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CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO CAMILO
MESTRADO EM BIOÉTICA
SELMA APARECIDA CESARIN
DESOBEDIÊNCIA CIVIL À LUZ DOS REFERENCIAIS DA
BIOÉTICA
SÃO PAULO
2009
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CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO CAMILO
MESTRADO EM BIOÉTICA
SELMA APARECIDA CESARIN
DESOBEDIÊNCIA CIVIL À LUZ DOS REFERENCIAIS DA
BIOÉTICA
Dissertação apresentada como requisito parcial para
a obtenção do título de mestre em Bioética, no
Centro Universitário São Camilo, sob orientação do
professor doutor William Saad Hossne e co-
orientação do professor doutor Dalmo de Abreu
Dallari.
SÃO PAULO
2009
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Pe. Inocente Radrizzani
Cesarin, Selma Aparecida
Desobediência civil à luz dos referenciais da bioética / Selma
Aparecida Cesarin. -- São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2009.
295p.
Orientação de William Saad Hossne
e Dalmo de Abreu Dallari
Dissertação de Mestrado em Bioética, Centro Universitário São Camilo,
2009.
1.Bioética 2.Desobediência civil 3.Justiça I. Hossne, William Saad
II. Dallari, Dalmo de Abreu III. Centro Universitário São Camilo IV.Título.
À minha avó, Ana Carvalhete Pezzotti (in memorian), de
quem herdei as características “desobedientes”, que me
amou muito e a quem amo profundamente.
A meu pai, Mario Francisco Cesarin (in memorian), que
me ensinou a importância do estudo e de ser ético e
correto na profissão que se escolheu.
À minha mãe, Amália Pezzotti Cesarin, a pessoa mais
ética, forte e doce que eu conheci em minha vida.
Meu “muito obrigada”, do canto mais especial de meu
coração.
Agradeço profundamente ao professor doutor William Saad Hossne, por
ter aceitado orientar esta “desobediente” na empreitada de construir este
estudo, sempre com atenção, presença e carinho incomensuráveis; ao
professor doutor Dalmo de Abreu Dallari, pela gentileza, atenção e
presteza, em todos os momentos em que necessitei, e a ambos por
reacenderem minha fé e crença na possibilidade do ser humano ético
que, com extremo desapego, põe seu conhecimento e luz a serviço dos
aprendizes que tiveram o prazer e a sorte de tê-los encontrado pelos
caminhos sinuosos desta nossa vida tão conturbada.
Agradeço aos mestres especiais que fizeram parte da minha caminhada,
aqueles que, além de nos ensinarem conteúdo acadêmico, ensinam-nos
a viver: Sebastião Malva, Deise Bello, Olyntho Voltarelli Filho (in
memorian), Maria Cecília Montini, Ancila Fujita Barbosa, Rachila Andreiuk
Biz, Maria Aparecida Baccega, Valderez Carneiro da Silva, Carlos
Straccia, Jacques J. M. Vigneron, Febe Evangelista da Costa e Rita
Rosemary H. S. de Lima.
Agradeço, também, ao “pessoal dos bastidores”, como costumo chamá-
los, sem os quais este trabalho teria sido muito mais difícil de realizar: às
“meninas” da pós-graduação, que aqui represento por Lucia Bonilha e às
“meninas” da Biblioteca, aqui representadas por Rosana Drigo e Elenilde
Gomes da Silva, do Centro Universitário São Camilo; e às “meninas” da
Biblioteca Monteiro Lobato, da Faenac, representadas por Alessandra
Foina.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
Eduardo Alves da Costa
“Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não
me incomodei. No dia seguinte vieram e levaram meu outro vizinho que era
comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia vieram e
levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No
quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar.”
Martin Niemöller (pastor luterano alemão – época do nazismo)
“Nós pedimos com insistência:
Nunca digam - Isso é natural
Diante dos acontecimentos de cada dia,
Numa época em que corre o sangue
Em que o arbitrário tem força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural
A fim de que nada passe por imutável.”
Bertolt Brecht
“E melhor tentar e falhar que se preocupar e ver a vida passar. É melhor tentar,
ainda que em vão, que sentar e não fazer nada até o final. Prefiro caminhar na
chuva, que em dias tristes esconder-me em casa. Prefiro ser feliz, embora louco,
que viver conformado.”
Martin Luther King
Ah! Desgraçados!
Um irmão é maltratado e vocês olham para o
outro lado?
Grita de dor o ferido e vocês ficam calados?
A violência faz a ronda e escolhe a vítima,
e vocês dizem: "a mim ela está poupando,
vamos fingir que não estamos olhando".
Mas que cidade?
Que espécie de gente é essa?
Quando campeia em uma cidade a injustiça,
é necessário que alguém se levante.
Não havendo quem se levante,
é preferível que em um grande incêndio,
toda cidade desapareça,
antes que a noite desça.
Bertolt Brecht
RESUMO
É possível estabelecer relação entre atos de Desobediência Civil e Referenciais da
Bioética, desde que se objetive a busca ou a manutenção da justiça e o bem da
coletividade? Julga-se que sim. Desde sempre, a busca por vida justa é essencial ao
homem e nesta luta, se necessário, o cidadão pode e/ou deve utilizar a
Desobediência Civil, principalmente se à ela aplicar conjuntamente os Referenciais
da Bioética. Assim, o objetivo geral deste estudo é trazer à baila o instituto da
Desobediência Civil, como instrumento possível para a obtenção e/ou manutenção
da justiça, sob o foco da Bioética, relacionando-o aos Referenciais. Pretende-se,
com base nas idéias defendidas e apresentadas por alguns filósofos e estudiosos e
de atos de personagens reais que fizeram da Desobediência Civil uma forma de
perpetuar a justiça, mostrar que a união das duas áreas da Ciência, o Direito e a
Bioética, suscita análise e aprofundamento sobre vários assuntos. Entre eles, a
possibilidade de os institutos do Direito servirem efetivamente como meio e suporte
para se obter justiça, como verdadeira forma de se “fazer” Bioética, que poderia ser
entendida como uma indicadora do caminho ético para a geração presente e para as
gerações futuras. A reflexão sobre o direito à justiça e a leis justas e éticas levou à
inquietação de identificar institutos que servissem de apoio ao cidadão quando este
se encontrar em situações injustas criadas com bases legais (isto é, geradas a partir
de lei ou norma jurídica emanada dos representantes do Poder Constituído). Nesta
busca, chegou-se à Desobediência Civil. Paralelamente, a motivação da
necessidade de uma vida cada vez mais ética e a possibilidade de aplicação dos
Referenciais da Bioética para alcançá-la, suscitou o desejo de relacioná-los à
Desobediência Civil, instituto escolhido para a composição deste estudo. A certeza
da escolha do tema deu-se por ser o assunto ainda pouco abordado em si mesmo,
não tendo sido encontrada nenhuma alusão à Desobediência Civil face aos
Referenciais da Bioética. O método utilizado para a realização deste trabalho foi a
pesquisa bibliográfica exploratória, com inserção de análise crítica sobre o material
pesquisado, bem como de desenvolvimento de relação entre os dois institutos
eleitos, a saber: a Desobediência Civil, pertencente ao universo do Direito, e os
Referenciais da Bioética, no mundo da Bioética, utilizando-se como pano de fundo
as idéias defendidas e apresentadas por diversos filósofos, bem como atitudes de
Desobediência Civil identificadas em alguns personagens da História da
Humanidade. A reflexão conduziu, por fim, à conclusão que atos de Desobediência
Civil, principalmente se associados à aplicação dos Referenciais da Bioética, são um
caminho para “fazer” Bioética, entendida em seu mais profundo sentido, em busca e
defesa de uma vida cada vez mais digna, equânime e feliz para os cidadãos.
Palavras-chave: Desobediência Civil. Referenciais da Bioética. Direito de
Resistência. David Henry Thoreau. Antígone. Hannah Arendt.
ABSTRACT
Is it possible to establish relation between Civil Disobedience and Bioethics Ground
Principles, since the aim is justice search or maintenance? We think that the correct
answer is “yes”. Since early times, search for a fair life is essential to human being
and, if it is necessary, citizens can and must do this through Civil Disobedience,
mainly if Bioethics ground principles are used together. So, the principal aim of this
study is to show Civil Disobedience institute, as a factual instrument to obtain or
maintain justice, under Bioethics focus, relating it to Bioethics Ground Principles. We
intend, based on philosophers’ and scholars’ ideas and on real characters attitudes
that showed Civil Disobedience as a way to make justice concrete, to confirm that the
union of these two Science areas– Law and Bioethics – permits deep analysis on
several subjects. Among them, the study shows the possibility of Law institutes serve
effectively as a way and support to obtain justice, like a real form of "making
Bioethics”, which might be understood as an indicator of the ethical way for present
and future generations. The reflection about the justice right, as well as ethic and fair
laws, led to the concern of identifying institutes that could be used as a support to
citizens when they are under unfair situations, even if these situations grown up on
legal bases (i.e. produced from law or legal standard emanated from the Constituted
Power representatives). In this search, we reached Civil Disobedience. In parallel,
motivation of a more and more ethic life necessity and the possible application of
Bioethics Ground Principles came to light the wish of relating them to Civil
Disobedience, the legal institute chosen for the composition of this study. The
certainty on subject choice came over because it is still little boarded in itself.
Besides, it was not found any allusion to Civil Disobedience and Bioethics Ground
Principles relating each other. The method used for the realization of this paper was
the exploratory bibliographical research, together with insertion of critical analysis on
the investigated material, as well as relation development between the two elected
institutes, i.e., Civil Disobedience, on Legal universe, and Bioethics Ground
principles, on Bioethics world. Ideas defended and presented by several
philosophers, as well as Civil Disobedience attitudes identified in some Humanity
History characters were used as a backdrop. The reflection drove, finally, to the
conclusion that Civil Disobedience acts, mainly if associated to the application of
Bioethics Ground Principles, can be considered a real way of "making Bioethics”, in
its most deep sense, in search and defense of a worthier and worthier fair and happy
life for citizens.
Key-words: Civil Disobedience. Bioethics ground principles. Resistance Rights.
David Henry Thoreau. Antigone. Hannah Arendt.
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 – DO SER HUMANO AO SER CIDADÃO 42
QUADRO 2 – ÉTICA E MORAL 81
QUADRO 3 – OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL 103
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
2 OBJETIVOS DA DISSERTAÇÃO E PROBLEMA DA PESQUISA
2.1 Objetivo geral
2.2 Objetivos específicos
2.3 Problema da Pesquisa
3 DELINEAMENTO DA DISSERTAÇÃO
3.1 BIOÉTICA: BASES E REFERENCIAIS
3.1.1 Bioética: surgimento, conceito e evolução
3.1.2 Princípios da Bioética
3.1.2.1 Princípio da beneficência e princípio da não-maleficência
3.1.2.2 Princípio da autonomia
3.1.2.3 Princípio da justiça
3.1.3 Referenciais da Bioética
3.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E DESOBEDIÊNCIA CIVIL
3.2.1Direitos fundamentais
3.2.1.1Direitos fundamentais e Desobediência Civil
3.2.2 Cidadania
3.2.3 Lei, justiça, liberdade e legitimidade
3.2.3.1 Lei
3.2.3.1.1 Lei e justiça
3.2.3.2 Liberdade
3.2.3.3 Legitimidade
3.2.3.4 Lei, legitimidade e liberdade
3.3 DIREITO DE RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL
3.3.1 Embate: espécie ou gênero – Direito de Resistência versus
Desobediência Civil
3.3.2 Direito de Resistência
3.3.2.1 Breve histórico do Direito de Resistência
3.3.2.2 Conceito de Direito de Resistência
3.3.3 Desobediência Civil
3.3.3.1 Breve histórico da Desobediência Civil
3.3.3.2 Conceito de Desobediência Civil
12
15
15
15
15
17
20
20
26
28
29
30
33
37
37
38
40
43
43
44
46
48
51
53
53
54
55
61
64
64
66
3.3.3.2.1 Distinção entre desobediência comum e Desobediência Civil
3.3.3.3 O direito de ser governado por leis justas
3.3.3.4 Direito de Desobediência Civil e dever de obediência – O
direito de desobedecer ao Direito (no sentido de desobedecer à lei)
3.3.3.5 Elementos da Desobediência Civil
3.3.3.5.1 Direito Natural
3.3.3.5.2 O Direito de Resistência a atos ilegais e injustos
3.3.3.6 Desobediência à lei, Moral e Ética
3.3.3.7 Desobediência Civil e não-violência
3.3.3.8 Desobediência Civil e cidadania: a insurgência do cidadão
contra o Estado e a previsão da desobediência na ordem
constitucional
3.3.4 Desobediência Civil e Anarquia – Distinção
3.3.5 Desobediência Civil e Terrorismo
3.3.5.1 Terrorismo anarquista e terrorismo político
3.3.5.2 Desobediência Civil e Terrorismo – Distinção
3.3.6 Desobediência Civil e objeção de consciência
3.3.6.1 Surgimento da objeção de consciência
3.3.6.2 Limites e reconhecimento da objeção de consciência como direito
do cidadão
3.3.6.3 Desobediência Civil e objeção de consciência – Distinção
3.3.7 DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO DIREITO
3.3.7.1 Aspectos jurídicos da Desobediência Civil
3.3.7.2 Desobediência Civil no ordenamento jurídico brasileiro – A norma
do § 2.º do art. 5.º da Constituição Federal de 1988
3.4 DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA FILOSOFIA E NA HISTÓRIA DA
HUMANIDADE
3.4.1 Desobediência Civil e Filosofia: de Sófocles a Habermas
3.4.1.1 Desobediência Civil em Sófocles (496 a.C. - 406 a.C.)
3.4.1.1.1 Antígone: da ficção para a realidade – um dos primeiros
exemplos e a mola propulsora da insurreição contra o Poder
constituído
3.4.1.1.2 Resumo do enredo
66
68
70
73
73
77
79
83
86
90
92
93
94
94
94
100
102
104
104
105
109
109
109
109
109
3.4.1.1.3 Embate entre a lei divina (Thémis) e a lei dos homens (Diké)
3.4.1.1.4 Antígone e a Desobediência Civil
3.4.1.2 Desobediência Civil em Tomás de Aquino (1225-1264)
3.4.1.3 Desobediência civil em João Calvino (1509-1564)
3.4.1.4 Desobediência civil em Thomas Hobbes (1588-1669)
3.4.1.5 Desobediência civil em John Locke (1632-1704)
3.4.1.6 Desobediência civil em Thomas Jefferson (1743 - 1826)
3.4.1.7 Desobediência civil em Henry David Thoreau (1816-1862)
3.4.1.8 Desobediência civil em Leon Tolstoi (1828-1910)
3.4.1.9 Desobediência civil em Hannah Arendt(1906-1965)
3.4.1.10 Desobediência civil em Norberto Bobbio (1909-2004)
3.4.1.11 Desobediência civil em John Rawls (1921-2002)
3.4.1.12 Desobediência civil em Jürgen Habermas (1929-2001)
3.4.2 Desobediência Civil e História da Humanidade: alguns exemplos
3.4.2.1 Sócrates (470/469 a.C.- 399 a.C.)
3.4.2.2 Jesus Cristo (0-33 d.C)
3.4.2.3 Olympe de Gouges (1748-1793)
3.4.2.4 Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948)
3.4.2.5 Jeanne Deroin (1805-1894)
3.4.2.6 Madeleine Pelletier (1874-1939)
3.4.2.7 Rosa Parks
3.4.2.8 Nelson Mandela (1918-)
3.2.4.9 Martin Luther King (1929-1968)
3.4.2.10 Steve Biko (1946-1977 )
3.4.2.11 Mukhtar Mai (1974-19??)
3.4.2.12 Manifestações contra a guerra do Vietnã (1959-1975)
3.4.3.13 Mais alguns exemplos
a. Desobedientes a Hitler
b. 1968: desobedientes civis no mundo
desobedientes civis no Brasil
c. Representantes do Movimento a Anistia no Brasil
d. Movimentos sociais
3.5 DESOBEDIÊNCIA CIVIL E REFERENCIAIS DA BIOÉTICA
111
113
117
123
126
134
140
144
150
156
164
167
174
180
181
188
191
196
202
204
206
207
211
216
218
224
226
227
228
229
230
231
233
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BIBLOGRAFIA COMPLEMENTAR CONSULTADA
ANEXO A – DESOBEDIENCIA CIVIL – HENRY DAVID THOREAU
ANEXO B – DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER CIDADÃ
ANEXO C – 1968 – CRONOLOGIA
236
246
258
262
285
290
1 INTRODUÇÃO
“Quando não pode a lei fazer justiça, é legal impedir que seja
injusta.”
William Shakespeare (In: Vida e morte do Rei João, Ato III, Cena I)
“Só os fracos, os impotentes, quedam na resignação; os enérgicos
insurgem-se, lutam, dão combate à vida e vencem.”
Coelho Neto (1864-1934)
Desde o início da Humanidade, a luta e a busca por uma vida justa são
elementos essenciais à vida do homem. Nesta luta por justiça, institutos foram sendo
criados e positivados, já que só se tem o dever moral de obedecer às leis se os
legisladores produzirem leis justas, pois é por elas e pela ética que o cidadão tem o
direito de ser governado. Nesta opção pela ética, os Referenciais da Bioética devem
ser colocados em prática nas relações humanas, sociais e políticas do cotidiano.
(Hossne, 2006)
Além disso, mesmo uma rápida análise permite identificar que nos
ordenamentos jurídicos existem muitas leis obsoletas ou que não representam o
ideal de justiça, chegando, às vezes, a dificultar atingi-la.
Como forma de se defender e de garantir essa justiça tão buscada, os
cidadãos procuram meios que possam ser utilizados para controlar e ou extinguir
dispositivos legais injustos impostos pelos representantes do Poder Constituído.
Nesta procura, a Humanidade foi encontrando e tentando legitimar, no mundo
do Direito, expedientes que pudesse utilizar, sem criar ainda mais injustiça. Entre
eles, sempre legítimos e, em alguns ordenamentos mundiais, legais, estão o Direito
de Resistência, como gênero, e a Desobediência Civil, como espécie.
É neste diapasão – a luta por justiça – que a Desobediência Civil se justifica.
Fica ainda muito mais justificada ao se dar a ela o embasamento dos Referenciais
da Bioética: a beneficência, a dignidade, a não-maleficência, a autonomia, a
prudência, a solidariedade, a privacidade, a vulnerabilidade, a responsabilidade, a
equidade, a serenidade, a privacidade, a alteridade, o altruísmo, a confidencialidade
e a própria justiça em si.
Ao se considerar os dois universos, o Direito e a Bioética, no primeiro, a
Desobediência Civil é o direito – bem como o dever – de o cidadão se insurgir contra
um dispositivo legal imposto pelo representante do Poder Constituído, mas que,
embora legal, traga em si ato de injustiça para toda a sociedade ou para uma
determinada coletividade, bem como a análise da possibilidade e da justificativa de
essa insurreição ocorrer, como verdadeiro “direito de desobedecer ao Direito”
1
(no
sentido de desobedecer à lei, já que o Direito é algo muito mais amplo).
Já na Bioética, utilizando-se os Referenciais como norteadores dos atos de
Desobediência Civil, eles se justificam, a nosso ver, como base para estes atos,
considerando-se sempre as melhores escolhas éticas a partir da reflexão individual e
de sua importância como expediente da possibilidade de vida justa, equânime e
digna, tanto hoje quanto para as gerações futuras.
Destaque-se que a Desobediência Civil terá sempre o caráter de bem
coletivo, à medida que o ser humano é muito mais importante enquanto membro da
coletividade do que enquanto ser único. Esta visão é compartilhada pela Bioética, de
acordo com a qual a importância de cada homem é muito maior quando ele é
considerado como ser em sociedade, que luta e defende a qualidade de vida justa
para todos.
Com base na possível ligação entre os atos de Desobediência Civil e os
Referenciais da Bioética, surgiu a motivação de construir um estudo que os
identificasse e aproximasse, tanto nas ideias de pensadores e filósofos, como na
vida de personagens da História da Humanidade, principalmente por não ter sido
encontrado, na literatura pesquisada, sob os descritores “Bioética e Desobediência
Civil; Desobediência Civil e Referenciais da Bioética; Bioética e Direito de
Resistência” e afins, nenhum trabalho que analisasse, aproximasse, distanciasse ou
mesmo excluísse um na presença do outro.
Assim, espera-se que a reflexão leve à conclusão que a Desobediência Civil é
um instituto do Direito que pode ser utilizado em consonância com os Referenciais
da Bioética, na busca da obtenção e/ou da manutenção da justiça, por meio dos
Referenciais; ou os Referenciais da Bioética são os norteadores para os atos de
Desobediência Civil que visam a reformar ou extinguir dispositivos legais injustos, já
1
Aqui – e todas as vezes que se utilizou a expressão “Direito de desobedecer ao Direito” – a autora
faz um trocadilho com a afirmação de Hannah Arendt (1973) de que cidadania é “Direito a ter
direitos”.
que a análise conjunta leva a perceber que é possível entrelaçar tão bem os dois – a
Desobediência Civil e os Referenciais da Bioética – que um se torna base para o
outro, indistintamente.
2 OBJETIVOS DA DISSERTAÇÃO E PROBLEMA DA PESQUISA
2.1 Objetivo geral
Trazer à baila o instituto da Desobediência Civil, como instrumento possível
para a obtenção e/ou manutenção da justiça, fazendo a relação entre a utilização
desse instituto e os Referenciais da Bioética.
2.2 Objetivos específicos
Com base nas ideias apresentadas e defendidas por alguns filósofos e
estudiosos e de atos de personagens reais que fizeram da Desobediência Civil uma
forma de perpetuar a justiça, mostrar, de um lado, que “o direito de desobedecer ao
Direito (no sentido de desobedecer à lei)” é legítimo quando o cidadão busca reiterar
ou manter a justiça, ameaçada por leis e normas injustas impostas pelos
representantes do Poder Constituído e, de outro, que é possível identificar os
Referenciais da Bioética nos atos de Desobediência Civil, vendo estes atos como
verdadeira forma de “fazer” Bioética.
2.3 Problema da pesquisa
A união das duas áreas da Ciência, o Direito e a Bioética, suscita análise e
aprofundamento sobre vários assuntos. Entre eles, a possibilidade de os institutos
do Direito servirem efetivamente como meio e suporte para se obter justiça e como
verdadeira forma de se “fazer” Bioética, entendida, resumidamente, neste momento,
como uma indicadora do caminho ético para a geração presente e para as gerações
futuras.
Assim, surgiu a inquietação de identificar institutos que servissem de apoio ao
cidadão quando este se encontrasse em situações injustas criadas com bases legais
(por terem sido geradas a partir de lei ou norma jurídica emanada dos
representantes do Poder Constituído), paralelamente à possibilidade de aplicação
dos Referenciais da Bioética.
Nesta busca, encontrou-se a Desobediência Civil, instituto jurídico escolhido para
a composição deste estudo, ao lado dos Referenciais da Bioética, que neste
momento são considerados de forma mais abrangente, com vistas à ampliação do
corpo de doutrina da Bioética, em campo que não o das ciências Médica e da
Saúde.
3 DELINEAMENTO DA DISSERTAÇÃO
O estudo se organiza a partir da apresentação do conceito e do surgimento
da Bioética, seguido de conceitos básicos ligados aos direitos fundamentais do
homem, conceitos esses essenciais para o entendimento e o desenvolvimento do
trabalho, bem como se aponta a presença do instituto da Desobediência Civil no
ordenamento jurídico brasileiro, identificando a sua possibilidade no ordenamento
constitucional. Logo após, encontram-se o histórico e os conceitos de Direito de
Resistência e de Desobediência Civil.
Ressalta-se que a apresentação do momento histórico acompanha o
desenvolvimento de toda a pesquisa, com o objetivo de estabelecer e apresentar os
elos que vão compondo a tessitura do trabalho, por ser possível perceber que
“ideias, atos e ideais bioéticos” existem há muito tempo, mesmo que não fossem
assim denominados.
Essa tessitura através dos tempos e por meio dos pensamentos permitiu e
auxiliou a que se chegasse aos conceitos e à construção do corpo de doutrina – em
franco crescimento – da Bioética de hoje, ao qual se pretende incorporar o presente
estudo.
A seguir, em ordem cronológica de data de nascimento, sob o título
“Desobediência Civil na Filosofia e na História da Humanidade” são apresentadas as
ideias e teorias de alguns filósofos, bem como exemplos de personagens da História
da Humanidade que manifestaram atos de Desobediência Civil, mesmo que não
fossem identificados à época por este nome.
As personagens reais e os filósofos foram escolhidos pela profundidade e
alcance de suas ideias e atos, bem como pela transcendentalidade de suas ações,
respeitando sempre a tessitura que se construía entre eles, a Desobediência Civil e
os Referenciais da Bioética; embora muitas vezes essa tessitura tenha se orientado
quase de forma autônoma, devido aos caminhos entrelaçados e relacionados de
alguns deles.
Logo após esse panorama, o último capítulo foca diretamente a relação que
se pode estabelecer entre a Desobediência Civil e os Referenciais da Bioética,
argumentando-se sobre a Desobediência Civil como forma de “fazer” Bioética, por
meio do respeito e da utilização dos Referenciais, em busca da justiça e em defesa
da cidadania.
O estudo se encerra com as considerações finais a respeito do tema, visando
a recapitular o conteúdo, de forma a ratificar o problema inicial, inquietação que deu
origem a esta pesquisa, a saber: a relação da Desobediência Civil com os
Referenciais da Bioética, demonstrando que o instituo jurídico pode ser uma forma
legítima de “fazer Bioética”, em seu mais profundo sentido.
A análise crítica da revisão bibliográfica foi feita concomitantemente com o
desenvolvimento dos tópicos, por se julgar ser esta a forma mais eficiente de
abordar os assuntos escolhidos.
Assim, este trabalho se trata de estudo crítico no qual se pretende provocar
discussão e reflexão, com o intuito de despertar a aplicação dos Referenciais da
Bioética e do próprio instituto da Desobediência Civil, justificando o “direito de
desobedecer ao Direito”, no objetivo de tornar a vida em sociedade cada vez mais
justa, equânime e feliz.
O método utilizado para a realização deste trabalho foi a pesquisa
bibliográfica exploratória, com inserção de análise crítica sobre o material
pesquisado, bem como de desenvolvimento de relação entre os dois institutos
eleitos, a saber: a Desobediência Civil, pertencente ao universo do Direito, e os
Referenciais da Bioética, no mundo da Bioética.
Quanto à linguagem, embora geralmente se defenda o discurso e a citação
indireta no meio e nas produções acadêmicas, optou-se pelo discurso direto por se
entender ser esta a melhor forma de apresentar o tema escolhido.
A citação direta traz a “paixão” do emissor, sua parcialidade e
posicionamento, o que não ocorre com o discurso indireto.
Assim, por exemplo, não há dúvida que é muito mais apaixonada e
apaixonante a citação: “Para mim, o melhor governo é o que menos governa.”
(THOREAU, 1849) do que: “Thoreau afirmou em seu ensaio que para ele o melhor
governo é aquele que menos governa”.
Desta forma, depois da leitura e fichamento do material bibliográfico,
identificado nas Referências Bibliográficas e na Bibliografia complementar
consultada, o estudo foi construído como verdadeiro tessitura, na qual, algumas
vezes, as tramas se apresentavam quase que autonomamente entrelaçadas, devido
aos próprios conceitos, ideias e teorias dos filósofos, ou às atitudes das
personagens reais. Em outras, as tramas se construíram por meio de processo
parafrásico, permeado de intertextualidade, que conduziu a um processo dialógico
entre as ideias filosóficas, as atitudes identificadas em personagens da História da
Humanidade e a análise crítica sobre a Desobediência Civil face aos Referenciais da
Bioética.
3.1 BIOÉTICA – BASES E REFERENCIAIS
“A Bioética é, na essência e no fundo, a ética nas (e das) ciências da
vida, da saúde e do meio ambiente.”
William Saad Hossne (2000)
É irrefutável que todo e cada cidadão tem responsabilidade com sua
qualidade de vida e com a qualidade de vida das gerações futuras, devendo agir
sempre de forma ética. Assim, o estudo da Bioética, de seus princípios e de seus
Referenciais é indispensável, por sua inegável e irreversível importância, ao mesmo
tempo em que o entendimento do seu universo é imprescindível.
A aplicação dos parâmetros da Bioética mostra-se caminho, na vida atual,
para a busca e a luta por vida justa e digna, incluindo aqui sua combinação com os
dispositivos do Direito, como no caso do instituto em estudo, a Desobediência Civil.
Entretanto, antes de estabelecer a relação entre eles, faz-se necessário conhecer
um pouco sobre o surgimento e o conceito de Bioética.
3.1.1 Bioética: surgimento, conceito e evolução
“Um dos grandes méritos da Bioética é o de levar a ética à
sociedade e trazer a sociedade para a ética, criando os
fundamentos éticos do controle social nas ciências da vida.”
William Saad Hossne (2000)
Foi o biólogo americano Van Rensselaer Potter (1911-2001) que, pela
primeira vez, empregou o neologismo Bioética, em 1971, para destacar a
importância das ciências biológicas como garantidoras da qualidade de vida e
sobrevivência do planeta: “Nós temos uma grande necessidade de uma ética da
terra, uma ética para a vida selvagem, uma ética de populações, uma ética do
consumo, uma ética urbana, uma ética internacional e assim por diante (...) Todas
elas envolvem a bioética”.
Este foi o primeiro texto
2
a utilizar a palavra Bioética, escrito em língua
inglesa, que fazia parte de um artigo cujo sugestivo título era “Bioethics, the science
2
Embora de acordo com Pessini & Hossne (2008, p. 7), no sentido histórico, o termo “Bioética” tenha
aparecido na literatura em 1927, proposto por Fritz Jahr no periódico alemão Kosmos, num artigo
denominado Biethik. Eine Unschou uber die ethischen Beziehungen dês Menschen zu Tier und
Pflanze (Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e
plantas), Kosmos 1927; 24:2-4.
of survival” (Bioética, a ciência da sobrevivência) e que apresentava uma adaptação
do texto do Capítulo I do livro Bioethics: bridge to the future (Bioética: uma ponte
para o futuro), publicado em janeiro de 1971.
Potter tinha grande preocupação com o problema ambiental e com a
repercussão do modelo de progresso preconizado na década de 1960. Segundo ele,
a proposta do termo Bioética era uma forma de enfatizar os dois componentes mais
importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente
necessária: conhecimento biológico e valores humanos.
Ele, que era pesquisador em Bioquímica oncológica da Universidade de
Wisconsin, nos Estados Unidos, buscava, no artigo e no livro posterior, integrar
diferentes aspectos das ciências naturais às ciências humanas por meio da Ética,
visando a discutir e aprofundar os aspectos relativos à sobrevivência da humanidade
frente aos desafios da questão ecológica emergente à época. Potter faleceu aos 90
anos, em setembro de 2001.
Não muito tempo depois de publicar o conceito inicial, o próprio Potter definiu
Bioética como “a combinação da Biologia com conhecimentos humanísticos
diversos constituindo uma ciência que estabelece um sistema de prioridades
médicas e ambientais para a sobrevivência aceitável”. (grifo nosso)
Ele elaborou esta nova versão como forma de enfatizar a sua proposta de
uma Bioética Global, isto é, com ampla abrangência. Este significado foi modificado,
incorretamente, por outros autores, alterando-o na literatura desde o processo de
globalização, dividindo-o de forma aleatória, como se a Bioética de uma ciência ou
área de conhecimento fosse isolada de outra. (Hossne, 2006)
Segundo Lepargneur (1996, p. 16), a Bioética, como conceito mais apurado,
pode ser “o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e
dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos
valores e princípios morais”. Mas nestes termos, Lepargneur (1996) via a Bioética
somente como:
[...] a resposta da ética aos novos casos e situações originadas da
ciência no campo da saúde. Poder-se-ia definir a bioética como a
expressão crítica do nosso interesse em usar convenientemente os
poderes da medicina para conseguir um atendimento eficaz dos
problemas da vida, saúde e morte do ser humano. (grifos nossos)
Este conceito só reproduz o que a Bioética era em seu início. Hoje, os
conceitos da Bioética ultrapassam muito as áreas da Medicina e da Saúde e são
recepcionados pela Antropologia, Sociologia, Filosofia, Engenharia Genética e
Direito, entre outras áreas.
Como descreve Dallari (2008):
No ano de 1993, ao ser implantado o Comitê Internacional de
Bioética, por iniciativa da UNESCO, foi assinalado que ele tinha sido
criado em decorrência das preocupações éticas suscitadas pelos
progressos científicos e tecnológicos relacionados com a vida,
sobretudo no âmbito da genética. Entretanto, a consideração da vida
humana em si mesma e das relações dos seres humanos com outros
seres vivos e com a natureza circundante tem ampliado
rapidamente a extensão e a diversidade da abrangência da
Bioética, à medida que cada reflexão ou discussão revela a
necessidade de consideração de novos aspectos. (grifo nosso)
Na Encyclopedia of Bioethics, Reich (1995, verbete: Bioética), define Bioética
como:
[...] um estudo sistemático da conduta humana no campo das
ciências biológicas e da atenção de saúde, sendo essa conduta
examinada à luz de valores e princípios morais, constituindo um
conceito mais amplo que o da ética médica, tratando da vida do
homem, da fauna e da flora. Portanto, seu estudo vai além da área
médica, abarcando Direito, Psicologia, Biologia, Antropologia,
Sociologia, Ecologia, Teologia, Filosofia etc., observando as diversas
culturas e valores.
Segundo Vieira (2000): “Bioética indica um conjunto de pesquisas e práticas
pluridisciplinares, objetivando elucidar e solucionar questões éticas provocadas pelo
avanço das tecnociências biomédicas”.
Hossne (2000) assim se expressa sobre Bioética:
A Bioética é, na essência e no fundo, a ética nas (e das) ciências da
vida, da saúde e do meio ambiente. Mas esse conceito não é
suficiente para caracterizar a Bioética. Ele implica, obrigatoriamente,
diversos desdobramentos, todos eles imprescindíveis para a
compreensão, para a prática e para a caracterização da Bioética. Os
principais:
a Bioética não é mais apenas a análise e a discussão dos dilemas
éticos (feita por médicos) relacionados aos avanços da biomedicina.
Ela abrange os dilemas de avanços, sim, e também do "cotidiano"
(expressão feliz criada por Berlinguer) das ciências da vida, da
saúde e do meio ambiente;
a Bioética, enquanto ética, preocupa-se com a reflexão crítica sobre
valores; um juízo sobre valores diante dos dilemas. Nesse sentido,
o advento da Bioética muito contribuiu para estabelecer a distinção
entre moral e ética [...];
a Bioética é ética; nesse sentido, não se pode dela esperar uma
padronização de valores (...) Não há Bioética sem liberdade.
Liberdade para quê? Para se poder fazer opção, por mais
"angustiante" que possa ser;
O exercício da Bioética exige, pois, liberdade e opção. E esse
exercício deve ser realizado sem coação, sem coerção e sem
preconceito. A Bioética exige também humildade para se respeitar a
divergência, e grandeza para reformulação, quando ocorre a
demonstração de ter sido equivocada a opção. Condição sine qua
non exigida pela Bioética, enquanto tal, diz respeito à visão
pluralista e interdisciplinar dos dilemas éticos nas ciências da vida,
da saúde e do meio ambiente. Em outras palavras, a análise do
dilema pressupõe sempre, em Bioética, não apenas a participação
multi, mas interdisciplinar (isto é, incorporação em cada disciplina
da visão das outras).
[...]
Diante do exposto, há de se convir que a Bioética com tais
pressupostos e tais características, oferece excelentes condições
para o desenvolvimento da própria cidadania e da "evolução" de
cada um de seus participantes. Um dos grandes méritos da Bioética
é o de levar a ética à sociedade e trazer a sociedade para a ética,
criando os fundamentos éticos do controle social nas ciências da
vida. (grifo nosso)
No mesmo diapasão, o de cidadania e de ética para a sociedade, com base
também nos direitos humanos do cidadão, bem assevera Dallari (2008):
A Bioética está inserida no amplo movimento de recuperação dos
valores humanos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos
desencadeou. Os que procuram a preservação ou a conquista de
privilégios, os que buscam vantagens materiais e posições de
superioridade política e social, sem qualquer consideração de ordem
ética, os que pretendem que seus interesses tenham prioridade
sobre a dignidade da pessoa humana, os que supervalorizam a
capacidade da inteligência e se arrogam poderes divinos,
pretendendo o controle irresponsável da vida e da morte, esses
resistem à implantação das normas inspiradas nos princípios da
Declaração Universal [...]
Destaque-se aqui a relevância da afirmação de Hossne (2000): “Mas, afinal, o
que é Bioética? Como se pode defini-la? (...) Não importa definir. O que importa, isso
sim, é caracterizar e salientar algumas das consequências trazidas pela Bioética e a
ela inerentes, e o seu profundo significado”. É preciso considerar, principalmente,
que tudo que se tenta encaixar em rótulos fica limitado e pequeno perto do horizonte
que pode e deve atingir. E não é diferente com a Bioética.
É possível compreender melhor o “profundo significado” ao qual se referiu
Hossne (2000) com o entendimento dos Princípios e dos Referenciais da Bioética,
sobre os quais se comenta a seguir.
Cabe destacar, também, que quando surgiu a palavra “Bioética”, ela veio sem
corpo de doutrina – e não poderia ser de outra forma – e que este corpo de doutrina
está em evolução, sendo consolidado devido à necessidade cada vez maior de
trazer de volta os valores da Ética.
Poucos anos depois do surgimento do verbete “Bioética”, foi criada uma
Comissão para identificar os princípios que deveriam nortear a pesquisa médica que
envolvesse seres humanos. Essa comissão foi criada pelo Governo americano, face
ao clamor diante dos abusos nas pesquisas com seres humanos, ainda que já
houvesse o Código de Nuremberg (1946-1947) e a Declaração de Helsinque (1964).
Esta Comissão, como melhor se pode compreender no item 3.1, propôs
princípios a serem respeitados nos casos de pesquisa com seres humanos. Estes
princípios, a partir daí, passaram a ser vistos como “Princípios da Bioética”.
Note-se que os princípios, embora muito importantes, não eram novos e não
foram criados só para a Bioética; pode-se até dizer que foram “importados” e
acabaram por se revelar limitados. Ainda assim, identificá-los e enumerá-los é
fundamental para a compreensão do conteúdo e da discussão deste estudo.
Entretanto, antes de se iniciar o estudo sobre os princípios, cabe destacar e
agrupar, ainda, algumas considerações sobre a Bioética, a fim de tornar claro
porque ela se justifica como área de conhecimento, para a qual se está construindo
um corpo de doutrina.
A Bioética justifica-se como área de conhecimento devido a seu campo de
atuação e à sua pluralidade, já que se revela ciência multi e transdiciplinar, muito
além da ideia inicial de ser uma ciência aplicada apenas à área da Medicina e da
Biologia.
Segundo (Hossne, 2000), na realidade, “a Bioética é a ciência da ética nas (e
das) ciências da vida, da saúde e do meio ambiente”. Assim, seu caráter trans e
multidisciplinar se revela no fato de a Bioética atrair outras áreas de conhecimento,
ao mesmo tempo em que nelas penetra, tanto na temática relacionada à vida,
quanto na peculiar sistemática de atuação.
Segundo Hossne, Albuquerque & Goldim (2007, p. 146-7):
Outro aspecto a ser considerado neste assunto está na característica
multi e transdiciplinar da Bioética, que a torna aberta à pluralidade. A
reflexão bioética exige não só multidisciplinaridade, no sentido da
participação de outras áreas do conhecimento além da ética, como
também e, sobretudo, a transdiciplinaridade, isto é, a incorporação
da visão ética de uma disciplina nas outras e vice-versa. Essa
característica da multi e da transdiciplinaridade necessária para a
Bioética parece ser suficientemente forte para o reconhecimento da
Bioética como merecedora de espaço dentro da própria Ética. Ainda
outro aspecto intimamente ligado a essa característica consiste na
necessária participação de todos os atores e agentes da sociedade
que possam estar envolvidos na questão ética em discussão (...) a
isto se pode somar, em um âmbito maior, a equivalente necessidade
de se assumirem, na reflexão bioética, as interfaces e interações
entre os campos das ciências da vida, da saúde e do meio ambiente,
avaliando suas consequências para o presente e o futuro da vida.
Esse conjunto de características que marcam a Bioética parece
subsidiar o reconhecimento da Bioética como área específica do
conhecimento, concedendo a ela espaço próprio, com corpo
doutrinário e conceitual em franca evolução.
Pode-se perceber que, desta forma, os problemas relacionados à vida (Bios)
encontram-se em verdadeiro entrelaçamento de disciplinas, vindo deles
conhecimento e aplicação para a Bioética, e desta conhecimento e aplicação para
eles, como se pode exemplificar pela Bioética e Biodireito, Bioética e Cidadania,
Bioética e Justiça, entre outros.
É justamente nessa seara que se torna possível o estudo da Desobediência
Civil como instrumento de aplicação da Bioética, em especial quando os atos de
Desobediência Civil se encontram embasados e revestidos dos Referenciais da
Bioética, destacando-se aqui que atitudes bioéticas vão sempre ser permeadas pela
liberdade de escolha, recheada de reflexão.
Como bem afirmam Hossne; Albuquerque & Goldim (2007, p. 144): “[...] a
Bioética nasce de iniciativas concretas por parte das pessoas que assumem em
seus contextos a reflexão ética (...) e nasceu em momento talvez de angústia e de
profunda reflexão critica”. (grifos nossos)
Ademais, segundo Hossne (2007, p.126):
A Bioética cresceu sem “amarras”. Agora, adulta, está a marcar
presença definitiva nas atividades humanas, exigindo que dela se
tome conhecimento como área de conhecimento. A Bioética está a
exigir uma reflexão mais profunda sobre seu significado, seu corpo
de doutrina, sem “amarras”, sim, mas dando-lhe condições de
maturidade para continuar a buscar o futuro (...) – Deve a Bioética
existir como área de conhecimento? Suas características suportam
tal posição? Já nos adiantamos dizendo que sim.
Antes de abordar os Referenciais da Bioética para poder discutir sua relação
com a Desobediência Civil e por meio desta discussão falar também da construção
do corpo de doutrina da Bioética, é necessário enumerar e comentar os Princípios
da Bioética, o que se faz a seguir.
3.1.2 Princípios da Bioética
A reflexão sobre os Princípios da Bioética originou-se a partir do Relatório
Belmont
3
, publicado em 1978, nos Estados Unidos, com o objetivo de identificar
princípios éticos básicos que pudessem orientar as pesquisas biomédicas e
comportamentais.
Entretanto, estudo mais profundo do conteúdo do Relatório permitiu estender
sua influência para muito além da experimentação envolvendo seres humanos,
porque era baseado na aceitação de três princípios éticos bastante gerais e capazes
de formular, criticar e interpretar regras específicas, a saber, os princípios da
autonomia, da beneficência e da justiça.
Assim, a partir do pressuposto de que não há ação humana autônoma senão
pelo prévio consentimento livre e informado
4
, os três princípios identificados no
Relatório Belmont são:
a. o respeito pela pessoa (autonomia), incorporando duas convicções
éticas:
- todas as pessoas devem ser tratadas com autonomia;
- as pessoas cuja autonomia esteja diminuída ou se encontre em
desenvolvimento devem ser protegidas (vulnerabilidade);
b. a beneficência, também incorporando duas convicções éticas:
3
Cf. PESSINI, & BARCHIFONTAINE, 2000: “Publicado por uma Comissão governamental, em 1978,
ficou conhecido como Relatório Belmont (Belmont Report) por ter sido elaborado no Centro de
Convenções Belmont, no estado de Maryland. O principal objetivo do documento era conter os
escândalos provocados pela publicação do artigo no New England Journal of Medicine, em 1966,
com o título Ethics and clinical research (Ética e Pesquisa Clínica), de Henry Beecher, que
denunciava pesquisas realizadas em seres humanos sem qualquer preocupação ética. Também os
avanços nas pesquisas em transplante; na diálise e a nova relação médico-paciente deflagraram este
documento, que se tornou a declaração inicial da reflexão Bioética”.
4
Também chamado de Consentimento livre e esclarecido, Consentimento pós-informação,
ou consentimento informado. A Declaração de Helsinki (gerada na 18.ª Assembleia Médica Mundial
de Helsinki, na Finlândia, em junho de 1964), traz as seguintes disposições: “Art. 11. Os sujeitos
devem ser voluntários e participantes informados no projeto de pesquisa. (...) Art. 13. Em qualquer
pesquisa envolvendo seres humanos, cada paciente em potencial deve estar adequadamente
informado quanto aos objetivos, métodos, fontes de financiamento, quaisquer possíveis conflitos de
interesse, afiliações institucionais do pesquisador, os benefícios antecipados e riscos em potencial do
estudo e qualquer desconforto que possa estar vinculado. O sujeito deverá ser informado da
liberdade de se abster de participar do estudo ou de retirar seu consentimento para sua participação
em qualquer momento, sem retaliação”. Estas disposições, ainda que com outra redação ou divididas
em outros artigos, foram mantidas em todas as modificações e atualizações da Declaração.
- não causar dano;
- maximizar os benefícios e minimizar os possíveis riscos;
c. a justiça, enquanto imparcialidade na distribuição dos riscos e dos
benefícios. (PESSINI & BARCHIFONTAINE, 2000, p. 23)
De acordo com Martins (2008), inicialmente os princípios não foram
identificados para a Bioética: o objetivo era a ética referente às pesquisas
biomédicas. Porém, encontraram rápida adesão dos pesquisadores da Bioética,
devido a, principalmente, duas razões:
- os problemas morais situados que brotaram das atrocidades e crueldades
praticadas no campo biomédico, desde os campos de concentração
nazistas;
- a relevância desses princípios na análise de casos clínicos, dada à sua
praticidade na eleição de valores a serem aí observados.
Alguns autores, como Beauchamp e Childress (2002), aprofundaram a
reflexão principialista e transformaram os três princípios básicos: autonomia,
beneficência e justiça, identificados pelo Relatório Belmont, em quatro, propondo
que o princípio da beneficência trazia implícito outro princípio, o da não-maleficência,
que também pode ser encontrado no juramento de Hipócrates.
A esse respeito também se manifestaram Silva, Segre & Selli (2007, p. 62-3)
ao afirmar que:
[...] é óbvio que ela (a Bioética) não pode ser apenas um sistema de
princípios ou um conjunto de regras. A ausência de valores dotados
de universalidade real e a impossibilidade de objetivar o sujeito na
sua integridade exigem uma moralidade aberta à constante invenção,
sem o apoio de qualquer lógica e de qualquer axiologia. Aí está uma
característica marcante da bioética: a relação humana vivida no
regime da singularidade é o eixo em torno do qual gira a conduta.
Nas situações de fato, os princípios se mostram abstratos e as
regras, imprecisas. Isso porque dignidade, humanidade,
subjetividade, liberdade não são princípios nem regras, são modos
indefinidamente abertos de viver a relação humana, são temas
sujeitos a infinitas variações nas nossas relações concretas com os
outros. (grifo nosso)
Portanto, ao se falar em princípios, tem-se posição estanque, pois eles podem
ser classificados separadamente, entre dever ou direito. Mas a dinamicidade do
comportamento humano não permite que se respeite somente divisão tão
maniqueísta e o tempo mostrou que não é possível encaixar todos os atos humanos
e éticos relativos à vida em um universo tão limitado de princípios.
Nesse patamar, os Referenciais da Bioética tornam possível análise mais
coerente e real, pois o mesmo Referencial pode ser tanto dever, quanto direito,
dependendo da situação e do pólo em que se está em determinada relação, pois na
Teoria dos Referenciais não há limitação.
Na realidade, nesta Teoria, há referências a partir das quais acontece a
reflexão Bioética, e não é mais necessário definir se é princípio pertencente ao
universo dos deveres ou ao universo dos direitos, pois os Referenciais podem ser,
além de direitos e deveres, sentimentos, conceitos, fundamentos, condições etc.,
como se depreende claramente da citada obra de Silva, Segre & Selli.
Assim, a reflexão levou à conclusão de que era necessário encontrar outros
caminhos, que condissessem mais com a realidade.
Como um desses caminhos, por meio de estudo pioneiro de Hossne (2006),
foi proposta a Teoria dos Referenciais, que mostraram ser mais pertinentes à
realidade do que a Teoria dos Princípios, como ficará claro nos tópicos a seguir.
3.1.2.1 Princípio da beneficência e princípio da não-maleficência
“De todas as ciências que o homem pode e deve saber, a principal é
a ciência de viver fazendo o mínimo de mal e o máximo possível de
bem.”
Leon Tolstoi (1828-1910)
“O ser humano se engrandece no exato grau em que trabalha para o
bem-estar do seu semelhante.”
Mahatma Gandhi (1869-1948)
O princípio da beneficência resume-se ao dever ético de não fazer mal; é
aquele que estabelece que se deve fazer o bem aos outros. E o princípio da não-
maleficência é aquele que determina que se deve evitar dano intencional ao outro.
Entretanto, os autores não são pacíficos quanto à separação ou união desses dois
princípios: alguns os entendem isoladamente, enquanto outros julgam o segundo
parte ou consequência irrenunciável do primeiro.
Aqueles que defendem que a não-maleficência faz parte da beneficência
alegam que ao evitar o dano intencional o indivíduo já está, na realidade, visando ao
bem do outro.
Como citado, o Relatório Belmont (1978) seguiu esta mesma tendência e
incluiu a não-maleficência no princípio da beneficência, estabelecendo que duas
regras gerais podem ser formuladas como expressões complementares de uma
ação benéfica:
- não causar o mal;
- maximizar os benefícios possíveis e minimizar os danos possíveis.
Já Beauchamp e Childress (2002) distinguem a beneficência da não-
maleficência, definindo a primeira como ação feita no benefício de outros e a
segunda como obrigação de não infligir dano intencional.
3.1.2.2 Princípio da autonomia
“Autonomia:
[
...
]
Ét. Propriedade pela qual o homem pretende poder
escolher as leis que regem sua conduta.”
Novo Dicionário Aurélio. Verbete: autonomia. (1986)
“O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo
ético.”
Paulo Freire. Pedagogia da Autonomia. (1996)
Uma das bases teóricas utilizadas para o princípio da autonomia é o
pensamento de John Stuart Mill (1806-1883), ao propor que “sobre si mesmo, sobre
seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano”.
O Relatório Belmont (1978), que estabeleceu as bases para a adequação
ética da pesquisa nos Estados Unidos, denominava este princípio como princípio do
respeito às pessoas e, sob esta ótica, propunha que a autonomia incorporava, pelo
menos, duas convicções éticas: a primeira, que os indivíduos devem ser tratados
como agentes autônomos, e a segunda, que as pessoas com autonomia diminuída
devem ser protegidas (mas aqui, como será possível perceber mais adiante, pode-
se afirmar, de acordo com Hossne – 2006, que já se está falando do Referencial da
vulnerabilidade).
Charlesworth, citado por Goldim (2003), traz uma perspectiva social para a
autonomia do indivíduo, que pode conduzir à própria noção de cidadania. Ele afirma
que:
Ninguém está capacitado para desenvolver a liberdade pessoal e
sentir-se autônomo se está angustiado pela pobreza, privado da
educação básica ou se vive desprovido da ordem pública. Da mesma
forma, a assistência à saúde básica é uma condição para o exercício
da autonomia. (Trad. livre da autora)
Kamii (1985, p. 103) também identifica a autonomia sob uma perspectiva de
vida em grupo:
[...] autonomia significa o indivíduo ser governado por si próprio. É o
contrário de heteronomia, que significa ser governado pelos outros. A
autonomia significa levar em consideração os fatores relevantes para
decidir agir da melhor forma para todos. Não pode haver moralidade
quando se considera apenas o próprio ponto de vista.
A conceituação dos dois autores permite identificar a ligação com o instituto
da Desobediência Civil, que se trata de expediente para garantir os direitos do
cidadão, bem como forma de obter justiça para toda a sociedade ou para uma
determinada coletividade, e só em face desta justiça encontra sua justificativa.
Ainda que a palavra em si – autonomia – possa dar a impressão de ter valor
individual, é imprescindível que nas decisões com base neste Referencial haja
inclusão da pessoa do outro, pois é preciso ver a si mesmo na figura do outro.
Quando o ser humano é capaz de se ver na figura de seu próximo, ele age
em conformidade com o Referencial da Justiça, como se pode notar a seguir.
3.1.2.3 Princípio da justiça
“A injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos.”
Charles de Montesquieu (1689-1755)
“A justiça pode ser entendida de diversas formas, mas em todas elas
a justiça é a constância da expressão de uma vontade perpétua do
ser humano.
São Bernardino de Siena (1380-1444)
Estabelecido no Relatório Belmont (1978), o Princípio da justiça, importante e
soberano em si mesmo, remete, ainda, às noções de empatia
5
, de alteridade
6
e de
5
Empatia: s. f. Psicol. Tendência para sentir o que sentiria outra pessoa caso se estivesse na
situação experimentada por ela. (Dicionário Michaellis, versão eletrônica. Verbete: empatia)
6
Cf. LÉVINAS, Emanuel, importante autor na reflexão moral contemporânea (In: DESCAMPS, 1991,
p. 95): “alteridade é colocar o outro no lugar do ser”, visão a partir da qual o outro não é um objeto
para um sujeito, pois "[...] tudo começa pelo direito do outro e por sua obrigação infinita a este
respeito. O humano está acima das forças humanas".; e cf. DESCAMPS, Christiam (1991, p. 91): "A
relação com o outro é a base de uma co-presença ética. Cada um é constantemente confrontado com
um próximo. Não sou eu frente ao próximo (outro), mas sim os outros continuamente frente a mim”.
equidade
7
, caminhando, ainda, para o Referencial da não-maleficência, pois ao
identificar o outro consigo mesmo, certamente não haverá desejo de prejudicá-lo.
Nas ideias de Aristóteles já era possível encontrar a proposta da justiça
formal, quando ele afirmava que os iguais devem ser tratados de forma igual e os
diferentes devem ser tratados de forma diferente.
Segundo ele, o termo justiça denota, ao mesmo tempo, legalidade e
igualdade. Assim, justo é tanto aquele que cumpre a lei (justiça em sentido
universal) quanto aquele que realiza a igualdade (justiça em sentido estrito). A
justiça implica, também, alteridade. Uma vez que justiça equivale a igualdade, e que
igualdade é um conceito relacional (ou seja, diferentemente da liberdade, a
igualdade sempre se refere a outro, como se pode constatar da falta de sentido na
frase "João é igual" se comparada à frase "João é livre"), é impossível, segundo
Aristóteles e Santo Tomás de Aquino praticar uma injustiça contra si mesmo.
(GLOSSÁRIO, 2008)
Essa proposta de justiça formal foi explicitada por Perelman
8
, entre outros
estudiosos. Ele aponta, ainda, que:
Todas as grandes tradições morais e religiosas contém, entre seus
preceitos, a regra áurea que nos convida a tratar os outros como a
7
Cf. HOSSNE & ZAHER (2006): “Frequentemente se usa a expressão equidade em conjunto com
igualdade. Há, inclusive, textos em que de maneira confusa se considera equidade como igualdade.
Na realidade, equidade pode ser completamente diferente de igualdade, embora, de modo paradoxal,
a equidade possa ser maneira, modo ou meio para se atingir determinada igualdade. (...) A equidade
exige pois que se trate de maneira igual o que for igual e de maneira desigual o que for desigual para
atingir melhor igualdade, isto é, a almejada e o desejável. (...) A equidade exige em primeiro lugar a
identificação das diferenças, das desigualdades; segue-se a devida avaliação de tais desigualdades
e, em seguida, com planejamento e adoção das medidas para equacionamento e obtenção da
igualdade desejada”. Segundo Aristóteles (2001, p. 125): [...] o equitativo, embora seja superior a
uma simples espécie de justiça, é justo em si mesmo, e não é como coisa de classe diferente que é
melhor do que o justo. Portanto, a mesma coisa é justa e equitativa, embora a equidade seja
superior”.
8
De acordo com Perelman, citado por CRUZ (2005), dentre os pontos convergentes e os divergentes
das diversas concepções de justiça, é necessário se talhar uma fórmula de justiça que exsurja de um
acordo unânime. A noção de justiça consiste, por certo, na aplicação da ideia de igualdade, porém
como um elemento indeterminado, ou seja, que possibilite o levantamento e discussão de suas
divergências. De tal elemento variável, numa pluralidade de determinações, é que advirão as mais
opostas fórmulas de justiça, até que se chegue a um ideal de limite, sendo justiça a igualdade, não
absoluta, mas a parcial, como algo possível de execução prática. Ser justo, persiste Perelman, é
tratar a todos de forma igual, contudo tendo em mente a ideia de "limite", em contraposição às
possibilidades de realização de tais critérios de distribuição do que seja justo. (...) a justiça implica o
tratamento igual dos seres que são iguais em dadas circunstâncias. Só é realizável a justiça desde
que haja identidade comum entre os indivíduos à que a mesma é aplicada (...) haverá de existir um
tratamento igual entre as pessoas que sejam iguais em certo ponto de vista. Em síntese, Perelman
traça uma definição de justiça formal (abstrata), como "(...) um princípio de ação segundo o qual
os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma (...)" (grifo
original)
nós mesmos. Eis, dentre as mais conhecidas, alguns modos de
formulá-la: Ama a teu próximo como a ti mesmo. Não faças a teu
semelhante o que não gostaria que ele te fizesse. Age para com teu
semelhante como gostaria que ele agisse para contigo. Age do modo
que gostaria que agissem teus semelhantes.
Quanto ao princípio da justiça, O Relatório Belmont (1978) trazia as seguintes
ponderações:
Quem deve receber os benefícios da pesquisa e os riscos que ela
acarreta? Esta é uma questão de justiça, no sentido de 'distribuição
justa' ou 'o que é merecido'. Uma injustiça ocorre quando um
benefício que uma pessoa merece é negado sem uma boa razão, ou
quando algum encargo lhe é imposto indevidamente. Uma outra
maneira de conceber o Princípio da Justiça é que os iguais devem
ser tratados igualmente. Entretanto, esta proposição necessita uma
explicação. Quem é igual e quem é não-igual?
9
Quais considerações
justificam afastar-se da distribuição igual? (...) Existem muitas
formulações amplamente aceitas de como distribuir os benefícios e
os encargos. Cada uma delas faz alusão a algumas propriedades
relevantes sobre as quais os benefícios e encargos devam ser
distribuídos.
Para Beauchamp e Childress (2002, p. 260), “o princípio da justiça deve ser
visto como a expressão da justiça distributiva, no sentido de distribuição justa,
equitativa e apropriada na sociedade, de acordo com normas que estruturam os
termos da cooperação social”.
A análise dos Princípios da Bioética permite concluir que eles são muito
limitados, principalmente considerando-se a evolução da Bioética para além do
9
Cabe aqui pequena observação sobre isonomia no direito positivo brasileiro. A propósito, Perelman
(2002, p. 158) também fala de isonomia em sua obra. Segundo ele: “A regra de justiça estabelece a
exigência do tratamento igual de seres iguais”. No art. 5º. da Constituição Federal de 1988, pode-se
identificar o princípio da isonomia, de acordo com o qual todos devem ser tratados igualmente
perante a lei. Este conceito já era encontrado no Discurso fúnebre de Péricles (Homenagem aos
atenienses mortos na guerra do Peloponeso, nos primeiros meses de 430 a.C.): "A nossa constituição
não imita as leis dos estados vizinhos. Em vez disso, somos um modelo para os outros. O governo
favorece a maioria em vez de poucos - por isso é chamado de democracia. Se consultarmos a lei,
veremos que ela garante justiça igual para todos em suas diferenças; quanto à condição social, o
avanço na vida pública depende da reputação de capacidade. As questões de classe não têm
permissão de interferir no mérito, tampouco a pobreza constitui um empecilho: se um homem está
apto a servir ao Estado, não será tolhido pela obscuridade da sua condição... Estes não são os
únicos pontos pelos quais a nossa cidade é digna de admiração. Cultivamos o refinamento sem
extravagância, e o conhecimento sem efeminação. Empregamos a riqueza mais para o uso do que
para a exibição e situamos a desgraça real da pobreza não no reconhecimento do fato, mas na
recusa de combatê-la. Diferentemente de qualquer outra comunidade, nós, atenienses, consideramos
aquele que não participa de seus deveres cívicos não como desprovido de ambição, mas sim como
inútil. Ainda que não possamos dar origem à política, em todo caso podemos julgá-la; e em vez de
considerarmos a discussão como uma pedra no caminho da ação, a consideramos como uma
preliminar indispensável de qualquer ação sábia... Em resumo, afirmo que, como cidade, somos a
escola de toda a Grécia.” (Tucídides, 1987)
campo da Medicina e da Biologia. A partir dessa constatação, Hossne (2006)
desenvolveu a Teoria dos Referenciais da Bioética.
3.1.3 Referenciais da Bioética
A certeza de que a Bioética não poderia ter como norteadores princípios que
a limitassem, mas sim o contrário – deveria ter como norteadores conceitos que,
transitando por caminhos livres, auxiliassem a atingir os objetivos da Ética em todos
os campos da vida cotidiana – levou o professor William Saad Hossne a desenvolver
a Teoria dos Referenciais (2006), como se exporá a seguir.
Hossne (2006, p. 673) afirma que “aos poucos, diante das situações bioéticas
mais complexas (...) verificou-se o reducionismo e a insuficiência da teoria dos
princípios”.
O autor também esclarece que os quatro princípios já estavam presentes na
prática e na teoria médica: a não-maleficência já aparecia no Juramento de
Hipócrates
10
, 25 séculos antes da teoria dos princípios, bem como a beneficência,
ainda que à época tivesse um sentido paternalista; a autonomia concretizou-se na
sociedade ocidental nos séculos XVII e XVIIII, a partir das Revoluções Democráticas
e por intermédio de alguns filósofos, como Kant, Spinoza e John Locke; justiça e
equidade são conceitos amplamente discutidos já na época de Sócrates, Platão e
Aristóteles. (HOSSNE, 2006, p. 674)
Além disso, ainda segundo Hossne (2006, p. 674):
A insuficiência da teoria dos princípios em termos agora de Bioética e
não de ética biomédica humana, fica também patente quando
aplicada a outros campos da Bioética, como por exemplo, no campo
das ciências da vida e ou das ciências do meio ambiente.
A análise permite concluir que fica muito difícil inserir certos conceitos,
sentimentos e variáveis no universo inflexível dos princípios, tais como a dignidade,
a vulnerabilidade, a solidariedade, entre outros exemplificados por Hossne (2006, p.
674), sendo que a reflexão sobre os Princípios e os Referenciais da Bioética transita
pelo caminho de identificar aqueles como gerais, percebendo que a submissão de
qualquer assunto aos princípios enseja resolução automática e reducionista.
10
Hipócrates: médico grego (século IV-III AC), considerado o pai da Medicina, é o mais célebre
médico da Antiguidade e iniciador da observação clínica. O Juramento, trabalho que resume sua
ética, é pronunciado até hoje nas cerimônias de graduação de Medicina. (Almanaque Abril – CD-
Rom, 1996)
Entretanto, com os Referenciais isso não ocorre, pois eles permitem maior liberdade
de reflexão, ultrapassando o raciocínio lógico e pré-estabelecido.
A ideia de que princípios são rígidos pode ser encontrada em exemplos da
literatura, como na frase bem-humorada de Millôr Fernandes
11
: “Meus princípios são
rígidos e inalteráveis. Agora, eu mesmo, pessoalmente, já não sou tanto.” e de que
são cômodos, por não exigirem reflexão e ensejarem soluções automáticas, em
exemplos da Ciência, como na expressão científica de Poincaré
12
(1995): “Um
Princípio não é nem verdadeiro nem falso, mas somente cômodo”.
Ademais, os Referenciais são orientadores: neles se encaixam quaisquer
casos e, se bem utilizados, consideram a singularidade de cada um, pois permitem
examinar o caso em si, superando o puro e simples legalismo. Já os princípios
rotulam, são rígidos, exigem que o caso neles se enquadre, desconsiderando
aspectos singulares.
Mesmo assim, a opção pelos Referenciais exige cautela, pois os critérios
precisam ter universalização, não podendo perder a possibilidade de aplicação ao
caso concreto.
Portanto, é possível concluir que os Referenciais podem se adequar aos
casos singulares, conduzindo à reflexão, com aplicações concretas, enquanto os
princípios – se utilizados em si só, são limitadores, pois se apresentam rígidos desde
seu nascimento.
Entretanto, como sempre enfatizado por Hossne (2006), “os princípios são de
importância essencial, são necessários, porém não suficientes” e é por este caminho
que envereda este estudo, por se julgar que ao se falar em conceitos de Bioética
aplicados a todas as áreas da vida, inclusive à cidadania, os princípios apresentam-
se insuficientes.
Desta forma, em concordância com Hossne, o ideal é torná-los Referenciais
que seriam, “como o próprio nome indica, as pontes de referência para a reflexão
bioética; assim, os ‘princípios’ deixam de ser princípios (direitos e deveres) e passam
a ser pontos de referência, aliás importantíssimos, porém não só eles”. (HOSSNE,
2006) (grifo nosso)
11
Millôr Fernandes nasceu no Rio de Janeiro em 1923, é desenhista, humorista, dramaturgo, escritor
e tradutor brasileiro.
12
Jules Henri Poincaré nasceu em 1854, em Nancy, na França, foi matemático, físico e filósofo de
grande importância para a humanidade.
Ao afirmar “não só eles”, Hossne remete à ideia de que a Teoria dos
Princípios pode ser representada pela figura de um quadrado, remetendo à imagem
de “fechamento” e a ideia ou Teoria dos Referenciais encontraria sua representação
em um círculo aberto, ainda passível de ampliação, como reproduzidos abaixo.
TEORIA DOS PRINCÍPIOS TEORIA DOS REFERENCIAIS
Fonte: Hossne (2006), atualizada por ele mesmo em fev. 2009.
Além do exposto, deve-se destacar, quanto aos Princípios e Referenciais e a
relação de ambos com a Desobediência Civil, como é possível analisá-los “sob o
mesmo céu e sobre o mesmo chão”, por assim dizer, sendo possível questionar a
utilização dos Referenciais da Bioética e do instituto da Desobediência Civil para
motivar o cidadão a participar da construção ética de sua História política, com
defesa, manutenção ou restauração da justiça, pois, como afirma Dallari (1985, p.
62): “Onde não estiver assegurada a possibilidade de participação direta e indireta
do povo no governo, não existe democracia, o governo não é legítimo e o povo não
pode ser feliz”.
Relevante, ainda, citar Lang (2007, p. 108) que, a respeito de Nelson
Mandela, expôs:
A meu ver, o propósito de Mandela era postular publicamente um
princípio. Sem a menor ilusão, insiste em lembrar a lei fundamental
da vida em sociedade: o governado tem o direito de ser ouvido
pelo governante, e sua queixa, procedente ou não, deve receber
Autonomia
Não-
maleficência
Justiça
Beneficência
uma resposta fundamentada. Isso se chama democracia. (grifo
nosso)
Nesta situação, pode-se criar um silogismo e dizer que se objetiva a
“politização da Bioética” ou a “Bioeticalização da política”
13
e se pode fazer, neste
sentido, a seguinte relação: a Desobediência Civil “ultrapassa” a Lei, ao ver no
questionamento da justiça e na legitimidade dos atos do desobediente uma forma de
desobedecer à própria lei.
Já os Referenciais da Bioética ultrapassam os princípios rígidos, pois podem
ser identificados como um espaço em que o indivíduo tem a possibilidade de refletir
e de provocar reflexão, o que os faz trazerem maleabilidade à Bioética, em caminho
oposto à rigidez dos princípios. Este caminho apresenta-se permeado pelos direitos
fundamentais do cidadão, como se percebe a partir do próximo tópico.
13
Termos/neologismos sugeridos pelo professor doutor William Saad Hossne, com base no conteúdo
deste trabalho, durante Banca de Qualificação da autora, no Centro Universitário São Camilo, em 23
jan. 2009.
3.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E DESOBEDIÊNCIA CIVIL
“Quem não luta por seus direitos não é digno deles.”
Rui Barbosa (1849-1923)
“A primeira coisa, portanto, é dizer-vos a vós mesmos: ‘Não aceitarei
mais o papel de escravo. Não obedecerei às ordens como tal, mas
desobedecerei quando estiverem em conflito com minha
consciência’.”
Mahatma Gandhi (1869-1948)
Ao se falar em Desobediência Civil, toca-se em vários conceitos do Direito, da
Filosofia e também, no caso deste estudo, da Bioética.
Entre esses conceitos, para que a sustentação do estudo fique mais claras,
torna-se necessária, no mínimo, a apresentação básica de alguns, cuja função é
servir de suporte para as ideias apresentadas nos capítulos subsequentes.
3.2.1 Direitos fundamentais
“Direitos fundamentais ou liberdades públicas são aquelas que
limitam o poder dos entes estatais. São as liberdades clássicas ou
civis, a liberdade política ou de participação e as liberdades
concretas, que se separam entre econômicas e sociais. Ou seja, são
os poderes de autodeterminação.”
Pinto Ferreira (1918-)
Os direitos fundamentais do homem advêm de sua própria condição humana.
São chamados de Direitos Fundamentais, Liberdades Públicas ou Direitos Humanos
e visam a garantir o respeito à vida, à liberdade, à igualdade e à dignidade, para o
pleno desenvolvimento da personalidade. Esta proteção deve ser reconhecida pelos
ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais de maneira positivada.
São, ainda, direitos conquistados pela sociedade, por meio do próprio
exercício da cidadania, a fim de garantir a dignidade da pessoa humana em sua
relação com o Estado e a sociedade na qual está inserida.
Nas palavras de Silva (1999, p. 179 e 182):
[...] a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do
homem no evolver histórico dificulta definir-lhes um conceito sintético
e preciso. Aumenta essa dificuldade a circunstância de se
empregarem várias expressões para designá-los, tais como: direitos
naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais,
direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades
públicas e direitos fundamentais do homem (...) e a denominação
direitos fundamentais do homem além de referir-se a princípios que
resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de
cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do
direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que o Direito
Positivo concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e
igual de todas as pessoas (...) No qualificativo fundamentais acha-se
a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a
pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo
sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por
igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas
concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como o macho
da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos
fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa
humana ou direitos fundamentais. É com esse conteúdo que a
expressão direitos fundamentais encabeça o Título II da Constituição,
que se completa, como direitos fundamentais da pessoa humana, no
art. 17.
No ordenamento jurídico brasileiro, os direitos fundamentais estão expressos
na Constituição Federal de 1988, no Título II, Direitos e Garantias Fundamentais e
não podem ser alterados ou abolidos, já que a própria Constituição Federal assim
dispôs, em seu artigo 60, § 4º., IV: “Não será objeto de deliberação a proposta
tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais”.
Entretanto, cabe ressaltar que os direitos fundamentais enumerados não são
definitivos; trata-se, apenas de rol exemplificativo, o que se pode confirmar pelo §2º.
do artigo 5º., in verbis: “Art. 5º. (...) – (...) §2º. Os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa seja
parte”.
Os cidadãos se veem legitimados a lutar pela manutenção desses direitos
fundamentais quando eles forem negados ou violados, ainda que por meio de ações
diferenciadas, como é o caso da Desobediência Civil, que pode ser encaixada no rol
dos “novos direitos”.
3.2.1.1 Direitos fundamentais e Desobediência Civil
“O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje,
não é o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um
problema não só filosófico, mas político.”
Norberto Bobbio (1909-2004)
“Nada é impossível de mudar
Bertolt Brecht (1898-1956)
Desconfiai do mais trivial,
na aparência de singelo,
e examinai, sobretudo,
O que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceites o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural nada
deve parecer impossível de mudar.” (grifos nossos)
No caso dos direitos fundamentais, por não constituírem numerus clausus,
podem surgir novos direitos e é nesse rol que se inserem o Direito de Resistência e
a Desobediência Civil.
Se o rol dos direitos fundamentais fosse visto como restrito, limitaria muito o
suporte e a proteção que o Direito tem de dar ao cidadão, bem como o campo de
luta deste face a problemas da vida cotidiana, principalmente ao se considerar que o
Direito, assim como a própria vida do cidadão, é organismo dinâmico, em constante
mudança, evolução e adequação àqueles que protege e regula.
A este respeito, Tavares (2003) defende que a Desobediência Civil deve ser
totalmente aceita pelo Direito, em sentido amplo, como instituto dos novos direitos, e
assim se manifesta:
Esses novos direitos, mesmo sendo criminosos na ótica restrita do
direito positivo, tornam-se legitimados e, consequentemente,
plenamente aceitos pelo direito aqui entendido em sentido amplo.
Quando necessariamente todas as fases possíveis de negociação,
através do processo de reivindicação de direitos, esgotam e a
interpretação do direito positivo é restrita ao cumprimento da lei,
desconsiderando o elemento de adaptação do direito aos princípios,
abrem-se espaços para o favorecimento dos atos de Resistência
Política e Desobediência Civil.
Como assevera também Wolkmer (2003):
São os novos direitos referentes à biotecnologia, à bioética e à
regulação da engenharia genética (...) Tais direitos de natureza
polêmica, complexa e interdisciplinar vêm merecendo a atenção de
médicos, juristas, biólogos, filósofos, teólogos, psicólogos,
sociólogos.
Ou nas palavras de Amin (2009), na resenha do livro de Wolkmer & Leite:
A partir do Século XX, os modelos de Estado e Direito modernos
começam a sofrer impactos provenientes da “globalização,
expressos em problemas ambientais e econômicos. A Europa entra
em crise. Vive-se, então, o deslocamento para novos paradigmas de
conhecimento, de representação institucional e social. Esses direitos
assumem um caráter relativista, difuso e metaindividual. Trata-se
então de uma verdadeira revolução. Os novos direitos passam a se
relacionar com o social, metaindividual, bioética, ecossistema e a
realidade virtual, seja através de novo Direito Processual, seja por
meio de uma Teoria Geral de Ações Constitucionais. Direitos de
primeira dimensão. São os direitos civis e políticos, ou seja, os
direitos individuais, vinculados à liberdade, à igualdade, à
propriedade, à segurança e à resistência às diversas formas de
opressão.
A possibilidade do surgimento de novos direitos deve ser entendida, também,
como recurso a ser utilizado para obter a efetivação de direitos negados. E assim
deve ser visto o direito à Desobediência Civil, expediente a ser utilizado para a
restauração ou obtenção de justiça, se o cidadão se vir face à negação desses
direitos.
A compreensão da cidadania, dos direitos a ela inerentes e da
responsabilidade do cidadão não só de cobrar a aplicação desses direitos por parte
dos representantes do Poder Constituído, mas também de defendê-los, por si só
demonstra a estreita relação entre Desobediência Civil e cidadania, como se pode
perceber a partir do item seguinte.
3.2.2 Cidadania
Cidadania, o direito de ter direitos.”
Hannah Arendt (1906-1965)
Por se tratar de conceito basilar e importantíssimo, é possível encontrar
“cidadão” e “cidadania” definidos por vários autores, inclusive Aristóteles (384 a.C.-
322 a.C.), que definia cidadão “como todo indivíduo gozando dos direitos e
respeitando os deveres definidos pelas leis e pelos costumes da Cidade”.
Dallari (2004, p. 22) afirma: “a cidadania expressa um conjunto de direitos que
dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu
povo” e destaca, ainda, a sua importância:
Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida
social e da tomada de decisões, ficando numa posição de
inferioridade dentro do grupo social. Por extensão, a cidadania pode
designar o grupo de pessoas que gozam daqueles direitos.
Já para Herkenhoff (2002), “cidadão é o indivíduo que está no gozo dos
direitos civis e políticos de um Estado”. Entretanto, ainda segundo o autor, é
necessário fazer uma advertência: “O cidadão também tem deveres para com o
Estado”. (HERKENHOFF, 2002, p. 19)
De acordo com De Plácido e Silva (1991, verbete: cidadania):
Cidadania, palavra que se deriva de cidade, não indica somente a
qualidade daquele que habita a cidade, mas mostrando a efetividade
dessa residência, o direito público que lhe é conferido, para que
possa participar da vida política do país em que reside. É expressão,
assim, que identifica a qualidade da pessoa que, estando na posse
de plena capacidade civil, também se encontra investida no uso e
gozo de seus direitos políticos, que indicam, pois, o gozo dessa
cidadania.
Para Marshal, citado por Costa (1990, Introdução, XVI), cidadania deve ser
entendida como “um status concedido aos membros considerados integrais de uma
sociedade política, compreendendo direitos e obrigações em relação ao Estado”.
Para Garcia (2004, p. 148):
À cidadania corresponde um feixe de privilégios, decorrentes da
condição da titularidade da coisa pública. Desses, os mais
conspícuos estão na imunidade jurídica aos excessos estatais, no
direito à resistência aos abusos, na prerrogativa de responsabilizar
os agentes excessivos e no direito à tutela jurisdicional contra eles. A
cidadania, criando o poder, ao mesmo tempo estabelece quais são
os seus limites, ou o perímetro dentro do qual tal poder há de
circunscrever-se.
Para Ferreira Filho (1993, p. 99): “A cidadania é um status ligado ao regime
político. Assim, é correto incluir os direitos típicos do cidadão entre aqueles
associados ao regime político, em particular entre os ligados à Democracia”.
Dallari (2004, p. 22) assevera ainda que:
Através do conceito de cidadania afirmam-se os direitos
fundamentais da pessoa humana, na perspectiva da convivência,
que é necessidade essencial de todos os seres humanos. Assim,
conjugando-se os aspectos individual e social, acentua-se também o
dever de participação, inerente à cidadania.
Esse “dever de participação” apontado por Dallari se coaduna com a
aplicação de alguns Referenciais da Bioética (Hossne, 2006), principalmente, nesse
caso, com os Referenciais da responsabilidade, da solidariedade e do altruísmo,
cuja aplicação nas relações do dia-a-dia reflete imediatamente na qualidade de vida
da coletividade.
No ordenamento jurídico brasileiro, a cidadania aparece como fundamento do
Estado brasileiro, na Constituição Federal, no Título I, Dos Princípios Fundamentais:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
II – a cidadania;
[...]
O quadro sinótico a seguir permite visualizar o universo no qual é possível
inserir o entendimento sobre ser cidadão.
QUADRO 1 – DO SER HUMANO AO SER CIDADÃO
O ser humano O ser indivíduo O ser pessoa O ser cidadão
A dimensão do convívio
social.
A dimensão do mercado
de trabalho e consumo.
A dimensão de se
encontrar no mundo.
A dimensão de intervir
na realidade.
O homem torna-se ser
humano nas relações
de convívio social.
O ser humano torna-se
indivíduo quando
descobre seu papel e
função social.
O indivíduo torna-se
pessoa quanto toma
consciência de si
mesmo, do outro e do
mundo.
A pessoa torna-se
cidadão quando
intervém na realidade
em que vive.
Quem estuda o
comportamento do ser
humano? A História, a
Antropologia ou a
Sociologia?
Quem estuda o
comportamento do
indivíduo? A Filosofia, a
Sociologia ou a
Psicologia?
Quem estuda o
comportamento da
pessoa? A Filosofia, a
Sociologia ou a
Psicologia?
Quem estuda o
comportamento do
cidadão? A Sociologia,
a Filosofia ou as
Ciências Políticas?
Quem garante os
direitos do ser humano?
A Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
Quem garante os
Direitos do
Consumidor? O Código
do Consumidor.
Quem garante os
Direitos da pessoa? A
própria pessoa (amor
próprio ou autoestima).
Quem garante os
Direitos do cidadão? A
Constituição e suas leis
regulamentares.
Existe realmente uma
natureza humana?
Teologicamente,
afirmamos que existe
uma natureza humana.
Seguindo a corrente
existencialista (J. P.
Sartre) negamos tal
natureza.
Que diferença existe
entre o direito do
consumidor e o direito
do cidadão? Ao
Consumidor deve ser
dado o direito de
propriedade enquanto
ao cidadão deve ser
dado o direito de
acesso.
O que significa tornar-
se pessoa no nível
psicológico e social? A
pessoa é o indivíduo
que toma consciência
de si mesmo (“Tornar-
se Pessoa”, de Karl
Rogers)
Como é possível
intervir na realidade e
modificar as estruturas
corruptas e injustas?
Quando os direitos do
cidadão lhe são
oferecidos e ao se
passar a exercê-lo, há
modificação de
comportamento.
Fonte: SCALISE, 2002, p. 73-82.
A cidadania vai se estabelecer e se fixar não só por meio da lei, mas sim pela
justiça, liberdade e legitimidade dos atos presentes na sociedade na qual se vive.
Como bem assevera Cortina (2005):
A Bioética é um impulso para a cidadania ativa e o conceito de
cidadania é revolucionário, na medida em que exige o
“empoderamento” dos que são iguais enquanto cidadãos, para que
levem adiante seus planos vitais de modo autônomo e solidário. E a
Bioética é um impulso potente para a geração de uma cidadania
ativa em nível local e global.
Breve análise destes conceitos permite melhor compreensão da possibilidade
de atos de Desobediência Civil como auxiliares no estabelecimento da cidadania,
como se percebe a seguir, e que ficará claro no decorrer do estudo.
3.2.3 Lei, justiça, liberdade e legitimidade
“Ser livre, para o homem contemporâneo, é ser justo, é ser culto, é
respeitar o direito alheio, o direito individual diante de si mesmo e dos
outros.”
Austregésilo Athayde (1898-1993)
O entendimento da relação entre lei, liberdade e legitimidade é importante no
dia-a-dia do cidadão. Tanto quanto o é ao se tentar entender a Desobediência Civil e
a aplicação dos Referenciais da Bioética na vida cotidiana, quando a defesa da
justiça assim o exigir. Por isso comenta-se, isoladamente, um pouco sobre cada um
desses conceitos.
3.2.3.1 Lei
Normalmente, a lei é considerada norma geral e abstrata, mas existem vários
conceitos e entre eles é possível destacar alguns.
Para Bastos (1975, p. 104), “lei é todo ato que, originário do poder legislativo e
produzido segundo um procedimento descrito na Constituição Federal, inova
originariamente a ordem jurídica”.
Temer (2002, p.135) define lei como “ato normativo produzido pelo Poder
Legislativo segundo forma prescrita na Constituição, gerando direitos e deveres em
nível imediatamente infraconstitucional”.
Arendt (2006) afirma, ainda, que em toda forma de civilização é necessário
que haja uma estrutura estável para que ocorram mudanças significativas e, segundo
ela, “a lei tem o papel de assegurar esta estrutura de estabilidade”, embora a filósofa
destaque também que:
O compromisso moral do cidadão em obedecer às leis,
tradicionalmente provém da suposição de que ele ou deu seu
consentimento a elas, ou foi o próprio legislador; sob o domínio da
lei, o homem não está sujeito a uma vontade alheia, está
obedecendo a si mesmo – e o resultado, naturalmente, é que cada
pessoa é ao mesmo tempo seu próprio senhor e seu próprio escravo
[...] (ARENDT, 2006, p. 75-6)
Assim, a lei, como dispositivo jurídico, vê-se revestida de legalidade.
Entretanto, legalidade não é sinônimo de justiça, nem de legitimidade, conceitos
também importantes ao se falar em atos de Desobediência Civil.
3.2.3.1.1 Lei e justiça
“Não se pode esquecer que o que é justo do ponto de vista legal
pode não sê-lo do ponto de vista moral.”
Abraham Lincoln (1809-1865)
“Não se deve ter medo de sair da legalidade quando não há outro
jeito de entrar no Direito.”
Alexandre Briand (1863-?)
A discussão entre Direito e Justiça há muito ocupa a mente dos cidadãos. A
ponto de Ihering (1818-1883) ter afirmado:
A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se
serve para o conseguir. Enquanto o Direito sofrer os ataques da
injustiça – e assim acontecerá enquanto o mundo for mundo – nunca
ele poderá subtrair-se à luta. A vida do Direito é uma luta.
Este embate, que parece muitas vezes colocar o homem no fio da navalha, é
bastante complexo e até hoje existem debates apaixonados sobre o real significado
de “justiça”.
Para os gregos, a noção de Direito estava ligada à ideia de justiça. Em A
República (provavelmente século IV a.C.), de Platão, por exemplo, não há uma
definição fechada de justiça, mas sim uma ideia que envolve todo o comportamento
do ser humano, já que o autor analisa como seria o comportamento do homem justo
e o do homem injusto.
A partir da forma de agir justa ou injusta, Platão passa a descrever as
virtudes, visando a determinar a postura ética que poderá levar o homem a
conquistar sua felicidade, construindo, como consequência, um Estado justo e
perfeito.
Com o passar dos séculos, a discussão entre Direito e Justiça persistiu,
alimentada também pelo fato de a noção de Justiça, da mesma forma que a noção
de Ética e, sobretudo, de Moral, passar por variações históricas. Como exemplo,
pode-se citar a escravidão, vista por muitos como justa, legal e ética em tempos
históricos passados e considerada imoral, antiética e criminosa nos dias de hoje.
Além do mais, é necessário ter claro que, assim como a busca pela paz e
pela felicidade, a busca pela justiça é constante, ainda que tenham existido – e
ainda existam – dispositivos jurídicos injustos. É nesses casos que é preciso buscar
instrumentos que destituam e até mesmo eliminem a injustiça, como é o caso da
Desobediência Civil.
Stone (2005, p. 104), ao analisar os acontecimentos que culminaram na
condenação de Sócrates à morte, assim se pronunciou sobre a lei e a justiça:
O fato de que todas as leis e proposições gerais têm exceções não
anula o valor das leis e das generalizações como guias para o
comportamento dos homens, do mesmo modo como a doutrina do
homicídio justificável não anula a validade da lei contra o
assassinato. Mas implica que, nas escolhas mais difíceis que na vida
real todos os homens, juízes ou não, são obrigados a fazer, a
verdadeira virtude, humanidade e bondade podem exigir que
certas regras sejam violadas. As abstrações em si, por mais
antigas e veneráveis que sejam, às vezes revelam-se insuficientes.
Decidir se o caso que se vive no momento é um desses, por vezes é
doloroso e arriscado. Há de se preservar a lei, porém a justiça
deve ser feita. E as duas coisas nem sempre coincidem. O velho
dilema da tragédia grega e da filosofia socrático-platônica
permanece, e sempre haverá de permanecer. (grifos nossos)
Leite (2009) afirma ainda que Ulpiano definiu Justiça “como a vontade firme e
permanente de dar a cada um o seu direito (justitia est constans et perpetua
voluntas jus suum cuique tribuere) e que: “A noção de justiça é uma das mais
difíceis de definir. É ideia e sentimento, não se sabendo até hoje se é mais uma do
que outra”.
Assim, várias definições e afirmações sobre o que seria justiça podem ser
encontradas nas produções intelectuais e nos estudos já produzidos em diversos
ramos do conhecimento, como na Filosofia, no Direito e na Sociologia, entre outros.
Em um de seus poemas, cujo nome é O pão do povo, Brecht (1990, p. 309)
enuncia uma definição de justiça que se encaminha para a possibilidade de o próprio
povo sanar atos que a contrariem:
A justiça é o pão do povo.
Às vezes bastante, às vezes pouca.
Às vezes de bom gosto, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão é pouco, há fome.
Quando o pão é ruim, há descontentamento.
Fora com a justiça ruim!
Cozida sem sabor, amassada sem sabor!
A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
Quando o pão é bom e bastante
o resto da refeição pode ser perdoado.
Não pode haver tudo logo em abundância.
Como é necessário o pão diário,
é necessária a justiça diária.
Sim, mesmo várias vezes ao dia.
De manhã, à noite, no trabalho, no prazer.
No trabalho que é prazer.
Nos tempos duros e felizes.
O povo necessita do pão diário
da justiça, bastante e saudável.
Sendo o pão da justiça tão importante, quem amigos, deve prepará-
lo?
Quem prepara o outro pão?
Assim como o pão, deve o pão da justiça
ser preparado pelo povo. (grifos nossos)
As afirmações em destaque vão ao encontro da própria ideia de justiça, em
cujo conceito, bem como em suas entrelinhas, reconhece-se a justificativa para atos
de Desobediência Civil e para a aplicação dos Referenciais da Bioética, na procura e
perpetuação da busca dessa tão desejada justiça.
3.2.3.2 Liberdade
“A liberdade é o máximo de aspiração e o seu maior corolário é a
justiça.”
Austregésilo Athayde (1898-1993)
“O homem nunca encontrou uma definição completa para a palavra
liberdade.”
Abraham Lincoln (1809-1865)
“O que fica de pé, se cair a liberdade?
Joseph Rudyard Kipling (1865-1936)
Análises sobre a aplicação da lei no cotidiano do cidadão muitas vezes levam
somente à identificação de ser ela aquela que serve apenas para limitar a liberdade.
Entretanto, a rápida leitura do que se expôs sobre lei permite concluir que ambas –
liberdade e lei – coexistem e se limitam mutuamente para o bom funcionamento da
sociedade e que a ideia de “direitos” também é inerente ao conceito de lei, tanto
quanto a ideia de deveres o é.
Liberdade também é um conceito difícil de padronizar. Muitos são os
encontrados e várias as nuances entre eles:
Liberdade é a faculdade que tem todo indivíduo capaz de escolher,
livremente, fazer ou não fazer, por determinação própria, sem
exceder o seu direito em prejuízo de outrem, tudo aquilo que não é
vedado pela lei, pela moral e pelos bons costumes. Poder de livre
determinação lícita. (NUNES, 1994, p. 312)
Está presente, também, no art. 4° da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789 (2008):
A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudica a
outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não
tem outros limites que os que asseguram aos membros da sociedade
o gozo desses mesmos direitos. Estes limites somente podem ser
estabelecidos pela lei.
Para os objetivos deste estudo, é pertinente entender bem a liberdade em seu
sentido político: “A liberdade política é o direito de não sofrer arbitrariedades, de se
reunir, de ir e vir, de peticionar às autoridades, de ser julgado por leis anteriores ao
fato imputado, de consciência, de culto, de eleger o governo etc.”. É, ainda, “uma
qualidade dos povos livres, daqueles que têm o direito de escolher seus
representantes no governo ou dele participar diretamente”. (BENDA
14
, In: Soibelman
1998, verbete: liberdade política)
Montesquieu (1979, LIV. XI, Cap. II) afirma que “a liberdade política para um
cidadão é a tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um faz de sua
segurança”. Ele assevera que “para se ter esta liberdade é preciso que o governo
seja tal que um cidadão não tenha por que temer a outro cidadão”. E a define, ainda,
“como o direito de fazer tudo que as leis permitem". (1979, LIV. XI, Cap.III).
A análise de alguns dos muitos conceitos existentes sobre liberdade permite a
identificação de seu estreito relacionamento com o conceito de lei, mas deve-se ter
claro que não se pode acatar a lei como determinação absoluta, à qual todo e
qualquer cidadão deve obediência cega, devendo-se considerar que, produção da
mente e das decisões humanas, muitas vezes a lei se mostra injusta ou parcial.
14
Julien Benda (1867-1956) – crítico, escritor e filósofo francês.
Ainda quanto à liberdade e o quanto o cidadão está disposto a arriscar para
obtê-la e a defender, parece oportuno a reprodução do trecho a seguir:
Às vezes, na calada da noite, vultos furtivos andam escrevendo nos
seus muros (de Antares) e paredes, palavras e frases politicamente
subversivas, quando não apenas pornográficas. Os delicados
guardas municipais, sempre alerta, dão-lhes caça dia e noite. Numa
dessas últimas madrugadas abriram fogo contra um estudante que,
com broxa e piche, tinha começado a pintar um palavrão num muro
(...) Na calçada, no lugar em que o rapaz caiu, ficou uma larga
mancha de sangue enegrecido, na qual a imaginação popular –
talvez sugestionada por elementos de esquerda – julgou ver a
configuração do Brasil. (É assim que nascem os mitos). Cedo, na
manhã seguinte, empregados da prefeitura vieram limpar a calçada
dessa feia mácula (...) Aconteceu passar por ali nessa hora um
modesto funcionário público que levava para a escola, pela mão, o
seu filho de sete anos. O menino parou, olhou para o muro e
perguntou: - Que é que está escrito ali, pai? - Nada. Vamos andando,
já estamos atrasados... O pequeno, entretanto, para mostrar que já
sabia ler, olhou para a palavra de piche e começou a soletrá-la em
voz muita alta: “Li-ber...” (VERÍSSIMO, 1979, p. 484)
Desta forma, pelos próprios conceitos expostos, fica claro que a liberdade é
imprescindível para as manifestações em busca da justiça, incluindo aqui as atitudes
de Desobediência Civil.
Além disso, paralelas à liberdade, também é possível perceber a noção de
dignidade e de autonomia que são, também, importantes Referenciais da Bioética,
de acordo com os quais é possível refletir cada vez mais sobre o papel do cidadão
nos dias de hoje, destacando-se seu dever de participação na construção de sua
História e das gerações que estão por vir, sempre com fulcro no que é justo e bom
para a coletividade.
3.2.3.3 Legitimidade
A legitimidade, em seu significado genérico, aproxima-se do sentido de justiça
e de racionalidade. Como expõe Garcia (2004, p. 93), legítimo é:
[...] algo justificado pelo entendimento (legitimidade de uma decisão,
uma atitude, por exemplo) é no contexto político que aparece seu
significado específico: legitimidade representa um atributo do Estado,
consistindo na verificação de um grau de consenso capaz de
assegurar a obediência sem necessidade da imposição, exceto em
casos esporádicos. É por esta razão que todo poder busca alcançar
o consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo,
transformando a obediência em adesão.
A autora explica, ainda, que a lei tem na forma seu aspecto mais importante
no mundo jurídico e que este caráter meramente formal da ideia de legalidade traz à
baila a ideia de legitimidade, muitas vezes esta como complemento daquela.
Entretanto, cabe ressaltar que os elementos que compõem a legitimidade vão
muito além da forma. Aliás, é justamente o contrário, pois seus elementos são não-
formais, como valores, realidades e consenso.
Assim, como afirma Garcia (2004, p. 94): “Em definitivo, portanto, a lei – o
princípio da legalidade – deve existir como a possibilidade de conciliação entre o
poder do Estado e a liberdade do homem, por vezes, cidadão”.
Cabe ressaltar aqui a observação de Engish, citado por Garcia (2004, p. 94),
que adverte: “a lei não é uma grandeza apoiada sobre si própria e absolutamente
autônoma, algo que haja de ser passivamente aceito como mandamento divino [...]”
Portanto, é preciso compreender que algo legal, de acordo com todos os
requisitos e preceitos, pode ser, ao mesmo tempo, ilegítimo, na medida em que não
represente exatamente consenso, valores, necessidades e justiça para o cidadão.
Neste diapasão, como exemplo, é possível comentar o ocorrido na Alemanha
durante a II Guerra, quando os representantes do nazismo chegaram ao poder sem
violar a legalidade constitucional alemã.
Entretanto, depois de estar no poder, o nazismo se transformou no mais
terrível regime político conhecido pela Humanidade, ensejando profundas discussões
filosófico-jurídicas sobre o tema da legitimidade, o que permitiu compreender que não
bastavam – e ainda não bastam – textos legais para garantir os direitos fundamentais.
Segundo Gomes (2005):
O formalismo jurídico, apesar de toda sua parafernália normativa
15
,
quando despido de fundamentos ético-humanistas pode se colocar a
serviço de qualquer finalidade, inclusive do terror totalitário, como
fizeram os fiéis servidores de Hitler. Estes jamais questionaram a
legitimidade das ordens e intenções do Führer. Agiam como seres
15
Nota no original de Gomes (2005): “Por isso, é fundamental que se refutem os conceitos
reducionistas do Direito (...) que vê no fenômeno jurídico apenas as normas (...) sem levar em conta o
que há de mais importante ao ser humano: os valores, pois são estes que dão sentido à existência
humana. E é para salvaguardá-los que se produzem normas. Nesta temática, destaque-se a
contribuição de Miguel Reale, que ao longo de sua vigorosa produção filosófico-jurídica (...) propõe
uma visão tridimensional do direito que liga fatos, valores e normas, por meio da dialética por ele
denominada de implicação-polaridade, na qual nenhum destes elementos se reduz ao outro, mas os
três interagem, dinamicamente, na nomogênese (produção das normas jurídicas em razão da tensão
entre valores e fatos), da qual resultam os modelos jurídicos. Cfr. Filosofia do Direito, 16.ed. São
Paulo: Saraiva, 1994, p.410 a 585; Teoria Tridimensional do Direito, 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994,
pp.53 a 114.”
despidos da mínima consciência moral. Aparentavam acreditar no
valor da pura legalidade, desvinculada de quaisquer preocupações
éticas e veneravam o arcabouço normativo em que se assentava o III
Reich. Basta lembrar a emblemática figura de Eichmann, tão bem
analisada por Hannah Arendt
16
.
E Bonavides (1967), citado por Soibelman (1998), arvora questionamento e
expõe os seguintes comentários:
Dúvida não existe de que todo regime ilegal é ilegítimo, mas será
legítimo todo governo legal? Este é o problema, cuja solução
ainda não foi encontrada. Pétain chegou ao poder legalmente,
mas exerceu-o ilegitimamente. De Gaulle criou um governo ilegal
no exílio, mas foi considerado legítimo pela opinião pública
internacional. A discussão envolve todo o conceito de direito e de
justiça, e nela os jusnaturalistas estão bem mais à vontade que
os positivistas, pois estes, ao contrário daqueles, partem da lei
para diante, sem querer indagar das origens ou fins da lei.
Democraticamente falando o fundamento do poder está na
opinião pública que o consagra. Ilegítimo é todo poder que não se
baseia no consenso dos governados. Mas, e por aí se vê como a
questão é espinhosa, após certo tempo de poder ilegítimo os
seus detentores conseguem também criar uma vasta opinião
pública ou até mesmo mais de uma geração que o aceita e
defende. O critério menos duvidoso seria considerar como
legítimos apenas os governos que defendem a liberdade humana
através de eleições livres pluripartidárias, garantindo o direito da
minoria manifestar-se. Em épocas de crise vale a opinião popular
espontânea. (SOIBELMAN, 1998, verbete: problema da
legitimidade)
Lang (2007, p. 72), ao comentar o julgamento a que foi submetido Nelson
Mandela em 1959, e citando Desmond Tutu, explicita:
É justamente aí que está, a meu ver, o cerne da questão. Como
escreveria Desmond Tutu: ”No tempo do apartheid, os sul-africanos
brancos pensavam que o que era legal era necessariamente moral.
16
Nota no original de Gomes, S. (2005): “Assim narra a eminente filósofa, que como correspondente
da revista The New Yorker, assistiu ao julgamento de Adolf Eichmann, um dos colaboradores da
‘solução final’: “Eichmann, muito menos inteligente e sem nenhuma formação, percebeu pelo menos
vagamente que não era uma ordem, mas a própria lei que os havia transformado a todos em
criminosos. Uma ordem diferia da palavra do Führer porque a validade desta última não era limitada
no tempo e no espaço – a característica mais notável da primeira. Essa também a verdadeira razão
pela qual a ordem do Führer para a Solução Final foi seguida por uma tempestade de regulamentos e
diretivas, todos elaborados por advogados peritos e conselheiros legais, não por meros
administradores; essa ordem, ao contrário de ordens comuns, foi tratada como uma lei. Nem é
preciso acrescentar que a parafernália legal resultante, longe de ser um mero sintoma do pedantismo
ou empenho alemão, serviu muito eficientemente para dar a toda a coisa a sua aparência de
legalidade. E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo
mundo dita “Não matarás”, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes
assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: “Matarás”, embora os
organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos e os
pendores normais da maioria das pessoas.’’ Cf. Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of
Evil; tradução José Rubens Siqueira : Eichmann em Jerusalém – Um Relato Sobre a Banalidade do
Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.167”.
Ficavam furiosos quando nós lhes dizíamos que ninguém era
obrigado a obedecer a leis injustas”.
Ao se falar em legitimidade, pertinente ressaltar a posição de Luhmann (1985,
p. 64), que afirma:
A legitimidade reside na possibilidade de supor a aceitação.
Legítimas são as decisões nas quais se pode supor que qualquer
terceiro espere normativamente, que os atingidos se ajustem
cognitivamente às expectativas normativas transmitidas por aqueles
que decidem.
Ao se compreender a oscilação e recíproca complementação entre legalidade
e legitimidade, pode-se fundamentar a discussão sobre a utilização da
Desobediência Civil e a aplicação dos Referenciais da Bioética. Ademais, como
afirma Reale (1991, p. 27):
[...] o reconhecimento de que a lei e os demais atos normativos estão
sujeitos a mutações operadas nos planos dos valores e dos fatos,
mutações essas que podem redundar tanto no aperfeiçoamento das
instituições quanto na sua perversão – tomada essa palavra no
sentido da prática de abuso ou desvio de poder. (grifos nossos)
Note-se, ainda, que legitimidade é característica inerente às atitudes éticas,
haja vista que tudo que é ético é conveniente à sociedade e, portanto, legítimo.
Desta forma, fica claro que atos de Desobediência Civil encontram seu lugar e
respaldo na vida diária e política do cidadão, pois se houver prática de abuso, a
legitimidade passará a ser questionada, ensejando e justificando atitudes do
cidadão, enquanto ser político que, a despeito da lei, anseia por uma vida calcada
na legitimidade dos atos, com garantia de sua liberdade, três conceitos (lei,
liberdade e legitimidade) intimamente ligados e necessários ao bem-estar do
cidadão, como se comenta a seguir.
3.2.3.4 Lei, legitimidade e liberdade
“A lei jamais tornou os homens sequer um pouco mais justos. O
respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-
intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da
injustiça.”
Henry David Thoreau (1816-1862)
Quando o Estado ético deixa de existir, há apenas a lei.”
Georg Friedrich Hegel (1770-1831)
A conjugação dos três conceitos – lei, legitimidade e liberdade – permite
entender mais profundamente a possibilidade e a justificativa da Desobediência Civil
como garantidoras da busca ou do restabelecimento da justiça se esta estiver
ameaçada por atos arbitrários do Poder constituído, bem como da aplicação dos
Referenciais da Bioética, juntamente com a Desobediência Civil, como meio para
obter vida mais justa e com qualidade.
Segundo Wolkmer (1993, p. 25):
Cumpre ressaltar que a legalidade reflete fundamentalmente o
acatamento a uma estrutura normativa posta, vigente e positiva.
Compreende a existência de leis, formal e tecnicamente impostas,
que serão obedecidas por condutas sociais presentes em
determinada situação institucional. Como afirma Angel S. de la Torre,
a legalidade projeta-se concretamente ‘como a esfera normativa
contida em expressões ou signos expressivos dos deveres e direitos
dos sujeitos de atividade social, subjetivamente como fidelidade dos
sujeitos sociais ao cumprimento de suas atividades dentro da ordem
estabelecida necessariamente no grupo humano a que pertencem.
Bobbio (1998, p. 674) ressalta, ainda, que:
Na linguagem política, entende-se por legalidade um atributo e um
requisito do poder, daí dizer-se que um poder é legal ou age
legalmente ou tem o timbre da legalidade quando é exercido no
âmbito ou de conformidade com leis estabelecidas ou pelo menos
aceitas. Embora nem sempre se faça distinção, no uso comum e
muitas vezes até no uso técnico, entre legalidade e legitimidade,
costuma-se falar em legalidade quando se trata do exercício do
poder e em legitimidade quando se trata de sua qualidade legal: o
poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada
juridicamente; o poder legal é um poder que está sendo exercido de
conformidade com as leis. O contrário de um poder legítimo é um
poder de fato; o contrário de um poder legal é um poder arbitrário.
Assim, ainda que reconheça a força da lei e até mesmo a necessidade de sua
existência, não se encontra homem que dispense a liberdade e que não queira ser
tratado de forma justa numa realidade que ele mesmo ajudou a legitimar.
Esses anseios do ser humano fizeram surgir, ao longo da História,
manifestações e institutos que servissem de suporte às atitudes humanas, como o
Direito de Resistência, gênero do qual a Desobediência Civil é espécie, estudados a
seguir.
3.3 DIREITO DE RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL
“Resiste-se lutando – e até fugindo. Resiste-se com tiros, palavras,
espadas, poemas, pancadas, subornos, prisões, greves, canções,
pedras, sentenças, bombas, terror, lock-outs, boicotes, espiões,
traições, discursos, recursos, ameaças, trapaças. Até com lágrimas
se resiste.”
Márcio Túlio Viana (1946-)
“Onde não estiver assegurada a possibilidade de participação direta
e indireta do povo no governo, não existe democracia, o governo não
é legítimo e o povo não pode ser feliz.”
Dalmo de Abreu Dallari. Viver em Sociedade. (1985)
Existem divergências entre o uso das expressões e dos conceitos “Direito de
Resistência” e “Desobediência Civil”. No desenvolvimento deste estudo, faz-se
necessário confrontar os dois conceitos e delimitar sua aplicação.
3.3.1 Embate: espécie ou gênero – Direito de Resistência versus
Desobediência Civil
Machado Paupério, considerado o autor clássico a tratar sobre o Direito de
Resistência na esfera jurídica, define a Desobediência Civil como gênero do Direito
de Resistência, que seria espécie.
Ele corrobora esta ideia com sua assertiva ao tratar o Direto de Resistência
como “resultante natural da insuficiência das sanções jurídicas organizadas” e ao
afirmar que “em virtude dessa insuficiência, reconhece-se aos governados, em
certas condições, a recusa da obediência (ou a desobediência). Esta, contudo, pode
assumir um tríplice aspecto: a oposição às leis injustas, a resistência à opressão e a
revolução”. (PAUPÉRIO, 1978, p.11)
Costa (1990) considera a Desobediência Civil uma evolução teórica e prática
do Direito de Resistência, que deve ser expressão da vontade da maioria, excluindo
as manifestações da minoria, o que não ocorre em atos de Desobediência Civil.
Defende ele:
A Desobediência Civil originou-se do desenvolvimento do conceito
do Direito de Resistência. Este consistia na resistência pela maioria
ao governo, até a sua substituição, quando ele não se comportasse
segundo o pacto social ou, posteriormente, às constituições escritas.
Aquela, porém, poderia ser praticada por indivíduos isolados ou pela
minoria sem, necessariamente, pretender derrubar o governo ou
modificar todo o ordenamento jurídico. Assim, a sua aplicação
tornava-se mais fácil e mais frequente. (
COSTA, 1990, p. 41)
Maria Garcia, também estudiosa do tema, não se preocupou em fixar nítida
distinção entre os conceitos de Direito de Resistência e de Desobediência Civil,
ainda que os trate de forma diferenciada. Mesmo assim, em caminho oposto a
Machado Paupério, é possível extrair dos conceitos expostos por Garcia (2004) a
noção de que “Desobediência Civil” é espécie do gênero “Direito de Resistência”:
A Desobediência Civil pode-se conceituar como a forma particular de
resistência ou contraposição, ativa ou passiva, do cidadão, à lei ou
ato de autoridade, quando ofensivos à ordem constitucional ou aos
direitos e garantias fundamentais, objetivando a proteção das
prerrogativas inerentes à cidadania, pela sua revogação ou
anulação. (GARCIA, 2004, p. 293)
Pode-se, portanto, afirmar que entre Direito de Resistência e Desobediência
Civil não há consenso sobre o primeiro ser gênero e o segundo ser espécie, ou vice-
versa. Entretanto, existe consenso quanto à condição e ao direito de insurgência
contra o Poder estabelecido, se o cidadão se sentir sob o jugo de ordens ou leis
injustas.
No decorrer deste estudo, “Desobediência Civil” será considerada espécie do
gênero “Direito de Resistência”, com base, principalmente, em Dallari
17
(2009),
embora o real cerne da questão seja trabalhar os conceitos em seu mais profundo
objetivo: permitir ao cidadão que faça uso deste direito – e, por que não dizer, deste
dever – quando se encontrar em situações nas quais haja embate entre ele, o
governo, as normas do direito, a injustiça à qual este cidadão tem de se submeter e
seu direito fundamental de se insurgir contra esta injustiça.
3.3.2 Direito de Resistência
“A resistência civil é o meio mais eficaz de exprimir a angústia da
alma e o mais eloquente para protestar contra a manutenção do
poder de um Estado nocivo.”
Mahatma Gandhi (1869-1948)
17
Em transcrição literal de email, 26 fev. 2009: “Cara Selma. Examinei o material que você enviou, no
qual aparecem várias opiniões sobre Direito de Resistência e Desobediência Civil, como gênero e
espécie. Em minha opinião, considerando que gênero é mais amplo e espécie é uma das expressões
do gênero, o Direito de Resistência é o gênero. Antes de tudo vem a ideia de resistir e depois vem
como resistir, comportando diversas respostas, pois existem várias formas possíveis de resistência. A
Desobediência Civil é uma dessas formas, ou seja, uma das espécies de manifestação do Direito de
Resistência”.
Para se chegar à Desobediência Civil, é necessário compreender o
surgimento das ações de resistência, bem como a presença nos institutos legais da
Humanidade.
Estas informações são apresentadas a seguir, visto que a origem e a
aplicação dos institutos no decorrer da História tornam possível o entendimento e
sua aplicação na realidade atual, como instrumento de defesa da justiça, à luz dos
Referenciais da Bioética.
3.3.2.1 Breve histórico do Direito de Resistência
Ressalta-se aqui que a apresentação do momento histórico, como já referido,
acompanhou o desenvolvimento de toda a pesquisa, com o objetivo de estabelecer
e apresentar os elos que vão compondo o surgimento e a evolução do Direito de
Resistência e da Desobediência Civil, até se chegar à análise da relação entre estes
e os Referenciais da Bioética que, como verdadeiro processo de tessitura, constrói a
trama deste trabalho.
Assim, faz-se pertinente citar que ao tentar identificar as raízes históricas do
Direito de Resistência, Machado Paupério registra o Código de Hamurabi
18
, no qual
já se previa a rebelião como castigo ao mau governante que não respeitasse os
mandamentos e a lei.
A obediência do indivíduo em relação ao Estado começou a ser efetivamente
questionada com o surgimento do Cristianismo, quando se desenvolveu a
importância da ordem divina superior e o homem deixou de ser visto como um ser
limitado somente ao Estado político.
Assim, foi a partir do Cristianismo que surgiu a possibilidade de o indivíduo se
opor conscientemente ao Estado e à lei, ainda que desde a antiga Grécia já se
debatesse sobre a obediência às leis.
Ainda quanto ao Cristianismo, cabe ressaltar que o Direito de Resistência às
leis emanadas do Poder constituído só foi defendido pelos filósofos cristãos, como
18
O Rei babilônio Hamurabi, que teria reinado de 2.063 a.C. a 2.047 a.C., foi autor do Código mais
antigo do mundo, conhecido como Código de Hamurabi, que está impresso numa coluna de pedra
diorita, com 2,25 m de altura, foi descoberto em 1901 e atualmente se encontra no Museu do Louvre.
Seu texto traz disposições sobre as propriedades e sobre as pessoas. (SOIBELMAN, 1998, verbete:
Código de Hamurabi).
São Tomás de Aquino, por exemplo, enquanto esses representantes não eram
cristãos, como ficará mais claro nos itens 3.4.1.2 e 3.4.1.3.
Sócrates (470-469 a.C.-399 a.C.), apesar de ser muitas vezes visto como
símbolo de Desobediência Civil (este caso deve ser mais cuidadosamente analisado
e o será mais adiante), defende e ensina a obediência às leis do Estado, sempre,
sem exceção, de qualquer e todo modo.
Para ele, trata-se de dever indiscutível, mesmo que o bom cidadão se visse
obrigado a seguir uma lei que considerasse má. Segundo ele, “se o bom cidadão
obedecesse à má lei, ele evitaria que o mau cidadão violasse a boa lei”.
(PAUPÉRIO, 1978, p.17)
À época de Sócrates, as leis não admitiam o Direito de Resistência. A vida do
indivíduo era regulada inteiramente por seu grupo, família e Estado, que podia
dispor livremente dos bens, da liberdade e da vida dos seus membros, tendo o
direito de regular, até mesmo, a crença de cada um. (BUZANELLO, 2002, p. 2)
E é ainda nesse contexto que se encontra o embrião do Direito de
Resistência, seja por meio dos Éphorus – os aristocratas gregos que equilibravam a
autoridade do rei – seja em Roma, com o surgimento do Tribunado do povo, a partir
da ameaça de revolução, que culminou no abrandamento da discórdia entre ricos e
pobres.
Na Idade Média, existia a figura do tiranicídio, e este se confunde com o
Direito de Resistência. Tratava-se do direito de afastar o tirano pela morte, mesmo
que por intermédio de rebelião armada, caso o povo julgasse insustentável viver sob
suas ordens e resolvesse se organizar.
Na Idade Moderna, o tiranicídio entrou em declínio, pois surgiram outras
formas de resistência, bem como as ideias tomistas (baseadas no sistema filosófico
e teológico de São Tomás de Aquino), que defendiam não adiantar matar o tirano se
a estrutura por ele utilizada permanecesse.
Na baixa Idade Média, do século XI ao século XV, duas outras instituições
ajudaram a formar o Direito de Resistência, a saber: a commendatio
19
e o
19
Dispunha que o vassalo, por ter a vida e seus bens sob a proteção do senhor, concordava em o
servir na paz e na guerra, sem prejuízo de sua liberdade. Assim, aquele que recebia o feudo
prestava, logo após a commendatio, um juramento de fidelidade, pelo qual prometia servir ao senhor
feudal especialmente no serviço militar. Devido ao feudo, o vassalo deveria subir na classe social,
manter um cavalo e, como cavaleiro, lutar montado.
beneficium
20
, de acordo com as quais, mesmo que o vassalo fosse obrigado a
cumprir as ordens do suserano – “dever de fidelidade germânico”
21
, ainda restava
um instrumento de luta: o direito de opor resistência se este violasse os limites da
obrigação daquele.
É claro que os suseranos não se sentiam nada confortáveis com a
possibilidade de desobediência legítima e eles, que já organizavam os territórios em
forma muito semelhante à forma estatal conhecida posteriormente, lutaram contra
esses institutos na tentativa de centralizar o poder nas mãos de um único soberano.
Assim, o processo de evolução do Direito de Resistência foi longo e
turbulento; passou por vários episódios de resistência; muitas vezes, gerou escritos
que contestavam o monopólio da lei e da força do Estado, a partir dos quais
começaram a surgir várias teorias, ainda que de forma não-ordenada, em
decorrência de situações políticas concretas presenciadas pelos autores que as
produziram. (COSTA, 1990, p. 22-3)
O Renascimento italiano, nos séculos XIV a XVI, trouxe a percepção de que
havia limites aos poderes de proteção das liberdades individuais e, como
consequência, justificou atos de resistência individual na História do pensamento
político-jurídico moderno.
A Reforma Luterana, no século XVI, também desempenhou importante papel,
especificamente no que se refere à objeção de consciência religiosa. À época da
Reforma, entrou em declínio o poder divino e a filosofia política destacou o
antropocentrismo da liberdade humana de tal forma que a resistência foi
considerada manifestação concreta dessa liberdade.
Entre vários institutos, a formação do Estado Moderno, na segunda metade
do século XV, a partir do desenvolvimento do capitalismo mercantil em países como
França, Inglaterra e Espanha e, mais tarde, na Itália, deu-se origem a uma complexa
relação entre legitimidade e legalidade, e as diversas posições políticas da
20
Determinava que o senhor deveria se orientar pelos fundamentos do Cristianismo, ou a
desobediência a suas ordens estaria justificada. O beneficium era uma instituição bárbara, a partir da
qual o chefe tribal concedia certos benefícios a seus subordinados, em troca de serviços e,
principalmente, de fidelidade.
21
Refere-se à sacramentum fidelitatis e a uma máxima do Código Saxão, o Sachenspiegel: “Nossa
honra chama-se fidelidade”. A tradição se perpetuou para além da Idade Média, sobretudo na área
germânica, de modo que a Alemanha procurou quase convertê-la numa característica nacional ou de
raça, alcunhando a fórmula Deutsche treue, ou seja: “fidelidade germânica”. (Revista Il Conciliatore,
fevereiro de 1972).
resistência buscaram – e ainda buscam – fontes formais ou informais que
legitimassem seu exercício no Estado de Direito.
É possível afirmar que a justificativa política do Direito de Resistência
encontra-se na mistura de várias teorias, a saber: teoria liberal (caracterizada pelos
princípios de igualdade e da participação); teoria socialista (transformação social
pela ação política, conclamando proletariados a se unirem num ataque ao Estado
capitalista); teoria anarquista (ideia da autonomia da liberdade individual que se
opõe a toda forma de poder sobre o homem, especialmente o poder do Estado); e
teoria humanista (ideia de salvaguardar a dignidade humana, fundada em razões
humanitárias de justiça social e solidariedade dos povos). A mescla ponderada
desses itens justifica o direito político de resistência e os atos de Desobediência
Civil.
Destaque-se aqui que à medida que se considerar, de cada uma dessas
teorias, os fatores positivos, que visem ao bem para todos, sem exceção, utilizando-
os, como dito, de forma ponderada, em muito é possível se aproximar da aplicação
dos Referenciais da Bioética, a saber, igualdade, responsabilidade, autonomia,
dignidade, solidariedade, equidade e justiça.
Monteiro (2003, p. 2-3) assim se posiciona quanto ao direito à resistência:
É questão controvertida, já há séculos, a de se saber se devem os
súditos obediência a um poder civil que exorbitando das suas
funções constitucionais se torna despótico e tirânico, alheando-se do
bem comum, que tem por dever promover e realizar. Contra uma
tirania, individual ou oligárquica, que busca unicamente o bem
próprio, em detrimento do bem social e dos direitos do cidadão, será
lícito reagir?
No decorrer da História, o Direito de Resistência encontrou positivação
expressa em diversos textos constitucionais e legais.
O direito de o povo se revoltar e se insurgir quando o príncipe não cumprisse
as obrigações que havia assumido já aparecia na Magna Carta de João Sem-Terra,
em 1215, e no texto jurídico mais antigo do qual se tem notícia, o Sachsenspiegel
22
,
que já previa que “o homem deve opor-se a seu rei e a seu juiz quando este comete
injustiça e, inclusive, ajudar a resistir-lhe por todos os meios”. (PAUPÉRIO, 1978)
22
Palavra que significa “Espelho da Saxônia” e que nomeia o Livro de Direito alemão, do ano de
1230, de autoria de Repgow, que só se tornou lei imperial um século depois. O Sachsenspiegel é
considerado a mais antiga compilação das normas costumeiras do direito civil.
Ainda segundo o autor, o Direito de Resistência pode ser encontrado na Carta
Siciliana, de 1812; na Carta húngara – a Bula de Ouro
23
, de 1222; e na Carta da
Irmandade dos Reinos de Leão e Galiza com o de Castela
24
, de 1230/1231, na
Espanha.
A própria Declaração de Independência dos Estados Unidos (2008), de 4 de
julho de 1776, assegurou expressamente o Direito de Resistência:
Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário
um povo dissolver laços políticos que o ligavam a outro, e assumir,
entre os poderes da Terra, posição igual e separada, a que lhe dão
direito as leis da natureza e as do Deus da natureza, o respeito digno
às opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os
levam a essa separação. Consideramos estas verdades como
evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais,
foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre
estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que a fim de
assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens,
derivando seus justos poderes do consentimento dos governados;
que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva
de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir
novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os
poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe
a segurança e a felicidade. (...) Mas quando uma longa série de
abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto,
indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes
o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir
novos-Guardas para sua futura segurança. (grifos nossos) (Estados
Unidos da América, 1776)
O mesmo espírito pode ser percebido nos textos revolucionários franceses
das Declarações de Direitos. O art. 2º. da Declaração de 1789 dispõe: “O fim de toda
associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do
homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência
à opressão”. (grifo nosso)
A formulação clássica desse direito também foi exposta no artigo 35 da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que serviu de preâmbulo para a
Constituição francesa, de 24 de junho de 1793, na qual se lê: "Quando o governo
viola os direitos do povo, a insurreição é, para o povo e cada parcela do povo, o
mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres". (grifo nosso)
23
Assim chamada por ter um selo de ouro, empregado na autenticação de documentos pelos
imperadores do Bizâncio e do Ocidente.
24
Carta que unificou os reinos de Leão e Galiza e Castela, assinada por Fernando III, cujo objetivo
era por fim aos conflitos entre Portugal e Leão.
A doutrina do Direito de Resistência recebeu a colaboração e o
posicionamento de diversos autores, tais como São Tomás de Aquino (1225-1264) e
João Calvino (1509-1564), mas só alcançou sua maturação teórica com os
contratualistas
25
, como Thomas Hobbes (1588-1669), por exemplo, que entendiam o
Pacto Social como um acordo bilateral de vontades, em que ambas as partes
encontravam-se sujeitas a direitos e obrigações.
Cabe ressaltar, entretanto, que os estudos conduziram à aceitação de que a
sociedade não é exatamente resultado do Pacto Social, mas da necessidade natural
do homem, e essa é a ideia que predomina na atualidade.
26
Mas seja qual for a ideia que se defenda, o Direito de Resistência é inegável,
pois o homem vive em sociedade e:
Justamente porque todos os seres humanos vivem em sociedade e
porque as decisões políticas sempre se refletem sobre a vida e os
interesses de todos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
considera a participação política um direito fundamental de todos os
indivíduos. Diz, entre outras coisas, o artigo 21 da Declaração que
todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país
e que a vontade do povo será a base da autoridade do governo.
(DALLARI, 1994, p. 18-9)
Ademais, como já se afirmou na História e na Literatura, cada homem tem
seu papel e sua importância na vida de toda a Humanidade, com poetizou John
Donne (1572-1631):
Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do
continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar,
a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se
fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer
homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso
não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti. (1623)
O estudo das ideias dos diversos filósofos, autores e personagens que
discutiram e defenderam o Direito de Resistência e a Desobediência Civil mostrará
25
Não se conhece exatamente as origens da ideia de que a sociedade resultou de um contrato entre
os homens, o chamado pacto social. É possível rastrear vestígios dessa ideia desde os gregos, mas
o certo é que só na época moderna é que ela assumiu notável desenvolvimento, embora os teólogos
medievais admitissem a existência desse contrato quando estudavam as condições em que o povo
podia romper o contrato e matar o tirano. Mas foi somente com a publicação do Contrato Social, de
Rousseau, em 1762, que esta concepção definitivamente começou a fazer parte fundamental da
teoria política. (SOIBELMAN, 1998, verbete: contrato social)
26
Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu, 2005, p.18: “[...] predomina, atualmente, a aceitação de que a
sociedade é resultante de uma necessidade natural do homem, sem excluir a participação da
consciência e da vontade humanas. É inegável, entretanto, que o contratualismo exerceu e continua
exercendo grande influência prática, devendo-se mesmo reconhecer sua presença marcante na ideia
contemporânea de democracia”.
que eles não surgiram de uma só vez, já prontos e acabados, mas que, na
realidade, resultaram de longo processo teórico e evolutivo.
O Direito de Resistência e a Desobediência Civil evoluem em paralelo à
construção do Estado Moderno, no qual se deve obedecer às leis. Entretanto, não
se pode exigir obediência cega. As leis não podem oprimir sem limites
27
. Se isso
acontecer, os cidadãos se veem no direito legítimo de resistir ao governo ou, até
mesmo, de lutar para substitui-lo, como se discutirá itens e capítulos a seguir.
3.3.2.2 Conceito de Direito de Resistência
“A primeira coisa, portanto, é dizer-vos a vós mesmos: Não aceitarei
mais o papel de escravo. Não obedecerei às ordens só porque são a
lei, porque desobedecerei sempre que estiverem em conflito com a
minha consciência. O vosso opressor poderá utilizar a violência para
vos forçar a servi-lo. Direis a ele: Não obedecerei nem por dinheiro
nem por ameaça. Isso poderá trazer sofrimentos. Mas vossa
coragem acenderá a tocha da liberdade, que não mais poderá ser
apagada.”
Mahatma Gandhi (1869-1948)
Segundo Canotilho (1993, p. 512): “O Direito de Resistência é a ultima ratio
do cidadão ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por atos do poder
público ou por ações de entidades privadas”. Para ele, a resistência é um princípio
27
Aqui se pode citar o exemplo do caso brasileiro da Lei nº 9.434/97 (Lei de Doação de Órgãos),
aprovada em fevereiro de 1997, regulamentada em junho do mesmo ano, mas que começou a vigorar
somente em janeiro de 1998, que previa a doação presumida, com manifestação contrária à doação
no documento de identidade ou na carteira de habilitação (art. 4º, § 1º). Ainda que estivesse disposta
a possibilidade de se reformular a qualquer momento a decisão tomada, procedendo-se à retificação
no documento adequado (art. 4º, § 4º), esta legislação não teve o efeito esperado. A Lei provocou
muitas discussões sobre o regime jurídico do transplante e sobre os limites do Poder Legislativo
quanto à matéria. Alguns chegaram a sustentar que a opção adotada pelo legislador brasileiro
contrariava disposições constitucionais específicas, como aquelas referentes ao direito de
personalidade, especialmente ao direito de autodeterminação, ao direito à privacidade e à dignidade
humana. Segundo Mendes (2009), existem dois modelos de manifestação para doação de órgãos: “1.
O modelo do consentimento (opting-in system), adotado nos Estados Unidos e na Inglaterra, que
exige consentimento expresso manifestado pelo doador (consentimento restrito) ou por sua família
(consentimento alargado); e 2. O modelo da oposição ou dissentimento (opting-out system) ou
consentimento presumido (presumed consent), que reconhece ao doador o direito de deduzir
oposição à colheita de órgãos ou tecidos, modelo escolhido pelo legislador brasileiro. (MENDES,
2009). Entretanto, por se sentirem oprimidos a ter declarada a sua opção, sentindo-se constrangidos,
os cidadãos não aceitaram e a lei foi modificada pouco tempo depois (em 2001), somente neste
aspecto, por meio de Medida Provisória editada pelo governo, obrigando a consulta e o
consentimento da família do doador para que haja o transplante de órgãos.
que estrutura o Direito Constitucional, permitindo ao cidadão ter um instrumento de
luta por seus direitos, caso todos os outros venham a sucumbir.
A capacidade de resistir é atributo dos seres humanos que têm força de
vontade, são visionários e sabem exatamente que objetivos querem atingir. No
caminhar da História, o Direito de Resistência política é visto e discutido, ao mesmo
tempo como direito e como dever, com vistas ao bem comum.
Quanto à Desobediência Civil, todas as discussões a respeito defendem, de
maneira muito clara, a resistência não-violenta, pois como já dizia Paupério (1978,
p.14): “Se for legitimada a revolução ou a resistência violenta, só se chegará ao
caos”, ou Gandhi (1869-1948): “A não-violência não pode ser definida como um
método passivo ou inativo. É um movimento bem mais ativo que outros que exigem
o uso de armas. A verdade e a não-violência são, talvez, as forças mais ativas de
que o mundo dispõe”. (PELLEGRINO, 2005)
A discussão sobre os liames da não-violência será aprofundada no item
3.3.3.7.
Ainda nas palavras de Paupério (1978, p. 17): “Para sabermos se a
resistência é ou não-tolerável, impõe-se que a atitude parta da comunidade em seu
conjunto”.
Assim, indiscutivelmente, a única forma de o Direito de Resistência – e da
Desobediência Civil – ser legítimo, é ele ter caráter/mote público e coletivo. A
resistência deve ser necessária ao bem coletivo, não ao bem individual; manifestada
por interesses pessoais e momentâneos, o que permite harmonizá-la aos
Referenciais da Bioética propostos por Hossne (2006, p. 675).
Conforme assinala João XXIII, na Encíclica Pacem in terris, ns. 53 a 58,
citado por Montoro (2005, p. 281-2):
Todos os indivíduos e corpos intermediários devem contribuir para o
bem comum. Donde se segue, antes de mais, que devem ajustar os
próprios interesses às necessidades dos outros, e empregar os seus
bens e serviços na direção indicada pelos governantes, dentro das
normas da justiça e na devida forma e limites de competência.
Portanto, os governantes devem preceituar disposições que além da
sua perfeição formal jurídica, se ordenem inteiramente ao bem
comum ou possam a ele conduzir. Aqui, julgamos dever chamar a
atenção para o fato de que o bem comum diz respeito ao homem
todo, tanto às necessidades do corpo como às do espírito. Procurem,
pois os poderes públicos promovê-los de maneira idônea e
equilibrada, que respeite a hierarquia dos valores e proporcione, com
os bens materiais, também os que se referem aos valores do
espírito.
Assim, a Desobediência Civil só será considerada um direito se for baseada
em necessidade real e verdadeira de uma coletividade. Note-se que Paupério fala
em “conjunto”, não em “maioria”. Portanto, a coletividade não deve ser
necessariamente entendida como maioria, pois também a minoria tem direito às
mesmas prerrogativas, como cidadã que também é.
E como afirmava Mandela, citado por Lang (2007, p. 128): “Não é fácil curvar-
se à opinião da maioria quando se sabe que ela está errada. Esse é um dos grandes
desafios da democracia”.
Canotilho defende, ainda, que a resistência só será legítima se já tiverem se
esgotado todos os caminhos legais capazes de solucionar o problema. Com base
nas ideias dele, alguns autores identificam limites ao Direito de Resistência.
Tavares (2003, p.17) enumera esses limites:
a) o direito de resistir só existe diante da negação histórica dos
direitos fundantes da resistência, e
b) não há nenhum caminho legal materialmente possível para fazer
valer esses direitos.
Esses limites levam a concluir que só será legítima a resistência que nascer
de violação de direito ou de ato que desrespeite a integridade dos princípios
constitucionais. Desta forma, ela própria, a resistência, torna-se um princípio basilar
do Direito Constitucional, pois se transforma em expediente para resguardá-lo e o
restaurar.
Comparando-se os dois estudiosos, Paupério e Canotilho, é possível
perceber que o primeiro vê a resistência como algo mais concreto e aplicável. Já o
segundo é mais cauteloso, defendendo-a somente em último caso, se já estiverem
esgotados todos os outros meios de o cidadão se defender quando se sentir
injustamente ofendido em seus direitos.
Em comum, os dois autores admitem a resistência como um direito presente e
identificável no ordenamento jurídico constitucional, desde que utilizada para efetivar
direitos negados ou impossíveis de se alcançar por intermédio dos meios jurídicos
convencionais.
De acordo com Guimaraens (2007, p. 167-8):
O direito de resistência necessita estar ancorado em algum
dispositivo normativo para que a facticidade de seu exercício
contenha determinado índice de validade (...) No exato instante em
que o soberano se transforma em tirano, infringindo certas normas,
sejam morais ou jurídicas, é aberta a possibilidade de se resistir aos
seus desígnios. (...) Assim, apresenta-se o direito de resistência na
forma de oposição ao arbítrio e à ação ilegítima do poder constituído.
Bobbio também se posiciona sobre o Direito de Resistência e o reconhece
quando os cidadãos objetivem mudanças que almejem a concretização de direitos
fundamentais. Os estudos dele permitem identificar a origem histórica do caráter
constitucional do Direito de Resistência:
Do ponto de vista institucional, o Estado liberal e (posteriormente)
democrático, que se instaurou progressivamente ao longo de todo o
arco do século passado, foi caracterizado por um processo de
acolhimento e regulamentação das várias exigências provenientes da
burguesia em ascensão, no sentido de conter e delimitar o poder
tradicional. Dado que tais exigências tinham sido feitas em nome ou
sob a espécie do direito à resistência ou à revolução, o processo que
deu lugar ao Estado liberal e democrático pode ser corretamente
chamado de processo de constitucionalização do Direito de
Resistência e de revolução. (BOBBIO, 1992, p. 147-8)
O Direito de Resistência (gênero) pode ser dividido em institutos jurídicos
(espécies), dentre os quais a Desobediência Civil, um dos objetos deste estudo.
3.3.3 Desobediência Civil
“A Desobediência Civil é um ato que ganha força pelo preço pago
pelo ativista que está de cara descoberta contra um sistema que faz
cumprir as suas leis. Não é feito por ativistas de cara tapada,
escoltados por uma polícia que os protege.”
Martin Luther King (1929-1968)
Construir o histórico da Desobediência Civil em seu caminhar nos episódios
da Humanidade é rumo fundamental para se chegar à justificativa da utilização
desse expediente como garantidor da justiça, sem desrespeitar a moral e a ética, e
mais, relacionando-o aos Referenciais da Bioética, elementares para a qualidade da
vida hoje, como se notará a seguir.
3.3.3.1 Breve histórico da Desobediência Civil
A história da Desobediência Civil identifica-se com a história do próprio Direito
de Resistência, pois aquela é espécie deste. Ocorre que a expressão
“Desobediência Civil” surgiu tardiamente, se comparada a atos que já podiam ter
sido assim classificados muito antes de a denominação ter sido aceita.
De acordo com Costa (1990, p. 41), a Desobediência Civil surgiu com o
desenvolvimento do conceito de Direito de Resistência. Entre elas, a diferença
básica é que a Desobediência Civil pode ser praticada por indivíduos isolados
(embora raramente nesses casos seja classificada como tal) ou pela minoria, e a
resistência traduz sempre a vontade do povo majoritário.
Assim, enquanto o Direito de Resistência se traduz pela maioria se insurgindo
contra o governo, chegando ao ponto de objetivar substitui-lo ou mudar todo o
ordenamento jurídico, a Desobediência Civil se apresenta mais fácil e frequente de
acontecer, pois se relaciona a leis específicas.
Para Arendt (2006, p. 68):
A Desobediência Civil aparece quando um número significativo
de
cidadãos se convence de que, ou os canais ou as normas para
mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas
nem terão qualquer efeito, ou então o governo está em vias de
efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja
legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas.
Não necessariamente a maioria, postura com a qual as ideias do presente estudo
estão em consonância.
Como vários outros fenômenos, é possível identificar a Desobediência Civil na
História, em épocas em que ainda não existia um termo para definir a atitude
tomada.
Atos de resistência (quer Desobediência Civil, quer objeção de consciência)
apareciam na literatura da Grécia antiga, na personagem Antígone, de Sófocles;
passaram por inúmeros filósofos, teóricos e juristas, mas só a partir de 1849, com o
ensaio Civil Disobedience, de David Henry Thoreau, começaram a ser assim
denominados.
A História permite, ainda, identificar que a atitude de os cidadãos
desobedecerem às leis indesejáveis passou a ser uma prática repetida que vem,
progressivamente, fornecendo instrumentos para a sociedade civil na construção de
um Estado cada vez mais democrático e participativo (COSTA, 1990, p. 42) e na
defesa da cidadania.
3.3.3.2 Conceito de Desobediência Civil
Desde a Grécia antiga até os dias de hoje, muitos são os exemplos de
Desobediência Civil, muitas as análises realizadas e vários os conceitos
estruturados pelos filósofos, estudiosos e juristas que o mundo conheceu.
Entretanto, não existe conceito único e a melhor forma de entender esse
instituto tão importante na defesa dos direitos do cidadão é analisá-lo relacionado ao
ato ou ao autor que o gerou e enunciou. Tal análise se apresenta a partir dos itens a
seguir.
3.3.3.2.1 Distinção entre desobediência comum e Desobediência Civil
É questão de lógica afirmar que o cidadão de qualquer país deve obedecer às
leis daquele país, ou a convivência em sociedade será impossível. Este dever é
chamado de obrigação política.
28
Para compreender exatamente obrigação política, é necessária a
compreensão do termo “política” em si, e do papel do cidadão no universo político.
De acordo com Dallari (1994, p. 10-1), “política é a conjugação das ações de
indivíduos e grupos humanos, dirigindo-as a um fim comum”. Ainda, segundo ele,
pode-se chamar de política:
1) a organização social que procura atender à necessidade natural
de convivência dos seres humanos;
2) toda ação humana que produza algum efeito sobre a organização,
o funcionamento e os objetivos de uma sociedade.
O autor também destaca que: “todos os indivíduos têm o dever de participar
da vida social, procurando exercer influência sobre as decisões de interesse comum”
(DALLARI, 1994, p. 33) e “[...] a participação política é um dever moral de todos os
indivíduos e uma necessidade fundamental da natureza humana” (DALLARI, 1994,
p. 36), já que o homem é, inegavelmente, um animal político.
Aliás, Aristóteles (2006) já registrava a ideia de que o: “o homem é um animal
político, mais social que as abelhas e todos os outros animais que vivem juntos. O
interesse deve ser comum a todos e, se não for, deixa de haver cidadãos”.
28
Como exemplo, pode-se citar, no caso brasileiro, o voto, que é obrigatório para todos os cidadãos
entre 18 e 70 anos, e facultativo para quem tem 16, 17 ou mais de 70 anos, de acordo com o artigo
14, parágrafo primeiro da Constituição Federal (2002, p. 94)
Segundo Rui Barbosa (1849-1923): “Quem não luta pelos seus direitos, não é
digno deles” e, ainda sobre a participação política e a responsabilidade de cada
cidadão na vida coletiva, pertinente citar Boff (1994, p. 8 – Apresentação), em sua
apresentação de uma das obras de Tolstoi:
Certos homens, sem raciocínio bem definido, concluem, não se sabe
bem de que maneira, que a responsabilidade pelas medidas
governamentais cabe inteiramente àqueles que governam, isto é,
que os governantes e os reis decidam o que é bem e o que é mal
para seus súditos, e que o dever destes é apenas o de obedecer.
Creio que este modo de pensar nada faz senão ofuscar a
consciência. "Não posso participar dos conselhos do governo,
portanto não sou responsável por seus delitos." É verdade que não
somos responsáveis pelos erros dos governantes, mas somos
responsáveis pelos nossos erros, e os cometidos por nossos
governantes transformam-se em nossos se, sabendo que são erros,
participamos de sua execução. Aqueles que acreditam que seu dever
é obedecer ao governo e que a responsabilidade dos delitos que
cometem recai inteiramente sobre o soberano estão bastante
enganados. Alguns dizem: '”Submetamos nossos atos à vontade
alheia e estes atos não podem ser maus ou bons. Em nossos atos
não pode haver o mérito de uma boa ação, nem a responsabilidade
de uma má ação, já que são alheios à nossa vontade.” Mas isto não
é verdade. O homem não pode fugir da responsabilidade dos atos
que comete.
A partir do entendimento da obrigatoriedade de obedecer à lei, torna-se mais
fácil compreender o conceito de Desobediência Civil, minimamente reduzido ao
entendimento de que se trata de não obedecer a uma lei, uma regra do
ordenamento jurídico do país, independente de em que dispositivo legal ela se
encontre, se num Código, numa Lei Complementar ou na própria Constituição
Federal, com o objetivo de mostrar publicamente que ela é injusta a fim de levar os
governantes e os legisladores a modificá-la ou a extingui-la.
Existem, entretanto, vários atos de desobediência comum, que em nada se
confundem com atos de Desobediência Civil. Descumprir uma lei de trânsito como
ultrapassar o semáforo vermelho, por exemplo, é um ato isolado de desobediência,
sem finalidade coletiva, sem objetivo de favorecer a sociedade civil.
Ressalte-se que em casos de desobediência comum não é possível fazer
qualquer relação com os Referenciais da Bioética, pois atos dessa natureza vão
contra o caráter da não-maleficência defendida pelos Referenciais, já que
normalmente prejudicam outro indivíduo, senão em caráter pessoal, na destruição
de bens que são propriedade e de direito de toda a sociedade.
Ademais, atos de desobediência comum muitas vezes têm caráter destruidor
ou até mesmo criminoso. Mas isso jamais ocorre em atos de Desobediência Civil,
cujo próprio nome já identifica a que vieram: "civil" porque quem o comete acredita
estar cumprindo seus deveres de cidadão, atuando em situações nas quais
desobedecer à lei é o caminho para restabelecer a justiça na Sociedade e, desta
maneira, em total harmonia com os Referenciais da Bioética apontados por Hossne
(2006), na busca, defesa e aplicação da justiça, da equidade, do altruísmo, da
alteridade e da solidariedade, entre outros.
Dessa forma, é legítimo dizer que atos de desobediência comum têm, via de
regra, caráter destruidor, enquanto atos de Desobediência Civil têm caráter positivo,
com vistas a melhorar a vida dos cidadãos.
Outro fator que diferencia atos de Desobediência Civil de atos de
desobediência comum é que aquele que comete transgressões comuns procura
fazê-lo às escondidas, ou se esconder após o ato, mas quem realiza atos de
Desobediência Civil quer aparecer o máximo possível, pois tem o objetivo de
convencer os outros cidadãos, conquistar a maioria ou a unanimidade e, assim,
atingir seus objetivos.
3.3.3.3 O direito de ser governado por leis justas
“A injustiça é a ruína infalível dos impérios.”
Sólon (cerca de 640-558 a .C.)
“A tirania da lei não é abrandada por sua origem majoritária.”
Henry David Thoreau (1816-1862)
“É mais fácil fazer leis do que governar.”
Leon Tolstoi (1828-1910)
O argumento filosófico que fundamenta a Desobediência Civil é que o cidadão
só tem o dever moral de obedecer às leis se os legisladores produzirem leis justas.
Afinal, entre o cidadão e o legislador deve existir uma relação de reciprocidade: se o
legislador tem de ser obedecido, o cidadão, por sua vez, tem o direito de ser
governado com justiça. Sem esquecer que, nas democracias, o legislador é um
representante escolhido por esse mesmo povo que lhe cobra justiça em atos e
decisões.
Ademais, há muito se registra a importância das leis justas. More (2006,
p.113), assim se expressa em Utopia:
E porque reina a concórdia e as leis justas são observadas, a cobiça
dos príncipes estrangeiros não consegue abalar o império e, por
mias que o tenham tentado, sempre foram repelidos (...) sou
obrigado a reconhecer que há na República da Utopia, muitas coisas
que eu desejaria para os nossos países.
Como já referido, a concepção moderna e a cristalização da expressão
“Desobediência Civil” têm origem no ensaio Civil Disobedience, do escritor norte-
americano Henry David Thoreau, publicado em 1849, escrito quando ele se recusou
a pagar taxas ao governo de seu país, que as empregava numa guerra movida
contra o México e que Thoreau julgava ser uma guerra injusta.
Diante das consequências de seu próprio ato, que poderia levá-lo à prisão,
Thoreau declarou incontinenti: "Diante de um governo que prende qualquer homem
injustamente, o único lugar digno para um homem justo é a prisão". (THOREAU,
2005, p. 25-6)
Aqui é possível afirmar que, embora ainda não se o conhecesse por este
ângulo ou forma de identificação, Thoreau fez uso do Referencial da autonomia,
mesmo que para se deixar encarcerar.
Trata-se de exemplo indiscutível de ato ético, no qual ele não se escusou
sequer de ser preso para defender o que pensava ser o justo para si e para a
coletividade afetada naquele momento, demonstrando também a presença do que
hoje se pode identificar com o Referencial da solidariedade.
Isto pode exemplificar que a Desobediência Civil – questionando um ponto
específico do ordenamento jurídico de um país – pressupõe que o desobediente
aceite as consequências advindas de seu ato, pois reconhece que o Estado tem o
direito e a obrigação de punir quem descumpre a lei, já que o desobediente
reconhece o regime e o sistema como legítimos, discordando apenas de institutos
determinados.
3.3.3.4 Direito de Desobediência Civil e dever de obediência – O direito de
desobedecer ao Direito
29
(no sentido de desobedecer à lei
30
)
“O mundo é filho da desobediência.”
Correia Júnior (1865-1926)
“A obediência à lei é um dever, mas, como todos os deveres, não é
absoluto, é relativo, repousa sobre a suposição de que a lei parte de
uma fonte legítima e se mantém dentro de justos limites.”
Benjamin Constant (1767-1830)
Porque o hábito de desobediência, qualquer que seja o grau de
perfeição em que tenha de existir para construir um governo, é claro
que pode sofrer interrupções. Pode existir e cessar segundo as
diferentes conjunturas.”
Jeremy Bentham (1748-1832)
O Direito moderno positivado se assenta no dever de obediência à lei, tanto
para governantes quanto para governados. Assim, surge o questionamento de como
se torna possível reconhecer o “direito a desobedecer à lei, principal fonte do direito
positivo”.
Esta questão se apresenta ainda mais complexa ao se falar especificamente
em Desobediência Civil, já que em casos de regimes opressivos, os próprios
regimes são colocados em xeque, em sua totalidade, mas no caso dos
desobedientes civis, estes reconhecem o sistema jurídico e o regime político como
legítimos, mas discordam especificamente de determinado preceito normativo ou
determinada política governamental.
Em casos como esses, pode-se reconhecer a presença dos Referenciais da
autonomia, da dignidade e da responsabilidade do cidadão perante a coletividade.
Portanto, os desobedientes civis defendem o direito de legitimamente desobedecer
às leis, ainda que não julguem o regime, em sua totalidade, ilegítimo.
29
Cf. N.R.1.
30
Paralela à possibilidade de a própria lei ou o Direito permitirem e protegerem um descumprimento
da norma, também se pode levantar o questionamento sobre ser possível ao cidadão que se sinta
constrangido a obedecer à lei que julgue injusta invocar o instituto do “constrangimento ilegal”,
previsto no art. 146 do Código Penal: “Art. 146. Constranger alguém, mediante violência ou grave
ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a
não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda”. Aliás, este artigo incita discussão
interessante, pois em seu § 3º. o próprio dispositivo legaliza o fato de não se respeitar a vontade de
alguém, isto é, a própria lei autoriza a descumpri-la: “§3º. Não se compreendem na disposição desse
artigo: I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu
representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; II – a coação exercida para impedir
suicídio”.
A forma mais apropriada de analisar este problema não mais como um
paradoxo, é analisá-lo sob a ótica da facticidade
31
e da validade
32
, defendendo que a
Desobediência Civil identifica a própria tensão presente entre ambas e a validade do
Direito.
Habermas (2003), ao se referir à facticidade e à validade do Direito, tenta
compreender e explicar a dualidade do Direito moderno. Desta forma, por um lado, o
Direito é facticidade quando se subordina aos desígnios de um legislador político e é
cumprido e executado socialmente sob a ameaça de sanções fundadas no
monopólio estatal da força. Neste sentido, é possível evocar a aplicação dos
Referenciais da Bioética, principalmente, neste caso, dos Referenciais da justiça, da
não-maleficência e da dignidade.
Por outro lado, o Direito é validade quando suas normas se fundam em
argumentos racionais ou aceitáveis por seus destinatários, incluindo aqui a justiça
dessas normas. O próprio Habermas fala em justiça, um dos Referenciais básicos da
Bioética.
Além disso, ao se fazer justiça, está-se, por óbvio, aplicando o Referencial da
não-maleficência, pois o que é justo não prejudica ninguém, sendo que a conjunção
da não-maleficência e da justiça proporcionará dignidade – outro Referencial da
Bioética – à vida do cidadão.
Sobre facticidade e validade, é interessante trazer à luz as palavras de
Moreira (1999, p. 150), que afirma que a relação entre elas:
[...] assume uma forma de tensão pelo fato de o Direito reunir em si
elementos sancionadores e elementos provenientes de uma
autolegislação. Dito em outros termos, a tensão entre facticidade e
validade, no Direito moderno, retorna pela circunstância de que com
a sanção se restringe o nível de dissenso, mas esse dissenso é
superado no momento em que se introduz em seu bojo a ideia de
que as normas jurídicas são emanações do povo.
Nas palavras do próprio Habermas (2003, p. 60), esta tensão reside:
[...] mais precisamente entre a coerção do Direito, que garante um
nível médio de aceitação da regra, e a ideia de autolegislação – ou
da suposição da autonomia política dos cidadãos associados – que
resgata a pretensão da legitimidade das próprias regras, ou seja,
aquilo que as torna racionalmente aceitáveis.
31
O que é factível, o que pode ser feito/consumado.
32
O que é legítimo, o que é legal, o que é correto.
Esta tensão permanente pode ser identificada na relação do Direito com
outras ciências, como, por exemplo, na relação entre Direito e Moral, já que o Direito
não pode deixar de considerar os discursos morais para se legitimar, da mesma
forma que a Moral pode utilizar o Direito para vincular e implantar efetivamente seus
discursos nas sociedades modernas.
E aqui não se pode deixar de destacar a reflexão, o dilema que conduz o
homem a agir de forma ética, pois só a reflexão e a liberdade para a tomada de
decisão farão com que a atitude consciente tenha em si todos os parâmetros da
Ética.
Como assevera Bittar (2006, p. 127):
Quando se está a falar em ética, necessariamente se pensa na
relação entre comportamento e intenção do indivíduo, já que éthos é
a revelação de seu hábito de ação. Toda ação comporta,
necessariamente, o seu aspecto subjetivo (possibilidade de eleição
de meios e fins pelo indivíduo) e seu aspecto objetivo (determinação
do comportamento pela conjuntura dos dados externos que
condicionam o agir).
Outro caso é a relação entre Direito e Política, visto que a Política precisa dos
procedimentos jurídicos legais e legítimos para justificar decisões e programas, ao
passo que o Direito faz uso do aparelho burocrático e dos centros de decisão da
Política para garantir a sua efetividade.
Os atos de Desobediência Civil identificam a tensão nessas relações entre
Direito e Moral e Direito e Política, já que os desobedientes civis utilizam argumentos
morais para se posicionar contra leis ou políticas que consideram injustas.
Entretanto, só obterão legitimidade jurídica atos que tenham embasamento
como direitos do cidadão, no próprio sistema jurídico, ou seja, o próprio Direito
sendo utilizado como suporte para justificar o direito de desobedecer às leis. Por
mais paradoxal que isso possa parecer, trata-se de óbvia assertiva sobre a
legitimidade dos atos de Desobediência Civil para se obter justiça.
Na realidade, a análise mais profunda leva à afirmação de que mais do que
um direito, existe dever de desobedecer às leis, quando o cidadão se encontrar
tolhido de vida justa. E torna-se básico compreender que este dever se estende a
todo e qualquer cidadão, como bem se percebe nas palavras de Dallari (1994, p.
37):
Por outro lado, para que cada um tenha respeitados seus direitos e
sua dignidade é preciso que ninguém fique indiferente, passivo, sem
procurar influir na decisão dos assuntos de interesse comum. Todo o
ser humano tem o dever de participação política, para que a ordem
social não seja apenas a expressão da vontade e dos interesses de
alguns.
Neste caminhar entre direitos e deveres, discussão também presente ao se
falar em Referenciais da Bioética, é possível identificar alguns elementos dos atos
de Desobediência Civil.
3.3.3.5 Elementos da Desobediência Civil
Na Desobediência Civil é possível identificar dois elementos básicos, a saber:
o Direito Natural e o Direito de Resistência a atos ilegais.
3.3.3.5.1 Direito Natural
Como primeiro elemento identificável da Desobediência Civil está a noção de
Direito Natural, isto é, a ideia de que acima das leis estabelecidas pelo Estado – as
leis positivas – existe um direito superior, que é parâmetro para as leis humanas.
O Direito Natural teve origem na Grécia e evoluiu com a História humana,
porque sua concepção se confunde com a própria noção de justiça.
Os direitos naturais pertencem ao homem devido ao simples fato de ele ser
pessoa humana. Por este motivo, são entendidos como direitos do homem ou
direitos personalíssimos e, portanto, inatos, absolutos, originários e imprescritíveis.
São direitos essenciais da pessoa, como o direito à vida, à liberdade, à honra; o
direito de defesa, de associação e outros no mesmo sentido.
Cabe destacar que esses direitos, em sua maioria, estão presentes nas
Constituições dos Estados democráticos, nos dispositivos que tratam das liberdades
fundamentais do homem e do cidadão, e são direitos intimamente associados à
Bioética.
Radbruch, citado por Carvalho (2008), explana que:
O direito natural da antiguidade, por exemplo, girava em torno da
antítese: natureza-normas; o da Idade Média, em torno da antítese
direito divino-direito humano; o dos tempos modernos, em torno da
antítese: direito positivo-razão individual.
Para Bobbio (1992, p. 117):
[...] o homem é um animal político que nasce num grupo social, a
família, e aperfeiçoa sua própria natureza naquele grupo social
maior, auto-suficiente por si mesmo, que é a polis; e, ao mesmo
tempo, era necessário que se considerasse o indivíduo em si
mesmo, fora de qualquer vínculo social e político, num estado, como
o estado de natureza.
Na Grécia antiga, é possível identificar a ideia de Direito Natural na tragédia
Antígone
33
, de Sófocles, que conta a história de Creonte, rei de Tebas, que a proibiu
de enterrar seu irmão Polinices, que empunhara armas contra a pátria e, da mesma
forma, também na obra de Cícero se reconhece o Direito Natural.
Antígone ignora a proibição e tenta sepultar o irmão, sendo presa em
flagrante e condenada à morte. A “desobediente” justificou sua conduta por respeitar
leis que estão acima das leis injustas dos governantes, apresentando a dicotomia
entre as leis divinas (thémis) e as leis humanas (diké):
33
Escrita por Sófocles, considerado por alguns o melhor dramaturgo clássico, a tragédia Antígone
apresenta o fim do ciclo das tragédias sobre Édipo, filho de Laio, que ordenou a perfuração dos pés
do filho e que ele fosse abandonado para morrer no monte Citéron. Laio assim determinou na
tentativa de fugir da maldição do Oráculo de morrer pela mão de seu filho. Entretanto, a criança
sobreviveu devido à compaixão do pastor contratado para matá-lo, que chamou o menino de Édipo
(Oidípus = pés inchados). Já adulto, Édipo matou o próprio pai sem saber quem ele era, decifrou o
enigma da Esfinge, salvou Tebas e se casou com Jocasta (viúva de seu pai, o Rei Laio), sem saber
que ela era sua mãe, tornando-se o Rei de Tebas. Com ela teve quatro filhos: Etéocles, Ismênia,
Antígone e Polinices. A tragédia Antígone relata exatamente o final desta família, a família dos
Labdácias. Provavelmente, a peça foi apresentada pela primeira vez por volta de 441 a.C., no Teatro
grego em Atenas, na competição das Grandes Dionísias ou Dionizadas, evento sobretudo religioso,
realizado anualmente, sempre no início da primavera grega (KURY, 2004, p.8-9.) Pode-se citar,
também, Cícero, em uma passagem do terceiro livro de sua obra Da República (51 a.C.), na qual fala
sobre o direito natural, dizendo que “existe uma verdadeira lei, a reta razão congruente com a
natureza, que se estende a todos os homens e é constante e eterna; seus mandamentos chamam ao
dever e suas proibições afastam do mal. E não ordena nem proíbe em vão aos homens bons nem
influi nos maus”. Para Cícero, “não é lícito modificar esta lei, nem permitido revogá-la parcialmente, e
é impossível anulá-la por inteiro. Nem o senado nem o povo podem excluir o cumprimento, nem se
requer ninguém que a explique ou interprete. Não é uma em Roma e outra em Atenas, uma agora e
outra depois, senão uma lei única, eterna e imutável, que obriga a todos os homens e para todos os
tempos: e existe um mestre e governante comum de todos, Deus, que é o autor, intérprete e juiz
dessa lei e que impõe seu cumprimento. Quem não obedece foge de si mesmo e de sua natureza de
homem, e por isso se faz merecedor das penas máximas, embora escape aos diversos suplícios
comumente considerados como tais”. (CICERO, 1995). A defesa de Cícero permite observar que o
homem, desde o início, não se conforma em reconhecer que a lei tem caráter puramente estatal,
independente de conteúdo ético, pois há um Direito, acima do direito positivo, que caminha com a
espécie humana e está presente em todas as sociedades, inclusive nas mais rudimentares, como as
obras da Grécia antiga já identificavam. O julgamento de Nuremberg é outro exemplo, mais recente,
da aplicação do Direito Natural: não havia leis positivas que servissem, à época, de base legal para
processar vencidos numa guerra. Na realidade, a situação era ainda mais grave, pois as ações dos
nazistas advinham de um sistema normativo aprovado por legisladores, isto é, de sistema legal
válido, já que estava tudo previsto na legislação. Entretanto, o que se violou não foi o direito positivo
do Estado alemão, mas sim o direito natural que acompanha a espécie humana e paira sobre o
Estado. Só com base no Direito Natural foi possível realizar o julgamento e tentar impor um pouco de
justiça àquela situação surreal. (BOBBIO, 19, p. 301 e 320)
[...] e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas,
jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; tampouco acredito
que tua proclamação tenha legitimidade para conferir a um mortal o
poder de infringir as leis divinas, nunca escritas, porém
irrevogáveis; que não existem a partir de ontem, ou de hoje, são
eternas, sim! E ninguém pode dizer desde quando vigoram!
(SÓFOCLES, 2007, p. 96) (grifo nosso)
Nos atos de Antígone pode-se reconhecer, ainda, atitude Bioética inegável de
respeito ao cadáver. O Direito, ainda que em outra dimensão, também impõe
condutas que se traduzem na coercitividade de respeito ao cadáver. Portanto,
irrefutável que a atitude de Antígone, ainda que “desobediente”, foi extremamente
moral e ética, quer se justificada pelo Direito Natural, quer se pela Moral e pela
(Bio)Ética.
Antígone é constantemente citada pelos defensores do Direito Natural, que a
utilizam para mostrar o eterno conflito entre a consciência individual e a razão do
Estado. Por intermédio dela, Sófocles demonstrou e defendeu que a consciência
humana predomina sobre qualquer lei iníqua do Estado, sendo a obra Antígone
discutida com pormenores nos itens 3.4.1.1 e seguintes, mais adiante.
Thoreau também se refere ao Direito Natural em seu ensaio, no qual, pela
primeira vez, formalizou-se a expressão “Desobediência Civil”:
Será que o cidadão deve desistir de sua consciência, mesmo por um
único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por
que então estará cada pessoa dotada de uma consciência? Em
minha opinião, devemos ser primeiramente homens, e só
posteriormente súditos. Cultivar o respeito às leis não é desejável no
mesmo plano do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho
direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo.
(THOREAU, 2005, p. 15)
Quanto a Thoreau, seu ensaio é pura transcrição de exercício ético, no qual
ele analisa criticamente de que forma seu dinheiro e suas atitudes estão servindo
para perpetuar atos de um governo com os quais ele não concorda. Ressalte-se que
ele não se limitou a discordar: agiu, enfrentou o Poder estabelecido e utilizou um
método pacífico – a produção de um texto e sua divulgação – para modificar o que
ele classificava como injusto.
Assim, Thoreau não só refletiu a respeito, como também assumiu a
responsabilidade que decisões baseadas em tal reflexão podiam trazer, a ponto de,
em instante algum, questionar ou se negar a ir preso, se este fosse o preço a ser
pago para poder ser fiel à sua consciência, atitudes imediatamente identificáveis
com os Referenciais da Bioética, em destaque, com os Referenciais da justiça, do
direito à vida e à dignidade (tremendamente ameaçados pela guerra), da
responsabilidade, da beneficência, da autonomia e da solidariedade.
E como base para a reflexão, o autor continua remetendo suas ideias ao
Direito Natural, ao questionar:
A evolução de uma monarquia absoluta para uma monarquia
constitucional, e desta para uma democracia, é um progresso no
sentido do verdadeiro respeito ao indivíduo. Será que a democracia,
da forma como a conhecemos, é o último aperfeiçoamento possível
em termos de construir governos? Não será possível dar um passo a
mais no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem?
Não poderá haver um Estado de fato livre e esclarecido, até que ele
venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente –
do qual a organização política deriva seu próprio poder e sua própria
autoridade – e até que o indivíduo venha a receber um tratamento
correspondente. Ponho-me a imaginar, prazerosamente, um Estado
que possa enfim se dar o luxo de ser justo com todos os homens e
de tratar o indivíduo respeitosamente. (THOREAU, 2005, p. 39)
Neste ponto, torna-se relevante mencionar considerações adicionais sobre
Direito Natural:
A ideia de que acima das leis positivas existe um direito que serve de
modelo às leis humanas vem desde a Grécia. Atravessou a história
humana e não vai desaparecer nunca, porque ela se confunde com a
própria noção de justiça. O homem nunca se conformou em
reconhecer que a lei tem um caráter puramente estatal,
independente de um conteúdo ético. O direito natural teve a sua
concepção apoiada sobre as mais diversas bases: originário de Deus
(direito natural teológico), de um contrato social em que os homens
convencionaram formar uma sociedade justa, nenhum dos
contratantes, enunciando ao direito de resistência à injustiça (direito
natural racional) e outras variantes (...) Em suma, o direito natural é
ideia e é sentimento. Não há revolução que não apele para ele.
Apoiou revoluções e reações. Nem sempre foi democrático. Mas,
seja como for, o dia em que ele desaparecer, morre a filosofia do
direito, e talvez não haja mais razão de continuar vivendo como ser
humano. É um direito que brilha quando mais se precisa dele: em
épocas de crise. É o direito da crise contra a crise do direito.
(SOIBELMAN, 1998, verbete: direito natural)
Portanto, a violação de um Direito Natural do homem, por parte do Estado ou
de seus representantes, fundamenta e justifica o Direito de Resistência – e a
Desobediência Civil – dos cidadãos a esses atos, tornando-se possível até mesmo
considerar que o próprio Direito de Resistência às injustiças seja um direito natural
do homem.
É possível fazer relação entre o que a Bioética defende, seus Referenciais e
as ideias presentes no Direito Natural, como se pode perceber por meio das
afirmações de Carvalho (2008):
Prestar atenção no bem e evitar fazer o mal é o preceito máximo
do Direito Natural. O homem possui instinto de preservação, auto-
conservação da espécie humana, união dos seres, formação da
família, a busca pela verdade, participação na sociedade. A natural
inclinação do homem. Assim, seria de Direito Natural essa natural
inclinação da criatura humana, estabelecida pela natureza. (grifo
nosso)
Ademais, cabe ressaltar que o direito natural foi uma das bases para o
surgimento do conceito de autonomia, que é um dos Princípios e um dos
Referenciais da Bioética.
Na realidade, as revoluções democráticas, de um lado, e a noção de direito
natural, de outro, levaram aos direitos do cidadão e, destes, ao conceito de
autonomia, princípio assimilado pela Teoria dos Referenciais da Bioética.
3.3.3.5.2 O Direito de Resistência a atos ilegais e injustos
Como segundo elemento integrante da Desobediência Civil, pode-se
identificar o Direito de Resistência a atos ilegais e injustos, que constitui, a rigor, um
direito natural específico.
Pertinente ressaltar o que escreveu Cícero:
[...] que era uma insensatez acreditar que tudo o que está regulado
pelas leis é justo, pois as maiorias podem aprovar leis injustas, como
acontece nos regimes tirânicos. A única lei justa é a que segue a
natureza das coisas, a lei natural. A vontade dos povos não faz a lei
justa, pois os povos podem aprovar atos ilícitos ou criminosos. A
natureza das coisas tem uma tendência para seguir a justiça. A única
regra para distinguir uma lei boa de outra má é a natureza.
(SOIBELMAN, 1998, verbete: Cícero e o justo por lei). Cícero
defendeu a ideia de que qualquer lei que ofendesse os princípios da
reta razão, ou o direito natural, podia ser ab-rogada pelo senado
romano ou pelos áugures (sacerdotes), ou seja, a validade da "recta
ratio" contra a "lex scripta". Os romanos tinham o hábito de
incorporar na lei uma salvaguarda (adscriptio) dizendo que não era
propósito dela ab-rogar o que se considerava como sagrado ou
jurídico, e mais de uma vez Cicero aproveitou-se desta circunstância
para atacar o direito positivo, e usou da palavra "constituição" em
sentido surpreendentemente moderno. Cícero teria sido o precursor
ou criador da ideia de um controle jurisdicional da legalidade das
leis. (SOIBELMAN, 1998, verbetes: Cícero e a inconstitucionalidade
das leis e Cícero e o direito natural)
Segundo Thoreau: “O Direito de Resistência é reconhecido por todos, isto é, o
direito de negar lealdade e de oferecer resistência ao governo sempre que se
tornem grandes e insuportáveis sua tirania e ineficiência”. (THOREAU, 2005, p. 17)
Ele defende que no caso da lei injusta
34
, da lei ilegítima
35
e da lei inválida
36
não existe lei em sentido pleno e, portanto, não existe o dever de obediência. Para o
filósofo, o dever de obedecer às leis é diretamente proporcional ao dever de o
legislador produzir leis justas e constitucionais, o que equivale dizer, leis que
estejam de acordo com os princípios básicos e com as regras formais previstas na
Constituição.
Com base nisso, a relação de reciprocidade entre legislador e cidadão deveria
ficar assim estabelecida: o legislador tem direito à obediência e, em contrapartida, o
cidadão tem o direito de ser governado com sabedoria e leis justas – sempre.
Novamente aqui se vê a presença do Direito Natural, pois só ao se admitir
sua existência e o fato de que os direitos subjetivos do homem são anteriores ao
Estado, não sendo este quem os cria, é que se pode concordar e sustentar o direito
de desobediência a atos ilegais e injustos. (SOIBELMAN, 1998, verbete: problema
da lei injusta)
Ainda em relação à resistência a atos ilegais, segundo Hungria (1958), é
possível identificar três teorias principais sobre o assunto. De acordo com a primeira,
chamada de teoria autoritária, o cidadão não pode resistir a atos ilegais da
autoridade em hipótese alguma. Nesses casos, a autoridade responde por abuso de
poder, a posteriori, ressalvado ou reconhecido, àquele que se sentir prejudicado, o
direito de reclamação.
Entretanto, percebe-se facilmente que esta teoria deixa o cidadão à mercê
dos atos injustos, sofrendo suas consequências, até que a Autoridade seja chamada
a responder por seus atos e suprimi-los. Portanto, trata-se de hipótese que não
34
Lei injusta é a lei que viola o direito estabelecido, o direito objetivo, os princípios jurídicos do
ordenamento jurídico focalizado na sua totalidade; lei que estabelece distinções arbitrárias; lei que
desconhece o princípio da igualdade de todos quantos estejam na situação que ela pretende regular;
lei que exige do indivíduo um rebaixamento da sua própria dignidade moral para poder obedecê-la; lei
que viola os elementares princípios éticos da comunidade humana universal. (SOIBELMAN, 1998,
verbete: lei injusta).
35
Lei ilegítima é aquela emanada de quem não tem o direito de legislar. (SOIBELMAN, 1998, verbete:
lei ilegítima).
36
Lei inválida ou lei inconstitucional é a produzida em desacordo com a Constituição vigente.
(SOIBELMAN, 1998, verbete: lei inválida).
protege o cidadão de imediato, expondo-o por mais tempo às consequências de um
ordenamento jurídico que ele quer questionar ou reformar.
De acordo com a teoria liberal, segunda teoria, a resistência, além de ser um
direito, é um dever, porque, nesse caso, o cidadão é quem defende o Direito, já que
não existe presunção da legalidade para os atos dos representantes do Poder
público.
Desta forma, se o Poder público não está atuando na defesa do cidadão,
cabe a este, em seu papel de ser político e, portanto, responsável por sua História,
bem como pela História da sociedade na qual está inserido, defender o Direito, bem
como o fato de resistir às normativas deste mesmo Direito se ele desrespeitar a
justiça devida a todo e cada cidadão.
Sob a ótica da defesa da justiça, com base nos Referenciais da Bioética, esta
teoria reflete a melhor forma de reconhecer e teorizar sobre a Desobediência Civil
como instrumento de proteção ao cidadão, que tem o dever de buscar a justiça nos
atos emanados do poder constituído, e o direito de usufruir desta justiça.
De acordo com a terceira teoria, a teoria mista, existirá o Direito de
Resistência sempre que os atos apresentarem ilegalidade flagrante, evidente ou
notória, o que ocorrerá quando eles não se basearem em dispositivos legais.
Esta teoria também deixa uma lacuna, já que alguns atos, ainda que se
baseiem em dispositivos legais, não representam atos de justiça. Isto é, atos que
podem estar revestidos de todos os requisitos legais, podem não ser legítimos, por
não corresponderem a atos de justiça. (ver itens 3.2.3 e ss.)
Além da análise da relação entre Desobediência Civil e atos ilegais, também
se deve pensar o instituto em relação à Moral e a Ética, para se chegar com mais
conforto às análises que se quer iniciar e motivar no campo da Bioética.
Desta forma, no item a seguir, analisa-se, ainda que sucintamente, possíveis
relações entre a desobediência à lei, a Moral e a Ética.
3.3.3.6 Desobediência à lei, Moral e Ética
A Desobediência Civil é moralmente aceitável na medida em que não se
posiciona contra o regime estabelecido nos Estados democráticos de Direito e não
incentiva manifestações violentas.
Na realidade, atos de Desobediência Civil não tentam derrubar o Estado;
buscam apenas transformar algo considerado injusto, e também não atentam contra
a Moral utilizando violência, pois são não-violentos.
Aliás, a não-violência é característica sine qua non para que um ato de
Desobediência Civil possa ser considerado legítimo. Em análise, a não-violência,
fundamental aos atos de Desobediência Civil, remete diretamente, entre outros, aos
Referenciais da não-maleficência e da solidariedade. Mesmo porque seria paradoxal
a Bioética coadunar-se com a violência.
Se há um motivo moral – interromper e modificar um ato injusto – não há
como qualquer ato de Desobediência Civil ser levado a cabo com violência, já que
atos morais não permitem de se prejudiquem outras pessoas, exceção apenas feita
em situações específicas de Direito, como a legítima defesa
37
, o exercício regular do
direito
38
e o estrito cumprimento do dever legal
39
.
Assim, não há qualquer motivo para rejeitar a Desobediência Civil com base
em ser ela ato que contrarie a Moral. Entretanto, alguns advogam que numa
sociedade democrática, na qual a maioria tem o poder de decisão, a Desobediência
Civil não seria moralmente justificável quando representasse o desejo de um
pequeno número de pessoas; só o seria se representasse a vontade da maioria.
Entretanto, ainda assim, eticamente seria justificável, já que a Ética, diferentemente
da Moral, é individual, nascida da reflexão e da opção consciente de cada um.
Os que defendem a tese da necessidade de a maioria ter vontade de se
insurgir e, se assim não fosse, haveria um ato antidemocrático, complementam que
o que é antidemocrático não pode ser moralmente aceitável. Assim, para eles, se
não representa, sem sombra de dúvida, a vontade da maioria, o ato de
Desobediência Civil é antidemocrático e, por consequência, moralmente incorreto.
37
Legítima defesa: é o uso moderado dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou
iminente, a direito seu ou de outrem. (SOIBELMAN, 1998, verbete: legítima defesa)
38
Não há crime nem ato ilícito quando o agente pratica um fato no exercício regular de um direito. A
licitude do fato pode decorrer de norma penal ou extrapenal, e tem sempre caráter excepcional. Para
que o agente possa se beneficiar dessa circunstância, é necessário que tenha agido dentro dos
limites do direito que torna inculpável o fato. Se não se verifica esta condição, haverá abuso ou
excesso de poder. Nélson Hungria, Comentários ao Cód. Penal, I. Rev. Forense ed. Rio, 1949. (In:
SOIBELMAN, 1998, verbete: exercício regular de um direito)
39
Não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento de dever legal, não havendo
também o ato ilícito na esfera civil. Dever legal é o que decorre da lei entendida em sentido amplo de
regra de conduta obrigatória emanada de autoridade legítima na forma da Constituição. O dever legal
pode constar de norma penal ou extrapenal e o agente para beneficiar-se dessa circunstância deve
manter-se nos limites que a lei determina para o exercício desse dever. (SOIBELMAN, 1998, verbete:
estrito cumprimento de dever legal)
Ainda que assim fosse, isto é, ainda que fosse possível considerar ato contra
a Moral aquele que numa sociedade não represente a vontade da maioria,
eticamente não há o que questionar, visto ser a minoria tão cidadã quanto a maioria
o é e poder, sim, sob o aspecto ético, questionar o justo e o injusto.
Como assegura Monteiro (2003, p. 204):
Dizer que a resistência deve (...) ser exercida preferencialmente de
forma coletiva não significa que a maioria da população ou dos
cidadãos deva praticar os atos de resistência para assim caracterizá-
la. A resistência política também é um instrumento das minorias, ou
de pequenos grupos organizados, que desejam manifestar a sua
opinião a toda a coletividade, com fins de convencimento, e muitas
vezes uma minoria não encontra meios nem espaços para tal atitude,
vislumbrando na resistência política um instrumento para tanto.
Neste ponto, torna-se interessante clarear as semelhanças e as diferenças
entre Ética e Moral, o que se faz pela apresentação do quadro sinótico a seguir:
QUADRO 2 – ÉTICA E MORAL
MORAL ÉTICA
Valores humanos (não têm preço); Valores humanos (não têm preço);
Origem no latim more = costume
humano;
Origem no grego ethos =
costume/conduta;
Valores morais – desenvolvidos pelos
usos e costumes de determinada
sociedade;
Valores éticos – juízo crítico sobre
valores que frequentemente estão em
conflito e que implica opção;
Não conflito; Pode haver conflito/dilema (di = dois /
lema = caminho);
Pode variar de sociedade para
sociedade ou de uma época para outra
(na mesma sociedade);
Varia de indivíduo para indivíduo;
De fora para dentro, isto é, da
sociedade para o indivíduo;
De dentro para fora, isto é, do indivíduo
para a sociedade;
Todo cidadão tem de respeitar porque
pertence à sociedade;
Não é a sociedade que escolhe, é o
indivíduo, ainda que leve em conta os
valores morais;
Não há reflexão crítica, há aceitação;
há introjecção; é social.
Pressupõe dilema, não há aceitação
sem reflexão crítica; é pessoal.
Fonte: desenvolvido pela autora, com base em notas de aula (anotações manuscritas). Mestrado
em Bioética. Disciplina: Fundamentos de Bioética (professor William Saad Hossne, 2007).
Há, ainda, os que alegam que qualquer ato de Desobediência Civil é um ato
que prega e defende a desobediência à lei e que, por óbvio, qualquer desobediência
à lei constitui, por si só, um ato contra a Moral, e são ainda mais rigorosos, alegando
que pequenos atos de desobediência, na atualidade, podem passar de exceção à
regra, no futuro, ensejando que as leis simplesmente deixem de ser respeitadas e
argumentando, em instância final, que a Desobediência Civil promove a anarquia.
É possível rebater, também, a alegação de que atos de Desobediência Civil
não são morais por ser manifestação da minoria. Entretanto, a minoria é tão cidadã
quanto a maioria o é, e tem todo direito de questionar a justiça do ordenamento
imposto, bem como de se recusar a obedecê-lo, caso fique configurada a injustiça.
Ademais, na atualidade, muitos atos de Desobediência Civil visam a alertar
outras pessoas, os governantes ou a população em geral, com o objetivo de que
mudem a sua opinião em relação a determinado assunto e, em consequência, o
ordenamento injusto que está sendo identificado.
Assim, não há o que se dizer sobre ser a Desobediência Civil um ato
antidemocrático, pois o poder de decisão continua na posse da maioria e só a
maioria terá poder para modificá-lo, embora a minoria tenha toda a legitimidade para
questioná-lo e contra ele se posicionar.
Ocorre que ao se falar em questionamento, chega-se ao plano da reflexão e,
como tal, a análise mais coerente deve ser a feita no universo da Ética, ainda que se
considere que o ato ético é, por óbvio, ato Moral.
Quanto à possibilidade de a Desobediência Civil conduzir à anarquia, trata-se
de argumento exagerado, pois não há qualquer motivo para julgar que o Poder
estabelecido e a vontade da maioria não serão capazes de por fim à desobediência
à lei, num determinado momento, se isso for necessário.
Além disso, a base para os desobedientes civis é a insurgência contra as leis
injustas, com o objetivo de transformá-las, até que se tornem justas, para que, desta
forma, possam ser respeitadas, ou, na impossibilidade de transformação,
eliminadas.
Em espelho, é possível perceber que o desobediente civil compreende
perfeitamente que as leis justas devem ser respeitadas, em franca defesa do
Referencial da justiça.
Pelo exposto, é possível afirmar que a Desobediência Civil não é só moral e
eticamente coerente e aceitável como, muitas vezes, passará a ser ato desejável
para vencer injustiças positivadas nos ordenamentos jurídicos, além de ser
totalmente compatível com a Democracia, sem nenhum objetivo de levar a uma
sociedade anárquica. Aliás, muito pelo contrário, já que pretende tornar a sociedade
cada vez mais justa para todos.
Portanto, neste estudo, considera-se que atos de Desobediência Civil são
moral e eticamente justificáveis e aceitos, posto que visam, assim como a Bioética, à
melhor vida possível para os cidadãos, repleta de justiça e ética.
3.3.3.7 Desobediência Civil e não-violência
“A não-violência não pode ser definida como um método passivo ou
inativo. É um movimento bem mais ativo que outros que exigem o
uso de armas. A verdade e a não-violência são, talvez, as forças
mais ativas de que o mundo dispõe.”
Mahatma Gandhi (1869-1948)
“Toda reforma imposta pela violência não corrigirá em nada o mal: o
bem não necessita da violência.”
Leon Tolstoi (1828-1910)
“A não-violência e a covardia não combinam. Posso imaginar um
homem armado até os dentes que no fundo é um covarde. A posse
de armas insinua um elemento de medo, se não mesmo de covardia.
Mas a verdadeira não-violência é uma impossibilidade sem a posse
de um destemor inflexível.”
Mahatma Gandhi (1869-1948)
“Querer saber – o que parece tão difícil – se não é errado, entre
tantos seres vivos que praticam a violência, ser o único ou um dos
poucos não violentos, não é diferente de querer saber se seria
possível ser sóbrio entre tantos embriagados, e se não seria melhor
que todos começassem logo a beber.”
Leon Tolstoi (1828-1910)
Assim como defende Arendt (2006), é inegável que a não-violência é uma
característica específica da Desobediência Civil que serve, inclusive, para distingui-
la de outras formas de resistência de grupo, como a revolução
40
ou a guerrilha
41
.
40
Revolução: situação de fato que escapa à análise e ao controle do poder judiciário. Consiste na
interrupção violenta do processo social visando a substituir a classe que está no poder por outra. A
permanência e a legitimidade das instituições anteriores dependem unicamente do poder
revolucionário vitorioso.
41
Guerrilha: petite guerre (pequena guerra), como se diz em francês. Atos de guerra efetuados por
pequenos grupos de combate não pertencentes às forças regulares.
Em Tolstoi também é possível encontrar assertivas sobre a não-violência,
como explicita Boff (1994, p. 7 – Apresentação):
Mas seria Tolstoi por tudo isso um anarquista? Ele confessa: "Não
sou anarquista, mas cristão." Contra os anarquistas e suas bombas e
dinamites, defende intransigentemente a não-violência. Acrescenta
que os profetas da não-violência são muito mais perigosos para o
Estado do que quaisquer pretensos revolucionários, sejam
socialistas, comunistas ou anarquistas. Pois o Estado sabe muito
bem tratar com estes, que jogam pelas mesmas regras, mas já não
sabe como se haver com os adeptos da não-violência, que se situam
num campo onde o Estado já está de antemão derrotado.
A não-violência se relaciona a uma série de conceitos sobre moralidade,
poder e conflitos, que rejeitam completamente o uso da violência nos esforços para
a conquisa de objetivos sociais e políticos.
Muitas vezes, o conceito de não-violência é utilizado como sinônimo de
pacifismo – e não se confunda aqui pacifismo com passividade – e, a partir da
metade do século XX, passou a ser utilizado, também, para designar atos em
quaisquer conflitos sociais, bem como movimentos políticos e filosóficos, nos quais
não havia uso de violência.
O conceito de não-violência tem adquirido importância tamanha no mundo
democrático e na proteção dos próprios cidadãos que, em 10 de novembro de 1998,
a ONU (Assembleia Geral das Nações Unidas) proclamou a primeira década do
século XXI – de 2001 a 2010 – como o Decênio Internacional da Promoção de
Cultura da não-violência e da Paz em Prol das Crianças do Mundo (International
Decade for the Promotion of a Culture of Peace and Non-Violence for the Children of
the World).
Considerado um dos maiores estudiosos da não-violência, Sharp (1973, v.1,
p. 82) declara que:
Gandhi foi quem mais significativamente contribui para a história da
técnica não-violenta, com suas experiências políticas no uso da não-
cooperação, desobediência e desafio, com o objetivo de controlar
governantes, alterar políticas governamentais e minar sistemas
políticos. (Tradução livre da autora)
Sharp (1973, v.1, p. 82 e ss.) reitera, ainda, a importância de Gandhi como
representante da não-violência, ao citar as atitudes do indiano:
Em três momentos principais – na África do Sul, quando defendeu a
minoria indiana; na Índia, quando lutou pelo fim da discriminação dos
párias; e na luta contra o imperialismo britânico, Gandhi cunhou
várias atitudes e símbolos que ficaram definitivamente associadas à
paz e à não-violência, como, por exemplo, a queima das carteiras
britânicas, que eram símbolo da submissão dos indianos aos
ingleses, na África do Sul; as manifestações em Vykom, em 1924-
1925, juntamente com as orações proferidas ao longo de vários
meses diante de um templo brâmane, na luta pelo fim das
discriminações aos párias, que eram proibidos até de passar pela
frente do edifício; em 1931, na longa marcha até o mar, para fazer
sal, desrespeitando as leis inglesas que proibiam esta atividade para
os indianos; a queima dos tecidos ingleses, num ato pelo fim do
monopólio; as horas que passava na Roca de fiar, tecendo suas
próprias roupas, para não se submeter à lei que proibia aos indianos
fabricarem tecidos; as longas vigílias; os frequentes jejuns; as várias
prisões sem apresentar resistência ao ser levado etc.
Ainda sobre a não-violência, com base em Martin Luther King (GUIMARAENS
NETO; LIMA, 1974), pode-se afirmar:
1) este não é um método para covardes: é uma resistência. Aquele
que resiste não-violentamente se opõe ativamente contra as
injustiças e desigualdades. Este método é não-agressivo no
sentido em que não é agressivo fisicamente contra o opositor;
2) a resistência não-violenta não busca vencer nem humilhar o
oponente, mas sim ganhar sua amizade e compreensão. Aquele
que resiste não-violentamente deve expressar seu protesto por
meio da não-cooperação ou boicotes, mas se dá conta que a não-
cooperação e que os boicotes não são um fim em si mesmos, são
simplesmente um meio para despertar o sentido de vergonha
moral no oponente. O fim é a redenção e a reconciliação;
3) neste método, o ataque se dirige para combater e revolucionar as
estruturas sociais e os valores deste sistema, ao invés de atacar
as pessoas que estão atrapalhadas por acreditar nessas
estruturas e valores. É este sistema imoral e injusto que buscamos
vencer, não as pessoas vitimizadas por ele;
4) a resistência não-violenta evita não só a violência física externa,
mas também a violência interna do espírito. No coração da não-
violência se ergue o princípio do amor. Na luta pela dignidade
humana, os oprimidos do mundo não devem se permitir ressentir-
se nem se envolver em campanhas de ódio. Vingar-se com ódio e
ressentimento só conseguirá intensificar o ódio no mundo. Ao
longo do caminho da vida, alguém deve ter a suficiente bondade e
força moral para cortar a cadeia do ódio. Isto só pode ser
alcançado projetando a ética do amor para o centro de nossas
vidas e dos que estão ao nosso redor.
Também podem ser identificados diferentes métodos (MARCHETTI-LECA,
[s.d.]) utilizados em ações não-violentas, a saber:
1. métodos de ação direta – ações na justiça, ocupações pacíficas
de locais proibidos, invasões de locais públicos, acampamentos,
vigílias, aparições inesperadas em eventos públicos, palestras e
conferências de imprensa;
2. métodos de protesto e persuasão – denúncias, declarações
públicas, discursos de protesto, comunicações massivas, atos
públicos simbólicos, pressão sobre as autoridades, teatro e
música, procissões, peregrinações, caravanas, fóruns e
assembleias públicas, votações paralelas, retiradas e reuniões;
3. métodos de não-cooperação social – boicotes, greves, fuga,
suspensão de atividades sociais e desportivas, vazio ao poder
estabelecido, refúgio e emigrações;
4. métodos de não-cooperação econômica – greves, boicotes,
difusão de listas negras de empresas e/ou de produtos, listas
negras de políticos corruptos, utilização de moedas paralelas,
retiradas de depósitos bancários;
5. métodos de não-cooperação política - rechaço à autoridade,
negar-se a votar ou a pagar impostos e desobediência civil;
6. métodos de intervenção não-violenta – jejuns e greves de fome,
tomadas de edifícios, invasões de terras, obstruções de ruas,
avenidas e estradas, sistemas alternativos de comunicação e
transporte, mercados paralelos, congressos e votações populares;
7. Desobediência Civil – desobediência a leis injustas.
Os métodos de ação direta, por exemplo, podem ser facilmente relacionados
ao Movimento dos Sem Terra (MST).
Já quanto aos métodos de não-cooperação política, é fácil associá-los às
ideias e atitudes de Thoreau, presentes no ensaio Desobediência Civil, escrito por
ele em 1849, bem como às posturas adotadas por Gandhi (1869-1948), nas quais
também se pode identificar atitudes que utilizam métodos de intervenção não-
violenta, como jejuns e greves de fome.
A não-violência é pois, inegavelmente, caracterísitca fundamental dos atos de
Desobediência Civil, e companheira dos Referenciais da Bioética, principalmente
dos Referenciais da não-maleficência, da justiça, incluindo aqui a empatia e a
alteridade, da solidariedade, da responsabilidade, da equidade, da serenidade e da
vulnerabilidade.
3.3.3.8 Desobediência Civil e cidadania: a insurgência do cidadão contra o
Estado e a previsão da Desobediência Civil na ordem constitucional
A própria construção do Direito está atrelada ao princípio da democracia e
nesta construção, nos Estados democráticos, pode-se encontrar os direitos
fundamentais.
Entre os direitos fundamentais básicos estão os direitos de participação nos
processos de formação da opinião e da vontade, em igualdade de condições, a partir
dos quais os cidadãos podem exercer sua autonomia política e instaurar um Direito
legítimo.
Isto remete imediatamente aos Referenciais bioéticos da resposanbilidade e
da dignidade, mostrando cada vez mais a estreita relação entre os Referenciais da
Bioética e a instalação de institutos legítimos – não só legais – que proporcionem a
vida mais justa possível – outro Referencial – para o ser humano.
Habermas (2003, p. 160) chama essa classe de direitos fundamentais de
direitos políticos, e assim define seus objetivos:
Essa categoria de direitos encontra aplicação reflexiva na
interpretação dos direitos constitucionais e na configuração política
posterior dos direitos fundamentais. Os direitos políticos
fundamentam o status de cidadãos livres e iguais; e esse status é
auto-Referencial na medida em que possibilita aos cidadãos
modificar sua posição material com relação ao direito, com o objetivo
da interpretação e da configuração da autonomia pública e privada.
O sentido da Desobediência Civil num Estado Democrático de Direito
42
é
exatamente o mesmo dado por Habermas, ou seja, o de possibilitar aos cidadãos
modificar os rumos pelos quais se interpreta o Direito.
Assim, este é o motivo de a Desobediência Civil ser um direito fundamental
que pode ser positivado em comunidades jurídicas concretas, no tempo e no
espaço, a partir da categoria desses direitos políticos.
Por isso, ainda seguindo análise por meio das ideias de Habermas, não se
pode questionar a Desobediência Civil com base em argumentos formais do tipo
"legitimação pelo procedimento". Isto é, não basta que uma lei ou um ato
42
Cf. CATTONI (2002, p. 55): “Estado Democrático de Direito é o conceito que designa qualquer
Estado que se aplica a garantir o respeito das liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos
humanos e pelas liberdades fundamentais, por meio do estabelecimento de uma proteção jurídica.
Em um Estado democrático de Direito, as próprias autoridades políticas estão sujeitas ao respeito à
regra de Direito. Em contraponto ao Estado liberal de Direito, que teve algumas de suas bases
teóricas lançadas por Locke e Montesquieu e se caracterizou pela difusão da ideia de direitos
fundamentais, da separação de poderes, bem como, do império das leis, próprias dos movimentos
constitucionalistas que impulsionaram o mundo ocidental a partir da Magna Charta Libertatum, de
1215. No Estado Liberal, há uma divisão bem evidente entre o que é público, ligado ao Estado
(direitos à comunidade estatal: cidadania, segurança jurídica, representação política etc.) e ligado ao
privado (direitos: à vida, à liberdade, à individualidade familiar, à propriedade, ao mercado – trabalho
e emprego de capital etc.). Essa separação dicotômica (público/privado) era assegurada por
intermédio do Estado, que lançando mão do império das leis, garantia a certeza das relações sociais
por meio do exercício estrito da legalidade. Com a definição precisa do espaço privado e do espaço
público, o indivíduo guiado pelo ideal da liberdade busca no espaço público a possibilidade de
materializar as conquistas implementadas no âmbito do Estado que assumiu a feição de não
interventor. Nesse diapasão, sob a égide do paradigma liberal, compete ao Estado, por meio do
direito posto, ‘garantir a certeza nas relações sociais, através da compatibilização dos interesses
privados de cada um com o interesse de todos, mas deixar a felicidade ou a busca da felicidade nas
mãos de cada indivíduo’”. Aqui é possível citar o Referencial da vulnerabilidade, pois o cidadão é
parte vulnerável na relação estabelecida entre ele e o Estado. Mas, ressalte-se, que ao se unir a
outros cidadãos, em uma coletividade, reúne forças para defender o direito de todos: a
vulnerabilidade não impede a força. (MAULAZ, 2008)
administrativo sejam produzidos conforme a circulação oficial do poder político para
que sejam legítimos. Esse poder, para ser legítimo, tem de manter a conexão com o
poder comunicativo
43
– isto é, com os cidadãos, gerado fora da circulação oficial.
O desobediente civil objetiva, exatamente, chamar a atenção para a crise de
legitimidade gerada pela falta de conexão entre as decisões do círculo oficial do
poder (o Estado e seus representantes, a sociedade política em si) e o poder
comunicativo (a sociedade civil no geral).
Desta forma, para ser legítima, a Democracia precisa manter a conexão entre
o centro e a periferia do sistema político, ou seja, entre o sistema político e a esfera
pública, pois se esta conexão não for obtida e respeitada, o sistema político perderá
a eficácia; nas palavras de Habermas, o que se chama de relação entre facticidade
e validade.
Assim, fica claro que a Desobediência Civil reafirma o princípio da soberania
do povo, porque denuncia a ameaça da ruptura da ligação entre a sociedade civil e a
sociedade política, já que mesmo decisões formalmente legais podem ser ilegítimas.
Consequentemente, por intermédio da Desobediência Civil, é possível
aprender que a Constituição e o paradigma de Estado e de Direito que ela estrutura
– o Estado Democrático de Direito – são, assim como a própria sociedade, projetos
inacabados, em constante formação, que necessitam atualização constante de seus
sistemas, como defende Habermas (2003, p. 118) ao afirmar que:
A justificação da Desobediência Civil apoia-se, além disso, numa
compreensão dinâmica da Constituição, que é vista como um projeto
inacabado. Nesta ótica de longo alcance, o Estado Democrático de
Direito não se apresenta como uma configuração pronta, e sim, como
43
Cf. CASAGRANDA (2008): “Habermas simpatizou imensamente com a definição de Hannah Arendt
para poder comunicativo. Aliás, para ela, o poder nada mais é do que a relação que leva à formação
de uma vontade comum e a formação do acordo não resulta da relação baseada na obediência e na
submissão, mas, fundamentalmente, na que resulta de um processo comunicativo. Em Direito e
democracia, Habermas não só manifesta sua simpatia por essa definição de poder comunicativo,
como a assume, deslocando a reflexão sobre a origem do poder para o âmbito do Direito. Para ele,
as definições da filósofa eliminam a oposição entre poder e Direito, que passam a “surgir co-
originariamente da opinião em torno da qual muitos se uniram publicamente” e concorda com Hannah
Arendt, confirmando que “o direito se liga naturalmente a um poder comunicativo capaz de produzir
direito legítimo”. Assim, os argumentos utilizados por ela para justificar a possibilidade de os cidadãos
associados estatuírem direitos legítimos formando um poder comunicativo e assegurando
juridicamente o exercício da autonomia política, são recepcionados pela teoria habermasiana da
política”. Pode-se dizer, ainda, que na realidade, o que está por detrás da política deliberativa são os
argumentos. Ao lado do poder econômico há uma outra espécie de poder: o poder comunicativo. As
minorias devem convencer as maiorias de que elas precisam da tutela de certos direitos. Neste jogo
comunicativo, no qual aparece a linguagem como protagonista, o entendimento e o consenso são
obtidos pela via argumentativa.
um empreendimento arriscado, delicado e, especialmente, falível e
carente de revisão [...]
As mudanças instituídas nas constituições com o passar dos tempos é que
permitiram essa visão da dinamicidade da Constituição. De acordo com Repolês
(2003), após o período pós-revolucionário do século XVIII, os moldes da
Constituição implementada nos Estados Unidos e na França foi inovador em três
pontos importantes.
O primeiro ponto foi que as Constituições modernas apresentaram,
imediatamente, o sentido de estatuto fundamental do sistema jurídico, ou seja, base
à qual tudo o que é Direito, em um determinado ordenamento jurídico, terá de se
adequar.
O segundo ponto foi que, desta forma, a própria Constituição passou a ser a
medida para se estabelecer o que é Direito e o que não é Direito. Ao assumir este
sentido, a Constituição torna possível pensar em um “fundamento do Direito no
próprio universo do Direito, sem ser necessário recorrer a mais nenhum fundamento
externo”.
O terceiro e último ponto versou sobre o caráter dúbio do conceito de
Constituição antes da formação da Constituição moderna, já que nas diversas
tradições este conceito tanto podia expressar um conceito político (constitutio, como
corpo do soberano ou corpo político), quanto um conceito jurídico (constitutio, como
decretos de direito positivo com força de lei).
O conceito moderno de Constituição se confronta com o fato de pretender
construir uma unidade entre o sistema político e o Direito, a fim de evitar total
diferenciação entre eles, de forma que a Constituição tem de abordar e trabalhar
tanto o aspecto político quanto o aspecto jurídico. E é desta forma que a ligação
entre Direito e política é possível por meio da Constituição: ela será a medida pela
qual se pode determinar o Direito.
Deste modo, num Estado Democrático de Direito, todos os membros de uma
comunidade jurídica concreta são detentores dos direitos fundamentais por ela
legitimados e estão aptos a discutir o que é e o que não é constitucional.
Com base nos pressupostos desse fundamento, nenhuma norma (lei ou ato)
é por si só norma jurídica já que, como afirma Häberle (2002, p. 26): “não existe
norma jurídica, senão norma jurídica interpretada”.
Neste ponto, é possível estabelecer ligação com a teoria de Habermas: a
facticidade do Direito é validada por intermédio da ação comunicativa entre ele e o
cidadão, ou melhor, entre a esfera pública e a esfera privada. Assim, pelo consenso
e pela validade, o direito/norma legal torna-se, também, legítimo.
O importante aqui é perceber que a interpretação e a validação da lei e do
Direito à qual Habermas se refere não se limita àquela feita por juízes e/ou por
administradores, no centro da esfera pública política. Tal interpretação cabe também
aos cidadãos, que pertencem a essa mesma esfera pública e têm o direito de
discutir, repensar, reestruturar, atualizar e aperfeiçoar o Estado Democrático de
Direito.
Nesta discussão, os cidadãos deveriam utilizar os Referenciais da Bioética
como ponte de apoio para nortear as ações na dinâmica e eterna construção do
Estado desejado e ao qual se tem direito, ao lutarem, restaurarem, manterem e
defenderem institutos, situações e decisões que perpetuem a justiça e a
Democracia.
É neste sentido que o desobediente civil age em conformidade com a
Constituição Federal de seu Estado (sobre a previsão legal da Desobediência Civil
no ordenamento jurídico brasileiro, ver itens 3.3.7 e ss.)
3.3.4 Desobediência Civil e Anarquia – Distinção
A palavra “anarquia” vem do grego: an = não, e arkhé = autoridade. Assim,
anarquia é a não-autoridade, o não-governo, isto é, a sociedade sem governo, sem
chefes, sem poder, sem Estado, sem juízes, sem patrões, sem padres, sem
autoridade dos homens ou das leis, sem punições e sem privilégios de qualquer
natureza.
De acordo com Leuenroth (In Soibelman, 1998), Malatesta, um anarquista
italiano que produziu uma série de panfletos considerados um dos documentos mais
bem escritos da literatura anarquista, aponta os seguintes objetivos do Anarquismo:
a) abolição da propriedade capitalista ou estatal da terra, matérias-
primas e instrumentos de trabalho; b) abolição do Estado e de todas
as instituições para fazer leis e punir; c) organização da vida social
através de associações livres e federações de produtores e
consumidores; d) garantia de bem-estar para todos; e) guerra aos
preconceitos de qualquer tipo e instrução completa para todos; f)
abolição das fronteiras e confraternização de todos os povos; g)
libertação da família de qualquer pressão física, estatal ou
econômica, de forma que ela resulte apenas do amor.
(SOIBELMAN, 1998, verbete: anarquia)
A Anarquia, no processo histórico da Humanidade, já foi forma desesperada
de luta política e, apesar de muitos reconhecerem heroísmo na atitude dos
manifestantes dos atentados anarquistas, raríssimas vezes essas lutas atingiram
objetivos concretos e duradouros.
Existe dificuldade, ainda, em estipular quais são as ideias construtivas do
Anarquismo, já que não é possível encontrar uma exposição concreta dessas ideias.
Os partidários parecem pensar ser muito mais fácil indicar o que deve ser destruído
do que o que deveria ser construído em seu lugar.
Como processo de luta, na maioria das vezes, o Anarquismo usa a chamada
"ação direta", isto é, meios violentos de luta social. Entretanto, os militantes fazem
questão de deixar claro que só utilizam a força para resistir à opressão ou para
reagir às ilegalidades dos regimes que perseguem a propagação de suas ideias.
Assim, de certa forma, parecem transferir ou justificar a responsabilidade
pelos atos violentos, o que talvez facilite a própria ação, pois ao remeter esta
responsabilidade para pessoas ou um grupo de pessoas alheio aos militantes, não
há do que se arrepender.
De acordo com as ideias do Anarquismo (In Soibelman, 1998), o Estado é o
grande inimigo. Ao contrário do Comunismo, que alega ter como objetivo eliminar a
injustiça da sociedade, os anarquistas pretendem destruir completamente o Estado.
Assim, não participam de lutas político-partidárias, não constituem partidos políticos,
nem se candidatam a cargos parlamentares.
De acordo com o Anarquismo, também conhecido como Socialismo libertário,
a sociedade funcionaria por intermédio de:
[...] um sistema de trocas de produtos entre associações e
federações espontaneamente constituídas, e nas quais o indivíduo
desenvolveria ao máximo todas as suas potencialidades humanas,
num regime de absoluta liberdade individual, sem a coação de leis ou
tiranias governamentais, sem nenhuma obrigação de obediência a
qualquer autoridade leiga ou religiosa, sem qualquer tipo de Estado,
bastando a consciência ética individual e comunitária.
(SOIBELMAN, 1998, verbete: Anarquia.) (grifo nosso)
Os anarquistas não reconhecem a existência do contrato social (no sentido de
Rousseau) entre o cidadão e o Estado onipotente. Ao contrário, para eles o homem
deve voltar a viver nas primitivas condições de vida social na qual ele podia exercer
os direitos naturais inatos a qualquer personalidade (liberdade, segurança etc.), em
toda a sua extensão.
A rápida análise das características e dos objetivos do Anarquismo torna claro
que ele em nada se assemelha à Desobediência Civil. Aliás, muito pelo contrário,
visto que esta reconhece a legitimidade do Estado e do poder por este constituído,
bem como o compromisso contratual existente entre ele, o Estado, e o povo.
Em nenhum momento, o desobediente pretende a extirpação do Estado e do
poder que ele representa: o objetivo é somente a reforma de uma lei, de um
dispositivo legal determinado que, em sua aplicação, mostra-se injusto perante os
direitos do cidadão.
Ademais, as lutas coletivas e justas só avançam se houver Desobediência
Civil, o que é considerado uma prática milenar. E como disse Gandhi (1869-1948):
"a Desobediência Civil nunca é seguida pela anarquia".
Além disso, a Desobediência Civil prega a ação não-violenta, para que a
sociedade não se transforme no verdadeiro caos e, embora alegue ser somente
para atingir os objetivos estabelecidos, o Anarquismo faz uso da força em suas
manifestações.
Sem contar que em atos de Desobediência Civil podem ser identificados
Referenciais da Bioética, mas os atos de Anarquismo, por si só, contradizem esses
Referenciais, pois, além dos outros aspectos referidos, não se preocupam em
resguardar a integridade física de outros cidadãos, defendendo, inclusive, ações
violentas, o que contraria, principalmente, o Referencial da não-maleficência.
3.3.5 Desobediência Civil e Terrorismo
44
Preliminarmente, para se entender a diferença entre Desobediência Civil e
terrorismo, é interessante breve distinção entre Terrorismo anarquista e Terrorismo
político.
44
As informações presentes neste item e em seus subitens, sobre terrorismo, são provenientes de
Soibelman, 1998, Enciclopédia Jurídica, verbetes: terrorismo, terrorismo anarquista e terrorismo
político e Bobbio (Dicionário de Política, 1998).
3.3.5.1 Terrorismo anarquista e Terrorismo político
Por longo período da História, o Terrorismo foi utilizado para identificar
somente os atentados anarquistas, cujo processo de luta era a ação direta por
intermédio de atentados violentos contra pessoas e serviços públicos, mediante as
formas mais violentas (bombas, sabotagem, assassinato de chefes de Estado etc.).
Assim, era chamado de terrorismo anarquista.
No decorrer da História houve, também, o chamado Terrorismo político, cujos
partidários, como argumento da luta política e para atingir seus objetivos, têm
praticado atos que cada vez mais chocam a Humanidade. Atualmente, também se
dá o nome de Terrorismo aos métodos violentos de luta de qualquer grupo
revolucionário.
Os atos terroristas desrespeitam a vida em si e, em consequência, todos os
Referenciais da Bioética, a começar pela não-maleficência, passando pela justiça,
solidariedade, vulnerabilidade e todos os demais.
Sem dúvida, pode-se afirmar que se trata da forma mais covarde e cruel de
fazer reivindicações de qualquer natureza, pois atinge civis inocentes (e, ainda que
fossem militares considerados culpados, seria impossível justificar essas atitudes)
não permite qualquer meio de defesa e inclui pessoas não consultadas em suas
ações.
A impotência da vítima e do próprio Estado moderno é visível contra atos de
Terrorismo. Nas vezes em que a ação destruidora não é tomada de imediato, são
exigidos resgates altíssimos, libertação de presos políticos, distribuição de bens
específicos para comunidades determinadas etc.
Mas seja qual for a exigência, não há como fugir do óbvio: o fator fundamental
por trás de acontecimentos deste tipo é, sem dúvida alguma, o desrespeito ao valor
da vida humana e o desprezo pelos direitos humanos. Todos os valores tradicionais
sustentados pela ética judaico-cristã, pela filosofia grega e pelo Direito são
desprezados e deixados de lado nos atos terroristas.
Portanto, não existe nenhuma identificação possível entre atos de terrorismo
e atos de Desobediência Civil e, menos ainda, aproximação com os Referenciais da
Bioética.
3.3.5.2 Desobediência Civil e Terrorismo – Distinção
Qualquer ato de Terrorismo descarta a mínima identificação com atos de
Desobediência Civil, como dedução da própria análise do conceito de ambos.
O desobediente civil reconhece a legitimidade do seu Estado e do Estado do
outro, em identificação com os Referenciais da autonomia e da privacidade.
Em momento algum seus atos são para obter vantagens ou ameaçar a vida
ou os bens de seus pares ou de qualquer outro ser humano, respeitando a não-
maleficência.
Desobedientes civis atuam e se manifestam por meio, exclusivamente, de
ações não-violentas para atingir o objetivo de reformar uma lei ou uma determinação
legal, visando sempre ao melhor bem-estar social, em consonância com a
beneficência, muito diferente dos atos e dos objetivos terroristas, o que cria distância
imensurável entre eles.
Mais próximos aos atos de Desobediência Civil estão os atos movidos por
objeção de consciência. Embora mais próximos, é necessário deixar clara a
distinção entre eles, o que se torna possível a partir dos itens a seguir.
3.3.6 Desobediência Civil e objeção de consciência
A distinção entre os conceitos de Desobediência Civil e de objeção de
consciência é a mais delicada de se fazer ao se falar em insurreição contra o poder
estabelecido. Delicada, porém imprescindível, como se pode concluir por meio do
exposto a seguir.
3.3.6.1 Surgimento da objeção de consciência
A objeção de consciência com base religiosa surgiu na Idade Média, quando
a Igreja Católica se opôs ao serviço com armas e à prestação de culto ao imperador,
devendo-se destacar, entretanto, que a Igreja defendia esta oposição somente
enquanto o imperador fosse pagão, não mais se manifestando quando o governante
se convertesse e se identificasse como cristão.
O primeiro registro de direito à objeção de consciência religiosa em texto
escrito é encontrado num Decreto de 1793, durante a Revolução Francesa, no qual
estava disposto que devido a fortes motivos religiosos, os anabatistas
45
seriam
dispensados do serviço militar. (DREHER, 2008)
O escritor russo Leon Nicolaievich Tolstoi (1828-1910), que utilizou toda a sua
obra como instrumento de crítica à miséria social
46
e aos horrores militares, foi
grande defensor da objeção de consciência.
Aliás, Tolstoi aplicou as conclusões que chegara a personagem protagonista
do livro A morte de Ivan Ilitch (1886), uma de suas principais obras, à sua própria
vida, no ano de 1891, quando a Rússia enfrentou um verão rigoroso, os campos
russos estavam secos e os lavradores estavam desesperados.
Sem considerar a situação do povo, o governo vetou qualquer iniciativa
particular de ajuda aos flagelados, mas Tolstoi simplesmente ignorou a proibição,
organizou postos de serviços, recolheu fundos e fez campanhas por meio de artigos,
comportando-se como desobediente extremo.
Em ato patente de Desobediência Civil, durante o século XX, a escolha por
sistemas de governo democráticos, o descrédito nas soluções bélicas para resolver
conflitos e a importância da proteção dos direitos fundamentais foram as principais
fontes da aceitação definitiva do direito à objeção de consciência.
Deve-se ressaltar que em casos de objeção de consciência não há conflito
com a vontade de grupos ou da maioria, pois é um caso de desobediência de cunho
pessoal, já que um único cidadão ou um pequeno grupo questiona uma determinada
lei, ordem ou regulamento e não o obedece por considerá-lo incompatível com sua
moral.
Como afirma Costa (1990, p. 66): “A objeção de consciência (...) não entra em
conflito com a vontade da maioria, pois demonstra uma decisão pessoal. Um
cidadão ou um grupo questiona a lei de acordo com a consciência (...) invoca razões
morais para desobedecer”.
45
Anabatistas ou anabaptistas ("re-batizados", do grego ana e baptizo): são cristãos da chamada "ala
radical" da Reforma Protestante. São assim chamados porque os convertidos eram batizados em
idade adulta, desconsiderando o até então batismo obrigatório da Igreja Romana. Assim, re-
batizavam todos os que já tivessem sido batizados em criança, crendo que o verdadeiro batismo só
tem valor quando as pessoas se convertem conscientemente a Cristo. (DREHER, 2008)
46
Destaque-se que a miséria social, ferozmente combatida por Tolstoi, é uma grande questão da
Bioética, pois não é possível conceber ética na vida e na Humanidade se parte dela vive na mais
absoluta miséria social, que condena muitas pessoas à indignidade e à injustiça e se mantém
absolutamente longe de todos os Referenciais da Bioética.
Assim, as justificativas do objetor são razões morais, pois ele se recusa a
cumprir o que não esteja de acordo com seus princípios.
Inicialmente considerado exemplo claro de objeção de consciência – e depois
ato de Desobediência Civil – é o caso dos americanos que se recusaram ao serviço
militar durante a Guerra do Vietnã, mas cabe ressaltar que o Estado americano não
aceitou essa desobediência e aqueles que se recusaram precisaram se esconder e
fugir do país. Assim, pode-se dizer que não foram respeitados os Referenciais
bioéticos da vulnerabilidade e da autonomia, à época ainda não chamados de
Referenciais, mas já possíveis de serem identificados no princípio da autonomia.
Os movimentos pacifistas antiguerra do Vietnã justificaram a desobediência
pela consciência, conforme disposto na Declaração de Consciência contra a Guerra
do Vietnã (1965):
Por este meio nós declaramos nossa conscienciosa recusa de
cooperar com o governo dos Estados Unidos no prosseguimento da
Guerra do Vietnã (...) acreditamos por todos esses fundamentos que
cada homem livre tem um direito legal e um dever moral de exercitar
todo o esforço para terminar esta guerra, evitar conluio com ela e
encorajar os outros a fazerem o mesmo. (COSTA, 1990, p. 66)
Com o passar do tempo e a vontade de modificar a lei em si, não mais
obrigando ninguém a servir no Vietnã, o ato tornou-se e é classificado, hoje, como
ato de Desobediência Civil, embora se reconheça ser bastante difícil distinguir esta
da objeção de consciência, ao se analisar casos concretos.
A recusa gerada pela objeção de consciência pode se apresentar, ainda, de
duas formas. A primeira se trata de desobedecer às leis propriamente ditas; a
segunda, de rejeição às leis que o objetor pretende transformar, ao julgar que, em
última instância, o Sistema vê o cidadão como verdadeiro funcionário do Estado, ou
seja, um obediente cego, em relação análoga à obediência que se exige do
empregado para com seu empregador.
Em geral, os governos suportam melhor o segundo tipo, pois normalmente se
apresenta por meio de ato simbólico de protesto, já que rejeita as letras da Lei e
tenta modificá-la, enquanto no primeiro tipo ocorre efetiva desobediência a um ato
específico, ainda que emanado do Poder instituído.
A objeção de consciência, além de não ir contra a ordem estabelecida,
fundamenta-se em motivos pessoais e não visa a encorajar outros à mesma atitude;
objetores de consciência normalmente são pessoas que seguem princípios
religiosos, morais ou éticos de sua consciência.
Quando se trata, por exemplo, de serviço militar, os princípios dos objetores
são incompatíveis com o serviço militar, com as Forças Armadas, como organização
combatente.
Reconhecendo esse direito à objeção, já existem, na atualidade, alguns
países que aceitam oficialmente certas formas de objeção de consciência, como, por
exemplo, o direito de se recusar ao serviço militar, substituindo-o por outra
obrigação.
Ao se falar nos Referenciais da Bioética em relação a estas atitudes, é
possível afirmar que a recusa ao serviço militar pode ser encarada como ato que
desconsidera, às vezes, a solidariedade, um dos Referenciais enumerados por
Hossne (2006).
Entretanto, pode-se identificar reconhecimento dos Referenciais da
autonomia e da não-maleficência, visto que o objetor, nesses casos, sente que
estaria prejudicando outro ser humano ao se preparar para atos militares.
No primeiro tipo de objeção de consciência – desobedecer à lei propriamente
dita – os objetores podem estar dispostos a aceitar um serviço alternativo.
Entretanto, no segundo tipo – objeção à lei que se pretende transformar, a objeção é
a todo papel dentro das Forças Armadas, resultando na rejeição completa do serviço
militar, chegando, até mesmo, em alguns casos, à objeção a um serviço civil
alternativo. A recusa total tem o objetivo de conseguir a reforma definitiva da
determinação jurídica.
Ao se falar em obedecer a uma lei, há de se considerar que existe a primazia
da consciência, ainda que haja o risco da punição. A mesma situação ocorreria se
uma lei, ainda que justa, ferisse profundamente a consciência de um cidadão.
Tolstoi, na obra O Reino de Deus está em Vós, Capítulo VII – Significado do
serviço militar obrigatório, pronuncia-se contra a prestação do serviço militar e
incentiva o homem a não cumpri-lo, em outro claro exemplo de objeção de
consciência, ratificando, sobretudo, a sua defesa da não-violência, em quaisquer
situações.
Na análise que faz da obra de Tolstoi, Boff (In: Tolstoi, 1994, p. 7 –
Apresentação) afirma que:
O rosto violento do Estado aparece claramente na instituição do
exército. Para Tolstoi, o exército, mais que para a defesa externa,
existe para subjugar o povo em benefício de uma minoria. É o
sustentáculo da tirania. Sua função extrema é matar. Ora, isso é
sempre um crime — coisa proscrita terminantemente no V
mandamento. Para nosso profeta, a vida é um valor absoluto. Não
existem mortes legítimas. Por isso, mandando matar, o exército
transforma o soldado num carrasco. A consequência é que para
Tolstoi o serviço militar deve ser condenado sem remissão. Trata-se
para Tolstoi nada menos do que uma preparação ou exercício para o
assassinato. Mais: a seu ver, o serviço militar obrigatório é o modo
pérfido que tem o Estado de armar o irmão contra o irmão, de pôr o
povo contra o povo, ou seja: é uma forma especiosa de auto-tirania.
Por tudo isso, Tolstoi propõe que se recuse decididamente (...) o
serviço militar. O homem livre e justo há de viver ignorando o
governo.
Neste ponto é possível fazer clara relação entre as ideias e os atos de Tolstoi
e os de Thoreau e sua "desobediência civil".
Na sequência, sobre o pensamento de Tolstoi, defendido nas palavras de Boff
(1994, p. 8 – Apresentação):
Perguntar-se-á, talvez, qual deva ser a atitude daquele cuja religião é
inconciliável com a guerra, mas de quem o governo exige o serviço
militar? Esta pergunta parece essencial, e o serviço militar obrigatório
confere à resposta uma importância especial. Todos ou quase todos
os homens cristãos e todos os homens adultos são chamados às
armas. Como pode então um homem, na qualidade de cristão,
responder a essa exigência? Eis o que responde Dymond: Seu dever
é recusar, com doçura, mas firmemente, o serviço militar. Portanto,
acreditamos que o dever de cada homem que considere a guerra
como inconciliável com sua religião é recusar, suave, mas
firmemente, o serviço militar. Aqueles que assim agirem recordar-se-
ão que cumprem um grande dever. De sua fidelidade à religião
depende (tanto quanto isto pode depender dos homens) o destino da
paz da humanidade. Professem e defendam sua convicção, não
apenas com palavras mas, se necessário, com sofrimento. Se
acreditais que o Cristo tenha condenado a matança, não atendais
aos raciocínios nem às ordens dos homens que vos ordenam nela
tomar parte.
Existe, ainda, outra forma de objeção de consciência além de desobedecer à
lei, ao Estado. Trata-se do caso de objeção a uma solicitação de um cidadão
qualquer que peça a outro para realizar algo que a consciência deste não permite,
ainda que aquele tenha razão perante a lei.
Assim, por exemplo, apesar de a norma do Ministério da Saúde autorizar os
médicos da Rede Pública a fazerem aborto em mulheres que tiverem engravidado
após estupro, médicos brasileiros que atuam nos serviços públicos têm invocado
objeção de consciência ético-religiosa para não realizar o atendimento do aborto,
mesmo que permitido e amparado por lei. (DURANT, 1995, p. 82-3)
Aqui se remete, também, ao art. 28 do Código de Ética Médica, in verbis: “Art.
28 - Recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam
contrários aos ditames de sua consciência.” (CREMESP, 2008)
Neste caso, pode-se falar na autonomia
47
do médico, desde que se deixe
claro que esta autonomia não é ilimitada, pois o médico não é obrigado a realizar ato
contra os ditames de sua consciência, da mesma forma que não é obrigado a
atender a quem não queira, desde que haja outro médico para fazê-lo e que não
haja risco de vida. Se não houver outro, ele terá de atender, em nome de suas
prerrogativas profissionais, da não-maleficência e da beneficência do paciente.
Ainda quanto à objeção de consciência por motivos religiosos, Arendt (2006,
p. 62-3) aponta a dificuldade em sabê-la motivada realmente pela crença religiosa. A
filósofa aponta a dúvida de como saber quem é de fato religiosamente inspirado
para a prática de desobedecer a uma determinação, questionando, ainda, o que
impediria um indivíduo qualquer de, declarando-se “divinamente inspirado”, resolver
praticar atos de desobediência, já que não existe modo real de comprovar e
mensurar que a inspiração seja realmente religiosa.
É claro que não é fácil reconhecer o direito de consciência autêntico e a
utilização da objeção de consciência como instrumento de fuga ou escape da
responsabilidade, da mesma forma que é também óbvio que só será legitimamente
objeção de consciência o ato motivado por recusa de foro íntimo, que atente contra
os valores pessoais.
47
Como bem ilustra o seguinte Parecer: “Consulta nº 68.669/01 – Assunto: Médica plantonista,
funcionária de hospital, se recusar a realizar laqueadura de pacientes devidamente autorizadas pelo
planejamento familiar. – Relator: Conselheiro Henrique Carlos Gonçalves. – Ementa: A laqueadura
tubária não é procedimento que se enquadre em situação de urgência/emergência que obriga o
médico atuar sob pena de risco de vida ou dano irreparável. – O Dr. G.M., Chefe do Setor de
Ginecologia e Obstetrícia de hospital de cidade do interior, solicita parecer do CREMESP quanto à
conduta de uma plantonista, funcionária do hospital, se recusar a realizar laqueadura de pacientes
devidamente autorizadas pelo planejamento familiar. – PARECER: A laqueadura tubária não é
procedimento que se enquadre em situação de urgência/emergência que obriga o médico atuar sob
pena de risco de vida ou dano irreparável. Tal situação se compara ao aborto legal. O artigo 28 do
Código de Ética Médica, contemplado no Capítulo dos Direitos do Médico, responde à indagação. É
direito do médico: Artigo 28 - Recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei,
sejam contrários aos ditames de sua consciência. Este é o nosso parecer, s.m.j. Conselheiro
Henrique Carlos Gonçalves (APROVADO NA 2.703ª REUNIÃO PLENÁRIA, REALIZADA EM
07.12.2001. HOMOLOGADO NA 2.706ª REUNIÃO PLENÁRIA, REALIZADA EM 11.12.2001.) (grifo
nosso). (CREMESP, 2009)
Arendt (2006, p. 62-3) também distingue a Desobediência Civil da objeção de
consciência, institutos muitas vezes colocados no mesmo patamar. Para ela, a
objeção de consciência não é uma Desobediência Civil, pois seu conteúdo é moral,
e não político, e é claro que o objetor de consciência é aquele que transgride a
obediência à lei por questão de foro íntimo, enquanto a Desobediência Civil busca
justiça para uma coletividade.
Várias nações democráticas modernas consagram em seus textos
constitucionais a objeção de consciência, ainda que não de forma absoluta, como se
pode observar, por exemplo, no art. 5º., inciso VIIII, da Constituição da República
Federativa do Brasil, de 1988, que dispõe:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza [...]:
[...]
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa
ou convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se
de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei. (CONSTITUIÇÃO, 2002, p. 12)
Entretanto, existem limites para que um ato possa se declarar movido por
razões de foro íntimo que justifiquem e se classifiquem como objeção de
consciência, como se apresenta a seguir.
3.3.6.2 Limites e reconhecimento da objeção de consciência como direito do
cidadão
Estudioso da objeção de consciência, Correia (1993) não fornece, em sua
obra, definição específica, mas aponta três requisitos que, juntos, transformam um
ato em atitude por objeção de consciência, a saber:
a) desobediência de norma jurídica ou autoridade pública, ou
comportamento oposto ao imposto pela ordem social;
b) ser essa desobediência resultante de convicção do foro íntimo do
objetor (razão religiosa, social, política, moral...);
c) não-utilização da violência (apesar de ser requisito considerado
não-essencial).
Além dos requisitos, também devem ser considerados os limites para
estabelecer quando um ato é realmente movido por objeção de consciência e
quando se torna absurdo classificá-lo dessa forma.
Para esclarecer esta distinção, Correia (1993) apresenta três situações que
apresentam conflitos entre direitos e nas quais é possível ter ideia dos limites da
objeção de consciência, que seriam:
1. conflito entre um direito do objetor e um importante valor social: quando
ocorrer um fato assim, deve-se notar se o objetor, desenvolvendo
atividade seguindo sua consciência, está ameaçando interesses da
comunidade. Caso esteja, deve ser reprimido pelo poder público; mas se a
conduta oposta a determinado fato tiver como base profundos motivos
individuais e não vier a ferir os interesses da comunidade, o poder público
não deve intervir, pois se está diante de caso de objeção de consciência;
2. conflito entre direito do objetor e direito de terceiro: o raciocínio usado para
esse tipo de situação é o mesmo usado no caso anterior. Assim, quando a
atitude do objetor puser em risco bens de terceiros, deve ser considerada
ilegítima. Entretanto, existem situações em que o objetor age ferindo bens
de terceiros, mas nas quais agiria exatamente da mesma forma se o bem
em tela fosse seu. É o caso, por exemplo, do pai que não permite
transfusão de sangue no filho, colocando em risco a vida deste. A solução
para este caso é destituir o pátrio-poder para salvar o filho. Mas é
incabível punir-se o pai, pois este agiria da mesma forma se fosse sua
própria vida a correr risco. Trata-se de decisão com base em reflexão
ética, motivada por crenças religiosas, mas, ainda assim, passível de
identificação com Referenciais da Bioética, como a privacidade, por
exemplo;
3. exercício de obrigação profissional: bens de outrem são limites
intransponíveis à atuação do objetor. Portanto, somente são consideradas
legítimas as situações nas quais, por motivos de foro íntimo, o objetor
venha a deixar de realizar certo trabalho que pode ser substituído, sem
prejuízo algum, por outro.
A objeção de consciência é um direito reconhecido pela ONU, que
transformou o dia 15 de maio no Dia Internacional dos Objetores de Consciência.
Internacionalmente, a objeção de consciência é permitida quando o não-
cumprimento de ordens decorre do foro íntimo e da consciência religiosa ou ética da
pessoa, o que permite identificação com o Referencial bioético da autonomia.
Conforme determinações da ONU, quem faz objeção de consciência deve
oferecer outra alternativa de ação pacífica. Em vários países, por exemplo, desde
meados do século XX, existem serviços militares alternativos, por meio dos quais os
objetores de consciência cumprem sua obrigação como auxiliares em instituições
filantrópicas, como enfermeiros e em outras profissões humanitárias.
Segundo Buzanello (1998):
A questão de consciência, sob o ponto de vista jurídico, significa a
soma de motivos alegados por alguém, a fim de desonerar-se da
obrigação que lhe é imposta, ou evite a responsabilidade do ato
jurídico, que lhe é atribuída. Além da questão ética, o objetor deve
invocar uma questão de convicção filosófica ou política como
imperativo de consciência.
Ainda de acordo com Buzanello (2003, p. 210), é possível identificar a
previsão jurídica da objeção de consciência no ordenamento brasileiro. Segundo ele,
esta previsão:
[...] se dá pela via constitucional, regulamentada em parte por lei
especial e, ainda, por decisão judicial. Assente como direito
fundamental na Constituição de 1988, o instituto jurídico da objeção
de consciência se dá em duas perspectivas: uma como escusa
genérica de consciência (art. 5º., VIII, CF) e outra, enquanto escusa
restritiva ao serviço militar (art. 143, § 1º., CF).
A objeção de consciência não apresenta estrutura política e jurídica única no
mundo. É adotada de forma particular em cada Estado, sendo que uns lhe dão
destaque constitucional, outros dispõem sobre o instituto apenas em leis ordinárias,
e os últimos, somente por decisão judicial.
Além do Brasil, alguns outros países reconhecem a objeção de consciência
em seu ordenamento jurídico: Estados Unidos da América, França, Itália, Espanha,
Portugal e Alemanha, entre outros.
3.3.6.3 Desobediência Civil e objeção de consciência – Distinção
Com base na doutrina, na opinião de alguns filósofos e estudiosos e nas
conclusões que a análise do material pesquisado permitiu obter, pode-se afirmar que
a objeção de consciência não é ato de Desobediência Civil, pois seu conteúdo é
moral, de foro íntimo, e não político, social.
Neste estudo, a objeção de consciência autêntica será considerada, como
bem especificou Costa (1990, p. 66), “a forma mais simpática de Desobediência
Civil” e permite análise comparativa, apresentada no quadro sinótico a seguir.
QUADRO 3 – OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL
Objeção de consciência Desobediência Civil
Forma pacífica de protesto. Forma pacífica de protesto.
Base: razões morais ou éticas. Base: injustiça da norma.
Não tem caráter público. Tem caráter público.
Não pretende que a lei seja alterada, mas que
não seja aplicada no caso particular do objetor.
Pretende que a lei seja alterada e não seja
aplicada a nenhum cidadão.
Não pretende persuadir a maioria de que é
necessário alterar o quadro legal do qual se
discorda, por isso, na maioria das vezes, não
há protesto público.
Pretende persuadir a maioria de que é
necessário alterar o quadro legal do qual se
discorda e, por isso, sua forma de protesto é
pública.
Fonte: desenvolvimento da autora (ago. 2008).
Até esse ponto, tratou-se do conceito e do histórico do Direito de Resistência
e da Desobediência Civil, esta espécie daquele, que é gênero, além de iniciar
comentários sobre a relação destes institutos com os vários Referenciais da Bioética
(Hossne 2006, p. 185-96).
A seguir, apresentam-se algumas informações sobre a Desobediência Civil,
antecedendo noções gerais sobre Bioética e os seus Referenciais e, a partir de
então, a análise se volta para o que disseram, no decorrer da História da
Humanidade, alguns dos filósofos, estudiosos e líderes mais importantes que o
mundo conheceu, bem como para exemplos de personagens cujas atitudes foram,
em muitos momentos, atos de Desobediência Civil, cujos exemplos e importantes
contribuições para a formação do cidadão ético são inegáveis.
3.3.7 DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO DIREITO
Atitudes de Desobediência Civil são constantes desde o início dos tempos, ao
redor de todo o mundo. Tanto o são que é possível encontrar este instituto
pertencente ao Direito de Resistência em vários diplomas legais positivados, em
vários países, como Portugal e Alemanha, por exemplo.
O estudo do ordenamento jurídico de alguns Estados democráticos permite
concluir ser totalmente possível defender um direito fundamental à Desobediência
Civil – ou a Desobediência Civil como direito fundamental, com base no próprio
ordenamento jurídico de cada Estado soberano – embora neste momento o estudo
fique restrito somente a breves considerações sobre a presença deste no
ordenamento jurídico brasileiro.
Ainda assim, antes de apresentar e tecer comentários sobre a Desobediência
Civil no ordenamento jurídico brasileiro, é interessante apresentar alguns aspectos
jurídicos gerais deste instituto.
3.3.7.1 Aspectos jurídicos da Desobediência Civil
A Desobediência Civil, de acordo com alguns teóricos juristas brasileiros e
estrangeiros, como uma das formas de expressão do Direito de Resistência, é um
tipo de Direito de Exceção que, embora tenha cunho jurídico, não necessita de leis
para garanti-lo, já que se trata de uma forma de garantir outros direitos básicos.
Assim, muitos autores classificam a Desobediência Civil no campo dos novos
direitos, incluída nos direitos fundamentais, como Bobbio (1998, verbete:
desobediência civil) e Tavares (2003, p. 59-60), por exemplo.
Segundo Repolês (2003, p. 133):
A Desobediência Civil nos ensina que a Constituição e o paradigma
de Estado e de Direito que ela estrutura – o Estado Democrático de
Direito – são projetos inacabados e em constante construção, que
necessitam a todo momento ter o seu sistema de direitos atualizado,
isto é, interpretá-los, institucionalizá-los, e esgotar seu conteúdo cada
vez mais adequadamente.
E, ainda, nas palavras do próprio Habermas (2003, v. 1, p. 118):
A justificação da Desobediência Civil apoia-se, além disso, numa
compreensão dinâmica da Constituição, que é vista como um projeto
inacabado. Nesta ótica de longo alcance, o Estado democrático de
direito não se apresenta como uma configuração pronta, e sim, como
um empreendimento arriscado, delicado e, especialmente, falível e
carente de revisão.
Em consonância com as observações de Habermas, é exatamente no direito
constitucional que se pode encontrar a possibilidade da Desobediência Civil no
ordenamento jurídico brasileiro, como brevemente se comenta a seguir.
3.3.7.2 Desobediência Civil no ordenamento jurídico brasileiro – A norma do
§2.º do art. 5.º da Constituição Federal de 1988
Ainda que possa parecer que atos de Desobediência Civil estejam muito
distantes da realidade brasileira, tanto no campo jurídico – no qual geralmente é
considerada ilegal pelos operadores do Direito – quanto no campo político, não se
pode negar sua relevância na atualidade, sem contar a presença desse instituto em
alguns atos isolados e em alguns movimentos sociais, como se perceberá.
Quando se afirma que no campo jurídico existe uma tendência a considerar a
Desobediência Civil um ato ilegal, remete-se à ideia simplista de que qualquer ato
que desobedeça a qualquer lei é, por força de sua natureza, ilegal. Os que assim se
posicionam, analisam as letras da lei somente sob o aspecto legal.
Entretanto, como já discutido no corpo deste estudo, a legitimidade dos atos
do Poder instituído não decorrem automaticamente da legalidade desses mesmos
atos, o que permite e justifica a Desobediência Civil, principalmente, como aqui se
defende, se os atos vierem entrelaçados aos Referenciais da Bioética. Além disso,
estudos realizados por renomados autores têm demonstrado que além de relevante,
é possível efetivar a Desobediência Civil na realidade contemporânea.
Aqueles que são vítimas de sérias injustiças não estão obrigados a se
submeterem a elas. Ademais, a Desobediência Civil é um dos mecanismos
estabilizadores dos sistemas constitucionais, ainda que, por definição absoluta,
possa ser considerada um mecanismo ilegal, embora situações específicas mostrem
que não é. Mas, mesmo que considerada ilegal por muitos, é altamente ética e não
há como se negar isso.
Se o aparelho do Estado tentar impor e conservar instituições injustas, o que
nada mais é do que uma forma ilegítima do emprego da força, estará motivado o
direito de resistir.
Em análise prematura e superficial, qualquer forma de desobedecer à lei é
considerada ilegal. Assim, muitas vezes, a Desobediência Civil tem sido considerada
ato ilícito, ainda que vários teóricos defendam sua inclusão expressa nos textos
constitucionais, entre eles John Rawls (1921-2002) e Hannah Arendt (1906-1965), o
primeiro, um dos autores mais citados e referenciados pelos bioeticistas.
A rigor, talvez a positivação do instituto da Desobediência Civil nada alterasse
a prática, já que, em última instância, a decisão final sempre ficaria a cargo do
Estado. Entretanto, um dispositivo expresso seria mais facilmente identificável e
justificável no mundo material e formal da busca da tutela jurisdicional para casos
concretos.
O ordenamento jurídico brasileiro, no §2º do art. 5º da Constituição Federal de
1988, ao estabelecer que as garantias positivadas não excluem outras, decorrentes
tanto do regime, como dos princípios por ela adotados, e ainda de Tratados
Internacionais, permite aí incluir a constitucionalidade dos atos de Desobediência
Civil:
Art. 5º. Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte. (CONSTITUIÇÃO, 2002)
Não somente quando são maioria (Nota da autora)
Garcia (2004, p. 226) defende que a norma deste parágrafo trata-se de
“norma de dúplice classificação ou categoria”. A primeira classificação considera a
norma como de eficácia plena
48
, que deriva do regime do Estado e dos princípios
que o norteiam e é identificável e localizável; a segunda, classifica a norma como
programática
49
, decorrente dos Tratados Internacionais.
48
Normas de eficácia plena são aquelas que, com a entrada em vigor da Constituição, apresentam
eficácia plena e integral, independentemente de legislação ulterior. São normas que bastam a si
mesmas e não precisam do legislador infraconstitucional para alcançarem sua plena eficácia.
49
Cf. SILVA (1999): “normas programáticas são normas constitucionais nas quais o constituinte
limitou-se a traçar os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos,
jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização
dos fins sociais do Estado. Constituem verdadeiros programas de Estado (projetos políticos) a serem
cumpridos e operacionalizados pela legislação hierarquicamente inferior e pelos órgãos públicos.
O regime de que fala a norma diz respeito ao art. 1º da Carta Magna, ou seja,
que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, e constitui-se em Estado Democrático de Direito,
que possui, como tal, em seus fundamentos, entre outros, o livre exercício da
cidadania (Art. 1º., II). Assim:
[...] entre a identidade democrática e os métodos democráticos de
convivência situa-se, como ponto de equilíbrio, a qualidade de
cidadão e a condição deste na sociedade, equivale dizer, o grau de
participação no processo da tomada de decisão
50
, ou no governo.
Mais especificadamente, na elaboração da lei [...] (GARCIA, p. 226)
Portanto, se a representação política (indireta, pelas letras da lei do art. 1º da
Constituição Federal) mostrar-se insuficiente para a realização da cidadania, em si
mesma um dos fundamentos do Estado democrático, não é possível dizer que a
Desobediência Civil, enquanto parte do instrumental da cidadania, não se insere
entre o rol dos direitos políticos
51
; ao contrário, insere-se sim, pois se torna
expediente de validação desta cidadania.
Há, ainda, sinais do Direito de Resistência no art. 5º, inciso XVI, ao garantir o
direito de reunião pacífica, e no art. 5º, inciso XVII, ao estabelecer a garantia da
associação para fins lícitos:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XVI – todos podem reunir-se, pacificamente, sem armas, em locais
abertos ao público, independentemente de autorização, desde que
não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo
local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente
52
;
50
Cf. DALLARI (1994, p. 67): “[...] utilizando esses direitos, cada indivíduo pode ampliar
consideravelmente sua possibilidade de participação política, inclusive para influir no sentido de
ampliar a participação de todos”.
51
Direitos políticos são os direitos de eleitor. Direitos de eleger e ser eleito, e também os que dão
acesso a cargos públicos. Muitos os identificam com os direitos cívicos, que são os direitos que dizem
respeito ao cidadão como membro da vida pública do Estado. Não se confundem com direitos civis,
que se referem unicamente à vida privada do cidadão: liberdade, propriedade, vida e segurança. Os
direitos cívicos compreendem o direito de: exercer cargos públicos, servir como jurado, servir nas
mesas eleitorais, prestar serviço militar. O fato de se falar em direitos civis em contraposição aos
direitos políticos não os identifica com os direitos cívicos. Há até constitucionalistas que fazem esta
confusão. (SOIBELMAN, 1998, verbete: direitos políticos e direitos cívicos)
52
Autoridade competente é a que tem competência para praticar um ato ou tomar conhecimento de
um fato, com poder de decisão.
XVII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas
independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em
seu funcionamento.
Por sua vez, também Diniz (1989, p. 87 e ss.) reconhece "uma garantia
implícita de resistência à ilegalidade na Constituição Federal, no art. 5º, II, pois
‘ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei’".
Ademais, o direito de reunião vai ao encontro do princípio de que a união de
vários cidadãos pode obter mais do que a luta de um cidadão isolado, de acordo,
também, com a motivação coletiva que deve permear os atos de Desobediência
Civil, em relação direta com os Referenciais bioéticos da solidariedade, da
beneficência e da responsabilidade.
Neste diapasão, assim se expressa Dallari (1994, p. 46-7):
Todo grupo organizado tem a possibilidade de exercer alguma
influência política. Os grupos mais numerosos e mais bem
organizados são, como é óbvio, capazes de exercer maior influência,
podendo mesmo adquirir um peso considerável nas decisões dos
partidos políticos e do próprio governo, em seus diversos níveis. Isso
pode ocorrer no plano municipal (...) ou pode ser feito em nível
federal, para impedir um novo achatamento salarial ou para
reivindicar a revogação de uma lei injusta, como a Lei de
Segurança Nacional ou a Lei de Greve. (grifo nosso)
Muitos tentam estabelecer identificação entre a Desobediência Civil e outros
institutos. Às vezes, simplesmente a confundem com outros atos, mas ela se
constitui atitude específica e singular, como fica claro pelo exposto nos itens 3.3.4 e
ss., nos quais se desmistifica paridade entre atos de desobedientes civis e outros,
nos quais estão presentes a violência ou somente o benefício individual.
3.4 DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA FILOSOFIA E NA HISTÓRIA DA
HUMANIDADE
Ainda que o nome do instituto – Desobediência Civil – só tenha se fixado a
partir do ensaio homônimo escrito por David Henry Thoreau, em 1849, é possível
encontrar atos de Desobediência Civil nas ideias defendidas por alguns filósofos,
seja na apresentação direta, seja por meio de personagens literárias, bem como em
atitudes de personagens reais, como se observa pelos exemplos comentados a
seguir.
3.4.1 Desobediência Civil e Filosofia: de Sófocles a Habermas
3. 4.1.1 Desobediência Civil em Sófocles (496 a.C.- 406 a.C.)
“Só o tempo pode revelar-nos um homem bom; o perverso pode ser
conhecido apenas em um dia!”
Sófocles. Édipo Rei. (aprox. 430 a.C.)
Sófocles apresenta, por meio de sua personagem Antígone, a protagonista da
peça homônima, um dos primeiros exemplos de Resistência registrado na literatura.
A peça é rica em aspectos humanitários, de Direito, de Justiça e políticos, mas neste
momento cabe ressaltar exatamente a defesa do justo, mesmo que em detrimento
de uma ordem legal do Poder constituído.
A humanidade dos personagens, seus conflitos e decisões fazem de Antígone
uma tragédia atemporal, encenada até os dias de hoje. É exatamente a relação de
humanidade que a peça estabelece com o interlocutor e a luta por justiça, sem se
importar em enfrentar o representante do Poder constituído, o que a torna atemporal
e tão relevante para este estudo.
3. 4.1.1.1 Antígone: da ficção para a realidade – um dos primeiros exemplos e a
mola propulsora da insurreição contra o Poder constituído
O caráter de recusa em obedecer a uma lei injusta aparece, na literatura, em
Antígone, de Sófocles. Ela é a primeira mulher sobre a qual foram encontrados
registros na Literatura que enfrentou um governante em nome da defesa do justo,
sem considerar o poder do soberano que impunha a injustiça.
A partir desta tragédia grega, começa a ser possível identificar atitudes de
Desobediência Civil na trajetória de várias outras personagens da literatura e da
civilização humana.
3.4.1.1.2 Resumo do enredo
Breve relato da história da obra de Sófocles permitirá melhor compreensão do
universo de Antígone e de sua relação com a Desobediência Civil.
Em Tebas, na disputa pelo trono, os irmãos Polinices e Etéocles lutaram entre
si até a morte de ambos. Juntamente com Antígone e Ismênia, os dois eram filhos
de Jocasta e Édipo. (ver Nota de Rodapé 33)
Creonte, que se tornou Rei por ser o próximo na linha de sucessão,
proclamou um édito determinando que o corpo de Polinices deveria permanecer
insepulto, pois ele era considerado traidor de Tebas, enquanto o corpo de seu irmão,
Etéocles, deveria ser enterrado com todas as honras de herói de guerra. Além disso,
a lei também dispunha que a sanção para quem a descumprisse seria a morte:
Creonte: E movido pelo mesmo espírito, quis que fosse tornada
pública a minha decisão sobre os filhos de Édipo: Etéocles, que em
favor de Tebas lutou e morreu com inigualável bravura, receba, por
minha ordem expressa, o devido sepultamento; e que se lhe
consagrem todas as oferendas que se depositam sob a terra, para os
mortos mais ilustres! Quanto a seu irmão, – quero dizer, Polinices –
que retornou do exílio com o intuito de submeter a ferro e fogo a sua
própria pátria, de destruir os lares de sua família, querendo derramar
o sangue dos seus e reduzi-los à escravidão, determino que fica a
todos terminantemente proibido honrá-lo com um túmulo ou lamentar
publicamente sua morte; que seu cadáver fique insepulto, repasto de
abutres e cães, e se transforme em objeto de horror.
(...)
Creonte: Aquele que infringir minhas ordens não terá comiseração.
(SÓFOCLES, 2007, p. 89)
Antígone, inconformada com a possibilidade de deixar o irmão insepulto,
desobedeceu à lei e tentou dar a ele celebração fúnebre digna, de acordo com os
ritos tradicionais da época.
Apesar de chamada para ajudá-la, a irmã, Ismênia, atemorizou-se e se
recusou. Arrependeu-se mais tarde, quando Antígone foi presa, mas esta se negou
a aceitar que aquela cumprisse a mesma sentença, pois a julgou não-merecedora, já
que não quis participar do ato de respeito ao irmão morto.
Sozinha e inconformada, na calada da noite, evitando os sentinelas que
vigiavam o cadáver do irmão, Antígone conseguiu prestar-lhe as homenagens,
fazendo as libações e jogando um pouco de terra sobre os seus restos.
Antígone infringiu o édito de Creonte por entender que havia uma lei
universal, acima do poder de qualquer soberano, e procedeu aos ritos sagrados no
corpo do irmão, por duas vezes, já que quando cobriu o corpo pela primeira vez não
foi percebida, mas assim que os guardas de Creonte viram o cadáver coberto,
voltaram a expô-lo e se colocaram em observação para saber quem havia
descumprido a ordem do Rei.
Por desrespeitar a lei, ela é presa, levada à presença de Creonte, a quem
enfrenta em verdadeiro interrogatório, sem negar seus atos, e conduzida a uma
caverna, na qual é deixada para morrer, em assustador túmulo em vida. Por não
suportar mais, enforcou-se e assim foi encontrada por seu noivo, Hêmon, o filho de
Creonte, que havia feito questão, ele próprio, de levar Antígone ao cárcere.
Ela, que era sobrinha de Creonte e filha de Édipo, já carregava em si a
premonição da tragédia, que se concretiza nesta peça, já que Hêmon, a quem
Antígone estava prometida em casamento, não conseguiu convencer o pai a libertá-
la e se matou.
Destaque-se aqui que o Rei já estava a ponto de revogar o próprio édito,
abrindo mão da lei, para poder libertar Antígone, o que ressalta o caráter efêmero e
tênue das relações humanas, tão dependentes de detalhes e de segundos nas
tomadas de decisão. E, não bastasse isso, Eurídice, mãe de Hêmon, esposa de
Creonte e tia de Antígone, tirou a própria vida ao descobrir que o filho estava morto.
As alegações de Antígone e as consequências de seus atos serão
conhecidas a seguir.
3.4.1.1.3 Embate entre a lei divina (Thémis) e a lei dos homens (Diké)
“Todas as leis humanas se alimentam da lei divina.”
Heráclito (aproxim. 540 a.C.-470 a.C.)
“Podemos enfrentar as leis humanas, mas não podemos resistir às
leis naturais.”
Julio Verne (1828-1905)
Em Antígone, Sófocles expõe o embate entre a lei divina e a lei dos homens.
Entretanto, é necessário levar em consideração que esta diferença tinha
características peculiares à época do dramaturgo grego, que não podem se
ignoradas.
Em grego, trata-se de falar sobre o embate entre Thémis (justiça/lei dos
deuses) e Diké (justiça/lei dos homens) quando estas duas concepções de justiça se
apresentarem em oposição.
É este o drama vivido com intensidade e paixão por Antígone, “a tragicamente
marcada filha de Édipo, neta do amaldiçoado transgressor Laio, filho de Lábdaco”, e
na tragédia desta corajosa mulher, é possível identificar o dilema e o embate entre
Thémis e Diké, isto é, o confronto entre a lei dos deuses e a lei dos homens.
Creonte, como referido no item anterior, personifica a Lei do Estado e esta era
clara: um desertor (no caso, Polinices) jamais poderia ser sepultado. Assim, de
acordo com a ordem de Creonte: “que seu cadáver fique insepulto, repasto de
abutres e cães, e se transforme em objeto de horror. Eis o sentido de minha decisão:
criminoso algum jamais obterá de mim qualquer honraria’’. (SÓFOCLES, 2007, p.
89)
Mas para Zeus, Deus maior na Mitologia grega, muito mais importante do que
a morte em si, já que esta é certa, era a honra da sepultura, o descanso no outro
mundo, a certeza de poder ter um funeral condigno, pagar a moeda ao barqueiro
Caronte, fazer a travessia pelo Lethe, o rio do esquecimento e chegar ao Hades
onde Plutão e Perséfone imperavam, no Reino dos Mortos. (FÉLIX, 2008)
Entretanto, pelos sagrados laços da consanguinidade, Antígone é quem
deveria enterrar o irmão Polinices e essa obrigação moral e legal, advinha da
observação sobre a Lei de Zeus: “... não existem a partir de ontem, ou de hoje, são
eternas, sim! E ninguém pode dizer desde quando vigoram”. (SÓFOCLES, 2007, p.
96)
A polêmica que se instaura a partir do embate entre a lei de Zeus e o Édito de
Creonte se tornará assunto de debate para muitos filósofos e juristas, através dos
tempos. Principalmente por se tratar de questões fundamentais para o espírito
humano, com destaque para o limite da autoridade do Estado sobre a consciência
individual, e a do conflito entre as leis da consciência, não-escritas, e o direito
positivo.
O questionamento de Félix (2008) bem expressa esse dilema:
O que acontece quando se opta por seguir suas próprias convicções
interiores e princípios ético-morais ao invés de simplesmente aderir,
sujeitando-se ao cumprimento das normas e dos deveres impostos
pela lei escrita, quer seja a do Rei Creonte, quer seja a do Estado, da
sociedade?
Ainda segundo Félix (2008):
Ainda que proferidos na longínqua aurora dos tempos, mesmo nos
dias de hoje ouvimos o altivo e desafiador brado da heroína e este
alicerça nossas convicções interiores contra as ordens de um poder
arbitrário, mesmo que revestido de todas as formas de legalidade. É
no âmago de nossas almas que ressoa a voz de Antígone: “Minhas
Leis não são suas Leis. As minhas são, foram e sempre serão”.
(grifo original)
Ao se falar em determinação e punição pelas leis divinas, pode-se citar,
ainda, o exemplo de Ajax, descrito na Ilíada, de Homero (1950), comentado na N.R.
53 deste capítulo.
3.4.1.1.4 Antígone e a Desobediência Civil
Antígone, com sua atitude, enfrenta Creonte contra uma lei injusta, remetendo
ao conceito moderno de Ihering (2003), que defende que se “o Direito entrar em
conflito com a Justiça, deve-se sempre optar pela Justiça, pois o Direito existe para
promover a Justiça, e não o contrário”.
Assim, a protagonista da tragédia de Sófocles transforma-se na primeira
mulher, que se pode identificar na literatura, a tomar atitudes de exercício do Direito
de Resistência.
As atitudes de Antígone, se analisadas por certo ângulo, constituem claros
atos de Desobediência Civil e, se analisadas por outro prisma, aproximam-se mais
da Objeção de Consciência.
Por se tratar de discussão delicada, repleta de meandros e nuances, torna-se
quase impossível determinar categoricamente serem atos de uma ou outra. Assim,
opta-se por deixar em aberto a espécie da desobediência praticada por Antígone (se
Desobediência Civil ou Objeção de Consciência), ressaltando-se o gênero, isto é, o
Direito de Resistência.
Destaca-se, entretanto, que a atitude da protagonista de Sófocles foi tanto
ética, porque religiosa e com bases puras, quanto política, porque voltada para
ações concretas.
Cabe aqui trazer à baila ideia defendida por John Rawls (1921-2002). Para
ele, a recusa por motivo de consciência é bem mais restrita do que a Desobediência
Civil, pois se opõe à lei, a ato específico; não tenta atingir a concepção de justiça da
maioria; não apresenta o desejo de obter mudança nas normas e não se baseia,
necessariamente, em princípios políticos. Entretanto, o próprio Rawls afirma ser
bastante difícil distinguir uma da outra ao se analisar os casos concretos.
Na tragédia grega, Creonte editou uma lei que perpetuava o reconhecimento
de seu poder, já que Polinices foi acusado de traidor de Tebas, mas Antígone
argumentou haver uma lei mais antiga, que defendia valores universais, uma lei
divina que ninguém, nem mesmo um soberano, podia desobedecer e contrariar:
Creonte: Ó tu, de olhar amarrado ao chão, confessas ou nega ter
feito o que ele afirma?
Antígone: Confesso sim! Não nego coisa alguma!
Creonte: [...] Fala tu agora, mas fala sem demora! Sabias que eu
havia proibido, por uma proclamação, o que fizeste?
Antígone: Sim, eu sabia! Nem o poderia ignorar, pois era coisa
pública!
Creonte: E, contudo, tiveste a ousadia de desobedecer a essa
determinação?
Antígone: Sim, pois não foi decisão de Zeus; e a Justiça (...) jamais
estabeleceu tal decreto entre os humanos; tampouco acredito que
tua proclamação tenha legitimidade para conferir a um mortal o poder
de infringir as leis divinas (...) decretos como o que proclamaste, eu,
que não temo o poder de homem algum, posso violar sem merecer a
punição dos deuses. (SÓFOCLES, 2007, p. 96)
Sófocles destaca a luta pela Justiça por meio de uma personagem feminina, o
que não se pode deixar de salientar, já que ainda hoje a luta pela igualdade entre os
dois gêneros da raça humana é muito presente.
Há 2500 anos, as personagens já mostravam consciência sobre a forma
diferenciada como eram – e ainda são – considerados os homens e as mulheres e
seu respectivo papel na sociedade. A fala de Ismênia é reveladora:
Ismênia: Pobres de nós (...) Agora só restamos nós (...) pensa no fim
ainda mais terrível que nos espera se contrariarmos o decreto e
afrontarmos o poder do nosso rei! Convém também lembrar que
somos mulheres e não temos como lutar contra homens; além
disso, não temos poder algum e estamos submetidas aos poderosos.
(SÓFOCLES, 2007, p. 85) (grifo nosso)
Apesar de não ser possível saber com exatidão qual leitura o público da
época pode ter feito deste trecho da tragédia, não há como negar a importância do
papel feminino em torno do qual transita todo o contexto da peça.
Rápida análise também permite identificar o papel de Creonte, que representa
o antigo Poder estabelecido, e o de seu filho, Hêmon, que simboliza o novo, a força.
Assim, identifica-se a contraposição: de um lado, o poder onipotente de um só
homem, e do outro, o interesse da coletividade.
A tragédia poderia ter sido evitada, mas Creonte, já decidido a revogar o
Édito, não abriu mão da prepotência de seu cargo e declarou que, já que havia sido
ele a prender Antígone, somente ele poderia libertá-la.
Em passagem anterior, o Rei já havia deixado claro que somente ele, e não o
povo, decidia sobre as leis, e que a cidade era dele, e não do povo:
Creonte: Propões que deva honrar quem desobedeceu à lei?
Hêmon: Eu jamais proporia que se honrasse um criminoso.
Creonte: E por acaso não foi um crime o que ela fez?
Hêmon: Não é assim que se expressa o pensamento do nosso povo.
Creonte: E caberá ao povo impor-me as leis que devo promulgar?
(...)
Creonte: Estaria eu governando esta cidade em nome de outrem?
(...)
Creonte: E a cidade não pertence então a seu governante?
Hêmon: Só numa terra inteiramente deserta terias o direito de
governar sozinho. (grifos nossos) (SÓFOCLES, 2007, p. 105)
Contudo, mesmo como déspota e tirano, Creonte cedeu quando aceitou
revogar a lei, mas continuou ocupando o papel central do processo decisório, e não
cedeu a primazia do comando. Desta forma, a tragédia se concretizou, pois para ele
era mais importante manter a máxima de “eu dei, eu tiro” do que evitar a morte de
Antígone:
Creonte: Irei imediatamente! Vinde rápido, ó servos! Com vossas
cavadeiras! Correi para aquele outeiro, que daqui se avista! Eu
próprio, uma vez que mudei de resolução, eu, que ordenei a prisão
de Antígone, irei libertá-la! Certamente, agora creio que o melhor é
acatar as leis eternas que regem o mundo! (grifos nossos)
(SÓFOCLES, 2007, p. 116)
Embora, como já referido, exista discussão sobre ser a atitude de Antígone
exemplo de Desobediência Civil ou de Objeção de Consciência, o que é
praticamente impossível de se determinar categoricamente, é evidente que Antígone
não descumpriu a Lei somente por ter razões de foro íntimo, embora estas também
estivessem presentes em suas ações.
Além do amor que dedicava ao irmão, moveu-a o fato de julgar e defender
que existia uma Lei a qual todos deviam se submeter, inclusive o chefe do Poder
estabelecido, que à época era representado por Creonte.
Esta lei, a lei divina, estava muito acima de qualquer decisão de qualquer
homem. Antígone deixa claro que a desobediência se deu por ter Creonte
promulgado um édito que desrespeitava os preceitos religiosos e morais. Esses
preceitos afirmavam que os vivos tinham dever para com os mortos e a eles
deveriam prestar as honras fúnebres que todos merecem, não permitindo a violação
de seu corpo, eram superiores a qualquer édito estatal e justificavam seu
descumprimento, pois ficava inegavelmente caracterizada a sua injustiça.
53
Em Antígone, podem ser identificados quase todos os Referenciais da
Bioética citados anteriormente: a justiça, defendida pela protagonista com base no
Direito Natural; a dignidade e o respeito à pessoa humana, tanto dela e da
sociedade submissa ao édito de Creonte, quanto de Polinices, que tinha o direito de
ter seu corpo tratado e enterrado com a dignidade que se esperava e se espera seja
destinada aos mortos; a serenidade e sabedoria, presentes nos argumentos de
Antígone ao utilizar principalmente o Direito Natural para fazer notar o real papel de
Creonte na sociedade da época, ainda que ele não se visse assim, e o quanto a
atitude dela era correta e justa.
Também se pode identificar o Referencial da autonomia, pois embora não
pudesse decidir sobre a morte de seu irmão – e aqui se encontra a vulnerabilidade
de Antígone, uma simples mulher, perante Creonte, o representante do Poder
Constituído – ela usou seu poder de decisão, enfrentou o Rei e o desobedeceu e,
53
Interessante ressaltar aqui que a própria Literatura encarregou-se de deixar claro que os deuses
também eram bastante severos ao punir o descumprimento de suas leis. À época de Antígone, a
punição dos deuses para quem se desequilibrasse era a loucura. Exemplo disso está registrado na
obra Ilíada, no episódio em que Ajax perde a armadura de Ulisses para Odisseu. Ajax era filho de
Telamon (rei da Salamina), era praticamente imbatível e graças a ele os gregos conquistaram várias
vitórias contra os troianos; também era conhecido como Ajax de Salamina. Homero descreveu Ajax
como uma muralha, muito mais alto do que os outros homens, com um escudo na forma de torre e
uma lança comprida. Utilizava pedras colossais para combater seus oponentes. Quando Aquiles se
retirou da luta, Ajax enfrentou Heitor em um único combate. Os dois heróis lutaram o dia inteiro e só
Heitor sofreu pequenos ferimentos. Após a morte de Aquiles, Ajax disputou com Odisseu a armadura
do herói morto. Odisseu provou ser melhor orador e ganhou o prêmio. Ajax não soube lidar com a
derrota e ameaçou matar todos, sendo punido pelos Deuses com a loucura. Num acesso, degolou os
animais dos rebanhos dos gregos, certo de que matava os adversários. Ao perceber o erro, suicidou-
se. A loucura de Ajax inspirou Sófocles a escrever a a tragédia Ajax Furioso, em 450. a.C. (HOMERO,
1950)
além disso, embora discordasse, respeitou a decisão da irmã de não ajudá-la com
os ritos fúnebres do irmão.
É possível, ainda, fazer uma relação entre os atos de Antígone e os
Referenciais da solidariedade e da beneficência. O primeiro, pois a movia, além do
amor pelo irmão, a solidariedade pela situação na qual se encontrava seu corpo,
desrespeitando todas as determinações divinas; e o segundo por ter Antígone a
certeza de estar fazendo o bem ao respeitar as leis divinas sobre os ritos e sobre o
respeito ao cadáver – atitude extremamente bioética – não o deixando exposto à
fome dos animais e as intempéries. Além da responsabilidade da protagonista para
com suas crenças, seu irmão, o poder divino e a própria comunidade de Tebas, não
se omitindo e assumindo papel determinante na situação imposta a si e à sua
família.
Portanto, Antígone se trata tanto de exemplo de exercício do Direito de
Resistência – ainda que não se determine se Desobediência Civil ou objeção de
consciência, como se aproxima da aplicação dos Referenciais da Bioética.
3.4.1.2 Desobediência Civil em Tomás de Aquino (1225-1264)
“Há de se notar que um indivíduo, vivendo em sociedade, constitui de
certo modo uma parte ou um membro desta sociedade. Por isso,
aquele que faz algo para o bem ou para o mal de um de seus
membros atinge, com isso, a toda a sociedade.”
Tomás de Aquino. Suma Teológica. (1265 a 1273)
“O primeiro preceito da lei é: deve-se fazer o bem e evitar o mal. Este
é o fundamento de todos os outros preceitos da lei natural.”
Tomás de Aquino. Suma Teológica. (1265 a 1273)
Tomás de Aquino nasceu em 1225, no castelo de Roccasecca, na Campânia,
numa família feudal de condes, e tinha laços de sangue com a família imperial e as
famílias reais de França, Sicília e Aragão.
Inicialmente, foi educado no grande Mosteiro de Montecassino. Passou a
juventude em Nápoles, cuja Universidade frequentou. Estudou as artes liberais, mas
logo depois entrou na ordem dominicana, renunciando a tudo, menos à Ciência.
A decisão de entregar sua vida ao serviço da Igreja não foi muito bem
recebida pela família de Tomás, mas ele não cedeu, impôs-se e se dedicou ao
estudo assíduo da Teologia, na Universidade de Paris, de 1245 a 1248, e depois em
Colônia, na Itália.
Em 1252, Tomás voltou para a Universidade de Paris e lá atuou como
professor até 1269, quando regressou à Itália por ter sido chamado à Corte papal e,
em 1272, lecionou Teologia em Nápoles. Dois anos depois, viajando para tomar
parte no Concílio de Lião (1274), por ordem de Gregório X, faleceu no Mosteiro de
Fossanova, entre Nápoles e Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos de idade.
Tomás de Aquino é considerado o maior gênio da Escolástica. Criou um
sistema filosófico sintético, coerente, fundamentado em Aristóteles, e reformulou
todo o pensamento cristão, já que a Igreja Católica medieval amparava-se no
pensamento platônico.
Estudiosos afirmam que Tomás de Aquino representou a vanguarda de seu
tempo e que sua obra, baseada nas ideias aristotélicas, contribuiu para a adaptação
e sobrevivência da fé cristã em paralelo à nova mentalidade racionalista que se
tornaria, nos séculos seguintes, o fio condutor da civilização ocidental. Além disso,
Tomás adquiriu e defendeu a plena consciência dos poderes da razão e
proporcionou uma filosofia para o pensamento cristão.
A presença da possibilidade de Desobediência Civil é profícua na filosofia de
São Tomás. Ainda que, da mesma forma como ocorre em outros filósofos, o termo
não houvesse sido cunhado na época de seus escritos, a ideia central do instituto
se encontra presente e justificada nas ideias e conceitos que defendeu.
Ressalte-se, também, que na Idade Média, a Igreja foi responsável por dar
bases à objeção de consciência, quando se opôs ao serviço com armas e à
prestação de culto ao imperador
54
.
54
Interessante reproduzir trecho da Teoria católica da insurreição legítima, da obra Le chrétien et le
pouvoir, de Roger Heckel (SOIBELMAN, 1998, verbete: teoria católica da insurreição legítima):
“Desde São Tomás de Aquino, a Igreja dispõe de uma doutrina invariável e clássica sobre as
condições em que se justifica uma insurreição para a derrubada de um governo: a) é necessário que
haja um governo tirânico, isto é, que viole frontalmente toda e qualquer noção de justiça e de bem
comum, não bastando a existência de uma ou outra lei injusta; b) não é o critério subjetivo do cidadão
que justifica uma insurreição, mas um conjunto de condições objetivas; c) é preciso ter esgotado
todos os meios pacíficos capazes de modificar a situação; d) é necessário ter a certeza moral de que
os sofrimentos que a insurreição irá causar não serão superiores às vantagens esperadas para o bem
comum (lei da proporcionalidade); e) a insurreição jamais pode ser considerada um fim em si mesma,
um dever incondicional; f) tem de haver uma razoável chance de sucesso (lei da eficácia), não
bastando uma simples esperança; g) o fim da insurreição é sempre colocar um novo poder em lugar
do outro, pois a sociedade exige a autoridade; h) a insurreição não justifica o emprego de qualquer
meio de luta; i) a insurreição é sempre uma legítima defesa do bem comum que implica assumir
Ademais, segundo Paupério (1997, p.53), é possível encontrar nos escritos de
São Tomás, mesmo que de forma esparsa, “teoria orgânica acerca da tirania dos
governantes e da resistência a essa tirania" na Suma Teológica (1265-1273), no
Regime dos Príncipes (aproximadamente 1267) e no Comentário às Sentenças de
Pedro Lombardo (1252-9).
Paupério (1997, p.54) afirma, ainda, que do “Comentário às Sentenças de
Pedro Lombardo deduz-se, implicitamente, a distinção feita por Tomás entre o tirano
(o governante) e o modo irregular de se apoderar do governo e ter o governo
desvirtuado e mal exercido”.
Segundo Santos (2007), na obra o Regime dos Príncipes (I, VI, 27,
aproximadamente 1267 d.C.), Tomás de Aquino defende que “nem sempre o poder
de que está investido o governante tem caráter regular, bem como o modo de
aquisição do poder ou o uso que o governante dele faz pode ser mais ou menos
legítimo, o que ensejaria atitudes de resistência”. Santos (2007) afirma ainda que
quanto ao modo de aquisição do poder:
Segundo São Tomás (Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo
II, dist. XLIV, q. II, 2, ad. 2), a ilegitimidade pode apresentar dois
defeitos:
1) defeito da pessoa, no caso de ser ela indigna para exercer o cargo
de governante;
2) defeito do próprio modo de aquisição do poder, como é o caso de
ser este obtido através da violência, da corrupção ou qualquer
outro meio ilícito.
Tomás de Aquino afirma que em ambos os casos o governante adquiriu o
poder de forma fraudulenta e que no primeiro caso não há um impedimento de
direito e, por isso, os súditos devem obediência aos superiores, sejam religiosos ou
políticos, ainda que indignos.
Já no segundo caso, na análise do doutor da Igreja, há um impedimento de
direito e, portanto, é possível encorajar e aceitar a resistência por parte dos súditos.
Entretanto, Tomás visualiza aqui uma possibilidade de legitimar esse governo
e libertá-lo do defeito, no caso de o governante se converter no que ele chama de
graves responsabilidades; j) à Igreja cabe sempre a função de esclarecer os princípios morais
engajados na luta, sem pretender substituir-se às autoridades civis, colocando-se a serviço de todos
os homens que a ela recorram para a formação de um juízo moral autêntico examinado à luz de uma
situação concreta; k) em matéria de insurreição, a Igreja não toma decisões políticas nem partidárias,
pois não dispõe de competência, nem de meios, nem de inspirações particulares, nem de
responsabilidade pelo surgimento da situação, nem tem a função de solucioná-la”. (BOBBIO, 1998)
“verdadeiro senhor”, pelo consentimento dos súditos ou pela autoridade de qualquer
superior.
Tomás de Aquino mostra-se bastante radical e defende, inclusive, a
possibilidade da resistência violenta. Na Suma Teológica (Aquino, 2008, questão
XLII, art. 3), ele afirma que “é o abuso do príncipe que vicia o poder”. E analisa: se a
injustiça não ultrapassar o terreno das pretensões excessivas, os súditos devem
limitar-se à resistência passiva, como, por exemplo, realização de protestos.
Entretanto, na hipótese de o governo contrariar as leis divinas, expressas na Bíblia,
e humanas, é lícita a resistência defensiva que, em casos extremos, pode até
mesmo chegar à resistência violenta.
Ainda na Suma Teológica (2008, 1ª. parte da 2ª. parte, questão XCVI, art. VI),
Tomás de Aquino assim se pronuncia: “Toda a lei se ordena ao bem comum dos
homens, nessa medida é que obtém força e razão de lei, e na medida em que assim
não se ordene, nessa mesma medida não tem força para obrigar”. (SILVA, 2006)
Santos (2007) destaca que ao analisar as possíveis ações represálias do
governante, em Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo (questão II, art. 2),
São Tomás aconselha que se a tirania não for excessiva, “é preferível não lutar
contra ela, pois é melhor tolerá-la branda por pouco tempo (sabendo que vai durar
pouco tempo) a opor-se a perigos mais graves, inclusive tendo o perigo de morte”.
Tomás afirma, ainda, que a tirania pode se tornar mais endurecida se o tirano
vencer, pois ao ser provocado pode enfurecer-se e aumentar as represálias contra o
povo. No Regime dos Príncipes (I, VI, 28), ele afirma ser muito comum “a tirania
posterior tornar-se pior que a precedente”. E dá o seguinte exemplo:
Em Siracusa, apesar de todos os súditos desejarem a morte do
tirano Dionísio, certa velha não deixava de orar, pedindo a Deus que
nem um mal fosse feito contra o tirano. Sabendo disso, os súditos
perguntarem-lhe o porquê dessa súplica. E ela respondeu: “Quando
eu era menina, tínhamos um tirano cruel e desejávamos a morte
dele, morto esse, sucedeu-lhe outro tirano, porém mais cruel. E
começamos a ter um governo mais opressor. Esse novo tirano é
Dionísio. Portanto, se for deposto, e até morto, sucederá um pior no
seu lugar”. (SANTOS, 2007)
Com este exemplo, Tomás mostra que não adianta apenas retirar um tirano
do governo, é necessário abolir a tirania, enquanto forma de governo, pois é esta
que torna possível a existência daquele.
Paupério, citado por Santos (2007), assevera que São Tomás, nos
Comentários às Sentenças de Pedro Lombardo, “aduz importantes reservas à
doutrina de que a obediência é devida sempre aos poderes constituídos, mesmo
quando injustos e tirânicos”.
Para ele, o doutor Angélico (como alguns denominam Tomás de Aquino)
considera três elementos quanto ao poder: 1) a própria essência do poder, isto é, a
relação entre superior e súdito; 2) a forma de aquisição desse poder; 3) o uso do
poder. Daqui se depreende a necessidade de entender o pensamento de Tomás a
este respeito.
De acordo com Santos (2007), como cristão, homem de fé e fiel à Igreja,
Tomás pensa que “todo poder provém de Deus” (Jo 19, 11) e que tudo que provém
de Deus deve ser obedecido. Mas em Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo
(XLV, questão IV, art. 2, 1252-9), ele faz ressalva ao texto bíblico e afirma que, na
realidade, “nem sempre o poder provém de Deus”, como em dois casos específicos:
o primeiro, se o modo de aquisição do poder não foi justo; e o segundo, se o uso do
poder se transformou em abuso.
Para ele, se ocorrerem esses casos, podem existir dois poderes injustos
distintos: o mal adquirido e o abusivo. Cabe ressaltar aqui, como já referido, que os
filósofos cristãos só eram a favor da resistência contra o governante enquanto esse
ainda fosse pagão, não falando mais sobre o assunto quando o governante se
convertia ao Cristianismo.
Segundo São Tomás de Aquino, existe o direito de resistir publicamente, em
determinadas circunstâncias, mesmo que a resistência seja ao próprio pontífice. Ele
afirma:
Existindo um perigo próximo para a fé, os Prelados devem ser
repreendidos, até publicamente, por parte dos seus súbditos. Assim
São Paulo, que era súbdito de São Pedro, repreendeu-o
publicamente, em razão de um perigo iminente de escândalo em
matéria de fé. E, como diz o comentário de Santo Agostinho, `o
próprio São Pedro deu o exemplo aos que governam, a fim de que
estes, afastando-se alguma vez do bom caminho, não recusem como
indevida uma correcção mesmo vinda dos seus próprios súbditos.
(Gal. 2, 14) (AQUINO, 2008, Suma Teológica, II-II, 33, 4, 2).
Nestas situações, bem como em situações nas quais não haja religião
envolvida, Tomás de Aquino reconhece o direito à resistência contra o governante e
apresenta, ainda, em Regime dos Príncipes (Cap. VI), alguns exemplos,
enumerados por Santos (2007):
Os romanos destituíram Tarquínio Soberbo, por sua tirania e de seus
filhos, substituindo a realeza pelo regime consular que dava maior
participação ao povo nas decisões do Estado ao invés de centralizar
o poder nas mãos do rei. De modo semelhante, o senado romano
condenou à morte o imperador Domiciano, sucessor de Vespasiano,
devido a seu currículo de crueldades. O mesmo senado romano
retirou o título de rei de Arquelau, filho do rei Herodes, e dividiu o
reino da Judeia entre seus dois irmãos, atendendo, dessa forma, às
constantes denúncias de violação da lei romana por parte dos judeus
residentes em Jerusalém e em toda a Judeia .
Assim, com base nesses exemplos, na Suma Teológica (AQUINO, 2008,
questão XLII, art. 3), Tomás de Aquino conclui que o “governo tirânico [autoritário],
não estando ordenado para o bem comum e sim para o bem do governante, torna-
se, por si próprio, injusto”. E é este bem comum que constitui o limite do Direito de
Resistência, para São Tomás, por ele julgar que para se poder resistir aos
governantes, é preciso que estes signifiquem um perigo para o bem comum, o que
engloba não somente a justiça, mas também a ordem social.
Tomás de Aquino defende salvaguardar, sobretudo, o bem comum, ou
melhor, procura proteger a ordem social conforme as exigências da natureza
humana. Quando se permite a resistência à opressão, tem-se em vista unicamente o
bem da comunidade, sem qualquer aspecto revolucionário ou subjetivo. (PAUPÉRIO
1997, p. 58).
Em síntese, na Suma Teológica (AQUINO, 2008, questão XLII, art. 2), Tomás
condena a insurreição popular contra o governante e afirma que esse ato é um
pecado mortal. Entretanto, ele reconhece que, não sendo o governante justo, porque
não implanta o bem comum, não constitui insurreição o ato de contra ele se revoltar.
Assim, é possível identificar-se a legitimidade da Desobediência Civil em São
Tomás, que chega a citar protestos como exemplo.
Da mesma forma, ainda que não expressamente, os Referenciais da Bioética
se veem legitimados na defesa da qualidade de vida do ser humano, pois a defesa
do bem estar coletivo permite a expressão da solidariedade, da busca e da defesa
da justiça, da responsabilidade pela própria vida e pela vida do outro, bem como da
responsabilidade pelo ambiente no qual a coletividade vive.
3.4.1.3 Desobediência Civil em João Calvino
55
(1509-1564)
“A vontade de Deus é a regra pela qual devemos regulamentar todos
os nossos deveres.”
João Calvino (1509-1564)
João Calvino nasceu na cidade de Noyon, na França, em 1509. Em 1523,
ingressou na Universidade de Paris e estudou Latim, Filosofia e Dialética, formando-
se em Direito. Aderiu às ideias de Martinho Lutero e publicou, em 1532, a obra Dois
Livros sobre a Clemência ao Imperador Nero, que tornou pública sua opção pelo
Protestantismo.
Em 1535, já era considerado o chefe do Protestantismo francês e foi
duramente perseguido pelas autoridades católicas. Para se proteger, refugiou-se em
Genebra, onde organizou uma nova Igreja, com pastores eleitos pelos fiéis, e fundou
o Colégio de Genebra, que se tornou um dos Centros Universitários mais famosos
da Europa.
A doutrina de Calvino ficou conhecida como Calvinismo e apresentava a
noção de predestinação. Para ele, a salvação era uma escolha divina, cabendo ao
homem apenas cooperar com a vontade de Deus.
Ele se sentia chamado para uma missão especial e viveu na pobreza,
dedicado totalmente à sua obra.
João Calvino morreu em 1564, em Genebra. Antes de morrer, declarou a
exigência de que o local de sua sepultura fosse mantido em segredo, para evitar
qualquer tentativa de culto ou visitação que, no entender dele, representavam
traição ao que foi a razão de ser de sua própria existência: a Glória de Deus.
O filósofo defendia a total submissão ao poder secular
56
, utilizando argumento
com base nas ideias do apóstolo Paulo, que declarava que todo poder vinha de
Deus e dele retirava sua legitimidade. Portanto, para Calvino, o governante estava
investido de poder divino e, desta forma, tinha de ser obedecido, pois desobedecê-lo
equivalia a desobedecer ao próprio Deus.
55
Neste item, estão compiladas informações obtidas de várias fontes, a saber: BARROS, Alberto
Ribeiro Gonçalves de. O direito de resistência na França renascentista; FONTES, Reverendo Paulo
Ribeiro. A obediência e a desobediência civil no pensamento de João Calvino; CALVINO, João.
Sobre a autoridade secular; MONTEIRO, Mauricio Gentil. O direito de resistência na ordem jurídica
constitucional. No caso de citação literal, a obra será identificada no corpo do texto.
56
Poder secular: poder temporal, leigo; poder civil do Estado. (SOIBELMAN, 1998. Verbete: poder
secular).
Na obra Instituição da Religião Cristã, publicada em 1536, Calvino deixa isto
bastante claro e na Dedicatória do livro, destinada ao rei francês Francisco I,
assegurou a fidelidade e a obediência política dos protestantes.
Calvino ressaltava o dever cristão de obediência aos governantes, pois
defendia que estes eram instituídos pela vontade divina. Por isso, não se podia
questionar e não importava a conduta do governante e/ou o conteúdo de suas
ordens: caso elas fossem injustas, deveriam ser respondidas com orações, súplicas
ou exílio, mas nunca por meio da insurreição. (CALVINO, p. 20, 1995)
Como afirma Barros (2008):
Os calvinistas mais radicais procuraram enfatizar cada vez mais essa
ideia de que toda autoridade política é estabelecida por Deus para
desempenhar uma determinada função, e quando seu detentor não a
cumpre, deixa de ser um verdadeiro magistrado, sendo legítimo ao
magistrado inferior resistir às suas ordens. Esta forma de resistência
era justificada a partir do pressuposto de que aquele que recebe uma
magistratura só tem sua autoridade respeitada se cumprir com as
obrigações do seu cargo; e também a partir da distinção entre
pessoas públicas, para as quais a ação política de resistir é legítima
e, mais do que isso, um dever, quando o comando é contrário aos
mandamentos e condições impostas por Deus, e pessoas privadas,
que continuam submetidas de maneira irrestrita ao poder
estabelecido, mesmo que suas ordens sejam iníquas.
Por esse texto, percebe-se que os huguenotes (como eram conhecidos os
franceses adeptos ao Protestantismo) já dispunham de uma doutrina que legitimava
a resistência dos magistrados inferiores aos magistrados superiores, como dever
religioso de zelar pelo cumprimento da vontade divina, não sendo necessário se
limitar somente a preces e resignação como forma de resposta às perseguições das
quais eram vítimas.
Ainda assim, a leitura dos textos de Calvino não é um trabalho simples. Como
afirma Fontes (2006):
E um dos problemas de interpretar o pensamento de Calvino em
questões políticas, surge ao se relacionar as diversas afirmações que
em seus escritos exigem obediência ao Estado e as que insistem não
apenas no direito, mas no dever de resistir. Fica então a pergunta:
Calvino ensinou a obediência ou a desobediência civil?
Este paradoxo surge ao se analisar os textos de Calvino, já que uma das
afirmações básicas de sua doutrina política, é ser o Estado uma instituição criada e
sancionada por Deus, um instrumento da providência divina.
Com base nos conceitos paulinos, Calvino defendia que as autoridades civis
tinham origem divina, pois os magistrados (governantes) eram instituídos por Deus
e, consequentemente, investidos de autoridade divina, representando a pessoa de
Deus, em cujo nome agiam. Assim, devia-se obediência às autoridades civis porque
o mandato delas vinha de Deus e lhes resistir significava resistir ao próprio Deus.
Portanto, sendo coerente com a lição de que Deus é soberano absoluto sobre
todas as coisas, Calvino defendia e ensinou a doutrina da obediência civil. Mas, ao
mesmo tempo, esta mesma premissa ensinou e defendeu a desobediência, pois
como explicita Fontes (2006):
Se é por causa de sua origem divina, que as autoridades civis têm o
direito à obediência de todos os homens em geral e dos cristãos em
particular, também é por ser de origem divina que, para Calvino, o
poder político é limitado em sua função e em seu fim. Assim como se
opôs à tese dos anabaptistas, Calvino se opôs também à tese
sustentada por muitos católicos romanos e luteranos, que entendiam
que os príncipes possuíam autoridade absoluta e ilimitada.
Comentando Romanos 13.4, ele afirma: ‘Os magistrados podem
aprender disto a natureza de sua vocação. A sua administração não
deve ser feita em função de si próprios, mas visando ao bem público.
Nem têm eles poderes ilimitados, senão que sua autoridade se
restringe ao bem-estar de seus súditos. Em resumo são
responsáveis diante de Deus e dos homens pelo exercício de sua
magistratura. Uma vez que foram escolhidos e delegados por Deus
mesmo, é diante deste que são responsáveis’. Desta forma, somente
Deus possui autoridade auto-gerada. A autoridade dos magistrados é
delegada por Deus, a quem devem prestar contas. Por isto, a
obediência devida às autoridades civis é limitada, sobretudo, pela
obediência que o homem deve a Deus. (grifo nosso)
Calvino, assumindo que essa obediência tem exceções, encerra as Institutas
(1535) com as seguintes palavras:
Mas, na obediência que temos ensinado ser devida aos superiores,
deve haver sempre uma exceção, ou antes, uma regra que se deve
observar acima de todas as coisas: é que tal obediência não nos
afaste da obediência Àquele sob cuja vontade é razoável que se
contenham todos os editos dos reis, e que à sua ordenação cedam
todos os mandamentos, e que à sua majestade humilhada seja
rebaixada toda a sua altaneria. E, para dizer a verdade, que
perversidade seria, a fim de contentar os homens, provocar a
indignação d'Aquele por amor de quem obedecemos aos homens?
Devemos estar sujeitos aos homens que têm preeminência sobre
nós, não, entretanto, de outra forma senão em Deus. Se, porventura,
os homens ordenam algo que contraria a Deus, de nenhum valor nos
deve isto ser. (FONTES, 2006)
Portanto, para Calvino, o dever de submissão às autoridades civis não é
ilimitado. Ele entendia ser necessário dar ao povo mecanismos legais para a
derrubada de seu governo, se isso fosse necessário. É o que se chamava “doutrina
dos magistrados inferiores”, encarregados de proteger o povo e suas liberdades
contra governos que tendessem à arbitrariedade e à tirania.
Neste ponto é possível fazer clara identificação com o que se discute neste
estudo: a legitimidade da Desobediência Civil e a necessidade de o cidadão ter um
instrumento eficaz para combater desmandos injustos do representante do Poder
instituído e embora Calvino, em seus textos, refira-se a cristãos, o cerne da ideia é
exatamente o mesmo, o que permite ampliar o entendimento para “cidadão”
57
, no
sentido utilizado no direito positivo atual.
A análise dos escritos e das posturas defendidas pelo filósofo permite, ainda,
compreender que de acordo com suas ideias não há de se falar em obediência sem
reflexão ou reação, pois se o governante estiver agindo de forma iníqua e, assim,
contrariando os ensinamentos de Deus, mais do que um direito, o cidadão (cristão,
para Calvino) tem o dever de desobedecer e reagir, questionando esse governante e
seu desvio de conduta, se analisado perante os ensinamentos divinos.
Estas ideias permitem, ainda, clara identificação com os Referenciais da
Bioética, principalmente com os Referenciais da autonomia, da justiça, da equidade,
e da responsabilidade.
3.4.1.4 Desobediência Civil em Thomas Hobbes
58
(1588-1679)
“Os pactos sem a espada são apenas palavras e não têm a força
para defender ninguém.”
Thomas Hobbes. Leviatã (1651)
“O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por
consequência o fato de nada ser injusto. As noções de certo e
errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde
57
Cidadão vem da palavra cidadania, cuja origem é o latim civitas, que quer dizer cidade. A palavra
cidadania foi usada na Roma antiga para indicar a situação política de uma pessoa e os direitos que
essa pessoa tinha ou podia exercer. Segundo Dalmo Dallari: “A cidadania expressa um conjunto de
direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo.
Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões,
ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social”. (DALLARI, 1998, p.14)
58
Neste item, estão compiladas informações obtidas de várias fontes, a saber: HOBBES, Thomas.
Leviatã; COSTA, Nelson Nery, Teoria e realidade da desobediência Civil; DALLARI, Dalmo de Abreu,
Elementos de Teoria Geral do Estado; BRONDANI, Clóvis. Direito à resistência na filosofia de
Thomas Hobbes; NASCIMENTO, Joelton. O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz
das reflexões de Hannah Arendt; Tavares, Geovani de Oliveira. Desobediência Civil e Direito Político
de Resistência. No caso de citação literal, a obra será identificada no corpo do texto.
não há Poder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça:
força e astúcia são virtudes cardeais na guerra. Justiça e injustiça
não pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do
Corpo; pois, nesse caso, elas poderiam ser encontradas num homem
que estivesse sozinho no mundo (como acontece com seus sentidos
ou suas paixões). Na realidade, justiça e injustiça são qualidades
relativas aos homens em sociedade, não ao homem solitário.”
Thomas Hobbes. Leviatã (1651)
“Todos os homens odeiam-se uns aos outros. É de sua natureza.
Blaise Pascal (1623-1662)
Thomas Hobbes nasceu na Inglaterra, em Malmesbury, em 1588. Foi
matemático, teórico político e filósofo. Teve uma vida conturbada, às vezes sob a
proteção da realeza, às vezes banido por ela, por ter destionado, entre outros
aspectos, o estudo na Inglaterra, declarando-o ultrapassado, pois ele havia se
encantado com os novos estudos sobre os movimentos do Universo, que conheceu
em suas viagens à Itália e à França, nas quais acompanhava seu pupilo, já que
atuava como preceptor para a família Cavendish, pertencentes à nobreza inglesa.
Em 1651, publicou sua obra-prima, o Leviatã, na qual defendia que os
homens só poderiam viver em paz se concordassem em se submeter a um poder
absoluto e centralizado. Para ele, a Igreja cristã e o Estado cristão formavam um
mesmo corpo, encabeçado pelo monarca, que teria o direito de interpretar as
Escrituras, decidir questões religiosas e presidir o culto.
Nos últimos anos de vida, optou por reler os clássicos da juventude, tendo
publicado uma tradução da Odisseia , em 1675, e a da Ilíada, no ano seguinte.
Morreu em 1679, na cidade de Hardwick Hall, aos 91 anos.
Para entender e comentar a posição de Hobbes quanto à obediência do
súdito ao soberano e, em espelho, o que ele pensava sobre a desobediência, é
necessário saber que ele defendia a teoria do contrato social. Portanto, Hobbes
pensava que só era possível ao homem viver em sociedade se ele assumisse um
compromisso mediante o contrato social.
Nesse compromisso assumido, ele defendia que a sociedadde necessitava de
uma autoridade à qual todos os membros cedessem o que ele chamava de “o
suficiente da sua liberdade natural”, a fim de que esta autoridade pudesse assegurar
a paz interna e a defesa comum. (HOBBES, 2002). A esta autoridade, este soberano
(que poderia tanto ser um monarca, quanto uma Assembleia ), Hobbes deu o nome
de Leviatã, uma autoridade inquestionável.
Na obra Leviatã (Hobbes, 2002, p.175) é possível encontrar expressamente
afirmações sobre o direito de desobedecer:
Se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente
condenado) que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, ou que
não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha se usar os
alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a
qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer.
Se alguém for interrogado pelo soberano ou por sua autoridade,
relativamente a um crime que cometeu, não é obrigado (a não ser
que receba garantia de perdão) a confessá-lo, porque ninguém pode
ser obrigado por um pacto a acusar-se a si próprio.
Assim como os outros contratualistas, Hobbes desenvolve suas ideias a partir
do pressuposto do conatus que é, no geral, o estado de natureza na qual só a
sobrevivência, o “permanecer existindo”, demanda toda a ação dos homens.
Na natureza humana, seria a forma genética do comportamento, o estado
natural em que vivem os homens antes do seu ingresso no estado social, similar ao
movimento animal para se aproximar do que causa satisfação ou fugir do que
desagrada.
Na vida social, o conatus representa o desejo de continuamente ultrapassar o
outro, como fonte primordial de satisfação. Assim, e já que a princípio todos os
homens são dotados de forças ou aptidões intelectuais iguais, ocorre uma espécie
de generalização da violência.
Segundo Hobbes, esta igualdade, em vez de proporcionar entendimento entre
os indivíduos, gera desconfiança, já que sendo iguais e tendo os mesmos objetivos,
a saber, a sobrevivência, os homens tendem a se tornar inimigos.
Desta forma, o homem entra em guerra com todos os outros homens tendo
uma só meta: subjugar o maior número de outros homens, a fim de obter para si
uma situação de segurança na qual não seja ameaçado por nenhuma das forças de
outrem, ideia que leva a concluir que esta situação não pode ser alcançada por
todos, motivo pelo qual há uma disposição perene de todos os homens para a
guerra; uma guerra total, de todos contra todos, todos os homens tornam-se
inimigos de todos os homens. Diz ele:
Em tal situação não há lugar para a indústria, pois seu futuro é
incerto. Seguramente, não há cultivo de terra, nem navegação, nem
uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar. Não há
construções confortáveis. (...) Não há sociedade. (...) A vida do
homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. (HOBBES,
2002, p. 98)
Para o autor, este estado de guerra de todos contra todos não permitiria a
existência da justiça ou da lei, embora ele mesmo admitisse que este estado jamais
houvesse existido realmente.
Para Hobbes, ele, o homem, movido por outras paixões, entre elas o medo da
morte, o desejo do que é necessário para uma vida confortável e a esperança de
consegui-las por meio do trabalho e das noções de propriedade, faz com que "A
razão sugira adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem
chegar a um acordo”. (HOBBES, 2002, p. 100)
A partir dessa premissa, Hobbes sugere um acordo feito pela razão, segundo
o qual o homem deve renunciar aos direitos naturais inerentes à sua condição de
indivíduo, isto é, renunciar ao fazer ou omitir tudo que quiser. Ele afirma: "Pois
enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira, a condição de
guerra será constante para todos". (HOBBES, 2002, p. 102)
Como afirma Nascimento, uma das consequências deste contrato pensado
por Hobbes, no que se refere à Desobediência Civil é que "Todos devem submeter
suas vontades à vontade do representante e suas decisões à sua decisão".
(NASCIMENTO, 2006)
Nascimento (2006) explicita, ainda, que:
Segundo Hobbes esta é a geração do Leviatã, ou seja, do deus
mortal que reina abaixo do deus eterno a que devemos toda a
submissão já que suas decisões provêm da multidão reunida em
uma só pessoa. Quando passa a discorrer sobre a natureza dos
Estados gerados por instituição, o autor faz uma verdadeira teoria da
impossibilidade do dissenso, que é uma consequência natural e
racional dos pressupostos que ele levou em consideração. Em
primeiro lugar, segundo Hobbes, não pode haver dissenso pelo fato
de que o pacto não pode levar em consideração nem eventos
anteriores a este, isto é, qualquer fato que tenha a intenção de alterar
o pacto, quanto os posteriores. Isto significa que uma vez constituído
o contrato, não pode alguém rompê-lo alegando divergência com o
soberano, o titular do poder social, uma vez que é por meio deste
pacto que ele se encontra neste poder. Para Hobbes, feito o pacto, o
soberano adquire um direito, e atentar contra este direito é atentar
contra um direito adquirido, uma injustiça, portanto, passível da
punição do soberano. Em segundo lugar, para Hobbes, o pacto não
ocorre entre os súditos e o soberano, mas entre os súditos uns com
os outros. Sendo assim, não é justo, segundo ele, que se
desobedeça qualquer ato do soberano alegando o
descumprimento deste a qualquer pacto estabelecido. O soberano
não estabeleceu pacto algum com ninguém, ele é apenas a força e o
poder dos súditos que garante, pelo medo e pelo terror, a segurança
destes mesmos súditos. (grifo nosso)
Hobbes deixa claro, ainda no Leviatã, que defende a liberdade como sinônimo
de “ausência de impedimentos”. Assim, a liberdade dos súditos está “apenas
naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu”. (HOBBES, 2002,
p. 173). Isto é, a liberdade existe apenas para as ações que não são proibidas pela
lei ou, a rigor, permitidas pelo soberano. Mas, no mesmo Leviatã, Hobbes expõe
outra forma de liberdade civil, como esclarece Brondani (2007):
Liberdade civil à qual ele denomina ‘a verdadeira liberdade dos
súditos, ou seja, quais são as coisas que, embora ordenadas pelo
soberano, não obstante eles podem sem injustiça recusar-se a fazer’.
Esta ‘verdadeira liberdade’ ultrapassa os limites do conceito de
liberdade como ausência de impedimento, caracterizando-se como
uma forma de reação ao impedimento, ou seja, uma reação à lei.
Quer dizer que, de acordo com Hobbes, há situações na vida do
súdito em que, mesmo havendo a lei, ele pode desobedecer,
sem com isso cometer injustiça, que seria o direito à resistência.
Este direito deve ser compreendido como a liberdade de
desobedecer à lei, sem que esta desobediência constitua uma forma
de injustiça. (grifo nosso)
Cabe ressaltar aqui que para Hobbes, justiça consiste no cumprimento do
contrato. Assim, por princípio, para ele toda desobediência deveria ser
compreendida como injusta, pois os súditos “contrataram” obedecer ao soberano em
troca da proteção de suas vidas.
Desta maneira, o contrato fundamenta a obediência e se os súditos
autorizaram todas as ações do soberano como sendo as suas, é evidente que este
possui o direito de realizar qualquer ação sem ser limitado pela vontade daqueles.
Assim, a desobediência constituiria uma injustiça, já que contrato cria o vínculo da
obediência incondicional.
Segundo Hobbes, a desobediência torna-se uma injustiça na medida em que
representa o não-cumprimento de uma promessa feita no contrato, pois: “(...) depois
de celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. E a definição de injustiça não é outra
senão o não cumprimento de um pacto. E tudo que não é injusto é justo.” (HOBBES,
2002, p. 145).
A análise dessa afirmação pode levar a crer que é impossível encontrar
qualquer possibilidade de Desobediência Civil ou de Direito de Resistência em
Hobbes. Mas não é bem assim. A continuidade da leitura de sua obra permite
encontrar e aprofundar a análise dessa possibilidade, ainda que pareça haver aqui
um paradoxo.
Brondani (2007) indica como Hobbes define a resistência, no Leviatã: “(...) a
verdadeira liberdade dos súditos, ou seja, quais são as coisas que, embora
ordenadas pelo soberano, eles podem, sem injustiça, recusar-se a fazer”.
O próprio Hobbes expõe alguns casos nos quais a resistência se efetiva,
divide-os em duas formas de resistir (desobedecer individualmente e desobedecer
coletivamente) e depois enumera alguns exemplos.
Em seu Leviatã, o filósofo enumera, ainda, algumas situações nas quais a
resistência se justifica. O súdito tem direito a resistir contra qualquer ação por parte
do Estado que coloque em risco a preservação da sua vida, porque “os pactos no
sentido de cada um abster-se de defender seu próprio corpo são nulos” (HOBBES,
2002, p. 175).
A resistência do súdito, neste caso, não se refere somente à defesa física,
mas também a qualquer ordem do soberano que possa vir a ameaçar-lhe a
sobrevivência e, neste caso, o súdito desobedece a uma ordem específica do
soberano, que está a ameaçá-lo:
Portanto, se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente
condenado) que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, e que não
resista aos que o atacarem, ou de se abster de usar os alimentos, o
ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá
viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer. (HOBBES,
2002, p. 175
)
A segunda forma de resistência admissível ocorreria quando o Estado
perdesse a capacidade de garantir segurança à vida do súdito, situação em que não
o estaria ameaçando diretamente, mas na qual se mostraria ineficiente no exercício
do governo, o que motivaria o súdito a desobedecer e escolher ele mesmo os meios
para a defesa de sua vida.
Brondani (2007) expõe clara análise da obra de Hobbes quanto a esse caso.
Segundo ele:
Toda resistência a uma lei específica é também uma resistência ao
Estado como um todo. (...) a resistência ocorre porque a ordem do
soberano ameaça diretamente à vida do indivíduo. Razão pela qual
ele tem direito a se defender. Entretanto, existe um outro modo de
resistência, a qual não é motivada devido a uma ordem ou lei do
soberano, mas sim pela insuficiência da garantia de segurança por
parte do Estado. Nesses casos, o súdito não se sente ameaçado
diretamente pelo Estado. Trata-se de uma situação na qual aquelas
promessas feitas no pacto se invalidam porque o próprio objetivo
pelo qual o pacto foi feito não está sendo cumprido pelo soberano.
(...) É a incapacidade do Estado para garantir a segurança que
coloca a vida em risco. Ou seja, para Hobbes, quando o soberano
não apresenta mais condições de garantir a paz e a segurança, os
súditos não lhe devem mais obrigação ‘Entende-se que a obrigação
dos súditos para com o soberano dura enquanto, e apenas
enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de
protegê-los’. Desta forma, se o Estado não garantir a segurança
necessária, ele não cumpre o objetivo do pacto, que é a garantia da
vida. Sem proteção estatal, os súditos devem procurá-la por si
próprios: ‘O fim da obediência é a proteção, e seja onde for que um
homem a veja, quer em sua própria espada quer na de outro, a
natureza manda que a ela obedeça e se esforce por conservá-la’
Todas estas formas de resistência são abordadas de forma definitiva
no Leviatã. (grifo nosso)
A justificativa e a fundamentação da possibilidade dessa resistência, apesar
do compromisso contratual defendido por Hobbes, podem ser encontradas no Direito
Natural, que não pode ser totalmente abandonado pelo súdito no ato contratual, já
que alguns direitos são anteriores à instituição do Estado, como, neste caso, o
direito à autodefesa.
Além disso, como bem salienta Brondani (2007):
O recurso ao contrato nos permite a análise da resistência de outra
perspectiva. Tomado como ato da vontade humana, o contrato deve
estabelecer sempre a possibilidade de um bem futuro. Porque todos
os atos da vontade humana devem necessariamente contemplar um
benefício futuro. Por essa perspectiva podemos pensar que seria
impossível a realização de um contrato no qual o súdito se
comprometeria a não se defender da força que ameace sua vida.
Desta forma, a própria lógica da construção racional exige o Direito
de Resistência ao impossibilitar a transferência do direito de
autodefesa.
Assim, fica claro que os indivíduos não podem ceder o direito de se defender
de um ataque, seja ele de outro indivíduo, seja do próprio soberano.
Se o indivíduo não se defendesse, haveria enorme incoerência, já que o
motivo básico do contrato é justamente a garantia de vida. Portanto, se o indivíduo
passasse a não ter mais o direito de se defender de um ataque, o próprio objetivo do
contrato deixaria de existir.
Hobbes também defende que o súdito tem o direito de mentir ou se recusar a
falar quando for acusado de qualquer infração, bem como de se negar à confissão,
mesmo que seja culpado, já que, para ele, um pacto não pode obrigar ninguém a
acusar a si mesmo, ou seja, testemunhar contra si próprio
59
.
Assim, segundo Hobbes (2002, p. 175): “Se alguém for interrogado pelo
soberano ou por sua autoridade, relativamente a um crime que cometeu, não é
obrigado (a não ser que receba garantia de perdão) a confessá-lo”.
O filósofo também aceita o direito de o súdito resistir a missões perigosas
que coloquem em risco sua vida. Segundo Brondani (2007):
Neste caso, para determinar se o direito é justificado, deve-se
observar o objetivo da missão. Ela deve estar em concordância com
o objetivo da própria instituição do Estado: a paz e a segurança.
Hobbes afirma: ‘Portanto, quando nossa recusa de obedecer
prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania, não há
liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade’.
Também é possível identificar na obra de Hobbes a possibilidade de resistir
ao serviço militar, em duas situações, nas quais ele identifica não ser ilegítimo
negar-se a combater no exército.
Para ele, um súdito pode recusar legitimamente o serviço militar se ele indicar
um soldado capaz para seu lugar ou devido ao medo natural da morte, medo este
que, para Hobbes, justificaria até mesmo a fuga de uma batalha, pois ele reconhece
que alguns homens, no momento do combate, não se sentem suficientemente
corajosos. Assim, a fuga é vista como algo natural, sem representar injustiça por
descumprimento do contrato social.
O medo, de acordo com Hobbes, é o recurso da natureza que impele o
homem a fugir da morte. Nesta situação, não há de se falar em traição, somente em
um impulso natural que deve ser perdoado. Para ele: “Quando dois exércitos
combatem, sempre há os que fogem, de um dos lados, ou de ambos; mas quando
não o fazem por traição, e sim por medo, não se considera que o fazem
injustamente, mas desonrosamente”. (HOBBES, 2002, p. 176)
Estes são casos nos quais o súdito tem direito à resistência individualmente.
Hobbes aponta também um direito coletivo de resistência, que ocorre quando um
59
Esta figura é hoje conhecida como “Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo” e tem
sua previsão legal tanto no ordenamento jurídico brasileiro, como em diplomas legais internacionais,
entre eles, o Pacto de San Jose. A Constituição Federal brasileira, de 1988, em seu Art. 5º. , dispõe:
"Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo". Na Convenção Americana de Direitos
Humanos, de 1969, também conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica encontra-se: “Das
Garantias Judiciais, Art. 8º, parágrafo II, Inciso g: toda pessoa tem “direito de não ser obrigada a
depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada".
grupo de homens, já condenados, que esperam a morte, unem-se, pegando em
armas e resolvem se defender:
Mas caso um grande número de homens em conjunto tenha já
resistido injustamente ao poder soberano, ou tenha cometido algum
crime capital, pelo qual cada um deles pode esperar a morte, terão
eles ou não a liberdade de se unirem e se ajudarem e defenderem
uns aos outros? Certamente que a têm: por que se limitam a
defender suas vidas, o que tanto o culpado como um inocente podem
fazer.
(HOBBES, 2002, p. 176-7)
Segundo Brondani (2007):
A resistência é assim ampliada para a coletividade. Um grupo de
homens, já culpados por algum crime anterior, une-se e luta em
legítima defesa. ‘Este é o único texto em que Hobbes dá uma
dimensão coletiva ao Direito de Resistência’. Nos demais casos,
Hobbes apenas reconhece que individualmente o homem pode
resistir.
Após esta análise de alguns aspectos da obra e das ideias de Hobbes, cabem
algumas considerações. A noção que ele apresenta de justo e injusto pode divergir
consideravelmente da noção de outros autores e filósofos, bem como da noção
contemporânea. Ainda assim, é possível perceber que entre o que ele defendia ser
aceitável como Direito de Resistência e a Desobediência Civil configurada no ensaio
de Thoreau é possível identificar a necessidade de lutar por aquilo é justo.
A ideia de defesa da justiça para si e para outros da coletividade aparece
analogamente, possibilitando, numa época em que a Bioética e seus Referenciais
não passariam de longínquas possibilidades de ficção, construir uma relação entre
todos, principalmente com os Referenciais da justiça, da solidariedade e da
responsabilidade.
3.4.1.5 Desobediência Civil em John Locke
60
(1632-1704)
“As leis foram feitas para os homens e não os homens para as leis.”
John Locke (1632-1704)
60
Neste item estão compiladas informações obtidas de várias fontes, a saber: LOCKE, John.
Segundo Tratado sobre o Governo Civil; NASCIMENTO, Joelton. O conceito de desobediência civil
na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt; DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de
Teoria Geral do Estado; BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental; SILVA, Oseas
Amaral da. Do direito à resistência: limites e possibilidades de dissentir no Estado Social Democrático
de Direito; BRONDANI, Clóvis. Direito à resistência na filosofia de Thomas Hobbes; COSTA, Nelson
Nery. Teoria e Realidade da Desobediência Civil; TAVARES, Geovani de Oliveira. Desobediência
Civil e Direito Político de Resistência. No caso de citação literal, a obra será identificada no corpo do
texto.
John Locke nasceu em 1632, em Wrington, próximo a Bristol, na Inglaterra.
Era filho de um pequeno proprietário rural. Após bacharelar-se em Artes, formou-se
Master of Arts, em 1658, em Oxford, onde passou quase trinta anos de sua vida.
Graduou-se em Medicina, mas sem o título de doutor, em 1674.
Tornou-se médico particular de Antony Ashley Cooper (1621-1683), influente
lorde articulador inglês. Quando Lorde Ashley entrou para a Política, sendo
nomeado Lorde Chanceler, Locke tornou-se seu secretário e, posteriormente,
secretário da Junta de Comércio.
O posto levou-o a conviver com intelectuais e políticos de sua época, e
despertou seus dotes políticos e filosóficos. Aliou-se ao lorde, que se tornou Conde
de Shaftesbury, em defesa de interesses do Parlamento, fortalecido pela ascensão
burguesa e contrário ao Absolutismo do Rei Carlos II, que foi sucedido pelo irmão,
Jaime II.
O conde de Shaftesbury, que Locke conheceu antes desse título, a quem
ajudou e de cujo filho se tornou tutor, foi quem abriu as portas da Royal Society para
ele. Da mesma forma que acompanhou seu protetor no início, acompanhou-o
quando ele passou por uma queda política: para ser fiel a Lorde Ashley, Locke
abandonou o Secretariado.
A vida política trouxe contribuição inestimável para Locke, por meio das
viagens constantes. Ele foi à Alemanha, viveu algum tempo na França e se exilou
na Holanda, em 1683. O exílio foi consequência do apoio às posições políticas de
Ashley, que havia declarado luta contra o Rei católico Jaime II, exilando-se naquele
país e lá morrido.
Quando, em 1689, a futura rainha Maria regressou à Inglaterra, Locke a
acompanhou. Ela, como reconhecimento pelos serviços dele, nomeou-o embaixador
em Berlim ou Viena, conforme sua escolha, mas ele recusou. Entretanto, aceitou
outros cargos menos importantes; entre eles, o de Comissário de Comércio. Locke
morreu de causas naturais, em 1704, em Oates, na Inglaterra.
O filósofo viveu momentos bastante conturbados da organização político-
econômica de seu país, principalmente a Revolução Gloriosa, ocorrida entre 1688 e
1689 na Grã-Bretanha. Esta Revolução depôs o rei Jaime II, para levar ao trono sua
filha, Maria II, e o marido dela, Guilherme III, príncipe de Orange. Esta troca de
monarcas tirou definitivamente a Inglaterra do jugo da monarquia absoluta e a
conduziu, com efetiva participação e influência de Locke, para uma monarquia
constitucional e parlamentar.
Aliás, toda a obra de Locke caracteriza-se por constante oposição ao
autoritarismo e ele acreditava, ainda, que a razão deveria ser a ferramenta para
obter a verdade e para determinar a legitimidade das instituições sociais.
Para ele, o homem só era livre no estado natural, mas, temendo que um
homem tentasse submeter o outro a seu poder absoluto, os indivíduos delegaram
poderes a um Estado, por meio de um contrato social, para que ficassem
assegurados os seus direitos naturais – a vida, a liberdade e a propriedade.
Mas por serem poderes delegados, Locke acreditava e defendia que o Estado
podia ser feito e desfeito como qualquer outro contrato, caso não respeitasse o
pactuado nesse contrato. Nesse diapasão, Locke caminha diferente de Hobbes que,
como se depreende pelo já exposto no item 3.4.1.4 defendia que do contrato
resultava um Estado absoluto.
Dois Tratados sobre o Governo (1690), a principal obra de filosofia política
escrita por Locke, tinha o objetivo de contestar a doutrina do direito divino dos reis e
do absolutismo real, bem como criar uma teoria que conciliasse a liberdade dos
cidadãos e a manutenção da ordem política.
Ele defendia, também, que o direito à propriedade advinha do trabalho que a
ela se dedicava e, portanto, se ninguém fosse prejudicado, ficaria assegurado o
direito ao fruto do trabalho. Essas foram as bases da ideia de uma sociedade sem
interferência governamental, um dos princípios básicos do capitalismo liberal. Para
Locke, quanto menor a ingerência governamental na vida do indivíduo, melhor ele
viveria.
O pensador inglês defendia que todo o conhecimento humano era obtido por
meio das experiências ao longo da vida. Para ele, ao nascer, era como se a mente
do ser humano fosse uma folha em branco, na qual se ia escrevendo o aprendizado.
Com base nisso, defendia o poder da educação como transformadora do
mundo, principalmente ao afirmar, também, que o Mal não era parte de um plano de
Deus, mas sim produzido por um sistema social criado pelos indivíduos, e se era
criado pelos homens, poderia também ser por eles modificado.
Locke foi importante escritor de economia, ativista político e revolucionário,
sempre se posicionando contra o Absolutismo. Como deputado no Parlamento,
defendeu que somente aqueles que tivessem o apoio da maioria dos parlamentares
deveriam ter o direito de ser ministros (o sistema britânico funciona assim até hoje).
Em sua obra, afirmou que a organização das leis e do Estado deve ser feita
com o objetivo de garantir o respeito aos direitos naturais – a proteção da vida, da
liberdade e da propriedade de todos, e é definida por ele como a única razão de ser
de um governo. Se o governante não respeitar esses direitos, os governados podem
derrubá-lo e substitui-lo por outro mais competente.
Locke exerceu grande influência sobre os pensadores de seu tempo e foi uma
das principais referências teóricas para os líderes das revoluções que, a partir do
final do século XVIII, transformaram a sociedade ocidental.
Para ele, não existia a renúncia dos direitos naturais em favor dos
governantes, visto que o poder deles era outorgado e, portanto, revogável. Assim, o
Direito de Resistência e de insurreição se justificaria quando as autoridades
abusassem do poder.
Nas próprias palavras de Locke:
[...] cabe ainda, ao povo confirmar um poder supremo para
afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que
age contrariamente ao encargo que lhe confiaram. Porque, sendo
limitado qualquer poder concedido como encargo para conseguir-se
certo objetivo, por esse mesmo objetivo, sempre que se despreza ou
contraria manifestamente esse objetivo, a ele se perde o direito
necessariamente, e o poder retorna às mãos dos que o concederam,
que poderão colocá-lo onde o julguem melhor para garantia e
segurança próprias. (LOCKE, 2008) (grifo nosso)
O filósofo inglês é considerado um dos primeiros pensadores a dar tratamento
sistemático ao Direito de Resistência. Em suas obras, principalmente no Segundo
Tratado sobre o Governo (1690), ele expõe claramente sua teoria do contrato social.
Para ele, todo o poder do Estado foi cedido por meio de um pacto e traz claramente
a necessidade de promover o bem-comum.
A partir dessa noção, se os representantes do Poder não cumprirem a
obrigação do pacto, isto é, promover o bem comum, o povo passará a ter o direito de
discordar do Poder instituído, por ter sido quebrado o compromisso assumido por
meio do pacto social. Desta forma, Locke assevera que:
A sociedade política conserva perpetuamente um poder supremo de
salvaguardar-se das tentativas e propósitos de qualquer pessoa,
mesmo de seus próprios legisladores, sempre que estes sejam
tolos ou perversos o bastante para conceber e levar a cabo planos
contra as liberdades e propriedades dos súditos. (LOCKE, 2008)
(grifo nosso)
Para o filósofo, os governados têm força legítima ao se oporem aos
governantes quando estes quebram o compromisso previamente assumido por meio
do contrato com a sociedade.
Como referido, as ideias de Locke foram fundamentais para a instauração
definitiva da monarquia parlamentarista na Inglaterra. Até o século XVIII, os reis
personificavam todo o poder, inclusive o “divino”, mas as ideias de Locke levaram a
Inglaterra a tomar a dianteira na Revolução Industrial; o poder interno foi repartido,
com participantes no Executivo e no Legislativo.
A rigor, Locke pregava a não-concentração dos poderes o que, juntamente
com a instauração do Parlamento, foram contribuições definitivas do grande
pensador para ajudar a terminar com no Estado Absolutista.
O Parlamento instaurado aumentou as proteções civis, principalmente as
proteções contra eventuais atos de ganância da Coroa. Além disso, o rei ficou
impedido de suspender a execução de leis deliberadas pelo Parlamento, de lançar
impostos sem o consentimento dos representantes, e as verbas do Tesouro foram
fixadas em orçamentos anuais.
Caso essas deliberações, que para Locke eram decorrentes do contrato
social, fossem descumpridas, o Direito de Resistência estaria justificado. Para ele:
“Se o governo se exceder ou abusar da autoridade explicitamente outorgada pelo
contrato político torna-se tirânico, o povo tem então o direito de dissolvê-lo ou se
rebelar contra ele e derrubá-lo”. (BURNS, 1972, p. 490)
Assim, o filósofo via o Direito de Resistência como garantia individual ou
coletiva a serviço da democracia, da liberdade e das transformações sociais, na
medida em que governantes e governados estavam sujeitos ao Direito, e obrigados
a cumprir o estipulado no contrato social e, na mão dos governados, estava o poder
de manter ou não o governante.
Locke defendia que ao povo restava um poder supremo para remover ou
alterar o legislativo quando este agisse em desacordo com a confiança nele
depositada. Nas palavras do filósofo inglês, aqui residia o embrião do direito
fundamental à resistência:
[...] a sociedade política conserva perpetuamente um poder supremo
de se salvaguardar das tentativas e propósitos de qualquer pessoa,
mesmo de seus próprios legisladores, sempre que estes sejam tolos
ou perversos o bastante para conceber e levar a cabo planos contra
as liberdades e propriedades dos súditos. (SILVA, 2006)
De acordo com Brondani (2007):
[...] nos capítulos XVI a XIX do Segundo Tratado, Locke analisou a
crise na sociedade que, pondo fim ao pacto inicial, abriu espaço à
resistência, direito fundamental, de caráter instrumental, de
manutenção e conservação da sociedade e do indivíduo. Da defesa
do Direito, se desincumbe o próprio Locke: dizer ao povo que pode
prover por si mesmo, instituindo um novo legislativo, quando – por
opressão, artimanhas ou por ter sido entregue a um poder
estrangeiro – o antigo já não existe, dizer-lhe que pode esperar alívio
quando for tarde demais e o mal estiver além de qualquer cura, na
verdade, não é mais que lhe pedir que primeiro seja escravo para só
então cuidar de sua liberdade; e quando estiver sob o peso dos
grilhões, dizer que pode agir como se fosse livre. (...) E, portanto, é
por isso que eles têm não só o direito de se livrarem dela como
também o de evitá-la.
Locke (2008) identifica, ainda, quatro formas do que ele chama de
degeneração da sociedade”, às quais é licito resistir: a conquista (agressão
externa), a usurpação (a conquista interna, como um golpe de estado), a tirania (o
exercício do poder além do direito) e a dissolução do governo.
61
Nos trechos finais de Segundo Tratado sobre o Governo (1690), Locke (2008)
reafirma que o grande legitimado para julgar tanto o príncipe quanto o Legislativo, se
estes agirem contrariamente às leis, é sempre o povo: Nas palavras textuais dele:
Logo, sempre que o legislativo transgrida essa regra fundamental, da
sociedade e, seja por ambição, seja por medo, insanidade ou
corrupção, busque tomar para si ou colocar nas mãos de outro um
poder absoluto sobre as vidas, as liberdades e as propriedades do
povo (...) ele perde o direito ao poder que o povo lhe depôs em mãos
(...) revertendo este ao povo. (...) O que se disse aqui a respeito do
legislativo, em geral é válido para o executor supremo que, sendo
depositário de um duplo encargo a ele confiado, o de fazer parte do
legislativo e o da suprema execução da lei, age contra ambos
quando (...) emprega a força, os tesouros e os cargos para
corromper os representantes e conquistá-los para os seus
propósitos.
Ao defender e incitar o povo a reassumir em suas mãos o poder que havia
delegado aos representantes do Poder instituído, por aquilo que ele denomina
“quebra do pacto estabelecido por meio do contrato social”, Locke permite identificar
os Referenciais da Bioética nas atitudes que advoga: a justiça, a responsabilidade e
61
O filósofo inglês traça uma distinção entre a dissolução do governo e a dissolução da sociedade.
Esta, mais grave, ocorre quando o acordo que cada um firmou para se juntar ao grupo é desfeito,
aquela quando o legislativo é alterado ou dissolvido ou quando o “príncipe” entrega o povo à sujeição
de um poder estrangeiro. (SILVA, 2006)
a autonomia (direito à vida e à liberdade) estão presentes e decorrem das atitudes
que o filósofo defendeu.
3.4.1.6 Desobediência Civil em Thomas Jefferson (1743-1826)
“A justiça é a lei suprema da sociedade”
Thomas Jefferson (1743-1826)
“Se uma lei é injusta, o homem não somente tem o direito de
desobedecê-la, ele tem a obrigação de fazê-lo.”
Thomas Jefferson (1743-1826)
“O preço da liberdade é a vigilância eterna.”
Thomas Jefferson (1743-1826)
Thomas Jefferson nasceu em 1743, em Albermarle County, na Virgínia, nos
Estados Unidos. Cursou Direito e embora fosse eloquente na escrita, não era bom
orador, tanto que suas contribuições na Câmara dos Burgueses da Virgínia e no
Congresso Continental foram muito mais por meio da escrita do que pelos discursos.
Tinha uma visão própria sobre ensino, que colocou em prática quando fundou
a Universidade da Virgínia. Foi o terceiro presidente dos Estados Unidos, mas foi
muito mais do que um simples estadista: foi filósofo político, revolucionário,
proprietário agrícola, arquiteto, arqueólogo e autor iluminista. (LOPES, 2000)
Aos 33 anos assinou a Declaração da Independência dos Estados Unidos,
sendo considerado seu principal autor. Em 1785, Jefferson sucedeu Benjamin
Franklin como ministro dos Estados Unidos para a França e até 1789 envolveu-se
nos primeiros acontecimentos da Revolução Francesa. Ainda assim, renunciou ao
cargo de Ministro em 1793.
Nos Estados Unidos, os conflitos políticos fizeram surgir dois partidos
diferentes, os federalistas e os republicanos democráticos. Gradualmente, Jefferson
assumiu a liderança dos Republicanos, pois estes simpatizavam com a causa
revolucionária na França. Ele atacou as políticas federalistas, opôs-se à
centralização do governo e defendeu os direitos dos estados da federação. (LOPES,
2000)
Jefferson não queria concorrer à presidência, mas mesmo assim foi candidato
em 1796. Embora tenha perdido a eleição e fosse oponente do presidente Adams,
uma falha
62
na Constituição permitiu que ele se tornasse vice-presidente, mas nas
eleições seguintes, em 1800, no centro de um grave conflito partidário, Jefferson
assumiu a presidência e escreveu numa carta particular: "Eu jurei no altar de Deus
hostilidade eterna contra toda forma de tirania sobre a mente do homem". (LOPES,
2000)
Depois de alguns atos na presidência, alguns bem recebidos, outros nem
tanto, Thomas Jefferson retirou-se para Monticello, na Virigina, para analisar
projetos a fim de realizar seu grande plano: a construção da Universidade da
Virgínia. (LOPES, 2000; HUBERMAN, 1978)
Foi lá, em Monticello, que Jefferson morreu, em 4 de julho de 1826,
coincidentemente, no mesmo dia em que eram comemorados os 50 anos da
Independência americana.
Antes de morrer, ele escreveu o próprio epitáfio e deixou claro que nada mais
deveria ser acrescentado: "Aqui jaz Thomas Jefferson, autor da declaração da
independência americana, da lei da liberdade religiosa da Virgínia e pai da
Universidade da Virgínia".
Ele foi fortemente influenciado pelas ideias de John Locke, principalmente no
que se refere ao princípio da inalienabilidade dos direitos, da soberania popular e,
em especial, da limitação do poder do Estado e da divisão tripartida do poder.
Jefferson, citado por Costa (1998, p.17) afirmou: “Nossos legisladores não se
acham suficientemente informados dos justos limites de seu poder; que sua
verdadeira função é declarar e fazer cumprir apenas nossos direitos naturais e
deveres, e não arrebatar nenhum deles de nós”. Portanto, é possível identificar em
Jefferson a mesma linha de pensamento de Hobbes (1588-1669), que muito o
influenciou.
Segundo Costa (1998, p. 18), Jefferson assim se declarou a respeito do
direito de resistência:
62
Refere-se aqui a uma falha presente na versão original da Constituição Federal dos Estados
Unidos: os membros do Colégio eleitoral votavam apenas no candidato a presidente; cada eleitor
poderia votar em dois candidatos, e o vice-presidente seria a pessoa que ficasse em segundo lugar
na votação. Depois da eleição de 1800, exposta a falha, foi criada uma emenda, ratificada em 1804,
segundo a qual ficava estipulado que os eleitores fizessem escolha distinta entre presidente e vice-
presidente. (HUBERMAN, 1983)
Sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais
fins (assegurar os direitos inalienáveis), cabe ao povo o direito de
alterá-lo ou aboli-lo e instituir novo governo, baseando-se em tais
princípios e organizando-lhes os poderes pela forma que lhe pareça
mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade (...)
quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo
invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígnio de reduzi-lo ao
despotismo absoluto, assiste-lhe (ao povo) o direito, bem como o
dever, de abolir tais governos e instituir novos guardas em prol da
segurança futura. (grifos nossos)
No mesmo entendimento de Locke, é possível encontrar a ideia de que os
direitos naturais são sempre do indivíduo. Entretanto, há uma diferença singular
entre a obra de Jefferson e as ideias de Locke. Para este, os direitos naturais eram
transportados para o pacto social quando de seu estabelecimento, e só retornavam
para o indivíduo se os governantes agissem com arbitrariedade ou injustamente.
Jefferson, por outro lado, deixa claro no texto da Declaração de Independência que
os direitos naturais, mesmo reconhecido o pacto social, continuam sendo individuais.
(COSTA, 1990, p. 19)
Além disso, Locke via a propriedade como um direito natural e Thomas
Jefferson a considerava mais sob o prisma de um produto da sociedade civil.
Como destacado, Jefferson julgava a resistência uma obrigação do cidadão.
Para ele, o cidadão tinha de ter participação política, pois ele também é responsável
pelo destino da sociedade política na qual está inserido.
Portanto, Jefferson defendia a participação ativa do cidadão e via na
resistência civil o instrumento adequado para enfrentar um governo arbitrário e,
portanto, na Desobediência Civil uma forma de o cidadão atingir esses objetivos.
Costa (1990, p. 18-9) declara que Thomas Jefferson era contratualista e
expõe que, segundo ele, os direitos à vida, à liberdade e à busca de felicidade
permaneciam em poder dos indivíduos, não sendo transmitidos à sociedade política
no momento em que esta se constitui, porque são inalienáveis, essenciais à própria
personalidade humana.
Segundo Durigan (2008): "Ora, se há quebra do contrato, com a supressão de
tais direitos, gerado está o dever de resistir, mais que um direito. O melhor governo,
diz Jefferson, é o que governa menos”, ideia que seria retomada por Thoreau, em
1849, no ensaio Desobediência Civil, que inicia com a seguinte afirmação: “Muito
entusiasmado aceito o lema ‘O melhor governo é o que menos governa’. Ficaria
contente se ele fosse aplicado pronta e ordinariamente”. (THOREAU, 2005, p.13)
Assim, segundo Costa (1990, p. 22):
Thomas Jefferson introduziu a noção de que a resistência não se
constituía apenas em um direito, mas no dever dos cidadãos frente a
uma situação política injusta. Dessa forma, o direito de resistir
passou a ser um instrumento vital para garantir a preponderância da
sociedade civil sobre o Estado. Este instituto sofreu tal
desenvolvimento, que passou a integrar as Constituições
revolucionárias francesas do século XVIII. Estava firmado,
definitivamente, que os cidadãos, sempre que os governos
procurassem usurpar-lhes direitos essenciais ao exercício da
participação política, tinham não só o direito, mas o dever de resistir
às arbitrariedades.
De acordo com Lopes (2000, p. 206), as palavras de Thomas Jefferson, na
Declaração de Independência, são exemplo da filosofia do Direito Natural moderno
incorporada ao discurso político-jurídico.
Nela se encontram praticamente todos os elementos da teoria e,
curiosamente, distingue-se por não incluir nos direitos fundamentais a propriedade,
mas sim a busca da felicidade. De qualquer modo, esse texto, do final do século
XVIII, é fruto do jusnaturalismo do século XVII:
Declaração de Independência das Treze Colônias (1776): ‘Quando
ao longo dos eventos humanos torna-se necessário que um povo
dissolva os laços políticos que o ligavam a outro e que assuma, entre
as potências da terra, o estado de igualdade e separação que as Leis
da Natureza e o Deus da Natureza lhe concedem, um respeito
honesto às opiniões da humanidade exige que declare as causas
que o impelem à separação. (…) – Sustentamos que estas verdades
são evidentes, que todos os homens foram criados iguais, que foram
dotados por seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre
eles estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. – Que para
garantir tais direitos são constituídos governos entre os homens,
cujos justos poderes derivam do consentimento dos governados. –
Que toda vez que qualquer forma de governo torna-se destrutiva de
tais fins, é direito do povo alterá-lo ou aboli-lo e instituir novo
governo, fundando-o em princípios tais e organizando-o, e a seus
poderes, de tal forma que lhe pareça mais adequada para a
efetivação de sua segurança e felicidade. (…) A prudência, com
efeito, dita que governos estabelecidos por longo tempo não devem
ser mudados por causas passageiras e levianas; da mesma maneira,
toda experiência demonstra que os homens estão mais dispostos a
sofrer, enquanto os males forem suportáveis, do que corrigi-los
abolindo as formas às quais se acostumaram. Quando, porém, um
longo cortejo de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente
o mesmo objetivo, evidencia o propósito de submetê-los a um
despotismo absoluto, é seu direito, é seu dever, desfazer-se de tal
governo e providenciar novos guardiões para sua segurança (…)
Aqui é possível relacionar as ideias de Jefferson aos demais autores e
filósofos que defendem as ideias do Direito Natural, além de afirmar que a violação
de um Direito Natural do homem, por parte do Estado e de suas autoridades,
fundamenta, justifica e catalisa o direito de resistência dos indivíduos a esses atos. E
mais: para Jefferson, o próprio direito de resistência às injustiças constitui um Direito
Natural do homem.
É possível identificar o cerne das ideias da Desobediência Civil nas frases
expressas por Jefferson no decorrer de seus anos atuando como político: "A justiça
é a lei suprema da sociedade" ou “Em todos os governos terrenos, existe algum
traço de fraqueza humana, algum germe de corrupção e degenerescência, que a
astúcia descobrirá e a maldade cultivará e aumentará.” e "A aplicação das leis é
mais importante que a sua elaboração". Pode-se destacar, ainda: "Nenhuma
sociedade pode fazer uma constituição perpétua, ou sequer uma lei perpétua";
“Quando um homem assume uma função pública, deve considerar-se propriedade
do público”; “Eu temo pela humanidade quando penso que Deus é justo." e “Uma
pequena rebelião agora e depois é uma coisa boa”.
Cabe aqui relacionar as ideias defendidas por Jefferson aos Referenciais da
Bioética, tanto em suas máximas quanto em seus atos.
Ao não tolerar injustiças dos governantes, Jefferson defende a aplicação do
Referencial da justiça. Também os Referenciais da qualidade de vida, da equidade,
da solidariedade e da responsabilidade podem ser identificados nas atitudes e ideias
do filósofo político.
3.4.1.7 Desobediência Civil em Henry David Thoreau (1816-1862)
“Só amanhece o dia para o qual estamos despertos.”
Henry David Thoreau (1816-1862)
“Se a lei contiver erros de tal ordem que nos obrigue a ser um
instrumento de injustiça para alguém, e se somente for este o caso,
então eu digo, viole a lei.”
Henry David Thoreau (1816-1862)
Henry David Thoreau era americano, foi escritor, filósofo, poeta e professor
primário; nasceu em 1817 e morreu em 1862 e, de acordo com Lisboa (1986, p.
366), passou vários anos de sua vida numa pequena cabana, perto de um lago
selvagem e, segundo Arendt (2006, p. 57), foi o responsável por inserir a expressão
Desobediência Civil no vocabulário político.
A afirmação de Arendt corresponde à mais fiel realidade, já que o texto
clássico sobre a Desobediência Civil foi escrito por ele e a motivação para escrevê-
lo veio de um acontecimento real na vida do filósofo.
Em 1846, ele vivia na cidade de Concord, em Massachusetts, nos Estados
Unidos e se viu frente a um cobrador de impostos chamado Samuel Staples, que
atuava na polícia municipal e exigia o pagamento dos impostos que Thoreau devia.
Entretanto, Thoreau se recusou a pagar e explicou suas razões: como o
dinheiro dos impostos era utilizado para financiar a guerra que os Estados Unidos
travavam contra o México e ele em hipótese alguma concordava com essa guerra,
não contribuiria com ela, mesmo que indiretamente, dando dinheiro para o Estado.
Como consequência, foi preso e passou a noite na delegacia, ainda que a
dívida tenha sido paga por outra pessoa, cujo nome não ficou registrado com
certeza.
Quanto a ser preso, Thoreau (2005, p. 29-30) manifestou-se de maneira
curiosa, mostrando que um corpo preso não significa alma ou mente trancafiada:
[...] e não pude deixar de perceber a idiotice de uma instituição que
me tratava como se fosse somente carne, sangue e ossos a serem
trancafiados. (...) Jamais me senti confinado, nem por um momento,
e as paredes me pareceram um desperdício descomunal de pedras e
argamassa. (...) visto que eles pensavam que meu maior desejo era
o de estar do outro lado daquela parede de pedra. Não pude deixar
de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e
imaginaram trancar as minhas reflexões – que os acompanhavam
porta afora sem delongas ou dificuldade. De fato, o perigo estava
contido nessas reflexões. Já que eu estava fora de seu alcance,
resolveram punir o meu corpo. Agiram como crianças incapazes de
enfrentar uma pessoa de quem sentem raiva e por isso dão um chute
no cachorro do seu desafeto. Percebi que o Estado era um idiota,
tímido como uma solteirona às voltas com sua prataria, incapaz de
distinguir seus amigos dos inimigos. Todo respeito que tinha pelo
Estado foi perdido e passei a considerá-lo apenas uma lamentável
instituição.
Segundo Paquot (2005):
Muito popular na cidadezinha e convertido pelas ideias inovadoras de
Ralph Emerson (1803-1882), rodeado por intelectuais e pressionado
pela revista The Dial, David Thoreau devia relatar sua experiência e
justificar sua posição. Ele redige “A relação do indivíduo com o
Estado”, texto que apresenta em uma Conferência em Concord, em
janeiro de 1848. Elizabeth Peabody – cunhada do romancista
Howthorne – publica-o na sua revista Aesthetic Papers, em maio de
1849, com o título de “Resistência ao Governo Civil”. que nas Obras
Completas de Thoreau, publicadas depois de sua morte em 1862,
terá o título de “A desobediência civil”.
Assim, segundo registros históricos, o texto inserido nas Obras Completas de
Thoreau, publicadas depois de sua morte, em 1862, com o título “A Desobediência
Civil”
63
, cristalizou definitivamente esta expressão para representar atos dos
cidadãos frente a leis injustas impostas pelo Poder constituído.
O tom do pensamento de Thoreau aparecia já nas primeiras linhas do ensaio:
Muito entusiasmado aceito o lema “O melhor governo é o que menos
governa”. Ficaria contente se ele fosse aplicado pronta e
ordinariamente. Entendido ao pé da letra, esse lema significa o
seguinte, no que também creio: “O melhor governo é o que não
governa absolutamente nada. (...) Entretanto (...) desejo
imediatamente um governo melhor, e não o fim do governo. Quando
cada homem expressar o tipo de governo capaz de conquistar seu
respeito, estaremos nos aproximando de conseguir formar tal
governo. (THOREAU, 2005, p. 13-5)
A propósito, Thoreau se mostrou um homem à frente de seu tempo: além de
defender o Direito de Resistência, ele lutou contra todas as formas de discriminação
étnica e sexual e a favor dos direitos das mulheres e da defesa do meio-ambiente.
Ao comentar sobre sua recusa em pagar os impostos, desobedecendo à lei
tributária vigente, e sobre o compromisso que todo homem deve ter com sua
consciência, Thoreau (2002, p. 15) assim se expressou:
Será que o cidadão deve desistir de sua consciência, mesmo por um
único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por
que então estará cada pessoa dotada de uma consciência? Em
minha opinião, devemos ser primeiramente homens, e só
posteriormente súditos. Cultivar o respeito às leis não é desejável no
mesmo plano do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho
direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo.
O ensaio de Thoreau influenciou importantes figuras da luta não-violenta
pelos direitos civis, em todo o mundo, incluindo Gandhi e sua satyagraha
64
.
Ao se tornar advogado na África do Sul, Gandhi publicou o ensaio de Thoreau
na sua revista Indian Opinion, em 1907. A partir daí, até seu assassinato, em 1948,
Gandhi teve e recomendou atos de Desobediência Civil, sempre associados à
prática da não-violência.
63
Cf. Anexo A: Desobediência Civil – texto completo (Henry David Thoreau).
64
Satyagraha é uma refinada variedade de resistência não-violenta desenvolvida por Mohandas
Gandhi. Para mais detalhes, ver item 3.4.2.4.
Também Martin Luther King (1929-1968), em sua luta contra a discriminação
racial, foi influenciado por Thoreau, ao adotar a proposta não-violenta utilizada por
Gandhi (os negros americanos fizeram uso do boicote, da marcha e dos protestos).
Ressalta-se aqui que Thoreau também era abolicionista.
Note-se que não passa despercebida por Thoreau a dificuldade de o cidadão
optar por participar politicamente da construção de sua História e por lutar por sua
liberdade:
É mais fácil obedecer, acatar, aceitar, respeitar. E compensa mais. A
liberdade vai doravante requerer maior disciplina e maior reflexão.
Num mundo de máquinas obedientes, a recusa e a desobediência
vão ser mais difíceis. A aprendizagem da liberdade não se
compadece com imitações. (THOREAU, 2002)
Thoreau não foi a favor dos que se acomodam, mas reconheceu a dificuldade
que enfrentam os que escolhem lutar. Ainda assim, deixou muito claro que para ele
a participação do cidadão não pode se limitar ao voto, deve ser muito maior. Ele
propôs uma forma de resistir ao governo por meio de ações práticas, principalmente
o não-pagamento dos impostos, e afirmou:
Tão somente uma vez por ano, e não mais do que isso, é que me
encontro cara a cara com esse governo norte-americano, ou com o
governo estadual que o representa. Isso se dá quando sou procurado
pelo coletor de impostos. (...) Não há outra forma mais simples, mais
efetiva e, na conjuntura atual, mais indispensável de lidar com o
governo neste particular, de expressar sua pouca satisfação ou seu
pouco amor em relação a ele. Negá-lo é preciso, naquele local e
momento.
(THOREAU, 2002, p. 24)
Thoreau foi, sem dúvida, um desobediente civil e praticante de ato de
resistência, ainda que haja discordância na doutrina e nos estudos filosóficos sobre
a possibilidade de atos individuais e/ou isolados serem considerados exercício da
Desobediência Civil.
Hannah Arendt e Norberto Bobbio são representantes daqueles que julgam
que atos individuais não podem ser exatamente considerados atos de
Desobediência Civil. Apesar da discordância por parte deles e de alguns outros
autores, o fato é que nada impede que um ato individual e isolado seja considerado
ato de Desobediência Civil, haja vista que um dos objetivos da Desobediência Civil é
justamente fazer o cidadão participar de transformações que levem a modificações
na sociedade.
Mas Arendt, ao falar sobre Thoreau, defendia que embora ele tivesse
contestado e protestado “contra a injustiça das leis em si mesmas” (ARENDT, 2006,
p. 57), diferente de Sócrates, por exemplo, que contestou somente o que havia
acontecido com ele próprio
65
, havia um problema na postura dele, pois ela pensava
que o autor não debatia as causas da desobediência no campo da moral do cidadão
com a lei, mas no campo da moral do indivíduo com ela.
Em sua análise, a pensadora defendeu que Thoreau problematizava a
Desobediência Civil da seguinte forma: se o Estado se torna indigno e corrupto, é
tarefa moral do indivíduo não dar mais suporte a este Estado. E mais, num estado
injusto, segundo Thoreau, o lugar de um homem justo é a prisão. (THOREAU, 2005)
(grifo nosso)
Para Thoreau, a obediência às leis e às práticas governamentais passava
obrigatoriamente pela avaliação individual e, no caso dele, chegaria à conclusão de
ser correto negar a autoridade do governo quando os atos deste tivessem caráter
injusto, sem se importar que esse governante estivesse no poder como
representante da vontade da maioria.
Desta forma, advogava que nada impedia que essas mudanças começassem
a partir de um ato individual, exatamente como se pode perceber a partir de suas
atitudes e de seus escritos, cuja intenção era inegavelmente provocar mudanças nos
atos governamentais da época e na forma de os cidadãos participarem dessas
mudanças.
No mesmo diapasão manifesta-se Monteiro (2003, p. 203-4):
Aqui a defesa é de que a opressão (...) admite o exercício do direito
político de resistência dentro da ordem jurídica constitucional. Esse
direito político de resistência, juridicamente protegido, possui também
fundamento individual, embora seu exercício seja eminentemente
coletivo. Possui fundamento individual porque o indivíduo do Estado
Democrático de Direito é dotado de uma esfera de direitos e
liberdades intangíveis diante do Estado (status libertatis), não sendo
diluída a sua individualidade no todo orgânico, e de uma esfera de
direitos de participação política (status activo civitatis), para cuja
efetivação não depende da participação de outros indivíduos,
podendo isoladamente exercê-lo. Possui fundamento individual com
amparo teórico no contratualismo político, doutrina que bem
fundamenta o direito de resistência na seara da filosofia política.
Porém, apesar do seu fundamento individual, a resistência política
deve ser, preferencialmente, exercida coletivamente, até porque mais
fácil se torna a sua caracterização – o que será necessário fazer
65
Assunto discutido mais detalhadamente no item 3.4.2.1.
após a sua prática – como um movimento político e não como um ato
ilícito de motivações nefastas, quando exercida coletivamente.
Aliás, pode-se trazer à baila aqui outro ato individual: o de Antígone, já
discutido, sendo interessante perceber que o questionamento de Thoreau pode ser
claramente relacionado às atitudes práticas de Antígone.
Thoreau (2005, p. 23) questionou: "Leis injustas existem. Devemos submeter-
nos a elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até sua
reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente?" e Antígone desobedeceu, em
favor do irmão tão amado e em respeito à lei divina.
Thoreau termina seu ensaio com uma proposta para um Estado, segundo ele,
mais perfeito e glorioso. Primeiro, ele questiona; depois propõe (THOREAU, 2005, p.
39):
Será que a democracia, da forma como a conhecemos, é o último
aperfeiçoamento possível em termos de construir governos? Não
será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer no
indivíduo um poder maior e independente – do qual a organização
política deriva seu próprio poder e sua autoridade – e até que o
indivíduo venha a receber um tratamento correspondente? Ponho-me
a imaginar, prazerosamente, um Estado que possa enfim se dar o
luxo de ser justo com todos os homens e de tratar o indivíduo
repeitosametne, como um vizinho. Idealizo um Estado que sequer
consideraria um perigo à sua tranquilidade a existência de alguns
poucos homens que vivessem à parte deles, sem nele se
intrometerem nem serem por ele abrangidos. E que
desempenhassem todos os deveres de vizinhos e de seres
humanos. Só um Estado que produzisse esse espécie de fruto, e que
estivesse disposto a deixá-lo cair tão logo amadurecesse, construiria
via segura para um Estado ainda mais perfeito e glorioso. Durante
muito tempo imaginei um Estado desses, mas infelizmente nunca o
encontrei em lugar nenhum.
Responsável pela disseminação e pelo definitivo reconhecimento do termo
Desobediência Civil para identificar atitudes de enfrentamento ao Poder estabelecido
quando este instituir leis injustas que submetam o cidadão a condições de vida não-
condizentes com as prerrogativas do Estado Democrático de Direito, para citar a
presença dos Referenciais da Bioética na vida e na obra de Thoreau seria suficiente
ratificar aqui as observações já feitas neste estudo, mas o conteúdo da citação
acima ilustra a consonância das ideias desse filósolo com as ideias propostas e
defendidas por Hossne (2006) na Teoria dos Referenciais da Bioética.
3.4.1.8 Desobediência Civil em Leon Tolstoi
66
(1828-1910)
“O único fim dos tribunais é o de manter a sociedade no seu estado
atual.”
Leon Tolstoi. Ressurreição. (
1899)
“Governos precisam de exércitos para protegê-los de seus oprimidos
e escravizados súditos.”
Leon Tolstoi (1828-1910)
“Mas a verdade é que não só nos países autocráticos como
naqueles supostamente livres – como a Inglaterra, a América, a
França e outros – as leis não foram feitas para atender à vontade da
maioria, mas sim à vontade daqueles que detêm o poder.”
Leon Tolstoi. A Escravidão do Nosso Tempo. (1900)
Leon Tolstoi, ou Liev Tolstoi, nasceu em 1828, em Iásnaia Poliana, na Rússia.
Pertencia a uma nobre família ligada aos tsares; ficou órfão ainda criança e largou
os estudos para seguir a carreira militar, mas logo abandonou o exército para se
dedicar à literatura.
Tolstói recusou toda forma de governo e poder, desenvolvendo sua própria
maneira de viver, marcada por ideias partidárias com posição pacifista.
Além de sua fama como escritor, Tolstoi ficou famoso por se tornar, na
velhice, um pacifista, cujos textos e ideias entravam em confronto com as igrejas e
governos, pois ele pregava veementemente uma vida simples e desprovida de luxos.
Foi perseguido e excomungado pela Igreja, mas mesmo assim seus escritos
filosóficos influenciaram o aparecimento de comunidades e de uma corrente de
anarquismo cristão.
No final da década de 1850, preocupado com a precariedade da educação no
meio rural, Tolstoi criou uma escola para filhos de camponeses. Ele mesmo
escreveu grande parte do material didático e, ao contrário da pedagogia da época,
deixava os alunos livres, sem excessivas regras e punições.
Em 1862, casou-se com Sônia Andreievna Bers, com quem teve 13 filhos.
Durante 15 anos, dedicou-se intensamente à vida familiar. O casamento com Sônia
66
Neste item, estão compiladas informações obtidas de várias fontes, a saber: TOLSTOI, Leon. O
Reino de Deus está em vos; BOFF, Frade Clodovis. In: TOLSTOI, Leon. O Reino de Deus está em
vós. TOSTÓI, Leon. A morte de Ivan Ilitch. GHANDI, Mahatma. Autobiografia. No caso de citação
literal, a obra será identificada no corpo do texto.
foi repleto de distúrbios e brigas, mas foi exatamente nos anos de casado que os
romances que o imortalizaram foram escritos: Guerra e Paz (1865 a 1869),
considerado uma das maiores obras da literatura mundial, e Anna Karenina (1875-
1877), no qual denunciou o ambiente hipócrita da época e realizou um dos mais
profundos retratos femininos da Literatura.
Tolstoi, em toda a sua obra, incluindo A morte de Ivan Ilitch (1886), criticou a
miséria social e os horrores militares, colocando-se entre os grandes apóstolos da
objeção de consciência.
Aliás, Tolstoi aplicou as conclusões às quais chegara a personagem
protagonista do livro citado à sua própria vida, no ano de 1891. O verão fora
rigoroso, os campos russos estavam secos, os lavradores, desesperados. O
governo vetou qualquer iniciativa particular de ajuda aos flagelados. Tolstoi ignorou
a proibição, organizou postos de serviços, recolheu fundos e fez campanhas por
meio de veementes artigos impressos, com o objetivo de ajudar os camponeses.
Essas atitudes, de clara Desobediência Civil, podem ser consideradas
recheadas da presença de Referenciais da Bioética, ainda que Tolstoi sequer os
imaginasse nas discussões filosóficas do futuro, ao menos não os imaginava com
esta denominação.
Nos atos do filósofo é possível identificar aplicação e defesa da justiça, da
beneficência, da solidariedade, do respeito à autonomia, do auxílio aos vulneráveis,
da luta pela dignidade, do altruísmo, da equidade, da solidariedade, da
responsabilidade e da alteridade, todos Referenciais da Bioética enumerados por
Hossne (2006).
Segundo Boff (1994), para Tolstoi, a revolução começava nas consciências.
Ela constituía antes de tudo um imperativo ético de justiça e, mais radicalmente
ainda, de verdade, que se pode afirmar serem pensamentos indiscutivelmente
bioéticos.
Ele era muito bem-sucedido como escritor, além de mundialmente famoso.
Ainda assim, sentia-se angustiado com questões sobre o sentido da vida, para o
qual tentou encontrar respostas na Filosofia, na Teologia e na Ciência, mas desisitu
e optou, por fim, por seguir o exemplo dos camponeses, passando a levar uma vida
simples, tendo como base de suas ações o Novo Testamento, que moldou sua vida
a partir de então.
Recusou a autoridade de qualquer Governo organizado e de qualquer Igreja,
tendo importante influência no progresso do pensamento anarquista. Alguns o
consideravam cristão libertário, embora ele mesmo repudiasse tal classificação. O
escritor não acreditava em guerras e revoluções como solução e ficou famoso por
ser um pacifista.
No livro O Reino de Deus está em vós (1890-1893), Tolstoi se baseia no
Sermão da Montanha para afirmar que não se deve resistir ao mal utilizando o
próprio mal; a resistência pacífica, segundo ele, é a única capaz de eliminar o mal.
Assim, é possível encontrar em Tolstoi a inequívoca opção pela não-violência,
motivada pelas ideias dos Evangelhos, em clara aplicação dos Referenciais da
Bioética às suas atitudes cotidianas.
Durante vários anos, Tolstoi difundiu suas ideias por meio de panfletos,
ensaios e peças teatrais, nos quais criticava a sociedade e o intelectualismo estéril.
Essas ideias do escrtior influenciariam Gandhi (1869-1948) e, consequentemente, a
libertação da Índia. Ainda jovem nessa época, Gandhi passou a se comunicar com o
escritor russo por correspondência. Nas palavras do Mahatma, Tolstoi foi o maior
"apóstolo da não-violência".
A não-violência de Tolstoi se exprime na não-cooperação, na Desobediência
Civil e, particularmente, no repúdio ativo a toda servilidade. Tolstoi percebia
nitidamente que o poder se alimenta da aceitação e do consenso ou, pior ainda,
alimenta-se da obediência cega e da submissão.
Ao se analisar a obra de Tolstoi, percebe-se a eclosão de sua veia
radicalmente libertária. Para ele, a liberdade é um atributo inalienável do ser
humano. Por isso, entre as frases que pôs no frontispício do livro O Reino de Deus
está em nós, encontra-se a frase de São Paulo: "Não vos torneis servos dos
homens" (I Cor 7,23).
Tolstoi não acredita que uma revolução violenta possa trazer efeitos
libertadores, mesmo que a revolução seja popular. Para ele, a revolução violenta é
politicamente inviável, devido à complexidade e à potência do Estado moderno, além
de ser também ineficaz, pois instauraria necessariamente uma opressão mais cruel
que a anterior. Assim, pode-se relacionar suas ideias às características da
Desobediência Civil, cujas atitudes devem ser não-violentas.
Tolstoi foi antimilitarista absoluto, não parcial, pois além do serviço militar,
recusava qualquer tipo de legitimação à guerra. Portanto, Tolstoi defendeu também
o direito de objeção de consciência militar, já comentado em algumas passagens
deste estudo.
As ideias de Tolstoi remetem às de Thoreau (1849) e sua "desobediência
civil" – e posteriormente também influenciaram Gandhi (1869-1948): o homem livre e
justo há de viver ignorando o governo, não irá combatê-lo de frente, mas sim no
princípio interno que o sustenta, isto é, o reconhecimento do poder desse governo e
a obediência à ele.
Foi Leon Tolstoi que, não se sabe exatamente como, leu o texto de Thoreau e
motivou os americanos, em uma carta publicada pela North America Review, no
início do século XX, a retomar essa atitude corajosa e exemplar de um indivíduo que
é capaz de enfrentar o Estado. (PAQUOT, 2005)
Após sua opção por uma vida simples, Tolstoi buscou comunhão com a
natureza; parou de beber e fumar; tornou-se vegetariano e passou a se vestir como
camponês. Ademais, estava convencido de que ninguém deve depender ou explorar
o trabalho alheio e passou a limpar seus aposentos, a lavrar o campo e a produzir as
próprias roupas e calçados. Essas ideias atraíram verdadeira legião de seguidores,
que se denominavam "tolstoianos".
Para Tolstoi, os Estados, as igrejas, os tribunais e os dogmas eram apenas
ferramentas de dominação de uns poucos homens sobre outros. O escritor entendia
como dogmas irracionais, que serviam para dominar o povo, alguns dos conceitos
mais caros à Igreja.
Considerava e seguia a doutrina de Jesus, mas achava impossível, por
exemplo, que Jesus pudesse ser um homem e Deus, ao mesmo tempo. Para ele,
Deus estava nas próprias pessoas e suas ações e Jesus teria sido o homem que
melhor soube exprimir uma conduta moral que gerasse justiça, felicidade e elevasse
espiritualmente todos os homens.
Apresentava um cristianismo exacerbado, no fim de sua vida. Porém, nem
sempre o autor parece ter sido fiel às suas teses, já que alguns de seus textos
mostram tendência a exaltar o celibato, mas ele ainda teve filhos depois de tê-los
escrito.
Já a respeito da Igreja, Tolstoi a via como outro sustentáculo da violência,
mas não só esta ou aquela igreja concreta; ele atacava a ideia de igreja em si. Nas
próprias palavras de Tolstoi: "cada igreja, como igreja, sempre foi e não pode deixar
de ser uma instituição não só alheia, mas até diretamente oposta à doutrina de
Cristo”.
Tolstoi afirma, ainda, que as igrejas não seriam apenas infiéis a Cristo, mas
chegavam até mesmo a ser hostis ao Cristianismo: para ele, as pessoas santas e
boas o eram devido à própria virtude, e não devido à igreja a qual pertenciam.
Assim, São João Crisóstomo
67
e São Francisco
68
, por exemplo, seriam bons
apesar da igreja e não por causa dela, pois ele vê as igrejas como instituições
intrinsecamente mentirosas, cuja função não é a de revelar a doutrina de Cristo; ao
contrário, é escondê-la, enganar as pessoas, mentir para o povo.
Todos os símbolos da igreja: velas, cantos, bandeiras, sinos, paramentos,
procissões, pinturas etc. são atacados, pois Tolstoi via neles um meio para
"hipnotizar", impressionar e adormecer a consciência do povo.
Para o escritor, o Cristianismo não era uma doutrina abstrata (para se saber),
mas uma proposta prática (para se viver), o que o levava do conhecimento e das
palavras para os atos.
Tolstoi agia em defesa de algumas comunidades rurais e devido a essas
atitudes era vigiado pela polícia do Czar. Além disso, suas ideias e textos levaram-
no a ser excomungado da Igreja Ortodoxa russa, em 1901, o mesmo ocorrendo com
alguns de seus amigos e seguidores, que também foram exilados. Tolstoi somente
não foi preso porque era adorado em todo o mundo como um dos maiores nomes da
arte de seu tempo.
Em sua busca pela simplicidade, chegou a abrir mão de receber os direitos
autorais dos livros que viria a escrever, utilizando este dinheiro somente quando
precisou de fundos para transportar, para o Canadá, uma comunidade de
camponeses perseguidos pelo governo, o que mostra que suas opiniões eram
defendidas também com atos, não só com palavras, e perrmite relacioná-lo à
67
São João Crisóstomo, nasceu em 349, na Antioquia da Síria, hoje cidade de Antakaya, no sul da
Turquia, e faleceu em 407; foi teólogo e escritor cristão, além de Patriarca de Constantinopla.
68
São Francisco de Assis nasceu em Assis, em 1182, e morreu em 1226; foi um frade católico que
renunciou a toda a riqueza da família, fez voto de pobreza e fundou a Ordem dos Frades Menores,
mais conhecida como Ordem dos Franciscanos. É considerado o santo patrono dos animais e do
meio ambiente.
Thoreau e à Gandhi, entre outros, e ambos a grandes figuras da Desobediência
Civil.
Mesmo assim, ele não conseguia alcançar totalmente a simplicidade e a paz
nas quais acreditava e que pregava, pois sua família, especialmente a esposa,
cobrava-lhe os luxos e riquezas aos quais estava acostumada. Sonia, cobrava
especialmente que o escritor deixasse para ela, em testamento, os direitos autorais
das obras que escreveu na fase final de sua vida.
Entretanto, fiel às suas convicções, Tolstoi elaborou um testamento secreto,
no qual passava todos os direitos autorais a um tolstoiano chamado Chertkov, que
tornaria sua obra pública, para que ninguém recebesse dinheiro por ela.
Apesar de ter pensado diversas vezes em sair de casa e abandonar a
família, Tolstoi sentia pena da esposa que, apesar de tudo, dedicava-lhe a vida e
copiava seus textos. Entretanto, as brigas entre o casal se intensificaram, e ela
começou a ter surtos de histeria e a sentir severos ciúmes do escritor e seu grupo de
amigos e seguidores (os assim-chamados tolstoianos).
Quase aos 82 anos, sentindo-se cada vez mais atormentado pelas
contradições entre sua moral, que defendia, a ética que queria aplicar e a riqueza na
qual se via obrigado a viver por causa da família, já que a esposa se recusava a
abrir mão dos bens materiais, Tolstoi decidiu, enfim, fugir de casa e largar a vida que
ele tanto desprezava, devido ao luxo, ciúmes e histeria.
Sobre essa fuga e a morte do filósofo, assim se pronunciou o poeta brasileiro
Mario Quintana:
Poema da Gare de Astapovo
Mário Quintana (1906-1994)
O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo,
Contra uma parede nua...
Sentou-se... E sorriu amargamente.
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um velho caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo tão sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A Morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe e até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!”
Durante alguns dias, a fuga foi um sucesso, embora Tolstoi ainda tivesse
medo que a esposa o seguisse. Nos trens e nas estações pelas quais passava, era
reconhecido por todos, já que era o homem mais famoso da Rússia.
Mas, devido a sua preferência por viajar em vagões de terceira classe, nos
quais havia frio e fumaça, o escritor contraiu pneumonia.
Como já estava debilitado, a doença se agravou rapidamente. No dia 20 de
novembro de 1910, aos 81 anos, o velho escritor morreu, na estação ferroviária de
Astapovo, na província de Riazan.
Como poeticamente descreve Galvani (1934-):
Foi assim, num dia 20 de novembro, num final de tarde, quando o
parco sol esmorecia no horizonte, o inverno gelado se anunciava e a
vida deixava de ter um pouco mais de brilho para a Rússia.
Abandonado e esquecido de si mesmo, jazia num banco de madeira
da estação de Astapovo, próximo à Iasnaia Poliana, o Conde Tolstoi,
ou melhor, Leon Tolstoi, um dos maiores escritores da história da
humanidade.
O trem funerário que trazia seu corpo foi recebido por camponeses e
operários que viviam próximos à propriedade da família Tolstoi. O cortejo foi seguido
por uma multidão de quase quatro mil pessoas e o número teria sido ainda maior se
o governo de São Petesburgo não tivesse proibido a vinda de trens especiais de
Moscou para o enterro do escritor. Sua morte foi noticiada nos principais jornais do
mundo e o exemplo (Bio)ético de Tolstoi passou para a Eternidade.
3.4.1.9 Desobediência Civil em Hannah Arendt (1906-1965)
“Até nos tempos mais sombrios temos o direito de esperar ver
alguma luz. É bem possível que essa luz não venha tanto das teorias
e dos conceitos como da chama incerta, vacilante, e muitas vezes
tênue, que alguns homens e mulheres conseguem alimentar.”
Hannah Arendt (1906-1975)
“É na esfera política e pública que realizamos nossa condição
humana.”
Hannah Arendt (1906-1975)
Hannah Arendt nasceu em 1906, em Linden, na Alemanha e enfrentou as
grandes transformações do poder político do século XX. Pertencia a uma rica e
antiga família judia alemã, mas apesar de sua origem não teve educação religiosa
judia tradicional e suas tendências à livre pensadora levaram-na a professar sua fé
em Deus de forma aberta e não-convencional. Ainda assim, Hannah dedicou-se
muito durante a vida a tentar compreender o destino do povo judeu perseguido por
Hitler.
Ela estudou Teologia e se formou em Filosofia em Heidelberg, Alemanha,
onde viveu um caso amoroso com o filósofo e seu professor Martin Heidegger.
Entretanto, quando ela ia começar a atuar no mundo acadêmico, em 1933, Hitler
subiu ao poder e ela saiu da Alemanha, rumo a Paris, onde iniciou seus esforços a
favor do sionismo, preparando jovens para viverem como operários ou agricultores,
na Palestina.
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o governo francês da cidade
de Vichy colaborou com os invasores alemães e, por ser judia, Hannah foi enviada a
um campo de concentração, em Gurs, como "estrangeira suspeita". Porém,
conseguiu escapar e foi para Nova Iorque, aonde chegou em maio de 1941.
Como exilada, Hannah Arendt ficou sem direitos políticos e só em 1951
obteve a cidadania norte-americana. A partir daí, conseguiu iniciar a carreira
acadêmica, que durou até sua morte, em 1975, em Nova Iorque.
O trabalho filosófico de Hannah Arendt aborda temas como a autoridade, a
política, a educação, o totalitarismo, a violência, as condições de trabalho e a
condição das mulheres.
Os escritos e obras de Arendt são vistos como extremamente importantes
para a reflexão sobre temas do século XX que – e muitas vezes, infelizmente –
perduram neste século, pois a Humanidade parece continuar se dilacerando com
guerras localizadas e mesquinhas, manifestações nacionalistas deturpadas e
utilização da religião como justificadora de atos violentos.
Foi feroz combatente dos regimes totalitários, os quais condenou em suas
obras. Como explicita Nascimento (2006):
O primeiro livro de Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo
(1951), confirma-a como figura maior do pensamento político.
Enunciando os aspectos comuns ao nazismo e ao estalinismo,
Arendt mostra como o totalitarismo depende da burocratização do
terror e das vias tortuosas da manipulação das massas. Hitler e
Estalin (sic) seriam, assim, duas faces da mesma moeda tendo
ascendido ao poder explorando a "solidão organizada" das massas.
A Condição Humana, de 1958, sublinharia a importância de um
entendimento da política como acção e como processo em direcção
à conquista da liberdade. Anos depois, em Sobre a Revolução
(1963), examina as revoluções francesa e americana, alegando que
a preservação da liberdade apenas é possível se as instituições e
organizações pós-revolucionárias englobarem e mantiverem vivas as
ideias revolucionárias. Avisaria por isso que se os americanos se
distanciassem dos ideais que levaram a Revolução Americana
perderiam o seu sentido de pertença e identidade.
No mesmo ano escreveria Eichmann em Jerusalém, onde mostraria
que o protótipo do exterminador de judeus não é um demónio mas
alguém "terrivelmente, horrivelmente normal". Muitos intelectuais
judeus criticaram o livro por descrever o assassino dos judeus como
um "típico burocrata", homem comum que, sem capacidade para
separar o bem do mal, havia sido levado à prática desses crimes por
cumprir fielmente as ordens recebidas. No limite, Hannah estaria a
sugerir a cumplicidade dos judeus europeus em relação à sua própria
destruição. Na verdade, ela apenas afirmava, como desde sempre
havia feito, que a verdadeira compreensão de fenómenos como o
totalitarismo deveria tomar em consideração a complexidade da
natureza e da motivação humana – uma certa "banalidade do mal" –
para o que importaria manter uma permanente vigilância, de modo a
assegurar a defender a liberdade.
Hannah Arendt dedicou-se ao estudo e a suscitar discussão e reflexão – em
óbvia postura ética e Bioética – sobre temas delicados e polêmicos da História da
Humanidade, como a guerra, as revoluções, o totalitarismo e a resistência.
Arendt (1988, p. 15-6) estabeleceu clara distinção entre guerra e revolução,
mas defendia que tanto uma como outra só podiam ser concebidas com violência e,
justamente por isso, deviam ser analisadas separadamente do fenômeno político, já
que ela entendia o campo político como o campo do exercício da liberdade, no qual
as pessoas podiam se reunir, falar e articular entre iguais, além de defender a
necessidade da existência de instituições fortes como fundamentais para a
manutenção da liberdade.
Em seus estudos, a filósofa escreveu sobre as revoluções (Arendt 1988, p.
23-8), afirmando que na forma como aconteciam – e incluía nesta reflexão a
Revolução Francesa – o mais importante era o conceito de libertação, e que isso
explicava o motivo de a liberdade ser deixada em plano secundário tão logo os
revolucionários assumiam poder; pelo menos na maioria dos casos.
Além disso, ela explicitou que o conceito moderno de revolução estava ligado,
principalmente, à ideia de que logo após começava uma nova História ou, pelo
menos, uma História inovada e modificada, o que ela exemplificou com a
instauração de um novo calendário logo depois do triunfo dos revolucionários na
França.
Para ela, a violência, a ideia de libertação e a sensação de um início
inteiramente novo eram as características de uma Revolução. E são justamente
essas características que permitem apontar a distinção entre revolução e
resistência, presente no pensamento da filósofa.
Para Arendt, a resistência estava intimamente ligada à restauração ou
manutenção dos termos do contrato social e aqui é possível fazer estreita relação de
seu pensamento com o pensamento contratualista de Locke.
Como bem explicita Nascimento (2006):
O compromisso do cidadão com as leis advém primordialmente do
fato deste ter supostamente sido o legislador ou ter dado
consentimento a este por meio de processos formais. Sendo assim, o
homem, quando se sujeita à lei não se sujeita a uma vontade alheia
mas a uma vontade a que ele próprio aquiesceu, e, sendo assim, é
senhor e escravo de si mesmo. Esta foi a solução de Rousseau e de
Kant para o problema do compromisso. Arendt critica esta posição
pela simples razão de que ela retorna ao indivíduo em seu foro
íntimo de consciência, o conflito original entre os interesses
subjetivos e o bem comum. Em última análise e sem maiores
digressões, podemos apontar este como o ponto primordial dos
argumentos em prol da obediência irrestrita à lei. O argumento é um
só: nós devemos obedecer à lei pois vivemos em uma democracia e
nos foi dado o direito de votar. Acontece que é exatamente este
direito das maiorias, assevera a autora, este "sufrágio universal em
eleições livres, como sendo uma base suficiente para a democracia e
uma pretensão de liberdade pública, que está sob ataque". (grifo
nosso)
Entretanto, é preciso ter bem clara a ideia da filósofa sobre contrato social.
Segundo Arendt (2006, p. 77), havia três tipos diferentes de contratos sociais, a
saber:
- contrato teocrático: celebrado entre Deus e o povo como um todo,
por intermédio das leis reveladas, às quais se deve obediência
irrestrita. Típico do convênio bíblico de Moisés e do povo hebreu;
- contrato vertical: celebrado entre os homens, que renunciam a
todos os direitos e poderes para estabelecer uma autoridade
secular para garantir principalmente segurança e proteção.
Reivindica para esta autoridade o monopólio de poder em benefício
dos que estão submetidos a ele. Também chamado de variante de
Hobbes. O vertical é o contrato proposto pelo governante aos
governados, pelos dirigentes aos dirigidos. Isto é, o contrato, assim
pensado, é uma forma de acordo entre desiguais, de um que
manda e de outro que obedece. Essa forma de contrato se
estabeleceu e tem sobrevivido recorrendo a uma instância de
legitimação externa aos homens a respeito da qual se construiria
consensos capazes de dar legitimidade ao governo de uns sobre os
outros e, ao mesmo tempo, de inviabilizar as associações, reuniões,
assembleia s dos cidadãos etc., fonte do poder efetivamente
político;
- contrato horizontal: versão do pacto social que guia não o governo,
mas notadamente a própria sociedade. Feito o pacto entre os
indivíduos é que se estabelece um contrato de governo. Portanto, o
governo é regido pelo pacto social e não o contrário. O contrato
horizontal seria aquele que é fruto da discussão, associação e
acordo de pessoas portadoras dos mesmos poderes, isto é, de
iguais. Esse contrato, na verdade, é um contrato de associação
entre os cidadãos e não entre o governo e estes. Assim, o terceiro
tipo de contrato, conforme Arendt, limita a ação do indivíduo, mas
mantém intacto o poder da sociedade. Este contrato, segundo ela,
tem a enorme vantagem de ligar os membros da sociedade em uma
relação recíproca de reconhecimento, na qual os indivíduos são
mantidos unidos pela força das promessas mútuas e não pela
homogeneidade étnica, reminiscências históricas ou pelo Leviatã
hobbesiano que a todos intimida, e pelo medo os une.
(NASCIMENTO, 2006)
Desta forma, ao contrário das outras versões do contrato, o horizontal é o
único em que o consentimento não é apenas uma ficção sem correspondente na
realidade.
Entretanto, a filósofa destaca que, ainda assim, é necessário ficar clara a
possibilidade real de dissenso. Segundo ela: "Dissidência implica consentimento e é
a marca do governo livre (...) quem sabe que pode divergir sabe também que de
certo modo está consentindo quando não diverge". (ARENDT, 2006, p. 79)
Arendt (1988, p. 83) identifica os atos dos contestadores civis à associação
voluntária. Nas palavras da filósofa: "Minha discussão é que os contestadores civis
não são mais que a derradeira forma de associação voluntária, e que deste modo
eles estão afinados com as mais antigas tradições do país".
E, quanto à
Desobediência Civil, a filósofa diz ser esta diretamente ligada à reafirmação da
obrigação política, ideia já mencionada.
Assim, na medida em que atos violentos não pertencem ao universo das
soluções políticas, a única possibilidade de resistência vislumbrada por ela é a
Desobediência Civil pacífica, enquanto medida de restauração ou reafirmação da
obrigação política, manifestada na possibilidade de dissentir.
Nas palavras de Cohen, citado por Arendt (2006, p. 70):
Assim a segunda característica necessária largamente aceita pela
Desobediência Civil é a não-violência, e daí decorre que a
Desobediência Civil não é revolução (...) O contestador civil aceita,
enquanto o revolucionário rejeita, a estrutura da autoridade
estabelecida e a legitimidade geral do sistema de leis.
Arendt também disciplina, em esferas bem separadas, os atos de objeção de
consciência e os atos de Desobediência Civil. Conforme bem analisa Silva, 2006:
Assim, a Desobediência Civil não deve ser vista sob o ângulo da
relação entre o cidadão, enquanto tal, e a lei, pois isso consistiria
mera objeção de consciência, que vincula apenas a um auto-
interesse, uma preocupação do meu ser comigo mesmo, localizada
na esfera do privado. A desobediência civil, de outra banda, diz
respeito ao eu com o mundo e, embora possa ter origem em
preocupações individuais, necessita da ação de um grupo que lhe
confira credibilidade, mostrando com isso sua força numérica e
capacidade de enfraquecer o poder moral das maiorias.
69
Thoreau não separa de forma tão veemente os dois institutos, pois acha que
também a Desobediência Civil pode se fundamentar em imperativos morais
individuais, como se pode depreender do seguinte trecho de seu ensaio: “Não é
desejável cultivar o respeito à lei no mesmo nível do respeito aos direitos, a única
obrigação que (eu) tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que
(eu) julgo certo”. (grifos nossos)
Neste ponto, Thoreau – cujo ensaio (1849) cunhou definitivamente o termo
“Desobediência Civil” – caminha em direção diferente, separado da escolhida por
Arendt, mas, ainda assim, a ideia dos dois sobre o assunto se aproxima, pois ele
também defende a necessidade de ações coletivas:
Existem leis injustas. (nós) Devemos submeter-nos a elas e cumpri-
las ou (nós) devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até sua
reforma ou (nós) devemos transgredi-las de imediato (...) Insisto em
afirmar que todos os que se intitulam abolicionistas devem imediata
e efetivamente retirar seu apoio – pessoal e como proprietários ao
governo do estado de Massachusetts (...) (THOREAU, 2005, p. 23-4)
(grifos nossos)
69
Segundo Silva (2006), a filósofa exemplifica essa situação com os esforços das autoridades da
Noruega e da Dinamarca que, durante a II Guerra Mundial, recusaram-se a acatar as ordens do
Führer de transferir os judeus de seus países para campos de concentração alemães, inclusive com a
renúncia a seus postos no governo da Noruega, e a recusa franca do governo da Dinamarca a sequer
discutir a medida.
Ademais, Thoreau (2005, p. 24) propõe ações práticas como forma de
resistência ao governo. No caso específico, por intermédio do não-pagamento dos
impostos.
Já Hannah Arendt percebia mais profundidade nos atos de desobediência:
para ela, era possível pensar o encontro da Ética com a política, aquela sem arruinar
esta, além de, a partir da Desobediência Civil, ser possível pensar a ética
relacionada a uma perspectiva de resistência que enfrenta a passividade e a
indiferença política das sociedades de massa.
A filósofa defendia que todos os cidadãos precisavam se sentir motivados e
responsáveis por cuidar do destino comum
70
. Ela afirmava, ainda, que os contatos
pessoais estavam cada vez mais reduzidos nas sociedades de massa e que os
movimentos de Desobediência Civil podiam auxiliar a retomar as capacidades
humanas para a liberdade de ação, em contraposição ao cotidiano robotizado e
controlador vivenciado pelas sociedades contemporâneas.
Em sua obra, Arendt (2006, p. 67) observou e chamou atenção para a “atitude
do ser político”. Ela destacou que os dissidentes, os praticantes da Desobediência
Civil, tendem a ser encarados pelos governos como criminosos comuns, porque os
governantes tendem a querer perpetuar ações burocráticas e a exigir obediência
cega.
Assim, ela defendia que o ser humano, enquanto ser político, deveria
ultrapassar a aceitação do consenso e das teorias consensualistas, que muitas
vezes aceitava sem refletir e, mais do que isso, não deveria se intimidar em tomar
atitudes de Desobediência Civil, pois elas podiam significar esperança na alteração
das condições do momento, bem como nas condições do futuro.
A filósofa defendia, ainda, o estabelecimento da Desobediência Civil entre as
instituições políticas, desde que não-violenta, pois a não-violência é uma
característica específica da Desobediência Civil que a distingue, como já referido, de
70
Novamente presente a importância da participação política e se pode traçar, inclusive, paralelo com
o ser político de Aristóteles. “As duas famosas definições do homem, dadas por Aristóteles, ou seja,
que o homem é um ser político e um ser dotado de fala, complementam uma à outra. (...) Por causa
dessa ausência de fala, a teoria política quase nada tem a dizer sobre o fenômeno da violência. (...)
Uma teoria da guerra ou uma teoria da revolução só pode tratar da justificação da violência. (...) se,
por outro lado, chegar-se a uma glorificação ou justificação da violência como tal, isso não seria mais
política, mas antipolítica”. (SILVA, 2006)
outras formas de resistência de grupo, como a revolução ou a guerrilha, por
exemplo.
Ademais, Arendt só reconhece a legitimidade da Desobediência Civil quando
praticada por um grupo. Entretanto, há de se considerar que a contestação civil pode
ser praticada por um só indivíduo, desde que com vistas ao benefício coletivo. Aqui
se encontra um ponto a discutir, tendo em vista que muitas vezes as ações
começam com um ato individual, cujo objetivo último é sensibilizar e convencer a
coletividade, com vistas a modificar o que se está questionando.
Para esclarecer um pouco mais as ideias de Arendt, cabe expor interessante
argumentação da filósofa a respeito da presença de um empecilho quando se
analisa o direito de o indivíduo desobedecer com base na moral individual:
Ou seja, a alegação de problemas de foro subjetivo e individual para
a resistência à lei civil é dupla: em primeiro lugar, porque tal
justificativa não pode, sem se tornar contraditória, ser generalizada.
Em outras palavras, não é possível afirmar que a injustiça de uma lei
incomoda tanto um indivíduo subjetivamente quanto incomoda outro.
Se for subjetivo, não pode ser visto de uma outra forma, sob o
mesmo argumento, e isto significa que "Uma coisa com a qual eu
não possa conviver não pode molestar a consciência de outro
homem”. Em segundo lugar e mais importante, é que o interesse
pela própria consciência, ou seja, a faculdade de sofrer
subjetivamente uma injustiça é algo incapaz de ser mensurado. Não
é possível saber o quanto um indivíduo se dá ao pensamento sobre
si mesmo e os seus atos. Como visto, as duas justificativas se
complementam. Concluímos, assim, que tanto os juristas quanto os
próprios contestadores, quando alegam, para justificar suas ações e
ideias, argumentos tirados dos exemplos de Sócrates e Thoreau
sobre a moral individual do cidadão, cometem o mesmo erro teórico,
qual seja, situam a discussão no campo meramente subjetivo-
individual. (
NASCIMENTO, 2006)
Além disso, Arendt também polemiza sobre a objeção de consciência
religiosa, dizendo ser muito difícil, como explanado nos itens 3.3.6 e ss., conhecer e
afirmar – ou não – a motivação religiosa para o nascimento da objeção.
Hannah Arendt não se furtou a discutir o assunto, mas mesmo assim a
filósofa tinha total consciência dos perigos que os atos de Desobediência Civil
podiam – e podem – representar, e ela defende que estes perigos não são maiores
do que os perigos inerentes ao direito à livre associação.
Com efeito, é enquanto organização associativa que a Desobediência Civil
assume suas características mais ligadas à cidadania. Ainda assim – e justamente
por isso – a pensadora adverte sobre a tendência contemporânea de se incorporar,
às associações, inclinações ideológicas inteiramente diferentes dos propósitos
iniciais destas associações, devendo-se, portanto, estar em constante vigília para
que objetivos firmados não sejam deturpados e, assim, retirem a verdadeira
natureza e justificativa de atos de associação entre os cidadãos.
Como se percebe, nas atitudes e pensamentos de Arendt é possível
identificar a defesa e a aplicação dos Referenciais da Bioética, independente da
nomenclatura – ou da ausência dela – à época.
Ela discute os Referenciais nas entrelinhas e nos bastidores de sua obra.
Justiça, responsabilidade, autonomia, dignidade, solidariedade, não-maleficência e
beneficência fazem parte da História e dos escritos e ensinamentos da filósofa.
3.4.1.10 Desobediência Civil em Norberto Bobbio (1909-2004)
“Para que exista uma democracia basta o consenso da maioria e
exatamente o consenso da maioria implica que exista uma minoria
de dissentâneos.”
Norberto Bobbio. O futuro da democracia. (1986)
Norberto Bobbio nasceu em Turim, norte da Itália, em 1909, em uma família
burguesa e é considerado o mais famoso pensador político italiano de todos os
tempos, grande ativista dos direitos individuais e fundamentais e veemente defensor
dos direitos humanos.
Estudou Direito e Filosofia, tendo atuado como professor universitário e
jornalista, dedicando-se ao estudo dos direitos humanos, da filosofia e da política.
Viveu durante a infância e a adolescência numa rica família, mas mesmo
pertencendo à classe social elevada, recebeu educação liberal.
Em sua Autobiografia, Bobbio declara:
Na minha família nunca tive a impressão do conflicto de classe entre
burgueses e proletários. Fomos educados a considerar todos os
homens iguais e a pensar que não há nenhuma diferença entre quem
é culto e quem não é culto, entre quem é rico e quem não é rico (...)
recordei esta educação para um estilo de vida democrático numa
página de Direita e Esquerda em que confesso ter-me sentido pouco
à vontade diante do espectáculo das diferenças entre ricos e pobres,
entre quem está por cima e por debaixo na escala social, enquanto o
populismo fascista tinha em mira arregimentar os italianos dentro de
uma organização social que cristalizasse as desigualdades.
(SCHILLING, 2004)
Após a queda de Mussolini, em 1943, alguns intelectuais, que se reuniram
para buscar formas de tentar recuperar a liberdade italiana, foram presos. Entre
eles, estava Norberto Bobbio, que à época atuava como professor de filosofia
política e estava com 34 anos.
As ideias defendidas por esse grupo soavam estranhas ao restante do
mundo, pois eles se definiam “liberais-socialistas”
71
e foi dessa forma, como liberal-
socialista, que Norberto Bobbio se projetou internacionalmente como nome ligado à
teoria política.
O próprio Bobbio esclareceu, décadas mais tarde, os fundamentos de ser
liberal-socialista:
[...] embora proclamando-se liberal-socialista, desde o princípio o
movimento fez questão de distinguir o seu liberal-socialismo do dos
outros pelo empenho ético-religioso e não apenas político que o
animara. Refutou sempre tenazmente a absolutização da política
(que era a saída do totalitarismo) e por isso a resolução de todas as
atividades humanas na atividade política, na confusão dos
movimentos sociais com os partidos. O liberal-socialismo não era ao
princípio (e nunca deveria tornar-se) um partido; era uma atitude de
espírito, uma abertura numa direção, uma certeza e uma
esperança em contínua renovação, uma orientação de
consciência. (SCHILLING, 2004) (grifo nosso)
Cabe aqui ressaltar a opção – desde sempre – que Bobbio fez pela ética,
facilmente identificável em seus pronunciamentos.
71
O socialismo-liberal apresenta-se como uma alternativa ao marxismo, do qual critica,
filosoficamente, o determinismo e o materialismo, ou seja, a negligência das forças morais que
movem a história, economicamente, o coletivismo global, politicamente, e o Estado materialista e
coletivista. Em contrapartida, o socialismo-liberal também é uma alternativa ao capitalismo liberal, que
com o desenvolvimento da sociedade industrial serviu para oprimir e escravizar os trabalhadores,
como também ao neoliberalismo, entendido, hoje, como uma doutrina econômica consequente, da
qual o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre necessário; ou, em outros
termos, uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um
corolário. De fato, a teoria acerca do socialismo-liberal remonta a Stuart Mill e possui importantes
expoentes na Itália, como Rosselli e, mais recentemente, Norberto Bobbio. Tais pensadores, sem
renunciar a uma concepção individualista da sociedade, cujo núcleo fundamental é a liberdade,
afirmam a indissolubilidade da relação entre liberdade e igualdade. Para os socialistas-liberais, o
socialismo originou-se do desenvolvimento histórico do liberalismo no processo de emancipação da
humanidade, que objetivava, sobretudo, a liberdade. Após a emancipação política, que é obra da
Revolução Francesa, seria necessária a emancipação econômica. Entretanto, a emancipação
econômica não foi possível de ser realizada. É possível se chegar ao socialismo-liberal por meio do
método liberal, que é aberto, que só levará ao socialismo se a classe trabalhadora assim desejar.
Nesse contexto, o sufrágio universal é o meio para se alcançar o poder político. É a aplicação do
princípio de liberdade, é o direito de participar do poder político, mas, também, ao mesmo tempo,
uma aplicação do princípio da igualdade como acesso igual aos direitos políticos. Por fim, para
Bobbio, o socialismo é um ideal a ser alcançado com a luta política permanente, mas sem identificá-lo
com a coletivização dos bens de produção e muito menos com o emprego da violência para alcançar
tal ideal. (OLIVEIRA, 2007)
Embora o atípico partido liberal-socialista tenha desaparecido no período da
guerra fria, Bobbio prosseguiu em seu objetivo de conciliar a Liberdade com a
Igualdade, defendendo constantemente a Democracia. Ele viu praticamente o século
XX inteiro e faleceu em 2004, aos 94 anos.
O filósofo defendia que os direitos, por serem históricos, jamais seriam os
mesmos e nunca seriam estáticos. De acordo com Carvalho (2008):
[...] para Bobbio “cada época formularia um conjunto deles para ser
atingido; novos grupos sociais, sexuais ou étnicos, a cada instante,
solicitariam que suas demandas fossem atendidas e incluídas no
corpo geral dos direitos. Esses, agindo como se fossem ondas,
atingiriam as praias das nações mais distantes e afastadas.
(CARVALHO, 2008)
Segundo Oliveira (2007), para Bobbio, a Humanidade vivia – e vive – no que
chamou de a Era dos Direitos, um longo caminho em direção à maior liberdade e à
maior igualdade possível.
Além disso, ele afirmava que: “Os direitos do homem nascem como direitos
naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para
finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais”.
(CARVALHO, 2008)
O filósofo via na Declaração Universal dos Direitos do Homem a
representação de uma síntese do passado e de uma inspiração para o futuro e
defendia que o reconhecimento e a proteção dos direitos do homem deviam estar
presentes nas principais constituições democráticas modernas, defendendo que o
respeito aos direitos humanos somente é possível nos países democráticos.
Portanto, os direitos humanos e a democracia são elementos fundamentais
para o sucesso do regime socialista-liberal defendido por Bobbio.
Quanto à Desobediência Civil, Bobbio (1998, verbete: Desobediência Civil) a
classifica no rol dos novos direitos e assim se expressa:
A Desobediência Civil, enquanto é uma das várias formas que pode
assumir a resistência à lei, é também e sempre caracterizada por um
comportamento que põe intencionalmente em ação uma conduta
contrária a uma ou mais leis. Deve portanto distinguir-se de
comportamentos que muitas vezes a acompanham e que, embora
tenham o mesmo fim de contestar a autoridade fora dos canais
normais da oposição legal e do protesto público, não consistem
numa violação intencional da lei
.
Bobbio também identifica justificativas para a Desobediência Civil. Para ele:
A Desobediência Civil (...) é um ato de transgressão da lei que
pretende ser justificado e que acha nesta justificação, portanto, a
razão da própria diferenciação de todas as outras formas de
transgressão. A fonte principal de justificação é a ideia
originariamente religiosa e, posteriormente laicizada na doutrina do
direito natural, de uma ideia moral, que obriga todo o homem
enquanto homem e que como tal obriga independentemente de toda
a coação, e por conseguinte em consciência, distinta da lei
promulgada pela autoridade política, que obriga apenas
exteriormente e se alguma vez obriga em consciência é apenas na
medida em que é conforme à lei moral. (...) Gandhi disse certa vez a
um tribunal que devia julgá-lo por um ato de Desobediência Civil:
"Ouso fazer esta declaração não certamente para subtrair-me à pena
que deveria ser-me aplicada, mas para mostrar que eu desobedeci à
ordem que me havia sido dada não por falta de respeito à autoridade
legítima, mas para obedecer à lei mais alta do nosso ser — a voz da
consciência" (Autobiography, V Parte, cap. XV). A outra fonte
histórica de justificação é a doutrina de origem jusnaturalista,
transmitida depois à filosofia utilitarista do século XIX, que afirma a
supremacia do indivíduo sobre o Estado e de que deriva a dupla
afirmação de que o indivíduo tem alguns direitos originários e
inalienáveis e que o Estado é uma associação criada pelos próprios
indivíduos através do consenso comum (contrato social) para
proteger seus direitos fundamentais e assegurar a sua livre e pacífica
convivência. Uma terceira fonte de justificação é, finalmente, a ideia
libertária da perversidade essencial de toda a forma de poder
sobre o homem, especialmente do máximo poder que é o Estado
com o corolário de que todo o movimento que tende a impedir a
prevaricação do Estado é uma premissa necessária para instaurar o
reino da justiça, da liberdade e da paz. (BOBBIO, 1998, verbete:
desobediência civil) (grifos nossos)
Na leitura das obras e na análise das ideias de Bobbio é possível perceber a
opção pela Ética e os nuances que os Referenciais da Bioética, justiça, equidade,
solidariedade, responsabilidade e prudência, tão caros para uma vida justa e feliz,
representavam à época, tanto quanto hoje, mesmo que ainda não identificados
desta forma e sob esta alcunha.
3.4.1.11 Desobediência Civil em John Rawls (1921-2002)
“O que liga os cidadãos entre si não são apenas laços de
companheirismo, mas a aceitação de princípios públicos de Justiça.”
John Rawls (1921-2002)
“A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a
verdade o é dos sistemas de pensamento.”
John Rawls (1921-2002)
John Bordley Rawls, o mais conhecido filósofo político norte-americano,
nasceu em 1921, em Baltimore, no Estado de Maryland, na região nordeste dos
Estados Unidos. Ele apresentou sua teoria na obra A teoria da justiça, escrita em
1971, que se tornou uma das mais importantes desenvolvidas no século passado,
faleceu aos 81 anos, em 2002, e é visto como o principal teórico da democracia
liberal do século XX, sendo, ainda, um dos autores mais citados pelos bioeticistas
contemporâneos.
Para ele, a sociedade é uma associação mais ou menos autossuficiente de
pessoas que, em suas relações, reconhecem a existência de regras de condutas
como obrigatórias, as quais, na maioria das vezes, são cumpridas e obedecidas,
especificando um sistema de cooperação social para realizar o bem comum.
Nesse contexto, surgem tanto identidade de interesses como conflito de
interesses entre as pessoas, pois estas podem acordar ou discordar pelos mais
variados motivos, quanto às formas de repartição dos benefícios e dos ônus gerados
no convívio social. É precisamente aí que desempenham seu papel os princípios da
justiça social. (NUNES JÚNIOR, 2003)
Nas palavras do próprio Rawls (2000, p. 5):
Exige-se um conjunto de princípios para escolher entre várias formas
de ordenação social que determinam essa divisão de vantagens e
para selar um acordo sobre as partes distributivas adequadas. Esses
princípios são os princípios da justiça social: eles fornecem um modo
de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e
definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da
cooperação social.
Nunes Júnior (2003) explana os princípios enumerados por Rawls: de acordo
com o primeiro, cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema
de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de
liberdades para as outras pessoas; e de acordo com o segundo princípio, as
desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam
ao mesmo tempo consideradas vantajosas para todos, dentro dos limites do
razoável, e vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.
Para o filósofo, esses dois princípios “aplicam-se à estrutura básica da
sociedade, presidem a atribuição de direitos e deveres e regem as vantagens sociais
e econômicas advindas da cooperação social”. (NUNES JÚNIOR , 2003)
Ele observa, ainda, que os dois princípios são um caso especial de uma
concepção mais geral da justiça e assim expressa: "Todos os valores sociais –
liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da autoestima –
devem ser distribuídos igualitariamente, a não ser que uma distribuição desigual de
um ou de todos esses valores traga vantagens para todos”. (RAWLS, 2000, p. 66)
Em sua obra, Rawls é bem claro quando sustenta que o que o preocupa é a
justiça verificada na atribuição de direitos e liberdades fundamentais para as
pessoas, assim como a existência real da igualdade de oportunidades econômicas e
de condições sociais para os diversos segmentos da sociedade.
Assim, para ele, o objeto primário da justiça "é a estrutura básica da
sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais
importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de
vantagens provenientes da cooperação social". (RAWLS, 2000, p. 8)
Ainda segundo o filósofo, os princípios de justiça social, que regulam a
escolha de uma constituição política, devem ser aplicados, em primeiro lugar, às
profundas desigualdades sociais, supostamente inevitáveis na estrutura básica de
qualquer sociedade. Para Rawls, a verdadeira justiça é a que consiste na "justiça
como equidade
72
" ("justice as fairness"), isto é, uma justiça estabelecida numa
posição inicial de perfeita equidade entre as pessoas, e cujas ideias e objetivos
centrais constituem concepção para uma democracia constitucional.
73
72
No direito positivo, equidade é a justiça do caso particular. É a solução judicial que sacrifica a
dureza do direito positivo em favor das especiais condições de uma situação concreta. É o
reconhecimento dos aspectos subjetivos de um caso, evitando que a aplicação fria e genérica da lei
redunde numa injustiça. A teoria da Justiça como equidade prega: “Na teoria da justiça como
equidade, as partes aceitam antecipadamente um princípio de igual liberdade, e fazem-no sem ter
conhecimento dos seus objectivos particulares. Concordam implicitamente, portanto, em conformar a
sua concepção sobre o seu próprio bem às exigências dos princípios da justiça ou, pelo menos, a não
fazerem exigências que os violem directamente (...) na teoria da justiça como equidade não se tomam
as propensões e inclinações dos homens, sejam elas quais forem, como um dado, para depois
buscar a melhor forma de as satisfazer. Pelo contrário, os seus desejos e aspirações são limitados
desde o início pelos princípios da justiça, os quais especificam os limites a respeitar pelos sistemas
de objectivos de cada um (...) na teoria da justiça como equidade o conceito de justo é anterior ao
conceito de bem. Um sistema social justo define os limites dentro dos quais os sujeitos devem
desenvolver os seus objectivos e fornece uma estrutura de direitos e oportunidades, bem como o
conjunto dos meios de satisfação pelo uso dos quais tais objectivos podem ser equitativamente
prosseguidos. A prioridade da justiça é reconhecida. (NUNES JUNIOR, 2003)
73
Pertinente aqui citar Aristóteles, em sua Ética a Nicômano, exatamente quando fala de equidade:
[...] o equitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim, uma correção da justiça legal. A razão
disso é que toda lei é universal, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta
em relação a certos casos particulares (...) Por conseguinte, quando a lei estabelece uma lei geral e
surge um caso que não é abarcado por essa regra, então é correto (visto que o legislador falhou e
errou por excesso de simplicidade) corrigir a omissão, dizendo o que o próprio legislador teria dito se
Portanto, na base das ideias de Rawls está, principalmente, a defesa dos
Referenciais da justiça, da alteridade e da equidade.
Nunes Júnior (2003) também destaca que Rawls assevera que:
Minha esperança é a de que a justiça como equidade pareça
razoável e útil, mesmo que não seja totalmente convincente, para
uma grande gama de orientações políticas ponderadas, e portanto
expresse uma parte essencial do núcleo comum da tradição
democrática.
É precisamente o conceito de "justiça como equidade" que vai caracterizar a
origem, a natureza e a função dos princípios de justiça social propostos por Rawls.
A teoria da justiça de Rawls busca integrar as liberdades civis e políticas com
os direitos econômicos, sociais e culturais. “Transforma-se em modelo para os
governos social-democratas que se instalaram no mundo ocidental, pois entre o
liberalismo extremado e o socialismo ortodoxo, ele propõe uma alternativa
intermediária, a justiça como equidade” ("justice as fairness").
Os princípios de justiça social, propostos por Rawls, constituem, sem dúvida,
consistentes instrumentos para análise da estrutura básica de qualquer sociedade
real, quanto aos conceitos do justo e do igualitário, vistos como concretos, e não
simplesmente como conceitos formais.
A análise da obra de Rawls permite identificar, também, que ele concebe a
possibilidade da Desobediência Civil na dimensão do contratualismo, ligada à
obrigação política de todo e cada cidadão. Isto é, já que há um ordenamento jurídico
no qual vota e pode ser votado, o cidadão se obriga a obedecer às leis e ao Poder
constituído, desde que essas leis sejam justas e respeitem o que foi acordado no
Pacto Social.
No entanto, como ele mesmo afirma, em alguns setores as leis podem se
mostrar não-apropriadas, inoperantes ou insuficientes. Nestes casos, e somente
assim, justifica-se, para Rawls, o instituto da Desobediência Civil. Ele defende,
também, o direito de a minoria insurgir-se.
estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse previsto o caso em pauta. Por isso o
equitativo é justo e superior a uma espécie de justiça, embora não seja superior à justiça absoluta, e
sim ao erro decorrente do caráter absoluto da disposição legal. Desse modo, a natureza do equitativo
é uma correção da lei quando esta é deficiente em razão de sua universalidade. (...) o homem
equitativo é aquele que escolhe e pratica atos equitativos, que não se atém de forma intransigente
aos seus direitos, mas tende a tomar menos do que lhe caberia, embora tenha a lei a seu lado: e
essa disposição de caráter é a equidade, que é uma espécie de justiça e não uma diferente
disposição de caráter. (ARISTÓTELES, 2001, p.125-6)
Farias (2008) assim analisa a ideia central de Rawls:
John Rawls afirma que, quando a estrutura básica da sociedade é
razoavelmente justa, equidade esta calculada em termos daquilo que
o estado presente das coisas permite, deve-se reconhecer a
obrigatoriedade de leis injustas, desde que não excedam certos
parâmetros de injustiça.
Ao se esforçar para discernir parâmetros ou limites, aproximamo-nos
do problema mais profundo de dever e obrigações políticos. A
dificuldade, neste caso, reside em parte no fato de surgir um conflito
de princípios nestes momentos. Alguns princípios aconselham a
obediência, enquanto outros nos apontam o caminho oposto.
Assim, as reivindicações do dever e obrigação políticos devem ter
contrapartida em concepção do que são as prioridades apropriadas.
Nessa trilha, o ilustre John Rawls (...) apresenta uma teoria do direito
fundamentada no consenso democrático dos cidadãos. Sendo
contratualista, esse autor dá enorme importância às minorias, aos
dissidentes e ao direito de desobediência civil.
Ressalta que as instituições poderão apresentar aspectos positivos
para determinados grupos e aspectos negativos para outros,
devendo ser analisado nesse contexto o benefício desta para com a
sociedade em geral. A justiça distributiva há de ser invocada nas
decisões que envolvam conflitos de interesse; devem ter em mente
que acarretam como consequência o favorecimento de alguns
grupos em detrimento de outros.
Para Rawls, uma teoria de justiça não pode deixar que as
desvantagens de alguns justifiquem as vantagens dos outros. Assim,
se pelo princípio do prevalecimento do voto da maioria, a minoria
sempre for relegada a segundo plano, torna-se necessária a
existência de mecanismos que garantam a efetiva participação dessa
na sociedade.
Exemplificando, de forma simplista (porém didática), imaginemos
que, em uma determinada família, a maioria decide o programa a ser
assistido pela televisão. Em tais ocasiões, o interesse da minoria
deve estar subordinado ao da maioria. Entretanto, se todas as vezes
a minoria não tiver chance de escolher o seu programa (pois sempre
é vencida) haverá conflito na família, pelo critério adotado; dever-se-
á pois, optar por novas maneiras de decidir a questão, tal como
estabelecer dias em que mesmo sendo a corrente minoritária, os
dissidentes poderão assistir ao programa de televisão preferido.
Assim, o respeito à minoria, em uma sociedade democrática, implica
a necessidade de seu pronunciamento ser também concretizado.
(grifos nossos)
O próprio Rawls (2000, p. 273) define Desobediência Civil “como ato público,
não-violento, consciente e, apesar disto, político, contrário à lei, geralmente
praticado com o intuito de promover modificação na lei ou práticas do governo".
Ademais, é preciso deixar claro que a teoria de resistência que Rawls defende
é uma teoria justa, com fundamentados num ideal de justiça oriundo de consenso,
no qual não há dominação, mas sim respeito mútuo aos integrantes do todo, o que
torna bastante fácil relacionar suas posturas aos Referenciais da Bioética defendidos
por Hossne (2006), mesmo que com vários anos de distância entre um e outro.
O filósofo apresenta, ainda, as razões que ele julga possíveis para a
Desobediência Civil, bem como as condições necessárias para que a ação se
justifique, defendendo que o papel da desobediência num sistema constitucional é
justificar a adequação deste modo de protesto na sociedade livre.
Sobre maioria e minoria também já se havia manifestado Thoreau (2005, p.
23)
, em seu ensaio Desobediência Civil:
Leis injustas existem. Devemos submeter-nos a elas e cumpri-las, ou
devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até sua reforma, ou
devemos transgredi-las de imediato? Em uma sociedade com o
gênero de governo que temos, os homens em geral pensam que
devem esperar até que tenham convencido a maioria a alterar essas
leis (...) O governo é que faz tudo ficar pior. Por que o governo não é
mais capaz e se antecipa para lutar pela reforma? (...) Por que o
governo não sabe valorizar sua sábia minoria? Por que ele não
estimula a participação ativa dos cidadãos para que eles lhe mostrem
as suas falhas e para conseguir um desempenho melhor do que eles
lhe exigem? Por que ele sempre crucifica Jesus Cristo
74
, e por que
excomunga Copérnico
75
e Lutero e qualifica Washington
76
e
Franklin
77
de rebeldes?
78
(grifo nosso)
74
A desobediência civil presente nas atitudes de Jesus Cristo será discutida adiante, no item 3.4.2.2.
75
Nicolau Copérnico (1473-1543) foi um astrônomo polonês que iniciou a Astronomia moderna. (...) A
partir de observações dos corpos celestes, escreveu Pequeno Comentário Sobre as Hipóteses de
Constituição do Movimento Celeste, escrito muito antes, por volta de 1507, Copérnico demorou a
divulgá-lo por receio da reação da Igreja e só o tornou público em 1530. Em 1543, apresentou o
Sistema Cosmológico, com os princípios do Heliocentrismo. Ao afirmar que a Terra se movia em
torno do Sol, refutou o sistema de Ptolomeu e revolucionou a ideia que o homem da época fazia de
si mesmo, isto é, por ser à imagem e semelhança de Deus era, também, o centro do Universo. Estes
estudos e posteriores afirmações o tornaram “desobediente” perante a Igreja, que o perseguiu e
excomungou. (ALMANAQUE Abril – CD-Rom, 1996)
76
George Washington (1732-1799) foi herói da Guerra da Independência e o primeiro presidente dos
Estados Unidos. (...) foi eleito deputado e passou a atacar a política colonial inglesa. Suas atitudes
culminaram na Guerra da Independência contra os ingleses e, em 1775, foi nomeado comandante-
em-chefe da força militar, cargo que ocupou até a vitória final dos norte-americanos (...) colocou em
votação e assinou a Constituição de 1787, ratificada em 1788. Em 1789, foi eleito o primeiro
presidente dos Estados Unidos. Sua veemência em defender as ideias libertárias e por elas lutar
levou este “desobediente” (perante o governo inglês) a ser considerado um rebelde de sua época.
(Almanaque Abril – CD-Rom, 1996)
77
Benjamin Franklin (1706-1790) foi cientista, político e um dos redatores da Declaração de
Independência dos Estados Unidos. Nasceu em Boston, em uma família humilde (...) foi autodidata e
aprendeu diversas línguas. (...) foi jornalista, proprietário de jornal, fez pesquisas na área da
eletricidade e provou que o raio das tempestades e a eletricidade eram a mesma coisa, sugerindo
que os edifícios passassem a ser protegidos com condutores de raios, o que o levou à invenção do
pára-raios. Mas foi seu lado político que o levou à classificação de rebelde, citada por Thoreau,
quando, em 1776, envolveu-se ativamente na redação da Declaração da Independência dos Estados
Unidos. Era um negociador muito hábil e seu papel foi fundamental para que, em 1783, o governo
britânico reconhecesse a independência da antiga colônia. (Almanaque Abril – CD-Rom, 1996)
78
Aqui é interessante expor trecho da obra Sermões da Montanha, de Tomás da Fonseca, publicada
em 1909 e quase ignorada na atualidade. Ele nasceu em Laceiras, Mortágua, Portugal, em 1877, e
Rawls (2000) afirma, ainda, que não é qualquer alegação de injustiça que
inviabilizará a aplicação do Direito. É necessário que haja grave e evidente ofensa
aos princípios da justiça, contidos na estrutura básica da sociedade, para que seja
possível a resistência à norma injusta.
Para ele, a injustiça pode surgir de duas formas: as estruturas podem afastar-
se dos padrões publicamente admitidos, que são mais ou menos justos; ou essas
estruturas podem estar de acordo com a concepção de justiça da sociedade ou da
classe dominante, mas essa concepção pode ser desfavorável e, em muitos casos,
claramente injusta. Segundo Guerra (2000):
Os princípios da justiça idealizados por Rawls são as liberdades
públicas ou direitos fundamentais, que a melhor doutrina jurídica
sobrepõe a todo e qualquer direito ou dever, até mesmo de natureza
constitucional, já que são alicerce do próprio Estado de Direito.
Nesse sentido, é possível afirmar-se que toda lei injusta é inconstitucional e
pode suscitar direito de resistência por meio de atos de Desobediência Civil. De
acordo com Monteiro (2003, p. 74):
Para John Rawls, tais atos de Desobediência Civil se justificam em
casos de injustiça patente e significativa – casos de violação do
princípio da liberdade igual e do princípio da igualdade equitativa de
oportunidades – embora seja difícil fixar com precisão tais casos.
Aliás, para ele “Não devemos esperar muito de uma teoria de
desobediência civil. Princípios precisos que decidem de imediato
morreu em Lisboa, em 1968; professor e escritor, foi perseguido e preso, sendo que muitos dos seus
livros foram proibidos pela censura fascista, mas não desistiu. Embora o foco da obra seja questionar
a posição da Igreja, ele identifica exatamente esta ideia defendida por Thoreau: “(...) Sempre que
uma grande e luminosa descoberta fornece benefícios aos mortais, facilitando e adoçando a vida,
logo surgem os padres nos púlpitos, condenando-a como obra contra Deus e contra a fé de nossos
países. Foi deste modo que perseguiram, sacrificaram e desonraram (quantos morreram cobertos de
ignomínia e de miséria irresgatável!). Copérnico, que descobrira o movimento da Terra; Newton e La
Place, que ensinaram o sistema do mundo; Franklin e Dawis, que abrigaram do raio e das explosões
do grisu; Galvani e Volta, que revelaram as correntes eléctricas, hoje dominadoras do mundo;
Wheratstone e Morse, que, por meio do telégrafo, fizeram voar o pensamento com a velocidade dum
raio... Perseguiram Bacon e Descartes, ultrajaram Look e Espinosa. Le Bon, que iluminou as cidades
a gás, foi obrigado a emigrar; Galileu, que nos legou o termómetro, a balança hidrostática e nos
revelou o movimento da Terra, foi agarrado e torturado pelo dedo de Deus, nesse tempo a serviço da
Inquisição; Rousseau, que nos ensinou a arte de educar as crianças, foi um dos homens mais
perseguido e mais repetidas vezes condenado pela igreja. Filhos do diabo eram também Quinguet,
autor dos candeeiros; Mariotte, dos manómetros; Paulino de Campânia, dos sinos; Finiguerra, da
gravura a buril; Dombarle, da charrua; Senefelder, da litografia. Filhos do Diabo foram ainda Pironet,
que descobriu a bomba; Sauvage, a hélice; Margraf, o açúcar de beterraba; Fresman, a borracha;
Cromston, a fiação mecânica; Robert, a máquina de fabricar papel; Filipps, o sino de mergulhar;
Fresnel, os faróis das costas; Deville, o alumínio; Soubeiram, o clorofórmio; Deschamps, a lâmpada
económica; Vaucauson, os autómatos; Filippe Chiese, as diligências; Otho Guericke as máquinas
pneumáticas; Fischer, as bombas de incêndio; Montgolfier, o carneiro hidráulico; E. Adour, o
alambique, Gay Lussac, o alcoómetro; Lee, as pontes pênsis; Baptista Chambrai, a cambraia, e os
esposos Curie, o radium. Nenhum deles teve jamais as atenções da Igreja para outro fim que não
fosse a perseguição, a calúnia, o extermínio”. (FONSECA, 1998).
casos concretos estão completamente excluídos”. Assim, uma teoria
de Desobediência Civil pode apenas, segundo sua concepção,
apresentar os princípios básicos norteadores da sua prática. A
constatação efetiva da ocorrência legítima da Desobediência Civil
somente pode ocorrer na análise do caso concreto.
A citação acima se relaciona profundamente à discussão sobre as diferenças
entre princípios e Referenciais da Bioética, já mencionadas.
Ademais, a forma de Rawls encarar e defender a justiça apresenta-se em
plena identificação com as bases dos Referenciais da Bioética. Justiça essa que ele
fez questão de patrocinar e resguardar tanto em textos, quanto em máximas,
repetidas e utilizadas pelos (per)seguidores da vida justa: “A justiça é a primeira
virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento”.
Note-se, ainda, que John Rawls, devido às suas ideias sobre Justiça, é autor
dos mais citados por aqueles que se arvoram pelo mundo da Bioética, na sua
análise, estudo e construção de corpo de doutrina.
3.4.1.12 Desobediência Civil em Jürgen Habermas (1929-2001)
“A Desobediência Civil é a pedra de toque da democracia, o elo mais
evidente dos indicadores da maturidade das políticas democráticas.”
Jürgen Habermas (1929-2001)
Jürgen Habermas é considerado um dos mais importantes filósofos alemães
do século XX. Ele nasceu em Gummersbach, em 1929. Estudou Filosofia, História e
Literatura, além de sempre ter se interessado por Psicologia e Economia.
Em seus estudos, Habermas descreveu a participação do indivíduo em dois
domínios: no sistema e no mundo da vida. Para ele, o sistema englobava as ações
instrumentais do indivíduo, fossem elas econômicas (por dinheiro), políticas (por
poder) ou com outras finalidades; já ao mundo da vida pertenceriam às ações
comunicativas, informais e motivadas pelo desejo inato de compreensão mútua
entre indivíduos.
Habermas se mostrou encantado com a teoria apresentada por Arendt. Para
a filósofa, o sensus communis era o principal elo entre as esferas pública e privada,
e é nesse sensus que residem os juízos do conhecimento atrelados ao
entendimento, ou os juízos morais e a obrigatoriedade do imperativo. As duas
esferas proporcionam ao indivíduo a possibilidade de contemplar a perspectiva dos
outros. (ARENDT, 1993)
A característica fundamental do juízo político está, para Arendt, na liberdade
que ele possui e que provoca não exatamente a obediência a ditames pré-
determinados, mas a busca pelo consenso entre as diversas perspectivas que
versam sobre temas de interesse comum. Assim, a estrutura dos juízos políticos é
condição de possibilidade para que o espaço público possa se constituir abrindo um
caminho para a livre manifestação, publicidade, debate e crítica.
Segundo Habermas: “Todos vivemos o mundo da vida, e este precede e é o
pano de fundo – de valores, ideais e objetivos comuns – sobre o qual as
organizações que formam o sistema se constroem”. (NUNES JÚNIOR, 2003)
A Teoria do Agir Comunicativo, desenvolvida por Habermas e contida na obra
Direito e democracia: entre facticidade e validade, objetivava analisar as instituições
jurídicas e propor um modelo no qual “se interpenetrasse justiça, razão comunicativa
e modernidade”. (HABERMAS, 2003)
Segundo Repolês (2003, p. 27): “[...] a teoria de Habermas nos faz refletir
sobre a possibilidade de construir hoje uma sociedade razoavelmente justa e
democrática”.
Ao tentar compreender a dualidade do Direito moderno, Habermas (2003, p.
49 e ss.) se referiu à facticidade e à validade. Para ele:
De um lado, o Direito é facticidade quando se realiza aos desígnios
de um legislador político e é cumprido e executado socialmente sob a
ameaça de sanções fundadas no monopólio estatal da força e, de
outro lado, o Direito é validade quando suas normas se fundam em
argumentos racionais ou aceitáveis por seus destinatários.
Como observa Moreira, citado por Nunes Júnior (2003):
A relação entre facticidade e validade assume uma forma de tensão
pelo fato de o Direito reunir em si elementos sancionadores e
elementos provenientes de uma autolegislação. Dito em outros
termos, a tensão entra facticidade e validade, no Direito moderno,
retorna pela circunstância de que com a sanção se restringe o nível
de dissenso, mas esse dissenso é superado no momento em que se
introduz em seu bojo a ideia de que as normas jurídicas são
emanações do povo.
Nas palavras do próprio filósofo, esta tensão reside:
[...] mais precisamente entre a coerção do Direito, que garante um
nível médio de aceitação da regra, e a ideia de autolegislação – ou
da suposição da autonomia política dos cidadãos associados – que
resgata a pretensão da legitimidade das próprias regras, ou seja,
aquilo que as torna racionalmente aceitáveis (...) Esta tensão na
dimensão da validade do Direito implica a organização do poder
político, empregado para impor legitimamente o Direito.
(HABERMAS, 2003, p. 61)
Para Habermas, o Direito legítimo nas sociedades dependia do exercício
constante do poder comunicativo e para que não se esgotasse a fonte da justiça, era
mister de um poder comunicativo jurígeno, ou seja, que criasse o Direito, estivesse
na base do poder administrativo do Estado.
Nos estudos de Habermas também fica claro que:
Mesmo assumindo a perspectiva de que o ordenamento jurídico
emana das diretrizes dos discursos públicos e da vontade
democrática dos cidadãos, institucionalizadas juridicamente,
observando a correição parcial, há sempre a possibilidade de que a
normatividade seja injusta, abrindo-se assim para dois caminhos: o
primeiro, a permanecer injusta, passa a se constituir arbítrio; o
segundo, a se tornar arbítrio, surge a falibilidade e, com isso, a
presunção de que seja revogada ou revista. (grifos nossos)
(NUNES JÚNIOR, 2003)
Assim, do exposto infere-se que Habermas se posiciona a favor de sanar
injustiça presente na sociedade e, no diapasão deste estudo, torna-se possível
afirmar que um instrumento para sanar essa injustiça é a Desobediência Civil.
Segundo Nogueira (2005):
O genial da teoria de Habermas reside, portanto, na substituição de
uma razão prática, baseada num indivíduo que, através de sua
consciência, chega à norma, pela razão comunicativa, baseada
numa pluralidade de indivíduos que, orientando sua ação por
procedimentos discursivos, chegam à norma. Assim, a
fundamentação do Direito, sua medida de legitimidade, é definida
pela razão do melhor argumento. Como emanação da vontade
discursiva dos cidadãos livres e iguais, o Direito pode realizar a
grande aspiração da humanidade: a efetivação da justiça.
Além disso, a teoria de Habermas pretendia por fim à arbitrariedade e à
coerção em questões que afetam toda a comunidade, propondo participação mais
ativa e igualitária de todos os cidadãos, a fim de obter a tão almejada justiça.
Nunes Júnior (2003) cita Luiz Moreira, que afirma:
A teoria assume uma forma de tensão pelo fato de o Direito reunir
em si elementos sancionadores e elementos provenientes de uma
autolegislação. Dito em outros termos, a tensão entre facticidade e
validade, no Direito moderno, retorna pela circunstância de que com
a sanção se restringe o nível de dissenso, mas esse dissenso é
superado no momento em que se introduz em seu bojo a ideia de
que as normas jurídicas são emanações do povo
79
.
Assim, ao se encarar o poder como emanação do povo e ao se analisar as
facetas da validade jurídica na teoria de Habermas, é possível perceber de que
forma a Desobediência Civil pode colocar-se como mecanismo legal de produção do
Direito, posto que o Direito positivo não pode garantir a sua legitimidade apenas por
meio da legalidade, principalmente por serem, a legalidade e a legitimidade,
relacionadas, mas independentes entre si, como já discutido.
Desta forma, como bem analisa Repolês (2006):
Adicionalmente a uma validade no sentido empírico da vigência da
norma, o Direito deve ser aceitável racionalmente, isto é, que, se
exigido, será possível justificar o consenso que leva à decisão por
razões. Assim, não se pode fundamentar a validade de uma norma
na obrigação de não modificá-la. Se os interesses que levaram à
norma se modificassem, a norma mudaria, só que de forma aleatória
e arbitrária. Sob esta base, não haveria como explicar o que significa
levantar pretensões de validade, ou qual a diferença entre elas e
uma exigência imposta. Por outro, se se recorresse apenas a
motivos empíricos para justificar a norma, qualquer motivo serviria e
seria tão bom quanto outro. De forma a resolver este problema,
Habermas introduz o princípio D, segundo o qual só se pode
distinguir o "bom" motivo, ou o melhor motivo, para validar uma
norma, se se apresentarem razões em favor da aceitação das
mesmas. O princípio D já pressupõe um ponto de vista normativo a
partir do qual se julga como questões práticas podem ser decididas
racional e imparcialmente. Mas ele é neutro na medida em que se
refere a normas de ação em geral, que podem ser tanto do tipo moral
quanto do tipo jurídico. Do princípio D deduzem-se dois outros
referidos a tipos especiais de normas de ação. O princípio U, que se
refere a normas de ação morais, isto é, aquelas que unicamente
podem ser justificadas levando em consideração o interesse de todos
simetricamente. Ele é um princípio de argumentação pelo qual se
pergunta: "o interesse X pode ser justificado como universal?". Como
princípio de universalização
80
ele está concernido com a
79
Aqui é possível retomar a ideia já citada de Hannah Arendt, que destaca e defende a
Desobediência Civil a partir da noção, dentre outras, de que o poder emana do povo.
80
Ainda que se respeite a necessidade da universalização explicitada por Habermas, há de se
atentar para o fato de ser perigoso que a universalização se torne controle civil. De acordo com as
observações de Oliveira (2009): “Para Habermas (...) é através do princípio de universalização que o
processo de fundamentação da diferença entre vigência social e validade poderá ser concretizado.
Neste contexto, o imperativo categórico kantiano (aja de forma que a máxima de sua vontade
poderia, ao mesmo tempo, se manter como um princípio para uma lei universal) é substituído por um
princípio (ético-discursivo) de argumentação moral 'D' e por um princípio de universalização 'U', de
forma que 'D' = apenas poderão manter suas pretensões de validade aquelas normas que poderiam
contar com o consentimento de todos os concernidos em sua capacidade enquanto participantes num
discurso prático. Isto é, dentro desta perspectiva, em princípio toda norma válida encontraria o
assentimento de todos os concernidos, se eles tivessem oportunidade de participar de um discurso
prático, e 'U' = para uma norma ser válida, as consequências intencionais e não intencionais que sua
observância generalizada tem para os interesses de cada um devem ser livremente aceitas por
todos’. Esta universalização é sempre fruto de um consenso (genuíno). Neste sentido, Habermas
aceitabilidade racional a qualquer tempo e em qualquer contexto
espacial, ou seja, que as únicas razões que decidem em um discurso
moral são aquelas que justificam os interesses incorporados nas
normas como universalizáveis. O ponto de vista normativo pelo qual
se examinam tais normas é o da regulação da vida em comum como
membro da "humanidade". Assim, não basta que o princípio da
democracia fixe os procedimentos de produção de normas legítimas,
como tem também que dirigir a produção do próprio Direito. Ou seja,
além do processo de produção de normas ser legítimo, há de se
pressupor a possibilidade de criação de uma comunidade jurídica
que institucionalize os direitos de participação de seus membros no
processo de produção das normas. Assim, o sistema de direitos “não
deve apenas institucionalizar uma formação da vontade política
racional, mas também proporcionar o próprio medium no qual essa
vontade pode se expressar como vontade comum de membros do
direito livremente associados”.
A partir das análises realizadas a respeito da teoria de Habermas, bem como
do estudo sobre ela em si, pode-se perceber que o problema central a ser levantado
é a legitimação do Direito moderno, que ocorre apenas pela sanção que a lei
emprega, podendo, esta mesma lei, ser modificada a qualquer momento pelo
legislador político.
Habermas identificou neste direito moderno a falta de um verdadeiro processo
democrático capaz de legitimá-lo por meio da participação discursiva dos indivíduos.
Nas palavras do filósofo:
[...] o processo democrático carrega o fardo da legitimação, pois tem
de assegurar simultaneamente a autonomia privada e pública dos
sujeitos de direito; e para formular adequadamente os direitos
privados subjetivos ou para impô-los politicamente, é necessário que
os afetados tenham esclarecido antes, em discussões públicas, os
pontos de vista relevantes para o tratamento igual ou não-igual de
casos típicos e tenham mobilizado o poder comunicativo para a
consideração de suas necessidades interpretadas de modo novo”.
(HABERMAS, 2003)
A análise suscitada pela obra de Habermas leva, também, à conclusão que a
sociedade civil deve estar intimamente ligada à sociedade política, pois a separação
das duas é prejudicial e perigosa para o entrelaçamento da sociedade, já que a
autêntica Democracia só ocorrerá se os membros da sociedade civil, de forma
chama a atenção para a necessidade de se diferenciar esta situação daquela em que apenas
pseudo-consensos são obtidos. Estes últimos acontecem em duas circunstâncias: 1 (a) em condições
de comunicação sistematicamente distorcida, onde 'pelo menos um dos participantes engana a si
próprio sobre o fato de que a base consensual de sua ação está sendo mantida de forma apenas
aparente;' e pela (b) ação manipulativa, onde 'o manipulador engana pelo menos um dos outros
participantes sobre a sua atitude estratégica’”. (grifos originais)
organizada e responsável, atuarem livremente na esfera pública, e todos tiverem
direito à voz e estiverem incluídos no processo de discussão.
Logo, a inclusão do outro – do diferente (que forma outro grupo de iguais
81
) –
faz-se necessária num sistema democrático, o que implica garantir a todo cidadão
mecanismos institucionais e jurídicos eficazes no combate da discriminação, bem
como da busca, restauração e manutenção da justiça, eliminando-se a injustiça.
Neste sentido, a Desobediência Civil se insere como instrumento legítimo de
suporte às necessidades do cidadão quando este se vir compelido por direito e por
dever a lutar para mudar o estado de injustiça sob o qual está.
Em consonância e análise da Desobediência Civil em Habermas, assim se
expressa Repolês (2003, p. 38):
O ato de Desobediência Civil atualiza a relação do princípio do
discurso com a forma do Direito, em que este institucionaliza
juridicamente processos comunicativos que evidenciam os princípios
basilares do Estado Democrático de Direito. A Desobediência Civil é,
por isso, direito fundamental à consolidação de uma democracia
procedimental. Além disso, a Desobediência põe em evidência a
tensão imanente entre facticidade e validade do Direito. Ela levanta a
perplexidade de se conceber, no Estado Democrático de Direito, um
ordenamento jurídico positivo que a todo momento tem de ceder às
pressões decorrentes do déficit de legitimidade das decisões que são
tomadas. É por meio da Desobediência Civil que a sociedade civil
pode provocar de forma mais radical o sistema político e questionar a
legitimidade das decisões que são tomadas em seu centro.
Assim, a leitura cuidadosa da teoria de Habermas levará à conclusão que a
Desobediência Civil é um instrumento dos mais legítimos para defender e consolidar
o Estado Democrático de direito, pois funciona como mecanismo de questionamento
exercido pelo poder comunicativo (a rigor, a sociedade) sobre as ações e decisões
do poder administrativo (a rigor, a esfera pública).
Isto é, a Desobediência Civil é instrumento que auxilia a defender a validade
do Direito, diminuindo, em questões concretas, a tensão existente entre ela e a
facticidade desse Direito.
Este questionamento, esta forma de validar o Direito como maneira de defesa
do que é justo e de afastar a injustiça é, também, forma profunda de legalizar e
enaltecer a Democracia.
81
Cf. N. R. 9.
Destaca-se, pois, a afirmação de Repolês (2003, p. 143) ao encerrar sua obra
que analisa a Desobediência Civil face às ideias de Habermas:
Por isso, a Desobediência Civil é mecanismo jurídico efetivo que
possibilita a atualização dos conteúdos normativos do Estado
Democrático de Direito, contrapondo a tendência de fechamento e
“cegueira” dos centros de decisão e elaboração de políticas públicas
e de leis.
E, nas palavras do próprio filósofo: “A Desobediência Civil” é a pedra de toque
do Estado Democrático de Direito.
Habermas, em suas ideias, embutiu os Referenciais da Bioética, ainda que
assim não os tenha percebido e identificado. Sua defesa de respeito e necessidade
da participação do cidadão na legitimidade do sistema no qual está inserido, bem
como a prerrogativa que ele advoga para este cidadão como forma de estabelecer
esta legitimação, defendendo a cidadania e a Democracia são atitudes Bioéticas, em
sua essência e aplicação.
3.4.2 Desobediência Civil e História da humanidade: alguns exemplos
A análise da História da Humanidade mostra que vários personagens se
insurgiram e tiveram atitudes de desobediência a fim de lutar por uma sociedade e
uma vida mais digna e na qual preponderasse a justiça, sociedade esta construída
tanto com personagens masculinas como femininas, sendo justamente a
complementação dos dois gêneros o que permitiu a profundidade das conquistas
através dos tempos.
Isso porque homens tendem a ser mais diretos e incisivos e, ainda que às
mulheres tenha ficado reservada a identificação de um papel de segunda linha em
quase todos os movimentos políticos, sociais e econômicos, elas são persistentes,
mais viscerais e não se abatem enquanto seu objetivo não estiver atingido, o que se
prova por vários exemplos desde a Antiguidade: as mulheres que lutaram pelo
direito de voto, conhecidas como “as sufragistas”; as mulheres que criaram o
movimento pela Anistia, no Brasil; as mães da Plaza de Mayo, na Argentina; as
mães da Tragédia da Candelária, entre tantas outras.
A História deixa claro que o papel dos desobedientes – homens e mulheres
foi fundamental, já que visavam a abolir discriminações e preconceitos, a garantir a
justiça e os direitos, e a proporcionar vida digna a todos, independente de sexo,
classe social, ideologia ou poder econômico, o que se pode identificar como
verdadeira forma de se “fazer Bioética”.
É possível encontrar exemplos gloriosos no mundo todo, não sendo pequeno
o número de desobedientes que foram presos e pagaram com a própria vida por
seus atos de bravura e coragem.
São eles – somos nós – os responsáveis por importantes conquistas, tanto na
linha de frente, como nos bastidores das batalhas travadas por essa Humanidade
tão inquieta e sempre em busca de justiça e de felicidade.
Algumas dessas personagens, quer pela profundidade e alcance, quer pela
transcendentalidade de suas ações, estão em destaque nos tópicos a seguir.
3.4.2.1 Sócrates
82
(470-469 a.C.- 399 a.C.)
“Só sei que nada sei.”
Sócrates (470-469 a.C.- 399 a.C.)
Sócrates é considerado um dos principais filósofos de toda a História da
filosofia ocidental, embora se saiba pouco sobre a vida dele. Era filho de um escultor
e de uma parteira e recebeu educação clássica em Atenas. Ele vivia de maneira
humilde, percorria as ruas da cidade, descalço, e passou a ensinar em praça
pública, sem cobrar pelos seus ensinamentos, ao contrário do que faziam os
sofistas. Seu método consistia em fazer perguntas que conduziam o discípulo à
descoberta da verdade.
Sócrates mudou a filosofia grega. Antes dele, a busca de conhecimento
estava centrada no estudo da natureza, mas ele fez com que essa busca se voltasse
para o homem e suas ações.
82
Neste item, estão compiladas informações obtidas de várias fontes, a saber: PLATÃO. A República;
PLATÃO. Fédon – Diálogo sobre a alma e morte de Sócrates. STONE, Isidor Feinstein. O Julgamento
de Sócrates; ARENDT, Hannah. Desobediência Civil; BRUN, Jean. Sócrates, Platão, Aristóteles;
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política; COSTA,
Nelson Nery. Teoria e realidade da desobediência civil; GARCIA, Maria. Desobediência civil direito
fundamental; GODOY, Arnaldo Moraes. O julgamento de Sócrates; SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia
Jurídica; PLATÃO. Apologia de Sócrates; NASCIMENTO, Joelton. O conceito de desobediência civil
na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt; JATOBÁ, Maria do Socorro da Silva.
Sócrates e Antígona: os desobedientes. No caso de citação literal, a obra será identificada no corpo
do texto.
O filósofo se casou com Xantipa, considerada pessoa de temperamento difícil,
e com ela teve três filhos.
Foi acusado, preso e condenado à morte, com sentença cumprida por meio
da ingestão de cicuta, um veneno comum à época.
O próprio Sócrates representou-se em sua defesa, e refutou as acusações,
dizendo-se inocente de corromper a juventude e de não venerar os deuses da
cidade.
O filósofo não deixou nada escrito, mas seus discípulos escreveram obras
nas quais contam os acontecimentos de sua vida e reproduzem tanto as ideias
defendidas por ele, como a própria vida de Sócrates, que suscitam interesse ainda
nos dias de hoje e são motivação para estudo e produção de novas obras. Sobre o
julgamento dele, Stone (2005, p.22) declara:
Nenhum outro julgamento, à parte o de Jesus, deixou uma impressão
tão forte na imaginação do homem ocidental quanto o de Sócrates.
Os dois julgamentos têm muita coisa em comum. Não dispomos de
relatos contemporâneos e imparciais de nenhum dos dois, nem
mesmo ilusões fragmentárias. Não temos os autos dos processos.
Não conhecemos os exatos argumentos da acusação. Só
conhecemos a história através de relatos posteriores, escritos por
discípulos fidelíssimos.
Platão narrou os últimos dias de Sócrates em quatro diálogos: Apologia, de
Sócrates, Fédon, Críton e Êutifron, sendo que na Apologia está descrita a defesa do
filósofo, que alegava ter sido caluniado. Segundo Platão (2006, p. 6):
Bem, atenienses, é mister de apresente minha defesa, que
empreenda delir em voz os efeitos dessa calúnia, a que destes
guarida por tantos anos, e isso em prazo tão curto. (...) Considero,
porém, a minha empresa difícil e não tenho a mínima ilusão a esse
respeito. Seja como for, que tomem as coisas o rumo que aprouver
ao deus, mas cumpre obedecer à lei e apresentar defesa.
Sócrates sempre se mostrou consciente de sua missão de ensinar e aprender
e entre suas máximas, que se eternizaram, está “Só sei que nada sei”, quando foi
indicado pelo oráculo de Delfos como o mais sábio dos homens.
De acordo com Platão (2006), durante seu julgamento, Sócrates enfrentou
seu acusador com franqueza e disse para Meleto:
Diz que sou réu de corromper a mocidade. Mas eu, atenienses,
afirmo que Meleto é réu de brincar com assuntos sérios; por
leviandade, ele traz a gente à presença os juízes, fingindo-se
profundamente interessado por questão de que jamais fez o mínimo
caso.
Ainda segundo Platão (2006), assim se posicionou Sócrates em sua defesa,
durante o julgamento:
Com efeito, senhores, temer a morte é o mesmo que supor-se sábio
quem não o é, porque é supor que sabe o que não sabe. Ninguém
sabe o que é a morte, nem se, por ventura, será para o homem o
maior dos bens; todos a temem, como se soubessem ser ela o maior
dos males. A ignorância mais condenável não é essa de supor saber
o que não sabe? (...) Neste momento, Atenienses, longe de atuar na
minha defesa, como poderiam crer, atuo na vossa, evitando que,
com minha condenação, cometais uma falta para com a dádiva que
recebestes do deus.
Depois de terminado o julgamento e sendo considerado culpado, aceitou a
sentença condenatória e proferiu as seguintes palavras: “Quem segue melhor rumo,
se eu, se vós, é segredo para todos, menos para a divindade“. (PLATÃO, Fédon,
2007)
Segundo Godoy (2003, p. 22):
Platão narra que Sócrates ainda falara com mulher e filho, antes do
fim. O verdadeiro filósofo não teme a morte; assim Platão nos leva a
acreditar. Os últimos momentos de Sócrates sugerem sucessão de
imagens, ditos, exemplos. Sócrates ao proclamar defesa, apologia
pro vita sua, consubstancia reputação para a eternidade. Crito
sugeriu fuga, já organizada; Sócrates recusou. Patriota, Sócrates
nunca deixara a cidade; o filósofo protesta por cumprir as leis, sem
discuti-las, premonindo positivismo e fetichismo legal dos séculos
vindouros. (grifo original)
Próximo ao seu fim, Sócrates pediu a Críton que imolasse um galo em honra
a Asclépio
83
(PLATÃO, 2007) e ao fazer a oferta para a entidade máxima da saúde,
o filósofo outorgou ao mundo sua última e mais transcendental lição: a morte libera-
nos das dores e nos permite o repouso eterno.
Sócrates era inteligente e apresentava uma forma singular de discutir seus
conceitos. Como assevera Del Vecchio, citado por Godoy (2003, p. 13):
Discutia Sócrates de modo peculiar, multiplicando as perguntas e a
elas dando respostas de maravilhosa e concludente simplicidade. Ao
contrário dos sofistas
84
, que tudo afirmavam saber, declarava ele
83
Deus da Saúde.
84
Por serem os filósofos dedicados à alma e ao intangível, esperava-se que eles não se dedicassem
a ganhar dinheiro, mas os sofistas viviam folgadamente graças ao que ganhavam dando aulas.
Entretanto, Sócrates não aceitava pagamento, embora se dissesse que era pobre. Ademais, o sofista
era visto como um professor ambulante, mas Sócrates era alguém ligado aos destinos de sua cidade.
Os sofistas cobravam para ensinar, julgavam “saber tudo” e transmitiam um saber pronto, sem crítica,
que Platão identificava com mercadoria que os sofistas exibiam e vendiam. Eles faziam retórica, na
qual o ouvinte era levado, por uma enxurrada de palavras que, se adequadamente compostas,
nada saber. Molestava-os com a sua ironia, e confundia-os,
interrogando-os (ironia-pergunta, interrogação) sobre questões
aparentemente simples, mas, no fundo, muito difíceis. Deste modo,
constrangia-os, indiretamente, a lhe darem razão.
Alguns defendiam que ele era compreendido por todos, mas também a esse
respeito não há parcimônia. Segundo Xenofonte, era assim, mas para Aristófanes,
Sócrates era difícil de compreender, além de “afetado nefilibata”.
Xenofonte foi um escritor ateniense que, assim como Platão, redigiu uma
apologia de Sócrates e, à parte de sua veemente defesa do filósofo, registrou
observações relevantes sobre o espaço no qual se deram os fatos.
Xenofonte, citado por Godoy (2003, p. 17) defendia, ainda, que Sócrates era
essencial para a cidade e declarava que o filósofo era fonte de inspiração:
Tão útil era Sócrates em todas as ocasiões e de todas as maneiras,
que até as inteligências medíocres facilmente compreendiam nada
haver mais vantajoso que seu comércio e frequentação. À sua
ausência, bastava a sua só lembrança para muito edificar seus
discípulos habituais e aqueles que ainda hoje o têm por mestre.
Ainda segundo Godoy (2003, p.17): “[...] os textos de Xenofonte vislumbram a
realização da justiça nos atos e palavras do filósofo, injustiçado pelas opiniões e
pelos olhares de ciúme, cobiça, emulação. Para Xenofonte, “o que matou Sócrates
não foi a cicuta. Teria sido a inveja”. Xenofonte defendeu o mestre e alegou, ainda,
que ele foi injustamente acusado:
Direi agora como Sócrates induzia seus discípulos à prática do bem.
Persuadido de que quem deseje fazer o bem prescinde da
temperança, sobre fazê-la assunto constante de suas palestras,
mostrava-se ele próprio modelo acabado de sobriedade. Tinha
sempre presente no espírito os caminhos que conduzem à virtude e
não se cansava de lembrá-los a quantos o frequentavam. (GODOY,
2003)
Isidor Stone, polêmico jornalista norte-americano, afirmou que, na realidade,
Sócrates foi inimigo da democracia. Mais até: que ele desdenhava a democracia:
“Antístenes estava totalmente de acordo com Sócrates: a democracia só lhes
causava desdém”. (Stone, 2005, p. 100), e: “Sócrates não dava sinal de modificar
sua atitude desdenhosa em relação à democracia. Pelo contrário”. (STONE, 2005,
p.148)
persuadiam sem transmitir conhecimento algum, e Sócrates não aceitava que assim se desse o
ensinamento. (BRUN, 1994)
As ideias de Stone vão ao encontro das apresentadas por Thompson (2000,
p. 231), que afirmou que o filósofo: “pregava uma sociedade fechada, de modelo
mais espartano” e “a democracia ateniense o censurou, implementando verdadeira
caça às bruxas”.
Além disso, Stone (2005, p. 217 e ss.) também destacou que os acusadores
eram democratas radicais e admitiu que Sócrates poderia conseguir absolvição se
tivesse “agido com um pouco mais de tato e com um pouco menos de insolência”.
Para o autor, “o julgamento de Sócrates é uma prova de que em Atenas, à época,
não havia liberdade de expressão”.
Sócrates nunca escreveu uma obra, mas sua atividade filosófica foi
documentada por Platão, seu discípulo e também filósofo grego. Os célebres
Diálogos de Platão incluem o Êutifron, o Crito, Fédon e Banquete. Em todos eles,
Sócrates aparece como personagem.
É possível encontrar na literatura defesa de que, ao lado de Antígone,
Sócrates seria um exemplo de desobediente civil, ela na Literatura; ele na Filosofia.
Existem, inclusive, obras e artigos científicos aproximando os dois e suas atitudes ao
instituto jurídico da Desobediência Civil.
Entretanto, essa análise não é unânime e embora a sua atitude quanto ao seu
próprio julgamento, em 399 a.C., seja questionável quanto a ser ato de
Desobediência Civil ou não, muitos reconhecem o lado não conformista do filósofo.
Já Stone (2005) afirmou:
Sócrates é reverenciado como um não conformista mas poucos
reconhecem que ele se rebelara contra a sociedade aberta e que era
admirador de sociedades fechadas. Sócrates era um daqueles
atenienses que desprezavam a democracia e elogiavam Esparta.
Com relação à Desobediência Civil, Arendt critica o fato de Sócrates ser
considerado um desobediente civil, da mesma forma que condenava Thoreau
85
ser
incluído nesta classificação, como já se comentou neste estudo, sendo que ela é
mais rigorosa com aquele do que com este, principalmente porque Sócrates é visto
sempre como um notório cumpridor das leis.
85
A defesa de Thoreau e o ensaio que, como já mencionado, cristalizou o termo “Desobediência
Civil”, são analisados melhor no item 3.4.1.7.
Ao mencioná-lo, ela analisa os diálogos nos quais o pensador grego é julgado
e condenado e conclui que, em primeiro lugar, o filósofo ateniense não contestou as
leis em si, mas apenas o episódio judicial que aconteceu com ele.
Arendt vai mais adiante ao afirmar que, no seu entender, Sócrates
considerava aqueles acontecimentos um infortúnio e, dessa forma, via-se impedido
de romper os acordos com a cidade e suas leis. Ela cita as palavras atribuídas ao
próprio filósofo: "Sua desavença não era com a lei, mas com os juízes". (ARENDT,
2006, p.56-7)
Ocorre que esta interpretação de Arendt contraria a ideia comum de que
Sócrates era um contestador – ou um desobediente civil – às leis atenienses, no
momento em que aceitou a cicuta.
Na realidade, a visão de Arendt sobre o episódio é que Sócrates, por ser
defensor da obediência às leis, aceitou a pena, já que foi julgado como aquele que
se comportou em desacordo com as normas da sociedade na qual vivia, e isso
tornava impossível para ele viver consigo mesmo.
Segundo Stone (2005, p. 37), o próprio Sócrates declarou: “Cabe ao
governante dar ordens e cabe aos governados obedecer”. E mais:
Xenofonte escreveu que Sócrates distinguia a “realeza” da “tirania”
afirmando que “o governo aceito pelos homens e conforme às leis do
Estado era realeza, enquanto o governo imposto aos súditos sem
seu consentimento e sem outras leis que a vontade do governante
era despotismo”. Mas e se um rei legítimo começasse a agir sem
respeito às leis? Nesse caso, teriam seus súditos o direito de
derrubá-lo, do mesmo modo como o dono de um navio poderia
demitir um piloto que se tivesse tornado alcoólatra ou um paciente
poderia dispensar um médico que tivesse abusado de sua
confiança? Sócrates é obrigado a abordar a questão do mau
governante ou do governante que se torna mau. Quando ele acaba
de afirmar a proposição segundo a qual “cabe ao governante dar
ordens e cabe aos governados obedecer”, duas perguntas lhe são
colocadas: e se o governante não considera os bons conselhos? E
se ele mata um súdito leal, que ousou lhe dar um bom conselho?
Evasivo, Sócrates responde com outras perguntas (...) O que
Sócrates não diz é mais importante do que o que ele diz. Ele jamais
afirma que os cidadãos têm o direito de se livrar de um mau
governante [...] (STONE, 2005, p. 37)
Paupério (1978) reconhece a magnitude dos atos de Sócrates, mas expressa
claramente a opção do filósofo pela obediência total às leis, o que não permite
classificá-lo como desobediente civil:
O sacrifício de SÓCRATES, preferindo submeter-se a um julgamento
iníquo a dar aos seus contemporâneos o exemplo perigoso de
desprezo das leis, tornou-se admirável porque representou uma
aceitação consciente do mal para salvaguarda do bem supremo – a
ordem. (...) SÓCRATES ensinava a obediência irrestrita às leis deste,
pregando o respeito pelas leis más, a fim de que se não estimulasse
a violação das boas pelos maus. Acusado injustamente de haver
corrompido a mocidade e por isso condenado, pôs em prática a
doutrina que pregava, nada obstando a sentença de morte que lhe
pesava agora sobre a cabeça.
(PAUPÉRIO, 1978, p. 17)
Hannah Arendt defende, ainda, que “mantendo seus contratos com a cidade e
com as leis, o julgamento de Sócrates não explicita uma contestação de fato, ao
contrário, demonstra um senso nobre de obediência às normas sociais” (ARENDT,
2006, p. 57)
Segundo Stone (2005, p. 267):
[...] Há no Críton uma passagem (...) na discussão entre Sócrates e
as Leis, estas afirmam que na “guerra, o tribunal e em toda parte,
deves fazer o que o Estado (...) determinar, ou então demonstrar-lhe,
através da persuasão, o que é direito (...) Nesse debate está implícita
a ideia de que há um contrato entre o Estado e o cidadão. As Leis
argumentam que, se o cidadão aceita os termos do contrato quando
lhe interessa, ele deve também aceitar os deveres impostos pelo
contrato mesmo que isso vá contra os seus interesses. Esse era, é
claro, o argumento invocado por Sócrates para explicar porque se
recusava a fugir.
Entretanto, apesar de Arendt ser respeitada ao redor do mundo, as ideias
defendidas pela filósofa sobre Sócrates não ter sido um desobediente civil não
encontram eco unânime, já que realmente muitos veem o filósofo como um exemplo
de desobediente civil.
A análise das características referidas neste ensaio e das posições que o
próprio Sócrates defendeu levam a compactuar com a posição defendida por Arendt,
embora isso em nada comprometa a grandeza da figura de Sócrates para a
Filosofia, o conhecimento e o desenvolvimento do ser humano; apenas o retira do
cenário de desobedientes civis, pois em nenhum momento se conseguiu identificar,
dentre o material pesquisado sobre os acontecimentos, um mote de benefício
coletivo, a defesa da mudança de uma lei que iria beneficiar a sociedade no todo ou,
ao menos, uma parcela dela.
3.4.2.2 Jesus Cristo
86
(0-33 d.C)
“Se se perdessem todos os livros sacros da humanidade, e só se
salvasse O Sermão da Montanha, nada estaria perdido.”
Mahatma Gandhi (1869-1948)
“A afirmação de que os mansos possuirão a terra está longe de ser
mansa.”
Gilbert Keith Chesterton (1874-1936)
Jesus Cristo é considerado o personagem sobre quem mais se leu, escreveu
e comentou em todos os tempos. A respeito de sua vida existem muitas lacunas,
muitas dúvidas e muitas contradições, a começar pela data de nascimento e morte,
visto que estudos dos fatos históricos e da região onde se alega que se deu o
nascimento do Cristo ensejaram questionamentos e revisões sobre a veracidade da
data que passou a ser registrada como o ano zero da Era Cristã.
Os estudos históricos e bíblicos críticos acreditam que os textos antigos sobre
Jesus estão parcialmente corretos (BLANC, p.5). A história registra o nascimento de
Jesus Cristo em Belém, na Judeia , quando seus pais lá estavam de passagem, e a
morte próximo à Jerusalém, também na Judeia, crucificado depois de ser submetido
à Poncio Pilatos, acusado de insurreição contra Roma.
Filho do carpinteiro José e de Maria, a ele se atribui a mesma profissão do
pai, tendo crescido em Nazaré, na Galileia, região onde fez pregações.
Os romanos viam natureza política nos discursos e pregações de Jesus,
claramente questionadores das leis, da fé e dos comportamentos da época e,
portanto, julgavam-no muito perigoso para os governantes. Por isso, foi julgado e
condenado como subversivo, presumivelmente quando tinha cerca de trinta e três
anos.
Neste estudo, não se objetiva analisar, defender ou refutar as características
religiosas de Jesus Cristo; se ele deve ou não ser considerado filho de Deus;
tampouco se objetiva discutir dogmas; pretende-se, apenas, relatar brevemente e
86
O material bibliográfico que versa sobre Jesus Cristo é inesgotável. Entretanto, para os objetivos
deste estudo, compilam-se informações e comentários de: BLANC,Claudio. Além do Cristianismo,
VIEIRA, Evaldo. O que é Desobediência Civil; LEWIS, H. Spencer. A vida mística de Jesus.,
ROHDEN, Huberto. O sermão da Montanha; DUNCAN, Anthony. Jesus – Ensinamentos Essenciais;
ROHDEN, Huberto, Mahatma Gandhi; RICHARD, Pablo. O homem Jesus; BRAGA, José Nourival.
Jesus Cristo: o maior comunicador de todos os tempos. Em caso de citação literal, a fonte está
citada no corpo do estudo.
considerar as características de Cristo como personagem histórico, político e como
exemplo de desobediente civil, cujas atitudes e ideias eram repletas de ética, com
base nos documentos e nos relatos registrados, principalmente, na Bíblia, vista aqui
também como registro histórico e não como livro máximo de fundo religioso.
Note-se que este foco de estudo em nada desrespeita ou desmerece a crença
em Jesus como filho de Deus, como pedra basilar das religiões cristãs,
principalmente da Religião Católica, nem da Bíblia como livro religioso máximo das
três maiores religiões do mundo – o Catolicismo, o Judaísmo e o Islamismo, quer
somente quanto ao Antigo Testamento, quer quanto ao Antigo e Novo Testamentos
conjuntamente.
Ademais, a despeito de qualquer dogma, Jesus Cristo é respeitado pelos
seguidores de diversas religiões. Como assevera Blanc ([s.d.], p.5): “A figura de
Jesus Cristo é reverenciada em muitas crenças. Os muçulmanos o consideram um
dos mais importantes profetas de Deus e para os budistas se trata de ser iluminado”.
A análise das atitudes de Jesus permite identificar certo ecumenismo em sua
forma de pregar e difundir suas ideias, haja vista que falava, indiscriminadamente,
para homens e mulheres, senhores e escravos, ricos e pobres, sem se importar com
nacionalidade ou etnia, valores importantes à época, e sem se intimidar com a
oposição dos ricos e dos detentores do poder político.
O Sermão da Montanha (ou Sermão do Monte) é visto como a síntese da
doutrina ética de Jesus. Impossível não perceber o caráter ético e bioético das
palavras deste Sermão, que prega comportamentos que consideram profundamente
a alteridade e o respeito pelo outro, ambos Referenciais da Bioética, além de se
voltar tanto para a individualidade, quanto para a coletividade, enfatizando a
orientação moral e ética da doutrina de Cristo.
Os fatos narrados sobre a vida de Jesus Cristo apresentam um homem muito
generoso, pacífico e pacificador que, entretanto, não se furtava a ser enérgico
quando achava necessário, como se pode perceber no episódio da expulsão dos
mercadores que comercializavam no Templo. (JO, 2: 12-6)
Jesus é considerado um ser excepcional, cuja presença, direta ou indireta,
aparece em todas as culturas modernas. Ele pregava o altruísmo, a qualidade de
vida para todos, o perdão, a alteridade, a defesa da justiça, a igualdade, o respeito
aos vulneráveis, muito antes de esses valores serem contemplados em documentos
do direito positivado ou de serem propostos como Princípios ou Referenciais da
Bioética, e é no Sermão da Montanha que se encontra a maior parte dos
ensinamentos de Jesus sobre Ética.
Gandhi, por exemplo, citou várias vezes o Sermão da Montanha durante sua
luta pela libertação da Índia do jugo britânico e há muitas referências a paralelos
doutrinários entre a resistência pacífica de Jesus e as ideias de Buda: ambos
defendiam a solidariedade, a compreensão e o altruísmo como modo de vida.
Segundo Vieira (1984, p. 46): “Cristo praticou a resistência não-violenta,
pregando sua fé e seus princípios (...) Jesus desempenhou sobretudo a
desobediência desarmada, expressando a força da não-violência”.
Quanto ao caráter de Desobediência Civil nas atitudes de Jesus Cristo, de
acordo com Cullman (1968, p. 33), cabe ressaltar que Ele reconhecia a necessidade
da existência do Estado organizado e pregava que somente certas normas e atos
fossem reformados, isto é, especificamente as determinações que faziam deste
Estado um organismo injusto e explorador.
Em suas atitudes pode-se perceber que para Cristo “o Estado não era um fim
em si, mas a ele se devia reservar o direito de exigir o que necessitasse para sua
manutenção – e nada mais. Toda reivindicação totalitária, por parte do Estado,
ficava desautorizada”. (CULLMAN, 1968, p. 33)
Esta análise nos transporta, imediatamente, para as ideias de Thoreau. A
propósito, há menção direta à figura de Cristo no ensaio de Thoreau.
Defensores da resistência não-violenta citaram – e ainda citam – as ideias de
Cristo, em especial o Sermão da Montanha. Como mencionado, o próprio Gandhi
devotava grande admiração ao Sermão da Montanha e o citou várias vezes durante
a vida, embora tenha declarado: “Aceito o Cristo e seu Evangelho – mas não aceito
o vosso Cristianismo”. Para o Mahatma, o verdadeiro Cristianismo não era uma
igreja, um credo, uma sociedade dogmática, mas sim uma vida ética inspirada em
experiência mística. (RODHEN, 1985, p.101).
Essa ética – e a Bioética – que permeia toda a trajetória de Cristo, bem como
sua defesa do ser humano e da não-violência fazem de Jesus, além de um exemplo
de desobediente civil, um grande exemplo de aplicação da Bioética e dos seus
Referenciais.
Sobre o Sermão da Montanha, declara-se:
O Sermão da Montanha é um longo discurso feito por Jesus, no
começo de sua vida pública. Este sermão ocupa três capítulos (5-7)
do Evangelho de São Mateus. O lugar exato onde N. Senhor o
pronunciou não é conhecido com certeza, mas deve ter sido em
alguma das encostas mais suaves da região montanhosa nas
margens septentrionais do Mar da Galileia, provavelmente perto de
Cafarnaum. É um compendio do Código Moral do Cristianismo.
(DICIONÁRIO da Bíblia, 1974, p. 128) (grifo nosso)
Assim, como forma de encerrar este breve comentário sobre o lado
desobediente e bioético de Jesus Cristo, reproduz-se o Sermão da Montanha,
considerado verdadeira ode ao comportamento e às ideias éticas:
E vendo Jesus a grande multidão do povo, subiu a um monte, e
depois de ter sentado, se chegaram para o pé dEle os seus
discípulos. E ele os ensinava dizendo:
Bem-aventurados os pobres pelo espírito: porque deles é o reino dos
céus.
Bem-aventurados os mansos: porque eles possuirão a terra.
Bem-aventurados os que choram: porque eles serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede da justiça: porque eles
serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos: porque eles alcançarão
misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração: porque eles verão a Deus.
Bem-aventurados os pacíficos: porque eles serão chamados filhos de
Deus.
Bem-aventurados os que andam tristes: porque eles serão
consolados.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça:
porque deles é o reino dos céus. (EVANGELHO de São Mateus 5: 2-
12)
3.4.2.3 Olympe de Gouges (1748-1793)
“Uma mulher tem o direito de subir ao cadafalso; ela deve ter
também o de subir a uma tribuna.”
Olympe de Gouges (1748-1793)
Marie Gouze, nome verdadeiro de Olympe de Gouges, nasceu em uma
família pequeno-burguesa, em 1748, em Montalban, no sudoeste da França. Seu pai
era açogueiro e a mãe, lavadeira. Entretanto, ela acreditava ser filha ilegítima de
Jean Jacques Lefranc, membro da Academia Francesa de Letras, cuja rejeição de
paternidade influenciou sua defesa apaixonada dos direitos das crianças ilegítimas.
Marie se casou jovem, em 1765, com Luis Aubry e teve um filho, Pierre. Logo
após o nascimento dele, ficou viúva, e em 1770 transferiu-se para Paris, onde
passou a ser ajudada pelo amante, Jacques Bétrix, e adotou o pseudônimo de
Olympe de Gouges.
Ela recebeu educação bastante limitada, o que resultou numa adulta
semianalfabeta, que não sabia ler nem escrever corretamente e que precisou ditar
seu trabalho para um secretário, o que em nada desmerece a qualidade de suas
produções e de suas ideias.
A mudança para Paris fez florescer a inteligência de Olympe, e nos salões de
arte ela passou a conviver com os maiores nomes da literatura e da filosofia
francesa.
Mulher independente e com ideias próprias, abraçou as mais diversas causas,
como a emancipação das mulheres, a abolição dos escravos, a construção de
orfanatos e de maternidades para mães solteiras, a instituição do divórcio e a
criação de um teatro para a dramaturgia feminina.
Olympe de Gouges escreveu mais de trinta peças teatrais e seu primeiro
trabalho foi lido na Comédia Francesa, mas jamais foi montado.
Segundo alguns autores, incluindo a historiadora Joan W. Scott (2002, p. 54):
“Olympe foi uma pensadora da mesma ordem de Rousseau e Voltaire, sem,
contudo, ter tido idêntico reconhecimento posterior na História do pensamento
filosófico".
Em 1774, escreveu uma peça de teatro antiescravagista denominada
L'Esclavage des Nègres. O assunto controvertido e a novidade de ter sido escrita
por uma mulher fizeram com que a obra somente fosse publicada em 1789, no início
da Revolução Francesa, mas mesmo assim a peça nunca foi encenada. Ao mesmo
tempo, escreveu obras feministas relacionas ao direito ao divórcio e às relações
sexuais fora do casamento.
Na França, o ano de 1788 foi marcado pela convocação da Assembleia dos
Estados Gerais, pois havia clima crescente de insatisfação por todo o país. A
nobreza, o clero e o Estado foram convidados a sugerir reformas para apaziguar
este clima. Mulher madura – à época Olympe de Gouges tinha 40 anos – atendeu ao
chamado, passando a viver para a política e para as leis. Entretanto, desencantou-
se rapidamente, pois percebeu que os ideais da Revolução não incluíam as
mulheres no que se referia à igualdade de direitos.
Sem nenhum pudor ou apego, Olympe sacrificou a própria fortuna e a vida
dedicada às artes para cobrir Paris com cartazes, panfletos e tratados políticos, o
que a tornou uma das figuras mais simbólicas da Revolução.
Foi uma defensora da Democracia e dos direitos das mulheres. Na sua
Declaração dos Direitos das Mulheres e da Cidadã
87
(Déclaration des droits de la
femme et de la citoyenne
88
, de setembro de 1791, desafiou a redação do texto que
estava para ser aprovado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pois
entendeu que aquele que estava sendo discutido era muito machista e que não
abrangia os direitos que deveriam ser atribuídos também à mulher.
Não se limitou a um ato de desobediência. Foi além: redigiu e propôs a
modificação de uma lei que julgava injusta e parcial, em verdadeira participação
política, na busca de uma vida mais digna e justa para a coletividade que
representava.
Essa forma de agir e de pensar apresenta ideias consoantes àquelas
defendidas muito tempo mais tarde por ordenamentos jurídicos ao redor do mundo,
pelos Referenciais da Bioética propostos por Hossne (2006) e pela concepção de
cidadão e da importância de seu papel na coletividade, apresentada por Dallari.
A paixão de Olympe pela justiça e pela igualdade está presente no texto que
a imortalizou e que ela enviou para a Assembleia Nacional, com o pedido de que
fosse anexado à Declaração Universal dos Direitos do Homem e decretado como
fundamento da Constituição do país.
Segundo Scott (2002, p. 51): “O desafio de Olympe de Gouges, qual seja, que
as mulheres fossem representadas como cidadãs, enxertou-se numa discussão
perturbadora e profunda entre os revolucionários sobre o significado político e
filosófico da representação”. Ainda segundo a autora:
Ao tomar posição como cidadã autêntica, Olympe de Gouges negou
o conceito revolucionário de mulher – reiteradamente definida como
cidadã passiva – ampliando, assim, a abrangência de um debate
quase totalmente centrado nos direitos dos homens, para incluir
também os das mulheres. A distinção entre cidadãos ativos e
passivos se baseava em teorias antagônicas sobre direitos naturais
87
Para texto completo traduzido, ver Anexo B.
88
Cf. SCOTT, Joan W., p. 83: “Na declaração, Olympe de Gouges procurou oferecer os argumentos
que garantiriam para a mulher os direitos de cidadã ativa. Os artigos da Declaração estabelecem
paralelo exato com os artigos da Declaração dos Direitos do Homem; frequentemente ela substitui a
palavra ‘Homem’ pelas palavras ‘Mulher e Homem”... e indica que o Homem sozinho não representa
a humanidade, pois se a mulher não fosse mencionada explicitamente, era excluída.”
que remontavam a épocas muito anteriores a 1789. Aqueles que
gozavam de direitos ativos eram vistos como indivíduos ativos,
capazes de fazer escolhas morais, de exercitar sua liberdade e de
falar em seu próprio nome (isto é, de se representar). Aqueles que
usufruíam de direitos passivos, numa divisão funcional do trabalho,
eram protegidos ou cuidados por outros; como tais, ‘tinham o direito
de receber algo de algum outro indivíduo, ou de receber permissão
para fazer algo’. (Essa definição fazia eco com o pensamento que
igualava mulheres à passividade: a paixão tomava conta delas e
nelas habitava; eram moldadas por impressões produzidas por
outros.) (SCOTT, 2002, p. 71-2)
Logo após a Declaração, Olympe de Gouges escreveu o Contrato Social
entre Homem e Mulher, nome inspirado na famosa obra de Jean Jacques Rousseau,
de 1762, no qual ela propunha o casamento com relações de igualdade entre os
parceiros, antevendo parâmetros do direito positivo atual.
Ela acreditava e defendia que não havia revolução sem as mulheres, mas seu
envolvimento com a política provocou antipatia e perseguição até mesmo no meio
intelectual, e chegaram a chamá-la de louca e de herege.
Sem retroceder em seus ideais, Olympe de Gouges os defendeu até ser
condenada à morte na guilhotina, em Paris, no dia 3 de novembro de 1793.
O mais grave para os radicais foi que ela, inconformada com o terror e as
atitudes despóticas que estava presenciando, defendeu o rei publicamente,
alegando razões humanitárias e pregando reforma da sociedade, com palavras, pela
razão e sem violência, o que se constitui um dos pilares dos atos de Desobediência
Civil.
Ao alegar razões humanitárias e defender a não-violência, as atitudes de
Olympe já se mostravam estreitamente ligadas aos Referenciais da Bioética, que só
surgiram assim denominados cerca de 250 anos depois.
Apesar de fazer parte de uma sociedade revolucionária, Olympe de Gouges
foi levada ao Tribunal revolucionário, acusada de propaganda para reinstalar a
monarquia, julgada, condenada à morte e guilhotinada em 3 de março de 1793, por
"ter querido ser um homem de estado e ter se esquecido as virtudes próprias do
seu sexo". (SCOTT, 2002, p. 98) (grifo nosso)
A qual sexo cabe qual virtude? Não se pode negar que fisiologicamente e no
papel desempenhado na perpetuação da espécie, gênero feminino e gênero
masculino atuam de acordo com o que a natureza lhes reservou. Mas e nas
características intrínsecas? É o gênero ou, como os conhecimentos científicos
modernos permitem identificar, é a presença de cromossomos “X” ou “Y” que
determinam se um ser humano é virtuoso ou não? Se age ou não pela ética? Se luta
por todos ou só por si mesmo?
Não se trata de mera argumentação e defesa feminista. Trata-se de,
respeitando as diferenças, tentar reconhecer, como já fazia Olympe à época, que a
busca da virtude, pregada pelos filósofos, por meio da atitude ética, da prática do
bem ou da busca da felicidade, não é inerente ao ser do sexo masculino ou ao do
sexo feminino: é característica da espécie humana, sendo decisão de livre arbítrio
aplicá-la ou não; decisão essa jamais limitada ou ampliada por mera questão de
gênero.
No ano da morte de Olympe de Gouges, as associações de mulheres foram
proibidas na França e, no dia seguinte à sua execução, um jornalista do Le Moniteur,
o revolucionário Pierre Gaspard Chaumette (1763-1794), dedicou uma homenagem
a Olympe, na qual escreveu: "Lembrem-se de Olympe de Gouges, a primeira a
instituir as associações de mulheres e que abandonou os cuidados do lar para se
intrometer na República, de quem a cabeça rolou sob o ferro vingador das leis".
(LEVY, 2008)
Percebe-se, portanto, que as atitudes de Olympe visavam ao bem de todas as
mulheres, em detrimento de seus interesses particulares. Assim, ao enfrentar as leis
e normas da época, não o fazia em interesse egocêntrico: realmente acreditava lutar
por todas, o que permite estabelecer elo com as bases da Desobediência Civil.
Ademais, ao pensar em bem para todas, ela expressava solidariedade, desejo
de justiça e de beneficência e responsabilidade perante si e à sociedade na qual
vivia, da mesma forma que se pode pensar e agir ao se utilizar os Referenciais da
Bioética nas atitudes do dia-a-dia.
Mesmo assim, a Revolução Francesa, que definitivamente marcou o início
dos tempos modernos, amordaçou e, até mesmo, matou mulheres para silenciá-las,
principalmente Olympe de Gouges. Na realidade, seu maior crime foi não ter
aceitado viver em estado de dependência e não se sujeitar.
Mas as ideias não morreram com ela. Ao contrário, alguns anos depois,
incentivaram outras manifestações, inclusive nos Estados Unidos e na França,
algumas apresentadas e comentadas mais adiante.
3.4.2.4 Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948)
“As gerações futuras não acreditarão que alguém assim, em carne e
osso, tenha passado por este mundo.” (sobre Gandhi)
Albert Einstein (1879-1955)
“A Desobediência Civil é um direito intrínseco do cidadão. Não ouse
renunciar se não quer deixar de ser homem (...) já que reprimir a
Desobediência Civil é tentar encarcerar a consciência.”
Mahatma Gandhi (1869-1948)
A história foi contabilizando desobedientes civis ao redor do mundo, de
diversas raças, de ambos os sexos, em variadas épocas.
Entre os grandes defensores da Justiça por meio de ações não-violentas,
considerado até mesmo, por muitos, o maior de todos os seus defensores, está
Mohandas Karamchand Gandhi
89
, que a História imortalizou com Mahatma
90
Gandhi.
Ele nasceu em 1869, em Porbandar, Gujarat, um principado na Índia no qual
seu avô e pai foram primeiros-ministros. Sua família, da burguesia administrativa,
pertencia à subcasta baniana dos vaisyas (comerciantes/mercadores) e possuía
poucos recursos financeiros.
Seus ancestrais eram mercadores de especiarias e seguiam a tradição
Vaisnava, crença religiosa que venera o deus Vishnu, o espírito do amor e da
verdade, e que não permite o consumo de carne.
Gandhi foi um dos idealizadores e fundadores do moderno Estado indiano e
um defensor do princípio da não-violência como meio de protesto; casou-se aos
treze anos com Kasturbai, da mesma idade, numa união acertada entre as famílias.
O casal teve quatro filhos. Aos 19 anos, foi estudar Direito na Universidade de
89
Neste item, estão compiladas informações obtidas de várias fontes, a saber: GANDHI.
Autobiografia Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade ou a estória de minhas
experiências com a verdade; MENDES, João Maria. Mohandas Karamchand Gandhi, dito o Mahatma;
PELLEGRINO, Vera Lucia. Biografia de Mohandas Karamchand Gandhi; PRANDO, Felipe Cardoso
de Mello. Desobediência Civil: uma possibilidade para a realização dos Direitos Humanos; SÀ,
Mariana Santiago. Desobediência civil: um meio de se exercer a cidadania; GARCIA, Maria.
Gandhi e a Desobediência Civil; RIBEIRO, Ana Maria Marques. Rompendo a cerca da Lei; DURIGAN,
Paulo Luiz. Desobediência Civil; NASCIMENTO, Joelton. O conceito de desobediência civil na teoria
do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt; SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia Jurídica. No caso
de citação literal, a obra será identificada no corpo do texto.
90
Embora logo no início de sua Autobiografia (1990, Gandhi tenha deixado claro que não gostava
nem um pouco do título de Mahatma (Grande alma) que haviam lhe dado. Na verdade, ele chegava a
afirmar que este título o machucava profundamente.
Londres, na Inglaterra. Após se formar, passou a trabalhar como advogado em
Durban, África do Sul (1893).
Quando estava em Londres, conheceu as ideias de Henry Salt e seus
argumentos para aderir ao Vegetarianismo convenceram o Mahatma, a ponto de ele
organizar um clube vegetariano, no qual se encontravam teósofos e pessoas com
interesses altruísticos.
Foi influenciado pela leitura do Bhagavad-Gita e pelo Sermão da Montanha
que, segundo ele declarou em sua Autobiografia (GANDHI, 1999), tornaram-se, mais
tarde, as suas “bíblias e guias de viagens espirituais”. Também adotou e propagou a
doutrina da Desobediência Civil, discutida no ensaio homônimo, escrito por David
Thoreau.
Um dos primeiros episódios que despertou em Gandhi o desejo de lutar pelos
direitos dos indianos, marcando o início de sua trajetória política, foi um incidente
que ocorreu com ele próprio em uma viagem de trem.
Gandhi viajava na primeira classe quando solicitaram que se transferisse para
a terceira, por não ser branco. Ao se recusar, foi jogado para fora do trem. O
episódio fez com que ele começasse a advogar contra as leis discriminatórias
vigentes. A partir daí, foram vários acontecimentos que marcaram a vida do pacifista.
A primeira ação de Desobediência Civil em massa ocorreu em setembro de
1906, quando o governo de Transvaal quis registrar a população hindu inteira. Os
hindus formaram uma massa que se encontrou no Teatro Imperial de Johanesburgo;
estavam furiosos com a ordem humilhante e alguns ameaçaram exercer uma
resposta violenta à ordem injusta.
O grupo decidiu e se recusou a obedecer as providências de inscrição.
Gandhi sugeriu, então, que os indianos levassem um penhor em nome de Deus;
pois embora eles fossem hindus e muçulmanos, todos acreditavam em um e no
mesmo Deus.
O Mahatma resolveu chamar esta técnica de se recusar à submissão às
injustiças de Satyagraha, que quer dizer literalmente "força da verdade". Uma
semana depois da desobediência, as mulheres asiáticas foram dispensadas do
registro.
Quando o governo de Transvaal finalmente pôs em prática o Ato de Inscrição
Asiático, em 1907, Gandhi e vários outros hindus foram presos e o Mahatma ficou
detido por dois meses, sem serviços pesados, o que o levou a se dedicar à leitura
durante esse tempo.
Foi nessa fase que Gandhi descobriu a Desobediência Civil de Thoreau e os
trabalhos de Tolstoi e se convenceu ainda mais da força dos atos não-violentos e
das “possibilidades infinitas do amor universal".
O movimento de protesto para a conquista dos direitos indianos na África do
Sul continuou crescendo e, como os oponentes eram civis, Gandhi desenvolveu o
uso de ahimsa que significa "sem dor" e normalmente é traduzido por "não-
violência”. Ele defendia:
Já que nós vivemos espiritualmente, ferir ou atacar outra pessoa é
atacar a si mesmo. Embora nós possamos atacar um sistema injusto,
nós sempre temos de amar as pessoas envolvidas. Assim ' ahimsa' é
a base da procura para a verdade. (GANDHI, 1999)
Segundo Rohden (1985, p. 34):
Quando os seus amigos queriam saber o que o Mahatma entendia
exatamente com a palavra ahimsa, e até que ponto devia ser
aplicada essa arma secreta da não-violência, respondia ele com
absoluta clareza, que ahimsa era: 1 – não fazer violência material a
ninguém, matando-o ou o ferindo; 2 – que se deviam abster também
de qualquer violência verbal, não falando mal dos opressores
britânicos; 3 – nem sequer deviam permitir violência mental,
pensando mal de seus inimigos; 4 – nem mesmo deviam abrigar em
seu coração um resquício de violência emocional, odiando
secretamente os ingleses.
Em novembro de 1913, Gandhi conduziu uma marcha com mais de duas mil
pessoas, foi preso e saiu ao pagar fiança. Logo após, prenderam-no novamente e o
libertaram, e novamente foi preso, depois de quatro dias de liberdade. Foi então
condenado ao trabalho forçado durante três meses, mas as greves continuaram,
envolvendo aproximadamente 50.000 operários, e milhares de indianos foram
escravizados na prisão.
Alguns missionários cristãos doaram todo o seu dinheiro para o Movimento e
tanto o Mahatma quanto outros líderes foram libertados. Apesar da prisão, outra
marcha foi anunciada, mas Gandhi se recusou a tirar proveito de uma greve em uma
estrada de ferro dos "brancos" (relembrando o episódio de sua expulsão do trem), e
cancelou a marcha, apesar de estar "quebrando" o penhor de Sujeira (1908).
"Perdão é o ornamento do valente", Gandhi explicou.
Finalmente, por meio de negociação, os assuntos estavam resolvidos: todos
os matrimônios, independente da religião, passaram a ser válidos; os impostos em
atraso foram cancelados e os operários recontratados.
Estes acontecimentos levaram Gandhi a constatar o poder do método
Satyagraha e a profetizar como poderia transformar a civilização moderna. "É uma
força que, se ficasse universal, revolucionaria ideais sociais e anularia despotismos
e o militarismo."
O Mahatma voltou à Índia ainda durante a primeira Guerra Mundial e, logo
após seu término, envolveu-se com o Congresso Nacional Indiano e com o
movimento pela independência.
Gandhi ficou conhecido mundialmente por causa de sua política de
resistência não-violenta em atos de Desobediência Civil e pelo uso, entre outros, do
jejum como forma de protesto. Essas atitudes levaram as autoridades inglesas a
decretarem várias vezes a prisão do líder pacifista.
Outra estratégia dele na luta pela independência era o boicote aos produtos
importados, devido ao alto valor dos impostos que eram cobrados pelos britânicos.
Assim ele agiu com relação aos produtos têxteis, e conclamou todos os indianos a
usarem vestimentas caseiras, em vez de comprar os produtos britânicos.
O tear manual que Gandhi voltou a utilizar para produzir as próprias roupas
tornou-se símbolo de afirmação e foi posteriormente incorporado à bandeira do
Congresso Nacional Indiano e à própria bandeira da Índia.
O Mahatma endureceu a posição pró-independência após o Massacre de
Amritsar
91
, em 1920, mas uma de suas ações mais eficientes foi a Marcha do Sal,
que começou em 12 de março de 1930 e terminou em 5 de abril.
91
Massacre no qual soldados britânicos, extremamente violentos, feriram e mataram centenas de
indianos que protestavam pacificamente contra medidas autoritárias do governo britânico. Schilling
escreveu sobre detalhes do massacre: “O povo pacífico que se agrupava no jardim Jallian Wallah, em
Amritsar – a cidade sagrada dos shiks do Punjab, na Índia dominada pelos britânicos, lá se
encontrava num protesto pacífico contra a continuidade da presença inglesa no país. A Grande
Guerra terminara em 1918, e eles, os indianos, embalados pelas promessas a favor da
autodeterminação das nações, feitas pelo presidente Woodrow Wilson, saíram às ruas para reclamar
o seu quinhão. Era um domingo, dia 13 de abril de 1919, ocasião em que inauguravam o festival
hindu Baisakhi, que marcava o início da Primavera. Pela cidade inteira formigavam peregrinos em
visita ao Darbar Sahib, o magnífico Templo Dourado de Amritsar. Foi então que o general Reginald
Dyer ordenou os disparos e mandou que os guardas atirassem livremente sobre a massa amontoada
no jardim: homens, mulheres e crianças. Conforme os cartuchos eram gastos, o general gritava que
recarregassem os fuzis e as metralhadoras e não parassem de ‘despejar o chumbo quente’. O
resultado foi pavoroso. Acuada, a multidão apavorada não tinha como escapar, para onde correr. O
Gandhi decidiu desobedecer às Leis Salgadas que proibiam aos hindus
fabricarem seu próprio sal, principalmente porque este monopólio britânico golpeava
especialmente os pobres, e saiu na Marcha do Sal
92
.
Em maio de 1933, Gandhi começou um jejum que durou 21 dias, em protesto
à "opressão" britânica contra a Índia e, em março de 1939, ele jejuou novamente em
protesto às regras autoritárias que o Reino Unido impunha ao povo indiano.
Pode parecer estranho para o homem contemporâneo que um líder político
utilizasse o jejum como meio de obter algo significativo. Mas era exatamente o que
acontecia naquela época, naquele contexto histórico: Gandhi era extremamente
amado por seu povo e tinha conquistado posição de destaque no mundo todo. A
possibilidade de algum mal físico o acometer devido ao jejum fazia com que a
pressão interna na Índia e externa, no restante do mundo, fosse imensa, levando o
governo britânico a repensar e, ainda que à revelia, mudar posturas e decisões.
De todos os personagens reais que praticaram atos de Desobediência Civil,
Gandhi foi o mais veemente, o mais apaixonado, o que mais obteve sucesso, a
ponto de muitos se questionarem, até hoje, se não se trata de personagem fictício
ou se, ainda que real, não são os feitos a ele atribuídos mera invenção ou
deturpação da realidade, corroborando uma espécie de premonição de Einstein, que
massacre somente cessou porque se esgotaram as cartucheiras. Na contagem sinistra das vítimas,
verificaram-se 379 mortos e 1.200 feridos. Foi o Bloody Sunday – o Domingo Sangrento – da história
da Índia, a tragédia que deu impulso para que Gandhi desse o primeiro passo na sua campanha de
não-violência. (SCHILLING, 2004)
92
Gandhi liderou os indianos em uma marcha pacífica para obter o próprio sal, visto que as taxas
cobradas sobre o sal, pelos britânicos, tornava quase impraticável que os indianos o adquirissem. A
marcha foi até o mar. Começando com setenta e oito sócios, Gandhi iniciou uma marcha de 200
milhas, que levaria mais de vinte e quatro dias. Milhares tinham se juntado no começo, e vários
milhares uniram-se durante a marcha. Primeiro Gandhi e então outros juntaram um pouco de água
salgada na beira-mar em panelas, deixando ao sol para secar. Em Bombaim, o Congresso teve
panelas no telhado; 60.000 pessoas juntaram-se ao movimento, e foram presas centenas delas. Em
Karachi onde 50.000 assistiram o sal sendo feito, a multidão era tão espessa que impedia a polícia de
efetuar alguma apreensão. As prisões estavam lotadas com pelo menos 60.000 ofensores.
Incrivelmente lá "não havia praticamente nenhuma violência por parte da população; as pessoas não
queriam que Gandhi cancelasse o movimento. Gandhi foi preso antes que pudesse invadir os
Trabalhos Dharasana Sal, mas o amigo dele, Sarojini Naidu, conduziu 2.500 voluntários e os advertiu
para não resistir às interferências da polícia. De acordo com uma testemunha ocular, o repórter Miller
de Webb, eles continuaram marchando até serem detidos abaixo do aco-shod lathis, por
quatrocentos policiais, mas eles não tentaram lutar. Tagore declarou que a Europa tinha perdido a
moral e o prestígio na Ásia. Logo, mais de 100.000 hindus estavam na prisão, incluindo quase todos
os líderes. Gandhi foi chamado à uma reunião com o Vice-rei Irwin, em 1931, e eles firmaram um
acordo em março. A Desobediência Civil foi cancelada; foram libertados os prisioneiros; a fabricação
de sal foi permitida na costa e os líderes do Congresso indiano assistiriam à próxima Conferência de
Mesa Redonda em Londres. (SCHILLING, 2004)
afirmou que as gerações posteriores custariam a acreditar que um homem como
Gandhi realmente tivesse existido:
Um condutor de seu povo, não apoiado em qualquer autoridade
externa; um político cuja vitória não se baseia em astúcias nem
técnicas de política profissional, mas unicamente na convicção
dinâmica da sua personalidade; um homem de sabedoria e
humildade, dotado de invencível perseverança, que empenha todas
as suas forças para garantir a seu povo uma sorte melhor; um
homem que enfrenta a brutalidade da Inglaterra com a dignidade de
um homem simples, e por isto se tornou um homem superior –
futuras gerações dificilmente compreenderão que tenha vivido na
Terra, em carne e osso, um homem como este. (ROHDEN, 1985, p.
30)
E foi sempre com ações não-violentas que Gandhi liderou mais de 250
milhões de hindus em sua luta por liberdade e justiça.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o Mahatma deixou claro que não apoiaria
a causa britânica, pois era contra qualquer forma de violência. Este ato
desobediente o levou à prisão em agosto de 1942, por dois anos.
O Mahatma sempre se declarou contrário a qualquer proposta que dividisse a
Índia em dois Estados. Mas isso acabou por acontecer, sendo um Estado
denominado Índia, predominantemente hindu, e o outro Paquistão,
predominantemente muçulmano.
Apesar da divisão territorial, o Mahatma via em todos o mesmo povo hindu e
se recusava a aceitar qualquer ação violenta entre eles, não importasse de qual
parte do país – Índia ou Paquistão – eles fossem oriundos.
Mas as diferenças religiosas dos dois povos os levaram a desconsiderar a
opinião de Gandhi, que voltou a jejuar. Ele pregou a unidade e a tolerância,
chegando até mesmo a ler o Alcorão em reuniões. Os hindus o atacaram porque
pensaram que ele era a favor dos muçulmanos, e os muçulmanos exigiam dele a
criação do Paquistão.
Gandhi foi para Calcutá para acalmar a discussão e a violência entre hindus e
muçulmanos e mais uma vez jejuou, até que os líderes da comunidade assinaram
um acordo para manter a paz. Antes que eles assinassem, Gandhi os advertiu de
que caso se rebelassem e lutassem entre si, ele jejuaria até a morte, mas a Índia já
estava dividida em dois países.
Embora este ódio religioso tenha entristecido Gandhi, a Índia havia finalmente
conquistado a Independência, no dia 15 de agosto de 1947, realizando a maior
revolução não-violenta da História mundial.
Mas os radicais religiosos, que tinham representantes em ambos os lados –
hindus e muçulmanos – não se aquietaram e, no dia 30 de janeiro de 1948, Gandhi
foi assassinado a tiros, em Nova Déli, por um hindu radical.
Depois de morto, seguindo os ritos hindus, o corpo do Mahatma foi cremado e
suas cinzas foram jogadas no rio Ganges, como é hábito cultural e religioso dos
indianos, até hoje.
No decorrer de toda a história de Gandhi podem ser identificados atos de
Desobediência Civil. Aliás, ele fez das atitudes de Desobediência Civil o meio para
atingir todos os seus objetivos de luta pela liberdade, justiça e qualidade de vida da
Índia e para seu povo.
Quanto aos Referenciais da Bioética, é possível encontrar todos eles nas
atitudes de Gandhi, chegando-se a concordar que ele é mesmo o maior defensor da
luta ética e não-violenta para se obter justiça e igualdade para a vida de todos os
cidadãos.
3.4.2.5 Jeanne Deroin (1805-1894)
Jeanne Deroin nasceu em Paris, em 1805, numa família da classe
trabalhadora e passou sua juventude na pobreza, ganhando dinheiro como
bordadeira. Por um determinado período de tempo, ela se afastou da vida pública,
mas a revolução de 1848 a trouxe de volta. (SCOTT, 2002)
Usando seu nome de família – e não o de casada, para não comprometer seu
marido – Deroin lutou pelos direitos das mulheres e pela organização do trabalho e
também se opôs à exploração de crianças e ao tratamento severo e desumano com
os condenados.
Ela escreveu petições, abaixo-assinados e artigos, fundou clubes, jornais e
associações econômicas e tentou se candidatar a um cargo no Legislativo.
Jeanne Deroin é exemplo claro de desobediência a uma lei instituída: ela
concorreu a uma cadeira no legislativo em 1849, sem levar em consideração que, de
acordo com a Constituição da Segunda República, o sufrágio universal era garantido
somente aos homens, não sendo permitido às mulheres nem votar nem se
candidatar a qualquer cargo público.
Ao desconsiderar as letras da lei e se opor, em ato que visava a reformar uma
disposição legal com vistas ao benefício da coletividade feminina, Jeanne pode ser
utilizada como exemplo de desobediente civil.
Ademais, sua busca por justiça e por igualdade, considerando o ser humano
como raça, independente do sexo, exigindo que todos fossem tratados com
igualdade e respeito, bem como suas ideias, em muito se aproximam dos ideais da
Bioética. Assim, se o tempo é mesmo uma ilusão, como propõem vários cientistas e
como defendeu Einstein, seria possível vê-la utilizando o vocabulário, os
Referenciais e as ideias da Bioética em sua atuação política e de cidadã, na França
do século XIX.
Na realidade, ela se candidatou à Assembleia Legislativa como estratégia
para expor o princípio da igualdade e denunciar a cidadania sistematicamente
negada às mulheres.
Em aberta manifestação contra as mulheres em cargos públicos, um
socialista da época, Pierre-Joseph Proudhon
93
, pronunciou-se contra a candidatura
de Jeanne Deroin pelo simples fato de ela ser mulher, sem lhe considerar a
inteligência, o conhecimento ou a capacidade real para assumir o cargo e declarou
que “uma mulher legisladora fazia tanto sentido quanto um homem ama-de-leite”.
Entretanto, essa declaração pública não intimidou Jeanne; pelo contrário, ela
o desafiou, rebatendo que “concordaria com a opinião de Proudhon se ele dissesse
qual órgão era preciso para se exercer as funções de legislador/a”, pois para ela as
diferenças sociais e biológicas eram irrelevantes para a cidadania.
Novamente a História identifica uma mulher que defendeu a ideia de que as
diferenças de gênero não são relevantes para as características da essência do ser
humano: se ele é ético ou não, solidário ou não, responsável ou não (...) em
consonância com os Referenciais da Bioética, todos voltados para a ética na vida do
e para o ser humano, independente de seu gênero, bem como da ética para os
animais e para o meio ambiente.
93
Pierre-Joseph Proudhon foi considerado o “mestre de todos os anarquistas”; nasceu na França em
Besançon, em janeiro de 1809, no seio de uma família modesta, e morreu em Paris, em janeiro de
1865. (SOIBELMAN, 1998, verbete: Anarquia)
Quando Proudhon mais uma vez discordou dela, quanto à atuação das
mulheres no trabalho organizado, e declarou “A oficina não é feita para as
mulheres”, novamente Jeanne o enfrentou e respondeu: “Mudem as condições da
oficina, mas não persigam as mulheres”.
Jeanne Deroin propôs direitos iguais na política formal, com a constituição do
indivíduo social, que fundamentou no respeito aos diferentes papéis sociais
desempenhados por homens e por mulheres, para o funcionamento harmônico da
sociedade. Para ela “[...] entrar na política era entrar na História”. (SCOTT, 2002, p.
154)
Não se tem notícia a respeito de quando e sob quais circunstâncias ela
morreu.
3.4.2.6 Madeleine Pelletier (1874-1939)
“Qualquer pessoa é verdadeiramente digna da liberdade quando não
espera que ela lhe seja concedida, mas a conquista.”
Madeleine Pelletier (1874-1939)
Madeleine Pelletier nasceu em 1874, em Paris, e foi uma feminista bastante
singular. Ainda criança, perdeu o pai e foi criada com muita dificuldade pela mãe.
Ela defendeu a eliminação total de qualquer diferença de gênero, como meio
para alcançar a igualdade, em tempos em que a mulher era considerada, com
naturalidade, um simples objeto de adorno. Madeleine sempre lutou pela igualdade
junto aos homens e foi pioneira, também, na luta pelo aborto, não deixando de
executar tal prática ainda que tenha sido repreendia diversas vezes. (KNORR, 2006)
É considerada uma personagem fascinante e sobre ela há várias biografias
editadas na França; foi uma das primeiras médicas-psiquiatras francesas, após
conseguir derrubar, em 1902, a lei que impedia mulheres de fazer residência em
asilos psiquiátricos, local onde, ironicamente, foi internada no fim da vida e onde
morreu sozinha, em 1939. (SCOTT, 2002, p. 214)
Nada pode ter tamanho caráter de identificação com a Desobediência Civil do
que o fato de conseguir, como Madeleine conseguiu, derrubar uma lei vigente, em
benefício de uma coletividade, remetendo também, como outros exemplos já
referidos, aos Referenciais da solidariedade, da responsabilidade e da justiça.
Ela considerava que a diferença sexual era um conjunto de fenômenos
psicológicos e não somente físicos e era radicalmente avessa às diferenças entre o
masculino e o feminino. Em sua época, usava trajes masculinos com o objetivo de
desconstruir a diferença sexual e de eliminar a subordinação que, na opinião dela,
os trajes femininos significavam para as mulheres.
Foi grande defensora do voto feminino e também se dedicou, nas últimas
décadas de vida, à luta das mulheres pelo direito à contracepção e ao aborto, sendo
precursora das principais lutas do feminismo.
Madeleine era uma desobediente assumida. Segundo Scott (2002, p. 233):
Madeleine usava cabelo à escovinha, colarinho engomado, gravata e
casacos masculinos muito tempo antes do final da Primeira Grande
Guerra, quando este modo de vestir virou moda. (Também usava
calças em certas ocasiões, embora fosse um traje proibido para
mulheres, no início do século XX, em Paris). Travestir-se significava
para ela uma transgressão das normas dominantes na época, uma
forma de afirmar sua individualidade perante a multidão que a
desaprovava às claras: ‘Aqueles que usam colarinhos postiços e
cabelo curto gozam de toda a liberdade, de todo poder. Pois bem! Eu
também uso cabelos curtos e colarinhos postiços perante os tolos e
os miseráveis (...) Gosto de exteriorizar minhas ideias, de carregá-las
sobre mim como a freira seu crucifixo, ou como a revolucionária sua
rosa vermelha. Uso esses sinais exteriores de liberdade, a fim de que
digam e proclamem que desejo liberdade.
Madeleine Pelletier expressou, já naquela época, juízo crítico, defendendo o
que hoje se pode identificar como Referenciais da autonomia e da liberdade. Ainda
que se tratasse de assunto polêmico, como ainda é nos dias de hoje, ela defendeu o
direito da mulher à contracepção e ao aborto e, na situação e época em que ela
vivia, além de ato de Desobediência Civil, pois existiam leis contrárias a isso,
representava exercício “bio”ético imediatamente identificável, pois apresentava
reflexão, juízo crítico, autonomia e busca da liberdade.
No final de sua vida, fez uma espécie de retrospectiva de suas práticas e
atividades ligadas aos movimentos políticos e à sua luta pela emancipação das
mulheres, a partir de uma hierarquia de fatos reconstruídos em uma cronologia um
tanto diferente dos registros de que se tem conhecimento, e proclamou: “Qualquer
pessoa é verdadeiramente digna da liberdade quando não espera que ela lhe seja
concedida, mas a conquista”. (SCOTT, 2002)
3.4.2.7 Rosa Parks (1913-2005)
“A batalha da vida só tem duas faces: ou vencer ou fugir.”
Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949)
Em 1 de dezembro de 1955, Rosa Parks se recusou a dar, para um homem
branco, seu lugar em um ônibus, na cidade de Montgomery, no estado de Alabama,
na qual se vivia sob o regime de leis de segregação racial.
Esta recusa causou sua prisão e deu início a um boicote que culminou com o
término da segregação racial em todos os ônibus dos Estados Unidos.
A atitude de desobediência à lei instituída pelos governantes e o resultado da
mudança obtida em todo o país constituem exemplo clássico de ato de
Desobediência Civil, já que o objetivo final era o bem da coletividade.
O movimento de recusa teve grande repercussão na década de 1950 nos
Estados Unidos, quando o ainda não tão conhecido pastor Martin Luther King
pregava os direitos civis dos negros americanos, defendendo a teoria "Say at less
(...) I'm black, I'm proud" (Pelo menos diga: tenho orgulho de ser negro), que mudou
completamente a história dos Direitos Civis para os negros americanos e influenciou
gerações de negros no mundo inteiro.
Ao ser acolhida por Martin Luther King e passar a fazer parte de seus
sermões, a atitude de Rosa Parks nunca mais foi uma atitude solitária.
Ela recebeu várias homenagens e prêmios por sua coragem e ficou
conhecida, nos Estados Unidos, como a "Mãe do Movimento pelos Direitos Civis",
cujo ato inicial foi uma reafirmação da cidadania, por meio de atitude de
Desobediência Civil.
Rosa Parks é pura concretização de Desobediência Civil, pois seu ato,
contrário à norma estabelecida, foi reafirmação da cidadania, cujo conceito remete,
entre outros, a jamais distinguir alguém pela raça, cor, religião etc., bem como de
identificação imediata com os Referenciais da Bioética: busca da justiça,
responsabilidade para com seu papel na comunidade, defesa da qualidade de vida,
luta pela dignidade da pessoa humana – embora não se utilizassem essas
expressões na época do seu ato desobediente, chegando, até mesmo, a significar
luta pela própria sobrevivência da coletividade negra que ela representava.
Em 1996, ela recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade e, em 1999,
recebeu a Medalha de Ouro do Congresso norte-americano.
Depois de se aposentar, Rosa Parks escreveu a própria biografia. Os anos
finais de sua vida foram marcados pelo Mal de Alzheimer. Ela morreu de causas
naturais em 2005.
3.4.2.8 Nelson Mandela
94
(1918-)
“Não há caminho fácil para a Liberdade.”
Nelson Mandela (1918-)
“A derrubada da opressão foi sancionada pela humanidade, e é a
maior aspiração de cada homem livre.”
Nelson Mandela (1918-)
“A luta é a minha vida. Continuarei a lutar pela liberdade até o fim de
meus dias.”
Nelson Mandela (1918-)
“A violência do governo só pode fazer uma coisa: gerar a contra-
violência.”
Nelson Mandela (1918-)
Nelson Rolihlahla Mandela nasceu em 1918, em Qumbu (também chamada
de Qunu), Umtata, atual Transkei. Foi um líder rebelde e, posteriormente, Presidente
da África do Sul, de 1994 a 1999. Principal representante do movimento
antiapartheid
95
, considerado pelo povo um guerreiro em luta pela liberdade, era tido
pelo governo sul-africano como um terrorista e passou quase três décadas na
cadeia.
94
Neste item, estão compiladas informações obtidas de várias fontes, a saber: LANG, Jack. Nelson
Mandela: uma lição de vida; SOIBELMAN, Leib., Enciclopédia Jurídica; SCHILLING, Voltaire.
Essência da liberdade humana; SCHILLING, Voltaire. As grandes correntes do pensamento – Da
Grécia antiga ao neoliberal. No caso de citação literal, a obra será identificada no corpo do texto.
95
A partir de 1911, uma série de leis começou a tentar consolidar o domínio dos africâners
(antigamente chamados de bôeres, eram os descendentes de holandeses) e dos ingleses sobre a
população negra, que constituía a ampla maioria. Essa política de segregação racial foi denominada
apartheid oficializada em 1948, com a chegada ao poder do Partido Nacional, que seria a força
política dominante por mais de 40 anos. O apartheid impedia o acesso dos negros à propriedade da
terra, à participação política e às profissões de melhor remuneração, além de obrigar os negros a
viverem em áreas separadas das zonas residenciais brancas. Os casamentos mistos e as relações
sexuais entre pessoas de raças diferentes também eram ilegais. (Almanaque Abril, CD-Rom, 1996)
Mandela foi a primeira pessoa da família a frequentar a escola, aos sete anos.
Lá, deram-lhe o nome inglês Nelson. Logo após sua entrada no mundo acadêmico,
o pai de Mandela morreu e ele foi enviado para outra escola, próxima ao palácio do
Regente.
De acordo com as tradições de Xhosa, sua etnia, ele foi iniciado na sociedade
aos 16 anos e seguiu para o Instituto Clarkebury, onde estudou cultura ocidental.
Aos 19 anos, em 1934, Mandela mudou-se para Fort Beaufort, cidade com
escolas que recebiam a maior parte da realeza Thembu, e ali se interessou por boxe
e por corridas.
Matriculou-se na Universidade de Fort Hare, para se tornar Bacharel em
Direito; lá conheceu Oliver Tambo, dando início a uma longa amizade.
Ao final do primeiro ano do Curso Superior, Mandela se envolveu com o
movimento estudantil, num boicote contra as políticas universitárias, sendo expulso
da Universidade. Depois foi para Johanesburgo, onde terminou sua graduação na
Universidade da África do Sul (UNISA), por correspondência, e continuou seus
estudos de Direito na Universidade de Witwatersrand.
Ele se casou três vezes. A primeira esposa de Mandela foi Evelyn Ntoko
Mase, da qual se divorciou em 1957, após 13 anos de casamento. Depois, casou-se
com Winie Madikizela, e com ela ficou 38 anos, divorciando-se em 1996, com as
divergências políticas entre o casal vindo a público. No seu 80º aniversário, Mandela
casou-se com Graça Machel, viúva de Samora Machel, antigo Presidente
moçambicano.
Motivado por suas características e pelas portas abertas pelos estudos de
Direito, Mandela se envolveu na oposição ao regime do apartheid, que negava
direitos políticos, sociais e econômicos aos negros (maioria da população), mestiços
e indianos (uma expressiva colônia de imigrantes). Uniu-se ao Congresso Nacional
Africano em 1942, e dois anos depois fundou, com Walter Sisulu e Oliver Tambo,
entre outros, a Liga Jovem do CNA.
Depois da eleição de 1948, que deu a vitória aos afrikaners (Partido
Nacional), que apoiavam a política de segregação racial, Mandela tornou-se mais
ativo no CNA, tomando parte do Congresso do Povo (1955) que divulgou a Carta da
Liberdade – documento contendo um programa fundamental para a causa
antiapartheid.
Mandela declarou, em algumas situações, como a realidade que vivia fazia-o
ver a justiça e a lei. Segundo Lang (2007, p. 32 e 36): “O drama familiar ensinou-lhe
(a Mandela), de modo cruel, que o respeito à lei pode proteger e o desprezo a ela
mata” e, depois de um incidente, por estar sentado em lugar que não deveria: “Vi
com meus próprios olhos que a justiça não era cega, diz Mandela”.
Inicialmente, Mandela se expressava apenas por meio de atos não-violentos –
e aqui se pode afirmar que ele representava verdadeiro desobediente civil.
Entretanto, após o massacre de Sharpeville
96
, em março de 1960, Mandela e seus
colegas passaram, também, a recorrer às armas.
Em 1961, ele se tornou comandante do braço armado do Congresso Nacional
Africano (CNA), o chamado Umkhonto we Sizwe ("Lança da Nação", ou MK),
fundado por ele e por outros membros. Mandela coordenou uma campanha de
sabotagem contra alvos militares e do governo e viajou para a Argélia para
treinamento paramilitar.
Em agosto de 1962, Nelson Mandela foi preso após informes da CIA à polícia
sul-africana, e foi sentenciado a cinco anos de prisão, por viajar ilegalmente ao
exterior e incentivar greves.
Em 1964, foi condenado à prisão perpétua por sabotagem (o que Mandela
admitiu) e por conspirar para ajudar outros países a invadir a África do Sul (o que
Mandela nega até hoje).
Ele ficou preso por 27 anos e seu nome e atitudes ficaram de tal forma
associados à oposição aos regimes de apartheid que o clamor "Libertem Nelson
Mandela" se tornou o lema das campanhas antiapartheid em vários países.
Na década de 1970, ele recusou revisão da pena e, em 1985, não aceitou a
liberdade condicional em troca de não incentivar a luta armada. Assim, continuou na
prisão até fevereiro de 1990, quando a campanha do CNA e a pressão internacional
conseguiram que ele fosse libertado, em 11 de fevereiro, aos 72 anos, por ordem do
96
No dia 21 de março de 1960, no subúrbio de Sharpeville, na província de Gauteng, na África do
Sul, o governo do apartheid (1911-1994) atacou milhares de pessoas que realizavam um protesto
pacífico contra a Lei do Passe, que obrigava os negros a usarem um cartão em que estavam
discriminados os lugares onde eles podiam ir, ou seja, a que ''áreas de brancos” os negros podiam
ter acesso. A polícia sul-africana conteve o protesto com rajadas de metralhadora. Morreram 69
negros e cerca de 180 manifestantes ficaram feridos. Em 1976, a ONU definiu o ''Massacre de
Sharpeville'' como de crueldade inesquecível e instituiu o 21 de março como Dia Internacional de Luta
pela Eliminação da Discriminação Racial. (ALERJ, 2009)
presidente Frederik Willem de Klerk, sendo que Mandela e Klerk dividiram o Prêmio
Nobel da paz, em 1993.
Como presidente do CNA (de julho de 1991 a dezembro de 1997) e primeiro
presidente negro da África do Sul (de maio de 1994 a junho de 1999), Mandela
comandou a transição do regime de minoria no comando, o apartheid, ganhando
respeito internacional por sua luta em prol da reconciliação interna e externa.
Após o fim do mandato de presidente, em 1999, Mandela voltou-se para a
causa de diversas organizações sociais e de direitos humanos e recebeu muitas
distinções no exterior, incluindo a Ordem de Saint John, da rainha Elizabeth II, a
Medalha Presidencial da Liberdade, de George W. Bush, o Bharat Ratna, a distinção
mais alta da Índia, e a Ordem do Canadá.
Em 2003, Mandela fez alguns pronunciamentos atacando a política externa
do presidente norte-americano Bush. Ao mesmo tempo, anunciou seu apoio à
campanha de arrecadação de fundos contra a AIDS, denominada "46664", ou seja,
prisioneiro 466, de 1964, seu número na época em que esteve na prisão
Em junho de 2004, aos 85 anos, Mandela anunciou que se retiraria da vida
pública. Fez uma exceção, no entanto, e manteve seu compromisso de lutar contra a
AIDS.
A comemoração de seu aniversário de 90 anos foi um ato público com shows,
que ocorreu em Londres, em julho de 2008, e contou com a presença de artistas e
celebridades engajadas em lutas sociais e humanitárias.
Embora as atitudes de Mandela nas quais havia armas estejam, por força da
essência, descaracterizadas como Desobediência Civil, visto que, como já referido,
a não-violência é marca fundamental de atitudes desta natureza, sem dúvida,
Mandela foi um desobediente.
Nem o cárcere, nem a idade, impediram-no de se manifestar contra as
injustiças e a favor da melhora da qualidade de vida das minorias.
Seu engajamento na luta pelo controle e tratamento da AIDS bem mostra
essa preocupação, já que a África é o continente no qual há mais infectados com o
vírus, em todo o Planeta.
Sua preocupação com a vulnerabilidade dos excluídos, com a qualidade de
vida, com a busca da justiça, com a solidariedade, entre outras, aproximam-no
definitivamente dos Referenciais da Bioética.
E ainda que se possa alegar que seus atos violentos desrespeitem o
Referencial da não-maleficência e a característica da não-violência, impossível
negar que seus atos foram representantes da Desobediência Civil e dos
Referenciais da Bioética, principalmente no aspecto de influenciar outros cidadãos –
e por que não, nações inteiras, com vistas a reformar Instituições, governos e leis,
sempre em busca do bem para a coletividade.
3.4.2.8 Martin Luther King
97
(1929-1968)
“A Desobediência Civil é um ato que ganha força pelo preço pago
pelo ativista que está de cara descoberta contra um Sistema que faz
cumprir as suas leis. Não é feito por ativistas de cara escondida,
escoltados por uma polícia que os protege.”
Martin Luther King (1929-1968)
Chega a hora em que as pessoas se cansam de ser pisoteadas pelo
pé de ferro da opressão. Chega a hora, meus amigos, em que as
pessoas se cansam de ser lançadas no abismo da humilhação, onde
vivenciam a desolação de um pungente desespero. Chega a hora em
que as pessoas se cansam de ser alijadas do brilhante e vívido sol
de julho e abandonadas ao frio cortante de um novembro alpino.
Martin Luther King (1929-1968)
"É justamente essa coalização de um poder sem moral com uma
moral sem poder que constitui a maior crise de nosso tempo."
Martin Luther King (1929-1968)
Martin Luther King nasceu em 1929, em Atlanta, na Geórgia, e era o filho
primogênito de uma família de negros norte-americanos de classe média. Seu pai
era pastor batista e sua mãe era professora.
97
Neste item, estão compiladas informações obtidas de várias fontes, a saber: NASCIMENTO,
Joelton. O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt;
DANIEL, Beatriz Castilho. Breves apontamentos sobre a Desobediência Civil à égide da razoabilidade
moral; SÁ, Mariana Santiago de. Desobediência civil: um meio de se exercer a cidadania; BUSCHEL,
Inês do Amaral. Desobediência Civil Desarmada; DURIGAN, Paulo Luiz. Desobediência Civil;
GUIMARAENS NETO, Afonso Henrique de; LIMA, Alencar Bastos Guimarães. Luther King; ARENDT,
Hannah. Crises da República. No caso de citação literal, a obra será identificada no corpo do texto.
Aos 19 anos, a exemplo de seu pai, Luther King também se tornou pastor
batista e mais tarde se formou teólogo; fez pós-graduação na Universidade de
Boston, e lá conheceu Coretta Scott, uma estudante de música com quem se casou.
Em seus estudos, dedicou-se aos temas de filosofia de protesto não-violento,
inspirando-se nas ideias do hindu Mohandas K. Gandhi, o Mahatma Gandhi.
Em 1954, tornou-se pastor da Igreja batista de Montgomery, Alabama e, em
1955, participou do boicote ao transporte da cidade, como forma de protesto a um
ato discriminatório a uma passageira negra, Rosa Parks (ver item 3.4.2.7).
Luther King, como presidente da Associação de Melhoramento de
Montgomery, organizou o movimento, que durou um ano e, por causa disso, teve
sua casa bombardeada. Foi assim que ele iniciou a luta pelos direitos civis nos
Estados Unidos.
Em 1957, Luther King ajudou a fundar a Conferência da Liderança Cristã no
Sul (SCLC), uma organização de igrejas e sacerdotes negros, que tinha o objetivo
de acabar com as leis de segregação por meio de manifestações e boicotes
pacíficos.
Em 1959, foi à Índia estudar mais sobre as formas de protesto pacífico
utilizadas por Gandhi, pois era contra represálias e defensor das ações não-
violentas.
Sobre isso, manifestou-se mais de uma vez: “Uma ação direta de não-
violência tem como objetivo criar crises e gerar uma tensão a ponto de uma
comunidade que sempre se recusou a negociar seja forçada a enfrentar e discutir
sobre a questão”. Afirmou, ainda, no discurso “Eu tenho um sonho” (King, 1963):
Nenhuma cruz arderá em chamas nas paradas de ônibus de
Montgomery. Nenhum branco será arrancado de sua casa, levado ao
longo de uma estrada distante e linchado por não cooperar. Nenhum
de nós se erguerá para desafiar a Constituição de nossa nação.
Somente nos reunimos aqui movidos pelo desejo de que o Direito
prevaleça
.
Martin Luther King, em sua luta contra a discriminação racial, também foi
influenciado por Thoreau, ao adotar a proposta não-violenta utilizada por Gandhi (os
negros americanos fizeram uso do boicote, da marcha e dos protestos). Ademais,
Thoreau também era abolicionista.
No início de 1960, King liderou uma série de protestos em diversas cidades
norte-americanas e organizou manifestações para protestar contra a segregação
racial em hotéis, restaurantes e outros lugares públicos. Durante uma manifestação,
King foi preso, por causar desordem pública.
Em 1963, liderou um movimento massivo que ficou conhecido como "A
Marcha para Washington", pelos direitos civis no Alabama, organizando campanhas
para permitir eleitores negros. Este protesto contou com a participação de mais de
200.000 pessoas, que se manifestaram em prol dos direitos civis de todos os
cidadãos dos Estados Unidos. A não-violência tornou-se sua maneira de demonstrar
resistência. Foi preso diversas vezes e, ainda em 1963, liderou a histórica passeata
em Washington, onde proferiu seu famoso discurso I have a dream (Eu tenho um
sonho). Em 1964, foi premiado com o Nobel da Paz.
Os movimentos liderados por Luther King continuaram e a marcha realizada
em 1965 teve como consequência a aprovação da Lei dos Direitos de Voto, de 1965,
que abolia o uso de exames que visavam a impedir a população negra de votar.
Em 1967, King uniu-se ao Movimento pela Paz no Vietnã, o que causou um
impacto negativo entre os negros, pois alguns outros líderes negros não
concordaram com esta mudança de prioridades dos direitos civis para o movimento
pela paz.
Martin Luther King foi baleado e morto em Menphis, Tennessee, em 1968, por
um homem branco, que foi preso e condenado a 99 anos de prisão.
Em consonância às características necessárias para atos de Desobediência
Civil, Martin Luther King, por meio da ação não-violenta, destacou-se nas décadas
de 1950 e 1960 nos Estados Unidos, como mártir-defensor dos direitos dos negros,
pronunciando-se expressamente com relação à não-violência:
Através da violência você pode matar um assassino, mas não pode
matar o assassinato. Através da violência você pode matar um
mentiroso, mas não pode estabelecer a verdade. Através da
violência você pode matar uma pessoa odienta, mas não pode matar
o ódio. A escuridão não pode extinguir a escuridão. Só a luz pode.
98
(KING, 1967)
98
Do original: “Through violence you may murder a murderer but you can't murder murder. Through
violence you may murder a liar but you can't establish truth. Through violence you may murder a
hater, but you can't murder hate. Darkness cannot put out darkness. Only light can do that”, no
Discurso ‘Where do we go from here’, proferido em 16 de agosto de 1967.
Mais do que agir de forma não-violenta, Luther King traçou seis aspectos
essenciais da resistência não-violenta:
- não procurar vencer o adversário, mas buscar sua compreensão;
- não estar esta resistência destinada aos medrosos ou ser própria de
covardes;
- ter como missão vencer o mal e não as pessoas que se apresentam como
instrumento desse mal;
- saber aceitar o sofrimento sem espírito de represália;
- recusar a violência;
- ter convicção de que a lei que rege o universo é a justiça.
Luther King foi um praticante da Desobediência Civil, ao liderar a luta dos
negros norte-americanos pela cidadania completa e foi o responsável pela
apresentação das modernas características da resistência civil, ao defini-la como
“ação coletiva, depois de esgotados todos os canais de reivindicação”.
Ele deixava claro que os atos deveriam ser não-violentos
99
e que a ação
desobediente objetivava a modificação das leis ou das decisões administrativas e
defendia que a não-violência era o meio mais adequado para chamar a opinião
pública para a luta pela justiça e pelos direitos reivindicados, de modo a viabilizar
sua obtenção.
Os boicotes e as marchas constituíam táticas da resistência pacífica, em que
os manifestantes se mantinham indiferentes à violência da polícia e dos grupos
contrários.
Esta forma de Desobediência Civil por meios pacíficos deixava o Estado e
seus representantes em situação delicada, pois se deixassem os manifestantes
agirem, sem reagir, admitiam a razão desses manifestantes e que o
descontentamento era justo. Por outro lado, se proibissem as manifestações,
mostrariam a injustiça do governo.
A estratégia não-violenta de King era inteligente na obtenção de publicidade
favorável, haja vista que a Desobediência Civil mostrava os equívocos da legislação
99
Apesar de, no final da década de 60, o autor admitir a agressão às propriedades dos brancos, com
a condição de os responsáveis sujeitarem-se às sanções legais.
segregacionista e criava tensões localizadas, que se refletiam favoravelmente na
opinião pública.
Ademais, a violência da polícia, recebida com passividade pelos
manifestantes, visava a sensibilizar os setores sociais indiferentes, por intermédio da
cobertura nacional da imprensa. A mensagem pressionava as autoridades públicas,
que tendiam a abrir concessões pela impossibilidade de derrotarem, pela força, os
movimentos pacíficos.
As manifestações não-violentas da minoria negra, iniciadas em meados da
década de 50, forçaram a sociedade norte-americana a encarar a realidade: a
Décima Quarta Emenda americana, que deveria traduzir as mudanças ocorridas
depois da Guerra Civil, não fora posta em prática nos Estados sulistas; as
campanhas de Desobediência Civil levaram a Suprema Corte a decidir contra as leis
estaduais que negavam a igualdade racial.
Nos trechos do discurso “I have a dream” (Eu tenho um sonho), é possível
encontrar textualmente a reprodução – ou uma espécie de premonição? – dos
Referenciais da Bioética, ainda que nada se houvesse enumerado com esta
identificação teórica à época de Luther King:
[...] Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para
a História como a maior demonstração pela liberdade na História de
nossa nação. (...) Quando os arquitetos de nossa República
escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração
da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória da
qual todo americano seria herdeiro. Esta nota era uma promessa que
todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens
brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade
e a busca da felicidade. (...) Mas nós nos recusamos a acreditar
que o banco da justiça é falível. (...) o direito de reclamar as riquezas
de liberdade e a segurança da justiça. (...) Agora é a hora de erguer
nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra
sólida da fraternidade. Agora é hora de fazer da justiça uma
realidade para todos os filhos de Deus. (...) Este verão sufocante do
legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um
renovador outono de liberdade e igualdade. (...) Mas há algo que eu
tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao
palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito,
nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. (...) Nós
temos de conduzir nossa luta sempre num alto nível de dignidade e
disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se
degenere em violência física. (...) será transformado em um oásis
de liberdade e justiça.(...) Eu tenho um sonho que minhas quatro
pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não
serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.
Eu tenho um sonho hoje! (...) Com esta fé nós poderemos trabalhar
juntos, rezar juntos, lutar juntos, para defender a liberdade juntos, e
quem sabe nós seremos um dia livres. Este será o dia, este será o
dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo
significado. E quando isto acontecer, quando nós permitimos ao sino
da liberdade soar, quando nós o deixarmos soar em toda moradia e
todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos
enxergar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens
pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos,
poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho espiritual negro:
‘Livre afinal, livre afinal. Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós
somos livres afinal’. (KING, 1963) (grifos nossos)
3.4.2.10 Steve Biko (1946-1977 )
“O gesto de violência de um adulto não merece o sorriso de uma
criança”.
Steve Bantu Biko (1946-1977 )
Bantu Steve Biko nasceu na cidade de King William, em 1946, na África do
Sul. Estudou medicina e se tornou um ativista estudantil que lutou contra o
apartheid.
Em 1968, juntamente com outros companheiros de luta, fundou a SASO
(South African Students' Organization – Organização dos Estudantes Sul Africanos)
e pretendia, com esta organização, incentivar os negros a participarem mais da
sociedade, ajudar a elevar o seu orgulho e atuar independentemente dos brancos.
Ele foi feroz defensor dos negros e da sua liberdade, na luta contra o
apartheid na África do Sul e sempre afirmou que "a arma mais poderosa nas mãos
do opressor é a mente do oprimido" (WOODS, 1987), defendendo que se os
próprios negros não se unissem e mudassem o modo de pensar, estariam agindo
exatamente da forma como aqueles que os oprimiam esperavam, suportando, sem
reagir. Assim, defendia que a primeira mudança tinha de ser no pensamento, para
depois se passar aos atos.
Ele afirmava que as leis e a opressão sobre os negros era imensa e que,
ainda que não percebesse, o mais simples ato de um negro podia ser visto como
desrespeito a alguma lei: “nenhum homem negro comum pode, em qualquer
momento, ter a absoluta certeza de que não está infringindo uma lei”. (WOODS,
1987)
Steve Biko foi elogiado por Nelson Mandela, em 1997, no vigésimo
aniversário de sua morte que, sobre ele, afirmou: "Um dos grandes legados da luta
que Biko travou – e pela qual morreu – foi a explosão do orgulho entre as vítimas do
apartheid".
Em 1973, o regime de segregação racial estava em seu ápice e Biko foi
banido e proibido de sair da cidade de King William. "Banido", na África daquela
época, significava que ele não podia se comunicar com mais de uma pessoa de
cada vez. Portanto, não podia realizar discursos, não podia publicar nada e seus
escritos anteriores não podiam ser divulgados ou citados.
Steve Biko era realmente “uma pedra nos sapatos” do governo separatista da
África do Sul. Assim, em setembro de 1977, foi preso em um bloqueio rodoviário
organizado pela polícia. Acusado de desobedecer às leis do apartheid, foi levado
sob custódia e acorrentado às grades de uma janela da penitenciária durante um dia
inteiro; sofreu grave traumatismo craniano. Três dias depois, foi colocado em um
veículo policial para ser transportado a outro distrito policial e morreu durante o
trajeto. (WOODS, 1987)
Inicialmente, o governo do apartheid anunciou que a causa oficial da morte de
Biko havia sido a “prolongada greve de fome empreendida pelo prisioneiro".
Ulteriormente, perante a gravidade visível das lesões na cabeça, afirmaram que ele
tentou se suicidar, batendo a cabeça.
Em 2003, depois de anos de luta da família, amigos e de componentes da
Comissão de Verdade e Reconciliação, criada após o fim do apartheid, que jamais
perdoaram os assassinos de Biko e clamavam para que os responsáveis por sua
morte fossem punidos, ouviram o anúncio de autoridades do Ministério Público sul-
africano comunicando que os cinco policiais envolvidos no assassinato não seriam
processados devido à falta de provas.
O Ministério Público alegou, também, que a acusação de assassinato não se
sustentaria por não haver testemunhas dos atos “supostamente” cometidos contra
Biko. Ainda assim, foi considerada a possibilidade de acusar os envolvidos por lesão
corporal seguida de morte, mas como os fatos ocorreram em 1977, o crime já estava
prescrito, segundo as leis do país.
A morte de Biko foi largamente denunciada e anunciada internacionalmente,
por causa do grande prestígio que ele obteve em vida, ampliando e elevando o
combate ao regime do apartheid na África do Sul. O funeral foi acompanhado por
milhares de pessoas, inclusive com a presença de diversos embaixadores
estrangeiros. (WOODS, 1987)
Atualmente, na África do Sul, existe a Fundação Steve Biko, presidida pelo
filho do ativista, Nkosinati Biko.
O assassinato de Steve Biko tornou-se um símbolo da brutalidade do regime
do apartheid. A sua vida, luta e morte tornaram-se amplamente conhecidas por meio
do trabalho desenvolvido por Donald Woods, um jornalista branco, amigo de Biko,
que fotografou o seu cadáver com os ferimentos e um ano depois publicou um livro,
"Biko", descrevendo a vida e a morte prematura do ativista, aos trinta anos, devido a
luta por si e por seu povo.
Biko foi, sem dúvida, um desobediente civil, e defendeu também, mesmo sem
nominá-los, os Referenciais da Bioética: justiça, equidade, solidariedade,
beneficência e altruísmo, entre outros.
3.4.2.11 Mukhtar Mai (1974-)
“Contra todas as possibilidades, essa humilde camponesa liderou
uma revolução silenciosa”. (sobre Mukthar Mai)
Hashid Rehman (Séc. XX)
“Pois a verdadeira questão que o meu país deve encarar é muito
simples: se a mulher é a honra do homem, por que será que ele quer
violar ou matar essa honra?”
Mukthar Mai (1974-)
“Às vezes, basta que dois homens entrem em disputa por um
problema qualquer para que um deles se vingue na mulher do outro.
Nas aldeias, é muito comum que os próprios homens façam justiça,
invocando o princípio do ‘olho por olho’. O motivo é sempre uma
questão de honra, e tudo é permitido a eles. Cortar o nariz de uma
esposa, queimar uma irmã, violar a mulher do vizinho.”
Mukthar Mai. Desonrada. (2006)
Mukhtar Mai
100
, também conhecida como Mukhtara Mai e Mukhtaran Bibi, foi
violentada na província de Punjab, no sudeste do Paquistão, devido a um problema
100
Sobre esta fantástica personagem real da atualidade, interessante reproduzir texto da jornalista
Miriam Leitão, em 24 jan. 2006, no Jornal O Globo, presente no prefácio da edição brasileira da obra
Desonrada: “Nunca ficou tão clara a hipocrisia das Nações Unidas quanto no caso em que a ONU
decidiu cancelar a entrevista de uma paquistanesa vítima de estupro coletivo. Mukhtar Mai estava
sendo apresentada como “a mulher mais corajosa da Terra”, mas a entrevista acabou cancelada
entre clãs. O estupro, cometido por um grupo de homens de outro clã, foi
recomendado pela Assembleia local, que considerou uma "ofensa à honra" a
porque o primeiro-ministro do Paquistão visitava a ONU e não se queria constrangê-lo. Ela falaria na
tevê da ONU, mas na véspera, a Instituição mandou informar que a entrevista ficaria para melhor
oportunidade, porque isso poderia incomodar o primeiro-ministro paquistanês, Shaukat Aziz, em visita
às Nações Unidas. A notícia correu mundo imediatamente porque a jovem pobre de uma aldeia
remota do Paquistão já havia se tornado uma celebridade. Mukhtar estava indo à ONU depois de
participar do lançamento de Desonrada, em Paris. Mukhtar Mai viveu uma das mais chocantes
histórias de violência contra a mulher já divulgada. Ela foi condenada pela jirga, a corte tribal, da
localidade de Meerwala, em junho de 2002, a ser estuprada coletivamente. Seu crime? Nenhum! Seu
irmão mais novo, então com 12 anos, estaria se encontrando com uma jovem de uma tribo,
considerada de casta superior. Ofendidas, as pessoas da tal casta exigiram, como vingança, pelo
suposto ataque à honra do grupo, que Mai fosse estuprada. Ela foi condenada pelo conselho tribal e
estuprada sucessivamente, por quatro homens. Seria mais um dos milhões de estupros de que, ainda
hoje, mulheres são vítimas, seria mais um dos casos de violência contra a mulher determinada por
alegações religiosas ou culturais, não fosse a espantosa coragem de Mai. Recusando-se a ficar em
silêncio, ela desafiou seus algozes e enfrentou o código tribal. Foi à Justiça comum do país, pedindo
punição para todos os culpados. Em 2004, eles foram condenados e ela recebeu uma indenização.
Com o dinheiro, abriu uma escola. Mai, que na sua época nunca teve permissão para estudar, disse
querer trabalhar para melhorar as chances da próxima geração. “A escola é o primeiro passo para
mudar o mundo. Em geral, o primeiro passo é o que dá mais trabalho, mas é o começo do
progresso”, disse, segundo a BBC News. Ela ainda enfrentou outro constrangimento: em 2005, teve
seus direitos de locomoção reduzidos pelo governo paquistanês, sob a alegação de que era para sua
segurança. A suspeita é de que a intenção era silenciá-la em sua condenação ao país e à omissão do
governo. Mai venceu mais essa batalha, mas a ONU acabou ajudando o governo do Paquistão. Para
isso, teve de esquecer até o preâmbulo da declaração que a criou, que diz o seguinte: ‘Considerando
que o desconhecimento e o desprezo dos direitos dos Homens conduziram a atos de barbárie que
revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos
sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta
inspiração do Homem...’. A ONU, guardiã e defensora dessa declaração universal, decidiu que, lá,
Mai tem de se calar. Entre dar voz a uma vítima de grave violação dos direitos humanos ou a mais
um burocrata de ocasião, ficou com a segunda opção. A luta da mulher por respeito é mais dramática
em alguns países, mas é mundial. No Brasil, uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, feita pelo
Ibope, mostrou que, entre mulheres que só estudaram até o quarto ano do fundamental, 31% não
discordavam da frase: ‘Ele bate, mas, ruim com ele, pior sem ele.’ Até entre quem tem curso superior
foi possível encontrar 8% que aceitavam a frase. Nessa área, os dados são imprecisos, porque
muitas mulheres preferem o silêncio, mas, segundo a Fundação Perseu Abramo, um terço das
mulheres com mais de 15 anos já foi vítima de alguma forma de violência física. Em mais de 50% dos
casos, a denúncia não é feita. No mundo, em alguns países, a taxa de violência chega até a 69% das
mulheres. Asma Jahangir, da Comissão de Direitos Humanos da ONU no Paquistão, escreveu na
revista Time Asia que, nos sete primeiros meses de 2004, nada menos que 1511 mulheres
paquistanesas foram estupradas da mesma forma e 176 foram condenadas à morte “em nome da
honra”. No ano em que Mai foi violentada, foram registrados outros 804 casos de estupros coletivos,
434 deles chegaram a ser noticiados. Os casos de suicídio de mulheres após condenação tribal –
única justiça em grande parte da área rural do Paquistão – são tão comuns que normalmente são
registrados em notícias pequenas nos jornais locais. O nome e a história de Mai correram o mundo e
continuarão correndo nos próximos anos. Ela virou um símbolo da luta contra a barbárie, pelos
direitos humanos, contra a violência contra a mulher. É admirada, respeitada e apoiada. Tudo o que
aconteceu a ela seria mais um caso de abuso contra a mulher num lugar remoto, tolerado pelo
mundo com a desculpa de que essa é a cultura local ou essa é a lei religiosa, não fosse sua
determinação de não se calar. Numa entrevista à CNN, Mai disse, numa vozinha baixa e tímida, uma
mensagem de extraordinário poder: ‘Eu tenho uma mensagem para as mulheres do mundo, todas as
mulheres que foram estupradas ou foram vítimas da violência. É preciso falar sobre o que houve e
lutar por justiça’. Parece simples e fácil, mas para todas as vítimas de violência sexual este é o passo
mais difícil: falar sobre o crime e expor a humilhação de que foi vítima”.
suposta relação entre um irmão dela, de 12 anos, e uma menina do outro clã, de
classe social superior à dele.
No Paquistão, as vinganças contra crimes de honra são bastante comuns,
mas mesmo assim Mukhtar denunciou o seu caso ao mundo e conseguiu uma
grande vitória. Três anos após ter sido estuprada, os cinco acusados foram
condenados pelo Supremo Tribunal paquistanês. Até mesmo o presidente do
Paquistão à época, Pervez Musharraf, envolveu-se no caso para assegurar que a
justiça fosse cumprida.
Se seguisse os costumes locais, Mai teria ficado calada e cometido suicídio,
mas ela decidiu viver para lutar por justiça e ajudar outras mulheres a terem vida
mais digna.
Assim, a desobediente civil mostra Referenciais da Bioética em sua atitude,
pois além da busca por justiça, também a preocupava a solidariedade com as outras
mulheres, como ficará claro.
Quanto à sua Desobediência Civil, cabe ressaltar um aspecto interessante:
Mukhtar desobedeceu a lei costumeira da região, que era ficar calada em situações
como essa mas, em sua desobediência, buscou a aplicação da lei positiva do seu
país.
Apoiada pelos pais e fortalecida espiritualmente pelas lições do Alcorão, dizia:
"Sou só a primeira gota d'água, mas a chuva virá. E muitas gotas de chuva acabam
formando um grande rio". (KIENER, 2008)
Por ter memória privilegiada, Mukhtar conseguia memorizar trechos do
Alcorão e relembrando esses trechos dizia pensar "O Alcorão me protegerá”, quando
resolveu enfrentar um sistema perpetuado há gerações.
Destaque-se aqui que enfrentar o que está perpetuado pelo Poder dominante
e que representa ato notório de injustiça constitui-se atitude equiparada a ato de
Desobediência Civil, como mencionado
Seguindo as tradições de sua cultura, Mukhtar Mai casou-se aos 18 anos,
com noivo arranjado, e embora o divórcio fosse raro no Paquistão rural e deixasse a
mulher discriminada, os pais a apoiaram quando decidiu tomar as atitudes
necessárias para se separar.
Depois de tomada a decisão da separação, em menos de um ano ela recebeu
do marido o talaq
101
, que oficialmente a libertou do casamento e permitiu que ela
voltasse para a casa da família, em Mirvala.
A agressão por estupro ocorreu na noite de 22 de junho de 2002, quando
Mukhtar
102
tinha 28 anos. Em 5 de março de 2003, cinco dos seis mastoi (casta
superior) foram julgados e condenados: quatro, foram absolvidos do crime de
estupro e libertados. O quinto teve a pena de morte comutada para prisão perpétua.
Os ativistas dos direitos humanos protestaram contra o veredicto e houve,
também, um protesto internacional, o que levou o governo paquistanês a ordenar
que os mastoi voltassem à prisão e continuassem presos, à espera de um novo
julgamento.
Obedecendo a uma ordem do governo, a Ministra Federal para as mulheres,
Attiva Inayatullah, entregou a Mukhtar um cheque no valor de meio milhão de rúpias
(que equivale a cerca de US$ 8.200 e que é muito mais do que seu pai ganharia em
décadas). Segundo a Ministra, o valor não era uma compensação, mas um pequeno
símbolo de "nossa identificação" com o sofrimento pelo qual Mukhtar passou.
Ela, que jamais havia visto um cheque, declarou: "Não preciso de dinheiro. O
que realmente preciso é de uma escola”, ideia que surgiu ao perceber que a maioria
de pessoas que com ela se solidarizavam eram as que tinham maior grau de
educação acadêmica formal.
As atitudes de Mukhtar advêm dos ensinamentos recebidos em família, o que
fez com que ela desenvolvesse um forte senso de certo e errado. (KIENER, 2008)
Assim, com base em seus valores e nas noções de certo e errado tão bem
estruturadas em sua personalidade, Mukthar concordou em aceitar o dinheiro que
lhe ofereceram se pudesse utilizá-lo para a construção de uma escola para meninas.
A Escola-modelo para Meninas Mukhtar Mai foi inaugurada em dezembro de
2002. O governo pavimentou a estrada e trouxe luz e telefone para Mirvala, por
causa da notoriedade de Mukhtar e de sua causa.
101
Na Lei islâmica, o repúdio do homem à mulher.
102
Em Deshonorée (Desonrada, 2006), escrito a partir do relato de Mukhtar Mai feito à jornalista
Marie Thérese Cury, especializada em direitos humanos e direitos da mulher, Mai revela que pediu à
sua mãe que a ajudasse a se suicidar após a desonra do estupro. Entretanto, a Polícia foi buscá-la
antes em sua casa para que fizesse uma denúncia, já que sua história causou grande repercussão
depois de seu relato a um jornalista local.
Acompanhada e protegida pela polícia, ela foi pessoalmente de casa em casa
para pedir aos pais que enviassem as filhas para a nova escola, o que se revelou
tarefa nada fácil. Para tentar vencer a resistência, Mukhtar se comprometeu a
mandar transporte para buscar cada menina em casa e depois levá-la de volta.
A escola não tinha luxo e em vez de se sentar em cadeiras, as meninas se
sentavam sobre sacos de aniagem. Ao lado delas, sentava-se Mukhtar para também
aprender a ler e escrever e, finalmente, quando a imprensa divulgou a história,
chegaram muitas doações, que permitiram fazer melhorias nas instalações.
Após as melhorias na Escola para meninas, o saldo do dinheiro foi utilizado
para abrir uma escola para meninos, em Mirvala, e mais uma para meninas, numa
aldeia próxima.
A partir daí, mais de 700 crianças de todas as castas – inclusive da casta
mastoi – misturam-se livremente nas escolas, inclusive os filhos e filhas dos próprios
homens que a estupraram foram recebidos por Mukhtar e aceitos na escola que ela
fundou.
Mas os atos dessa mulher singular não pararam por aí: mulheres mutiladas,
espancadas, estupradas, com cicatrizes horríveis no rosto (vítimas de ataques de
ácido, sem nariz ou orelhas, punição para supostas adúlteras) passaram a procurar
Mukhtar.
Para atender a essas mulheres, foi criado, ao lado da primeira escola, o
Centro Mukhtar Mai de Assistência de Crise da Mulher, no qual chegam, em média,
diariamente, cinco vítimas, em busca de auxílio e no qual ninguém deixa de ser
atendida.
Mukhtar fala baixo e raramente olha no rosto de estranhos. Embora tenha
viajado muito e obtido reconhecimento internacional, é muito tímida, e prefere que
outros falem por ela. Suas maneiras gentis impõem respeito. Sempre que ela entra
no pátio da Escola, os alunos se aproximam e educadamente tocam no xale ou lhe
apertam a mão. “Quando estou com meus alunos, sinto-me em paz”, diz ela.
(KIENER, 2008)
Com as escolas e o Centro de Assistência, Mukhtar salva mulheres
paquistanesas da repressão da justiça tradicional, o mesmo sistema obsoleto que a
tornou vítima de um estupro coletivo.
Agora, as mulheres recorrem a ela, em vez de se submeter ao panchayat
103
local. Mai é exemplo inegável de Desobediência Civil, pois se impôs contra a justiça
tradicional local, e também da aplicação dos Referenciais da Bioética, ao lutar pela
justiça, ao ser solidária, ao se preocupar com a qualidade de vida e com a
privacidade das mulheres, ao defender a própria dignidade e auxiliar as outras
mulheres a reencontrarem a sua, ao aplicar a beneficência, fazendo o bem às que a
procuram, ao conseguir identificar a vulnerabilidade dessas mulheres e a ajudá-las a
encontrar expedientes para superá-la, ao defender a serenidade que deve
acompanhar todos esses atos e, por fim, ao se preocupar, na mistura de todos
esses Referenciais, com a sobrevivência de seu povo.
Mukhtar não desafiou apenas o poder local em Mirvala, um vilarejo de
agricultores há 600 quilômetros da capital do Paquistão, Islamabad, onde quase não
há comércio e que só recentemente passou a ter energia elétrica. Ela iniciou um
movimento que discute a condição feminina em seu país e questiona hábitos
ancestrais como a jirga
104
, conselho tribal que a condenou ao estupro. (SOARES,
2007)
Segundo informações publicadas na Revista Veja, o caso de Mukhtar tratou-
se de um episódio inédito de estupro coletivo. Uma violência ainda maior do que de
costume, imposta apenas porque a casta de seus agressores controlava a
assembleia tribal.
Para o jornal The New York Times, ela é "a Rosa Parks do século XXI",
comparação feita com a americana negra que foi símbolo do movimento dos direitos
civis nos Estados Unidos.
Ainda que movida pela revolta e pela busca de justiça, Mukhtar apostou na
educação como forma de mudar a realidade em seu país. Apostou na sua educação
e na de outras meninas na mesma situação.
Ela aprendeu a ler e escrever, abriu outras três escolas e começou a dar
apoio a mulheres vítimas de violência, em clara lição que a Desobediência Civil,
103
Sistema político que agrupa cinco vilas num quincôncio (quatro vilas periféricas ao redor de uma
vila central). Cada uma das vilas tem tarefas e responsabilidades próprias, mas é na vila central que
se armazena comida e onde ocorre e encontro dos responsáveis (assim como o local onde ficam
suas residências).
104
Jirga (ou jirgah) é uma Assembleia tribal composta pelos membros mais idosos, que tomam
decisões por consenso. Existe principalmente entre os paquistaneses, mas também ocorre em outros
grupos étnicos que vivem próximos a eles, na fronteira do Paquistão e do Afeganistão e também na
região do Vale de Kashmir, na Índia.
entrelaçada à aplicação dos Referenciais da Bioética, pode reverter em benefício de
toda uma coletividade e servir de exemplo e inspiração para outros.
3.4.2.12 Manifestações contra a guerra do Vietnã
105
(1959-1975)
"A guerra é uma invenção da mente humana; e a mente humana
também pode inventar a paz."
Winston Churchill (1874-1965)
“A guerra é um dos assuntos mais importantes do Estado. É o campo
onde a vida e a morte são determinadas. É o caminho da
sobrevivência ou da desgraça de um Estado. Assim, o Estado deve
examinar com muita atenção este assunto antes de buscar a
guerra. “
Sun Tzu (século IV a.C.)
"Prefiro a paz mais injusta à mais justa das guerras."
Cícero (aprox. 106-43 a.C.)
A Guerra do Vietnã (1946-1975) foi o mais longo conflito militar depois da II
Guerra Mundial e teve dois períodos distintos. No primeiro, as forças nacionalistas
vietnamitas lutaram contra os colonialistas franceses, entre 1946 e 1954 e, no final
do conflito, o país foi dividido em dois. No segundo, uma frente de nacionalistas e
comunistas enfrentou as tropas de intervenção norte-americanas, entre 1964 e
1975.
Houve apenas um pequeno intervalo entre o final dos anos 50 e o início dos
anos 60, o que permite afirmar que a guerra durou quase 20 anos, com batalhas
nos territórios do Vietnã do Norte, Vietnã do Sul, Laos e Camboja. Ademais, o
conflito pode ser enquadrado no contexto histórico da Guerra Fria (Comunismo
contra Capitalismo) entre Estados Unidos e União Soviética.
O Vietnã do Norte era comandado por Ho Chi Minh, com orientação
comunista, pró União Soviética, e o Vietnã do Sul, uma ditadura militar, passou a
ser aliado dos Estados Unidos e, portanto, um sistema capitalista.
105
Neste item, estão compiladas informações obtidas de várias fontes, a saber: NASCIMENTO,
Joelton. O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt;
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental; COSTA, Nelson Nery. Teoria e Realidade
da Desobediência Civil; ARENDT, Hannah, Desobediência Civil. No caso de citação literal, a obra
será identificada no corpo do texto.
A situação entre os dois, devido às divergências políticas e ideológicas, era
muito tensa no final da década de 1950 e, em 1959, vietcongues (guerrilheiros
comunistas), com o apoio dos soviéticos, atacaram uma base norte-americana no
Vietnã do Sul. Este fato deu início a guerra mas, entre 1959 e 1964, o conflito
restringiu-se apenas ao Vietnã do Norte e ao do Sul, ainda que os Estados Unidos
e a União Soviética prestassem apoio indireto.
Entretanto, em 1964, os Estados Unidos, receando o domínio do Comunismo
na Ásia, resolveram invadir o Vietnã e entrar diretamente no conflito, enviando
armamentos de guerra e soldados, que sofreram muito num território coberto de
florestas tropicais, com as quais não estavam acostumados. Além disso, os
vietcongues utilizavam táticas de guerrilha, enquanto os norte-americanos
empenharam-se no uso de armamentos modernos, helicópteros e outros recursos,
mas no final da década de 1960, o fracasso da intervenção norte-americana era
evidente.
No começo da década de 1970, nos Estados Unidos, intensificaram-se os
protestos contra a guerra. Jovens, grupos pacifistas e a população em geral iam
para as ruas pedir a saída dos Estados Unidos do conflito e o retorno imediato das
tropas.
Neste momento, já eram milhares de soldados norte-americanos mortos,
entre eles, a maioria eram jovens. A televisão mostrava as cenas violentas e cruéis
da guerra e o povo se organizava em atos claros de Desobediência Civil.
Pode-se até dizer que a recusa pessoal de ir para a guerra constituía ato
justificado pela objeção de consciência, mas ao ir para a rua, discordando dos atos
do governo e exigindo uma mudança na lei e na decisão de guerrear, o povo se
encontrava em atitude de Desobediência Civil.
Sem apoio popular e com seguidas derrotas, o governo norte-americano
aceitou o Acordo de Paris, que previa o cessar-fogo, em 1973.
Em 1975, houve a retirada total das tropas norte-americanas, com a vitória
do Vietnã do Norte sobre os Estados Unidos e esta guerra incoerente deixou mais
de um milhão de mortos (civis e militares) e o dobro de mutilados e feridos.
Segundo Warburton (1998, p.132-5):
Outro exemplo de Desobediência Civil está patente na recusa de
alguns americanos em participarem na Guerra do Vietnam, apesar
de serem requisitados pelo governo. Alguns americanos justificaram
esta atitude afirmando acreditar que matar é moralmente errado,
pensando por isso que era mais importante violar a lei do que lutar e
possivelmente matar outros seres humanos. Outros havia que não
objetavam a todas as guerras, mas sentiam que a guerra do Vietnam
era injusta e que sujeitava os civis a grandes riscos, sem nenhuma
boa razão. A dimensão da oposição à guerra do Vietnam acabou por
conduzir os Estados Unidos à retirada. Sem dúvida que a violação
pública da lei aumentou esta oposição. A Desobediência Civil
corresponde a uma tradição de violação não-violenta e pública da lei,
concebida para chamar a atenção para leis ou políticas injustas. Os
que agem nesta tradição de Desobediência Civil não violam a lei
unicamente para seu benefício pessoal; fazem-no para chamar a
atenção para uma lei injusta ou para uma política moralmente
objetável e para publicitar ao máximo a sua causa. Por isso é que
estes protestos ocorrem habitualmente em lugares públicos, de
preferência na presença de jornalistas, fotógrafos e câmaras de
televisão. Por exemplo, um americano chamado para a guerra que
deitasse fora a sua convocatória durante a Guerra do Vietnam,
escondendo-se, em seguida, do exército, só por ter medo de ir para a
guerra e por não querer morrer, não estaria a executar um ato de
desobediência civil. Seria um ato de autopreservação. Se agisse da
mesma maneira, não por causa da sua segurança pessoal, mas por
motivos morais, mas que, no entanto o fizesse em segredo, não
tornando público este caso de nenhuma forma, continuaria a não
poder considerar-se um ato de desobediência civil. Pelo contrário,
outro americano convocado para a guerra que queimasse a sua
convocatória em público perante câmaras de televisão, comunicando
ao mesmo tempo à imprensa as razões que o levavam a pensar que
o envolvimento americano no Vietnam era imoral, estaria a cometer
um ato de desobediência civil.
Esta citação, por si só, identifica as ações dos manifestantes contra a guerra
do Vietnã e em atitudes de Desobediência Civil. Quanto aos Referenciais da
Bioética, a própria recusa por considerar moralmente errado ferir e matar alguém
demonstra o animus de defender a não-maleficência.
Pode-se identificar, nas atitudes dos desobedientes, a solidariedade, a busca
e restauração da qualidade de vida dos que estavam envolvidos e guerreando no
país estrangeiro, a responsabilidade com o outro, o desejo de defender a justiça,
entre outros.
3.4.2.13 Mais alguns exemplos
No decorrer da História da Humanidade, é possível encontrar ainda muitos
outros exemplos de desobedientes civis, embora nem todos os casos identificados
durante a pesquisa – limitada, é claro, como já referido nos capítulos iniciais – para a
realização deste estudo suscitem relação direta com os Referenciais da Bioética sob
o foco ora analisado.
Entretanto, pela relevância de alguns, julga-se por bem citá-los. Assim, como
desobedientes civis, pensa-se ser interessante e relevante registrar:
a. desobedientes a Hitler (1939-1955)
O nazismo, sem violar a legalidade constitucional alemã, chegou ao mais alto
posto do país e depois de estar no Poder transformou-se no mais terrível regime
político conhecido pela Humanidade
106
. Muitos não aceitavam o horror imposto pelos
governantes e, mesmo arriscando a própria vida, insurgiram-se contra as
determinações de Hitler, o Füher, e do Partido Nazista.
Entretanto, a segurança dos insurgentes e das próprias pessoas que eles
queriam salvar obrigava que os atos de Desobediência Civil fossem realizados às
escondidas, muitos deles tornando-se conhecidos só depois que o partido e seu
dirigente foram derrotados e tirados do poder, em histórias comoventes contadas ao
redor de todo o mundo.
A resistência europeia ao nazismo se deu de duas formas: a resistência
militar, já que os exércitos resistentes enfrentavam as forças de Hitler; e a
resistência civil, que brotava escondida, em toda a parte, como fenômeno
espontâneo de um ato voluntário ou da conscientização de indivíduos e pequenos
grupos, dispostos a se rebelar e a não aceitar a ocupação, muito menos o
extermínio dos judeus, inclusive entre os próprios alemães, caracterizando atos de
Desobediência Civil ao governo no poder.
Ressalte-se aqui que, por força do objetivo – que era salvar a vida dos
perseguidos pelos nazistas – principalmente judeus, mas também homossexuais
etc., embora ato de Desobediência Civil às leis, não se tratava de ato assumido e
exposto, porque era necessário preservar a vida dos que se queria salvar e
daqueles que enfrentavam Hitler, ainda que nos porões, escondidos em prédios em
ruínas ou atrás de paredes falsas.
Vários são os representantes civis resistentes à Hitler, cuja Desobediência
Civil, aliada à coragem e ao amor ao próximo, ajudaram milhares de judeus a
escapar do genocídio.
106
Cf. N.R. 33, na qual se comenta a legalidade e o julgamento dos criminosos de guerra durante o
Julgamento de Nuremberg.
Muitos nomes se tornaram conhecidos depois do fim da II Guerra Mundial,
mas dezenas jamais chegaram ao conhecimento público. Os atos repletos de
altruísmo, solidariedade, beneficência e busca da justiça conduzem diretamente aos
Referenciais da Bioética, em análise neste estudo.
b. 1968: desobedientes civis no mundo
“Meu pai contou para mim;
Eu vou contar para meu filho.
Quando eu morrer ele conta para o filho dele.
E assim: ninguém esquece.”
Kelé Maxacali. Índio da Aldeia de Mikael, Minas Gerais. 1984.
(Brasil: Nunca Mais, 1985)
Rondó da Liberdade
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.
não ficar de joelhos,
que não é racional renunciar a ser livre.
mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.”
Carlos Marighella. São Paulo, presídio especial. (1939)
O ano de 1968 foi marcado por manifestações em todo o mundo, contra a
ditadura e o abuso do poder. Tem-se mesmo a sensação de uma “verdadeira
conspiração”, pois grupos variados, em países diversos do Globo, organizaram-se e
se manifestaram contra atitudes arbitrárias.
O mês de maio ficou conhecido como o auge do movimento histórico que
conduziu a mudanças de comportamento, mudanças culturais e políticas, que iriam
influenciar toda a segunda metade do século XX, perpetuando-se no cenário do
século XXI, já que promoveram o surgimento e a concretização de ideias ligadas às
liberdades civis, aos direitos das minorias, à igualdade entre homens e mulheres, à
extirpação e punição do preconceito de raça, credo e opção sexual, entre outras.
Na cronologia de 1968 (ver Anexo C), percebe-se isto claramente, mas alguns
exemplos podem ser destacados na Europa, principalmente as manifestações
estudantis nas universidades francesas de Nanterre e Sorbonne, acompanhadas do
aumento das manifestações da classe trabalhadora.
Embora pareçam formar um conjunto uníssono, as diversas manifestações e
rebeliões ocorridas em 1968 tiveram motivações diferentes nos diversos países.
Além dos protestos na França, ocorreram intensas manifestações em outros países
da Europa Ocidental e no leste europeu: na Espanha, Alemanha Ocidental e
Bélgica, universidades foram ocupadas e estudantes entraram em confronto com a
polícia; na Itália, milhares de estudantes tomaram a sede do jornal Corriere della
Serra e mais de um milhão de trabalhadores entraram em greve.
No Reino Unido, mesmo com toda a sua formalidade e obediência à Rainha,
milhões de trabalhadores entraram em greve; na Tchecoslováquia, foi lançado um
programa de reformas políticas, que ficou conhecido como "Primavera de Praga",
que pretendia amenizar as atitudes do Partido Comunista; na Polônia, estudantes
protestaram contra o regime socialista.
Nos Estados Unidos, os movimentos civis de minorias, com manifestações
públicas, ampliaram-se e culminaram num dos fatos mais marcantes de 1968, o
assassinato, em 4 de abril, do líder negro Martin Luther King, e o protesto de cerca
de 60 mil manifestantes no Central Park, em Nova Iorque, pelo fim da guerra do
Vietnã, em 28 de abril.
Na América Latina, as manifestações se deram por iniciativa dos movimentos
estudantis, questionadores de pontos ligados à educação e, principalmente,
claramente opostos às ditaduras militares, como no México, por exemplo, onde
ocorreram confrontos em universidades e manifestações de rua, aproveitando os
Jogos Olímpicos; no Uruguai, onde confrontos violentos fizeram com o que o
governo decretasse estado de sítio; na Venezuela, na Argentina e na Colômbia,
onde estudantes ocuparam universidades, iniciaram greves, e se confrontaram com
as forças do Exército e da polícia.
- 1968: desobedientes civis no Brasil
“Somos da geração do lirismo
Da geração dos cabeludos
Da geração das guitarras
Da geração que amava
Da geração que cantava a nossa inocência
A nossa impotência diante de tanta coisa suja
E que, de lambuja,
Prá deixar de ser besta,
Levava porrada
Por isso alguns mudaram de nome
Alguns mudaram de Estado
Alguns mudaram de sexo
Alguns mudaram de língua
Alguns mudaram de mundo e nunca mais foram vistos
De vez em quando se escuta falar
Que tudo pode voltar
Que é só uma questão de tempo.
Por favor, não!
Por Deus, não!
Mesmo que não seja por nós
Que seja pelos que ainda estão cantando
E pelos que ainda virão cantando!”
Vitor Martins. (Compositor brasileiro)
É relevante, ainda, falar sobre o ano de 1968 no Brasil, auge da Ditadura
Militar e sobre os desobedientes civis no país, já que após o Golpe militar de 1964,
os atos arbitrários do Poder foram se ampliando em quantidade e gravidade,
culminando com a decretação do AI-5.
Assim, as manifestações estavam ligadas às questões políticas e o auge
aconteceu na Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, considerado o mais
importante protesto contra a ditadura militar até então.
Além dos estudantes na passeata do Rio de Janeiro, muitos foram os
desobedientes civis: todos aqueles que compareceram à missa ecumênica
organizada por D. Paulo Evaristo Arns, pelo reverendo James Wright e pelo rabino
Henri Sobel na Praça da Sé, em intenção a Vladimir Herzog
107
e Manoel Fiel
Filho
108
, sem deixar de citar todos os representantes da classe jurídica, médica e
religiosa que, em franca oposição ao Regime, ajudavam a tentar por fim à situação
de subjugo na qual se encontrava a população brasileira.
107
Vladimir Herzog: jornalista que, em 1975, aos 38 anos, casado, pai de dois filhos e diretor de
jornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi encontrado morto nas dependências do 2ª Exército, em
São Paulo. No dia seguinte à morte, o comando do Departamento de Operações de Informações e
Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão de repressão do exército brasileiro,
divulgou nota oficial informando que Herzog havia cometido suicídio na cela em que estava preso, o
que mais tarde se provou ser mentira; na realidade, a morte foi causada por seus algozes.
108
Manoel Fiel Filho: operário preso em 1976 sob a acusação de pertencer ao Partido Comunista
Brasileiro (PCB) e de ajudar a colocar em circulação o jornal "Voz Operária". Foi declarado morto
pouco tempo após a prisão. Os órgãos de segurança informaram que Fiel Filho se enforcara, usando
as próprias meias. Os colegas, em depoimento, no entanto, testemunharam que ele fora preso sem
meias. Seu corpo apresentava claros sinais de tortura.
Além deles, pode-se citar, ainda, os representantes do Movimento da Anistia,
cuja luta incessante foi passo fundamental que culminou, finalmente, pouco antes do
fim do regime limitar, com o perdão a todos os envolvidos nos movimentos, aos
exilados etc.
c. Representantes do Movimento da Anistia no Brasil
Mal foi amanhecendo no subúrbio
as paredes gritaram: anistia
Rápidos trens chamando os operários
em suas portas cruéis também gritavam:
anistia, anistia.
(...)
Esta é a voz dos mortos sob o mármore,
é a voz dos vivos no batente. Ouço
mil bocas em silêncio murmurando:
anistia
Vem, pois, ó liberdade, com teu fogo
e tua rosa rebelde nos cabelos,
vem trazer os irmãos para o sol puro
e incendiar de amor os brasileiros
Anistia. Carlos Drummond de Andrade. Livro Movimento Feminino
pela Anistia e Liberdades Democráticas. (1991)
Os atos a favor da Anistia, na época da Ditadura do Brasil são,
indubitavelmente, atos de Desobediência Civil, pois enfrentaram as decisões do
Poder Constituído quanto àqueles que eram considerados subversivos e perigosos
para o Sistema.
Os manifestantes podem ser representados por Therezinha de Godoy Zerbini
(1927-) e Margarida Genevois (1923-), ambas vivas e que militaram no movimento
paulista a favor da Anistia, além de inúmeros outros nomes que se mobilizaram em
todo o país, até conseguirem trazer de volta, em condições legítimas e legais, vários
exilados, a liberar dos esconderijos e das identidades falsas vários perseguidos e a
restaurar o nome de várias vítimas mortais da Ditadura.
d. Movimentos sociais
Os movimentos sociais, via de regra, são vistos como grandes manifestações
de Desobediência Civil. No panorama mundial, aqui se podem incluir as
manifestações pacíficas que têm ocorrido ao redor do mundo sempre que o grupo
do G-8
109
e/ou do G-20
110
se reúne; o Protesto na Praça da Paz Celestial, que ficou
conhecido como o Massacre da Praça da Paz Celestial, uma série de manifestações
ocorridas na China e lideradas por estudantes; o movimento de Desobediência Civil
na Yugoslávia, por meio do qual Milosevic foi deposto; manifestações a favor do
meio-ambiente, contra o armamento e os testes nucleares, entre tantas outras.
Já no panorama brasileiro, pode-se exemplificar com os movimentos grevistas
no ABC paulista (1969-1980) e outros movimentos sociais. Para alguns, os
representantes do Movimento dos Sem Terra (MST) também seriam desobedientes
civis. Entretanto, a seara que discute se são atos de Desobediência Civil ou simples
atos ilícitos é ampla e impossível de se discutir neste momento.
Ainda assim, ressalta-se que a veia violenta que às vezes se manifesta,
inclusive na destruição de bens, que tem se apresentado nas manifestações do
MST, principalmente nos últimos tempos, ignora um aspecto básico da
Desobediência Civil, que é a não-violência, contrariando totalmente os Referenciais
da Bioética, o que o afasta de análise pertinente sob o foco do presente estudo.
109
G8: grupo de Chefes de Estado e Diplomatas das sete mais industrializadas nações democráticas
do mundo. Reúnem-se todos os anos para discutir grandes questões econômicas e políticas. O G8 é
formado pela França, Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Itália, Japão, Canadá e Rússia. Ao
contrário do que se pensa, não reúne as oito maiores economias do mundo, mas sim as oito
autoproclamadas nações democráticas mais industrializadas. Por isso a China está ausente, mesmo
tendo um PIB que supera o da Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá; e está presente a
Rússia, cuja economia regula com a de países como o Brasil, a Índia e o México. Com um
representante em cada reunião desde 1977, a União Européia é considerada um nono membro do
seleto clube, mas participa apenas das discussões econômicas – nunca das políticas.
110
G20: grupo dos 20 países mais ricos do mundo, que juntos representam cerca de 90% da
economia global; inclui tanto os países industrializados, como os Estados Unidos e a Alemanha,
como economias emergentes, como o Brasil e a China; surgiu logo após a crise asiática, em 1999,
como fórum de discussões sobre cooperação internacional entre ministros das Finanças e
presidentes de Bancos Centrais.
3.5 DESOBEDIÊNCIA CIVIL E REFERENCIAIS DA BIOÉTICA
Existe possibilidade de aproximação e interação entre a Desobediência Civil,
instituto do universo jurídico, e os Referenciais da Bioética, no mundo da Bioética,
estes como base e suporte daquela, ou vice-versa, tamanha sua importância e
entrelaçamento na defesa e restabelecimento de uma vida justa perante
ordenamento jurídico injusto imposto pelos representantes do Poder constituído.
É inegável a afirmação de que os Referenciais podem estar presentes e
nortear a forma de atuação de desobedientes civis, enquanto estes estiverem em
atitudes que busquem eliminar ou modificar uma situação que se apresente injusta,
ainda que esta situação tenha sua base na legalidade, haja vista que os governantes
determinam as leis e as normas jurídicas impostas aos cidadãos.
A Desobediência Civil, se respeitadas as características básicas, já se mostra
como instituto que se harmoniza, ao menos em seus fundamentos, com o mundo da
Bioética, pois é necessário que os desobedientes civis busquem restaurar e manter
a justiça, por meio de atos não-violentos contra leis injustas. Entretanto, para
legitimar a relação entre o universo jurídico e o bioético, é necessário que a
argumentação se mostre lógica e racional, com vistas a fundamentar as relações
envolvidas, demonstrando a pluralidade e a transdisciplinaridade da Bioética.
Há também um aspecto de singularidade nos atos de Desobediência Civil e
naqueles baseados nos Referenciais da Bioética: os desobedientes civis se
manifestam contra leis injustas determinadas, no universo plural da busca e defesa
da cidadania, e os Referenciais da Bioética permitem a análise singular de cada
questão envolvida, esteja ela relacionada a direitos, a deveres ou a sentimentos, já
que Referenciais são norteadores e não limitadores classificatórios.
Aliás, não se pode negar o caráter plural da Bioética, principalmente na
contemporaneidade, com a expansão de seus conceitos a todas as áreas, muito
além das propostas iniciais limitadas às áreas Médica e Biológica.
Assim, a Moral e a Ética, como instrumentos a serviço dos cidadãos, tanto
podem ser aplicadas à Bioética e seus Referenciais, quanto aos atos de
Desobediência Civil, mostrando laços e profundas relações entre eles, pois o que é
pacífico vai de encontro aos objetivos da Bioética e a não-violência é uma
característica sine qua non da Desobediência Civil.
O objetivo último de resguardar ou restabelecer a cidadania, a qualidade de
vida e a justiça no cotidiano do cidadão podem servir de argumento tanto aos atos
de Desobediência Civil quanto à aplicação dos Referenciais da Bioética.
Aliás, mais do que resguardar o cidadão, ambos atuam, também, na defesa
dos descendentes destes cidadãos, as “gerações futuras”, que tanto a Bioética
quanto o Direito visam a proteger.
Não há mais como refutar a necessidade da Bioética e de institutos que
auxiliem a aplicação de seus conceitos. Em suma, justifica-se a aplicação dos
Referenciais da Bioética e de atos de Desobediência Civil, muito além do
individualismo que parece querer conduzir a História da Humanidade nos últimos
tempos, caminhando-se para ações de interesse e consequências coletivas.
A Bioética, ao reconhecer a pessoa humana como detentora de direitos
inalienáveis, reconhece, também, ainda que subliminarmente, a necessidade de
munir os cidadãos de instrumentos e expedientes que legitimem sua luta em favor
da defesa e/ou restauração dos direitos fundamentais, campo no qual muito bem se
acomoda a Desobediência Civil.
Ademais, a Bioética pode ser entendida como a área da ciência que sempre
comportará a reflexão e a Desobediência Civil. Mesmo que ainda não seja vista
como legal em vários ordenamentos jurídicos, a Desobediência Civil traz em si o
bojo indiscutível da legitimidade, fornecendo ao povo – verdadeiro detentor do poder
no Estado Democrático de Direito – expedientes para que ele assim se manifeste
em defesa de seus direitos mais fundamentais, principalmente a busca por justiça
em sua vida cotidiana e na vida das gerações futuras que o Direito, assim como a
Bioética, empenha-se em resguardar.
Além disso, atitudes de Desobediência Civil não apresentam motivações
mesquinhas e individuais, isto é, ocorrerão sempre com base na defesa da justiça,
da cidadania, da dignidade, da liberdade; exatamente da mesma forma que os
Referenciais da Bioética se apresentam como instrumentos norteadores das atitudes
do ser humano para a conquista de um mundo mais justo, solidário, altruísta, e
equânime.
Desta forma, fica claro que o instituto da Desobediência Civil, norteado pelos
Referenciais da Bioética, pode e deve servir de incentivo para a participação ética do
cidadão na construção de sua História política, como defesa, manutenção ou
restauração da justiça.
Isto principalmente porque o estudo crítico demonstrou que existe muito em
comum entre a aplicação da Bioética e dos seus Referenciais e as atitudes de
Desobediência Civil.
A primeira busca restaurar a justiça e a equidade, respeitando a isonomia, a
dignidade e a autonomia, considerando a serenidade necessária para uma vida
equilibrada, com presença da solidariedade, da alteridade e do altruísmo, visto que
se objetiva o bem-comum, respeitando a privacidade e a vulnerabilidade de outros
cidadãos, bem como seu direito de refletir sobre seus atos, com base na
beneficência e na não-maleficência, sem perder de vista a prudência ao agir e ao
desobedecer às leis injustamente instituídas, todos Referenciais da Bioética.
E a segunda, a Desobediência Civil, é um instrumento legítimo para se “fazer”
Bioética, principalmente quando permeada pelos Referenciais, em busca e defesa
da Justiça e da cidadania.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A expressão Desobediência Civil cristalizou-se a partir da publicação e da
divulgação do ensaio homônimo de David Henry Thoreau, em 1849, e a Teoria dos
Referenciais foi proposta em 2006, pelo professor William Saad Hossne, a partir da
inquietação que a rigidez dos Princípios da Bioética apresentavam face ao caráter
dinâmico e plural desta área de conhecimento.
Este estudo objetivou demonstrar que a aplicação da Bioética e a construção
de seu corpo de doutrina alcança muito além das áreas da Saúde e da Biologia e
que atos de Desobediência Civil são legítimos e podem ser realizados em
conformidade com os Referenciais da Bioética, sempre em benefício de vida mais
ética, justa, equânime e feliz para os cidadãos. Mais do que isso, é possível afirmar
que a Desobediência Civil pode converter-se em verdadeira forma de “fazer”
Bioética, dentro do grande tema da Bioética e cidadania.
A apresentação e a análise do pensamento de alguns filósofos, selecionados
no decorrer da pesquisa de acordo com a afinidade com a Desobediência Civil e
com os Referenciais da Bioética (ainda que estes não exisitissem sob esta
denominação) e da atitude de alguns personagens da História da Humanidade que
“fizeram” Bioética durante seus atos desobedientes, cujo objetivo era, sempre,
melhorar a qualidade de vida da Humanidade, mesmo que nascidos muito antes da
Bioética ser considerada uma área de conhecimento, permitiram chegar a algumas
conclusões a respeito da inquietação inicial que girava em torno de ser possível
incluir no corpo de conhecimento da Bioética um instituto pertencente ao universo
jurídico, além do Biodireito.
O estudo e a análise crítica permitiram chegar a alguns caminhos de reflexão
e a algumas conclusões quanto à Desobediência Civil e aos Referenciais da
Bioética, isoladamente, e quanto aos dois relacionados entre si.
Desobediência Civil
Embora a lei tenha o papel de assegurar certa estabilidade à sociedade, nem
sempre ela representa a justiça merecida por essa sociedade. Assim, na História, os
homens buscaram expedientes que os auxiliassem a modificar ou invalidar leis e
ordenamentos injustos, mesmo que emanados dos representantes do Poder
constituído.
Dessa forma, surgiu o Direito de Resistência, considerado genêro, em cujo
universo encontra-se a Desobediência Civil, esta espécie daquele. Embora exista
divergência doutrinária sobre qual deles é gênero e qual é espécie, assume-se neste
estudo que a Desobediência Civil é espécie do gênero Direito de Resistência.
A Desobediência Civil surgiu como verdadeiro amadurecimento do Direito de
Resistência, e nada tem em comum com a terrorismo ou a anarquia, já que não visa
a romper com todas as instituições ou a destruir a forma de governo.
O objetivo dos desobedientes civis é resistir às leis e normas consideradas
injustas e, portanto, abusivas e isto ocorre em situações ocasionais e limitadas.
Desta forma, atos de Desobediência Civil podem vir a ser mecanismos adequados
para obter mudanças ou para restabelecer a justiça e representam, portanto, um
expediente bastante importante para a sociedade civil. Além disso, a Desobediência
Civil não objetiva, em momento algum, a ruína do sistema governamental, mas sim
seu aperfeiçoamento.
Atos de Desobediência Civil diferenciam-se muito de atos de desobediência
comum, visto que os primeiros são expostos e às claras, haja vista sua intenção de
tornar público o descontentamento e o desejo de reformar uma lei que se apresenta
injusta, ainda que emanada dos representantes do Poder constituído.
Por outro lado, atos de desobediência comum são pessoais, não visam ao
benefício da coletividade (beneficência) e acontecem ocultamente.
Na Desobediência Civil, os atos são públicos e transparentes, sem feições de
caráter conspirativo e, embora seja ato coletivo, a Desobediência Civil em nada se
confunde com atos de resistência violenta, como o terrorismo (eticamente
inaceitável) e a anarquia, por exemplo.
Mais do que isso, a Desobediência Civil é ato político, vez que ocorre quando
há divergência quanto ao comportamento do Estado e os próprios desobedientes
conhecem a ilicitude do ato – se analisada sob os prismas iniciais do Direito ao qual
estes mesmos desobedientes se opõem, Direito esse que trata como ilícito qualquer
descumprimento a qualquer norma.
Desta forma, os desobedientes civis estão conscientes da possibilidade de
receber sanção pelo ato. Ainda assim, têm a seu favor o argumento de que aceitam
a necessidade de ordenamento jurídico e por isso não querem destrui-lo ou removê-
lo, querem apenas reformar o que se apresenta injusto.
Portanto, atos de Desobediência Civil têm motivação construtiva; nunca
destrutiva. Além disso, devem sempre ter mote de benefício para a coletividade, e se
expressarem por meio de manifestações não-violentas.
Quanto ao Direito, a Desobediência Civil já é legalmente reconhecida em
alguns ordenamentos jurídicos do mundo, embutida no Direito de Resistência, como
em Portugal e na Alemanha, por exemplo.
No Brasil, a justificativa legal pode se dar por meio da interpretação do § 2.º,
do art. 5º. da Constituição Federal de 1988, principalmente porque assegurar os
direitos e garantias fundamentais previstos na própria Constituição é um dos mais
fortes argumentos a favor da legalidade e da legitimidade da Desobediência Civil.
É inegável que por meio deste instituto jurídico possibilita-se que o povo, o
legítimo detentor do poder, nas letras da própria Constituição, tome em suas mãos
as rédeas da manifestação quando se encontrar perante injustiças ou abusos da lei
que desrespeitem e firam a sociedade, os direitos fundamentais e a própria
Constituição.
Assim, pode-se considerar a Desobediência Civil, em si, um direito
fundamental, já que se revela instrumento de defesa de todos os princípios da
cidadania, além de servir para efetivar princípios constitucionais como o da
isonomia, por exemplo, criando possibilidades de a minoria também se manifestar e
se fazer ouvir; abrindo espaço para a participação política de todos.
Pode-se afirmar, também, que a Desobediência Civil é ação plenamente
garantida na Constituição nacional, já que se revela importante instrumento da
cidadania e cujo maior objetivo é modificar ou extinguir legislação ou prática
governamental injusta, por meio da atuação dos cidadãos, mesmo que sejam
minoria.
As manifestações devem ocorrer sempre por meio de ações não-violentas,
podendo-se afirmar que mesmo quando julgada ilegal, ela é altamente moral e ética,
por ser maneira legítima de o cidadão agir em nome dos interesses da sociedade à
qual pertence (solidariedade).
Além disso, a noção de cidadania traz em si a ideia de participar, atuar e
construir o próprio destino e, portanto, a Desobediência Civil é, além de um direito,
um dever do cidadão, ser político responsável pela construção de sua História e pela
preparação do mundo para as gerações futuras, também uma das responsabilidades
que a Bioética impõe a si mesma.
É justamente o embasamento na cidadania que, apesar do questionamento
existente sobre a legalidade da Desobediência Civil, permite considerá-la legítima e
altamente ética, principalmente porque legalidade e legitimidade não são conceitos
sinônimos.
Assim, não há de se negar que a Desobediência Civil é legítima, já que
legítimas são as decisões de consenso em prol da sociedade e do Estado
Democrático de Direito; mais do que isso, a Desobediência Civil é maneira
democrática de participação porque admite ao povo, que é o legítimo detentor do
poder, participar diretamente do processo político, e também se sustenta sob o
ponto de vista ético.
Apesar da discordância por parte de alguns autores, tais como Bobbio e
Hannah Arendt, nada impede que um ato individual seja considerado ato de
Desobediência Civil. O próprio ato de Thoreau, como se percebe em seu ensaio,
tinha o firme propósito de provocar mudanças, não somente por razões de
consciência, mas também para fazer valer direitos do cidadão.
Outra característica da Desobediência Civil é não ser ato contínuo. Ao
contrário, é ato ocasional e limitado, com objetivo específico, que se encerra ao ser
atingido, embora possa durar longo tempo, como protestos pelo desarmamento, por
melhores políticas sociais e por cuidados ecológicos, por exemplo.
Ainda assim, esse instituto não deve ser usado de forma desregrada e
irresponsável, haja vista que a legitimidade de seu exercício depende de se
preencher uma série de requisitos, de forma que esse meio de participação popular,
tão importante para os membros da sociedade, não se banalize por falsas alegações
ou utilização viciosa, o que seria inadequado e oposto à Ética que aqui se defende
como necessária a permear estes atos.
Vários filósofos justificaram e defenderam o Direito de Resistência, o que
permitiu aprofundar a análise no decorrer deste estudo. Da mesma forma, muitas
personagens reais fizeram de atitudes de Desobediência Civil a forma de defender
seus ideais e os exemplos históricos confirmam a ideia de que a Desobediência
Civil tem constituído importante instrumento para alcançar uma sociedade mais
justa, com sustentação ética.
Atos de Desobediência Civil serviram, também, de suporte para que muito
fosse obtido nas relações sociais: as mulheres conseguiram ampliar seus direitos,
por intermédio de protestos ilegais, mas sempre não-violentos, Mahatma Gandhi
lutou contra a exploração e a soberania britânica na Índia; muitos enfrentaram as
ordens dos nazistas, na Alemanha, durante a II Guerra Mundial; Rosa Parks inspirou
as atitudes de luta de Martin Luther King, que culminou na obtenção de direitos civis
para os negros americanos; muitos americanos se recusaram e se manifestaram
publicamente contra a Guerra do Vietnã; na França e no Brasil, entre outros países,
vários jovens em movimentos estudantis enfrentaram os atos ditatoriais da década
de 1960, principalmente 1968 e o que se seguiu; Milosevic foi deposto pelo
movimento de Desobediência Civil na Yugoslávia; movimentos contra o armamento
nuclear, entre vários outros.
Se o Direito for visto como mecanismo de mudança social, que acompanha a
evolução da sociedade e objetiva saciar os anseios de justiça, gerar a paz social e
garantir direitos, é necessário que haja, no universo jurídico, algum instituto que
legitime a resistência dos cidadãos contra leis injustas, atos arbitrários e práticas
governamentais que não reflitam o interesse da sociedade.
Esta procura conduziu à Desobediência Civil, um meio que permite ao
cidadão e à sociedade intervirem diretamente nas instituições públicas e defenderem
todo o direito que se encontre ameaçado ou violado, uma forma de pressão legítima,
de protesto, de rebeldia contra as leis, atos ou decisões que ponham em risco os
direitos civis, políticos ou sociais do indivíduo.
A implantação da Desobediência Civil como direito fundamental depende de
uma compreensão do processo político de tomada de decisão, em que se dê
prioridade à ampliação de espaços de discussão públicos, em que as esferas
públicas oficiais e o sistema político mantenham-se abertos às opiniões e vontades
geradas em esferas informais da periferia da esfera pública, no âmbito da sociedade
civil. (Habermas, 2003)
Ademais, quando bem utilizada, pode-se considerar a Desobediência Civil um
mecanismo capaz de suscitar leis legítimas e justas, enfim, um instituto de que o
cidadão dispõe para garantir seus direitos e controlar os atos do Estado, para que
este não extrapole suas prerrogativas e cumpra sua função social.
Referenciais da Bioética
Já não é mais possível negar que todo e cada cidadão tem responsabilidade
com sua qualidade de vida e com a qualidade de vida das gerações futuras,
devendo agir sempre de forma ética.
Assim, o estudo da Bioética, de seus princípios e de seus Referenciais é
fundamental, por sua importância irrefutável e irreversível, bem como entender os
meandros desta área de conhecimento é imprescindível para a defesa e o alcance
de uma vida cada vez mais ética.
Desta forma, na vida atual, a aplicação dos parâmetros da Bioética mostra-se
caminho para a busca e a luta por vida justa e digna, incluindo aqui sua combinação
com os dispositivos do Direito, como no caso do instituto em estudo, a
Desobediência Civil.
Aliás, a Bioética se justifica como área de conhecimento separada da Ética
(Hossne, 2006) devido a seu campo de atuação e à sua pluralidade, pois é ciência
multi e transdisciplinar, muito além da ideia inicial de ser uma ciência aplicada
apenas às áreas da Medicina e da Biologia.
Ademais, atrai outras áreas de conhecimento, ao mesmo tempo em que
penetra nessas outras áreas, tanto na temática relacionada à vida, quanto na
peculiar sistemática de atuação; já que os problemas relacionados à vida (Bios)
encontram-se em verdadeiro entrelaçamento de disciplinas, vindo deles
conhecimento e aplicação para a Bioética, e desta conhecimento e aplicação para
eles, como se pode exemplificar pela Bioética e Biodireito, pela Bioética e Cidadania,
pela Bioética e Justiça, entre outros.
E, ainda que seja necessário aprofundar e refletir sobre seu significado e
aplicação, o crescimento e evolução da Bioética e de seu corpo de doutrina levou-a
a estar definitivamente presente nas várias atividades humanas contemporâneas.
Este crescimento relacionado à Bioética começou a se configurar não muito
tempo depois do surgimento do próprio verbete “Bioética”, quando, em 1978, foi
criada uma Comissão para identificar os princípios que deveriam nortear a pesquisa
médica que envolvesse seres humanos.
Os resultados da pesquisa desenvolvida por essa comissão foram publicados
sob o nome de Relatório Belmont (1978), no qual se apresentaram os princípios a
serem respeitados em casos de pesquisa com seres humanos e que passaram a ser
vistos como “Princípios da Bioética”.
Entretanto, apesar de muito importantes, esses princípios não eram novos,
não foram criados só para a Bioética e acabaram por se revelar bastante limitados.
Inicialmente, eram três: a autonomia, a beneficência (aqui embutida a não-
maleficência) e a justiça. Posteriormente, a não-maleficência foi separada e os
princípios passaram a ser quatro.
Mas os princípios são rígidos e podem, inclusive, ser classificados
separadamente, entre dever ou direito e há de se considerar que a dinamicidade do
comportamento humano não permite que se aceite uma divisão tão maniqueísta e o
tempo mostrou que não é possível encaixar todos os atos humanos e éticos relativos
à vida em um universo tão limitado de princípios.
Por outro lado, esta limitação não ocorre com os Referenciais da Bioética, que
tornam possível análise mais coerente e real, pois o mesmo Referencial pode tanto
ser dever quanto direito, dependendo da situação, e já que na Teoria dos
Referenciais não há limitação ou enquadramento prévio, é possível avaliá-los
melhor, bem como avaliar sentimentos, conceitos, fundamentos, condições etc. haja
vista que, na realidade, esta Teoria apresenta referências a partir das quais
acontece a reflexão Bioética, sem exigir que se defina limitadamente se é princípio
pertencente ao universo dos deveres ou ao universo dos direitos, pois os
Referenciais são norteadores, isto é, são conceitos que, transitando por caminhos
livres, auxiliam a atingir os objetivos da Ética em todos os campos da vida cotidiana.
Aliás, foi justamente a inflexibilidade dos princípios que levou o professor
William Saad Hossne a desenvolver a Teoria dos Referenciais, pois aqueles se
revelaram reducionistas e insuficientes perante as situações reais.
Em consonância com esta inquietação, a análise realizada no decorrer deste
estudo permitiu concluir que é muito difícil inserir certos conceitos, sentimentos e
variáveis, tais como a dignidade, a vulnerabilidade, a solidariedade, a alteridade, o
altruísmo, entre outros, no universo inflexível dos princípios.
Adicionalmente, a reflexão sobre Princípios e Referenciais da Bioética transita
por caminhos que identificam aqueles como gerais, percebendo que a submissão de
qualquer assunto aos princípios enseja resolução automática, sendo que com os
Referenciais isso não ocorre, pois eles permitem maior liberdade de reflexão e de
flexão, ultrapassando o raciocínio puramente lógico, já que são orientadores: neles
se encaixam quaisquer casos e, se bem utilizados, consideram a singularidade de
cada um, pois permitem examinar o caso em si, superando o puro e simples
formalismo.
Já os princípios rotulam, são rígidos, exigem que o caso neles se enquadre,
desconsiderando aspectos singulares.
Portanto, os Referenciais podem se adequar aos casos singulares,
conduzindo à reflexão, com aplicações concretas, e se revelam verdadeiras pontes
de Referência, enquanto os princípios – se utilizados em si, são limitadores, pois se
apresentam rígidos desde seu nascimento.
Pertinente ressaltar, também, que em momento algum a proposta da Teoria
dos Referenciais objetivou a fundamentação da Bioética, haja vista que a Ética é
uma opção de valores. Se resvalassem para o fundamentalismo, os Referenciais
não cumpririam aquilo a que vieram, que é servir como norteadores, e não como
limitadores.
Como Referenciais da Bioética são identificadas, hoje, a justiça, a
solidariedade, a dignidade, a autonomia, a beneficência, a não-maleficência, a
prudência, a vulnerabilidade, a privacidade, a responsabilidade, a confidencialidade,
a serenidade, a equidade, a alteridade e o altruísmo.
Ressalte-se, entretanto, como claramente referido no decorrer deste estudo,
que este universo não é estanque, muito pelo contrário, é aberto a novas propostas
e inclusões.
Referenciais da Bioética e Desobediência Civil, conjuntamente
As relações que foram sendo construídas no corpo de desenvolvimento deste
estudo permitem afirmar que o instituto da Desobediência Civil, ao ser norteado
pelos Referenciais da Bioética, pode e deve servir de incentivo para que o cidadão
participe da construção ética de sua História política.
Principalmente, porque o direito à Desobediência Civil é maneira legítima que
o cidadão possui para agir em nome de seus interesses, sem violência e para
resguardar a defesa de direitos e garantias constitucionais, resistindo a atos e a leis
injustas ou opressivas, objetivando sua revogação ou anulação, sempre embasada
em princípios maiores como o da cidadania e o da soberania popular.
Ao utilizar a Desobediência Civil e os Referenciais da Bioética como
instrumentos políticos no sentido de participação do cidadão, pode-se criar um
silogismo e dizer que se objetiva a “politização da Bioética” ou a “Bioeticalização da
política”.
Percebe-se, nesta seara, que a Desobediência Civil “ultrapassa” a lei, ao ver
no questionamento da justiça e na legitimidade dos atos dos desobedientes uma
forma de desobedecer à própria lei.
Além disso, os Referenciais da Bioética ultrapassam os princípios rígidos,
pois podem ser identificados como espaço em que o cidadão encontra a
possibilidade de refletir e de provocar reflexão, como caminho que se apresenta
permeado pelos direitos fundamentais do cidadão, o que os faz trazerem
maleabilidade à Bioética, em caminho oposto à rigidez dos princípios.
Assim, os atos de Desobediência Civil, embasados e revestidos dos
Referenciais da Bioética, vão sempre ser permeados pela liberdade de escolha,
recheada de reflexão, já que a prática da Desobediência Civil, juntamente com os
Referenciais, deve apontar para novas formas de compreender e de defender os
direitos fundamentais, reconhecendo as diferenças, a isonomia e a equidade
presentes nessas diferenças, luta esta que se pretende que culmine numa vida mais
Bioética para a sociedade.
E para atingir essa vida circundada e baseada em valores éticos e morais,
tanto a Desobediência Civil quanto os Referenciais da Bioética tendem a ser
instrumentos extremamente eficazes, principalmente devido à inegável necessidade
de que se escolha e se forme uma nova maneira de agir e pensar do ser humano.
O estudo crítico demonstrou, ainda, que existe muito em comum entre as
atitudes de Desobediência Civil e a aplicação dos Referenciais da Bioética: estes
buscam restaurar a justiça e a equidade, respeitando a isonomia, a dignidade e a
autonomia, considerando a serenidade necessária para uma vida equilibrada, com
presença da solidariedade, da alteridade e do altruísmo, visto que se objetiva o bem-
comum, respeitando a privacidade e a vulnerabilidade de outros cidadãos, bem
como seu direito de refletir sobre os atos, com base na beneficência e na não-
maleficência, sem perder de vista a prudência ao agir e ao desobedecer às leis
instituídas, todas as características intrínsecas à Bioética e seus Referenciais.
Além disso, manifestações de Desobediência Civil também podem se tornar
fonte de leis legítimas, já que seriam derivadas das reivindicações dos
desobedientes e, portanto, baseadas na equidade e na justiça, e que nasceriam da
expressão da vontade soberana do povo, mesmo que em representação da minoria.
Aqui se pode encontrar o laço mais vigoroso entre este instituto do mundo jurídico e
a Bioética, com seus Referenciais, no universo da Filosofia e da Ética.
Ademais, é possível encontrar exemplos gloriosos no mundo todo, não sendo
pequeno o número de desobedientes que foram presos e pagaram com a própria
vida por seus atos de bravura e coragem.
São eles – somos nós – os responsáveis por importantes conquistas, tanto na
linha de frente, como nos bastidores das batalhas travadas por essa Humanidade
tão inquieta e sempre em busca de justiça e de felicidade.
Finalmente, a reflexão levou à conclusão que a Desobediência Civil é um
instituto do Direito que pode ser utilizado em consonância com os Referenciais da
Bioética, na busca da obtenção e/ou da manutenção da justiça, por meio dos
Referenciais; ou os Referenciais da Bioética são os norteadores para os atos de
Desobediência Civil que visam a reformar ou extinguir dispositivos legais injustos, já
que a análise conjunta leva a perceber que é possível entrelaçar tão bem os dois – a
Desobediência Civil e os Referenciais da Bioética, que um se torna base para o
outro, indistintamente.
E assim, enquanto opção ética, a Desobediência Civil encontra apoio nos
Referenciais da Bioética, e estes norteiam os atos dos desobedientes civis, em
simbiose que tende somente a beneficiar o cidadão e a sociedade.
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ANEXO A
DESOBEDIÊNCIA CIVIL – HENRY DAVID THOREAU
Aceito com entusiasmo o lema "O melhor governo é o que menos governa"; e
gostaria que ele fosse aplicado mais rápida e sistematicamente. Levado às últimas
consequências, este lema significa o seguinte, no que também creio: "O melhor
governo é o que não governa de modo algum" e, quando os homens estiverem
preparados, será esse o tipo de governo que terão. O governo, no melhor dos casos,
nada mais é do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por
vezes uma inconveniência, e todo o governo algum dia acaba por ser inconveniente.
As objeções que têm sido levantadas contra a existência de um exército
permanente, numerosas e substantivas, e que merecem prevalecer, podem também,
no fim das contas, servir para protestar contra um governo permanente. O exército
permanente é apenas um braço do governo permanente. O próprio governo, que é
simplesmente uma forma que o povo escolheu para executar a sua vontade, está
igualmente sujeito a abusos e perversões antes mesmo que o povo possa agir
através dele. Prova disso é a atual guerra contra o México, obra de um número
relativamente pequeno de indivíduos que usam o governo permanente como um
instrumento particular; isso porque o povo não teria consentido, de início, uma
iniciativa dessas.
Esse governo norte-americano – que vem a ser ele senão uma tradição, ainda
que recente, tentando-se transmitir inteira à posteridade, mas que a cada instante
vai perdendo porções da sua integridade? Ele não tem a força nem a vitalidade de
um único homem vivo, pois um único homem pode fazê-lo dobrar-se à sua vontade.
O governo é uma espécie de revólver de brinquedo para o próprio povo; e ele
certamente vai quebrar se por acaso os norte-americanos o usarem seriamente uns
contra os outros, como uma arma de verdade. Mas nem por isso ele é menos
necessário; pois o povo precisa dispor de uma ou outra máquina complicada e
barulhenta para preencher a sua concepção de governo. Desta forma, os governos
são a prova de como os homens podem ter sucesso no ato de oprimir em proveito
próprio, não importando se a opressão se volta também contra eles. Devemos
admitir que ele é excelente; no entanto, este governo em si mesmo nunca estimulou
qualquer iniciativa a não ser pela rapidez com que se dispôs a não atrapalhar. Ele
não mantém o país livre. Ele não povoa as terras do oeste. Ele não educa. O caráter
inerente do povo norte-americano é o responsável por tudo o que temos conseguido
fazer; e ele teria conseguido fazer consideravelmente mais se o governo não tivesse
sido por vezes um obstáculo. Pois o governo é um artifício através do qual os
homens conseguiriam de bom grado deixar em paz uns aos outros; e, como já foi
dito, a sua conveniência máxima só ocorre quando os governados são minimamente
molestados pelos seus governantes. Se não fossem feitos de borracha da Índia, os
negócios e o comércio nunca conseguiriam ultrapassar os obstáculos que os
legisladores teimam em plantar no seu caminho; e se fôssemos julgar estes
senhores levando em conta exclusivamente os efeitos dos seus atos – esquecendo
as suas intenções – eles mereceriam a classificação dada e as punições impostas a
essas pessoas nocivas que gostam de obstruir as ferrovias.
No entanto, quero me pronunciar em termos práticos como cidadão,
distintamente daqueles que se chamam antigovernistas: o que desejo
imediatamente é um governo melhor, e não o fim do governo. Se cada homem
expressar o tipo de governo capaz de ganhar o seu respeito, estaremos mais
próximos de conseguir formá-lo.
No final das contas, o motivo prático pelo qual se permite o governo da
maioria e a sua continuidade – uma vez passado o poder para as mãos do povo –
não é a sua maior tendência a emitir bons juízos, nem porque possa parecer o mais
justo aos olhos da minoria, mas sim porque ela (a maioria) é fisicamente a mais
forte. Mas um governo no qual prevalece o mando da maioria em todas as questões
não pode ser baseado na justiça, mesmo nos limites da avaliação dos homens. Não
será possível um governo em que a maioria não decida virtualmente o que é certo
ou errado? No qual a maioria decida apenas aquelas questões às quais seja
aplicável a norma da conveniência? Deve o cidadão desistir da sua consciência,
mesmo por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por
que então estará cada homem dotado de uma consciência? Na minha opinião
devemos ser em primeiro lugar homens, e só então súditos. Não é desejável cultivar
o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direitos. A única obrigação que
tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo.
Costuma-se dizer, e com toda a razão, que uma corporação não tem consciência;
mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação com
consciência. A lei nunca fez os homens sequer um pouco mais justos; e o respeito
reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir
quotidianamente como mensageiros da injustiça. Um resultado comum e natural de
um respeito indevido pela lei é a visão de uma coluna de soldados – coronel,
capitão, cabos, combatentes e outros – marchando para a guerra numa ordem
impecável, cruzando morros e vales, contra a sua vontade, e como sempre contra o
seu senso comum e a sua consciência; por isso essa marcha é muito pesada e faz o
coração bater forte. Eles sabem perfeitamente que estão envolvidos numa iniciativa
maldita; eles têm tendências pacíficas. O que são eles, então? Chegarão a ser
homens? Ou pequenos fortes e paióis móveis, a serviço de algum inescrupuloso
detentor do poder? É só visitar o Estaleiro Naval e contemplar um fuzileiro: eis aí o
tipo de homem que um governo norte-americano é capaz de fabricar – ou
transformar com a sua magia negra – uma sombra pálida, uma vaga recordação da
condição humana, um cadáver de pé e vivo que, no entanto, se poderia considerar
enterrado sob armas com acompanhamento fúnebre, embora possa acontecer que
"Não se ouviu um rufar, nem sequer um toque de silêncio, enquanto à muralha o seu
corpo levamos nenhum soldado disparou uma salva de adeus sobre o túmulo onde
jaze o herói que enterramos".
Desta forma, a massa de homens serve ao Estado não na sua qualidade de
homens, mas sim como máquinas, entregando os seus corpos. Eles são o exército
permanente, a milícia, os carcereiros, os polícias, posse comitatus, e assim por
diante. Na maior parte dos casos não há qualquer livre exercício de escolha ou de
avaliação moral; ao contrário, estes homens nivelam-se à madeira, à terra e às
pedras; e é bem possível que se consigam fabricar bonecos de madeira com o
mesmo valor de homens desse tipo. Não são mais respeitáveis do que um
espantalho ou um monte de terra. Valem tanto quanto cavalos e cachorros. No
entanto, é comum que homens assim sejam apreciados como bons cidadãos. Há
outros, como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, funcionários e
dirigentes, que servem ao Estado principalmente com a cabeça, e é bem provável
que eles sirvam tanto ao Diabo quanto a Deus – sem intenção – pois raramente se
dispõem a fazer distinções morais. Há um número bastante reduzido que serve ao
Estado também com a sua consciência; são os heróis, patriotas, mártires,
reformadores e homens, que acabam por isso necessariamente resistindo, mais do
que servindo; e o Estado trata-os geralmente como inimigos. Um homem sábio só
será de fato útil como homem, e não se sujeitará à condição de "barro" a ser
moldado para "tapar um buraco e cortar o vento”; ele preferirá deixar esse papel, na
pior das hipóteses, para as suas cinzas: "A minha origem é nobre demais para que
eu seja propriedade de alguém. Para que eu seja o segundo no comando ou um útil
serviçal ou instrumento de qualquer Estado soberano deste mundo".
Os que se entregam completamente aos seus semelhantes são por eles
considerados inúteis e egoístas; mas aqueles que se dão parcialmente são
entronizados como benfeitores e filantropos.
Que comportamento digno deve ter um homem perante o atual governo
vigente nos Estados Unidos? A minha resposta é que ele inevitavelmente se
degrada pelo fato de estar associado a ele. Nem por um minuto posso considerar o
meu governo uma organização política que é também o governo do escravo.
Todos reconhecem o direito à revolução, ou seja, o direito de negar lealdade
e de oferecer resistência ao governo sempre que se tornem grandes e insuportáveis
a sua tirania e ineficiência. No entanto, quase todos dizem que tal não acontece
agora. Consideram, porém, que isso aconteceu em 1775. Se alguém me dissesse
que o nosso governo é mau porque estabeleceu certas taxas sobre bens
estrangeiros que chegam aos seus portos, o mais provável é que eu não criasse
qualquer caso, pois posso muito bem passar sem eles: todas as máquinas têm atrito
e talvez isso faça com que o bom e o mau se compensem. De qualquer forma, fazer
um rebuliço por causa disso é um grande mal. Mas quando o próprio atrito chega a
construir a máquina e vemos a organização da tirania e do roubo, afirmo que
devemos repudiar essa máquina. Em outras palavras, quando um sexto da
população de um país que se elegeu como o refúgio da liberdade é composto de
escravos, e quando todo um país é injustamente assaltado e conquistado por um
exército estrangeiro e submetido à lei marcial, devo dizer que não é cedo demais
para a rebelião e a revolução dos homens honestos. E esse dever é tão mais
urgente pelo fato de que o país assaltado não é o nosso, e pior ainda, que o exército
invasor é o nosso.
William Paley, uma autoridade em assuntos morais, tem um capítulo intitulado
Duty of submission to civil government (O dever de submissão ao governo civil), no
qual soluciona toda a questão das obrigações políticas pela fórmula da
conveniência; e diz: "Enquanto o exigir o interesse de toda a sociedade, ou seja,
enquanto não se possa resistir ao governo estabelecido ou mudá-lo sem
inconveniência pública, é a vontade de Deus que tal governo seja obedecido – e
nem um dia além disso. Admitindo-se este princípio, a justiça de cada ato particular
de resistência reduz-se à computação do volume de perigo e protestos, de um lado,
e da probabilidade e custos da reparação, de outro". Diz ele que cada um julgará
esta questão por si mesmo. Mas parece que Paley nunca levou em conta os casos
em que a regra da conveniência não se aplica, nos quais um povo ou um indivíduo
tem de fazer justiça a qualquer custo. Se arranquei injustamente a tábua que é a
salvação de um homem que se afoga, sou obrigado a devolvê-la, ainda que eu
mesmo me afogue. De acordo com Paley, esta é uma circunstância inconveniente.
Mas quem quiser se salvar desta forma acabará perdendo a vida. O povo norte-
americano tem de pôr fim à escravidão e tem de parar de guerrear com o México,
mesmo que isso lhe custe a existência enquanto povo.
As nações, na sua prática, concordam com Paley, mas haverá quem
considere que Massachusetts esteja agir corretamente na crise atual?
"Uma rameira de alta linhagem, um trapo de pano prateado atirado à lama,
Levanta a cauda do vestido, e arrasta no chão a sua alma"
Em termos práticos, os que se opõem à abolição em Massachusetts não são
uns cem mil políticos do sul, mas uns cem mil comerciantes e fazendeiros daqui, que
se interessam mais pelos negócios e pela agricultura do que pela humanidade e que
não estão dispostos a fazer justiça ao escravo e ao México, custe o que custar. Não
discuto com inimigos distantes, mas com aqueles que, bem perto de mim, cooperam
com a posição de homens que estão longe daqui e defendem-na; estes últimos
homens seriam inofensivos se não fosse por aqueles. Estamos acostumados a
afirmar que os homens em geral são despreparados; mas as melhorias são lentas,
porque os poucos não são substantivamente mais sábios ou melhores do que os
muitos. Não é tão importante que muitos sejam tão bons quanto você, e sim que
haja em algum lugar alguma porção absoluta de virtude; isso bastará para fermentar
toda a massa. Há milhares de pessoas cuja opinião é contrária à escravidão e à
guerra; apesar disso, nada fazem de efetivo para pôr fim a ambas; dizem-se filhos
de Washington e Franklin, mas ficam sentados com as mãos nos bolsos, dizendo
não saber o que pode ser feito e nada fazendo; chegam a colocar a questão do livre
comércio à frente da questão da liberdade, e ficam quietos lendo as cotações do dia
junto com os últimos boletins militares sobre a campanha do México; é possível até
que acabem por adormecer durante a leitura. Qual é hoje a cotação do dia de um
homem honesto e patriota? Eles hesitam, arrependem-se e às vezes assinam
petições, mas nada fazem de sério ou de eletivo. Com muito boa disposição,
preferem esperar que outros remedeiem o mal, de forma que nada reste para
motivar o seu arrependimento. No melhor dos casos, nada mais farão do que
depositar na urna um voto insignificante, cumprimentar timidamente a atitude certa
e, de passagem, desejar-lhe boa sorte. Há novecentos e noventa e nove patronos
da virtude e apenas um homem virtuoso; mas é mais fácil lidar com o verdadeiro
dono de algo do que com seu guardião temporário.
Toda a votação é um tipo de jogo, tal como damas ou gamão, com uma leve
coloração moral, na qual se brinca com o certo e o errado sobre questões morais; e
é claro que há apostas neste jogo. O caráter dos eleitores não entra nas avaliações.
Proclamo o meu voto – talvez – de acordo com meu critério moral; mas não tenho
um interesse vital de que o certo saia vitorioso. Estou disposto a deixar essa decisão
para a maioria. O compromisso de votar, desta forma, nunca vai mais longe do que
as conveniências. Nem mesmo o ato de votar pelo que é certo implica fazer algo
pelo que é certo. É apenas uma forma de expressar publicamente o meu anêmico
desejo de que o certo venha a prevalecer. Um homem sábio não deixará o que é
certo nas mãos incertas do acaso e nem esperará que a sua vitória se dê por meio
da força da maioria. Há escassa virtude nas ações de massa dos homens. Quando
finalmente a maioria votar a favor da abolição da escravatura, das duas uma: ou ela
será indiferente à escravidão ou então restará muito pouca escravidão a ser abolida
pelo seu voto. A essa altura, os únicos escravos serão eles, os integrantes da maio-
ria. O único voto que pode apressar a abolição da escravatura é o daquele homem
que afirma a própria liberdade por intermédio do seu voto.
Estou informado de que haverá em Baltimore, ou em outro lugar qualquer,
uma convenção para escolher um candidato à presidência; essa convenção é
composta principalmente por editores de jornais e políticos profissionais; mas que
importância terá a possível decisão desta reunião para um homem independente,
inteligente e respeitável? No fim das contas, ainda poderemos contar com as
vantagens da sua sabedoria e da sua honestidade, não é mesmo? Será que não
poderemos prever alguns votos independentes? Não haverá muitas pessoas neste
país que não frequentam convenções? Mas não é isso o que ocorre: percebo que o
homem considerado respeitável logo abandona a sua posição e passa a não ter
mais esperanças no seu país, quando o mais certo seria que seu país desesperasse
dele. A partir disso ele adere a um dos candidatos assim selecionados por ser o
único disponível, apenas para provar que ele mesmo está disponível para todos os
planos do demagogo. O voto de um homem desses não vale mais do que o voto
eventualmente comprado de um estrangeiro inescrupuloso ou do nativo venal. Oh! É
preciso um homem que seja um homem e que tenha, como diz um vizinho meu, uma
coluna dorsal que não se dobre aos poderosos! As nossas estatísticas estão
erradas: contou-se gente demais. Quantos homens existem em cada mil milhas
quadradas deste país? Dificilmente se contará um. A América oferece ou não
incentivos para a imigração de homens? Os homens norte-americanos foram
rareando até à dimensão de uma irmandade secreta como a dos Odd Fellows, cujo
integrante típico pode ser identificado pelo seu descomunal caráter gregário, pela
manifesta falta de inteligência e de jovial autoconfiança; a sua preocupação primeira
e maior ao dar entrada neste mundo é a de verificar se os asilos estão em boas
condições de funcionamento; antes mesmo de ter direito a envergar roupas de
adulto, ele organiza uma coleta de fundos para as viúvas e órfãos que porventura
existam; em poucas palavras, é um homem que só ousa viver com a ajuda da
Companhia de Seguros Mútuos, que lhe prometeu um enterro decente.
De fato, nenhum homem tem o dever de se dedicar à erradicação de qualquer
mal, mesmo o maior dos males; ele pode muito bem ter outras preocupações que o
mobilizem. Mas ele tem no mínimo a obrigação de lavar as mãos frente à questão e,
no caso de não mais se ocupar dela, de não dar qualquer apoio prático à injustiça.
Se me dedico a outras metas e considerações, preciso ao menos verificar se não
estou fazendo isso à custa de alguém em cujos ombros esteja sentado. É preciso
que eu saia de cima dele para que ele também possa estar livre para fazer as suas
considerações. Vejam como se tolera uma inconsistência das mais grosseiras. Já
ouvi alguns dos meus conterrâneos dizerem: "Queria que eles me convocassem
para ir combater um levante de escravos ou para atacar o México – pois eu não iria";
no entanto, cada um destes homens possibilitou o envio de um substituto, fazendo
isso diretamente pela sua fidelidade ao governo, ou pelo menos indiretamente por
meio do seu dinheiro. O soldado que se recusa a participar de uma guerra injusta é
aplaudido por aqueles que não recusam apoio ao governo injusto que faz a guerra; é
aplaudido por aqueles cuja ação e autoridade ele despreza e desvaloriza; tudo
funciona como se o Estado estivesse suficientemente arrependido para contratar um
crítico dos seus pecados, mas insuficientemente arrependido para interromper por
um instante sequer os seus atos pecaminosos. Estamos todos, desta forma, de
conformidade com a ordem e o governo civil, reunidos para homenagear e dar apoio
à nossa própria crueldade. Se ruborizamos ante o nosso primeiro pecado, logo
depois se instala a indiferença. Passamos do imoral ao não-moral, e isso não é tão
desnecessário assim para o tipo de vida que construímos.
O mais amplo e comum dos erros exige a virtude mais generosa para se
manter. São os nobres os mais passíveis de proferir os moderados ataques a que
comumente está sujeita a virtude do patriotismo. Sem dúvida, os maiores baluartes
conscienciosos do governo, e muito frequentemente os maiores opositores das
reformas, são aqueles que desaprovam o caráter e as medidas de um governo, sem
no entanto lhe retirar a sua lealdade e apoio. Há gente coletando assinaturas para
fazer petições ao Estado de Massachusetts no sentido de dissolver a União e de
desprezar as recomendações do presidente. Ora, por que eles mesmos não
dissolvem essa união entre eles e o Estado e se recusam a pagar a sua cota de
impostos? Não estão eles na mesma relação com o Estado que a que este mantém
com a União? E não são as mesmas as razões que evitaram a resistência do Estado
à União e a resistência deles ao Estado?
Como pode um homem se satisfazer com a mera posse de uma opinião e de
fato usufrui-la? Pode haver algum usufruto da opinião quando o dono dela a vê
ofendida? Se o seu vizinho o vigariza e lhe subtrai um mero dólar, você não se
satisfaz com a descoberta da vigarice, com a proclamação de que foi vigarizado e
nem mesmo com as suas gestões no sentido de ser devidamente reembolsado; o
que você faz é tomar medidas efetivas e imediatas para ter o seu dinheiro de volta e
cuidar de nunca mais ser enganado. Ações baseadas em princípios – a percepção e
a execução do que é certo – modificam coisas e relações; a ação deste gênero é
essencialmente revolucionária e não se reduz integralmente a qualquer coisa
preexistente. Ela cinde não apenas Estados e Igrejas; divide famílias; e também
divide o indivíduo, separando nele o diabólico do divino.
Existem leis injustas; devemos submeter-nos a elas e cumpri-las, ou devemos
tentar emendá-las e obedecer a elas até à sua reforma, ou devemos transgredi-las
imediatamente? Numa sociedade com um governo como o nosso, os homens em
geral pensam que devem esperar até que tenham convencido a maioria a alterar
essas leis. A sua opinião é de que a hipótese da resistência pode vir a ser um
remédio pior do que o mal a ser combatido. Mas é precisamente o governo o
culpado pela circunstância de o remédio ser de fato pior do que o mal. É o governo
que faz tudo ficar pior. Por que o governo não é mais capaz e se antecipa para lutar
pela reforma? Por que ele não sabe valorizar a sua sábia minoria? Por que ele chora
e resiste antes de ser atacado? Por que ele não estimula a participação altiva dos
cidadãos para que eles lhe mostrem as suas falhas e para conseguir um
desempenho melhor do que eles lhe exigem? Por que eles lhe exigem? Por que ele
sempre crucifica Jesus Cristo, e excomunga Copérnico e Lutero e qualifica
Washington e Franklin de rebeldes?
Não é absurdo pensar que o único tipo de transgressão que o governo nunca
previu foi a negação deliberada e prática de sua autoridade; se não fosse assim, por
que então não teria ele estabelecido a penalidade clara, cabível e proporcional? Se
um homem sem propriedade se recusa pela primeira vez a recolher nove xelins aos
cofres do Estado, é preso por prazo cujo limite não é estabelecido por qualquer lei
que eu conheça; esse prazo é determinado exclusivamente pelo arbítrio dos que o
enviam à prisão. Mas se ele resolver roubar noventa vezes nove xelins do Estado,
em breve estará novamente em liberdade.
Se a injustiça é parte do inevitável atrito no funcionamento da máquina
governamental, que seja assim: talvez ela acabe suavizando-se com o desgaste –
certamente a máquina ficará desajustada. Se a injustiça for uma peça dotada de
uma mola exclusiva – ou roldana, ou corda, ou manivela –, aí então talvez seja
válido julgar se o remédio não será pior do que o mal; mas se ela for de tal natureza
que exija que você seja o agente de uma injustiça para outros, digo, então, que se
transgrida a lei. Faça da sua vida um contra-atrito que pare a máquina. O que
preciso fazer é cuidar para que de modo algum eu participe das misérias que
condeno.
No que diz respeito às vias pelas quais o Estado espera que os males sejam
remediados, devo dizer que não as conheço. Elas são muito demoradas, e a vida de
um homem pode chegar ao fim antes que elas produzam algum efeito. Tenho outras
coisas para fazer. Não vim a este mundo com o objetivo principal de fazer dele um
bom lugar para morar, mas apenas para morar nele, seja bom ou mão. Um homem
não carrega a obrigação de fazer tudo, mas apenas alguma coisa; e só porque não
pode fazer tudo não é necessário que faça alguma coisa errada. Não está dentro
das minhas incumbências apresentar petições ao governador e à Assembleia
Legislativa, da mesma forma que eles nada precisam fazer de semelhante em
relação a mim. Suponhamos que eles não deem atenção a um pedido meu; que
devo fazer então? Mas nesse caso o Estado não forneceu outra via: o mal está na
sua própria Constituição. Isto pode parecer grosseria, teimosia e intransigência, mas
só quem merece ou pode apreciar a mais fina bondade e consideração deve receber
este tipo de tratamento. Todas as mudanças para melhor são assim, tais como o
nascimento e a morte, que produzem convulsões nos corpos.
Não hesito em afirmar que todos os que se intitulam abolicionistas devem
imediata e efetivamente retirar o seu apoio – em termos pessoais e de propriedade –
ao governo do Estado de Massachusetts, e não ficar esperando até que consigam
formar a mais estreita das maiorias para só então alcançar o sofrido direito de
vencer por meio dela. Creio que basta saber que Deus está do seu lado, o que vale
mais do que o último votante a fazer majoritárias as suas fileiras. E, além de tudo,
qualquer homem mais correto do que os seus vizinhos já constitui uma maioria
apertada.
É apenas uma vez por ano, e não mais do que isso, que me encontro cara a
cara com este governo norte-americano, ou com o governo estadual que o
representa: é quando sou procurado pelo coletor de impostos; essa é a única
instância em que um homem na minha situação não pode deixar de se encontrar
com esse governo; e ele aproveita a oportunidade e diz claramente: "Reconheça-
me". E não há outra forma mais simples, mais efetiva e, na conjuntura atual, mais
indispensável de lidar com o governo neste particular, de expressar a sua pouca
satisfação ou seu pouco amor em relação a ele: é preciso negá-lo, naquele local e
momento. O coletor de impostos é meu vizinho e concidadão, e é com ele que tenho
de lidar porque afinal de contas estou lutando contra homens, e não contra o
pergaminho das leis, e sei que ele voluntariamente optou por ser um agente
governamental. Haverá outro modo de ele ficar sabendo claramente o que é e o que
fiz enquanto agente do governo, ou enquanto homem, a não ser quando forçado a
decidir que tratamento vai dar a mim, o vizinho que ele respeita como tal e como
homem de boa índole, ou que ele considera um maníaco e desordeiro? Será ele
capaz de superar esse obstáculo à sua sociabilidade sem um pensamento ou uma
palavra mais rudes ou mais impetuosos a acompanhar a sua ação? Disso estou
certo: se mil, ou cem, se dez homens que conheço – apenas dez homens honestos
ou até um único homem honesto do Estado de Massachusetts, não mais sendo
dono de escravos, decidisse pôr fim ao seu vínculo com o Estado, para logo em
seguida ser trancado na cadeia municipal, estaria ocorrendo nada menos do que a
abolição da escravatura nos Estados Unidos da América. Pois não importa que os
primeiros passos pareçam pequenos: o que se faz bem feito faz-se para sempre.
Mas preferimos debater o assunto: essa é nossa missão, dizemos. Há dezenas de
jornais nas fileiras do abolicionismo, mas não há um único homem. O meu querido
vizinho, que desempenhou o papel de embaixador de Massachusetts e que sempre
se dedica à resolução das questões dos direitos humanos na Câmara do Conselho,
esteve ameaçado de amargar uma prisão na Carolina do Sul; no entanto, se tivesse
sido prisioneiro do Estado de Massachusetts, esse Estado que ansiosamente lança
à Carolina do Sul a acusação de pecar com a escravidão (embora atualmente não
encontre nada além de uma atitude pouco hospitaleira como motivo para brigar com
ela), o nosso Legislativo não seria capaz de adiar liminarmente o assunto da
escravidão até ao próximo inverno.
Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar
digno para um homem justo é também a prisão. Hoje em dia, o lugar próprio, o único
lugar que Massachusetts reserva para os seus habitantes mais livres e menos
desalentados são as suas prisões, nas quais serão confinados e trancados longe do
Estado, por um ato do próprio Estado pois os que vão para a prisão já antes tinham
se confinado nos seus princípios. E aí que devem ser encontrados quando forem
procurados pelos escravos fugidos, pelo prisioneiro mexicano em liberdade
condicional e pelos indígenas, para ouvir as denúncias sobre as humilhações
impostas aos seus povos; é aí, nesse chão discriminado, mas tão mais livre e
honroso, onde o Estado planta os que não estão com ele mas sim contra ele – a
única casa num Estado-senzala na qual um homem livre pode perseverar com
honra. Se há alguém que pense ser a prisão um lugar de onde não mais se pode
influir, no qual a sua voz deixa de atormentar os ouvidos do Estado, no qual não
conseguiria ser tão hostil a ele, esse alguém ignora o quanto a verdade é mais forte
que o erro e também não sabe como a injustiça pode ser combatida com muito mais
eloquência e efetividade por aqueles que já sofreram na carne um pouco dela.
Manifeste integralmente o seu voto e exerça toda a sua influência; não se deixe
confinar por um pedaço de papel. Uma minoria é indefesa quando se conforma à
maioria; não chega nem a ser uma minoria numa situação dessas; mas ela é
irresistível quando intervém com todo o seu peso. Se a alternativa ficar entre manter
todos os homens justos na prisão ou desistir da guerra e da escravidão, o Estado
não hesitará na escolha. Se no ano corrente mil homens não pagassem os seus
impostos, isso não seria uma iniciativa tão violenta e sanguinária quanto o próprio
pagamento, pois neste caso o Estado fica capacitado para cometer violências e para
derramar o sangue dos inocentes. Esta é, na verdade, a definição de uma revolução
pacífica, se é que é possível uma coisa dessas. Se, como já ouvi um deles me
perguntar, o coletor de impostos ou outro funcionário público qualquer indagar: "Mas
o que devo fazer agora?", a minha resposta é: "Se de fato quiser fazer alguma coisa,
então renuncie ao seu cargo". Quando o súdito negou a lealdade e o funcionário
renunciou ao seu cargo, então a revolução completou-se. Mas vamos supor que há
violência. Não poderíamos considerar que uma agressão à consciência também
provoca um tipo de ferimento grave? Um ferimento desses provoca a perda da
autêntica humanidade e da imortalidade de um homem, e ele sangra até uma morte
eterna. Posso ver esse sangue a correr, agora.
Especulei sobre a prisão do infrator, e não sobre o confisco dos seus bens –
embora ambas as medidas sirvam ao mesmo fim – porque os que afirmam o certo e
que, por isso, são os seres mais perigosos para um Estado corrupto, em geral não
gastam muito do seu tempo na acumulação de propriedades. Para homens assim o
Estado presta serviços relativamente pequenos e um imposto bem leve tende a ser
considerado exorbitante, particularmente quando são obrigados a realizar um
trabalho especial para conseguir a quantia cobrada. Se houvesse quem vivesse
inteiramente sem usar o dinheiro, o próprio Estado hesitaria em exigir que ele lhe
entregasse uma quantia. O homem rico, no entanto – e não pretendo estabelecer
uma comparação invejosa – é sempre um ser vendido à instituição que o enriquece.
Falando em termos absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude; pois o dinheiro
interpõe-se entre um homem e os seus objetivos e permite que ele os compre; obter
alguma coisa dessa forma não é uma grande virtude. O dinheiro acalma muitas
perguntas que de outra forma ele se veria pressionado a fazer; de outro lado, a
única pergunta nova que o dinheiro suscita é difícil, embora supérflua: "Como gastá-
lo?" Um homem assim fica, portanto, sem base para uma moralidade. As
oportunidades de viver diminuem proporcionalmente ao acúmulo daquilo que se
chama de "meios". A melhor coisa a ser feita em prol da cultura do seu tempo por
um homem rico é realizar os planos que tinha quando ainda era pobre. Cristo
respondeu aos seguidores de Herodes de acordo com a situação deles. "Mostrem-
me o dinheiro dos tributos", disse ele; e um deles tirou do bolso uma moeda. Disse
então Jesus Cristo: "Se vocês usam o dinheiro com a imagem de César, dinheiro
que ele colocou em circulação e ao qual ele deu valor, ou seja, se vocês são
homens do Estado e estão felizes de se aproveitar das vantagens do governo de
César, então paguem-no por isso quando ele o exigir. Portanto, dai a César o que é
de César, e a Deus o que é de Deus"; Cristo não lhes disse nada sobre como
distinguir um do outro; eles não queriam saber isso.
Quando converso com os mais livres dentre os meus vizinhos, percebo que,
independentemente do que digam a respeito da grandeza e da seriedade do
problema e de sua preocupação com a tranquilidade pública, no fim das contas tudo
se reduz ao seguinte: eles não podem abrir mão da proteção do governo atual e
temem as consequências que a sua rebeldia provocaria nas suas propriedades e
famílias. Da minha parte, não gosto de imaginar que possa vir algum dia a depender
da proteção do Estado. Mas se eu negar a autoridade do Estado quando ele
apresenta a minha conta de impostos, ele logo confiscará e dissipará a minha
propriedade e tratará de me hostilizar e à minha família para sempre. Essa é uma
perspectiva muito dura. Isso torna impossível uma vida que seja simultaneamente
honesta e confortável em aspectos exteriores. Não valeria a pena acumular
propriedade; ela certamente se perderia de novo. O que se tem a fazer é arrendar
alguns alqueires ou ocupar uma terra devoluta, cultivar em pequena escala e
consumir logo toda a sua produção. Você tem de viver dentro de si mesmo e
depender de si mesmo, sempre de mala feita e pronto para recomeçar; você não
deve desenvolver muitos vínculos. Até mesmo na Turquia você pode ficar rico, se
em tudo for um bom súdito do governo turco. Confúcio disse: «Se um Estado é
governado pelos princípios da razão, a pobreza e a miséria são fatos
acabrunhantes; se um Estado não é governado pelos princípios da razão, a riqueza
e as honrarias são os fatos acabrunhantes". Não! Até que eu solicite um remoto
porto sulino, que a proteção do Estado de Massachusetts me seja estendida com o
fim de preservar a minha liberdade, ou até que eu me dedique apenas a construir
pacificamente um patrimônio aqui no meu Estado, posso negar a minha lealdade ao
governo local e negar o seu direito à minha propriedade e à minha vida. Sai mais
barato, em todos os sentidos, sofrer a penalidade pela desobediência do que
obedecer. Obedecer faria com que eu me sentisse diminuído.
Há alguns anos o Estado procurou-me em nome de uma organização
religiosa e me intimou a pagar uma certa quantia destinada a sustentar um pregador
que o meu pai costumava frequentar; eu nunca o tinha visto. "Pague ou será
trancado na cadeia", disse o Estado. Eu recusei-me a pagar. Infelizmente, no
entanto, outro homem achou melhor fazer o pagamento em meu nome. Não
consegui descobrir por que o mestre-escola deveria pagar imposto para sustentar o
clérigo e não o clérigo contribuir para o sustento do mestre-escola; pois eu não era
mestre-escola do Estado, e sustentava-me com subscrições voluntárias. Não vi o
motivo pelo qual o liceu não devesse apresentar a sua conta de impostos e fazer
com que o Estado apoiasse, junto com a organização religiosa, essa sua pretensão.
No entanto, os conselheiros municipais pediram-me e eu concordei em fazer uma
declaração por escrito cuja redação ficou mais ou menos assim: "Saibam todos
quantos esta declaração lerem que eu, Henry Thoreau, não desejo ser considerado
integrante de qualquer sociedade organizada à qual não tenha aderido". Entreguei o
texto ao secretário da municipalidade. Deve estar com ele até hoje. Sabendo
portanto que eu não queria ser considerado membro daquela organização religiosa,
o Estado nunca mais me fez uma exigência parecida; ele considerava, no entanto,
que estava certo e que deveria continuar a operar a partir dos pressupostos originais
com que me abordou. Se fosse possível saber os seus nomes, eu teria desligado-
me minuciosamente, na mesma ocasião, de todas as organizações das quais não
era membro; mas não soube onde encontrar uma lista completa delas.
Há seis anos que não pago o imposto per capita. Fui encarcerado certa vez
por causa disso, e passei uma noite preso; enquanto o tempo passava, fui
observando as paredes de pedra sólida com dois ou três pés de espessura, a porta
de madeira e ferro com um pé de espessura e as grades de ferro que dificultam a
entrada da luz, e não pude deixar de perceber a idiotice de uma instituição que me
tratava como se eu fosse apenas carne e sangue e ossos a serem trancafiados.
Fiquei especulando que ela devia ter concluído, finalmente, que aquela era a melhor
forma de me usar e, também, que ela jamais cogitara de se aproveitar dos meus
serviços de alguma outra maneira. Vi que apesar da grossa parede de pedra entre
mim e os meus concidadãos, eles tinham uma muralha muito mais difícil de vencer
antes de conseguirem ser tão livres quanto eu. Nem por um momento me senti
confinado, e as paredes pareceram-me um desperdício descomunal de pedras e
argamassa. O meu sentimento era de que eu tinha sido o único dos meus
concidadãos a pagar o imposto. Estava claro que eles não sabiam como lidar
comigo e que se comportavam como pessoas pouco educadas. Havia um erro
crasso em cada ameaça e em cada saudação, pois eles pensavam que o meu maior
desejo era o de estar do outro lado daquela parede de pedra. Não pude deixar de
sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e trancaram as minhas
reflexões – que os acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade; e o
perigo estava de fato contido nelas. Como eu estava fora do seu alcance,
resolveram punir o meu corpo; agiram como meninos incapazes de enfrentar uma
pessoa de quem sentem raiva e que então dão um chute no cachorro do seu
desafeto. Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas
com a sua prataria, incapaz de distinguir os seus amigos dos inimigos; perdi todo o
respeito que ainda tinha por ele e passei a considerá-lo apenas lamentável.
Portanto, o Estado nunca confronta intencionalmente o sentimento intelectual
ou moral de um homem, mas apenas o seu corpo, os seus sentidos. Ele não é
dotado de gênio superior ou de honestidade, apenas de mais força física. Eu não
nasci para ser coagido. Quero respirar da forma que eu mesmo escolher. Veremos
quem é mais forte. Que força tem uma multidão? Os únicos que podem me coagir
são os que obedecem a uma lei mais alta do que a minha. Eles obrigam-me a ser
como eles. Nunca ouvi falar de homens que tenham sido obrigados por multidões a
viver desta ou daquela forma. Que tipo de vida seria essa? Quando defronto um
governo que me diz "A bolsa ou a vida!", por que deveria apressar-me em lhe
entregar o meu dinheiro? Ele talvez esteja passando por um grande aperto, sem
saber o que fazer. Não posso ajudá-lo. Ele deve cuidar de si mesmo; deve agir como
eu ajo. Não vale a pena choramingar sobre o assunto. Não sou individualmente
responsável pelo bom funcionamento da máquina da sociedade. Não sou o filho do
maquinista. No meu modo de ver quando sementes de carvalho e de castanheira
caem lado a lado, uma delas não se retrai para dar vez à outra; pelo contrário, cada
uma segue as suas próprias leis, e brotam, crescem e florescem da melhor maneira
possível, até que uma por acaso acaba superando e destruindo a outra. Se uma
planta não pode viver de acordo com a sua natureza, então ela morre; o mesmo
acontece com um homem.
A noite que passei na prisão, além de uma novidade, foi também bem
interessante. Os prisioneiros, em mangas de camisa, distraíam-se conversando na
entrada, aproveitando o vento fresco da noite; assim estavam quando me viram
chegar. Mas o carcereiro disse-lhes: "Venham, rapazes, já é hora de trancar as
portas"; ouvi o barulho dos seus passos enquanto caminhavam para os seus
compartimentos vazios. O carcereiro apresentou-me o meu companheiro de cela,
qualificando-o como "um sujeito de primeira e um homem esperto”. Trancada a
porta, ele mostrou-me o cabide onde deveria pendurar o meu chapéu e explicou-me
como administrava as coisas por ali. As celas eram caiadas uma vez por mês; a
nossa cela, pelo menos, era o apartamento mais branco, de mobiliário mais simples
e provavelmente o mais limpo de toda a cidade. Naturalmente ele quis saber de
onde eu vinha e por que eu tinha ido parar ali; quando lhe contei a minha história, foi
minha a vez de lhe perguntar a sua, na suposição evidente de que ele era um
homem honesto; e, da maneira que as coisas estão, acredito que ele de fato era um
homem honesto. Ele disse: «Ora, acusam-me de ter incendiado um celeiro; mas não
fui eu". Pelo que pude perceber, ele provavelmente fora deitar-se, bêbado, para
dormir num celeiro, não sem antes fumar o seu cachimbo; e assim perdeu-se no
fogo um celeiro. Ele tinha a fama de ser um homem esperto, e ali aguardava havia
três meses o seu julgamento; tinha outros três meses a esperar ainda; mas estava
bem cordato e contente, já que não pagava pela casa e comida e se considerava
bem tratado.
Ele ficava ao lado de uma janela, e eu junto à outra; percebi que se alguém
ficasse por ali por muito tempo acabaria tendo por atividade principal olhar pela
janela. Em pouco tempo eu tinha lido os folhetos que encontrara, e fiquei
observando os locais por onde antigos prisioneiros tinham fugido, vi onde uma grade
tinha sido serrada e ouvi a história de vários hóspedes anteriores daquele aposento;
pois acabei descobrindo que até mesmo ali circulavam histórias e tagarelices que
não conseguem atravessar as paredes da cadeia. Essa é provavelmente a única
casa na cidade onde se escrevem poesias que são publicadas em forma de circular,
mas que não chegam a virar livros. Mostraram-me uma grande quantidade de
poesias feitas por alguns jovens cuja tentativa de fuga tinha sido frustrada; eles
vingavam-se declamando os seus versos.
Tirei tudo o que pude do meu companheiro de cela, pois temia nunca mais
tornar a encontrá-lo; mas finalmente ele indicou-me a minha cama e deixou para
mim a tarefa de apagar a lamparina. Ficar ali deitado por uma única noite foi como
viajar a um país distante, um país que eu nunca teria imaginado visitar. Pareceu-me
que nunca antes ouvira o relógio da cidade dar as horas ou os ruídos noturnos da
aldeia; isso porque dormíamos com as janelas abertas, janelas estas instaladas por
dentro das grades. Era como contemplar a minha aldeia natal à luz da Idade Média,
e o nosso familiar Rio Concord transformou-se na torrente de um Reno; à minha
frente desfilaram visões de cavaleiros e castelos. As vozes que ouvia nas ruas eram
dos antigos burgueses. Fui espectador e testemunha involuntária de tudo o que se
fazia e dizia na cozinha da vizinha hospedaria local – uma experiência inteiramente
nova e rara para mim. Tive uma visão bem mais íntima da minha cidade natal. Eu
estava razoavelmente perto da sua alma. Nunca antes vira as suas instituições.
Essa cadeia é uma das suas instituições peculiares, pois Concord é a sede do
condado. Comecei a compreender o que preocupa os seus habitantes.
Quando chegou a manhã, o nosso desjejum foi empurrado para dentro da
cela através de um buraco na porta; era servido numa vasilha de estanho ajustada
ao tamanho do buraco e consistia numa porção de chocolate com pão preto; junto
vinha uma colher de ferro. Quando do lado de fora pediram a devolução das
vasilhas, a minha inexperiência foi tanta que coloquei de volta o pão que não
comera; mas o meu companheiro pegou o pão e aconselhou-me a guardá-lo para o
almoço ou para o jantar. Pouco depois, deixaram que ele saísse para trabalhar num
campo de feno das vizinhanças, para onde se deslocava todos os dias; não voltaria
antes do meio-dia; ele então deu-me bom-dia e disse que duvidava que nos
víssemos de novo.
Quando saí da prisão – pois alguém interferiu e pagou o meu imposto –,
percebi diferenças, não as grandes mudanças no dia-a-dia notadas por aqueles
aprisionados ainda jovens e devolvidos já trôpegos e grisalhos. Ainda assim uma
nova perspectiva tinha-se instalado no meu modo de ver a cidade, o Estado e o
país, representando uma mudança maior do que se fosse causada pela mera
passagem do tempo. Vi com clareza ainda maior o Estado que habitava. Vi até que
ponto podia confiar nos meus conterrâneos como bons vizinhos e amigos; e percebi
que a sua amizade era apenas para os momentos de tranquilidade; senti que eles
não têm grandes intenções de proceder corretamente; descobri que, tal como os
chineses e malaios, eles formam uma raça diferente da minha, por causa dos seus
preconceitos e superstições; constatei que eles não arriscam a si mesmos ou a sua
propriedade nos seus atos de sacrifício pela humanidade; vi que, no fim das contas,
eles não são tão nobres a ponto de conseguir tratar o ladrão de forma diferente do
que este os trata; e que só querem salvar as suas almas, por intermédio de ações
de efeito, de algumas orações e da eventual observação dos limites particularmente
estreitos e inúteis de um caminho de retidão. É possível que esteja proferindo um
julgamento duro sobre os meus vizinhos, pois acredito que a maioria deles não sabe
que existe na sua cidade uma instituição tal como a cadeia.
Antigamente, na nossa aldeia, havia o costume de saudar os pobres
endividados que saíam da cadeia olhando-os através dos dedos dispostos em forma
das barras de uma janela de prisão; e perguntava-se ao recém-liberto: “Como vai?"
Não recebi essa saudação dos meus conhecidos, que primeiro me encaravam e
depois entreolhavam-se, como se eu acabasse de voltar de uma longa viagem. Eu
tinha sido preso quando me dirigia ao sapateiro para buscar uma bota consertada.
Quando fui solto na manhã seguinte, resolvi retomar o que estava fazendo e, depois
de calçar a tal bota, juntei-me a um grupo que pretendia colher frutas silvestres e me
queria como guia. E em pouco mais de meia hora – pois logo recebi um cavalo
arreado – chegamos ao topo de um dos nossos mais altos morros, onde abundavam
frutas silvestres, a três quilômetros da cidade; e dali não se podia ver o Estado em
lugar nenhum.
Esta é a história completa das “Minhas prisões''.
Nunca me recusei a pagar o imposto referente às estradas, pois a minha
vontade de ser um bom vizinho é tão grande quanto a de ser um péssimo súdito; no
que toca à sustentação das escolas, atualmente faço a minha parte na tarefa de
educar os meus conterrâneos. Não é um item particular dos impostos que me faz
recusar o pagamento. Quero apenas negar lealdade ao Estado, quero me retirar e
me manter efetivamente indiferente a ele. Não me importo em seguir a trajetória do
dólar que paguei – mesmo se isso fosse possível – até o ponto em que ele contrata
um homem ou compra uma arma para matar um homem; o dólar é inocente. O que
me importa é seguir os efeitos da minha lealdade. Na verdade, eu silenciosamente
declaro guerra ao Estado, à minha moda, embora continue a usá-lo e a tirar
vantagem dele enquanto puder, como costuma acontecer nestas situações.
Se outros resolvem pagar o imposto que o Estado me exige, nada mais fazem
além do que já fizeram quando pagaram o seu imposto, ou melhor, estimulam a
injustiça além do limite que o Estado lhes pediu. Se eles pagam o imposto alheio a
partir de um equivocado interesse pela sorte daquele que não paga, para salvar a
sua propriedade ou para evitar o seu encarceramento, isso só ocorre porque não
meditaram seriamente no quanto estão permitindo que os seus sentimentos
particulares interfiram no bem geral.
Esta, portanto, é minha posição atual. Mas não se pode ficar exageradamente
de sobreaviso numa circunstância dessas, pelo risco de que tal atitude seja desviada
pela obstinação ou pela preocupação indevida para com a opinião do próximo. Que
cada um cuide de fazer apenas o que lhe cabe, e só no momento certo.
Por vezes penso assim: ora, esse povo tem boas intenções, mas é ignorante;
ele faria melhor se soubesse como agir; por que incomodar os meus vizinhos e
forçá-los a me tratar de uma forma contrária às suas inclinações? Mas depois penso:
não há motivo para proceder como eles ou para permitir que mais pessoas sofram
outros tipos de dor. E digo ainda a mim mesmo: quando muitos milhões de homens,
sem paixão, sem hostilidade, sem sentimentos pessoais de qualquer tipo, lhe pedem
apenas uns poucos xelins, sem que a sua natureza lhes possibilite retirar ou alterar
a sua exigência atual e sem a possibilidade de você, por seu lado, fazer um apelo a
outros milhões de homens, por que você deveria se expor a tal força bruta
avassaladora? Você não resistirá ao frio e à fome, aos ventos e às ondas com tanta
obstinação; você submete-se pacificamente a mil imposições similares. Você não
coloca a cabeça na fogueira. Mas exatamente na medida em que não considero esta
força inteiramente bruta – e sim uma força parcialmente humana – e em que avalio
que mantenho relações com esses milhões e com outros muitos milhões de homens
– que não são apenas coisas brutas ou sem vida – vejo também que é possível a
apelação: em primeira instância e de pronto, eles podem apelar ao Criador; em
segunda instância, podem apelar uns aos outros. Mas se ponho a minha cabeça no
fogo de propósito não há apelo possível a ser feito ao fogo ou ao Criador do fogo, e
sou o único culpado pelas consequências. Se eu conseguisse convencer-me de que
tenho algum direito a me sentir satisfeito com os homens tal como eles são, e a
tratá-los de acordo com isso e não parcialmente de acordo com as minhas
exigências e expectativas de como eles e eu mesmo deveríamos ser, então, como
bom muçulmano e fatalista, eu teria que me esforçar para ser feliz com as coisas
como elas são e proclamar que tudo se passa segundo a vontade de Deus. E, acima
de tudo, há uma diferença entre resistir a essa força e a uma outra puramente bruta
ou natural: a diferença é que posso resistir a ela com alguma efetividade. Não posso
esperar mudar a natureza das pedras, das árvores e dos animais, tal como Orfeu.
Não quero polemizar com qualquer homem ou nação. Não quero fazer
filigranas, estabelecer distinções elaboradas ou me colocar numa situação superior à
dos meus vizinhos. Estou a buscar, posso admitir, até mesmo uma desculpa para
aceitar as leis do país. Estou preparado até demais para obedecer a elas. Neste
particular tenho motivos para suspeitar de mim mesmo; e a cada ano, quando se
aproxima a época da visita do coletor de impostos, surpreendo-me disposto a revisar
os atos e as posições do governo central e do governo estadual, a rever o espírito
do povo, para descobrir um pretexto para a obediência. Acredito que logo o Estado
será capaz de me aliviar de todos os encargos deste tipo e então não serei mais
patriota do que o resto dos meus conterrâneos. Encarada de um ponto de vista
menos elevado, a Constituição, com todos os seus defeitos, é muito boa; a lei e os
tribunais são muito respeitáveis; mesmo o Estado de Massachusetts e o governo
dos Estados Unidos da América são, em muitos aspectos, coisas admiráveis e
bastante raras, pelas quais devemos ser gratos, tal como nos disseram muitos
estudiosos das nossas instituições. Mas se elevarmos um pouco o nosso ponto de
vista, elas mostram-se tais como as descrevi; e indo mais além, até chegarmos ao
mais alto, quem será capaz, de dizer o que são elas, ou quem poderá dizer que
sequer vale a pena observa-las ou refletir sobre elas?
Entretanto, não me preocupo muito com o governo, e quero dedicar a ele o
menor número possível de reflexões. Mesmo no mundo tal como é agora, não passo
muitos momentos sujeito a um governo. Se um homem é livre de pensamento, livre
para fantasiar, livre de imaginação, de modo que aquilo que nunca é lhe parece ser
na maior parte do tempo, governantes ou reformadores insensatos não são capazes
de lhe criar impedimentos fatais. Sei que a maioria dos homens pensa de maneira
diferente de mim; mas não estou nem um pouco mais satisfeito com os homens que
se dedicam profissionalmente a estudar estas questões e outras parecidas. Pelo fato
de se colocarem tão integralmente dentro da instituição, os homens de Estado e os
legisladores nunca conseguem encará-la nua e cruamente. Eles gostam de falar
sobre mudanças na sociedade, mas não têm um ponto de apoio situado fora dela.
Pode ser que haja entre eles homens de certa experiência e critério e evidentemente
capazes de criar sistemas engenhosos e até úteis, pelos quais lhes devemos
gratidão; mas todo o seu gênio e toda a sua utilidade não ultrapassam certos limites
relativamente estreitos. Eles tendem a esquecer que o mundo não é governado por
meio de decisões e conveniências. Webster nunca chega aos bastidores do governo
e, por isso, não pode ser uma autoridade no assunto. As suas palavras são sábias
apenas para os legisladores que não cogitam de qualquer reforma essencial no
governo existente; para as exigências dos pensadores e dos que fazem leis
duradouras, ele nem chega a visualizar o assunto. Conheço algumas pessoas cujas
especulações serenas e sábias logo revelariam os limites do alcance e da
hospitalidade da imaginação de Webster. Mesmo assim, quando comparadas com
as paupérrimas declarações da maioria dos reformadores e com a mentalidade e a
eloquência ainda piores dos políticos em geral, as suas palavras são praticamente
as únicas que têm valor e revelam sensibilidade; devemos por isso agradecer ao céu
por contarmos com Webster. Em termos comparativos, ele é sempre impetuoso,
original e, acima de tudo, prático. Mas a sua virtude não é a sabedoria, e sim a
prudência. A verdade de um jurista não é a Verdade, mas a consistência, ou uma
conveniência consistente. A verdade está sempre em harmonia consigo mesma, e a
sua importância principal não é a de revelar a justiça que porventura possa conviver
com o mal. Webster bem merece o título pelo qual é conhecido: "Defensor da
Constituição". De fato, ele não precisa atacar, mas apenas armar a defesa contra os
golpes alheios. Ele não é um líder, e sim um seguidor. Os seus líderes são os
constitucionalistas de 1787. Eis as suas próprias palavras: "Nunca tomei e nunca
pretendo tomar uma iniciativa; nunca apoiei ou pretendo apoiar uma iniciativa – que
vise a desmanchar o acordo original pelo qual os diversos Estados formaram a
União". Ao comentar a cobertura que a Constituição dá à escravidão, diz ele: "Já que
é parte do pacto original, que continue a escravidão". Apesar da sua agudeza e
habilidade especiais, ele não consegue isolar um fato das suas relações meramente
políticas para contemplá-lo nos termos absolutos exigidos para o seu
aproveitamento pelo intelecto – por exemplo, o que se impõe moralmente hoje em
dia nos Estados Unidos no tocante a agir frente à escravidão; no entanto, ele
arrisca-se ou é levado a formular uma resposta desesperada tal como a que se
segue, e insiste que fala em termos absolutos, como um homem particular: "A forma
pela qual os governos dos Estados onde existe escravidão decidem regulamentá-la
é matéria da sua própria deliberação, pela qual são responsáveis perante os seus
cidadãos, perante as leis gerais da propriedade, da humanidade e da justiça, e
perante Deus. Quaisquer associações formadas em outro lugar, mesmo oriundas de
um sentimento de compaixão humana, ou com qualquer outra origem, nada têm a
ver com o assunto. Nunca lhes dei qualquer apoio, e nunca darei". Que novo e
original código de obrigações sociais pode ser inferido de palavras como estas?
Para os que não conhecem as fontes mais puras da verdade, que não
querem subir mais pela sua correnteza, a opção – sábia – é interromper a sua busca
na Bíblia e na Constituição; será aí que eles a sorverão, com reverência e
humildade; mas para aqueles que conseguem perceber que a verdade vem mais de
cima e alimenta esse lago ou aquele remanso, é preciso preparar de novo o corpo
para continuar a peregrinação, até chegar à nascente.
Ainda não surgiu um homem dotado de gênio para legislar no nosso país.
Homens assim são raros na história mundial. Oradores, políticos e homens
eloquentes existem aos milhares; mas ainda estamos por ouvir a voz do orador
capaz de solucionar as complexas questões do dia-a-dia. Amamos a eloquência
pelos seus méritos próprios, e não pela sua capacidade de pronunciar uma verdade
qualquer, nem pela possibilidade de inspirar algum heroísmo. Os nossos legisla-
dores ainda não aprenderam a distinguir o valor relativo do livre-comércio frente à
liberdade, à união e à retidão. Eles não têm gênio ou talento nem para as questões
relativamente simplórias dos impostos, das finanças, do comércio e da indústria, da
agricultura. A América do Norte não conseguiria manter por muito tempo a sua
posição entre as nações se fôssemos abandonados à esperteza palavrosa dos
congressistas; felizmente contamos com a experiência madura e com os protestos
efetivos do nosso povo. Talvez não tenha o direito de afirmar isto, mas o Novo
Testamento foi escrito há mil e oitocentos anos; no entanto onde encontrar o
legislador suficientemente sábio e prático para se aproveitar de tudo o que esse
texto ensina sobre a ciência da legislação?
A autoridade do governo, mesmo do governo ao qual estou disposto a me
submeter – pois obedecerei com satisfação aos que saibam e façam melhor do que
eu e, sob certos aspectos, obedecerei até aos que não saibam nem façam as coisas
tão bem – é ainda impura; para ser inteiramente justa, ela precisa contar com a
sanção e com o consentimento dos governados. Ele não pode ter sobre a minha
pessoa e meus bens qualquer direito puro além do que eu lhe concedo. O progresso
de uma monarquia absoluta para uma monarquia constitucional, e desta para uma
democracia, é um progresso no sentido do verdadeiro respeito pelo indivíduo. Será
que a democracia tal como a conhecemos é o último aperfeiçoamento possível em
termos de construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sentido de
reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente
livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e
independente – do qual a organização política deriva o seu próprio poder e a sua
própria autoridade – e até que o indivíduo venha a receber um tratamento
correspondente. Fico imaginando, e com prazer, um Estado que possa enfim se dar
ao luxo de ser justo com todos os homens e de tratar o indivíduo respeitosamente,
como um vizinho; imagino um Estado que sequer consideraria um perigo à sua
tranquilidade a existência de alguns poucos homens que vivessem à parte dele, sem
nele se intrometerem nem serem por ele abrangidos, e que desempenhassem todos
os deveres de vizinhos e de seres humanos. Um Estado que produzisse esta
espécie de fruto, e que estivesse disposto a deixá-lo cair logo que amadurecesse,
abriria caminho para um Estado ainda mais perfeito e glorioso; já fiquei a imaginar
um Estado desses, mas nunca o encontrei em qualquer lugar.
ANEXO B
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER E DA CIDADÃ
Olympe de Gouges
Para ser decretada pela Assembleia Nacional nas suas últimas sessões ou na
próxima.
Preâmbulo
As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, reivindicam
constituírem-se em Assembleia Nacional. Considerando que a ignorância, o
esquecimento ou o menosprezo dos direitos da mulher são as únicas causas das
desgraças públicas e da corrupção no governo, resolveram expor, em uma
declaração solene, os direitos naturais inalienáveis e sagrados da mulher. Assim,
que esta declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social,
lembre-lhes sem cessar os seus direitos e os seus deveres; que, sendo mais
respeitados, os atos do poder das mulheres e os atos do poder dos homens possam
ser a cada instante comparados com o objetivo de toda instituição política; e que as
reivindicações das cidadãs, fundamentadas doravante em princípios simples e
incontestáveis, sempre respeitem a constituição, os bons costumes e a felicidade de
todos.
Consequentemente, o sexo superior em beleza e em coragem, em meio aos
sofrimentos maternais, reconhece e declara, na presença e sob a proteção do Ser
Supremo, os seguintes Direitos da Mulher e da Cidadã.
Artigo primeiro
A Mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções
sociais só podem ser fundamentadas no interesse comum.
Artigo segundo
O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e
imprescritíveis da Mulher e do Homem. Estes direitos são a liberdade, a
propriedade, a segurança e, sobretudo, a resistência à opressão. (grifo nosso)
Artigo terceiro
O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação, que nada
mais é que a reunião da mulher e do homem: nenhum corpo, nenhum indivíduo
pode exercer autoridade que não emane expressamente deles.
Artigo quarto
A liberdade e a justiça consistem em restituir tudo que pertence a outrem.
Sendo assim, o exercício dos direitos naturais da mulher não tem outros limites
senão a perpétua tirania que o homem lhe impõe; estes limites devem ser
reformados pelas leis da natureza e da razão.
Artigo quinto
As leis da natureza e da razão proíbem todas as ações nocivas à sociedade;
tudo que não é defendido por tais leis, sábias e divinas, não pode ser impedido, e
ninguém pode ser constrangido a fazer aquilo que elas não ordenam.
Artigo sexto
A lei deve ser a expressão da vontade geral; todas as cidadãs e cidadãos
devem colaborar pessoalmente ou por seus representantes, para a sua formação;
ela deve ser igual para todos: todas as cidadãs e todos os cidadãos, sendo iguais
frente a ela, devem ser igualmente admitidos a todas as dignidades, postos e
empregos públicos, de acordo com sua capacidade, e sem qualquer distinção a não
ser por suas virtudes e seus talentos.
Artigo sétimo
Nenhuma mulher pode ser exceção; ela é acusada, presa e detida nos casos
estabelecidos pela lei: as mulheres obedecem, assim como os homens, a esta lei
rigorosa.
Artigo oitavo
A lei só deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e
ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada
anteriormente ao delito e legalmente aplicada às mulheres.
Artigo nono
Com toda mulher declarada culpada, deve ser exercido todo rigor da lei.
Artigo dez
Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo que sejam de
princípio; a mulher tem o direito de subir ao cadafalso; mas ela deve igualmente ter o
direito de subir à tribuna, contanto que suas manifestações não perturbem a ordem
pública estabelecida pela lei.
Artigo onze
A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões constitui um dos
direitos mais preciosos da mulher, dado que esta liberdade garante a legitimidade
dos pais em relação aos filhos. Toda cidadã pode, portanto, dizer livremente: “eu sou
a mãe de um filho que lhe pertence”, sem que um preconceito bárbaro a force a
esconder a verdade; sob pena de responder pelo abuso dessa liberdade nos casos
estabelecidos pela lei.
Artigo doze
A garantia dos direitos da mulher e da cidadã necessita de uma utilidade
maior; tal garantia deve ser instituída para vantagem de todos, e não para a utilidade
particular daqueles a quem ela foi confiada.
Artigo treze
Para a manutenção da força pública, e para os gastos administrativos, as
contribuições da mulher e do homem devem ser iguais; ela participa de todos os
trabalhos ingratos, de todas as tarefas pesadas; ela deve, por conseguinte, ter a
mesma participação da distribuição dos postos, dos empregos, dos cargos, das
dignidades e da indústria.
Artigo catorze
As cidadãs e os cidadãos têm o direito de verificar por eles mesmos ou por
seus representantes a necessidade da contribuição pública. As cidadãs só podem
aderir a ela por intermédio de uma partilha igual, não apenas nos bens, mas também
na administração pública, determinando a quota, o tributável, a cobrança e a
duração do imposto.
Artigo quinze
O conjunto das mulheres, igualada aos homens na contribuição, tem o direito
de pedir contas de sua administração a qualquer agente público.
Artigo dezesseis
Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem é
determinada a separação dos poderes, não tem Constituição; a Constituição é nula
se a maioria dos indivíduos que compõem a nação não contribuiu para a sua
redação.
Artigo dezessete
As propriedades pertencem em conjunto ou separadamente a todos os sexos;
para cada um, elas constituem um direito, enquanto a necessidade pública,
legalmente constatada, evidentemente não o exigir, sob a condição de uma justa e
prévia indenização.
Pós-âmbulo
Mulher, acorda! A força da razão faz-se ouvir em todo o universo: reconhece
seus direitos. O poderoso império da natureza já não está limitado por preconceitos,
superstição e mentiras. A bandeira da verdade dissipou todas as nuvens da parvoíce
e da usurpação. O homem escravo multiplicou suas forças, precisou recorrer às
próprias forças para romper seus grilhões. Tornado livre, ele fez-se injusto em
relação à sua companheira. Mulheres! Mulheres, quando deixareis de ser cegas?
Quais são as vantagens que obtivestes na Revolução? Um menosprezo mais
marcado, um desdém mais perceptível. Durante os séculos de corrupção vós só
conseguistes reinar sobre a fraqueza dos homens. Vosso império está destruído; o
que vos sobra? A convicção das injustiças do homem. A reivindicação de vosso
patrimônio, fundada sobre os sábios decretos da natureza: o que teríeis a temer por
uma empresa tão bela? A boa palavra do Legislador das núpcias de Canaã? Temei
que nossos Legisladores franceses, corretores desta moral, há muito pendurada nos
galhos da política, mas que não é mais oportuna, repitam para vós: mulheres, o que
há de comum entre vós e nós? Tudo, tereis de responder. Se eles se obstinam, em
sua fraqueza, em pôr esta inconsequência em contradição com os seus princípios,
oponde corajosamente a força da razão às vãs pretensões de superioridade; reuni-
vos sob os estandartes da filosofia; empenhai toda a energia do vosso caráter, e
vereis logo estes orgulhosos se transformando, não em servis adoradores
rastejando a vossos pés, mas em orgulhosos por compartilharem convosco os
tesouros do Ser Supremo. Quaisquer que sejam as barreiras que se vos possam
opor, está em vossas mãos superá-las; basta que o queirais. Tenhamos agora em
conta o pavoroso quadro de que vós fostes na sociedade; dado que, neste
momento, se trata de uma educação nacional, estejamos atentos para que nossos
sábios Legisladores pensem sãmente sobre a educação das mulheres. As mulheres
fizeram mais mal que bem. A coação e a dissimulação foram seu quinhão. O que a
força lhes havia arrebatado, a astúcia lhes devolveu; elas apelaram para todos os
recursos de seu charme, e o mais irrepreensível não lhe conseguia resistir. O
veneno, o ferro, tudo lhe era submetido. Elas mandavam no crime assim como na
virtude. O governo francês, sobretudo, dependeu, durante séculos, da administração
noturna das mulheres; o gabinete nada conseguia manter em segredo para sua
indiscrição: embaixada, comando, ministério, presidência, pontificado, cardinalato;
enfim, tudo que caracteriza a parvoíce dos homens, profana e sagrada, tudo foi
submetido à cupidez e à ambição deste sexo outrora desprezível e respeitado, e
depois da revolução respeitável e desprezado.
A apresentação e tradução para Língua Portuguesa deste texto é de Selvino José Assmann, doutor
em Filosofia (Pontifícia Università Lateranense, PUL, Itália), professor titular em Filosofia da História
do Departamento de Filosofia (UFSC), professor do Doutorado Interdisciplinar do Centro de Filosofia
e Ciências Humanas.
ANEXO C
1968: CRONOLOGIA
JANEIRO
12 e 13: Madri – Protestos estudantis, contra o fechamento da Faculdade de Economia, são
duramente reprimidos pela polícia.
19: Rio de Janeiro – Passeata de estudantes é dissolvida pela polícia.
23: Rio de Janeiro – Estudantes protestam contra a diminuição de vagas na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).
29: Madri – Tropas policiais invadem a Universidade de Madri.
30: Brasília – O Ministério da Educação e Cultura (MEC) distribui circular às Universidades, exigindo
que sejam elaboradas “fichas ideológicas” de professores e funcionários.
FEVEREIRO
7: Seul – estudantes protestam contra a presença de tropas norte-americanas na Coreia do Sul.
8: Rio de Janeiro – Estudantes da UFRJ fazem manifestação, pedindo mais verbas para educação e
mais vagas nas escolas.
9: Brasília – Agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e do Serviço
Nacional de Informação (SNI) impedem a encenação de peça Um bonde chamado desejo, de
Tennesse Williams.
12: Rio de Janeiro – Vigília de artistas e intelectuais no Teatro Municipal em protesto contra a
censura. Prisão da atriz Tônia Carrero.
20: Rio de JaneiroComício de estudantes, na Central do Brasil, em solidariedade às lutas do povo
vietnamita.
23: EUA – Decidido o envio de mais 48 mil soldados ao Vietnã.
MARÇO
1º: Itália – Protestos estudantis, seguidos de choques com a polícia, em Roma e em mais sete
cidades italianas.
6: Madri – Estudantes espanhóis fazem manifestações contra prisões e entram em choque com a
polícia.
13: São Paulo – Estudantes realizam passeata de protesto contra a política educacional do governo
e contra o acordo MEC-Usaid.
14: Nova York – Estudantes da Universidade de Columbia fazem greve de protesto contra a
presença dos EUA no Vietnã.
16: Madri – Estudantes espanhóis protestam contra a intervenção americana no Vietnã.
16: Rio de Janeiro – Passeata estudantil contra o acordo MEC-Usaid.
Londres – Protestos contra a guerra do Vietnã.
19: São Paulo – Atentado a bomba contra o consulado dos EUA.
21: São Paulo – Estudantes ocupam o prédio da Faculdade de Filosofia da USP, pedindo mais
vagas.
22: Paris – Início da revolução estudantil, com a ocupação da Universidade de Nanterre, na região
metropolitana de Paris.
23: Brasília – Estudantes da Universidade de Brasília (UnB) protestam contra a ditadura e dão vivas
a Che Guevara.
23: Roma, Varsóvia, Madri e Buenos Aires – Protestos estudantis.
28: Rio de Janeiro – A tropa da Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro invade o Restaurante
Universitário Calabouço. O estudante Edson Luís Lima Souto, de 17 anos, é morto.
28: Espanha – A Universidade de Madri é fechada pela polícia.
28: Brasil – Passeatas e comícios em quase todas as capitais, em protesto contra a morte de Edson
Luís. Mais de 50 mil pessoas acompanham o enceno.
28: EUA – Lutas raciais provocam choques e incêndios no Tennesse.
ABRIL
1º: Brasil – Choques entre estudantes e policiais por causa da morte de um estudante. Tropas do
Exército e da Marinha ocupam a cidade do Rio de Janeiro.
2: Brasil – Choques entre estudantes e policiais.
4: Brasil – No Rio de Janeiro, policiais agridem populares em dois atos religiosos pela morte de
Edson Luís. Atos também em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Niterói, Recife, São Luís,
Curitiba e Brasília. Rádios e tevês são censurados para não noticiarem os acontecimentos do dia. No
Rio de Janeiro, padres formaram um cordão de isolamento para proteger os estudantes de uma carga
da cavalaria, na saída da missa na Candelária. Estudantes são presos e levados encapuzados para a
Vila Militar, onde sofrem torturas.
4: EUA – É assassinado o líder pacifista negro Martin Luther King, no Tennesse.
5: EUA – Violentos confrontos entre negros e policiais em quase todos os estados americanos.
5: São Paulo e Rio de Janeiro – Prisão de dez jornalistas da Folha de São Paulo e no Última Hora.
8: Roma – Estudantes protestam contra a repressão no Brasil.
11: Alemanha Ocidental – Atentado contra o líder estudantil Rudi Deustschek, que morre uma
semana depois.
15: São Paulo – Bomba explode ao lado do Quartel-General do II Exército.
Londres e Berlim Ocidental – Manifestações contra o atentado ao líder estudantil alemão.
18: Paris – Fechamento da Universidade de Nanterre, nos arredores de Paris (a agitação vinha
desde novembro e ampliou-se em janeiro)
20: São Paulo – Uma bomba explode no prédio do jornal O Estado de São Paulo. Atentado atribuído
na época à esquerda, depois ficou esclarecido que foi de autoria do Estado-Maior do II Exército.
MAIO
1º: São Paulo – Ativistas de esquerda dispersam, a pedradas, o comício do Dia do Trabalho, na
Praça da Sé, organizado por sindicalistas do Partido Socialista Brasileiro (PSB).
3: Paris – Os protestos surgidos em Nanterre são retomados na capital por estudantes de esquerda.
A polícia reprime duramente. A Faculdade é fechada pela primeira vez em 700 anos.
4: Paris – Violento confronto entre estudantes e policiais, com 600 presos e muitos feridos. A
Assembleia de Professores Universitários da França decreta greve geral, em apoio aos estudantes.
9: Brasil – Censura proíbe a peça Toda nudez será castigada, de Nélson Rodrigues.
10: Paris – 20.000 estudantes montam barricadas contra a polícia.
Brasil – Decretada a prisão preventiva de todos os líderes estudantis de Minas Gerais.
11: Paris – A revolução estudantil se espalha por toda a França. Universitários ocupam a Sorbonne.
16: Paris – O Partido Comunista Francês pede a não participação do “aventureirismo” estudantil.
20: Paris – Paralisação quase total da França, devido à greve geral.
20: Bélgica, Alemanha Ocidental e EUA – Manifestações estudantis.
30: Paris – De Gaulle dissolve a Assembleia Nacional e convoca eleições gerais.
JUNHO
2: Brasil – A Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo é tomada pelos estudantes.
3: Paris – 80% dos trabalhadores franceses continuam em greve.
Rio de Janeiro – Greve de estudantes e professores da UFRJ, pela falta de verbas
4: Belgrado – Choques entre policiais e estudantes terminam com a morte de 38 pessoas.
5: EUA – O senador democrata Robert Kennedy, candidato à Presidência da República, sofre
atentado e morre no dia seguinte.
7: Tóquio – Protesto de estudantes contra a Guerra do Vietnã.
12: Paris – De Gaulle proíbe manifestações públicas em todo o território francês.
São Paulo – Polícia Federal invade o Teatro Ruth Escobar para impedir a apresentação de peça
censurada.
15: Salvador – Duas bombas são lançadas na Universidade Federal da Bahia (UFBa).
15: Buenos Aires, Ancara e Nairóbi – Protestos estudantis seguidos de choques com a polícia.
16: Paris – São retirados os últimos ocupantes da Sorbonne.
17: Paris – Assembleias operárias em toda a França decidem pela volta ao trabalho. Sem os
trabalhadores, os estudantes resolvem recuar. Tropas invadem a Sorbonne e desalojam centenas de
estudantes.
18: Montevidéu – Greve geral de 24 horas paralisa o Uruguai.
19: Rio de Janeiro – Violentos choques entre policiais e estudantes, com quatro mortes, mais de mil
prisões e centenas de feridos. A censura proíbe a divulgação de notícias sobre os acontecimentos.
22: Brasil – Estudantes da UnB ocupam o Congresso Nacional, protestando contra a intervenção
policial no campus da Universidade. Em São Paulo, um comando da futura Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR) invade o corpo da guarda do Hospital Militar, apropriando-se de 11 fuzis
automáticos.
25: Londres, Buenos Aires, La Paz e Lima – Protestos estudantis.
26: BrasilPasseata dos Cem Mil no Rio de Janeiro. Em São Paulo, um grupo da VPR põe em
movimento um carro-bomba contra o Quartel-General do II Exército, no Ibirapuera.
JULHO
1º: EUA e Suíça – Choques entre policiais e estudantes na Califórnia e em Zurique.
5: Brasília – Proibida a realização de manifestações e passeatas em todos os estados brasileiros.
9: Brasil – Censura proíbe duas peças: Um Show à Parte, de autoria coletiva, e O rei da vela, de
Oswald de Andrade.
12: São Paulo – Explosão de duas bombas, uma na estação ferroviária Roosevelt e outra na Estrada
de Ferro Santos-Jundiaí.
15: Paris – Jean-Paul Sartre acusa o Partido Comunista Francês de ter traído a Revolução de Maio.
16: Osasco-SP – Começa uma greve de 10 mil metalúrgicos, que dura cinco dias. A repressão é
violenta, com mais de 500 prisões.
19: Brasil – Passeata e comícios-relâmpagos de estudantes cariocas em apoio à greve de Osasco.
Artistas cariocas reúnem-se na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para protestar contra a
invasão do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, e espancamento de atores da peça Roda viva, por
membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).
23: Rio de Janeiro – É encontrada uma bomba na sede da ABI.
27: EUA – O Partido dos Panteras Negras prega a formação de guerrilhas negras num comício em
Cleveland.
29: EUA – Policiais de Boston dissolvem protesto hippie contra a Guerra do Vietnã.
30: México – Protesto estudantil na cidade do México é duramente reprimido pela polícia, com 10
mortes, 400 feridos e 300 presos.
31: Praga – Dirigentes soviéticos e tchecos se reúnem para discutir a Primavera de Praga.
AGOSTO
2: México – Estudantes marcham em protesto contra a invasão da Universidade do México.
6: Rio de Janeiro – Mais de 8 mil homens do Exército, Marinha, Aeronáutica e Polícia Militar ocupam
a cidade, com tanques e metralhadores de grosso calibre, para impedir passeata estudantil.
7: EUA – Choques raciais em Miami, com presos e feridos.
13: Belo Horizonte – Estudantes invadem a prefeitura, onde realizam comício.
Uruguai – Confronto entre estudantes e policiais, em Montevidéu, com mais de 20 feridos.
17: Rio de Janeiro – DOPS e Polícia Federal invadem a Faculdade de Letras da UFRJ.
20: Praga – Tropas do Pacto de Varsóvia, num total de 650 mil homens, invadem a Checoslováquia
opondo-se às reformas em curso: o Kremlin diz que agentes da Central Intelligence Agency (CIA)
estão operando no país.
23: Praga – Greves em vários pontos da Checoslováquia contra a invasão soviética.
Brasil Em São Paulo, estudantes do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo
(CRUSP) prendem seis agentes policiais, que são soltos depois de ataque da Polícia Militar.
24: Cuba – Em discurso pelo rádio, Fidel Castro apoia a invasão da Checoslováquia.
26: EUA – Choque entre policiais e hippies no centro de Chicago.
28: Brasil – Passeata de estudantes e jornalistas acaba com 500 detidos em São Paulo.
SETEMBRO
2: Brasília – O deputado Márcio Moreira Alves faz um veemente pronunciamento na Câmara Federal
em protesto pela invasão da Universidade de Brasília, dias antes. Propõe que a população boicote as
comemorações do 7 de setembro, como repúdio às repressões e torturas, responsabilizando as
Forças Armadas pela crise no país.
2: EUA – Líderes do Poder Negro, reunidos na Filadélfia, decidem boicotar as eleições presidenciais.
7: Brasil – Explosão de bomba no Colégio Brasil, no Rio de Janeiro. Suspeita-se da Tradição,
Família e Propriedade (TFP) ou do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).
19: México – Tropas do Exército, com armas pesadas e tanques, invadem a Universidade do México.
21: Uruguai – Novos confrontos entre policiais e estudantes, com mortes.
24: México – Choque entre estudantes e o Exército mexicano deixa 15 mortos na capital.
OUTUBRO
2: São Paulo – Choque entre membros do CCC, alojados na Universidade Mackenzie, e estudantes
da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia. Disparo de um membro do CCC mata o
secundarista Luís Guimarães. Após o choque, a polícia depreda o edifício da Faculdade de Filosofia.
4: São Paulo – 10 mil pessoas acompanham o enterro do estudante morto na véspera, e fazem uma
passeata em seguida, com várias prisões.
5: Lisboa – Choque entre policiais e estudantes, com presos e feridos.
8: São Paulo – Passeata de estudantes, contra o terrorismo do CCC, é duramente reprimida pela
polícia. A atriz Norma Bengel é sequestrada, supostamente pelo CCC.
12: Brasil – Em Ibiúna-SP, quase 800 universitários são presos no 30º Congresso da União Nacional
dos Estudantes (UNE). O DOPS proíbe a execução da música Caminhando, de Geraldo Vandré. Em
São Paulo, um comando da VPR executa a tiros o capitão norte-americano Charles Rodney
Chandler, agente da CIA, em atividade no Brasil.
14: Salvador – Cinco mil estudantes protestam contra a prisão dos congressistas da UNE.
18: Brasil – A censura proíbe a encenação de Roda viva, em todo o território nacional.
21: Japão – Mais de 700 mil estudantes e operários japoneses protestam contra a guerra do Vietnã e
contra os EUA.
22: Rio de Janeiro – Protesto de estudantes da Universidade do Estado da Guanabara é duramente
reprimido pela polícia e um estudante morre, com um tiro na cabeça. No dia seguinte, passeata de
protestos termina com dois mortos à bala.
26: Rio de Janeiro – Censura veta Show de Geraldo Vandré.
28: Recife – Casa de dom Helder Câmara é metralhada por membros do CCC.
NOVEMBRO
1º: Rio de Janeiro – Bomba destrói a Livraria Forense.
4: Recife – A polícia invade e metralha a Universidade Federal de Pernambuco.
5: EUA – Richard Nixon é eleito presidente.
7: Rio de Janeiro Explosão de duas bombas: uma no consulado da União Soviética e outra no
depósito do Jornal do Brasil.
13: Brasil – Tiroteio em Aparecida-SP entre a polícia e guerrilheiros da Ação Libertadora Nacional
(ALN), chefiados por Carlos Marighella, que foge ferido. Em Belo Horizonte, pai de estudante preso
sofre um infarto ao ver o filho, que foi barbaramente torturado.
15: Brasil – CCC depreda o Teatro Opinião, no Rio de Janeiro.
DEZEMBRO
2: Rio de Janeiro – Bomba explode no Teatro Opinião, no qual está havendo apresentação de um
Show de Geraldo Vandré.
5: Madri – Protestos estudantis contra a violência policial.
7: Rio de Janeiro – Bombas explodem no jornal Correio da Manhã e no Diretório Acadêmico da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual da Guanabara (UEG).
12: Brasília – O Congresso Nacional não concede licença para que o governo processe o deputado
Márcio Moreira Alves.
13: Brasília – É decretado o AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional.
25: EUA – Astronautas da Apolo 8 realizam dez voltas em torno da Lua.
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