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Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Programa des Graduação em Sociologia
ROSÂNGELA DUARTE PIMENTA
Desvendando o Jogo:
O futebol amador e a pelada na cidade e no sertão
Recife
2009
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ROSÂNGELA DUARTE PIMENTA
Desvendando o Jogo:
futebol amador e pelada na cidade e no
sertão
Tese submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Pernambuco,
como requisito parcial para a obtenção
do título de Doutora em Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes
Co-Orientador: Prof. Dr. Josimar Jorge Ventura de Morais
Recife
2009
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Pimenta, Rosângela Duarte
Desvendando o jogo: futebol amador e pelada na
cidade e no sertão/ Rosângela Duarte Pimenta.
Recife: O autor, 2009.
213 folhas : il., gráf., fotos.
Tese (doutorado) Universidade Federal de
Pernambuco. CFCH. Sociologia, 2009.
Inclui: bibliografia e anexos.
1. Sociologia. 2. Futebol aspectos
antropológicos. 3. Futebol regras. 4. Etnografia. 5.
Sociologia Pesquisa Social. I. Título.
316
301
CDU (2.
ed.)
CDD (22. ed.)
UFPE
BCFCH2009/26
À Ana Paula, com amor e esperança.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço aos meus pais, por terem me ensinado que o processo
de formação e aquisição de conhecimento realiza-se também como um ato de amor, lição que
aprendi com meus primeiros mestres. Raimundinha e Luis: amo vocês!
Aos meus irmãos: Léo, Cacá e Bá, por todo companheirismo, cumplicidade,
incentivo e amizade. Aos meus sobrinhos, Levi e Mariana, que me mesmo à distância me
ensinam muito sobre a vida, a felicidade e a delicadeza.
Ao meu orientador, José rgio. Não apenas pela orientação acadêmica,
fundamental para a elaboração dessa tese, mas também pela oportunidade de aprender com
um excelente pesquisador e um formidável ser humano.
Ao meu ―co-orientador‖ Jorge Ventura, que transformou o prefixo ―co‖ em algo
totalmente desnecessário, estando presente com seus ensinamentos, sua paciência e suas
críticas, conseguindo aliar gentileza e rigor.
A todos que comem o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Sociologia do Futebol,
pela amizade e aprendizado constante, em especial: lio Barreto, Joana e Léo. Sem dúvida,
nossos encontros e reflexões ajudaram muito nesse processo de elaboração.
Aos membros da Banca Examinadora por sua disponibilidade de tempo e pelas
contribuições na análise deste trabalho.
À CAPES, pela concessão da bolsa de estudos, possibilitando esta tese.
A todos que fazem a Diretoria de Esporte Amador da Prefeitura da Cidade do
Recife, pelo acolhimento generoso e disponibilidade para colaborar com a pesquisa, em
especial a Emerson Sobral, Neilson, Eric, Marconi e Fabiana.
A todos os times amadores de Recife e Aracatiu (Sobral-CE) que prontamente
atenderam meu pedido para acompanhar seus jogos e suas rotinas, em especial o Ájax e União
São João. Sem o acolhimento e a generosidade desses dois times e, de tantos outros (Fora de
Forma, Canto do Rio, Passarinho, Aracati, Cruzeirinho, Cearazinho, dentre outros) essa tese
o se concretizaria.
Aos ―peladeiros‖ da Mangueira, da Pelada da Amizade e do São João pela
disposição em receber sempre com muita atenção e respeito essa pesquisadora, por
partilharem comigo preciosas horas do seu lazer. Agradeço, sobretudo, à inspiração que estes
grupos proporcionaram para esse trabalho. Um agradecimento especial para Duda, Fabinho,
Carlitos, Dóda, Ítalo, Renê, Nôvo, Paulo, Maurício, Fernando, Henrique e Cícero.
Ao meu tio Francisco lio que me recebeu em sua casa por longos quatro meses,
e ofereceu além da guarida, o carinho, o afeto e o sorriso sempre sincero. Registro aqui minha
imensa gratidão.
Aos meus amigos e amigas que tornaram a estada em Recife agradável e
prazerosa, em especial a: Val, Kika, Márcia, Tuda, Ana, Vevé, Janjan, Gleidson, Taís, Synara,
Rita, Inácia, Gcia, Graça. Sem essa ―turma‖ meu caminho teria sido mais penoso e difícil.
Aos colegas e amigos da minha turma do doutorado, em especial à Cibele, Diogo,
Rogério, Conceição e Nunes. Agradeço também a todos os meus professores do PPGS, em
especial as professoras Cynthia Hamlin e Eliane Veras, pelas disciplinas tão inspiradoras e
também pelo incentivo constante e também a professora Silke Weber, que sempre lançou-me
palavras de estímulo e apoio.
À Eliane e Josiane pela disponibilidade em traduzir os textos de língua estrangeira.
À Joelma pela amizade e dedicação ao longo desses 11 anos de intenso
companheirismo.
À Ana Paula pelo amor, carinho e compreensão. Sem você essa tese não teria sido
possível, mesmo.
Quando eu morrer, me enterrem num campinho de subúrbio, no menor e mais esburacado
deles, perto da cabra vadia nelsonrodriguiana e de flores sem nome, e que um antológico
passe de letra seja dado sobre a grama que prolongará meu peito onde, na várzea, um dia,
vento na camisa, cheiro de sol e de sabão vagabundo, vibrou meu coração.
Aldir Blanc
RESUMO
O futebol amador e as ―peladas‖ são práticas esportivas e sociais que mobilizam milhares de
pessoas em todo o país. Apesar da importância que a temática do futebol vem ganhando no
campo acadêmico, ainda são poucos os estudos sobre o futebol não profissional, por isso a
opção de analisar essa prática ―por dentro‖, através de uma pesquisa etnográfica em dois
espaços sociais distintos: o meio urbano e o meio rural. A pesquisa foi realizada na cidade de
Recife (PE) e no assentamento estadual São João (Sobral-CE), durante os anos de 2005 e
2006. O trabalho de campo foi desenvolvido com dois grupos: o primeiro com times
amadores de Recife e Sobral, através de observação, gravações áudios-visuais de jogos e
entrevistas com diretores, jogadores, torcedores e promotores dos campeonatos. O segundo
foi realizado com grupos de pelada‖, envolvendo as mesmas técnicas de pesquisa. Do ponto
de vista teórico e da problematização do objeto, partimos de uma crítica a uma visão
tradicional da sociologia que perceberia as regras como algo que se impõe exteriormente aos
indivíduos. Utilizamos como referência trica Pierre Bourdieu, Norbert Elias e Harold
Garfinkel, buscando uma compreensão do futebol amador e da ―pelada‖ a partir da dinâmica
figuracional dos jogos e da sua relação com as regras do jogo. Analisamos como as regras são
construídas, negociadas e atualizadas pelos próprios jogadores durante os jogos,
empiricamente verificamos que as regras do jogo apresentam um caráter elástico e de
incompletude, sendo elemento fundamental para a dinâmica do jogo.
Palavras-Chave: futebol amador, pelada, regras, negocião, dinâmica, figuração.
ABSTRACT
The amateur football and the recreational football are sporting and social practices that
mobilize thousands of persons in the whole country. Despite the importance the theme of
football is gaining in the academic field, studies on recreational football are still few.
Therefore the decision of analysing this practice through an ethnographic inquiry both into
the rural and the urban social space. The research was carried out in the city of Recife (PE)
and in the São Joao state settlement (Sobral, CE), during the years of 2005 and 2006. Field
work was developed with two groups: the first was made up of amateur teams from Recife
and Sobral, while the second was made up of recreational teams. For both groups the
following techniques were used: observation, recording of matches and interviews with
directors, players, supporters and promoters of the championships. From the theoretical point
of view and of the problematization of the object, we start from a criticism to a traditional
vision of sociology that would realize the rules as something that is exteriorly imposed on the
individuals. As theoretical reference, we use Pierre Bourdieu, Norbert Elias and Harold
Garfinkel, trying to understand amateur football and recreational football from the dynamic
design of the matches and from their relation with the rules of play. We analyse how the rules
are built, negotiated and updated by the players themselves during the plays. Empirically, it
was verified that the rules of the play bear a non-strict and uncomplete character, essential for
its dynamics.
Key Words: amateur football, recreational football, rules, negotiation, dynamics, figuration.
RÉSUMÉ
Le football amateur et ceux football ―récreatifs‖ (“peladas”) sont des pratiques sportives et
sociales que mobilisent des milliers de personne dans tout le pays. Les études sur le football
non-professionnel sont encore moindres, malgré que la thématique sur le football soit entrain
de gagner le camp académique, d‘oú l‘option d‘analyser cette pratique ―interieurement‖, à
travers une enquête ethnographique dans deux espaces sociaux distincts: le milieu urbain et le
milieu rural. L‘enquête a été réalisée dans la ville de Recife (PE) et dans le
campement (“assentamento”) São João (Sobral CE), entre l‘na 2005 et 2006. La mise en
pratique de l‘enquête s'est deroulée dans deux groupes: la première avec l‘équipe amatrice de
Recife et de Sobral, à travers l‘observation , les enregistrements audio-visuelles des jeux et
entrevues avec les directeurs, joueurs, supporters et promoteur des championnats. La seconde
a été réalisée avec les groupes football récreatifs‖, suivant le même processus d‘enquête. Du
point de vue théorique et de la problematisation de l‘objet, nous nous sommes basés sur une
critique à la vision traditionnelle de la sociologie qui persévérerait les règles comme quelque
chose impo extraordinairement aux individus. Nous avions utilisé comme férence
théorique Pierre Bourdieu, Norbert Elias et Harold Garfinkel, cherchant une compréhension
du football amateur et football recréatif‖ à partir de la dynamique de figuration des jeux et
de leur relation avec les règles du jeu. Nous avions analysé comment les règles sont
construites, négociées e actualisées para le propre joueur pendant les jeux, empiriquement
nous avions vérifier que les règles du jeu présentent un caractère élastique et incomplet,
faisant l‘élement fondamental pour la dynamique du jeu.
Mots clés: football amateur, football récreatifs (“peladas”), règles, négociation,
dynamique, figuration.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Exemplo de esquema tático 4-4-2 e movimentação em campo..................
101
Troféu da Copa Integração em Aracatiaçu.................................................
106
Campo onde foram realizados os jogos finais da Copa Integração, em
Aracatiaçu....................................................................................................
106
Pelada da Mangueira, Recife/PE. Note-se o cenário
urbano..........................................................................................................
126
Pelada no Assentamento o João, Aracatiaçu, distrito de
Sobral/CE...................................................................................................
127
Sede do Ájax, time de futebol amador. Mangueira, Recife/PE.................
129
Calçada na lateral do campo da Pelada da Mangueira, Casa do
Estudante, Recife/PE.................................................................................
131
Jogo de Pelada da Mangueira. Em destaque, o árbitro Adelson. Casa do
Estudante, Recife/PE.................................................................................
132
Árbitro da pelada aplica cartão amarelo. Pelada da Mangueira,
Recife/PE...................................................................................................
134
Árbitro expulsa goleiro, enquanto jogador reclama do cartão vermelho.
Pelada da Mangueira, Recife/PE................................................................
137
Goleiro com o movimento da perna direita justifica sua ação. Pelada da
Mangueira, Recife/PE.................................................................................
137
Jogador do time vermelho que estava no banco corre para o gol para
substituir o goleiro. Pelada da Mangueira, Recife/PE................................
138
Árbitro conta os três passos da barreira, rapidamente a normalidade dos
eventos é retomada. Pelada da Mangueira, Recife/PE................................
138
Pelada da Amizade. Recife/PE...................................................................
142
Um pirráia‖ jogando com os adultos. Pelada,
Recife/PE.....................................................................................................
147
Times azul e vermelho: saída de jogo e dinâmica
figuracional..................................................................................................
160
Arquibancada do campo da Macaxeira. Recife/PE.....................................
168
Arquibancada do campo do Bueirão, Recife/PE.........................................
169
Torcedores e jogadores do Ájax conversam através do alambrado, antes
do início do jogo.........................................................................................
170
Torcida Mancha Vermelha do Ájax. Recife/PE........................................
173
Torcida Mancha Vermelha do Ajax ensaiando músicas antes do jogo......
173
Vendedor de picolé de saquinho em jogo de futebol amador no
sertão...........................................................................................................
178
Pau-de-arara utilizado para transporte de jogadores e torcedores do
179
União São João. Aracatiaçu, Sobral/CE.....................................................
Mulheres e crianças que compõem a torcida. Aracatiaçu,
Sobral/CE................................................................................
179
Em casa, festa da vitória do Ájax, campeão da RPA 4.1 Mangueira,
Recife/PE....................................................................................................
183
Comemoração da vitória do Ájax, campeão da RPA 4.1.
Excepcionalmente é permitida participação das mulheres ao evento do
time. Mangueira, Recife/PE........................................................................
184
Participação de mulheres durante a pelada no São João. Aracatiaçu,
Sobral/CE....................................................................................................
186
Treinadora (vermelho) orienta os jogadores (preto). Pelada no São João.
Aracatiaçu, Sobral/CE......................................................................
186
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
APRISCO
Apoio a Programas Regionais Integrados e sustentáveis da Cadeia de
Ovinocaprinocultura
ASCEMA
Associação dos Servidores Civis do Exército, Marinha e Aeronáutica
ASSPE
Associação de Surdos de Pernambuco.
CESA
Clube Esportivo de Aracatiaçu
CI
Copa Integração
CNPJ
Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
CPF
Cadastro de Pessoa Física
DEA
Diretoria de Esporte Amador
EMATERCE
Empresa de Assistência Técnica e Extensão do Ceará
FP
Futebol Participativo
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
LDA
Liga Desportiva de Aracatiaçu
NFB
Negro no Futebol Brasileiro
PCR
Prefeitura da Cidade do Recife
PFC
Passarinho Futebol Clube
PMS
Prefeitura Municipal de Sobral
RPA
Região Político Administrativa
RPAs
Regiões Potico Administrativas
USJ
União São João
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO _____________________________________________________________ 16
CAPÍTULO I _______________________________________________________________ 22
Entrando em Campo _______________________________________________________ 22
1.1 Os futebóis e seu tratamento nas Ciências Sociais _____________________________ 23
1.2 Futebol Amador e Peladas _________________________________________________ 28
1.2.1 O Futebol Amador ____________________________________________________________ 31
1.2.2 A Pelada____________________________________________________________________ 34
1.3 As regras, o futebol amador e a pelada: uma problematização____________________ 37
1.4 Teoria e Metodologia: jogando no mesmo time________________________________ 42
1.5 Entrando em campo: algumas reflexões etnográficas ___________________________ 59
CAPÍTULO II_______________________________________________________________ 69
Futebol Amador na Cidade e no Sertão ________________________________________ 69
2.1 Futebol Amador: um jogo em família ________________________________________ 71
2.2 O Ájax: O Futebol Amador na Cidade ________________________________________ 76
2.3 O União São João: O futebol amador nas entranhas do Sertão ____________________ 81
2.4 O Projeto Futebol Participativo: primeiras observações _________________________ 85
2.5 Os Times Amadores de Recife no Futebol Participativo __________________________ 87
2.6 Os times e o poder Executivo: conflitos e participação popular ___________________ 89
2.7 Regras, Regulamentos e punições: amadores ou profissionais? ___________________ 92
2.8 Os jogos do Ájax e a dinâmica figuracional ____________________________________ 97
2.9 A Copa Integração em Aracatiaçu __________________________________________ 105
2.10 Quebrando as regras do jogo ______________________________________________ 110
2.11 A rivalidade: jogando com a alteridade no futebol amador______________________ 112
2.12 Os jogadores: o jogo entre amadores e “semi-profissionais” ____________________ 115
2.13 Não basta competir: a “contratação” dos jogadores “de fora” ___________________ 118
2.14 Jogadores “daqui”: o novo velho tema do “amor à camisa” _____________________ 122
CAPÍTULO III _____________________________________________________________ 127
A Construção das Regras e a Resolução de Conflitos _____________________________ 127
3.1 A pelada na cidade de Recife ______________________________________________ 130
3.2 A hierarquia geracional: a disputa dos “pirráia” e dos “meninos” ________________ 148
3.3 A pelada no Sertão ______________________________________________________ 151
3.4 As Regras e a Dinâmica Figuracional das Peladas ______________________________ 157
3.5 O Jogo apostado e o jogo de brincadeira: as diferentes dinâmicas da pelada _______ 163
CAPÍTULO IV _____________________________________________________________ 168
A Torcida do Futebol Amador e da Pelada: proximidade e envolvimento ____________ 168
4.1 Os torcedores nos “estádios” de Recife _____________________________________ 169
4.2 A torcida organizada Mancha Vermelha: o significado de torcer para o Ájax ________ 173
4.3 O pau-de-arara e a torcida no sertão: jogo de homem, lazer da família ____________ 179
4.4 Fim da partida, início da festa: o encontro de torcedores e jogadores _____________ 182
4.5 É campeão! A comemoração em “casa” do Ájax ______________________________ 184
4.6 A torcida de pelada: negação e afirmão ___________________________________ 186
4.7 A assistência na Mangueira: relações de autoridade x amizade __________________ 189
CONCLUSÃO _____________________________________________________________ 192
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______________________________________________ 205
BIBLIOGRAFIA ____________________________________________________________ 209
ANEXO I ________________________________________________________________ 211
ANEXO II ________________________________________________________________ 215
16
INTRODUÇÃO
O futebol como objeto de estudo foi construído por mim, pela primeira vez, no ano
de 1999, quando ingressei no Mestrado em Sociologia do PPGS-UFC. Dessa pesquisa
resultou a dissertação intitulada ―Arte e Força no Futebol Brasileiro‖, na qual analisei as
recentes transformações ocorridas no futebol brasileiro, tanto na prática do esporte, quanto na
administração dele. Enfatizei a construção de duas escolas de futebol: ―futebol-força‖ e
―futebol-arte‖ e o embate que vem ocorrendo, desde a década de 1960, entre esses dois
estilos.
Decidi manter-me na mesma área de estudo quando ingressei no ano de 2004 no
Doutorado em Sociologia do PPGS-UFPE, desta vez voltando o interesse para o futebol
amador e para as ―peladas‖. Desta forma, gostaria de enfatizar que as diferentes matrizes do
futebol, como bem alerta Damo (2005; 2007), são indispensáveis para sairmos do singular e
efetivamente pensarmos em ―futebóis‖ - sem o uso do plural, este termo quase sempre se
refere à idéia do futebol profissional, deixando à margem outras modalidades desta prática
esportiva, como o futebol amador e as ―peladas‖.
Futebol amador e ―peladas‖ não são termos unívocos, em muitos momentos
aparecem como sinônimos, porém eles traduzem duas práticas sociais distintas. Antes de
adentrarmos em nosso problema, vamos para uma definição prévia e resumida no primeiro
capítulo iremos aprofundar essas definições.
Futebol amador, muitas vezes reportado como ―futebol de várzea é um termo
bastante utilizado nacionalmente, tanto no meio urbano, quanto no meio rural. Embora seja
uma prática esportiva amadora, procura manter uma estrutura que se espelha no futebol
profissional. Os times, em geral, contam com uma diretoria, presidência, diretoria técnica
alguns deles, inclusive, com registro em cartório; muitos possuem sede, mesmo que esta seja
17
na casa do presidente; os diretores procuram os melhores jogadores, alguns em bairros
distantes, e estes, em geral, recebem dinheiro para atuar para os dirigentes é importante
montar um time competitivo, contando para isso com a contribuição financeira de sócios e
doações de torcedores e comerciantes do bairro. Alguns times possuem torcida organizada,
com charangas, gritos de guerra, hinos e uniformes padronizados; disputam torneios e
campeonatos organizados por ligas amadoras e pelo poder executivo - algumas destas
competições são regidas pelas regras do Football Association (DUARTE, 1997), as mesmas
do futebol profissional.
A ―pelada‖ caracteriza-se principalmente pela espontaneidade na organização dos
jogos - mormente realizados entre amigos ou vizinhos e moradores de um mesmo bairro -, e
pelas alterações nas regras do Football Association, como, por exemplo, a quantidade de
jogadores, o não uso de material esportivo, ausência ou não de árbitros etc. (VILLELA, 1997,
p.69). A ―pelada‖, assim como o futebol amador, essituada no tempo social do não-trabalho
- no meio urbano os jogos ocorrem, sobretudo, nos finais de semana. Para jogar uma ―pelada‖
três itens são indispensáveis: bola, terreno e, claro, os jogadores. Os outros itens podem ser
dispensáveis de acordo com os recursos (ou a falta destes): uniforme, chuteiras, caneleiras,
traves, redes, árbitros, iluminação. Nas cidades onde é preciso alugar ou negociar um espaço
para a ―pelada‖, um ou mais jogadores ficam responsáveis por esta atividade e quem organiza
a ―pelada‖ também participa dos jogos.
Fundamental salientar que as definições dessas duas categorias foram construídas
ao longo de um extenso trabalho de campo, das primeiras observações de amistosos e das
primeiras visitas à Diretoria de Esportes Amador (DEA - Prefeitura da Cidade do Recife - PE)
ainda em 2004, passando pelo acompanhamento do ―Campeonato Futebol Participativo‖
(março a dezembro de 2005): das reuniões para discussão e aprovação do regulamento até o
jogo final; pelos jogos semanais das peladas em Recife, aos bados e domingos pela manhã;
18
e, finalizando, no semi-árido cearense (Sobral-CE) onde residi durante os meses de abril a
agosto de 2006 e acompanhei a ―Copa Integração‖ e os jogos de pelada. A opção de
compreender o futebol amador, as peladas por dentro‖ e a falta de estudos com essa temática,
me conduziram à adoção do método etnográfico.
Sentíamos a necessidade de um vigoroso trabalho de campo, pois considerava
indispensável o mergulho em campo que ainda é pouquíssimo explorado pelas ciências
sociais. Assim, uma das opções adotadas foi a descrição que possibilitasse um conhecimento
do futebol amador e das ―peladas‖, contemplando tanto sua organização e/ou estrutura, quanto
à prática do jogo. Um dos riscos de tal empreendimento foi exatamente o surgimento de uma
multiplicidade de dados difíceis de serem analisados com o devido rigor científico. Porém, ao
cabo de dois anos de pesquisa, seria frustrante deixar de enunciar elementos relevantes dessa
prática esportiva e social, mesmo que estes não tenham o devido tratamento nessa tese.
Ao mesmo tempo, diante da carência de trabalhos envolvendo o futebol amador e
as peladas‖, considerei essencial que os diferentes elementos dessas práticas fossem
apresentados. Desse modo, surge uma multiplicidade de elementos que ajudam a compor o
imenso mosaico do futebol amador e das ―peladas‖, como por exemplo: as relações de gênero,
o comércio informal, a relação dos times amadores com o poder público, a participação e o
estatuto de jogadores profissionais em times amadores, a organização em ligas amadoras,
dentre outros elementos da prática amadora do futebol e das ―peladas‖ que requerem novos
estudos e pesquisas. Entretanto, esse foi um risco que decidimos assumir para apontar
possíveis caminhos de análise, como também para construir um quadro geral para a
compreensão do tema.
Da mesma forma, sei que diante de um quadro infinito de possibilidades é
indispensável eleger uma problemática que guie a análise e não se disperse diante da
infinitude da realidade empírica. Assim, foi a partir das observações das peladas‖ e também,
19
de novas literaturas, que decidi por centrar este estudo na análise das regras que governam os
jogos, mais precisamente, da permanente construção e negociação das regras dos jogos de
futebol amador e das ―peladas‖. Assim, uma pergunta guiou a pesquisa: como as regras são
construídas e negociadas no futebol amador e nas peladas‖? E a partir dessa pergunta, outras
surgiam e ajudavam a refletir sobre a dinâmica do jogo e sobre as regras orientam as relações
entre jogadores e também entre torcedores e jogadores. Assim, algumas outras questões
fundamentais surgiam: como as regras determinam as dinâmicas intrínsecas dos futebóis?
Como as relações entre os jogadores são reguladas pelas regras? Como são negociadas as
regras entre torcedores e jogadores?
Responder estas questões exigia refencias teóricas que permitissem uma releitura
das regras e que se afastassem de abordagens sociológicas que reduzissem as regras ao seu
papel meramente normativo. Nesse sentido, procurei a contribuição de Bourdieu, Elias e
Garfinkel, três autores que, a despeito das divergências encontradas em seus arcabouços
teóricos, possibilitam uma rica abordagem da temática proposta como apresentei no primeiro
capítulo. Este é um capítulo que busca mostrar a definição de futebol amador e das ―peladas‖,
enfatizando o papel da construção e negociação das regras na dinâmica do jogo e nas relações
de interdependência entre os jogadores e também entre torcedores e jogadores.
O segundo capítulo discute o futebol amador no meio urbano e no meio rural,
trazendo uma rica descrição da organização de times amadores, elegendo dois times como
alvos principais da pesquisa: Ájax (Recife-PE) e União São João (Sobral-CE), nos quais
acompanhei os jogos (amistosos e campeonatos), os momentos anteriores e posteriores aos
jogos, dentre outras atividades. Aqui discuto os dois campeonatos realizados durante a
pesquisa, um organizado pelo poder público e outro por iniciativa individual. Analiso neste
capítulo de que forma as regras permeiam e definem a dinâmica dos jogos amadores,
destacando o caráter elástico das regras do football association.
20
Ao longo do terceiro capítulo as peladas‖ são analisadas priorizando
principalmente a construção das regras pelos ―peladeiros‖ e a constante negociação destas
durante os jogos. Além da alteração e criação das regras do football association, destaquei
aquelas que não são enunciadas pelos praticantes, mas que fazem parte do jogo e que também
interferem na dinâmica figuracional dos jogos: é o caso da conduta quando participam
crianças e adolescentes da ―pelada‖, ou dos xingamentos que são permitidos, bem como
aqueles que são proibidos pelos ―peladeiros‖. Este capítulo acompanhou o grupo da
Mangueira (Recife) e do São João (Sobral), além do grupo da ―Pelada da Amizade‖ no bairro
da Macaxeira, também em Recife.
Por fim, o último capítulo trata das regras que permeiam as relações entre os
jogadores e a assistência tanto no futebol amador quanto nas ―peladas‖. Em ambos uma
relação de proximidade muito grande entre jogadores e torcedores - embora o envolvimento
maior ocorra entre torcedores e times amadores. Em Recife destaca-se, além da proximidade e
envolvimento afetivo com o time, a formação de torcidas organizadas que se espelham no
modelo de torcidas organizadas dos clubes profissionais. No meio rural, embora os jogos de
time amadores sejam uma prática masculina, constituem-se como lazer para toda a família,
principalmente para mulheres e crianças.
Nas ―peladas‖ encontramos diferenças importantes na assistência dos jogos, pois
em Recife aqueles que torcem serão os mesmos que, provavelmente, irão participar dos
jogos; no sertão nordestino existe uma torcida formada principalmente por mulheres que,
muitas vezes, participam ativamente: torcem, gritam e orientam. Nos dois casos, torcedores e
peladeiros‖ agem guiados por regras que estabelecem entre si, negociando permanentemente
os limites impostos em seus processos interativos.
Ao longo da tese, seguindo uma orientação etnometodológica e etnográfica,
procurei deixar o ator social falar procurando coligir as escolhas metodológicas e teóricas,
21
como também, esforcei-me em apresentar o denso e difícil trabalho de observação. Como em
todo trabalho científico, resignei-me diante da impossibilidade de aprofundar elementos
importantes do mundo empírico; contudo, penso que os aspectos aqui abordados sirvam de
rastros para futuros trabalhos e pesquisas: afinal, é preciso, efetivamente, que cientistas sociais
entrem em campo e mergulhem no rico, vivo e apaixonante mundo do futebol amador e das
peladas‖.
22
CAPÍTULO I
Entrando em Campo
A pesquisa em ciências sociais exige do investigador social uma perícia em
conjugar teoria e metodologia, um esforço em aliar um conjunto de reflexões teóricas com a
riqueza do trabalho de campo, e assim, produzir conhecimento e indicar novos problemas e
novas perspectivas. Esse capítulo tem como objetivo mostrar o caminho trico que escolhi
para nortear as reflexões, a escolha metodológica e a problematização do objeto. Apresento
primeiramente e, de forma abreviada, um pouco da discussão sobre futebol nas ciências
sociais; depois a definição de futebol amador e de ―pelada‖; em terceiro lugar, os teóricos que
orientaram minhas reflexões; e, finalmente, apresento o percurso metodológico.
Inicialmente é importante destacar que nos estudos sobre esporte no Brasil uma
certa ―hegemonia‖ dos estudos sobre futebol, mais precisamente sobre futebol profissional.
Porém, é importante destacar que foi através do futebol profissional que o esporte foi alçado
da condição de um tema ―menor‖ para um tema ―maior‖ na sociologia (ELIAS e DUNNING,
1996; LOPES, 1995), sendo reconhecido como tema legítimo basta vermos o considerável
aumento de teses e dissertações nos programas de s-graduações em ciências sociais, bem
como o número de publicações e da criação de grupos de trabalho em sociedades científicas
1
.
Estudos e pesquisas em outros esportes como voleibol, basquetebol, atletismo, esportes de
aventura, skate, dentre outros, ainda são incipientes. Não obstante sua relevância, não escapa
dessa ―centralização‖ também o futebol amador; são poucos os estudos e pesquisas, mesmo
em áreas como a Educação Física, que na maioria das vezes restringem-se ao futebol amador
1
Cujos temas mais abordados são: identidade nacional, violência, tenes raciais, formação de jogadores,
torcidas organizadas e clube empresa.
23
como prática esportiva na educação escolar. Nas ciências sociais, cito os artigos de DAMO
(2005) e VILELA (1997), além duas dissertações: HIRATA (2005) e GONÇALVES, (2002).
1.1 Os futebóis e seu tratamento nas Ciências Sociais
A restrita produção acadêmica sobre futebol amador não impede, ao contrário,
estimula novos trabalhos, apesar das dificuldades que a falta de pesquisas nesse tema ime.
Por outro lado, a produção sobre futebol profissional
2
é ampla e possibilita aproximações e
reflexões, contribuindo para minimizar as lacunas. Foi-se o tempo em que podíamos ler na
introdução de dissertões e teses sobre futebol no Brasil a reclamação dos autores sobre a
falta de bibliografia sobre o tema. Isto de fato aconteceu principalmente até o final da década
de 1980. Porém, a década de 1990 trouxe consigo, não apenas a conquista do tetracampeonato
mundial de futebol, mas também um grande aumento no número de teses, dissertações e
publicações de livros sobre o futebol brasileiro - contudo, bem antes de despertar o interesse
de cientistas sociais, geógrafos, historiadores, dentre outros, o futebol fora um objeto de suma
importância para jornalistas e literatos, como o é até hoje.
Ainda que de forma breve, é importante retomarmos essa produção realizada sobre
a temática do futebol, trazendo a baila, sobretudo, os debates e antagonismos gerados à época
de sua escrita e estendidos aos dias atuais -, debates que, como veremos, estenderam-se até
hoje, como nos melhores jogos que teimam em não terminar com o apito final do juiz. Além
disso, é fundamental procurar nessas obras reflexões e insights que, mesmo direcionados para
o futebol profissional, possam dialogar não apenas com o futebol amador, mas também com
uma sociologia dos esportes que, timidamente, busca legitimidade no campo acadêmico
brasileiro.
O futebol inicia sua popularização na década de 1920, esse crescente interesse
desperta grande atenção entre escritores da época, poderia se formar dois times: um contra e
2
A partir de agora, quando me referir ao futebol profissional, utilizarei apenas a palavra futebol.
24
outro a favor do futebol, embora este último tivesse muito mais representantes como Coelho
Neto, JoLins do Rego, Oswald de Andrade e Monteiro Lobato; no outro campo teríamos
Graciliano Ramos, Lima Barreto e Mário de Andrade. Os primeiros argumentavam desde o
caráter disciplinador desta categoria esportiva, bem como da construção de uma identidade
nacional. A ala contrária criticava os ―estrangeirismos‖, a possibilidade do acirramento de
rivalidades e conflitos entre as classes subalternas, a necessidade de valorização da cultura
brasileira, dentre outros.
Contrariando Graciliano Ramos, que considerava o futebol um estrangeirismo
passageiro, esse novo esporte foi aos poucos conquistando a população. Gilberto Freyre foi o
primeiro intelectual de sua época a refletir sobre o futebol brasileiro, identificando-o com um
estilo próprio brasileiro de jogar futebol. No artigo intitulado ―foot-ball mulato(1938), esse
autor destacou as características típicas do estilo brasileiro de jogar futebol, ao qual designou
de dionisíaco em oposição ao aponeo do estilo inglês. As formulações de Freyre
caminham para reforçar sua teoria da democracia racial, na qual a miscigenação brasileira não
era considerada um ponto fraco, ao contrário, era um elemento que nos distinguia e produzia
uma nação forte, o futebol ilustraria isso muito bem; assim nosso futebol seria dionisíaco, por
reunir os atributos do sangue/cultura africana. Em foot-ball mulato, Freyre afirma:
o nosso estilo parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de
qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo
tempo de espontaneidade individual. Os nossos passes, os nossos pitus, os
nossos depistamentos, os nossos floreios com a bola, alguma coisa de
dança ou capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que
arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses. (Freyre, 1938, s/p).
Note-se que , na construção de Freyre, um estilo brasileiro de jogar futebol que
hoje pode muito bem ser traduzido como ―futebol-arte‖ - estilo pelo qual o futebol brasileiro
passou a ser reconhecido interna e externamente. Há em Freyre uma busca pela construção de
uma identidade nacional através do futebol, que por sua popularização apresentava-se como
um meio eficaz para representar os ideais de nação e identidade nacional - por exemplo, o
25
livro O Negro no Futebol Brasileiro (NFB), de Mário Filho (2003), ilustra bem essa
construção de um estilo e de uma identidade nacional; o é por acaso que Gilberto Freyre
seja o prefaciador do NFB. No NFB, publicado pela primeira vez em 1947, Mário Filho narra
a história do futebol brasileiro, a partir de uma ampla pesquisa realizada no Rio de Janeiro
3
.
Assim, seria mais correto falarmos que o NFB narra uma hisria do futebol carioca.
O NFB tem um estilo épico: narra os primeiros anos elitistas e racialistas do
nosso futebol, a discriminação imposta aos negros e mulatos e todo sofrimento e agonia
sofrida por estes, depois narra a batalha desses jogadores, a nova derrota na Copa de 1950 e
por fim a vitória (ascensão social) dos negros e mulatos através das conquistas das Copas do
Mundo de 1958 e 1962. Note-se que há um contínuo entre as iias de Mário Filho e Gilberto
Freyre, revelando a influência deste sobre o pensamento daquele. O NFB é, sem dúvida, a
obra de maior importância e impacto na história do futebol brasileiro, ensejando grandes
debates entre literatos, jornalistas e acadêmicos, despertando críticas e elogios
4
. Entretanto, ele
refere-se apenas ao futebol profissional, o futebol amador aparece apenas como local de
―formação‖ do jogador de futebol negro, mulato e do branco pobre, que era excluído dos
clubes de elite.
3
―(...) estudar, separadamente, várias épocas do futebol brasileiro, ou melhor, do futebol carioca, cuja história
não há de diferir, em essência, de nenhuma outra dos grandes centros esportivos do país‖ (FILHO, op.cit., p. 20).
A pesquisa foi realizada em jornais da época (início 1910) e atras de uma série de entrevistas realizadas por
Mário Filho. Em nota ao leitor, Mário Filho informa o nome de 63 pessoas que se dispuseram a conversar com
ele, além de outros não nomeados. Outra fonte utilizada foram atas e documentos oficiais da época.
4
No livro ―A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria‖ (HELAL, SOARES e LOVISOLO, 2001),
trava-se um debate atual sobre o NFB. Soares critica a construção teórica que afirma terem sido os negros e o
processo de discriminação vivenciado por eles na sociedade e no futebol, sobretudo no início do século XX, os
responsáveis pelo surgimento do ―estilo brasileiro‖ de jogar futebol. Também critica os ―novos narradores‖, por
estes elaborarem essa construção baseados unicamente no NFB. Para Soares, este tipo de narrativa e sua
reprodução pelos ―novos narradores‖ atualizam um discurso oficial de construção de uma identidade nacional,
no caso, da identidade fundada em nossa singular miscigenação, e no mito da ―democracia racial‖. Helal e
Gordon Jr. (2001), por outro lado, questionam Soares, por este desconsiderar o fato de que essa identidade torna-
se ―real‖ a partir do momento em que ela é instaurada e encontra correspondência entre o discurso oficial e o
discurso popular, e, independente de ser a construção de uma classe, encontra resposta em outra classe. Os
autores destacam que o futebol (e a Copa do Mundo como ponto máximo) é um meio poderoso pelo qual essas
identidades nacionais se expressam, independente dessas identidades serem ou não construídas. Prosseguindo em
sua ctica, Helal e Gordon Jr., consideram que, ao fazer a crítica aos ―novos narradores‖, Soares descarta a
existência de um estilo brasileiro de jogar futebol. Para os autores pode-se até questionar o fato desse estilo ter
sido fruto da cultura negra, mas não se pode negá-lo, pois ele tornou-se ―real‖ ao se instalar no discurso
futebolístico e na percepção dos atores sociais.
26
Entre os anos de 1952 e 1954 o alemão Anatol Rosenfeld publica três artigos que
mais tarde seriam reeditados no livro Negro, Macumba e Futebol (1993). Rosenfeld
polemiza com Mário Filho, pois afirma que a ascensão econômica dos negros no futebol o
significou a ascensão social dos negros. Depois de escritores, jornalistas e críticos literários, a
produção acadêmica brasileira voltará suas reflexões para o futebol brasileiro. Em 1977,
Simoni Lahud Guedes defende a dissertação de Mestrado O futebol brasileiro: instituição
zero
5
, onde analisa ―o futebol brasileiro como operador da identidade nacional e nos seus
diversos significados na vida dos trabalhadores urbanos‖
6
. Com o objetivo de compreender os
significados veiculados pela imprensa sobre a seleção brasileira de futebol em épocas de Copa
do Mundo e também o que futebol representava para os operários cariocas. Mesmo tendo
como tema central o futebol profissional, é pela primeira vez que o futebol amador é reportado
num trabalho acadêmico - embora apareça de forma indistinta, não revelando as
diferenciações das práticas amadoras;: futebol ―de várzea‖ ou ―futebol amador‖ será tratado na
forma gerica de ―pelada‖, indistinção também presente no NFB:
(...) aos 30 anos [operário peladeiro], joga em ‗times de pelada organizada‘
tem time fixo, disputa campeonatos do bairro. Mais ou menos aos 40 anos,
deixa também esse tipo de ‗pelada‘, passando a participar apenas de
‗brincadeiras‘: jogos organizados em ocasiões especiais, entre seções da
fábrica, ‗casado e solteiro‘, etc (GUEDES, op. cit., p.151).
Em 1982, finalmente, temos as duas primeiras publicações acadêmicas sobre
futebol: ―Futebol e Cultura‖ (WITTER e MEIHY, 1982), em São Paulo, e ―Universo do
Futebol‖ (DAMATTA, 1982), no Rio de Janeiro. As duas publicações reúnem artigos de
estudiosos sobre o futebol. Em ―Futebol e Cultura‖, um grupo de historiadores faz análises
5
A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional do Rio
de Janeiro/UFRJ e teve como orientador o professor Castro Lima. Em 1980, no mesmo programa é defendida a
dissertação ―Os gênios da pelota: um estudo do futebol como profissão‖, de Ricardo Benzaquen de Araújo, seu
orientador foi Gilberto Velho. No resumo, Araúj sintetiza o objetivo da dissertação, qual seja, compreender ―as
razões que levaram estes jogadores a optar pelo futebol como profissão, destacando principalmente, a chance de
enriquecimento e de auto-realização (...) categorias básicas (...) o talento, e uma certa personalidade, baseada na
idéia de autocontrole. Finalmente, foram analisadas as relações dos jogadores com os dirigentes‖ (ARJO,
1982, s/p).
6
GUEDES, Simoni. 1998, p. 12
27
interessantes sobre o futebol, cultura e identidade nacional. A tônica do livro é uma crítica
àqueles que pensaram ou pensam o Brasil a partir de estereótipos como a malandragem, o
―jeitinho brasileiro‖, dançarinos, espertos e ágeis. É importante destacar, entretanto, que os
autores que adotam uma perspectiva marxiana, trazem questões pertinentes à uma análise do
futebol no qual se destacam as relações de poder presentes no futebol e na potica; é também
a primeira publicação a incluir um artigo sobre o futebol de várzea, mesmo que este seja o que
mereça o menor número de páginas. Analisa o futebol amador a partir da discussão da
diminuição dos espaços para essa prática esportiva, argumentando que a especulação
imobiliária avança contra o futebol de várzea.
O ―Universo do Futebolé também uma coletânea de artigos escritos por alunos da
pós-graduação em Antropologia do Museu Nacional e por Roberto Damatta que faz a
introdução, escreve o primeiro artigo do livro e tem suas principais idéias presentes nos
demais autores: a partir da visão de ritual e de drama, os antropólogos irão construir suas
análises sobre o futebol brasileiro que é visto como veículo para uma série de dramatizações
da sociedade brasileira‖, um desses dramas seria a da ―oposição entre um sistema fechado,
dotado de regras fixas, e as possibilidades de modificar esse sistema‖. Outra leitura é relação
entre indivíduo e pessoa, pois o futebol possibilitaria aos brasileiros viver essa experiência de
igualdade, diferentemente da rotina da sociedade brasileira permeada por relações pessoais -
que no futebol as relações são definidas pelo desempenho. Esse livro é importante por
questionar veementemente a iia do ―futebol como ópio do povo‖, por estudar esporte e
sociedade numa perspectiva dialética e não de oposição, por reunir e não dicotomizar jogo e
esporte, lúdico e competitivo. Porém, o modelo teórico de drama é mais útil para o ritual dos
jogos e dos momentos englobantes que ele proporciona, mas o futebol profissional vai além do
ritual - as disputas e conflitos oriundos dessas relações de poder ficam ausentes; há o perigo
28
também de estabelecer relações diretas entre o futebol e a sociedade, como, por exemplo, a
relação entre democracia e futebol, ou entre futebol e povo brasileiro.
Depois dessas duas importantes publicações, somente na década de 1990 os
estudos acadêmicos voltarão a campo, e, dessa vez, fortemente calcados na pesquisa
empírica
7
. Em 1990, é criado o primeiro Núcleo de Pesquisa dedicado ao estudo do futebol
Núcleo de Sociologia do Futebol da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e atualmente são
22 grupos de pesquisa registrados no CNPq que elegem o futebol como tema de investigação -
na década seguinte são criados os primeiros grupos de trabalho sobre esporte nos principais
encontros científicos
8
. Os esportes, principalmente o futebol, vêm aos poucos galgando espaço
e legitimando-se no campo acadêmico brasileiro, embora suas análises sejam ainda centradas
na prática profissional, esquecendo-se uma dimensão igualmente importante do futebol: a
prática amadora, que em nosso país mobiliza milhões de jogadores todos os finais de semana.
1.2 Futebol Amador e Peladas
A pesquisa sobre futebol profissional levantou diversas reflexões acerca desse
esporte, bem como apontou algumas possibilidades de continuidade desses estudos. O futebol
amador, dentre outros, foi o tema que me pareceu mais instigante, principalmente porque,
como o futebol profissional, o futebol amador poderá fornecer importantes elementos para
uma compreensão de nossa sociedade, pois a multivocalidade do futebol não se restringe ao
lado profissional, imerso na grande indústria do entretenimento e do lazer, mas se revela
também nos ―campos‖ de terra batida localizados nas grandes cidades e nos pequenos distritos
rurais. Assim, os dramas‖ (DAMATTA, 1982) de nossa sociedade podem ser ritualizados
tanto nos modernos estádios quanto no pequeno ―quintal‖ cedido pelo vizinho; os
7
Dos autores que mais contribuído para reflexão sobre futebol no Brasil, destaco três, todos antropólogos:
Simone Guedes, Arlei Damo e Luiz Henrique de Toledo.
8
Em 2000, o primeiro GT aconteceu durante a XXII Reunião Brasileira de Antropologia, em 2001 na IV
Reuno de Antropologia do Mercosul e em 2002 na XVI Reunião Anual da Anpocs.
29
protagonistas do espetáculo podem ser ―heróis‖ que calçam chuteiras de titânio, quanto
anônimos que arriscam seus s descalços em terrenos baldios que escaparam à especulação
imobiliária.
Relendo o projeto que apresentei para a seleção do doutorado, é tido que em
2003 eu ainda não caracterizava com precisão meu tema de estudo, pois assim como em
Guedes (1977) ou Mário Filho (2003) a ―peladaé um termo que tanto abrange os times de
futebol amador quanto as formas mais espontâneas do jogo que também conhecemos como
pelada‖. Porém, a pesquisa de campo e algumas leituras, como Damo (2005; 2007) e
Gonçalves (2002), mostraram que esse universo é bem diverso e que seria um equívoco
reduzir diferentes práticas sociais em uma mesma categoria.
Damo constrói uma classificação do futebol em quatro matrizes: espetacularizada,
escolar, bricolada e comunitária - distribuição que não deve ser encarada como um fim em si
mesma, mas pensada como recurso estratégico. A matriz espetacularizada corresponde ao que
hoje conhecemos como futebol profissional; a escolar se refere basicamente ao futebol
praticado na escola, principalmente como atividade curricular; as duas últimas matrizes se
referem ao tema de estudo proposto neste trabalho: a matriz bricolada às peladas e a matriz
comunitária ao que se chama em alguns lugares de futebol de várzea (principalmente em São
Paulo). Um dos riscos que Damo assumiu nessa tipificação foi justamente apressar conclusões
das matrizes bricolada e comunitária sem a devida investigação empírica, o que leva a
algumas conclusões que precisam ser relativizadas e questionadas, tal como ―os times de
rzea tem um dirigente, um técnico e um massagista‖, ou ―não deve causar surpresa se o
centroavante, a certa altura, for jogar de goleiro; ou se um atleta que atuava na ponta-direita e
fora substituído antes do intervalo, reaparecer como beque-de-espera nos minutos finais‖
(DAMO, 2007, p.45). De toda forma, mesmo com algumas lacunas na tipificação proposta e
30
com a devida ressalva que esta não é uma classificação estanque, Damo e em destaque a
diversidade das práticas dos futebóis em nosso país.
Gonçalves (2002) destaca em sua dissertação o futebol amador praticado em
Juazeiro do Norte (CE). Ao pesquisar práticas diferenciadas do futebol amador, propõe uma
categorização em ―jogos abertos‖ e ―jogos fechados‖. Os ―jogos abertos‖ corresponderiam às
peladas, ou à matriz bricolada, se utilizarmos a classificação de Damo; nos ―jogos
fechados‖ estariam os times de futebol amador, ou times várzea, ou ainda, o futebol
comunitário. Essa categorização proposta por Gonçalves é, sem vida, interessante, pois
captura dimensões essenciais dessas práticas esportivas, como a fluidez da pelada e as
hierarquias do futebol amador ou varzeano. Porém, me parece por demais limitada ao jogo em
si, não abarcando as diferentes dimensões dessa prática esportiva como, por exemplo, as
relações entre torcedores e times e entre diretores de time e poder público.
Dessa maneira, decidi assumir a nomeação que meus informantes utilizaram ao
longo da pesquisa, buscando adequar algumas diferenças produzidas entre meio rural e
urbano. Por exemplo: embora o termo pelada seja uma denominação bastante utilizada em
Recife, no meio rural, o termo pelada aparece pouco, sendo mais freqüente o uso do termo
racha‖. Uma das semelhanças entre as peladas do meio rural e urbano é a tida
diferenciação que os peladeiros fazem da pelada e do futebol amador; para eles, é clara a
distinção entre essas duas práticas esportivas. Vou realizar uma definição prévia do que seja
pelada e futebol amador, embora saiba dos limites deste intento -, pois definições
apriorísticas em um trabalho etnográfico perdem a riqueza das descrições densas. Arrisco-me
a dizer que o(a) leitor(a) somente terá uma definição após a leitura completa do trabalho, mas
isso não impede, ao contrário, até exige uma caracterização inicial do que sejam essas duas
práticas esportivas, não apenas para orientar o leitor ao longo da leitura, mas principalmente
porque o trabalho científico exige rigor e precio nas conceituações, pois como foi visto o
31
termo ―pelada‖, em Mário Filho e em Guedes, ora responde pela pelada‖ que acontece de
forma quase espontânea e às vezes também remete aos times hierarquicamente organizados.
1.2.1 O Futebol Amador
Apesar da origem elitista do futebol no Brasil, este esporte também foi praticado
pelas classes populares nas primeiras décadas do século XX. Em São Paulo, por exemplo, os
jogadores que não tinham acesso aos campos dos clubes sociais utilizavam as várzeas de rios
(como o Tietê e o Pinheiros) como local para a prática do futebol, daí a origem do termo
―futebol de várzea. Devido ao uso contínuo pelos meios de comunicação, alguns informantes
no meio urbano utilizam a expressão ―futebol de várzea‖. A partir da pesquisa em Recife e de
outras leituras que realizei (HIRATA, 2005; MAGNANI e MORGADO, 1996; SANTOS,
1999; DAMO, 2007), arrisco-me em dizer que, na verdade, trata-se de um conceito nativo de
São Paulo
9
, tendo maior difusão graças ao emprego constante nos meios de comunicação,
sendo bastante utilizado por dirigentes de times, representantes do poder público (como as
prefeituras), jogadores, jornalistas esportivos, e torcedores. Entretanto, ―futebol de várzea‖,
apesar de utilizada em outras regiões, é uma expressão paulista, sendo pouco comum em
outros estados do país para referir-se ao futebol praticado por amadores
10
. O termo ―futebol
amador‖ é mais utilizado nacionalmente.
O futebol amador é uma prática esportiva amplamente difundida em nosso país
11
, o
que dificulta uma definição que encerre as especificidades de sua prática. Porém, é possível
elaborar, a partir da pesquisa empírica, uma categorização que delimite aspectos essenciais
dessa atividade, fazendo a devida ressalva que a pesquisa foi realizada em uma única região
do país, mas, por outro lado, em dois espaços sociais distintos, quais sejam: a cidade/urbano e
9
Em Porto Alegre o termo futebol de várzea é o mais utilizado.
10
É importante destacar que a imprensa esportiva, não apenas a paulista, utiliza com freqüência o termo ―futebol
de várzea‖ para se referir aos times amadores.
11
Pesquisando em sites brasileiros, encontraremos uma quantidade enorme de campeonatos, sejam
governamentais, de ligas ou grupos.
32
o campo/rural. Assim, a despeito das diferenças, é possível elaborar um tipo ideal‖ de futebol
amador, dividindo-o em duas dimensões fundamentais: estrutural e da prática do jogo.
A dimensão estrutural responde pelas similitudes entre o futebol amador e o
futebol profissional, destacadamente aquelas que incorporam os termos e os modelos
organizacionais. Assim, encontraremos times que possuem sede, presidente, sócios, diretores e
torcidas organizadas, inclusive adotando os mesmos termos do futebol profissional: sócio-
fundador, diretoria, comissão técnica, patrocinadores, dentre outros. Esses times apresentam-
se como se fossem uma ―maquete‖ dos times considerados grandes no futebol brasileiro e
internacional não será à toa que a maioria será ―batizada‖ com nomes dos grandes clubes:
Flamengo, São Paulo, Vasco da Gama, Cruzeiro, Corinthians, Internacional, Barcelona,
Arsenal, Real Madrid, dentre outros.
Os times de futebol amador possuem, quase sempre, duas equipes chamadas de
primeiro e segundo quadros (ou quadro A e quadro B, respectivamente), sendo o primeiro
quadro formado por jogadores considerados os melhores do time, e o segundo quadro aquele
grupo considerado ―menos‖ experiente, ―menos‖ técnico, ―mais‖ velho - divisão que remete
àquela que ocorre no futebol profissional entre o time principal (profissional) e as divisões de
base (juniores, juvenil, infantil e fraldinha). Assim, a lógica estrutural também se dirige ao
campo de jogo: o primeiro quadro deve ser o time melhor e mais forte, pois o jogo é ―sério e
―ninguém quer perder‖. A competição assume um caráter central nessa prática, deixando
pouco espaço para a dimensão lúdica. Sem querer dicotomizar, é possível afirmar que o
futebol amador é mais esporte do que jogo, pois para ganhar um campeonato é preciso montar
um ―bom timee para isso é necessário ―contratarbons jogadores. Alguns serão contratados
mediante um valor pecuniário, outros por outro valor igualmente importante, a ―amizade‖.
A dinâmica do jogo deixa de ser o que se espera comumente de um jogo amador
times desorganizados em campo, jogadores sem funções táticas definidas, por exemplo
33
um padrão de jogo determinado pela ―comissão técnica‖ e, principalmente, pela experiência
dos jogadores que conhecem sua função e se distribuem em campo de acordo com esta,
movimentando-se segundo critérios construídos de forma coletiva. A dinâmica do jogo flui,
tendo o futebol profissional como modelo a ser seguido. Assim, as regras do jogo
desempenham um papel fundamental na sua dinâmica.
As regras para a prática do futebol amador seguem as regras do football
association, ou seja, os campeonatos guiam-se pelas mesmas regras do futebol profissional,
com algumas adaptações a situações pprias do futebol amador. Para o cumprimento das
regras será indispensável a presença de árbitros, pelo menos um, mas certamente em jogos de
maior importância (como, por exemplo, semifinais e finais) haverá um trio de arbitragem, e
que estes sejam preferencialmente árbitros federados. As regras impactarão a dinâmica do
jogo, a conduta dos jogadores e irão ajudar a manter o equilíbrio entre tensão e prazer
inerentes ao jogo.
Outro aspecto importante do futebol amador é a participação dos torcedores.
Alguns times têm torcidas organizadas com nomes, hinos, grito de guerra, instrumentos
musicais, faixas e bandeiras; outros times têm torcedores comuns que assistem aos jogos e
incentivam seu time sem estarem vinculados a um grupo; esses dois tipos de torcedores têm
em comum, entretanto, a relação de proximidade com os jogadores - embora muitos dos
jogadores morem em outros bairros, são conhecidos, amigos e ex-vizinhos dos torcedores.
Assim, além da proximidade entre campo de jogo e arquibancadas (quando estas existem)
favorecem as relações interpessoais, existindo uma relação dialógica entre os jogadores e
torcedores.
A estrutura do futebol amador marcada também por relações familiares, de tal
modo que muitos filhos herdam um time de futebol de seu pai. Não quero com isso afirmar
que todos os times possuem relações de parentesco, mas em muitos deles irá prevalecer essa
34
herança, seja de pai para filho, de irmão para irmão, de tio para sobrinho, ou de outras relações
de consangüinidade. Por um lado, os ―herdeiros‖ levam adiante os sonhos de seus
antecessores, pois se não o fizerem provavelmente determinado time irá ―ficar parado‖, o que
significa o fim daquela equipe. As relações familiares são determinantes também para a
manutenção do time, pois sem uma rede de solidariedade entre os membros da família
dificilmente um time de futebol amador consegue se manter.
1.2.2 A Pelada
Pelada‖
12
é um termo muito utilizado no país, quase sempre significando uma
referência ao futebol amador, ora aparecendo como sinônimo desse, ora como uma forma de
criticar uma partida de futebol profissional considerada de baixo nível técnico
13
. O termo
também pode reportar-se, porém, a uma determinada forma de prática do futebol marcada pela
ludicidade, espontaneidade e modificação das regras. É um termo bastante utilizado na cidade
de Recife e outras capitais brasileiras; no semi-árido nordestino, o termo ―pelada‖ é utilizado
com parcimônia, sendo mais comum a palavra ―racha‖
14
. A ―pelada‖ destaca-se por sua
fluidez; qualquer referência à sua definição tem que considerar as diversas variações dessa
prática esportiva: difereas que podem ocorrer no mesmo grupo de jogadores, entre grupos
de outras cidades e de outros espaços sociais, como o meio urbano e o meio rural.
Uma das características que uma ―pelada‖ evoca é a espontaneidade na
organização dos jogos e o caráter eminentemente lúdico dessa prática. Assim, existem grupos
de pelada‖ que se formam uma única vez e seu tempo de duração equivale ao tempo do jogo
12
É difícil afirmar como surgiu o nome ―pelada‖ para se referir à determinada prática do futebol. Encontraremos
diversas explicações para o termo, alguns dirão que é uma referência à falta de grama, pois os terrenos usados
em sua maioria - não possuem gramado, outros irão se referir à falta de uniformes, como jogadores descalços e
sem camisa, outros ainda farão referência à palavra ―péla‖, de origem espanhola, que significa bola.
13
Em jogos transmitidos pela televisão ou em programas esportivos, principalmente de debates (as famosas
mesas redondas) é comum ouvirmos ―não é um bom jogo, parece uma pelada‖, ou ―o jogo foi péssimo, parecia
uma pelada‖. Quem freqüenta estádios de futebol provavelmente ouviu comentários jocosos ou irritadiços de
torcedores, como ―sou mais a pelada lá de casa‖, ―tá pior que uma pelada‖.
14
Em outras cidades, o termo ―racha‖ também é utilizado como, por exemplo, no Rio de Janeiro.
35
alguns grupos que se formam em praias
15
ou mesmo grupos de crianças que se encontram
ocasionalmente em parques ou praças formando times que se dissolvem logo após o fim do
jogo; e existem grupos formados por amigos ou vizinhos de um mesmo bairro ou localidade
que, entretanto, se reúnem regularmente para ―jogar uma pelada‖: eis o grupo objeto de
minhas análises.
Essa pesquisa concentrou suas observações nesse tipo de grupo, e como o trabalho
de campo aconteceu no meio urbano (Recife/PE) e rural (Sobral/CE), encontramos diferenças
consideráveis entre os grupos, ao contrário do que ocorreu com o futebol amador onde
encontramos mais semelhanças do que diferenças, mesmo em espaços sociais tão distintos.
Apesar dessas diferenças, é possível uma definição da pelada a partir de duas dimensões:
organizacional e da prática do jogo.
A espontaneidade do jogo nas grandes metrópoles esbarra na falta de espaço para a
prática da pelada‖, exigindo organização dos ―peladeiros‖; na maioria das vezes é necessário
alugar um local e distribuir responsabilidades: recolhimento das contribuões, lavagem dos
coletes, distribuição da água. Os jogos aconteciam uma vez por semana, geralmente pela
manhã, e quase sempre agendados para o final de semana; uma organização prévia do grupo é
necessária, pois, além de garantir a uma estrutura mínima para a realização da ―pelada‖
através da definição do valor das cotas, o grupo realiza reuniões regulares para definir e votar
situações como as punições em casos de brigas, mudança nas regras ou mesmo para decidir
sobre a confraternização de final de ano. Dessa forma, embora não tenha uma estrutura
semelhante ao futebol amador, possui coesão assentada na amizade e nas relações de
parentesco e de vizinhança.
Os campos para a prática da ―pelada‖ no meio rural são numerosos, sendo mais
espontânea a realização das partidas: estas serão definidas principalmente pelo dispêndio de
15
Embora existam grupos organizados que se reúnem na praia com freqüência e quase sempre com os mesmos
jogadores. Excetuam-se nesse exemplo os grupos que praticam beach soccer ou futebol de areia.
36
força realizado na ―roça‖. Assim, o trabalho irá definir se a ―pelada‖ agendada se realizará,
mas, caso o cansaço seja maior que o desejo de ―brincar‖, o jogo será adiado para o dia
seguinte ou simplesmente cancelado. Assim, em algumas semanas os jogos poderão ocorrer de
segunda à sexta-feira, sempre no final da tarde, como também noutras, poderá o ocorrer:
essa espontaneidade não significa desorganização. O grupo conta com dois ou três
peladeiros‖, por exemplo, responsáveis para marcar ou desmarcar o racha‖, além de
estabelecer critérios de inclusão e exclusão, determinar as condutas e definir as ações que são
inaceiveis no jogo.
A dinâmica do jogo difere bastante do futebol amador, pois são inúmeras as
mudanças em relação ao futebol profissional, principalmente no que se refere às regras -
excetuando a proibição dos jogadores tocarem a bola com a mão, todas as outras regras são
criadas e recriadas pelos próprios participantes. Por exemplo, o impedimento uma das regras
mais importantes para a dinâmica de um jogo de futebol profissional é excluído das
peladas‖, além disso, alguns jogos não contam com a presença de árbitro. Outra mudança
importante se refere ao número de jogadores por equipe que diminui para nove, seis ou cinco,
sendo estes mais ou menos fixos por grupo ou as equipes podem ser definidas por sorteio.
Outras regras são mantidas com pequenas alterações e adequações ao tamanho reduzido do
campo, como a cobrança de lateral, do tiro de canto, do pênalti e do tiro de meta. Outras ainda
podem ser modificadas de acordo com a necessidade do grupo, como, por exemplo, a
quantidade de cartões, as sanções que cada cartão estabelece, os critérios para validação de um
gol ou a definição de faltas. Para além do caráter elástico das regras (ELIAS, 1996), é possível
afirmar que a pelada é definida principalmente pela constante criação e recrião das regras.
Como já dito anteriormente, essa é uma tentativa de definir para o(a) leitor(a) o que
essa pesquisa delimitou como futebol amador e ―pelada‖
16
, mas esse esforço em criar tais
16
Pelada a partir de agora será utilizada sem as aspas.
37
categorias de entendimento somente terá valor heurístico se compreendermos que elas não são
definições herméticas e apriorísticas, mas fruto de uma aproximação com o mundo empírico.
Dessa forma, o leitor poderá compreender melhor o futebol amador e a pelada se acompanhar
o esforço etnográfico para descrição densa dessas duas práticas esportivas.
1.3 As regras, o futebol amador e a pelada: uma problematização
A construção de uma definição mesmo que pensada como recurso analítico e não
como reflexo ou cópia do mundo empírico visa contornar a ―fluidez‖ do futebol amador e da
pelada, pois, como vimos anteriormente, o universo multifacetado do futebol amador exige um
recorte capaz de abarcar a dinâmica social do jogo, alcançando tanto sua lógica interna quanto
as relações engendradas entre jogadores, torcedores e ―dirigentes‖.
Importante enfatizar nesse processo de aproximação e construção do objeto, como
a dinâmica que se estabelece entre trabalho de campo e a reflexão teórica leva
necessariamente o pesquisador a repensar e refazer suas escolhas teóricas e metodológicas.
Essa dinâmica entre teoria e empiria revela também uma das características principais das
ciências sociais e do conhecimento científico como um todo, qual seja, a ciência como um
processo e não como estado (JAPIASSU, 1975). Assim, é importante evidenciar qual o
percurso percorrido até a delimitação do objeto de pesquisa.
Primeiramente, propus-me analisar, através da prática amadora do futebol, de que
forma são tecidas as redes de sociabilidade masculina, quais os significados que o jogo assume
na vida dos jogadores procurando compreender como se constituem os times, quais os
principais atores, quais os esquemas de classificação e critérios de inclusão e exclusão de um
time. Nessa construção inicial, pretendia enfatizar a pelada como lugar de inculcação do
habitus masculino, como um lócus privilegiado da construção de valores e condutas
masculinas. O trabalho de campo e a revisão da literatura, entretanto, apontaram novas
38
perspectivas para a construção do meu objeto, pois as redes de sociabilidade masculina no
futebol amador revelaram apenas um aspecto do fenômeno, e restringir a investigação a esse
ponto ocultaria uma imensa riqueza do futebol amador. Por outro lado, o desafio consistia em
eleger uma problemática que guiasse a análise e não se perdesse diante de tantas
possibilidades proporcionadas nos dois anos de pesquisa.
A pelada indicou o caminho: a permanente construção e negocião das regras
durante os jogos revelaram que estas têm um papel fundamental na dinâmica do jogo e nas
relações entre os jogadores. Este caráter central das regras alcançava o apenas as peladas,
mas também o futebol amador. Assim, pareceu-me impossível a compreensão dessas práticas
sem o entendimento desse elemento central do jogo, mesmo sendo esta uma afirmação
tautológica, pois não existe jogo sem regras. Por outro lado, o que não é evidente é o processo
de elaboração das regras, assim, é preciso investigar: como as regras são construídas nos
futebóis? E, principalmente, como as regras determinam as dinâmicas intrínsecas dos
futebóis? Como as relações entre os jogadores são reguladas pelas regras?
Regras e normas são temas caros ao pensamento social. Pom, algumas vezes as
regras aparecem como se pairassem acima dos indivíduos, como no caso das abordagens
funcionalistas, como, por exemplo, em Durkheim
17
(1995; 1999) e atualizada principal e
contemporaneamente por Talcott Parsons (1949). Prender-me-ei a este último autor pela
importância e influência que sua obra teve recentemente nas ciências sociais e por suas
construções teóricas terem estimulado diretamente as análises de Garfinkel (1963; 1967), cujo
posicionamento crítico o levou ao encontro da fenomenologia e à construção de uma nova
escola: a etnometodologia. A discussão sobre regras e normas nos leva inexoravelmente ao
debate sobre a ação humana, tema tão caro ao pensamento social.
17
Outras apropriações de Durkheim são possíveis. Como, por exemplo, Bourdieu que transforma as
classificações primitivas de Durkheim e Mauss em lutas de classificações (BOURDIEU, 2007).
39
Parsons ambicionava construir uma teoria geral da ação que fosse aplicável às
diferentes ciências sociais. Desejava elaborar uma teoria que desse conta dos diversos campos
de conhecimento, fosse a sociologia, a economia, a ciência potica, a antropologia, a
psicologia. A construção dessa teoria geral da ação parte de uma questão: o que torna possível
a ordem social? Ou, como é possível a integração social? Ou ainda, como a estrutura social se
mantém? Para Parsons, embora Thomas Hobbes tenha sido o primeiro autor a tentar
solucionar o problema da ordem
18
, manteve-se preso ao utilitarismo individualista.
Parsons destaca o aspecto subjetivo da ação, visto que o ator social age motivado
pelos significados que ele apreende no mundo; por outro lado, esta ação é executada em
"situações concretas". Assim, o ator age sempre a partir da leitura que ele realiza do ambiente,
este é o ambiente físico e é também o organismo biológico do ator. Mas o elemento principal
do ambiente é exatamente o(s) outro(s) ator(es) social(ais). Dessa forma, os atores interagem
a partir da cultura ou do símbolo. Como a ação social é eminentemente significativa, nela os
símbolos jogam um papel determinante, pois são eles que permitem aos atores conhecerem e
reconhecerem o conjunto de regras, normas e valores culturais presentes no ambiente e é isto o
que torna a ação social compreensiva para todos os envolvidos. As normas e os valores
tornam-se um quadro de referência para o ator, orientando e dotando de significado a ação.
-se que Parsons fica preso a "consciência coletiva" de Durkheim, não conseguindo resolver
a contradição entre a ação voluntarista e o caráter normativo da ação.
Como vimos, Garfinkel também voltou sua atenção para a teoria da ação, mas,
apesar de ter sido aluno de Parsons, sua teoria vai afastar-se completamente deste autor. Para
Garfinkel, ao tratar o ator social como reprodutor das normas e regras que são assimiladas pela
socialização, o ator passa a ser uma marionete agindo de acordo com as regras e normas
estabelecidas, a ação estaria como que programada anteriormente; nessa perspectiva, os atores
18
O Leviatã, de Thomas Hobbes, foi publicado pela primeira vez em 1651.
40
seriam ―idiotas culturais‖. O objetivo de Garfinkel é resgatar a racionalidade dos atores
presente em suas interações sociais cotidianas. Nesse sentido, é que afirma que as regras são
acionadas, negociadas, atualizadas pelos atores durante o processo interativo, aspecto que irei
aprofundar no terceiro capítulo.
O papel fundamental que as regras exercem nos esportes foi discutido por Elias e
Dunning no livro ―A busca da excitação (1992), pois os esportes modernos têm sua nese
no estabelecimento de um quadro de regras cada vez mais rígido, rigoroso, explícito e com
uma vigilância eficiente quanto ao seu cumprimento, de forma que mantenha um equilíbrio
entre as tensões e a excitação. Ao mesmo tempo, Elias lamenta que o ―problema do como e do
porquê as regras se tornaram aquilo que elas são num dado momento não é explorado de
maneira sistemática‖ (op. cit., p.227). Embora o autor volte suas reflexões para o esporte
moderno, e aí, leia-se profissional, sua teoria possibilita uma ancoragem para minha pesquisa,
principalmente ao propor uma ampliação do conceito de regra sob dois aspectos: no uso
cotidiano da prática esportiva, pois as regras de um esporte não se referem apenas aos
regulamentos e as regras oficiais, como as regras estabelecidas pela International Football
Association Board que regulam o futebol profissional, mas aplicam-se também às condutas
dos jogadores; e também como recurso analítico que rompe com a dicotomia entre indivíduo e
sociedade, visto que para Elias as regras não existem independentemente dos indivíduos.
Como vimos, o futebol amador guia a sua prática pelas regras do futebol
profissional, isto ocorre de forma rígida ou flexível, mas a referência é o quadro de regras do
football association. Então, é importante revelar como as relações entre dirigentes (esportivos
e representantes do poder público), times e torcedores são permeadas por essas regras e
principalmente como elas determinam a dinâmica das partidas de futebol. Em que medida a
adoção gida ou flexível das regras oficiais aproxima o futebol amador do futebol
profissional? Como estas regras são estabelecidas e negociadas por todos os envolvidos? É
41
possível pensar a tensão entre jogo e esporte a partir das regras e regulamentos dos
campeonatos amadores de futebol? Como os jogadores atualizam as regras do jogo?
As peladas afastam-se do modelo de esporte profissional, pois as regras oficiais
servem apenas como uma referência, que necessitam ser redefinidas a partir dos grupos que
compõe a pelada. As regras na pelada são construídas e reconstruídas pelo grupo de jogadores,
são acionadas ou não durante as partidas, são negociadas durante o jogo. Como os jogadores
constroem e negociam essas regras? É possível uma dinâmica figuracional do jogo diante da
fluidez das regras da pelada? Quais as regras que os jogadores não estabelecem entre si, mas
que são acionadas quando infringidas? Como as regras da pelada norteiam as relações entre os
peladeiros‖?
Penso que essas e outras questões que irão surgir ao longo da análise possibilitarão
uma compreensão do futebol amador e da pelada. Lembro que os dois tipos de prática do
futebol foram pesquisados em diferentes contextos sociais, na cidade de Recife e no meio rural
do semi-árido nordestino, mais precisamente no distrito de Aracatiaçu (Sobral-CE), o que
permitium contraste e comparação entre essas práticas, percebendo suas similaridades e
destacando suas especificidades. Diante de um campo fecundo, penso que além de Elias outros
autores poderão também contribuir para fertilizar a análise: refiro-me a Bourdieu e algumas
das contribuições da etnometodologia, principalmente as reflexões garfinkelianas.
O que permite que um grupo de vizinhos forme dois times de pelada ou dois times
de futebol amador encontrem-se para a prática esportiva do futebol? Eles precisam ter o
conhecimento do jogo, o que significa reconhecer as regras do jogo, eles precisam ter o
sentido do jogo encarnado em seus corpos e no seu espírito, sem isso não há jogo. Nesse
sentido, voltamos ao conceito de habitus de Bourdieu, e também de campo, visto que são dois
conceitos relacionais, e através deles é possível o descobrimento das práticas dos agentes. A
lógica da prática (obscura para os agentes) permite, por exemplo, um jogador de pelada aceitar
42
ou não o pedido de uma falta em um jogo sem árbitro, o habitus dota o agente desse
conhecimento prático, tornando ―as práticas sem razão explícita e sem intenção significante de
um agente singular sejam, no entanto, ‗sensatas‘, ‗razoáveis‘ e objetivamente orquestradas‖
(BOURDIEU, 1983, p.73).
Nesse momento, penso que o estabelecimento de um diálogo com a
etnometodologia poderá enriquecer minhas reflexões sobre as peladas, pois como as regras
nessa prática aproximam-se de uma leitura etnometodológica, no sentido de que as regras são
acionadas, negociadas, atualizadas pelos atores durante o processo interativo. Embora
Bourdieu tenha sido um crítico da etnometodologia, essa confrontação poderá ser útil nesse
trabalho. Como já frisamos, os conceitos são ferramentas para pensar a realidade e o para
enquadrá-la; além do mais, estamos falando de autores que utilizaram suas construções
teóricas para pensar a realidade francesa, estadunidense e européia somos cônscios da
diferença de nossa formação histórica e social. Fazendo uma analogia com o futebol, o mundo
social pode driblar os rígidos esquemas teóricos, cabendo ao pesquisador reconhecer essa
riqueza (e por que não dizer também beleza?) da realidade social, ou interromper o drible com
uma falta violenta, alijando do campo o que realmente importa para a compreensão do jogo.
1.4 Teoria e Metodologia: jogando no mesmo time
As escolhas teóricas e metodológicas são os momentos fundamentais de uma
pesquisa. Quando afirmo isto, o aponto para momentos estanques, mas para momentos
processuais, pois o trabalho de campo fornece elementos para percebermos novos caminhos
tanto do ponto de vista empírico quanto teórico. Não custa nada repetir que teoria e empiria
são pares o dicotômicos, as partes de um mesmo processo: o da investigação social. Assim,
a escolha metodológica não deve trabalhar contra a escolha teórica, teoria e metodologia
43
jogam no mesmo time, e quando uma escolha não encontra aporte na outra, a pesquisa torna-
se estéril e o objeto de investigação inacessível.
O pesquisador precisa estar atento e sensível para as mudanças que possam ocorrer
durante o processo de pesquisa, lembrando sempre que tanto a reflexão teórica quanto o
trabalho de campo podem guiar o pesquisador para novos caminhos. Como já frisei
anteriormente, o projeto apresentado junto ao PPGS-UFPE foi modificado pela força do
trabalho de campo e por novas literaturas que me levaram ao encontro do pensamento de
Pierre Bourdieu, pois considerava que para compreender a pelada e o futebol amador como
redes de sociabilidade masculina, os conceitos de habitus, campo, violência simlica,
dominação masculina, seriam ferramentas fundamentais para meu processo de investigação.
Porém, não apenas a pesquisa de campo apontou novos caminhos e novos problemas como
também meu amadurecimento intelectual, impulsionado pelas disciplinas
19
, mostrou-me que a
contribuição de Bourdieu precisava ser redimensionada e relativizada. Além disso, Norbert
Elias não poderia estar ausente por suas contribuições para pensarmos a relação entre esporte e
sociedade, destacando sua teoria figuracional. Além desses dois autores que já estavam
presentes em meu projeto, outra corrente de pensamento passou a fazer parte das minhas
reflexões para que pudesse melhor compreender a dinâmica das regras na pelada, constrdas,
modificadas e redefinidas permanentemente durante esses jogos: refiro-me à etnometodologia,
principalmente a obra de Harold Garfinkel.
As três principais referências teóricas aqui trabalhadas apresentam cada uma seu
valor heurístico, ao mesmo tempo em que possuem também limitações. Entretanto, poderão,
se refletidas criticamente, aumentar a compreensão sobre esse objeto complexo e
multifacetado da pelada e do futebol amador. Bourdieu e Elias aproximam-se na medida em
19
Refiro-me principalmente às disciplinas de Tópicos Avançados de Teoria Sociológica I e Metodologia das
Ciências Sociais ministradas pela professora Cynthia Hamlin; Teoria Sociológica II, com Eliane Veras; a
disciplina optativa Sociologia Urbana oferecida pelo professor Jo Sérgio Leite Lopes e, por último, a
disciplina, também optativa, Teoria Social e Humanística ministrada pelo professor visitante Frederich
Vandenberg.
44
que buscam superar a dicotomia clássica entre indivíduo e sociedade, enquanto os
etnometodólogos centraram seus esforços nos atores e seus processos de interação. É
fundamental iniciar essa reflexão com Bourdieu, primeiramente por considerar valioso o seu
conselho de ―pensar com um pensador contra esse pensador(BOURDIEU, 2004, p. 65) e,
segundo, pela insistência em mantermos uma reflexão constante sobre a prática científica.
A produção científica brasileira sobre futebol cresceu muito nas duas últimas
décadas, produção esta que vem buscando livrar-se de abordagens redutoras e
empobrecedoras: seja o reducionismo de esquerda, mais notadamente marxista, do futebol
como elemento de dominação ideológica, o ―ópio do povo‖, etc; seja por uma perspectiva
substancialista que insiste em transportar arbitrariamente uma nação para o campo de futebol.
A pesquisa empírica e o esforço teórico ajudam-nos a escapar destas e outras armadilhas:
O modo de pensar substancialista, que é do senso comum e do racismo e
que leva a tratar as atividades ou preferências próprias a certos indivíduos ou
a certos grupos de uma certa sociedade, em um determinado momento,
como propriedades substanciais, inscritas de uma vez por todas em uma
espécie de essência biológica ou o que não é melhor cultural
(BOURDIEU, 1996, p. 17).
Bourdieu nos e em vigilância sobre nossa produção e pesquisas. Alertando para
necessidade de uma reflexão constante da prática científica, o sociólogo deve manter uma
vigilância reflexiva para que seu olhar não seja encoberto por três tipos de distorção: a
primeira tem a ver com a origem e posição pessoal do pesquisador (classe, gênero, etnia);
depois vem a inserção do pesquisador no campo acadêmico, neste espaço objetivo de posições
intelectuais; e, por último, a distorção intelectualista que reduz a lógica prática à lógica teórica
(WACQUANT, 2002a; 2002b). A reflexividade epistêmica não é uma mera reflexão do sujeito
sobre o sujeito, ela passa pela experiência vivida pelo sujeito e desloca-se até a estrutura
organizacional e cognitiva da disciplina, atingindo o inconsciente científico coletivo inscrito
nas teorias, nas categorias, nos problemas. A reflexividade epistêmica busca libertar o
intelectual da ilusão que este tem em perceber-se como livre das determinações sociais.
45
Assim, ser mulher e pesquisar num espaço exclusivamente masculino (conforme as
peladas em Recife) é, sem dúvida, uma situação que exige uma permanente reflexão sobre
todo o trabalho de pesquisa. Da mesma forma, sabia-me pesquisadora de uma sociologia dos
esportes que busca reconhecimento no campo acadêmico brasileiro, sendo indispensável que a
reflexão teórica partisse efetivamente da investigação empírica, deixando o objeto conduzir as
reflexões. Como visto anteriormente, os primeiros trabalhos acadêmicos sobre futebol
excetuando as duas dissertações de Guedes e Araújo não eram frutos de pesquisas
empíricas
20
; deste modo, o futebol precisava ser visto ―por dentro‖ sobretudo o futebol
amador , ser pensado a partir da realidade empírica, a partir das ações efetivas dos sujeitos
pesquisados. Nesse sentido, a etnometodologia casava muito bem com os meus interesses
metodológicos e teóricos, pois, segundo Garfinkel, a sociologia somente atingiria seus
objetivos se considerasse em primeiro lugar os indivíduos, como eles definem os todos para
atuarem no mundo social,
The following studies seek to treat practical activities, practical
circumstances, and practical sociological reasoning as topics of empirical
study, and by paying to the most commonplace activities of daily life the
attention usually accorded extraordinary events, seek to learn about them as
phenomena in their own right. (GARFINKEL, 1967, p. 01)
21
.
A posição de Garfinkel ia ao encontro do que eu pretendia desenvolver no meu
trabalho de pesquisa, pois para compreender o futebol amador e a pelada, eu precisava partir
realmente do ponto de vista dos atores, de suas preferências, vivências e performances. Por
isso, a decisão pelo todo etnográfico, apesar das dificuldades que me seriam postas pela
20
Felizmente, nos últimos anos, muito do que se produziu sobre futebol tem um amplo solo empírico. Destaco
sobretudo os livros de dois antropólogos DAMO (2007) e TOLEDO (1996; 2002), não apenas por terem
realizada uma ampla pesquisa, mas também pelo denso trabalho teórico.
21
Os estudos a seguir procuram tratar as atividades práticas, as circunstancias práticas e o raciocínio sociológico
prático como objetos de estudo empírico, e procuram aprender sobre elas como fenômenos de direito próprio ao
conferir às atividades mais triviais da vida diária uma atenção usualmente dada a acontecimentos extraordinários
(tradução nossa).
46
minha formação, como veremos mais adiante. De uma certa forma, a etnometodologia
radicalizava o conselho de Bourdieu de não reduzir a lógica prática à lógica teórica.
A atenção com o detalhe, com ações aparentemente irrelevantes, com os rituais
cotidianos também estavam presentes em Elias; basta lembrarmos de ―A sociedade da Corte‖
(2001) e o ―Processo Civlizador‖ (1994), com uma vantagem adicional: dos três autores foi o
que conseguiu produzir importantes reflexões sobre o esporte, inclundo-se aí o futebol, e o fez
destacando questões fundamentais para a compreensão do jogo, como, por exemplo, a busca
permanente pelo equilíbrio entre tensão e emoção/prazer, e principalmente o caráter elástico
das regras e sua importância para a dinâmica do jogo.
Bourdieu, Elias e Garfinkel se encontraram bem nessa tese, destarte as críticas de
Bourdieu à etnometodologia e em menor grau a Elias e, apesar das diferenças que o leitor
perceberá ao longo da exposição que vem a seguir, não há incompatibilidade entre seus
arcabouços teóricos que impeça o diálogo entre os três autores, diria ainda que as fraquezas de
uns são compensadas pelo vigor de outro. O importante a destacar nesse momento é que suas
construções teóricas propiciam a montagem de quadro analítico para meu objeto de estudo.
Destacarei a seguir elementos essencias da teoria desses autores, enfatizando as elaborações de
maior importancia para a presente tese, buscando um diálogo entre os três autores.
Começaremos, portanto, com Bourdieu. Como se sabe, os conceitos de campo,
habitus, capital, são fundamentais na obra de Bourdieu, que buscará através deles superar
algumas dicotomias presentes no pensamento social, tais como: agência e estrutura e
objetivismo e subjetivismo. Para o autor, estas oposições empobrecem quaisquer abordagens
analíticas. Veremos que Elias também busca romper essa dicotomia ao usar o conceito
figuração social, para ele a sociologia o poderá avançar em seus estudos ao se orientar por
uma visão reificante de sociedade e indivíduo, como se estes fossem pares opostos, ―tal
reificação é um encorajamento constante à idéia de que a sociedade é constituída por
47
estruturas que nos são exteriores os indivíduos e que os indivíduos são simultaneamente
rodeados pela sociedade e separados dela por uma barreira invisível(Elias, 2005, p. 15).
O conceito de figuração é a saída elisiana para resolver essa dicotomia entre
indivíduo e sociedade, mas Bourdieu dará outra resposta, e essa solução será uma densa e
vigorosa teoria e, sem dúvida, será este autor que ao longo da vida melhor sistematizará o seu
quadro teórico. Sua teoria e seu método vão destacar o papel central da estrutura social na
maneira como o indivíduo e em prática uma série de ações e estratégias assentadas na
interiorização do mundo social no qual ele existe. A mediação entre a estrutura social e o
desejo individual guiará a sua obra.
O método de Bourdieu tenta escapar de uma objetividade que o deixa margem
para o desejo individual e de uma fenomenologia calcada na subjetividade que desconhece a
ação das estruturas e seu papel fundamental nas ações individuais (WACQUANT, op. cit.) e aí
se encontra sua principal crítica à etnometodologia. Outra dicotomia rejeitada por ele é o par
teoria/empiria; talvez por isso sua insistência em produzir obras a partir de pesquisas
empíricas, pois para este estudioso "a arte por excelência do pesquisador investir um
problema teórico de grande alcance num objeto empírico bem-constrdo" (BOURDIEU,
2004, p.212).
A concepção de sociedade é outra iia central de Bourdieu. Ele considera que a
sociedade existe e se expressa de duas maneiras inseparáveis: nas instituições e nos corpos. As
instituições sociais podem assumir a forma de coisas sicas, como monumentos, livros,
instrumentos, máquinas, etc; os corpos dos agentes sociais (indivíduos) são também uma
maneira de existência da sociedade, ou seja, o corpo socializado não se opõe à sociedade: ele é
uma de suas formas de existência. Da mesma forma que em Elias é falsa e reificante a
oposição indivíduo e sociedade, também podemos interpretar que os atores sociais atualizam
as instituições sociais nas suas atividades rotineiras. Por um lado, concordam nessa assertiva
48
de que a sociedade se encarna nos corpos, nas ações cotidianas dos indivíduos; por outro,
produzirão edifícios teóricos diferentes para explicar essa relação entre indivíduo e sociedade.
Bourdieu afirma que o corpo é socializado através de diversas formas de
aprendizado, concretizando-se no que o autor chama de habitus um conjunto de disposições
duráveis que se encarnam no corpo do sujeito. Ao invés de pensar na noção de sociedade,
Bourdieu vai pensar em campo e habitus, mas estes somente podem ser compreendidos se
apreendidos de forma relacional.
Para Bourdieu, em qualquer estrutura social subjaz uma luta de dominação e de
apropriação de bens, porém os agentes de um campo estão em posição de desigualdade e,
portanto, estão em condições assimétricas para apropriar-se dos bens que estão em disputa.
Podemos dizer que, para Bourdieu, o campo é um mercado, embora possam existir campos
onde não haja mercado, como numa burocracia estatal. O mercado pode ser religioso,
lingüístico, econômico, acadêmico, esportivo, etc. E em cada um deles existem bens
dispoveis, e cada indivíduo lutará para se apropriar desses bens, mas esses bens não são
apropriados por todos os agentes da mesma maneira, nem com a mesma freqüência ou
intensidade. Isso pode se explicar pelo fato que nem todos têm o capital necessário para
apropriar-se dos bens disponíveis naquele mercado, pois cada campo possui um capital
específico. Para o agente mover-se dentro desse campo em permanente mobilidade, permeado
pelas indeterminações geradas pelas disputas de posição e capital, ele precisa ter "o sentido do
jogo", que será fornecido pelo habitus. Todo agente social passa por uma série de
aprendizados: formais e informais, que inculca esquemas de apreciação e de percepção do
mundo social, esse aprendizado ocorre em diferentes instituições e grupos: na família, na
universidade/escola, nas instituições religiosas e ainda através das experiências não formais e
o ditas, atuais e passadas (participação em organizações comunitárias, sindicatos, em grupos
de oração, times de pelada, etc).
49
Outros autores como Elias e Mauss também utilizaram o conceito de habitus¸ com
poucas diferenciações de sentido em relação ao conceito bourdieusiano talvez a maior
diferença seja o modo sistemático como esse conceito foi trabalhado ao longo da vida de
Bourdieu. Para Elias, o habitus seria o resultado da relação entre a estrutura psíquica
individual com a estrutura social, o habitus seria assim uma segunda natureza‖.
Semelhantemente a Mauss (2003) Bourdieu suprime o uso da palavra ―hábito para adotar
habitus (MAUSS, 2op. cit., p. 404).
Aquilo que adquirimos, mas que se encarnou de maneira durável no corpo
sob forma de disposições permanentes. A noção relembra pois de maneira
constante, que ela se refere a algo de histórico, que está ligado à história
individual (...). Mas por quê o ter usado hábito? O hábito é considerado
espontaneamente como repetitivo, mecânico, automático, antes reprodutivo
do que produtivo. Ora, o habitus é algo que é poderosamente gerador
(BOURDIEU,1983, p.136).
O habitus tem uma capacidade geradora, ele fornece as estratégias de ação dos
agentes assim ele não tem apenas uma função de reprodução das estruturas, conformista,
negativa -, e capacita o agente para atuar dentro de seu campo. Em outras palavras, o habitus
tem um potencial criador. O campo, espaço social de conflito e disputas, exige bons
―jogadores‖. O habitus em alguns momentos, contudo, surge como um elemento sufocante
que subjuga o sujeito, pois "a obediência é a crença, e porque a crença é o que o corpo admite
mesmo quando o espírito diz não" (BOURDIEU, 2004, p. 220). Por isso, as críticas ao seu
pensamento dirigem-se principalmente ao seu pouco sucesso em libertar-se do peso da
estrutura imobilizando o sujeito da ação, a subjetividade estaria castrada pela reprodução. E
parece, de fato, que os ombros do sujeito curvam-se ao peso da estrutura.
Ressaltamos, porém, que essa limitação não impede que possamos utilizar
criticamente seus conceitos. Primeiramente, há de se destacar que os conceitos são
ferramentas para pensar a realidade e não para enquadrá-la não nos servirá de nada
50
forçarmos o mundo social a caber nestes conceitos, sejam de Bourdieu, sejam de outros
pensadores -, a generalização nesta tese provavelmente seria danosa à investigação social.
Os conceitos de campo e de habitus serão bastante úteis para analisarmos, por
exemplo, a relação entre os representantes do poder público e os dirigentes de times de futebol
amador, pois no campo esportivo conflitos por posições e capital configurados desde as
disputas de verbas para uma política pública de esporte e lazer, que ainda busca sua
legitimação, até o estabelecimento de um tipo de futebol que seja regido por uma prática
amadora e não profissional
22
. Com o conceito de habitus, podemos refletir acerca do processo
de inculcação de valores masculinos até o sentido do jogo, expresso no que é permitido ou não
no movimento dos corpos, não durante, mas antes e após a prática esportiva. Entretanto, a
análise da classificação interna dos times de pelada e das relações entre os jogadores de
futebol amador, pode ser enriquecida com a introdução da noção de estabelecidos e outsiders
de Elias, como veremos adiante. O conceito de habitus é importante também para a reflexão
sobre as relações de gênero Bourdieu mostra que as diferenças entre os sexos masculino e
feminino aparecem em estado objetivado (mundo social) e em estado "subjetivado" pois,
incorporado através do habitus no corpo dos agentes sociais, funciona como esquema de ação
e percepção. Assim, a força da dominação masculina ocorre justamente por dispensar qualquer
tipo de justificação e onde os dominados utilizam esquemas de percepção e pensamento
gerados na estrutura da relação de dominação. O autor lembra, entretanto, que um espaço,
mesmo que pequeno, para a resistência dos dominados: "há sempre um lugar para uma luta
cognitiva a propósito do sentido das coisas do mundo e particularmente das realidades sexuais
(...) oferecendo aos dominados uma possibilidade de resistência contra o efeito de imposição
simbólica" (BOURDIEU, 2002, p. 22).
22
Refiro-me aqui, especificamente, à luta travada durante as discussões e votações do regulamento do Futebol
Participativo, pois o que estava sendo disputado entre dirigentes e representantes da prefeitura era, para além do
regulamento, um modelo de prática do futebol.
51
Bourdieu fornece elementos para pensarmos a dimensão simlica da dominação
masculina, mas é preciso também pensar nas especificidades que esta dominação assume ao
assentar-se em modelos ideais de ser homem. Ideais de ser homem que variam historicamente
e variam também dentro de um mesmo período histórico, de cultura para cultura e ainda
dentro da mesma cultura, em diferentes grupos sociais etc. Por isso é fundamental pensar em
masculinidades, e não em uma masculinidade essencialista e a-histórica (KIMMEL, 1998). A
pelada na cidade de Recife, e em outros centros urbanos
23
, apresenta-se, sobretudo, como uma
sociabilidade masculina. Essa homossociabilidade (ALMEIDA,1996) é um momento onde os
ideais de masculinidade são construídos, incorporados e também confrontados. São nestas
interações cotidianas que o nero é constituído, portanto, creio que as noções de habitus,
campo, masculinidades hegemônicas e subalternas poderão ser ferramentas conceituais muito
úteis para o entendimento da pelada enquanto jogo e espaço de construção de masculinidades.
Assim, é fundamental dialogar com outros autores que sistematizaram um conhecimento
acerca dos temas suscitados, como Kimmel e Almeida; como também os trabalhos no Brasil
sobre o futebol amador, de Guedes (1998; 1977), Gonçalves (2002) e Hirata (2005).
Introduziremos agora, resumidamente, o pensamento de Norbert Elias
24
, que, de
forma semelhante à Bourdieu, também se dedicou ao esporte, porém de forma mais persistente
com fecundas reflexões. A contribuição de Norbert Elias para a sociologia do esporte está
sistematizada no livro ―A Busca da Excitação", publicado em língua portuguesa em 1992, que
reuniu um conjunto de artigos sobre esporte
25
. Neste livro, o esporte deixa de ser um tema
"menor" (LOPES, 1995) nas ciências sociais e ocupa um lugar central para a compreensão do
"processo civilizador", conceito elaborado por Elias que busca explicar processos de longa
duração. Na introdução do livro, Elias afirma "tínhamos a profunda consciência de que a
23
O que leva Damo (2007) a caracterizar a pelada como um lazer exclusivamente masculino. Porém, essa
generalização é facilmente contestada pela observação da ―pelada‖ na zona rural pesquisada nesta tese.
24
Vale lembrar que Bourdieu foi um dos responsáveis pela introdução do pensamento eliasiano na França.
25
O livro original, ―Quest for Excitement. Sport and Leisure in the Civilizing Process‖, foi publicado em 1986
em co-autoria com Eric Dunning.
52
compreensão do desporto contribui para o conhecimento da sociedade" (Elias e Dunning,
1996, p. 39). O esporte é analisado tendo como fio condutor a teoria geral do processo
civilizador, um elemento fundamental para o entendimento dos processos de longo prazo.
O processo civilizador
26
tem como principal recorte empírico a corte francesa do
século XVI, destacando-se o processo de pacificação dos nobres e da formação e consolidação
de um Estado centralizado que assegurou o monopólio legítimo da violência sica. Elias
também realça outros elementos que caracterizam este processo: o aumento das teias de
interdependência entre os indivíduos; o refinamento das condutas, da sensibilidade e do
comportamento das pessoas; uma maior pressão social para que os indivíduos desempenhem
um autocontrole de suas emoções, de sua sexualidade e do uso da força sica; o crescimento
da importância da consciência para regular o comportamento e o aumento significativo da
repugnância ante a violência.
O desenvolvimento do esporte ilustra a teoria do processo civilizador, pois carrega
ao longo de seu desenvolvimento as características desse processo. Por exemplo: os jogos da
Grécia antiga eram marcados pela permissão de violência sica elevada, onde os atletas, nas
primeiras Olimpíadas, poderiam (e até deveriam) morrer ou ficarem mutilados diante do alto
grau de violência socialmente aceito. Para Elias, esse vel de violência permitido na
realização dos esportes gregos da Antigüidade era condizente com o Estado grego da época,
que não era centralizador, era instável e não mantinha o monopólio da violência sica. Na
Idade Média, os jogos com bola, e também de outros tipos, utilizavam as agressões físicas
26
É importante perceber que para Elias não há uma classe social e um período definido para essas mudanças nas
condutas e no pensamento. O maior autocontrole das ações e reações físicas tornaram-se mais racionais durante
um longo processo, não havendo uma classe social, que em determinada época inaugurou uma nova visão de
mundo. Note-se aqui que ele polemiza com Max Weber: a "racionalização" o é o fruto da "modernidade".
Portanto, a "civilização" é um processo longo e contínuo, não é algo dado, não é obra do acaso, ela é fruto da
relação de inúmeros acontecimentos da vida social, desde a elaboração de regras de etiquetas até o surgimento do
Estado (Elias, 1994). Apesar disto, o processo civilizador o ocorre de forma planejada, pré-ordenada, mesmo
porque ele é fruto de inúmeras ações não intencionais de grupos e pessoas o que não quer dizer que ocorra sem
uma ordem ou coerência.
53
como se fossem regras, tendo a violência um nível muito alto de tolerância. Atualmente, o
esporte tem como características principais o aumento da sensibilidade perante a violência,
bem como um conjunto de regras estabelecidas nacional e internacionalmente que disciplinam
as condutas dos atletas e punem aqueles que recorrem às agressões sicas e morais. Dessa
forma, pode-se dizer que o esporte se "civilizou". Vê-se que Elias consegue articular em um
momento um problema "macro", como o Estado, com um problema "micro", como o esporte,
procurando assim, também como Bourdieu, romper com antigas dicotomias presente na
sociologia como macro versus micro, pois esse tipo de dualidade apenas empobrece a
capacidade analítica das ciências sociais. Por isso, também, a ênfase que Elias concede aos
processos de longo prazo, pois não podemos analisar a relação entre indivíduos e sociedade
tratando-os como estruturas separadas e estáticas: somente se apreende a riqueza dessa relação
tomando-os como estruturas mutáveis, interdependentes e processuais.
No Processo Civilizador, Elias evidência esse postulado teórico ao demonstrar as
ligações entre as mudanças, em longo prazo, entre a estrutura de personalidade controle e
autocontrole das emoções e as mudanças ocorridas na estrutura social nível mais alto de
diferenciação e integração social. E, como vimos anteriormente, o conceito de habitus visa dar
conta dessa imbricação entre a dimensão individual e a dimensão social. Penso que outra
contribuição basilar de Elias para essa tese será o conceito de figuração social.
Elias argumenta que qualquer pesquisa sociológica deve ter como ponto de partida
uma pluralidade de indivíduos que são interdependentes: as figurações sociais constituem
exatamente essa rede de individualidades interdependentes. As figurações sociais são
irredutíveis, não podem ser explicadas independentemente dos indivíduos e nem tampouco
que os indivíduos possam existir fora das figurações. Este conceito permite que Elias assuma,
de forma radical, a crítica a uma sociologia que não se subtrai das dicotomias presentes no
54
pensamento social, constituindo-se como um recurso metodológico para analisar quaisquer
relações sociais.
O que distingue o conceito de figuração dos conceitos mais antigos com os
quais se pode compa-lo é precisamente que ele constitui um olhar sobre os
homens ele ajuda a escapar de armadilhas tradicionais, as das polarizações,
como a do ‗indivíduo‘ e dasociedade‘, do atomismo e do coletivismo
sociológico (...) e de reconhecer a sociedade como uma figuração
constituída de numerosos indivíduos fundamentalmente interdependentes,
ou seja, tributários e dependentes um dos outros (ELIAS, 2001, p. 149).
Poderíamos dizer que a organização social é como uma grande teia, não sendo
possível explicá-la pelo simples conjunto de fios ou pelos fios isoladamente. podemos
realmente compreendê-la a partir da associação entre os múltiplos fios, ou seja, para
analisarmos o mundo social precisamos perce-lo como uma rede de relações. Esta visão
possibilita que Elias consiga articular tão bem o desenvolvimento dos esportes modernos na
Inglaterra com o processo de parlamentarização política, ou da pacificação dos nobres
guerreiros e as novas condutas à mesa com a formação, consolidação e centralização do
Estado francês.
Os esportes modernos nascem na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX, e se
diferenciam em muito dos jogos antigos praticados desde Grécia Antiga. Aqueles surgem com
características que fundam a prática esportiva: maior contenção da violência, reduzindo ao
máximo as possibilidades de ferimentos; "universalização de regras", como no football
association; maior probabilidade de "equidade" entre os jogadores, o que aumenta o grau de
excitação da platéia e dos atletas. Em Deporte y Ócio, Elias indaga o porquê dos esportes
modernos terem nascido na Inglaterra e sua resposta está no processo de pacificação das
classes dominantes inglesas representados pelos Tories e Whigs, que entre os séculos XVIII e
XIX passam por um processo de "parlamentarização" e onde aos poucos substituem a
violência sica pelas disputas políticas no parlamento. Assim, o processo de
"parlamentarização" se desenvolve junto com um processo de "esportificação" dos
55
passatempos ingleses. Elias interliga diferentes fios: passatempo, violência, esporte,
parlamento, pacificação e, assim, vai tecendo uma rica análise da Inglaterra dos séculos XVIII
e XIX para compreender um femeno do século XX.
Elias utiliza o conceito de figuração para pensar o futebol profissional, contudo,
podemos estender esta aplicação também ao futebol amador. Segundo ele, os jogadores se
agrupam e reagrupam de forma fixa e flexível ao mesmo tempo. Fixa pelas regras que
governam o jogo e flexível pelas inúmeras combinações possíveis. Os jogadores são
interdependentes entre si, seja entre os jogadores da mesma equipe, seja em relação aos
jogadores adversários. Juntos formam uma única figuração social e se mantêm num equilíbrio
constante entre a tensão e a cooperação. Elias via na figuração de um jogo de futebol a
oportunidade de construir não apenas um modelo de dinâmica de pequenos grupos, mas
também para analisar outros problemas permeados por tensões sociais, como, por exemplo, a
relação entre sindicatos e dirigentes patronais. A dinâmica figuracional de um jogo é
fundamental para pensarmos o futebol amador, pois estes jogos dependem, como bem frisa
Elias, da dinâmica entre a tensão e a cooperação e também entre a rigidez e a flexibilidade das
regras. Tanto o futebol amador como a pelada não apenas são atravessados por essa dinâmica,
mas é esta dinâmica que torna o jogo possível e que também o dilata para o antes e o após as
partidas.
Elias fornece elementos para pensar a relação entre os jogadores, tanto dos times
de pelada quanto dos times de futebol amador, pois apesar de uma relativa homogeneidade na
origem e posição econômica e social dos jogadores em seus grupos, diferenciações
significativas de status entre eles. Algumas mais visíveis, por exemplo, entre quem organiza
as peladas na capital pernambucana; ou entre quem pode ou não apostar o resultado de um
jogo como ocorre no sertão cearense; e de outras formas mais sutis como quem pode
instruir, e, ao mesmo tempo, realizar determinadas cobranças durante um jogo. De uma
56
simetria econômica e social para assimetrias constrdas a partir de critérios internos, como
tempo de inserção no time e participação no antes e no após a pelada (há outros como idade,
estado civil e capital esportivo). No livro ―Os Estabelecidos e os Outsiders (2000), Elias, em
co-autoria com J. Scotson, analisa as relações entre os moradores de dois bairros operários
27
da cidade de nome fictício Winston Parva, que a partir de indicadores sociais, como renda e
ocupação, eram bairros homogêneos entre si não era essa a percepção, porém, que os
moradores possuíam. Havia uma diferença de status entre os dois, tornando um grupo superior
ao outro. A instigante análise de Elias faz uma crítica aos métodos quantitativos que isolam
variáveis e indicadores. Ele mostra que uma análise figuracional apreende as relações de
interdependência entre os grupos, fornecendo elementos significativos para pensarmos a
diferenciação interna dos jogadores de pelada e do futebol amador. Diferenciação que é
expressa também nas brincadeiras presentes antes e durante os jogos, na tênue linha que
separa o permitido do proibido nas relações jocosas (RADCLIFFE-BROWN, 1989).
O jogo de pelada apresenta, em termos eliasianos, uma dinâmica figuracional, mas
com uma especificidade fundamental: as regras são construídas, negociadas e atualizadas
pelos próprios jogadores
28
durante o jogo. Nesse sentido, nos aproximamos de uma leitura
etnometodológica da pelada, pois no processo interativo dos jogos as regras não seriam
simplesmente transgredidas [tendo como referência as regras do Football Association
(DUARTE, 1997)], mas sim criadas e recriadas pelos atores sociais durante o curso de sua
ação. Esta perspectiva difere bastante de uma visão tradicional da sociologia que perceberia as
regras como algo que se impõe exteriormente aos indivíduos, tratando-os como se estes
fossem meros depósitos da sociedade e suas leis normativas, incapacitando os agentes sociais,
pois, relembrando a famosa frase Garfinkel, estes seriam ―idiotas culturais‖
29
. Consideramos
27
Um terceiro bairro também analisado era formado pela classe média (executivos, profissionais liberais).
28
Como vimos, um dos argumentos principais de Elias referente ao processo de esportificação foi justamente o
desenvolvimento, a unificação e o reconhecimento das regras nos esportes.
29
No original ―cultural dope‖ (GARFINKEL, 1967, p.68).
57
que um diálogo com a etnometodologia poderá enriquecer a reflexão sobre as peladas, pois
este quadro teórico, ao debruçar-se sobre as questões da subjetividade da ação, trouxe
contribuições importantes para a análise da intencionalidade, reflexividade e interpretatividade
do agente social. Ao colocar como eixo central de análise o estudo dos métodos que os
indivíduos utilizam cotidianamente para interpretar, construir e agir no mundo social, a
etnometodologia fornece instrumentos úteis para a problematização da construção das regras
nas peladas e negociação constante delas; auxilia ainda a compreender como os agentes
sociais, ao se depararem com uma quebra da ―normalidade‖ do jogo, por exemplo, na ausência
(ou mesmo presença) de um árbitro vidas sobre a existência ou não de uma falta, e como
os agentes conseguem recuperar a normalidade, perdida momentaneamente, resolvendo seus
conflitos e diferenças de interpretação.
Harold Garfinkel foi o precursor da etnometodologia. Sua obra ―Studies in
Ethnomethodology‖, publicada em 1967, questionava fortemente a teoria da ação social, então
em voga, principalmente o referencial parsoniano. Garfinkel dirige suas preocupações
principalmente para a teoria da ação, a intersubjetividade e a constituição social do
conhecimento (HERITAGE, 1999). Nesse sentido, ele resgata o ator social de sua
―irracionalidade‖ ao afirmar a reflexividade presente em suas interações sociais, cabendo à
sociologia desvendar a lógica subjacente do senso comum.
Os principais conceitos utilizados por essa corrente teórica para investigar os
todos que os atores empregam para agir cotidianamente são a indicialidade, a reflexividade,
a relatabilidade, o todo documentário e o conceito de membro. Esses conceitos são
atravessados pela importância da linguagem, pois o mundo social é constituído por ela.
Importante perceber que esses conceitos se tornam inteligíveis quando relacionados entre si.
A indicialidade refere-se às expressões que os atores utilizam no seu dia-a-dia, nas
suas interações sociais. Estes enunciados apenas dão indícios, são incompletos, sendo somente
58
através do contexto da situação que as expreses adquirem significado. Ao agir, o ator
descreve a situação em que está inserido, essa descrão faz parte da própria ação tornando sua
prática reflexiva. Por isso, a relatabilibidade (accountability) refere-se à propriedade das
descrições realizadas pelos atores em suas interações cotidianas: ao descrever os atores o
construindo o seu mundo social. A indicialidade, a reflexividade e relatabilidade presentes nos
contextos interacionais somente são possíveis porque o ator se torna um membro de
determinado grupo, ele apenas se torna membro quando domina a linguagem natural do grupo
e interage a partir de sua competência em compreender as significações constituídas pelo seu
grupo. Para Garfinkel, o método documentário de interpretação
consiste em tratar uma aparência real como o documento de‖, como
―apontando para‖, como ―favorecendo‖ um pressuposto-pado subjacente.
Não somente o padrão subjacente é derivado de suas evidências
documentais individuais, como também as evidências documentais
individuais são, por sua vez, interpretadas na base de ―o que se sabe‖ sobre o
padrão subjacente. Cada um é usado para elaborar o outro‖ (GARFINKEL
apud HERITAGE, 1999, p. 236)
30
.
As perspectivas adotadas neste trabalho buscam responder a uma demanda do meu
objeto de pesquisa, onde essas três referências teóricas têm em comum a busca de romper com
a dicotomia indivíduo e sociedade, embora com limitações: Bourdieu ainda bastante preso à
noção de estrutura talvez por isso também sua crítica à etnometodologia; Elias no não
aprofundamento do processo de constituição das chamadas ―estruturas da personalidade‖ e
Garfinkel que, embora tenha destacado o papel das regras, não conseguiu conferir causalidade
às estruturas sociais. De certa maneira, pendem ou para o indivíduo ou para a estrutura, e de
certa forma uma pode iluminar o que a outra deixou no escuro.
30
Com propósito ilustrativo, ver neste mesmo artigo o exemplo de um dos estudos de Garfinkel com estudantes e
uma ―supervisão‖ (p. 340-344). Sobre os principais conceitos da Etnometodologia, ver Coulon (1995a e 1995b).
59
1.5 Entrando em campo: algumas reflexões etnográficas
A compreensão de um objeto fluido e pouco explorado pelas ciências sociais como
o futebol amador refiro-me, nesse caso, principalmente à pelada no sertão
31
, requer a
utilização de uma metodologia qualitativa que adentre nas teias de significados que os atores
atribuem ao jogo da pelada e ao futebol amador. Desde o momento da escolha do objeto,
passando por seus pontos de inflexão provocados pelo próprio campo e pelo confronto com a
literatura, estava certa que seria difícil realizar a compreensão do meu objeto sem a utilização
do método etnográfico.
As referências tricas aqui apresentadas também apontavam nesse sentido.
Primeiramente, por que o uso de conceitos como habitus, campo, figuração social,
indicialidade, método documentário, dentre outros, tornar-se-ão ferramentas estéreis sem o
mergulho do pesquisador na realidade pesquisada; em segundo lugar, os próprios autores
reclamam este tipo de prática investigativa. Elias, por exemplo, apontava para a falta de
trabalhos empíricos sobre futebol e para as limitações da metodologia quantitativa (ELIAS,
1996; 2000). A etnometodologia, por sua própria definição, seria impossível de realizar-se
sem o uso de abordagens qualitativas, e, mais ainda, sem o recurso da etnografia. E Bourdieu,
na insisncia do trabalho empírico, utilizou-se da estatística à etnografia em suas pesquisas,
mostrando que é o objeto que define a metodologia a ser adotada.
A etnografia que, como muito bem alertou Geertz (1989), não deve ser restrita ao
todo em si (seleção de informantes, transcrição de textos, diários de campo, etc); deve ser
compreendida como um esforço intelectual para a construção de uma ―descrão densa‖, uma
busca pela compreensão das teias de significados trançadas pelo ser humano. Fazer uma
etnografia da pelada é um instigante e rico desafio acadêmico, um risco elaborado‖
31
Apesar de ampla pesquisa na internet e de participação em Grupos de Trabalho sobre Esporte e Lazer
(Sociedade Brasileira de Sociologia, Associação Brasileira de Antropologia e Associação Latino-Americana de
Sociologia), não encontrei qualquer referência a pesquisas sobre ―pelada‖ no meio rural, nem, tampouco, no
semi-árido nordestino, como me proponho nessa pesquisa.
60
(GEERTZ, op. cit.), mas necessário, pois as peladas e o futebol amador estão a solicitar uma
etnografia, haja vista as inúmeras variações que a prática do futebol amador está sujeita em
nossa sociedade.
O ponto a enfocar agora é somente que a etnografia é uma descrição densa.
O que o etnógrafo enfrenta (...) é uma multiplicidade de estruturas
conceptuais complexas, muitas sobrepostas ou amarradas umas às outras,
que o simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem
que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar (...) Fazer
etnografia é como tentar ler (no sentido de construir uma leitura de‖) um
manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos (GEERTZ, op.cit., p.20).
A adoção do método etnográfico, tão caro à antropologia, ime muitos desafios a
uma socióloga de formação como eu
32
. Faz-se necessário, entre outras exigências, um
processo efetivo de interdisciplinaridade entre sociologia e antropologia, sendo indispensável
apreender a riqueza da outra disciplina, buscando, por exemplo, adentrar no acúmulo trico
produzido sobre a etnografia pelos antropólogos
33
. A etnografia nos alerta para o perigo das
generalizações e abstrações, ao mesmo tempo em que possibilita que um objeto num contexto
particular possa servir como matriz de inteligibilidade para outros contextos, rompendo assim
com o paradoxo do geral e do particular (GOLDMAN, 2003).
Decidi também realizar uma comparação sistemática entre as diversas modalidades
do futebol amador e entre as diversas áreas e situações sociais-tipo escolhidas, pois assim seria
possível pesquisar tanto as variações da pelada e do futebol amador, quanto à realização desta
prática esportiva em duas diferentes dimensões: uma na metpole regional, como Recife, e
outra no semi-árido nordestino, como a zona rural de Sobral (CE). Recife foi escolhida
primeiro por ser a cidade onde estou matriculada no curso de Doutorado e que se apresentou
como importante centro regional de futebol profissional, com forte freqüência aos estádios e
32
Fiz minha graduação em Ciências Sociais na UFC e cursei nesta mesma instituição o mestrado em Sociologia.
Também fiz uma Especialização em Metodologia da Pesquisa Social na Universidade Estadual Vale do Acaraú
(Sobral-CE), curso que tinha como referência a pesquisa em sociologia.
33
Ver ―A favor da Etnografia‖, de Mariza Peirano (1994), que fornece um guia de como a etnografia
historicamente tem sido refletida e criticada na antropologia.
61
torcidas organizadas importantes. A escolha da cidade de Sobral se deu, principalmente, por
eu ser sobralense e ter residido por lá nos últimos dois anos antes do ingresso no Doutorado.
Quanto à zona rural, posso afirmar que conheço tanto quanto a cidade, pois nasci no distrito de
Aracatiaçu, situado a 72 km da zona urbana de Sobral. Este ―privilégiode ser reconhecida
como ―gente do lugar‖ facilitou a aproximação e a observação de campo, como detalharei
mais adiante. Em ambos os casos, além das observações, foram realizadas 19 entrevistas e
gravações digitais de jogos (áudio e imagem).
Em Recife, iniciei as primeiras aproximações da pesquisa de campo no segundo
semestre de 2004, quando visitei a Diretoria de Esporte Amador (DEA - vinculada à Secretaria
de Esporte municipal) responsável pela organização de um campeonato de futebol amador
denominado de ―Futebol Participativo‖ (daqui em diante FP) campeonato que no ano
anterior havia reunido 576 equipes
34
. Minha idéia era iniciar o trabalho de campo com o
futebol amador e, através dele, chegar até as peladas. Decidi, então, acompanhar o
campeonato FP de 2005, da preparação ao jogo final. Este acompanhamento foi feito de
fevereiro até dezembro de 2005, e envolveu a ida a reuniões e jogos dos times das seis
Regiões Potico-Administrativas (RPAs) e também a escolha do time do Ájax (RPA 4,
comunidade da Mangueira, bairro Torre) para acompanhar todos os jogos, bem como os
momentos antes e após os jogos a convivência com o Ájax levou-me ao time de pelada da
Mangueira. Na RPA 3 (Alto do Buriti) conheci o grupo da ―Pelada da Amizade‖. Acompanhei
esses grupos de agosto de 2005 a março de 2006.
Importantíssimo destacar a forma como fui recebida pelos grupos masculinos.
Primeiramente, eles mostravam-se reconhecidos com o interesse de uma pesquisa da
universidade sobre algo importante na vida deles; depois eles comentavam algo como ―ah,
gosta mesmo de futebol pra vir ver um bando de perna de pau jogar!‖
35
Eles percebiam que
34
Dados da Secretaria de Esportes Amador.
35
Diário de campo, Mangueira 13/11/2005.
62
meu interesse pelo que eles faziam aos domingos era real, e que bado após sábado, domingo
após domingo, eu estava observando, conversando, gravando, filmando e fotografando os seus
jogos de pelada. Percebi no início de minha aproximação um tratamento distinto, com ares de
um certo ―cavalheirismo expresso em atitudes como o oferecimento do melhor lugar para
assistir os jogos e o controle do uso de palavrões em minha presença. Felizmente, essa
defencia foi aos poucos diminuindo, embora o fato da pesquisadora sobre futebol ser mulher
nunca tivesse sido eliminado de nossas relações.
Um dos peladeiros que não consegui identificar, estava jogando abaixo do
que os seus demais companheiros esperavam dele aparentava cansaço,
movimentando-se pouco e perdendo bolas consideradas fáceis pelos
companheiros então um dos peladeiros que esperava sua oportunidade de
entrar no time, o criticou gritando: Caraiiii, tomou gala ontem foi?‖
Imediatamente percebi que um dos homens deu-lhe um cutucão e fez um
gesto em minha direção. Percebi nesse momento, que em alguns momentos
minha presença era esquecida, mas alguém sempre lembrava que eu estava
lá‖ (Diário de Campo, Pelada da Amizade, 26/11/2005).
Eu sabia que seria impossível me fazer passar despercebida, mesmo que eu fosse
um pesquisador do sexo masculino e que jogasse algumas partidas com o grupo, ainda assim
o seria um membro como diria Garfinkel do grupo. Tentava minimizar o fato, estando
presente regularmente nos jogos, e também participando sempre dos momentos após as
peladas apenas me furtava de partilhar com eles a ―cerveja‖ ou a ―caninha‖. Essa recusa se
justificava por eu não ter observado em nenhum dos dias após as peladas alguma mulher
participando dos encontros, mesmo aquelas que moravam em frente ao bar/sede e mesmo com
a presença de marido, irmão e cunhado
36
. Então fiz a escolha de não aceitar a bebida alcoólica,
para não quebrar de vez a regra que as mulheres não ―devem‖ participar desses encontros, o
que me era permitido por eu ser de ―fora‖ e ser da ―universidade‖, mas aceitava sempre o
refrigerante e o tira-gosto, para minimizar as distâncias. Por outro lado, o fato de ser mulher
36
Somente aceitei a cerveja uma única vez, no dia que o Ájax foi campeão da RPA 4.1, mas nesse dia o ponto de
encontro estava tomado não apenas por jogadores e diretores, mas por mulheres e crianças que comemoravam o
título, aliás esse foi o único dia em que notei a presença das mulheres.
63
também me permitia fazer perguntas que, se feitas por um pesquisador do sexo masculino,
poderiam parecer algo ―idiota‖ para o pesquisado elaboradas por uma mulher soaram de
forma diferente, ou mesmo que não soassem eles tinham paciência para explicar.
A presença do pesquisador é sempre estranha a qualquer grupo social, este
estranhamento pode ser maior ou menor de acordo com a posição social e pessoal do
pesquisador, cabe ao pesquisador um esforço para encurtar as distâncias por isso que a
preocupação em recusar uma cerveja, visava também um encaixe entre a moralidade de um
grupo e a minha atuação, evitando assim aumentar as barreiras pois, além de pesquisadora
da universidade eu sempre seria uma ―mulher‖ em um espaço de homossociabilidade
masculina. Assim, participar da ―brincadeira‖ após os jogos, partilhar o mesmo alimento,
utilizar a ―mesma‖ linguagem
37
, rir e conversar com os homens, não era apenas mais uma
coleta de dados‖, mas, sobretudo, a busca para reduzir os efeitos da violência simbólica que
ocorre entre pesquisador e pesquisado (BOURDIEU, 1999).
O trabalho de observação contínuo e regular é decisivo para que o pesquisador
possa se aproximar realmente dos pontos de vista e das práticas do pesquisado. A entrevista é
um instrumento importante para captar os discursos, a forma como o pesquisado ordena e
reordena suas visões de mundo, mas sendo uma técnica isolada da observação perde muito do
seu valor heurístico. A observação contínua e regular aproxima dois sujeitos distantes
socialmente, contribuindo para reduzir os preconceitos presentes tanto no pesquisador como
no pesquisado. O que importa para o pesquisador são os métodos que os atores utilizam para
agirem na realidade social, sua tarefa é investigar ocomo‖ os atores criam, recriam e
reproduzem o mundo social, afastando ao máximo os julgamentos do pesquisador, realizando
o difícil e imprescindível exercício da ―indiferença etnometodológica‖:
Os estudos etnometodológicos sobre as estruturas formais se destinam ao
estudo de fenómenos como, por "exemplo, suas descrições pelos
37
Refiro-me aqui exclusivamente ao meu cuidado de utilizar uma linguagem mais próxima do grupo pesquisado,
evitando ao máximo expressões e vocabulário próprios da meio acadêmico.
64
membros, quaisquer que sejam, abstendo-se de todo juízo sobre a sua
pertinência, seu valor, sua importância, sua necessidade, sua "praticalidade",
seu sucesso ou consequência. Damos a esse modo de proceder o nome de
"indiferença metodológica". (GARFINKEL e SACKS, apud COULON,
1995a, p. 81)
A ―indiferença etnometodológica‖ tal como formulada por Garfinkel e Sacks, é um
compromisso com o processo de objetivação que o sociólogo é convidado a realizar em suas
pesquisas algo tão caro para as ciências sociais salientando que qualquer análise deve
partir dos sujeitos pesquisados, nesse sentido o trabalho de observação permite ao pesquisador
acessar códigos, condutas e os significados que a entrevista não capta por uma série de
motivos, por exemplo, durante as entrevistas os palavrões sumiram da linguagem ordinária
dos meus informantes, e quando alguém o utilizava, dizia algo do tipocom licença da
expressão ou ―com licença da palavra‖. O mesmo ocorreu nas primeiras observações, os
palavrões e gestos obscenos eram controlados, mas depois de algumas semanas o repertório
era longo e variado. Lembro da sensação de conquista que senti após uma manhã de
impropérios.
O trabalho de observação é indispensável quando se pretende a dinâmica do jogo e
criação, recriação e atualização das regras. Sem o longo e muitas vezes penoso
38
trabalho de
observação seria impossível apreender essa dinâmica sem ―ver‖ o jogo, sem atentar para o
movimento, para o corpo em ação, para as relações de interdepenncia dos times envolvidos.
Enquanto a entrevista ouve o ―como se faz‖, a observação dirige-se ao ―que se faz‖, nesse
trabalho que se propôs etnográfico, a observação foi decisiva para o meu objetivo e as
entrevistas serviram para complementar as informações nesse sentido, também deixei as
entrevistas para o final do trabalho de campo. Não pretendo afirmar com isso que a
observação seja mais completa que a entrevista, apenas reafirmo que uma técnica de pesquisa
38
Em Recife, as peladas aconteciam aos domingos, às 8:00h (precisava acordar às 06:00h, pois eram necessários
três ônibus para chegar ao local). Alguns jogos ―terminavam‖ às 11:00h, em pleno verão recifense, o sol
implacável em espaços sem proteção era extremamente desconfortável.
65
é um instrumento que devemos decidir de acordo com a metodologia empregada, e que a
metodologia é uma escolha que depende do objeto e das escolhas tricas. A etnografia
propõe um mergulho na realidade do outro, mas esse mergulho foi mais vivido no sentido
pleno da palavra no sertão nordestino.
Em abril de 2006 empacotei o meu computador, livros e roupas e parti para
Aracatiaçu, mais precisamente para o Assentamento Estadual São João, indo morar com meu
tio Francisco Júlio. Nesse projeto são assentadas dez famílias, e nestas, encontra-se meu tio e
três de seus filhos com suas respectivas famílias. Assim, das dez famílias assentadas, quatro
são de meus parentes em primeiro grau. O responvel pelo time local, o ―União São João‖
(USJ), era meu primo Cícero. Quando cheguei, o time estava prestes a disputar um
campeonato chamado II Copa Integração que reúne times dos três distritos mais próximos:
Aracatiaçu, Caracará e Taperuaba
39
, e, também, do município de Forquilha. Eu estava
literalmente ―em casa‖; depois, fui percebendo que não muito.
Cheguei na quinta-feira da semana santa, numa época de festividades e chuvas
intensas naquela região do semi-árido nordestino. Mesmo abreviadamente, contarei meu
processo de inserção no campo. Lembro do meu estranhamento embora tenha visitado outras
duas vezes esta mesma casa e freqüentemente visitava estes familiares, tudo parecia diferente,
talvez porque meu olhar estivesse modificado. Não era mais uma visita breve e festiva, de
alguém que vem visitar parentes e volta no dia seguinte. Tinha, agora, o olhar de quem vem
para morar por quatro meses a fim de realizar sua pesquisa de doutoramento. Nem preciso
reler meus diários de campo para lembrar o impacto que sofri, sobretudo nas primeiras
semanas, condensado no que chamei num dos meus últimos diários, os três Sda pesquisa:
sustos, surpresas e solidão.
39
Esses três distritos ficam mais isolados do município, pois entre a sede de Sobral e os três um outro
município (Forquilha).
66
Os sustos provocados pela falta de um filtro para água e o seu precário
armazenamento, a quantidade absurda de moscas, os problemas que tive com licas
intestinais e diarréias; as surpresas e novidades que as peladas no sertão nordestino me
traziam: da presença de uma torcida de pelada à participação feminina, da falta de um telefone
à combinação de resultados de jogos; e da solidão: sentir-se perdida, sem saber por onde
começar o trabalho de campo, notar-me completamente só, sem telefone, sem internet e,
principalmente, sem o olhar de quem se ama.
Descobri que o método etnográfico atinge em cheio pesquisador e pesquisado, que
bane do campo a lógica dicotômica sujeito/objeto, e, o mais importante, que obriga o
pesquisador a refletir sobre todo o processo de pesquisa, do planejamento inicial quase
sempre descumprido, ao ―produto‖ final. E, como bem lembra Foote Whyte (2005), a inserção
no campo exige uma exposição das experiências pessoais do pesquisador, fazendo
transparecer os erros, as ―mancadas‖, os deslizes, os sobressaltos e os medos. Enfim, aqueles
―imponderáveis‖ que rondam os pesquisadores em campo, que não são dignos de menção nos
manuais de metodologia, e, que, no máximo, são contados como anedotas nos corredores dos
congressos acadêmicos.
Aprender o significado da indiferença metodológica talvez seja tarefa fácil diante
do desafio de experienciá-la no corpo durante quatro meses. O sentido desse conceito
etnometodológico eu assimilei com meus erros e acertos no trabalho de campo. Acertei
quando segui as orientações de minimizar a violência simbólica entre pesquisador e
pesquisado, através do cuidado com a linguagem e a opção de usar a colher nas refeições, da
ajuda solidária através da leitura de projetos e ―tradução‖ de textos ao auxílio nas tarefas
domésticas, do registro tanto da brincadeira‖ dos jogos de futebol quanto do trabalho sério na
agricultura. Estas e outras escolhas não eram meras ―táticas‖ de inserção no grupo, mas uma
67
tentativa contínua de estabelecer uma relação intersubjetiva que me levasse realmente a me
colocar no lugar do outro, tão próximo e tão distante.
O trabalho de campo não é feito apenas de escolhas certas, os erros também fazem
parte do ato de pesquisar, eles nos mostram como o trabalho de investigação social exige uma
permanente reflexão sobre nossa prática científica. Lembro-me como me assustava a
quantidade de animais ao redor da casa e, principalmente, com as fezes de porcos, vacas, bois,
bodes, galinhas e ovelhas. Além do odor, as fezes atraíam muitas moscas, o que eu
considerava um problema de higiene e saúde. Diante disso, aproveitando o descontentamento
de duas primas
40
, sugeri e, confesso, insisti com a construção de uma cerca, para que os
animais ficassem mais distantes da casa. Não apenas insisti, como paguei 50% dos gastos
relativos à construção da cerca.
Quando fui ao centro de Sobral, comentei com uma amiga que também é
socióloga
41
sobre o epidio da cerca, e ela censurando minha escolha comentou algo como
―Rô é você que tem que se adaptar a vida deles e não eles ao seu mundo‖. Como se diz
popularmente ―a ficha caiu. Senti-me envergonhada, pois percebi que não era aquela cerca
feita de madeira do sabiá
42
, mas a cerca erguida pelos meus preconceitos e pela minha
resistência em aceitar os pontos de vista do outro, que se traduzia na tentativa de impor um
modelo de racionalidade (saúde, higiene) que era próprio do meu universo social. Percebi que
o mais difícil de nosso ocio é desconstruir nossas ―cercas‖.
A experiência no Assentamento São João foi provavelmente a lição mais
completa que recebi sobre metodologia, e também sobre epistemologia. As referências
teóricas condensavam-se na experiência prática, rompendo de vez com a oposição entre
sujeito e objeto, revelando que o processo de construção do conhecimento nas ciências sociais
40
A adesão feminina foi entusiástica, mesmo porque são as mulheres responsáveis para limpar a casa, o que
incluí o ―terrreiro‖, ou seja, a área ao redor da casa.
41
Diocleide Lima, professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual Vale Acaraú (Sobral-CE).
42
Nome científico ―Mimosa caesalpiniaefolia”.
68
envolve sempre dois sujeitos prenhes de subjetividade, racionalidade e sentimentos.
Estranhamento, preconceitos, visões de mundo, distanciamento, envolvimento, objetividade,
subjetividade etc, saíam dos livros e desfilavam cotidianamente diante de mim, desafiando,
ensinando e também apaixonando esta cientista social.
69
CAPÍTULO II
Futebol Amador na Cidade e no Sertão
“Pelo Canto do Rio eu mato, eu morro!
José Bartolomeu, Diretor do Canto do Rio
Goooooool!!! Risos e gritos, rojões e palavrões, abraços apertados para comemorar
e braços abertos para reclamar, alegria incontida e decepção indisfarçável, atacante
agradecendo a Deus e goleiro praguejando, torcedores emocionados e torcedores resignados.
FUTEBOL. Mas esta não é uma cena de Maracanã, Arruda ou Castelão
43
, é uma cena que se
repete todos os anos, todos os meses e muitas vezes todos os dias pelos campos sem grama das
cidades e dos sertões brasileiros. Alguns jogos são apenas amistosos, outros em sua maioria
são partidas de campeonatos ou torneios organizados pelo poder público, por ligas amadoras
ou mesmo por indivíduos apaixonados. Alguns desavisados que acompanham apenas futebol
profissional, poderão achar que são partidas sem importância, ou na melhor das hipóteses
afirmarão que se trata apenas de ―diversão‖. Quanto engano! Para a maioria dos envolvidos
com o futebol amador, uma partida de futebol vale uma vida inteira e isso não é apenas uma
metáfora.
Os times de futebol amador provavelmente expressem as primeiras formas de
organização popular em nosso país para vivenciar uma prática lúdica, pois nas primeiras
décadas do século XX lazer e esporte não eram ainda percebidos como objetos de poticas
sociais. Aqueles que eram excluídos dos clubes sociais, por não pertencerem às ―boas
famílias‖, organizavam-se para formarem seus times e, assim, terem acesso ao esporte e ao
43
Maracanã: Estádio Municipal Mario Filho (RJ); Arruda: Estádio José Lins do Rego (PE) e Castelão: Estádio
Estadual Plácido Castelo (CE).
70
lazer. A historiografia sobre o futebol brasileiro ainda é incipiente
44
e as pesquisas que temos
referem-se ao futebol profissional ou, quando este ainda era amador, referem-se quase sempre
aos clubes sociais
45
. Como vimos, poucas pesquisas sobre o futebol amador, essa lacuna
gera um incômodo silêncio sobre a organização dos times nas classes populares. Este trabalho
busca romper este silêncio e resgatar e analisar um pouco dessa história. Opta-se aqui por uma
descrição detalhada, utilizando o discurso de diferentes informantes e a hisria diversificada
dos times para montarmos um mosaico do futebol amador em Recife e em Aracatiaçu.
Então vamos entrar em campo...
O Passarinho Futebol Clube (PFC), um dos mais antigos times de Recife, foi
fundado em 1945, e através da memória do sr. JoLaércio, um dos seus fundadores, tive
acesso a um pouco dessa história. Sr. JoLaércio nasceu em 1930, começou a jogar futebol
amador no PFC quando tinha 15 anos, e teve uma rápida experiência nos aspirantes‖ do
Santa Cruz Futebol Clube, de onde saiu quando se alistou no exército. Veremos adiante, que
muitas características do Passarinho também estão presentes em outros times, mesmo aqueles
que foram fundados mais de 40 anos depois, como, por exemplo, essa proximidade com o
futebol profisisonal. Como a maioria dos times, o Passarinho herdou o nome do bairro à época
de sua criação, no caso ainda havia uma área de mata virgem,
Em 1945, agora não sei o s, me lembro sim da fundação quando a gente
fez a ata, a ata foi em 48, 13 de maio de 48. Em 1945, com bola de borracha,
aqueles sapatozinho kichute, era 20 pessoa (...)Aqui era mata só. A
gente matava animal aqui no mato, cutia... nós começemos (...) Foi meu
pai. Ele mesmo tocou a bolinha de borracha no quintal da gente, que era
uma vage
46
e vai, criamos gosto da brincadeira e formamos um quadro
(Sr. José Laércio, fundador do Passarinho, ex-jogador e ex-diretor).
44
Dos poucos livros publicados é importante destacar ―Football-mania: uma história social do futebol no Rio de
Janeiro, 1902-1938‖ de Leonardo Pereira (2000).
45
Embora haja importantes trabalhos sobre ―futebol de brica‖, esses não são pesquisas históricas. Ver
ANTUNES, Fátima (1994)
46
―Vage‖ ou vargem ou ainda várzea, refere-se a uma área próxima a um rio ou açude.
71
O nascimento do Passarinho Futebol Clube remonta a uma época em que havia
muito espaço nas capitais. Em 1944 Recife tinha apenas 384.422 habitantes
47
, hoje a
população de Recife e região metropolitana é superior a dois milhões. A grande explosão
demográfica das principais cidades brasileiras, a partir da década de 1950, irá ocasionar uma
perda dos espaços para o futebol amador; não mais ―vage‖, porém os times irão negociar
novos espaços. O PFC é provavelmente o único time de Recife que tem seu próprio campo
48
,
o que o afasta da realidade da maioria dos times urbanos, porém sua história aproxima-se da
maioria dos times por mim pesquisados, tanto na zona urbana quanto na zona urbana: os
diretores são filhos de diretores dos times.
2.1 Futebol Amador: um jogo em família
Diz-se popularmente que a bola é o primeiro presente que um pai escolhe para o
filho em nosso país, e em se tratando de futebol amador, pelas hisrias relatadas por diversos
representantes de times, é possível afirmar que o filho, além de herdar a bola e o gosto pelo
futebol, herda também o time de futebol. Se o pai do sr. José Laércio iniciou os filhos no
distante ano de 1945, muitos pais continuam a passar o ―cetroainda hoje
49
; ―Aí em 80 meu
pai tomou conta do time né, de 81 para era ele, de uns tempos para ele se aposentou,
o quis mais...‖ (José Ricardo, diretor do Passarinho).
A relação dos filhos com o time não se inicia apenas após o falecimento dos pais
ou com seu afastamento devido às limitações da idade: é uma relação que começa cedo e de
47
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). População do Brasil, das Unidades da
Federação e dos Municípios das Capitais (Estimativa) 31-XII-1944. Localização:
http://www.ibge.gov.br/seculoxx/default.shtm
48
―Esse campo aí foi o maior aperreio do mundo para a gente comprar esse campo (...) o pai desse ai ganhava 12
mil rés por mês, o pai desse e a proposta do time era 20, pagava todo mês 20 mil réis naquele tempo. Foi 480
esse terreno aí, são 100 metros, 10 lotes, muito antes de ter esse campo aí, isso aí era lagoa, ninguém chegava ali
não, era um pântano, ninguém chegava ali não, fizeram um aterro ali‖ (José Laércio, PFC)
49
Hirata (2005) em sua dissertação observa que ―O XI Garotos foi fundado em 1980. Seu Francisco foi o
fundador e é o pai do atual presidente do time‖ (p.84).
72
forma efetiva, pois é comum os filhos jogarem nos times que os pais são diretores, e após a
aposentadoria como jogadores continuam no time, agora com a função de organizar a
equipe.
Em alguns times, quando o pai não participa, são os irmãos que assumem ou
fundam um time como é o caso do Fora de Forma e do União São João, ou ainda da diretoria
do Ájax, que conta com a presença de dois irmãos e um cunhado. Além da relação de
parentesco, o Fora de Forma reforça a proximidade entre o futebol profissional e o amador,
pois Walnez, diretor do time, foi jogador profissional durante 8 anos (de 1994 a 2002), tendo
abandonado o futebol por contusões no joelho e no tornozelo, após a ―aposentadoria do
futebol profissional, Walnez, seu irmão Igor e outros amigos criaram o time. Devido à falta de
recursos financeiros, o apoio da família é imprescindível para que os times consigam manter-
se. Nesse sentido, as mulheres também se fazem presentes: embora não assumam papéis de
dirigentes, participam do time realizando trabalhos que são considerados femininos:
A gente comprava o pano e mandava minha tia fazer, ela fazia. A gente dava
alguns números, cortava, ela pregava (Bartolomeu, presidente do Canto do
Rio).
Ajudam no dia-a-dia, no dia dos jogos né, de cortar laranjas, de comprar
gelo, de preparar roupa, de preparar comida, de fazer tudo (Walnez, diretor
do Fora de Forma).
A relação entre família e o time pode ser bem exemplificada através das sedes
destes: a casa do diretor é quase sempre a sede do time. uma mistura de espaços sociais
que o podem ser percebidos numa relação dicotômica como público-privado ou casa-rua
(DAMATTA, 1985). A casa representada como lugar privado e da intimidade é invadida por
um esporte que tem no domínio público sua maior expressão, seja em partidas em grandes
estádios ou em modestos terrenos baldios.
Foi comum encontrar nas casas dos diretores os símbolos das vitórias de um time:
os troféus e medalhas sempre expostos na sala, como símbolo de orgulho e também de
distinção social. Nas paredes, retratos de familiares e imagens de santos dividem espaço com
73
fotos e recortes de jornais com notícias do time, que são cuidadosamente guardados. Na ―sede-
casa guardam-se também os uniformes das equipes, a documentação quando os times são
registrados, e muitas vezes é o local das reuniões com a diretoria, jogadores e torcedores. A
casa-sede apresenta-se como lida construção de um comprometimento e apaixonamento que
é transmitido na família.
Os diretores geralmente têm emprego fixo, embora seja possível encontrar alguns
dirigentes desempregados ou trabalhando na informalidade, ou apenas realizando serviços
esporádicos, os chamados ―bicos‖. O salário, mesmo insuficiente
50
, é imprescindível para a
manutenção dos times e da própria família, mas em alguns casos da capital, as esposas dos
dirigentes também exercem atividade remunerada, outras como na zona rural, contribuem com
o seu serviço não remunerado da lavagem das roupas. As despesas com uma partida de futebol
entre times amadores custa em média cem reais nas cidades e em média oitenta reais no meio
rural, mas estes valores podem ser maiores ou menores, essa flutuação das despesas é
determinada pelo tipo de competição, amistoso ou campeonato, e sendo este último, dependerá
também da fase da competição, se disputa inicial por grupos ou se fase semifinal ou mesmo a
final de uma competição.
As despesas maiores são com jogos de campeonatos ou torneios, a exceção aqui
fica para o campeonato ―Futebol Participativo‖ (Recife), que veremos detalhadamente adiante.
Mas são muitas as outras despesas: taxa de inscrição no torneio, que pode variar de trinta a
cem reais, as despesas com as fichas de inscrição, pois estas requerem em alguns casos duas
fotos de cada jogador inscrito, além das fotocópias; lavagem do uniforme dos times em
Recife, custa em média R$ 20,00 e em Aracatiaçu R$ 10,00 é o preço médio desse serviço;
Remédios para os jogadores contundidos, cálculo médio difícil de ser feito; despesas com
50
As ocupações de meus entrevistados estão predominantemente no setor informal, na indústria da construção
civil, na agricultura familiar e no serviço público municipal (fiscais e professores).
74
água e gelo, em torno de dez reais; e pagamento para alguns jogadores dos times, que pode
variar de dez a cinenta reais por jogo, aprofundarei mais adiante no item 2.13.
As taxas de arbitragem variam de acordo com o regulamento das competições, pois
em algumas o trio de arbitragem é exigido, em outros são apenas dois árbitros principais e em
alguns um árbitro e um árbitro-assistente (bandeirinha). Em Recife, um árbitro recebe em
dia trinta reais por partida, em Aracatiaçu a metade desse valor. A despesa com transporte é
maior na zona rural, pois o distrito não possui um sistema de transporte coletivo, sendo
necessário alugar um caminhão, conhecido como pau-de-arara, cujo custo médio é de sessenta
reais. Nas cidades também os custos com as passagens dos jogadores, dependendo do local
de moradia e do local do jogo este valor pode chegar a sete reais por jogador, mas a média em
Recife é de três reais e cinqüenta centavos por jogo. Em alguns casos, os dirigentes fornecem
um valor para a gasolina para quem possui moto ou automóvel. Em Aracatiaçu, jogadores que
moram distante recebem dinheiro para a gasolina das motos, transporte mais utilizado ou
dinheiro para pagamento do serviço de moto-táxi
51
.
A gente gasta aproximadamente, se o jogo for à noite, mais ou menos 100
reais, se o jogo for num sábado ou domingo de 150 a 200 reais (...) Porque à
noite, porque você sabe que jogo de pelada é o seguinte tem que ter a
cerveja e a noite gasta menos entendeu, porque tem que ir para casa cedo e
fim de semana é à vontade (Valnez, diretor do Fora de Forma).
Existem ainda as despesas fixas, que incluem outros itens que incidem sobre o
orçamento dos times como os uniformes, também chamados de padrões e as bolas de couro.
Esses itens variam muito de acordo com a marca e o tipo de material utilizado: um uniforme
completo pode custar R$ 700,00 (setecentos reais), mas pelos depoimentos de diversos
dirigentes eles compram um uniforme completo com 16 caões, 16 camisas e 16 pares de
meia por aproximadamente quinhentos e cinqüenta reais.
51
Serviço de transporte regulamentado, realizado em motocicletas, que existe em todo o Estado do Ceará e em
alguns estados da federação.
75
Eu ano passado mesmo, eu comprei do meu dinheiro, um padrão de camisa
com um caão e meião e uma bola. Deu setecentos e setenta e poucos reais.
Eu comprei de um rapaz (Bartolomeu, diretor do Canto do Rio)
É importante lembrar que a maioria dos times pesquisados possui duas equipes o
que onera ainda mais os times - chamadas de primeiro quadro e segundo quadro. Esta
nomenclatura representa uma diferenciação interna importante: o primeiro quadro é a equipe
considerada melhor, quando campeonatos em que apenas um quadro participa é o primeiro
quadro que sempre joga. Embora alguns dirigentes afirmem que esta divisão é feita de acordo
com a idade, os mais jovens jogando no segundo quadro, para depois com o tempo
ascenderem ao primeiro quadro, observa-se que o primeiro quadro é composto por aqueles
jogadores considerados mais habilidosos, sendo possível encontrar jogadores jovens em times
do primeiro quadro, e outros jogadores veteranos que já jogaram no primeiro quadro e com o
passar do tempo, devido a uma menor capacidade sica passam para o segundo quadro.
Em campeonatos onde há dois quadros, o segundo quadro sempre faz o primeiro
jogo, ou seja, se numa tarde de domingo são marcados dois jogos, o segundo quadro jogará às
14:00 horas e o primeiro quadro jogará às 16:00, horário onde melhores condições para o
jogo, que o calor é menor, fator importante no nordeste brasileiro. É o jogo do primeiro
quadro que mais atrai torcedores, seja porque o futebol apresentado é esteticamente mais
apreciado, seja porque é difícil acompanhar um jogo, no sol às 14hs. O tempo de duração da
partida depende de qual quadro jogará, o primeiro quadro é o que joga mais tempo, em média
quarenta minutos, e o segundo quadro em média trinta minutos por cada tempo da partida. Nos
picos específicos dos times aprofundarei este aspecto.
A maioria dos times observados ao longo dos campeonatos consegue algum tipo de
patronio, quase sempre de pequenos e médios comerciantes do próprio bairro, outros
realizam atividades como bingos e rifas. Mas devido ao alto custo dos uniformes, pois cada
equipe tem dois uniformes diferentes, o mais comum é o patrocínio de pequenas e médias
76
empresas; além disso, alguns torcedores com melhor condição financeira também contribuem
para a compra dos uniformes. Diferentemente do futebol profissional onde os patrocinadores
são grandes empresas nacionais e internacionais, no futebol amador esses patrocínios são
realizados por mercadinhos, pizzarias, armarinhos, depósitos de construção, dentre outros
tipos de comércios facilmente encontrados em bairros periféricos.
Alguns times recebem material de candidatos a cargos eletivos, em sua maioria
para o cargo de vereador. Porém alguns campeonatos, principalmente aqueles organizados
pelo poder público, não é permitido que os times utilizem nomes de candidatos nas camisas; e
alguns candidatos distribuem os uniformes com o seu nome e número. Alguns diretores
aceitam a propaganda política em seus uniformes, outros optam por o manter esse tipo de
relação. Através da história e da trajetória do Ájax e do União São João será possível
aprofundarmos vários pontos destacados até esse momento, bem como destacar outros
aspectos específicos.
2.2 O Ájax: O Futebol Amador na Cidade
O Ájax foi criado em 1992, na comunidade
52
da Mangueira, localizada no bairro da
Torre. Este é um bairro de classe média, mas como a maioria dos bairros de Recife, mesmos
os de classe média e média alta, contém, dentro do seu espaço territorial, pequenas favelas.
Segundo dados do Plano Setorial de Uso e Ocupação do Solo, qualquer bairro da cidade está
situado a uma distância não superior a 1,2 km de alguma favela. A comunidade da Mangueira
é mais uma a confirmar esse fato e conta com aproximadamente 300 famílias. Tem duas ruas
principais‖ sem pavimentação ou esgoto e vários becos; em uma das pequenas casas está
localizada a sede do Ájax, onde reside um de seus diretores, o sr. Eduardo, conhecido por
52
Refiro-me à comunidade como no verbete Comunidade, do Dicionário do Pensamento Social do Século XX de
OUTHWAITE e BOTTOMORE (1996)
77
todos por Duda. Na casa-sede encontramos na pequena sala, em uma estante dez taças e várias
medalhas, troféus cuidadosamente guardados e exibidos com orgulho no espaço da casa
destinado às visitas.
O Ájax foi criado em 1992, um dos fundadores do time foi Bill pai de Duda, Bill
também foi jogador profissional do final da década cinqüenta até o início da década de setenta,
tendo atuado em times de Portugal e também na seleção pernambucana. Além de Bill ter
atuado como jogador profissional, Duda também tentou seguir os passos do pai, realizando
alguns testes
53
no Santa Cruz Futebol Clube, mas igualmente ao Sr. José Laércio desiste
definitivamente do profissionalismo quando ingressa no exército. Encontramos novamente
uma proximidade entre os futebóis amador e profissional, além das relações familiares que
permeiam o futebol amador.
Quando o Ájax foi criado alguns jogadores da comunidade jogavam em um time
no bairro do Coque, chamado Juventude, que posteriormente foi transferido para a Vila Santa
Luzia, também no bairro da Torre. Segundo Duda, o time do Juventude jogava todo domingo
à tarde, mas alguns jogadores preferiam jogar pela manhã, pois assim teriam mais tempo para
o lazer do domingo. Então os jogadores reuniram-se e decidiram criar um time que pudesse
jogar nas manhãs de domingo. Assim nasceu o Ájax,
que a gente jogava nos domingos a tarde , então a gente se reuniu, a
gente não queria mais jogar à tarde, um grupo de amigos assim, a gente
formar um time para jogar de manhã, quando acabar o jogo a gente toma a
cervejinha da gente, bate um papo, pra ter mais tempo, porque quando a
gente joga domingo à tarde, muitas pessoas não gostam porque não podem ir
à praia de manhã (...) descanso da comunidade, porque quando a gente
jogava fora muita gente ia olhar (Duda, diretor do Ájax).
O Ájax nasce com a função de constituir-se como uma atividade de lazer dos
homens da comunidade da Mangueira: o dia de domingo é reconhecido como o único dia
53
Fiz alguns testes no Santa Cruz só que, não sei se tinha condições ou não, só que a gente ia fazer peneira que
antigamente chamava muito de peneira, ai fazia peneira, o treinador da peneira indicava a gente para ir para o
Santa Cruz, a gente chegava lá, o cara de lá, o treinador dizia não que não tinha mais vaga que aguardasse
mais, a gente voltava, depois ia de novo, é muito cansativo, aí o tempo foi passando e desisti, entrei no quartel e
arrumei um trabalho‖ (Duda, diretor do Ájax).
78
realmente dedicado ao lazer, pois aos sábados muitos ainda trabalham. Importante destacar
que esse dia de lazer não se restringe apenas aos jogadores e dirigentes, ele se estende também
aos moradores da comunidade, que como torcedores acompanham os jogos dos times em
outros bairros.
O futebol amador possibilita a muitas pessoas uma maior mobilidade dentro de sua
cidade e mesmo fora de suas fronteiras, pois os jogos acontecem também em outros
municípios vizinhos: quanto maior a fama dos times, mais convites eles recebem para jogar
amistosos fora de seu bairro e às vezes de fora sua cidade. Esta mobilidade permite que os
jogadores, dirigentes e torcida tenham uma outra relação com a cidade, que dessa forma se
amplia, não se restringindo ao local de moradia e de trabalho e áreas adjacentes. Hirata (2005),
ao pesquisar o futebol de várzea em São Paulo, tamm se depara com essa mobilidade urbana
que o futebol amador permite:
Prática urbana, o futebol de várzea tem um sentido que vai além das
circunstâncias da sociabilidade local, até porque suas formas de organização
e o modo como mobiliza jogadores e torcedores passa por uma trama urbana
que ultrapassa as circunstâncias da vida local, de um bairro ou das chamadas
comunidades de referência (...) o futebol de várzea constitui uma versão
popular de um certo cosmopolitismo urbano (HIRATA, 2005, s/p).
Durante a pesquisa, foi possível observar esses deslocamentos pela cidade de
Recife, principalmente para os jogos amistosos, pois os campeonatos tendem a reunir times de
uma mesma região, como é o caso Campeonato Futebol Participativo durante sua primeira
fase. Durante a pesquisa assisti partidas amistosas de times localizados em diferentes áreas da
cidade, durante as conversas percebia como o futebol amador, para além de uma prática de
esporte e lazer, constituía-se também como um ―passaporte‖ para todos os recantos da cidade
de Recife. Por exemplo, quando eu perguntava a algum informante se eles conheciam
determinado bairro, as respostas afirmativas ou negativas quase sempre tinham como
complemento: ―sei onde é, já jogamos lá‖ ou não, a gente nunca jogou lá‖. Obviamente, o
estou afirmando que o futebol amador seja o único meio que os moradores da periferia
79
possuem de conhecer a sua cidade, mas certamente é um dos caminhos mais utilizados para
circular pela cidade.
o time foi crescendo, cresceu, ficou conhecido basicamente no Recife
todo, time de amador (...) Disputamos em 94, fomos campeões, na Torre,
sempre na Torre, depois desses campeonatos sempre, tinha o Peladão que
era uma coisa oferecida pelo governo do Estado, era o mesmo molde desse
Participativo, só que o Peladão não era divido por bairro, juntava todo o
Recife e eles faziam o sorteio e a gente daqui ia jogar em Campo Grande,
jogava lá no Coque, onde caísse o sorteio (Duda, diretor do Ájax).
Ser campeão de torneios e campeonatos importantes torna o time ―conhecido‖, ou
seja, o time é reconhecido pelos demais times da cidade. Quanto maior o número de títulos, ou
mesmo participações que terminem em vice-campeonatos ou até mesmo nas semifinais, mais
os times tornam-se ―conhecidos‖ não somente em seu bairro, pois as vitórias ultrapassam as
fronteiras e a popularidade do time rapidamente alcança outras áreas. Ser reconhecido como
um importante time amador na sua cidade é uma recompensa para o trabalho que os diretores
enfrentam no cotidiano para manter o time funcionando. Como vimos, as despesas com os
times amadores podem ser consideradas altas, pois eles são sustentados pelos seus diretores
que lançam mão de diversas estratégias para arcar com os diversos custos. A maioria contribui
com recursos próprios, que são insuficientes, ou busca outras formas para arrecadar dinheiro,
uma delas é a cota entre os moradores da própria comunidade:
Veja bem, nós quatro, os quatro diretores ajudam e tem algumas pessoas
também da comunidade que sempre ajudam sabe. A gente vai lá, ―ô vai ter
jogo hoje ajuda aí‖, aí tem um que dá dez reais, tem uns que dá vinte, outros
trinta, aí nisso a gente vai juntando, aí a gente junta (Duda, diretor do Ájax).
sempre pessoas na comunidade que colaboram financeiramente para o time do
Ájax, também uma empresa que colabora com o uniforme do time. No uniforme do time
está grafado o nome da empresa na frente e nas costas das camisas, a empresa não tem sede no
bairro, mas um dos diretores e outro membro da comunidade são funcionários antigos desta
empresa, o que facilita o patrocínio, embora o proprietário reclame que futebol amador o
proporcione retorno para a empresa, pois não tem visibilidade na imprensa.
80
Alguns diretores buscam a contribuição de candidatos a cargos eletivos -
principalmente vereadores - para a compra do uniforme dos times. No Ájax, os diretores
atualmente preferem não buscar o apoio de candidatos, pois isso os obrigaria a manter uma
relação de apoio durante as eleições, mas no início das atividades do time, os diretores
receberam o uniforme de um candidato. Entretanto, em alguns casos, principalmente quando o
dirigente tem uma relação anterior com o candidato, seja por ser um líder comunitário ou por
ser cabo eleitoral, os candidatos são procurados para patrocinar os times.
Mas sempre a gente pega uma ajudazinha pro Cadoca
54
. Cadoca é uma
pessoa, que através de outras pessoas a gente fala - ele sempre me deu o
material do time. De dois em dois anos, de quatro em quatro anos a gente
vai e... Por sinal, agora ele ta apra dar dois material a gente. Pra gente
continuar (Bartolomeu, diretor do Canto do Rio).
Só que a gente não tem dinheiro para comprar material, que foi um ano
político a gente conseguiu com o vereador um jogo de calção, de meia e de
camisa, aí foi então que a gente começou (Duda, diretor do Ájax).
Na cidade de Recife em apenas em dois amistosos, observei times que tinham a
propaganda de candidatos, incluindo os números para a votação, em outros jogos foi possível
observar algumas faixas, com dizeres do tipo ―Agradecemos o apoio de Fulano de Tal‖. A
prática de candidatos ―apoiarem‖ times de várzea abarca todas as posições poticas, de
partidos poticos considerados de direita à partidos considerados de esquerda. Apesar das
reivindicações dos times ao poder público municipal, não há distribuição de uniformes para os
times, assim os diretores muitas vezes dependem de práticas eleitoreiras para assegurar o
funcionamento dos times.
A luta dos jogadores em campos esburacados e sem grama é tão grande quanto a
luta cotidiana dos diretores para manter seus times, mas além das recompensas como o
reconhecimento e os troféus, há um prêmio semanal após cada jogo, o encontro após os jogos
que reúne jogadores, diretores e torcedores. Esses encontros geralmente acontecem no bar ou
54
Carlos Eduardo Cintra da Costa Pereira, o Cadoca, é deputado federal. Foi candidato derrotado nas três
últimas eleições para prefeito de Recife.
81
na sede dos times, é um momento de grande descontração, onde o principal assunto o os
comentários sobre o jogo, tudo regado a muita cerveja e tira-gosto, para os poucos que não
consomem bebida alcoólica também há o refrigerante. Em alguns times, somente a
resenha‖ em caso de vitória do time, mas o time do Ájax reúne-se mesmo nas derrotas,
embora as pessoas participem em maior número em caso de vitória:
Todos os jogos, principalmente quando a gente ganha (...) se encontra
e no final o pessoal se reúne, toma uma cerveja, toma um refrigerante,
come um tira gosto (...)o pessoal passa a semana todinha sem se ver
quando chega o final de semana se joga bola e depois cada um vai para um
lado fica uma coisa meio chata né (Duda, diretor do Ájax).
E assim o time do Ájax, e também os outros times de Recife, vão se mantendo,
entre encontros festivos e batalhas, para que a bola continue rolando nos poucos espaços que
ainda restam nas grandes cidades brasileiras. Mas bola também encanta em outros campos,
adentra o semi-árido nordestino.
2.3 O União São João: O futebol amador nas entranhas do Sertão
O time do União São João é um dos mais de 120 times amadores de Sobral, esta é
uma cidade de médio porte, pólo de desenvolvimento econômico da região norte do estado do
Ceará. Sobral tem uma populão estimada em 176.895 habitantes, distribuída ao longo dos
seus 2.123 km², é nesse território que estão localizados os seus 13 distritos: Sobral, Aprazível,
Aracatiaçu, Bonfim, Caioca, Caracará, Jaibaras, Joro, Patos, Rafael Arruda, Patriarca, São
José do Torto e Taperuaba. Aracatiaçu, que em tupi-guarani que dizer ―Ventos Fortes‖, é um
dos distritos mais antigos, tendo sido criado por lei em 1843. É o segundo maior distrito em
extensão territorial, perdendo apenas para o distrito vizinho de Taperuaba. A população de
Aracatiaçu é estimada em aproximadamente 8.000 habitantes, a maior parte vivendo na sede
do distrito.
82
O time do União São João está loclaizado na zona rural, sua história revela as
dificuldades e a paixão pelo futebol amador praticado no meio rural, realidade que ime
obstáculos difíceis de imaginar para quem tem como referências as cidades urbanizadas.
Como, por exemplo, a falta de telefones públicos e de transporte coletivo. Como os times de
Recife, nem só de dificuldades vive o time do União São João, as partidas sejam de amistosos
ou de campeonatos tornam-se um grande encontro festivo.
O time do União São João tem apenas três anos de existência, sua história está
ligada ao surgimento do Assentamento Rural São João, pois poucos meses após a instalação
das dez famílias no local, surgiu o time que herdou o mesmo nome do assentamento
acrescentando-se a palavra união‖. O nascimento do time já revela as dificuldades de manter
um time na zona rural do semi-árido nordestino, pois o União São João nasce de um time que
havia parado por falta de recursos, assim um time morre e outro nasce:
Quando eu vim morar aqui o time tava parado, o time daqui tava parado
(...) aí eu pedi pra tomar de conta, quem tomava de conta era ele, ―ó, seu
Murilo, se quiser eu tomo de conta‖ aí eu tomei (...) O time daqui era
Fortaleza do São João, mas hoje depois que tomei de conta eu achei melhor
o timecom União São João, pegava o São João botei o nome de União,
União o João (Cícero, diretor do Uniãoo João).
Como a maioria dos moradores não tem renda fixa, apenas os que fazem parte dos
programas de seguridade social (como aposentadoria, pensões e o programa bolsa-família)
têm renda mensal, os demais dependem da agricultura, principalmente da venda de animais
bovinos e caprinos
55
. Os assentados recebem recursos para manter a criação de animais e o
cultivo da terra e também participam de outros projetos de agricultura familiar, mas apesar
disso é pequena a circulação de dinheiro na localidade. Assim, a dificuldade financeira para
manter os times é maior que nas cidades.
cero assumiu o time dois anos e uma das primeiras providências foi buscar
um outro uniforme para o time, e conseguiu o padrão completo com um vereador, com quem
55
Há também uma pequena fábrica de queijo, mas que emprega informalmente apenas quatro pessoas.
83
sua família mantém uma proximidade potica. Pude observar que outros times da região
solicitam e recebem seus uniformes, bolas e redes de candidatos a cargos eletivos,
principalmente para o legislativo municipal. Mas também foi possível encontrar um dirigente
que não aceitava esse tipo de doação:
a gente faz um bingo, uma coisa assim e completa e compra o uniforme.
Uniforme de político eu não tenho nenhum, procuro mais usar uniforme que
seja, a gente consiga mesmo, a gente compre (...) Eu não sou muito chegado
a uma propaganda de político não porque eu acho que o, quando eles visa
aquilo ali é mais um tipo de exploração, eles acham que a gente, dando um
monte de camisa a gente aqui, a gente fica definitivo grato aquilo ali (Vidal,
diretor do Aracati).
Sr. Vidal, um pedreiro que já acalentou o sonho de ser jogador profissional,
chegando a treinar por alguns meses no Guarany Sporting Club, clube de futebol profissional
da cidade de Sobral. Assim, mesmo em um pequeno distrito encontramos uma relação entre os
futebóis profissional e amador. Sr. Vidal foi jogador amador e por seus reconhecidos capitais
futebosticos atuou em diversos times amadores, para depois tornar-se diretor do Aracati. Em
2006, aos quarenta e três anos de idade, casado, tendo quatro filhos, sem acesso à educação
formal, ―uma pessoa que só sei assinar meu nome‖, realizou uma leitura reveladora das
relações clientelistas que substituem as inexistentes poticas públicas de esporte e lazer em
muitos municípios de nosso país. A falta dessas poticas contrasta com a dedicação dos
dirigentes dos times do pequeno distrito de Aracatiaçu.
A dedicação apaixonada e atuante dos dirigentes muitas vezes não é suficiente para
manter um time amador funcionando. No União São João, Cícero conta com o apoio do irmão,
único da família que tem renda mensal assegurada, pois é contratado como vigilante pela
prefeitura de Sobral. Edmilson assegura os gastos maiores, como transporte para os jogadores
que moram em outros distritos. Cícero também recebe a ajuda da esposa ainda que algumas
vezes esta reclame - que lava o uniforme dos times, mesmo quando não recebe pagamento por
84
isso. Mais uma vez percebe-se como o futebol amador é atravessado por relações familiares,
seja ela de pai e filho, de irmãos ou de esposas e companheiras
56
.
O time do União São João também tem como sede, igualmente aos times de
Recife, a casa do diretor. A casa de Cícero funciona como sede, é ali que ele guarda todo o
material do time: a bola, as redes e o uniforme do time. Na sala da casa não nenhum troféu
do time, nenhuma medalha, mas certamente, quando o time conquistar algum campeonato ou
torneio, será o local onde com orgulho a taça seexibida, como são exibidos os troféus e
medalhas na sala da casa do sr. Vidal, diretor do Aracati. A casa no meio rural é o local da
família, uma família ampliada por sobrinhos, pais, padrinhos, afilhados e nos casos dos
dirigentes de times amadores, abarca também o time de futebol.
Em Aracatiaçu a maioria dos times treina uma ou duas vezes por semana,
diferentemente das grandes cidades, onde é difícil conciliar os horários das diversas atividades
produtivas; no meio rural, esse encontro é mais fácil quando os jogadores moram no mesmo
distrito. No caso do União São João apenas o segundo quadro conseguia realizar treinos, e isso
apenas antes da Copa Integração, pois no primeiro quadro muitos jogadores não residiam na
localidade do São João. A realização de amistosos é uma oportunidade para o União São João
manter o time treinando e em funcionamento.
Os amistosos são marcados entre os dirigentes do time, é acertado um valor para
pagar o transporte do time visitante, o time da casa depois devolverá a partida, jogando outra
partida amistosa agora na casa do adversário, este por sua vez devolverá o dinheiro pagando o
valor do transporte. Em um amistoso foi acertado, o valor de R$ 40,00 (quarenta reais), como
o aluguel do caminhão custou o R$ 60,00 (sessenta reais), o time do União São João
completou o restante. Normalmente, cobra-se um valor de R$ 2,00 por jogador aqueles que
o tem nenhum tipo de remuneração não são cobrados outros contribuem com um valor
56
Alana Gonçalves (2002) em sua dissertação sobre futebol amador no município de Juazeiro do Norte (CE),
relata ―Há também o irmão do senhor Madalena que é como um a espécie de auxiliar do dono do time (p.76).
85
superior de acordo com suas condições financeiras. Independente do valor acertado entre os
times, o amistoso tem sempre que ser devolvido, algumas vezes a data do jogo de volta já é
agendada junto com o primeiro jogo.
Outro aspecto importante do amistoso, como também do jogo de campeonato: as
partidas são uma oportunidade de lazer para toda a família e também para os demais
moradores, pois movimenta a comunidade, tanto nos jogos de ida quanto nos jogos de volta.
Em jogo amistoso do União São João em casa, observei uma quantidade de pessoas que eu
ainda não tinha visto, contei vinte e dois adultos, além de um vendedor de pico em
saquinho
57
. No meio das pessoas uma presença grande das mulheres dos jogadores, pois a
maioria é deles são casado, e de seus filhos; alguns idosos também vão ver o neto ou o filho
jogar.
Esses são pontos gerais que busquei apresentar sobre os times de futebol amador na
cidade e no sertão. No decorrer desse capítulo e tamm do capítulo IV irei aprofundar alguns
pontos elencados nessa breve apresentação, outros infelizmente não poderão ser
contemplados, pois o universo do futebol amador é multifacetado, seria impossível enveredar
por todos os caminhos que ele suscita, embora isto seja tentador, mas certamente é uma tarefa
para outras pesquisas. Discutiremos agora dois campeonatos, o Futebol Participativo em
Recife e a Copa Integração em Sobral.
2.4 O Projeto Futebol Participativo: primeiras observações
Em 2004, fui informada da existência de um campeonato de futebol amador que
reunia mais de quinhentos times de pelada. Após algumas informações, descobri que o
campeonato chamava-se "Projeto Futebol Participativo". Optei então por iniciar minha
pesquisa de campo acompanhando o campeonato de 2005 deste projeto. Após os primeiros
57
No Ceará esse picolé em saquinho plástico é conhecido como Dindin, e em Recife como Dudu.
86
contatos com a Diretoria de Esporte Amador
58
, vinculada à Secretaria de Educação, Esporte e
Lazer do Município, que gerencia o Projeto Futebol Participativo (PFP), fui informada que
este projeto integra um outro projeto maior chamado de "Círculos Populares de Esporte e
Lazer". Segundo os representantes da prefeitura, este projeto visa promover o esporte, o lazer
e a cultura como um direito de todo cidadão e como meio de auto-organização comunitária,
utilizando o esporte, o lazer e a cultura como meio para que os usuários desenvolvam uma
consciência crítica em relação ao esporte e à sociedade. O PFP seria então organizado a partir
destes princípios.
1) A promoção da inclusão social, estimulando a auto-organização
comunitária através do lazer esportivo; 2) O desenvolvimento de uma
prática esportiva comunitária de maneira lúdica, democrática e participativa;
3) A democratização e revitalização dos campos de Várzea de Recife.
(LOBO; SOBRAL e OLIVEIRA, 2004, p. 2)
A Constituição de 1988 inseriu pela primeira vez o lazer como um direito social
(Capítulo II, artigo 6°). Apesar desse avanço considerável, o lazer ainda é vinculado
fortemente às atividades esportivas, o que, portanto, restringe o conceito de lazer (Capítulo III,
Art. 217, § 3º). O esporte em nossa sociedade é concebido como uma atividade racional,
voltada para o rendimento e para a competição, centrado no modelo piramidal, onde os
"melhores" vencem os "piores". Nesse sentido, a proposta dos Círculos Populares de Esporte e
Lazer visa romper com esta concepção de esporte e também de lazer.
O Futebol Participativo (daqui em diante FP) vincula-se a uma proposta de lazer
que crítica as concepções sobre o ―bomlazer, voltado para a ―boa‖ formação moral, sendo
capaz de disciplinar e compensar as tensões do mundo do moderno, principalmente a do
mundo do trabalho, o ―bomlazer tem sempre uma fuão, seja compensatória, moralista, ou
utilitária (DUMAZEDIER, 1976). Também realiza a crítica da mercantilização do lazer, que
reduzido à lógica da mercadoria transforma-se em uma atividade controladora e alienante.
58
Registro aqui meus sinceros agradecimentos a todos que fazem a Diretoria de Esportes Amador pela recepção
amistosa e por colocarem-se à disposição para a pesquisa.
87
Mesmo realizando a crítica, o FP parece não escapar da visão moralista e utilitarista do ―bom‖
lazer: ―O problema então é: organizar possibilidades de lazer que combinem a liberdade de
escolha, a ludicidade e o prazer com uma direção político-pedagógica de crítica e
transformação da realidade‖ (SILVA e SILVA, 2004, p.22).
O FP teoricamente deve se constituir em um campeonato de futebol amador que
contribui para a formação crítica das pessoas, incentivando a participação da população. Não é
objetivo desse trabalho fazer uma apreciação ou estudo aprofundado sobre as poticas de
esportes e lazer desenvolvidas pela Prefeitura da Cidade do Recife (PCR), pom apresentarei
a partir das minhas observações, como se desenvolveu o Campeonato Futebol Participativo,
buscando centrar minhas observações e reflexões para a discussão das regras do regulamento
do FP.
Há uma ambigüidade presente no futebol amador. Por um lado, ele busca se
afirmar como espaço lúdico, do ―não-trabalho‖, da ―brincadeira‖, mesmo como lembra
Guedes (1998), que esta seja uma ―brincadeira séria‖, afastando-se completamente do ideal do
futebol profissional. Por outro, a obrigatoriedade do uso de material esportivo ou da
constituição legal de um time, com diretoria, sede e registro em cartório, indica uma
aproximação com o futebol profissional, percebido como espaço do trabalho, da organização
racional e do lucro. Assim, o futebol amador estaria constantemente perpassado por essa
ambiidade em relação ao futebol profissional. Mesmo o sendo objetivo desta pesquisa
aprofundar a análise sobre os nomes dos times, penso que esta questão nos ajuda a perceber
esse tensionamento entre as duas lógicas: amadora e profissional.
2.5 Os Times Amadores de Recife no Futebol Participativo
O campeonato Futebol Participativo envolve quatro categorias: aberto, sub-15,
veteranos e feminino. O campeonato inicia-se pelo aberto que é o que envolve o maior número
88
de equipes; segundo a prefeitura, reuniu 400 equipes em 2005. A prefeitura não dispõe de um
sistema informatizado dos times, algo que tive de fazer para possuir alguns dados das equipes.
As um levantamento inicial, onde tive acesso às fichas de inscrão das equipes, consegui os
dados de 339 equipes: nesta ficha constavam nome da equipe, data da fundação, se possui ou
o sede própria, nome do representante, campo de preferência para jogo, cores do uniforme,
endereço e telefone.
Apenas 255 times informaram a data de fundação ou ao menos o ano em que o
time foi formado. O time mais antigo foi fundado em 1947, seguido de dois times de 1948, e o
quarto mais antigo de 1958. Depois disso temos três times na década 1960 e sete times na
década de 1970. Nos anos 1980 esse número sobe para 27 times, nos anos 1990 para 76 e a
partir do ano 2000 para 108 times.
Os nomes escolhidos para os times amadores são predominantemente nomes de
clubes conhecidos da primeira e segunda divisão, predominando nome dos clubes do Rio de
Janeiro e São Paulo, como: Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Santos, Flamengo, Vasco e
Fluminense. Há também os clubes do exterior, como Milan, Real Madrid e Barcelona. Apenas
um time de futebol amador adotou o nome de um time local: Santa Cruz. É possível que isto
ocorra devido a forte rivalidade entre os três times locais, o que, por exemplo, impediria um
torcedor do Sport jogar sua pelada pelo time amador do Santa Cruz.
Apenas quatro times tinham nomes de empresas, provavelmente por patronio,
que um deles, patrocinado por uma pequena empresa de pescados, tinha três funcionários
participando do time. também duas associações especificas: ASCEMA - Associação dos
Servidores Civis do Exército, Marinha e Aeronáutica e ASSPE Associação de Surdos de
Pernambuco.
Encontrei 25 nomes jocosos, o que pode indicar uma adesão ao futebol amador
como uma brincadeira, aproximando-o mais do jogo como atividade lúdica do que do esporte,
89
como atividade racional e laboriosa, havendo uma clara opção pela brincadeira, não havendo
nenhuma aspiração de aproximá-lo com o futebol profissional. Parece ser este o caso quando
os times optam por serem: Grêmio Esportivo Vira Copos, Gut-Gut, Barriga na Areia, Cata
Ponche, Brincadeira Futebol Clube, Hidro Sociedade Esportiva, SPA, Galáticos, Dinamite,
Detonaltas, 11 Velozes, Terminal, Fora de Forma, Menudos, Ell Ninho, Bate Bola,
Arrumadinho, dentre outros.
Logo, não é casual que jogar pelada seja sinônimo de brincar. Não é
também casual que os nomes escolhidos para tais times tenham, quase
sempre, um grande toque de auto-ironia (...) transformar-se num peladeiro
significa abdicar das possibilidades de profissionalização atras do futebol,
ou seja, abrir mão do seu lado sério, e investir na dimensão lúdica da
atividade (GUEDES, 1998, p. 85 grifos no original).
Os nomes do time indicam uma aproximação do futebol amador ao jogo, embora
seja possível que um desses times que optam por esses nomes sejam organizados também sob
o modelo do futebol profissional
59
. No momento, a hipótese mais provável é que a adoção de
nomes jocosos para os times revela uma tendência para a prática do futebol amador como
espaço para a vivência lúdica do jogo,
No jogo em geral prevalece o caráter do riso, do cômico, da zombaria,
enfim, da brincadeira (...) No jogo, a zombaria é intrínseca. As provocações,
as "palhaçadas", induzem os participantes a uma atuação cômica e
engraçada. Talvez o cerne do "espírito dico" esteja aí no humor"
(BRUHNS, 1993, p. 48-49).
2.6 Os times e o poder Executivo: conflitos e participação popular
A cidade de Recife está dividida em seis Regiões Potico Administrativas RPAs.
O campeonato é municipal, mas sua organização e desenvolvimento ocorrem inicialmente
pelas RPAs. Acompanhei as reuniões em todas as RPA, bem como a plenária para discussão e
aprovação do regulamento da competição. A equipe que acompanha diretamente as RPA é
formada por três coordenadores, todos formados em educação sica, responsáveis pelo
59
O time Fora de Forma é exemplo disso, embora ele tenha sido fundado apenas por ―barrigudinhos‖, hoje
disputa apenas campeonatos e torneios e seus diretores ambicionam profissionalizá-lo.
90
acompanhamento de duas RPA cada um. Cada RPA tem em sua equipe com dois monitores,
normalmente jovens que residem na própria RPA. Os coordenadores estão presentes na
maioria das reuniões, embora estejam ausentes de outras, principalmente quando são reuniões
que ocorrem somente para a entrega e devolução de material (como as fichas de inscrição de
jogadores), neste caso os monitores acompanham estas reuniões.
Algumas reuniões são extremamente rápidas, em torno de 15 a 20 minutos, apenas
para informes e distribuição de fichas de inscrição tanto de times quanto de atletas, ou então
apenas para a devolução destas. Quando apenas os monitores estão presentes, percebe-se, em
geral, que estes não possuem condições para dirigir ou coordenar determinadas discussões,
seja por serem muito jovens ou por não terem uma formação voltada para este tipo de
trabalho. Eles em geral estão lidando com um público formado por homens mais velhos em
apenas uma reunião que participei havia uma mulher como representante de time
aparentando em média de 30 a 45 anos. Alguns destes com alguma experiência em
movimentos comunitários.
Outras reuniões têm uma duração entre uma e duas horas e meia. Algumas destas
reuniões foram conflituosas devido a divergências em relação às informações contidas na
ficha de inscrição dos atletas. Segundo os representantes dos times, a ficha demandava muitas
informações, o que dificultava o seu preenchimento. Também questionavam a solicitação de
duas fotos de cada jogador. A reclamação da ficha de inscrição do atleta ocorreu em todas as
RPAs, mas em duas o protesto foi mais incisivo. Além das reclamações ditas em blico,
alguns representantes que o falavam durante a reunião, me procuravam após o término das
reuniões e teciam as suas críticas:
Ao final da reunião dois representantes me procuraram e reclamaram da
ficha de atletas. Um deles me perguntou: a senhora acha isso aqui certo?‖
Disse apontando para ficha. Em geral colocaram que a ficha tinha exigência
demais: Renda: sem necessidade; escolaridade, até raça, pra que isso tudo?
Vão é preencher de qualquer jeito‖. Um homem de aproximadamente 40
anos, bem vestido, que trabalha num jornal, também veio reclamar: ―O
91
pessoal vai é inventar, muitos o analfabetos‖ (Diário de campo,
20/05/2005).
A discussão em torno da ficha evidenciou algumas divergências entre os
representantes dos times e os representantes da prefeitura. O conflito maior foi em torno da
exigência do número do Cadastro de Pessoa Física (CPF) na ficha de inscrição, a maioria dos
representantes de times questionou afirmando que muitos jogadores não iriam disponibilizar o
número do seu CPF por este ser um documento muito utilizado em fraudes, e citaram os
exemplos das empresas fantasmas criados a partir de CPFs roubados.
Por outro lado, os representantes da prefeitura afirmavam que este era o único
documento que impedia que os jogadores se inscrevessem em mais de um time, algo proibido
e bastante criticado no campeonato do ano anterior. Também argumentavam que o controle
sobre o documento seria uma responsabilidade da prefeitura. Houve momentos de discussões
acirradas com gritos de ambos os lados. Em algumas reuniões, a habilidade do coordenador
em lidar com posições divergentes possibilitou o diálogo com todos. Porém, em outros os
conflitos viam à tona, nestes casos era questionado o caráter democrático do campeonato; os
representantes da prefeitura em algumas RPAs afirmavam: ―se não tiver CPF não joga‖ ou
então ―só joga com CPF, a ordem vem de cima, eu só obedeço". Os representantes do time
retrucavam: "O problema é que a gente tá aceitando muita coisa da prefeitura calado", "Num é
participativo, então a gente pode mudar ou não pode, como é?"
Os questionamentos dos representantes e os conflitos gerados pelas divergências
eram compreendidos de duas formas pelos representantes da DEA. Por um lado, havia uma
insatisfação com os "problemas" criados pelos representantes, pois estes não percebiam que
"estamos trabalhando pra eles". Por outro, avaliavam que os debates acirrados eram fruto de
um processo onde os representantes de times percebiam que poderiam efetivamente participar
do processo de construção do campeonato, e assim qualificavam o discurso dos representantes
de times. uma ambigüidade na forma como os problemas e conflitos são percebidos e
92
resolvidos. A princípio penso em duas hipóteses para estas contradições - isto pode ser fruto
de diferentes concepções dos que estão à frente do PFP, como também pode evidenciar uma
discrepância na formação destes representantes da DEA. Em qualquer um dos casos ou nos
dois ao mesmo tempo, o objetivo de inserir uma potica pedagógica voltada para a formação
crítica e participação popular é emperrada por essas contradições.
Por outro lado, a participação dos times de futebol restringe-se quase sempre aos
representantes dos times, em poucas reuniões observei a presença de jogadores, apenas
quando estes são os responsáveis mais diretos pela organização do time
60
. Mesmo a
participação nas reuniões sendo incentivada pelos coordenadores, na maioria destas apenas
uma pequena parcela dos presentes expressava suas opiniões
61
. Ainda assim, devido à grande
quantidade de times no campeonato, em várias reuniões as salas ficavam lotadas, e
dependendo da infra-estrutura do local alguns ficavam em ou sentados no chão. A maioria
das reuniões ocorria em prédios públicos, como escolas e centros sociais, outras vezes
aconteciam em sedes de conselhos comunitários de bairros.
2.7 Regras, Regulamentos e punições: amadores ou profissionais?
Um dos momentos em que houve maior participação dos representantes foi para a
discussão e votação do regulamento do campeonato. As discussões e votações ocorreram
primeiramente por RPA e depois houve uma plenária geral com delegados eleitos (para cada
dez times, um delegado) em suas respectivas RPAs para a discussão da unificação do
regulamento. Nas RPAs e também na plenária geral os pontos mais polêmicos foram: o
número mínimo de jogadores para uma equipe se inscrever; a punição ao jogador que se
60
Por exemplo, em uma reunião da RPA 4, estavam presentes três jogadores de um time formado por
funcionários de uma empresa; os três eram jogadores e representantes.
61
Percebia que estes que participavam mais intensamente nas reuniões em sua maioria eram lideranças
comunirias ou pessoas que tinham experiências em movimentos sociais ou ainda em partidos políticos.
93
inscrevesse em mais de uma equipe; idade nima dos atletas; punição para o time que não
levasse a bola no dia de jogo; e a exigência do CPF.
A discussão do regulamento revelou uma ambigüidade presente no campeonato,
que por um lado visa fortalecer o futebol amador como prática lúdica, e por outro, a
aproximação com o futebol profissional evidenciada no tipo de regulamento aprovado e
também na determinação de seguir as regras do Football Association, havendo por parte da
DEA uma insistência em diferenciar regras do futebol e regulamento de competões. O
regulamento pode ser alterado desde que não altere as regras do futebol, pois, segundo os
representantes da DEA, se houver alterações nas regras corre-se o risco de se descaracterizar o
futebol. Isto também foi questionado por um dos representantes presentes na plenária geral:
"Se não pode mudar as regras, porque nós estamos aqui?"
As discussões e debates em torno da ficha de inscrição do atleta e sobre o
regulamento e as regras do FP trazem à tona duas questões importantes que merecem uma
reflexão mais acurada. Em primeiro lugar, me refiro às disputas entre os representantes da
DEA e dos times, pois embora o FP seja concebido como uma potica de esporte e lazer que
estimule a participação democrática dos representantes dos times, estes dois grupos
representam interesses divergentes e muitas vezes conflitantes. Podemos pensar no campo
esportivo contendo diferentes grupos que disputam determinados capitais simbólicos,
esportivos e ecomicos, no caso específico, um sub-campo que englobaria o futebol amador,
com seus diferentes grupos: representantes do poder público municipal, representantes dos
times, jogadores e torcedores. A distribuição de poder entre os diversos grupos é nitidamente
desigual, os representantes da prefeitura possuem o poder econômico de quem financia uma
política pública de esporte e lazer, determinando, em último caso, as decisões do campeonato.
Os representantes dos times buscam aprovar um regulamento que possibilite
organizar seus times dentro dos limites impostos pelo caráter amador dos seus times e,
94
portanto, de suas limitações financeiras e instrumentais. Os representantes da DEA, por outro
lado, buscam um modelo de futebol amador mais próximo do futebol profissional, o que
contrasta com sua proposta política de esporte e lazer. Nesse sentido, insistem para que as
regras do Football Association devam ser seguidas sem alterações, utilizando para convencer
os representantes dos times um poder simlico que estes não possuem: na época toda a
equipe da DEA era formada por árbitros ou ex-árbitros da Federação Pernambucana de
Futebol.
Em segundo lugar, emerge uma reflexão sobre as regras. As discussões sobre
regras é um tema recorrente no futebol profissional, bem como é um tema clássico na
sociologia, estando presente nos autores clássicos e contemporâneos do pensamento social. O
grande problema é que, em geral, as conceituações sobre regras situam-se em duas
perspectivas que não apreendem as dinâmicas das regras, restringindo seu alcance heurístico:
por um lado, temos uma visão das regras como algo exterior ao indivíduo, guiando e
conformando suas ações aprioristicamente e, por outro, temos um visão formalista das regras
no esporte. O primeiro refere-se à idéia que as regras e as normas, que são incorporadas nos
processos de socialização guiam às ações dos indivíduos.
O segundo equívoco refere-se às compreensões formais das regras nos esportes e
jogos. A maioria das abordagens que utilizam os jogos como dispositivos analíticos, como a
teoria dos jogos, parte de uma concepção acerca deles, utilizando o conceito de regras apenas
do seu ponto de vista formal (KEW, 1992). É claro que qualquer esporte é definido a partir de
suas regras, porém nenhuma regra de esporte ou de jogo diz como o atleta deve jogar, ela
apenas proíbe determinadas ações e orienta outras, mas no desenrolar dos jogos é o acordo
tácito que se tem entre praticantes de como se deve jogar determinado esporte ou jogo que
orienta as ações dos praticantes.
According to formalism, game rules govern game procedures by
determining the limits on the ways of achieving the deliberately contrived
95
ends of games. Players enter into a contract and must submit to authoritative
decisions involving the rules, an authority which has an aura of permanency
in games such as soccer and rugby union where the rules are termed ‘laws‘.
Hence game-derivative notions such as ‘playing‘, ‘winning‘, ‘fouling‘,
‘cheating‘, ‘scoring‘, get their meaning from the formal rules (Kew,
1992)
62
.
Dentre os autores que rompem com esta concepção estreita das regras nos esportes
está Elias (1996). Para ele, o estabelecimento das regras no esporte caracteriza o esporte
moderno, regulamentando-o. Mas a visão de Elias vai muito além do formalismo, pois as
regras estão situadas para além dos regulamentos e regras oficiais de um esporte: as regras
evidenciam-se também na conduta dos jogadores. Outro elemento fundamental é o caráter
elástico de toda e qualquer regra, mesmo porque para Elias uma das funções do esporte é a
manutenção de um equilíbrio entre tensão e prazer, e nisso as regras também jogam um papel
determinante, pois a regra deve ser flexível e rígida ao mesmo tempo para manter esse
equilíbrio; quando esse equilíbrio é quebrado as regras precisam ser modificadas, caso
contrário o interesse pelo esporte vai recrudescer.
Em 1925, o Comitê da Associação de Futebol que decidiu alterar a regra de
fora jogo estava, decerto, consciente de que, submetido a velhas regras, o
―espírito‖ do jogo enfraquecera, tal como noutras ocasiões as pessoas
tinham notado que o jogo começara a perder-se entre a desordem e a
monotonia (Elias, 1996, p. 289)
"Se não pode mudar as regras, por que nós estamos aqui?", esta pergunta
formulada por um dos delegados presentes à plenária final de votação evidencia ao seu modo
todo esse debate. Provavelmente, o autor da pergunta questiona o caráter participativo do
campeonato, mas existem outras queses que podemos refletir a partir dessa indagação.
Primeiro, a possibilidade de questionar o caráter arbitrário das regras e dos regulamentos,
62
Segundo o formalismo, as regras de jogos regulam procedimentos ao determinar limites nos modos de se
chegar a finais de jogos deliberadamente elaborados. Os jogadores fazem um contrato e devem submeter-se a
decisões autoririas que implicam a aceitação de regras, uma autoridade que tem uma aura da permanência em
jogos tais como o que resulta da união de rúgbi e futebol onde as regras são denominadas 'leis'. As noções daí
derivadas como 'jogo', 'vitória', 'falta', 'trapaça', 'marcação', adquirem sua significação das regras formais.
(tradução nossa).
96
assim não cabe ao agente social apenas o cumprimento das regras, mas também elaborar e
modificar as regras.
Em segundo lugar, questiona-se o caráter do campeonato. Os times irão participar
de um campeonato não oficial, mas que reivindica as regras oficiais do esporte profissional.
Como podemos caracterizar o futebol amador? Jogo? Esporte? As duas dimensões? O esporte
moderno tem como características, entre outras: a universalização de um conjunto de regras, a
racionalização, a profissionalização e a espetacularização. O jogo situa-se entre o esporte e a
brincadeira, não é tão livre quanto este último nem tão gido como o primeiro, não é uma
atividade profissional, embora alguns times possam pagar a alguns jogadores, porém para a
maioria dos praticantes é uma forma de exercício da ludicidade, pois o seu prazer está no jogo
em si, não se situando além dos seus interesses individuais.
As regras de um esporte distinguem sua prática do profissionalismo e do
amadorismo. É comum conformar as regras do futebol ao espaço destinado à sua prática, por
exemplo, normalmente nas peladas não existe a regra do fora de jogo, conhecida como ―lei do
impedimento‖, pois se um dos objetivos dessa regra é diminuir o campo de jogo, em geral as
peladas ocorrem em campos diminutos, não sendo possível a sua utilização. Se todas as 17
regras do futebol fossem exigidas no futebol amador, isto inviabilizaria a sua prática a
começar pela regra 1, sobre as dimensões oficiais do campo
63
. Penso que a principal
característica do futebol é a proibição do uso dos membros superiores (excetuando o goleiro),
esta regra caracteriza determinado jogo como futebol, as demais 16 regras podem ser
adaptadas sem o perigo de descaracterizar aquele jogo como futebol.
Se pensarmos nas 17 regras do futebol, poderíamos agrupá-las em dois grupos:
regras conformativas e regras de ação. As regras de ação referem-se à ação dos protagonistas
do futebol, ou seja, aquelas que proíbem ou orientam a ação dos jogadores em campo. As
63
Ver Anexo 01, ―Regras do Jogo de Futebol 2008/2009‖, publicação da FIFA, traduzida para o português e
disponível no site da CBF: http://www.cbf.com.br/regras/livroderegras_2008_2009_v2.pdf
97
regras conformativas, embora influenciem a ação dos jogadores, isto ocorre de maneira
indireta, como acontece por exemplo, na regra sobre as dimensões do campo ou do número de
árbitros. O importante aqui é frisar o caráter elástico das regras num sentido elisiano, pois as
regras são elásticas não apenas porque visam manter um equilíbrio entre tensão e emoção, mas
porque nenhuma delas diz comojogar, apenas informam o que não é possível fazer, o que
torna o campo de possibilidades de ação dos jogadores imenso. Em termos etnometodológicos
poderíamos dizer o que sempre uma grande ―margem de incompletude em toda e qualquer
regra do jogo" (GARFINKEL, 1963).
O enfoque figuracional é fundamental para apreendermos a dinâmica dos jogos do
futebol amador e para percebemos a elasticidade da regra e como os jogadores utilizam essa
características das regras. A movimentação interdependente de dois times e o posicionamento
individual e em equipe não é algo determinado pelo conjunto das regras oficiais do futebol,
mas orientam as ações dos jogadores de dois times, embora não digam ―como fazer‖.
2.8 Os jogos do Ájax e a dinâmica figuracional
Acompanhei os jogos do Ájax durante o FP de 2005. Do primeiro jogo realizado
em 03/09 até o ultimo em 08/12 estive presente na maioria deles, exceção apenas para o jogo
que eliminou o time durante as semifinais do campeonato pois estava me recuperando de
uma cirurgia. Todos eles foram realizados no campo do Bueio, um dos melhores campos
para a prática do futebol amador em Recife e de propriedade da prefeitura. Os 32 times da
98
RPA 4.1
64
foram divididos em oito grupos, em cada grupo dois se classificavam para a fase
seguinte, chamada de oitavas de final, sendo oito jogos eliminatórios. Os oito classificados
jogaram as quartas-de-final, os quatro times sobreviventes jogaram a semifinal e finalmente
dois fizeram a grande final. Os campeões de cada RPA jogariam a fase final do campeonato
até restarem apenas duas equipes
65
.
O campo do Bueirão recebeu a maioria dos jogos, 42 jogos de um total de 48. É um
dos poucos campos de rzea que conta com uma boa estrutura: dois vestiários, arquibancada,
iluminação e alambrado. As dimensões são próximas de um campo oficial, mas, como todos
os campos que visitei em Recife, não têm grama, o piso é de terra com muita areia, na maioria
das disputas de bola forma-se uma nuvem de poeira; em um desses momentos ouvi um
torcedor gritar: aqui é o pueirão e não o Bueirão!‖.
Embora seja atualmente o campeonato mais longo e com maior número de equipes
realizado em Recife, metade dos participantes jogou apenas duas partidas, na RPA 4.1 das 32
equipes, 16 foram eliminadas jogando apenas três jogos. Assim, embora exista uma
possibilidade de recuperação, caso o time perca a primeira partida, os jogos mesmo na fase
classificatória são marcados pela tensão, pois perder pode significar estar fora de um dos
campeonatos de futebol amador mais importante da cidade. O Ájax, tal como outros times
amadores de Recife, não realiza treinamento; os amistosos e os jogos de campeonatos
funcionam como treino, pois a maioria dos jogadores está no mercado do trabalho, e, dada as
diferenciações de profissões típicas das sociedades industrializadas, seria impossível reunir em
mesmo dia e horário todos os jogadores para alguma atividade de treinamento. Assim, jogo é
treino e treino é jogo. O Ájax, por ter em sua equipe dois jogadores profissionais que eram
titulares da equipe, ambos jogando na segunda divisão do campeonato pernambucano (como
64
Essa RPA foi a única a ser dividida, pois era a maior em número de equipes: 82 times, sendo 50 na RPA 4 e 32
na RPA 4.1.
65
Conforme Anexo II, Regulamento do Futebol Participativo 2005.
99
iremos ver no item 2.13) convivia com a possibilidade de não contar com seus melhores
atletas, pois sua presença dependia do calendário de um campeonato oficial.
As regras de ão do FP são as mesmas do Football Association, cabendo a um
árbitro e dois árbitros assistentes zelar pela aplicação das regras; estes são todos membros de
uma associação de árbitros do futebol amador da cidade Recife, sendo contratados pela DEA
para arbitrar os jogos do FP. As punições também seguem o mesmo modelo do futebol
profissional, por exemplo, três cartões amarelos suspendem um jogador por uma partida e o
cartão vermelho uma suspensão automática (art. 31°)
66
, mas neste último caso o jogador
também será julgado por uma comissão disciplinar.
A preparação‖ para o jogo é uma responsabilidade dos diretores dos times, cabe a
eles providenciar o apenas o material dos atletas, pois o uniforme da equipe deverá atender
as exigências das regras oficiais‖ (art. 13°). Mas essa preocupação é algo menor diante da
responsabilidade de assegurar a presença de todos, entrando em contato por telefone e
pessoalmente assegurando o comprometimento de todos os jogadores para estarem presentes
uma hora antes do início da partida, mas para isso deve mobilizar os torcedores e para que
contribuam financeiramente com ―aquele‖ jogo, pois os jogadores precisam receber o
pagamento após os jogos, no caso do Ájax, a confraternização após os jogos, a ―resenha‖
regada à cerveja, refrigerante e petiscos, além do pagamento das passagens de ônibus dos
atletas.
O envolvimento da torcida não fica restrito à ajuda financeira. Os torcedores do
Ájax estiveram presentes em todos os jogos, aumentando em número nos jogos eliminatórios
e, claro, na grande final da RPA. Veremos no capítulo 4, que o envolvimento da torcida é
grande, seja dos torcedores comuns, seja dos torcedores da torcida organizada ―Mancha
66
Ver no anexo II o Regulamento completo do Futebol Participativo de 2005.
100
Vermelha‖, o apoio em forma de gritos de incentivos, banda, fogos de artifício, gritos de
guerra e bandeiras contribuíam para aumentar a excitação em cada jogo.
Os jogadores chegam bem antes do início da partida, embora observei times que
precisaram colocar um diretor na equipe para não perderem por W.O. e, assim, serem
eliminados do campeonato. A maioria das equipes inscrevem um, dois ou mesmo três
diretores como jogadores, para evitarem a perda dos pontos, visto que assim como no futebol
profissional exige-se um nimo de 7 jogadores para iniciar uma partida, assim na ausência de
alguns jogadores, os diretores entram em campo. Assisti, em dois jogos do FP, a presença de
diretores no time, era perceptível a diferença entre eles e os demais jogadores, seja pelo
despreparo na condição física, em um deles evidenciada por uma barriga protuberante, seja
pela visível falta de habilidade técnica se comparada aos demais jogadores do time. Os
jogadores que comparecem vão aos poucos formando pequenos grupos seja para assistirem
alguma partida que esteja em andamento seja pra conversar com amigos, vizinhos e colegas.
Os diretores do Ájax chegam com bastante antecedência, em torno de uma hora
antes do horário do jogo, principalmente Duda que é o encarregado dos uniformes; quando
todos estão presentes dirigem-se ao vestiário pra vestirem o uniforme e também para
receberem as orientações do técnico‖. Pedi a um dos diretores do Ájax pra filmar um pouco
do vestiário; nesse pequeno deo, alguns jogadores estão com o uniforme completo,
principalmente os titulares, e uns quatro ou cinco ainda estão calçando as meias e chuteiras e
estão sem camisa. Os jogadores aparecem brincando entre eles, mas as brincadeiras cessam na
hora da escalação do time e das orientações finais.
As a saída dos vestiários os jogadores formam uma pequena fila para assinarem
a súmula do jogo. As formalidades mostram que irá acontecer uma importante partida de
futebol, não importando para os envolvidos se eles não são profissionais, mas todo o ritual no
vestiário, a assinatura da súmula e as orações antes do início da partida, quando os jogadores
101
formam um círculo fechado e gritam seu grito de guerra revela a todos que não é apenas um
jogo amistoso ou uma pelada: durante os 70 minutos todos os jogadores estarão absorvidos e
completamente comprometidos com aquele jogo.
Os times entram em campo com uma formação semelhante aos sistemas de jogo
conhecidos, os chamados popularmente de ―esquemas táticos‖. No caso do Ájax, nos jogos em
que estive, jogava com quatro defensores, quatro meio-campistas e dois atacantes, ou seja, um
dos sistemas de jogo mais utilizado no futebol profissional brasileiro: o 4-4-2 (FIGURA 1). É
importante salientar que esses sistemas de jogos são modelos que não abarcam a dinâmica dos
jogos, mesmo quando são inseridas setas que apontam a movimentação dos jogadores em
campo, esse é um modelo pouco útil para apreendermos a dinâmica de uma partida, o
apenas porque é impossível prever todos os possíveis deslocamentos, mas principalmente
porque eles excluem um elemento fundamental no modelo: a equipe adversária. Um modelo
gráfico de um sistema de jogo, somente é útil se encarado como disposição inicial dos
jogadores em campo, esta disposição será a base da qual partem os jogadores, mas ela será
modificada pela performance de cada jogador e de cada equipe.
Os sistemas de jogo são úteis também para visualizarmos a especialização de cada
jogador em campo: goleiro, zagueiros (esquerdo, direito, de sobra e bero), laterais (esquerdo
e direito), meio-campistas (volantes e armadores) e atacantes (centroavante, segundo
atacante). A dinâmica de um jogo transforma as posições em campo, aliás, no futebol
―moderno‖ exige-se que os jogadores sejam especialistas na sua função, mas que também
dominem técnicas de outra função - o centroavante deve saber realizar uma marcação e o
volante ter técnica para subir ao ataque -, entretanto, arrisco-me a dizer que no futebol amador,
ao contrário das representações que existem, os jogadores cumprem suas funções em campo,
obedecendo a sua posição no modelo gráfico do sistema de jogo mais que os jogadores
profissionais.
102
À primeira vista a hipótese acima parece despropositada, mas antes de concluir
meu argumento é necessário destacar algumas questões pertinentes aos jogos do futebol
amador. A primeira questão se refere à diferenciação entre os times, tal qual o futebol eles se
diferenciam pelo poder aquisitivo, pela possibilidade de ―contratar‖ jogadores profissionais ou
ex-profissionais, pela quantidade de jogadores que efetivamente compõem a equipe, o que
leva a uma diferenciação da qualidade técnica. Alguns times terão, portanto, uma melhor
disposição em campo e uma efetiva diferenciação das funções dos jogadores em campo, mas
mesmo os que têm um donio maior desses capitais, ainda estão muito distantes do futebol
profissional. Assim, a segunda questão importante como os jogadores amadores não possuem
preparação física e técnica específica para a prática do futebol, seus capitais futebolísticos
(DAMO, 2007) são efetivamente limitados e, para a maioria, circunscrito ao aprendizado
informal.
Os jogadores profissionais, que recebem cerca de 5000 horas de preparação física
e técnica para adquirem os capitais futebolísticos indispensáveis para uma atuação profissional
(DAMO, op. cit.), inclusive o donio de outras funções que não as de sua posição, possuem
maior condição para se deslocarem em campo. Assim, tenho como hipótese que, quanto maior
os capitais futebolísticos, maior a liberdade dos jogadores, e quanto menor capital
futebostico, mais eles obedecem aos gráficos dos sistemas de jogo, pois efetivamente não
possuem preparação física e técnica para assumir outras funções; nesse sentido é possível
visualizar melhor um modelo gráfico nos campos de várzea.
103
Figura 1 Exemplo de esquema tático 4-4-2 e movimentação em campo.
104
Porém, isso não significa que o jogo na várzea não seja dinâmico. Como em todos
os jogos existe uma dinâmica figuracional, no caso do futebol, essa dinâmica é muito grande
principalmente pela quantidade de jogadores em campo (22), uma relação de
interdependência entre os 11 jogadores de uma equipe, entre os 11 jogadores da equipe
adversária e entre as equipes adversárias. A movimentação de um jogador se pauta pela
movimentação de seus companheiros de equipe, o deslocamento nunca é individual; desloca-
se esperando o deslocamento futuro do companheiro de equipe e também dos adversários.
Alguns momentos dos jogos do Ájax assemelham-se a uma dança, com a diferença que não há
um ensaio prévio, avaos e recuos quase sincronizados.
Os jogadores de defesa do Ájax se utilizam de um espaço menor em campo, poucas
vezes ultrapassam a faixa intermediária de seu campo, à exceção dos laterais que ultrapassam
o seu campo e avançam no campo adversário. O conceito de figuração de Elias esboça essa
dinâmica. Segundo ele, os jogadores se agrupam e reagrupam de forma fixa e flexível ao
mesmo tempo. Fixa pelas regras que governam o jogo e flexível pelas inúmeras combinações
possíveis dessas mesmas regras. Os jogadores são interdependentes entre si, seja entre os
jogadores da mesma equipe, seja em relação aos jogadores adversários. Juntos formam uma
única figuração social e se mantêm num equilíbrio constante entre a tensão e a cooperação. Os
jogos dependem, como bem frisa Elias, da dinâmica entre a tensão e a cooperação e também
entre a rigidez e a flexibilidade das regras.
A regra é flexível não apenas nas peladas entre amigos, mas toda regra tem um
caráter flexível, pois ela apenas diz o que o jogador o pode fazer em suas ações, mas em
nenhum momento ela diz ―como se deve agir em campo. No futebol amador, como no
futebol profissional, os jogadores vão aprendendo a jogar, aprendem a agir segundo as regras,
mas também para além das regras. Algumas ações são interditadas não pelas regras do football
association, mas pelas regras de sociabilidade definidas entre os grupos; não se trata de regras
105
codificadas, mas de regras incorporadas que capacitam o ator social graças a seu habitus, no
caso específico ao habitus de jogador do futebol amador permeado por códigos e significados
acessível somente aos que possuem o sentido do jogo.
2.9 A Copa Integração em Aracatiaçu
A Copa Integração (CI) é um campeonato de times amadores, pois em Sobral nos
distritos e também na sede da cidade os envolvidos nessa modalidade não utilizam o termo
futebol de várzea: eles utilizam a denominação futebol amador. Enquanto o FP é um
campeonato criado e organizado pelo poder público municipal de Recife, através da DEA, a
CI é uma iniciativa individual, conduzida por dois jovens sobralenses, um residente em Sobral
e outro em Aracatiaçu.
Os dois organizam o campeonato, elaboram um pré-regulamento‖, redigem os
convites e os distribuem entre os representantes dos times e nas rádios locais, buscam
financiamento para pagar premiação e gastos com arbitragem dentre outras atividades
exigidas para a organização de um campeonato. Entretanto, a tarefa maior de organização é de
responsabilidade de Márcio Melo, que também acumula a função de árbitro.
A CI não é uma atividade de um programa social voltado para o esporte e lazer,
mas uma iniciativa localizada e individual. Os organizadores arrecadam recursos para a sua
realização em quatro fontes distintas: prefeitura municipal, iniciativa privada, times de futebol
amador e através de uma relação clientelista com um membro do legislativo municipal. Dos
R$ 2.631,00 gastos com a realização da II CI, R$ 1.700,00 foram recursos financeiros
disponibilizados pela Secretaria de Esportes, ou seja, 64,6% do total das despesas. A
participação do poder público municipal restringe-se apenas ao financiamento da atividade
proposta, não interferindo na organização da CI, nem tampouco buscando integrá-la a uma
proposta de política pública. Por um lado, a prefeitura deixa os organizadores agirem com
106
autonomia, por outro se exime do seu papel de executor de políticas sociais na área do esporte
e lazer. Embora Márcio Melo destaque a falta de apoio ao futebol amador, ele não estabelece
uma relação reivindicativa com a Secretaria Especial de Esportes de Sobral, deixando de
inserir o esporte amador no campo dos direitos.
Os organizadores recebem uma importante ajuda financeira sem ela
provavelmente seria impossível realizar a CI; em troca, retribuem convidando o prefeito para
participar da cerimônia de abertura e divulgando o apoio dessa instituição para a realização do
campeonato. Em 2006, a final da II CI sofreu dois adiamentos para que o prefeito estivesse
presente, mesmo assim na terceira tentativa a final foi realizada sem a presença dele. Para
Márcio, a presença do prefeito seria importante inclusive para assegurar a ajuda‖ para o
campeonato do ano seguinte, além de valorizar o seu trabalho de organizador do evento.
A relação com um vereador municipal expressa melhor o clientelismo ainda
presente nas relações entre cidadãos e poderes públicos. Segundo Márcio, Zezão - vereador de
Sobral - é o representante do legislativo que ―apóia‖ o esporte amador em Aracatiaçu,
contribuindo financeiramente com a CI. O discurso de Márcio revela como ocorre essa
relação:
Eu tenho uma ligação política com o vereador, votei nele sem nenhum
beneficio, que eu sempre admirei os trabalhos dele. Chegou um ponto que ele
disse: ―Rapaz, eu vou ajudar a tua competão‖ Aí eu: ―Pronto. Vai me
ajudar‖. ―Vai me ajudar?‖, ―Vou‖, ―Então, beleza. Vou votar em ti‖. Ai
pronto criou-se esse vínculo. Tudo que eu vou fazer, às vezes, eu nem
comunico a ele, de repente ele ouve falar. Liga pra mim: Mas rapaz. Ta
precisando de que? Um troféu? Medalha? Uma bola? Vem pegar tal dia‖. Eu
vou. Que num outro dia eu fiz um torneio de Damas, ele nem sabia. Ai
mandou a premiação pra mim, sem eu nem pedir (Márcio Melo, organizador
da Copa Integração).
Os termos ―pedir‖ e ―ajudar‖ revelam como o clientelismo ainda é forte nas
relações políticas, embora não seja esse o papel a cumprir de um representante da população
do poder legislativo. Essa sua ―ajuda‖ é percebida como contribuição e apoio ao futebol
amador, não apenas pelos organizadores do evento, mas também por dirigentes de times, que
107
algumas vezes confidenciaram que iriam apoiar e votar no referido vereador, visto que este
era o único que ―faz alguma coisa pelo futebol amador‖.
O vereador esteve presente na final da II CI, além de ter seu nome inscrito na taça
de campeão do quadro B, enquanto o prefeito Leônidas Cristino teve seu nome inscrito na
taça do campeão do quadro A (FIGURA 2). O prefeito e o vereador também tiveram seus
nomes grafados com cal no campo de jogo, bem ao centro do campo era possível ler PMS
67
e
de outro os nomes Zezão e Leônidas (FIGURA 3). O locutor do carro de som anunciava o
apoio do vereador Zezão e do prefeito Leônidas várias vezes durante os dois jogos. Diante de
tantas propagandas, torna-se fácil compreender porque alguns dirigentes de times se
mostravam dispostos a votar em Zezão e em Leônidas; apesar das eleições municipais estarem
longe de se realizar (dois anos), ouvi manifestações de apoio aos dois poticos.
A CI revela que o futebol amador no meio rural é ainda preso a redes de
clientelismo, sendo dependente desse tipo de prática, pois em um local onde há pouca
circulação de dinheiro, é muito difícil a realização de torneios ou campeonatos sem o
envolvimento do poder público. O que se questiona é o fato do envolvimento com o poder
público se dar ainda através de práticas tradicionais e não através de uma participação
efetivamente cidadã, ou seja, o esporte e, no caso específico, o futebol amador deveria estar
escrito no campo do direito e não em uma relação de troca de favores (Constituição Federal,
Capítulo III, Art. 217, § 3º).
67
Em referência a Prefeitura Municipal de Sobral.
108
Os gastos para a organização de um campeonato são elevados não apenas para os
organizadores, mas também para os times que participam. As principais despesas são com
transporte e com os ―jogadores de fora‖, tornando difícil para os times se manterem ou
mesmo participarem de mais de um campeonato ao mesmo tempo. Os dirigentes, na maioria
das vezes, arcam com os custos, e algumas vezes recebem ajuda financeira, principalmente de
membros da família, e fazem um malabarismo para participarem, pois é a participação em
torneios e campeonatos que dão vida aos times. Quando não existe essa participação, o time
Figura 2 Troféu da Copa Integração em Aracatiaçu.
Figura 3 Campo onde foram realizados os jogos finais da
Copa Integração, em Aracatiaçu
109
fica ―parado‖, e se essa ―parada‖ perdurar por um período extenso o time ―acaba‖, como foi o
caso do Fortaleza do São João, que foi substituído pelo União São João.
Além dos campeonatos, os amistosos o fundamentais para os times, pois
definem a existência ou o fim de um time, principalmente na zona rural. Na sede de
Aracatiaçu, existem quatro times: Cearazinho, Aracati, CESA (Clube Esportivo de
Aracatiaçu), e Cruzeirinho. Aracatiaçu mesmo sendo um distrito localizado na zona rural,
possui uma pequena zona comercial, uma pequena fábrica de fogos de artifícios e alguns
aparelhos sociais como as escolas de ensino médio e fundamental da região, um posto de
saúde, um cartório e um centro cultural. O que assegura alguns postos de trabalho e uma
circulação maior de dinheiro, facilitando a busca por recursos dos times.
As localidades afastadas da sede do distrito possuem no máximo um pequeno
comércio, conhecido como ―bodega‖ onde é possível encontrar gêneros alimentícios e
bebidas, normalmente é o ponto de encontro, pois também é, em geral, o único bar da região.
Na comunidade do São João existe também uma pequena fábrica de queijos (que emprega
cinco pessoas); assim, é pequena a circulação monetária, visto que a maioria dos moradores
são agricultores rurais, dificultando a existência dos times. Além disso, a distância entre as
diferentes comunidades implica no custo dos transportes, por exemplo, São João fica distante
8 km da sede do distrito de Aracatiaçu, 16 km de Taperuaba, 30 Km da Imasa. Em 2006, para
alugar um caminhão, o time do União São João tinha que desembolsar no nimo R$60,00
(para as distâncias menores), o que é um valor alto, pois poucos recebem alguma renda fixa e,
quando recebem, esse valor não ultrapassa um salário mínimo. Diante dessas dificuldades
financeiras, os amistosos dos times dessas localidades minimizam alguns custos (como, por
exemplo, de taxa de inscrição nos campeonatos e evitam jogos mais distantes).
A regra presente nos amistosos que obriga um time que marca um jogo amistoso a
devolver‖ o jogo, acertando uma partida na ―casa‖ do time convidado possibilita maior
110
movimentação dos times
68
. Geralmente, as datas são marcadas logo na primeira conversa
entre os dirigentes. O time que recebe adianta um valor pecuniário para o transporte do time
visitante e depois quando vai jogar na casa do visitante é a sua vez de receber o mesmo valor.
A dádiva presente nos amistosos permite que um jogo se transforme em dois jogos, essa
duplicação é fundamental para que o time não fique ―paradoe não corra o risco de morrer.
Não nenhum contrato legal que obrigue a devolução‖ dos jogos, porém a maioria das
regras que seguimos fielmente em nosso dia-a-dia não é formalizada.
2.10 Quebrando as regras do jogo
A II CI adotou o formato de dois quadros por times, ou seja, cada time deveria
inscrever dois times no campeonato, sendo o time principal chamado de quadro A e o outro
time de quadro B (no item seguinte detalharemos essa diferenciação). O importante no
momento é reter que a CI se ―divide‖ em duas competições - semelhante à primeira e segunda
divisões do futebol profissional no Brasil. Assim teremos duas tabelas e dois campeões. O
União São João, como todos os times, também inscreveu os dois quadros, porém com o
desenvolvimento da competição o time A não tinha mais chances de se classificar para a fase
seguinte da competição, e o time B poderia se classificar caso vencesse seu último jogo com
uma diferença de sete gols, algo improvável de acontecer.
O time da Estiva, de uma comunidade próxima ao São João (aproximadamente 6
km), estava em situação inversa na tabela: o Estiva B não tinha mais chances de classificação
e o Estiva A somente se classificaria para a fase seguinte se ganhasse seu último jogo por uma
diferença de seis gols, algo também pouco provável. Porém, os dois dirigentes dos times
realizaram um acordo em que os dois times seriam beneficiados, pois na última rodada de
68
Nas cidades também há um compromisso entre os times em ―devolver‖ os amistosos, mas esta devolução nem
sempre é obrigatória, e também não é então indispensável como no meio rural.
111
classificação os times do União São João e da Estiva iriam jogar um contra o outro nos
quadros A e B. Assim ficou acordado que o time A do União São João perderia de goleada
para o time A da Estiva e o time B da Estiva perderia de goleada para o time B do União São
João, e assim fariam o saldo de gols necessários para os times A da Estiva e B do União São
João passarem para a fase seguinte. O acordo foi cumprido e os respectivos times se
classificaram para a fase seguinte da CI.
Forjar o resultado de um jogo ou ―entregar‖ um jogo é uma atitude veementemente
condenada no futebol profissional, ou mesmo entre jogadores amadores, assim mesmo é uma
prática que ainda ocorre no futebol profissional
69
e se é sempre condenada no discurso dos
profissionais do futebol, às vezes pode ser solicitada pelos torcedores, se a entrega de um jogo
prejudicar o maior rival
70
. Para os dirigentes dos times envolvidos no acordo não houve
nenhum problema ético, pois eles queriam apenas se classificar:
O nosso segundo quadro dependia de vitória pra ir pra semifinal e tinha
que golear e time deles precisava golear e o time da Imasa empatar, aí o nosso
segundo quadro (... ) aí Manézinho propôs entrar o nosso segundo e o
primeiro deles, o nosso primeiro quadro não veio ninguém jogamo com
oito jogador (Edmilson, diretor do USJ).
Embora o resultado desses jogos tenham ficado fora do padrão das duas equipes,
aparentemente não despertou dúvida em outros diretores de times e nem mesmo nos
organizadores. Cícero durante a entrevista falou que não tinha tomado parte do acordo, seu
irmão que é o que mais colabora financeiramente com o time, disse que ele tinha aceitado o
acordo depois que foi procurado por seu amigo do time da Estiva. Um dos jogadores que não
participou do jogo, afirmou que o sabia do referido acordo, seu discurso é ambíguo:
69
Na Copa do Mundo de 1978, denúncias e boatos nunca comprovadas que a equipe do Peru ―entregou‖ o
jogo para que a equipe da Argentina ganhasse de goleada e se classificasse, eliminando o Brasil no saldo de gols.
Recentemente, no campeonato italiano, times e jogadores foram punidos por forjarem resultados.
70
No campeonato paulista de 2004, o time do São Paulo chegou a última rodada classificado para a fase
seguinte, enquanto o Corinthians era ameaçado de cair para a segunda divisão, caso a equipe do Juventus
ganhasse do São Paulo e o Corinthians perdesse o jogo para a Portuguesa. Durante o jogo vários torcedores
gritavam ―entrega, entrega, entrega‖ e vaiaram o atacante são paulino que fez dois gols contra o Juventus, gols
que livraram o Corinthians do rebaixamento.
112
Aconteceu já, né?! Ninguém pode fazer nada, mas por mim, se eu tivesse ido
pra jogar, eu ia jogar pra ganhar, nem ia jogar pra perder, o. Porque, como
eu falei atrás, eu não gosto de jogar pra perder, não, eu gosto de jogar pra
ganhar sempre. (...). Com esse acordo por um lado foi bom, né?! Porque o
segundo quadro se classificou, né?! Mas...não chegou à final, né?! O
principal era chegar à final. Nosso objetivo do segundo quadro era chegar à
final. Mas não conseguiu.
Entrevistadora: Aí você achou certo?
Fernando: Não. Achei certo, o. Porque pra gente chegar num canto que a
gente quer chegar, a gente tem que chegar jogando e ganhando. Pra chegar
através de acordo, por mim num foi certo, não.
O episódio acima revela o que seria uma falta grave no futebol profissional, qual
seja, a combinação de resultados; porém, é importante destacar aqui a relação entre os dois
dirigentes. Os dirigentes do time do União São João (e outras três famílias) residiram muito
tempo na comunidade da Estiva, inclusive o dirigente do União São João nasceu na Estiva, só
mudaram-se para São João devido ao projeto de assentamento do governo do Estado e essa
mudança havia ocorrido pouco mais de dois anos, sendo ainda muito fortes os laços de
solidariedade e amizade entre os moradores da Estiva e seus antigos moradores. Poder-se-ia
indagar: se não fosse estes laços tão estreitos o acordo teria sido realizado? É uma pergunta
impossível de ser respondida, mas pode-se pensar que provavelmente esse tipo de acordoé
feito caso se confie muito nas pessoas envolvidas. O certo é que uma regra de ―jogo foi
suplantada por uma regra maior que o jogo de futebol amador, a regra da convincia e da
conveniência.
2.11 A rivalidade: jogando com a alteridade no futebol amador
Aracatiaçu e Taperuaba são dois distritos vizinhos e que ao longo da sua história
disputam o lugar de distrito mais desenvolvido. Se essa disputa faz parte de uma tradição
inventada por políticos locais não nos interessa no momento, o que importa é que de fato
113
uma rivalidade
71
entre os moradores das duas localidades, seja para demonstrar quem tem
maior poder econômico, que tem a melhor escola e, claro, quem tem o melhor time de futebol
amador.
Aracatiaçu tinha, em 2006, quatro times e Taperuaba, três times. Em vários
momentos diferentes vários torcedores e jogadores de times de Aracatiaçu informaram que a
rivalidade entre Taperuaba e Aracati é ainda muito grande, mas essa rivalidade diminuiu,
pois, segundo eles os times de Taperuaba o possuem a mesma qualidade que demonstraram
ao longo dos anos. Semelhantemente ao futebol profissional, a rivalidade entre times é
fundamental para o crescimento de clubes, a extinção de um rival fragiliza o clube que se
configura como sua antítese.
P: E a rivalidade é maior entre os times daqui ou os times de Taperuaba?
R: Ah os time de Taperuaba! Aí é mais quente. É porque é assim, se bem que
em Taperuaba nos últimos anos não se tem feito bons times né? (...)mas os
times deles eram muito bons, era jogo duro e a rivalidade muito grande
também. Vinha uns dois, três ônibus deles e quando vai para é ônibus
lotado também. Para a gente ir para Taperuaba tinha que pelo menos alugar
uns três carros que não cabia gente não. (Henrique, jogador do Cearazinho).
Note-se que a rivalidade é maior quando os times adversários estão em condições
de atuar bem em campo, realizando o que é considerado um grande jogo, por todos aqueles
que assistem a uma partida de futebol, pois como bem lembra Elias a emoção de um jogo é
determinada também pelo equilíbrio entre tensão e prazer.
A final da CI entre Aracati e Cruzeiro, expressa essa rivalidade, pois o jogo foi
realizado no escaldante sol das três horas da tarde, mesmo assim cerca de 300 pessoas
estavam na assistência da partida, número elevado de torcedores para uma partida que é
considerada ―preliminar‖, pois o quadro B, mesmo sendo uma final, tem um estatuto inferior
em relação ao quadro A, tanto que essa partida antecede a ―grande final‖ do quadro A.
71
Lembro que alguns anos atrás quando eu viajava com uma aluna para um congresso no Rio de Janeiro, ela de
Taperuaba e eu de Aracatiaçu, tentávamos explicar com bom humor a rivalidade entre os dois distritos para uma
amiga, depois de tentarmos explicar as diferenças finalizamos com algo do tipo ―tipo a rivalidade entre Rio e São
Paulo‖, a amiga retrucou ―menos menos‖ e minha aluna finalizou ―tá, tipo Juazeiro e Petrolina‖. Jocosidades à
parte, esse episódio revela como algumas tradições se enraízam nas representações coletivas.
114
Os torcedores em diversos momentos ironizavam o time do distrito vizinho;
principalmente quando os jogadores do Cruzeiro cometiam algum erro, podia-se ouvir
expressões do tipo ―só pode ser da Taperuaba mermo‖, ―num vão ganhar da gente nunca esses
daí‖. Mas a rivalidade não ultrapassava a linha tênue das brincadeiras jocosas, mesmo os
torcedores do Aracati sendo maioria absoluta, pois os jogo era em ―casa‖. A maioria dos
torcedores se conhecem muito tempo e alguns deles têm relações de parentesco, o que faz
com que todos saibam os limites das brincadeiras.
Em campo não houve nenhum problema que pudesse caracterizar um jogo tenso
entre rivais, apesar da disposição de ambas as equipes, não houve nenhuma falta violenta e
nem reclamações mais exaltadas dos jogadores com o árbitro da partida. As reclamações
contra os juízes eram feitas pelos torcedores com os tradicionais gritos de ―juiz ladrão!‖. O
jogo terminou com a vitória do Aracati que ficou assim com a taça de campeão do quadro B
da II Copa Integração. Talvez o fraco desempenho do time de Taperuaba tenha minimizado
tensões dentro de campo, o time local foi bem superior ao time adversário, afetando o
equilíbrio entre tensão e excitão.
A rivalidade entre os times locais de Aracatiaçu é menor e se constrói em outras
bases, pois não há a oposição a um ―outro‖, pois todos são do mesmo distrito, e além disso há
uma rotatividade grande entre os jogadores; por exemplo, em 2006 oito jogadores do
Cearazinho já tinham jogado no Aracati, o organizador do evento quando atuava como
jogador, passou por quatro times de Aracatiaçu. Então as rivalidades são construídas por
conflitos internos que podem provocar a saída de vários jogadores, ou ainda por brincadeiras
que são percebidas como deboche‖ ou mesmo um insulto.
É bem legal assim, porque fica todo mundo dentro do jogo e antes da partida
tem uma rivalidade muito grande assim, inclusive no dia em que a gente foi
jogar contra o time do Cruzeirinho aqui, um dia antes a gente tinha ganhado
de 6x0 no Aracati, então a torcida começou a brincar gritando ―Barcelona,
Barcelona‖, sabe, aquele negócio todo e foram de madrugada e
colocaram o cartaz no comércio (...) eles colocaram um cartaz: ―não percam o
grande jogo no Camp Nou‖ que é o campo do Barcelona né... Barcelona e
115
Cruzeirinho, sábado 4 da tarde‖, sabe aquela rivalidade assim bem engraçado,
colocaram, quando a gente ganhou, foram e colocaram ―as portas estão
abertas para todos os fãs do Barcelona‖ e tal sabe, eles não gostaram muito
não, quiseram brigar por isso. A gente não se zangou não, mas eles na
gostaram não. (Henrique, jogador do Cearazinho).
As relações de jocosidade fazem parte do universo do futebol seja ele profissional
ou amador. Mas apenas quem participa desse universo pode ser jocoso com o adversário, pois
estes conhecem as regras que governam essas relações de brincadeira, no caso acima, alguns
jogadores do Cruzeirinho consideraram que o limite do permitido havia sido ultrapassado,
porém os dois grupos conseguiram restabelecer a relação que havia sido ameaçada. O
episódio perturbou a ―ordemna qual os atores orientam as suas ações, por isso também se
empenharam em reparar suas relações, que ficaram paradoxalmente mais fortes, pois agora
eles poderiam reivindicar uma rivalidade entre as equipes, o que tenderia a fortalecê-las.
2.12 Os jogadores: o jogo entre amadores e “semi-profissionais”
O futebol amador se organiza a partir de suas referências com o futebol
profissional, por isso muitos deles possuem CNPJ
72
, estatutos, e diretoria. Além disso, muitos
dirigentes formam ligas amadoras
73
, como é o caso da LDA (Liga Desportiva de Aracatiaçu).
A divisão de um time em duas equipes, quadro e quadro ou quadro A e quadro B, segue
também a divisão do futebol profissional, pois atualmente as equipes se dividem basicamente
entre equipe profissional e equipes em formação
74
.
A existência de dois times de uma mesma equipe expressa uma diferenciação
interna importante entre os jogadores. Não diferenças significativas entre os dirigentes e
jogadores do meio urbano e rural na elaboração das diferenças entre os dois quadros de cada
72
Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica.
73
Lembrando as primeiras ligas amadoras do início do século XX, precursoras das atuais confederações de
futebol profissional.
74
Juniores e juvenis (sub-19, sub-17, sub-15), mas pode haver variações entres os clubes que dependem
basicamente do seu capital econômico.
116
equipe. O primeiro quadro se caracteriza por possuir os jogadores que o mais experientes,
que possuem um melhor rendimento sico e que são considerados bons tecnicamente,
dominando bem os fundamentos dessa prática esportiva. ―Nêgada diz que jogador de segundo
quadro o assim é mais ruim , que o primeiro quadro né, primeiro quadro bota jogador
melhor, jogador mais ruim joga no segundo quadro(Cícero, diretor do USJ).
Jogadores e dirigentes procuram amenizar essa diferenciação com exceção dessa
fala acima se referindo aos jogadores do segundo quadro como jogadores ―mais jovens‖ e
―inexperientes‖, que ainda não atingiram o pleno desenvolvimento de seus corpos. Assim, a
diferença entre os dois quadros é justificada ora por desenvolvimento biológico ora pela falta
de experiência.
Tem uma diferença de qualidade, de experiência, que os jogadores do
segundo quadro, às vezes, o tem muito costume, o tem esse currículo,
num jogaram com muitos outros times, jogaram pouco, tão começando agora.
E a gente coloca no segundo quadro. (Renan, jogador do Cearazinho).
O discurso acima é de um jogador de apenas 17 anos, titular do primeiro quadro do
Cearazinho, e artilheiro da equipe, tendo feito 4 gols na final da CI. É caso que exemplifica
que o é apenas a idade o fator preponderante para a escolha de quem jogará no primeiro ou
no segundo quadros, mas o que é decisivo para a definição em qual quadro atuará um jogador
é o seu reconhecido capital futebolístico.
Alguns dirigentes procuram comparar o segundo quadro a uma divisão de base do
primeiro quadro, valorizando assim os jogadores do segundo quadro e apontando a
possibilidade de sua ascensão. É uma forma de estimular e diminuir as difereas entre os
dois quadros, pois os horários dos jogos revelam a posição assimétrica entre eles. Assim, a
partida do segundo quadro é marcada antes do primeiro, funcionando, na prática, como uma
partida preliminar que converge os torcedores para a partida principal, marcada para um
horário mais adequado, como ocorreu na final da II CI. O discurso dos dirigentes e dos
jogadores visa reduzir a hierarquia entre dois grupos:
117
É porque o primeiro quadro é sempre aquele jogador considerado melhor e o
segundo quadro é aquele jogador inferior que é mais novo, é tipo uma base
que a gente ta fazendo para mais na frente lançar no primeiro quadro, quer
dizer, é tipo uma escolinha, escolinha do time grande. Passa do dentinho, do
dentinho para o juvenil, do juvenil se profissionaliza para ir pro time
principal, exatamente somos nós aqui. (Vidal, diretor do Aracati).
A valorização do segundo quadro, além de respeitar as regras que governam
relações sociais que são anteriores ao time de futebol principalmente relações de parentesco
e amizade também tem a intenção de manter o time do segundo quadro motivado, pois, na
sede do distrito de Aracatiaçu, todos os times treinam uma vez por semana, e os times
precisam de uma quantidade suficiente de jogadores para realizarem os treinamentos.
A diferenciação interna entre os jogadores não deve ser transplantada para fora do
time, pois afinal todos pertencem ao mesmo extrato social e se algum jogador do primeiro
quadro se comportasse como superior aos do segundo violaria a regra do jogo coletivo e
social: os iguais devem se comportar como iguais, buscando ofuscar os elementos de
distinção presentes na relação. Da mesma forma que no futebol profissional é uma falta grave
o jogador ser um ―mascarado‖, no futebol amador o respeito é uma categoria importante para
pensar a relação entre os jogadores: "Eles respeitam muito o pessoal do primeiro quadro.
Respeitam, o chegam muito duro. Ai a gente um respeito a eles também, pra eles num
perder a motivação, né?(Renan, jogador do Cearazinho).
A ―base‖ de um time de futebol profissional é formada por jogadores jovens; no
futebol amador, embora existam muitos adolescentes, também existem jogadores mais velhos,
acima de 35 anos. Em comum, eles têm um déficit sico, os primeiros ainda o estão com
seus corpos plenamente formados, os segundos não têm a mesma disposição física que os
jogadores mais jovens. Assim, para além do discurso da ―base‖ e da ―formação‖, o segundo
permite que homens com pouca capacidade técnica possam efetivamente participar do time,
mesmo que eles saibam que seu estatuto como jogadores é inferior. Dessa forma, é através do
segundo quadro que os jogadores da comunidade local são incorporados.
118
No segundo quadro nós fichemos 22 jogadores daqui, tudo daqui, num tinha
um de fora, só daqui mesmo (Cícero, diretor do USJ).
Quando a gente formou esse time de dois quadros, o segundo quadro é
formado basicamente pelo pessoal da comunidade, o primeiro quadro já que
era um time mais forte a gente chamava algumas pessoas de fora para
reforçar o time né (Duda, diretor do Ájax).
Na CI os jogadores inscritos no segundo quadro podem atuar em partidas do
primeiro quadro, mas o contrário é vedado pelo regulamento. Essa regra visa garantir o
equilíbrio nas disputas, o que sabemos é fundamental para o sucesso do futebol. Além disso
como os jogadores do segundo quadro são de casa‖ é mais fácil substituir algum(s)
jogador(s) ―fora‖ que não pode comparecer ou que tenha se atrasado para o início do jogo.
Como o primeiro quadro é considerado o time principal os esforços maiores dos diretores se
dirigem para o estes; assim os poucos recursos financeiros que o time arrecada são utilizados
para assegurar a constituição de um bom time, por isso todos os times que observei possuíam
jogadores de ―fora‖, ou seja, jogadores que não residiam na comunidade onde o time foi
criado e que na maioria das vezes recebiam algum tipo de ajuda financeira para competirem.
2.13 Não basta competir: a “contratação” dos jogadores “de fora”
Todos os times a que tive acesso durante a pesquisa tinham jogadores de fora no
primeiro quadro, tanto no meio urbano como no meio rural. A diferença entre os times está
principalmente nos recursos financeiros e nas relações de amizade entre dirigentes e
jogadores. Assim, a ―contratação de jogadores dependerá desses dois fatores: dinheiro e
amizade. Alguns times conseguem montar times com jogadores quase todos de fora, outros
com apenas três jogadores, mas em todos haverá a presença deles.
A ―contratação‖ de jogadores de fora visa montar times com maior capacidade
técnica, qualificando o elenco, pois a conquista de um torneio ou campeonato é fundamental
para a sobrevivência dos times, pois quando um time é campeão, aumentam os convites para
119
realização de amistosos, o que assegura que o time continue funcionando, mesmo quando não
campeonatos, além de se tornarem populares entre os apreciadores do futebol amador.
Além das premiações, que mesmo quando não são em espécie, são vantajosas para os times,
pois quase sempre se trata de material esportivo: uniformes completos, bolas oficiais, pares de
chuteira e redes.
Os jogadores de ―fora‖ são considerados atletas que tem uma melhor condição
física e técnica, alguns deles foram ou ainda são jogadores profissionais mesmo que
sejam, por exemplo, de clubes da segunda divisão do campeonato pernambucano mesmo
quando são apenas amadores, são considerados por dirigentes, jogadores e torcedores como
bons jogadores, e que por isso os times lutam para ter esses jogadores em seus times. As
categorias nativas talento e dom, sempre presentes no futebol profissional (ARAÚJO, 1980;
DAMO, 2007, PIMENTA 2002; 2003), são ausentes do discurso de todos aqueles envolvidos
com o futebol amador. Em seu lugar surgem outras categorias que definem o bom jogador: ―o
primeiro quadro já que era um time mais forte‖ (Duda, diretor do Ájax); ―primeiro quadro é
sempre aquele jogador considerado melhor(Vidal, diretor do Aracati); ―Tem uma diferença
de qualidade‖ (Renan, jogador do Cearazinho); ―na verdade os melhores jogam no quadro A
(Márcio, organizador da CI).
Os diretores são os responsáveis por ―convidar‖ os jogadores de ―fora‖, o contrato
que se estabelece é totalmente informal, ou como eles mesmo dizem ―é na base da amizade‖;
assim, jogadores e diretores confiam na palavra um do outro, principalmente porque se
conhecem há algum tempo, seja porque residem em comunidades próximas ou por esses
jogadores terem alguma ligação com a comunidade do time em geral são parentes ou
amigos de algum diretor ou torcedor do time. Dessa forma, mesmo quando algum tipo de
remuneração, o que determina o ―acerto‖ com o jogador são as relações interpessoais.
120
A amizade‖ será sem vida a categoria que definia entrada de um jogador de
―fora‖. A amizade é uma relação permeada pela dádiva, pois a reciprocidade é intrínseca às
relações de amizade. A consideração‖ que um jogador de ―fora‖ tem por um diretor ou por
time é posta à prova no momento em que o convite para integrar um time é feito, quando
existe a ―amizade‖ o jogador aceita o convite mesmo que não exista nenhum tipo de
remuneração pecuniária.
Por amizade mesmo, por exemplo, a gente tem um jogador ele não gosta de
falar isso porque ele ainda joga no time de segunda divisão disputando aqui
a copa de Pernambuco é Marquinhos né, jogou no Sport, foi profissional
do Sport, ele foi nascido criado aqui com a gente, aí ele vem jogando no
time da gente por consideração né, porque gosta do time, porque foi à gente
que, foi o time da gente que lançou ele para jogar no Sport, o olheiro
quando jogou no Peladão, o olheiro do Sport o viu e levou ele (Duda,
diretor do Ájax).
Os diretores quando ―contratamfazem essa ação através da amizade e precisam,
portanto, retribuir e o fazem através de algumas atitudes: assegurando a titularidade do
jogador, providenciando o transporte até o local do jogo, providenciando medicamentos em
caso de contusões. Existem tamm outras formas de remuneração: a doação de material
esportivo é uma delas, como ocorreu com o time do União São João, que presenteou os oito
jogadores de ―fora‖ com um par de chuteiras para cada um deles. A resenha‖ ou a
―brincadeira‖ após os jogos é também um dever do time, assim os diretores arrecadam
contribuições entre os membros da comunidade e familiares para assegurarem o encontro dos
jogadores após as partidas, normalmente esse encontro ocorre nos bares onde o time se reúne
com freqüência.
Algumas ―contratões‖ implicam em remuneração fixa, por partida. Os valores
são pequenos se comparados ao salário mínimo; em 2006, os times que remuneravam alguns
jogadores gastaram por jogo em média R$ 15,00 em Aracatiaçu e 40,00 em Recife. Ex-
jogadores profissionais e atletas que pertenceram a categorias de base de times profissionais
recebem mais convites que outros que tem experiência apenas no futebol amador. Na maioria
121
das vezes, os jogadores de ―fora‖ tiveram alguma experiência com o futebol profissional,
principalmente na cidade de Recife. Em Aracatiaçu, encontramos alguns jogadores da divisão
de base do Guarany Sporting Club e também em times da segunda divisão do campeonato
cearense, refiro-me a alguns jogadores do Nova Esperança (Imasa).
A presença de jogadores profissionais é tão constante no futebol amador que os
dois campeonatos observados durante a pesquisa tinham em seus regulamentos referências à
participação de jogadores profissionais. O regulamento do FP permitia a participação de
jogadores profissionais: ―não existe restrições à participação de atletas federados e
profissionais‖ (art. 5º, § único), pois consideravam que estes atletas apenas melhoravam a
qualidade dos jogos. Entretanto, a II CI vedava a inscrição desses atletas, pois os
organizadores consideravam que a sua participação traria benefícios àquela equipe que
contasse com atletas profissionais:
―só joga amadores com uma possibilidade de jogar profissional se ele tiver
sido liberado pela equipe. Se tiver vínculo profissional ainda, ele não pode
jogar. Porque a gente acha que ele pode se beneficiar, ?! Tá melhor
preparado do que os que são amador. a gente coloca isso na cláusula‖
(Márcio Melo).
Os dois regulamentos evidenciam o que é provavelmente uma prática rotineira,
caso contrário não seria necessário constar nos regulamentos dos campeonatos. Em comum,
os regulamentos tinham a proibição da inscrição de um jogador em mais de uma equipe.
Durante a votação do regulamento do FP, esse tamm foi um ponto que causou polêmica,
pois os diretores estavam preocupados com o tipo de punição que seria aplicada aos times. Ao
final de uma intensa discussão, foi definido que em caso de inscrição em mais de uma equipe,
os dois times e o atleta seriam convocados para uma reunião na DEA e o atleta teria que
escolher por qual equipe ele optaria em atuar.
Durante a discussão sobre a punição ou o para o jogador que se inscrevesse em
mais de uma equipe, muitos dos representantes dos times que estavam presentes reclamavam
122
do interesse meramente financeiro de muitos atletas, que apenas ―queriam ganhar dinheiro‖.
Em algumas entrevistas essa discussão veio à tona, pois alguns jogadores de ―fora‖ atuavam
pelo time que fizesse a melhor oferta, algo condenado veemente pelos dirigentes que
construíam o discurso do amor ao time, da amizade, da consideração.
2.14 Jogadores “daqui”: o novo velho tema do “amor à camisa”
De certa forma, os diretores atualizam o antigo discurso do amor à camisaque
foi algo muito cobrado pelos torcedores e dirigentes de times profissionais até o final da
década de 1980 e que ainda é muitas vezes cobrado pela torcida, mesmo no atual futebol
profissional, marcado mais pela lógica do mercado que pela lógica do amadorismo
75
-
revelando as contradições e ambiidades do futebol amador.
Os diretores constroem um discurso no qual os jogadores de ―fora‖ jogam pela
amizade e consideração. Quando acontecem narrativas que revelam apenas o interesse
financeiro como motivação para os jogadores atuarem por determinado time, isso sempre
ocorre com outros times: apenas um informante utilizou o seu próprio time como exemplo. Os
outros exemplificavam com frases do tipo ―tem time por aí‖, ―já ouvi dizer‖. O trecho a seguir
é longo, mas evidencia aspectos importantes:
Então, aqui tinha o quê? Tinha dois time. Se eles não jogasse no meu time,
não tinha outro time pra jogar. Tinha que sair pra jogar fora. Hoje, não.
Hoje existe aqui uns dez time. Então o que é que eles faz? Tanto faz jogar
aqui no meu, como sair daqui também e jogar nesse aqui. Se ele não jogar,
o outro joga. São bons, eles se acham bons. o melhores do que aqueles
que ninguém quer. Então onde chegar aí, os outros agarra logo. Às vezes,
eles tira até do meu time. Ali o cara tá jogando no meu time, ta com dez.
Rapaz queres ir pro meu time? Te dou isso, isso. O cabra, às vezes, é
interesseiro, ai vai. Se o cabra disser: o, rapaz, tu joga no time de Zeca.
Zeca num te nem um guaraná, se tu quiser jogar no meu eu pago uma
grande de cerveja pra vocês e dou 10 conto a cada um‖. Que ele vai‖
(Bartolomeu, diretor do Canto do Rio).
75
Na pesquisa que realizei em 2001 com jogadores profissionais estes deixavam bem nítido que o ―amor à
camisa‖ são os torcedores que devem possuir, os profissionais devem ter respeito pelo clube. (PIMENTA, 2002)
123
Sem uma pesquisa empírica detalhada não há como sabermos se atualmente há um
número maior de times amadores, mas o relato acima e outros que pude ouvir apontam para a
hipótese precisaria ser investigada - que hoje existem mais times do que existiam alguns
anos atrás, contrariando algumas afirmações que ―a várzea morreu‖ devido à expansão urbana
e à especulação imobiliária. Se existe algo que se pode facilmente constatar é que os terrenos
e campos para a prática desse futebol diminuíram bastante na zona urbana, mas quanto aos
times não podemos fazer a mesma afirmação.
As entrevistas e conversas informais revelam que os times buscaram alternativas
para a falta de espaço no meio urbano, ou alugavam um terreno para a prática ou dividam um
campo com vários times. Em Recife, são poucos os espaços públicos para a prática do futebol
de várzea; algumas RPAs dividem um campo para mais de 60 times, como é o caso do
Bueirão ou do campo da Macaxeira, campos que são administrados pela prefeitura. Em
Aracatiaçu, cada time possui seu próprio campo, mesmo que este seja arrendado pela
paróquia
76
; assim, espaço não é problema para os times, mas sim material esportivo, como
bem ilustra nosso informante quando começou a praticar futebol aos sete anos de idade:
Era muito dificultoso a gente achar uma bola aqui. Jogava com bola de
meia, com bola de saco...
Entrevistadora: Era o quê? 1970? Não... 80?! 83...
Márcio Melo: Era. Lá... 82, 83. Por lá em 84. Muito difícil
Entrevistadora: Bola de couro mesmo era difícil?!
Márcio Melo: Nunca. tinha dois meninos que tinham uma bola aqui em
Aracatiaçu. E não era de couro. E ai a gente tinha de adular eles, que não
gostavam de jogar, pra ir jogar, pra gente puder jogar (Márcio Melo,
organizador da CI).
No início da década de 1980 ―não tinha a facilidade que tinha hoje em dia‖,
havia um time em Aracatiaçu, pois o CESA (Clube Esportivo de Aracatiaçu), fundado em
1962, estava com as atividades paralisadas muitos anos. Com o passar do tempo,
Aracatiaçu chegou a ter seis times somente na sede, o que é um número consideravelmente
76
Como é o caso do Sociedade Esportiva de Aracatiaçu, que paga R$ 50,00 por ano a paróquia de Santo
Antônio.
124
elevado para essa região. Esse aumento de times isso sem contar com os times das
comunidades rurais afastadas da sede do distrito acarretou uma disputa por jogadores na
região.
Como a circulação de dinheiro ainda é muito restrita, a maioria dos jogadores
locais contribui financeiramente com o time, com valores que variam de R$ 2,00 a R$ 10,00
dependendo da situação financeira de cada jogador, mas o nimo solicitado por partida é de
dois reais. Dessa forma, os jogadores locais, junto com os diretores sustentam financeiramente
os times; assim, quanto maior a amizade‖, maior é a permanência dos jogadores nas equipes.
Porém, os conflitos interpessoais e o questionamento como alguns diretores organizam e
escalam os times leva jogadores a trocarem de times.
se o jogador se zangar nesse time, se alguém falar mais alto pedindo
empenho, o cara se zanga e vai para o outro time, então assim, é muito
fácil a troca de jogador e como o time amador sobrevive basicamente do
número de jogadores que ele tem e pela cooperação que cada um vai dar
para poder, dinheiro tanto, então eles aceitam você na hora, eles nem
recusam, porque precisa de dinheiro para manter o time, então quanto mais
jogador melhor, vai ser mais dinheiro no final de semana que vai dar
(Henrique, jogador do Cearazinho).
A troca de times, além de ser motivada por desentendimentos nas relações
interpessoais, questiona também os diretores, pois se todos os jogadores locais contribuem
financeiramente para o time, querem, dessa forma, atuar pelo time principal e não ficarem
restritos ao segundo quadro. Um exemplo da troca de time por falta de ―oportunidade‖ no
time principal ocorreu com o time do Aracati. Oito jogadores, todos com idade entre 16 e 22
anos, saíram desse time e foram para a equipe do Cearazinho, que foi o campeão da II CI,
desses, a maioria tornou-se titular.
A final da II CI envolvia dois times que tinham um perfil bem diferente e ilustra
bem as diferenças presentes no futebol amador. O Cearazinho jogou a final com três
jogadores de fora, o artilheiro da competição tinha apenas 17 anos e era jogador local. O time
do Nova Esperança, ao contrário, possuía nove jogadores de Forquilha (município vizinho a
125
Sobral), e jogavam no time do Real Madrid desse município. Contratados‖ para jogar pelo
Nova Esperança, despertaram muitas críticas, principalmente dos adversários. Durante os dois
jogos a que assisti do Nova Esperança, ouvi vários comentários em tons de troça e deboche
―lá vem o Real Madrid‖, Nova Esperança? É Real Madrid‖, ―não é da Imasa
77
, é da
Forquilha‖.
O Nova Esperança perdeu a final para o time mais ―caseiro‖ da região, o que
reforçou a iia de que os times, embora precisem de reforços, através dos jogadores de
―fora‖, eles precisam ter uma base formada por jogadores locais. Assim, o segundo quadro
deveria funcionar efetivamente como período de experiência e formação. Alguns jogadores e
diretores reforçaram o argumento de que os jogadores locais m mais compromisso com o
time e também um maior entrosamento, pois treinam uma vez por semana. Note-se a
semelhança com os discursos produzidos sobre futebol profissional.
A diferença é porque a gente jogando com um jogador de casa mesmo a
gente conhece o estilo de jogo. E com jogador de fora ninguém conhece.
Fica ruim jogar com jogador de fora porque a gente não sabe como é que
ele joga. Não sabe qual é a posição que ele vai jogar. Ai fica complicado da
gente jogar com ele (Fernando, jogador do USJ).
Em Recife, alguns diretores reclamam da falta de compromisso dos jogadores de
―fora‖, alegando que muitos somente participam dos jogos se houver alguma contrapartida
(resenha, transporte, dinheiro). Essa expectativa onera muito os times amadores, pois a
resenha, por exemplo, é sempre regada a cerveja e petiscos. Por outro lado, os jogadores
locais também não contribuem com o time, restando apenas à diretoria buscar recursos junto a
torcedores e ―patrocinadores‖.
Através dos relatos de ex-jogadores amadores em Recife, é possível perceber que
algumas cadas atrás os jogadores pagavam para jogar pelo seu time. É claro que nesse
aspecto é interessante destacar que a memória seletiva tende a avaliar o passado como um
77
Nome da comunidade onde surgiu o time do Nova Esperança.
126
tempo melhor. Assim, a memória de Sr. José Laércio, que participou da fundação do time do
Passarinho, em 1945, revela que os jogadores amadores modificaram sua forma de se
relacionar com os times ao longo do tempo.
Os jogadores contribuíam todo s. Agora muito difícil, a maioria quer
jogar sem pagar, ainda quer dinheiro para resenha. Os jogadores querem
ganhar, a senhora sabe que o jogo de liga é uma coisa, pelada é outra, que
isso é pelada, o futebol da gente é pelada, ninguém pode dizer que é jogo de
liga (...)o interesse que aqui é querer jogar e querer mais dinheiro e
vem e time pequeno não pode dá né. (José Laércio, fundador do PFC).
Poderíamos perguntar se essa mudança no comportamento dos jogadores está de
alguma forma articulada com as transformações que alcançaram o futebol profissional,
principalmente a partir da década de 1970, inserindo o futebol cada vez mais na lógica do
mercado. E mais ainda: é possível indagar se o aumento das escolinhas e categorias de base
no futebol profissional impactaram o futebol amador, pois a maioria dos jovens que arriscam
uma carreira como futebolistas não são aproveitados pelo mercado profissional, oferecem
seus capitais futebosticos ao futebol amador. Mas essa é uma hipótese que merece uma nova
e ampla pesquisa.
A descrição detalhada tinha como principal objetivo captar as duas dimensões do
futebol amador: estrutural e da prática do jogo, bem como as diferenças e semelhanças do
futebol amador no meio urbano e no meio rural. Destacamos, sobretudo, o caráter elástico das
regras que permite aos indivíduos ―jogarem‖ com as elas; a incompletude presente nas regras
do football association permite aos jogadores atualizarem-nas e, dessa forma, torna-se
perceptível como as regras influenciam na dinâmica figuracional dos jogos. Veremos no
capítulo seguinte como as regras são criadas e recriadas no jogo da pelada distante de
qualquer agência reguladora e como, aquelas não enunciadas, também modificam a dinâmica
dos jogos.
127
CAPÍTULO III
A Construção das Regras e a Resolução de Conflitos
Domingo, 7:30h de uma bela manhã de sol em Recife. Chego à comunidade da
Mangueira, cumprimento Miguel e Duda. Pergunto: e os outros?. Duda me responde que
alguns já foram a pé ou de bicicleta para o campo; e conclui me chamando: ―vamos?‖
Caminhamos à margem do rio Capibaribe e cruzamos com algumas senhoras apressadas -
provavelmente indo para alguma missa -, enquanto nos dirigimos para o não menos sagrado
compromisso de todas as manhãs de domingo: a pelada. Após quinze minutos de caminhada,
chegamos a um campo sem grama localizado dentro da sede da Casa de Estudante de
Pernambuco, no bairro do Derby. Sentamos numa calçada que percorre toda a lateral do
campo e que nos serve de arquibancada. Assistimos o final da pelada de outro grupo de
homens - estes do bairro Mustardinha cujo jogo começou às seis horas. Oito da manhã:
começa a pelada dos times da Mangueira; camisas azuis e vermelhas em lados opostos; o
árbitro apita e o jogo começa: é vibrante, alegre e disputado. Gols, brincadeiras, gozações.
Dez e meia da manhã: o ―árbitro apita, a pelada termina, mas a alegria e o jogo continuam. É
hora de voltar para a comunidade, corpos suados e cansados; antes, porém, param para
―matar‖ a sede e rememorar o jogo: cerveja regada em lembranças.
Terça-feira, 17:00h horas de uma tarde quente que se despede com nuvens
coloridas no céu. São cores possíveis de encontrar no sertão nordestino, como no pequeno
assentamento estadual do semi-árido cearense onde inicio minha pesquisa. Olho para o meu
primo e indago: ―e aí, Cicinho, vai ter jogo?‖ ―Vai, falta chegar os outros‖, responde.
Imediatamente grita em direção a uma das quatro casas que ficam em frente ao campo:
―vumbora, cumpade Francisco!‖. João Paulo, Bil, Ricardo e Fernando brincam com a bola no
128
campo menor esperando a chegada dos demais. Francisco e Luizinho também chegam, falta
um goleiro, mas logo escolhem um ―menino- que não tem idade para jogar na linha. Todos
querem começar logo para aproveitar a luz natural. Seu Murilo‖, um dos assentados, é o
árbitro da partida. O jogo coma. Os gols aparecem e junto com eles os mosquitos que não
perdoam a platéia. Gritos de reclamação e de comemoração encobrem os zunidos dos
mosquitos. Já se anunciam às 18 horas e 15 minutos e mal se vê a bola; a noite teimosa apita o
final do jogo: amanhã, is continua‖.
Os dois relatos acima se referem às observações que realizei de dois jogos de uma
prática esportiva denominada de pelada. O primeiro é um relato de um grupo de praticantes
localizados na cidade de Recife; o segundo, de um grupo da região norte do Estado do Ceará,
no município de Sobral (distante 220km de Fortaleza), mais precisamente no distrito rural de
Aracatiaçu - trata-se de um assentamento estadual nomeado de ―São João‖.
Figura 4 Pelada da Mangueira, Recife/PE. Note-se o cenário
urbano.
129
A pelada é uma prática social que no Brasil mobiliza milhares de homens quiçá
milhões envolvendo diversos digos e condutas sociais, cotidianamente, nos terrenos
baldios, quintais e outros ―campos‖ onde se disputam bola, representações e significações de
um grupo social. A pelada pode se converter em um importante componente de reflexão sobre
temas clássicos da sociologia, como construção de regras, resolução de conflitos, relações de
gênero, dentre outros.
O futebol é um tema recentemente pesquisado nas ciências sociais, pouco mais
de duas décadas vem sendo estudado de forma mais sistemática. Nesse curto espaço de tempo,
assumiu o estatuto de tema importante - isto pode ser verificado pelo aumento de teses e
dissertações, grupos de pesquisa, publicações e criação de grupos de trabalho em sociedades
científicas (como vimos no primeiro capítulo). Apesar de alguns temas ganharem destaque no
estudo do futebol profissional (como identidade nacional, tensões raciais, violência, torcidas
organizadas, futebol empresa), o aumento de estudos e pesquisas sobre futebol tem se
restringido, na maioria das vezes, ao futebol profissional. Poucas são as pesquisas sobre
futebol amador e, menos ainda, sobre as peladas.
Figura 5 Pelada no Assentamento São João, Aracatiaçu, distrito
de Sobral/CE.
130
Como vimos anteriormente, a pelada tem especificidades que variam de acordo
com o espaço social onde é praticada e, logicamente, com o grupo de peladeiros. No caso
desse estudo, foram escolhidos dois espaços sociais distintos, o meio urbano e o meio rural.
Apesar do primeiro capítulo tomar a tarefa de definir o que seja a pelada, essa é uma definição
que somente se completa com o mergulho na realidade empírica e o esforço de descrever a
pelada visa revelar as diferentes matizes desta prática esportiva.
3.1 A pelada na cidade de Recife
Ao acompanhar o FP durante o ano de 2005 conheci diversos times e seus
dirigentes. Um deles foi o time do Ájax, da comunidade da Mangueira localizada no bairro da
Torre. Passei a acompanhar todos os seus jogos, conheci jogadores, dirigentes, torcedores.
Duda, na época presidente do Ájax, era também um dos homens que jogavam a pelada do
domingo. Assim, a primeira vez que fui à comunidade da Mangueira foi para conhecer uma
das sedes‖ do Ájax, na residência de Duda. Na Mangueira, duas ruas sem pavimentação
ou esgoto e rios becos em um deles fica a casa de Duda e em uma das ruas fica a outra
―sede‖. Nessa rua, de um lado, estão dezenas das casas, de outro, está o muro de um grande
colégio particular fixando um dos limites da favela.
A sede foi construída da seguinte forma: do muro do colégio foi erguida uma
construção do tipo coberta ou ―alpendre‖ com aproximadamente quatro metros de largura e
seis metros de cumprimento. A única parede é a do colégio, de onde começa um telhado de
―brasilit que abriga as pessoas do sol e da chuva, com mais três bancos de madeira
construídos em três lados da ―sede‖: está completa a construção. Nessa sede são comemoradas
as vitórias do Ájax e é também o local onde o time da pelada se reúne todos os domingos,
após os jogos. (FIGURA 6)
131
Comecei a freqüentar os jogos da pelada em setembro de 2005. Algumas vezes ia
direto ao local da pelada, mas na maioria das situações ia primeiro à Mangueira onde
encontrava Duda e outros jogadores; dali íamos a até o campo, localizado na Casa de
Estudantes de Pernambuco; alguns homens e adolescentes iam de bicicleta. Samos
aproximadamente às 7:45h da manhã. Caminhávamos ao lado do rio Capibaribe e
conversávamos sobre os jogos da pelada, dos campeonatos amadores e da falta de espaços na
cidade para a prática do futebol amador: ―quando eu era moleque tinha muito lugar pra gente
jogar, agora a gente tem que pagar‖; ouvi frases como essa de vários jogadores; elas revelam o
fenômeno da vertiginosa expansão urbana nas cidades brasileiras que ameaça as peladas.
O grupo de jogadores da Mangueira, assim como outros que alugam o campo da
casa de estudante, desembolsa R$ 120,00
78
por mês para jogarem uma vez por semana,
durante aproximadamente duas horas. Cada jogador contribui com R$ 10,00 mensais, sendo o
restante do dinheiro para pagar o serviço de quem lava os coletes, para a compra do garrafão
de água, conserto e aquisição de bolas e gastos que o grupo necessite para viabilizar a pelada.
78
Em 2005, esse valor representava 40% do salário mínimo brasileiro.
Figura 6 Sede do Ájax, time de futebol amador.
Mangueira, Recife/PE.
132
Carlito é o atual responsável pelo recolhimento das contribuições, ele sempre leva
aos jogos uma pasta, tipo colecionador‖, onde registra o dinheiro arrecadado, datas e valores
de pagamentos; apenas os adultos pagam e se alguém está desempregado é dispensado do
pagamento da taxa e continua participando normalmente dos jogos. Todos os jogadores
moram ou moraram na comunidade da Mangueira, muitos são parentes e amigos de infância -
a proximidade e familiaridade permitem que todos saibam quem está ou não desempregado e
quem está esquivando-se da contribuição (mais adiante explorarei essas relações de
familiaridade).
As atravessarmos uma das pontes da capital pernambucana e cruzarmos algumas
ruas, finalmente chegamos à Casa do Estudante. O campo fica localizado nos fundos da casa.
É um espaço sem dimensões oficiais, sem grama, com barro e areia e duas balizas de
dimensões de futebol de salão. apenas uma marcação visível, no meio do campo, que é
demarcada à cal. As marcas que existem são pequenas depressões no terreno, provavelmente
feitas por enxada ou outro instrumento similar para marcar as laterais e o fundo do campo.
Ambas as balizas possuem redes. Em uma das laterais do campo muitas árvores, como
mangueiras. No outro lado, um pequeno barranco como que acompanhando toda a lateral
do campo, formando uma pequena arquibancada privilegiada e pequenas goiabeiras que
servem como proteção ao sol forte da manhã. Mais atrás, há uma outra ―arquibancada‖ e uma
calçada larga de cimento calçada que funciona como banco de reservas onde ficam
guardados os coletes e o garrafão da água com o gelo. É também o local de descanso,
discussões e brincadeiras durante o intervalo dos jogos (FIGURA 7).
133
Antes da pelada começar, o grupo da Mangueira é dividido em dois times: o azul e
o vermelho - uma referência às cores dos coletes. O árbitro da partida é escolhido
previamente, na maioria dos jogos o escolhido foi Adelson (FIGURA 8); outras vezes em que
ele não estava disponível, acompanhei a arbitragem de Dóda, Carlito e Edinho Dóda e
Carlito jogavam regularmente, somente ausentando-se por problemas familiares ou de saúde.
pouca mudança nos times, geralmente a formação se repete. Em cada um deles, dois ou
três jogadores com maior ascendência sobre os demais: Duda e Fabinho pelo time azul, Doda,
Carlito e Edinho pelo time vermelho. Estes estão entre os mais antigos freqüentadores da
pelada, além disso, o os mais assíduos. Assiduidade e antiguidade são os critérios mais
valorados na pelada, além disso, o tempo destinado a organização também deve contribuir
para essa maior ascendência no grupo. Como bem lembra Elias e Scotson (2000), grupos
socialmente homogêneos podem possuir critérios internos de classificação, criando uma
diferenciação interna que facilmente escaparia em abordagem estatística.
Todos eles estão há muito na pelada, sendo que Edinho, o mais idoso do grupo, não
pôde mais jogar por causa de problemas cardíacos, mas foi a todos os jogos: funcionava como
Figura 7 Calçada na lateral do campo da Pelada da Mangueira,
Casa do Estudante, Recife/PE.
134
um técnico do time vermelho. Ele e outros da assistência incentivavam, orientavam os
jogadores e reclamavam do árbitro.
A assistência não se restringe às brincadeiras e orientações. Há muitas reclamações
em momentos tensos das partidas e a intervenção da assistência gera conflitos entre jogadores,
árbitro e os ―torcedores‖. Por exemplo, em um jogo, o árbitro da partida decidiu não apitar
mais devido às reclamações de Edinho. Neste momento, houve uma discussão entre os dois e
troca de insultos e palaves, mas os demais jogadores intervieram argumentando para todos
terem calma, chamando a atenção para o fato da pelada não ser interrompida:
-―Deu o quê? Eu marcando aqui, vá tomar no cu, apita o jogo eu não
apito mais não rapaz, vá tomar no cu, apita o jogo tu aí.
- Apito porra nenhuma.
Os peladeiros interferem falando com o juiz:
- Apita aí, Adelson, não quer ajudar, porra?
- Uma besteira dessa.
- Anda, vem apitar.
- Esquece ele, Adelson.
- Eu vi a falta.
- Esquece ele, esquece ele.‖ (Transcrição 13/11/2005)
A pelada exige um conhecimento prático das regras do jogo e, principalmente, das
regras não enunciadas, mas que são conhecidas por todos os membros da pelada. Como
lembra a etnometodologia (GARFINKEL, 1967), é membro aquele que domina os códigos,
Figura 8 Jogo de Pelada da Mangueira. Em destaque, o árbitro
Adelson. Casa do Estudante, Recife/PE.
135
os métodos e os modos de agir de uma determinada coletividade. As expressões: eu vi a
falta‖ e ―esquece elesão tentativas de reparar uma ordem perdida momentaneamente, pois os
peladeiros sabem agir quando a ―ordem‖ do jogo é quebrada e procuram imediatamente
reparar a situação, ou como diria Garfinkel, buscam restaurar uma ―normalidade percebida‖
(perceived normality) dos eventos cotidianos,
By the "perceived normality" of events I refer to the perceived formal
features that environing events have for the perceiver as instances of a
class of events, i.e., typicality their "chances" of occurrence, i.e.,
likelihood; their comparability with past or future events; the conditions
of their occurrences, i.e., causal texture; their place in a set of means-
ends relationships, i.e.,.instrumental efficacy;, and their necessity
according to a natural or moral order, i.e., moral requiredness (Garfinkel,
1963: 188)
79
.
uma enorme preocupação em não interromper a pelada. Algumas discussões
são resolvidas sob o argumento de que o jogo não pode parar. Como o objetivo principal de
todos é jogar a pelada, os conflitos são resolvidos em nome do jogo ou então suspensos para
depois da partida: as diferenças se diluem no desejo do jogo. A importância do árbitro
aumenta, pois ele é o responsável principal por assegurar a continuidade do jogo. Adelmo, na
discussão relatada acima, reivindicou a sua função no jogo, ou seja, o poder de instituir o
arbitrário, lembrando que esse poder deve ser exercido sem ―questionamentos‖ e estes quando
realizados atualizam novamente as regras. De modo geral, a pelada é tão séria e importante
que suspende conflitos que em outros espaços poderiam culminar em brigas.
As regras da pelada são diferentes do Football Association. A principal
característica do jogo é mantida: a proibição do uso das mãos, com exceção do goleiro;
também a proibição de atingir ou segurar o adversário, nesse caso as punições são iguais ao
futebol profissional. Todas as outras regras são adaptadas: o lateral pode ser cobrado com o pé
79
Por ―normalidade percebida" de eventos refiro-me às características formais perceptíveis que os eventos têm
para o observador, que os vê como casos de uma classe de eventos, isto é, tipicalidade; as suas "possibilidades"
de ocorrência, isto é, probabilidade; comparabilidade com eventos passados ou futuros; as condições das suas
ocorrências, isto é, textura causal; os seus lugares em um jogo de relações entre meios e fins, isto é, eficácia
.instrumental;, e a sua necessidade segundo uma ordem natural ou moral, isto é, exigência moral.(tradução
nossa)
136
ou mão, não impedimento; a bola poderá ou não ser oficial; não utilização de uniformes,
principalmente dos equipamentos de proteção: caneleiras, chuteiras e luvas; duração da partida
em torno de duas horas sendo que os intervalos variam de cinco a dez minutos; não
cobranças de pênaltis; cobranças de tiros livres são feitas com uma disncia medida por três
passos até a barreira; não há local estipulado para a reposição do tiro de meta. Essas regras são
as mesmas regras da pelada do São João, como veremos adiante.
É importante destacar aqui a punição por cartões amarelo ou vermelho. Da mesma
forma que no futebol profissional, na pelada o cartão vermelho corresponde à expulsão do
jogador e dois amarelos para um mesmo jogador, numa única partida, correspondem a um
cartão vermelho. Essa é uma medida considerada dura pelos próprios jogadores, pois a
expulsão significa que o jogo acabou para o jogador punido, mas as regras são aceitas por
todos, mesmo quando se questiona a ―justeza‖ da expulsão. (FIGURA 9)
Ao longo das conversas e entrevistas, os jogadores me informaram que a punição
por expulsão é relativamente recente. Antes, um jogador levava vermelho e ficava durante
cinco minutos fora da partida e depois retornava para o jogo. Isso penalizava o jogador e
Figura 9 Árbitro da pelada aplica cartão amarelo.
Pelada da Mangueira, Recife/PE
137
também o time que perdia um jogador durante o tempo da punição. Ocorre que os peladeiros
avaliaram que aquele que cometia faltas excessivas e retornava ao jogo, continuava com o
mesmo comportamento, pois ficava apenas cinco minutos sem jogar. Para o jogo da pelada
isso pode ocasionar dois grandes riscos: lesionar seriamente um jogador e provocar a
interrupção da partida. Como vimos, no epidio da discussão entre o árbitro e um ―técnico‖,
o encerramento precoce da pelada é algo que deve sempre ser evitado pelos peladeiros.
A possibilidade de contusão, ou de ―machucar‖, como eles se referem, é algo que
os jogadores rechaçam com veemência, pois para eles está muito claro que a pelada é um
lazer, um momento de suspensão da vida cotidiana e suas obrigações. Todos os peladeiros
adultos são casados ou convivem em união estável; o homem é o provedor do lar e mesmo
quando a esposa/mulher também trabalha, ela apenas ―ajuda‖ no orçamento doméstico. Assim,
o risco de alguém ficar impossibilitado de trabalhar no dia seguinte, devido a alguma falta
desleal, não é aceita por nenhum membro do grupo. Mesmo a falta cometida sem a intenção
de ―machucar‖ o adversário, mas que cria algum risco é punida com severidade. Havendo a
contestação do jogador expulso ou do seu time, a decisão é mantida.
O lazer é percebido pelos jogadores como o tempo social do não-trabalho. O dia e
o horário da pelada já definem essa situação: no domingo pela manhã a maioria dos
trabalhadores, principalmente dos setores da produção, está no seu descanso semanal. A
pelada ocorre nesse dia de suspensão da atividade laboral de cada jogador, mas a preocupação
com o trabalho está presente também no horário de lazer. A punição mais severa para as faltas
revela esse cuidado e mostra que elas precisam pairar acima da consciência dos jogadores que
sabem não poder machucar seus companheiros e, ao mesmo tempo, adversários de jogo. Se os
jogadores estão conscientes de que faltas duras ou desleais põem em risco a saúde dos
trabalhadores, por que eles não evitam essas jogadas que são perigosas e põem em risco sua
capacidade produtiva? Dito de outra forma, por que criar o mecanismo da expulsão se todos
138
são contra esse tipo de falta? Por que criar uma regra restritiva e severa, se todos querem o
mesmo fim: ―jogar sem machucar o companheiro‖? Os jogadores, além de serem conscientes
da importância e seriedade do mundo do trabalho, também têm plena consciência de que a
pelada é uma brincadeira tão séria e importante que os absorve completamente. O jogo é ―uma
atividade livre, conscientemente tomada como ―não-séria‖ e exterior à vida habitual, mas ao
mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total(HUIZINGA, 2007, p.
16).
Ouvi diversas vezes discussões e xingamentos na hora do jogo, e, momentos após o
término da partida, os insultos são transformados em zombaria e brincadeiras. Mas no
momento do jogo relações de amizade e parentesco são postas em suspensão, o caráter
competitivo da partida prevalece, mesmo numa ―simples‖ pelada, afinal ―ninguém quer
perder‖.
Em um dos jogos que acompanhei, a expulsão do goleiro do time vermelho
aconteceu da seguinte forma: um jogador do time azul lança seu companheiro. Este, ao
disputar a bola com o goleiro, recebe uma ―sola‖. Na mesma hora, jogadores do time azul
gritam ―vermelho (pedindo o cartão vermelho) e alguns do time vermelho protestam, mas o
árbitro expulsa o goleiro. A discussão aumenta, o goleiro afirma que foi na bola, os torcedores
concordam com a expulsão, mesmo os que torciam para o time de vermelho. Houve
expressões do tipo ―se pega, machuca!‖ (FIGURAS 10 e 11).
A expulsão do goleiro gerou uma dúvida momentânea sobre as regras: o goleiro
pode ser substituído? Fabinho, um dos jogadores do azul que tinha saído do jogo
argumentou que o goleiro o era pra ser substituído, mas logo foi questionado por um dos
jogadores do time vermelho que seria impossível jogar sem goleiro. Nesse momento, todos
correm para o local da falta e um dos jogadores de vermelho que estava no banco corre para o
gol substituindo o goleiro expulso. (FIGURA 12)
139
Provavelmente os jogadores de ambos os times o teriam pensado na
possibilidade de um goleiro ser expulso
80
. , nesse momento, um processo não esperado
por todos, uma situação nova que tem quer ser resolvida de comum acordo pelos jogadores, e
80
Relembrando: no futebol o goleiro é o único jogador que pode pegar a bola com as mãos. Embora saindo da
sua área previamente demarcada, passa ser um jogador como outro qualquer, inclusive pode marcar gols. Mas
estando fora de sua área, não pode usar as mãos. Um jogador de linha, porém, não pode assumir a posição de
goleiro na hora que quiser, somente se substituir um goleiro.
Figura 10 Árbitro expulsa goleiro, enquanto jogador reclama do
cartão vermelho. Pelada da Mangueira, Recife/PE.
Figura 11 Goleiro com o movimento da perna direita justifica
sua ação. Pelada da Mangueira, Recife/PE.
140
isto acontece numa breve conversa em menos de um minuto (52 segundos) a falta é cobrada,
após a maioria concordar que o goleiro expulso pode ser substituído (FIGURA 13).
Podemos observar, no episódio acima, como a regra se aproxima de leitura
etnometodológica, no sentido de que as regras são acionadas, negociadas, atualizadas pelos
atores durante o processo interativo. Nesse mesmo sentido, as regras não seriam transgredidas,
Figura 12 Jogador do time vermelho que estava no banco corre
para o gol para substituir o goleiro. Pelada da Mangueira,
Recife/PE.
Figura 13 Árbitro conta os três passos da barreira, rapidamente
a normalidade dos eventos é retomada. Pelada da Mangueira,
Recife/PE.
141
mas sim criadas e recriadas pelos atores sociais durante o curso de sua ação. Esta perspectiva
difere bastante da visão durkheimiana das regras que se impõem exteriormente aos indivíduos
como se estes fossem meros depósitos da sociedade e de suas leis normativas. No epidio
acima, percebe-se que no processo de interação social os atores estão numa incessante
negociação e construção de regras (GARFINKEL, 1963; 1967)
A tensão também está presente na pelada, ora de forma mais evidente, ora mais
tênue, nesse sentido, a tensão não é uma prerrogativa dos esportes profissionais. O
impondevel do jogo é um dos principais ingredientes da tensão na pelada, pois é impossível
afirmar que time será o vencedor, mesmo quando uma diferença grande a favor de algum
grupo. Por exemplo, assisti a um jogo em que um time azul estava vencendo por três a zero,
mas o time vermelho conseguiu reverter o resultado ganhando por quatro a três. A
imprevisibilidade é uma marca não apenas do futebol profissional, mas também do futebol
amador, permeando uma pelada por tensões ao longo da partida.
Como ressalta Elias, a busca pela excitação no futebol somente é vivida pelos
participantes, se houver um equilibro entre a tensão e o prazer, caso contrário o jogo se
tornaria desinteressante para os jogadores e para os torcedores. No futebol profissional, se os
jogos terminassem com um número excessivo de empates, provocaria o desinteresse dos
torcedores é importante lembrar que o futebol é um dos poucos esportes em que é possível
o haver vencedor mas o ritual disjuntivo é esperado por todos aqueles que se envolvem no
jogo. A primeira grande mudança na regra do impedimento, em 1925, visava aumentar o
equilíbrio entre tensão e prazer, pois a exigência de no mínimo três jogadores para assegurar a
legalidade de determinadas jogadas de ataque, favorecia a defesa adversária, diminuindo
demais a tensão do jogo.
Num processo de jogo, o equilíbrio de tensão não pode ser produzido e
conservado exactamente ao vel justo, se uma das equipas é muito mais
forte do que a outra. Se for este o caso, a equipa mais forte te êxito
provavelmente com mais freqüência, a teno do jogo o ―vigor do jogo‖
142
se relativamente baixo e o próprio jogo será lento e sem vida (ELIAS e
DUNNING, 1992, p. 292).
A pelada tem como objetivo oferecer um momento de ―relaxamento‖, uma
diversão para os praticantes, a vivência lúdica não dispensa a competição, ao contrário, jogos
interessantes exigem oponentes competitivos (HUIZINGA, 2007), da mesma forma que jogos
de futebol profissional
81
seriam desinteressantes se um time chegasse a vitória com imensa
facilidade, pois não haveria o equilíbrio de tensão. A pelada da Mangueira expressa (e
veremos que a pelada do sertão tamm) também essa busca por esse equilíbrio.
Os jogos de pelada são extremamente disputados, principalmente no primeiro
tempo de jogo, quando os jogadores ainda estão com uma melhor condição física. Quando
comecei a acompanhar a pelada da Mangueira, os times eram relativamente fixos -
diferentemente do início quando dois jogadores eram escolhidos para tirar o time‖ e faziam
isso de forma alternada, o que provavelmente proporcionava um maior equilíbrio entre os
times. Entretanto, quando os times ―vermelho‖ e ―azul‖ passaram a ter uma formação fixa,
uma das equipes tornou-se mais forte, acarretando um desequilíbrio na relação entre tensão e
prazer,
o vermelho parece que tinha o pessoal que jogava melhor sabe? eu
comecei, pra tentar equilibrar mais: eno agora eu vou para o azul e
Carlito foi para o vermelho, Baleia foi para o azul aí ficou mais equilibrado,
porque geralmente quem ganhava era só o vermelho, pra não ficar uma
coisa sem graça a gente mudou um pouquinho para equilibrar mais,
agora é mais equilibrado, não vai ficar ganhando só um todo domingo
(Duda, jogador do time azul, Mangueira.).
No futebol profissional as agências de controle com a FIFA e a International
Board, analisam e propõem soluções para manter onus do jogo elevado, assegurando assim
o equilíbrio de tensões. A pelada mesmo distante de organismos oficiais de regulação e
81
Talvez por isso jogos classificados como ―clássicos‖, tenham um forte apelo junto ao público, não apenas pela
presença de ―estrelas, mas porque qualquer resultado seja possível, mesmo quando um time, em determinado
momento, seja considerado um time superior ao outro.
143
controle, também constrói uma relação de equilíbrio entre as equipes, criando seus próprios
mecanismos de controle como, por exemplo, instituindo a expulsão de jogadores
excessivamente faltosos ou ainda marcando reuniões para tomar decisões como excluir ou não
determinado jogador da pelada como ocorreu na ―Pelada da Amizade‖.
Antes de prosseguirmos, é importante ressaltar que durante o acompanhamento dos
jogos do Campeonato Futebol Participativo, tive acesso também a uma conhecida pelada, um
grupo que existe desde o início da década de 1980, me refiro a Pelada da Amizade‖. Como os
jogos eram aos sábados (na Mangueira os jogos eram aos domingos), resolvi acompanhar
também esse grupo, pois considerava importante ter um outro grupo em Recife que
possibilitasse uma análise comparativa, servindo como um contraponto para pensar um outro
grupo. As diferenças existentes nesse grupo me ajudavam na análise da pelada da Mangueira,
desse modo, para usar um termo estatístico, a ―Pelada da Amizade‖ funcionava como um
grupo de controle.
As classificações internas atribuídas em cada grupo definem as regras que
orientarão o comportamento dos indivíduos. Quanto mais homogêneo for o grupo mais as
brincadeiras e ―xingamentos‖ serão permitidos; o contrário também é verdadeiro. A ―Pelada
da Amizade‖ é um grupo menos homogêneo, as regras são mais explícitas, quase oficiais,
tendo inclusive uma comissão que decide sobre os conflitos.
Essa pelada é formada por um grupo grande, formado por mais de 40 homens, que,
mesmo residindo na região da Macaxeira, vêm de comunidades distintas (bairros vizinhos
como Casa Amarela, Nova Descoberta, Vasco da Gama, Guabiraba, dentre outros), tornando a
relação interpessoal mais distante entre alguns dos peladeiros, sendo que alguns se conhecem
apenas dos encontros dos sábados. Assim, nesse grupo as regras precisam ser enunciadas,
porque não são compartilhadas por todos; mesmo pertencendo a um mesmo extrato social, não
possuem a mesma homogeneidade que o grupo da Mangueira. Entre iguais e amigos, os
144
palavrões são permitidos, e eu diria que são até esperados, mas no caso da Pelada da Amizade
os palavrões são proibidos, pois todos devem tratar os demais com respeito; quem não
obedecer a essa regra, será excluído da pelada. Como foi o caso do goleiro, que, ao xingar
alguns peladeiros, foi excluído da pelada pelos organizadores, que já haviam alertado para que
o ofendesse com palaves os demais jogadores,
(...) como a gente afastou esse menino agora, o goleiro, ele ta esculhambando
o pessoal dentro de campo. Ta com pornografia com um e com outro (...)Um
camarada tão novo daquele, se diz evangélico, e fica esculhambando,
xingando. E a gente acha isso errado. Porque na realidade, pra que ele seja
respeitado, ele tem que dar respeito. Se ele não respeito, ele nunca vai ser
respeitado por ninguém. Então, às vezes, ele até chegou pra me pedir pra
voltar. E eu disse: ―não‖. A diretoria cortou o nome. Ta cortado. E eu o
vou passar por cima de ninguém. Porque se tem a norma, a gente tem que
cumprir (Renê, presidente e jogador da ―Pelada da Amizade‖).
A ―Pelada da Amizade‖ é um grupo conta com uma diretoria formada por quatro
pessoas, e tem um presidente, que cinco anos está na presidência do grupo. René foi
jogador de futebol profissional
82
, talvez por isso tenha uma ascenncia maior sobre o grupo,
82
Começou a carreira no Sport Clube do Recife e depois em times de menor expressão no futebol nordestino.
Figura 14 Pelada da Amizade. Recife/PE
145
além de morar próximo ao campo e de preparar o material necessário para que a pelada
aconteça, como por exemplo, a lavagem dos coletes e o garrafão com água e gelo. Aqui
também percebe-se que o grupo possui classificações internas, que os diferenciam entre si.
Na classificação interna da pelada foi possível perceber que alguns indivíduos
estão posicionados numa posição hierarquicamente superior aos demais. Essa classificação
interna do grupo - mesmo o sendo verbalizada e assumida por eles, pois ―aqui todo mundo é
igual- semelhantemente à pelada da Mangueira, as diferenciações ocorrem baseadas numa
espécie de tempo de serviço‖ na pelada, ou seja, aqueles que estão mais tempo
participando daquela pelada. E também pelas relações interpessoais que estabelecem entre si,
em geral os que têm uma rede maior de amizade são os que permanecem mais tempo para o
encontro no bar. Do mesmo modo, aqueles que o participam desse momento de
confraternização ficam mais afastados daqueles que detêm maior poder no campo, no caso,
mais distantes da diretoria. Além disso, os capitais futebosticos também são valorizados no
grupo, os peladeiros sabem quem são os melhores jogadores e, dependendo do sorteio os
times para pelada são escolhidos momentos antes da partida , é possível ouvir alguns
comentários como ―vai ser moleza‖.
É que tem uns cabinhos de vassoura, que a gente fez umas bolinhas deles.
Ai botou, número 1 e número 2. O 1 é vermelho e o 2 é verde. Quando eu
levo os coletes azul e branco, aí o 1 é o branco e o 2 é o azul (...) vai
botando dentro da mochilinha, mexe. Aí a pessoa pega uma bolinha
daquela. O número que ele tirar, vai pegando o colete. Tirou o 1, pega o
vermelho, tirou o 2, ele pega o verde. Aí vai dividindo até completar os dois
times. Quando completa os dois times, os que ficam entram na outra
pelada (René, presidente e jogador da Pelada da Amizade).
Assisti apenas a um jogo em que um time ganhou com relativa facilidade. Mesmo
com sorteio, os times se mostram equilibrados. Os peladeiros‖, que aguardam sua vez, não
participam tão ativamente, como no caso da pelada da Mangueira. Também brincam e
incentivam, mas fazem isso apenas com jogadores mais próximos. A ―assistência‖ também
146
comenta os jogos e a performance de seus companheiros: aquele ali joga muito, o jeito
dele de pegar a bola já dá pra ver‖.
O ―jeito de pegar a bola‖ remete para a construção de um habitus, daqueles que
têm o ―sentido do jogo‖ e que se diferenciam por incorporarem tanto as técnicas corporais,
quanto as habilidades necessárias para ser um ―bom peladeiro‖, como, por exemplo, jogar
coletivamente, não ser ―fominha‖, o que significa trocar passes com os demais companheiros
de equipe. Quando um jogador insiste além do esperado pelo grupo em jogadas individuais, as
críticas são pronunciadas em tons exasperação: ―leva a bola pra casa, carai!‖. O ―bom
peladeiro‖ consegue articular tempo e espaço, e faz isso de acordo com as expectativas do
grupo da pelada.
Importante ressaltar que a Pelada da Amizade se aproxima mais do futebol amador
do que as peladas da Mangueira e do São João. O grupo tem uma estrutura mais hierarquizada,
com diretoria e presidência, com regras de conduta e punição para a quebra das regras que
incluem suspensão ou eliminação da pelada (semelhante às comissões disciplinares do futebol
amador e profissional), utilizam as principais regras do futebol profissional excetuando
apenas as regras conformativas, aquelas que demandam uma infra-estrutura como dimensões
do campo (e suas marcações), bolas (pesagem oficial), uniformes (padrão completo e
equipamentos de segurança como caneleiras e luvas). Mas as regras de ação, como o
impedimento, o tiro livre e a distância para a sua execução, o pênalti, tiro de canto, o lateral e
a quantidade jogadores por equipe são mantidas similarmente ao futebol amador e
profissional. A presença do árbitro é obrigatória e suas decisões quando são questionadas, são
em tom de respeito (foi falta aí, professor!), mesmo que o árbitro seja um dos ―peladeiros‖
conhecidos.
Apesar das semelhanças no uso das regras e na utilização do mesmo campo que os
times amadores usam em seus jogos importante lembrar que o campo da Macaxeira é o
147
único da RPA 3 a dinâmica figuracional do jogo é um pouco alterada se a compararmos com
a dinâmica dos jogos do futebol amador. Embora haja uma disposição dos 11 jogadores em
campo, essas funções nem sempre são ocupadas por especialistas da posão; por exemplo,
apesar de jogadores considerados de defesa atuarem com freqüência na zaga, isto não ocorre
em todos os jogos, pois uma equipe pode ser sorteada‖ com 7 atacantes e 3 defensores. Se
isto acontecer, um atacante poderá ser o zagueiro do time. Esta falta de especialização de
funções interfere na dinâmica do jogo, tornando a equipe mais lenta. Além do nível de tensão
ser menor, o existem pontos a serem disputados ou mesmo a cobrança de um ―treinador‖ ou
de um diretor de time para exigir uma performance cada vez melhor dos seus jogadores.
Apesar das diferenças, a dinâmica figuracional da pelada da Amizade é semelhante às relações
de interdependência criada nos jogos de times amadores, entretanto, a dinâmica figuracional
da pelada da Mangueira e da pelada em São João se afasta desse modelo, como veremos no
item 3.4.
Voltando a pelada da Mangueira, esta é marcada por momentos de tensão e
descontração. Antes do início da partida, os jogadores de ambos os times fazem brincadeiras
provocativas, tipo: ―vou fazer só dois em tu‖ ou ―tu é freguês mesmo‖. Quando o jogo
começa, as brincadeiras diminuem, ficando mais por conta dos torcedores - logo a maioria
deles também vai entrar no time. Optei por nomear a assistência da pelada de torcedores,
porque na pelada da Mangueira (e como veremos também em São João), eles efetivamente se
comportam como torcedores: orientam, xingam, aplaudem, brincam e incentivam seu ―time‖,
com a diferença de que esses ―torcedores‖ são também jogadores. Os torcedores fazem
diversas gozações com os jogadores, na maioria das vezes eles respondem rindo, outras
respondem chateados, mas sempre uma resposta. O torcedor de pelada não é um anônimo,
ao contrário, a relação de proximidade existente entre torcedores e jogadores proporciona uma
148
interação constante entre eles, mesmo estando previamente separados durante o jogo. É
possível afirmar que o torcedor também joga, e isso não apenas metaforicamente.
Somente os jogadores de pelada podem dizem que vão ganhar antes do jogo e isso
é feito constantemente antes das partidas: sempre um tom provocativo de gozação, ―vou
meter três pra tu hoje‖, ―hoje vai ser de lavada‖. Esse é um dos momentos de descontração,
onde todos riem e retrucam com outras provocações. Quando a partida começa, a brincadeira
diminui e a tensão aumenta. O ponto alto dessa tensão e da ―excitação‖ é o momento do gol.
De um lado, as comemorações com muita alegria e provocações, de outro, muita reclamação
entre jogadores do mesmo time, entre jogadores e árbitro e também entre os torcedores, ora
com o árbitro, ora com os jogadores de seu time. Nesse momento a provocação jocosa ao
adversário já não provoca risos, apenas irritação. As expressões jocosas estão presentes não
apenas na pelada, mas aparecem como uma conduta de sociabilidade entre os torcedores de
times profissionais de futebol
83
.
3.2 A hierarquia geracional: a disputa dos “pirráia” e dos “meninos”
Outro momento de tensão evidente nas peladas ocorre nas divergências quanto à
existência de uma falta e sua gravidade, como vimos no caso da expulsão do goleiro. Nesta
expulsão, houve uma certa unanimidade quanto à gravidade da falta, excetuando o próprio
goleiro que afirmou não ter sido desleal. Presenciei outras duas expulsões em que as
contestões foram muito maiores. Penso que no caso da primeira expulsão a quase
unanimidade ocorreu por se tratar de uma falta envolvendo um adulto (goleiro) e um
adolescente.
A pelada é um jogo entre os homens da comunidade da Mangueira, homens que
ingressaram no mercado de trabalho. Mesmo quando estão na informalidade, são provedores
83
Sobre relações jocosas no futebol ver GASTALDO (2006).
149
do lar e em geral são os que pagam pelo campo. Os adolescentes aparentam em média 17
anos, são solteiros e ainda não ingressaram no mercado de trabalho, portanto, não pagam a
cota mensal do campo e nem são cobrados por isso. A presença dos adolescentes é constante
nos jogos, mas, individualmente, ausentam-se com freqüência. Os adolescentes jogam quando
algum adulto está cansado ou lesionado; isto ocorre praticamente nos quarenta e cinco minutos
finais das partidas; algumas vezes entram e jogam até o apito final; outras vezes entram
somente para um adulto descansar.
O pirráia‖ apenas complementa os times no momento de necessidade - embora
isto ocorra em todos os jogos que acompanhei -, ele não é um jogador da pelada, ele ―ajuda‖
quando convidado. A diferença física entre adultos e adolescentes é evidente: os primeiros são
mais altos e possuem uma massa muscular bem definida, os segundos são magros e baixos e
com massa muscular reduzida. Os adolescentes, fisicamente, são mais velozes que os adultos,
mas essa superioridade não é reconhecida pelos adultos que enfatizam a falta de experiência
dos jovens. Os jogadores adultos reclamam e cobram muito entre eles, mas os adolescentes
o reclamam dos adultos, embora estes estejam atentos o tempo inteiro para as falhas dos
pirráia‖ (FIGURA 15).
Figura 15 Um “pirráia” jogando com os adultos. Pelada,
Recife/PE
150
A primazia dos adultos é evidenciada também nas decisões durante o jogo: o adulto
passa a bola, preferencialmente, para outro adulto, enquanto do adolescente se espera que
sempre passe a bola para um adulto; as cobranças de falta e lateral são ações sempre realizadas
por adultos. O próprio termo pirráia‖ evidencia essa hierarquia geracional. A palavra
pirráia" em Recife é utilizada para fazer referência às crianças, sendo também uma expressão
que define algo que é pequeno, menor. Certamente, é uma adaptação da palavra ―pirralho‖. A
pelada reproduz o jogo social, onde crianças e adolescentes não tomam decisões sobre sua
vida, assim meninos que não tem vez no mundo social, também não podem pleitear isso no
jogo sério da pelada. Essa regra do lugar subalterno ―do pirráia‖ e da proteção especial dos
adolescentes não é enunciada como as demais regras da pelada como, por exemplo, a regra
dos três passos em caso de falta , mas são conhecidas e partilhadas pelos membros da pelada,
e são atualizadas durante os jogos.
Os adolescentes, porém, participam de um outro momento importante da pelada
que é o encontro na sede‖. Após o jogo, a maioria volta caminhando para a comunidade,
alguns usam bicicleta, apenas um peladeiro que também é taxista usa seu automóvel,
oferecendo carona aos outros. Chegando à Mangueira a maioria se dirige direto para a sede,
embora alguns morem praticamente em frente ao local. Esse é um momento de descontração e
brincadeira, onde rememoram as jogadas, os gols e também as discussões. É a improvisação
de um bar: alguém traz uma mesa (de plástico), alguns mandam comprar cervejas e
refrigerantes. O bar improvisado é uma prolongação da pelada. A conversa gira em torno de
uma ―rivalidade‖ entre os dois times, entre quem ganhou e quem perdeu naquele dia, embora
outras peladas sejam sempre atualizadas para contestar a vitória daquele domingo específico.
Fala-se de uma jogada que ―humilhou o adversário‖, como colocar a bola entre as pernas do
adversário (caneta) ou driblar alguém passando a bola por sobre sua caba (banho ou lençol).
151
Mas as brincadeiras e as conversas não giram apenas em torno da pelada. Discute-
se futebol profissional: como a maioria dos jogadores torce para o Santa Cruz ou Sport, e um
para o Náutico, a conversa e piadas envolvem esses três times, mas, principalmente, a
rivalidade entre Santa Cruz e Sport. Fala-se, brincando, sobre a vida de casados, os problemas
com a esposa - que alguns se referem como Dona Encrenca‖. Na sede, talvez por minha
presença, eles evitem palavrões, mas muitas brincadeiras também com conotações sexuais.
A sede, transformada em bar, é um reduto masculino, espaço para a vivência de uma
homossociabilidade masculina e seus significados (ALMEIDA, 1996). A única mulher, com
exceção da minha presença, foi uma jovem que apenas ―passou‖ pelo local; outra vez vi a
presença de uma criança do sexo feminino, filha de um dos jogadores - é pequena a presença
de crianças; quando ocorre, em geral, são do sexo masculino.
Os jogos de pelada diferem muito da dinâmica dos jogos de times amadores,
principalmente devido à grande diferença que existem nas regras. Enquanto os times amadores
guiam-se na maioria das vezes pelas regras oficiais do futebol profissional, as peladas como
vimos modificam muito essas mesmas regras. Embora toda e qualquer regra tenha um caráter
elástico ou uma incompletude, são as regras que asseguram a dinâmica dos jogos de futebol,
mesmo quando as regras são negociadas entre os jogadores como na pelada, ainda assim ela
impõe uma dinâmica própria ao jogo.
3.3 A pelada no Sertão
A prática amadora do futebol é muito presente em todas as regiões do nosso país,
o sendo privilégio das capitais e grandes centros urbanos. Animada por essa idéia e pela
escassez de pesquisas sobre futebol amador no meio rural, fui morar por quatro meses no
assentamento estadual São João, conforme descrevi no primeiro capítulo. Depois dos
primeiros sustos, fui aos poucos me adaptando à nova rotina. Eu estava num local
152
privilegiado, pois o campo de futebol ficava situado em frente à casa do meu tio e as relações
de parentesco me ajudavam nos contatos. Aos poucos conheci todas as famílias dos
assentados, mesmo os que moravam mais distantes, além de conhecer outras pessoas que
moravam nas redondezas. Logo fiquei conhecida no o João, é a sobrinha do seu Chico que
tá fazendo uns estudos‖.
As peladas no meio rural não acontecem de forma programada, como ocorre, por
exemplo, na Mangueira, com dia fixo e horário pré-determinados. Na comunidade do São
João há uma flexibilidade nos dias e horários, embora estes ocorram quase sempre no final da
tarde, majoritariamente a partir das 16:30h, às vezes às 17 horas. E ocorrem quase sempre
durante a semana - assisti a apenas duas peladas no final de semana. Porém, da mesma forma
que em Recife, aqui a pelada também está situada no tempo do o-trabalho, pois é o trabalho
na agricultura que vai definir se haverá ou não condições para uma partida de futebol.
O trabalho começa cedo, por volta das seis horas da manhã. Quando o trabalho é
por demais extenuante, deixando-os muito cansados, a pelada não é realizada, mesmo que
tenha sido previamente marcada, apesar do trabalho ser sempre encerrado por volta das 16
horas, às vezes antes. Quando o cansaço é considerado pequeno pelos trabalhadores, a
acontece a pelada. Nos meses em que há férias ou feriados escolares, acontecem mais jogos,
pois cinco dos jogadores solteiros ainda estudam, impedindo que eles participem das disputas
nos dias de aula.
Os jogadores são freqüentemente convidados para jogarem quase sempre nos
mesmos times, uma formação mais ou menos fixa. Assim, além do trabalho, uma outra
variante influenciando a realização dos jogos: a escola. Embora ela o seja tão determinante,
pois alguns jogos acontecem mesmo em dias de aula, apenas com um número reduzido de
participantes ou com a chegada de novos jogadores.
153
A hierarquia geracional que ocorre no sertão não é entre adultos e os ―pirráia‖; ela
ocorre entre os adultos e os ―meninos‖ que são, ou crianças ou adolescentes, recém ingressos
na puberdade. Estes participam dos jogos apenas quando falta de jogadores e, geralmente,
quando entram nos times, assumem a posão de goleiro ou são designados para a defesa, com
a função bem clara definida pelos adultos de ―tirar a bola‖. É provável que haja pouca
diferença entre adultos e adolescentes/solteiros, por estes últimos começarem cedo a trabalhar
na agricultura com seus pais, igualando-se aos outros no quesito trabalhador‖. Porém,
socialmente, os homens casados têm um estatuto superior, por serem os chefes de suas
famílias, enquanto os adolescentes ainda moram com os pais, mas na pelada eles participam
com uma igualdade que o ocorre na pelada da Mangueira.
A diferença de idade entre casados e solteiros é relativamente pequena, o que
favorece uma maior igualdade durante os jogos. Além disso, os corpos dos adolescentes,
mesmo magros, são percebidos como iguais aos dos adultos, pois realizam e suportam as
mesmas atividades laborais. Durante o decorrer dos jogos não uma diferenciação entre os
mais jovens e os adultos. O direitode reclamar e executar cobranças de faltas é igual para
todos, excetuando quando crianças. Quando apenas ―meninosestão no gol, os jogadores
fazem um acordo para não chutarem com muita força para o gol, pois isso pode machucar
algum ―menino‖. Quando algum menino joga na linha, também o cuidado para ―não entrar
duro. Observei que o estatuto subalterno das crianças é evidenciado até nas brincadeiras, pois
se um adulto leva um drible de uma criança, a gozação começa de imediato. Este é mais um
exemplo de uma regra em permanente atualização.
O cuidado com as crianças é evidenciado nesse conflito que acompanhei e que
relato agora. Num dos jogos da pelada, Fabinho, de onze anos, filho de Cícero, participou de
um jogo com os adultos, jogando na linha. Um dos jogadores disse que se o filho fosse dele
o deixava jogar, pois o menino poderia se machucar. A esposa de Cícero quando percebeu
154
que Fabinho estava na pelada, foi até o campo e gritou reclamando com o marido afirmando
que o filho não poderia jogar com os ―hômi‖, pois o menino poderia se machucar. Cícero
fez que não ouviu e o jogo prosseguiu. A esposa retrucou que o filho não jogaria mais de jeito
nenhum com os adultos.
A preocupação em não lesionar um companheiro ocorre também entre eles. De
forma semelhante à pelada da Mangueira, não observei qualquer falta desleal ou violenta,
embora os jogos sejam marcados por momentos de tensão. O cuidado em não machucar o
outro também é justificado pelo trabalho, pois uma lesão num jogo pode inabilitar alguém. Por
isso existe também o cartão vermelho, quando árbitro em campo, embora eu não tenha
presenciado nenhum cartão vermelho durante esses quatro meses de observação. Os cartões
amarelos, na sua maioria, eram aplicados por reclamação e não por faltas consideradas
violentas.
Observei somente três peladas em que não havia árbitro. Quando isso ocorre, fica
determinado que um jogador de cada time avise quando sofre uma falta. O aviso é dado com a
palavra ―falta‖, em tom alto. Em geral, se aceita o pedido de falta do time adversário.
Entretanto, em algumas jogadas não se aceita a falta, aí se paralisa o jogo e argumentos
rápidos sobre a existência ou não da penalidade. Os jogadores são rapidamente consultados,
o apenas os que estão envolvidos diretamente na jogada em discussão; se algum jogador do
time que é acusado de ter cometido a falta a reconhece, o jogo segue. Em outros momentos,
mesmo havendo a contestação da falta, o jogo segue, pois quem gritou‖ a falta simplesmente
pára a bola e cobra rapidamente, resta ao jogador que teria cometido a falta continuar
reclamando enquanto volta a jogar. Entretanto, as discussões maiores são quando o é o
responsável pelo time que ―grita‖ a falta. O time adversário, além de o reconhecer a falta,
mesmo quando esta ocorre, ainda reclama pelo fato dele não ser o responsável pela anotação
de penalidades de seu time.
155
Em uma das peladas houve uma discussão maisria porque um time ―gritou‖ falta
no goleiro. Nesta jogada, o time que teria cometido a falta, fez o gol. O que se seguiu foi uma
discussão que paralisou o jogo por cerca de cinco minutos e o time que fez o gol ameaçou não
continuar a partida. Assim como no grupo da Mangueira, a interrupção do jogo é algo que os
jogadores evitam ao máximo. Quando após um impasse como esse não vem seguida
imediatamente uma resolução, a primeira ameaça que surge é a da interrupção definitiva
daquela partida. Os jogadores são conscientes de que esse ato mais radical não é desejado por
nenhum dos participantes, mas utilizam essa ameaça como forma de pressionar o time
adversário. Nesse dia, os jogadores viraram-se para mim e perguntaram se Fernando tinha ou
o feito a falta no goleiro; eu, obviamente, disse que não tinha visto o lance. Como não dei a
solução do conflito, cada time manteve sua posição e o jogo continuou com o resultado
diferente para cada time. Após o final da partida, a discussão continuou e não houve consenso
quanto à validação ou o do gol. Nesse momento começaram as brincadeiras provocativas,
com frases do tipo ―pode ficar com esse gole ―a gente num precisa mermo, nós ganha de
todo jeito‖. A normalidade percebida dos eventos, perdida momentaneamente, foi
imediatamente recuperada (GARFINKEL, 1963; 1967).
Os jogadores preferem jogar com árbitro, pois a presença deste minimiza os
conflitos e resolve logo situações divergentes. Na maioria das partidas, o árbitro escolhido era
o Sr. Expedito, um dos assentados e pai de três dos jogadores que jogam com assiduidade - o
preferido de todos que, segundo os jogadores, ―sabe apitar‖ e ―tem moral‖. Outro que também
apita o jogo é o Sr. Murilo, outro assentado, pois ―também apita bem‖. Os dois são mais
velhos que a maioria dos jogadores e suas decisões são respeitadas, mesmo quando uma
discordância sobre estas.
As regras da pelada do São João são bem semelhantes às regras adotadas pelo
grupo da Mangueira, com exceção do pênalti. O tamanho do campo é reduzido em relação às
156
dimensões oficiais, mesmo havendo espaço e um campo com dimensões aparentemente
oficiais. Como bastante espaço, dentro do campo ―oficialos jogadores improvisaram um
campo menor, com duas traves confeccionadas com madeira de árvores nativas da região, em
cada uma duas redes, bastante desgastadas. Esse mini-campo (mesmo assim maior que o
campo da Casa do Estudante) é utilizado somente nas peladas. Não marcação de cal ou
tinta apenas marcações feitas por enxadas e isso em apenas um dos lados do campo. Na outra
lateral do campo, há uma linha imaginária, que também é respeitada por todos.
O jogo é atravessado por tensões e brincadeiras, assim como na pelada da
Mangueira. Os principais momentos de tensão são os gols e o desrespeito às regras, pois não
as faltas são objetos de contestação, mas também a saída ou não de uma bola do campo.
As a marcação de um gol, há muitas reclamações entre os jogadores. Essas reclamações são
principalmente por falta de marcação sobre o adversário, por uma falha do goleiro ou por um
passe errado que tenha originado o gol. Quem recebe a reclamação sempre retruca. A tensão
aumenta também pelas provocações de quem fez o gol. Entretanto, não presenciei em qualquer
momento, alguém xingar o outro ou dizer palavrões, como ocorre com freqüência na
Mangueira (por exemplo: ―Vá se foder‖, ―vá tomar no cu‖, ―filho da puta‖, ―frango‖
84
). Os
xingamentos, quando ocorrem, ficam restritos a um ―seu porra‖ ou um ―fela da gaita‖, que é
dito em momentos de irritação; ―Fela da gaita‖ também é dito em momentos de brincadeira, e,
pelo que apreendi, quer dizer algo como a expressão ―fulano é sem futuro, mas é uma
expressão de difícil entendimento para quem não é membro do grupo.
As brincadeiras giram em torno das jogadas, de alguém que conseguiu uma jogada
bonita, quem fez mais gols, quem deu caneta ou pedalou
85
, ou sobre quem sabe e quem o
sabe jogar. Não brincadeiras questionando a heterossexualidade dos jogadores ou
brincadeiras de conotações sexuais - é possível que a minha presença possa ter inibido esses
84
Frango: homossexual.
85
Quando o jogador passa o pé sobre a bola várias vezes com esta em movimento.
157
tipos de brincadeiras. Porém, considero que isso ocorra também porque na pelada do São
João uma participação das mulheres durante o jogo e também após os jogos.
3.4 As Regras e a Dinâmica Figuracional das Peladas
As peladas da Mangueira e do São João se assemelham quanto às regras adotadas
por esses dois grupos, como também quanto à postura que adotam em relação aos
adolescentes (Mangueira) e às crianças/meninos (São João). Os dois formam um grupo
socialmente homogêneo, mas também possuem diferenciações internas baseadas, sobretudo,
no critério da ―antigüidade‖ quem há mais tempo participa do jogo, além também da
assiduidade, percebe-se que estes têm maior ascendência sobre os demais. Por exemplo, nas
peladas sem árbitro, é possível observar que alguns jogadores decidem mais do que outros se
determinada jogada foi ou não irregular, embora em algumas situações, não seja possível
estabelecer um consenso (como vimos no jogo que teve um placar para cada time).
As regras, enunciadas e não verbalizadas, influenciam na dinâmica dos jogos,
sobretudo as regras de ação. Chamei de regras de ação todas aquelas que se referem à ação de
um jogador, como faltas, impedimento, pênalti, escanteio e lateral. E de regras conformativas
aquelas que conformam a ação num determinado espaço e tempo, como as regras referentes à
dimensão do campo e ao tempo de jogo. Importante lembrar que esta é uma categorização
apenas para facilitar a compreensão sobre as regras, não devendo ser percebida como
definição rígida e exclusiva, pois se lermos as 17 regras do jogo, podemos considerar todas
como regras de ação por exemplo, as linhas demarcatórias do campo estabelecem os limites
até onde a ação de um jogador pode ser executada ou não. Mas, ao mesmo tempo, é
importante lembrar o caráter elástico de toda regra (ELIAS, 1996) ou, como diria Garfinkel
(1963), a incompletude presente em todas elas.
158
Um campo de futebol com dimensões oficiais ocupa um grande espaço
86
. Na
maioria das peladas, além de uma redução do tamanho do campo, há também uma redução no
número de jogadores. Embora sejamos tentados a equacionar a falta de espaços para a prática
do futebol com a redução do tamanho do campo e do número de jogadores, é preciso
relativizar essa relação. Pois, no meio rural não é a falta de espaço que determina o número de
jogadores e o tamanho do campo, ao contrário, os ―peladeiros‖ reduziram o tamanho do
campo oficial‖ para os jogos do futebol amador. É mais provável que a pelada seja realizada
em um campo menor com menos jogadores, porque a pelada é um jogo onde se joga com seus
pares mais próximos, vizinhos, amigos, colegas de trabalho, ou seja, onde prevalecem
relações inter-pessoais, do que pelo fato de haver poucos espaços nas metrópoles para a
prática do futebol. Seja pela falta de espaço e/ou pelas relações de amizade e vizinhança, as
peladas ocorrem em um campo menor e com um número menor de jogadores, o que
possibilita uma diferença na dinâmica dos jogos, além da alteração, exclusão e criação de
novas regras. As regras conformativas (regras oficiais de 1 a 7 e a regra 9) são as que sofrem
maior número de alteração ou simplesmente são subtraídas:
Regra 01: as dimensões do campo e as marcações não são observadas, joga-se com o terreno
disponível e, se o campo for considerado grande demais pelos ―peladeiros‖, uma redução
no seu tamanho (como na comunidade de São João);
Regra 02: o peso, tamanho e as condições da bola não são observados, a bola será usada
enquanto for possível ser utilizada, podendo sofrer diversos consertos para tanto;
Regra 03: O número de jogadores é definido pelo grupo. Na Mangueira são 09 jogadores e no
São João são apenas 06 em campo. Não substituições na pelada do São João; Na
Mangueira, a possibilidade dos adolescentes entrarem no decorrer do jogo. Um jogador
substitdo pode voltar ao campo.
Regra 04: Uniforme e equipamentos. No São João todos os jogadores jogam descalços, e não
utilizam coletes. Na Mangueira, todos os adultos excetuando os goleiros - jogam calçados
com chuteira ou tênis, a maior parte dos adolescentes joga descalço.
Regra 05: O árbitro. Nas peladas da Mangueira sempre um árbitro e este é escolhido pelos
próprios jogadores, suas decisões às vezes são contestadas. No São João, peladas sem
árbitro, mas nas peladas envolvendo apostas o grupo sempre designa um árbitro.
86
As medidas oficiais são: cumprimento no mínimo 90m, no máximo 120m; largura no mínimo 45m no máximo
90m.
159
Regra 06: Árbitros assistentes. Regra excluída.
Regra 07: a duração da partida é acordada de acordo com a disponibilidade do grupo, na
Mangueira são dois tempos de quarenta minutos, embora alguns jogos extrapolem essa
determinação inicial. No São João, a duração da partida depende da luz natural, visto que os
jogos são quase sempre no final da tarde.
Regra 09: Bola em jogo e fora de jogo. Como os campos não possuem marcação os jogadores
é que decidem se a bola ultrapassou ou não a linha imaginária que delimita o campo.
As regras de ação (regras 8 e de 10 a 17) são aquelas que orientam ou incidem
diretamente sobre a ação do jogador, principalmente ao restringir determinadas ações, como,
por exemplo, a proibição do uso das mãos, excetuando-se o goleiro dentro da área. A maioria
das regras é mantida, havendo apenas algumas adaptões. A única regra de ação banida da
pelada é a regra do impedimento, pois se um dos objetivos dessa regra é a diminuição dos
espaços, ela se torna desnecessária visto que os campos para a prática da pelada são pequenos.
Entrevistadora: E impedimento?
Fernando: Não tem impedimento. Não tem de jeito nenhum impedimento.
Entrevistadora: Quem foi que criou essas regras? Sem impedimento, sem
pênalti...
Fernando: Nós mesmos. Nós mesmo do racha mesmo, fizemos essa regra
mesmo.
Entrevistadora: Por que não tem o impedimento?
Fernando: Porque eu acho que o campo é pequeno, né?! Pra fazer
impedimento o campo é pequeno demais. Ai o (Fernando, jogador da
pelada do São João).
Pessoas acostumadas com a estética do futebol profissional poderão ser tentadas a
pensar que a subtração da regra do impedimento nas peladas inviabilize a dinâmica do jogo,
mas veremos adiante que o jogo se mantém dinâmico, mas com outro tipo de configuração,
que não é dado apenas pela ausência da regra 11, pois as outras regras de ação também
influenciam esse processo:
Regra 08: Início e reinício de jogo. É mantida a regra, mas sem obedecer a distância de
9,15m.
Regra 10: O gol marcado. A regra permanece a mesma, com a diferença para o tamanho da
meta.
Regra 11: Impedimento. Subtraída.
160
Regra 12: Faltas e incorrões. As faltas cometidas pelos jogadores são punidas com maior
severidade, principalmente se o contato físico for com um ―pirráia‖ ou um ―menino‖. Nas
peladas da Mangueira não pênalti, enquanto no São João a penalidade máxima é mantida;
quando faltas conta-se três passos para posicionar a distância entre a bola e a barreira. Há
cartões amarelo e vermelho para punir os jogadores.
Regra 13: Tiro livre direto e indireto. Na pelada da Mangueira existem apenas tiros livres
indiretos. Na pelada do São João os dois tipos de tiros livres. Em ambos, a barreira é
posicionada a três passos da bola.
Regra 14: Tiro penal. Ver regra 12.
Regra 15: Lateral. Em ambas as peladas, o lateral pode ser cobrado com as mãos e com os
pés, havendo preferência pela execução com os pés.
Regra 16: Tiro de meta. É cobrado em qualquer posição próxima à meta.
Regra 17: Tiro de canto. A mesma regra, apenas não respeitando as marcações oficiais.
Todas essas mudanças, exclusões e adaptões modificam a dinâmica do jogo, mas
ainda assim qualquer pessoa familiarizada com o futebol, dirá que se trata de um jogo de
futebol, pois as principais regras são mantidas. As configurações no jogo da pelada diferem
muito da dinâmica figuracional do futebol amador, pois se neste é possível identificar com
maior facilidade as relações de interdependência entre os jogadores da mesma equipe e destes
com a equipe adversária, nas peladas as relações de interdependência envolve todos os
jogadores (Elias, 1992).
As relações de interdependência entre os jogadores tornam-se maiores e mais
difíceis de transpor para um gráfico. A pelada da Mangueira envolve todos os jogadores numa
teia de interdependência, com exceção dos dois goleiros; um jogador de uma equipe entrará
em contato com todos os seus adversários. O campo reduzido e o número de nove jogadores
propiciam uma movimentação intensa dos jogadores e, apesar de um ou dois jogadores se
posicionarem como defensores, mesmo estes, chegarão ao meio de campo com freqüência e
rias vezes posicionar-se-ão no campo do adversário como se fossem atacantes. A
representação abaixo (FIGURA 16), no máximo, pode apresentar a disposição dos times azul
e vermelho, no momento do icio do jogo, mas um gráfico da pelada que buscasse
representar a movimentação em campo dos jogadores seria impossível de ser compreendido
161
mesmo no futebol amador, onde as funções de cada jogador o mais especializadas , pois
nenhuma representação gráfica seria capaz de abarcar a dinâmica da relação entre os
jogadores do mesmo time, muito menos da interdepenncia que se estabelece entre os times
adversários.
Às vezes eu escolho, ―olha joga na defesa‖, o cara ―não num quero jogar
na defesa não‖, ―mas é porque não tem ninguém‖, já tem os fixos, aí quando
falta tem que botar um, às vezes não querem ir, mas vão é pra jogar, porque
ali é mini-campo , a gente tem uma rotatividade muito grande aí eles vão.
Mas ainda tem o zagueiro tem o meio e tem o ataque (...) Às vezes não por
que na pelada assim mini-campo, quando o cara que ta de zagueiro ta
lá na frente, o que ta lá na frente já táatrás... (Duda, jogador da pelada da
Mangueira).
A ausência do impedimento torna o jogo dinâmico, pois para penetrar à defesa
adversária, que se reagrupa rapidamente, o time que ataca necessariamente utiliza um número
maior de jogadores, proporcionando contra-ataques com freqüência, pois ao concentrar um
grande número de jogadores em um lado do campo, é difícil realizar troca de passes e dribles
exitosos, favorecendo a retomada de bola por parte da defesa. Acontece um vai-e-vem
constante entre os times azul e vermelho.
A dinâmica figuracional da pelada exige dos jogadores um exercício de funções
variadas. Cada ―peladeiro atua de forma multifuncional, mesmo que seja designado para
atuar em determinado espaço do campo (defesa, meio e ataque). Ao iniciar o jogo, a posição
de cada jogador irá modificar o posicionamento do jogador adversário, assim a dinâmica o
deslocamento de um jogador é coordenado pelo movimento de seus companheiros e,
principalmente, pelo deslocamento dos jogadores adversários.
162
A dinâmica figuracional da pelada no São João é muito semelhante à dinâmica
encontrada na pelada da Mangueira, com a diferea de que um dos jogadores da defesa se
comporta de forma mais fixa, atuando próximo a sua meta, deslocando-se pouco ao ataque. É
provel que isso ocorra pelo maior espaço que os peladeiros‖ dispõem para jogar, espaço
dilatado também pelo número reduzido de jogadores. E espaço é um item importante
principalmente para jogos que ocorrem sem a regra do impedimento, sendo indispensável um
jogador mais fixo na defesa.
As regras enunciadas interferem na dinâmica do jogo, mas as regras que não são
ditas, mas que são dominadas pelos ―peladeiros‖ também interferem na configuração dos
jogos. A proibição de chutes com força quando os ―meninos‖ estão no gol, ou a condenação
Figura 16 Times azul e vermelho: saída de jogo e dinâmica figuracional
163
de faltas que usem força desproporcional, como, por exemplo, na disputa entre um pirráia‖ e
um adulto. Além disso, a própria dinâmica do jogo é modificada, pois os ―pirráia e os
―meninos‖ não devem reter a bola, apenas os adultos podem ―prender‖ mais a bola, mas
mesmo assim isso deve ser feito no ―tempo certo‖, e somente quem incorporou os capitais
futebosticos apreciados pelo grupo consegue equacionar com êxito a relação tempo e espaço.
Este aprendizado somente ocorre na prática do jogo, participando com seus pares, pois
nenhuma regra diz ―como‖ jogar,
Should it turn out that the boundaries of the set are essentially vague,
that no matter how explicit the rules are, the set of them is essentially
partially ordered, that every game contains its "unstated terms of
contract," and that time is a parameter of the meaning of a move, then
we have important grounds for optimism (Garfinkel, 1963, p. 200)
87
.
Não é possível aprender a jogar futebol apenas guiando-se pelas regras, pois a
incompletude de qualquer regra apenas restringe a ação, mas não ensina como‖ jogar, é
somente através de um longo aprendizado, através da inserção em um grupo que alguém
aprende a jogar pelada. Como diria Bourdieu, o bom ―peladeiro‖ domina as regras ditas e as
o-ditas, mas principalmente, ele incorpora o ―sentido do jogo‖, o bom ―peladeiro‖ não joga
a partir das regras, mas joga com as regras.
3.5 O Jogo apostado e o jogo de brincadeira: as diferentes dinâmicas
da pelada
Observei basicamente dois tipos de pelada no São João: uma é a pelada de
brincadeira, segundo os jogadores, ―apenas um racha‖; a outra, não, é uma pelada mais séria
porque envolve uma aposta. Houve uma aposta que envolvia a metade de um bode e outra
cujo prêmio era uma cabra. Os times que jogam as peladas de brincadeira ou com aposta são
praticamente os mesmos, quando ocorrem mudanças no grupo estas ocorrem pela falta de um
87
Resulta que os limites de jogo fiquem essencialmente vagos, que não importa quão explícitas sejam as regras,
o jogo se revele essencialmente como parcialmente regulado, que cada jogo contenha os seus "termos de
contrato não explícitos," e que o tempo seja um parâmetro da significação de um movimento, então temos um
fundamento importante para otimismo. (tradução nossa)
164
jogador e um novo entra - não presenciei a troca de jogadores entre os times. Quem escala o
time é o responsável pela aposta, presenciei duas apostas entre cero e seus cunhados, a
primeira com Francisco e a segunda com João Paulo.
A pelada envolvendo apostas é mais competitiva que a pelada de brincadeira, é
perceptível que os jogadores empenham-se mais durante a partida. As funções exercidas pelos
jogadores são melhor definidas e além disso são realmente cumpridas; por exemplo, quem fica
responsável pela defesa dificilmente larga a sua posição para ir ao ataque. A marcação é mais
forte, mas predomina a regra de não machucar o adversário. A cobrança e as reclamações
contra os companheiros de equipe são mais evidenciadas, principalmente por quem aceitou a
aposta.
Na pelada com aposta, a participação do árbitro é indispensável. A escolha do juiz
deve ser aceita pelos responsáveis pela aposta. Além da escolha do juiz, a escalação dos
jogadores é negociada, há discussões sobre um time que tenha um número maior de jogadores
considerados habilidosos. Os dois times reclamam que seus adversários são mais fortes e
tentam uma mudança, que acaba não ocorrendo, e encerra-se com uma frase provocativa que
afirma que mesmo com um time inferior tal equipe será a vencedora.
A pelada de brincadeira pode ocorrer sem árbitro, com um jogador de cada time
responsável pela marcação das faltas, como já observei anteriormente. Porém, isso não quer
dizer que não haja tensão e conflitos durante a ―brincadeira‖, mesmo porque os jogadores
admitem que ninguém joga querendo perder. É importante relembrar a afirmação de
Huizinga (2007) que uma das características do jogo é a competição - o é apenas em jogos
ou esportes oficiais que o caráter competitivo está presente; nas brincadeiras ele também
permanece, mesmo que em outro nível. Nos jogos de ―brincadeira‖, os jogadores fazem mais
gozações e brincadeiras com seus adversários. Aumenta também o número de jogadas
165
individuais, as tentativas de dribles acontecem com maior freqüência e quando são executadas
com êxito são quase sempre acompanhadas de piadas contra quem sofreu o drible.
A pelada de brincadeira possibilita o ―exagero‖, nas gozações, nos dribles, nas
comemorações de gol e também nas discussões e nos conflitos. As regras são mais fluidas,
dependem mais da interpretação de cada jogador, principalmente na ausência de árbitro. Como
a pelada é apenas de ―brincadeira‖, pode-se o resolver um conflito, como por exemplo, a
marcação ou não de gol - ―exagero‖ permitido na brincadeira, aceitando, inclusive, placares
diferentes num mesmo jogo. O exagero tem limite apenas em duas proibições: a interrupção
definitiva de um jogo e a falta violenta que lesione o adversário.
Algumas apostas são pretextos para um jogo mais disputado, pois não está em jogo
nenhum prêmio de valor, apenas o prazer da aposta como desafio a ser vencido. Aposta-se um
refrigerante tipo pet de dois litros ou um litro de aguardente. Esses jogos desenvolvem-se entre
a pelada de brincadeira e a pelada apostada, embora se aproxime mais dessa última. O prêmio
é repartido entre todos, seja a aguardente ou o refrigerante, a bebida é disponibilizada para
todos os jogadores, diluindo-se a dicotomia entre vencedores e vencidos. A assistência
também participa dessa partilha.
Igualmente à pelada da Mangueira, após os jogos, o momento é de rememorar:
destacam-se as jogadas que possam ―humilhar‖ o adversário, reforçando a superioridade do
time vencedor. muitas gozações e brincadeiras, o time perdedor não admite essa
superioridade e lança mãos de piadas do tipo deixamos vocês ganhar‖ ou então ―finalmente
ganharam uma‖. Estas provocações e brincadeiras são sempre feitas em clima amistoso, por
mais que um jogo tenha sido tenso. A maioria dos jogadores se dirige para algumas das casas
próximas ao campo, onde há sempre uma garrafa de um litro de aguardente ou uma garrafa de
meio litro, conhecida por ―celular‖ - quando não tem a bebida, eles mandam um dos
―meninos‖ irem comprar o produto. Enquanto bebem, conversam sobre o jogo e às vezes
166
sobre o trabalho. A maioria faz parte da família de assentados, conversam sobre os projetos
desenvolvidos pela associação
88
, além do trabalho de plantio, colheita, cuidado com o gado e
com os caprinos. O ponto de encontro não é o bar, apesar de existir um próximo
(aproximadamente 200 metros) ao local do campo. Como o local de diversão é a casa de um
deles, as mulheres também participam desse momento de confraternização após o jogo,
inclusive algumas consomem bebidas alcoólicas. A participação feminina não ocorre durante
toda a confraternização, pois todas precisam preparar e servir o jantar dos filhos e maridos -
por isso, também esse momento após a pelada é um momento breve que dura em média 40
minutos.
É possível perceber que existem mais relações de proximidade do que de
diferenças entre os dois grupos. Porém, essas poucas diferenças não são pequenas e precisam
ser aprofundadas, como, por exemplo, a participação ou exclusão das mulheres, o jogo
apostado e o jogo de brincadeira no meio rural. As peladas revelam um amplo campo de
possibilidades, esperando para ser explorado e pesquisado. E esse é um campo fértil para
temas novos e tradicionais na sociologia, como o tema das regras.
Ressaltamos como o jogo da pelada é atravessado por um processo constante de
criação e recriação das regras, extrapolando a idéia de enunciados voltados diretamente para
restringir a ação dos jogadores. Dessa forma, as regras não ditas são igualmente fundamentais
para compreendermos a dinâmica figuracional dos jogos da pelada, definida também pelas
infinitas relações de interdependência entre jogadores da mesma equipe e destes com os
jogadores da equipe adversária. Porém, a negociação das regras não ocorre apenas entre os
jogadores. Como vimos rapidamente no segundo e terceiro capítulos, as torcidas m um
88
Associação do Assentamento São João. Alguns projetos o desenvolvidos com a cooperação de técnicos da
EMATERCE (Empresa de Assistência Técnica e Extensão do Ceará) que visitam mensalmente o assentamento e
projetos privados como a APRISCO (Apoio a Programas Regionais Integrados e sustentáveis da Cadeia de
Ovinocaprinocultura).
167
papel importante nos jogos, e a relação entre os jogadores e os torcedores é permeada por
regras que estão em constante negociação, como iremos aprofundar no próximo capítulo.
168
CAPÍTULO IV
A Torcida do Futebol Amador e da Pelada: proximidade e
envolvimento
Os dois capítulos anteriores evidenciaram a importância das regras para a dinâmica
dos jogos tanto no futebol amador quanto na pelada. Entretanto, também ficou evidente que o
jogo não ocorre apenas dentro do ―campo‖ de futebol. Joga-se futebol entre duas equipes, mas
também se joga futebol para uma assisncia, que algumas vezes apresenta-se como uma
torcida uniformizada de times do futebol profissional; outras, como uma assistência que
apenas aguarda o momento de substituir os jogadores que estão em campo. Em ambos, essa
relação é atravessada por regras que mediam o que é ou não permitido entre jogadores e
torcedores. Buscarei neste capítulo analisar a torcida do futebol amador e da pelada,
destacando que, assim como os jogadores, a relação da torcida com os times é permeada por
regras que delimitam os limites dessa relação.
A torcida do futebol amador se aproxima mais do modelo das torcidas de clubes
profissionais, entretanto, podemos destacar como ponto de inflexão entre esses dois tipos de
torcedores a proximidade proporcionada pelas relações interpessoais entre jogadores,
torcedores e diretores. Nas peladas temos uma assistência diferenciada em relação ao futebol
amador, pois na maioria das vezes quem está na assistência logo se tornará um jogador.
Algumas vezes prevalece uma relação de distanciamento, outras de proximidade. Em ambos, a
assistência participa da dinâmica do jogo.
As torcidas no meio urbano e no meio rural se aproximam no envolvimento com a
equipe, na mobilidade que os torcedores ganham junto com o time, na confraternização
envolvendo comunidade e jogadores. Mas há também aspectos que o específicos da
realidade presente no meio rural. Desse modo, o futebol amador no sertão se apresenta como
169
uma forma de lazer para toda a família, possibilitando para a maioria das mulheres e crianças
um dos poucos meios de circular entre os distritos, se concretizando algumas vezes como
única alternativa de lazer.
4.1 Os torcedores nos “estádios” de Recife
Acostumados que somos ao futebol midiático, com suas imensas torcidas,
organizadas ou não, podemos estranhar ao falarmos de torcedores de futebol amador.
Entretanto, se pensarmos no significado que essa prática esportiva assume na vida de milhares
de homens poderemos também compreender o que significa torcer para um time de amador. O
que separa os dois tipos de torcedores dos clubes profissionais e dos times amadores não é
a paixão, nem o gosto estético pelo futebol, mas uma outra forma de torcer e interagir com os
jogadores.
Os torcedores participam ativamente, de forma semelhante à participação nos
estádios de futebol, também gritam e xingam, mas com uma diferença significativa: eles falam
diretamente com os jogadores. Os torcedores de futebol amador não são anônimos, eles se
conhecem e são reconhecidos pelos jogadores, na maioria das vezes são vizinhos ou colegas
de trabalho e de bar. Essa proximidade permite que torcedores brinquem com os "peladeiros"
como por exemplo, em um jogo quando um torcedor gritou para o banco: "Ei, técnico, deixa
esses dois papudinho aí no banco mesmo". Os dois jogadores que estavam no banco acenaram
sorrindo de volta para o torcedor/amigo.
Mas não há brincadeiras por parte dos torcedores, aqueles que orientam e
cobram do time, tal qual é feito nos estádios com os times profissionais, com a imensa
diferença de que no futebol amador os jogadores escutam os torcedores e os respondem ora
concordando, ora discordando. aqueles que copiam o modelo de torcida organizada dos
times profissionais, como a torcida do Ájax, um time de futebol amador que foi campeão
170
por sua RPA. São várias as semelhanças, do nome aos gritos de guerra, passando pelas
bandeiras e vestimenta. Por exemplo, o nome da torcida é "Mancha Vermelha" e um dos gritos
é: "Uh, terror, Mancha Vermelha é um terror". Enfim, a torcida do futebol de amador é
permeada por diferentes significados e valores.
Recife conta hoje com aproximadamente 165 campos; destes, poucos possuem uma
estrutura nima: iluminação, tamanho oficial, vestiários, alambrados e arquibancadas.
Nenhum campo administrado pelo poder público possui gramado. Dos que são administrados
pela prefeitura destaca-se o campo do Bueirão e o campo da Macaxeira que possuem uma
estrutura mínima, embora o campo da Macaxeira não possua alambrado e suas arquibancadas
tenham sido feitas apenas com o barro e pedras do próprio local.
Dos campos que visitei, o campo do Bueirão é o que possui melhor estrutura física.
Existem dois vestiários; neles bancos de alvenaria, todo vestiário é revestido de azulejo
branco, contendo também os chuveiros para os jogadores. O alambrado cerca todo o campo de
jogo, havendo um portão onde apenas as pessoas autorizadas entram durante uma partida de
campeonato: os árbitros e mesários, os representantes da DEA e, claro, comissão técnica dos
times (formada geralmente pelos diretores) e jogadores titulares e reservas.
Figura 17 Arquibancada do campo da Macaxeira. Recife/PE.
171
Torcedores e jogadores do Ájax conversam, através do
alambrado, antes do início do jogo.
A maioria dos jogos do FP que acompanhei nesses dois campos sempre contou
com a presença de torcedores, alguns jogos contam com uma média de 100 torcedores, outros,
principalmente os jogos eliminatórios, com mais de 300 pessoas, como foi o caso do jogo
Vascão e Furacão no campo da Macaxeira e no Bueirão. O jogo final da RPA 4.1 contou com
aproximadamente 200 torcedores. Em ambos os campos, a proximidade entre torcedores e
jogadores é muito pequena; no Bueirão, os torcedores são separados por um alambrado, mas
os bancos dos times ficam encostados no alambrado permitindo uma comunicação direta entre
torcedores e comissão técnica, torcedores e jogadores, torcedores e reservas e também entre
torcedores e árbitros.
Antes do início das partidas alguns jogadores e torcedores conversam entre si, seja
antes de entrarem em campo, seja através dos alambrados, muitos comentários jocosos o
ditos de ambas as partes, outros conversam sobre trabalho e sobre amigos em comum.
Torcedores e jogadores possuem uma relação que é anterior ao futebol amador. Assim, os
xingamentos normalmente não provocam reações dos jogadores, pois tanto torcedores quanto
jogadores sabem o limite entre o que pode ser dito e o que é proibido nas suas relações
Figura 18 Arquibancada do campo do Bueirão, Recife/PE.
172
(Bourdieu, 2004). Vai pra casa, papudin!‖, ―deixa de ser ruim, macho!‖, ―tá emaconhado,
é?!‖, são as expressões ditas para jogadores do seu time, que algumas vezes respondem aos
torcedores ―e tu? Que não joga nada!‖, ―vá se fuder!‖. Entretanto, mesmo quando o jogo é
tenso, os xingamentos são ditos quase sempre acompanhados de um sorriso ou mesmo de uma
gargalhada. Entretanto, os xingamentos e as provocações debochadas somente podem ocorrer
entre ―amigos‖. Se ocorrer entre torcedores com jogadores de outras equipes, se não houver
uma relação interpessoal entre os envolvidos na ―brincadeira‖, facilmente poderá se
desencadear um conflito, como foi descrito em várias entrevistas e conversas informais.
A maioria dos torcedores presentes nos campos é homem, mas as mulheres
também se fazem presentes, principalmente no campo do Bueirão; também um grande
número de crianças e pré-adolescentes. No campo da Macaxeira, os adultos parecem ser
maioria, enquanto que no campo do Bueirão esse número é mais equilibrado. A presença de
tantas pessoas mobiliza o corcio informal tanto nas arquibancadas quanto nas proximidades
do campo. Para a maioria dos presentes, os jogos do futebol amador se configuram como uma
das poucas opções de lazer do bairro, a outra opção para a maioria são os bares locais.
O único campo que tem, a única área de lazer que tem. Se acabasse esse
campo, acabava com o lugar. E ai o lugar tem isso ai, a comunidade só
tem isso ai pra ver. Têm muitos que negocia, que ganha seu trocado,
Figura 19 Torcedores e jogadores do Ájax conversam através do
alambrado, antes do início do jogo.
173
quando tem jogo, que tem muita gente vende água, refrigerante, cerveja,
vende tudo aí, pipocas, cigarro (...) É churrasco. Tudo vende. Então, quando
não tem campeonato aqui fica muito apagado, fica um museu medonho
(Renê, presidente e jogador da Pelada da Amizade).
O envolvimento entre torcedores e time começa antes mesmo do jogo, quando
muitos destes colaboram financeiramente com o time, ―um 5, outro da 10 e a gente vai
juntando(Duda), há uma identidade entre time e comunidade. Assim, o Ájax representa a
comunidade da Mangueira e os alguns moradores contribuem e participam ativamente na
torcida para que o time represente bem a sua comunidade. Como alguns times têm o mesmo
nome, os times são reconhecidos pela comunidade, dessa forma é o Ájax da Mangueira, o
Palmeiras da Beira Rio, o Cruzeiro do Ibura. Os nomes das comunidades tornam-se um
sobrenome para os times fortalecendo ainda mais essa identidade entre comunidade e o time
de futebol amador.
Os torcedores também criam novas formas de expressar sua relação com o time.
No caso do Ájax, a maioria dos torcedores vai com a blusa do time, inclusive crianças, o que
mostra um tipo de relação mais próxima com o time, comprando ou ganhando de presente a
blusa do time. Outra forma de torcer pelo time que representa a sua comunidade é a criação de
uma torcida organizada, como foi o caso da crião, em 2005, da torcida Mancha Vermelha‖.
4.2 A torcida organizada Mancha Vermelha: o significado de torcer
para o Ájax
Quando iniciei a pesquisa de campo um dos fatos que mais me impressionou foi a
presença de torcidas organizadas, que embora não tenham a estrutura burocrática que as
torcidas organizadas dos clubes profissionais, possuem muitas semelhanças com estas. As
semelhanças passam pelos nomes, gritos de guerra, músicas e bandeiras. Além disso,
acompanham os times em todos os jogos.
174
A torcida ―Mancha Vermelha‖ é a torcida organizada do Ájax, seu nome lembra
imediatamente a torcida ―Mancha Verde‖ do Palmeiras (SP). A maioria de seus componentes
é formada por adolescentes, pré-adolescentes e crianças. A torcida surgiu em 2005, após um
dos jogos da pelada que ocorre aos domingos
89
. Em 2005, a liderança da torcida cabia
principalmente a Ítalo, um jovem de 18 anos, que, como todos os membros da torcida, é
morador da comunidade da Mangueira. Para Ítalo, o Ájax representa a comunidade, então o
time precisa do apoio de uma torcida forte para incentivar os jogadores. Além de apoiar a
comunidade, a torcida organizada se caracteriza também como um momento de lazer para os
seus integrantes.
Torcer pelo Ájax é exprimir também o orgulho de fazer parte de uma comunidade,
que se faz vitoriosa através do futebol amador. Os jovens torcedores buscam através das
vitórias de seu time afirmar positivamente o seu local de moradia, que normalmente é
estigmatizado por ser favela. Assim, são veiculadas como locais pobreza e violência, as
classes médias e dominantes reeditam o preconceito contras as classes perigosas‖. Não é à
toa que as blitz e revistas policiais visam quase sempre jovens das classes baixas, negros e
moradores de favelas; a torcida afirma positivamente o nome de um time de uma
comunidade, ―a diversão que passa pro time, aquela animação na arquibancada, espalhar o
nome do Ájax por todo canto, eu gosto muito disso‖ (Ítalo, diretor da torcida Mancha
Vermelha).
A torcida do Ájax possui um bandeirão, faixas, camisas uniformizadas, charanga,
fogos de artifício e ―sinalizadores‖. Além disso, possui cantos de incentivos ao Ájax e gritos
de guerra. A semelhança com torcidas organizadas não é inflncia apenas do que é visto nos
estádios e na transmissão de jogos, mas também pela própria participação em torcidas de
times profissionais, pois Ítalo e outros membros da ―Mancha Vermelha‖ integram a torcida
89
A ―pelada‖ da Mangueira foi analisada no capítulo 3.
175
organizada ―Força Jovem‖, torcida do Sport (PE). Os jovens da ―Mancha Vermelha‖ se
colocam como representantes dos torcedores do Ájax, embora os torcedores ―comuns‖ do
time se posicionam nas arquibancadas de uma forma que, embora torçam para o mesmo time,
evidenciam que o pertencem à torcida organizada. (FIGURAS 20 e 21)
Os torcedores ―comuns‖ do Ájax se identificam com o time por este se apresentar
como representante legítimo da comunidade da Mangueira. Alguns dos jogadores que estão
Figura 20 Torcida Mancha Vermelha do Ájax. Recife/PE
Figura 21 Torcida Mancha Vermelha do Ajax ensaiando músicas
antes do jogo.
Recife/PE
176
em campo são moradores e ex-moradores da comunidade; os demais, apesar de não serem
membros da comunidade, são considerados como tais, eles são vistos como ―nossos
jogadores‖, pois ―suam‖ a camisa pelo time da comunidade. Os integrantes da torcida
―Mancha Vermelha‖, além de identificarem o time do Ájax com a sua comunidade de origem,
constroem sua identificação a partir da construção de relação de alteridade com os torcedores
e os times adversários.
A presença ou a ausência de torcedores de times adversários influenciava na
posição da ―Mancha Vermelha‖ na arquibancada. Assim, se determinados jogos os torcedores
adversários não compareciam ou não formavam grupos, os integrantes da ―Mancha vermelha‖
cantavam, pulavam, gritavam e dançavam de frente para o campo, mas se houvesse uma
presença mais numerosa de torcedores adversários incentivando seu time, os membros da
torcida organizada se posicionavam lateralmente cantando, gritando, dançando em direção
a esses torcedores durante vários momentos do jogo, principalmente após algum gol do Ájax,
ou diante de jogadas bem executadas.
A sociabilidade engendrada pelo futebol impõe um jogo de diferenças
sempre aberto às negociações, aos conflitos, aos improvisos, ao possível, à
violência, ao mesmo tempo de afirmação diante do outro. Estas são
características das sociedades modernas ocidentais, de mercado assentadas
nos parâmetros da individualidade e de um liberalismo positivo (TOLEDO,
1996, p. 103).
Na final da RPA 4.1, em que o Ájax conquistou o título (decidido nos pênaltis),
houve muita comemoração dentro e fora do campo. Após o momento da premiação, a maioria
dos presentes se dirigiu até a comunidade da Mangueira, mais precisamente para a
coberta‖
90
. Acompanhei um dos grupos que se dirigiam ao local; neste, a maioria era
formada por membros da torcida e dois adultos, um deles diretor do Ájax. Durante o percurso,
os adolescentes cantavam, brincavam, tocavam instrumentos, dois deles subiram no capô de
90
Local improvisado dentro da comunidade como ―sede‖ para os encontros após os jogos e as peladas. Ver
descrição e fotos no capítulo 3.
177
um carro, outros, ao passarem pelos carros, tentavam quebrar os retrovisores, mas logo os
adultos intervieram, dizendo coisas do tipo ―ei, rapaz, isso não‖, ―ei, ei, vamo parar‖. Talvez
pela minha presença, ou pelo fato dos adultos serem membros da mesma comunidade sendo
próximos de cada um deles e também de seus familiares , os jovens prontamente
obedeceram, e continuaram a sua comemoração de forma ―ordeira‖. Assim, os membros da
torcida reconhecem que a sua ação diante de determinados adultos é limitada, somente sendo
possível quebrá-la no anonimato que as torcidas organizadas dos clubes profissionais
asseguram através da multidão. Mesmo em uma forma de organização que se reivindica
autônoma, é perceptível que a relação entre torcedores e jogadores/diretores é mediada por
regras que são estabelecidas e negociadas entre eles.
No dia 8 de dezembro, o jogo entre Ájax e Hidro foi decido nos naltis; dessa
vez, o Ájax foi eliminado. O ônibus que trouxe a torcida do Canto do Rio foi apedrejado,
houve tumulto generalizado, envolvendo principalmente torcedores, jogadores e diretores
91
.
Se, nas torcidas organizadas de times profissionais, as atitudes violentas são muitas vezes
atribuídas à ―molecada‖ (TOLEDO, 1996), na Mancha Vermelha, a violência foi provocada
pelo outro, por um torcedor e por um jogador adversários, ambos cometeram atos
condenáveis: debochou da torcida utilizando gestos obscenos e o segundo, um adulto, agrediu
com um murro um ―menino‖, um pirráia‖. Não importa aqui se essa narrativa é ou não
―verdadeira‖, o que importa realmente é o que elas traduzem:
o jogo tava nervoso, fez o gol, aí um torcedor chegou e ficou discutindo
com o Adriano, ―não conhecia o Ájax, não era nada, ninguém conhecia esse
nome‖, fez o gol, comemorando, aí ele correu tirou a roupa e fez gestos
obscenos pra torcida, teve tumulto a gente tirou, teve o primeiro tumulto a
gente tirou, já ficou aquele clima (...) aí perdemos nos pênaltis não sei o
que ele fez saiu correndo e outros correndo atrás, aí um jogador deles saiu do
campo pra pegar os meninos menores... aí ele no ônibus acertou um soco no
menino Fernando acertou também aí foi tumulto generalizado, pegou
todo mundo, começou o quebra-quebra, aí ninguém podia fazer mais
nada (Ítalo, diretor da torcida Mancha Vermelha).
91
Infelizmente, devido a uma pequena cirurgia, não pude comparecer ao jogo. Assim, os relatos que se seguem
são descrições das descrições, uma leitura de terceira mão, como diria Geertz (1989).
178
O tumulto que gerou a depredação do ônibus é justificado pela conduta dos
adversários que quebraram regras que permitem a convivência pacífica entre grupos
adversários. Se o desrespeito‖ ao time quase sempre é tomado como provocação e
jocosidade, os ―atos obscenos‖ são quase sempre considerados uma agressão séria que precisa
ser revidada, pois na torcida esposas, namoradas, mães e irmãs dos torcedores e dos jogadores
quase sempre estão presentes, principalmente em jogos decisivos. ―Aí não dá, né, o cara fazer
isso, cheio de mulher, a maioria mãe de família‖ (Fabinho, diretor do Ájax).
O estatuto inferior que os adolescentes e crianças têm em nossa sociedade, sendo
dependentes dos adultos tal qual as mulheres também os fazem ser ―protegidos‖. Assim,
um adulto agredir um adolescente viola essa regra social
92
, que se expressa nas restrições do
uso da força física entre adultos e adolescentes nas peladas de futebol, como visto no capítulo
3. A violência ocorrida no dia do jogo entre Canto do Rio e Ájax não pode ser compreendida
através de discursos normativos, é necessário apreender os significados que as práticas tidas
como violentas assumem na vida de adolescentes e adultos.
As duas lideraas da Mancha Vermelha participam de torcidas organizadas de
clubes profissionais de Recife, sendo que torcem por times diferentes e, principalmente, são
membros de torcidas organizadas rivais, um da Força Jovem e o outro da Inferno Coral (Sport
e Santa Cruz, respectivamente). Essas torcidas são conhecidas pela rivalidade e confrontos, os
dois amigos de infância são ―inimigos‖ como torcedores (―eu não vou bater nele, claro‖), e,
caso se encontrem em algum estádio e ruas antes durante ou após um jogo, a solução para
evitar o confronto é simples: ―eu finjo que não conheço ele‖. A amizade de infância supera os
conflitos pela inserção em grupos antagônicos, assim algumas regras são mais fortes e
importantes para o sujeito que outras, possibilitando uma conciliação entre éticas distintas e
revelando também que a violência é apenas um dos elementos da sociabilidade juvenil que,
92
Ressalte-se que a violência doméstica contra mulheres, crianças e adolescentes revela ―quem‖ pode agredir, no
caso, quem tem ―autoridade‖ sobre estes.
179
nesse caso, está longe de ser o elemento fundante, como divulgam os meios de comunicação
de massa quando se referem aos ―arruaceiros‖, ―covardes‖ e ―bandidos‖ que integram as
torcidas organizadas. O fundamental a reter aqui é como as regras são negociadas pelos
indivíduos, seja na relação entre os jogadores/diretores com os torcedores comuns‖, ou com
os torcedores da torcida organizada (GARFINKEL, 1963; ELIAS, 1992).
4.3 O pau-de-arara e a torcida no sertão: jogo de homem, lazer da
família
Os jogos de futebol amador no sertão têm uma característica importante que os
distingue dos jogos que ocorrem no meio urbano, pois se neste espaço os jogos dos times
reforçam os laços de identificação com a comunidade - e claro, momentos de lazer e
descontração, principalmente entre os homens no meio rural, os jogos, sejam eles de
campeonatos ou apenas jogos amistosos, convertem-se numa ―festa‖ que envolve não apenas a
díade jogadores-torcedores, mas também a maioria dos membros da família dos jogadores e
diretores.
As partidas são uma oportunidade de lazer para toda a família e também para os
demais moradores, pois movimenta a comunidade, tanto nos jogos de ida quanto nos jogos de
volta. Em jogo amistoso do União São João em casa, observei uma quantidade de pessoas que
eu ainda não tinha visto, contei 22 adultos, além de um vendedor de pico em saquinho
(FIGURA 22). No meio das pessoas uma presença grande das esposas dos jogadores e de
seus filhos, além de alguns idosos também se fazem presentes.
Acompanhei o jogo onde o USJ jogou fora de casa, contra o Aracati, um dos times
da sede do distrito de Aracatiaçu, distante oito quilômetros do assentamento. Fomos de pau-
de-arara para a sede, ou como os moradores dizem ―pra rua‖. O pau-de-arara é um caminhão
utilizado para o transporte de pessoas, sendo sua carroceria adaptada para isto, bancos de
180
madeira são afixados, e também uma proteção de madeira ao redor do caminhão e também no
teto, formando quase um baú de aproximadamente 1,50m de altura. Como as ―grades‖ são
formadas de madeiras, uma grande lona amarela no teto protegia-nos da chuva.
O caminhão foi até a entrada do assentamento, lá embarcaram a maioria dos
jogadores do time, cerca de dez, e algumas mulheres e crianças. As mulheres que foram eram
esposas dos jogadores com seus filhos, como foi o caso de Toinha e Luciana, que seus
levaram seus filhos, além de mim e nica, minha prima e irdo diretor do time, Cícero,
também meu primo. Saímos mais ou menos às 14:00h, mais à frente o caminhão parou e
subiram mais três jogadores e a esposa de um destes, chamada Cídia. Mais a frente outra
parada rápida e o embarque de mais três jogadores.
Rapidamente o caminhão ficou lotado. A cabine do caminhão é privilégio das
senhoras mais velhas ou com crianças de colo, as demais mulheres e crianças dividem o
espaço com os jogadores. Na carroceria muitas brincadeiras entre os jogadores, um deles
quando o caminhão entrava na sede do distrito gritava e ria bem alto: Vamo pro grande
jogo... ninguém pode perder. O União São João... é um grande time, melhor que Barcelona‖.
Figura 22 Vendedor de picolé de saquinho em jogo de futebol amador
no sertão.
Recife/PE
181
Todos do caminhão riam bastante desse tipo de brincadeiras. O momento de ir jogar fora é um
acontecimento especial, principalmente para as mulheres, que pouco saem de comunidade,
mesmo para lugares próximos como a sede do distrito. Segundo Luciana, esposa de um
jogador, é muito bom quando tem jogo fora, pelo menos a gente sai de casa‖.
Figura 23 Pau-de-arara utilizado para transporte de jogadores e
torcedores do União São João. Aracatiaçu, Sobral/CE
Recife/PE
Figura 24 Mulheres e crianças que comem a torcida. Aracatiaçu,
Sobral/CE
Recife/PE
182
As partidas de futebol tornam-se um momento de encontro e reencontro,
principalmente quando ocorre em lugares mais distantes, pois diante da falta de transporte
coletivo e particular, torna-se difícil visitar parentes que moram em localidades mais distantes,
principalmente para as mulheres que nitidamente são destinadas ao espaço do privado. Como
na cidade, as partidas tornam-se um grande encontro festivo, mas acrescenta-se que no meio
rural este é um dos poucos momentos onde os moradores podem deslocar-se dentro de seu
município apenas para uma atividade de lazer, pois quando vão para a ―rua‖ (sede) ou para
Sobral, na maioria das vezes, esse deslocamento é feito para cumprimento de alguma atividade
como a ida a um médico ou para realizar alguma tarefa.
As as partidas em casa, os jogadores reúnem-se com alguns torcedores para
tomarem refrigerante e cachaça. O álcool é um componente importante nas reuniões após as
partidas tanto no meio rural quando no meio urbano, com a diferença apenas do tipo de
bebida. A conversa animada, recheada de brincadeiras gira em torno da partida: as jogadas
mais bonitas e as mais engraçadas, as reclamações contra os juízes, os gols, as falhas, etc. Mas
diferentemente da cidade os encontros não demoram muito, em dia duas horas, a maioria
dos jogadores não tarda a retornar para suas casas, alguns continuam a ―brincadeira‖ no único
bar da localidade. Quando o jogo é fora de casa, rapidamente os jogadores e alguns torcedores
dividem um litro de cachaça, pois o caminhão é alugado por um determinado tempo, não
podendo haver atraso. Nesse caso, o pau-de-arara substitui o bar, pois o consumo e as
brincadeiras continuam durante o percurso de volta pra casa.
4.4 Fim da partida, início da festa: o encontro de torcedores e
jogadores
A proximidade entre jogadores e torcedores ocorre antes, durante e após as
partidas dos times. Como vimos, muitos torcedores contribuem financeiramente para o time
183
ou colaboram de alguma de alguma forma, por exemplo, ajudando a transportar os uniformes
do time e a água para os jogadores. Durante as partidas, incentivam, xingam e, sobretudo,
estabelecem relações de jocosidade com os jogadores. Entretanto, assim como na relação
entre os jogadores de pelada, essas provocações jocosas são limitadas pelas regras de
convivência entre os grupos, sendo repreendido aquele que rompe com as regras (Garfinkel,
1967). A participação não termina com o fim do jogo, ao contrário, os torcedores e jogadores
participam de um momento importante: a confraternização após os jogos ou, como eles
chamam em Recife, fazem juntos a ―resenha‖.
Quanto maior o envolvimento dos torcedores com o time, maior será a
participação nas comemorações. Ressalte-se que a resenha após cada jogo é tão esperada
quanto à própria partida. A resenhareforça os laços entre jogadores, torcedores e jogadores
e, principalmente, encerra discussões que ocorrem durante as partidas, o xingamento se
transforma em piadas, afinal as brigas são percebidas como ―coisa de jogo‖, e a resenha é um
dos momentos onde se restabelece o compadrio, as relações de amizade. Assim, a ―resenha‖
fortalece as relações interpessoais, a solidariedade e a amizade, não somente entre jogadores,
mas também entre torcedores, diretores e jogadores.
O encontro após os jogos é fundamental para a existência do futebol amador, pois
se os times não promoverem esses encontros certamente serão abandonados pelos jogadores e
também pelos torcedores. Se, por um lado, alguns diretores reclamam da exigência que os
jogadores fazem da ―resenha‖, pois onera bastante os gastos com o time em Recife, a
resenha é sempre regada à cerveja e petiscos por outro, fortalece aos laços identitários entre
jogadores e os times, pois o ―contrato‖ com os jogadores passa a ser baseado na
camaradagem, ou, como eles mesmos se referem, ―na base da amizade‖. Os diretores sempre
bancam uma ou duas grades de cerveja, e depois os jogadores realizam uma cota, onde a regra
básica é quem está trabalhando contribui financeiramente e todos participam normalmente da
184
resenha‖. Porém, alguns momentos são especiais como, por exemplo, a conquista de um
campeonato.
4.5 É campeão! A comemoração em “casa” do Ájax
A vitória do Ájax na partida final que definiu o campeão da RPA 4.1 foi marcada
por todos os elementos que marcam um jogo como inesquecível, pois o futebol possibilita a
criação e recriação de partidas que são narradas por quem participou ou assistiu determinado
jogo (e também por quem não esteve presente ao jogo), principalmente jogos que definem
títulos ou eliminações. O jogo teve a maior presea de público que presenciei, tensão e
emoção por parte de jogadores e torcedores, o ápice do jogo foi a cobrança de pênaltis, pois o
jogo terminou empatado (1x1). Após as cobranças de pênaltis, o Ajáx sagrou-se campeão.
A festa começou ainda no Bueirão com a entrada de torcedores no campo de jogo,
principalmente com as crianças e os adolescentes, todos do sexo masculino. Do Bueirão todos
foram a pé até a ―sede‖ do Ájax, onde jogadores, torcedores e diretores comemoram a
conquista do título. A festa, em casa, contou com a participação de muitas mulheres e
crianças, provavelmente pelo local da festa, na comunidade onde moram e também com a
participação de seus maridos, namorados, vizinhos e amigos. A festa em casa reforça o Ájax
como time da Mangueira, pois embora a maioria dos jogadores não resida na comunidade, o
time reforça seu vínculo com a Mangueira através dessas comemorações e encontros após os
jogos. (FIGURA 25)
185
A participação feminina na festa do título do Ájax é uma exceção, pois as
resenhascostumeiras após os jogos são notadamente compostas por homens, mas a festa de
um título é uma data especial, e, como um ritual, suspende temporariamente as relações
cotidianas. Desse modo, as mulheres, que pouco participam dos encontros, após os jogos
fazem-se presentes nesse evento extraordinário, pois a festa de um título rompe com o
comum, o rotineiro, o previsto, afinal um título de campeonato não possui uma temporalidade
própria, esse tempo extraordinário permite a participação feminina. (FIGURA 26)
O encontro entre torcedores e jogadores com o time, ocorre antes e após a partida,
o como esperar a ―festa‖ após o jogo, pois o jogo constitui-se como festa antes do seu
início, o pau-de-arara reúne jogadores e torcedores num encontro festivo, é o local onde os
jogadores terminam de se uniformizar (calçando os meias e as chuteiras) enquanto brincam e
se divertem com os torcedores do seu time que são os amigos(as), vizinhos(as) e familiares.
Desse modo, podemos dizer que a ―festa‖ dos times no sertão cearense é sempre em casa.
Figura 25 Em casa, festa da vitória do Ájax, campeão da RPA 4.1
Mangueira, Recife/PE
186
4.6 A torcida de pelada: negação e afirmação
Nas poucas descrições que encontrei acerca de jogos de pelada não havia
indicações de torcida, apenas de uma assistência quase sempre formada por homens que estão
esperando a sua vez de jogar, como ocorre com a pelada da Mangueira. Porém, é importante
destacar que mesmo na Mangueira há uma assistência diferenciada, pois há sempre uma
torcida por um dos times. Na pelada do o João, o que mais se destaca é o fato da torcida ser
formada basicamente por mulheres.
As mulheres que participam da pelada do São João como torcedoras são, na sua
maioria, esposas ou namoradas dos jogadores. Somente numa pelada estavam presentes
mulheres adolescentes que eram apenas amigas dos jogadores, mas nesse dia elas estavam ali
também para jogar. Como o campo é dividido em dois, as adolescentes ocuparam o lado do
campo menos valorizado e foram jogar futebol com crianças do sexo masculino que não
tiveram oportunidade de jogar na pelada dos adultos. Excetuando essa situação, as mulheres
Figura 26 Comemoração da vitória do Ájax, campeão da RPA 4.
Excepcionalmente é permitida participação das mulheres ao evento do
time. Mangueira, Recife/PE
187
que assistem aos jogos são esposas ou namoradas dos jogadores. Porém, essa assistência não é
passiva, é também uma participação ativa, pois gritam, reclamam, orientam. (FIGURA 27)
Lili, 32 anos, esposa de Francisco, também jogava futebol amador de forma
esporádica - atualmente não joga, pois no São João apenas ela sabe jogar, não sendo
possível formar um time com as poucas mulheres que se dispõe a jogar. Lili participa
ativamente da pelada masculina, percorre toda a lateral do campo, à moda de um técnico,
grita, reclama, orienta, alerta. Os jogadores do time orientado‖ por ela, inclusive seu marido,
ficam calados diante de seus gritos, mesmo quando esta grita algo do tipo ―ô, macho ruim!‖.
Por um lado, se aproveitam de umas instruções, mas, por outro, fazem isso sem nenhuma
menção à ―técnica‖. (FIGURA 28)
O fato das mulheres morarem em frente ou próximo ao campo certamente ajuda
nessa participação, mas é certo que também não é apenas isto que motiva sua inserção. Na
pelada da amizade‖, alguns jogadores moram bem próximos ao campo, mas , à exemplo da
Mangueira, não há nenhuma presença feminina. As mulheres acompanham também os jogos
dos torneios e os amistosos, elas dizem que é uma forma de diversão e uma oportunidade de
sair de casa, pois os amistosos entre os times no sertão envolvem necessariamente o aluguel
do ―carro‖, ou seja, caminhões, estilo pau-de-arara, para transportar os jogadores e a torcida -
o transporte público não existe nessas localidades. A pelada e o futebol amador deixam de ser
um lazer exclusivamente masculino e transformam-se em um lazer que engloba as mulheres e
também as crianças, como vimos no capítulo anterior.
A assistência das mulheres às peladas e suas falas jocosas com os maridos revelam
uma inversão do mundo social. Os homens assumem o papel de provedores do lar e de chefes
de família, tendo autoridade para tomar decisões por toda a família (BOURDIEU, 1999).
Entretanto, durante a pelada, os jogadores aceitam passivamente as brincadeiras,
principalmente de Lili, pois esta tem o reconhecimento dos jogadores, ―ah! aquela joga mió
188
que muitos hômi‖. Porém, as brincadeiras respeitam os limites das relações interpessoais.
Quanto mais próximos são os envolvidos (marido/mulher,irmão/irmã, cunhado/cunhada), mais
jocosas são as brincadeiras, e quanto mais distante a relação interpessoal
(amigo/amiga,vizinho/vizinha, assentado/assentada), mais diminuem as brincadeiras.
Figura 27 Participação de mulheres durante a pelada no São João.
Aracatiaçu, Sobral/CE.
Figura 28 Treinadora (vermelho) orienta os jogadores (preto). Pelada
no São João. Aracatiaçu, Sobral/CE.
189
4.7 A assistência na Mangueira: relações de autoridade x amizade
A assistência das peladas na Mangueira é o que mais se aproxima das descrões de
jogos de pelada (DAMO, 2005; 2007; VILLELA 1997; GONÇALVES, 2002), ou seja, a
maioria dos que assistem aos jogos, estão esperando a sua vez de entrar no time. Destes, os
adultos sempre entrarão no jogo, com exceção daqueles que estão com algum problema de
saúde, mas que mesmo assim comparecem aos jogos. Os demais são os adolescentes que
aguardam a sua vez de jogar; esses poderão ou não entrar na partida. Isso dependerá da
quantidade de adultos presentes, pois em alguns jogos apenas os adultos participam da pelada,
embora na maioria dos jogos a que assisti alguns adolescentes entraram durante os jogos,
principalmente no segundo tempo.
Os que ficam na assistência participam ativamente da partida, seja instruindo seus
companheiros de time, seja com brincadeiras provocativas. Os adolescentes também brincam
com os adultos, mas quase sempre suas brincadeiras apenas dão continuidade a alguma
provocação de um adulto. Eles respeitam as regras de subalternidade entre adultos e
adolescentes. A relação entre a assistência e os peladeiros é constante, aumentando no
momento de maior tensão e emoção: o momento dos gols. Essa troca intensa revela um jogo
que é jogado e também falado durante quase todo o tempo da partida.
A pelada da Mangueira também revela um importante personagem, o ―treinador
Edinho, que, apesar de impossibilitado de jogar devido a um problema no coração, participa
intensamente dos jogos. Ele é um dos responsáveis pelo time vermelho, escalando os
peladeiros, mas principalmente orientando o time durante toda a partida. Edinho também
reclama bastante do árbitro do jogo, ocasionando desentendimentos em duas partidas, uma
delas analisada nas páginas 136 e 137.
As brincadeiras jocosas ocorrem principalmente com os deres dos times, embora
atinja também os jogadores que não tenham ascendência entre os demais peladeiros, porém
190
com esses as brincadeiras são suavizadas, respeitando os limites impostos pelo grupo. Assim,
as relações entre assistência e peladeiros é marcada por uma relação de amizade, mas também
por uma relão de autoridade, estabelecendo uma hierarquia entre indivíduos que
aparentemente estariam distribuídos no mesmo campo de poder. Entretanto, outras variáveis
são consideradas importantes nessas classificações e diferenciações internas, como o tempo
que o indivíduo freqüenta a pelada, o seu papel na organização da pelada e o reconhecimento
do seu capital futebolístico.
Apesar de ocorrerem poucos conflitos entre torcedores e jogadores/diretores,
quando os desentendimentos ocorrem as justificativas são algo do tipo: ―também o cara não
sabe nem brincar‖ ou então ―ele o sabe se o respeito‖, em outras palavras, estes não
possuem o ―sentido do jogo‖, o habitus que capacita o agente para transitar com competência
no grupo (BOURDIEU, 1996), aquele que não ―sabe brincar‖, que ainda não incorporou as
regras que mediam essas relações. Mas estes casos eram exceções. Durante a pesquisa me
surpreendia com o donio que os agentes possuíam do permitido e do proibido em suas
relações - principalmente quando eu me perguntava sobre o que aconteceria em seguida a um
xingamento do tipo: tomou gala foi?‖ ou então ―sai daí seu filho da puta‖, respondido com
outro xingamento ou com uma provocação jocosa, em qualquer um dos casos os risos
acompanhavam as expressões de baixo calão.
Sejam brincadeiras jocosas, provocações ou xingamentos, cada grupo social
delimita o que é ou não aceitável. Por exemplo, os xingamentos de conotação sexual, de
feminização do adversário, somente são permitidos nas peladas em Recife. No São João, nem
entre os próprios peladeiros é aceitável, muito menos entre torcedores e jogadores. Os
jogadores, torcedores, diretores, ―peladeiros‖ dominam a linguagem natural do grupo.
Somente quem é membro do grupo percebe a linha tênue entre a brincadeira e o xingamento, a
provocação e a ofensa (GARFINKEL, 1963; 1967). Desse modo, é indispensável partir do
191
ponto de vista dos atores, para compreendermos quando um ―filho da puta‖ significa um
convite ao conflito ou quando ―filho da puta‖ quer apenas reforçar as relações interpessoais.
Assim, este último capítulo procurou compreender - a partir das torcidas do futebol
amador e da pelada - como são negociadas as regras que permeiam as relações com os
jogadores e diretores. Certamente as reflexões deste capítulo se constituem apenas como um
ponta pé‖ inicial, para que outras abordagens entrem nesse amplo e convidativo campo de
estudos.
192
CONCLUSÃO
Ao final dessa tese é fundamental destacar alguns elementos que merecem uma
apreciação analítica a fim de destacar os principais resultados encontrados ao longo desse
estudo; além disso, é necessário também apontar novos caminhos, eleger temas que
necessitam de novas pesquisas e novas abordagens.
Ao longo dos quatro capítulos foi evidenciado que o futebol amador e as peladas
são práticas esportivas e sociais que possuem diferentes matizes, impedindo uma
generalização e solicitando novos trabalhos empíricos. Apesar das diferenças que existem
entre um e outro (futebol amador e peladas dos meios rural e urbano), foi possível identificar
que as regras se constituem como elemento essencial para a definição do jogo, tanto do ponto
de vista da dinâmica intrínseca do jogo quanto das relações entre jogadores, diretores e
torcedores.
Assim, para além das regras do jogo, vimos que também existe o jogo das regras
desafiando constantemente aqueles que possuem o ―sentido do jogo (BOURDIEU, 2001).
Nesse momento, contudo, é necessário separar as duas práticas: como vimos, o futebol
amador e as peladas são práticas distintas, cada uma revelando especificidades.
O futebol amador, como foi definido no primeiro capítulo, possui duas dimensões:
estrutural e da prática do jogo. Ao utilizarmos os times do União São João e do Ájax, para
exemplificar essas dimensões, vimos que mais semelhanças que diferenças, a despeito
desses times se localizarem em espaços sociais tão distintos. E encontraremos as diferenças
mais substantivas ao dirigirmos para torcida, como destacamos no capítulo IV.
As torcidas no meio urbano possuem uma relação mais efetiva com o time,
participando não apenas no dia de jogos, mas colaborando com a existência dos times, através
193
de doações para viabilizá-los economicamente. O envolvimento com o time se revelará na
forma de torcer - mesmo os torcedores ―comuns irão incentivar o time durante as partidas,
com gritos de incentivo ou mesmo com brincadeiras. A criação de torcidas organizadas tem
semelhança estrutural com o futebol profissional, porém é imprescindível destacar que a
relação da torcida com o futebol amador é quase uma extensão das relações interpessoais que
torcedores e jogadores mantêm no seu cotidiano: tanto numa quanto noutra, vigoram regras de
convivência que conformam essas relações.
Torcedores e jogadores mantêm uma interação que suplanta os alambrados
quando estes existem; assim, quem é membro do grupo conhece os limites das relações
jocosas, percebe quando as brincadeiras ofensivas não se constituem uma ofensa, ou ainda,
que a falta da ofensa pode constituir-se, sim, numa ofensa por revelar a incapacidade do ator
em dominar o contexto da situação - somente aqueles que possuem o ―sentido do jogo
conseguem transitar com segurança e propriedade dentro desse campo, pois incorporaram as
regras que regem essas relações.
Ei corno chuta logo!‖, ta emaconhado é?‖ ou ―seu filho da puta‖ são frases que
em muitos grupos se constituiriam no estopim para um conflito sério entre as partes, porém,
tanto aqueles que enunciam quanto os que ouvem os xingamentos/brincadeiras dominam
aquele contexto, e sabem o que é ou não permitido. Assim, as principais regras que orientam
as ações dos sujeitos são aquelas que o são verbalizadas: o não-dito orienta a conduta dos
envolvidos. Como são regras que não são enunciadas, somente o membro do grupo pode
dominar as regras de linguagem e de conduta. Os torcedores sabem exatamente quem eles
podem ou o xingar e provocar, da mesma forma que os diretores e os jogadores sabem o
que podem ou não responder. Com os jogadores de outros times as ofensas não são aceitas,
talvez por isso quase não ter ouvido torcedores gritarem xingamentos contra jogadores
adversários, presenciando apenas provocações jocosas.
194
No meio rural uma presença maior de mulheres e crianças nas torcidas,
salientamos que os jogos dos times amadores se constituem numa das poucas oportunidades
de lazer. Assim, além do jogo, outros interesses despertam a atenção das mulheres como a
visita a algum parente, por exemplo. Mas mesmo com algumas mulheres dispersando durante
as partidas, ainda assim participam dos jogos em número maior que as mulheres do meio
moderno. No meio rural os palavrões são proibidos, embora as provocações jocosas
permaneçam, mas estas são feitas sem a utilização de termos pejorativos. Os torcedores e os
jogadores compartilham da mesma linguagem natural do grupo, conhecendo exatamente o
que pode ou não ser dito, porque dominam o contexto em que a interação ocorre - somente
aqueles que têm esse donio (porque convivem no grupo muito tempo, alguns desde que
nasceram), podem reconhecer, por exemplo, se a expressão ―felá da gaita‖ está sendo usada
como xingamento ou brincadeira. Eu, por mais que conhecesse os grupos envolvidos,
titubeava diante do significado da expressão, tendo certeza do que se tratava apenas pelas
reações dos sujeitos envolvidos.
No sertão ou na cidade, quando os indivíduos se comunicam, lançam mão de uma
série de conhecimentos que os indivíduos não pertencentes ao grupo desconhecem, até porque
utilizam dentre outras coisas o passado e a biografia daqueles que estão envolvidos no
processo interacional (GARFINKEL, 1967, p. 40). Importante destacar, que esse
conhecimento extrapola a linguagem, pois penetra os corpos dos sujeitos, o que nos ajuda a
explicar as soluções que eles adotam rapidamente quando durante um jogo uma
divergência quanto à existência ou não de uma falta - eles sabem ―pelo jeito que ele foi na
bola‖.
Elias também concedeu um papel especial às regras do jogo, destacando
principalmente o caráter elástico das regras e evidenciando assim como Garfinkel - que
quaisquer regras formais não dizem como um jogador de futebol deve jogar, mas apenas
195
informam principalmente o que é considerado ilegal na execução do jogo. Elias (1992), cita o
exemplo da regra de início do jogo (regra 08) do futebol, que é bastante exemplar do caráter
elástico da regra - esta diz que os jogadores devem estar em seu próprio campo e os
adversários a uma distância mínima de 9,15 metros, quando a bola deverá ser chutada para a
frente. A regra 08 não diz como cada jogador deve se postar em campo ou que espaço este
deve ocupar, o que lhe permite bastante liberdade, fazendo combinar flexibilidade e rigidez:
desse modo, aquele que melhor jogar com as regras terá mais chance de sair vencedor.
Podemos dizer que a ―manipulação‖ das regras mantém a dinâmica dos jogos. No
caso do futebol amador, algumas normas incidem mais sobre a dinâmica figuracional das
equipes - é o caso daquelas que nomeei como regras de ação, para contrastar com as regras
conformativas, mais voltadas à conformação do espaço e do tempo. Interessante perceber que
o futebol amador se afasta muito de uma imagem do senso comum como um tipo de futebol
inferior, desordenado e desregrado no sentido de que as regras são constantemente burladas
ou mesmo esquecidas‖ - nada mais distante do que se pode observar nos espaços onde são
praticados esses jogos.
Os times de futebol amador possuem uma organização o apenas fora de campo,
como vimos no segundo capítulo - dentro de campo a maioria dos jogadores do quadro A
(também chamado de primeiro quadro) são jogadores experientes, ou quando são mais jovens
possuem capitais futebosticos apreciados pelos diretores e torcedores. Assim, os jogadores
ocupam posições previamente organizadas e assumem as funções que são definidas pelos
treinadores ou por eles mesmos. A posição dos times amadores em campo é orientada pelos
conhecidos sistemas de jogo, onde prevalece o sistema 4-4-2. Os jogadores amadores seguem
mais rigidamente as fuões definidas em campo, principalmente pelo fato de não possuírem
uma preparaçãosica que assegure uma maior movimentação em campo. Além da preparação
física, os capitais futebosticos ―jogam‖ um papel fundamental para definir a liberdade dos
196
jogadores em campo: quanto maior seu capital futebolístico maior a liberdade para atuar em
campo; e quanto menor for esse capital, mais ele segue as funções definidas pelo sistema de
jogo.
A limitação da preparação sica e um menor capital futebostico o impedem a
dinâmica figuracional do jogo. A dinâmica é intensa - principalmente se lembrarmos que cada
time é composto por onze jogadores -, temos num campo (quase sempre com dimensão
inferior àquela definida pela regra 01 do futebol) 22 jogadores com relações de
interdependência imensas, poderia mesmo afirmar que o infinitas diante das imensas
possibilidades do jogo. Os jogadores se movimentam de acordo com os movimentos de seus
companheiros de equipe e de seus adversários. A movimentação de um jogador se pauta pela
movimentação de seus companheiros de equipe, o deslocamento nunca é individual; desloca-
se esperando o movimento futuro do companheiro de equipe e também dos adversários. É uma
verdadeira daa, uma dança sem ensaios, improvisada a cada jogo. Essa ―dança improvisada‖
somente é possível graças ao caráter elástico das regras, dessa combinação de flexibilidade e
rigidez.
No futebol amador, como no futebol profissional, os jogadores vão aprendendo a
jogar, aprendem a agir segundo as regras, mas também para além destas. Algumas ações são
interditadas o pelas regras do football association, mas pelas normas de sociabilidade
definidas entre os grupos: não se trata de regras codificadas, mas incorporadas, que capacitam
o ator social graças a seu habitus, no caso específico ao habitus de jogador do futebol amador,
permeado por códigos e significados acessível somente aos que possuem o sentido do jogo.
Algumas jogadas, como os dribles em que a bola passa por baixo das pernas do jogador que
sofreu o drible (a famosa caneta), é o mais aplaudido nos estádios oficiais e também nos
campos‖ de futebol amador, embora seja usado com parcimônia, pois se utilizado com
freqüência poderá provocar conflitos. Da mesma forma, os xingamentos entre jogadores, e
197
entre estes e torcedores, também obedecem ao que é definido pelos grupos sociais; o tipo de
falta cometida pode ser aceita ou não, pois ―quem joga sabe quando o cara quer quebrar‖: algo
seriamente reprovado entre os jogadores e diretores que estabelecem uma diferea entre
―jogar duroe ―jogar com maldade‖.
Importante ressaltar que a elasticidade da regra, ou a incompletude presente nas
regras, não apenas define a dinâmica do jogo, como também capacita os sujeitos para agirem
no jogo, como diria Bourdieu. O bom jogador é aquele que possui o senso prático do jogo, que
incorporou o ―sentido do jogo‖. Elias também aponta nessa perspectiva quando afirma que a
elasticidade da regra pode ser utilizada a favor de quem sabe explorar a flexibilidade da regra.
No futebol amador os jogadores mais bem sucedidos são aqueles que melhor conseguem jogar
com a incompletude das regras: joga-se não a partir das regras, mas com as regras. Nesse
sentido, rompemos com uma visão da regra que impõe limites e castra as ações, e passamos a
perceber também que as regras do jogo podem capacitar o sujeito.
No futebol amador todas as regras de ação governam os jogos e acionam o caráter
elástico da regra. Os jogadores atuam com a incompletude de regras que lhes foram impostas,
como também as constroem a partir de experiências e vivências tanto no campo do jogo,
quanto na relação que estabelecem com a torcida. Nas peladas, o caráter elástico é ainda mais
evidente, pois como não existe uma agência oficial que controle a aplicação das regras, a
margem para negociação é constante durante os jogos.
As peladas, assim como o futebol amador, é um fenômeno nacional, com a
diferença do número maior de praticantes - talvez seja difícil encontrar um indivíduo do sexo
masculino que nunca tenha, em algum momento de sua vida, praticado futebol com um grupo
de amigos (ou mesmo com um grupo de desconhecidos), principalmente na infância e
adolescência. Entretanto, como vimos ao longo do terceiro capítulo, esse estudo voltou seu
olhar para grupos de homens adultos que se reúnem regularmente para ―jogar uma pelada‖.
198
Vimos também que este é um fenômeno que abrange o meio urbano e o meio rural, sendo
pequenas as diferenças entre a pelada do sertão e da cidade.
As peladas em Recife e no São João (Aracatiaçu, Sobral-CE) são percebidas como
atividades de lazer, sendo praticadas sempre no tempo do não-trabalho : o tempo destinado ao
trabalho ―marca‖ o tempo das peladas. Desse modo, em Recife, as peladas sempre ocorrerão
no final de semana, pelo horário da manhã; e em Aracatiaçu acontecerão quase sempre nos
dias de semana, após os trabalhos na agricultura. Os finais de semana no assentamento são
reservados tanto para os times amadores, quanto para afazeres relacionados ao domínio
privado, como visitas a familiares. Destaco aqui como o mundo do trabalho atravessa uma
atividade lúdica, não apenas pelo tempo utilizado para a sua prática, mas também pela
dinâmica do jogo, onde são expressamente proibidas faltas que possam lesionar os jogadores:
os ―peladeiros‖, inclusive, enfatizam em suas falas que é necessário ter cuidado para ―não
machucar, pois aqui todo mundo trabalha‖.
Outra semelhança entre o meio urbano e rural se refere às regras adotadas nos
jogos, quase todas modificadas se comparadas ao conjunto das 17 regras do football
association, além de outras criadas e/ou adaptadas. Além da criação e recriação, os grupos
partilham das mesmas regras do jogo - as diferenças encontram-se apenas naquelas que o
são enunciadas, mas que assim mesmo guiam a conduta dos jogadores.
Dois aspectos são significativos na criação e recriação das regras: em primeiro
lugar, as regras são instituídas pelo próprio grupo, visando atender aos interesses dos
jogadores. Assim, da mesma forma que instituem uma regra podem modificá-la, caso isto
esteja impedindo a dinâmica desejada de seus jogos; por exemplo: os ―peladeiros‖ de Recife
(Mangueira e ―Pelada da Amizade‖) resolveram modificar a regra da expulsão (quando um
jogador era expulso ficava fora do jogo durante cinco minutos, retornando após este tempo)
por não inibir a prática abusiva de faltas - quem era expulso por cometer faltas consideradas
199
violentas, após os cinco minutos, retornava ao jogo e cometia as mesmas infrações. Então os
jogadores, após uma reunião, decidiram que o jogador expulso somente retornaria no jogo
seguinte. Resultado: o número de expulsões foi diminuindo, pois ―ninguém quer ficar fora‖ da
pelada. É importante notar que rapidamente os sujeitos perceberam que a regra institda por
eles estava comprometendo a dinâmica do jogo.
o segundo aspecto se refere às divergências quanto à interpretação das regras -
por exemplo, quando ocorre ou não uma falta -, culminando na interrupção da partida para
que os jogadores decidam se uma jogada foi ou não considerada lida por todos:
rapidamente os atores sociais conseguem restabelecer a ordem da partida, ou em termos
garfinkelianos, os ―peladeiros‖ fazem de tudo para recuperar a normalidade percebida dos
eventos. Algumas discussões são resolvidas com poucas palavras, a forma como um jogador
conduz a bola até o local da suposta falta e o posicionamento dos outros jogadores em campo
evidencia que a solução foi encontrada - embora do ponto de vista da verbalização o
impasse não tenha sido resolvido, em termos práticos os jogadores encontram uma saída.
Importante destacar, ainda, a margem de negociação das regras, principalmente pelo fato do
grupo tê-la criado - podendo interpre-la, reinterpretá-la e, mesmo, modificá-la. Como em
todos os grupos, alguns ―peladeiros‖ têm ascendência sobre os outros, principalmente os mais
assíduos e com tempo maior no grupo. Assim, embora o grupo seja socialmente homogêneo,
os critérios internos de classificação definem quem são os estabelecidos‖ e os outsiders‖:
alguns jogadores, mais que outros, terão maior poder para acusar faltas (nas peladas sem
árbitro), ou executar mais vezes algumas jogadas como cobrança de faltas.
Retomando a discussão, a exclusão de algumas regras, como a regra 11 (do
impedimento), visa tornar o jogo mais dinâmico - um dos objetivos da regra 11 é exatamente
diminuir os espaços, que, nas peladas, perde o sentido de sua existência, já que nesta prática
os espaços (campos) já são bastante reduzidos; da mesma forma a regra do nalti:
200
provavelmente a pelada seria interrompida diversas vezes, haja visto os campos não serem
marcados, prevalecendo dúvidas constantes quanto à existência ou não da penalidade;
também , na possibilidade do uso dos pés no arremesso lateral, o objetivo de deixar o jogo
mais ágil. Se voltarmos ao terceiro capítulo, veremos que as regras adotadas nas peladas
ajudam a manter a dinâmica do jogo.
Outro aspecto relevante se quando as regras não são enunciadas pelos
peladeiros‖, mas que delimitam a ação em campo; embora não sejam regras ditas, ―todos
sabem‖, são reivindicadas quando algum jogador comete uma infração, sendo imediatamente
repreendido por todo grupo. Os grupos de pelada da cidade e do sertão possuem uma regra
bem definida em relação à participação de crianças e adolescentes: na cidade, os adolescentes
chamados de pirraía‖, pelos adultos - podem participar da pelada, caso existam vagas no
time, ou seja, desde que não existam adultos para complementar um time. Neste caso, os
adolescentes podem ingressar temporariamente na pelada, saindo logo que um adulto solicitar
a entrada. Além disso, é tido o estatuto inferior que estes têm nos jogos, por exemplo:
sempre ouvem reclamações dos adultos quando erram alguma jogada, mas não reclamam
quando o inverso ocorre; não cobram faltas e escanteios; na dinâmica dos jogos, os ―pirráias‖,
por serem mais jovens, ―agüentam correr‖, mas efetivamente a troca de passes é feita
preferencialmente entre os adultos.
Na comunidade de São João, é possível observar também uma hierarquia
geracional - desta vez entre crianças e pré-adolescentes. Aqui, o pré-adolescente é chamado
de ―menino‖, e é também considerado inferior pelo grupo. Os adolescentes participam da
pelada com o mesmo estatuto dos adultos, pois igualmente aos adultos já participam das
atividades laborais. No sertão, os ―meninos‖ também participam dos jogos para completar
o time e, neste caso observei somente uma vez um ―menino‖ na linha quase sempre na
posição de goleiro. A participação de um menino muda a dinâmica do jogo, mais que entre
201
adultos é preciso ter cuidado para não machucar o ―peladeiro pré-adolescente,
principalmente os chutes para o gol: não podem ser fortes, mas apenas para ―colocar‖ a bola,
caso contrário, será repreendido fortemente pelos demais.
Outra regra que faz parte do jogo da pelada são os xingamentos e as brincadeiras
que os jogadores utilizam constantemente entre si. Muitas vezes eu temia por um conflito
diante de um ―vá tomar no cu‖, ―agora é viado dele é?!‖, ou ainda seu filho da puta‖:
xingamentos comuns na pelada da Mangueira, mas interditos tanto no grupo da ―Pelada da
Amizade‖ quanto na pelada do sertão. O xingamento sem ofensa somente é permitido entre
aqueles que fazem parte do grupo, excetuando os adolescentes que quase sempre se limitam
às brincadeiras em tons provocativos quando se referem aos adultos. Na pelada do sertão em
nenhum momento ouvi um ―palavrão‖, mesmo naqueles mais tensos de um jogo; as
reclamações contra um jogador limitavam-se a ―ô macho ruim!‖, ―deixa de ser burro ou ―fe
da gaita‖ - este último muitas vezes ditos em tom de brincadeira, outras apenas para
repreender um ―peladeiro‖. O importante a ressaltar é o domínio que os ―peladeiros‖ têm do
permitido e do proibido em suas relações: as regras de convivência são conhecidas,
respeitadas e reforçadas por todo o grupo.
As regras da pelada influenciam a dinâmica do jogo e os jogadores são cônscios de
seu papel como mantenedoras do equilíbrio entre tensão e prazer. A dinâmica dos jogos de
pelada é intensa, sendo imensas as relações de interdependência entre os jogadores da mesma
equipe e destes com seus adversários. Como o espaço para a prática da pelada é reduzido, os
jogadores adotam regras que agilizam o jogo, como é o caso da exclusão da regra 11, pois o
campo ficaria excessivamente diminuto caso se mantivesse o fora de jogo, a sua exclusão não
paralisa o jogo ou o torna monótono, ao contrário, combinado com outras regras, como a do
lateral cobrado com os pés, ou com exclusão definitiva da partida do jogador expulso, torna o
jogo rápido e dinâmico.
202
Se as regras adotadas pelos ―peladeiros‖ tornassem o jogo lento e monótono,
provavelmente o interesse pelo jogo iria aos poucos decrescer, entretanto, os ―peladeiros‖
diante de um desequilíbrio entre tensão e prazer, restabelecem rapidamente a dinâmica do
jogo através de mudanças nas regras do jogo. Na pelada da Mangueira, quando eles optaram
por dois times fixos o vermelho e o azul logo perceberam que o equilíbrio entre os times
fora rompido, o que ocasionou vitórias sucessivas do time vermelho. Os peladeiros
imediatamente voltaram atrás e trocaram alguns jogadores dos times azul e vermelho,
restabelecendo o equilíbrio entre tensão e prazer, possibilitando um equilíbrio entre os times
para a pelada ―não ficar uma coisa sem graça‖. Os ―peladeiros‖ evidenciam mais uma vez
como possuem o ―sentido do jogo‖. Contudo, os ―peladeiros‖ não jogam apenas entre si, mas
também para alguém; é comum terem provocações e brincadeiras entre jogadores e
torcedores‖ estas aspas em torcedores‖ se porque a torcida da pelada é diferente da
torcida do futebol amador, além de se diferenciar de acordo com o espaço social em que é
praticada (cidade ou sertão).
Em Recife quem assiste à pelada é também um jogador que apenas aguarda a sua
vez para jogar, ou seja, brevemente ele vai substituir ou jogar contra aqueles que são alvos de
suas provocações e brincadeiras. Ao aguardar sua vez - sobretudo na Mangueira , o
torcedor‖ escolhe um time pra torcer que quase sempre será o mesmo em todos os jogos - e
assim vai dirigir suas provocações para o time ―adversário‖, que, por sua vez, responderá com
outras brincadeiras e provocações. Os jogadores e torcedores negociam as regras de
convivência, os envolvidos sabem os limites de sua atuação, e quando algum ator quebra as
regras, rapidamente jogadores e torcedores buscam restabelecer a normalidade perdida
momentaneamente: as regras são negociadas e atualizadas para que o conflito seja resolvido.
Outra diferença que se na pelada do sertão é a presença de mulheres; esta foi a
única pelada onde foi possível observar sua presença na torcida - a maioria torcendo para o
203
marido ou irmão, e por isso também são poucas as mulheres presentes -, com participação
ativa: as ―torcedoras‖ gritam, reclamam e orientam os jogadores. Embora a maioria das
presentes grite e incentive seus parceiros, a única que participa o tempo inteiro de forma ativa
e provocativa é aquela mulher reconhecida pelos ―peladeiros‖ como conhecedora de futebol, a
mulher que ―joga muito‖ - mesmo que os jogadores não façam referência às suas ―instruções‖,
em alguns momentos é perceptível como os ―peladeiros‖ orientam suas ações segundo as
orientações da ―treinadora‖.
De toda forma, as relações entre torcida e jogadores é conduzida por algumas
regras importantes, dentre elas a proibição do uso de palaves e xingamentos. o é vedado
às mulheres participarem dos encontros após as peladas como parece ser o caso de Recife
assim, algumas compartilham da cachaça ou do refrigerante e comentam alguns eventos da
pelada, principalmente aqueles que produzem situações engraçadas, como uma queda, um
―frango‖, ou uma ―furada‖. Entretanto, essa é uma participação rápida, pois como a divisão
sexual do trabalho é bem definida, as mulheres logo irão realizar suas tarefas domésticas
como preparar o jantar tidas como ações exclusivamente femininas.
Seja o futebol amador, seja a pelada, é essencial percebermos que as regras são
construídas e negociadas pelos agentes sociais, resgatando o agente já que este o é um ser
passivo que apenas assimila um conjunto de regras estabelecidas pela ―sociedade‖. Mesmo
lembrando da diferença que existe entre um jogo de futebol e as estruturas que permeiam as
relações sociais, é fundamental refletirmos sobre o caráter criativo e racional dos agentes,
sendo importante destacar que eles estão, na maior parte do tempo, atualizando e negociando
as regras, incorporando ativa e criativamente as estruturas sociais.
Embora o esforço realizado neste trabalho aponte mais para continuidades e novas
possibilidades de estudos como, por exemplo, o estudo sobre a participação das mulheres da
zona rural nas peladas e no futebol amador, a relação entre poder público e futebol amador, a
204
presença de jogadores profissionais no futebol amador e as relações que essa participação
engendra, dentre outros - que para conclues e certezas, algo que lhe é intrinsecamente
precípuo: o futebol amador e as peladas são importantes campos de estudos para pensarmos
sobre temas relevantes para a ciência social.
205
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211
ANEXO I
212
213
214
215
ANEXO II
216
217
218
219
220
221
222
223
224
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