles que filosofam, no sentido exato da
palavra, se exercitam para morrer e não no mundo homem que
tenha menos que eles, medo de estar morto” (Fédon,67,e); Trata-se
para estes de se aplicar ao longo de sua vida em separar sua alma
de seu corpo, isto é, de se exercitar propriamente para morrer (81ª).
Essa preparação para a morte em si é o acesso à imortalidade.
(DASTUR, 2002,33-34)
Ou seja, assim como a religião, a filosofia exerce o seu papel social ao
auxiliar o indivíduo no seu exercício mental para o morrer. nesta consciência
humana de que um dia morrerá um desprendimento muito grande de energia que
somente através de um exercício proporcionado seja pela filosofia, seja pela religião,
contribuirá para atenuar o desgaste provocado por tal consciência. Schopenhauer
adverte para o fato de que “exigir a imortalidade do indivíduo é querer perpetuar um
erro até o infinito” (SCHOPENHAUER, 1943,60) e ele ainda diz: “No fundo, toda a
individualidade é um erro especial, um equívoco, alguma coisa que não deveria
102
existir” (SCHOPENHAUER, 1943,60). Mas não somente isso. Em As intermitências
da morte, outras conseqüências advêm como resultado dos frutos produzidos pela
eternidade:
(...) multidões de pais, avós, bisavós, trisavós, tetravós, pentavós,
hexavós, e por ahí a fora, ad infinitum, se juntarão, uma atrás de
outra, como folhas que das árvores se desprendem e vão tombar
sobre as folhas dos outonos pretéritos... do formigueiro interminável
dos que, pouco a pouco, levaram a vida a perder dentes e o cabelo,
das legiões dos de má vista e mau ouvido, dos herniados, dos
catarrosos, dos que fracturaram o colo do fémur, dos paraplégicos,
dos caquécticos agora imortais que não são capazes de segurar
nem a baba que lhes escorre do queixo, vossas excelências,
senhores que nos governam, talvez não nos queiram crer, mas o
que aí nos vem em cima é o pior dos pesadelos que alguma vez um
ser humano pôde haver sonhado. ...é certo que então tudo era em
ponto pequeno, mas para alguma coisa a imaginação nos haveria
de servir... antes a morte, ... antes a morte que tal sorte.
(SARAMAGO, 2005, 32)
Portanto, não nascemos para agüentar a dor e o sofrimento por muito tempo.
Nascemos para completar um ciclo de vida que deverá ser constante. O nosso
entendimento de vida não pode estar restrito tão somente à nossa vida, mas sim à
vida dos que se foram e à vida dos que virão. A essência da vida está justamente no
fato de que esta não deve e não pode restringir-se tão somente ao indivíduo. Ela
deve ser uma essência para a humanidade. O indivíduo, tão inexplicavelmente
escolhido para existir, precisa estar ciente de que um dia ele deverá ceder espaço
para que outros, assim como ele, possam ter o prazer de ser um ser em sociedade.
Então, o morrer se configura num forte aliado que extirpa desta mesma sociedade
um mal inerente ao homem a saber, o seu individualismo. É vedada ao homem a
manutenção desta individualidade que é uma de suas fortes características
negativas. Por outro lado, essa consciência de morte acaba por libertar este mesmo
homem afim de que este seja criativo para a vida. Ele precisa neste seu curto tempo
de vida, certo de que irá morrer, construir um mundo organizado e melhor para o seu
eu que estará no outro; no seu descendente.
103
4.5. FILOSOFAR COM ARTE
Dois bons filmes nos chamam a atenção pela forma como ambos abordam a
temática da morte e da imortalidade humana. São eles À espera de um milagre e O
homem bicentenário. À espera de um milagre é um filme que foi dirigido por Frank
Darabont e é uma adaptação do romance de Stephen King. Os fatos narrados neste
filme estão ambientados nos Estados Unidos dos anos trinta do século XX. Nele, um
enorme negro chamado John Coffey é condenado à pena de morte por ter sido
acusado de haver matado a duas crianças gêmeas e brancas de forma brutal.
Coffey, durante o período em que se encontra preso, não demonstra nenhum
comportamento agressivo e, além disso, carrega consigo um dom muito especial. O
filme, que tem como ator principal Tom Hanks que interpreta o personagem Paul
Edgecomb, que é chefe da carceragem do presídio, entre as suas várias discussões
retrata também o quanto a longevidade é para o homem um enorme desconforto.
Paul Edgecomb conta a uma amiga algo que lhe aconteceu quando ele trabalhava
como chefe da carceragem e responsável pelo corredor da morte. O seu objetivo era
o de conduzir os condenados pela grande milha verde, um corredor que tinha o piso
pintado de verde e que era o caminho para a cadeira elétrica: lugar em que os
presos seriam executados. É nessa carceragem que se encontra o negro Coffey.
John Coffey é um brutamonte calmo que demonstra ser incapaz de causar mal a
ninguém e que ainda tem medo do escuro. Com o tempo, esse negro cativa aos
responsáveis pela carceragem, inclusive a Edgecomb. À sua amiga, Edgecomb
afirma ter 110 anos e não sabe por quanto tempo mais irá viver. Ele e o seu ratinho,
amigos inseparáveis, receberam de Coffey o dom da longevidade antes que o negro
fosse executado na cadeira elétrica. Por possuir tal dom, Edgecomb pôde ver a
vários amigos morrerem bem como à sua grande amiga e o amor de sua vida: a sua
esposa. Tal longevidade começa a incomodá-lo visto que ele não sabe por quanto
tempo mais viverá. Por quanto tempo terá que ficar vendo a morte do outro
enquanto ele se mantém vivo e envelhecendo.
O outro filme, O homem bi-centenário, está também baseado em uma obra
literária. Trata-se de um livro de contos escrito por Isaac Asimov que em seu original
se chama The positronics man. O filme, estrelado por Robin Wiliams e dirigido por
104
Chris Columbus, conta a história de um robô que desejou ser humano. Por 200 anos
o robô, um NDR-114 comprado pela família Martin para executar tarefas domésticas,
busca realizar o seu desejo, a saber, de igualar-se ao homem, de tornar-se humano.
Por meio de seus esforços Andrew, o robô, aprende o que pode sobre a
complexidade humana relacionada à vida e ao amor. Ele aprende a chorar, a sorrir,
a amar. Andrew desenvolve um talento artístico ao fazer esculturas em madeira e a
criar relógios diversos. Tudo isso se passa por dois séculos, tempo suficiente para
que o robô perceba que o pode ter as características humanas relativas ao
envelhecimento e à morte. Ainda estando atrelado à família, é por meio de Portia,
neta de Little miss, que Andrew compreende que a real diferença existente entre ele
e o homem está no fato de haver na humanidade a consciência de que um dia irá
morrer. Todos com os quais o robô tem contato morrem, exceto ele. A mortalidade é
algo que já nasce com o homem. E a consciência de que irá morrer se desenvolverá
no ser humano e o acompanhará até o dia da sua morte. É quando no final do filme,
o robô tem a sua jornada chegada ao fim ao desaparecer como todo ser mortal e
assim Andrew possui o que de fato, nos torna humanos. Andrew morre.
Ainda que os dois filmes possam abarcar outros questionamentos, outras
discussões, um tema central pode ser extraído deles: a consciência e necessidade
da finitude humana. Assim como as Intermitências da morte, podemos notar nas
duas obras anteriores o profundo questionamento sobre o homem e a sua
percepção da morte. Logo, vemos a arte em suas diversas linguagens contribuindo
para auxiliar o homem neste que é o seu maior embate. Ao saírem dos textos
literários e invadirem as telas dos cinemas, tanto À espera de um milagre como O
homem bicentenário, conseguem alcançar um maior universo de pessoas,
expandindo assim um número maior dos que irão refletir sobre o assunto. Portanto,
notamos o quanto as diversas linguagens podem comungar em um tema e ajudar ao
homem a lutar contra os seus temores. É assim também em As intermitências da
morte. A arte faz-nos ver também o quanto ela é representativa ao imortalizar o
criador. Inúmeras obras conhecidas na atualidade, muitas delas feitas a mais de dois
mil anos atrás, foram importantíssimas para eternizar os seus criadores. Odisséia,
As mil e uma noites, Os lusíadas, Don Quixote de La Mancha, Monalisa, A nona
sinfonia de Beethoven, Dom Casmurro, são alguns exemplos de obras que
eternizaram os seus autores ou por eles foram eternizadas. Em As intermitências da
105
morte, podemos observar muito bem essa relação entre a morte e a arte de modo
que na segunda parte do romance há por parte da morte uma forte preocupação por
não conseguir matar o violoncelista. O ilustre desconhecido, que tem como
companheiro um simples cão, não é atingido pelo envelope de cor violeta que a
muitas outras pessoas têm causado uma grande perturbação por informar o dia em
que estas irão morrer. Logo, se não bastasse o saber que um dia deixaremos esta
vida, todos passam a ter conhecimento do derradeiro dia. Mas, o violoncelista
parece não estar atento ao que acontece ao seu redor. Pessoas deixaram de morrer
e agora são avisadas que irão morrer. No entanto, o violoncelista vive normalmente
a tocar o seu instrumento musical. Vive na solidão do artista que ensaia a perfeição
da sua arte. Ele não percebe a morte. A morte o visita, vai a sua casa, o observa
com atenção e ele não se conta da sua presença. Talvez, os sete meses de
ausência da morte tenha feito com que o artista não visse mais a morte na morte do
semelhante. Ou então, tão absorto em sua atividade artística, não tivesse tempo
para nela pensar. A morte não alcançava o violoncelista.
Se a morte havia sonhado com a esperança de alguma surpresa
que a viesse distrair dos aborrecimentos da rotina, estava servida.
Aqui a tinha, e das melhores. A primeira devolução poderia ter sido
resultado de um simples acidente de percurso, um rodízio fora do
eixo, um problema de lubrificação, uma carta azul-celeste que tinha
pressa de chegar e se havia metido adiante, enfim, uma dessas
cousas inesperadas que se passam no interior das máquinas que,
tal como sucede com o corpo humano, deitam a perder os cálculos
mais exactos. (...) Entre ir e vir, a carta não havia demorado mais
que meia hora, provavelmente muito menos, dado que já se
encontrava em cima da mesa quando a morte levantou a cabeça do
duro amparo dos antebraços, isto é, do cúbito e do rádio, que para
isso mesmo é que são entrelaçados. (SARAMAGO, 2005, p. 140)
A morte não pode entender o que se passa. Até o presente momento jamais
teve uma ordem sua desfeita. A ela nunca ser humano nenhum ousou
desrespeitar até aquele presente momento. Ela olha as listas mortuárias no afã de
encontrar o nome do violoncelista... Era tudo em vão. Não poderia ser possível que
alguém que deveria estar morto a dias, ainda continuasse vivo. Desde quando a vida
passou a existir a morte nunca havia falhado em sua atividade. A morte foi, é e
106
sempre será suprema. No entanto, algo seguia errado. Era importante ver
“pessoalmente” o que estava acontecendo. A morte resolve visitá-lo.
A porta está aberta, a penumbra, não obstante ser mais profunda
que a da sala de música, deixa ver uma cama e o vulto de alguém
deitado. A morte avança, cruza o umbral, mas detém-se, indecisa,
ao sentir a presença de dois seres vivos no quarto. Conhecedora de
certos factos da vida, embora, como é natural, não por experiência
própria, a morte pensou que o homem tivesse companhia, que ao
seu lado estaria dormindo outra pessoa, alguém a quem ela ainda
não havia enviado a carta de cor violeta, mas que nesta casa
partilhava o conchego dos mesmos lençóis e o calor da mesma
manta. Aproximou-se mais, quase a roçar, se tal cousa se pode
dizer, a mesa-de-cabeceira, e viu que o homem estava só.
(SARAMAGO, 2005, p. 150)
A morte fica ali a observá-lo. Ele respira e ela ao vê-lo detidamente pensa que
aquele homem deveria estar morto. Contudo, a morte não se sente mais
apreensiva. Ela observa. Atentamente olhando o interior do quarto uma
partitura em que estava escrita a nona sinfonia de Beethoven.
Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte
deixou-se cair de joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma
cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não
se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem
sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas que
nenhuma delas que seja sua.(SARAMAGO, 2005, p. 153)
A rainha dos sofrimentos da humanidade deixou-se envolver pela beleza da
arte e cada vez mais se deixava também envolver pela natureza humana. Assim, ela
o analisa e quanto mais o observa, mais por ele se encanta. Percebemos então
como a arte pode unir algo tão antagônico como a morte e o homem. O ser humano
vive a rechaçar de si o pensamento de proximidade da morte. Ele não a suporta e
por isso a repugna. Portanto, a sua personificação em mulher que se apaixona e é
correspondida pode, alegoricamente, levantar a hipótese de que o homem deve, em
lugar de odiar, amá-la. Segundo Dastur,
107
Não vida humana durável a não ser na medida em que esta
mantém o respeito pela morte, o que exige sua “banalização”, e eis
aí, sem dúvida, o que distingue fundamentalmente, no final das
contas, o homem do animal, pois este não tem necessidade do
domar a morte nem de ajustar-se a ela, precisamente porque vive
uma vida absolutamente vivente, pela qual o ser humano pode
experimentar nostalgia, mas que nela não saberia tomar parte.
(DASTUR, 2002, p. 77)
Logo, como humanos, vivemos a alegria de a cada dia poder estar vivos,
porém, concomitantemente, cada dia a mais é um dia a menos no calendário da
vida. Em As intermitências da morte, podemos observar, somente o homem é
assolado duplamente: pela ausência da morte e posteriormente pelo seu retorno.
ao homem esta certeza é devassadora. Contudo, este mesmo homem com a sua
inteligência é capaz do domá-la. Enquanto isso, no romance, a morte segue o
violoncelista sem antes por em ordem toda a demanda das cartas violetas que
deverá enviar. Na casa do artista ela o observa.
A morte olha o violoncelista. Por princípio, não distingue entre gente
feia e gente bonita, se calhar porque, não conhecendo de si mesma
senão a caveira que é, tem a irresistível tendência de fazer aparecer
a nossa desenhada por baixo da cara que nos serve de mostruário.
No fundo, no fundo, manda a verdade que se diga, aos olhos da
morte todos somos da mesma maneira feios, inclusive no tempo em
que havíamos sido rainhas de beleza ou reis do que
masculinamente lhe equivalha. (SARAMAGO, 2005, p. 170)
Significa dizer que a morte não faz acepção de pessoas. Ela nos nivela por
igual. Seja rico ou pobre, negro ou branco, gordo ou magro, reis ou súditos, todos
estamos fadados a morrer. E assim ela, a morte, segue observando atentamente o
artista que em sua casa, tendo como companheiro o seu amigo o cachorro, resolve
tocar uma de suas melodias preferidas. A morte toma uma decisão: irá acompanhar
mais proximamente o violoncelista. Ela autoriza a sua gadanha a enviar as cartas de
cor violeta e vai, vestida de mulher e de óculos escuros, encontrar-se com o
violoncelista pessoalmente. Ela toma um táxi e se dirige ao teatro em que ele atua
sem deixar de ter em mãos uma correspondência a ser entregue pessoalmente. A
sensação que se tem ao fazermos esta leitura é a de que somos constantemente
108
seguidos pela morte ou de que ela esteja a nos espreitar diariamente. Dastur ao citar
Heidegger dirá que nós somos um ser para morte. Estamos vivos, porém com uma
existência em direção à morte. A filosofia, as artes ou a religião, por exemplo,
constituem-se num anteparo muito bem desenvolvido para amortecer o homem
desta verdade absoluta. Pois, se uma verdade dita absoluta é a de que todos
caminhamos para a morte. Segundo Dastur:
(...) o morrer é uma definição do que é a vida humana, em outras
palavras, um “existir a morte” ou uma mortalidade. No sentido mais
exato, só os homens são “mortais”, pois só eles são “capazes” de se
referir à sua própria morte e de fazer “existir”, assim, a morte.
(DASTUR, 2002, p. 77)
Existimos, portanto, para a morte e para ela seguimos porque também a ela
fizemos existir. Saramago, neste seu romance cria uma alegoria no intuito de fazer
com que não nos esqueçamos disto. Ele adverte também em As intermitências da
morte, logo no início do romance, para uma prática que tem sido muito comum nos
meios de comunicação, ou seja, a banalização da morte. Os mortos expostos por
acidentes, por enfermidades, por causa da violência em geral. Em conseqüência,
nos acostumamos a ver e a não nos incomodar com o que realmente nos faz pensar
e repensar o nosso existir. O escritor se preocupa em mostrar ao seu leitor a
importância de se lidar com a morte e a necessidade de que haja um constante
refletir sobre o assunto. É preciso que nos afrontemos permanentemente com o fato
de que estamos para a morte. É com ela que devemos nos confrontar sempre.
A morte se banaliza para ocultar a sua realidade. Até os mortos
reais que aparecem na televisão, pelo fato de aparecerem na
televisão, tornam-se de certo modo irreais. Se você nunca se
afrontar diretamente com a morte, neste caso a morte do outro,
nunca saberá o que é. (SARAMAGO, 2005, p. 64)
O violoncelista parece não perceber com quem ele es prestes a lidar. A
morte o vê desde o alto no teatro e o admira. Ao tomar a forma humana, ela também
passa a sentir sentimentos que são tipicamente humanos e que são, ao ser humano,
109
o seu instante de viver sem que por um momento lhe venha ao pensamento a idéia
de morte. A paixão e o amor constituem mecanismos que nos fazem sentir a vida em
toda sua intensidade. Estando a morte em sua forma humana, desfrutará ela o que
também nos faz humanos. Vemos então que Saramago cria uma importante
interseção entre a literatura, o realismo maravilhoso e a filosofia. Com o seu ofício
de escritor, por meio da palavra, se utiliza do realismo maravilhoso para filosofar
com o seu leitor. Ele dialoga sobre a morte que é um tema extremamente denso e
difícil de ser discutido. Em geral, queremos empurrar este assunto para um lugar de
onde ele não possa sair. E não é isso o que Jo Saramago faz. Ele nos expõe
frente a frente com a morte, da mesma forma que ele, ao escrever, se defronta. Com
efeito, vê-se o leitor compelido a refletir sobre toda essa problematização presente
no romance, compartilhada pelo escritor, que contribui assim na constituição de
milhares de leitores-filósofos que passam a ver a morte como algo inerente à vida,
algo imprescindível à vida aporque é a humanidade que deve ser eterna, não o
indivíduo.
A morte torna-se cada vez mais humana, se deixa envolver pelo prazer que
por milhares de anos a humanidade experimenta e desfalece num sono profundo,
mas antes, ela destrói a carta de cor violeta que por muito tempo a acompanhou e
que tinha por destinatário o artista, o violoncelista. “No dia seguinte ninguém morreu”
(SARAMAGO, 2005, p. 207). A arte não morre! O artista nela se eterniza ou ela o
eterniza. uma cumplicidade entre autor e obra. A literatura enquanto linguagem é
que funciona como uma ponte entre a nossa ignorância e o conhecimento da nossa
finitude.
110
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Transitamos um pouco nestas práticas romanescas, como o fantástico, o
estranho e o maravilhoso, observando que a arte, mais especificamente a literatura,
desenvolve formas de interpretação do maior de todos os medos. Nos primeiros dois
capítulos, aprofundamo-nos na explicação destas três práticas no intuito de poder
torná-las mais compreensíveis ao leitor, uma vez que a linha que as separa é,
segundo vários autores, muito tênue.
Percebemos que o romancista encontrou uma maneira de discutir a realidade
usando para isso a sobre-realidade para falar dos problemas e das angústias que,
através dos séculos, vêm atormentando o homem. A literatura ajuda a tornar o medo
da morte mais suportável. Por meio das mentiras literárias, tão bem explicadas por
Mario Vargas Llosa, nos defrontamos com as verdades da vida e, assim, o ficcional
passa a ser uma maneira de fazer-nos enxergar a realidade com uma maior clareza.
As intermitências da morte discute a vida sem que a morte esteja presente. O
que antes se configurava em apenas breves passagens nos romances de
Saramago, converteu-se em tema central com alto teor de reflexão. Para tal, valeu-
se o autor do realismo maravilhoso criando um ambiente em que o sobrenatural e o
real se harmonizam, mantendo um equilíbrio estável em que personagens, narrador
e leitor não estranham ou hesitam diante dos fatos narrados. Por meio desta prática
literária e de uma forma narrativa única, Saramago torna a morte mais suportável,
menos desconhecida, atenuando o medo que ela provoca e assim ele a enche de
vida ao personificá-la, ao torná-la viva. Verificamos, contudo, que Saramago foi
construindo toda esta discussão entorno da morte em diversas de suas obras. Ele,
aliás, afirmou que é sobre a morte que devemos falar a fim de que a vida possa
ser sentida em toda a sua plenitude. Neste texto dissertativo, percebemos o quanto
o cinema e a literatura, enquanto linguagens, constituem uma importante ferramenta
na construção do conhecimento e o quanto podem dialogar com a filosofia. A análise
de outras obras do autor nos pareceu de grande importância uma vez que nos deu a
dimensão que José Saramago ao tema morte, um caminho entre várias
narrativas que veio a culminar num romance que retrata a sua preocupação em
111
fazer com que o seu leitor não se esqueça da sua finitude, bem como do seu papel
enquanto indivíduo para com a humanidade. Em As intermitências da morte,
Saramago nos apresentou a morte em forma de mulher, personificando-a, dando a
ela características humanas, diminuindo assim a nossa distância psicológica entre a
certeza da morte e o medo que tal consciência nos provoca. Ao mesmo tempo,
Saramago nos a vida em seu texto ao nos mostrar que sentimentos tão humanos
como o amor e a paixão precisam ser vividos tão intensamente como o próprio
sentimento da finitude, do caminhar para um fim. Por meio deste romance, foi
possível estabelecer um profícuo diálogo com a filosofia, a religião, bem como com
outras linguagens, outras obras literárias e, sobretudo, com o pensamento de José
Saramago que faz questão de se declarar avesso à aceitação de um Deus condutor
da vida humana e detentor de uma morada celestial, lugar de destino dos não-vivos.
Ao fazer a morte se apaixonar, ou seja, ser capaz de atributos que indicam
vida, Saramago mostra o quanto o homem ainda pode fazer frente ao maior de seus
medos, o quanto o homem ainda pode conhecer sobre a morte além do que foi
legado pela religião, pela filosofia e pela ciência.
112
REFERÊNCIAS
À ESPERA de um milagre. Direção: Frank Darabont . Produção: DAVID VALDES &
FRANK DARABONT. Intérpretes: Tom Hanks, David Morse, Bonnie Hunt, Michael
C.Duncan, James Cromwell, Michael Jeter, Graham Greene, Doug Hutchison, Sam
Rockwell, Barry Pepper, Jeffrey DeMunn, Patricia Clarkson, Harry D.Stanton, Dabbs
Greer e Eve Brent. Los Angeles: Warner Brothers, 1999. 1 DVD (188 min).
Widescreen, color. Produzido por Warner Home Vídeo. Baseado no romance The
Green Mile de Stephen King.
ALLENDE, Isabel. A casa dos espíritos. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil
S.A., 1995.
ANÔNIMO. Las mil y una noches: Libro III. Tradução ao espanhol de Vicente
Blasco Ibáñez, a partir da tradução ao francês de J. C. Mardrus, publicada em 1903.
Ediciones elaleph.com S.R.L, 2004. Disponível em: http://www.elaleph.com. Acesso
em: 13/08/2008.
ARIAS, Juan. José Saramago: o amor possível. Rio de Janeiro: Manati, 2004.
ARIÈS. Phillipe. O homem diante da morte. Tradução de Luiza Ribeiro. Rio de
Janeiro: Francisco, 1990.
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina
Galvão G. Pereira. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BENEDETTI, Mario. La muerte y otras sorpresas. Madrid: Universidad de
Salamanca y Grupo Santillana de Ediciones S.A., 1993.
BÍBLIA. Português. A Bíblia da Mulher. Tradução de Neyd V. Siqueira et al. São
Paulo: Mundo Cristão e Sociedade Bíblica do Brasil, 2003. 1728 p.
BRAGA, Miriam Rodrigues. A concepção de língua de Saramago: O confronto
entre o dito e o escrito. São Paulo: Editora Arte & Ciência, 1999.
113
CALBUCCI, Eduardo. Saramago: um roteiro para os romances. Cotia: Ateliê
Editorial, 1999.
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilloso. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980.
ECO, Umberto. Sobre a literatura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro, Record,
2003.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no
Brasil. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A., 1991.
DASTUR, Françoise. A morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL,
2002.
FONSECA, Aleilton. O desterro dos mortos. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.
FORSYTH, Frederick. O pastor. Tradução de Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro:
Editora Record, 1975.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte
universitário, 1980.
HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda., 2001.
JOSEF, Bella. O espaço reconquistado Uma releitura: linguagem e criação no
romance Hispano-americano contemporâneo. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1993.
JOUVE, Vincent. A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo: Fundação
Editora Unesp, 2002.
114
KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Companhia das letras, 1997.
LÁINEZ, Manuel Mújica. El hombrecito del azulejo: Disponível em:
<http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/esp/mujica/hombreci.htm>. Acesso em:
14/01/2008.
LEACH, Edmundo Ronald. Antropologia: organizador Roberto da Matta. São Paulo:
Editora Ática, 1983.
LLOSA, Mario Vargas. A verdade das mentiras. São Paulo: Editora Arx, 2007.
LOVECRAFT, H. P. El Horror en la literatura. Madrid: Alianza editorial, 1989.
MABILLE, Pierre. O maravilhoso. Tradução de Judith Berkemeier. Lisboa: Fenda,
1977.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, 1994.
MCLNERNY, D.Q. Use a lógica: um guia para o pensamento eficaz. Rio de
Janeiro: Editora Best Seller Ltda. 2004.
MILNER, Max. La fantasmagoría. México: Fondo de Cultura Económica, S.A. 1990.
O HOMEM bi-centenário. Direção: Chris Columbus. Produção: Chris Columbus.
Intérpretes: Robin Williams, Embeth Davidtz, Sam Neill, Oliver Platt, Angela Landis,
Lindze Letherman, Hallie Kate Eisenberg, Wendy Crewson, Kiersten Warren e John
Michael Higgins.Columbia Pictures e Touchstone Pictures Califórnia: Columbia
Pictures e Touchstone Pictures, 2000. 1 DVD (131 min). Widescreen,
ANAMÓRFICO. Produzido por Columbia Pictures e Touchstone Pictures. Baseado
no livro de contos The Positronic Man de Isaac Asimov.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos.
ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
115
POTOCKI, Jean. Manuscrito encontrado em Saragoça. Lisboa: Estampa, 1971.
RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
RULFO, Juan. Pedro Páramo. México: Fondo de cultura económica, 1991.
SARAMAGO, José. A jangada de pedra. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
_______________. As Intermitências da Morte. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.
_______________. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Cia. das Letras,
2000.
SCHOPENHAUER, Artur. O amor, as mulheres e a morte. Casa Editora Vecchi
Ltda. Rio de Janeiro, 1943.
SEIXO, Maria Alzira. Lugares da ficção em José Saramago. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1999.
SERNA, Ramón Gómez de la. Los muertos, las muertas y otras fantasmagorías.
Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina S.A., 1945.
SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Tradução de Cláudia Lopes. São Paulo:
Editora Scipione, 1998.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1998.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva,
1975.
TOLSTÓI, Leon Nicolaievitch. A Morte de Ivan Ilitch. Porto Alegre: L&PM Editores,
2002.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo