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Fora da perspectiva vertical o mal prevalece.
86
A lógica do niilismo tenta por à prova
um Deus que convive com o mal, que parece passivo em meio a tragicidade humana.
87
Ivan
Karamazov apela para esta lógica e discute a teodicéia. Como pode existir um Deus bom em
um mundo que maltrata suas próprias crianças?
Bate-se na criança um minuto, depois cinco, depois dez, sempre mais
fortemente. Ela grita afinal, já sem forças, sufoca: ―Papai, meu papaizinho,
tenha dó!‖ [...] Cada homem oculta em si um demônio: acesso de cólera,
sadismo, desencadeamento de paixões ignóbeis, doenças contraídas na
devassidão, ou então a gota, a hepatite, isto varia. Portanto, aqueles pais
instruídos praticavam muitas sevícias na pobre menininha. Açoitavam-na,
espizinhavam-na sem razão, seu corpo vivia coberto de esquimoses.
Imaginaram por fim um refinamento de crueldade: pelas noites glaciais, no
inverno, encerravam a menina na privada, sob o pretexto de que ela não
pedia a tempo, à noite, para ir ali (como se naquela idade, uma criança que
dorme profundamente pudesse pedir a tempo). Esfregavam-lhe os próprios
excrementos na cara, e sua mãe, sua própria mãe obrigava-a a comê-los! E
essa mãe dormia tranqüila, insensível aos gritos da pobre criança fechada
naquele lugar repugnante! Vês tu daqui aquele pequeno ser, não
compreendendo o que lhe acontece, no frio e na escuridão, bater com seus
pequeninos punhos no peito ofegante e derramar lágrimas inocentes,
chamando o ―bom Deus‖ em seu socorro? Compreendes esse absurdo, tem
ele um fim, meu amigo e meu irmão, tu, o noviço piedoso? Dizem que tudo
isso é indispensável para estabelecer a distinção entre o bem e o mal no
espírito do homem. Para que pagar tão caro esta distinção diabólica? Toda a
ciência do mundo não vale as lágrimas das crianças.
88
Ivan deixa Aliocha indignado! Todo aquele relato de injustiça e de impunidade
desperta em Aliocha, mesmo que por um instante, um desejo de vingança. Ivan então o
provoca: ―Tens, pois, também um diabinho no coração, Aliocha Karamazov?‖
89
86
PONDÉ, Luis Felipe. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 199. A concepção do mal
em Dostoievski é trabalhada também por Luis Felipe Pondé. Segundo ele: O mal não é o oposto do ser, é uma
espécie de ácido, que decompõe, desfaz: a capacidade de produzir o mal é produzir o nada, portanto ele é
produtivo. E é função da nossa vontade, como seres caídos, a capacidade de produção do nada, porque é a nossa
vontade de ser feliz que o cria. Essa é uma das intuições centrais e mais difíceis de Dostoievski – porque nós,
modernos, somos a infantaria da felicidade. A idéia de que a busca da felicidade humana é o motor do nada, é
mal. Só deixa de produzir o nada quando é atravessada pelo sobrenatural – pela graça. E qual a marca disso? São
aqueles indivíduos capazes de pensar no outro, de estar totalmente voltados para o outro, nunca para si mesmos.
Descentrados afetivamente, atravessados pelo páthos divino.
87
Cf.FORTE, Bruno. À Escuta do outro. Tradução. Mário José Zambiasi. São Paulo: Paulinas, 2003. p.91.
―Se Deus existe, o horror do mal que devasta a Terra é sem fim. Mas esse horror é infinito: logo, Deus existe.
Ao mesmo tempo, porém, o argumento remete ao seu oposto: se Deus existe, o horror e o mal infinito é
inadmissível. Mas esse horror existe: logo Deus não existe. Do paradoxo não sei se sai senão por meio de uma
conversão radical do conceito de Deus: só se Deus fizer próprio o sofrimento infinito do mundo abandonado ao
mal, só se entrar nas trevas mais densas da miséria humana, a dor será redimida e a morte vencida.‖
88
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 181.
89
Id.ibid.p.182.