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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Programa de Pós-Graduação em Letras
Mestrado em Teoria da Literatura
Representações do Brasil na poesia rosiana
Sávio Roberto Fonseca de Freitas
Recife – Pernambuco
julho/2006
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pós-
Graduação em Letras como um dos
requisitos para a obte
nção do grau de mestre em
Teoria da Literatura.
Orientadora:Profa.Dra. Luzilá Gonçalves Ferreira
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2
Freitas, Sávio Roberto Fonseca de
Representações do Brasil na poesia rosiana /
Sávio Roberto Fonseca de Freitas. –
Recife : O Autor,
2006.
135 folhas.
Dissertação (mestrado)
Universidade Federal de
Pernambuco. CAC. Letras, 2006.
Inclui bibliografia.
1. Literatura brasileira
Modernismo – Neo-romantismo. I. Título.
869.0(81) CDU (2.ed.) UFPE
B869 CDD(22.ed.)
CAC2006-
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4
In memoriam de minha de avó materna, com quem aprendi a nunca
desistir.
Ao companheiro, amigo e irmão Moisés Bastos Amorim, pelo apoio e
paciência com que sempre estimulou minha carreira acadêmica e
agüentou minhas explosões repentinas.
À minha mãe, pelo cordão umbilical cortado.
Às amigas Adeilza Monteiro, Loredana Almeida, Sherry Morgana,
Socorro Almeida, pela amizade fraternal e sincera
5
Agradecimentos
A Deus, por estar sempre presente em todas as etapas decisivas de
minha vida;
À Profa.Dra. Luzilá Gonçalves Ferreira, pelas valiosas dicas durante a
disciplina Teoria da Poesia; pelo orientação segura e sensível no
momento em que cheguei a não acreditar mais em minha dissertação;
À Profa.Dra. Zuleide Duarte, pelas palavras de carinho nos momentos
em que estava desmotivado, pelo empréstimo de livros de seu acervo
particular, pelo incentivo constante, pela orientação pontual no
momento oportuno;
À Profa.Dra. Piedade de Sá, pelas preciosas intervenções no momento
da pré-banca;
À Coordenação e ao corpo docente do PPGL desta IES, pela
consideração e respeito com que sempre me tratou;
A Eraldo, pela constante disponibilidade;
À Sulanita Bandeira, Telma Dutra, Sandra Silva, Socorro Monteiro,
Maria das Vitórias, Ana Cristina, Lígia Pimenta, Fátima Lima, pelo
carinho e motivação;
À Faculdade Sete de Setembro, através dos diretores Jacson Gomes,
Sérgio Gomes e da secretária acadêmica Selma Monteiro, e a todos os
meus alunos do curso de Letras, pelo incentivo e respeito ao meu
trabalho;
À Profa. Marta Mendonça, Liliane Jamir, Lúcia Oliveira, Rosa Pinto,
Inez Fornari, Cristina Botelho, pelos bons momentos de minha
graduação na FAFIRE;
À Socorro Almeida, Susana Pereira e Juliana Alpes, amigas de longas
datas;
E a todos os que contribuíram para a realização desta pesquisa.
6
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo estudar as representações do Brasil
presentes nos poemas do escritor mineiro João Guimarães Rosa. O discurso do
autor de
Grande sertão: veredas
refaz uma imagem do Brasil através de temas
que evidenciam animais, natureza, vida no campo, manifestações culturais
indígenas e negras, mitos e crendices populares, temáticas que mostram uma
tentativa da representação do Brasil pelo viés literário.
O lirismo romântico percorre os textos por meio de um processo de conciliação
que Rosa mantém com eixos temáticos exaltativos à sua terra, conforme
colocação de Bosi (1983; p.37). A postura do escritor mineiro também se
pela condição de recusa a uma ideologia de catástrofe que se instaura por
conta do subdesenvolvimento da nação brasileira, segundo afirmação de
Antonio Candido (1986; p.142). Também tomamos por subsídio o que Roberto
Schwarz (1987; p.128) chama de mística terceiro-mundista, fator que evidencia
o nacionalismo vinculado à temática da tradição popular nos poemas modernos
do diplomata mineiro. O referido autor considera que a mística terceiro-
mundista permite o surgimento de uma literatura que se volta à temática rural,
de crendice popular, de preservação dos mitos e lendas folclóricas, dados que
observamos nos poemas de Guimarães Rosa. A fauna e a flora brasileiras, as
lendas folclóricas do caboclo d’água e da Iara, e a crença religiosa de tradição
popular e africana revelam o Brasil cantado pelo poeta mineiro.
Palavras-chave: Guimarães Rosa; Poesia; Modernismo.
7
Resumen
Esta investigación tiene como objetivo estudiar las representaciones de Brasil
presentes en los poemas del escritor del estado de Minas Gerais João
Guimarães Rosa. El discurso del autor de
Grande sertão: veredas
presenta una
imagen de Brasil a través de temas que evidencian animales, naturaleza, la vida
en el campo, manifestaciones culturales indigenas y negras, mitos y creencias,
temáticas que enseñan un intento de representación de Brasil a partir de la
literatura.
El lirismo romántico transcurre en los textos a través del proceso de conciliación
que Rosa mantiene con ejes temáticos que exaltan su tierra, conforme opinión
de Bosi (1983; p.37). La postura del escritor también parte de la condición de
denegacíon a una ideología de catástrofe que se instaura debido al
subdesarrollo de la nación brasileña, según la afirmación de Antonio Candido
(1986; p.142). Además, partimos de las ideas de Roberto Schwarz (1987;
p.128) sobre la mística tercero-mundista, factor que evidencia el nacionalismo
vinculado a la temática de la tradición popular en los poemas modernos del
diplomata `mineiro’. El referido autor considera que la mística tercermundista
permite el surgimiento de una literatura que se involucra a la temática rural, de
creencia popular, de preservación de los mitos y leyendas folklóricas, datos que
observamos en los poemas de Guimarães Rosa. La fauna y la flora brasileñas,
las leyendas folklóricas del
caboclo d’água
y de la
Iara
, y la creencia religiosa
de tradición popular y africana revelan el Brasil cantado por el poeta ‘mineiro’.
Palabras-clave: Guimarães Rosa; Poesía; Modernismo.
8
Sumário
Introdução___________________________________________ 07
1. Pressupostos teórico-metodológicos_____________________ 12
1.1. Perspectivas culturais e políticas______________________ 14
1.2. Perspectivas de literatura no Brasil em 1930_____________ 24
1.3. O social e o literário________________________________ 31
2. Guimarães Rosa e Magma ____________________________ 40
2.1. A estética de trinta e Magma ________________________ 42
2.2. Arte amena; crítica impressionista_____________________ 51
2.3. O Brasil em Magma________________________________ 53
2.4. A estrutura e a temática da obra______________________ 54
3. Animais, campos e brasis rosianos_______________________ 61
3.1. Os animais_______________________________________ 61
3.2. A natureza_______________________________________ 68
3.3. Vida no campo____________________________________ 74
3.4. Manifestações culturais negras e indígenas______________ 78
3.5. Poemeto épico rosinano____________________________ 105
3.6. A crendice popular no poema rosiano__________________ 120
Conclusão____________________________________________ 128
Bibliografia___________________________________________ 131
9
Introdução
_______________________________________________________
Desde o lançamento de seu livro de poesias -
Magma
1
(1936)
Guimarães Rosa mantém guardados os versos que o mostram como um poeta
iniciante e que tem a ambição de ganhar o Concurso de Poesia, promovido pela
Academia Brasileira de Letras em Novembro do ano da publicação da obra. A
coletânea de poemas ganha o primeiro lugar isolado e o parecer de Guilherme
de Almeida enaltece a criatividade e inovação do poeta mineiro que apresenta
uma poesia telúrica, cuja temática se concentra em elementos que remetem à
questão da identidade nacional.
Na esteira do pensamento do paulista Guilherme de Almeida que afirma
estar, nos poemas de Guimarães Rosa, viva a beleza de todo o Brasil,
centralizamos o recorte de nossa apreciação crítica a respeito de
Magma
. O
objetivo de nosso estudo é analisar os poemas que possuem um eixo temático
vinculado a uma estratégia de trazer para o campo estético ( o poema)
representações do Brasil que o consagram como uma pátria de beleza e
riquezas relevantes ao canto de um poeta.
Também nos utilizamos, principalmente, das colocações de João Luiz
Lafetá (2000; p.19-21) a respeito dos dois projetos do Modernismo, tendo em
1
O livro adotado para a análise foi o da 1
a
edição de 1997, publicada pela editora Nova
Fronteira.
10
vista que a obra que analisamos se encontra datada no período em que este
momento estético se localiza em sua segunda fase. O projeto estético é
marcado pelas modificações operadas na linguagem, fato que estabelece uma
crítica da velha linguagem pela confrontação com a nova linguagem; e o
projeto ideológico busca uma expressão artística que revela uma visão de
mundo nacionalista, consciente de que os valores de nosso país formam a
literatura brasileira modernista.
A sistematização de nossa apreciação crítica, nesse sentido, se pela
contribuição estética e ideológica presente no livro de poemas de Guimarães
Rosa.
Outro dado importante são as poucas intervenções da crítica literária
brasileira a respeito de nosso
corpus
de pesquisa. Esse fato se tornou uma
provocação para a realização de uma análise dos poemas que tomam o Brasil
como temática central de exaltação do eu-poético que se enuncia nos versos de
Magma.
O nosso país aparece através da fauna e da flora, do índio, do negro,
do caboclo, dos mitos folclóricos e da crendice e superstição populares,
temáticas bem exploradas pelo canto poético rosiano.
O único estudo que encontramos, no decorrer de nossa pesquisa, foi o
trabalho de pós-doutorado da professora Maria Célia Leonel,
Magma: a gênese
da obra
(2000), a respeito da produção em versos de Guimarães Rosa. A
proposta da pesquisadora paulista é, a partir do conceito de transtextualidade
de Gérard Genette, que propõe a obra literária com um palimpsesto, reler a
narrativa rosiana como um manuscrito sob cujo texto se descobre, em alguns
11
casos, a olho desarmado, mas, na maioria das vezes, recorrendo a técnicas
especiais, à escrita ou às escritas anteriores, ou seja, os poemas do poeta
mineiro serviram ao mesmo como arquitexto para a sua consagrada narrativa.
Fato que é bastante questionável, pois a proposta estética e ideológica de um
eu-poético não é a mesma de um narrador.
Maria Célia rastreia contos de
Sagarana
, como
Sarapalha, O burrinho
pedrês, São Marcos, A hora e a vez de Augusto Matraga
, além de outros, tal
qual um palimpsesto, e identifica vozes do próprio autor que ecoam dos
poemas da juventude:
Maleita, Boiada, Chuva, Reza brava
,
Gruta de Maquiné
, e
de outros reunidos em
Magma.
Com o levantamento, a descrição e a análise de
procedimentos retomados dos poemas do início da produção rosiana, Maria
Célia amplia a própria teoria genettiana, formulando o conceito de auto-
intertextualidade, processo de reaproveitamento da escrita anterior, em suas
palavras,
intertextualidade restrita
, ou seja, entre textos do mesmo autor. A
pesquisadora trabalhou a crítica genética, ampliando a teoria genettiana,
quando criou o conceito de auto-intertextualidade para caracterizar o germe da
prosa-poema do escritor mineiro.
Essa leitura dos poemas de Guimarães Rosa o subsidia a nossa
proposta de trabalho que é analisar os temas que se referem ao Brasil como
uma pátria que possui uma riqueza étnico-cultural a ser explorada. Tal postura
do poeta mineiro é definida pelo resgate que o mesmo faz de uma ideologia
romântica e de uma estética moderna, o que chamamos, em nosso trabalho, de
neo-romantismo.
12
A leitura dos poemas é subsidiada pelas idéias de Alfredo Bosi(1983;
p.36), no que diz respeito à presença de um
processo de conciliação
com os
paradigmas estéticos europeus aceitos pelos
povos novos
que habitam a
nação brasileira; pelo esclarecimento que Antonio Candido(1986; p.141) faz
sobre as perspectivas de arte que norteiam o processo de criação literária
brasileira: a amena e a catastrófica, que são explicadas no primeiro capítulo
de nosso trabalho; e , principalmente pelo estratégia de elaboração de uma
poesia neo-romântica na segunda fase do modernismo brasileiro, conforme
colocação de Mário de Andrade (2002; p.41) .
Outro ponto explorado em nosso estudo é a questão do nacionalismo e
da identidade nacional; para isso nos utilizamos dos pensamentos de Antonio
Candido (1997; p.11-38), de Roberto Schwarz (1987; p. 29-48) e de Darcy
Ribeiro(1995), entre outros.
No que diz respeito ao Romantismo a que Guimarães Rosa recorre,
utilizamos alguns poemas de poetas românticos e que resgatam esta estética,
para mostrar que tal fato é uma tendência da poesia da década de trinta. Em
alguns momentos, recorremos ao contexto histórico da época romântica para
que nossa análise fosse mais pontual.
O nosso estudo também analisa os poemas do autor de
Sagarana
a
partir de discussões a respeito das perspectivas culturais, políticas e de arte que
formaram a estética brasileira de 1930, década em que a coletânea de versos
foi premiada, por meio de esclarecimentos sobre o julgamento mais
13
impressionista do que analítico do crítico de Guilherme de Almeida diante da
temática inovadora de Magma.
Em suma, optamos por realizar a leitura dos poemas de Guimarães Rosa
com base no resgate da temática nacional, por nos parecer que tal abordagem
se configura como uma contribuição à vasta fortuna crítica do autor de
Grande
sertão: veredas
, em particular no que concerne a sua poesia. A fortuna crítica
sobre a narrativa rosiana é por demais extensa, porém nosso estudo se
direciona a um gênero produzido pelo autor mineiro que é pouco explorado
pelo fato do desconhecimento do grande público até 1997, ano em que Wilma
Guimarães Rosa, filha do escritor, resolve publicar a obra. No entanto, em
nenhum momento, pretendemos colocar a nossa leitura como a única possível
e sim como mais uma forma de ler e interpretar as travessias e veredas
sugeridas pelos poemas rosianos.
14
1. Pressupostos teórico-metodológicos
_____________________________________________________________________________________
Analisar os poemas do escritor mineiro, escritos na década de trinta,
exige uma estratégia de observação da proposta estética e cultural da década
de vinte e como é retomada por autores que se encontram em seu processo
inicial de carreira literária. A ingenuidade do poeta revela seu desejo de igualar
o Brasil à Europa, utilizando substratos temáticos e estéticos impostos por uma
hegemonia política que se firma pela posição de colonizadora: como o Brasil é
imaginado pelo eu-lírico rosiano?
Sabemos que a Semana de Arte Moderna de 1922 tinha o propósito de
cortar os laços de dependência com os paradigmas estéticos, sociais e culturais
europeus. O espírito nacionalista desperta na sociedade paulista a necessidade
de representar o Brasil através das diversas modalidades artísticas. O
movimento é mal recebido pela crítica da época por se configurar como um
momento mais político do que artístico. As interpretações sobre a Semana
foram as mais diversas e intempestivas como atesta Francisco Alembert
(1992;p.85).
Para muitos, as iias modernistas eram novas demais ou eram loucas
ou descabidas; para outros, representavam uma abertura sem precedentes
para a cultura brasileira, fazendo com que o país entrasse no “grande concerto
das nações”; por outro lado, provocavam o povo brasileiro a entrar em contato
consigo mesmo, com as suas origens mais profundas.
15
Mário de Andrade (2002:253) considera o movimento modernista
prenunciador, preparador e sob muitos aspectos o criador de um estado de
espírito nacional. O progresso da Europa, inspiradora dos ideais estéticos e
sociais que formaram a sociedade brasileira desde o descobrimento até os dias
atuais, provoca no povo brasileiro a existência de um espírito novo que o
estimula a verificar e modelar a inteligência nacional.
O subdesenvolvimento do Brasil estimula os intelectuais da época a
mostrar uma identidade fraturada por uma perspectiva ideológica catastrófica
em relação à condição de dependência cultural. Considerada permissível ao
diálogo com várias culturas, a nação brasileira não pode ser prisioneira de uma
hegemonia estética e social que comanda e forma uma literatura tida como
universal por possuir uma estratégia de representação que dialoga por meio de
um discurso comum. Discurso que denota também uma dependência dos
modi
miméticos deixados pela Antigüidade Clássica.
A proposta daqueles intelectuais é mostrar uma estética tão eclética
como os elementos étnico-culturais que formam a nação brasileira. A cultura de
nosso país é híbrida por excelência. E como o poeta sempre transforma o real
em algo que possibilita uma nova leitura de mundo, os modernistas adequaram
a tradição européia a uma estética que os libertaram de um paradigma fechado
de literatura. Da mesma forma, os poetas da segunda fase modernista se
concentraram em outras maneiras de representar o Brasil, foco temático
sugerido pelos poetas da primeira fase.
16
1.1. Perspectivas culturais e políticas
O termo dependência possui uma nuança de inferioridade, com uma
carga semântica que revela um certo estigma de menosprezo. Os países que
foram colonizados pela Europa, trazem esse ranço no que se refere ao ato de
formular conceitos independentes de identidade.
A noção de identidade nacional é muito explorada pelos intelectuais
modernistas. Há a necessidade de mostrar que a cultura brasileira não é
escrava dos paradigmas estéticos e ideológicos europeus. Porém, os ideais
culturais e políticos que norteiam o processo de formação de uma literatura
puramente brasileira, ainda mantêm laços de subordinação com a cultura
européia.
Alfredo Bosi (1983; p.35) problematiza a questão da nacionalidade por
meio do conceito de América Latina. Conceito que nasce com base em uma
oposição: “América: o que não é Europa; Latina: o que não é anglo-saxã, norte
americana”. Círculos intelectuais formados, desde os fins do século XIX,
alimentam uma consciência latino-americana que é marcada pela condição
política de subdesenvolvimento e cultural de dependência. Povos colonizados,
como o brasileiro, são estigmatizados pela diferença étnica e racial.
Darcy Ribeiro (in Alfredo Bosi, 1983; p.36) estabelece uma tipologia que
esclarece a disparidade existente entre os povos americanos. Desta
caracterização, duas qualificações são relevantes: os
povos-testemunho
e os
povos novos.
Os primeiros são herdeiros da cultura pré-colombina, como os
17
mexicanos, os peruanos, os bolivianos, os guatemaltecos; povos que não
apagam a memória das civilizações de seus maiores, astecas, incas ou maias,
que os conquistadores menosprezaram e quase destruíram. Os povos-
testemunho mantiveram uma situação de resistência. Para os mexicanos e
peruanos, por exemplo, a nação representa um valor que se gestou no
sofrimento e na violação reiterada, ou seja, o colonizador não consegue apagar
a memória que formou a identidade destes povos. A cultura dos povos
invasores não anula o que foi passado pelos mais velhos através da oralidade,
assim como acontece em países africanos como Angola, Moçambique, Cabo
Verde, que não permitiram as imposições culturais e políticas dos colonizadores.
Aqueles que Darcy Ribeiro chama de
povos novos
( o brasileiro, o
chileno, o cubano e o venezuelano), quase completamente anularam seus
substratos indígenas e africanos, submetidos que foram por um avassalador
processo de assimilação cultural. No Brasil, isso se configura esteticamente
como um processo de conciliação entre o colonizador e a camada social
colonizada. Vários exemplos são encontrados em nossa literatura,
principalmente no período romântico, quando a temática a ser explorada pelos
intelectuais da época é a própria nação.
Assim, percebemos que os povos-testemunho preservam viva uma
reação contra o colonizador, o que faz surgir uma ideologia de teor nacionalista,
enquanto os povos novos, entre os quais o povo brasileiro, geram, por meio de
um processo de assimilação, uma cultura de conciliação. Tal processo, na
18
literatura brasileira, permite que a nossa cultura seja tão miscigenada quanto o
nosso povo.
A questão do teor nacionalista
2
é algo de extrema importância para a
produção de uma literatura que utiliza sua nação como eixo temático de
exaltação. Esse processo começa na literatura brasileira a partir do
Romantismo. Antonio Candido (2000; p.112) endossa que a literatura brasileira
possui dois momentos decisivos que mudam os rumos e vitalizam toda a
inteligência nacional: O Romantismo, no século XIX (1836-1870) e o
Modernismo, do século XX (1922-1945). Ambos se inspiram no exemplo
europeu. O escritor romântico procura superar a influência portuguesa e
afirmar contra ela a peculiaridade literária do Brasil; o moderno desconhece
Portugal, o que permite afirmar que a mãe pátria( Portugal) deixa de existir
para nós, ou seja, a pátria filha (Brasil) é quem se torna o centro das atenções.
No Modernismo de primeira fase, o apego à nação brasileira se
apresenta de forma diferente em relação ao Romantismo. No entanto, na
segunda fase do momento moderno de nossa literatura aparece uma ideologia
de permanência. Os poetas da década de trinta, como Carlos Drummond de
Andrade, Jorge de Lima, Guilherme de Almeida, entre outros, vão conservar os
traços desenvolvidos pela literatura romântica, ou seja, uma literatura satisfeita,
sem angústia formal, sem rebelião nem abismos, como diz Candido (2000;
p.122).
2
Para aprofundar noção de teor nacionalista na literatura brasileira ver Sussekind, Flora.
Tal
Brasil, Qual romance?
. Rio de Janeiro: Achiamé; 1984.
19
Eduardo Portella (1975; p.43) nos permite afirmar que tal fato é possível
porque o processo histórico brasileiro caminha na direção dos seus projetos
específicos, não é mais admissível uma literatura indiferente ao seu
condicionamento fático. O autor ainda elenca a década de trinta como a
empreendedora de uma caminhada no sentido Brasil-Brasil; neste momento, se
dá o encontro do brasileiro com sua realidade.
Em trinta, são publicados e premiados os poemas de Guimarães Rosa,
que também contribuíram para uma fase realista, um realismo natural,
instintivo, comprometido com as impressões de primeira vista. É o que Flora
Sussekind (1984; p.36) chama de fidelidade documental à paisagem, à
realidade e ao caráter nacionais.
Portella (1975; p.44) também deixa claro que os homens desta época
“eram antes homens de ação que de pensamento. Havia a urgência que não se
harmonizava com a reflexão. Os homens que poderíamos identificar como de
pensamento estavam também alienados. É certo que de forma diversa da
República Velha. Estes aderiram às novas formulações políticas européias,
imaginando com elas poderem resolver a problemática brasileira. Esqueciam-se
de que estavam recorrendo à matéria igualmente importada, defasada.
Julgavam que as ideologias, por serem novas na Europa, se aplicavam
tranqüilamente ao Brasil. Imaginavam aconselháveis à hipótese brasileira,
soluções engendradas por outras realidades. E este equívoco persiste ainda.
Esqueceram de que até mesmo nessa época interdependente que vivemos,
época de integração universal- planetária-, somente nos integramos na medida
20
em que formos nós.” Enquanto não houvesse uma centralização de observação
em relação ao Brasil, pelas suas particularidades, permanecia uma
representação literária ingênua por parte de nossos intelectuais, os quais
tentavam igualar o Brasil a Portugal.
Encontramos no poema abaixo de Guimarães Rosa um processo estético
e ideológico que nos permite analisar a condição do poeta que, mesmo
embebido do processo da construção poética, deixa escapar a temática do
medo, condição que fez parte durante muitos anos dos povos que foram
passivos à colonização de vários valores, pois não só foram conquistadas as
terras do Novo Mundo; as culturas foram anuladas, substituídas por sistema
político, social e religioso diferente que impediu o colonizado de se pronunciar
e resistir diante dos povos do Velho Mundo. Rosa nos mostra que não mais
motivo para o medo, a nação é nossa. A literatura rosiana nos faz crer nisso a
partir de uma perspectiva cósmica.
Consciência Cósmica
Já não preciso de rir.
Os dedos longos de medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...
21
Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem de deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...
deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir, se me restasse o riso,
das tormentas que pouparam as furnas de minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo..
(Rosa, J. Guimarães. Magma, Nova Fronteira; Rio, 1997;p.146)
Consciência Cósmica
é o último poema do livro de poesias de Guimarães
Rosa. Os últimos versos do poeta revelam uma insatisfação em relação à
existência, fato comum ao homem da década de trinta que se só, diante de
sua angústia perante a certeza de sua condição social e política.
Fábio Lucas (1973; p.18) afirma que os poetas mineiros são mais
maduros e resistentes a determinados modismos, pois as audácias, os poemas-
piada, as forças arbitrárias, a gratuidade e a desorientação do movimento
modernista duram muito pouco entre eles. O que fica é o espírito de renovação,
preocupação com a situação econômica do país, fato que leva os intelectuais
modernistas a se voltarem, muitas vezes, assim como faz Guimarães Rosa, à
especulação filosófica.
22
Esta especulação aparece na terceira estrofe do poema acima, quando o
eu-poético rosiano diz não ter mais medo de escalar os cimos e nem de
deixar de escorrer as forças de seus músculos. A preocupação do poeta, nesse
sentido, é a busca de palavras tensas, de explosões controladas, a construção
de um poema que atinja a perfeição de parecer uma interminável guerra fria,
como menciona Fábio Lucas (1973; p.20).
O medo, para o eu-poético rosiano, é algo que não deve deixar o homem
vulnerável e sim encorajá-lo para enfrentar as suas mais complicadas
tormentas.
Esse mesmo tema é abordado no poema
Congresso Internacional do
Medo
de Carlos Drummond de Andrade. O poema não traz a mesma conotação
de medo existente no poema do também mineiro Guimarães Rosa, mas elenca
os medos do homem da década de trinta:
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
23
e sobre nossos túmulos nascerão flores
amarelas e medrosas.
(Drummond,Carlos.Disponível em www.carlosdrummond.com.br)
O eu-poético acima expressa, logo no início do primeiro verso, como
crítica à temática dos românticos, o não cantar o amor, mais sim o medo,
sentimento que torna o ser humano desprotegido, transparente, vulnerável. O
ódio não aparece em oposição ao amor, pois este existe e aquele não. O medo
compromete o amor, é pai e companheiro, gera e não se afasta, é
permanência. Os ditadores e os democratas causam medo porque o confronto
entre eles gera a morte, o túmulo. Interessante como a aliteração do “s” revela
um eco sombrio no poema. Da morte nascem as flores amarelas, denotando a
tristeza do espírito, pois a cor amarela, além de simbolizar a covardia,
representa a melancolia.
O subdesenvolvimento do Brasil faz os intelectuais de nossa literatura
oscilarem por duas formas de consciência em relação ao atraso econômico do
Brasil. Representantes de nossa literatura vão preferir continuar a proposta dos
poetas românticos em relação ao medo de se referir à pátria através do
discurso literário, enquanto outros como Manuel Bandeira, Oswald de Andrade
e Mário de Andrade vão tomar a política no sentido de instituição que utiliza a
literatura como espaço de denúncia para mostrar o que categoriza a
dependência econômica de nosso país. O medo do atraso econômico e das
conseqüências que o mesmo pode acarretar é o “mal do século” dos modernos.
24
Como atesta Mário de Andrade (2002; p.265-266) os poetas modernistas
constroem um discurso polêmico que um novo sentido à inteligência
nacional por refletir através do mesmo sobre a realidade brasileira. Nesse
sentido, o autor de
Macunaíma
caracteriza a proposta modernista pela fusão de
três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética ( o que
permite o resgate constante às estéticas anteriores), a atualização da
inteligência artística brasileira ( o que pressupõe um hibridismo de correntes de
pensamento); e a estabilização de uma consciência criadora nacional ( o que é
chamado pelo autor como
consciência coletiva
). Esta consciência é plenamente
observada na produção literária da década de trinta. Até mesmo na coletânea
de poemas de Guimarães Rosa, poeta que, neste momento, encontra-se em
seu estado de início de produção literária, percebemos o diálogo com a
proposta estética moderna de segunda fase.
Por este motivo, o cosmos, em
Consciência Cósmica,
parece revelar uma
visão panorâmica do poeta como uma tentativa de fusão do eu-poético com o
eu-biográfico. A ausência do riso é uma das marcas da angústia do poeta
moderno, muito embora a modernidade dos intelectuais modernistas mostre
fatos que levam o homem ao riso. A percepção séria sobre os valores sociais e
políticos que o distanciam de uma posição privilegiada em relação à escalada
dos cimos é algo que faz com que o poeta mineiro se sobressaia em relação
aos poetas paulistas. O remoinho presente na primeira estrofe dá movimento à
posição cíclica do eu-poético rosiano, o poeta mineiro parece girar em torno de
si mesmo. O estado de predisposição do poeta está subsidiado pela condição
25
romântica do refúgio a si mesmo. É como se uma única estética não mais
satisfizesse o canto do poeta.
Tal postura é discrepante quando o eu-poético se faz presente nos
poemas
Iara, Ritmos selvagens, Boiada, Gruta de Maquiné
,
Maleita, Luar na
mata, Batuque, Caboclo d’água, No Araguaia.
No entanto, em se tratando de
Guimarães Rosa, mesmo em seu processo inicial de carreira, pode-se dizer que
uma intenção em colocar, no final do livro, o poema que melhor revela uma
postura de insatisfação com sua condição de poeta. Quase todos os poetas de
nossa literatura ( Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Carlos Drummond de
Andrade, entre outros) escreveram versos que definiam seu processo literário.
O meta-poema é um recurso estético e a metalinguagem uma estratégia
discursiva que muitos poetas utilizam para não evidenciar o pacto
autobiográfico que os escritores mantêm com seus eus. Porém, Guimarães
Rosa se utiliza desse recurso como poeta que canta o Brasil como brasileiro e
não como um intelectual que usa sua arte para demonstrar que sua formação
acadêmica é subsidiada por escolas estrangeiras como a alemã e a francesa,
por exemplo. A formação européia não faz com que o autor de
Tutaméia
desvalorize as suas raízes que estão bem fincadas em solo brasileiro. Pelo
contrário, o conhecimento de outras culturas fez com que Guimarães não se
desviasse das singularidades que revelam um Brasil a então desconhecido
pelo povo brasileiro.
26
1.2. Perspectivas de literatura no Brasil em 1930
rio Vieira de Melo (in Candido,1986; p.140) diz que na década de
trinta havia no Brasil a noção de país novo. Essa idéia produz, em nossa
literatura, atitudes fundamentais, derivadas da surpresa, do interesse pelo
exótico, de um certo respeito pelo grandioso. A terra do Monte Pascoal
despertou a ganância dos colonizadores europeus, que se aproveitaram da
ingenuidade do povo brasileiro para consumir suas riquezas materiais e impor
uma nova postura cultural. Antonio Candido (1986; p.142) reforça que, nesta
década, os regionalistas dão um novo rumo à estratégia de representar o Brasil,
pois até então, nosso país aparecia na literatura como uma pátria bela, ou seja,
uma colônia em que havia referentes naturais e humanos interessantes de
serem explorados. A tomada de consciência de políticos e economistas em
relação ao atraso econômico do Brasil vai determinar as características literárias
no mesmo: a consciência amena de atraso, correspondente à ideologia de país
novo; e a consciência catastrófica de atraso, referente à noção de país
subdesenvolvido.
A literatura barroca de nosso país é um bom exemplo da consciência
amena de atraso. Padre Antônio Vieira deixa claro, através do discurso retórico
presente em seus
Sermões
, o aconselhamento da transferência da monarquia
portuguesa para o Brasil. O deslumbramento dos colonizadores diante das
terras conquistadas foi retomado pelos intelectuais brasileiros, desde o Barroco
até o Romantismo. A visão admirada dos portugueses é um motivo para os
27
intelectuais de nossa literatura se voltarem para uma reflexão a respeito dos
elementos de riqueza natural que tornam significativo representar o Brasil na
literatura. A linguagem literária é construída com base na hipérbole e na
transformação do exotismo em estado de alma, como afirma Antonio Candido
(1986; p;141), quando mostra que esta ideologia de exuberância foi favorecida
pelo Romantismo, movimento estético-literário formado por características que
revelam o estado de alienação de nosso povo: “o nosso céu é mais azul; as
nossas flores mais viçosas; a nossa paisagem mais inspiradora que a de outros
lugares”; como observamos na
Canção do Exílio
de Gonçalves Dias, poema que
segundo o crítico acima, “poderia ter sido assinado por qualquer um de seus
contemporâneos entre o México e a Terra do Fogo.”
Para Antonio Candido, “a idéia de pátria estava então vinculada à
natureza”, âmbito que se instaura como refúgio para compensar o atraso
cultural e político. A euforia para representar a pátria a partir da arte literária
alimentava nossos intelectuais com “promessas divinas de esperança” a ponto
de predominar no Romantismo brasileiro uma perspectiva amena de arte. Fato
é que esta perspectiva de arte se torna um perfil de muitos intelectuais nos fins
do século XVIII ameados do século XIX, chegando também a ser resgatada
pelos poetas da modernidade que estão em início de carreira, como é caso do
poeta Guimarães Rosa. Até porque os poetas da década de trinta tomam como
sugestão aquilo que é representado pelo viés do revérbero patológico na
literatura do século XIX, como é o caso da cor da pele nas obras de Machado
de Assis, José de Alencar e Aloísio de Azevedo.
28
A formação de nossos intelectuais na época romântica, se deve às novas
perspectivas culturais e sociais que surgiram na Europa por meio da Alemanha,
Inglaterra e França. As idéias de Jean-Jacques Rousseau, precursor do
romantismo, inspiraram o pensamento que se iniciava junto com o século XIX.
A Revolução Francesa(1789), com seus novos ideais, contribuiu para o
aparecimento de sociedades marcadas por novos modelos: formação de
democracias políticas, revolução industrial, desenvolvimento econômico e
industrial, novas classes sociais (burguesia), aparecimento de uma cultura de
massa e de um mercado cultural.
O Romantismo era uma realidade nos países da Europa em 1825 e
apesar das diferentes características de cada país e de seus representantes
(Goethe na Alemanha, Byron na Inglaterra e os franceses Chateaubriand,
Lamartine, Musset e Victor Hugo) o movimento vai se solidificar e universalizar
suas características exportando-as para o Brasil, nação, até então carente de
uma literatura autóctone.
Em nossa literatura, este movimento é inaugurado com a publicação de
Suspiros poéticos e saudades
(1836)
de Gonçalves Magalhães. A tradição
literária européia se torna presente no Romantismo brasileiro através de um
sentimentalismo exagerado, uma imaginação criadora, um idealismo
subjetivista, do culto à natureza, da necessidade de evasão, da consciência da
solidão ( fato que é resgatado por Guimarães Rosa no poema citado
anteriormente), do senso do mistério, do culto à morte, do refúgio no sonho,
do exagero das imagens, da volta ao passado (saudosismo), da ânsia de glória,
29
fato que demonstra a não percepção da condição de dependência, da exaltação
à pátria amada e do sentimentalismo; e, principalmente, por meio do respeito
ao padrão estético e lingüístico da Europa. Muito embora a inovação romântica
se faça por meio de uma literatura que se utiliza de uma temática voltada para
o nacional. Por exemplo, podemos citar o escritor José de Alencar, com sua
representação de índio brasileiro(Iracema, Peri), que aparece como metáfora
de herói nacional.
Outros intelectuais desta época como Gonçalves Dias, Álvares de
Azevêdo, Casimiro de Abreu e Junqueira Freire, para citar apenas os poetas,
não se dão conta de que o respeito ao paradigma estético e social da
Alemanha, Inglaterra e França é, como afirma Antonio Candido (2000; p.112),
uma estratégia para superar a influência portuguesa e afirmar contra ela a
peculiaridade literária do Brasil. Peculiaridade que nega a influência lusitana se
vestindo com as pompas germânicas, francesas e inglesas.
Silviano Santiago (2004; p.66) deixa claro que o desligamento da cultura
portuguesa é apenas outra forma de se alienar, pois assim a prática da
literatura no Brasil foi-se revestindo duma capa, ou seja, de uma dupla meta
ideológica; “nossa literatura tanto configura uma carência sócio-econômica e
educacional da maioria da população do nosso país quanto define, pelo
exercício impiedoso da autocrítica, o grupo reduzido e singular que tem
exercido duma forma ou de outra as formas clássicas de mando e
governabilidade nas nações da América Latina.”
30
A burguesia, desde a época romântica até os dias atuais, monopoliza a
cultura e elimina uma observação das camadas menos privilegiadas para tentar
transformar nossa literatura em algo que revele uma pátria que é bela pelas
riquezas de sua terra, esquecendo que o elemento formador de uma literatura
autóctone é o respeito à identidade cultural em seu processo genético. Nossa
cultura é fruto de várias outras. É impossível analisar o Brasil, e até mesmo
transportá-lo para o plano imaginário estético, sem fazer menção aos povos
formadores de nossa cultura: o índio, o branco e o negro.
Silviano Santiago (2004; p.67) ainda mostra que, “na nossa literatura, a
classe média toma consciência de sua situação específica, sob a forma da
desclassificação social.”Boa parte dos intelectuais brasileiros se camuflam
através da arte que criam, se sentem alienados com sua condição de
dependência em relação aos países desenvolvidos.
O estrangeiro, indivíduo que Silviano toma como presença do
colonizador, ou seja, o leitor que vem dos países considerados pela posição
econômica desenvolvidos, busca o que de exótico em nossa arte, e quando
aqui chega, encontra uma literatura marcada pelas pompas européias. Se
observamos os elementos nacionais do romance da literatura romântica, para
citar um caso, percebemos que neles um índio estereotipado,
personagem que, nas obras de Alencar, por exemplo, representam muito mais
um processo de conciliação com a ideologia do império português do que uma
forma excêntrica de universalizar os povos que primeiro habitaram a terra do
pau-brasil.
31
O estrangeiro, pelo contrário, buscará o índio que se mistura com as
outras raças, assim como acontece com
Macunaíma, o herói sem nenhum
caráter (1928)
, rapsódia de Mário de Andrade, onde se faz presente o índio
negro que se torna louro no decorrer da narrativa, percorre o Brasil , vive na
selva e em São Paulo ao mesmo tempo, reunindo em si as contradições e os
dilemas dos brasileiros. É disso que o estrangeiro gosta e não de uma literatura
que não mostra a sua nação. Silviano Santiago (2004; p. 69) nos chama
atenção para o fato de que :
O leitor estrangeiro não quer compreender as razões pelas quais, na
literatura brasileira, o legítimo quer ser o espúrio a fim de que o espúrio,
por sua vez,possa ser legítimo. Sua vontade de leitor estrangeiro não
alicerça na vontade do texto literário com tonalidades nacionais. Desta
quer distância. Ele quer enxergar o Estético na arte e o político na
Política. Ele quer que o que o texto não quer.
Ele deseja o texto que não
o deseja.
Cada macaco no seu galho, como diz o ditado. Não
compreende que o movimento duplo de contaminação que se encontra
na boa literatura brasileira não é razão para lamúrias estetizantes e
muito menos para críticas pragmáticas.
A contaminação é
antes a
forma literária pela qual a lucidez se afirma duplamente
. (Grifos
nossos)
Há, nesse sentido, uma busca pelo estrangeiro da literatura que revela a
condição de subdesenvolvimento de grande parte da população brasileira. Tal
32
condição se estabelece como uma consciência catastrófica do intelectual
brasileiro em relação ao atraso político e cultural. Deste modo, boa não é a
literatura que se concilia com outra, mas aquela que revela sua identidade e
afirma sua postura estética e social perante as várias nações. Quanto mais
verossímil melhor.
Antonio Candido (1986; p.142) notifica que o povo brasileiro toma
consciência de seu subdesenvolvimento depois da Segunda Guerra Mundial e
considera que desde o decênio de 1930, período em que é escrito o livro de
poesias de Guimarães Rosa, há uma mudança de percepção artística, sobretudo
na ficção regionalista, que pode servir como momento-chave, devido à “sua
generalidade e persistência.”
Os intelectuais da década de trinta, subsidiados pela consciência
catastrófica de atraso, vão refletir sobre os antigos problemas da estrutura da
nação brasileira, sobre tensões existentes na sociedade em geral: o ofício do
escritor será uma função engajada com a política do subdesenvolvimento e
interessada em recriar um Brasil a partir de suas particularidades temáticas de
dependência: a fome, a seca, o sertão, a cultura popular, os habitantes da zona
rural, os mitos e as lendas de cada região, principalmente aqueles contados
pelos habitantes da zona rural, seja norte, sul, nordeste ou sudeste, pois, sabe-
se que a visão regionalista de alguns intelectuais de nossa literatura não está
restritamente ligada ao nordeste brasileiro.
33
Escritores do Nordeste do Brasil, José Américo de Almeida, Raquel de
Queiróz, José Lins do Rêgo e Graciliano Ramos, denunciam a miséria em que
vive o homem local, no sertão, na zona canavieira ou nas pequenas cidades.
Assim, percebe-se, conforme teorização de Antonio Candido (1986;
p.142) que o Brasil é representado em nossa literatura a partir de duas
perspectivas de arte: uma que revela a consciência amena de atraso,
correspondente à ideologia de país novo, onde uma estética que mantém
fortes laços com a tradição européia, desde a forma ao conteúdo mascarado
pelo encantamento pitoresco; e outra que amadurece a consciência do povo
brasileiro no que diz respeito à noção catastrófica de atraso, o que faz
transparecer a condição de subdesenvolvimento de nosso país.
Tomando como subsídio estas perspectivas de arte sobre as quais
podemos perceber o Brasil cantado pelos nossos poetas, analisamos
Magma
(1997)
.
1.3. O social e o literário
A representação literária é algo que instiga a preocupação dos
admiradores da arte literária, desde a antiguidade cssica aos dias atuais.
inúmeros registros que tratam do tema, mas não serão aqui elencados pelo
fato de ser tema para um novo estudo. O que nos interessa é assumir um
postura em relação ao conceito tão complexo de representação literária.
34
Quando Aristóteles (2004; p.43), em sua
Poética,
estabelece uma
distinção entre história e poesia, fica bem clara qual é a proposta de um poeta
em relação ao registro literário. Als, o registro tem um valor para a história e
outro para a poesia (arte literária). Enquanto o historiador se preocupa com um
determinado fato pelo viés da realidade objetiva, o poeta versifica o fato pelo
viés mimético e reflexivo. Ao poeta não cabe expor exatamente o que
acontece, mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a
verossimilhança, que nada mais é do que um contrato de relatividade com os
referentes do mundo real. Os historiadores se limitam às particularidades dos
fatos, sem carregar seu discurso com elevada filosofia, condição que permite ao
poeta se imortalizar através dos versos. O poeta eleva-se por tornar um fato
simples agradável aos olhos da humanidade, o historiador limita-se às
particularidades do fato.
Observamos isso, por exemplo, na obra
Os sertões
, de Euclides da
Cunha, quando o narrador euclidiano se sobressai em relação ao olhar limitado
do engenheiro autor da narrativa. Embebido do sentimentalismo literário, o
escritor constrói um Antônio Conselheiro que se universaliza pela grandiosidade
de suas profecias, algo que não é tão explorado pelo discurso de um historiador
que se limita aos detalhes da Guerra de Canudos. A formação científica de
Euclides não o impede de aprimorar a sua essência de escritor.
Jean Cohen (1978; p.22) enfatiza que a escritura implica sempre um
mínimo de esforço e de elaboração, e quando se pensa em escrever, nem que
seja um simples carta, sempre se visa ao estilo. Toda linguagem escrita tende,
35
por assim dizer, a ser um escrito, e o sentido metafórico da palavra já é
revelador”. A forma como se escreve, o estilo, é o elemento diferenciador entre
os produtores de imitação, para usar o termo de Platão (2003; p.85), e os
outros cientistas. Nesse sentido, retomando o exemplo acima, o que separa o
engenheiro do escritor é a sensibilidade literária que se revela pela escrita e
forma de ver o mundo, o que Antoine Compagnon (2003; p.104), quando
define a mimese aristotélica, chama de representação de ações humanas pela
linguagem literária.
Representar algo não é tão simples quanto parece. Não foi à toa que
Platão (in Ferreira, 2004; p.1) manteve uma relação de desconfiança com
relação à permanência dos poetas em sua
pólis,
mesmo sabendo que eles eram
seres habitados e possuídos pelo divino, intérpretes dos deuses. Justificativa
que o discípulo de Sócrates encontrou para considerar o grau tão apurado de
conhecimento do poeta.
Platão (2003; p.84), quando escreve o mito do céu platônico”, informa
que nenhum poeta jamais cantou, nem cantará a região que se situa acima
dos céus”. Só o discurso filosófico é capaz de atingir a plenitude dos céus, pois
o filósofo sempre diz a verdade. Não lugar, no mundo das Idéias Eternas,
locus das realidades inteligíveis, onde a verdade, a sabedoria, a ciência, a
beleza, o pensamento residem; para as possíveis realidades criadas pelo
imaginário poético. O imaginário é algo que corrompe a inteligência humana,
confunde a razão objetiva, condição que Platão contempla para a percepção
racional de mundo.
36
O poeta jamais poderia habitar, segundo o desejo de Platão( 2003;
p.85), o céu da verdade, até porque o poeta não é preocupado com a
previsibilidade do mundo real, por isso este o recria a partir de uma perspectiva
estética e ideológica que não é conduzida pela sugestão platônica. O poeta
cria, por meio da arte literária, possibilidades e não se limita a evidências.
Nós, reles mortais, submissos às belezas e devaneios provocados pelas
possibilidades de real sugeridas pelos produtores de imitações, optamos por
acatar a idéia de Aristóteles (2004; p.30), quando este afirma que “pela
imitação adquirimos conhecimento, por ela experimentamos o prazer. A prova
é-nos visivelmente fornecida pelos fatos: objetos reais que não conseguimos
olhar sem custo, contemplamo-los com satisfação em suas imagens mais
exatas”. É caso de coisas repugnantes que, quando transfiguradas para o plano
poético, se tornam agradáveis aos olhos de quem aprecia e analisa o produto
final.
É a partir do conceito de mimese aristotélica que apreciamos os poemas
de Guimarães Rosa, pois descobrimos, a partir de seus versos, um poeta que
assimila a sugestão da ideologia romântica, que segundo Antonio Candido
(1997; p.11) era a celebração da pátria, do indianismo ou indefinível que
exprimisse o perfil do brasileiro; e renova esta percepção de mundo por meio
de uma estética explicitamente moderna: neologismos, versos livres, poema em
prosa, como acontece com o poema
Verde
de Rosa (1997; p.56):
Na lâmina azinhavrada
37
desta água estagnada,
entre painés de musgo
e corinas de avenca,
bolhas espumejam
como opalas ocas
num veio de turmalina:
é uma rã bailarina,
que ao se ver feia, toda ruguenta,
pulou, raivosa, quebrando o espelho,
e foi direta ao fundo,
reenfeitar, com mimo,
Suas roupas de limo...
Os versos livres em prosa facilitam a percepção do poético. A rã, animal
asqueroso e feio, não causa tanto medo quando transfigurada em bailarina.
Imagem que não nos vem à mente no momento em que este anfíbio se
encontra no plano da realidade. O tom prosaico do poema aproxima mais o
receptor do poeta, além do léxico com pouca erudição. O eu-poético rosiano
torna belo, pela ornamentação da linguagem, o
habitat
da rã: água estagnada,
painéis de musgo, cortinas de avenca, veio de turmalina. O espelho que
aparece no décimo verso torna feia a rã, por conta da lâmina de zinabre que
encobre a água, impossibilitando o narcisismo desta anfíbia tão excêntrica.
São estes efeitos de literariedade que instigam o pensamento dos
teóricos. A literatura não é algo que se limita ao previsível. Por meio de uma
38
percepção sensível, o poeta mineiro mostra que a poesia está onde a gente
menos espera. Octavio Paz( 2003; p. 13) entende isso no instante que define a
poesia como conocimiento, salvación, poder, abandono. Operación capaz de
cambiar al mundo, la actividad poética es revolucionaria por naturaleza;
ejercicio espiritual, es un método de liberación interior. La poesia revela este
mundo; crea otro.”
Diante de um poema como o analisado acima, justifica-se o fato de Terry
Eagleton (2001; p.2) encontrar dificuldades para definir o que é literatura
enquanto manifestação de linguagem, enquanto outros teóricos preferem nem
tentar. Para ele, a literatura talvez seja definível não pelo fato de ser ficcional
ou imaginativa, mas porque emprega a linguagem de forma peculiar”. A
literatura, nesse sentido, é algo que surpreende pelas peculiaridades de
representação, como vimos no poema acima de Rosa.
Para percebermos os sistemas de representação de um poeta, é
necessária, a priori, a sensibilidade para com a recepção da obra, só assim,
como coloca Antoine Compagnon (2003; p.98), “depois do autor e de sua
intenção, devemos deter-nos nas relações entre a literatura e o mundo”.
Nossa leitura dos poemas de Guimarães Rosa não é limitada apenas aos
aspectos estruturais de seus versos. Seria uma redundância mostrar o que
tantos outros críticos enfatizaram em relação à obra deste escritor mineiro.
O que mais nos interessa é frisar como os poemas de Rosa revelam a
percepção estética e ideológica dos famosos poetas da década de trinta, como
39
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, entre
outros.
O autor de
Grande sertão: veredas
nos permite descobrir, a partir da
proposta temática de seus versos, a exaltação deslumbrada de um Brasil que é
belo pelas suas peculiaridades. Não encontramos, nos poemas de Rosa, o
consagrado escritor das narrativas dos causos mineiros, mas sim, um poeta em
seu estágio inicial de carreira, que, assim como os poetas da segunda geração
moderna, tenta representar o Brasil como algo familiar ao brasileiro.
Eduardo Portella (1975; p.38) avaliza que os poetas mineiros ( Carlos
Drummond, Murilo Mendes, Emílio Moura, Aníbal Machado) eram o que podia
se chamar de poetas em prosa, pois “ aperfeiçoavam a utilização da linguagem
de todo dia, por encontrarem nela a expressão da própria alma brasileira”. É
isto que notamos nos poemas do também mineiro Guimarães Rosa: o uso de
uma linguagem que resulta dos ecos do cotidiano. Há, desta forma, uma
estilização de nossa linguagem coloquial, pois esta sai do plano real para o
poético, sem floreios de erudição lingüística, como acontece com os poetas dos
séculos XVIII e XIX.
Os poetas da década de trinta dão um novo ritmo à linguagem literária
brasileira. Como coloca Octavio Paz (2003; p.117) el hombre se vierte em el
ritmo, cifra de su temporalidad; el ritmo, a su vez, se declara em la imagen; y
la imagen vuelve al hombre apenas unos labios repiten el poema. Por obra del
ritmo, repetición creadora, la imagen - haz de sentidos rebeldes a la explicación
se abre a la participación. La recitación poética es uma fiesta: uma comunión
40
y lo que se reparte y recrea en ella es la imagen. El poema se realiza en la
participación, que no es sino recriación del instante original.”
Esta era a proposta de representação dos poetas brasileiros que não
mais se permitiam assemelhar a estética brasileira à portuguesa. A literatura de
Portugal foi referência durante os séculos de amadurecimento de nossa
literatura. Os intelectuais da segunda fase do modernismo não desprezaram o
que foi ensinado por Portugal, mas se fazia necessário um novo sentido para as
representações no e sobre o Brasil, então se buscou, conforme Eduardo Portella
(1975; p. 37) o personagem brasileiro, o homem brasileiro legítimo da
paisagem brasileira”, ou seja, o sertanejo, o caboclo, o índio amazonense,
representações que são observadas nos poemas de Guimarães Rosa.
Como Rosa se utiliza dos poemas em prosa, tomamos como conceito de
representação literária o que Aristóteles (2004; p.83) chama de imitação das
possibilidades do mundo real, quando o filósofo grego define imitação(mímese)
como algo que sugere um plano imaginário mais agradável aos olhos de quem
recepciona a obra literária. É mais interessante ver o Brasil exaltado pelo
discurso do poeta do que pelas evidências da realidade objetiva.
O aspecto social aparece nos poemas de Guimarães Rosa a partir das
representações sugeridas pelos intelectuais da década de trinta. Por estar
inserido neste contexto histórico e social, o autor de
Magma
adere à proposta
substancialista dos poetas da segunda fase moderna, como endossa Eduardo
Portella(1975; p.37), e coloca o homem e o cenário brasileiro como núcleo de
todas as suas observações de escritor que quer mostrar, por meio de seus
41
poemas, o Brasil ao brasileiro. De tal foco de observação, aparece, nos versos
rosianos: o índio amazonense e não o colonizado, o vaqueiro, o batuque
africano e os ritmos selvagens, a crendice popular, além de poemas de cunho
filosófico e hai-kais.
42
2. Guimarães Rosa e Magma
_______________________________________________
Na década de trinta a literatura brasileira assume uma nova postura
estética e social no que diz respeito ao contexto literário nacional em décadas
anteriores. A Semana de Arte Moderna (1922) é considerada um marco na
formação da literatura brasileira. As vanguardas européias modificam a forma
de pensar dos intelectuais da época. A abolição de um paradigma estético
europeu é uma das estratégias tomadas por escritores como Oswald de
Andrade, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida entre outros.
Os escritores modernos da segunda geração não possuem a mesma
ideologia dos intelectuais da Semana de Arte Moderna, pois a proposta destes
era ainda subsidiada pelos ideais europeus (dadaísmo, cubismo,
expressionismo, surrealismo). Os chamados regionalistas se preocuparam em
criar uma literatura que representasse o Brasil como país subdesenvolvido, ou
seja, o cenário explorado pelos artistas desta época é, sobretudo, o sertão
brasileiro.
Segundo Antonio Candido (1986; p.186), até 1930:
a literatura predominante e mais aceita se ajustava a uma ideo-
logia de permanência, representada sobretudo pelo purismo gra-
matical, que tendia no limite a cristalizar a língua e adotar como
43
modelo a literatura portuguesa. Isto correspondia a às expectati-
vas oficiais de uma cultura de fachada, feita para ser vista pelos
estrangeiros, como era em parte da República Velha. Ela tinha
encontrado o seu propagandista no Barão do Rio Branco, o seu
modelo no estilo de Rui Barbosa e a sua instituição simbólica na
Academia Brasileira de Letras, ainda preponderante no decênio
de 1920 apesar dos ataques dos modernistas (estes pareciam,
então, uma excentricidade transitória). Mas a partir de 1930 a
Academia foi-se tornando o que é hoje: um clube de intelectu-
ais e similares, sem maior repercussão ou influência no vivo do
movimento literário.
A poesia de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário de
Andrade, Jorge de Lima, Agripino Grieco, entre outros, vai se configurar como
um referencial literário em que se encontra a maior liberdade formal, pois não
encontramos nos poemas destes escritores a reprodução dos ideais literários
portugueses. Na ficção, principalmente, como diz Candido (1986; 187) não vai
existir esta tradição pelo fato de ser a década de trinta o momento das
literaturas regionais e sua transformação em modalidades expressivas cujo
âmbito e significado se tornaram nacionais, como se fossem coextensivos à
própria literatura brasileira.
44
2.1. A estética de trinta e Magma
Em 1936, Guimarães Rosa se candidata ao concurso de poesia da
Academia Brasileira de Letras, coleta alguns poemas que guardava em sua
escrivaninha e nomeia a coletânea de
Magma.
Essa poesia telúrica ganha o
primeiro lugar solitário, pois não houve outra colocação devido às outras obras
apresentarem uma literatura diferente da escrita pelo poeta mineiro.
Passada Semana de 22, a crítica literária brasileira esperava uma poesia
tipicamente nacional, que não revelasse uma estética ainda subsidiada pela
tradição européia e tão pouco refletisse os revérberos de uma ideologia
formada pela mesma. Candido e Castello (1979; p.11-12) afirmam que os
modernistas de 1922 nunca se consideraram componentes de uma escola
literária” (fato que justifica a presença de estéticas pretéritas em várias obras
literárias desta época), nem afirmaram ter seguidores de postulados rigorosos
em comum. O que os unificava era o desejo de expressão livre e a tendência
para transmitir, sem os embelezamentos tradicionais do academismo, a emoção
pessoal e a realidade do país. Por isso, não se cansaram de afirmar que sua
contribuição maior era “a liberdade de criação e expressão.”
Na poesia de Guimarães Rosa, vamos encontrar a contribuição estética
dos modernistas através do vocabulário opulento, da sintaxe fragmentada, da
seleção de temas relacionados ao folclore nacional, do regionalismo universal
que se configura esteticamente através da relação homem e terra como um
45
todo, um organismo que nos transmite as tradições religiosas, sociais e para-
dialetais da zona rural mineira.
Os intelectuais da década de trinta até quarenta e cinco privilegiam, em
sua literatura, a camada menos favorecida do país. De acordo com Alfredo Bosi
(1990; p.432):
as décadas de trinta e quarenta vieram ensinar muitas coisas
úteis aos nossos escritores; o tenentismo liberal e a política getuliana
em parte aboliram o velho mundo, pois se compuseram aos poucos com
as oligarquias regionais, que rebatizando antigas estruturas partidárias,
embora acenassem com lemas patrióticos ou populares para o crescente
operariado e as crescentes classes médias, mantinham impregnadas as
classes altas com uma ideologia de império. A aristocracia do café, por
exemplo, patrocinadora da Semana de Arte Moderna, convivia muito
bem com a nova burguesia industrial dos centros urbanos. O peso da
tradição não se remove nem se abala com fórmulas mais ou
menos anárquicas nem com regressões literárias ao inconsciente, mais
pela vivência sofrida e lúcida das tensões que compõem as estruturas
materiais e morais do grupo em que se vive.
Nesse sentido, escritores da cada de trinta como Graciliano Ramos,
José Lins do Rêgo, Carlos Drummond de Andrade tinham o Modernismo como
uma porta aberta para a focalização de um novo Brasil, o qual é identificado
por uma perspectiva menos deslumbrada.
46
A ficção regionalista desta década encaminhada pelo realismo de
intelectuais como Jorge Amado e Érico Veríssimo beneficia-se pela descida à
linguagem oral, aos brasileirismos e regionalismos léxicos e sintáticos. Assim,
novas angústias e novos projetos estéticos formam o artista brasileiro e o
obrigam a se definir na trama do mundo contemporâneo.
Guimarães Rosa, em
Magma (1936)
revela uma ideologia de conciliação
com culturas européias, pelo fato de se utilizar da natureza brasileira como
estratégia de embelezamento de sua literatura. O poema
Luar
ilustra bem a
nossa colocação:
De brejo em brejo,
os sapos avisam:
_ A lua surgiu!...
No alto da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.
A lua madura
Rola, desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
47
Quem a colheu,
Quem a arrancou
do caule longo
da Via-Láctea?...
Desliza solta...
Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá.
(Rosa, 1997; p.26)
Assim como muitos poetas clássicos e românticos cantaram a lua, o eu-
poético rosiano também canta a sua. A lua é vista pelos sapos como uma deusa
que é adorada pelos seus fiéis por abrilhantar a natureza. Os sapos são uma
bela metáfora para mostrar como o homem está distante da luz que dança
entre os musgos das nuvens brancas e se arrasta no lodo verde dos brejos frios
e lamacentos. A voz que canta no poema ainda diz que a lua não pode ser
tocada pelas mãos do outro a quem a voz se dirige, caso contrário, ela cai. Da
mesma forma que cai o poeta na realidade quando o instante de seu canto
silencia e a verdade o castiga.
rio de Andrade (2002; p.37) diz que muitos jovens sentem a
necessidade de escrever poesias e acham que cantar coisas iluminadas (lua,
48
estrelas, aurora) é o bastante para os consagrar como poetas. Ser bom artista
não é só exaltar o que já se sabe que é belo e sim transformar o exótico, o feio,
o triste em atraente. O poeta e crítico ainda denuncia que o verso livre não é
um tratado de permissão à escritura avulsa de poemas, que se classificam por
este tipo de texto, por estarem esteticamente organizados em versos. Os
jovens poetas se aproveitam dessa facilidade aparente, que de fato era uma
dificuldade a mais, pois, desprovido o poemas dos encantos exteriores de metro
e rima, fica apenas... o talento, característica dos poetas que se imortalizam
através das palavras bem ditas, dos versos bem cantados. Ainda é dito pelo
autor de
Macunaíma(1928)
que “o ano de 1930 fica certamente assinalado na
poesia brasileira pelo aparecimento de quatro livros:
Alguma poesia
, de Carlos
Drummond de Andrade,
Libertinagem
, de Manuel Bandeira;
Pássaro Cego
, de
Augusto Frederico Schimidt e
Poemas
de Murilo Mendes” (p.37).
A presença da lua nada mais é do que uma retomada temática da
tradição literária européia. Salete de Almeida Cara (1998; p.36) não esquece
que o lirismo romântico conseguiu muitas vezes integrar o eu-poético à
natureza. O fragmento abaixo do poema
Leito de folhas verdes
de Gonçalves
Dias é um bom exemplo:
Brilha lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto do amor, melhor que a vida!...
49
Os poetas modernos de segunda fase desconstroem esta visão do belo
quando trazem para este cenário romântico a presença dos sapos, anfíbios que
tornam desagradável a imagética provocada pela exaltação à lua. É deste
animal que traz, no fragmento abaixo do poema de Manuel Bandeira, provável
precursor do momento da produção em versos de Guimarães Rosa, o discurso
prenunciador da proposta dos modernistas:
Os sapos
Enfunando os papos
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- “ Meu pai foi à guerra!”
-“Não foi! – “Foi!’”– “Não foi!”
O sapo –tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz:- “Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
50
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio
Faço rimas com
Consoantes de apoio
Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
As formas a forma.
Clame a sapataria
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas...
(Bandeira, Manuel. Disponível em www.secrel.com.br/jpoesia)
De acordo com Câmara Cascudo( 2002; p.620) o sapo é um elemento de
representação cômica, desde as fábulas de Esopo até os dias atuais. Em ambos
os poemas, os sapos têm função importante. No poema do poeta mineiro,
anuncia-se a saída da lua do brejo em que se encontra; nos versos do poeta
recifense, enfatiza-se a proposta estética dos intelectuais modernistas. Nos dois
poemas o animal é elemento grotesco que, como diz Bousoño (in Ferreira;
51
p.25) rompe com o psicologicamente esperado, opondo-se ao nosso
conhecimento da realidade.
O sapo tanto é utilizado no poema de Guimarães Rosa como no poema
de Manuel Bandeira. Só que no poema do poeta recifense, os anfíbios assumem
uma postura mais política, ligados que estão ao projeto inicial do Modernismo,
quando dialogam em língua portuguesa sobre o pai que não foi à guerra,
criticam o parnasiano aguado, filosofam sobre ritmo, rima, norma culta, forma e
poesia, assumindo, nos versos do autor de
Vou-me embora pra Pasárgada,
a
postura ideológica dos poetas modernistas que criticam a censura, o
comodismo, o lugar-comum das estéticas anteriores. nos versos do poeta
mineiro, encontramos o mesmo anfíbio, que em situação diferente. O sapo
surge em um de seus cenários naturais para avisar que a lua surgiu. Enquanto
no poema de Rosa o feio exalta o belo; no poema de Bandeira, o feio critica
aquilo que não é mais tão belo como forma de exaltação.
Outro tema romântico explorado pelo autor de
Estas estórias
é a
saudade. Condição humana que muitas vezes levou o poeta romântico, e mais
fortemente o ultra-romântico, a permanecer no passado e ver no futuro apenas
a sua morte. A saudade é retomada nos versos rosianos como um sentimento
que faz o eu-poético viver várias situações pela oscilação temporal:
Saudade
Saudade de tudo!...
52
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...
Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
Fome angustiosa da fusão de tudo,
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
53
O Oceano,
Afogado no fundo de si mesmo...
(Rosa, 1997; p.132-133)
Este poema de Guimarães nos fez compreender o que é resgatar, no
passado, o útil para o presente. Toda concepção ideológica do poema é
romântica pelo próprio eixo temático que unidade ao versos, no entanto, a
estética do poeta revela o que ele aprendeu com os escritores consagrados da
década de trinta, ou seja, produzir uma poesia liberta, que demonstra a
difusão da estética modernista, como atesta Antonio Candido (1986; p.186).
Fica claro que o poeta da cidade de Cordisburgo é considerado um poeta
que se apresenta à Academia Brasileira de Letras com uma escrita simples que
marca sua juventude como intelectual e poeta. A poesia do autor é premiada
devido ao encontro de Guilherme de Almeida com uma estética que revela uma
tentativa de aproximação com os consagrados escritores desse momento em
relação à estética presente nos versos rosianos, fato que mostra não o avanço,
mas uma tentativa de similaridade estética e conteudística entre a obra do
poeta mineiro e a dos poetas apreciados pela crítica brasileira do momento.
2.2. Arte amena; crítica impressionista
Apesar da década de trinta ser considerado por Antonio Candido e Aderaldo
Castello (1979: p.8) como data-chave para acontecimentos que provocaram a
54
grande crise econômica mundial, aberta em 1929, motivando um decênio de
depressão; a poesia de Guimarães Rosa é avaliada por Guilherme de Almeida
(in Rosa, 1997; p.6) como:
Nativa, espontânea, legítima, saída da terra com uma naturalidade
livre de vegetal em ascensão,
Magma
é poesia centrífuga,
universalizadora, capaz de dar ao resto do mundo uma síntese perfeita
do que temos e somos. Há aí vivo de beleza todo o Brasil: a sua terra, a
sua gente, a sua alma, o seu bem e seu mal. estão “Iara”, os
Ritmos Selvagens”, a “Boiada”, “Gruta de Maquiné”,a Maleita”, o
Luar na mata”, o “Batuque”, o “Caboclo d´água”, e, principalmente,
aquela “Resposta”, que é, sem dúvida, uma das mais espantosamente
verdadeiras e doloridas páginas da nossa literatura; e todos os quatro
poemas de “No Araguaia”, uma quase epopéia na sua verde
simplicidade de água e vegetal. E ao lado disso, as mais finas
emoções líricas, como, por exemplo,“Elegia” e “Ausência”.
O fragmento acima do parecer do também poeta Guilherme de Almeida,
mostra-nos quão impressionista é o julgamento feito pelo escritor paulista,
principalmente através dos adjetivos “centrífuga, universalizadora, capaz de dar
ao resto do mundo tudo o que temos e somos”, os quais revelam a tamanha
pretensão do poeta em afirmar que os intelectuais de nossa literatura mantêm
uma necessidade de provar que a literatura brasileira pode contribuir para a
formação de outras literaturas, já que, desde o nosso Romantismo, mantiveram
55
um laço bem atado com as culturas do outro lado do oceano ( Portugal, França,
Alemanha, Itália, e até do Japão). Logo, adiantamos que inútil é buscar na
poesia de Guimarães Rosa, o escritor de obras como
Corpo de baile ( ciclo
novelesco de 1956), Grande sertão: Veredas (1956), Primeiras Estórias (1962).
O que de semelhante, em alguns poemas, é uma temática voltada ao
ambiente rural mineiro, fato que se condensa na narrativa rosiana através
da transformação dos causos mineiros em ficção.
A análise que mais adiante é feita evidencia que o eu-poético rosiano
está muito mais preocupado em confirmar a contribuição literária assinalada
por Guilherme de Almeida em seu parecer, do que, através da poesia,
representar o Brasil pelos temas que o tornam um país subdesenvolvido, como
fazem os regionalistas de trinta. O que aparece nos poemas rosianos são
exaltações de temas peculiares ao Brasil. Assim como o faz Carlos Drummond
de Andrade, conterrâneo do poeta da cidade de Cordisburgo.
2.3. O Brasil em Magma
Guimarães Rosa imagina em
Magma
um Brasil que é rico pelas lendas
folclóricas, pela fauna e flora exuberantes, pela mistura de raças que
categorizam nossa heterogeneidade cultural. O sujeito que se enuncia nestes
versos reflete a fuga que o eu mantém de sua situação atual e a busca do
mesmo para um plano imaginário que se constrói esteticamente com
metáforas, sinestesias, exagero cromático e realidades fraturadas pela
56
insatisfação que o eu-poético revela diante do caráter de mudança social
provocado pela modernidade tardia.
Optamos por analisar os poemas em simultaneidade com alguns
fundamentos teóricos que explanamos anteriormente, a fim de que fique claro
o exame dos elementos estéticos e sociais que se escondem por trás do desejo
de Guimarães Rosa escrever uma poesia, considerada por muitos, como
autêntica e essencialmente brasileira.
Para tanto, selecionamos os poemas que, de uma forma ou de outra,
apresentam uma temática voltada para o Brasil, que é visto sob uma ótica
romântica, idealizado, portanto, pela sua beleza natural, pelas raças que
formam o mameluco(o branco, o índio e o negro), pelo cromatismo que se
configura como uma estratégia de mostrar a coloração tropical de nossa nação,
pelo canto angustiado e denunciador de um sentimentalismo exagerado em
relação à condição de ser poeta.
2.4. A estrutura e a temática da obra
A estética presente nos versos rosianos oscila entre o tradicional e o
moderno. Há o verso livre; uma sintaxe mais coloquial do que erudita; a
ausência de rimas perfeitas, o que denota um labor mais condensado por meio
das palavras; uma temática voltada para o popular, principalmente quando o
eu-poético canta especificamente a sua terra.
57
O primeiro contato com a poesia de Guimarães nos permite notar as
dúvidas e as inquietações do ser humano face aos seus enigmáticos destinos.
Rosa faz surgir uma voz poética preocupada em viajar por muitas literaturas
para, quem sabe, construir algo totalmente seu. Como afirma Eduardo
Lourenço (2001; p.207-219):
Guimarães Rosa desce ao porão do Brasil como língua, e nessa
descida atravessa as camadas da fala, os tempos de uma língua que se
reinventa para poetizar memórias de um passado aparentemente morto,
e que é simplesmente a língua portuguesa, sem sujeito e com todos os
sujeitos. Como quem brinca, ele põe e repõe não apenas o imaginário
brasileiro, mas também o lusófono, na hora zero, alfa, ômega de uma
história que só existe porque alguém sonha e conta para os outros.
Há em Guimarães Rosa, o desejo de dizer algo sobre a sua terra, mesmo
que o canto seja subsidiado pelo viés da admiração, de um patriotismo que se
cobre com outras bandeiras. Em
Gruta de Maquiné
( Rosa, 1997: 35-37),
viajamos ao som de uma voz que nos chama para a gruta de Ali-Babá, instante
de alta sublimação do poeta da cidade de Cordisburgo em relação à visão
prévia que nos oferece da verdadeira gruta. Da simplicidade daquele espaço
geográfico, somos lançados através da imaginação do poeta numa gruta
fantástica, que se confunde com as das fábulas infantis. Guimarães nos conduz
numa viagem incansável pelas literaturas ocidentais e orientais, transformando
58
o ambiente grutesco menos numa representação daquela caverna de Minas
Gerais do que num espaço de ingenuidade e poesia.
Borges e Calvino (in: Nestrovsk; 1996; p.72-73) nos fazem crer que a
viagem do poeta é possível, pois “o espaço geográfico torna-se um parâmetro
predileto, conquanto pouco preciso, para as representações literárias”. A
geografia não se deixa reproduzir com facilidade; entre o elementar e o infinito
as imagens espaciais propostas por Guimarães Rosa se apresentam como
elegantes, sedutores, inconsoláveis labirintos, ou cavernas tanto mais
verdadeiras quanto mais invisíveis. O poeta mineiro se coloca na condição de
homo viator
. A viagem é algo que marca o imaginário aguçado do iniciante
poeta: a pátria é o
leitmotiv
para tal fruição literária.
A gruta de Ali-babá ainda existe
Graças a Deus, ainda existia,
Quando eu disse:
_Abre-te, Sésamo!
Na fralda da serra,
e fui entrando, deixando cá fora
também o sol, a meio céu, querendo
entrar...
Bafio quaternário. O preto
da imensa noite, anterior ao mundo,
com pesadelos agachados
59
e pavores dormindo pelos cantos
enrolados nas caldas da gelatina fria,
vem comprimir o peito e os olhos.
E ao acendermos as velas e as lanternas,
a treva se retrai, como um enorme corvo,
das paredes paleozóicas,
salitradas.
Subterrâneos de Poe, salões de Xerazade,
calabouços, algares, subcavernas,
masmorras de Luis XI, respiradouros
do centro da terra,
buracos negros, onde as pedras jogadas
não encontram fundo, como pesadelos
de um metafísico...
Flores de pedra,
cachoeiras de pedra,
moitas e sarças de pedra,
e sonhos d´água, congelados em calcário
Andares superpostos, hieróglifos, colunas,
estalagmites subindo
para estalactites,
marulhos gotejando de pontas rendilhadas
_ Plein!... ritmos do Infinito...
_Plein! ... é séculos medidos por milímetros
60
Não falemos, que as nossas vozes, baças,
recuam espavoridas
das galerias ressumantes, das reentrânceas
de um monstruoso caracol...
Rastros de ursos apeleus e trogloditas,
candelabros rochosos,
lustres pendentes de ogivas,
e a visão de Lund, sorrindo, sonhando
com fâmures de homens primitivos,
com megatérios e megalodontes...
Mas é preciso sair. Já é hora
da noite deslizar para fora da furna,
e subir, desenrolado as voltas
do píton ciclópico,
para encaixar todos os anéis, na altura,
com milhões de escamas fosforecendo
e o enorme olho frio vigiando...
(Rosa, 1997; p.35-36)
O poema nos transporta do
locus
proposto pelo eu-poético no título do
poema, levando-nos a crer que a imagem que poeta exalta não é a mesma
pensada pelo leitor ingênuo, pois percebe-se a sublimação a cada instante
iluminado pelos rápidos focos de luz. A gruta cantada pelo poeta mineiro é
quase a caverna platoniana pelo avesso, a escuridão( presente nas trevas que
61
escurecem a segunda estrofe) sugere e não limita o conhecimento. Os focos de
luz são os instantes de poesia que nos reportam a um diálogo com a literatura
universal ( Lund, Poe, Xerazade). A gruta é uma espécie de portal mágico para
o imaginário, âmbito da ingenuidade, condição para que a mímese atue.
A condição moderna do poeta em questão nos leva a concordar com
Fábio Lucas( 1973: 82) no que diz respeito ao fazer literário da modernidade.
Segundo o crítico, duas instâncias: “uma nos mostra a poesia social, outra a
sedução pelo experimentalismo; a primeira ameaça a rotina e a segunda, a
inocuidade.”
Guimarães Rosa cria uma voz seduzida pela literatura universal como
estratégia estética de conciliar sua arte com um mundo, fato que podemos
definir como pretensioso para um poeta que ainda engatinha em versos. A
pátria é percebida de maneira fraturada pelo mineiro que substitui sua nação
por uma mundo imaginário, onde outros mundos existem para explicar o dele.
Allen Tate (in: Lima, 2002; p.623) diria que o autor de
Corpo de
Baile
(1956) chega a um estágio de tensão pessoal no qual a noção de que se
escreve algo para uma leitor é perdida; o poeta a si mesmo através da
poesia. Os limites da poesia são ultrapassados, ou seja, a poesia não comunga
mais com uma causa política porque o sistema o agrada; a cidade natal é
substituída por desabafos ou lugares que extrapolam os limites do
locus
geográfico real e possível ( as metáforas são transpostas : A Gruta de Maqui
é a de Ali-Babá, por exemplo); não há mais diálogo com o leitor, pelo fato de as
coisas terem perdido o sentido, nem tampouco uma conciliação com as
62
camadas sociais privilegiadas porque o eu-poético moderno se faz intimista e
não mais categórico, o que o torna de fácil identificação.
O discurso do poeta nos faz lembrar o pensamento de Adorno (2002;
p.59) sobre a voz que narra algo para si. A visão totalizante perde toda a razão
de ser, por isso o escritor moderno se volta para si mesmo e tenta se analisar,
como fazem os poetas ultra-românticos, focalizando o mundo pelo próprio
umbigo ( egocentrismo mal resolvido). O que Adorno não percebeu é que tanto
o poeta como o narrador se sentem fraturados e precisam se reificar pela auto-
análise: metapoesia e monólogo interior, respectivamente.
Guimarães, nesse sentido, mantém a auto-análise através dos elementos
que compõem sua identidade nacional: o negro, o índio, as lendas, as águas
mineiras, a gruta (como observamos anteriormente), os pássaros, etc.
Muitos aspectos que evidenciam o imaginário mineiro são exaltados pelo
diplomata de Cordisburgo como estratégia para não se desterrar. Há, portanto,
em
Magma
uma visão panorâmica da
urbe
mineira iluminada pela modernidade
que se instaura como uma porta aberta à exposição de fraturas ideológicas,
sociais e estéticas.
De acordo com Leonel( 2000; p.77) a coletânea de poesia do autor de
Sagarana
está dividida em blocos de acordo com a temática: animais, natureza,
vida no campo, manifestações culturais negras e indígenas e temas filosóficos
os quais não serão expostos em nossa análise, pois o nosso estudo se
direciona àqueles poemas que focalizam o imaginário nacional e rural, as quatro
primeiras temáticas, portanto.
63
3.
Animais, campos e brasis rosianos
_______________________________________________
Os poemas de Guimarães Rosa revelam um Brasil vasto: animais,
natureza, vida no campo, manifestações culturais e indígenas, mitos e crendices
são alguns dos focos em que o eu-poético rosiano se centraliza para imaginar
uma nação que se mostra por sua riqueza natural e cultural.
A nossa nação é vista pelo cantar rosiano de uma perspectiva
panorâmica. O poeta explora ao máximo os elementos temáticos que se voltam
ao objetivo de apresentar o Brasil ao brasileiro, como pontua Eduardo Portella
(1975; p. 45).
3.1.
Os animais
Vários estudos biográficos sobre o autor denunciam o amor que o
médico mineiro possuía pelos animais. Por este motivo, o bestiário rosiano é
muito bem tratado em sua literatura, o burrinho pedrês é apenas uma síntese
desta afeição.
Em
Magma
(1997) vários animais são chamados para o canto de
exaltação de Guimarães Rosa:
Boiada
( Rosa, 1997; p.28),
Luar
(Rosa, 1997;
p.26);
Caranguejo
(Rosa, 1997; p.42),
Azul
(Rosa, 1997; p.57);
Meu papagaio
(Rosa, 1997; p.86),
A aranha
(Rosa, 1997; p.101);
Madrigal
(Rosa, 1997;
p.116) e
Cágado
(Rosa, 1997; p.126). Poemas considerados por Maria Célia
64
Leonel (2000: 78) não um grande exemplo de poesia, mas boas associações
entre sons e significados.
Dos poemas que assinalamos o que melhor projeta o cenário mineiro é
Boiada.
_ Eh boi!... Eh...boi!
É gado magro,
é gado bravo,
que vem do sertão.
E os cascos pesados,
atropelados,
vão martelando o chão
na soltura sem fim do Chapadão do Urucuia...
_ “ Boiada boa!...”
ancas cavadas,
costelas à mostra,
chifres pontudos de curraleiros,
tinir de argolas de bois carreiros,
sol de fornalha... poeira vermelha...
Úberes murchos,
corcovas rombas,
berros, mugidos,
bafagem suada,
sangue de ferroadas,
65
muita bicheira...
_ “Que sol!... Que poeira!...”
E a manada corre,
cangotes baixos,
focinhos em baba,
sacolejando ossos e couros,
num tropel de trovão...
_ “ Boiada boa!”
_ Galopa, Joaquim,
que o gado estoura
por esse Goiás afora!...
Enterra a espora!...”
_ “ Que sol!... Que poeira!”
barbelas moles,
lombos selados,
cachaços brutos,
_ “ Eh caracu mocho, como berra feio!”
_ “ Eh boi!... Eh boi!...”
Golpes de raspa,
refugos tontos, cornadas doídas,
gado selvagem, gado sem ferro...
_ “ Olha a vaca malhada
66
investindo os outros!...
Ferra a vara, Raimundo!...”
_ “Que terra brava!...”
_ “ Que sol!... Que poeira!...”
Cacundas ondulantes,
desabaladas,
como as águas de um rio...
_ “ Eh boi!... Eh boi!...
Novilhos rajados,
garrotes mateiros,
zebus enormes,
vacas turinas,
cheiro de curral...
_ “ Corre, Zé Grande cercar o boi preto
que esparramou!...”
_ “ Olha o bicho atacando!...
Olha o bicho crescendo na vara!...
Firma na vara, mulato bom!...”
_ “ Põe pra lá, marrueiro!...”
_ “ Verga e não quebra,
que é de pau-d’arco da beira d’água,
Seu Coronel!...”
_ “ Boiada boa!...”
O gado rola cansado,
67
e a trovoada trota
do fundo do chão...
_ Ó João Nanico, por que canta assim?...
Tem aumentado seu gado miúdo?...”
_ “ Gabarro e peste mataram tudo...”
_ “ Está pensando será na crioula?...”
_ “ Fugiu, que tempo, foi para Bahia,
por esse mundão de Deus...”
_ “ Está lembrando então de seu filho?...”
_ “ Morreu no eito, já faz um ano,
picado de urutu...”
_ Então, João Nanico,
por que canta assim?!...”
_ “ Ai, patrão, que a vida é uma boiada
e a gente canta para ir tocando os bois...”
_ “Ó João Nanico, mineiro velho,
quer vir comigo pro Paracatu?!...”
_ “ O gado é bravo? ...A pinga é boa?!...
Ai, Patrãozinho, vamos embora,
vamos embora pro Paracatu!...”
68
O boi é um animal muito representado pelos escritores que se
concentram no cenário rural brasileiro. Ele conduz os vaqueiros para as
descobertas no sertão, faz parte do imaginário místico daqueles que não foram
atingidos pelo avanço do progresso, como teoriza Roberto Schwarz (1986;
p.128). A ingenuidade deste povo que guia os bois e é guiado por eles é um
dos fatos que fazem rica a cultura popular.
A presença da oralidade é muito forte nos versos rosianos acima. A
temática da boiada que é conduzida pelo sertão mineiro é algo que leva o eu-
poético rosiano a privilegiar, na construção desses versos, diálogos que tratam
de estórias de doença e morte, algo que é comum à zona rural de todo o nosso
país. Guimarães Rosa não foge desta tradição oral porque, como intelectual, o
escritor era insatisfeito em relação ao conhecimento, ou seja, era um socrático
moderno, quanto mais sabia, tinha certeza de que ainda havia muito a ser
descoberto. Os poemas de
Magma
nos revelam este eu-poétco curioso,
insatisfeito e sempre disposto a reproduzir fatos possíveis ou abstrações
histórico-geográficas que se situam no âmbito do imaginário maravilhoso e
sobrenatural que trazem para o plano da poesia, narrativas extraordinárias,
fictícias, acima das
misérias cotidianas
, para usar termo do Cascudo (2002;
p.334).
O eu-poético rosiano, neste poema, representa bem melhor o imaginário
do animalesco do que os poemas analisados por Maria Célia Leonel(2000:78). A
boiada magra que desce o chapadão do Urucuia ilustra com mais
verossimilhança o cenário mineiro, pois animais como a aranha, o cágado, a
69
vanessa, o besouro, a águia, entre outros também exaltados pelo poeta
mineiro, apenas registram um possível diálogo autobiográfico, tendo em vista
que Guimarães possuía profunda admiração pela fauna e flora brasileira, o que
se condensa na temática bestiária como uma poesia de exaltação à natureza,
ou seja, o Brasil, nesta instância, se revela, na poética rosiana, como
locus
imaginado pelo que possui de mais belo: a natureza embeleza o que a condição
social omite. O poema acima, neste sentido, embeleza o que o progresso social
e político não modificou: o gado é magro, as costelas estão à mostra, o sol é
quente, a poeira é alta, a terra é brava, o gabarro e a peste matam o gado.
Roberto Schwarz(1987: 128) coloca que “a mística terceiro-mundista
encobre o conflito de classes e traz uma visão ingênua, herdeira dos aspectos
retrógrados do nacionalismo”, os quais compõem o cenário brasileiro cantado
pelos boêmios do nosso romantismo. Nesse sentido, os outros poemas que
possuem uma temática voltada para os animais cantados por tal concepção
estética, representam a nação brasileira por uma concepção amena ou débil de
arte, de acordo com colocação de Candido (1986; p.141).
Além do que, o autor de
Sagarana(1956)
tinha a preocupação de
registrar informações sobre os mais variados assuntos e também conhecê-los
em maior e menor profundidade; o interesse de anotar a forma e nomear os
objetos. um processo intenso de elaboração que precede a feitura dos
textos. O escritor se subsidiou em tal condição amena de representação pelo
fato de ser um poeta iniciante. Quase toda a sua obra é fruto de reescrituras e
70
releituras de obras da literatura universal, de termos ligados à diversidade da
fauna e flora brasileiras, e de termos do cânone filosófico.
3.2.
A natureza
Sendo subsidiado por tal concepção de produção literária, Guimarães
Rosa resgata a estética e ideologia românticas para cantar a beleza da natureza
do Brasil, assim como todo poeta romântico que exalta as riquezas de sua
nação.
Affonso Ávila (1994; p.46-55) mostra que o artista romântico se
impregna de uma forte carga afetiva revestida por uma capa retórica quase
sempre ingênua, impressionista e generosa quanto ao aspecto de sugerir mais
do que se instaurar como estética de contemplação de uma legítima identidade.
O avanço tecnológico nos faz ver a natureza de outra forma: parece que
o progresso aliena o homem moderno de tal maneira que este tenta se
refugiar, como os artistas românticos, na fugacidade do tempo, no século que é
passado. Para aqueles poetas que vivem as várias revoluções estéticas e sociais
do século XX, o qual tem como objetivo principal ter uma resposta para todas
as perguntas feitas pela humanidade através da ciência. A causa da alienação
se faz, portanto, pela consciência de que sempre haverá perguntas sem
respostas e o homem sempre recorrerá a uma instância divina.
O homem, também poeta, atônito, não se dá conta de que sem a
inteligência humana a ciência não avança, as máquinas das várias indústrias,
71
principalmente da cultural, não podem funcionar eximidas da criatividade que é
peculiar à racionalidade humana. É por este motivo que os poetas que cantam
o sertão, ambiente de moradia das camadas menos privilegiadas, revelam a
ingenuidade romântica com mais evidência.
Na Mantiqueira
Por entre as ameias da cordilheira
dormida,
a lua se esgueira,
como um lótus branco,
na serra de dorso de um crocodilo,
brincando de esconder.
Dá para o alto um arranco,
repentino,
de balão sem lastro.
E sobe, mais clara que as outras luas,
quase um sol frio,
redonda, esvaindo-se, derramando,
esfarelando luz pelos rasgões, do bojo
farpeado nas pontas da montanha.
(ROSA,op.cit., 1997:70)
72
O predomínio da função emotiva da linguagem é um dos tons modernos
do lirismo romântico que o poeta mineiro busca para cantar uma montanha do
estado de Minas Gerais. A cordilheira que se encontra no alto da serra revela o
olhar sublimado e flutuante do poeta que se impressiona com a pintura
sugerida pela natureza. A serra da Mantiqueira se torna mais bela quando os
reflexos da lua, que foge lentamente, dão movimentos luminosos às formas
rochosas.
Guimarães Rosa adere à estética modernista que o forma e assume a
postura de um sujeito romântico individualista, termo utilizado por Salete de
Almeida Cara (1998; p.29), que se posiciona em um estado de espírito
distanciador de sua condição existencial. Os versos cantados por esta voz que
se limita a admirar a beleza natural do revérbero do sol nascente na
Mantiqueira sugerem o cromatismo e a sinestesia, peculiares ao poeta
romântico que já anuncia breves diálogos com a estética simbolista.
O olhar rosiano que se direciona ao monumento rochoso parece mais
uma idealização romântica: o poeta canta a serra pela sua exuberância, assim
como o sol chora por causa da lua pelo fato de a mesma não poder tocá-lo. Tal
animismo não pode ser subsidiado por uma ideologia de confronto político e
cultural, como o era a poesia dos modernistas, mas sim por um pensamento
individualista, o que é um resgate da expressão literária romântica.
Outro poema que mostra a visão sublimada do poeta de Minas Gerais é
Caranguejo
(Rosa, 1997; p.42-44), animal que Guimarães utiliza como
transporte para as suas viagens ou passeios curtos por outras culturas:
73
Caranguejo
Caranguejo feiíssimo,
monstruoso,
que te arrastas na areia
como miniatura
de um tanque de guerra...
gosto de ti, caranguejo,
câncer meu padrinho
nas folhinas,
pois nasci sob as bênçãos do teu signo
zodiacal...
Teu par de puãs cirúrgicas oscila
à frente do escudo lamacento
de velho hoplita.
E mais oito patas, peludas,
serrilhadas,
de crustáceo nobre,
retombam no mole desengonço
de pés e braços muito usados,
desarticulados,
de um bebê de celulóide.
74
Caranguejo sujo,
desconforme,
como um atarracado Buda roxo,
ou um ídolo asteca...
És forte, e ao menor risco te escondes
na carapaça bronca,
como fazem os seres evoluídos,
misantropos, retraídos:
o filósofo, o asceta,
o cágado, o ouriço, o caracol...
Caranguejo hediondo,
de armadura espessa,
prudente desertor...
para as lutas do amor, quero aprender contigo,
quero fazer como fazes, animalejo frio,
que, tão calcariamente encouraçado,
só sabes recuar...
Neste poema, há uma exaltação ao símbolo do signo de Câncer: o
caranguejo, para o qual são atribuídos inúmeros adjetivos, efeito lingüístico
muito comum aos poetas que contemplam uma estética erudita, pois não é fácil
atribuir tantos modificadores a um único modificado.
75
Em relação a estes modificadores, pode-se perceber que o caranguejo
cantado por Guimarães Rosa possui atributos clássicos que determinam o
diálogo do poeta como o paradigma estético europeu de criação literária.
O caranguejo simboliza o isolamento e o fechamento do eu-poético em
relação ao mundo. A movimentação do decápode é marcada pela extensão do
poema em 37 versos, sendo a 1ª estrofe com 10 versos, a 2ª com 14, a 3ª com
6 e com 7. O poeta mineiro, pelo uso de termos lingüísticos que remetem à
pessoa do discurso (
te, ti, teu, arrastas, escondes, contigo, fazes, sabes
),
nos permite dizer que uma proximidade de discurso entre ele e o crustáceo.
Na estrofe, a partir do sexto verso, o eu-poético evidencia um dado comum
ao plano biográfico do poeta: o signo de Câncer abençoa tanto o eu-biográfico
como o poético. Na estrofe, exatamente no terceiro verso, a adjetivação de
velho hoplita
faz com que o feio se torne belo aos olhos de quem o poema.
Nos demais versos, Rosa utiliza uma enumeração de adjetivos que enaltece o
ato de isolamento do crustáceo:
Buda roxo
e
ídolo asteca
, no final da
estrofe;
misantropo, filósofo
e
asceta,
na estrofe; e
prudente desertor,
na
4ª estrofe.
Saber recuar é a ideologia moralizante que existe no poema acima, cuja
essência é de fábula. Fica implícita na adjetivação que o poeta mineiro faz do
caranguejo, a qualificação do homem moderno como avesso às diversas
oscilações de um sistema político, cultural e literário. Tal fato permite que os
intelectuais se isolem em estilos distintos, como é o caso de Guimarães Rosa,
que constrói uma literatura que se individualiza de um todo literário já escrito.
76
3.3.
Vida no campo
O jovem poeta da cidade de Cordisburgo renova a estética modernista
como um estratagema de melhor representar o rural em sua poesia, algo que é
pouco explorado por poetas modernistas que cantaram sua cidade, assim como
o fez Manuel Bandeira, que, insatisfeito com a
urbe
e o
orbe
, cria a sua
Pasárgada. A nostalgia, a solidão, a ânsia de morte expressa pelos poetas
modernistas, ultra-românticos em sua essência, serão substituídas pelas
seqüelas da maleita: doença conhecida como malária, moléstia provocada por
protozoários, causa de delírios e febres intermitentes dos habitantes da zona
rural mineira.
Maleita
Não vem mais chuva.
- Xô, rio velho!...
O Pará está desinchando, devagarinho,
está ajuntando a água.
As várzeas estão vermelinhas de lama,
E o capinzal virou um brejo podre.
_ “Vem, Compadre, ver os novilhos nadando no meloso,
e as matrinchãs pastando barro na inevernada!...”
-Xô, rio velho!...
77
- “Vamos pescar, Compadre?...
Até no fundo do quintal
tem mandis de esporão,
tem timburés, tem cascudos,
tem bagres barrigudos,
e curimatãs.
Acende o pito, Compadre,
que os moçorongos vieram também...
olha o mosquito rajado!...
Zzzzu!...
Olha o mosquito borrachudo!...
Zuuuum!...
- Xô, riachão!
O negrinho, dentro do poção,
Está pegando piabas com a peneira.
- “ Cavaca fundo, Compadre,
que as minhocas vão fugindo terra adentro.
Enrola na folha de inhame.
Traz o anzol de dourado,
Bem encastado.
Traz fumo goiano,
E as pílulas de quinino também.
- “ Mas não treme tanto, Compadre!...
78
- Xô, riachão!...
- “ Que frio!... que fri-í-io!...
Que mosquitada brava!...
Estou com a sezão dos três dias...
Ei, Compadre, vamos quentar sol naquela pedra?...”
- “Volta pra casa, Compadre, deixa de bater queixo,
vai cortar a febre
com cachaça com limão...”
- “Você também está tremendo?!...
Que frio!... Tudo treme!...
Olha os pernilongos
zunindo nos meus ouvidos!...
Olha o quinino zunindo
dentro dos meus ouvidos!...
Que frio!...
Zzzzu!... Zuuum!...
As traíras estão tremendo nas locas...
Que frio!... Até a água empoçada
está arrepiada...
- “vamos pra casa, Compadre?...”
- “Não, vamos chegar ali na ipueira,
que eu quero ver as árvores
tremendo também com a sezão...
79
(ROSA, 1997; p.38-41)
Guimarães Rosa na primeira estrofe expõe um bela visão do rio Pará em
seu processo de secamento das águas da chuva, quando os matrinchãs ( peixes
de carne saborosa) comem barro nas margens do rio. Momento sugestivo para
a voz que dialoga em todo poema com seu Compadre e neste instante o
convida para uma boa pesca.
O eu-poético rosiano aproveita para registrar seu vasto conhecimento
sobre os cardumes que se banham nas águas do rio Pará: mandis de esporão
(peixes que quando saem da água emitem um som semelhante ao do choro),
timburés( peixe de pequeno porte), cascudos, bagres e curimatãs(peixe que
possui mais de vinte e quatro espécies em todo o Brasil) compõem o cenário de
sobrevôo dos moçorongos que são espantados pela fumaça do pito do
Compadre do eu que se enuncia nestes versos.
Mais adiante, aparece o negrinho que se configura no poema como um
símbolo dos habitantes que povoam a margem do rio e saciam a fome com
piabas( peixes minúsculos). Esta imagem, sugerida pelo eu-poético rosiano,
permite- nos afirmar que, em alguns instantes de seus versos, há uma intenção
de se revelar o imaginário rural mais verossímil de nosso país, fato que também
aparece no poema através da linguagem bem próxima do discurso dos
habitantes da zona rural.
Nesse sentido, no registro dos hábitos e mazelas deste povo que
também compõe o cenário nacional, Guimarães Rosa deixa passar, no calor de
80
seu canto, um imaginário bem próximo do verdadeiro costume dos povos de
camadas menos privilegiadas. Camadas que melhor representam a cena do
subdesenvolvimento do nosso país. A literatura canônica ocidental, que é
tomada como paradigma para elaboração de outras literaturas, não apresenta
em suas poesias e narrativas, personagens que fumam pito, enrolam folha de
inhame com fumo goiano e pílulas de quinino para curar a malária, pois estes
objetos de representação são encontrados na literatura de escritores que
tem como referencial de exaltação espaços geográficos marcados pelo atraso
econômico.
3.4. Manifestações culturais negras e indígenas
Por mais que se diga o contrário, a arte literária ainda é o espaço onde
se observam registros que mostram como se a consciência humana em
relação a alguns aspectos sociais. A representação do índio e do negro em
nossa literatura é um desses registros.
Os escritores pioneiros em relação a esta temática não se preocuparam
com o princípio aristotélico da verossimilhança. O índio e negro exaltados pelos
intelectuais do século XIX já mostravam uma postura de escravo obediente aos
ideais da colonização européia, pois ainda não havia a certeza, por parte dos
intelectuais românticos, de que “a literatura em suas relações interdiscursivas
nega o caráter de produto isolado e autônomo, sem redução ao simples reflexo
81
especular do contexto sócio-cultural que a informa”, de acordo com a colocação
de Farias(1997; p.8).
Muitos poetas românticos brasileiros limitaram-se a esta redução e
esqueceram que estavam deixando aflorar, através de sua literatura, o desejo
de ser mais um escritor reconhecido pelo cânone europeu, como aconteceu
com Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevêdo, etc.
Nesse sentido, percebemos que manifestações culturais negras e
indígenas aparecem em nossa literatura como um eixo temático de revelação
da formação de nossa nação. Os artistas do século XX retomam esta temática,
mais romântica do que moderna, com a finalidade de amadurecer estética e
ideologicamente o que não foi desenvolvido no século XIX. Guimarães Rosa
utiliza esta sugestão e canta, como também dialoga, como os escravos
mineiros:
Batuque
A negrada dança,
e nunca descansa,
no chão do terreiro,
de pés no chão...
_ “A premera imbigada
é papudo qui dá.
82
Eu também sou papudo,
eu também quero dá...”
E o batuque ferve,
e a sanfona geme,
e a violada chora,
arrastando a função...
comidas finas, querendo comer,
bebidas finas, querendo beber:
pau-a-pique, cobre, bolo de fubá,
cachaça queimada, garapa e aluá...
Cheiro de negro, catingada brava,
chitas luzentes, já amarrotadas.
o Felão que vão veio, graças a Deus,
que eu tenho muito medo de seu Felão...
(Tenente Felão, cabra malvado,
que foi capitão-do-mato, noutra encarnação...,
_ “Felão veio?”
_ “Num vei não...”
_ “Pruquê qui nun veio?...”
_ “Nun sei não...”
Sapateio, patadas, em pés, em pancadas,
83
pisando, pelados, aos pulos pesados,
a poeira do chão...
_ “Corre, gente, fui envém sordado!...
Some, gente, qui envém Felão!...”
_ “Pula, negrada, no meio do terreiro,
que eu vou ensiná vocês a dançá!...
Dança de refe, sanfona e rebenque,
Olá, violero, começa a tocá!...
Quem fugi, fogo nele, no meio da testa,
E não tem i nem a, se a justiça manda!...”
E têm de dançar a noite inteira,
a noite toda, sem parar...
_ “Canta, cambada, o que tavam cantando
antes de Felão chegá!...”
_“Felão veio?...”
_ “Nun vei não...”
_ “Pruquê que nun veio?...”
_ “Nun sei não...”
E a negada dançando, e os refes batendo
nossa gente preta,
que em trezentos anos
84
sofreu a apanhar..
(ROSA, 1997:104-107)
O canto rosiano traz à nossa memória todo o cenário do povo que sofreu
com a dominação da classe alta brasileira formada pelos ideais burgueses dos
colonizadores europeus, ou seja, o poeta mineiro nos mostra que a cultura
hegemônica assimila o outro, recalcando hierarquicamente, os valores
autóctones ou negros que com ela entram em embate, para lembrar as
palavras de Silviano Santiago(1982; p.17), que reforça a idéia, dizendo que no
Brasil, o problema do negro, antes de ser a questão do silêncio, é a
hierarquização dos valores.”
O poema
Batuque
deixa evidente a hierarquia dos valores na figura do
capitão do mato Felão, que representa a ordem dos donos dos escravos;
fazendeiros que usavam as negras como objeto de desejo e os negros como
máquinas lubrificadas pelo suor provocado por meio do calor do sol que não
iluminava a consciência desses que impunham aos negros os valores da
colônia.
Ao contrário do índio, o negro, em nosso país, era um estrangeiro que
não tinha nenhum privilégio. Enquanto o rei de Portugal visitava o Brasil como
sua nova colônia, os reis negros eram tratados de forma inóspita nas senzalas.
Segundo Luís da Câmara Cascudo(2002, p.418-420), este mesmo negro
africano nos legou vários hábitos e costumes religiosos, culinários,
enriquecendo a nossa cultura.
85
Muito da cultura popular brasileira se formou a partir da contribuição de
nossos irmãos da África. Tal dado fica registrado no poema de Guimarães Rosa
no início da segundo estrofe, no instante em que o eu-poético rosiano se utiliza
de um canto popular que é retomado pela música popular brasileira.
Batuque,
título do poema de Guimarães, é uma dança de origem africana que aparece
em várias localidades, sendo conhecida em São Paulo como dança do terreiro
ou Umbanda, e no Rio Grande do Sul como Macumba, realizada em praça
pública ou em terreiros. Da cerimônia, participam homens e mulheres que
cantam e dançam, batendo palmas ao som de atabaques (tambores). Na
coreografia, o passo da umbigada, encontro ligeiro dos ventres, para indicar
que o dançarino solista deverá ser substituído por outro. A umbigada aparece
no primeiro verso da segunda estrofe do poema de Rosa escrita pela forma
popular, dando mais originalidade ao canto do poeta.
A arte literária deve instigar a nossa posição ctica em relação a esta
condição humana que é a certeza de não poder alterar ou anular a cultura do
outro, pois deve prevalecer a idéia de acréscimo cultural, tendo em vista que
cada nação tem algo a contribuir para as demais.
Flora Süssekind (1982; p.22), quando busca as representações do negro
na literatura dramática brasileira, estabelece três conceitos relevantes em
relação à função deste personagem. O negro é uma
metáfora
dentro de um
discurso amoroso e patriótico; um
arlequim,
quando tece e desfaz tramas, mas
está sempre submetido, enquanto eterna criança, à autoridade e ao lar
senhoriais; e como
negro,
num momento posterior à Abolição, em que se
86
necessita de uma máscara racial que, colada ao rosto negro, sirva de
instrumento de controle nas mãos daqueles que desejam mantê-lo a seu
serviço.
O negro aparece no poema rosiano sob a perspectiva do segundo modo
de representação: como um negro-arlequim que teme a chegada de Felão,
tenente que foi capitão do mato, representação de figura senhorial, que, nestes
versos, aparece para acabar com a alegria dos estrangeiros africanos. A dança
perpassa todo o poema, o discurso coloquial, presente no poema em prosa,
separa, pela hierarquia lingüística da norma culta e coloquial, a voz do poeta e
a do negro.
Pelo valor social o negro pode ser visto sob dois aspectos, conforme
Paulo Prado (1931; p.190), como fator étnico, intervindo pelo cruzamento
desde os primeiros tempos da colônia, e como escravo, elemento
preponderante na organização social e mental do Brasil”. O poema de Rosa,
como observamos, traz a segunda perspectiva. O negro que, dentro de sua
senzala, dança provocado pelo ritmo da sanfona e da viola, que mais tarde vai
dar origem ao famoso samba brasileiro.
A cultura africana também forma de maneira indireta a nossa cultura,
através da culinária, dos dogmas religiosos, da dança, e principalmente por
meio do respeito às alteridades sociais e hegemônicas. O aspecto culinário
aparece nos sétimo e oitavo versos da segunda estrofe, através do pau-a-
pique, cobu, bolo de fubá, cachaça queimada, garapa e aluá; aspecto religioso,
pela recorrência a Deus para que seu Felão, representação do senhor, não
87
chegue à senzala; e a dança é mais evidente na sexta estrofe pela aliteração
da consoante “P”:
sapateio, patadas, em pés, em pancadas,/ pisando, pelados,
aos p
ulos pesados,/ a poeira no chão...
. Paulo Prado (1931; p.193) afirma que
“o negro não é um inimigo: viveu, e vive, em completa intimidade com os
brancos”. O negro é uma raça feliz que, mesmo sofrendo o poder de quem tem
os chicotes na mão, contribui para a formação do povo brasileiro.
Outro cenário explorado pelo canto de exaltação rosiano são os ritmos
inerentes às matas brasileiras, sons que revelam ao naturalismo dos povos que
foram aqui encontrados quando das naus lusitanas os colonizadores lançaram
as cordas do enforcamento e as âncoras da imposição:
Ritmos selvagens
O pica-pau, vermelho e verde,
paralelo ao tronco
branco de papel de uma mirtácea,
como um poeta, que desde a madrugada
vem fazendo o retoque dos seus versos,
martela com o bico, na casca da árvore,
o poema dos índios caiapós:
- “Índios escuros, das terras fechadas,
que ninguém pisou,
dos chapadões a meio caminho dos grandes rios,
88
broncos e brutos, sem arcos nem flechas,
rompem cabeças de missionários a cacetadas,
fazem tremer, fazem correr as outras tribos,
voam no campo atrás dos cascos dos veados,
matam veados só com pauladas,
caiâmu-poguê-dje-ipô!
...”
Depois de pendurar num ramo de cajueiro
a casa de cômodos
em cartolina cônica e amarela,
os estúrdios marimbondos-de-chapéu
saem dos alvéolos e fermentam no ar,
num remoinho de ferrões e de asas,
zumbindo o hino dos índios das matas:
- “ Bem escondido entre as ramadas da beira d’água,
como curta e grossa jibóia quieta,
toda enroscada nas penas lindas de uma arara
que devorou,
o nhambiquara, de rosto escuro, zigomas pintados
a jenipapo,
fica dez horas, todo encolhido, de bote armado,
os olhos vivos, o arco pronto, muita paciência,
e trinta flechas envenenadas...”
89
O paturi, no alto,
deixa escapar do bico a piaba,
que desce no ar como uma gota
de mercúrio vivo,
e grasna para a lontra, que avança n’água,
em linha reta, como um torpedo,
notícias novas que trouxe do Xingu:
- “O bacairi, belo e tranqüilo,
com o arco vermelho de guarantã,
parece mudo, parece bobo, olhando a água,
e joga a flechada no rio crespo, fisgando o lombo
de um surubi...
E fica triste, e fica bravo, porque a ponta da flecha
longa
pegou dois dedos mais para baixo, no dorso liso do peixe
de ouro,
que ele nem viu...”
Triste tucano, de bico armado,
descompensado, maior que o corpo,
chega voando e toma de assalto
um dos fortins de terra vermelha
que as térmitas vão escalonando pela campina,
e, bem na grimpa de cocoruto,
desprende a queixa dos índios do sul:
90
-“Os índios moles, sujos e tristes,
que não têm redes, que falam manso e dormem no chão,
e pulam batendo com as mãos nas pernas
ensangüentadas
das ferroadas das muriçocas,
e cantam semanas, tirando da carne dos esqueletos, o
bacororo,
grandes batoques nos beiços grossos, sempre tremendo,
pobres bororos,
sentem a onça a três quilômetros, na mata espessa,
bem antes da fera os farejar...”
E o jacaré crespo, de lombo verde, de papo amarelo,
ensina à arara,
toda azul, de patas pretas, de pálpebras pretas,
que ensina o gavião, que passa no vôo, fino e pedrês,
que ensina a um bando, que vai de mudança, de
maracanãs,
o canto das índias dos carajás:
- “Carajás das praias do Araguaia,
meio vestidas, meio peladas, mal domesticadas,
mulheres roxas, de nariz chato, de pés enormes,
trincando piolhos nos dentes brancos,
91
índias pesadas, quase na hora de dar à luz,
vêm nas pirogas, em troncos bambos, finos, compridos,
com cachos de meninos, curumins vivos, equilibrados,
dependurados,
e as canoinhas passam, à flor das águas, como coriscos,
à frente dos ventos, batendo piranhas, vencendo asas e
pensamentos
Araguaia abaixo, do Caiapozinho até Conceição...”
O dia inteiro, as águas ouviram,
e as matas entenderam,
as vozes que o vento vai levando
para o oeste, para longe, para além do Cuelene,
onde o sol se apaga, como a fogueira da última taba,
onde os cocares dos buritis pendem imobilizados,
e o rio marulha a canção dos guerreiros
que vão desaparecer...
(Rosa, 1997; p.20-25)
Na primeira estrofe do poema acima, o eu-poético compara seu processo
de elaboração de versos com as bicadas do pica-pau na casca do tronco da
árvore. A produção destes versos, para o eu-poético rosiano, parece, pelo que
denota a comparação, o resultado de trabalho lento e árduo. Assim como é
92
trazer para o cenário poético os índios caiapós, selvagens que foram resistentes
ao processo de colonização, ricos por preservar suas terras até os dias atuais.
Na segunda estrofe, fica clara a resistência, quando o eu-poético canta
Índios
escuros, das terras fechadas/ que ninguém pisou.
A selvageria é presente no
quinto verso da segunda estrofe, quando é dito rompem
cabeças de
missionários a cacetadas.
O poeta mineiro coloca o índio caiapó em seu cenário
natural, momento em que deixa fluir sua percepção deslumbrada no instante
em que é cantado o hino do índios das matas, ato que revela a veneração pela
fauna brasileira: jibóia, o paturi, a lontra, o bacairi, o surubi e o tucano que do
bico armado se queixa dos índios do sul. O poeta deve se referir, como informa
Graziela Silva ( disponível em www.brazcubas.br), aos índios Xokleng e
Kaingan, indígenas pertencentes ao grupo linguístico jê. Sua área de ocupação
abrangia entre o litoral e o planalto desde as proximidades de Porto Alegre -
Rio Grande do Sul, a as proximidades do Rio Paranaguá Paraná. Estes
índios lutavam entre si pela caça e pela pesca. As duas últimas estrofes deste
poema são dedicadas à beleza do canto das índias Carajás.
Flora Süssekind (1982; p. 20), quando analisa as obras dramáticas de
José de Alencar, afirma que não é mais o índio, o grande herói da
nacionalidade.” Guimarães Rosa nos mostra que a proposta do escritor
moderno diverge um pouco da exaltação do poeta romântico, no momento em
que o índio é representado, em seus versos, pelas suas peculiaridades e não
como um ser modificado por um sistema de catequese, como nos mostram os
registros literários dos séculos XVIII e XIX.
93
O índio cantado por Guimarães Rosa é bem diferente do exaltado por
Gonçalves Dias e José de Alencar. Ele não é vestido com as pompas lusitanas,
nem tampouco se comporta como herói da tradição clássica, assim como são
Peri e Iracema, simplesmente representa um símbolo da nossa formação
heterogênea, miscigenada. A espontaneidade de um ser selvagem é o que
marca a sua brasilidade.
Várias tribos são exaltadas pelo eu-poético, que, em instância épica,
caracteriza os índios caiapós como guerreiros que rompem cabeças de
missionários e não se deixam romper, são avessos ao processo de colonização.
Os índios nhambiquara,tribo do Mato Grosso, se vestem de brasis (ramadas da
beira d’água, penas de arara, pintura de jenipapo, armado com flechas
envenenadas). Os índios dos sul são mansos, dormem no chão, têm
sensibilidade animalesca. As índias carajás do Araguaia não apresentam a
beleza afrodisíaca de Iracema: são mal domesticadas, roxas, de nariz chato, de
pés enormes, trincam piolhos nos dentes.
A mímese de representação, conforme teorização de Luiz Costa
Lima(2003; p.180), se propõe a trazer para plano poético o correlato das
representações sociais que mostram ao indivíduo o meio a que ele está ligado,
“a mímese supõe algo antes de si a que se amolda, de que é análogo, algo que
não é a realidade, mas uma concepção da realidade”. A referida categoria
mimética não parte da destruição de um substrato, não radicaliza o trabalho
poético no sentido de despojar-se ao máximo dos valores sociais e da maneira
como eles enfocam a realidade. Este é o recurso utilizado por Guimarães para
94
enaltecer os indígenas brasileiros, utilizar os elementos que são peculiares e
familiares aos mesmos. O belo se faz pelo verossímil e não pela desconstrução
do que já está desconstruído. Não se pode ver o Brasil pela imagem desfocada.
O eu-poético rosiano imortaliza o índio pelo que ele apresenta de natural e
discrepante em relação ao cantado por um viés romântico que mais enfatiza o
sema da diferença do que o da semelhança. Costa Lima (2003; p.25) mostra
que a nossa mímese é a imitação da imitação, pois nos leva a compor e
valorizar nossos aspectos culturais em função de um padrão metropolitano que
dita como a realidade deve ser imitada assim como o faz Guimarães quando
canta o seu índio.
Na esteira da exaltação às peculiaridades do povo brasileiro, Rosa canta
em sua coletânea os mitos e crendices de nossa nação:
A Iara
Bem debaixo das colinas de ondas verdes,
onde o sol se refrata em agulhas frias,
descem todas as sereias dos mares e dos rios,
irreais e lentas, como espectros de vidro,
para palácio de madrépota de Anfritite,
em vale côncavo, transparente e verde,
num recanto abissal, como uma taça cheia,
entre bosques de sargaços, espumosos,
e rígidos jardins geométricos de coral...
95
Por entre os delfins, sentinelas de Possêidon,
afundam, suspensas, soltas, como grandes algas,
carregando os jovens afogados:
Ondinas das praias, flexuosas,
Nixes da água furtacor do Elba,
Havefrus do Sund e Russalkas do Don...
Loreley traz nos esmalte doce dos olhos
duas gotas do Reno...
E Danaides laboriosas se desviam dos cardumes
de Nereidas,
que imergem, ondulando as caudas palhetadas
dos seus vestidos justos de
lamé
...
Mas a Iara não veio!...
Mas a Iara não vem!...
Porque a Iara tem sangue,
porque a Iara tem carne,
sangue de mulher moça da terra vermelha,
carne de peixe da água gorda do rio...
Iara dos olhos verdes de muiraquitã,
cintura pra cima cunhantã,
cintura pra baixo tucunaré...
que veio, dormindo, Purus abaixo,
96
filha do filho do rei dos peixes
com uma índia branca Cachinauá...
Lá bem pra trás da boca aberta do rio,
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
ela ficou, cheia de medo,
brasiliana, tapuia, morena,
tão orgulhosa,
que não quer ser desprezada pelas outras...
A Iara é preguiçosa,
tão preguiçosa,
que não canta mais as trovas lentas
em nheengatu:
- “Iquê, ianê retama icu,
Paraná inhana tumassaua quitó...”
Nem mais se esforça em seduzir
o canoeiro mura ou o seringueiro,
meio vestida com a gaze das águas,
na renda trançada dos igarapés...
E eu tenho de chorar:
-“ Enfeitiça-me, ó Iara,
que eu vim aqui pra me deixar vencer...”
97
Mas custa-me encontrá-la,
e só à noite sem bordas dessas terras grandes,
quanto a lua e as ninféias desabrocham soltas,
posso beijá-la,
nua,
dormida,
esguia,
bronzeada,
oleosa,
na concha carmesim de uma vitória régia,
tomando o banho longo
de perfume e luar...
(Rosa, 1997; p.16-19)
O neo-romantismo do eu-poético rosiano o embebeda de uma imagem
de sereia que foge aos padrões da mitologia greco-romana, muito embora
apareça nos versos acima toda uma imagética mítica clássica como Danaides,
Nereidas, delfins, o deus Possêidon. A Iara, mito do folclore brasileiro lembrado
por escritores como Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Cecília Meireles entre
outros, aparece nos versos rosianos como uma ninfa da Amazônia que se
distancia das características físicas das Danaides e das Nereidas, pois tem
sangue quente “da terra vermelha” ( O Brasil), da cintura para cima é uma
adolescente, é neta de Netuno, preguiçosa como Macunaíma.
98
A Iara não seduz os nautas das grandes carinas do ocidente e sim o
canoeiro e o seringueiro da Amazônia. O eu-poético quer ser enfeitiçado pela
sereia brasileira que nasce da crendice popular do povo mineiro.
A índia mais uma vez aparece vestida com peculiaridades de nossa
brasilidade. O eu-poético rosiano não se exime da exaltação deslumbrada dos
poetas românticos, porém constrói a imagem de nossos antepassados com o
exagero da beleza de arquétipos que lhes são comuns ( da cintura para baixo é
um tucanaré, tapuia morena que se veste com a renda trançada dos igarapés,
etc). Porém, apela quando mostra seu contato com a sereia, situando-a em
uma morada dos mitos gregos: a concha carmesim (
locus
do nascimento da
deusa Vênus) de uma vitória régia (planta característica da Amazônia).
A presença de relações com a mitologia greco-romana é uma forma de
mascarar a cultura popular folclórica de nosso país. Guimarães Rosa poderia
cantar a Iara sem fazer analogias com ninfas ou Danaides gregas, pois o
contexto é totalmente diferente. A Iara é uma personagem tipicamente
brasileira que dispensa analogias, suas próprias características já são um bom
poema, pois como afirma Câmara Cascudo (2002; p.214) as lendas são a
tradição viva do pensamento primitivo e do desenvolvimento intelectual das
épocas de sua origem.
Outro mito buscado por Guimarães é o do caboclo, personagem típico da
miscigenação brasileira:
99
O caboclo d’água
No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas se ensaboam
antes de saltar.
e lá embaixo, piratingas, pacus e dourados
dão pulos de prata, de ouro e de cobre,
querendo voltar, com medo do poço,
da quarta volta do rio,
largo, tranqüilo, tão chato e brilhante,
deitado ao meio bote
como uma boipeva branca.
Na água parada,
entre as moitas das sarãs e canaranas,
o puraquê tem pensamentos
de dois mil volts.
À sombra dos mangues,
que despetelam placas vermelhas,
dois botos zarpam, resfolegando,
com quatro jorros,
a todo vapor.
E os jacarés compridos, de olhos esbugalhados,
soltam latidos, e vão fugindo,
estabanados, às rabanadas, espadanando,
porque do fundo
100
do grande remanso, onde ninguém acha o fundo,
vem um rugido, vem um gemido,
tão pouco e feio, que as ariranhas
pegam no choro, como meninos.
O canoeiro
que vem no remo, desprevenido,
ouve o gemido e fica a tremer.
É o caboclo d’água,
todo peludo, todo oleoso,
que vem subindo lá das profundas,
e a mão enorme, preta e palmada,
de garras longas,
pega o rebordo da canoinha
quase a virar.
E o canoeiro, de facão pronto.
fica parado, rezando baixo,
sempre a tremer.
Crescendo d’água, lá vem a máscara,
negra e medonha,
de um gorila de olhar humano,
o caboclo d’água
ameaçador.
101
E o canoeiro já não tem medo,
porque o Caboclo o olhou de frente,
todo molhado,
com olhos tristonhos, rosto choroso,
quase falando,
quase perguntando
pela ingrata Iara,
que, já faz tempo, se foi embora,
que há tantos anos o abandonou...
(Rosa, op.cit.; 1997: 92-94)
A recorrência às lendas da Iara reforça o que foi dito anteriormente.
Por ser considerada a mãe das águas, a Iara, como dicionariza Cascudo (2002;
p.248) é conhecida em todo Brasil como sereia européia, alva, loura, meio
peixe, cantando para atrair o namorado, que morre afogado querendo
acompanhá-la para as bodas no fundo das águas. No poema rosiano, isto se
repete, que a Iara não é um loira européia e o namorado apaixonado é um
caboclo. Rosa sempre retoma temas já explorados pela literatura brasileira para
se distanciar do já dito.
O que Cascudo (2002;p.88) chama de caboclo d’água, “criatura
fantástica que vive no rio São Francisco, favorece tudo aos amigos, a quem ele
chama de compadres do caboclo d’água, e persegue ferozmente os pescadores
e barranqueiros com quem antipatiza, virando canoas, erguendo ondas,
derrubando as barreiras, afugentando pescarias. Mora nas ribanceiras mais
102
profundas, ermas e sossegadas”. Este arquétipo é retomado pelo poeta
mineiro.
O que Guimarães Rosa acrescenta através de uma percepção amena de
exaltação sobre o caboclo d’água é seu instinto animalesco. Ele geme e não
chora, ruge a ponto de assustar as ariranhas, espécies de lontras que se
banham nas águas do rio Amazonas. Als, Rosa, quando idealiza o Brasil, em
seu aspecto selvagem, sempre se volta para um imaginário que tem como
âmbito as águas e os rios da Amazônia. O caboclo exaltado por Rosa é como o
cantado pelos versos populares do poeta paraibano Zé da Luz:
O qui é Brasí Caboco?
É um Brasi diferente
do Brasí das capitá.
É um Brasi brasilêro,
sem mistura de instrangero,
um Brasi nacioná!
É o Brasi qui não veste
liforme de gazimira,
camisa de peito duro,
com butuadura de ouro...
Brasi caboco só veste,
camisa grossa de lista,
carça de brim da “polista”
gibão e chapéu de coro!
103
Brasi caboco num come
assentado nos banquete,
misturado cum os home
de casaca e anelão...
Brasi caboco só come
o bode seco, o feijão,
e as veiz uma panelada,
um pirão de carne verde,
nos dias da inleição
quando vai servi de iscada
prus home de posição.
Brasi caboco num sabe
falá ingrês nem francês,
munto meno o português
qui os outros fala imprestado...
Brasi caboco num inscreve;
munto má assina o nome
pra votar pru mode os home
Sê gunverno e diputado
Mas porém. Brasi caboco,
é um Brasi brasileiro,
sem mistura de instrangero
Um Brasi nacioná!
É o Brasi sertanejo
dos coco, das imbolada,
104
dos samba, dos vialejo,
zabumba e caracaxá!
É o Brasi das vaquejada,
do aboio dos vaquero,
do arranco das boiada
nos fechado ou tabulero!
É o Brasi das caboca
qui tem os óio feiticero,
qui tem a boca incarnada,
como fruta de cardoro
quando ela nasce alejada!
É o Brasi das promessa
nas noite de São João!
dos carro de boi cantano
pela boca dos cocão.
É o Brasi das caboca
qui cum sabença gunverna,
vinte e cinco pá-de-birro
cum a munfada entre as perna!
Brasi das briga de galo!
do jogo de “sôco-tôco”!
É o Brasi dos caboco
amansadô de cavalo!
É o Brasi dos cantadô,
desses caboco afamado,
105
qui nos verso improvisado,
sirrindo, cantáro o amô;
cantando choraro as mágua:
Brasi de Pelino Guedes,
de Inácio da Catingueira,
de Umbelino do Texera
e Romano de Mãe-d’água!
É o Brasi das caboca,
qui de noite se dibruça,
machucando o peito virge
no batente das jinela...
Vendo, os caboco pachola
qui geme, chora e soluça
nas cordas de uma viola,
ruendo paxão pru ela!
É esse o Brasi caboco.
Um Brasi bem brasilero,
sem mistura de instrangêro
Um Brasi nacioná!
Brasi, qui foi, eu tô certo
argum dia discuberto,
pru Pêdo Arves Cabrá.
(Luz, Zé da; disponível em www.secrel.com.br/jpoesia)
106
O poeta paraibano, assim como o poeta mineiro, exalta o brasilidade de
nosso país, libertando-o das influências estrangeiras, fato que, segundo o canto
deste poeta, não impede que o povo brasileiro descubra o Brasil caboclo,
mestiço. Concordamos com Roberto Schwarz (1986; p.31-32) quando este
endossa que a intelectualidade brasileira deve buscar um nacionalismo de
fundo genuíno, sem o adultério provocado por dependência às modalidades
artísticas do influxo externo. O Brasil possui uma riqueza invejável. Os
intelectuais brasileiros, quando tomam a sua pátria pelo aspecto verossímil,
deixam que os leitores percebam que a nação brasileira possui algo a ser
explorado. É isso que encontramos tanto no canto do poeta nordestino como
no canto poeta mineiro, claro que em proporções estéticas bem divergentes,
mas em essência ideológica idêntica porque o Brasil é forte pelas várias
mestiçagens que o formam. Isso é possível pelo olhar neo-romântico que
embebeda os poetas que propõem, como diz Antonio Candido (2000; p.121),
separar a mãe pátria (Portugal) da mãe filha, antiga Terra de Santa Cruz.
Um outro aspecto que merece atenção, no poema de Guimarães Rosa, é
o amor do caboclo pela ninfa do Amazonas, sentimento que faz o selvagem
sofrer a ponto de misturar suas lágrimas com as águas do rio. Como em todo
texto que possui uma nuança mítica em relação às gêneses de um povo, pois é
através do amor mestiço que surge a nação brasileira, como bem idealiza de
forma simples o poeta de Minas Gerais.
3.5. O poemeto épico rosiano
107
Como todo poeta de formação européia, Guimarães também tenta
escrever a sua epopéia. As sagas homéricas e camonianas são mais um
subsídio que revela como o poeta mineiro era pretensioso diante de sua
construção em versos.
Havia, por parte de Rosa, o desejo de surpreender os intelectuais da
Academia Brasileira de Letras por meio da inovação lingüística e estrutural, e
as veredas do Araguaia, nesse aspecto, é o mote para tal pretensão. O poeta
mineiro recorre à figura do índio, buscando uma nova forma de o inserir no
cenário nacional.
Os poemas citados abaixo não são poemas épicos, mas possuem uma
voz que, segundo Jakobson (in: Wellek & Warren; p.285), é considerada épica
por estar em terceira pessoa no tempo passado, característica comum ao
narrador das epopéias clássicas. O eu-poético rosiano exalta a figura de um
índio carajá que vive em terras por onde passa o Rio Araguaia.
Não encontramos também nos versos abaixo o paradigma estético
clássico da epopéia. O poema é composto de quatro cantos que exaltam o índio
carajá Araticum-uassu. Nestes versos, as partes da epopéia (proposição,
invocação, dedicatória, narração e o remate ou epílogo), conforme colocação de
Soares (2001; p.39-40), não são observadas , pois o fato cantado não é
grandioso como os feitos das epopéias homéricas e da camoniana. O que é
um poema em prosa de nuances épicas.
No Araguaia I
108
Nestas praias sem cercas e sem dono
do velho Araguaia,
achei um amigo, escuro,
de cara pintada a jenipapo e urucum:
o carajá Araticum-uassu
Seus músculos são cobras grossas
que incham sob o couro moreno;
suas narinas têm sete faros;
e nos seus ouvidos há cordas sutis, onde ressoa o pio
curto e triste,
que, mais de um quilômetro distante,
solta o patativo borrageiro.
Quando o rio ensolado enruga, em qualquer ponto,
a lâmina lisa de níquel molhado,
ele traduz, na esteira da mareta,
com o binóculo faiscante dos olhos,
o tamanho e a raça do peixe que navega escondido.
E a flechada vai arpoar, certeira, debaixo d’água,
o pacamã ou o pirarucu.
A mata não lhe dá mais surpresas
(tem vinte presas de onça preta no colar),
nem o rio lhe conta mais novidades
109
(ele é capaz de flutuar, até dormindo,
correnteza abaixo, como um pau de pita).
Hoje, eu lhe perguntei:
- “Como foi feito o mundo,
ó patrício Araticum-uassu?...”
Ele riu, deu um mergulho no rio,
E emergiu, com a cabeleira em gotas,
Sem precisar de falar...
-“ Bem mas o que é mesmo a vida, meu irmão
moreno?...”
Araticum-uassu riu com mais gosto ainda,
e saiu a remar, com esforço simulado,
tangendo a piroga corredeira acima...
-“Muito bem, amigo, quero saber, agora,
o que pensas do amor...”
Desta vez ele não riu – franziu o rosto ,
e jogando o remo de taquara,
deitou-se na canoa, indiferente,
com olhos fechados, braços cruzados,
e deixando-se levar pela corrente, à-toa,
sumiu na curva, atrás do saranzal...
(Rosa,1997; p.102-103)
110
O Rio Araguaia, espaço escolhido para o canto rosiano, rio das araras ou
papagaio manso, no dialeto Tupi, nasce em Goiás e faz parte da bacia
amazônica. Os índios Carajás habitam às margens deste rio que o poeta
mineiro exaltou em quatro poemas. O eu-poético aparece explicitamente no
poema e exalta o índio pelas suas características específicas (caçador,
pescador, observador e guerreiro). O versos apresentam metáforas simples,
conforme teoria de Gerard Dessons (1992; p.70), como
seus músculos são
cobras grossas.
Na terceira estrofe, o poeta utiliza uma organização formal
diferente para dizer que quando rio seca, os peixes são visíveis à distância dos
olhos atentos do índio, momento em que o poeta utiliza mais uma metáfora
simples,
binóculo faiscante.
Outro ponto importante do poema é quando o poeta, na quinta estrofe,
inicia o primeiro verso com o advérbio hoje, para mostrar que o passado não é
tão distante para o leitor.
O índio tem nome, Araticum-uassu, e conversa com o intelectual,
personificado no poema pela voz do poeta. A estratégia de trazer o índio para o
plano literário é uma estratégia iniciada pelos poetas românticos de primeira
fase, mas a forma como esta temática é organizada no texto é extremamente
moderna. A este oscilação entre o romântico e o moderno, para reforçar,
lembramos que é o que Mário de Andrade (2001; p.41) chama de neo-
romantismo, uma das características das poetas da década de trinta.
111
No Araguaia II
O mato está cheio de caminhos frescos,
que eu não posso enxergar.
Mas Araticum-uassu vem comigo,
cheirando o ar escutando o vento.
ele matou um tracajá
e mandou as tocandiras
fazerem uma saboneteira para mim.
-Vamos mais devagar, Araticum-uassu,
que eu não tenho pernas de suassu-pucu...
Araticum-uassu ficou parado,
ouvindo,
está namorando o capinzal rasteiro,
virou bicho do mato.
E mostra com os dedos:
- Aqui tem três rastros!...
para mim tudo aqui é cerrado sujo,
mas ele está vendo uma encruzilhada.
Sinal de pés calçados, na terra fofa,
capim amarrotado.
Cortaram com facão a cordoalha de cipós,
e botaram, lá diante, um saco no chão.
112
Deve ter muito fumo, muita carne-seca,
na bagagem dos Padres da missão.
Um bem-te-vi, como um floco ouro-verde,
avisa, do pique da lança de um coqueiro:
- Auiri coti!... Auiri coti!...
Auiri!... Auiri!...
Aqui afloraram, de leve, o chão,
os pés de veada de uma carajá.
deve ser a bonita Auá-naru,
que deixou cair um cacho de bogari,
e vai pela praia, procurando amor...
As rolinhas sussurram, nos ramos de assa-peixe:
- Inantu diadomã!... Inantu diadomã!...
Dia-domã!... Dia-domã!...
O que leva à mata é rastro largo,
gente forçuda, cheiro de carniça,
sangue miúdo respingado,
fiapos pretos nos carrapichos.
Foram três guerreiros tapirés,
carregando morto um jaguaretê-pixuna.
Riscos de lança na gameleira,
vêm armados, querendo brigar...
Um caratá traça três zeros no alto,
113
e comanda, fanhoso:
- Uer-rrê!... Uer-rrê!...
Corrotê!... Corrotê!...
Araticum-uassu está calado...
- Auiri!... Auiri!...
Araticum-uassu está sorrindo...
- Dia-domã!... Dia-domã!...
Araticum-uassu alisa o porrete
- Corrotê!... Corrotê!...
Araticum-uassu levanta o peito,
berra como cabrito,
e bate nas minhas costas.
Já escolheu, e some,
entre os tucuns espinhentos,
atrás do rastro que vai dar na mata...
As tocandiras já descarnaram a carajá:
Minha saboneteira está quase pronta...
(Rosa, 1997; p.108-110)
No segundo poema, o índio se encontra em outro espaço também
comum: o mato. O poeta admite que não tem a habilidade de Ariticum-uassu,
ou seja , delimita a distinção de valores, o que não havia na estética dos
românticos, o índio conhece o mato; o poeta; a literatura. Outro dado relevante
114
vem com estes versos. o registro dos Padres da missão na terceira estrofe,
mas eles não tomam a cena do índio caçador que o poeta mineiro canta.
No Araguaia III
Os carajás de baixo estão brigados
com os carajás de cima.
Porque roubo-se um gramofone velho
do Capitão Bacuriquiropa,
e tem também a história de um menino índio
morto no mandiocal.
Vai ter barulho feio!...
Três chefões reunidos
na maloca do Capitão Codunê:
Cobra-Grande, Arco-Verde e Ariranha,
bebendo pinga e fumando coti.
A fogueira está acesa,
e, lá em cima, ainda há muitas fogueiras.
E a maior delas é a estrela
fogo-grande-da-lua,
iaci-tatá-uassu
Araticum-uassu me veio trazer
115
uma pele de lontra e camaleão moqueado.
Mas não quer cobertores, nem facas, nem fumo,
só quer muita pólvora e uma arma de fogo.
Vai ter barulho feio!...
Alguém vai cantando, lá longe, lá longe,
uma voz dentro d’água, sem boca, sem garganta.
Tem uma luzinha passeando e pulando,
na praia comprida,
fogo que o vento não espalha nem apaga,
fogo do fundo, que deve ser frio.
E estão rasgando, na macega clara,
uma gargalhada fina.
São três mães do índio órfão:
A Mãe do Ouro, a Mãe d’Água, a Mãe da Lua...
Os índios velhos estão combinando
saques e ataques aos carajás de cima.
Haverá briga para todos...
E os três abanaram a uma voz as cabeças,
depois de esvaziados já três garrafões.
Bacuraus voam perto do fogo.
E Ariticum–uassu está quieto, esperando
a hora de brigar.
Mas, pela praia enluarada, um homem vem vindo,
trazendo, de paz, alguns garrafões.
116
É o Capitão Uachiatê, dos de cima.
E todos lhe falam, e fumam, e bebem.
Não vai ter mais briga...
De manhã cedo,
os chefes estão dormindo, emborcados,
e deve estar bem longe Araticum-uassu.
Mas, no trilho da Missão, tem um homem morto,
grande e feioso como uma capivara.
É o Capitão Uachiatê,
com a cabeça quebrada a porrete,
e a cara medonha sujando de sangue
os espinhos da moita de joá.
Ronda ali perto, nos galhos do pau-d’óleo,
meia dúzia de exploradores de vanguarda
da gente dos urubus...
(Rosa, 1997; p.113-115)
Neste terceiro poema, o poeta vai cantar outras características do índio:
o espírito guerreiro, a luta entre as tribos que viviam no Amazonas, as
estratégias de batalha ministradas pelos caciques, as crenças. Na quarta
estrofe, aparece um dado importante, o índio órfão cujas mães são a mãe do
Ouro, a mãe d’Água, que foi analisada anteriormente, e a mãe da Lua, fato
que registra a crença indígena. Para o índio, a natureza ( fauna, flora, terra,
água) é um solo uterino, por isso o título de mãe aos elementos da natureza.
117
Câmara Cascudo (2002; p.348-349) diz que em uma lenda do Rio Araguaia,
entre os Carajás, Imaeró transformou-se em uma ave noturna porque Taina-
can (estrela d’alva) preferiu sua irmã Denaquê para esposa, daí o mito da mãe
da Lua, ave noturna cujo canto é melancólico e estranho, lembrando uma
gargalhada de dor. A mãe do Ouro é uma lenda típica da América do Sul,
segundo Cascudo (2002, p.350) é uma mulher que se apresenta de formas
variadas aos olhos do caboclo ou de outros que nela acreditam: ora como
passarinho, ora como lagarto, ora como mulher de longos cabelos; vive em
lugares montanhosos e no litoral.
Na quinta estrofe, aparece o índio velho, a quem os demais devem
obediência por ser um membro da tribo que viveu mais e, por este motivo,
sabe mais das coisas da vida em grupo.
Podemos dizer que Guimarães Rosa consegue explorar mais a questão
do índio do que os poetas românticos indianistas, os quais apresentavam os
índios, em seus poemas, como alegorias de brasilidade.
No Araguaia IV
Quando Coroisurocê escondeu atrás da perobeira,
e Araticum-uassu caiu morto do batelão,
empalitado de flechas como um ouriço afogado,
o rio o levou para um remanso bonito,
forrado com todos os lírios d’água:
118
nelumbos azuis, nenúfares rubros e ninféias alvas.
Um lençol de garças se abriu por sobre o poço,
o martim-pescador verificou a morte, com bicadas,
e os marrecos, de barrete cor de folha,
colete pardo e colarinho branco,
grasnaram longos réquiens pelo ar.
Lontras choramingavam.
E, até a hora de chegarem as piranhas,
houve um extenso luto de asas nas árvores da margem.
O rio parou todo o marulho no remanso,
mas não deixou de correr, porque tem pressa
de descer para a foz, no Grande Rio,
onde borbulha,
nos dias equatoriais, nas noites amazônicas,
abraçado ao Tocantins, rolando juntos
para o suicídio no mar...
(Rosa, 1997; p.117)
O poeta mineiro termina a sua exaltação ao Araguaia de forma bem
ultra-romântica. Araticum-uassu morre em batalha como todo guerreiro
indígena. A voz do poeta se refere ao índio, no oitavo verso, pelo nome de
martim-pescador. Câmara Cascudo (2002; p.369) define martim-pescador como
“um orixá dos candomblés bantos em Salvador, entidade local, criada pelo
interesse, imaginação e mítica mestiça e negra dos afro-brasileiros. O caso do
martim-pescador é único na história do fetichismo negro no Brasil”. O que
119
comprova, mais uma vez, que Guimarães Rosa representa o Brasil pelos
elementos que lhe são peculiares.
O poeta rompe com o esperado quando mostra o rio como túmulo do
índio, fato notado em todos os versos do poema acima. Se o herói cantado
morre, o poeta também mostra a sua morte no momento que deixa as águas
equatoriais e amazônicas do rio se suicidarem no mar.
Para definir o plano estético do poema, concordamos com Massaud
Moisés(1983; p.238), quando ele afirma que “a palavra épico em sua etimologia
não está desvinculada da recitação”. Para ele, o gênero épico orienta os
grandes poetas, independente de sua época ou movimento literário aos quais
estão inseridos, seja medieval, clássico, romântico, simbolista ou moderno.
Todo poeta, que se considera superior, tende para o épico.
Só que Guimarães Rosa utiliza um recurso formal, denominado por
Massaud (1983:258) como
poemeto épico
, que se configura como uma breve
extensão poética e se baseia em assuntos de cunho significativo, os quais não
assumem a grandiosidade das epopéias homéricas e da camoniana, mas
representam certa relevância para um discurso nacionalista. Rosa faz apologias
a respeito do índio amazonense Araticum Uassu, o qual assume a posição de
herói na recitação acima. Referências de tal estilo, em nossa literatura, são a
Prosopopéia
de Bento Teixeira,
Caramuru,
de Durão,
O Uraguai
de José Basílio
da Gama, etc. O índio, nessas obras, assume uma postura bem diferente do
poema de Rosa.
120
Guimarães divide o seu poemeto em quatro cantos. No primeiro, o eu-
rosiano situa o seu índio carajá nas praias do velho Araguaia e o provoca a
refletir sobre o surgimento do mundo e do amor, ou seja, é dada voz ao
colonizado indígena, fato que ocorre em
Caramuru
de Frei de Santa Rita
Durão. No segundo canto, percebe-se uma proximidade da voz que recita e
Araticum uassu, quando o índio amazonense pede para as tocandiras( formigas
pretas que muito ferem) fazer uma saboneteira com o casco de um traçajá(
tartaruga da Amazônia), como também, pelos hábitos selvagens fareja os
missionários, a sinestesia agradável e desarmante da bonita Auá-naru, o cheiro
de carniça da onça preta morta pelos tapirapés, os quais se colocam em
posição de combate por sentir o território invadido. No terceiro canto, o
registro de um desentendimento entre os carajás de cima e os carajás de
baixo. A mãe d’Ouro, a mãe d’água e a mãe da lua são as deusas que vão
intervir na proteção do índio morto pelos índios que estão em de guerra. Os
pajés planejam saques e ataques, enquanto o capitão Uachiatê tem proposta
de paz, fato que ocasiona sua morte. Araticum uassu vai interceder pelo
amigo, e ao contrário do que acontece nas grandes epopéias, o herói é morto e
entregue ao trabalho de decomposição natural feito pela natureza amazônica.
O poemeto
No Araguaia
não é uma grande produção épica, mais sim
uma tentativa de mostrar o índio como referência humana da natureza
brasileira, sem ranços medievais e resgates clássicos inadequados para a
representação de um elemento típico e simbólico de nossa nação.
121
A estratégia de trazer para o plano poético o índio, o negro e o caboclo é
o que Renato Ortiz (2003; p.38) chama de truísmo racial. O intelectual do
século XX compreende e deixa claro em sua literatura, como acontece com os
poemas de Guimarães Rosa, que o Brasil é fruto da mestiçagem de três raças:
a branca, a negra e a índia. A abolição da escravatura acaba com o sistema
senhorial e deixa evidente que o fator de distinção entre o povo brasileiro é a
questão da cor da pele, que vai se revelar, conforme Paulo Prado(1931; 193),
como um problema de biologia, de etnologia e mesmo de eugenia. O que vai
interessar aos intelectuais de nossa literatura é sugerir, através do discurso
literário, o rico hibridismo cultural e social que forma a nossa nação.
Ao contrário do que diz Flora Süssekind (1982; p.20), no momento em
que analisa a obra dramática de José de Alencar, o índio não deixa de ser o
herói que representa o que de nacional em nosso pátria, nem o negro
assume o lugar deste. Os intelectuais da época romântica não representam o
índio pelas suas peculiaridades, o que acontece é muito mais uma
metaforização
3
deste, para que os olhos do colonizador não se espantem com
os selvagens da terra vermelha. Claro que este tratado estético o é tomado
como sugestão pelo poeta moderno, como é o caso de Guimarães Rosa. O
poeta mineiro aceita a sugestão de representar o Brasil pelas suas
peculiaridades, sendo uma delas a estratégia de buscar nos indígenas o que
eles possuem de específico: a crença no poder místico da natureza, o sistema
3
O termo índio como metáfora é tomado da análise que Flora Sussekind (1982; p.22) faz do
negro como metáfora, ou seja, exaltado pelo discurso amoroso ou patriótico.
122
doméstico de convívio ( a tribo), a sobrevivência por meio da caça e da pesca,
e a verossimilhança imagética dos aspectos físicos deste aborígine brasileiro.
3.6. A crendice popular no poema rosiano
Como Guimarães Rosa também exalta as crenças dos habitantes da zona
rural mineira, ativemo-nos ao exame dos poemas que remetem a uma temática
que explora o metafísico, o medo, as superstições, comuns a quem não se
envolveu com o progresso, conforme colocação de Roberto Schwarz (1987:
p.126).
A superstição é algo fruto da tradição popular. Segundo Câmara Cascudo
(2002; p.648) ela resulta essencialmente do vestígio de cultos desaparecidos ou
da deturpação ou acomodação psicológica de elementos religiosos
contemporâneos, condicionados à mentalidade popular. As superstições
participam da própria essência intelectual humana e não há momento da
história do mundo sem a sua inevitável presença. O próprio Guimarães Rosa
era por demais supersticioso. Todos os seus leitores sabem que um dos
maiores medos do escritor era se candidatar a uma cadeira da Academia
Brasileira de Letras, pelo fato de premunir que quando isto se concretizasse, a
sua morte seria próxima, como realmente o foi. Por este motivo, encontramos,
em
Magma
, poemas que se voltam para este eixo temático do imaginário
supersticioso popular.
123
Reza brava
-“Saiu de casa, sem nenhum motivo,
e me disse que não vai voltar.
Dou-lhe o dinheiro e o cavalo arreado...”
-“Sossega, Dona, que o seu marido,
ainda hoje mesmo, tem de voltar!
Agora, silêncio, em honra dos Santos,
que eu vou começar:
-Chico!, volte para sua Dona,
que nenhum descanso você terá...
Três pratos ponho na mesa,
para mim, para minha Santa Helena,
e para você, quando chegar
Três vezes chamarei, três pancadas lhe darei!...
A primeira, na testa, para que você se lembre,
a Segunda, no peito, para que você sofra,
a terceira, nos pés, para você caminhar...
Se estiver comendo, pare,
se estiver conversando, cale,
se estiver dormindo, tem de acordar...
A meia-noite já vem chegando,
124
E é a hora boa de rezar.
Vou queimar pólvora, vou traçar o sino,
vou rezar as sete ave-marias retornadas,
e depois a reza brava de São Marcos e São Manso,
com um prato fundo cheio de cachaça
e uma faca espetada na mesa de jantar.
Agora, Dona, fique esperando,
que o seu marido tem de voltar...
Mas que barulho é esse, nessa hora morta?
Vem muita gente, batem na porta...
-Ai, Siá Dona, nós não sabemos
como isso aconteceu...
Estavam todos alegres, bebendo cachaça,
sem briga nenhuma, sem discussão...
- Entrem todos, podem entrar...
Jesus!... que é isso,
Vem carregado...
É o marido, ensangüentado,
com um oco de faca no peito esquerdo,
bem no lugar do coração...
(Rosa,1997; p.111-112)
Candido (1986; p.188) afirma que uma das características da literatura
da década de 1930 é engajamento espiritual e social dos intelectuais católicos,
125
como o mineiro Guimarães Rosa. Houve algo mais difuso e insinuante: a busca
de uma tonalidade espiritualista de tensão e mistério. Tal espiritualismo católico
levou à simpatia da solução de problemáticas sociais. O poema acima mostra
um típico caso da periferia da zona rural : uma mulher perde o seu marido e vai
apelar para práticas divinatórias alimentadas pela crença popular. O Brasil é o
país de maior ecletismo religioso e as camadas sociais periféricas sempre
buscam pelas várias manifestações divinas em situações de conflito . O caso
acima poetizado por Guimarães Rosa retrata muito bem o perfil do povo
brasileiro no que diz respeito à hegemonia do catolicismo fraturado pelas rezas
de benzedeiras do alto sertão, as quais em muitos casos são beatas fervorosas.
A aparição de Santa Helena, São Marcos e São Manso é portanto
justificável na oração acima. Santa Helena, como endossa Cascudo (2002;
p.273) era muito popular devido a uma oração a ela atribuída em que se pedia
uma resposta divina por intermédio do sonho, como nos oráculos gregos
terapêuticos. O sonho de Santa Helena constitui uma das confianças inabaláveis
da fé coletiva. O eu-poético rosiano chama esta santa em sua reza para
endossar a força da oração popular. São Marcos é chamado na reza para
amansar o coração do marido que não volta para casa, pois este santo ,
segundo Cascudo (2002, p.365) protegia o gado e amansava o mau gênio e
turbulências infantis. O animal simbólico de São Marcos é o leão. No Brasil, não
houve culto a São Marcos, mas a figura é presente no devocionário
supersticioso de orações fortes, dedicadas justamente à doma de touros
bravos, como o marido da Dona que foi embora de casa sem expor os motivos.
126
O Santo Manso não é dicionarizado por Câmara Cascudo, mais pelo
direcionamento semântico do poema, podemos afirmar que ele também é
chamado junto com São Marcos, propositadamente, para abrandar o coração
da mulher solitária. A reza traz o marido de volta, mas uma ruptura como o
psicologicamente esperado, para utilizar teorização de Carlos Bousoño ( in:
Ferreira; 2004; p.25), pois o marido vem para casa quase morto.
O poema acima revela a força da oração utilizada para solucionar
problemas a qualquer custo. Este credo é legítimo nas zonas rurais mais íntimas
de nosso país e sempre de caráter defensivo, respeitado para evitar o mal
maior ou distanciar sua efetivação.
Outro poema que se refere ao credo popular, também mostra as
superstições dos habitantes de um vilarejo:
Assombramento
Meia-noite amarela de sexta-feira,
com lua cheia, na meia quaresma,
no pequeno arraial.
Tinidos secos de matracas,
gente cantando orações tétricas
em frente as cruzes das encruzilhadas,
pedindo ao povo que está dormindo
127
rezas para as almas do purgatório
que eles estão encomendando.
E logo atrás vêm vultos brancos,
almas penadas sussurrando,
com ossos de defuntos alumiando nas frias mãos brancas.
Mulas-sem-cabeça galopam doidas
pelas estradas,
queimando o capim com as chispas dos cascos.
Há lobisomens uivando,
na velha igreja tábuas rangendo,
caixões pretos juntos das cruzes,
mortalhas largadas diante das portas,
uma mulher longa sentando nos telhados,
e o Pitorro, assentado no morro,
de chapéu na cabeça, cachimbando.
Por entre as sepulturas,
o fogo-fátuo de fósforo escorre:
é um grande raio de lua amarela,
que desce por engano, ao cemitério,
e lá vai fugindo,
assombrado, amedrontado,
sem tempo de subir.
Latiram ao longe:
128
Foi a noite, soltando os seus cachorros
“Corta-Vento”, “Rompe-Ferro”, “Acode-a-Tempo”,
para o socorrer...
(Rosa, op.cit,; 1997: 122-124)
Mais uma vez o catolicismo é distorcido em prol das crenças populares, o
que Maria Célia Leonel(2000; p.113) chama de transmutação dos elementos. A
interferência do sobrenatural dá voz ao imaginário dos povos mais antigos do
alto sertão. Estão presentes em ambos os poemas tendências espirituais aceitas
e praticadas pelo povo brasileiro (rezas, crença em santos católicos específicos
para cada problema social, orações em encruzilhadas, simpatias, mitologias
populares como a mula sem cabeça e o lobisomem).
Alguns elementos temáticos do poema devem ser justificados. O medo
de escuro e da noite é algo amadurecido pela cultura popular. A meia-noite, a
sexta-feira, o defunto, o cemitério são temáticas que nos fazem, através dos
versos rosianos, viajar por este imaginário místico popular. Na terceira estrofe
do poema acima, aparecem alguns personagens que compõem este imaginário:
mulas-sem-cabeça e os lobisomens.
Câmara Cascudo (2002; p. 402-403) diz que mula-sem-cabeça é a forma
que toma uma concubina do sacerdote. Na noite de quinta para sexta-feira,
transforma-se num forte animal, de identificação controvertida na tradição oral,
e galopa, assombrando quem encontra. Lança chispas de fogo pelas narinas e
pela boca, como versa o eu-poético mineiro na terceira estrofe do poema
acima. O lobisomem, personagem da mítica popular, surge logo no verso
129
seguinte da mesma estrofe. Cascudo (2002; p.335) considera este mito
universal dos homens-lobos da África. Mas, no Brasil, modificações
regionais. O lobisomem se transforma em um bicho grande, bezerro de alto
porte, com imensas orelhas, cujo rumor é característico. Procura sangrar
crianças, animais novos e, na falta deles, a quem encontrar antes de quebrar a
berra, antes que o dia se anuncie. Para desencantá-lo basta o menor ferimento
que cause sangue ou bala que se unte com cera de vela que ardeu em três
missas de domingo ou na missa do galo, à meia-noite de natal.
É exatamente esta mística popular que o eu-poético rosiano traz em seus
versos para assombrar os seus leitores e deixar o registro do imaginário popular
como mais um dos eixos temáticos que tornam a poesia da década de trinta
liberta de mística européia.
Assim, podemos dizer que o Brasil é revisitado pela poesia rosiana
através de um estilo neo-romântico adaptado à estética moderna e renovada
do escritor mineiro que demonstra em sua arte, ainda em tempos de
formulação de seu projeto literário, o desejo de cantar a nação brasileira a
partir de uma perspectiva admirada que enaltece as especificidades culturais
que a tornam um solo rico pela sua capacidade de filtrar as inferências
culturais do oriente e do ocidente europeu.
Conclusão
_______________________________________________
130
Baseados nos conceitos de assimilação cultural proposto por Alfredo
Bosi, na distinção entre perspectiva amena e catastrófica de arte exposta por
Antonio Candido, no conceito de estética do Terceiro Mundo de Roberto
Schwarz e na definição de literatura anfíbia de Silviano Santiago, classificamos
Magma
como uma obra que exalta o Brasil pela sua beleza natural e cultural
através da voz de um eu-poético neo-romântico que olha a nossa nação pelo
viés da individualidade e da centralização em espaços geográficos específicos (a
Amazônia e o sertão mineiro).
As abordagens acima assinaladas permitiram que fossem detectadas as
excentricidades indígenas, as leituras fraturadas de Brasil , a contemplação de
particularidades sociais específicas do credo popular que Guimarães Rosa
assimila com retrato de identidade nacional.
Para realizarmos a presente pesquisa, optamos por dividi-la em três
capítulos. No primeiro capítulo, estudamos os conceitos de perspectiva cultural,
mantendo um diálogo constante com a estética da Semana de Arte Moderna,
do Romantismo e da geração de trinta, a fim de conceituar e justificar as
respectivas oscilações estéticas e temáticas da poesia rosiana. A temática
bestiária, da natureza, das manifestações culturais e indígenas, da crendice
popular se configuraram como um estratégia do poeta mineiro passear por
várias tendências temáticas, o que o define como artista que representa o Brasil
pelos elementos que o mesmo oferece. No segundo capítulo, criticamos a
apreciação de Guilherme de Almeida a respeito dos versos rosianos,
131
desenvolvendo analogias entre os intelectuais de trinta e os versos de
Magma
,
com o propósito de mostrar que a avaliação de Almeida é subsidiada por uma
perspectiva amena de arte, conforme teorização de Antonio Candido.
No terceiro capítulo, examinamos os poemas que apresentam uma
temática voltada para o cenário nacional e detectamos que o eu-poético rosiano
assume uma postura neo-romântica para cantar o Brasil, pelo fato de
contemplar, em seu processo de representação da nação brasileira, uma
perspectiva amena de arte que tem como objetivo olhar a nação por meio de
um embelezamento que se pelo uso de temáticas que se voltam ao projeto
romântico de construção literária e de uma estética modernista que as
renovam.
Para atingir os objetivos do presente trabalho, pareceu-nos mais
produtiva- e acreditamos mais eficaz- a ampliação da teorização de Antonio
Candido sobre perspectivas de arte, incorporando ao estudo que o crítico
brasileiro faz das consciências em relação à arte, o conceito de neo-
romantismo, para desta forma melhor problematizar e teorizar sobre a poesia
de Guimarães Rosa.
Outros aspectos, além do cenário brasileiro, são explorados pelo poeta
mineiro, o que não coloca a nossa leitura como fechada em relação ao
acolhimento de outros análises a respeito de
Magma.
Logo, nossa leitura se configura como uma provocação para outras
leituras sobre a poesia de Guimarães Rosa, principalmente, sobre algumas
teorias filosóficas que se incorporam a determinados poemas de
Magma,
obra
132
que nos fez descobrir um outro Guimarães, condutor de travessias
embrionárias, mas não menos inovadoras, provocantes e sugestivas.
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