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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Márcia Campos de Oliveira
Tecendo Histórias:
Intervenção clínica em uma
UTI semi-intensiva pediátrica
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Márcia Campos de Oliveira
Tecendo Histórias:
Intervenção clínica em uma
UTI semi-intensiva pediátrica
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Tese apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de
Doutor em Psicologia Clínica – Área de
Concentração: Práticas Clínicas – sob a
orientação do Prof. Dr. Gilberto Safra.
SÃO PAULO
2009
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Banca Examinadora
______________________________________
______________________________________
______________________________________
______________________________________
______________________________________
AGRADECIMENTOS
À mamãe pelo amor incondicional e por permitir o meu encontro com o
pensamento de Winnicott. Ao Celo, pela companhia silenciosa.
Ao Cris, pelo amor, pela leitura cuidadosa e atenta e pela inefável torcida.
Aos familiares e amigos pela cooperação e por suportar a ausência, o
distanciamento e o silêncio desse caminhar.
À tia Neuza, pela palavra certa, no momento certo. À Fátima, pela presença
nos instantes finais.
Ao Dr. Eugênio pelo gesto humano na clínica médica, por semear a
esperança e, de maneira singular, acolher o desespero.
Ao admirado orientador, Gilberto, pela sustentação dessa pesquisa e dessa
pesquisadora e por me encorajar a fazer falar as minhas próprias vísceras!
Ao Fabiano, pelos acontecimentos clínicos, pela escuta e pelo holding.
Aos colegas da PUC e do CEP, pelas trocas.
Ao professor Dr. Renato Mezan por incentivar a minha clínica na cidade de
São Paulo.
Ao Ernesto Duvidovich, pelos encontros criativos na supervisão, pelo diálogo.
Aos doutores da Banca por me dar a honra de tê-los como interlocutores.
Ao hospital participante, por encarar o desafio.
À equipe de saúde, por ser intérprete.
Em especial, às crianças e mães na UTI por tanto me ensinar.
Aos que acreditam na
força das histórias e dos
encontros na saúde.
No abismo do nada: o sonho!
Gilberto Safra
OLIVEIRA, Márcia Campos de. Tecendo Histórias: intervenção clínica em uma UTI
semi-intensiva pediátrica. 2009. 138 f. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica) -
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, São Paulo.
RESUMO
A instituição hospitalar transplanta a doença para si, expropriando-a do corpo do
paciente. Ao fazê-lo, cria uma dinâmica que favorece o tratamento especializado.
Sendo assim, o paciente é visto de forma fragmentada por Médicos, Enfermeiros,
Auxiliares, Nutricionistas, dentre outros cuidadores. Com o avanço técnico o
diagnóstico tem se tornado próximo ao absoluto e a terapêutica cada vez mais
segura, características bastante valorizadas. Não raro, veiculam-se na mídia
propagandas hospitalares da seguinte natureza: temos a melhor tecnologia para
cuidar de seu filho. Mais especificamente em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) o
que comumente se vive é privação, adoecimento e morte. Nesse sentido, o aparato
tecnológico e a precisão médica podem fazer a diferença entre a vida e a morte do
paciente. Assim sendo, a UTI se organiza por meio da permanência de aparelhos
ligados, assepsia, instabilidade e, sobretudo, urgência. No entanto, apenas o
cuidado técnico não dá conta de acolher o imponderável, as contradições, as
frustrações e demais aspectos próprios da condição humana que também estão
presentes no cotidiano da UTI, os quais, apesar de existirem, nem sempre podem
emergir. Reconhecer a necessidade de humanizar a atenção hospitalar tornou-se
política pública no Brasil a partir de 2001. Isso incentivou a outros profissionais
estudar o tema. Esse debate põe em questão várias atitudes e procedimentos
hospitalares e, sem dúvida, provoca confrontos políticos, ideológicos e
epistemológicos. Diante desse contexto, essa pesquisa contribui com essa
discussão, pois se preocupou em compreender um modo clínico de intervir nesse
ambiente. Para tal, utilizei-me do método fenomenológico-hermêutico de
investigação. Visando compreender as vivências em UTI recorri principalmente ao
pensamento e a clínica de Donald D. Winnicott e também de Gilberto Safra os quais
produziram ressonâncias no meu estilo clínico. De início, o procedimento consistiu
em disponibilizar-me para narrar contos de fadas escolhidos pela criança internada.
Contudo, no decorrer da pesquisa percebi, na medida em que transitava pela UTI,
que a potencialidade do encontro com a criança, com os pais acompanhantes e com
a equipe se tornou algo fundamental na intervenção. Assim sendo, aos poucos os
contos de fadas foram sendo deixados de lado e passei a ouvir histórias das
pessoas na instituição. Desse modo, ocorreu a passagem do uso de história para o
espaço potencial como procedimento. Dentre as vivências, discuti quatro situações
clínicas envolvendo crianças hospitalizadas, mães e pais acompanhantes, equipe de
saúde e a minha própria transformação como pesquisadora empática ao sofrimento
experimentado em UTI.
Palavras-chaves: UTI infantil; espaço potencial, comunidade de destino;
intervenção clínica.
OLIVEIRA, Márcia Campos de. Weaving histories: clinical intervention in a child´s
semi-intensive care unit. 2009. 138 f. Doctors Degree thesis. (Doctorate on Clinical
Psychology ) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, São Paulo.
ABSTRACT
The hospital institution transplants the illness for itself, expropriating it of the body of
the patient. On doing so, it creates a dynamics that favors the specialized treatment.
Being thus, the patient is seen as a broken up form to Doctors, Nurses, Assistants,
Nutritionists, among others. With the advanced technician the diagnosis has become
next to the absolute and the therapeutical performance even more secure,
characteristics sufficiently valued. Not rare, hospital advertisements of the following
nature are propagated in the media:” we have the best technology to take care of
your children”, more specifically in intensive care unit (ICU). But commonly the
treatment is made of privation, illness and death. Being so, the technological
apparatus and the medical precision can make the difference between the life and
the death of the patient. Thus being, the ICU is organized to be a way of permanence
of the patient on devices, asepsis, instability and, over all, urgency. However, only
the technical care of the patient is not able to embrace the imponderable. The
contradiction, the frustration and too many other proper aspects of the human being
condition that are also part of the day of the one in the ICU, which, although exists,
is not always able to emerge. To recognize the necessity of humanize the hospital
attention became a public politics in Brazil since 2001. This stimulated other
professionals to study the subject. This debate puts in question some attitudes and
hospital procedures and, without a doubt, it provoked, ideological, epistemological
and political confrontations. Ahead of this context, this research contributes to this
quarrel; therefore it was worried about understanding a clinical way to intervene in
this environment. For such, I made use of the phenomenological -hermetical method
of research. Aiming to understand the experiences in IUC I mainly appealed to the
thought and the clinic of Donald D. Winnicott and also of Gilberto Safra which had
resonances in my clinical and procedural style. At first, the proceeding consisted of
making me available to narrate fairy tales to hospitalized children. However, as the
research evoluted, I realized, after some time in the ICU, that the potentiality of the
meetings with the child, their parents accompanying and the medical staff, became
something fundamental in the intervention. Hereupon, in a slow pace, the fairy tales
were put aside, and I began to listen to the stories of the Institution’s personnel.
Thereon, the transition for the application of fairy tales to the potential space as a
procedure, took place. Amongst the undergone experiences, I had examined four
clinical situations involving hospitalized children, accompanying parents, health care
team and my own transformation as a researcher sympathetic to the undergone
suffering in the ICU.
Key Words: Infantile UTI; potential space, community of destiny; clinical intervention.
SUMÁRIO
1. ERA UMA VEZ .......................................................................................................8
1.1 - O encontro com o objeto .................................................................................8
1.2 - O caminho: ....................................................................................................17
1.2.1 - Natureza da pesquisa: o método ............................................................17
1.3 - O caminhar: os passos e os procedimentos..................................................18
1.3.1. A instituição hospitalar .............................................................................18
1.3.2 - Questões éticas: trâmite .........................................................................20
1.3.3 - Após a permissão legal, como fui recebida pela instituição?..................21
1.3.4 - Os desencontros.....................................................................................23
1.3.5 - Participantes da pesquisa.......................................................................23
1.3.6 - Como me aproximei dos participantes?..................................................23
1.3.7 – O que oferecer? .....................................................................................25
1.3.8 - Por que as fadas?...................................................................................25
1.4 – Outras histórias em UTI: antecessores.........................................................26
1.4.1 - UTI: a criança, a família e a equipe,........................................................27
1.4.2 – UTI: lugar de cuidados ...........................................................................32
1.4.3 - O que diz a criança?...............................................................................39
1.4.4 - Espaço para o lúdico...............................................................................44
1.5 – Essa travessia ..............................................................................................49
2. DA HISTÓRIA AO ESPAÇO POTENCIAL COMO PROCEDIMENTO CLÍNICO ..51
2.1 - A vida com histórias.......................................................................................53
2.2 - Clínica com histórias......................................................................................65
2.3 - O narrar.........................................................................................................70
3. A CONTRIBUIÇÃO DE WINNICOTT ....................................................................76
3.1 - Revisitando o Espaço Potencial ....................................................................76
3.2 – Consultas Terapêuticas................................................................................79
3.3 – O Gesto ........................................................................................................83
4. VIVÊNCIAS EM UTI..............................................................................................87
4.1 - O não.............................................................................................................90
4.2 – Príncipes e princesas....................................................................................94
4.3 – Histórias de uma mãe...................................................................................96
4.4 – Criando histórias...........................................................................................99
4.4.1 - A rotina no hospital .................................................................................99
4.4.2 - Um momento para história....................................................................101
4.4.3 - Misturando histórias..............................................................................103
4.4.4 - Segundo encontro.................................................................................107
5. LEITMOTIV .........................................................................................................112
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................124
REFERÊNCIAS.......................................................................................................127
8
1. ERA UMA VEZ ...
Nesse texto procuro abordar algumas questões preliminares e fundamentais
na discussão dessa tese. Neste sentido, tive por objetivo circunscrever o objeto,
revelar o método de investigação, os passos e os procedimentos utilizados. Pretendi
resgatar o ponto de partida dessa pesquisa ao contextualizar e ao posicionar esse
estudo à minha biografia. De maneira pessoal, esforcei-me para reconhecer o
significado dessa investigação. Também procurei subsidiar ao leitor a arquitetura da
tese para melhor acompanhamento das reflexões subseqüentes.
1.1 - O encontro com o objeto
De acordo com McDougall (1989)
1
, na redação de uma obra em psicanálise,
o autor, de certa forma, está nesse momento se publicando e tornando visível um
fragmento de si. Assim sendo, para iniciar esse texto considero essencial narrar a
minha apropriação da temática ofertada na presente investigação
2
. Para isso,
voltarei ao tempo da graduação, mais especificamente ao final do primeiro ano do
curso, em 1998 em que circunstâncias de absoluta indeterminação e
imprevisibilidade levaram-me a participar de um recém projeto de extensão com o
objetivo de estreitar os laços da Universidade com o Hospital. Nessa época, o intuito
dos estagiários era o de promover melhor qualidade de vida às crianças
hospitalizadas através da criação de momentos lúdicos. Alguns meses após a
1
McDOUGALL, Joyce. Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalítica. Porto
Alegre: Artes Médicas,1989.
2
Nas aulas da disciplina Produção de conhecimento – clínica winnicottiana, ministrada pelo professor
Gilberto Safra, na PUC/SP apontou-se para a questão da subjetividade do pesquisador que interfere,
sustenta e/ou gera o problema da pesquisa. Porém, no trabalho científico há necessidade de se
passar desse nível de conhecimento/saber para alcançar o estatuto de intersubjetividade. O desafio
desse texto é o de objetificar a pequisa, tornar vísivel essa transposição, do subjetivo para o
intersubjetivo, e pôr em diálogo a pesquisa com a comunidade científica.
9
consolidação e a melhor estruturação do projeto inauguramos uma brinquedoteca.
Deste modo, acreditávamos que um lugar para o lúdico tinha sido fundado. Na
brinquedoteca, as atividades sugeridas às crianças - jogos, dramatizações,
desenhos temáticos - eram previamente organizadas. O planejamento das
atividades visava garantir a descontração e o entretenimento na rotina hospitalar.
Em princípio, para nós estagiários descontrair significava o afastamento temporário
do estar doente e internado. Porém, apesar da cautela da prévia programação,
éramos frequentemente surpreendidos durantes as atividades lúdicas. Não raro, as
crianças propunham em suas brincadeiras conteúdos referentes à internação em
oposição aos temas dados pelos estagiários. Aos poucos, no meu cotidiano no
hospital, minhas convicções abalaram-se. O alvo do projeto era o de fazer a criança
esquecer temporariamente a vivência da internação, porém a demanda da criança
era justamente falar ou brincar sobre temas ligados a experiência hospitalar. Percebi
que o ideal dos integrantes do projeto brinquedoteca hospitalar nem sempre
estavam atentos às necessidades da criança internada, ou seja, a de falar sobre a
hospitalização. Diversas situações vividas com os pacientes, com as
mães/acompanhantes e na relação com a equipe médica produziram em mim
indagações incognoscíveis. Desliguei-me desse projeto e escolhi prosseguir pelo
caminho da pesquisa.
Na iniciação científica, com apoio do CNPq, desenvolvi o projeto intitulado A
ludicidade na pediatria (2000-2002); objetivei compreender o brincar da criança
hospitalizada. O universo dos sujeitos participantes era apenas o da enfermaria.
Certa vez, surpreendi-me com um inesperado pedido da equipe médica para eu
conversar com uma mãe acompanhante do filho de quatro anos, em coma, na
Unidade de Terapia Intensiva. Segundo os profissionais essa mulher não se
10
alimentava, não dormia, estava muito grudada à criança e não admitia que seu filho
estivesse em coma. Tal contexto despertou a atenção das pessoas envolvidas com
o paciente ao reconhecerem que a mãe também necessitava de cuidados. Para mim
esse pedido inédito e urgente foi entendido como um marco na minha história nesse
hospital. Era o primeiro passo vindo da Instituição. O aceite foi um arranjo recíproco:
por um lado, a atuação com as crianças e mães mediada pelo brincar parecia
produzir efeitos terapêuticos supostamente observáveis pela equipe médica o que
favoreceu a demanda institucional. Por outro, a minha disponibilidade cooperou para
aceitar aquele desafio.
No romper da situação o que eu poderia fazer ?
Os referenciais conquistados no percurso epistemológico mostravam-se
aparentemente medíocres para aquela ocasião. Havia-me desviado do caminho da
pesquisa. Estava sem clareza da condução da situação. Movida de hesitação fui até
a UTI conhecer a mãe e convidei-a para conversar em outro local. Era fim de tarde,
período em que a movimentação de pessoas que circulavam no hospital diminuía –
menor rotatividade da equipe de saúde, o horário de visita acabara, a troca de
acompanhante havia sido feita, os estagiários encerraram a atuação - portanto, foi
exequível conseguir uma sala reservada para isso.
As palavras daquela mãe pareciam faltar-lhe. Encorajei-a a desenhar o filho.
Prontamente ela me questiona se era para desenhá-lo como ele era ou como ele
estava. Com base nessa pergunta, percebi que ela podia sim reconhecer a diferença
no estado do filho. Aliás, foi ela mesma que me apontou essa diferença para mim.
Isso me surpreendeu, pois, havia recebido outra informação dos profissionais, a de
que ela não admitia a idéia do filho em coma. Compreendi que aquilo que até o
momento não podia ser comunicado por palavras podia ser representado
11
graficamente. O seu desenho foi demasiadamente expressivo, pois, apresentava a
imagem de um filho distorcido. Ela contornou várias vezes os olhos desenhados
dizendo que eles deveriam estar bem abertinhos. Entendi esse desenho como a sua
expressão do desejo de ter novamente um filho de olhos bem abertos, bem vivo, o
oposto da situação real. Nas próximas conversas, em torno de três dias
subseqüentes, ela retomou a fala e em seu discurso articulou novos temas.
Diferentes conteúdos surgiram, tais como a saudade dos outros filhos, do marido, a
culpa em deixá-los sozinhos e também expressou preocupação em retomar o seu
cotidiano. Ela narrava-me a gestação daquele filho na tentativa de encontrar algum
detalhe esquecido que justificasse o defeito congênito no intestino o qual provocara
aquele confinamento e toda complicão de uma cirurgia corretiva. Vale dizer que, o
período de internação deixou-a mais de três meses fora de sua casa; isso
representava uma distância geográfica de muitos quilômetros pois, ela e sua família
moravam noutro Estado. Num dado estágio de nossas conversas, que passaram
acontecer em parte na sala reservada e noutra na própria UTI, ela acariciou o filho
dizendo-lhe que ele já havia sofrido demais e, que ele já poderia ir. Observei
alteração na aparelhagem junto ao leito do garoto. Ele havia morrido. Enfermeiras e
auxiliares chegaram e houve grande movimentação no quarto. Despedi-me da
mulher e saí em silêncio.
Testemunhar a cena foi, para mim, perturbador. Fiquei, sem dúvida,
questionando-me se havia sido apenas uma coincidência a mãe dizer que seu filho
poderia ir e ele morrer. O fato é que essa experiência tornou-se inesquecível.
Perguntava-me se o investimento libidinal daquela mãe no filho o mantivera em vida
até a sua renúncia. O que consistiria uma ligação tão primitiva, de ordem vital.
Também me inquietei com a hipótese de uma profunda comunicação não verbal
12
entre a díade. Guardei em mim essa lembrança que remetia a algo da urgência e da
intensidade permeando as relações humanas na UTI. Para compreender aquele
fenômeno eu não obtivera respostas, mas tais questões persistiram de forma muito
presente no decurso das minhas futuras investigações. Sem justificativa plausível
essa vivência não foi compartilhada com a equipe médica. Naquele momento, era eu
que estava sem palavras. Após esse desfecho prossegui com a pesquisa sobre o
brincar na enfermaria. Para McDougall (1989)
3
, justamente nos momentos de crise,
daqueles em que os obstáculos precisam ser removidos a fim se serem
reencontrados é que surge a necessidade de escrever
4
. Tive a impressão de
incompletude e precisei continuar. Ficou claro para mim que a escrita era um
caminho de elaboração e de produção de conhecimento.
Após dar outros passos no caminho investigativo teórico e clínico dessas
situações vividas em UTI, penso a cena da relação íntima mãe-filho, que para mim
foi perturbadora - a mamãe dizendo que o filho poderia ir e a sua morte - assentada
na compreensão de um acontecimento sintônico entre a mãe que sustentou
emocionalmente o filho de um lado e, de outro a emersão do gesto espontâneo da
criança, nesse caso, morrer.
Durante o mestrado
5
, de 2002-2005, defendi a dissertação intitulada Brincar
no hospital: um encontro possível, com o apoio da CAPES. Dediquei-me à
compreensão das trocas afetivas ocorridas na situação hospitalar. Nesse trabalho, o
brincar foi recuperado na sua essência: o vínculo. No processo de investigação,
deparei-me com a leitura do livro Mãe de UTI: amor Incondicional, de Maria Júlia
3
McDOUGALL, Joyce. Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalítica. Porto
Alegre: Artes Médicas,1989.
4
Ver: MEZAN, Renato. Escrever a Clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. 478p. O autor
reconhece pelo menos três funções da escrita: 1) catarse/elaboração; 2) introdução da justa medida e
3) restauração narcísica.
5
OLIVEIRA, Márcia Campos de. Brincar no hospital: um encontro possível. 2005. 165 f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia) – Universidade Estadual Paulista, Assis, 2005.
13
Miele
6
. A autora relata a sua experiência de ter uma filha, desde o nascimento, em
UTI. De certa forma, no livro, Miele expõe sua própria internação, como
acompanhante, por mais de um ano. Segundo ela, a situação provocou uma perda
gradativa de sua identidade: Miele, de pessoa, passou a ser mãe de UTI,
personagem. A autora nos conta que em diversos momentos de sua estadia
hospitalar sentiu-se sem expectativa de retorno ao seu cotidiano. Confessa o
incômodo das intrusões na intimidade da relação mãe-bebê, atravessado pelo saber
médico. Segundo a autora, certa vez uma pediatra afirmou: “Olha como os
parâmetros dela melhoram no colo da mãe!”, objetivando essa interação subjetiva. O
que particularmente chamou-me a atenção foi o fato de Maria Júlia ter embalado a
filha, no momento de sua morte, em seus braços. A conexão com o evento
supracitado foi imediata. Pareceu-me outro encontro sintônico de sustentação
emocional da mãe durante a morte de um filho.
O período de pesquisa empírica, cuja interação com os pacientes era
mediada por brincadeiras livres, foi denominada por mim de encontro: a expressão
da intersubjetividade. Certo encontro, com um menino de quatro anos e dez meses,
com o pseudônimo de Guilherme, levou-me a pensar na utilização de seu repertório
cultural para falar de si mesmo através das histórias. Ele confessou não querer
brincar naquele dia e sim contar e desenhar a história dos três porquinhos. Ao
desenhá-la, contou-me que a casinha mais forte era a do irmão – horas antes, o
irmão adolescente o visitara. Tal visita deve ter provocado em Guilherme o confronto
com dualidades: forte/fraco, grande/pequeno, doente/saudável. Penso que o garoto
recorreu à história, pois, parecia que ela podia oferecer-lhe moldura para sua
angústia, mobilizada ou potencializada, naquele dia.
6
MIELE, Maria Júlia. Mãe de UTI: amor incondicional. São Paulo: Terceiro Nome, 2004. 176p.
14
Noutra circunstância, ao contar a história da Cinderela na enfermaria para
crianças e mães, num quarto coletivo, admirei-me com a atitude de uma mãe. Antes
da história ela dizia ao filho, em tonalidade severa, para ele melhorar logo pois, ela
já não agüentava mais estar naquele hospital. Após a história, a mãe docilmente
referiu-se ao garoto como meu príncipe. Houve instantaneamente uma mudança
brusca de sua atitude em relação ao filho.
Na minha dissertação de mestrado não havia conseguido pensar o uso das
histórias como procedimento com crianças internadas porque, naquela época, tais
vivências eram percebidas por mim de modo isolado e não constituíam em si um
objeto de pesquisa. McDougall considera:
Dizem que se alguém olhar para alguma coisa durante muito tempo
essa coisa se tornará interessante. Embora estejamos sempre
sozinhos na observação de nossos pacientes desesperados e
desafetados e embora saibamos que ninguém pode vir ajudar-nos,
ao menos temos a possibilidade de partilhar nossa inquietude, nosso
sentimento de incompetência e nossa incompreensão. É por isso que
escrevemos artigos, organizamos colóquios e publicamos livros! É
graças a isso que tanto os analistas quanto os analisandos – sem
esquecer aqueles a quem a questão interessa e que, não sendo
analisandos nem analistas (mas talvez capazes de serem seus
próprios analistas!) – podem compartilhar nossa experiência clínica e
nossas pesquisas teóricas. Mesmo quando os pacientes que
resistem ao processo analítico despertam em nós o terror de uma
experiência interminável, podemos ser-lhes reconhecidos por terem
aberto diante de nossos olhos um campos de pesquisa ainda intacto.
(MCDOUGALL, 2000, p. 133)
7
.
Os questionamentos advindos das situações presenciadas no hospital
somados a minha curiosidade permitiu-me reposicionar de forma inédita naquilo que
eu desconhecia e mobilizou a vontade de conhecer um pouco mais sobre esse
tema. Continuei atenta e a problemática tornou-se interessante, como aponta
McDougall. Esse acontecimento possibilitou que essas perguntas e reflexões aos
7
McDOUGALL, Joyce. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
15
poucos se tornassem passíveis de ser compartilhadas. Percebi-me abastecida por
essas vivências, então, encorajei-me a prosseguir. Dessa vez, no doutorado (2005),
delimitei como tema de investigação Contos de Fadas em UTI Pediátrica. No projeto,
procurei destacar a história como facilitadora do acesso à mediação cultural
resultando num enfrentamento da criança, mais fortalecida psiquicamente, da
experiência de internação em UTI. Ao destacar esse tema suspeitei ter reunido as
vivências anteriores ao desejo de compreender melhor essa questão. Ao ingressar
no doutorado eu estava plenamente animada com a pesquisa no sentido de
acreditar que meus prévios conhecimentos facilitariam a criação da tese. Contudo,
as discussões nas disciplinas, os impasses advindos do trabalho empírico, a minha
própria análise pessoal, contribuíram para o reconhecimento de que a promessa era
demasiadamente pretensiosa. Novamente, as convicções foram abaladas e percebi
que havia muito que investigar. Senti-me atônica diante do projeto que eu mesma
redigi. Dessa forma, reconheci-me amante infeliz nas palavras de Nietzsche:
A intranqüilidade do descobrir e adivinhar tornou-se tão atraente e
indispensável para nós quanto o amor infeliz para aquele que ama:
que ele por nenhum preço trocaria pelo estado da indiferença; - sim,
talvez nós sejamos amantes infelizes! O conhecimento, em nós, se
transmudou em paixão, que não se intimida diante de nenhum
sacrifício e no fundo nada teme a não ser sua própria extinção.
(NIETZSCHE, 1999, p.167).
8
Recentemente, em análise, recordei-me de uma lembrança infantil: o cenário
apareceu um pouco turvo: os meus pais, também estavam pessoas com roupas
largas, como uma espécie de balão, de cor verde clara. Tais pessoas, deste modo
vestidos, assemelhavam-se a astronautas. O entorno tinha um aspecto um tanto
8
NIETZSCHE, Friedrich . Obras Incompletas. Coleção Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1999.
16
pálido. A minha hipótese é a de que tal cena tenha se dado em um hospital. É
provável que tenha sido a minha primeira visita a essa instituição para ver o meu
irmão mais novo. Nessa época eu deveria ter aproximadamente uns quatro anos de
idade. Ao trazer à memória tais experiências imediatamente pude associá-las com
uma crença na infância de ter visto astronautas, o que causou uma série de
situações constrangedoras com os meus amiguinhos, pois, eles duvidavam de mim.
De qualquer maneira, fica evidenciado um registro lúdico dessa minha experiência
em hospital. Suponho que deve ter sido muito doloroso para mim não compreender
aquele lugar, a angústia dos meus pais e a minha própria angústia. Penso que uma
alternativa que eu tive para enfrentar esse fato foi o de recorrer a uma interpretação
lúdica da hospitalização. Pergunto-me, nesse momento, se seria esse registro o que
eu busco propiciar nessa pesquisa?
Com base nessa pergunta, a qual evoca a minha aproximação ao tema
proposto, reconheço como ponto de partida dessa tese pelo menos dois caminhos
distintos. O primeiro remete a um enfoque acadêmico da minha vivência em hospital.
Na graduação, primeiramente como voluntária no ano de 1998 em seguida como
aluna fazendo extensão universitária durante o ano de 1999. No período de 2000-
2002 participei de iniciação científica. Conclui o mestrado em 2005 e no mesmo ano
ingressei no doutorado. O segundo caminho refere-se a ter o hospital como um lugar
no meu cotidiano durante a infância e a adolescência. Desse modo, algo da minha
pessoalidade é marcada por características próprias de um hospital: pelo seu cheiro,
os seus ruídos, as suas luzes. Assim sendo, a instituição hospitalar tornou-se algo
importante na minha vida que me motivou compreender e intervir nessa instituição.
Todas essas experiências se juntaram - a não compreensão do fenômeno
vivido junto com a mãe ao ver/permitir a morte do filho em UTI; o relato de Maria
17
Júlia Miele – mãe de UTI; ver Guilherme recorrer à história dos três porquinhos; a
mudança de atitude da mãe para com o filho após ouvir a história da Cinderela; o
meu registro lúdico, na infância, na difícil situação de uma visita a um hospital -
assim, me surgiu a primeira versão do objeto dessa tese: o procedimento
interventivo de contar histórias junto à criança na UTI.
Nesse sentido, o desafio da pesquisa se iniciou ao buscar compreender o
procedimento interventivo de contar histórias para as crianças em UTI. No entanto,
ao longo do percurso o que se passou é que foi se estabelecendo um trabalho
interventivo, numa modalidade clínica semelhante às consultas terapêuticas, em que
foi possível estabelecer na UTI um campo (espaço potencial) em que as angústias
puderam ser sustentadas.
Diante do exposto, posso afirmar que escrever essa tese representa a
possibilidade de reunir experiências pessoais, clínicas e teóricas e articulá-las
pautada no rigor científico da academia. Desse modo, despertei-me nas palavras de
Zygouris (2001)
9
ao afirmar que as nossas feridas são também o nosso talento.
1.2 - O caminho:
1.2.1 - Natureza da pesquisa: o método
Segundo Rezende (1993)
10
, uma das possibilidades de pesquisa em
psicanálise é a de investigar fenômenos do mundo vivido. A atitude de quem pensa
9
ZIGOURIS, Radmila. Jornal de Psicanálise. Instituto de Psicanálise – SBPSP. A supervisão, vol. 34,
2001, n.62/63.
10
REZENDE, Antonio Muniz de. A investigação em Psicanálise: exagese, hermenêutica e
interpretação. In: SILVA, Maria Emília Lino da (coord.) Investigação e Psicanálise. Campinas: Papirus,
1993. p.103-119.
18
as próprias vivências caracteriza-a de cunho hermenêutico. Reconheço esta
pesquisa de natureza hermenêutica
11
.
A primeira etapa da pesquisa de campo consistiu-se numa espécie de
vivência antropológica na qual procurei conhecer um pouco da rotina hospitalar. Vale
lembrar o fato da minha presença como observadora ter interferido no cotidiano e
também da minha leitura do ambiente ser afetada pela presença das pessoas que
transitavam pela instituição. Assim sendo, não farei uma análise detalhada da rotina,
da organização do ambiente e de outras informações desse período. Não fui
rigorosa nesse período de vivência antropológica, eis que me deixei ser afetada
esteticamente pelo estar na UTI. Apenas estive no hospital e aos poucos fui tendo
que perceber os limites e possibilidades de minha intervenção. De antemão,
acreditava que ouvir histórias podia dar contorno às angústias da criança internada
e, com base em Safra, intui que ao oferecer a história o ouvinte poderia –
“transformar suas experiências em elementos toleráveis e passíveis de serem
colocados sob o domínio do seu gesto” (SAFRA, 2005, p. 47)
12
.Contudo, outras
experiências significativas ocorreram e que nada tinham a ver com o contar
histórias. A hermenêutica me ajudou a pensar as transformações ocorridas durante
essa investigação. No papel de pesquisadora me permitir ser usada pela criança,
pelos acompanhantes e profissionais num ambiente de holding.
1.3 - O caminhar: os passos e os procedimentos
1.3.1. A instituição hospitalar
11
Agradecimentos a Professora Dra. Maria Lúcia Vieira Violante por possibilitar uma discussão
fecunda acerca do método na pesquisa científica em sua disciplina Seminários de Pesquisa.
12
SAFRA, Gilberto. Curando com histórias: a inclusão dos pais na Consulta Terapêutica. São Paulo:
Sobornost. 2005. 98p.
19
Uma das significativas dificuldades que eu tive referiu-se ao local para contar
histórias pois, anteriormente, a minha experiência ocorrera num hospital no interior
do Estado de São Paulo – no período de 1998 a 2005. Recém chegada à capital, me
vi sem precedentes para realizar o trabalho empírico. Qual critério para definir a
Instituição? O árduo propósito foi alcançado ao estabelecer para mim os seguintes
critérios como condições essenciais para a pesquisa empírica:
1) humanização - pois acreditava que um hospital humanizado teria um outro
olhar para a criança e poderia dar-lhe voz e vez através das histórias.
2) localização – por não conhecer muito bem a cidade procurava algo mais
próximo ou familiar possível.
3) disponibilidade da instituição – condição necessária para a realização da
pesquisa.
Por volta de três contatos não foram frutíferos, pois o último critério não podia
ser contemplado. Nessa busca cheguei a uma Instituição. Ela encontra-se situada
em região nobre da cidade, não atende pacientes do Sistema Único de Saúde,
somente particular e convênio e sua gestão é de natureza privada.
O primeiro contato aconteceu via telefone para a responsável pela UTI
pediátrica, em abril de 2006. Após marcar uma conversa no próprio hospital para a
apresentação da pesquisa empírica fui aconselhada a recorrer às instâncias éticas
para o efetivo aceite institucional. Para o encerramento da pesquisa entreguei
relatórios parciais do período de envolvimento com a instituição. Alem disso, optei
por um contato telefônico com o representante do Comitê de Ética porque, por um
instante, procurei pensar do ponto de vista do hospital. Ao pensar assim, me vi como
passageira na instituição uma vez que não possuo vínculo trabalhista. Ao telefonar
13
13
Vale dizer que o telefonema abriu a possibilidade para encontros informais na UTI para conversas
sobre a tese. Poderia entender isso como desburocratização do vínculo?
20
foi possível compartilhar, de modo menos burocrático, as reflexões evocadas a partir
da construção dessa tese.
1.3.2 - Questões éticas: trâmite
De acordo com as Resoluções CNS 196/196 e 251/97 do Conselho Nacional
de Saúde a pesquisa que envolva direta ou indiretamente seres humanos deverá ter
a anuência de um Comitê de Ética em Pesquisa para o seu início. Para atender as
normas do Ministério da Saúde e da Instituição contatada, submeti o projeto ao
Comitê de Ética em Pesquisa, desse hospital, com os devidos protocolos, em
setembro de 2006. Somente em março de 2007 recebi o aceite condicional para
realizar a coleta de dados. Portanto, deveria:
a) solicitar autorização à Instituição para coleta de dados na UTI-Infantil, pois
o período seria relativamente longo e com horários flexíveis mediante disponibilidade
da criança;
b) prezar pela liberdade do sujeito de se recusar a participar da pesquisa ou
mesmo retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, sem penalização
alguma e sem prejuízo ao pesquisado;
c) garantir o sigilo que assegure a privacidade do sujeito quanto aos dados
confidenciais envolvidos na pesquisa;
d) não compensar financeiramente os participantes da pesquisa, como
também não onerá-los a qualquer título;
e) manter o Comitê informado sobre o trabalho realizado, encaminhando-lhe
relatório de acompanhamento e, ao final, o resultado da pesquisa inserido no
contexto do projeto.
21
As indagações dos pareceristas no trâmite do projeto consistiam em
esclarecer o motivo pelo qual eu pretendia realizar uma intervenção dessa natureza
em um Hospital que não possuía serviço de apoio psicológico aos internos. Fui
questionada sobre uma informação que desconhecia. Na época, a falta de um setor
psicológico não me parecia um obstáculo.
Além disso, foram minuciosos na busca de esclarecimentos acerca da minha
conduta na instituição, tendo exigido, em documento adicional, o meu compromisso
de ser ética, o que foi por mim atendido.
Também questionaram os motivos que me levaram a escolher esse hospital e
não outro. Portanto, tive que explicitar os meus critérios para a instituição.
Argumentei com o Comitê que a minha escolha do hospital, dentre outros critérios,
pautava-se na sua própria propaganda: Hospital Humanizado, retirada de jornal de
volumosa circulação. Desse modo, devolvi-lhes a promessa de ser um hospital
diferenciado, o que se tornou um atrativo para o procedimento que eu oferecia.
Algum tempo depois, ao reler a propaganda, vi que ela versava sobre Hospital
Humanizado a seguinte idéia: temos a melhor tecnologia para cuidar do seu filho.
Esse fato me levou a pensar na extensão do que habitualmente se denomina
humanização hospitalar. Mais adiante, apresentarei, através de pesquisa
bibliográfica, outras abrangências desse termo.
1.3.3 - Após a permissão legal, como fui recebida pela instituição?
Tanto a responsável da Unidade como a parecerista do Comitê de ética me
receberam no próprio ambiente da UTI. Esse contato, agora oficial, teve um caráter
22
exploratório. Antes de contar histórias eu precisava conhecer um pouco da rotina na
UTI.
A UTI infantil, com aproximadamente 20 leitos, divida-se em semi-intensiva e
intensiva. Havia a possibilidade de acompanhante da criança em tempo integral –
24h por dia - algumas crianças eram moradoras. A proposta de intervenção ficou
estabelecida na Semi-intensiva. Os leitos da Semi eram individuais. A porta do
quarto, na semi, estava sempre fechada parecendo preservar a privacidade da
criança e do acompanhante. A visita acontecia no período da tarde. As crianças
estavam acompanhadas com adulto responsável. Optei por não oferecer as histórias
às crianças moradoras. Não porque elas não merecessem ouvir histórias ou algo do
gênero mas, por se tratar de uma situação de tamanha complexidade do ponto de
vista físico, psíquico, existencial, me demandaria outros cuidados para essa
intervenção. Reconhecendo tais limites, penso que o meu interesse foi o de
centralizar o trânsito; na passagem da criança pela UTI. Assim sendo, não era a
minha intenção contar histórias para crianças de UTI e sim, para crianças na UTI.
Tive liberdade para ver o prontuário da criança participante da pesquisa.
Porém, não me detive nele para a minha intervenção. A propósito, uma cópia do
Termo de Consentimento ficava anexada ao prontuário da criança internada. Esse
procedimento foi realizado pelo profissional responsável pela equipe da UTI.
Outro desafio referiu-se ao temor, advertido pela enfermagem, de infecção
hospitalar. A proibição do uso de fantoches e livros que não fossem laváveis, a
necessidade de ter os cabelos presos, de usar sapatos fechados, brincos pequenos,
não usar relógio, não usar pulseira, lavar as mãos antes e depois da entrada na UTI
e outros cuidados tornaram-se parte da minha rotina e alvo de minhas
preocupações.
23
Também foi um período de apropriação dos códigos utilizados nesse
ambiente, tais como: o armarinho defronte a porta significa área de isolamento, para
entrar no quarto seria necessária vestimenta própria e máscaras, dentre outros.
1.3.4 - Os desencontros
Marcar reuniões de esclarecimento e/ou apresentação do projeto foi algo
muito demorado pois, nem sempre o que era marcado podia acontecer. Aos poucos,
fui me dando conta da imprevisibilidade que rege a rotina da UTI. Uma vez
possibilitada a reunião o seu tempo de duração não chegava há dez minutos. O que
também me provocava estranhamento. Às vezes eu esperava quinze dias para
resolver algo em menos de dez minutos. Também foi a oportunidade para perceber
que o tempo predominante é o da urgência.
1.3.5 - Participantes da pesquisa
Os participantes da pesquisa foram crianças internadas na UTI (semi-
intensiva) previamente convidadas e cujos pais consentiram formalmente, através da
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a sua participação. No
entanto, no decorrer da pesquisa, além das crianças internadas, mães e pais
acompanhantes e a própria equipe também contribuíram para essa reflexão, assim,
os considero participantes. Além, é claro, a minha própria transformação como
pesquisadora pode ser encarada como participação na pesquisa.
1.3.6 - Como me aproximei dos participantes?
24
Aproximei-me das crianças primeiro por indicação da equipe da enfermaria
que possuía um monitor ligado a evolução dos parâmetros de cada paciente
internado. Após essa indicação primeira, um desconforto surgiu. Como convidar a
criança para ouvir histórias? Sentia invadir o espaço privado daquelas crianças.
Segundo orientação das auxiliares e enfermagem eu nem precisaria bater à porta:
era só entrar ou, o bater era somente um aviso. Optei por uma atitude diferente do
habitual: eu batia à porta antes e esperava permissão para entrar. O que sem
dúvida, provocou estranhamento para os acompanhantes da criança, enfermeiras e
auxiliares. Durante a minha estadia em UTI não usei uniforme. Tinha como
identificação apenas um crachá de visitante. Considerei mais favorável explicitar aos
possíveis participantes da pesquisa que eu não era contratada da Instituição.
Em termos ideais, apresentava-me primeiro para a mãe, entregava-lhe a carta
de esclarecimento da pesquisa e na seqüência o termo de consentimento livre e
esclarecido para ser assinado. A própria mãe/pai traduziam a minha proposta ao
filho
14
.
Tive significativa dificuldade para esse primeiro contato. Muitas vezes as
crianças estavam acompanhadas por adultos que não eram seus responsáveis
legais, tais como babás, tios, etc. Isso feria a acordo de assinatura prévia do Termo
de Consentimento livre e esclarecido e foi, em diversos casos, impeditivo para minha
intervenção. Outro impeditivo para se contar história se deu por sedação da criança.
Quer dizer, o estado da criança é algo primordial para se contar histórias. O que me
leva a crer que tais condições ambientais devem ser tomadas como parâmetros
condutores de uma intervenção que seja adequada ao ritmo da criança, evitando ser
algo disruptivo para ela.
14
Ver capítulo 4.
25
A aproximação com a equipe de saúde se deu de modo informal. Apenas a
minha apresentação como aquela das histórias potencializava diversos temas
instigantes nas conversas informais.
1.3.7 – O que oferecer?
“Aqueles que passam por nós não vão
sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de
nós”. Antoine de Saint-Exupery
O subsídio para o trabalho clínico me remete ao pensamento de Winnicott: “o
piquenique é do paciente, e até mesmo o tempo que faz é do paciente”.
(WINNICOTT, 1994, p. 247)
15
. A proposta inicial visava à oferta de contar história,
contudo, a intervenção deveria respeitar o piquenique, ou seja, no encontro podia ou
não ter as histórias. Numa intervenção, três histórias foram oferecidas para a
escolha da criança. Compreendo que sua escolha não foi aleatória. Escolher
constitui uma volta às suas referências culturais; pode ajudá-la a resignificar certos
conteúdos seus através das histórias. Por outro lado, adverte Gutfreind
16
: “Conte os
contos que te habitam”. Portanto, ofereci histórias que me habitam e que integram o
meu repertório cultural e existencial.
1.3.8 - Por que as fadas?
17
Dentre as histórias que aventei contar optei por contos de fadas, pois, a partir
do conhecimento deste tipo de contos, as crianças poderão sentir-se tentadas a
15
WINNICOTT, Donald. W. O valor da consulta terapêutica (1965). In: WINNICOTT, Clare;
SHEPHERD, Ray; DAVIS, Madeleine. Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott. Porto Alegre:
Artes Médicas Sul, 1994. p.244-248.
16
GUTFREIND, Celso. O terapeuta e o lobo: a utilização do conto a psicoterapia da criança. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 224p.
17
O capítulo intitulado A história como procedimento clínico trata mais com maior extensão esse
assunto.
26
construir as suas próprias narrativas, a inventar outras respostas às questões que a
natureza lhes põe (TRAÇA, 1998, p. 87). Prossegue a autora: “Sob a aparência de
narrações ingênuas facilmente captadas, a criança encontra solução para os seus
problemas urgentes, através de identificações sucessivas” (TRAÇA, 1998, p. 88).
A justificativa da natureza dessas histórias se dá baseada no paradoxo
contemplado: um enredo simples para acenar algo da complexidade da condição
humana.
Radino (2003)
18
afirma: “Todo conto se inicia em um outro tempo e em outro
lugar, e a criança, sabe disso. Ao iniciar um “era um vez” a criança sabe que partirá
em uma viagem fantástica e que dela retornará com um “e foram felizes para
sempre”. (RADINO, 2003, p. 193). Assim, percebo que as estrutura dos contos de
fadas favorecem uma temporalidade em devir para a criança: a idéia de começo,
meio e fim. O “felizes para sempre” dá-lhe expectativa de superação de seus
conflitos emocionais. Embasada na literatura, pareceu-me que os contos de fadas
seriam uma boa oferta.
1.4 – Outras histórias em UTI: antecessores
A revisão da literatura foi realizada através de consultas a base de dados
Scielo (Biblioteca Eletrônica), disponível em: http://scielo.br e Bireme (Biblioteca
Virtual em Saúde - BVS), disponível em: www.bireme.br. Recorri também as teses e
dissertações cujo conteúdo pudesse ser acessado pela biblioteca virtual das
instituições educacionais, tais como: Universidade de São Paulo (USP),
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Pontifícia Universidade Católica (PUC),
18
RADINO, Glória. Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no
desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 236p.
27
dentre outras. Utilizei as seguintes expressões de busca: Unidade de Terapia
Intensiva pediátrica (UTIP), criança hospitalizada e humanização hospitalar. Os
resultados encontrados relatam diversas experiências em hospitais públicos,
hospitais privados, hospital-escola, hospitais em parcerias com a Universidade, em
diferentes regiões do país. Organizei esse texto nos seguintes assuntos: 1) UTI: a
criança, a família e a equipe, 2) UTI: lugar de cuidados, 3) O que diz a criança? e 4)
Espaço para o lúdico.
Tais buscam não pretendem esgotar o assunto. Ao contrário, pretendem
lançar o tema para que ele seja oportunamente explorado em trabalhos futuros pela
comunidade científica. Desejei explanar o contexto o qual se insere essa pesquisa.
Assim sendo, o fio condutor é humanização hospitalar. Por ocasião do exame de
qualificação fui instigada a procurar pesquisas também em outras áreas do
conhecimento sobre o assunto. Sem dúvida, foi algo enriquecedor (para a formação
da pesquisadora) conhecer outras experiências e tentar dialogar com elas.
1.4.1 - UTI: a criança, a família e a equipe,
Baldini (1997)
19
contextualiza o surgimento da Unidade de Terapia
Intensiva Pediátricas e Neonatais nos anos 60. Para ela, embora a criança seja o
foco primário do cuidado, toda a sua família deve ser considerada, pela equipe, um
paciente, pois, a estadia da criança no hospital, mais especificamente, com doença
grave, abala o equilíbrio familiar, retira a família dos contatos sociais ativos e
modifica as funções de cada membro familiar. (Op. cit., p. 13). A autora aponta as
reações mais freqüentes dos familiares: busca da utopia do milagre, maratona pelas
19
BALDINI, Sonia Maria. Avaliação das técnicas de apoio psicológico a crianças internadas em
Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica e a seus pais. São Paulo, 1997. 150f. Dissertação (Mestrado)
– Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo.
28
tendas dos milagreiros e charlatães e o confronto dos produtos naturais e placebos
com as propostas do conhecimento científico.
Baldini utiliza em sua dissertação o resultado de um estudo feito por
Philichi com 30 famílias com filhos internados em UTI. Os dados coletados
permitiram reconhecer três fases de a família lidar com essa situação. A primeira
fase, estimada em doze horas após a internação da criança, se caracterizaria por
choque, negação e desesperança. Alguns familiares não conseguiam acreditar nas
informações sobre a evolução do quadro da criança e as distorciam conforme sua
conveniência, para torná-las suportável. Na segunda fase, as famílias precisavam
ouvir informações sobre o estado do filho repetidas vezes. A terceira fase contém
predominantemente a expectativa sobre o que acontecerá com a criança. Nessa
fase, foram identificados sentimentos de ciúme ou raiva da família em relação à
equipe.
Subsidiada por tais estudos, a autora acredita que a equipe deve
conhecer melhor o funcionamento da família da criança internada. Para isso, Baldini
recomenda a realização de anamnese cuidadosa a qual revelaria recursos e
estratégias utilizados pela família em situações de crise.
O cuidado humanizado em UTI pediátrica envolveria, nessa perspectiva, a
criança enferma, sua família e a equipe cuidadora. Contudo, o ambiente da UTI
requer equipe multidisciplinar
20
. Portanto, vários são os especialistas que cuidam da
criança. O contato com diferentes pessoas da equipe pode gerar insegurança na
família. Mais especificamente sobre o pediatra, na equipe, a autora relata que o
confronto desse profissional com a morte se dá mais frequentemente em UTIs.
Nesse sentido, ela compreende a atitude reservada e defensiva do pediatra como
20
Ver: PÊGO, Jaqueline Abrantes. O trabalho realizado em UTIP com bebês pré-termos e suas mães:
contribuições ao método clínico fonoaudiólogo. São Paulo, 2005. 137f. Dissertação (Mestrado em
Fonoaudiologia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo.
29
proteção contra emoções mais fortes, cito: “para disfarçar sua ansiedade,
desamparo, impotência ou revolta” (Op. cit., p.15). Ainda para Baldini, na relação
médico-paciente, no contexto da UTI, há parâmetros que se impõem essenciais, a
saber: “primeiro a necessidade imediata de um diagnóstico e, segundo, a
necessidade urgente de conduta”. (Op. cit., p. 18). A propósito, quanto ao ambiente
da UTI, a autora o descreve:
Estímulo de monitoração invasiva, múltiplas sondas, cateteres ligado
à criança e ventilação mecânica podem levar à sobrecarga
emocional, sendo tudo isso muito confuso para o paciente. O ciclo
sono-sonhos é distorcido por efeito direto e indireto da enfermidade,
dos fármacos e dos procedimentos. (Op. cit., p. 19)
A criança desenvolve uma espécie de relacionamento com a
aparelhagem. A autora exemplifica tal relacionamento quando o interno passa a se
preocupar com o gotejamento do soro e a dar as suas explicações para aquilo que
está vendo. Obviamente, tais explicações variam conforme a idade da criança.
Baldini (1997, p. 99) defende atitudes de humanização em UTI, cito:
(...) existem muitas técnicas para efetivar essa humanização, como
dar informações de maneira adequada à criança e aos pais, fazê-los
participarem nos cuidados com a criança, permitir a manifestação de
sentimentos, por meio do brinquedo terapêutico e a participação em
grupo de pais.
Dentre os efeitos da internação da criança em UTI, a autora preconiza
estratégias que ajudam no enfrentamento dessa passagem pela instituição.
Reconhece a necessidade tanto de medidas paliativas – ações que favoreçam o
entendimento da situação estressante; como, resolutivas, o que envolveria ações de
mudança da situação - ou por algo em si mesmo ou, no meio ambiente. (Op. cit.,
p.14). A autora aponta algo ligado à humanização que esteve presente nos estudos
30
por ela analisados, a saber: “A necessidade de ter esperança
21
foi uma constante
nos estudos” (Op. cit., p. 108)
Outro trabalho sobre UTI é o de Poles (2008)
22
. Ela se propõe a formular
o conceito de morte digna na UTI pediátrica. Para tal, realizou pesquisa bibliográfica
e também entrevistou dezesseis profissionais, com experiência de cuidados à
criança no final de vida em UTI, sendo nove enfermeiros e sete médicos, em três
unidades hospitalares, na cidade de São Paulo-SP. Para autora, o avanço
tecnológico disponível em UTI cria a expectativa, tanto nos familiares como nos
profissionais, de prolongamento da expectativa de vida da criança gravemente
enferma. Esse contexto, em geral, não propicia a aceitação da morte como parte da
vida.
A autora define morte digna na UTI pediátrica, cito: “(...) é ter um
tratamento clínico de excelência no final da vida, com honra aos benefícios da
evolução natural da doença, respeito aos aspectos sociais, culturais, conforto físico e
bem estar.” (POLES, 2008, p.104).
Garros (2003)
23
enumera cincos modos de morrer em UTIp, a saber: a)
morte após tentativa ressuscitação – ressuscitação sem sucesso (RSS); b)
determinação ou ordem para não ressuscitar (DNR); c) remoção de medidas de
suporte de vida (R – MSU) ou sua restrição (RT – MSU) e, d) morte cerebral (MC).
Em seu estudo bibliográfico, o autor concluiu que a morte da criança internada era
vivida com maior satisfação dos familiares segundo certos cuidados da situação, são
eles: sentir-se incluído no processo decisório, evitar prolongamento da morte,
21
Grifo meu
22
POLES, Kátia. O desenvolvimento do conceito de morte digna na UTI pediátrica. São Paulo, 2008.
135f. Tese (Doutorado) – Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo.
23
GARROS, Daniel. Uma "boa" morte em UTI pediátrica: é isso possível?. J. Pediatr. (Rio J.), Porto
Alegre, 2009 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0021-
75572003000800014&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0021-
75572003000800014.
31
receber explicações claras sobre o papel da família nessa ocasião, receber ajuda
para que a família chegue a um consenso e receber informação de qualidade e no
momento adequado. O autor, pediatra e intensivista pediátrico, nos apresenta uma
de suas vivência, cito:
(...) Já tivemos oportunidade de remover MSU no pátio do hospital,
pois a família queria um ambiente natural e a criança banhada por
raios de sol ao morrer. Animais de estimação, tais como cachorros e
gatos, têm nessas horas livre acesso na UTIP. (Op. cit., p.251)
Alievi et al. (2007)
24
realizaram avaliação por meio de escalas de
desempenho global e cognitivo em uma UTIp de Porto Alegre-RS. Com base na
análise dos resultados dessas pesquisas os autores detectaram que o impacto de
internação em UTI é mais importante no domínio global do que no cognitivo e os
fatores gravidade da doença e tempo de permanência na UTI produzem efeitos
significativos na morbidade de paciente gravemente doente.
Piva (2007)
25
afirma: “(...) as unidades de tratamento intensivo pediátrico
(UTIP) comportam-se como verdadeiros laboratórios, onde novos e antigos
protocolos vêm sendo minuciosamente avaliados e comparados quanto à sua
efetividade e eficácia.”(Op. cit., p. 01). A propósito, Montanholi (2008)
26
discute em
sua dissertação a atuação da enfermeira na UTI neonatal. A autora concluiu que são
24
ALIEVI, Patrícia T. et al. Impacto da internação em unidade de terapia intensiva pediátrica:
avaliação por meio de escalas de desempenho cognitivo e global. J. Pediatr. (Rio J.), Porto Alegre,
v. 83, n. 6, dez. 2007 Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S002175572007000800005&lng=pt&nrm=iso>
. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0021-75572007000800005.
25
PIVA, Jefferson Pedro. Desafios no atendimento da criança agudamente doente: uma visão global.
J. Pediatr. (Rio J.), Porto Alegre, v. 83, n. 2, maio 2007 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0021-
75572007000300001&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0021-
75572007000300001.
26
MONTANHOLI, Liciane Langona. A atuação da enfermeira na UTI neonatal: entre o ideal, o real e o
possível. São Paulo, 2008. 111f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Enfermagem, Universidade de
São Paulo, São Paulo.
32
necessário protocolos e padronização
27
no cuidar para que efetivamente se crie
uma rotina mais humana.
Nesses trabalhos, percebi que a hospitalização infantil, sobretudo no
contexto da UTI provoca efeitos imediatos nos familiares. As pessoas da equipe de
saúde ao perceber isso poderiam se relacionar com as famílias pautadas no cuidado
mais humano o que envolveria tomada de decisão no tratamento, questões sobre a
morte digna na UTI, e atendimento a certas vontades da criança, como por exemplo,
a companhia do animal de estimação. Contudo, despertam-me a atenção os
trabalhos que sugerem a busca por protocolos ideais e padronização no cuidado.
Penso que isso se deve ao fato do ambiente da UTI estar cercado por tecnologia o
que produz ressonâncias nas ações humanas.
1.4.2 – UTI: lugar de cuidados
Cunha (2008)
28
reflete sua prática de enfermagem em UTIP cardíaca em
Curitiba-PR. Dentre suas observações, destaco a idéia trazida pela autora do
cuidado para além da técnica ao vincular sentimentos humanos nas ações do cuidar.
Contudo, “diante de todas as exigências profissionais, a equipe ‘com-vive’ com o
ambiente estressante, exaustivo, solicitador, exigente” (Op. cit., p.418). O que
sugere a dificuldade dos profissionais em lidar com seus sentimentos durante o
árduo cotidiano de trabalho na UTIP.
27
Grifo meu.
28
CUNHA, Patrícia Julimeire; ZAGONEL, Ivete Palmira Sanson. As relações interpessoais nas ações
de cuidar em ambiente tecnológico hospitalar. Acta paul. enferm., São Paulo, v. 21, n. 3, 2008 .
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
21002008000300005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0103-
21002008000300005.
33
Queiroz e Jorge (2006)
29
com base em estudo feito em um hospital em
Fortaleza-CE, com médicas e enfermeiras procuraram investigar a relação do educar
e ensinar em pediatria. Tiveram como tema das entrevistas as seguintes questões:
De que modo você integra o saber das famílias das crianças que procuram os
serviços de saúde com o saber oriundo da sua formação profissional? Quais idéias
são consideradas na sua prática para a formação do vínculo entre os usuários e a
equipe pediátrica, serviços de saúde na relação cuidar e educar em saúde? Após a
análise das entrevistas as autoras concluíram, cito:
devemos apoiar a mãe, informando-a e tranqüilizando-a sobre as
condições de saúde de seu filho, procurando entendê-la nas suas
condições; passar confiança e coragem, formando vínculos, pois
muitas gostam do atendimento e o continuam, mesmo com
dificuldades financeiras (p.126).
Lima et al. (2006)
30
investigaram a percepção dos profissionais de um
hospital público de Fortaleza-CE quanto à humanização. Elas perceberam que o
regime de trabalho favoreceu a permanência dos profissionais na instituição
hospitalar em até mais de dez anos. Com isso, o estreitamente de laços entre eles
favorecia a criação de vínculos e de interação profissional. Entretanto, as
pesquisadoras também identificaram maiores resistências a implantação de novos
29
QUEIROZ, Maria Veraci; JORGE, Maria Salete. Estratégias de educação em saúde e a qualidade
do cuidar e ensinar em pediatria: a interação, o vínculo e a confiança no discurso dos profissionais.
Interface (Botucatu), Botucatu, v. 10, n. 19, jun. 2006 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832006000100009&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S1414-
32832006000100009.
30
LIMA, Francisca Elisângela Teixeira; JORGE, Maria Salete Bessa; MOREIRA, Thereza Maria
Magalhães. Humanização hospitalar: satisfação dos profissionais de um hospital pediátrico. Rev.
bras. enferm., Brasília, v. 59, n. 3, jun. 2006 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672006000300008&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0034-
71672006000300008.
34
projetos ligados a humanização hospitalar. Segundo elas, por resistência e
acomodação desses profissionais.
Santana (2008)
31
, em pesquisa realizada em hospitais da região
metropolitana de Belo Horizonte-MG, preocupou-se em saber de um grupo de
acadêmicos o significado do cuidar em UTI. Os acadêmicos apontaram
preocupações permanentes daqueles que trabalham nesse ambiente altamente
tecnológico, dentre elas, o gerenciamento do tempo, cito:
A questão do tempo nestas unidades se reflete na ação dos
profissionais, direcionando o desenvolver de suas atividades de
forma muito automática, padronizada, como por exemplo: tem que
realizar todos os banhos pela manhã, os exames radiológicos e
laboratoriais também devem ser realizados pela manhã e outras
intervenções. Percebe-se um cuidar padronizado, esquecendo-se do
paciente. (Op. cit.,p.166)
Dentre os desafios dos profissionais (enfermagem) citados nesse estudo
estão: o saber os próprios limites, lidar com a morte como parte da vida; saber
relacionar-se e avaliar a veracidade das ações e refletir sobre os aspectos
envolvidos no cuidar – especificamente em UTI. Mais adiante, os autores,
possivelmente desapontadas com os dados colhidos, defendem o cuidar em UTI
mais humano; o que implicaria não somente o fazer bem os procedimentos
rotineiros, mas, perceber as nuances próprias do cuidador, em suas palavras “que
se ligam à essência do sujeito, enquanto ser-no-mundo”. (Op. cit., p. 170)
Bortolote e Bretas (2008)
32
discutem o resultado de observações simples
de oito crianças realizadas em um hospital-escola de São Paulo-SP. Nessa pesquisa
31
SANTANA, Júlio César Batista. Significado do cuidar em Unidade de Terapia Intensiva: percepção
de um grupo de acadêmicos de enfermagem. Rev Enferm UFPE, 2 (2), p. 963-70. 2008.
32
BORTOLOTE, Giovana Soares; BRETAS, José Roberto da Silva. O ambiente estimulador ao
desenvolvimento da criança hospitalizada. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v. 42, n. 3, set. 2008
. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-
35
procuraram ver a estimulação proporcionada no ambiente hospitalar para a criança
hospitalizada, cito:
Por vezes, foi possível constatar que a equipe de enfermagem
mostrava-se indiferente com relação à criança ao realizar a maioria
dos procedimentos, mantendo conversas paralelas com colegas de
trabalho. Esta atitude mostrou uma forma impessoal
33
de lidar com
o paciente pediátrico. (Op. cit.,p. 426)
Os autores afirmam que, nesta instituição, o manuseio do bebê era feito
sem a troca de olhar entre o profissional e o lactente e eles compreendem que,
dessa forma, o contato tátil não poderia exercer um efeito positivo para o bebê.
Ainda para os autores, na passagem de plantão os profissionais mencionam a
situação clínica da criança internada ao invés de dados que as singularizassem,
como por exemplo, nome e idade ou algo mais pessoal.
Segundo os autores, aquele que cuida da criança torna-se a principal
fonte de estimulação para o paciente. Isto posto, o cuidado precisa ser uma
experiência significativa para a criança. Assim sendo, “o envolvimento pessoal de
quem cuida transmite à criança doente a experiência essencial, o contato
humano
34
”. (Op. cit., p. 428)
Coa e Pettengill (2006)
35
procuraram discutir a autonomia da criança
hospitalizada frente aos procedimentos. Para isso, recorreram à observação da
rotina e de entrevistas com sete enfermeiras de um hospital público de São Paulo-
62342008000300002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0080-
62342008000300002.
33
Grifo meu.
34
Grifo meu.
35
COA, Thatiana Fernanda; PETTENGILL, Myriam Aparecida Mandetta. Autonomia da criança
hospitalizada frente aos procedimentos: crenças da enfermeira pediatra. Acta paul. enferm., São
Paulo, v. 19, n. 4, dez. 2006 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
21002006000400011&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0103-
21002006000400011.
36
SP. De início, as autoras retomam o papel da enfermeira pediatra, ou seja, a de
informar a criança sobre o procedimento ao qual será submetida. De acordo com os
dados colhidos nas entrevistas as enfermeiras afirmam ouvir a criança e dar-lhe
chance de participar dos procedimentos. Contudo, com as observações feitas foi
possível depreender a dicotomia entre o que é dito e aquilo que é feito. As autoras
ainda chamam a atenção para o fator tempo de exercício de profissão. As
profissionais com tempo de atuação inferior a cinco anos demonstraram maior
inclinação para o cuidado holístico. Essa observação é justificada pela mudança no
enfoque dos currículos formativos tanto da graduação como da pós-graduação aos
quais têm contemplado o estudo de assuntos de cunho ético e moral.
Beccaria et al. (2008)
36
discutiram as visitas em Unidade de Terapia
Intensiva visando compreender o que as famílias denominavam humanização no
atendimento. Para os autores, “o ponto-chave do trabalho de humanização está em
fortalecer este comportamento ético de articular o cuidado técnico-científico, com a
necessidade de explorar e acolher o imprevisível, o incontrolável, o diferente, o
singular”. (Op. cit., p. 66). Ainda para os autores, o profissional de enfermagem deve
acolher a família do paciente de UTI, pois, nem sempre os familiares estão
preparados para ver este cenário; muitos, após a visita, saem desesperados.
Contudo, em pesquisa realizada em um hospital do Noroeste Paulista, os autores
identificaram que setenta por cento dos familiares não sabiam dizer quem era o
enfermeiro responsável da UTI. Assim sendo, sem a mínima referência os visitantes,
da UTI não recebiam suporte para lidar com essa situação peculiar.
36
BECCARIA, Lúcia M. et al. Visita em Unidade de Terapia Intensiva: concepção dos familiares
quanto à humanização do atendimento. Arq Ciênc e Saúde, São José do Rio Preto-SP, 15 (2),
abr/jun, p. 65-9. 2008.
37
Siqueira et al. (2002)
37
trataram o tema da permanência das mães
acompanhantes de seus filhos hospitalizados através da aplicação de entrevistas
seguindo as seguintes questões: 1) O que ajuda a senhora durante a permanência
de seu filho (a) no hospital? 2) O que atrapalha a senhora durante a permanência de
seu filho (a) no hospital? As entrevistas demonstraram que todas as mães
acompanhantes se queixavam de cansaço físico, tanto pelas acomodações
hospitalares, como pelo sono interrompido em decorrência da preocupação com a
doença do filho. Para essas mulheres, o horário de visita foi apontado como
elemento que ajudava a melhorar a tensão hospitalar, revelando-se, assim, um
momento importante não apenas para a criança como também para a mãe
acompanhante. Outro dado interessante apareceu nos relatos o qual remete ao
sentimento de ambivalência. As mães acompanhantes sentiam que precisam estar
em dois lugares ao mesmo tempo. Escolher um deles implicava em sofrimento. Com
base nessas considerações os autores propõem a formação de um grupo de mães a
fim de promover o intercâmbio de experiências entre elas, cito; “O simples fato de
serem ouvidas e ouvir o relato de outras mães na mesma situação poderia ajudá-las
a transpor esse momento com um pouco mais de segurança”. (Op. cit., p.272)
Corroborando essa pesquisa, Oliveira e Ângelo (2000)
38
publicaram o
texto denominado Vivendo com o filho uma passagem difícil e reveladora – a
37
SIQUEIRA, Liamara da Silva; SIGAUD, Cecilia Helena de Siqueira; REZENDE, Magda Andrade.
Fatores que apoiam e não apoiam a permanência de mães acompanhantes em unidade de pediatria
hospitalar. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v. 36, n. 3, set. 2002 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-
62342002000300009&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0080-
62342002000300009.
38
OLIVEIRA, Irma de; ANGELO, Margareth. Vivenciando com o filho uma passagem difícil e
reveladora: a experiência da mãe acompanhante. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v. 34, n.
2, jun. 2000 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-
62342000000200010&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0080-
62342000000200010.
38
experiência da mãe acompanhante. Dentre as afirmações apresentadas nesse
trabalho as autoras relatam o sofrimento da mãe ao ver que não poderá evitar o
sofrimento do filho e de, em inúmeras situações no hospital, não ter a sua dedicação
reconhecida pelos profissionais por estes considerarem as suas ações como apenas
cumprimento de uma obrigação de mãe. No entanto, os autores trazem fragmentos
das falas das mães entrevistadas cujo tema indica o crescimento após o sofrimento,
cito: “Eu acho assim, me fez abrir os olhos né, ao mesmo tempo que a gente sofre,
passa a dar mais valor para as pessoas do seu lado” Outra mãe, afirma: “Você vê o
sofrimento, você vai aprendendo, vai vendo, vai enxergando ...”(Op. cit., p. 206)
Bousso e Ângelo (2001)
39
estudaram quatorze famílias com filhos
internados em UTI em dois hospitais de São Paulo-SP.
(...) a família define UTI como sendo um lugar para morrer. Esta
definição coloca a família próxima à questão da morte, do sentido da
vida, do sofrimento insuportável e, consequentemente, frente a uma
possível ruptura definitiva da unidade familiar. Assim, a internação da
criança, está fora do tempo cronológico da família. É uma
experiência prematura, jamais esperada, para uma criança, deixando
a família com medo do filho morrer. (Op. cit., p. 176)
Os autores perceberam uma situação interessante na sala de espera da
UTI: as famílias com filhos internados trocavam suas experiências, se apoiavam
umas às outras e desenvolviam relacionamentos significativos. Essas trocas
ajudavam-nas a refletir sobre o que estavam passando e a ter esperança, resultando
na sensação de se tornarem mais fortes para a vivência de ter um filho em UTI.
Faquinello et al. (2007)
40
perceberam o que seria atendimento
humanizado para o acompanhante da criança hospitalizada: o paciente ser bem
39
BOUSSO, Regina Szylit; ANGELO, Margareth. Buscando preservar a integridade da unidade
familiar: a família vivendo a experiência de ter um filho na UTI. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v.
35, n. 2, jun. 2001 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-
62342001000200012&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0080-
62342001000200012.
39
cuidado, bem atendido, valorizado, tratado com respeito e educação, o profissional
deve ser atencioso e humano, conversar e explicar conforme o entendimento do
acompanhante.
Tais estudos me levam a crer na dificuldade dos profissionais que
atendem à criança terem as suas ações subjetivadas no ambiente exaustivo e
exigente do hospital. O que indica limites na efetivação daquilo que se almeja da
humanização no atendimento. Considerei oportuna a idéia do cuidado como uma
experiência significativa; tal seria, a meu ver, a junção da pessoalidade do cuidador
e da receptividade da criança/família cuidada.
1.4.3 - O que diz a criança?
Ribeiro e Ângelo (2005)
41
definem dois marcos na publicação de
trabalhos sobre a hospitalização infantil. Para eles, o primeiro período – dos anos 50
até meados da década de 80 – repousou sobre os efeitos maléficos à saúde física e
mental a criança por estar separada de sua mãe, tendo implicações na criança até
mesmo após a sua alta. No segundo período – a partir da década de 80 – os
trabalhos discutiam as contribuições da presença da mãe acompanhante, a saber: a
redução do tempo de internação, melhora do comportamento após a alta, declínio da
40
FAQUINELLO, Paula; HIGARASHI, Ieda Harumi; MARCON, Sonia Silva. O atendimento
humanizado em unidade pediátrica: percepção do acompanhante da criança hospitalizada. Texto
contexto - enferm., Florianópolis, v. 16, n. 4, dez. 2007 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
07072007000400004&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0104-
07072007000400004.
41
RIBEIRO, Circéa Amália; ANGELO, Margareth. O significado da hospitalização para a criança pré-
escolar: um modelo teórico. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v. 39, n. 4, dez. 2005 . Disponível
em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-
62342005000400004&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0080-
62342005000400004.
40
infecção cruzada, dentre outros. Para a atualidade, as autoras defendem o uso do
brinquedo terapêutico pela enfermeira pediatra para, através de brincadeiras - como,
por exemplo, Vamos brincar de uma criança que está no hospital? – a criança possa
enfrentar a hospitalização como algo menos misterioso e aterrorizante.
Ainda sobre Brinquedo Terapêutico Martins et al. (2001)
42
propõem
protocolo de preparo da criança pré-escolar para punção venosa utilizando o
brinquedo terapêutico como mediador desse procedimento. Para as autoras a
punção venosa aumenta consideravelmente o medo e a ansiedade do pequeno
paciente. Diante disso, elas elaboraram esse peculiar protocolo assim distribuído: 15
min para explanação de uma pequena história de cunho informativo sobre situações
hospitalares, 10 min na execução da punção venosa e outros 15 min na
dramatização feita pela criança após a punção. O tempo estimado nesse protocolo é
de 40 min. Para as autoras, sem esse protocolo as manifestações de resistência tais
como choro, raiva e agressão acabam por aumentar o tempo desse procedimento.
Desse modo, com a utilização do brinquedo terapêutico a criança aceita melhor e
mais rapidamente a punção venosa. Assim sendo, as autoras enumeram os
benefícios da utilização do brinquedo terapêutico, a saber: 1) promove maior
cooperação, o medo da criança diminui, 2) as crianças demonstram compreender o
procedimento através das dramatizações, 3) com Brinquedo Terapêutico a relação
entre as crianças melhorou e 4) melhorou a relação da equipe de enfermagem com
a criança.
42
MARTINS, Maria do Rosário et al . Protocolo de preparo da criança pré-escolar para punção
venosa, com utilização do brinquedo terapêutico. Rev. Latino-Am. Enfermagem, Ribeirão Preto, v.
9, n. 2, abr. 2001 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
11692001000200011&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0104-
11692001000200011.
41
Oliveira (1993)
43
preocupou-se em estudar como a criança percebe a sua
enfermidade. Para a autora, a doença infantil é sempre mediada por adultos, como
se a criança não pudesse contar ao médico ou a enfermeira como ela se sente.
Visando dar voz a criança a respeito de sua doença a autora nos assegura que a
criança hospitalizada por diversas vezes percebe a doença como castigo, o que
aparece de forma direta ou indireta no discurso infantil, como por exemplo: “Me
machuquei porque fui brincar no escuro”. A autora acredita que a humanização
hospitalar deve contemplar o exercício de “escuta” do pediatra que vai ouvir a
criança naquilo que ela precisa dizer, em sua linguagem e em seu modo peculiar de
ver o mundo.
Falando de sua enfermidade, a criança doente nos conta da força e
poder do saber médico como instrumento de destituição da
subjetividade e de anulação da experiência do adoecer na reclusão
hospitalar. Violência física dos procedimentos médicos, violência
psicológica das relações inter-humanas, o espaço do hospital
mostra-se como marca indelével de ruptura em todos os níveis de
vida da criança. Rupturas inevitáveis, algumas; outras, criadas pela
própria lógica de pensar a saúde e a doença e por esforços
institucionais quase inaudíveis de reconstituir e religar a continuidade
perdida. (Op. cit., p. 327)
Vasques (2007)
44
com base nas narrativas de oitenta e duas crianças
hospitalizadas apontou os medos mais comuns para elas, a saber: o medo da
separação da família, da injeção, das picadas nos dedos, de ter de permanecer no
hospital por um longo período e de ser comunicado de que algo errado esteja
acontecendo. A seguir, cito o relato de uma desses participantes, Alisson, oito anos:
43
OLIVEIRA, Helena de. A enfermidade sob o olhar da criança hospitalizada. Cad. Saúde Pública,
Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, set. 1993 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X1993000300020&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0102-
311X1993000300020.
44
VASQUES, Raquel Candido Ylamas. A experiência de sofrimento: histórias narradas pela criança
doente. São Paulo, 2007. 202f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Enfermagem, Universidade de
São Paulo, São Paulo.
42
“[...] Tem coisas que são piores do que a dor. Quando quero ir para casa e não
posso, quero brincar, tenho saudade do meu irmão é pior do que a dor” (Op. cit., p.
69). A autora percebeu que a criança narra a chegada da doença com outras
perdas: perda da mobilidade e de estar livre da dor.
Goulart e Sperb (2003)
45
ao estudarem as narrativas de crianças asmáticas
participantes do Programa para criança com asma do Hospital das Clínicas de Porto
Alegre-RS perceberam que o hospital era representado por essas crianças tanto
como o lugar em que as pessoas vão para se cuidar como o lugar em que vão para
morrer. Muitas dessas crianças não são curadas o que torna a sua ida ao hospital
parte do seu cotidiano. Além disso, a iminência de uma crise asmática aparece
frequentemente em suas narrativas. Assim sendo, há o risco sempre presente de
serem hospitalizadas e isso é algo com que elas aprendem a conviver. Esse
programa objetiva, cito: “possibilitar às crianças que construam narrativas no
contexto da cultura hospitalar [...] permitir, também, que elas contem algo sobre a
história de suas vidas” (Op. cit., p. 364)
Chávez Alvarez (2002)
46
através de estudo qualitativo, desenvolvido em
um hospital-escola da cidade de São Paulo, com crianças de 07 a 12 anos, objetivou
compreender o significado do cuidado para a criança hospitalizada. Dentre os
resultados obtidos, a autora discriminou a possibilidade de brincar, de ver vídeo, ter
a mãe por perto, os principais indicadores do que significaria cuidado para a criança.
45
GOULART, Cláudia Maria Teixeira; SPERB, Tania Mara. Histórias de criança: as narrativas de
crianças asmáticas no brincar. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 16, n. 2, 2003 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
79722003000200016&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0102-
79722003000200016.
46
CHÁVEZ ALVAREZ, Rocio Elizabeth. O significado do cuidado para a criança hospitalizada. São
Paulo, 2002. 96f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São
Paulo.
43
Kudo e Bagio (2007)
47
promoveram uma exposição de fotografias
denominada O hospital pelo olhar da criança, cujo material foi coletado pelas
crianças internadas, acima dos dois anos de idade, no Hospital das Clínicas de São
Paulo. Essa exposição possibilitou à criança hospitalizada um modo de expressão:
através das imagens do ambiente hospitalar por elas captadas. Com isso, as
crianças puderam revelar o que, para cada um delas, é estar em um hospital.
Carlesso (2005)
48
em sua dissertação de mestrado procurou delimitar os
aspectos psíquicos da criança internada em UTI. Dentre as cinco crianças
participantes da pesquisa somente no atendimento de Kátia - de três anos e quatro
meses, com tempo de internação de trinta e três dias – aparece a utilização da
história. Nesse caso, destacou-se especificamente a história da sementinha, de
Rubem Alves. Segundo a autora, Kátia não permitia que retirassem o livro de perto
dela e solicitava à pesquisadora que a história fosse contata repetidas vezes.
Compreendi que a história não surge como recurso interventivo da pesquisadora,
mas, como demanda da própria criança.
Tais estudos puderam dar voz à criança para que os medos fossem
nomeados, para que acontecesse a narrativa sobre o conviver com a hospitalização
na infância e ainda fosse criada a possibilidade de a criança dar sentido próprio do
estar doente e hospitalizada. Todavia, fiquei intrigada com o protocolo de aplicação
do brinquedo terapêutico, pois, na minha compreensão a terapêutica do brincar
envolveria o respeito ao ritmo da criança. Contudo, entendo que o tempo cronológico
47
KUDO, Aide Mitie; MARIA, Priscila Bagio. Exposição de fotografias: o hospital pelo olhar da
criança. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 11, n. 21, abr. 2007 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832007000100020&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S1414-
32832007000100020.
48
CARLESSO, Denise Regina Disaró. Aspectos psíquicos da criança internada em unidade de
terapia intensiva (UTI) pediátrica: estudo de caso. 2005. 188 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
– Universidade Estadual Paulista, Assis, 2005.
44
disponível do profissional de enfermagem para o seu trabalho é demasiadamente
curto o que resulta em limites para acolher o tempo subjetivo da criança.
1.4.4 - Espaço para o lúdico
Mitre e Gomes (2007)
49
realizaram trinta e três entrevistas com médicos,
professores de educação física, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e nutricionais,
pedagogos, fisioterapeutas, relações-públicas, assistente social e psicólogos; em
três hospitais, em diferentes regiões do Brasil, que possuíam algum tipo de atividade
lúdica. Dentre as conclusões, os autores discutiram as atitudes ambíguas dos
profissionais sobre o brincar, pois, apesar da literatura apontar para os benefícios do
brincar para a criança hospitalizada, para os profissionais não diretamente
envolvidos com essas ações ainda é difícil pensar o lúdico como instrumento de
suas práticas. Os autores justificam a ambigüidade, cito: “Como o brincar é universal
e faz parte do repertório do senso comum, muitas vezes as pessoas parecem achar
que qualquer um, com boa vontade e disposição, pode realizar essa atividade”. (Op.
cit., p. 1282). Isto posto, os autores reconhecem que grande parte das atividades
lúdicas desenvolvidas no contexto hospitalar estão sendo promovidas pela ação do
voluntariado o que pode deixa-las como algo isolado, sem repercussão definitiva na
dinâmica hospitalar. Desse modo, cito; “se faz necessário que tal dinâmica seja
contemplada efetivamente no campo das políticas públicas voltadas para a saúde da
criança”. (Op. cit., p. 1283).
49
MITRE, Rosa Maria de Araujo; GOMES, Romeu. A perspectiva dos profissionais de saúde sobre a
promoção do brincar em hospitais. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 5, out. 2007 .
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232007000500025&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S1413-
81232007000500025.
45
Lima e Azevedo (2009)
50
relatam vivências da enfermagem de um
hospital de Ribeirão Preto-SP. Dentre as estratégias de cuidado humanizado com
crianças os autores apontam a arte do teatro clown. A leitura dramática é utilizada
como forma de comunicação intuitiva com a criança, porque, para eles, cito: “elas
(as crianças) devem se valer da literatura pois, através das fábulas e dos contos
fantásticos, acessíveis à sua compreensão, desafogam emoções fortes, como raiva,
medo, dor e sofrimento.”(Op. cit., p.192)
Francani et al. (1998)
51
relataram a mudança na dinâmica hospitalar com
a atuação de clown. Ascensoristas, enfermagem, mães e crianças passaram a
requisitar a sua visita. O título do artigo é bastante interessante, a saber: Prescrição
do dia: infusão de alegria.
Poleti et al. (2006)
52
escreveram sobre a vivência no ambulatório do
Hospital das Clínicas de Ribeiro Preto-SP. Os usuários, mães acompanhantes e
crianças permanecem o dia todo na instituição para consultas, exames, dentre
outros. Visando melhorar a estadia dos usuários foi criado espaço de recreação para
as crianças em sala de espera. Esse projeto contou com a parceira da universidade.
Dentre as queixas trazidas pelos autores me chamou atenção à falta de espaço
50
LIMA, Regina Aparecida Garcia de et al . A arte do teatro Clown no cuidado às crianças
hospitalizadas. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v. 43, n. 1, mar. 2009 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-
62342009000100024&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0080-
62342009000100024.
51
FRANCANI, Giovana Müler et al . Prescrição do dia: infusão de alegria. Utilizando a arte como
instrumento na assistência à criança hospitalizada. Rev. Latino-Am. Enfermagem, Ribeirão Preto, v.
6, n. 5, dez. 1998 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
11691998000500004&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0104-
11691998000500004.
52
POLETI, Lívia Capelani et al . Recreação para crianças em sala de espera de um ambulatório
infantil. Rev. bras. enferm., Brasília, v. 59, n. 2, abr. 2006 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672006000200021&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0034-
71672006000200021.
46
físico para a recreação, uma vez, que além das crianças as mães também
participavam das atividades lúdicas. O espaço para recreação ficou pequeno.
Valladares e Carvalho (2005)
53
promovem na pediatria do Hospital de
Doenças Tropicais (HDT), de Goiânia-GO, arteterapia com as crianças recorrendo
às construções com sucata hospitalar. As autoras acreditam que: “as crianças, ao
produzirem imagens, estariam produzindo a si mesmas, como também seu mundo
físico (sensório-motor), mental (cognitivo), emocional, sonhos e memória”. (Op. cit.,
p. 67)
Oliveira et al. (2003)
54
discutem o lúdico no hospital com base na vivência
com crianças hospitalizadas de uma hospital do Rio Grande do Norte. Para os
autores raiva e tristeza foram os sentimentos mais comuns externados no brincar de
crianças entre seis e dez anos de idade. Vale apontar a indicação dos autores para
a importância do brinquedo trazido de casa pela criança o qual passava a ser uma
referência significativa para ela durante a internação.
Fontes e Vasconcelos (2007)
55
em trabalho realizado na sala de
recreação na enfermagem pediátrica de um hospital de Niterói-RJ afirmam que a
educação, através do incentivo à reflexão sobre o meio, permite à criança entender
53
VALLADARES, Ana Cláudia Afonso; CARVALHO, Ana Maria Pimenta. A arteterapia no contexto da
hospitalização pediátrica: O desenvolvimento da construção com sucata hospitalar. Acta paul.
enferm., São Paulo, v. 18, n. 1, mar. 2005 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
21002005000100009&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0103-
21002005000100009.
54
OLIVEIRA, Sâmela Soraya Gomes de; DIAS, Maria da Graça B. B.; ROAZZI, Antonio. O lúdico e
suas implicações nas estratégias de regulação das emoções em crianças hospitalizadas. Psicol.
Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 16, n. 1, 2003 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
79722003000100003&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0102-
79722003000100003.
55
FONTES, Rejane de Souza; VASCONCELLOS, Vera Maria Ramos de. O papel da educação no
hospital: uma reflexão com base nos estudos de Wallon e Vigotski. Cad. CEDES, Campinas, v. 27,
n. 73, dez. 2007 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
32622007000300003&lng=pt&nrm=iso>. acessos em05 ago. 2009. doi: 10.1590/S0101-
32622007000300003.
47
melhor o que lhe acontece e o que acontece ao seu redor; ajuda a criança a
conhecer o significado da sua doença e a das demais crianças hospitalizadas; ajuda
a esclarecer sobre as formas de tratamento e a profilaxia, se houver, acaba, assim,
ampliando a sua tomada de consciência.
Ainda dentre as diversas iniciativas para a promoção de melhor qualidade
de vida da criança hospitalizada destaco A Associação Viva e Deixe Viver. Ela foi
fundada em 1997, conta com apoio de voluntários para promover entretenimento,
cultura e informação educacional por meio do incentivo à leitura e do brincar às
crianças hospitalizadas. Os voluntários são preparados para essa tarefa com
oficinas de histórias; eles possuem supervisão psicológica durante o voluntariado.
Essa Associação define sua interação como uma atividade recreativa, educativa e
instrutiva
56
.
Para essa Associação, contar histórias permite um momento de repouso
para a criança que ouve, além de consolidar os laços afetivos entre contadores e
crianças. Para os voluntários, contar histórias na UTI rompe com o barulho dos
aparelhos, com a constante movimentação da equipe médica e até mesmo com a
televisão.
Com base nessas pesquisas pude refletir acerca da abertura da
instituição hospitalar para o desenvolvimento de projetos envolvendo melhor
qualidade para os usuários do sistema de saúde. Isso significou parceria com a
Universidade, com Organizações Não Governamentais e da sociedade civil por meio
de ações voluntárias. Evidenciam-se os benefícios do brincar, da arteterapia, de
atividades lúdicas, dentre outras ações para o paciente hospitalizado e seus
familiares e para a equipe de saúde. Particularmente o estudo de Mitre e Gomes
56
GOUVEIA, Maria Helena. Viva e deixe viver: histórias de quem conta histórias. São Paulo: Globo,
2003. 175p.
48
(2007) me levou a pensar a respeito do espaço para o lúdico no hospital como parte
de uma intenção de colaborar com projetos de humanização. Minha inserção no
hospital me possibilitou experimentar estrangeirice: como voluntária e pesquisadora.
Não ponho em questão o efeito positivo das intervenções realizadas, somente
começo a controverter se essas ações ditas humanizadas provocam, de fato,
mudança na cultura hospitalar ou, se ao contrário, tais atitudes tornam-se projeto
independentes, apenas com efeito imediato.
Woolcott (2006)
57
conta a sua experiência de estagiar em um UTI e como
procurou compreender isso por meio da psicanálise em instituições
58
, apoiada na
Teoria dos Campos proposta por Fábio Hermann. Ao ler o seu trabalho, por vezes
senti-me familiarizada com os fenômenos narrados, cito:
[...] Poucas semanas depois de minha chegada, quando eu já me
havia habituado à presença deles e me sentia de certa forma parte
do grupo, eles foram-se embora, e eu fiquei. Foi a gota d’água para
que viesse à tona minha fantasia de estar em terra de ninguém. Vi-
me implicada no campo da competição contra a morte. (...) apareceu
um sentido [...] estar num vazio e de estar eu vazia. (Op. cit., p. 18).
Noutro fragmento, a autora relata que se sentiu, em vários momentos,
sem recursos para pensar a própria experiência, algo que também senti durante a
minha pesquisa. Outra percepção interessante da pesquisadora remete à vivência
do tempo na UTI. Concordo quando ela afirma que há o tempo do sobressalto: Se
parar, morre; e também o tempo ecoa na espera.
57
WOOLCOTT, Fernanda Sofio. Função terapêutica e hospital: onde há psicanálise? São Paulo,
2006. 114f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP), São Paulo.
58
Galván (2008) em sua dissertação de mestrado discute o lugar do psicólogo no hospital. Para ela,
são: 1) o lugar de onde o psicólogo é chamado a atuar (demanda institucional), 2) demanda do
paciente e 3) o lugar a partir do qual o psicólogo se propõe a responder a essas demandas. A sua
pesquisa foi realizada no Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo onde atua como psicóloga. Ver: GALVÁN,
Gabriela Bruno. Corpo ferido: os caminhos do self a partir de uma ruptura na integridade corporal.
São Paulo, 2008. 120f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo,
São Paulo.
49
Essa pesquisa se destaca das demais por poder levar em consideração
aspectos que fogem à padronização, ao protocolo. A minha estrangeirice favoreceu
intervenção artesanal, sendo cada vivência irrepetível. Pude estar em
disponibilidade para o outro e refletir sobre os sentidos de estar em terra de
ninguém, como aponta Woolcott.
1.5 – Essa travessia
No próximo capítulo, em companhia de psicanalistas, teóricos da
literatura infanto-juvenil, dentre outros estudiosos, procurei abordar o valor dos
contos de fadas em diferentes concepções. Para Jesualdo, o imaginar propiciado
pelas histórias ajuda a recriar realidades. Para Traça, por intermédio das histórias o
homem pode desejar a metamorfose. Para Cunha, as histórias permitem
significações autônomas. Assinala Coelho, as histórias expressam experiências
tanto do leitor como do autor. Finalmente, os autores Freud, Safra, Hisada, Corso,
Gutfreind, dentre outros evidenciam as histórias como facilitadoras de um encontro
consigo mesmo e com o outro. Assim sendo, a literatura justifica a potencialidade
das histórias na vida e na clínica. Contudo, há o valor pessoal da história para a
pesquisadora. Em diversas situações da minha vida recorri às histórias o que me
leva a crer em seu significado particular para mim: sonho através das histórias! Por
essa razão posso compartilhá-las. Ainda, pude transitar da história ao espaço
potencial como procedimento.
No capítulo três, intitulado A contribuição de Winnicott, retomo conceitos que
me ajudaram a compreender a minha inserção na UTI, a saber: o espaço potencial,
o gesto, consultas terapêuticas.
50
No capítulo quatro, nomeado Vivências em UTI, apresento situações clínicas
envolvendo crianças hospitalizadas, mães e pais acompanhantes, equipe de saúde
e a minha própria transformação como pesquisadora no decurso da experiência de
pesquisa empírica. A discussão foi baseada no pensamento e na clínica de Winnicott
e também no empréstimo de conceitos referencias tais como comunidade de destino
elaborados pelo professor e orientador dessa tese Gilberto Safra.
Leitmotiv toma por base Canguilhem (2000), Goldenstein (2006), Foucault
(1980) para problematizar os impasses na intervenção em hospital. Além disso,
reflito sobre o espaço intermediário entre o discurso médico e o discurso
psicanalítico. Reconheço minha sensação de impotência, vivida na UTI, como algo
muito semelhante ao que a criança hospitalizada pode sentir: sem vez e sem voz
senti-me paralisada em certo momento da pesquisa. Retomo as características
primordiais na UTI: a urgência, a intensidade permeando as relações humanas e a
imprevisibilidade e discuto a inscrição lúdica nesse ambiente. Para encerrar,
reposiciono e ponho em debate o percurso da presente tese.
51
2. DA HISTÓRIA AO ESPAÇO POTENCIAL COMO PROCEDIMENTO CLÍNICO
Os contos de fadas podem ser usados como lembranças
encobridoras, do mesmo modo que conchas vazias são usadas
como moradia por caranguejos. Esses contos de fadas tornam-se
então os favoritos, sem que se saiba a razão disso
59
. (FREUD
[1901], p.64).
Tais palavras de Freud me levam a iniciar esse capítulo com o desafio de
procurar reconhecer a importância dos contos de fadas
60
em diferentes esferas da
condição humana. A propósito, a noção de inconsciente mergulha o Homem além da
lógica formal, do raciocínio e do antever. Contradições, ambigüidades e falta de
sentido estão presentes no ser humano. Freud nos oferta a idéia de que os contos
de fadas podem ser morada desses aspectos equívocos. O mesmo enredo pode
conquistar diferentes dramas pessoais o que singulariza a tragédia humana e
justifica a adesão atemporal aos contos. O uso das histórias está anunciado. O
assunto é bastante complexo, e também interessante. O tema em si não conhece
limite. Isto posto, encaminharei a dissertação para a vida com histórias, a clínica com
histórias e o narrar. Freud nos alerta para o fato de a razão, ou melhor, a
consciência, não alcançar o sentido que os contos podem ter para o sujeito. Tendo
em vista esse expressivo obstáculo, faço uma tentativa de contar a minha
aproximação com os contos de fadas.
As histórias tiveram para mim desde a infância um lugar especial. Das
narrativas inventadas em família, por meu pai e minha mãe, até os contos
tradicionais, todas eram, para mim, histórias fascinantes. Na época da alfabetização
eu escolhi o livro da história da Bela Adormecida. Como se o tempo não tivesse
59
FREUD, Sigmund. Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901). In: ______. Obras completas.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
60
Nesse capítulo utilizarei os termos contos de fadas, contos, histórias infantis como sinônimos ainda
que eu reconheça a especificidade de cada termo postulada pela teoria literária.
52
passado lembro-me como se fosse hoje da minha angústia com o desencadeamento
da trama. Por inúmeras vezes pulei parte da história para logo chegar ao foram
felizes para sempre. Sentia medo, raiva, alegria, triunfo no desenrolar do enredo.
Aos poucos, abandonei a Bela Adormecida e viajei com as aventuras de Robinson
Crusoe e vibrei com as traquinagens da Emília, do Sítio do Pica Pau Amarelo.
Na minha prática clínica tive duas experiências bastante instigantes
61
mediadas por histórias. A primeira aconteceu no atendimento de uma garotinha de
dez anos de idade. A queixa inicial foi a de obesidade e de grande desespero ao se
ver longe da sua mãe. Em dado momento, a garotinha passou a ter insônia. Nos
nossos encontros passei a contar-lhes contos de fadas. Desde então, ela adormecia
no divã. Pude fazer o embalo de que ela necessitava para conseguir se desligar do
mundo externo. Ao ouvir a história ela chupava o polegar e com a outra mãozinha
brincava com a parede, sem contato visual comigo. Feito o ritual, lentamente dormia.
Foi um período muito fecundo em sua análise. Ela pôde experimentar uma
separação compartilhada de modo a respeitar o seu ritmo.
A outra experiência se deu com uma mulher de aproximadamente quarenta
anos. Na ocasião ela tinha incerteza sobre seu bom desempenho como mãe e como
profissional. Oportunamente passei a narrar-lhe a história do Patinho Feio. Certo dia,
ela me disse que comprou o livro dessa história e que sonhava com o dia em que se
olharia no espelho e não veria mais sombra.
Na minha prática docente
62
vivi uma situação delicada e pude por meio da
história firmar vínculo. A situação foi a seguinte. Assumi
63
uma sala como professora
substituta de aulas de Psicologia para alunos do curso de Filosofia. Logo de início eu
61
Ver SAFRA, Gilberto. Momentos mutativos em psicanálise: uma visão winnicottiana. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 1995. 213p.
62
Centro Universitário Assunção – UNIFAI, nas disciplinas Psicologia Cientifica 1 e 2, Psicologia da
Educação no curso de Licenciatura em Filosofia.
63
Agradeço ao Padre Anselmo a oportunidade.
53
anunciei que naquele momento eu era uma espécie de madrasta – referindo-me ao
meu papel de substituta. Ao explicitar essa condição pude de maneira lúdica
apresentar o tema do abandono – o que muitos deles poderiam sentir com a
substituição de professor. Depois combinei com a turma que nos quinze minutos
finais eu contaria um dos três contos de fadas oferecidos. Esse momento facultativo
era a hora do conto. Isso aconteceu durante um bimestre. De início, permaneciam
na sala apenas os alunos mais curiosos. Certos alunos do curso de Filosofia
sentiam-se infantilizados e até mesmo ofendidos com tal proposta. Porém, aos
poucos, a turma ficou unânime para ouvir histórias. Alguns deles confessaram: as
histórias eram ansiosamente aguardadas. A votação para a história do dia era um
fenômeno muito interessante. Sem dúvida, a hora do conto mobilizava os alunos.
Pude perceber que esta experiência estreitou os laços entre nós, professora e
alunos. Favoreceu a transmissão dos conteúdos curriculares e melhorou a relação
afetiva com a sala.
Em suma, posso dizer que os contos de fadas são significativos para mim
como algo que cresceu comigo, tornou-se instrumento de intervenção na minha
prática clínica, na minha prática docente e no doutoramento.
2.1 - A vida com histórias
Traça (1998)
64
postula “O que a Psicanálise pensa ter descoberto nos nossos
dias sobre a função terapêutica e educativa dos contos, as Sociedades Tradicionais
sabem-se desde há muito, e a sua prática prova que o consideram fundamental na
vida da comunidade”. (TRAÇA, 1998, p. 29). Ainda para a autora: “Os contos
64
TRAÇA, Maria Emília. O fio da memória: do conto popular ao Conto para Crianças. Coleção Mundo
de Saberes 3. Portugal: Porto Editora. 1998. 174p.
54
populares foram actos simbólicos através dos quais os camponeses enunciaram as
suas aspirações, projectaram a possibilidade de um conjunto de meios imaginários
que lhes permitisse esperar uma metamorfose em suas vidas”. (TRAÇA, 1998, p.
46). Desse modo, o conto popular é visto como elemento alojado na vida em
comunidade, veículo dos sonhos, desejos e frustrações humanas. Enraizado na
comunidade o conto tem potencialmente um efeito terapêutico e também educativo.
Encarando-o dessa forma, o reconhecemos na esfera da vida para além de uma
disciplina acadêmica.
Jesualdo (1980)
65
acredita que o princípio que regia os contos primitivos era o
da oralidade. Assim, a narração desempenhou papel essencial na história da
humanidade pois, conseguia reunir o homem primitivo.
Para ele a função da literatura infantil é a de estimular na criança interesses
até então adormecidos e despertá-los para o mundo que a rodeia. Em sua
perspectiva, a literatura infantil contribui para a evolução psíquica da criança ao agir
sobre as forças do intelecto, ao favorecer a imaginação, ao encorajar o senso
estético e, principalmente, ao conceder a possibilidade de identificação. O
dramatismo na literatura infantil torna-se a tradução dos movimentos internos da
criança. Jesualdo crê na luta infantil por transcendência e na instrumentação da
literatura como facilitador desse intento. Em síntese, o autor privilegia três aspectos
relevantes do conto infantil: explicar o mundo e a vida; transmitir conhecimentos e
experiências; criticar a sociedade. Acrescenta o autor:
(...) mas hoje o conto serve, além disso, para sedimentar aqueles
poderes psíquicos que fortalecem a imaginação e criam a
verdadeira base de equilíbrio do espírito humano: base na qual
realidade e sonho estarão perfeitamente unidos, sem que o sonho
iluda o sentido da realidade e esta tampouco chegue a matar o
65
JESUALDO. A literatura infantil. São Paulo: Cultrix, 1980. 210p.
55
encanto e a beleza de uma vida em que se sente o gozo de viver
pela beleza o encanto do mundo que conseguimos plasmar.
(JESUALDO, 1980, p.114-115).
Mais especificamente sobre contos de fadas, o autor, recupera a gênese
grega da palavra fada, a qual, indica o que brilha. Pode-se compreender a fada
como aquela que representa o destino humano. A questão originária de onde vieram
as fadas? é pensada por Jesualdo. Ele estima que as fadas têm procedência persa.
Elas inicialmente eram pagãs e imortais, conservam atributos antigos mas, tendem a
se transformar segundo as necessidades da atualidade. Obedecendo a tal
plasticidade as fadas já foram profetisas, damas do bosque, dentre outras figuras.
Vale lembrar, nos contos existem fadas boas e fadas más.
Segundo Jesualdo, os contos de fadas provêm da sabedoria popular. O
folclore é a sua sustentação. As histórias de Perrault e Grimm não foram inventadas
por ou para crianças. O seu início foi o da transmissão de experiências vivas pelo
povo. Atualmente os contos de fadas são contados de forma majoritária para a
criança.
Dando continuidade a sua discussão sobre os contos de fadas, Jesualdo
aponta a essencial característica deles: a presença do elemento maravilhoso cujo
aparecimento dá impulso a vida imaginativa do leitor, do ouvinte ou do narrador. Os
seus personagens representam defeitos ou virtudes: orgulho, modéstia, coragem,
covardia, feiúra, beleza, bondade, maldade. Jesualdo admite: com freqüência as
crianças preferem ser os personagens maus encenados nas histórias. Ao que se
refere a legitimidade dos contos de fadas, afirmar o autor: “Tudo o que se imagina é
real; imaginar é, assim, recriar realidades” (op. cit, p.127). Exposto dessa forma, o
autor considera a realidade psíquica e os efeitos que os personagens das histórias
infantis podem ter para a criança.
56
Cunha (1989)
66
assinala a literatura como responsável por um organização
verbal do sujeito referente tanto as suas experiências internas como externas
enriquecidas por sua atitude imaginativa, o que resulta em significações autônomas
da obra. A literatura gera uma espécie de comunicação interna no ser.
Para ela, nos contos, o discurso direto favorece o entendimento e envolve
mais facilmente a criança ouvinte, pois, há atualização da cena e dos fatos o que
provoca certa dose de realismo ao narrado. Em sua perspectiva, a literatura infantil
divide-se em três fases, a saber: a do mito, a do conhecimento da realidade e a do
pensamento racional. No mito, período compreendido entre os três e oito anos de
idade, há predominância da fantasia. A alma é considerada onipresente. Os contos
de fadas seriam o gênero literário recomendado para essa faixa etária. No
conhecimento da realidade, dos sete aos doze anos, a criança valoriza o empenho
pessoal do herói para vencer grandes obstáculos. Durante o pensamento racional,
época da adolescência, os problemas sociais são alvos de maior preocupação do
leitor. A autora articula o amadurecimento da criança a o tipo de literatura mais
indicado a contemplar as suas necessidades típicas de cada faixa etária.
Para Coelho (1982)
67
a literatura expressa experiências, tanto do autor, como
do leitor. Sua tarefa é a de traduzir verdades individuais integradas à verdade geral.
A arte literária vence o tempo por manter vivo o interesse do ouvinte na atualidade.
Para ela, o conto maravilhoso define-se “pela narrativa que decorre em um espaço
fora da realidade comum em que vivemos, e onde os fenômenos não obedecem às
leis naturais que nos regem” (Op. cit., p. 85). De forma mais peculiar é a figura da
fada ao qual encarna a probabilidade de concretização dos sonhos. De maneira
análoga ao pensamento de Jesualdo, a autora não assegura a origem das fadas,
66
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura infantil: teoria e prática. São Paulo: Ática, 1989. 175p.
67
COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil. São Paulo: Quíron, 1982. 418p.
57
apenas afirma que elas nasceram na imaginação humana. Arrisca-se a delimitar a
origem celta dos contos, entre os bárbaros, aproximadamente no século II a. C/
século I da era cristã, nas Gálias, Ilhas Britânicas e Irlanda. Nesse contexto, as fadas
teriam surgido como entidades representantes de forças psíquicas e metafísicas.
Propp (1997)
68
estudou a base histórica dos contos maravilhosos tomando
por material de análise contos do norte da Rússia, especialmente de Afanas’ev
69
.
Para ele, a origem dos contos não está ligada a uma base econômica. Ele observa
que as partes constitutivas de um conto podem ser transportados de um conto a
outro, permitindo a realização de sua morfologia dos contos maravilhosos
70
. O autor
acredita que o que agora é narrado, outrora foi feito. Por conseqüência, a sua
compreensão é a de que a composição dos contos advém da realidade histórica do
passado. A respeito das similaridades encontradas nos contos estudados, observa
Propp:
68
PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
471p.
69
Ver AFANAS’EV, Aleksandr. Contos de Fadas Russos. São Paulo: Landy, 2002, 302p.
70
Ver PROPP, Vladimir. Morfologia do conto. Lisboa: Vega, 1983. 286p. Nessa obra, Propp
identificou 31 funções presentes nos contos maravilhosos, a saber: 1) um dos membros da família
afasta-se de casa, 2) ao herói, impõe-se uma interdição, 3) a interdição é transgredida, 4) o agressor
tenta obter informações, 5) o agressor recebe informações sobre a sua vítima, 6) o agressor tenta
enganar a sua vítima para se apoderar dela ou de seus bens, 7) a vítima deixa-se enganar e ajuda
assim o seu inimigo sem o saber, 8) o agressor faz mal a um dos membros da família ou prejudica-o,
8a) falta qualquer coisa a um dos membros da família; um dos membros da família deseja possuir
qualquer coisa, 9) a notícia da malfeitora ou da falta é divulgada, dirige-se ao herói um pedido ou uma
ordem, este é enviado em expedição ou deixa-se que parta de sua livre vontade, 10) o herói-que
demanda aceita ou decide agir, 11) o herói deixa a casa, 12) o herói passa por uma prova, um
questionário, um ataque, etc. que o prepara para o recebimento de um objecto ou de um auxiliar
mágico, 13) o herói reage às acções do futuro doador, 14) o objecto mágico é posto à disposição do
herói, 15) o herói é transportado, conduzido ou levado perto do local onde se encontra o objectivo da
sua demanda, 16) o herói e o seu agressor defrontam-se em combate, 17) o herói recebe uma marca,
18) o agressor é vencido, 19) a malfeitoria inicial ou a falta são reparadas, 20) o herói volta, 21) o
herói é perseguido, 22) o herói é socorrido, 23) o herói chega incógnito a sua casa ou a outro país,
24) um falso herói faz valer pretensões falsas, 25) propõe-se ao herói uma tarefa difícil, 26) a tarefa é
cumprida, 27) o herói é reconhecido, 28) o falso herói ou o agressor, o mau, é desmascarado, 29) o
herói recebe uma nova aparência, 30) o falso herói ou o agressor é punido, 31) o herói casa-se e
sobe ao trono. Além disso, o autor reuniu sete personagens que cumprem tais funções, são eles: 1) o
agressor, 2) o doador, 3) o auxiliar, 4) a princesa e seu pai, 5) o mandatário, 6) o herói e 7) o falso
herói.
58
Estudaremos aqui o gênero de contos que começam por um dano ou
um prejuízo causado a alguém (rapto, exílio), ou então pelo desejo
de possuir algo (o czar manda seu filho buscar o pássaro de fogo), e
cujo desenvolvimento é o seguinte: partida do herói, encontro com o
doador que lhe dá o recurso mágico ou um auxiliar mágico munido
do qual poderá encontrar o objeto procurado. Seguem-se: o duelo
com o adversário (cuja forma mais importante é o combate com o
dragão), o retorno e a perseguição. Freqüentemente essa
composição torna-se mais complexa. Quando o herói se aproxima de
casa, seus irmãos lança-no em um precipício. Mas ele consegue
retornar, passa por uma provação cumprindo tarefas difíceis, torna-
se rei e se casa, em seu reino ou no do sogro. (PROPP, 1997, p.4)
Para o referido autor, os contos conservaram ao longo do tempo vestígios de
ritos e de costumes. Porém, há algumas imagens e situações nos contos que não
remontam a nenhuma realidade imediata. Eles também possuem uma característica
atemporal. Dentre a sua minuciosa análise gostaria de enfatizar alguns pontos. O
primeiro deles é a presença de certas proibições recorrentes. Tais impeditivos
remetem ao medo humano da ação violenta de forças invisíveis e fora de controle e
de explicação do homem, ou de sua consciência. Também acredito ser relevante
apontar a presença de desgraça no enredo. Em geral, a desgraça é convertida em
sucesso no final da história. Não raro, o herói sai de casa rumo a um aprendizado.
Ele se provê de instrumentos ou de companhia para enfrentar a desgraça. Há
freqüentemente um sacrifício a ser feito. Em diversas histórias, o herói bate à porta
da morte sem saber o perigo que corre. Em outras, ele se disfarça para cumprir a
sua missão. O que remete à sua entrada em outro mundo.
A propósito, apesar de reconhecer que Propp não intenta o estudo psicológico
dos contos, eu compreendo que a sua análise evidencia a sustentação das histórias
maravilhosas através do atemporal drama humano: a morte. Acredito que a morte
atravessa os contos maravilhosos ao longo do tempo. Entendo a morte presente nas
histórias tanto como a finitude humana como a reinvenção de si mesmo, rumo a um
aprendizado. “A narrativa é uma espécie de amuleto verbal, um recurso de ação
59
mágica sobre o mundo ao redor”. (PROPP, 1997, p. 442) Assim sendo, narrar essas
histórias é potencialmente lidar frente a frente com o morrer.
Coelho (1991)
71
acredita que a origem do contar histórias se deu apoiada na
necessidade humana de transmitir a experiência individual acolhida por significação
coletiva. A gênese remete à fala, de geração a geração, antes da escrita. As fontes
possíveis de início dos contos provêm do Oriente, os quais de forma heterogênea,
difundiram-se pelo ocidente europeu durante a Idade Média. Um dos destaques das
fontes orientais foi o conto Calila e Dimma, provavelmente surgido na Índia,
aproximadamente no século V a. C. que, com tradução persa, expandiu-se no século
VI a. C. Segundo a autora, vários motivos dessa história coincidem com os de As mil
e uma noites. As narrativas pantschatantra tiveram ampla divulgação no formato
moralizante. Hitopadexa ficou conhecida por sua instrução útil, com tradução para
línguas modernas. Barlaam e Josefat, novela mística, com sua tradução latina, foi
reconhecida como uma versão da lenda de Buda. As mil e uma noites, para a
autora, é uma das compilações orientais mais célebres. Estima-se que a obra deve
ter sido completada no fim do século XV mas, somente no século XVIII chegou ao
mundo europeu e finalmente no início do século XIX tornou-se objeto de estudo, de
apreciação e de crítica literária.
Ainda para Coelho (1991), durante a Idade Média duas fontes distintas
alimentam a literatura desse período, a propósito: uma forma popular, tendo como
característica a narrativa derivada das fontes orientais antigas. A outra, proveniente
das aventuras de novela de cavalaria, predominantemente de inspiração ocidental.
As aventuras de cavalaria, o ideal do guerreiro, do amor e da ética são
recorrentemente os temas evocados nesse gênero.
71
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. São Paulo: Ática, 1991.
285p.
60
A pesquisadora aponta as alterações das histórias em conformidade com a
sofisticação dos costumes. Mais especificamente os temas de violência ou crueldade
são, para ela, reiterados ao longo do tempo.
Veja-se, por exemplo, a estória do Chapeuzinho Vermelho: na
versão original, registrada por Perrault, o lobo devora avó e neta; na
versão de Grimm, essa violência é ‘atenuada’ com o aparecimento
do caçador, que abre a barriga do lobo, de onde as duas saem
vivas; e nas versões mais modernas, o lobo é ‘bonzinho’...
(COELHO, 1991, p.34).
A autora reconhece a ligação direta das vicissitudes dos contos de acordo
com as particularidades históricas
72
e culturais
73
. Assim sendo, ela acredita na
atualização das histórias por novos ouvintes e narradores. A transmissão dos contos
pauta-se tanto pela identificação na trama, bem como o processo de singularizar-se
nas histórias, adaptando-as, se for o caso.
Coelho (1991) interpreta o período do renascimento como aquele que deixou
marcas indelineáveis à profusão da literatura dado o registro gráfico das histórias.
Porém, foi no âmbito popular que a transmissão oral perdurou como fonte
privilegiada. Caravaggio, foi destaque desse período ao recolher, em Noites
agradáveis, diversas narrativas que circulavam na voz do povo em várias províncias
italianas. O elemento maravilhoso marcou a identidade desses contos.
Na França, na segunda metade do século XVII, surgiu a responsabilidade em
se produzir obras para crianças: As fábulas (1668) de La Fontaine; Os contos da
mamãe gansa (1691) de Charles Perrault; Os contos de fadas (8 volumes,
1696/1699) de Mme D’Aulney, Telêmaco (1699) de Fénelon
74
.
72
A história da literatura infanto-juvenil no Brasil não será contemplada nesse texto.
73
Em outra perspectiva ver ECO, Umberto; BONAZZI, Marisa. Mentiras que parecem verdades. São
Paulo: Summus, 1980, 132p.
74
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira: 1882/1982. São
Paulo:Quiron,1983.
61
Jean de La Fontaine (1621-1695) escreveu fábulas para os adultos, porém
foram as crianças que a adotaram. Seus pequenos poemas narrativos versavam, e
ainda versam, moralidade ao mesmo tempo em que divertem e instruem.
Charles Perrault (1628-1703), segundo a autora, somente em Pele de Asno
(1694) referiu-se especificamente ao público infantil. Marie-Catherine Le Jumel de
Barneville, Baronesa d'Aulnoy (1651- 1705) também publicaram contos de fadas,
popularizando a expressão que atualmente é empregada. François Fénelon (1651-
1715), publicou As aventuras de Telêmaco, em dezoito livros. O eixo dessa
produção trouxe a procura das origens para o sujeito compreender-se melhor.
A presença da fantasia e da imaginação na literatura infantil tornaram-se
características essenciais. Sua gênese valorizou os textos da antiguidade clássica e
da transmissão oral popular. O panorama do surgimento de uma literatura para
crianças contrasta com a demanda da época, ou seja, a ordem racional. Aquela
sociedade francesa esforçava-se para aprimorar o pensar. Criou-se, na interpretação
da autora uma tensão dialética entre razão e emoção.
Ainda para Coelho (1991), no século XVIII, a Inglaterra tornou-se a
divulgadora do novo gênero literário chamado Romance. A autora destaca:
Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (1660-1731), Viagens de Gulliver, de Jonathan
Swift (1667-1745), obras centrais desse período.
O século XIX marcou-se por abarcar tendências e estilos literários
diversificados: culto e popular pareciam mesclar-se.
Os irmãos Grimm, Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859), renomados
autores, concentraram-se em recuperar a memória popular germânica, conservadas
62
pela tradição oral. Tal estudo folclórico foi publicado entre 1812 e 1822 com o título
Contos de Fadas para Crianças e Adultos
75
.
A autora descreve elementos estruturais dos Contos de Grimm, a saber: 1)
contos de fadas: contos maravilhosos com a presença das fadas; 2) contos de
encantamentos: há presença de metamorfose; 3) contos maravilhosos: elemento
mágico integrado às situações vividas, 4) fábulas: são vividas por animais; 5) lendas:
o fantástico opera milagres, 6) contos de enigmas ou mistérios: o objetivo é o de
desvendar o segredo e 7) contos jocosos: de natureza humorística. De modo geral,
há apenas um núcleo temático e o enredo é simples. Além disso, a estrutura os
contos remete a uma repetição, segundo a autora:
Essa reiteração dos mesmos esquemas, na literatura popular,
infantil, vai, pois, de encontro a uma exigência interior de seus
leitores; apreciarem a repetição das “situações conhecidas”, porque
isso permite o prazer de conhecer ou saber, por antecipação, tudo o
que vai acontecer na estória. E mais. Dominando, a priori, a marcha
dos acontecimentos, o leitor sente-se seguro, interiormente. É como
se pudesse dominar a vida que flui e escapa ... (COELHO, 1991, p
145).
É particularmente interessante o destacar a repetição do mesmo que atrai a
criança para a tentativa de colocar sob seu domínio experiências que escaparam à
sua compreensão e/ou que se tornaram traumáticas e disruptivas do si mesmo.
Ainda sobre a importância da repetição, Radino (2003)
76
acrescenta:
75
Segundo a autora os títulos dessa obras são: A Bela Adormecida, Os músicos de Bremen, Os sete
anões e a Branca de Neve, O Chapeuzinho vermelho, A gata borralheira, As aventuras do irmão
folgazão, O corvo, Frederico e Catarina, Branca de Neve e Rosa vermelha, O ganso de ouro, A
donzela que não tinha mãos, O pescador e as esposas, A dama e o leão, O alfaiate valente, Os sete
corvos, O rato, o pássaro e a salsicha, A casa do bosque, O lobo e as sete cabras, O guardador de
gansos, O príncipe rã, O caçador habilitado, Olhido, Doisolhinhos, Tresolhinhos, O lobo e o homem,
O príncipe e a princesa, A luz azul, O lobo e a raposa, O enigma, a raposa e a comadre, A raposa e o
gato, Margarida, a espertalhona, A alface mágica, As três fiandeiras, João jogatudo, A morte da
franguinha, A velha do bosque, O prego, Joãozinho e Maria, O diabo e a avó, O senhor compadre,
João, o felizardo e o Pequeno polegar.
76
RADINO, Glória. Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no
desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2003. 236p.
63
O pedido de contar outra vez é uma forma de a criança apropriar-se
de suas emoções e elaborá-las. A partir daí, poderá recontar a sua
história, dramatizá-la e brincar com sua realidade interna. Como um
brinquedo, utiliza o simbolismo dos contos de fadas para expressar
suas angústias. Fazendo uso dos personagens, tanto bons como
maus, ela pode identificar-se com cada um deles, em diferentes
momentos, assim que sua necessidade e sua angústia são
despertadas. Os contos de fadas mostram que o amadurecimento é
ao mesmo tempo difícil e possível, podendo fazer a criança
encontrar um final feliz, como o herói da sua história preferida.
(RADINO, 2003, p. 143)
77
.
A autora sinaliza para o efeito terapêutico dos contos de fadas para a criança.
O amadurecimento pessoal traz obstáculos que produzem sentimentos ambivalentes
para a criança. A chance de ela usar as histórias possibilita-a ser ativa em seus
dramas, inclusive podendo experimentar a bondade e a maldade da existência
humana.
Segundo Bettelheim (2007
78
) “os contos dão contribuições psicológicas
grandes e positivas para o crescimento interno da criança”. Assim, os contos de
fadas oferecem novas dimensões à imaginação da criança o que pode auxiliá-la a
esclarecer-se e pode também favorecer o desenvolvimento de sua personalidade.
Pelas razões citadas, pode-se afirmar que os contos de fadas logram capacitar a
criança a lidar com seus conteúdos inconscientes através da externalização de seus
processos internos facilitados pela projeção e pelas identificações presentes nas
imagens e nas ações dos contos de fadas.
A escolha do conto pela criança, segundo o autor, liga-se aos interesses e
necessidades emocionais da criança. Nesse sentido, os significados dos contos de
fadas são diferentes para cada criança e, para a mesma criança em momentos
diferentes da sua vida.
77
Op. cit.
78
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2007 437p.
64
Corso e Corso (2006)
79
, como pais e como psicanalistas, discutem histórias
infantis folclóricas e modernas à luz da psicanálise. Para os autores freqüentar
histórias inventadas por outras pessoas ajuda a pensar a própria existência. Os
enredos que são escolhidos por nós nos falam de perto sobre nossos conflitos
vividos e destinos por nós almejados. As histórias trazidas nessa obra foram
interpretadas com base nas fantasias que elas potencialmente evocariam na criança.
A análise se entrelaça por dois caminhos bastante interessantes. O mais tradicional,
o de interpretar o conteúdo das histórias, e outro, o de discutir a importância do ato
de narrar uma história.
Das histórias folclóricas interpretadas destaco a história de Chapeuzinho
Vermelho. Para os autores, essa história encena o drama da perda da inocência
infantil. A personagem central, uma menina, representaria a passividade feminina. O
menino também pode se identificar com Chapeuzinho Vermelho pois, o que está em
jogo não é exatamente uma questão de gênero e sim da subjetividade. Segundo
eles, a sexualidade infantil nessa história é abordada em três momentos, são eles:
ter, saber e exercer a sexualidade. A criança transitaria por dois momentos iniciais.
Em outra perspectiva, os autores apontam Chapeuzinho Vermelho como uma
história que evoca o medo da criança. Paradoxalmente, a criança com medo tem o
prazer de encontrar o lobo. Ela constata que ele é real e perigoso, assusta-se, e, ao
final da história, tranqüiliza-se. O lobo mau é entendido por esses autores como uma
versão selvagem do perigo doméstico da criança: lidar com as figuras parentais.
Além do conteúdo das histórias Corso e Corso discutem a atividade de contá-
las. Para eles, fazê-lo no contexto familiar sela uma identidade daquele grupo ao
compartilhar a narrativa. Mais adiante, acrescentam os autores: “Um conto criado
79
CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis.
Porto Alegre: Artmed, 2006. 326p.
65
para os filhos é com um sonho sonhado em voz alta pelo pai” (Op. cit., p. 298). O
discurso parental ajuda a criança a construir a sua própria história, a ter voz, em
suas palavras, a fabricar o livro de uma vida. Para que esse fenômeno ocorra os
pais teriam de ser suficientemente narrativos. O termo foi criado por eles com base
no conceito winnicottiano de mãe suficientemente boa. Pais suficientemente
narrativos abriga a expansão da área de ilusão mãe-bebê com o aparecimento do
pai e de sua interdição. Com a figura paterna, os vínculos do bebê com o ambiente
se expandem. Assim sendo, novos personagem ajudam a criança a se identificar, a
se ver e a criar a sua ficção de si mesma. Concluindo, a vida com história é um
apoio concreto dos pais para seus filhos.
2.2 - Clínica com histórias
Considero as diversas formas de jogo da criança, assim como as
histórias, não só como um modo de encontrar expressão para
desejos inconscientes, mas fundamentalmente como um modo de
colocar seus conflitos subordinados à sua criatividade, ou seja, sob
o domínio do eu (...). (SAFRA, 2005, p.23)
80
Safra lança luz sobre a importância da história para a criança ao deslocar a
discussão dos processos inconscientes subjacentes à trama da história para a
valorização da história em si mesma, como uma experiência para ela. As histórias
infantis (os contos de fadas) tendem a apoiar a criança no seu desenvolvimento
emocional. Desse modo, podem ser utilizadas no setting psicanalítico. Safra (1984)
defendeu a Dissertação de Mestrado intitulada: Um método de consulta terapêutica
através do uso de estórias infantis. Para o desenvolvimento desse trabalho, afirma
ser “desejável que se possa contar com a família do cliente e que ela seja
razoavelmente adequada para que possa colaborar no processo de auxílio à
80
SAFRA, Gilberto. Curando com histórias: a inclusão dos pais na Consulta Terapêutica. São Paulo:
Sobornost, 2005. 98p.
66
criança, e aprender a perceber e a lidar com os momentos de crise ao longo do
crescimento de seu filho”. (SAFRA, 1984, p.18)
81
.
Em primeiro lugar, Safra tem contato com os pais, no segundo momento com
a criança e depois novamente com os pais para aplicação do método por ele
elaborado, o qual consiste basicamente em criar uma história que diz das angústias
da criança, a ser contada para a criança pelos seus pais em casa. Através dos
dados obtidos nas entrevistas cria-se a história; por isso é tão fundamental a
participação da família, tanto para contar a história como para preservá-la, sem
cortes.
Num dos casos trazido por Safra, destaco um fragmento do seu texto o qual
traz o relato de uma situação de uma criança que ao ouvir, pela segunda vez, a
história contada pelo pai diz: Você está falando de mim. (Op. cit., p. 53). Essa garota
se reconheceu na história contada por seu pai e isso facilitou sua aproximação a um
ponto de angústia. O autor percebeu que esse método é eficiente para casos em
que o comprometimento no desenvolvimento emocional não é excessivamente
perturbado. (Op. cit., p. 90). Safra demonstrou que a criança pode se reconhecer ao
ouvir uma história e que isso pode ter um efeito terapêutico para ela.
Bettelheim
82
afirma “só então as associações livres da criança com a estória
fornecem-lhe o significado mais pessoal, e assim ajudam-na a lidar com problemas
que a oprimem. ”(Op. cit., p. 74). Quer dizer que, podemos apenas aventar hipóteses
do que uma história representa para uma criança. Nesse sentido, a clínica que lança
mão de histórias deve se ater ao uso que a criança faz da história escolhida sem
antecipar os possíveis sentidos para ela.
81
SAFRA, Gilberto. Um método de consulta terapêutica através do uso de estórias infantis. 1984. 96
f. Dissertação (Mestrado em psicologia Clínica) – Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1984.
82
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2007 437p.
67
Hisada (1997)
83
objetivou usar histórias em psicoterapia breve de adultos
numa tentativa de superar a resistência dos pacientes em dado momento do
tratamento
84
. A autora aponta como resultados principais do uso de histórias a)
conter angústia, b) a função de comunicação no processo terapêutico, c) reconhecer
o material que pertence ao seu percurso de vida, à sua dinâmica, através da história
que foi utilizada como recurso de comunicação d) o reconhecimento por parte dos
pacientes de que aspectos descritos na história pertencem à sua realidade psíquica.
Gutfreind (2003)
85
realizou uma pesquisa clínica e comparativa com crianças
vítimas de separação prolongada ou duradoura dos pais numa escola do subúrbio
parisiense. Em relação aos resultados da intervenção, assinala: “A custo, mas com
prazer; sem milagres, porém com certa arte, a psiquiatria que fizemos revelou que o
trabalho com contos (e os terapeutas-contadores) auxiliou as crianças a
encontrarem representações para o seu sofrimento, bastante marcado pela
separação e pelo abandono (...)” (Op. cit., p.16). O autor propôs durante um ano
letivo o ateliê de no máximo seis crianças com ajuda de adultos, nomeados
guardiões do enquadre ou auxiliares de escuta. Fizeram parte do repertório tanto os
contos tradicionais: Os três porquinhos, Chapeuzinho Vermelho, Cachinhos
Dourados, Branca de Neve, João e Maria e o Pequeno Polegar; e também alguns
contos modernos. A dinâmica do ateliê constituía-se em três momentos: o contar, o
encenar e o desenhar a história. Esse trabalho ajudou a estimular a atividade de
simbolização, a verbalização e a abstração; além de manter as imagos parentais
vivas na criança.
83
HISADA, Sueli. A utilização de histórias no processo terapêutico. 1997. 117 f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1997.
84
A autora aponta certos limites do uso de histórias na clínica, tais como, com pacientes obsessivo,
narcísicos e muito infantilizados.
85
GUTFREIND, Celso. O terapeuta e o lobo: a utilização do conto a psicoterapia da criança. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 224p.
68
O autor pontua ser primordial a presença de um adulto encarnado no contato
com essa população de crianças, pois a voz, a interação e o próprio corpo
favorecem o embalo da história. Os contos atuavam como mediadores no vínculo da
criança com o adulto. Gutfreind, aproxima o sonho ao conto no sentido de
reconhecer o funcionamento os mesmos mecanismos psíquicos: deslocamento,
simbolização, condensação e realização de desejo inconsciente. Em um dado
momento do ateliê várias crianças passaram a ter pesadelos com o lobo e
precisavam relatar logo no início da intervenção tais sonhos. Uma auxiliar de escuta
e professora das crianças fez uma votação para decidir se as histórias com o lobo
continuavam no ateliê: o lobo continuou. Ficou evidenciado como a figura do lobo
mau estimulava a vida imaginativa das crianças adentrando o seu mundo onírico.
Em diversas situações, o lobo ajudou no processo de elaboração do luto de alguns
ouvintes.
Comumente nas encenações as crianças se apegavam a algum trecho da
história original enfatizando-a durante várias sessões do ateliê. Por exemplo, na
história dos três porquinhos, a frase privilegiada na dramatização era : “Eles deram
tchau à sua mamãe” . A escolha desse diálogo não era aleatória, pois a história dos
três porquinhos parecia evocar o momento de vida daquelas crianças: marcadas
pelo distanciamento dos pais. Dessa maneira, segundo o autor, o jogo dramático
favoreceu a elaboração de aspectos decisivos do sofrimento psíquico das crianças
no ateliê.
Os desenhos, feitos na terceira etapa do ateliê, tornaram-se uma espécie de
testemunho do uso dos personagens, do enredo e do discurso propiciados pelas
histórias. O desenhar possibilitou que os dramas infantis fossem figuráveis.
69
Por conseguinte, o efeito terapêutico dos contos deve-se ao favorecer a
criação de pontos de referências reais para a criança; por possibilitar que os conflitos
pudessem ser pensados, por capacitar o ouvinte a lidar com a própria angústia e por
ajudar a criança a inventar as suas próprias metáforas. Para o autor, os contos
tradicionais são reservatórios de medos humanos; dentre eles: o do abandono, o de
estar só, o de morrer, o de matar, o de ser preterido a um irmão. Portanto, ouvir
essas histórias pode dar à criança a esperança de que esses medos possam ser
combatidos e até mesmo superados. Em suma, o conto acolhe o caos.
Em outra área, a da fonoaudiologia, Souza (2002)
86
preocupou-se com a
narrativa de crianças, entre quatro e cinco anos e idade, após terem sido
estimuladas pelo adulto com a narração de contos de fadas. A pesquisadora
objetivou incentivar a participação ativa da criança-ouvinte na construção do seu
próprio discurso narrativo e no seu aprimoramento lingüístico. Para ela, a criança
está se humanizando no resgate da tradição oral, na troca com o adulto.
Os participantes desse estudo de caso eram de uma escola infantil, no sul do
Estado de Minas Gerais, cuja característica era a de pouco contato com o universo
da leitura e da escrita fora do contexto escolar, pois os pais provinham de classe
social mais baixa, com pouca escolaridade. Os encontros com as crianças
aconteciam em três etapas: a primeira, objetivava inserir a criança no enquadre
através de um clima em que elas podiam dizer o próprio nome, dentre outras
informações; a segunda, acontecia a narração da história escolhida pelas crianças,
na etapa anterior; a terceira, oferecia às crianças a oportunidade de elaborar a sua
própria narrativa.
86
SOUZA, Vera Cristina Alexandre de. Repercussões da narrativa do adulto no desempenho
narrativo da criança: um estudo de caso. 2002. 95 f. Dissertação (Mestrado em Fonoaudiologia) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002.
70
Dentre os participantes, certa vez, uma criança estava especialmente
agressiva e agitada, o que comprometia o ambiente proposto pela autora. No ímpeto
de ajudá-la, narrou-lhe o conto Irmão e Irmã. A história daquela criança, que vivia em
condições muito precárias e era vítima de maus tratos pelo padrasto, era conhecida
pela pesquisadora. Essa criança era considerada pela escola muito triste e agitada.
Ao ouvir a história a criança mudou de atitude, acalmou-se, demonstrou muita
atenção. No dia seguinte, o pedido para ouvir novamente aquela história levou a
pesquisadora a acreditar que a história pôde dar conforto àquele ouvinte. Noutra
circunstância, a mãe da criança foi entrevistada e relatou que seu filho pedia ao
irmão mais novo para sentar e ficar quieto enquanto ele narrava histórias inventadas.
A criança passou a pedir para a irmã mais velha que lhe trouxesse livros da
biblioteca. O estudo não trouxe mais dados sobre essa situação, assim, só me resta
pensar que o conforto psíquico obtido através da história incentivou a criança a
recriar em casa o ambiente experimentado na escola.
Souza compreende as histórias como nutrição para a criança. Para a autora,
através da interação com o adulto, por meio da escuta da narrativa, a criança
constrói e se apropria do próprio discurso narrativo.
2.3 - O narrar
Walter Benjamim
87
considera a ato de narrar como uma forma artesanal de
comunicação. Para ele, enquanto se escuta uma história o sujeito está na
companhia do narrador. Em sua interpretação, tal evento tende a diminuir pois, de
um lado, raramente o narrador consegue narrar algo sem algum embaraço; de outro,
87
BENJAMIM, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e
técnica, arte e política: obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.197-221.
71
o ouvinte inclina-se a escutar informações prontas. Consequentemente a troca de
experiências na atualidade fica gradativamente mais improvável. O narrador agrega
como característica fundamental a capacidade de compartilhar suas próprias
experiências e das expostas por outros e permitir ao ouvinte a liberdade de
incorporar dados, interpretar e atualizar a história conforme a sua própria
necessidade. Desse modo, a narração concede uma obra ampla a qual pode ser
significada pelo ouvinte; os frutos podem ser colhidos. Por essa razão, apesar de
sua escassez a narrativa não acaba; sobrevive ao tempo ao ser cultivada pelo
ouvinte. Contar uma história é necessariamente recontá-la. O narrador infunde o seu
traço pessoal ao que é narrado. De acordo com o que adverte o autor: “(...) se
imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”
(BENJAMIM, 1994, p. 205).
Sobre a relação entre o narrador e o conteúdo narrado Benjamim surpreende
ao explicitar tal fenômeno como uma relação artesanal com a própria vida em que a
experiência, seja própria ou dos outros, deve ser fiada e transformada em produto
comunicável. Nessa perspectiva, a narração pode ser considerada um encontro
consigo mesmo.
Esse autor destaca o narrador de contos de fadas como o verdadeiro
narrador. Isso deve-se a sua tarefa de resgatar aquele que foi o primeiro conselheiro
da humanidade – o soltar-se do pensamento mítico. Os contos de fadas ensinaram a
humanidade e ensinam as crianças a vencer o mundo mítico com esperteza e com
sua suposta superioridade. Vislumbrar esse triunfo pode deixar a criança feliz.
A narrativa é algo bastante significativo na vida da comunidade. O conteúdo
que circula entre os ouvintes é amparo, sonho e o compartilhar a experiência. Para
Safra:
72
A narrativa insere as situações de vida no registro da temporalidade
humana, de maneira que cada conflito ou impasse acontece e em
seguida tende a uma resolução ou fim. Na narrativa o vir a ser
humano está devidamente contemplado (SAFRA, 2005, p.48)
88
.
Para Radino (2003)
89
o que é narrado pode ser presentificado
90
em cada ouvinte
justamente porque as histórias falam, em sua essência, de mistérios
da vida. Através de sua essência, mítica, tão necessária à
sobrevivência humana, os contos de fadas foram sendo transmitidos
durante séculos. O que existe de verdadeiro em suas narrativas é
que por intermédio de uma linguagem fantástica, eles procuram
explicar a existência humana. (RADINO, 2003, p. 44)
Than (1961)
91
elege alguns atributos essenciais aos contadores de histórias,
são eles: capacidade de sentir a história que será narrada, transmitir a história sem
afetação, ter domínio do enredo, preparar com sua voz, seus gestos e sua postura o
ambiente da narração e também ser capaz de emocionar-se com a própria narrativa.
Segundo Traça, “A narrativa ficcional envolve acções e personagens
independentes do universo empíricos, implica a criação de “mundo possíveis”
(TRAÇA, 1998, p.128)
92
. Assim sendo, os personagens podem ser boas companhias
para os leitores.
Gomes (2000)
93
compara Scheerazade, narradora, personagem da história
das Mil e uma noites, à prática psicanalítica. Scheerazade, na função masculina,
executa lei, moral e contenção; na função feminina, acolhe, tolera e é bonomia. O
88
SAFRA, Gilberto. Curando com histórias: a inclusão dos pais na Consulta Terapêutica. São Paulo:
Sobornost, 2005. 98p.
89
RADINO, Glória. Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no
desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2003. 236 p.
90
Grifo meu.
91
THAN, Malba. A arte de ler e contar histórias. São Paulo: Conquista, 1961, 222p. A autora
considera a importância da história infantil em cinco aspectos: 1) recreativo, 2) educativo, 3) instrutivo,
4) religioso e 5) físico.
92
TRAÇA, Maria Emília. O fio da memória: do conto popular ao conto para crianças. Coleção Mundo
de Saberes 3. Portugal: Porto Editora, 1998. 174p.
93
GOMES, Purificacion Barcia. O método terapêutico de Scheerazade: mil e uma história de loucura,
desejo e cura. São Paulo: Iluminuras, 2000. 221p.
73
sultão seria, por assim dizer, analogia do paciente na clínica psicanalítica. Um
paciente às avessas? Ouvinte? Qual seria, assim, o impacto de uma narrativa? Para
a autora,
Onde reside a força transformadora de uma narrativa? No medo que
nos causa? No encantamento? Uma boa narrativa faz rodopiar a
mente, altera a posição relativa dos valores, dos objetos, da
memória, das emoções. Tira-nos do eixo do cotidiano, do conhecido
e da mesmice que construímos, e dos quais ansiamos por escapar.
(GOMES, 2000, p. 35).
Wajnberg (1997)
94
também estudou a história das Mil e uma noites.
Entretanto, sob outra perspectiva. A autora considera essa história o paradigma do
fôlego incessante de uma narrativa. Aliás, ela a considera uma história do mais
narrar; uma vez que, após uma narrativa surge imediatamente o murmúrio por mais
uma história. O estilo miliumanoitesco de narração atiça a voragem do leitor e
demonstra, na visão da autora, a vertente incessante do desejo humano.
No contexto da narrativa em hospital, Mello Filho (2002)
95
descreve
supervisão de um atendimento psicológico de um rapaz de dezessete anos,
chamado de Antonio, realizado no Hospital Universitário Pedro Ernesto. Antonio
estava paraplégico, em decorrência de um acidente, que o deixou três meses em
coma. No momento da intervenção psicológica, Antonio estava internado há dez
meses por apresentar escaras de decúbito e infecções urinárias. Com certa
relutância, Antonio, vai contando a sua história para a psicóloga. Contudo, ele era
enfático ao afirmar que com ele não tinha esse negócio de tristeza. Segundo o
rapaz, toda a tristeza deveria ser apagada.
94
WAJNBERG, Daisy. Jardim de Arabescos: uma leitura das Mil e uma noites. Rio de Janeiro: Imago,
1997. 199p.
95
MELLO FILHO, Júlio. Concepção psicossomática: visão atual. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2002. 257p.
74
A forma de interação entre eles foi possibilitada pela redação de cartas. A
psicóloga o ajudou a escrever, por exemplo, uma carta para o Sílvio Santos no
programa Porta da Esperança. As cartas e os poemas foram sendo construídos na
relação e, no espaço deles, representado pelo papel. Antonio pode dizer de si
mesmo. Aos poucos, o relacionamento entre eles foi sendo marcado mais por
diálogo do que pela redação das cartas, uma vez que Antonio demonstrava ter
crescido emocionalmente.
Ainda sobre narrativas no contexto hospitalar destaco o trabalho de Santos
(2008)
96
o qual discute os sentidos do vazio em estudo realizado na Santa Casa de
Misericórdia de Assis-SP com catorze pacientes adultos. Para o estudo, a autora
utilizou a narração do conto O rosto atrás do rosto, de Marina Colasanti. Ao ler a
interpretação feita pela pesquisadora dos relatos dos pacientes, acompanhantes e
pessoas da equipe de saúde após a narração desse conto destaco um fenômeno
que considero intrigante, cito: “[...] aproveitou para me contar uma história popular de
sua cidade de origem, comentando que era a vez dela me contar uma história”. (Op.
cit., p. 68). Em minha intervenção também percebi esse fenômeno. Fui ao hospital
com o objetivo inicial de contar histórias. No entanto, tornei-me ouvintes das histórias
narradas.
A propósito, para Hisada, contar histórias “resgata uma das formas mais
antigas de transmissão da experiência humana através do encontro entre o contador
e ouvinte.”(...) Prossegue a autora: “a arte de narrar está ligada à arte de
intercambiar experiências na relação humana pois quem escuta uma história está
96
SANTOS, Sofia Dionisio. Sentidos do Vazio: um estudo sobre as narrativas e o fantasiar de adultos
hospitalizados. 2008. 131f. Dissertação. (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista, Assis, 2008.
75
em companhia do narrador” (HISADA, 1997, p.48)
97
. A presença do outro é de
fundamental importância para a troca de experiências. No espaço potencial a
criatividade acontece. O verdadeiro self pode emergir. O narrar histórias pode ser
uma das experiências possíveis construídas por mutualidade. Para Safra, “(...) só
uma intervenção acontecida no espaço potencial produz um efeito terapêutico
mutativo, eficaz e rápido, sem seduzir ou submeter a criança, conseguindo desta
forma uma real cooperação dela para o trabalho que se está realizando. (SAFRA,
2005, p.27)
98
.
Nesse momento do texto, torna-se fundamental reconhecer que nesse
trabalho o estabelecimento do espaço potencial foi algo decisivo para o
acontecimento da intervenção clínica. Todo esse capítulo transcorre a
potencialidade da história, da narrativa e do uso clínico de história. Contudo,
denominei-o Da história ao espaço potencial como procedimento a fim de ser mais
justa ao percurso dessa investigação uma vez que somente após a criação do
espaço potencial é que um encontro significativo pode ocorrer. A seguir,
apresentarei ressonâncias do pensamento e da clínica de Donald W. Winnicott
nessa pesquisa.
97
HISADA, Sueli. A utilização de histórias no processo terapêutico. 1997. 117 f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1997.
98
Op. cit.
76
3. A CONTRIBUIÇÃO DE WINNICOTT
Nos anos 40
99
, a humanidade estava atravessada por um profundo mal-estar
advindo da II Guerra Mundial. O modo de se lidar com a vida humana entrou em
crise. Surgiu uma suspeita dos benefícios do progresso para a humanidade. O
avanço tecnológico passou a ser questionado. Nesse cenário, Winnicott preconizou
o saber materno em meio a um discurso excessivamente técnico. Primeiro, como
médico pediatra, questionou a rigidez da pediatria nos cuidados infantis. Depois,
como psicanalista, advogou uma psicanálise para além da técnica. Acredito que
esse é o ponto de partida da contribuição de Winnicott - demasiado questionador,
profundamente humano -, para essa tese.
Procurei abordar nesse capítulo, o conceito de espaço potencial, as consultas
terapêuticas e o gesto. Para tal, recorri a Winnicott, a Safra e a Galimberti, dentre
outros, para sustentar as reflexões.
3.1 - Revisitando o Espaço Potencial
O espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a
família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo, depende da
experiência que conduz à confiança. Pode ser visto como
sagrado
100
para o indivíduo. Porque é aí que experimenta o viver
criativo. (WINNICOTT, 1975, p. 142)
101
.
Segundo diversos autores, dentre eles - Safra, Outeiral, Mello Filho, Abadi - a
contribuição original do pensamento de Winnicott reside no anúncio de uma terceira
área de experimentação denominada espaço potencial. A transicionalidade acontece
99
Esse parágrafo foi baseado na disciplina Perspectivas epistemológicas, metodológicas e
antropológicas no pensamento de Winnicott, ministrada pelo prof. Dr. Gilberto Safra na PUC/SP, no
segundo semestre de 2008.
100
Grifo meu.
101
WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, 203p.
77
como um amadurecimento e uma conquista de uma experiência originária. Dita
experiência primitiva se dá no processo de ilusão-desilusão favorecida pelos
cuidados maternos suficientemente bons. A mãe, ou alguém que faça essa função,
alterna duas vivências significativas para o bebê. Uma delas é a oportunidade do
bebê sentir-se deus, em outras palavras, dele exercer sua onipotência. A outra,
refere-se a frustração necessária em que torna-se fundamental atuar-se como
princípio de realidade para o bebê. Somente a partir da criação de um espaço
intermediário entre o dentro/fora; externo/interno mais o investimento ilusório no
mundo é que um psiquismo é construído e é capaz de suportar a realidade objetiva.
Portanto, para Winnicott a aceitação da realidade depende do uso dessa área
intermediária experienciada pelas artes, religião e pelo brincar que media a relação
da pessoa com a realidade externa.
No capítulo anterior citei a assertiva de Jesualdo a qual compreende que uma
das funções dos contos de fadas é a de recriar realidades. Penso que à luz do
pensamento de Winnicott é possível depreender que esse recriar realidade –
anunciado por Jesualdo – é a vivência no espaço potencial. Em outros termos, é
experimentar a realidade compartilhada. Nesse sentido, os contos de fadas podem
intercambiar o espaço e ajudar a pessoa a experimentar a transicionalidade – para
aqueles que avançaram no amadurecimento pessoal. Ainda sobre o assunto espaço
potencial e experiência cultural Green (1988)
102
condiciona a possibilidade de
usufruir desse espaço à conquista da capacidade de estar só, às experiências
criativas e a possessão não-mim.
102
GREEN, André. O espaço potencial em psicanálise. In: ______. Sobre a loucura pessoal. Rio de
Janeiro: Imago, 1988. p. 280-299.
78
Segundo Davis e Wallbridge (1982)
103
“O espaço potencial é, portanto, o lugar
onde ocorre a comunicação significativa. É o terreno em comum de relações afetivas
onde a tensão instintual não é aspecto primordial. Nesse espaço, as relações
ocorrem por meio da ‘mutualidade na experiência’. Na superposição de espaços
potenciais as relações interpessoais podem atingir “uma riqueza e uma facilidade
que trazem consigo uma estabilidade flexível à qual damos o nome de saúde. (Op.
cit., p.79).
Winnicott, em seu texto intitulado O Destino do Objeto Transicional (1959),
exemplifica o espaço potencial a fim de demonstrar que este não é exclusivo do
bebê, a propósito:
Não há dúvida de que percebem com facilidade o que quero dizer.
Colocando-o de modo bastante grosseiro: vamos a um concerto e
ouvimos um dos últimos quartetos de corda de Beethoveen (estão
notando que sou intelectual). Esse quarteto não é apenas um fato
externo produzido por Beethoven e tocado pelos músicos, e não é
um sonho meu, que, em realidade, não teria sido tão bom. A
experiência, acoplada à preparação que eu mesmo fiz para ela,
capacita-me a criar um fato glorioso. Eu o desfruto porque digo que o
criei, alucinei-o, e é real e teria estado lá houvesse eu ou não sido
concebido. (WINNICOTT, 1994, p. 47)
104
.
No espaço potencial também se dá a criação e o uso do objeto transicional,
que é a primeira possessão não-mim do bebê. Ele pode ser um pedaço de cobertor,
um ursinho, o cabelo da mãe, etc. Dentre as características do objeto transicional
posso destacar: o bebê assume direitos sobre o objeto; o objeto é acariciado, amado
e mutilado; ele nunca deve mudar, a menos que seja mudado pelo bebê; deve
parecer ter vitalidade ou realidade próprias (textura); ele é oriundo do mundo exterior
103
DAVIS, Madeleine. WALLBRIDGE, David. Limite e espaço: uma introdução à obra de D. W.
Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 1982. 205p.
104
WINNICOTT, Clare; SHEPHERD, Ray; DAVIS, Madeleine. Explorações psicanalíticas: D. W.
Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994. 460 p.
79
do nosso ponto de vista, mas não o é do ponto de vista do bebê e seu destino é
perder o sentido.
A superposição da área de brincar da criança e de outra pessoa pode,
segundo Winnicott, introduzir enriquecimentos: "O professor visa ao enriquecimento;
em contraste, o terapeuta interessa-se especificamente pelos próprios processos de
crescimento da criança e pela remoção de bloqueios ao desenvolvimento que
podem ter-se tornado evidentes” (WINNICOTT, 1975, p.74)
105
. Lapastini, em seu
texto intitulado Transicionalidade, ao se referir ao espaço potencial afirma: “Assim,
entre duas pessoas ou mais, cria-se uma área especial só delas, criação única,
própria daquela relação” (LAPASTINI, 2001, p. 368)
106
.
Sobre a continuidade do uso de objetos com características transicionais pela
vida afora Mello Filho (2003)
107
aponta vários exemplos, como o hábito de ler livros
na hora de dormir, numa forma de lidar com as angústias de separação que nessas
horas estão sempre presentes, no mais das vezes de forma inconsciente.
3.2 – Consultas Terapêuticas
Winnicott relata que desde a sua prática como pediatria percebeu que às
vésperas da consulta terapêutica a criança sonhava com o médico. Para ele, esse
fenômeno podia ser compreendido como o planejamento imaginativo da criança
frente ao profissional que lhe iria cuidar. Assim, ele admite que se descobriu se
ajustando a “uma noção pré-concebida”
108
. Antes da consulta, Winnicott já havia
105
WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, 203p.
106
LAPASTINI, Maria Alice B. Transicionalidade. In: OUTEIRAL, José; HISADA, Sueli; GABRIADES,
Rita. Winnicott: seminários paulistas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. p.361-371.
107
MELLO FILHO, Júlio. O ser e o viver: uma visão da obra de Winnicott. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2003. 364p.
108
WINNICOTT, Donald. W. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro, 1984, p.12.
80
sido sonhado pelos pacientes, portanto, previamente habitava o mundo subjetivo da
criança.
Neste encontro inicial, em geral, o analista é um objeto subjetivo. A
criança traz a esperança de que será compreendida e ajudada, mas, traz também
certo grau de desconfiança. Portanto, “o terapeuta aproveita-se do que o paciente
traz e age até o limite da oportunidade que isto concede” (WINNICOTT, 1994, p.
245)
109
.
Winnicott alerta-nos para o fato das consultas terapêuticas serem
primordialmente um meio de entrar em contato com a criança. As consultas
residem numa intervenção cujo objetivo foi o de aproveitar o valor do conteúdo da
primeira ou das primeiras entrevistas, pois, para o autor: “O material é específico e
interessante”
110
(WINNICOTT, 1984, p.15). Contudo, se vários problemas aparecem
no primeiro encontro, então, é de outro trabalho que a criança precisa. Estipula-se
que a duração das consultas terapêuticas seja de uma a três sessões. Desse modo,
ele enfatiza “a técnica para esse trabalho dificilmente pode ser chamada de
técnica”
111
(WINNICOTT, 1984, p.9).
O modelo mais apropriado para ilustrar outras modalidades de consultas
terapêuticas é o jogo dos rabiscos utilizado por Winnicott em seu trabalho. Cada
sessão com cada paciente é inteiramente singular. O que ocorre entre o analista e o
paciente é uma experiência de mutualidade. Cada analista deve primeiro descobrir
em si mesmo qual a melhor maneira de entrar em contato com a criança. Winnicott
gostava de desenho e para ele o jogo do rabisco era um caminho de acesso à
criança. Adverte-nos, no entanto, o autor, no que diz respeito às consultas
109
WINNICOTT, Donald. W. O valor da Consulta Terapêutica (1965). In: WINNICOTT, Clare;
SHEPHERD, Ray.; DAVIS, Madeleine. Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott. Porto Alegre:
Artes Médicas Sul, 1994, p.244-248.
110
WINNICOTT, Donald. W. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro, 1984
111
Idem.
81
terapêuticas, o treinamento do analista é de natureza psicanalítica, porém, a própria
consulta não é necessariamente psicanalítica.
Nas consultas, interpretar o inconsciente não é o mais importante.
Paradoxalmente, não interpretar pode ser o mais perigoso. Não havendo qualquer
tipo de interpretação o paciente pode confirmar a idéia de não ser entendido por
alguém. O relevante para esse tipo de intervenção é “o fato de o terapeuta ser
humano, não sem se dar ares de importância profissional e estar, apesar disso,
ciente da ‘sacralidade’ da ocasião” (WINNICOTT, 1994, p.246)
112
. Mais adiante,
Winnicott remete-nos ao princípio básico subjacente a consulta que é o oferecimento
de um setting humano adequado às necessidades de cada caso, sem distorção dos
acontecimentos.
A consulta requer a utilização e a valorização das experiências da
criança. Para isso, faz-se necessário compreender a teoria do desenvolvimento
emocional e sua relação com o ambiente. Também é desejável uma espécie de
intimidade e de confiança entre a criança e o analista. Uma das crianças atendidas
por Winnicott assegurou-lhe: “Não importa que algumas das coisas que o senhor me
diz estejam erradas, porque eu sei quais são as certas e quais as erradas”
(WINNICOTT, 1994, p. 248)
113
. No estilo clínico de Winnicott, a interpretação é tida
como apresentação de objeto. Se o paciente consegue usá-lo poderá inclusive
rejeitar a interpretação ofertada, sem que essa atitude seja considerada resistência.
Um dos requisitos para o êxito das consultas terapêuticas é a
necessidade de provisão ambiental; de um meio social médio para acolher a criança
112
WINNICOTT, Donald. W. O valor da Consulta Terapêutica (1965). In: WINNICOTT, Clare;
SHEPHERD, Ray; DAVIS, Madeleine. Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott. Porto Alegre:
Artes Médicas Sul, 1994, p.244-248.
113
WINNICOTT, Donald. W. O valor da Consulta Terapêutica (1965). In: WINNICOTT, Clare;
SHEPHERD, Ray; DAVIS, Madeleine. Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott. Porto Alegre:
Artes Médicas Sul, 1994, p.244-248.
82
após as consultas terapêuticas. Quanto aos pais é necessário que eles acreditem no
terapeuta.
Em meu percurso foi significativa contribuição de Winnicott quando ele
nos remete ao lugar da teoria e da ética na vida do analista, pois segundo ele:
A única companhia que tenho ao explorar o território desconhecido
de um novo caso é a teoria que tenho comigo e que tem tornado
parte de mim e em relação à qual sequer tenho que pensar de
maneira deliberada. Esta é a teoria do desenvolvimento emocional
do indivíduo, que inclui, para mim, a história total do relacionamento
individual da criança até seu meio ambiente específico.
(WINNICOTT, 1984, p. 14)
114
.
Em suma, apoiada no pensamento de Winnicott pude fundamentar um
modo de compreender a criança como um ser inserido nas trocas afetivas com o
meio ambiente, tendo como suporte a teoria do desenvolvimento emocional.
Destacam-se, nesta perspectiva, os fenômenos que estão sob o domínio da criança
e aqueles que têm importância na experiência e na constituição do si mesmo da
criança. Dessa maneira, a provisão ambiental contribui para o seu avanço rumo à
independência. No aspecto clínico, evidenciou-se em meu trabalho a necessidade
de assegurar as facetas mais fundamentais da condição humana (reconhecimento,
hospitalidade, holding, compreensão, dentre outras) e não meramente a técnica da
analista. Referendar-me por uma teoria não implica que se permita que ela invada o
setting. Assim sendo, reconheci como aspecto primordial da minha intervenção a
disponibilidade para adaptar-me à situação.
Penso que particularmente no âmbito da UTI, as consultas terapêuticas
podem ser um momento favorável para a criança receber do ambiente algo de si
mesma. Ter outro olhar que não seja técnico, nem angustiado. O que resultaria
114
WINNICOTT, Donald. W. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago,
1984. 427p
83
numa chance de conseguir um estado de relaxamento e de experimentar aquilo que
Winnicott denominou sendo.
O meio de entrar em contato com a criança nem sempre foi verbal. Às
vezes, apenas a minha presença pessoal produzia uma comunicação. O
acolhimento à mãe permitiu, em vários momentos, a reaproximação da dupla mãe-
bebê enriquecida pela capacidade de brincar entre si.
Aponto como limitações desse trabalho o aspecto de imprevisibilidade
que rege a UTI e impede que as consultas tenham seqüência. Diante dessa
imposição da realidade, as consultas tiveram que ser pautadas no ritmo começo,
meio e fim. Assim, como nos recomenda Winnicott fui levada a pensar Qual o
mínimo que preciso fazer nesse caso?
3.3 – O Gesto
Para encerrar o capítulo considero apropriado destacar como compreendo o
gesto. Recorro a Galimberti (2006)
115
o qual postula: “O gesto não é a reação
nervosa a uma ação de estímulo, mas a resposta do corpo humano ao mundo que o
interpela”. Mas adiante prossegue o autor:
Quando a criança quer acariciar o rosto da mãe não olha a própria
mão, mas o rosto dela, e assim como os estímulos nervosos e as
contrações musculares, que são necessários para levar a mão da
criança até o rosto da mãe são bastante diversos, desde que a mão,
no início do movimento, se encontre estendida para a direita ou para
a esquerda, a escolha do circuito a seguir, entre aqueles
predispostos para realizar o gesto, não é decidida pelos dispositivos
internos de inibição e de controle, mas pelo rosto da mãe, que
envolve um espaço externo que o gesto da criança cobre como
distância a partir desse rosto. (GALIMBERTI, 2006, p.85-86).
115
GALIMBERTI, Umberto. A técnica como pacto original entre o corpo e o mundo. I n: ______.
Psiche e techne: o homem na idade da técnica. São Paulo: Paulus, 2006, p. 85.
84
Ainda para Galimberti (2006)
116
O gesto não é uma realidade fisiológica, mas o veículo das intenções
do corpo que tendem a unir as coisas que o circundam às ações que
estas solicitam. Esse pacto original ente corpo e mundo que o gesto
evidencia, é a condição de onde parte o agir técnico, que permite ao
homem, de per si inapto para o mundo, construir um mundo possível.
(GALIMBERTI, 2006, p.87).
O gesto transcende o agir. Nas palavras de Galard (2008)
117
, cito: “O gesto se
mostra.” (Op. cit.; p. 59). O gesto nessa pesquisa é tomado em termos relacionais: o
gesto em direção a. Sobre o gesto como movimento do ser que anseia pelo outro
lembrei-me de Clarice Lispector:
(...) todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente
inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me
vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em:
eu. Esse eu que é vós pois, não agüento ser apenas mim, preciso
dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado,
enfim que é que se há de fazer (...) (LISPECTOR, 1977, p. 27)
118
Apoiada em Winnicott posso compreender o gesto espontâneo como aquele
que emerge do ser. Para Galard (2008) “o gesto é a poesia do ato.” (Op. cit.,p.27).
Assim sendo, o gesto não é invasão ou violação do si mesmo. Acontece no ritmo da
pessoa. Ajuda-a a relacionar-se de modo criativo e verdadeiro. Noutro fragmento,
assegura Galimberti (2006) “Mas, ao construir o mundo, o homem constrói a si
mesmo, porque o significado que as coisas adquirem quando tocadas pela ação age
como estímulo sobre o organismo humano, informando-o do significado adquirido
116
GALIMBERTI, Umberto. A técnica como pacto original entre o corpo e o mundo. I n: ______.
Psiche e techne: o homem na idade da técnica. São Paulo: Paulus, 2006, p. 82-87.
117
GALARD, Jean. A beleza do gesto. São Paulo: EDUSP, 2008. 125p.
118
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Record, 1977.
85
pelas coisas” (GALIMBERTI, 2006, p.183)
119
. Assim sendo, posso afirmar que o gesto
cria o mundo, significa-o e amplia o si mesmo. Para Safra “O gesto inaugura o criar,
o conhecer e o amar”. (SAFRA, 2005, p.102)
120
Ainda para o autor,
O gesto, quando se constitui satisfatoriamente, organizando-se em
ritmos e modulações afetivas, apresenta um jogo de tensões e
distensões, que, ao longo do tempo, adquire cada vez mais
singularidade. Ele apresenta um modo característico daquela
criança. Trata-se da apresentação de um estilo, que é fruto do
encontro das características constitucionais da criança, de sua etnia,
da história de seu grupo familiar. (SAFRA, 2005, p.107)
121
Nessa perspectiva, tomar conceitualmente o gesto implica no reconhecimento
que ele é a pessoalidade do ser. Posso dizer que o gesto abriga um estilo próprio de
ser. Porém, esse estilo não está desconectado do ambiente da pessoa. Quando
pensamos em um bebê humano pensamos nele no mundo. Em outro trabalho
122
,
Safra posiciona o gesto na tradição. O autor veicula a idéia do gesto do bebê que
cria não só a mãe que ali está como também a herança psíquica familiar. Assim
sendo, o nascimento do bebê humano é um acontecimento pois, afeta tanto a
ancestralidade como a contemporaneidade desse ser. “Uma criança em seu berço
encontra e cria por meio de seu gesto a questão familiar posicionada de maneira
peculiar no momento de seu nascimento” (SAFRA, 2002, p.832)
123
. Além da
questão, a criança poderia encontrar em seu berço a missão ou o enigma.
119
GALIMBERTI, Umberto. O sujeito e a ação. In: ______. Psiche e techne: o homem na idade da
técnica. São Paulo: Paulus, 2006, p. 179-184.
120
SAFRA, Gilberto. Da ação ao gesto. In: ______. A face estética do self: teoria e clínica. Idéias &
Letras: São Paulo, 2005, cap. 2, p.97-113.
121
SAFRA, Gilberto. Da ação ao gesto. In: ______. A face estética do self: teoria e clínica. Idéias &
Letras: São Paulo, 2005, cap. 2, p.97-113.
122
SAFRA, Gilberto. O gesto na tradição.Revista Brasileira de Psicanálise, Órgão Oficial da
Associação Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 827-834, 2002.
123
SAFRA, Gilberto. O gesto na tradição.Revista Brasileira de Psicanálise, Órgão Oficial da
Associação Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 827-834, 2002.
86
Um bebê que encontra uma missão terá na família um lugar rígido e bem
definido. De tal maneira, que um destino próprio lhe é de antemão roubado. O gesto
singular desse bebê fica impedido de ser criado.
Ao pensar em um bebê que tenha encontrado um enigma ele terá o seu devir
suspenso. O não dito atravessa o si mesmo. Há o sofrimento sem palavras. Pode
ocorrer também no encontro com o enigma o estilhaçar do ethos humano. Nessa
situação o bebê terá a apresentação de um mundo que não está de acordo com o
que ele anseia. Há, portanto, possibilidade de essas pessoas considerarem o mundo
excessivamente hipócrita.
Ao supor um bebê que poderá encontrar uma questão ele enfrentará ao modo
como a sua família, ao longo das gerações, lida com a cultura e com o destino
humano. Encontrar uma questão é pôr em jogo aspectos essenciais da condição
humana. Nessa situação, há possibilidade de singularização das questões em
direção ao porvir.
Pelo caminho da transicionalidade, o gesto inaugura. Porém, o gesto de um é
o gesto de muitos, como declarou Lispector anteriormente. Conceber o gesto nesse
trabalho é conseguir acolher o que surge no espaço potencial.
No próximo capítulo discutirei algumas vivências durante o meu percurso em
Unidade de Terapia Intensiva Infantil.
87
4. VIVÊNCIAS EM UTI
Apresentarei quatro situações experienciadas em uma Unidade de Terapia
Intensiva Infantil. As vivências serão narradas de acordo com a cronologia. Dessa
forma, a primeira será a mais antiga e a última a mais recente. A duração desse
conjunto de fenômenos se deu por um período aproximado de três meses.
Intitulei a primeira vivência apenas como O não. O evento discutido procurou
abordar a recusa de Deméter, um menino de onze anos de idade, a ouvir histórias.
Essa criança sentia-se constantemente violada. Penso que a minha presença pôde
ser uma oportunidade de acolhimento de sua necessidade de ser ouvido e do seu
não ser prontamente respeitado.
A segunda vivência está nomeada como Príncipes e princesas. Esse
momento se deu de maneira absolutamente fora das expectativas iniciais da
pesquisa, ou seja, do contato apenas com as crianças internadas. As pessoas
envolvidas nesse relato eram profissionais que trabalhavam na UTI. Os sonhos
puderam ser renovados e a narrativa criada demonstrou o anseio das profissionais
por vida, projeto e esperança.
Na terceira situação, destaco a História de uma mãe. Na circunstância a filha
pequena estava dormindo e apenas conversei com a mãe da garotinha. Ouvi as
suas histórias. Ela pôde contar-me de uma filha saudável, da rotina de ambas e da
expectativa de em breve saírem do hospital. Houve holding para que essa situação
pudesse ter sido estabelecida.
Para encerrar, denomino Criando histórias, à situação vivida com os pais
acompanhantes e com o filho, de três anos de idade, internado, ao qual dei o nome
de Sandro. As histórias escolhidas pelo garoto – Chapeuzinho vermelho e Gato de
botas – emolduraram os seus sentimentos.
88
Levei pouco mais de um ano para conseguir encontrar palavras para
descrever tais vivências. Estive um tanto afetada subjetivamente por essa
experiência. Penso que a singularidade do ambiente da UTI traz à tona questões
existenciais bastante profundas da condição humana. Assim sendo, tornei-me
empática a essas questões e precisei olhá-las mais demoradamente para aventurar-
me a compreendê-las. Como apoio, recorri ao conceito de comunidade de destino,
formulado por Gilberto Safra, para lidar com essa experiência de estar junto a essas
pessoas na UTI, a saber:
Na situação clínica, estamos em comunidade de destino com alguém
quando nos posicionamos solidariamente com o nosso paciente
frente às grandes questões existenciais peculiares ao destino
humano: a instabilidade, a necessidade do outro, a ignorância frente
ao futuro, o sofrimento decorrer do viver, a incompletude da condição
humana, a solidão essencial, a mortalidade, entre outras.
Comunidade é nossa condição originária. Só nascemos em
comunidade, somos em comunidade e morremos em comunidade.
Desde sempre o ser humano é com o Outro. Se o rosto do Outro não
pode ser encontrado como acolhida ao mundo humano, a condição
originária aparece como sofrimento infinito, agonia e anseio pelo
Outro. (SAFRA, 2004:73)
124
Em comunidade de destino apreendi o sofrimento, as histórias e os sonhos
desses participantes. Estando eu apenas presente, como testemunha ou como
companhia, pude ofertar holding e acolher o que surgiu.
Gradualmente reconheci as ressonâncias em mim dessa posição solidária
durante a pesquisa em UTI. Dentre os efeitos posso destacar o manejo ético da
situação. No início, recorrer ao trâmite burocrático estipulado por um comitê de ética
foi para mim prioridade. Paradoxalmente descobri que se eu seguisse rigorosamente
o protocolo isso inviabilizaria a pesquisa. Pois, o mais ético, nessa situação, seria
justamente levar em consideração o timing. Desse modo, foi primordial acolher a
124
SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. São Paulo: Idéias e Letras, 2004.
89
necessidade que se apresentava na singularidade de cada situação. Admito que
essas vivências me ensinaram a valorizar o acontecimento clínico e somente a partir
daí travar um diálogo com a teoria ou com os procedimentos a priori. Assim sendo,
acredito que esse modo de produzir conhecimento me compele a uma
provisoriedade do saber e é um convite a transformação como pesquisadora ao
longo do processo. A esse respeito destaco a contribuição de Safra:
(...) O trato com os outros homens, o conviver com o Outro nos abre
para a nossa transcendência originária, pelo próprio fato de que, ao
encontrar o Outro, a experiência de alteridade desconstrói nossas
concepções e nos coloca para mais além da posição em que
estávamos antes do encontro. (...) Não se pode acompanhar,
realmente, alguém sem ser profundamente transformado por essa
experiência. (SAFRA, 2006: 168)
125
No decorrer da minha narrativa, penso que foi possível identificar essa
transformação. Demonstrei maior flexibilidade com a assinatura do termo de
consentimento livre e esclarecido tomando como prioridade as condições mais
adequadas para se tratar desse assunto com os participantes. Também acredito que
houve maior intimidade com a equipe de saúde. No início, o projeto foi exposto por
terceiros. Somente na minha convivência com a rotina na UTI é que pude comunicar
a proposta de intervenção de modo informal e em disponibilidade para ouvir e para
sorrir junto a algumas profissionais. Algo que não podia ter sido antecipada por
papéis, assinaturas ou protocolos.
Em suma, creio que de fato senti uma notável transformação, pessoal e
profissional, com essa pesquisa. Acredito que de forma análoga os envolvidos
também puderam experimentar uma situação de companhia, de presença e de
diálogo.
125
SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma
pessoal. São Paulo: Sobornost, 2006.
90
4.1 - O não
A vivência a qual gostaria de narrar refere-se a minha primeira oportunidade
de intervenção na UTI após o trâmite e o consentimento institucional para coleta de
dados dessa pesquisa. Isso significa que a relação com esse hospital se deu
inicialmente de maneira burocrática e impessoal, mais especificamente, em uma
movimentação de papéis nas instâncias responsáveis e no questionamento através
de documentos para eu explicitar pontos da pesquisa que ficaram obscuros para o
Comitê. Antes do episódio que virei a contar, vale a pena assinalar que nessa
ocasião eu havia sido anteriormente apresentada aos profissionais daquela ala do
hospital. Contudo, a exposição do projeto e da figura da pesquisadora se deu
formalmente, nas palavras da própria instituição. O que aponta para o fato de que
apesar de haver uma facilitação do contato nesse dia, pois já havia ocorrido um
contato prévio com aqueles profissionais na UTI, eu ainda não tinha tido a
oportunidade de, em própria voz, apresentar-me e explicar a projeto, o que resultou
numa situação paradoxal que envolvia, por um lado, certa familiaridade dos
profissionais comigo e vice-versa; e por outro lado, também um estranhamento
nesse encontro.
Nesse contexto, dirigi-me ao posto de enfermagem a fim de obter da equipe
de saúde o nome das crianças que estavam hospitalizadas naquele momento.
Inspirada pela conduta de Winnicott, o qual reconhece a importância do ambiente
para o sujeito, tive a preocupação de compreender um pouco melhor sobre aquele
que seria convidado a participar da pesquisa. Desse modo, procurei alguns dados
dos respectivos históricos de internação e demais informações que me ajudassem a
verificar a possibilidade de oferecer o convite às crianças para ouvir histórias. Não
91
raro, contei com a indicação dessa equipe para entrar em contato com a mãe e/ou
responsável legal e com a criança. Essa indicação, em geral, residia em critérios tais
como, caso mais difícil – envolvendo a complexidade da patologia, criança mais
chorosa do que o habitual e maior tempo de internação.
A sugestão feita pela equipe do possível participante da pesquisa era
entremeada por uma contextualização da rotina do paciente no hospital. Penso que,
nesse momento, tornava-me ouvinte das histórias em UTI contadas pela equipe de
saúde, assim, os papéis ficaram invertidos. De antemão esses profissionais
acreditavam que o fato de contar histórias para as crianças hospitalizadas teria
potencialmente um efeito terapêutico – o que deve ter sido enunciado na
apresentação do projeto. Assim sendo, posso reconhecer que a minha presença
interferiu na dinâmica hospitalar. O que me leva a crer na posição subjetiva em que
fui posta.
Nesse dia, a criança indicada foi um menino de onze anos que estava
internado há aproximadamente uma semana. Na ocasião ele estava na companhia
do pai. Para essa discussão lhe darei o nome de Deméter. Ele já havia sido
hospitalizado nessa instituição outras vezes, assim, a equipe já o conhecia. O garoto
era acometido de anorexia tendo sérias complicações físicas o que justificava a sua
reinternação. Com base na indicação fui até o seu leito.
Após apresentar-me e convidá-lo para ouvir histórias ele prontamente
respondeu: “Doutora, obrigado. Eu não quero ouvir histórias. Daqui a pouco é hora
do lanche. É um momento muito difícil pra mim”.
Nesse enquadre, oferecer histórias pode ser compreendido como
apresentação de objeto
126
. Winnicott aponta a apresentação de objeto como algo
126
Ver DAVIS, Madeleine, WALBRIDGE, David. Limite e espaço: uma introdução à obra de D. W.
Winnicott. Trad. Eva Nick. Rio de Janeiro: Imago, 1982, p.119-127.
92
que ocorre no começo da relação interhumana, inicialmente entre a mãe e o seu
bebê, em que o mundo é ofertado em pequenas doses, de modo firme. Dito
processo não se dá de modo técnico, pensado ou ensaiado. Para esse autor, ocorre
certo aconchego acolhedor em que a mãe mostra ao bebê não aquilo que ela faz e
sim aquilo que ela é. Entreguei a Deméter algo bastante significativo para mim, em
outras palavras, ofereci-lhe os contos de fadas que trago comigo
127
.
Deméter foi enfático em sua fala: sem prelúdio recusou as histórias.
Imediatamente acolhi o seu não e deixei o meu número de telefone com ele caso
viesse a desejar ouvir histórias em momento mais oportuno. O garoto não me ligou.
Penso que para ele pode ter sido significativo ter o seu não acolhido e
respeitado por mim. Pois, a condição de internado não lhe permitia escolha. Não
poderia escolher o procedimento, a medicação, o profissional que o visitara. Nessa
intervenção, a sua vontade pôde ser comunicada e imediatamente atendida por
mim.
Tendo a sua recusa acolhida penso que ele pôde afirmar o si mesmo. Assim
sendo, ele pôde assegurar a presença de si até então prejudicada pela condição
atual que o acometia física e emocionalmente.
Esse garoto estava numa situação de imensa vulnerabilidade. Recebia a
visita de psiquiatra, da professora, do(s) médico (s) na UTI. Muitas pessoas
cuidavam de Deméter. Será que do ponto de vista do menino tais cuidados foram
percebidos como invasão e ameaça a si mesmo?
Essa vivência clínica, a qual se reporta o alimento a algo ameaçador, me
remeteu ao conceito estipulado por Winnicott de uso do objeto
128
. Para o referido
127
Ver capítulo 2.
128
WINNICOTT, Donald. W. Sobre o uso de um objeto. In: WINNICOTT, Clare; SHEPHERD, Ray;
DAVIS, Madeleine. (orgs.). Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994. cap.
34. p-170-191.
93
autor, tal fenômeno relaciona-se à capacidade conquistada pelo sujeito de usar
objetos. Nesse sentido, essa capacidade não é inata e nem se pode afirmar que é
factível apossar-se dela, pois, para que ocorra é necessário um meio ambiente
facilitador.
Usar um objeto é conseguir percebê-lo fora do controle onipotente,
identificar suas características próprias, poder agredi-lo e com sua sobrevivência
poder reconhecê-lo como algo que lhe é externo. Presumo que para Deméter seja
ainda penoso usar o objeto. A própria mastigação em que o alimento é triturado,
nesse sentido, destruído, parece-me um episódio vivido com muito sofrimento.
Parece-me que o alimento não podia ser usado tal como postulado pelo conceito
winnicottiano. Dessa maneira, ingerir alimento possivelmente era um ritual
subjetivamente percebido e carregado de fantasias primitivas. Acredito que esse
modo de ser estendia-se à sua relação com o meio ambiente. O que me leva a crer
o quão desconfortável foi para ele lidar com as invasões típicas da hospitalização.
Outra questão que me parece relevante reside na natureza de seu
adoecimento. De acordo com Winnicott
129
, o apetite está intimamente em contato
com o estado emocional do sujeito. Em sua rotina hospitalar os casos de distúrbios
alimentares em crianças eram muito comuns. Para ele, o ato de comer era afetado
por situações da vida da criança, como por exemplo, o nascimento de um irmão.
Assim, apesar da procura por uma instituição hospitalar, a qual habitualmente
privilegia o cuidado físico, a criança estava doente de sentimento.
Especificamente em relação à Deméter eu não tive mais informações que
justificassem uma discussão mais ampla desse assunto. Acredito que o seu corpo
frágil e em risco era a própria expressão encarnada do seu sofrer.
129
WINNICOTT, Donald W. Apetite e perturbação emocional (1936) In: ______. Da pediatria à
psicanálise: textos selecionados. Rio de Janeiro: Imago, 1988. cap. 3, p-111-137.
94
4.2 – Príncipes e princesas
Outra situação peculiar advinda das vivências em UTI ocorreu
espontaneamente com algumas profissionais. Certa vez, ao conversar com a equipe
de saúde, acabamos por detectar a ausência de possíveis crianças para ouvir
histórias. Novamente torna-se evidente a complicada relação entre o trâmite legal e
a pesquisa.
Assim sendo, uma das pessoas presentes me convidou a contar histórias
para uma das colegas. Tal convite ensejou o riso coletivo. A explicação para o contar
histórias para essa pessoa era a proximidade de seu casamento. Então, a noiva era
reconhecida pelas colegas como a princesa. Houve até o conselho de outra
profissional para que ela tomasse cuidado para que o seu príncipe não virasse sapo.
Essa conversa informal foi muito divertida. Aconteceu também de uma delas
comentar comigo que sua filha era realmente vidrada em histórias de princesas.
Como foi dito anteriormente, o narrar pode ser considerado uma forma
artesanal de comunicação. Na qual os fios da memória são entrelaçados pelo
próprio ato presencial de contar e compartilhar o que foi contado. Além disso,
permite a troca de experiência entre narrador e ouvintes e é ao mesmo tempo uma
experiência em si. A narração favorece um encontro consigo mesmo e em
comunidade é partilhada – os sonhos são atualizados.
Fadas, princesas, bruxas foram convidadas a comparecer ao ambiente da
UTI. A ludicidade sustentada pelas lembranças das histórias que pertenciam ao
repertório pessoal das profissionais contrastou com a seriedade e com o cenário
asséptico desse local do hospital.
95
A minha presença nesse ambiente me leva a compreender que também as
profissionais demandaram atenção. Desse modo, elas demonstram a necessidade
de serem acolhidas e cuidadas. Ou, dito de outra forma, parece-me que elas
acenam para o fato de serem pessoas trabalhando num ambiente altamente
tecnológico e aproveitaram a situação de ter encontro em que questões subjetivas
pudessem vir a tona.
Esse foi um momento lúdico e inusitado, mas, que me pareceu comunicar a
mutualidade dos pares. Entre aparelhos, uma pausa na rotina, alguém para ouvir e
compartilhar e, assim, algumas risadas surgiram. Pude perceber que havia uma
demanda por ouvir histórias também das profissionais na UTI. Naturalmente, isso
não surgiu de modo premeditado.
O conteúdo que motivou o riso foi o casamento. O casamento é culturalmente
uma celebração. É um evento que relaciona vida, projeto e esperança. “Não basta
para o analisando a resignificão de sua história. É preciso, a partir deste ponto,
que ele tenha um horizonte, um futuro que se descortine com um sentido pessoal: é
preciso estar assentado na esperança”. (SAFRA, 2006, p. 83)
130
Nesse contexto foi
delineado algo da pessoalidade das profissionais e que pareceu repousar na
esperança. O que se vive em UTI é privação, adoecimento e morte. Para além dos
conteúdos evocados pela história das princesas a memória evocada alega que
essas pessoas têm ao que recorrer para enquadrar o ainda não vivido.
Nessa cena, ocorreu uma dimensão lúdica e uma faceta em que o sonhar foi
possível em meio à aridez emocional vivida na UTI. Essa experiência aponta para a
importância da esperança, a qual foi emoldurada pelas histórias que foram evocadas
pelas profissionais.
130
SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma
pessoal. São Paulo: Sobornost, 2006.
96
4.3 – Histórias de uma mãe
Noutra ocasião, estive com uma mãe acompanhante de sua filha, de um
ano e meio, que estava internada há um dia. Ao entrar no quarto percebi que a mãe
estava sentava numa poltrona junto ao leito em que a menina dormia. Era começo
da noite e o horário de visitas já havia encerrado. Naquele momento ouviam-se
apenas os barulhos dos aparelhos. Nesse cenário, a mãe parecia muito sozinha.
Ofereci-lhe a possibilidade de contar histórias para sua filha em momento mais
adequado. Ela prontamente demonstrou interesse, pois, para ela estar no hospital
era algo muito difícil. Acrescentou a essa observação que tal estadia deveria ser
ainda mais difícil para uma criança tão pequena. Durante a nossa conversa ela
resgatou as histórias preferidas da sua filha como também aspectos da rotina
caseira de ambas. Nessa ocasião, ela já havia se levantado e espontaneamente
passou a acariciar a menina, dizendo-lhe que tudo sairia bem e que em breve
estariam em casa novamente.
Suponho que diante do episódio de internação a mãe em silêncio
procurou um estado de relaxamento que lhe permitisse lidar com a situação num
grau tolerável de angústia. A oportunidade surgida de narrar-me a sua história pode
ter sido um conforto e a ajudou a olhar novamente para a sua criança. Em
decorrência da hospitalização, não raro, as mães perdem o entendimento do que
acontece com seu filho pois, nessa circunstância, o saber instaurado é o saber
médico, alheio ao que naturalmente uma mãe sabe de seu filho. Compreendo que
essa mãe ao narrar-me fragmentos de seu cotidiano experimentou sua maternagem,
fortemente invadida durante a hospitalização. Penso que a minha presença
significou companhia, escuta dessa mãe e o reconhecimento da sua dor.
97
A propósito, em seu trabalhado denominado Os bebês e suas mães
131
,
Winnicott postula o valor do vínculo estabelecido da mãe com seu bebê cuja base
não se instala numa aprendizagem intelectual. A mãe por ter sido um bebê, ter
brincado de boneca, dentre outras experiências, desenvolve empatia com seu bebê.
Nesse sentido, ela sabe lidar com ele, acolher suas necessidades e dar-lhe
confiança. Um saber especializado, altamente técnico, pode vir a prejudicar essa
relação.
Nessa vivência, pensei particularmente na função do olhar para a criança
hospitalizada. Para isso, recorrerei novamente ao pensamento de Winnicott a fim de
justificar a relevância desse assunto na constituição do ser.
No que concerne à função especular da mãe no desenvolvimento do bebê,
Winnicott pergunta-nos: o que o bebê vê ao olhar para o rosto da mãe? Se a relação
mãe-bebê é suficientemente boa, responde o autor: o bebê vê a si próprio. Contudo,
há casos em que o bebê vê refletido o humor da mãe, ou pior ainda, as suas
defesas. Nessa situação, muitos bebês não recebem de volta o que estão dando: ao
olhar, não se vêem. Por conseguinte, o rosto materno não se apresenta para o bebê
como um espelho. As conseqüências dessa falha são a debilitação da capacidade
criativa e a busca, através de outros meios, de receber do ambiente algo de volta de
si mesmo.
Um bebê exposto a tais falhas estaria continuamente sob ameaça de caos.
Segundo Winnicott, o bebê pensaria “Por enquanto posso ficar seguro, esquecer o
humor da mãe e ser espontâneo, mas, a qualquer momento, o rosto dela se fixará
ou seu humor dominará; minhas próprias necessidades pessoais devem então ser
131
WINNICOTT, Donald, D. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 98 p.
98
afastadas, pois, de outra maneira, meu eu (self) central poderá ser afrontado”
(WINNICOTT, 1975, p. 155).
No desenvolvimento infantil favorável, dentre outros recursos, há ampliação
das identificações. Com isso, a criança pode se ver não somente no rosto da mãe,
mas a função especular é expandida na atitude de cada um dos membros da sua
família.
Diante desse modo de compreender o olhar para a criança presumo que a
atitude da equipe para com o paciente afeta a sua subjetividade. Um olhar
predominantemente técnico impede a criança de se reconhecer e pode deixá-la
ainda mais angustiada. Assim, se a mãe tiver em condições de confiar em seu saber
e olhar para a criança como um ser, agir desse modo pode ser curativo.
Essa situação ajudou a evocar a memória viva: da casa, da criança, do
cotidiano. Preservar a memória é uma maneira de revitalizar a mãe. Assim sendo, a
mãe pode reinvestir a criança. O reinvestimento da mãe em seu bebê ocorreu
porque houve holding para si. Ao dar-lhe holding a esperança pôde surgir. Sem
duvida, há um risco considerável de que em circunstâncias análogas a pessoa possa
cair no desânimo. Acredito na importância de uma presença acolhedora que possa
ofertar holding e favorecer o aparecimento da esperança no ambiente da UTI.
99
4.4 – Criando histórias
4.4.1 - A rotina no hospital
“O tempo é uma tela que precisa ser tecida”. Mário Quintana
Noutra ocasião em que eu estava presente na UTI conversei informalmente
com uma mãe. Em relação à rotina no hospital ela afirmou que ali os horários
ficavam bagunçados. Para essa senhora, a programação da televisão era um dos
indicadores do passar do tempo ou de um parâmetro mais familiar. Pareceu-me que
a noção de tempo tornou-se subordinada a dinâmica própria da UTI regida pela
instabilidade, urgência e monitoramento. Essa forma típica de funcionar interfere na
apropriação subjetiva da temporalidade das pessoas que transitavam pelo hospital.
Safra (2005)
132
lembra-nos da temporalidade como um dos aspectos do
existir humano que pode ser vivido de diferentes maneiras no decorrer do processo
maturacional. Assim sendo, o autor nomeia cinco possibilidades de o tempo ser
tecido, a propósito: o tempo subjetivo, o tempo convencional, o tempo
compartilhado, o tempo transicional e o tempo das potencialidades.
O tempo subjetivo se dá desde o ritmo intercorpóreo da mãe com o seu bebê,
o que envolve, por exemplo, os batimentos cardíacos, a respiração e a composição
da mamada. Desse modo, constitui-se uma espécie de dança rítmica ente a dupla.
Dito estilo de tempo acontece na singularidade do bebê incluindo a sua relação com
o meio ambiente. O bebê poderá então sentir-se vivo como um ser em presença de
um outro, vivido como parte de si. O tempo subjetivo interfere na criação da
realidade e permite ao bebê experimentar a duração de si e de sua existência.
132
SAFRA, Gilberto. Era uma vez o tempo In: ______. A face estética do self: teoria e clínica. Idéias &
Letras: São Paulo, 2005, cap. 2, p.57-76.
100
Quando esses eventos não caminham suficientemente bem pode ocorrer um
desencontro precoce com o ambiente o que resultaria em fraturas no self.
O tempo convencional é sustentado por padrões e ocorre de modo
seqüencial, de tal maneira que possa ser partilhado pela comunidade. Nessa
vivência temporal o sujeito pode se organizar em suas vivências do cotidiano e
também pode construir a sua própria narrativa para representar a si mesmo no
tempo.
O tempo compartilhado só pode ocorrer no interjogo de presença e ausência
de um outro significativo. Na medida em que a criança torna o tempo do outro como
parte de si é possível acessar o tempo convencional.
A vivência do tempo transicional permite a criança experimentar diferentes
temporalidades sem perder sua noção de continuidade. O tempo transicional pode
ser compreendido como o tempo do encantamento. O tempo do faz de conta pode
ser vivido por ter um fim. A criança se dá conta que o encantamento encerrou-se e
ela pode retornar a sua realidade, ou melhor, pode transitar por outras
temporalidades. A sensação de eternidade pode ser enlouquecedora.
O tempo das potencialidades dá ao sujeito a nostalgia do ainda não vivido. É
o tempo do sonho, do anseio, daquilo que ainda pode acontecer.
Recuperar esse modo de se compreender o tempo é relevante para perceber
quão desorganizadora pode ser a estadia em um hospital até mesmo para os
acompanhantes. Se o tempo está ligado ao self, vê-se como há uma bagunça no
self o que interfere na percepção da realidade, no modo de se viver a subjetividade e
na própria imagem de si.
101
Essas diferentes temporalidades estão presentes no dia-a-dia das pessoas
em UTI. Não raro, ocorre um colapso na linha de continuidade de existência.
Presumo que tempo e espaço ficam realmente atrapalhados.
4.4.2 - Um momento para história
Após a indicação de Sandro feita pela equipe travei o primeiro contato com o
seu pai. Expliquei-lhe a minha proposta da intervenção. Ele me disse que a achava
interessante e de imediato começou a narrar-me a hospitalização de Sandro na UTI.
Enfatizou o susto que ele e sua esposa levaram pois, de repente, o garoto em casa
sentiu-se mal, sendo rapidamente levado ao hospital. No pronto-socorro
diagnosticou-se apendicite. Na seqüência foi submetido a uma intervenção cirúrgica
e devido a complicações teve que ficar na UTI. Percebi a necessidade de Antonio,
pai de Sandro, falar dos acontecimentos das últimas horas. Segundo ele, nem havia
tido tempo de respirar direito. Novamente apareceu a noção de tempo “bagunçado”
e também com a falta de perspectiva de pensar a própria história durante o processo
de hospitalização. Antonio se viu tão envolvido com a repentina internação do filho
que não teve oportunidade de entrar em contato com seu próprio sofrimento. Ouvi a
sua narrativa atentamente e me coloquei como testemunha do seu padecimento,
daquilo que ele próprio nomeou como susto. Penso que a chance de ordenar as
suas experiências por intermédio da narrativa contribuiu para o seu conforto e para o
melhor enfrentamento da sua função ali naquele local.
Sofrimento é a possibilidade de viver uma dor física ou psíquica
como passagem, isto é, uma experiência que se integra à
constituição do sentido de vida da pessoa, de tal maneira que a
vivência de infinito ruim torna-se travessia e revelação da condição
humana. O sofrimento informa a pessoa sobre si mesma, sobre a
102
condição humana e sobre as questões fundamentais da existência.
Ao vivermos uma experiência de sofrimento, portanto de passagem,
se releva a cada um de nós algo fundamental sobre a vida humana
.
(SAFRA, 2006: 92-93)
133
.
Antonio ao narrar-me tais acontecimentos pôde sofrer. Até aquele momento
ele apenas viveu essa experiência como um grande susto. Sua vivência, que ainda
não havia sido inserida na sua biografia, ao ser narrada e nomeada poderia ser
sentida como passagem.
Durante esse relato Sandro estava dormindo. Por essa razão combinei de vê-
lo o dia seguinte. Como forma de atender às exigências éticas dessa investigação
deixei o termo de apresentação e de esclarecimento da pesquisa e também o termo
de consentimento livre e esclarecido com Antonio para que ele lesse e pudesse
decidir pela participação na pesquisa. Acrescida a minha cautela de seguir as
formalidades penso que a ação de deixar tais documentos com o pai do garoto teve,
do ponto de vista da subjetividade, uma qualidade transicional. Reconheço o valor
transicional dessa situação ao passo que a materialidade da narrativa e do encontro
com a dor pôde ser contemplada naqueles papéis.
No dia seguinte, dirigi-me ao quarto de Sandro. Na ocasião, quem estava
acompanhando-o era Helena, sua mãe. De início, bati à porta duas vezes. Na
primeira vez não houve manifestação. Na segunda, uma voz bem fraca me autorizou
a entrar.
Gostaria de destacar a minha atitude de bater à porta antes de entrar.
Segundo a equipe de saúde eu poderia bater e entrar, conforme procedimento
rotineiro dos profissionais. Contudo, fiquei constrangida em adentrar o quarto sem
prévio consentimento. Particularmente a minha proposta deve contar com o
133
SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma
pessoal. São Paulo: Sobornost, 2006.
103
consentimento do participante. Assim sendo, penso que bater à porta antes de
entrar expressa o meu respeito pela privacidade da dupla mãe-criança. O próprio ato
de bater à porta é um convite e pode ajudar a estabelecer outra natureza de relação,
pois, leva em consideração mãe e criança como pessoas e não somente como
internos. A minha presença foi ofertada a mãe e ao filho. Distinguindo-se do
cotidiano do hospital a porta foi vista como um limite o qual eu não poderia
ultrapassar sem o aceite.
Esse breve acontecimento - bater à porta – me ajudou a compreender que se
criava uma espécie de naturalização da invasão. O espaço da UTI aparentemente
reservado era continuamente invadido. Dessa maneira, para a equipe de saúde,
permitir ou não a entrada de alguém naquele quarto parecia-lhes irrelevante. Nesse
contexto, ao pedir licença para eu entrar no quarto era, para mim, algo respeitoso.
4.4.3 - Misturando histórias
Após o episódio da porta, apresentei-me à mãe, a qual lhe darei o nome de
Helena e ao seu filho Sandro, com três anos de idade, na ocasião estava acordado.
Ela prontamente comentou: Nossa é bom né ... as crianças precisam. O que significa
que Antonio havia lhe falado da minha visita a Sandro, na noite anterior. Helena
disse-me que havia lido o papel, referindo-se ao Termo de Consentimento. Pareceu-
me um pouco desconfiada, disse-me: Precisa assinar agora ? Eu afirmei que ela
poderia ler com mais calma e assinar em outro momento. Nesse instante eu
reconheci que a burocracia não era o mais importante. Percebi que a nossa
interação era o mais fundamental.
A atitude positiva da mãe facilitou esse encontro. Helena encorajava o filho a
ouvir uma história. Sandro mostrava-se hesitante em ouvi-las. Mas, com o apoio de
104
Helena, olhei para Sandro e lhe ofereci três opções de histórias para contar-lhe,
Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel, ou O gato de botas.
Sandro chorava um pouco. Dizia que estava com dor na barriga. Encorajado
pela mãe, optou por Chapeuzinho Vermelho
134
. Assim, passei a contar essa
134
Era uma vez uma menina tão encantadora e meiga, que não havia quem não gostasse dela.
A avó, então, a adorava, e não sabia o que inventar para agradá-la.
Um dia presenteou-a com um chapeuzinho de veludo vermelho que agradou tanto à menina,
que ela não quis mais saber de usar outro. Desde então, só a chamavam de Chapeuzinho Vermelho.
Certa manhã, a mãe chamou-a e disse:
- Filha, leve esse pedaço de bolo e esta garrafa de vinho para a sua avó, que está doente e
fraquinha, Vá logo, antes que fique tarde e esfrie. Não deixe o caminho e não invente de correr pela
mata. Você pode cair, quebrar a garrafa e a vovó ficará sem o vinho. Chegando lá, não esqueça de
lhe dar o bom-dia, e nada de mexer nos guardados da sua avó.
- Não se preocupe, mamãe, que eu faço tudo direitinho – prometeu a menina. E, pegando a
garrafa de vinho e o bolo, despediu-se e saiu.
A avó morava a uma meia hora distante da aldeia, no meio de uma floresta. Mal entrou na
mata, a menina encontrou-se com o lobo. Porém, como não o conhecia, nem sabia o bicho malvado
que ele era, não sentiu medo.
- Bom dia, Chapeuzinho Vermelho! – cumprimentou o lobo.
- Bom dia, lobo!
- Aonde vai assim tão cedinho?
- Vou à casa da minha avó.
- E o que vai levando no seu avental?
- É uma garrafa de vinho e um pedaço de bolo que a mamãe fez ontem. A vovó está doente e
fraquinha. Precisa comer bem para sarar logo.
- E sua avó mora longe?
- A uns vinte minutos daqui. A casa dela fica à sombra de três grandes carvalhos e é cercada
por uma sebe de aveleiras.
O lobo pensou: “Ela é jovenzinha… tem a carne mais macia que a avó…fica para
sobremesa…”E, por algum tempo, acompanhou a menina conversando com ela.
- Já reparou nas flores lindas que há por aqui, Chapeuzinho Vermelho?Não está ouvindo os
passarinhos cantando tão bonito? Que é isso, menina! Só anda olhando para frente!
Chapeuzinho Vermelho olhou para cima, viu o Sol piscando ao atravessar a irrequieta
ramaria, fazendo cintilar as flores de tão variadas cores que havia por ali, e pensou: “A vovó bem que
gostaria de ganhar um ramo de flores fresquinhas… vou colher algumas… ainda é cedo, tenho tempo
de sobra…”E, deixando o caminho, entrou na mata. Sempre que apanhava uma flor, avistava mais ao
longe outra mais bonita, e ia atrás dela. Assim, foi se embrenhando pela floresta. Enquanto isso, o
esparto lobo chegou numa disparada na casa da avó da menina e já estava batendo na porta.
- Quem está aí? – perguntou a velhinha.
- O lobo disfarçou a voz:
- Sou eu, Chapeuzinho Vermelho!Vim trazer um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho.
- Vá entrando, que a porta está só encostada. Não me levanto porque estou muito fraca.
O lobo entrou, e sem lhe dar tempo de dizer um ai, engolia-a. Depois vestiu as roupas dela,
pôs sua touca de dormir, deitou-se na cama, fechou o cortinado, e ficou esperando Chapeuzinho
Vermelho.
E, todo esse tempo, a menina na mata colhendo flores. Foi só quando juntou tantas, que mal
podia segurar, que se lembrou da avó. Então retomou o caminho para a casa dela. Lá chegando,
encontrou a porta aberta assustou-se.
“O que será que está acontecendo?”, pensou. “Nunca senti um medo assim, na casa da
vovó…”. E ela chamou alto:
- Vovó! Bom dia! – e como ninguém respondesse, foi até a cama abriu o cortinado.
A avó estava lá, com sua touca de dormir escondendo parte do rosto. Estava tão diferente…
- Vovó! Por que a senhora tem orelhas tão grandes?
- É para te ouvir melhor.
105
história
135
por meio da leitura
136
. Helena acompanhou a história, junto a Sandro. Aos
poucos, o choramingo foi se transformando num olhar atento e em risos tímidos. Em
voz baixa, Sandro repetia trechos conhecidos da história, tais como: Vovó! Por que a
senhora tem orelhas tão grandes?- É para te ouvir melhor. - Vovó! Por que a
senhora tem olhos tão grandes? - É pra te ver melhor.
Ao final da história mostrei-lhe as ilustrações do livro e convidei-o a desenhar.
Sandro me mostrou as suas mãos com tala. Desse modo, ele me mostra as suas
limitações de movimentação. Reconhecendo isso, encorajei-o dizendo-lhe: vamos
desenhar juntos. Nesse momento, Helena já estava mais afastada de Sandro,
apenas olhava-o ocasionalmente.
Sandro me disse que eu deveria começar o desenho. Diante disso, perguntei-
lho o que eu deveria desenhar. Ele me disse que deveria ser o lobo. Passei, então a
- Vovó! Por que a senhora tem olhos tão grandes?
- É pra te ver melhor.
- E suas mãos, vovó, por que são tão grandes?
- É para te agradar melhor.
- Credo, vovó! Por que a senhora tem essa boca enorme e tão horrível?
- É para te comer melhor! – nem bem acabou de dizer isso, o lobo saltou sobre a menina e
engolia-a. Depois satisfeito o apetite, deitou-se novamente e adormeceu.
Não demorou muito, estava roncando tão alto, que um caçador, que passava por perto,
escutou. “Que ronco mais esquisito”, pensou. “A velha deve estar passando mal… Vou lá ver.”E,
entrando na casa, foi até a cama e viu o lobo.
- Ah! É você que está aí, seu patife! Enfim te achei! –e apotando-lhe a espingarda, já ia lhe
mandando um tiro, quando se lembrou que talvez ele tivesse engolido a velhinha e, se ela ainda
estivesse viva, poderia salvá-la. Assim, preferiu abrir a barriga do lobo, aproveitando o seu sono
profundo. Puxou o facão da cinta, começou a cortar, e logo viu uma chapeuzinho vermelho. Quando o
corte ficou maior, a menina pulou fora exclamando:
- Credo! Como estava escuro dentro da barriga do lobo! Quase morri de medo!
Logo a seguir apareceu a avó. Ela ainda estava viva, porém mal podia respirar. Chapeuzinho
Vermelho não perdeu tempo. Saiu correndo, apanhou duas pedras grandes que estavam lá fora e
colocou-as dentro da barriga do lobo. Depois costurou a barriga dele.
Quando o lobo acordou e viu o caçador, tentou fugir. Mas as pedras pesam demais, suas
pernas não agüentaram, ele caiu e morreu.
Todos ficaram aliviados e felizes. O caçador esfolou o lobo e se foi embora levando a pele. A
avó comeu o bolo, bebeu o vinho que a neta lhe trouxe e sentiu-se bem melhor. Chapeuzinho
Vermelho deu graças a Deus por estar viva e prometeu a si mesma nunca mais se desviar do
caminho, nem andar sozinha pela mata, se a mãe dela proibisse.
135
Chapeuzinho Vermelho. In: CONTOS DE GRIMM. Vol. 2 Texto em português de Maria Heloisa
Penteado, Ilustrações de A. Achipowa.São Paulo: Ática, 2003. p. 7-14.
136
Fanny Abramovich encara o contar histórias como uma arte. Sobre Como contar histórias ver:
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1997. 174p.
106
desenhá-lo. Sandro riu do meu desenho e me falou que aquilo não era um lobo. De
súbito, ele afirmou: eu tenho um. Eu não o havia entendido. Ele olhou para Helena e
ela abriu um armário pegou uma caixinha. A mãe mostrou-me o kit recebido do
hospital: um livrinho de colorir e uma caixinha de giz de cera. Daí passamos a
desenhar com os seus pertences. Na minha vez de escolher o que eu iria desenhar
eu disse que, dessa vez, seria um bolo. Perguntei-lhe de qual cor seria o bolo.
Enquanto ele olhava as cores de giz, sua mãe disse que no dia 28 era o seu
aniversário. Sandro animou-se e me disse que na sua festa teria os Powers
Rangers. Prontamente acrescentei os powers rangers ao desenho. Eu perguntei-lhe
qual powers rangers ele era. Ele apontou e mostrou-me no papel. Então, ele me
disse: o powers rangers briga com o lobo. A mãe, ao ouvir esse comentário, riu e
disse: Vixi, já tá misturando as histórias!!!
Somente mais tarde percebi que ao inverter lobo por bolo eu transformei o
objeto persecutório em algo lúdico. Nós dois conseguimos essa travessia. No início
Sandro me considerava o lobo, objeto persecutório. No decorrer do encontro fui me
tornando algo menos ameaçador para ele. Posso crer que a periculosidade diminuiu.
Para Sandro, houve a possibilidade de se colocar o perigo sob o domínio do eu.
Algo importante foi lembrado durante essa interação: o aniversário do menino. Como
em situações anteriores, a vida e a esperança surgiram.
Sandro muito mais amistoso me mostra os curativos. Ele disse que iria pegar
um ônibus para ir embora pra casa. Helena disse: cadê a dor na barriga? Era notável
a animação do garoto que até ruborizou. Helena declarou que ela mesma gostava
de histórias. Prometi voltar no dia seguinte.
107
Helena reconheceu a mudança no enfrentamento da hospitalização pelo filho.
Ao sumir as dores, o riso e a criatividade reaparecerem. Pareceu-me evidente a
melhora do menino.
Em trabalhos anteriores
137
identifiquei algo muito semelhante ao que sucedeu
nesse encontro. Em dado momento a mãe se afasta. Nesse caso, Helena continuou
no quarto porém, fazendo outras atividades e atenta ao que se passava. Interpreto
isso como sinal de confiança em mim. Pude contar com a sua colaboração em
instantes em que não compreendia o que Sandro queria me dizer. Esse aspecto da
colaboração dos pais é essencial para que a criança possa se sentir segura com
outra pessoa.
O hospital ao dar a giz de cera e álbum para colorir demonstra zelo pelo bem-
estar da criança, pela humanização no atendimento hospitalar, ao valorizar
atividades que são potencialmente lúdicas (nesse caso, o colorir). Porém, não me
parece que apenas oferecer esses materiais produza efeitos tranqüilizadores na
criança. Penso que é fundamental a presença de alguém que brinque junto com ela
para dar sentido ao material ofertado. Acredito em alguém para realizar a função
especular: um olhar humano e menos angustiado para a criança internada a ajudaria
nessa passagem pela UTI.
Compreendo que Sandro ao me declarar eu tenho um, referindo-se ao giz de
cera, me mostra que tem recursos e que estes podem ser usados por ele.
4.4.4 - Segundo encontro
137
OLIVEIRA, Márcia Campos de. Brincar no hospital: um encontro possível. Assis. 2005. Dissertação
de mestrado. Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Unesp.
OLIVEIRA, Márcia. Campos de. Um olhar para a hospitalização infantil a partir do pensamento e da
clínica de D. W. Winnicott 2004 (Relatório de Bolsa Capes).
108
Cheguei durante a troca de plantão. Então, o hospital estava um pouco mais
movimentado. Além disso, o garoto estava almoçando. Eu aguardei esse período do
lado de fora do quarto. Nesse momento estavam o pai e a mãe. O garoto iria ser
transferido para a pediatria. Ao entrar no quarto, imediatamente Helena me disse
que Sandro havia falado do lobo o dia todo. Acredito que o lobo agora fazia parte de
sua história. Sandro mostrava-se mais fortalecido. Em seguida, Helena entregou-me
o Termo de Consentimento assinado por ela. Explicou-me da transferência de
Sandro e concluiu que sairia por uns instantes para resolver as questões ligadas à
saída do garoto da UTI.
O garoto havia recebido presentes e me mostrou cada um deles. A história
escolhida foi a do Gato de botas. Ao ver as ilustrações do livro, ele falou: eu tenho
um! Prontamente o pai acrescentou: Ele assistiu na TV de casa. Considerei
interessante o garoto optar por uma história que trouxesse o vínculo ao lar,
oportunamente a sua expectativa de alta. Pensei que essa escolha pudesse estar
relacionada a uma espécie de preparação para o retorno para a sua casa.
Em seguida, passei a contar-lhe essa história mostrando-lhe as imagens do
livro. Optei por mediar a narrativa pelas ilustrações devido a essa história ser mais
longa do que a contada no dia anterior. Supus que seria muito demorado para um
garotinho de sua idade. Sandro além de rir e repetir em voz alta trechos da história
chamava o pai para acompanhar. A situação se estabeleceu mais ou menos assim:
eu mostrava-lhe e contava-lhe a história e ele transmitia-a ao seu pai. Sandro
tornou-se, portanto, um narrador. Foi um acontecimento muito divertido.
A opção pelo gato de botas demonstra o momento afetivo de Sandro. Parece
que ele apresentava-se mais fortalecido. Assim sendo, poderia sentir pés para
caminhar. Nesse dia, ele não precisava mais de ônibus para ir embora pois podia
109
contar consigo mesmo para tal tarefa
138
. Essa escolha parece assinalar também sua
motilidade. Sandro parecia contar com a memória de um corpo que se locomove o
que deve ser algo significativo para um garotinho de três anos que ficou imóvel por
um tempo considerável.
Antes de ir embora, Helena me confessou que ali no hospital ela precisou
lançar mão de algumas estratégias com seu filho para convencê-lo a se alimentar.
Afim de exemplificar, ela contou-me que dizia a Sandro que a gelatina verde era do
Hulk
139
. Para ela, somente assim funcionava. Ao ouvi-la pude testemunhar o seu
conhecimento sobre o seu filho, algo que comumente se perde ou fica abalado
durante a hospitalização de uma criança. Helena parecia reconhecer que brincar é
sinal de saúde, como nos ensinam as crianças e as mães e como Winnicott teorizou,
e cultivava esse aspecto na sua relação com Sandro.
Nesse encontro percebi a expansão do brincar. A dor na barriga foi
substituída pela mistura de histórias, pela imaginação e pelo riso.
A vivência narrada tem a qualidade de uma consulta terapêutica. Nela
ponderei os três tempos da espátula. No início, houve o período de hesitação, tanto
de Sandro como de Helena. Helena em sondar a necessidade de assinar um papel.
Sandro em sentir-se convidado a ouvir histórias. Ele inclusive denunciou sua dor na
barriga nesse momento. O período que pode ser considerado o meio da consulta
terapêutica refere-se à área de jogo que foi criada. Por fim, houve o desinvestimento
do menino. O que equivale ao jogar a espátula fora. Curiosamente, Sandro chega a
esse momento de modo bastante especial. Ele vai transmitindo a história ao seu pai.
Possivelmente, o menino intuía que o seu pai também precisa ser alimentado pela
138
No dia anterior Sandro me disse que iria embora do hospital. Eu lhe perguntei como ele iria fazer
isso. O garoto respondeu que iria de ônibus.
139
Referindo-se ao super-herói o Incrível Hulk.
110
história. Ao fim da consulta, Sandro torna-se o narrador e pode compartilhar a sua
história.
Ainda a respeito da transformação vivida por mim vale a pena destacar a
mudança naquilo que eu considerava decisivo nessa pesquisa. Desde a elaboração
do projeto até uma parte da minha convivência na UTI eu elegia o meu fazer como
algo terapêutico, em outras palavras, eu pensava que o fato de contar histórias
produziria efeitos positivos nas crianças. Não quero dizer que o contar histórias não
seja importante, porém, acredito ter passado a compreender esse fenômeno por
outro vértice, ou seja, apenas estar ali em disponibilidade, sendo simplesmente eu
mesma, já era algo de valor para os envolvidos na pesquisa. Nessa perspectiva,
recorro ao pensamento de Safra:
Se tudo caminha dentro de uma expectativa favorável o Outro estará
presente nos diversos momentos significativos de alguém, como
acompanhante, como testemunha e como interlocutor. Só podemos
dar conta da nossa solidão originária porque alguém a testemunha. A
partir de então ela pode ser vivida e destinada. (SAFRA, 2006: 91)
140
Assim sendo, ao reconhecer a importância em testemunhar, ser interlocutora
ou uma companhia silenciosa mudei a ênfase da pesquisa do fazer para o ser. Pude
estar na UTI com pessoa real para além dos conhecimentos técnicos e teóricos que
tenho. Pude deixar os meus próprios interesses de analista e de pesquisadora para
estar em disponibilidade para o paciente.
141
Presumo ter sido a principal
transformação nessa investigação. Ainda para Safra:
140
SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma
pessoal. São Paulo: Sobornost, 2006.
141
Como me lembrou os apontamentos do Prof. Dr. Andrès no exame de qualificação.
111
Uma das questões mais contundentes no campo social é a falta de
reação estética frente à presença do Outro: nesse caso, a pessoa é
jogada para a invisibilidade, o que acarreta uma destruição da
dignidade da pessoa humana. Quando respondemos afetiva e
esteticamente ao Outro lhe ofertamos a experiência de que
realmente existe para nós e, ao mesmo tempo, por reunirmos em
nosso olhar a complexidade do seu ser, lhe ofertamos a totalidade
virtual de si mesmo: no olhar do Outro reside o futuro sonhado do si
mesmo. Quando esse fenômeno se realiza o estético se faz ético.
(SAFRA, 2006: 157-158)
142
Passei a valorizar a minha presença, sendo eu mesma, falhando, portanto,
mas, respondendo afetivamente e esteticamente aos participantes da pesquisa,
dando-lhes visibilidade.
142
SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma
pessoal. São Paulo: Sobornost, 2006..
112
5. LEITMOTIV
Vale a pena resgatar alguns pontos propícios para a discussão. Em primeiro
lugar, admito que eleger o hospital como campo na pesquisa implica ocupar-me de
uma instituição peculiar. Para Clavreul (1983)
143
“o hospital tornou-se o templo
moderno da ciência. Aí se vai para nascer, para sofrer e para morrer” (Op. cit, p.
145). Antunes (1991)
144
historiou o hospital
145
, da antiguidade a apreensão
contemporânea dessa instituição.
Para o autor, na Antiguidade os doentes eram agentes de cura. Havia nesse
período a narratividade dos sintomas, da doença e dos remédios. Partilhar a doença
era parte do cotidiano. Nesse sentido, adoecer era visto como algo natural.
Durante o Império Romano houve crescente valorização da higiene. Contudo,
a tensão entre a medicina assistencialista e a curativa prosseguiu nesse momento
histórico. Antunes destacou a importância da família na cura da doença. A busca da
cura implicava arrependimento dos pecados e oração. Ao mesmo tempo, criou-se o
precursor do Hospital no Ocidente, chamado Valetudinaria, cuja característica
principal era a de abrigar e cuidar dos doentes. Essa instituição, por ser influenciada
pelo modo de ser militar, apresentava severas normas de conduta para os pacientes.
Os primeiros hospitais cristãos, por volta de IV d.C, fundamentavam-se na fé
e na caridade cristã. Vários estabelecimentos surgiram, dentre eles, o autor indica:
asilos, para abrigar crianças enjeitadas pelos pais; estabelecimentos para receber
idosos, outros para receber pobres e desamparados; e, demais instituições para
143
CLAVREUL, Jean. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. São Paulo:
Brasiliense, 1983. 274p.
144
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Hospital: instituição e história social. São Paulo: Letras e
Letras, 1991. 168p.
145
“O termo ‘hospital’ – como designativo das instituições de atenção aos doentes – surgiu como
decorrência de uma determinação do Concílio de Aachen, realizado em 816, que traduziu para o latim
o termo grego Nosokhomeron e tornou obrigatória, para os bispos em suas dioceses e para os
abades em seus conventos, a construção de Hospitalis pauperum”.(op. cit, p. 59).
113
abrigar forasteiros, inválidos e leprosos, também, casas para receber doentes em
geral; finalmente, lobotrophia, recebia doentes terminais e prestava-se a diminuir o
sofrimento dos abrigados.
Antunes indica a influência da doutrina teológica de Santo Agostinho sobre os
hospitais cristãos. Em sua visão, dita doutrina reconciliou o cristianismo com a
cultura clássica. No decorrer do tempo, isso interferiu no funcionamento dos
hospitais ao propiciar a aproximação do clero letrado com a medicina através de
respeitável biblioteca contendo obras médicas dos gregos e romanos.
Prossegue o autor afirmando: do século VI ao IX os conventos beneditinos
expandiram-se. Eles preservaram a característica cristã de hospitalidade ao
enfermo. Diversos monges continuavam a estudar e a praticar a medicina. O declínio
dos hospitais cristãos se deu no século XIII. A partir desse período esses
estabelecimentos tornaram-se públicos, e para assistência social, administrados pela
iniciativa leiga.
Ainda para Antunes, durante a Idade Moderna, a profissão médica
146
desenvolveu-se independente do hospital. Adverte-nos o autor:
A idéia de que o doente precisa de cuidados e de abrigo é anterior à
possibilidade de lhe despender tratamento médico. Todas as
cidades, em todas as épocas, mobilizaram-se para tentar prover
essa necessidade. Templos, conventos e mosteiros foram as
primeiras instituições a receber doentes e a lhes providenciar
atenções especiais, como no culto a Asclépio, na Grécia Antiga.
(ANTUNES, 1991, p. 159).
146
“(…) Três fatores teriam convergido para, a partir do século XV, atrair cada vez mais os médicos
ao hospital. 1) reforma legislativa promovida em 1439 pelo Kaiser Sigismundo – contratação de
médicos municipais para atender pobres gratuitamente (Alemão); 2) percepção, no início do século
XVI, e que a atenção médica poderia diminuir o tempo médio de permanência dos doentes no
hospital, o que deveria implicar a redução de custos para o erário, 3) século XVII, na cidade
holandesa de Leyden, segundo o qual os hospitais, mais do que locais de abrigo e tratamento de
doentes, poderiam servir como centros para o estudo e ensino da medicina”. (ANTUNES, 1991,
p.137).
114
O hospital vai se tornando um espaço ideal de controle de alimentação, de
temperatura e de outras condições ambientais para o tratamento da doença. Nesse
sentido, o hospital contemporâneo expropria o corpo do doente para a medicina.
Prescrição e proscrição ditam as condutas nessa instituição. Conclui o autor: o
hospital, o qual nós conhecemos hoje, impede o pleno exercício da cidadania. “Os
pacientes podem então sentir na pele o paradoxo que envolve o hospital
contemporâneo, e que obriga a ser, a um só tempo, espaço privilegiado de
reposição da vida e escola de aprendizado da morte”.(ANTUNES, 1991, p. 165).
Foucault (1980)
147
corrobora essa afirmação: “a medicina do século XIX foi
obcecada por este olho absoluto que cadaveriza a vida e reencontra no cadáver a
frágil nervura rompida pela vida”. (Op.cit., p. 190). Para ele, no século XIX a relação
entre o visível e o invisível mudou o olhar e a linguagem médica, tornado-a um
saber. Assim sendo, o saber médico ficou marcado por totalização aberta, infinita e
móvel da informação. Compete à figura do médico ter consciência coletiva da
enfermidade. Já o paciente “é um fato exterior em relação àquilo que sofre”. Nessa
relação o olhar (médico) que vê é um olhar que domina. Os efeitos dessa relação
ressoam nas esferas políticas, sociais e culturais. Admite o autor “antes de ser um
saber, a clínica era uma relação universal da humanidade consigo mesma”. (Op. cit.,
p. 32). Mais adiante, o autor concebe o hospital como o lugar privilegiado para onde
a doença é transplantada. Paradoxalmente, acrescenta Galimbert (2006): “A primeira
técnica a emancipar-se do sagrado é, de fato, a medicina como tentativa de evitar a
morte evitável, aquela derivada da ignorância, cujas raízes afundam no fato de se
atribuir ao divino a causa dos eventos”. (GALIMBERTI, 2006, p.274)
148
.
147
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1980. 241p.
148
GALIMBERTI, Umberto. Hipócrates: a técnica como evento da impiedade. I n: ______. Psiche e
techne: o homem na idade da técnica. São Paulo: Paulus, 2006, p. 271-277.
115
Nessa direção Bastos (2006)
149
nos alerta para os efeitos da tecnologia para
a medicina. Hoje é possível o diagnóstico sem o doente. A narratividade em
medicina apesar de bem intencionada em saber a história do paciente e de sua dor
não leva em conta os aspectos inconscientes mobilizados na relação médico-
paciente. O campo transferencial fica estabelecido: é o que salva e o que quer salvo.
Nessa perspectiva, a autora entende que o paciente ideal da medicina é o cadáver:
ele não sofre, não reclama, não morre e não processa. Tal afirmação nos remete as
formulações de Foucault.
Bastos (2006) - médica, professora e psicanalista - observou diversas vezes
em sua prática médica pacientes referindo-se à parte doente do corpo como algo
fora de si. Num dos exemplos relata a fala de um paciente acometido de úlcera na
perna. Ele ao referir-se a perna disse: Ela não gosta quando eu como carne de
porco. Para a autora, de forma sofisticada o médico faz o mesmo: trata do órgão
doente desprezando o paciente.
Por outro lado, a formação médica também interfere na audição, na visão, no
olfato e no desejo do médico. Para ela, acontece uma (des)subjetivação na
construção do mundo médico a qual resulta na objetivação do seu sentir. Sobre essa
questão ela relata a informação dada por um médico ao seu paciente a respeito de
uma intervenção cirúrgica:
Trata-se de cirurgia que implica em graves riscos para o paciente,
tais como: 1. morte durante ou após a cirurgia; 2. tetraplegia
permanente; 3. perda do controle esfincteriano; 4. perda irreversível
da voz; 5. qualquer outra complicação clínica ou cirúrgica. (BASTOS,
2006, p. 74).
149
BASTOS, Liana Albernaz de Melo Corpo e subjetividade a medicina: impasses e paradoxos. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. 208p.
116
Relatos similares acompanharam a autora. Nesse contexto ela permite-se
afirmar que, frequentemente, ocorre na prática médica uma espécie de apagamento
do sofrer empático. O médico ao desconsiderar a singularidade do paciente apega-
se ao universal da doença. Não raro, ocorre uma dissociação psique-corpo que é
incentivado na prática médica. Algo escapa a essa forma de agir e ocasiona
profundo mal-estar na medicina, gerando, por exemplo, desconfiança e insegurança
na relação médico-paciente. O que se dá fora do protocolo surpreende a médicos e
pacientes.
Contudo, Coura (1995) reconhece a psicanálise como algo discriminado em
Hospital Geral. Em sua prática médica ouviu repetidas vezes falas preconceituosas.
Para exemplificar: “Olha, tem pra vocês uma histérica lá na minha enfermaria! Por
favor, vão lá ver porque eu não tenho tempo, nem paciência para esse tipo de
coisa...”(COURA, 1995, p. 06)
150
.
Em seu trabalho aponta como objetivo “desvencilhar o paciente hospitalizado
do atendimento meramente tecnológico” (Op. cit., p. 199). Na sua perspectiva, as
idéias psicanalíticas forneceriam ferramentas de entendimento e de manejo para o
atendimento mais adequado em hospital, no qual a relação médico-paciente,
permeada pelo inconsciente, se tornaria mais humana. O autor também resgata o
retorno apressado a um bem-estar anterior o qual incentiva a correria no hospital,
tanto do médico como do paciente. A idéia veiculada é a de que praticamente não
há tempo para sofrer no hospital. Tal funcionamento seria, em sua visão, oposto ao
almejado pela psicanálise: a necessidade de alguém que demande.
Até o momento apresentei algumas idéias na direção de situar o hospital
como templo da ciência, locus tecnológico. O leitmotiv está em pensar as
150
COURA, Rubens Hazov. A Psicanálise no hospital geral. 1995. 211 f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia Clínica) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1995.
117
possibilidades de a subjetividade emergir nesse espaço institucional. Por ocasião do
exame de qualificação fui alertada para a tendência de apresentar o hospital como
lugar quase anti-humano, como na construção da seguinte frase, anteriormente
citada: paciente ideal da medicina é o cadáver: ele não sofre, não reclama, não
morre e não processa. Nesse ínterim, pude pensar o que teria me motivado a redigir
desse jeito. Pois bem, lembrei-me de que grande parte desse capítulo havia sido
escrito após eu ter me tornado paciente em UTI. Assim sendo, a apresentação do
hospital como lugar quase anti-humano não significa um desrespeito aos
profissionais de saúde que ali trabalham, mas, demonstra os efeitos subjetivos
possíveis de uma passagem pela UTI como paciente. Como paciente, a primeira
lembrança ao acordar da anestesia geral na Semi-UTI foi a de ver um relógio.
Naquele instante eu não sabia muito bem o que havia acontecido. No relógio, os
ponteiros indicam ser um pouco mais de 20h30. No ímpeto pensei no horário de meu
nascimento, o que de fato aconteceu por volta desse horário, porém há três décadas
atrás. A materialidade do relógio me ajudou a me sentir reorganizada no tempo
subjetivo, no tempo cronológico. Após isso, lembro-me de começar a perceber os
meus limites corporais, com o olhar fui dando contorno ao meu próprio corpo, de
súbito fui invadida pela dor. Não sabia ao certo aonde. Somente sentia a dor que
aos poucos foi sendo reconhecida por mim na região do ventre baixo. Vi-me cheia
de acessórios. Após esses instantes, alguém veio cuidar de mim. De imediato, quis
agredi-la pos, não reconheci a sua aproximação como cuidado. Lembro apenas de
uma voz dizendo que eu já conseguia respirar sozinha. Aos poucos, fui me
tranqüilizando. Nesse ambiente estive por algumas horas que pareceram a
eternidade. Quando a dor diminuía, eu pensava em trechos dessa tese e isso me
acalmava. Sem dúvida, foi um recurso o qual lancei mão durante a breve experiência
118
como paciente hospitalizada. A saída da UTI também será inesquecível. É uma
sensação demasiadamente estranha estar em uma cama com rodas! A pessoa que
me levou da Semi-UTI ao quarto, para melhor manejo da situação, deixou sobre
mim, sobre meus pés, seus envelopes: senti-me coisa. No outro dia pela manhã,
recebi a visita de meu médico. Foi o espetáculo! Em dado momento, retirou o meu
curativo em meio à platéia: novamente senti-me coisa. Possivelmente, essa vivência
influenciou a minha redação.
Durante a pesquisa empírica experimentei orfandade. O que eu senti como
pesquisadora foi a insuficiência dos discursos médicos e também psicanalíticos.
Fiquei frente a frente com o imponderável, com a precariedade e com a impotência.
Assim sendo, acredito que o discurso psicanalítico corre o risco de tamponar uma
experiência ao ser usado de modo defensivo e excessivamente intelectualizado. No
hospital, na sombra do silêncio, tive que lidar com algo que não sei e não posso.
Para mim, ficou evidente a soberania do saber técnico nessa instituição.
Acredito que a soberania traga incongruências. Preocupado com esse
problema Mezzomo (2003)
151
salienta “Para o laboratório pode-se mandar sangue,
fezes, urina, etc. Mas não há como mandar para análise sentimentos, emoções,
preocupações, remorsos, etc” (Op.cit., p. 38). O autor reconhece a impossibilidade
de quantificar aquilo que pode ser para o paciente ainda inominável. Diversos
profissionais contribuíram na reivindicação e/ou execução de projetos os quais
promovessem humanização hospitalar. Em páginas anteriores
152
, através de
consulta a base de dados, pude depreender ações de humanização no hospital
envolvendo a criança internada, seus familiares e os cuidadores. Nas ações
diretamente relacionadas às crianças hospitalizadas posso enumerar a organização
151
MEZOMO, Pe Augusto. Fundamentos da humanização hospitalar: uma visão multiprofissional.
São Paulo; Local editora, 2003. 396p.
152
Ver item 1.4
119
do espaço físico do ambiente hospitalar, as visitas – permanência da mãe e
expansão do horário para demais familiares, presença de animais de estimação e ter
morte digna. Aos familiares, percebi trabalhos que apontavam na direção de
promover grupo de pais para incentivar o compartilhar das vivências, também sobre
a relação com a equipe, por exemplo, na divulgação de informações sobre o estado
da criança de modo acessível à compreensão dos pais e de ter referência na equipe
para a criação de sentimento de segurança da família nas pessoas que cuidam da
criança. Em relação à equipe, os trabalhos sugerem mudanças na rotina no sentido
de promover o lúdico ou através da utilização de brinquedo terapêutico para
melhorar a qualidade na relação da equipe com a criança.
Em direção menos entusiasta, Goldenstein (2006)
153
pondera a humanização
hospitalar
154
. O autor situa, pelo menos, três vertentes de humanização hospitalar, a
saber: aquela cujo objetivo é o de interferir na relação do paciente com a equipe
médica de modo promover uma relação mais pessoal e humana. A segunda vertente
preocupa-se em adequar o espaço físico do hospital às necessidades humanas do
paciente. A terceira reside em procedimentos e técnicas do atendimento hospitalar
mais humano para o paciente.
Goldenstein (2006) como médico
155156
e ao ouvir intensivistas em UTI
pediátrica admite: o mais habitual é o médico dirigir-se a família, mesmo em casos
153
GOLDENSTEIN, Eduardo. Um estudo preliminar sobre humanização hospitalar: dando voz a
médicos de UTI pediátrica sobre vivências em um hospital humanizado. 2006. 187 f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia Clínica) - – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.
154
A Portaria n° 881, de 19/06/2001 estabeleceu o Programa Nacional de Humanização e Assistência
Hospitalar (PNHAH) no Brasil.
155
Canguilhem (2000) adverte: “Se a medicina deve ser renovada, cabe aos médicos a honra e o
risco de fazê-lo” . Não estou de acordo com essa idéia pois, penso que deve haver diálogo
interdisciplinar para se pensar e propor ações no sentido de promover a hospitalização respeitosa
para com a criança.
156
Ver ADAMS, Patch.;MYLANDER, Maureen. A terapia do amor. Rio de Janeiro: Mondrian, 2002.
300p. sobre a visão da responsabilidade do médico na qualidade do tratamento do paciente. Ver
ADAMS, Patch. Patch Adams: o amor é contagioso. Rio de Janeiro: Sextante, 1999. 157p. a respeito
do cotidiano no hospital tendo como perspectiva pequenos cuidados mais humanos, cito: “Ser
internado em um hospital é uma situação de extrema vulnerabilidade. Os pacientes e suas famílias
120
de a criança estar acordada. Nesse sentido, fica evidente a falta de comunicação
com a criança hospitalizada. Não raro, ela fica sem voz. Nesse sentido, parece-me
que falta alguém para conversar com a criança e reconhecê-la como ser que sofre e
que precisa dar sentido às experiências na internação.
Nos anos de 1999 a 2001 eu advogava a humanização no atendimento.
Atualmente, penso com mais cautela essa questão. Para mim, ficou evidente a
necessidade de se respeitar o tempo e as necessidades emocionais da criança
hospitalizada. Ainda que com bons propósitos atividades e/ou intervenções lúdicas
devem estar sintônicas com a disposição da criança para evitar tornarem-se
invasões ambientais.
Nesse sentido, essa investigação leva em conta a especificidade da situação
proposta pela UTI que se organiza por meio de permanência de aparelhos ligados,
assepsia, instabilidade, e, sobretudo, urgência. Com base nessa rotina é possível
afirmar que a criança internada é constantemente invadida em seus ritmos próprios
a fim de que sua vida seja preservada. Seus estados de quietude são disputados
com horário da medicação e com procedimentos tipicamente hospitalares. Nesse
local, o valor dado a tecnologia é indiscutível. Cabe à criança adaptar-se a essa
realidade. A sua reação a esse ambiente invasivo acentua a quebra na continuidade
de si, aquilo que Winnicott postulou como sendo.
Uma das melhorias na hospitalização infantil foi a oferta de um cuidado
pessoal favorecido pela permissão da presença de um acompanhante, em geral, a
mãe. Contudo, há momentos em que a mãe tende a olhar para a criança com muita
foram (com freqüência, sem aviso prévio) colocados em um contexto onde o medo e a confusão
deixam a maior parte das pessoas tensas e ansiosas. Vidas são desestruturadas ou mudadas para
sempre. [...] Os pacientes falam da importância do amor, do humor e da alegria para a transformação
de sua experiência hospitalar. Receber solidariedade e ser mimado (tratado com atenção) faz toda a
diferença. [...] Histórias, fotografias, música e jogos também podem ser instrumentos preciosos em
uma visita ao hospital”. (Op. cit., p. 10-11).
121
angústia. Assim, há circunstâncias nas quais a mãe busca reencontrar o filho
saudável; em outras, ela recorre a uma explicação plausível ou uma promessa de
que no futuro tudo vai ficar bem. A ânsia em entender a situação surge em seu
discurso com a indagação Por que isso aconteceu? Comumente há um desencontro
desses questionamentos com as necessidades psíquicas da criança que se
encontra naquela situação de maneira desvalida. A falta de compreensão e de
acolhimento desampara pais e filhos. Esse contexto pode favorecer a percepção do
hospital como um lugar persecutório, tornando a estadia na UTI ainda mais dolorosa
para os pares, potencializando o sofrimento psíquico.
À equipe de saúde cabe atentar para os parâmetros da saúde biológica da
criança. O interesse reside no acompanhamento permanente da evolução clínica.
Dada a rotatividade da equipe, o vínculo do profissional com a criança parece ser
mais frágil, o que obviamente não impede que os membros da equipe sintam a dor
pela morte de um paciente, dentre outros sentimentos. O que desejo enfatizar é a
permanência de um olhar que procura controlar a vida e de atitudes que visam
promover o bem estar físico da criança.
No decurso da pesquisa indaguei-me sobre os possíveis efeitos psíquicos
para a criança ao receber diferentes olhares, de diversos profissionais, que lhe
cuidam. Suponho que esse fenômeno possa ser altamente desorganizador para a
criança. Por outro lado, parece-me improvável que nesse ambiente haja um olhar
exclusivamente pessoal, pois a convivência dos saberes especializados é
necessidade diária para alcançar o objetivo da cura e para restabelecimento
somático da criança. Nesse sentido, foi útil para mim como uma perspectiva
norteadora a questão formulada por Winnicott onde encontrar a criança? Para tanto,
122
apoiei-me em texto de sua autoria, que se encontra no livro intitulado A Natureza
Humana, cito:
O corpo da criança pertence ao pediatra.
Sua alma pertence ao sacerdote.
Sua psique é propriedade da psicologia dinâmica.
O intelecto pertence ao psicólogo.
A mente, ao filósofo.
A psiquiatria reivindica os distúrbios da mente.
A hereditariedade é propriedade do geneticista.
A ecologia se atribui direitos sobre o meio ambiente.
As ciências sociais estudam as estruturas da família e sua relação
com a sociedade e a criança.
A economia examina as pressões e tensões devidas a necessidades
conflitantes.
A lei se apresenta para regular e humanizar a vingança pública
contra comportamentos anti-sociais. (WINNICOTT, 1990, p.25).
Com base nesse fragmento, indago-me quanto aos efeitos dessas diferentes
concepções na vida criança. Assim, o pediatra, o sacerdote, o psicólogo, o filósofo, o
psiquiatra, o geneticista, o ecologista, o economista, o sociólogo e o jurista possuem
compreensões e manejos bem distintos entre si. Portanto, a criança será
diferentemente percebida de acordo com as diversas especialidades. Justamente
por reconhecer essa dimensão multidisciplinar fiquei ainda mais cuidadosa com os
efeitos que poderiam advir dessa pesquisa, pois acabei por reconhecer a dificuldade
que existia em dialogar e de conviver com a equipe de saúde, em virtude de as
prioridades dos profissionais serem diferentes. Perante a particularidade desse
ambiente outra questão emergiu: o que tem um psicanalista a oferecer? Diante da
hesitação inicial frente a essa pergunta procurei conforto nas palavras de Winnicott:
“Seja o que for que aconteça, é o acontecer que é importante” (WINNICOTT,1994,
p.246)
157
.
157
WINNICOTT, Clare; SHEPHERD, Ray; DAVIS, Madeleine. Explorações psicanalíticas: D. W.
Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994. 460 p.
123
Nesse modo de intervir destaco a importância da presença de alguém com
um olhar não técnico. Busquei nesse procedimento apenas oferecer holding.
Acredito que os encontros mostraram-se valiosos para emoldurar sentimentos,
acalantar o medo e abrir-se para o sonhar.
124
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inquietar-me com a situação hospitalar não é apenas interesse científico e
clínico, sobretudo, é um assunto que é parte de minha biografia. Penso como a
hospitalização objetifica o corpo do paciente ao cuidá-lo de modo desubjetivado o
que pode levar a perda da estabilidade psíquica.
A tecnologia existente no hospital pode roubar o corpo próprio da pessoa
ao privá-la do contato humano com o outro. O excesso de técnica pode desumanizar
o paciente. A UTI é o lugar no hospital que, do meu ponto de vista, presentifica
essas questões de uma maneira muito mais drástica e intensa. Essa preocupação
auxiliou o modo de intervir nesse ambiente.
Parti da hipótese de que a história poderia ser um procedimento
interventivo facilitador do processo de humanização. Tal hipótese baseia-se em
conhecimento anteriores, na biografia e pelas características da história. No decorrer
da investigação fui me surpreendendo e uso da história foi sendo reposicionado. Aos
poucos, a história deixou de ser a personagem principal. A seguir, vou recuperar os
diferentes momentos do uso da história:
Primeiro momento
De início, posso afirmar que a história foi ancoragem para mim. Vali-me
do uso da história para enfrentar o desafio de estar em UTI, para mim inóspito e
desestruturante. Queria oferecer algo atrativo para evitar ser vista de imediato como
objeto invasor.
125
Segundo momento
Com a segurança da história comigo fui à UTI oferecê-la. Tinha a
convicção de que a história era importante e com ela alicercei a minha intervenção.
Hoje penso que isso se assemelha ao protocolo! Contudo, a realidade se impõe e a
certeza é abalada. O primeiro paciente ao qual ofereço a história recusa-se a ouvi-la.
Nesse caso, parecia que eu não havia feito a minha intervenção pois, não contei a
história. Somente após alguma reflexão fui me dando conta de que o mais
importante naquela situação não era contar história. Era estar lá e acolher o não
vindo do menino. Também na situação em que o garotinho Sandro aceitou o convite
para ouvir histórias, a história não foi o mais importante na situação. Em diversos
momentos cheguei a teorizar e a buscar interpretações em demasia. Possivelmente
por sentir-me angustiada com o processo de desconstrução de minha hipótese.
Ante o exposto, ficou a pergunta: Será que de fato a história utilizada
nessas situações é o elemento fundamental de humanização?
Terceiro momento
O que vai ser fundamental nessa intervenção é que se ocorreu um evento
em que pode existir alguém ali com quem a criança possibilita algum tipo de
acontecimento. Assim sendo, poderia valer-me de história, brinquedo, do silêncio
para entrar em contato com a criança. Ou seja, qualquer elemento que está aqui
entre nós. Desse modo, o que vai subsidiar o contato é sua qualidade é o encontro.
É um encontro que produz a possibilidade de devir.
Nessa perspectiva, o não é considerado devir porque coloca a situação
em processo quando essa situação provoca estancamento. A recusa pode
possibilitar direcionamento daquilo que se vive.
126
Acredito que nesse percurso o acontecer guiou-se por comunidade de
destino, pelo gesto restaurado e pela esperança. A experiência desse doutorado
acendeu em mim questionamentos, ainda indiscriminados, porém, mobilizadores. Ao
realizar a pesquisa acabei me encontrando com outro objeto, a saber: modo de fazer
clínica em UTI. Assim sendo, “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas,
continuarei a escrever”, como nos disse Clarice Lispector.
127
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