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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
CLAUDINEI FERNANDES PAULINO DA SILVA
O CRISTO DA LIBERDADE EM DOSTOIEVSKI:
TEOLOGIA E LITERATURA EM DIÁLOGO
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2009
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CLAUDINEI FERNANDES PAULINO DA SILVA
O CRISTO DA LIBERDADE EM DOSTOIEVSKI:
TEOLOGIA E LITERATURA EM DIÁLOGO
Dissertação de mestrado apresentada em
cumprimento às exigências do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião, da
Faculdade de Humanidades e Direito da
Universidade Metodista de São Paulo, para
obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Claudio de Oliveira
Ribeiro
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2009
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FICHA CATALOGRÁFICA
Si38c
Silva, Claudinei Fernandes Paulino da
O Cristo da liberdade em Dostoievski : teologia e literatura
em diálogo / Claudinei Fernandes Paulino da Silva. 2009.
126p.
Dissertação (mestrado em Ciências da Religião) --
Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista
de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009.
Orientação : Claudio de Oliveira Ribeiro
1. Teologia e literatura 2. Liberdade - Teologia 3. Diálogo
(Teologia) 4. Dostoievski, Fiodor Mikhailovich, 1821-1881 -
Crítica e interpretação I. Título.
CDD
261.58
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro
Presidente UMESP
Universidade Metodista de São Paulo
________________________________________________
Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet
Universidade Metodista de São Paulo - UMESP
________________________________________________
Prof. Dr. Luis Felipe de Cerqueira e Silva Pondé
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP
À Bernadete, Abner e Juninho
AGRADECIMENTOS
- Agradeço à minha esposa Bernadete Costa Souza da Silva e aos meus filhos: Abner
Fernandes Souza da Silva e Claudinei Fernandes Paulino da Silva Junior, que me
compreenderam e participaram comigo nesta jornada.
- Agradeço aos meus pais Doraci e Severino, pela educação que me deram, pelo
cuidado que tiveram e por sempre se fazerem presentes.
- Agradeço ao meu irmão Clademilson Fernandes Paulino da Silva, que me influenciou
e incentivou a trilhar pelas veredas da academia.
- Agradeço à Segunda Igreja Batista de Jacupiranga-SP, que soube compreender e
apoiar seu pastor na vida acadêmica.
- Agradeço ao amigo Virtino Mendes, meu guia nos primeiros passos no trânsito de São
Paulo.
- Agradeço a Igreja Batista de Santa Fé do Sul e aos amigos que ali estão.
- Agradeço ao Seminário Teológico Batista Grandes Lagos, onde tive a rica
experiência de ser docente e diretor desta querida instituição
- Agradeço a CAPES pela bolsa que possibilitou meus estudos.
- Agradeço ao Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães, que iniciou minha
orientação.
-Agradeço ao Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro, que muito mais que orientador, foi
um incentivador, respeitando minhas limitações.
- Agradeço a Dostoievski, que deixou ao mundo uma riqueza literária tão vasta,
apresentou Michkin e a família Karamazov, e soube como poucos compreender o
humano.
- Agradeço a Juan Luis Segundo e a José Comblin, cuja teologia me fez enxergar novos
horizontes.
- Agradeço ao Cristo da liberdade, que me fez perceber a possibilidade de construção
de um humano melhor.
- Agradeço a Deus, que em sua infinita misericórdia me possibilitou caminhar até aqui.
“...Também pôs no coração do homem o anseio pela
eternidade; mesmo assim ele não consegue compreender
inteiramente o que Deus fez.” (Eclesiastes 3:11)
RESUMO
Este trabalho se propõe a apresentar o diálogo entre a teologia e a literatura a partir do
método da correspondência de Antonio Carlos Magalhães, tendo como foco central do
diálogo o tema da liberdade. A literatura de Dostoievski em O Idiota e Os irmãos
Karamazovi obras de referência - trabalha a liberdade tendo Cristo como principal
referencial, por isto, o Cristo de Dostoievski é o Cristo da liberdade. Esta compreensão
de liberdade em Dostoievski se a partir de uma consciência antropo-teológica. Na
mesma direção caminha o pensamento teológico latino americano de Juan Luis Segundo
e de José Comblin, que apresenta um humano tão livre como o próprio Deus, sendo este
responsável pela construção ou criação de seu mundo e não preso a determinismos.
Neste diálogo, portanto, há uma tentativa de aproximação entre a literatura russa do Séc.
XIX, de Dostoievski, com a teologia latino americana dos Séc. XX e XXI de Juan Luis
Segundo e José Comblin. A liberdade sendo trabalhada a partir do universo ficcional-
literário de Dostoievski em correspondência com a teologia latino americana. Ambos
apontando para um humano em construção, portanto não concluído, que constrói a vida
a partir da liberdade liberdade incriada ou vocação para liberdade - a qual deve ser
vivida no amor, mesmo diante das malditas questões humanas.
Palavras - Chave: Teologia, Literatura, Diálogo, Dostoievski, Cristo, Liberdade
ABSTRACT
This work aims to stablish the dialogue between theology and literature from the
method of correspondence of the Antonio Carlos Magalhães, with the central dialogue
focus on the theme of freedom. The literature of Dostoyevsky in The Idiot and The
Brothers Karamazov - reference works - shows the freedom with Christ as the main
reference, for this, Dostoyevsky's Christ is the Christ of freedom. This understanding of
freedom in Dostoyevsky occurs from an anthropogenic-theological consciousness. In
the same direction goes the Latin American theological thought of Juan Luis Segundo
and José Comblin that presents a human as free as God himself is, who is responsible
for building or creating his world and not remanded to determinisms. In this dialogue,
therefore, there is an attempt of approach between the Russian literature of the 19th
century, of Dostoyevsky, with the Latin American theology of the 20th and 21th of Juan
Luis Segundo and José Comblin. Freedom being worked from the literary-fictional
universe of Dostoyevsky in correspondence with the Latin American theology. Both
pointing to a human construction, so not complete, that builds the life from freedom -
freedom not stablished or calling for freedom - which must be lived in love, even before
the cursed human issues.
Keywords: Theology, Literature, Dialogue, Dostoyevsky, Christ, Freedom
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
I DOSTOIEVSKI EM QUESTÃO: TEOLOGIA E LITERATURA EM
DIÁLOGO ............................................................................................................................... 17
1.1. A trajetória de um Gênio: Aspectos biográficos de Dostoievski ...................................... 19
1.2. Dostoievski e a Rússia do Séc. XIX .................................................................................. 22
1.2.1. Influências Ocidentais .................................................................................................... 23
1.2.2. O Niilismo ...................................................................................................................... 28
1.2.3. Ideias Socialistas ............................................................................................................ 36
1.2.4. O Eslavismo .................................................................................................................... 39
1.2.5. A mística ortodoxa ......................................................................................................... 41
1.3. O Pensamento Religioso de Dostoievski ........................................................................... 43
1.3.1. Cristo e a contingência humana ...................................................................................... 43
1.3.2. O Humano em Dostoievski ............................................................................................ 46
1.3.3. A liberdade na condição humana em Dostoievski.......................................................... 47
1.3.4. A influência religiosa no estilo literário ......................................................................... 50
1.4. Análise literária de Dostoievski em Mikhail Bakhtin: a Polifonia .................................... 51
1.5. O Método da correspondência ........................................................................................... 55
Conclusão ................................................................................................................................. 58
II CRISTOLOGIA LITERÁRIA EM DOSTOIEVSKI: LEITURAS EM O
IDIOTA E EM IRMÃOS KARAMAZOVI ............................................................................. 59
2.1. Literatura e Bíblia Entrelaçadas ........................................................................................ 60
2.1.1. O Palimpsesto ................................................................................................................. 60
2.1.2. Dostoievski e seu Novo Testamento .............................................................................. 61
2.2. Leituras em O Idiota .......................................................................................................... 63
2.2.1. Um breve resumo ........................................................................................................... 65
2.2.2. A personagem principal: o príncipe Michkin ................................................................. 65
2.2.3. A liberdade expressa no amor ........................................................................................ 69
2.3. Leituras em Os irmãos Karamazovi .................................................................................. 71
2.3.1. Um breve resumo ........................................................................................................... 72
2.3.2. No religioso, o herói ....................................................................................................... 73
2.3.3. Na vida e na morte, a profecia ........................................................................................ 74
2.4. A Antropologia Teológica de Dostoievski na Lenda do ―Grande Inquisidor‖.................. 77
2.4.1. A liberdade humana ........................................................................................................ 79
2.4.2. O conflito entre fé e razão .............................................................................................. 80
2.4.3. A oposição ao socialismo ............................................................................................... 81
2.4.4. O poder do amor na liberdade ........................................................................................ 83
Conclusão ................................................................................................................................. 86
III A COMPREENSÃO DA LIBERDADE EM DOSTOIEVSKI E O DIÁLOGO
COM A TEOLOGIA LATINO AMERICANA ................................................................... 87
3.1. A liberdade Incriada .......................................................................................................... 88
3.1.1. Liberdade vivida na fé .................................................................................................... 89
3.1.2. A liberdade e a ―evolução da modernidade‖ .................................................................. 91
3.1.3. Liberdade parametrizada pelo amor ............................................................................... 92
3.1.4. A liberdade e os determinismos...................................................................................... 97
3.2. A liberdade e a Construção de uma Estrutura de Valores ............................................... 102
3.2.1. Cristo na antropo-teologia de Dostoievski....................................................................102
3.2.2. A liberdade e o mal.......................................................................................................106
3.3. Vocação para liberdade, vocação para a vida .................................................................. 109
3.3.1. Liberdade e Vocação .................................................................................................... 109
3.3.2. Liberdade e profecia ..................................................................................................... 112
3.3.3. Liberdade e vida ........................................................................................................... 114
Conclusão ............................................................................................................................... 115
CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 117
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 122
11
INTRODUÇÃO
Poesia é exatamente o rastro de Deus nas coisas. (Adélia Prado)
Toda pesquisa que se a partir de um diálogo entre mundos aparentemente distantes
é sempre um desafio metodológico. Pensar em correspondências entre teologia e literatura,
como nos propomos, traz a possibilidade de um novo olhar hermenêutico sobre a vida em
suas múltiplas dimensões. Apesar de não ser um assunto inédito, sempre uma preocupação
acadêmica sobre como aproximar adequadamente mundos diferentes.
A teologia não é propriedade de instituições religiosas e nem tampouco se limita a
academia. Ela é e se faz na vida, na cultura, na comunidade, na trajetória de pessoas que
indagam, sofrem, sentem, esperam e convivem com as malditas questões humanas.Por isso,
entendemos a literatura como uma importante interlocutora no fazer teológico, pois ela
expressa de forma singular o pulsar da vida, a angústia da alma e as perguntas sem respostas.
A literatura é um elemento importantíssimo de e para a reflexão teológica. As
narrativas bíblicas, por exemplo, antes mesmo de textos sagrados, são literaturas. A literatura
perpassa os saberes, é interdisciplinar, por isso, não se pode negar sua interação com a
teologia, sua correspondência com o universo teológico.
Diálogo é sempre uma via de mão dupla ou de múltiplas mãos. Ele não se apenas
quando um emissor (a) transmite algo e o receptor (a) recebe, mas se na inter-relação de
ambas as partes. Esta inter-relação ocorre na mediação com o mundo. Por isso, todo
fundamentalismo, seja científico, metodológico ou mesmo religioso, impossibilita o diálogo.
Historicamente, o eixo hermenêutico mais comum da teologia é a filosofia. Agostinho
de Hipona compreende a teologia a partir da Platão, cuja tem maior evidência que a razão.
A teologia de Agostinho predomina desde o Séc. V sobre o ocidente, tornando-se hegemônica
por séculos. Tomás de Aquino tem como interlocutora de sua teologia a filosofia de
Aristóteles. A partir do Séc. XIII, a teologia de Tomás de Aquino se torna a teologia
predominante, com a ajuda da escolástica. A razão tem a mesma importância que a e a
lógica e a ordem são elementos fundamentais nesta concepção teológica. A leitura teológica
12
sob o olhar da filosofia também ocorre a partir da Reforma protestante. Com o iluminismo, a
revelação é questionada, e a razão passa a ser a chave privilegiada de leitura. No Séc.XX, em
especial na América Latina, as ciências sociais são vistas como uma nova chave de leitura na
compreensão teológica. Mais uma vez a lógica racional prevalece.
No oriente, a teologia, em geral, é vista sobre outra perspectiva. O pensamento
teológico ortodoxo é místico e não se desenvolve a partir de conceitos. A principal chave de
leitura é a experiência religiosa, muito embora, isto não signifique uma negação de
sistematização teológica.
A literatura é capaz de ―incorporar em si a diversidade e a multiplicidade da vida‖
1
Ela constrói sentido. A narrativa e a poesia conseguem expressar o que a lógica ou a ciência
jamais conseguirão, pois transcendem o conceito. Afirmamos então que é possível pensar
teologia desta forma.
Esta pesquisa pretende aproximar a literatura russa de Dostoievski à teologia. As obras
de Dostoievski a serem trabalhadas são O Idiota e Os irmãos Karamazovi. Para Luis Felipe
Pondé, entender Dostoievski apenas sob o ponto de vista da crítica literária ignorando a
religião é ―miopia hermenêutica‖, pois sem religião não há compreensão de sua obra.
2
As obras de Dostoievski pontuam elementos teológicos importantes, que são inclusive,
correspondentes à teologia latino americana. Embora haja a percepção da expressiva presença
do trágico em Dostoievski, onde constantemente a angústia, a culpa, o sofrimento, a
fatalidade, os questionamentos inquietantes se manifestam, isto não significa a negação da
possibilidade de uma construção de vida, mesmo em detrimento a essa contingência.
Dostoievski lida como o trágico, mas também com o belo. É como se Deus e o Diabo
travassem uma batalha no coração do homem, parafraseando o próprio Dostoievski.
É nesta direção que trilha a dissertação, no diálogo entre a literatura de Dostoievski e o
pensamento teológico latino americano, em especial, com o pensamento teológico de Juan
1BÖLL, Henrich apud SOETHE, Paulo Astor. Henrich Böll e a legitimação teológica do discurso literário.
Perspectiva teológica ( revista quadrimestral da Faculdade de teologia da Companhia de Jesus. Centro de estudos
superiores). Ano XXIX, 1997. Nº 78 Maio/Agosto p.209.
2
Cf. PONDÉ, Luis Felipe. Crítica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. São Paulo: Ed. 34, 2003.
p.30
13
Luis Segundo e José Comblin. Não é negado o trágico, mas enfatizado no diálogo proposto a
construção de vida apesar do trágico, construção essa que se na liberdade e no amor. Isso
não significa descaracterizar as obras de Dostoievski, mas ressaltar elementos que também
estão presentes em seus referidos textos.
Os principais referenciais utilizados na pesquisa são as interpretações das obras de
Dostoievski feitas por Joseph Frank, Nicolas Berdiaeff e Luis Felipe Pondé. Ao trabalhar o
pensamento teológico latino americano, as referências são o pensamento de Juan Luis
Segundo e José Comblin.
Dostoievski é interdisciplinar, sua literatura permite dialogar com vários saberes.
Dostoievski é aquele anfitrião que se entende perfeitamente com os mais
diversos hóspedes, que é capaz de prender a atenção da sociedade mais
díspar e consegue manter todos em idêntica tensão. O realista anacrônico
pode, com pleno direito, ficar maravilhado com a representação dos
trabalhos forçados, das ruas e praças de Petersburgo e do arbítrio do regime
autocrático, enquanto o místico pode, com o mesmo direito, deixar-se
maravilhar pela comunicação com Aliócha, o Príncipe Michkin e Ivan
Karamazov, este visitado pelo diabo. Os utopistas de todos os matizes
podem encontrar sua alegria nos sonhos do ―homem ridículo‖, de Viersílov
ou Stavroguin, enquanto as pessoas religiosas podem ficar com o espírito
reforçado pela luta que santos e pecadores travam por Deus em seus
romances. A saúde e a força, o pessimismo radical e a fé fervorosa na
redenção, a sede de viver e a sede de morrer travam aqui uma luta que nunca
chega ao fim. A violência e a bondade, a arrogância do orgulho e a
humildade da vítima são toda a imensa plenitude da vida consubstanciada
em forma relevante em cada partícula das suas obras. Cada um pode, com a
mais rigorosa honestidade crítica, interpretar a seu modo a última palavra do
autor. Dostoievski é multifacético e imprevisível em todos os movimentos
do seu pensamento artístico; suas obras são saturadas de forças e intenções
que são superadas por abismos intransponíveis.
3
Ao mesmo tempo, no contexto teológico, nos valemos da afirmação de José Comblin,
que destaca as interpretações que respeitam o discurso narrativo. O autor baseia-se na
compreensão de que a vida não é expressa apenas como um conhecimento científico, mas se
faz em sua essência por via da narrativa, pois esta tem a liberdade de expor sentimentos,
dores, a subjetividade, tudo aquilo que uma análise científica não consegue.
3
KAUSS, Otto apud BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1997.p.18
14
O conhecimento da vida expressa-se por meio de metáforas, parábolas,
contos e mitos. Procede de modo narrativo. Não serviria para conseguir os
efeitos que se busca pelo conhecimento científico. Porém, para viver bem,
muito pouco se consegue pelo caminho analítico [...] Por isso as
elucubrações dos cientistas sobre Deus podem ser interessantes, mas
contribuem muito pouco para conhecer Deus o Deus cristão, o Deus de
Israel e da Bíblia. E todos os discursos metafísicos ou científicos contribuem
pouco, antes desviam atenção do que é realmente relevante. O discurso da
Bíblia pertence à linha de pensamento vital, sintético, e por isso o seu
discurso é narrativo.
4
Com esta mesma percepção e respeito, Juan Luis Segundo aponta para a literatura
como uma possível interlocutora teológica.
Raramente os teólogos levam em conta, como argumentação válida para
suas elaborações especulativas, a maneira com que muitas vezes os literatos
tratam temas teológicos. Parece que não consideram como dignos da mesma
atenção que se presta às teorias filosóficas. Não obstante, creio que um
erro nisso, pois além de tais escritores refletirem, às vezes, muito mais
populares do modo de pensar de uma época, eles têm a vantagem de que seu
interesse cultural não vai se precaver tanto em ultrapassar o umbral do
religioso e em aplicar a ele o senso comum e a liberdade crítica.
5
O primeiro capítulo da dissertação desenvolve aspectos biográficos de Dostoievski: A
vida, seus pais, sua educação, seu envolvimento com a literatura, a prisão e as conseqüências
dessas experiências em sua vida e em suas obras. Esta biografia é importante para a
compreensão de seu contexto literário, além de perceber a relação de sua vida, sua experiência
religiosa e seus confrontos com a Rússia de seus dias.
Num primeiro momento, o capítulo aborda a relação de Dostoievski e a Rússia do
Sec.XIX. É desenvolvido então alguns tópicos que ajudam a compreender este período e a
cultura eslava: as influências ocidentais, o niilismo, as ideias socialistas e a mística ortodoxa.
Após esta apresentação do contexto russo do Séc.XIX e da vida de Dostoievski,
destacar-seseu pensamento religioso. Esse pensamento é profundamente marcado por sua
cristologia, o qual aponta para um Cristo livre e referencial de vida e de liberdade. A partir
disso, a pesquisa segue apresentando o Cristo e a contingência humana, a liberdade na
condição humana e a influência religiosa no estilo literário de Dostoievski.
4
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. São Paulo. Paulus, 1998. p. 62
5
SEGUNDO, Juan Luis.O inferno como Absoluto de Menos: Um diálogo com Karl Rahner. Trad. Magda
Furtado de Queiroz. São Paulo: Paulinas, 1998.p.124.
15
O capítulo apresenta ainda a análise literária de Mikhail Bakhtin, o qual lida com o
que ele chama de polifonia. Para Bakhtin, Dostoievski é o criador do romance polifônico,
onde cada personagem tem sua própria consciência, sua própria voz. Em seus textos há
múltiplas vozes. Na polifonia não vida concluída, isto é, a vida é inconclusa. O sujeito está
em construção. Esta compreensão é importantíssima para a leitura das obras de Dostoievski e
principalmente para a aproximação com a teologia.
Em seguida, apresenta-se o método da correspondência, utilizado pela pesquisa, o qual
trabalha a aproximação e diálogo entre a teologia e literatura. O referencial teórico deste
método é a obra Deus no espelho das palavras de Antonio Carlos Magalhães.
O segundo capítulo se propõe a trabalhar a cristologia literária de Dostoievski. A
liberdade para Dostoievski está intimamente ligada à sua compreensão de Cristo. Cristo está
evidenciado tanto na obra O Idiota, na construção da personagem Michkin, como na lenda do
―Grande Inquisidor‖ em Os irmãos Karamazovi.
Antes de destacar as leituras dessas referidas obras, é desenvolvido um tópico sobre a
Bíblia e a literatura entrelaçadas, o palimpsesto. As obras de Dostoievski são constantemente
marcadas por textos bíblicos. Alguns referenciais importantes neste ponto são as
contribuições de Eli Brandão da Silva e de Geir Kjetssa.
Após isso, apresenta-se alguns elementos das leituras feitas em O Idiota e Irmãos
Karamazovi. muitas traduções para o português. Geralmente, as mais antigas são
traduzidas do francês. Atualmente, a Editora 34 tem traduzido obras de Dostoievski
diretamente do russo. Optamos pela tradução de José Geraldo Vieira, na obra O Idiota. Esta
tradução é utilizada por mais de uma editora, porém nossa opção é pela Editora Martin Claret.
Segundo Boris Schnaiderman, a tradução de José Geraldo Vieira é excelente.
6
Em relação à
obra Os irmãos Karamazovi, optamos pela tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes,
tradução de 1971, pela Editora Abril Cultural.
6
Cf. SCHNAIDERMAN, Boris apud FAUSTINO, Carlos Jean. A Ética do amor em Dostoievski: uma análise
sociológica do romance “O idiota”. Dissertação de mestrado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências humanas. 2004.p.14.
16
A partir dessas leituras, são destacados e desenvolvidos os seguintes elementos em O
Idiota: um breve resumo da obra, a apresentação da personagem principal, o príncipe
Michkin, a personagem positivamente bela, o ideal de humano para Dostoievski, e a
abordagem sobre a liberdade expressa no amor.
Em Os irmãos Karamazovi são destacados: um breve resumo, um item sobre Aliocha
que tem como título ―no religioso, o herói.‖ Após isto, uma discussão acerca da vida e a
morte na profecia. O capítulo se encerra com a antropologia teológica de Dostoievski na lenda
do ―Grande Inquisidor‖, onde reflete sobre a liberdade humana, o conflito entre e razão e o
contraponto ao socialismo. A reflexão conclusiva versa sobre o poder do amor na liberdade.
O terceiro e último capítulo enfatiza o diálogo entre a literatura de Dostoievski e a
teologia latino americana de Juan Luis Segundo e José Comblin. Começa destacando a
liberdade incriada, termo usado para a compreensão da liberdade em Dostoievski. A partir
disto, traz o amor como parâmetro para esta liberdade. Ainda dentro dessa mesma unidade,
um confronto entre a liberdade e os determinismos. Dostoievski é avesso a qualquer tipo de
determinismo, o que o aproxima do pensamento teológico latino americano. Em seguida é
trabalhada a liberdade e a construção de uma estrutura de valores. Segue-se com o Cristo na
antropo-teologia de Dostoievski e a relação entre a liberdade e o mal. O terceiro e conclusivo
tópico desenvolve a vocação para a liberdade e a vocação para a vida. Nesse item em especial,
a aproximação é entre Dostoievski e José Comblin. O diálogo se no entorno da liberdade,
da profecia e da vida.
A partir deste diálogo buscamos sondar o humano, que mesmo em tempos e culturas
diferentes, é livre para construir a vida em meio ao amor. ―Para contar os dias, basta um dia
ao homem para conhecer toda a felicidade.‖
7
7
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. São Paulo: Ed. Abril
Cultural. 1971, p. 212.
17
I DOSTOIEVSKI EM QUESTÃO: TEOLOGIA E LITERATURA EM DIÁLOGO
Antes mesmo de entrarmos no diálogo propriamente dito, precisamos conhecer os
integrantes do diálogo, principalmente em se tratando do objeto de pesquisa. Afinal, quem é
Dostoievski? Por que sua literatura contribui para o pensamento teológico? Que caminho ele
percorre para desenvolver seus escritos?
Escrever sobre Dostoievski é sempre um trabalho ousado. Boris Schnaiderman,
tradutor da literatura russa para o português, afirma em uma entrevista ao Diário Catarinense
que é preciso ter coragem para traduzir Dostoievski. Porém, ao mesmo tempo, ele incentiva
tal tarefa declarando que é preciso ousar: ―Sem ousadia não bom tradutor.‖
1
Parafraseando
Schnaiderman, afirmaríamos: ―Sem ousadia não como escrever sobre Dostoievski.‖ É uma
ousadia desenvolver um trabalho a respeito de um autor russo, de uma cultura eslava do Séc.
XIX e sem o conhecimento profundo da língua original. Mas Dostoievski não se limita a
Rússia do Séc. XIX, ele é um escritor universal e interdisciplinar, seus textos atravessam a
fronteira do tempo, pois tratam do humano, da alma humana e sua busca por sentido, além de
contribuir para o pensamento teológico, apresentando uma cristologia literária cuja liberdade
é o foco central.
Para melhor compreensão da pesquisa é importante não somente situar Dostoievski no
trabalho, mas também situar-se nele. A intenção aqui se aproxima da intenção de Berdiaeff:
Não me proponho escrever uma investigação histórico-científica sobre
Dostoievski, como muito menos sua biografia e características de sua
pessoa. E menos ainda fazer um estudo a partir da ―critica literária‖, que é
gênero de criação que eu não aprecio muito. Tampouco pode dizer que me
baseio a Dostoievski no ponto de vista psicológico e descubro sua
―psicologia.‖ Outra intenção eu tenho. Minha obra deve ser referida a
―pneumatologia‖ e não a psicologia. Desejaria descobrir o espírito de
Dostoievski, demonstrar sua profunda sensação de mundo, para, ao mesmo
tempo e intuitivamente, mergulharmos em sua contemplação do mundo.
2
1
SCHNAIDERMAN, Boris. Sem ousadia não há bom tradutor. Entrevista a Marlova Aseff, jornalista e
doutoranda em Teoria Literária na UFSC. Publicada originalmente no Diário Catarinense de Florianópolis, em
27/03/2004. Entrevista extraída do site: www.cadernodolivro.com.br em 15/12/2008. Boris Schnaiderman é
reconhecido como grande intérprete da cultura russa no Brasil. Ensaísta produtivo e professor. Criou o curso de
língua e literatura russa na Universidade de São Paulo (USP). Nasceu na Ucrânia no ano da revolução
bolchevique em 1917.
2
BERDIAEFF, Nicolas. El Credo de Dostoievski. Traducción directa del ruso por Aléxis Marcoff. Barcelona-
España. Ed. Apolo. 1951 p. 9. No me propongo a escribir una historia-la investigación científica sobre
Dostoievski, como mucho menos su biografía y sus características personales. Y menos aún hacer un estudio de
la "crítica literaria", que es una especie de creación que no me gusta. Tampoco se puede decir que señalar a
18
Para Berdiaeff, Dostoievski é não somente um grande artista, mas também um grande
pensador e vidente, além do maior dos metafísicos russos.
3
Por isto, para compreendêlo é
preciso passar por sua vida, pelo menos pela sua compreensão de mundo. Apesar de
Dostoievski ser russo, nem sempre foram os russos quem melhor compreenderam e
apreenderam o fenômeno dostoievskiano. O mundo ocidental, afirma Homero Silveira,
―situou sempre melhor aquilo que para os russos pareceu desconforme e mesmo errado.
4
Dostoievski é considerado o mais russo de todos os grandes escritores russos e ao mesmo
tempo é o mais universal, por conta de sua significação e seus temas. Por isso ele é
considerado um profeta, tinha uma alma russa, mas uma visão universal. Como escritor,
Dostoievski ―foi um pesquisador atento e desassombrado dos arcanos da alma humana,
descendo a sonda sensível da sua penetrante acuidade mental ao mais profundo dos homens e
de si próprio.‖
5
O objetivo neste primeiro capítulo é desenvolver alguns aspectos importantes da
biografia de Dostoievski: A relação de Dostoievski com a Rússia do Séc.XIX; as influências
ocidentais, o niilismo, as ideias socialistas, o eslavismo, a mística ortodoxa. Além do aspecto
biográfico, também se pretende destacar o pensamento religioso de Dostoievski o qual é
evidenciado em sua forma de compreender Cristo e a contingência humana, a liberdade na
condição humana e a influência religiosa em seu estilo literário.
Para conclusão do capítulo é abordada a análise literária de Mikhail Bakhtin -
polifonia, onde se discute as múltiplas vozes ou múltiplas consciências em seus romances,
algo característico e original de Dostoievski, apontando sua importância na compreensão das
obras pesquisadas O Idiota e Irmãos Karamazovi, e apresentado o método da
correspondência, o qual trabalha as correspondências entre a teologia e literatura.
Dostoyevski en el punto de vista psicológico y encontrar su "psicología". Otra intención que tengo. Mi trabajo se
debe a que se refiere a la ―neumatología" y no la psicología. Al igual que para descubrir el espíritu de
Dostoievski, demostrar su profundo sentido del mundo, mientras que, intuitivamente, sumergirse en la
contemplación del mundo.‖(Tradução livre). Nicolas Aleksandrovitch Berdiaeff, filósofo russo nascido em Kiev,
foi um dos principais representantes do existencialismo cristão, escola filosófica que buscava examinar a
condição humana numa perspectiva cristã, e crítico da maneira como as ideias de Karl Marx foram postas em
prática na União Soviética. Após entrar em conflito com Regime e por suas ligações com a igreja ortodoxa russa
foi expulso do país e exilado na França. Radicou-se em Paris, cidade onde faleceu e onde com outros exilados
fundou uma academia de estudos filosóficos e religosos (1924) e um jornal, Put’ (1925), por meio do qual
combateu o comunismo.
3
Cf.Id. ibid. p.9.
4
SILVEIRA, Homero. Três Ensaios sobre Dostoievski. São Paulo: Martins Editora.1970. p. 55.
5
ARBAN, Dominique apud SILVEIRA, Homero. Ensaios sobre Dostoievski. São Paulo: Martins Editora.1970.
p.67.
19
1.1. A trajetória de um Gênio: Aspectos biográficos de Dostoievski
Fiodor Mikhailovitch Dostoievski nasceu em Moscou, no dia onze de Novembro de
1821 (30 de outubro, segundo o calendário juliano).
6
Filho de Mikhail Andreievitch, médico
do Hospital dos pobres e homem de temperamento descontrolado que morreu em 1839,
assassinado por servos revoltados com sua conduta despótica. Sua mãe, Maria Fiodorovna
Netchaiev, morreu quando Dostoievski ainda era criança.
A posição social de Dostoievski era ambígua, pois embora legalmente estivesse no
patamar dos descendentes da pequena nobreza, socialmente não estava. Seus avós paternos
descendiam do clero provinciano, algo que na Rússia não tinha muito significado. Seu pai era
um médico do Exército, que aos poucos foi alcançando escalões maiores da profissão, sua
mãe era da classe dos comerciantes, que também fazia parte das classes inferiores da escala
social russa.
7
Dostoievski estudou Engenharia Militar em Moscou, onde também passou a projetar-
se nos meios culturais e a freqüentar um círculo de socialistas, conhecido como círculo de
Petrachevski,
8
motivo que o levou a prisão em 1849 e condenado ao fuzilamento. Esta
experiência da angústia de um prisioneiro aguardando a execução é retratada no livro O
Idiota.
O criminoso era um homem inteligente, de meia-idade, forte, corajoso,
chamado Legros. Mas lhe garanto que quando subiu para o cadafalso estava
chorando, e mais branco que uma folha de papel. Não é incrível? Não é
hediondo? Nunca me passou pela cabeça que um homem já feito, não uma
criança, mas um homem que nunca chorou, um homem de quarenta e cinco
anos, pudesse chorar de medo! O que não deve estar passando na sua alma,
nesse momento!? A que angústia não deve ela estar sendo levada!? [...] Mas
a principal e pior pena não está no sofrimento corporal e sim em saber com
segurança matemática que, em uma hora, depois em dez minutos, a seguir
em meio minuto, e, depois, já, bem agora mesmo, neste segundo, a alma vai
deixar o corpo, esse vai cessar de ser homem; e que isto tem de
6
O calendário gregoriano foi adotado a 15 de outubro de 1582 em todos os países católicos. Os protestantes
demoraram um pouco mais a aderir, uma vez que não aceitavam a interferência do papa. Nos países onde vigora
o cristianismo ortodoxo, como a Rússia, o calendário juliano continuou a valer até as primeiras décadas do
século 20. educacao.uol.com.br/historia/ult1685u275.jhtm. 20/11/2008.
7
FRANK, Joseph. Dostoievski. O manto do profeta 1871-1881. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo:
Edusp. 2007.p.26. Joseph Frank é professor de literatura comparada e eslava das universidades de Princeton e
Stanford. Formado na escola norte-americana do close reading.
8
FRANK, Joseph. Dostoievski: Os anos de provação, 1850-1859. Tradução de Vera Vieira. São Paulo. EDUSP,
1999. p.30. O círculo de Petrachevski era um grupo de jovens que se encontrava na casa de Mikhail Butachévsch
Petrachevski para discutir as grandes questões no momento em que a imprensa russa amordaçada estava proibida
de veicular.
20
acontecer!...O pior de tudo isso está em que é certo. Quando o senhor deita
a sua cabeça lá, debaixo da lâmina, e a ouve escorregar vindo para sua
cabeça, este quarto de segundo é o mais terrível de todos.
9
Pouco antes da ordem de execução, a sentença foi transformada, por ordem do Czar
Nicolau I, em exílio na Sibéria, para trabalhos forçados, onde ele ficou preso na fortaleza de
Omsk por quatro anos. Mesmo tendo escapado à execução, as conseqüências da prisão,
porém, foram inevitáveis: humilhação, trauma, privação, ver e presenciar os mais terríveis
horrores morais, além de desenvolver a epilepsia, doença que lhe persegue durante toda a vida
a partir da prisão.
Dostoievski jamais se esqueceria do medo que sentira e das angustiantes
perguntas que lhe haviam ocorrido sobre a assustadora possibilidade de
sobrevivência de sua personalidade à destruição física. Jamais se esqueceria
do consolo que sentiu ao abraçar os vizinhos no patíbulo, nem dos arroubos
de alegria quando ressurgiu do esquecimento. ―Vida é vida em qualquer
lugar, a vida esem nós mesmos, e não no exterior‖, escreveu ao irmão
logo após o resgate da sepultura. Foi deste modo que se preparou para
mergulhar no inferno vivo da casa dos mortos; e foi esta crença que no final
lhe permitiu emergir triunfante de uma provação que teria esmagado
qualquer pessoa com menos fortaleza interior [...] O que lhe tornou possível
a vida no Katorga (presídio) e lhe forneceu a única prova de algum tipo
de moral que podia discernir foram os resquícios de um cristianismo
tradicional que ainda estava vivo na concepção dos seus colegas de prisão.
10
O sonho de retornar ao cenário literário também foi fundamental para ele não desistir
de viver. Joseph Frank retrata um pouco daquilo que aconteceu a Dostoievski, do futuro
promissor de um jovem escritor que, de repente, transforma-se em um pesadelo.
O Fiódor Dostoievski detido em abril de 1849 era uma pessoa muito
conhecida no diminuto círculo dos literatos russos que, mesmo durante o
severo regime militar e burocrático de Nicolau I, empenhavam-se
ativamente na construção das bases da futura glória da literatura e da cultura
russas. O mais importante crítico literário da época, Visarrion Bielinski,
previra um dia com grande entusiasmo que Dostoievski haveria de atingir o
apogeu de sua fama enquanto muitos dos seus concorrentes, considerados
de igual estatura, teriam sido esquecidos. Mas esse juízo profético
modificou-se em curto espaço de tempo. Na época em que Dostoievski foi
mandado para a Sibéria, o sucesso do seu primeiro romance, Pobre gente,
não havia se repetido em nenhuma das suas obras posteriores, e, de maneira,
9
DOSTOIEVSKI. F. O Idiota. Trad. José Geraldo Vieira. São Paulo: Ed. Martin Claret. 2005. p.31,32.
Dostoievski mostra aqui através da personagem Michkin, o drama da pena de morte. Michkin está retratando a
execução francesa, mas o que ele está destacando é a angústia de um condenado, algo que Dostoievski sentiu de
perto.
10
FRANK, Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação. 1860 a 1865. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São
Paulo: Edusp. p. 27,28.
21
geral, os críticos viam nele um escritor que, por não corresponder às suas
promessas iniciais, tinha sido mais elogiado do que de fato merecia.
Ninguém poderia ter previsto o admirável desenvolvimento de um talento
que faria de Dostoievski uma das mais importantes figuras da literatura
moderna.
11
A primeira obra de Dostoievski, antes de sua prisão, foi Pobre gente, escrita em 1846,
e a última obra foi Os irmãos Karamazovi, iniciada em 1878 e publicada em 1879-80. As
obras literárias de Dostoievski tornaram-se clássicos da literatura mundial. Nelas são
abordados os contextos vividos por seu autor em sua trajetória e as influências teológicas,
literárias e interdisciplinares. Um referencial importante para Dostoievski é o escritor russo
Púchkin.
12
Dostoievski casou-se duas vezes, e morreu na cidade de São Petersburgo em 1881,
onde contava com o reconhecimento de seus leitores. Homero Silveira faz um relato sobre a
morte de Dostoievski, algo tipicamente parecido com a tônica mística de seus textos.
Durante a noite de 27 para 28 Dostoievski acorda a esposa, fala do futuro
dos filhos e tem pressentimento de que morrerá nesse mesmo dia. A esposa
o conforta e lê para ele, ao acaso, o evangelho, segundo São Mateus,
capítulo III, versículo 14, o que traz ao enfermo a certeza de sua morte. Às
11 horas da manhã declara-se uma pequena hemorragia. Dostoievski chama
os filhos e lhes faz as derradeiras recomendações. Beija-os, abençoa-os e
entrega a Bíblia ao filho que tem o seu próprio nome.
13
11
SILVEIRA, Homero. Ensaios sobre Dostoievski. p. 23.
12
Aleksandr Sierguêievitch Púchkin nasceu em Moscou em 6 de junho de 1799, e morreu aos 38 anos, em 29 de
janeiro de 1837, num duelo em conseqüência de seu ciúme crônico pela esposa, a cobiçada Natália Gontcharova,
que conheceu em 1829, e com quem se casou em 1831. Sua vida breve é marcada por conturbações políticas e
amorosas; paralelamente, Púchkin produzia uma obra diversificada e moderna, antecipando os caminhos que a
literatura russa tomaria no século XIX. Extraído do site: globolivros.globo.com/busca_detalhesautores em
9/12/2008.
13
SILVEIRA, Homero. Ensaios sobre Dostoievski. p. 40.
22
1.2. Dostoievski e a Rússia do Séc. XIX
A Rússia não será compreendida com o cérebro e nem poderá ser medida com
medida comum.
14
A realidade russa daquele período foi essencial para a criação dos ―heróis‖
15
de
Dostoievski e de suas reflexões literárias e teológicas. A Rússia era ―um país onde a poesia
tinha um peso muito grande, tanto que era o único lugar no qual se fuzilava por causa de um
verso‖.
16
Uma realidade assim, onde a poesia significava tanto, não poderia deixar de ser mais
bem observada.
Em um Colóquio realizado em 1989, na Stanford Universty, Joseph Frank foi
indagado sobre a prolixidade no trabalho biográfico de Dostoievski, justamente por tratar
tantos aspectos da cultura e do contexto russo do Séc. XIX. Responde esta indagação da
seguinte forma:
...se eu estivesse tratando do autor apenas enquanto indivíduo, talvez não
fossem precisos tantos volumes; mas, como estava escrevendo igualmente
uma história condensada da cultura russa do Século XIX, cujo centro era
ocupado por Dostoievski, achava minha ―prolixidade‖ plenamente
justificada. Na verdade, esse autor enfocara em seus romances os problemas
desta cultura não no nível em que seus contemporâneos os analisaram
usualmente, mas transformando-os com base em sua própria visão
escatológica e messiânica. A reação enlevada que essa visão despertou na
época torna muito importante a possibilidade de elucidá-la para nós
próprios.
17
Frank destaca o enfoque acentuado que a cultura russa teve na obra de Dostoievski e o
quanto ela fazia parte de sua vida e compreensão de mundo, evidenciando então em suas
personagens. Dostoievski, ―aos olhos da grande maioria do público letrado, converteu-se num
14
BERDIAEFF, Nicolas. El Credo de Dostoievsky. p.15. ―No será comprendida Rusia con el cerebro ni medirse
podrá con usual medida.‖
15
As personagens de Dostoievski são reconhecidas também como heróis. Um exemplo disto é Alieksiéi
(Aliocha) Karamazov. ―Ao começar a biografia de meu herói, Aliekséi Fiódorovitch, sinto-me um tanto
perplexo. Com efeito, se bem que o chame de meu herói, sei que ele não é um grande homem...‖
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. Tradução Natália Nunes e Oscar Mendes. São Paulo: Abril
Culutral.1971, p.9. Esta citação está no prefácio feito pelo próprio autor neste livro.
16
SCHNAIDERMAN, Boris. Sem ousadia não há bom tradutor. op. cit.
17
FRANK, Joseph. DOSTOIEVSKI. O manto do profeta 1971-1881. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo:
EDUSP. 2007. p. 15,16.
23
símbolo vivo de todo o sofrimento que a história impusera ao povo russo, e de todo anseio
deste povo por um mundo ideal de amor e harmonia fraternos (cristãos).‖
18
A Rússia do Séc. XIX era no dizer de Fernando Nuno
19
―um país com uma grande
mistura mal definida de Ocidente e Oriente‖.
20
Nicolas Berdiaeff compara os russos daquele
período com os seus contemporâneos alemães e franceses:
Os alemães são místicos ou críticos. Os franceses são dogmáticos ou
ascéticos. Porém a estrutura da alma russa é a mais difícil para a criação de
uma cultura, para a construção do caminho histórico de um povo. É difícil
que um povo de alma semelhante seja feliz em sua história.
21
O cenário russo realmente era muito complexo e cheio de conflitos. Influências
ocidentais estavam afetando o país. Havia dois pólos muito distintos que retratavam o povo
russo daquele contexto. Berdiaeff destaca estes pólos como: o niilismo e o que ele chama de
tendência religiosa, fazendo menção aos apocalípticos eslavos.
22
1.2.1. Influências Ocidentais
A Rússia sofria as influências européias de várias formas. A Europa naquele período
passava por uma sucessão de acontecimentos. Do final do Séc. XVIII ao começo do Séc. XIX
aconteceram a Revolução Industrial na Inglaterra, a Revolução francesa e o império
napoleônico. Esse último afetou a Rússia diretamente, que ora foi inimiga e ora foi aliada de
Napoleão, mas que, por fim, acabou contribuindo para queda desse império.
23
Também, ao
mesmo tempo, a influência das ciências modernas, do iluminismo, do humanismo moderno
carregado de racionalismo, além do crescimento de perspectivas ateístas e das ideias niilistas.
18
FRANK, Joseph. O manto do profeta. p. 25.
19
Fernando Nuno. Formado em Jornalismo e Letras pela USP, em História da Arte pelo Instituto Dante
Alighieri, de Florença (Itália), e em Mitologia pela Viking Students, Fernando Nuno é também editor e músico.
É organizador da coleção Shakespeare da Editora Objetiva, que lançou os clássicos Hamlet, Macbeth, A Megera
Domada, Romeu e Julieta, Sonho de Uma Noite de Verão. Recebeu a distinção de Altamente Recomendável, da
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Mora em São Paulo e atualmente se dedica à literatura e
à música. Informações extraídas do site: www.objetiva.com.br/objetiva em 25/11/2008.
20
NUNO, Fernando in: DOSTOIEVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. Trad. Luiz Cláudio de Castro. Ediouro. Rio
de Janeiro, Publifolha, São Paulo. 1973. p. 571.
21
BERDIAEFF, Nicolas. El Credo de Dostoievsky. p.16.
22
Cf.Id. ibid. p.16.
23
http://www.culturabrasil.pro.br/napoleao.htm 10/12/2008.
24
Michel Cadot aponta o conhecimento de Dostoievski sobre o ocidente.
Dostoievski descobriu o Ocidente durante as suas viagens em 1862 e 1863.
As Notas sobre Verão Inverno revelam a impressão sentida pelo escritor e
sua decepção com a falta da verdadeira fraternidade na França, como a
febre do lema da Revolução Francesa manteve-se como letra morta. Ele
sugere que a Rússia é mais adequada para uma verdadeira fraternidade.
24
Tal contexto se reflete nas obras de Dostoievski. Na discussão entre Liébediev e
Evguénii Pavlovitch sobre a existência do diabo no livro O Idiota, menção de Voltaire,
evidenciando a influência francesa no pensamento russo: ―...fazer pouco do diabo é uma idéia
francesa, aliás bem frívola [...] Sabe o senhor quem é o diabo? Sabe o nome dele? Nem sequer
sabe-lhe o nome, o senhor, e, se ri, é porque segue o exemplo de Voltaire...‖
25
Joseph Frank
afirma que para a maioria da classe alta, a fé religiosa foi minada por Voltaire e pelo
pensamento francês do século XVIII. Destaca ainda que essa classe recebia pouquíssima
instrução religiosa e quando isso acontecia geralmente vinha de seus servos.
26
Ainda no mesmo diálogo em O Idiota, há uma declaração de Evguénii sobre as
estradas de ferro que cresciam na Rússia, o qual se dizia ser fumaça e velocidade em prol do
bem estar da espécie humana‖. Diante desse pensamento, comum àquele momento, faz-se a
seguinte afirmação: ―Esta humanidade quanto mais barulhenta e comercial fica, menos paz de
espírito desfruta!‖
27
Isso evidencia o conflito que o progresso e o comércio, influenciados
pelo ocidente, estavam causando na Rússia.
As ciências modernas também tiveram uma grande influência na Rússia do Séc. XIX.
O grande questionamento à ciência era feita por alguns escritores, como o próprio Dostoievski
e Strákhov, um intelectual que chamou a atenção de Dostoievski por ter uma formação bem
abrangente. Era filho de cléricos e havia sido educado em um Seminário Teológico. Estudou
matemática, ciências naturais e se graduou em biologia na Universidade. Com toda essa
24
CADOT, Michel. Occident de Versilov. Université Paris III - Sorbonne Nouvelle. The Department of
Slavic Languages and Literatures. International Dostoevsky Society. University of Toronto. Extraído do site:
http://www.utoronto.ca/tsq/DS/04/013.shtml em 12/12/2008. ―Dostoïevski découvrit l'Occident lors de ses
voyages de 1862 et 1863. Les Notes d'hiver sur des impressions d'été font longuement apparaître la déception
ressentie par l'écrivain devant le manque de fraternité réelle qui gne en France, car la fièvre devise de la
Révolution française y est restée lettre morte. Il laisse entendre que la Russie, bien reconnaissable quoique non
désignée, est plus apte à la fraternité véritable‖. (Tradução livre)
25
DOSTOIEVSKI, F. O Idiota. p. 413.
26
FRANK, Joseph. O manto do profeta. p.27.
27
DOSTOIEVSKI, F. O Idiota. p.413.
25
formação, ele conhecia de perto as limitações do conhecimento científico. Joseph Frank
destaca um confronto direto que Strákhov faz à ciência: ―A ciência não abrange o que para
nós é o mais importante, o mais essencial; não abrange a vida [...] Nós não somos
engrenagens de alguma grande máquina; somos principalmente o herói daquilo que
chamamos vida.‖
28
Nesta mesma direção estava o inconformismo de Dostoievski com a
ciência, não aceitava ver o humano como esta ―engrenagem‖, que faz do humano um ser sem
liberdade. O conhecimento científico era incapaz de lidar com as ―questões malditas da
existência humana‖.
29
Para Berdiaeff, não existe apenas o conhecimento científico, pois problemas que
ultrapassam os limites científicos, principalmente em se tratando do conhecimento do
humano. O próprio conhecimento científico não é capaz de explicar a si mesmo. ―Para o
cientificismo tudo é objeto, e o sujeito mesmo não é mais que um objeto entre os demais.‖
30
Se
tornar objeto é o mesmo que viver sem liberdade de pensar de forma diferente, em especial de
pensar de forma sobrenatural.
31
Esse cientificismo tira a possibilidade da ser um elemento
aceitável para a vida, pois se baseia apenas na razão.
Dostoievski se opunha assumidamente a esse cientificismo moderno, pois, para ele,
não liberdade sem liberdade de consciência, de viver além do que a ciência determina, um
determinismo científico-racionalista. Esse determinismo moderno faz do humano um ―ser em
busca de suas causas naturais‖, destaca Pondé.
32
Dostoievski a paixão da modernidade por
esse determinismo como uma segunda queda, uma condição de pecador.
33
Berdiaeff ainda menciona que o conhecimento é uma humanização, no sentido
ontológico da palavra. Ele classifica este conhecimento em três tipos. O conhecimento
religioso, que segundo ele é o mais profundo, pois trata o humano como imagem e
semelhança de Deus, esta ―imagem é o modelo do homem, a humanidade em sua pura
28
FRANK, Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação. 1860 a 1865. p. 74.
29
Cf. Id. Ibid. p.74 este termo questões malditas da existência humana era usada também por Berdiaeff.
30
BERDIAEFF, Nicolas. Cinco meditaciones sobre la existencia. Soledad, sociedad e comunidad. Títulos de
original ruso. El yo el mundo de los objetos. 1ª edición francesa, 1936. 1ª edición en castellano, 1948. traducción
francesa de Irene Vildé-lot. Ediciones ALBA. México, D.F. 1948, p. 20.―Para el cientificismo todo es objeto, y
el sujeto mismo no es más que um objeto entre los demás.‖
31
O termo sobrenatural é comumente usado por Nicolas Berdiaeff e por Luis Felipe Pondé para referirem-se ao
transcendente.
32
PONDÉ, Luis Felipe. Crítica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. São Paulo: Ed. 34. 2003,
p.178.
33
Cf. Id. ibid. p.178.
26
essência‖. O segundo tipo de conhecimento é o filosófico, que para Berdiaeff vem depois do
religioso e é também uma humanização, ―um conhecimento do mistério do ser no homem e
pelo homem, do sentido da existência enquanto esta é comensurável com a existência
humana, com o destino do homem.‖ O terceiro conhecimento é o científico, particularmente
as ciências físicas matemáticas, onde a humanização encontra o seu mínimo. Berdiaeff afirma
que ―a física contemporânea nos mostra a desumanização da ciência, pois esta se acha a ponto
de abandonar definitivamente o universo humano.‖
34
O autor ainda ironiza argumentando que
se toda a razão da existência humana se resumisse na fórmula 2+2=4 (referindo-se a ciência
matemática), essa fórmula não seria a vida, mas o começo da morte. A natureza humana
nunca pode ser racionalizada, sempre haverá um resto de irracionalidade, e é precisamente
nisso que consiste a fonte da vida.
35
Esta era a forma de Dostoievski entender a vida, a partir
do ―irracional‖, livre da lógica da razão!
Essa influência das ciências modernas também é destacada por Dostoievski. No livro
Os irmãos Karamazovi, as palavras finais do mestre Stariets Zózima
36
ao jovem Aliocha
revelam o conflito entre as afirmações do cientificismo e a popular. Para Dostoievski, a
ciência não tem capacidade de propor algo melhor do que aquilo que Cristo propôs.
Lembra-te sempre, rapaz começou o padre, sem preâmbulo - , de que a
ciência do mundo, tendo-se desenvolvido neste século sobretudo, dissecou
nossos livros santos e, após uma análise impiedosa, nada deixou subsistir.
Mas, dissecando as partes, perderam de vista o conjunto, e sua cegueira é de
causar espanto. O conjunto se ergue diante dos olhos deles, tão inabalável
quanto antes, e o inferno não prevalecerá contra ele. Será que o evangelho
não tem dezenove séculos de existência, não vive ainda agora nas almas dos
indivíduos e nos movimentos de massas populares? Subsiste mesmo,
sempre inabalável, nas almas dos ateus destruidores da toda a crença!
Porque os que renegaram o cristianismo e se revoltaram contra ele, esses
mesmos permaneceram no íntimo à imagem do Cristo, porque nem sua
sabedoria nem sua paixão puderam criar outro modelo para o homem,
superior ao indicado outrora por Cristo. As tentativas neste sentido, não
passaram de monstruosidades. Lembra-te disto sobretudo, rapaz, pois teu
stariets moribundo te envia para o mundo.
37
34
BERDIAEFF, Nicolas. Cinco meditaciones sobre la existencia. Soledad, sociedad e comunidad. p.24.―la
imagen el modelo del hombre, la humanidad en su esencia pura.‖ ... ―un conocimiento del misterio del ser en el
hombre y por el hombre, del sentido de la existencia en cuanto ésta es conmensurable con la existencia humana,
con el destino del hombre.‖ ... ―La física contemporánea nos muestra la deshumanización de la ciencia: ésta se
halla a punto de abandonar definitivamente el universo humano.‖
35
Cf.BERDIAEFF, N. El credo de Dostoievski. p. 55.
36
Stariets era um monge idoso e pobre, respeitado por sua sabedoria e bondade.
37
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p.131.
27
Dostoievski ao retornar a Rússia após seis anos de serviço no Exército encontrou um
país com um outro ar em sua atmosfera sociocultural.
Ele (Dostoievski) pertencia à geração dos anos de 1840, que fora inspirada
por um socialismo utópico francês imbuído de veneração por Cristo e cujas
ideias filosóficas haviam sido sorvidas nos espaçosos horizontes metafísicos
do idealismo alemão de Hegel, Schelling e Schiller. Agora, a vida cultural
russa era dominada por uma nova geração, a dos anos 1860; e seus líderes,
Nikolai Tchernichévski e N.A. Dobroliúbov, eram filhos de famílias
clericais. Educados em seminários religiosos mas desiludidos com a Igreja,
tinham-se convertido ao radicalismo sociopolítico e buscavam seu alimento
no ateísmo de Feurbach, no materalismo e racionalismo do pensamento
francês do século XVIII e no utilitarismo inglês de Jeremy Bentham. Desse
modo, o radicalismo russo adquiriu nova base ideológica, que na forma
como foi formulada por Tchernichévski, transformou-se na doutrina do
―egoísmo racional‖.
38
As influências ocidentais estavam colocando a vida apenas em categorias racionais,
algo que para Dostoievski era inaceitável. Grigóriev, escrevendo a Dostoievski, descreve
muito bem isso em sua declaração:
Para mim a vida é realmente uma coisa misteriosa [...] quer dizer, é
misteriosa porque é algo inesgotável, um abismo que traga toda razão finita,
para usar a expressão de um velho livro místico, um espaço ilimitado no
qual as conclusões lógicas da mente mais inteligente muitas vezes se
perderão, como uma onda no oceano; [a vida é] até mesmo uma coisa
irônica, mas ao mesmo tempo prenhe de amor, apesar dessa ironia.
39
Dostoievski via em Grigóriev um aliado; concordavam que a vida pode e deve ser
livre.
Essas influências obviamente confrontaram a vida e a cultura do povo russo naquela
ocasião, que vivia sob o poder do Czar Nicolau I. Com isso a Rússia estava dividida,
conforme fora dito, em dois pólos predominantes: Os ocidentalistas e os eslavófilos. De um
lado o desejo de uma mudança cultural, social e política, de outro a luta pelo conservadorismo
eslavo, que tinha no cristianismo ortodoxo um forte aliado, o qual também tinha seus conflitos
contra o ateísmo e o niilismo.
38
FRANK, Joseph. O manto do profeta. p. 32,33.
39
GRIGORIEV, Apolon apud. FRANK, Joseph. Dostoievski. Os Efeitos da libertação. 1860 a 1865. p.82.
―Grigoriev era um grande conhecedor da cultura popular russa e da música cigana, que reputava irresistível, e era
famoso por suas interpretações virtuosísticas dessa música ao violão.
28
1.2.2. O Niilismo
A negação: eis o meu deus. (Vissarion Bielínski)
O niilismo é um fenômeno presente em toda a obra de Dostoievski, e parece sempre
estar assediando a vida de suas personagens, tendo consigo alguns aliados, tais como: o
materialismo e o utilitarismo.
O niilismo se desenvolve na Rússia durante o reinado de Alexandre II (1881-1885),
czar liberal e reformista. A década de 1860 é considerada a década do niilismo. Alguns fatores
propiciam o ambiente favorável para o desenvolvimento do niilismo naquele país: A abertura
do regime ao exterior (econômica, cultural e ideológica) e a liberdade concedida a imprensa
(mesmo que relativa), são elementos decisivos na divulgação desta nova subcultura. O
niilismo tem então um caráter fundamentalmente intelectual e representa uma reação contra as
mais antigas concepções religiosas, metafísicas e idealistas.
40
Ivan Turgueniev, proeminente romancista russo, emprega a palavra niilismo para
designar certa concepção que afirma como válido apenas a existência do que é perceptível
pelos sentidos humanos, enquanto nega tudo o que tem fundamento na autoridade e na
tradição. Apoiado por Nikolai G. Thernichévski, Dmitri Pisarev e outros, o niilismo russo
nega o espírito, a alma, as ideias, todas as normas e os valores entendidos como supremos,
inclusive a moral. É a negação de um mundo imerso no metafísico, religioso, irracional.
41
Tchernichévski, democrata revolucionário e socialista utópico, filósofo materialista,
escritor e crítico literário (1828-1889), propõe um materialismo que no humano um ser
totalmente subserviente às leis da natureza, o qual não deixa espaço para o irracional.
Tchernichévski tenta ainda extinguir o problema da liberdade negando o livre arbítrio. Para
ele, a vontade é apenas ―a impressão subjetiva que acompanha em nossas mentes o
surgimento de pensamentos, ações ou fatos externos anteriores‖.
42
40
Cf.pt.wikipedia.og/wiki/niilismo. Site pesquisado em 17/12/2008.
41
Cf.www.ateus.net/wiki/index.php. Site pesquisado em 17/12/2008.
42
TCHERNICHÉVSKI, N. apud. FRANK, Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação. 1860 a 1865. p.64.
29
Em relação à ética e à moral, Tchernichévski adota um utilitarismo, rejeitando
qualquer tipo de valores morais cristãos tradicionais.
O Bem e o Mal são definidos em termos de ―utilidade‖ e o homem busca
fundamentalmente o que lhe prazer e satisfaz seu interesse pessoal
egoísta; mas, como é uma criatura racional, o homem acaba por aprender,
por meio do esclarecimento espiritual, que a ―utilidade‖ mais duradoura e
mais permanente está em identificar seu interesse pessoal com o da vasta
maioria dos seus iguais. Uma vez despertada essa percepção, o indivíduo
esclarecido atinge o nível de um ―egoísmo racional‖ interesseiramente
desinteressado, que, na opinião de Tchernichévski, é a forma mais alta do
desenvolvimento humano.
43
Essas concepções são rapidamente difundidas entre a nova geração de 1860 na Rússia.
Frank afirma que nenhuma outra idéia poderia ter deixado Dostoievski mais irritado e destaca
como ele acredita profundamente em duas verdades. A primeira é que a psique humana jamais
abdica do desejo de afirmar sua liberdade; a segunda é a de que ―a moral cristã do amor e do
auto-sacrifício era uma suprema necessidade tanto para o indivíduo quanto para a sociedade
em geral.‖
44
Essas duas verdades são assertivas na vida de Dostoievski, além de serem eixos
condutores em sua literatura.
Uma obra que trata de forma bem próxima o niilismo é Os demônios, mas algumas
personagens de outras obras que são destaques e vivem este drama: Raskolnikov (Crime e
Castigo) e Ivan Karamazov (Irmãos Karamazovi). O niilismo, embora tenha a negação como
foco central, apresenta uma outra face do qual Dostoievski percebe, a face da dúvida. A
dúvida é a possibilidade da liberdade, pode significar a negação da negação.
Ou renunciar à vida!‖ exclamou subitamente, aceitar, duma vez para
sempre, o destino como ele é, abafar todas as aspirações, abdicar
definitivamente ao direito de ser livre, de viver, de amar...!‖ Raskólnikov
lembrou-se de repente das palavras que Marméladov dissera na véspera:
Compreende, compreende, senhor, o que significam estas palavras: não ter
para onde ir?...todo homem necessita de um lugar para voltar‖
45
43
Id.ibid.p.65.
44
Id.ibid.p.65.
45
DOSTOIEVSKI, F. Crime e Castigo. Trad. Cláudio de Castro. São Paulo. Publifolha. Rio de Janeiro. Ediouro.
1998. p. 53. O conflito existencial de Raskolnikóv, personagem deste livro, um jovem assassino que luta contra a
culpa por ser assassino, tenta negar de todas as formas, alega para si mesmo ter feito um favor a humanidade ao
assassinar uma velha agiota e sua sobrinha. É bem enfático ao afirmar sobre abdicar o direito de ser livre. O
niilismo é uma renuncia a liberdade.
30
Luis Felipe Pondé em sua obra Crítica e profecia a filosofia da religião em
Dostoievski, especificamente no capítulo denominado: ―Liberdade: niilismo ou amor?‖
discute alguns aspectos importantes do niilismo, contrastando-o com a liberdade segundo
Dostoievski.
O niilismo para Dostoievski, descreve Pondé, é a dissolução da condição humana, uma
vez que o humano perde o referencial vertical. É um niilismo moral, psicológico e
epistemológico, algo que rompe com o sobrenatural. Daí que para Dostoievski, niilismo,
materialismo, naturalismo, são sinônimos.
46
Chega a dizer que o niilismo é um
comportamento que afeta tanto o interior, as relações humanas e até mesmo o cosmo. Para
Dostoievski, o niilismo poderia alterar a própria espécie humana, pois as gerações
apresentariam diferenças físicas devido à mentalidade liberal e niilista. Seria ―um novo
sistema de adaptação ao meio‖.
47
Pondé, ao referir-se à discussão racional sobre a liberdade, aponta duas saídas em
Dostoievski. Segundo ele, é possível cair na heteronomia, onde a liberdade é eliminada por
causas de alguma ordem (políticas exteriores, leis físicas, ou o poder de uma pessoa sobre a
outra). Trata-se de causas externas em relação ao indivíduo. O maior exemplo apresentado
dessa heteronomia é a metáfora do inquisidor.
48
A outra saída apontada por Pondé é a autonomia, onde o homem acredita ser senhor de
sua liberdade. Esta autonomia é apresentada como a ―porta para o niilismo.‖
49
Na heteronomia a liberdade é eliminada, na autonomia a liberdade é negada pela
razão, passando a existir apenas a contingência. Para Dostoievski a liberdade é incriada,
sobrenatural, a liberdade semelhante a Deus. Mas admite outra liberdade - liberdade segunda -
aquela que se realiza no mundo.
50
Como falar de liberdade no mundo? Para Dostoievski existe uma forma
de viver a liberdade de forma real sem cair na heteronomia ou na autonomia,
ou seja, sem incorrer nos dois erros fundamentais: trata-se, como ele diz, de
exercer a liberdade ―dentro‖ em meio ao amor. Assim, depois do pecado, o
46
Cf. PONDÉ, Luis Felipe. Crítica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p.187.
47
Id. ibid. p.235.
48
PONDÉ, Luis Felipe. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 179.
49
Id.ibid.p.179.
50
Cf. Id.ibid.p.180.
31
ser humano não seria capaz de ser livre a não ser amando. É uma
característica da condição caída. O ser humano que procura definir a si
mesmo como alguém que tem direito a ser livre a todo custo observamos aí
um rasgo reacionário de Dostoievski - , que define o seu ―eu‖ como um ser
livre, assume uma atitude que elege a liberdade em si, o que pode acabar
em niilismo psicológico, pois ele descobre que, na realidade, não é nada,
suas ideias mudam de uma hora para outra, ele não tem certeza de critério
algum.
51
O Romance que inaugura o conflito entre o racionalismo e materialismo, defendido
pela nova geração, com os valores e sentimentos das gerações anteriores a 1860 na Rússia é
Pais e filhos, de Turguiênev, romance dedicado à memória de Bielínski. Essa obra cria uma
situação que nem mesmo o próprio Turguiênev esperava.
―Não me alongarei sobre a impressão que esse romance criou‖, escreveu
Turguiênev, sete anos mais tarde. ―Direi apenas que, quando voltei a
Petersburgo no mesmo dia do conhecido incêndio no Mercado Apráksin, a
palavra ‗niilista‘ forma adotada por milhares de pessoas, e a primeira
exclamação que escapou dos lábios do primeiro conhecido que encontrei na
avenida Névski foi: ‗Veja o que seus niilistas estão fazendo! Estão pondo
fogo em Petersburgo!‘‖
52
Pais e filhos tornam-se o centro de toda a controvérsia sociocultural. Os debates se
davam ao redor da personagem Bazárov, que é a personificação da cisão entre a pequena
nobreza intelectual dos anos 1840 e os rasnotchintsy, radicais dos anos de 1860.
53
A
personagem Bazárov ilustra muito bem um niilista: ―Um bom químico é vinte vezes mais útil
que um poeta‖. Até mesmo as ciências, para Bazárov, se reduzem a ‗sensações‘ e não
tampouco princípios gerais, porque estes, para ele, também se resumem em ‗sensações‘. Uma
definição sobre niilista que o próprio romance Pais e filhos traz, através da personagem
Arkádi é a seguinte: ―Um niilista [...] é um homem que não se curva diante de nenhuma
autoridade, que não deposita suas esperanças em nenhum princípio, por maior reverência que
esse princípio possa merecer‖.
54
Joseph Frank cita o trecho mais famoso desse livro, o qual a personagem Bazárov
explica aos velhos Kisânovs incrédulos o alcance universal desta rejeição.
51
Id.ibid.p. 180.
52
TURGUIÊNEV apud FRANK, Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação. 1860 a 1865. p. 235.
53
Id.ibid.p.235. Os raznotchíntsy eram os filhos de padres, os pequenos funcionários de terra empobrecidos, às
vezes servos emancipados ou não, todos aqueles que haviam conseguido educar-se e existir nos interstícios do
sistema de castas da Rússia.
54
Id. ibid. p.245.
32
-Agimos por força daquilo que reconhecemos ser útil observou Bazárov.
No momento, a coisa mais útil de todas é a negação e negamos... Tudo?
Tudo! O quê! Não apenas a arte e a poesia... mas até mesmo...é horrível
dizer...- Tudo repetiu Bazárov, com incrível calma. Pavel Pietróvitch
fitou-o assustado. Não esperava isso; Arkádi, por sua vez, corou de prazer. -
Digam-me uma coisa, porém começou Nikolai Pietrovitch.- Os senhores
negam tudo ou, falando mais precisamente, os senhores destroem tudo.
55
Bazárov desvaloriza a amizade e o amor. O único amor que ele conhece é o amor
egoísta. Além de zombar da arte, é um ―Titã que se rebela da mãe terra‖, conforme escreve
Strákhov, intelectual que resenha Pais e filhos. Ele afirma também que ―nenhum Titã é
poderoso bastante para triunfar sobre as forças que, arraigadas imutavelmente na natureza
emocional do homem, constituem os eternos fundamentos da vida humana.‖
56
Dostoievski
também o niilismo desta forma, como uma força incapaz de vencer o humano, a alma
humana e ―as malditas questões humanas.‖
57
Nem o determinismo materialista das ciências
modernas e nem mesmo a negação niilista são capazes de esconder estas ‗malditas questões
humanas‘.
O exemplo de um niilista em conflitos é Ivan Karamazov. Ele assume o abismo da
dúvida, apesar de não negar Deus como princípio. A posição real de Ivan Karamazov é a de
decomposição pessoal, pois ―é tomado pelo processo enlouquecedor niilista moderno.‖
58
Essa foi a grande preocupação de Dostoievski, pois ele via o projeto da
modernidade como um grande investimento na queda. que não podemos
dizer que o autor seja um reacionário, mesmo que muitos o classifiquem
como tal, porque ele assimila toda a questão do indivíduo e da subjetividade
em sua obra, o que constitui um posicionamento bastante moderno. Portanto,
não é fácil enquadrá-lo como reacionário, mas, ao mesmo tempo, sempre foi
um crítico feroz da modernidade.
59
Para Dostoievski, fora do eixo vertical (homem-Deus), decomposição e, se a
experiência da consciência livre se resumir apenas à razão, se perderá no ―círculo infernal do
irracional e do niilismo.‖
60
55
Id. ibid. p.245.
56
STRÁKHOV apud FRANK, Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação. 1860 a 1865.p.255.
57
Cf. BERDIAEFF. N. El credo de Dostoievsky.p.8.
58
Id.ibid.p.184.
59
PONDÉ, Luis Felipe. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p.45.
60
Id.ibid.p. 186.
33
Em Os irmãos Karamazovi, o encontro do Diabo com o jovem Ivan. Muito embora
Ivan estivesse dando sinais de problemas psiquiátricos, influenciados pela negação
assertiva do niilismo. Ivan, ao se deparar com aquela aparição, fica muito irritado e afirma
que aquilo é um ―fantasma de seu espírito doente.‖
61
É travado um diálogo muito interessante
entre Ivan e o Diabo.
A conversa do Diabo é sempre em tom de escárnio, mas sempre usando os argumentos
pertinentes do próprio Ivan e do niilismo. ―Entre vocês, tudo é definido, fórmulas,
geometria; entre nós, equações indeterminadas! Aqui, passeio, sonho (gosto de sonhar).‖
62
momentos neste diálogo que são hilários, como por exemplo, no momento em que o
Diabo relata que se lembra do reumatismo que sente ao encarnar. Ivan fica admirado e indaga:
―O diabo com reumatismo?‖
63
A resposta do Diabo a Ivan é também muito provocativa: ―Porque não? Se me
encarno, tenho de suportar todas as conseqüências. Satanas sum et humani a me alienum
puto.”
64
Satanás conta uma lenda a Ivan e o confronta em relação à sua negação e sua dúvida.
O tormento de Ivan é bem nítido nesta passagem.
Havia na terra certo filósofo que negava tudo, as leis, a consciência, a fé,
sobretudo a vida futura. Morreu pensando entrar nas trevas do nada e ei-lo
em presença da vida futura. Espanta-se, indigna-se: ―Isto‖, diz ele, ―é
contrário às minhas convicções‖. E foi condenado por isto. [...] Pega a alma
de um ateu russo esclarecido e mistura-a com a do profeta Jonas, que se
aborreceu três dias e três noites na barriga de uma baleia, e obterás o nosso
pensador recalcitrante.[...] Sabendo que crês um pouco em mim, contei-te
uma anedota para entregar-te definitivamente a dúvida. Conduzo-te entre a
e a incredulidade alternativamente, não sem um fito. É um novo método;
quando cessares completamente de crer em mim, por-te-ás a assegurar-me
que não sou um sonho, que existo verdadeiramente, conheço-te; então meu
fito será atingido. Ora, meu fito é nobre. Depositarei em ti um minúsculo
germe de fé que dará nascimento a um carvalho, um carvalho tão grande que
será teu refúgio e quererás fazer-te anacoreta, porque é teu vivo desejo em
segredo, nutrir-te-ás de gafanhotos, prepararás a tua salvação no deserto.
65
61
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 443.
62
Id.ibid. p. 444.
63
Id.ibid.p.444.
64
Id.ibid.p.444. Tradução do latim na nota de rodapé do livro. ―Sou Satanás e nada do que é humano reputo
alheio a mim.‖
65
Id.ibid.p.447-449.
34
Dostoievski entende que o sobrenatural não é uma simples metáfora e quanto mais o
ser humano se afasta dele mais ele se perde no abismo niilista.
E quanto mais distante, no sentido de equivocada, for a idéia do sobrenatural
em relação ao que Ele realmente é (liberdade incriada, amor), mais restará
para o ser humano apenas a autonomia niilista ou a heteronomia
inquisitorial.
66
Os irmãos Karamazovi termina com alguns meninos conversando sobre questões
inquietantes e humanas. Essa conversa se após a morte de Iliúcha, um amigo deles que
morre de tuberculose ainda muito jovem. Aliócha faz um discurso aos seus amigos acerca
daquele momento e de seu significado. Esse discurso é carregado de amor, de lembrança e de
dor. O discurso de um adolescente a outros de sua idade, a nova geração. Dostoievski termina
seu livro com as crianças, com a esperança.
Convenhamos aqui, diante da pedra de Iliúcha, que jamais o esqueceremos e
nos lembraremos uns dos outros. E, aconteça o que acontecer mais tarde na
vida, ainda mesmo que fiquemos vinte anos sem nos vermos, lembrar-nos-
emos de como enterramos o pobre menino, contra o qual eram atiradas
pedras no passadiço, deveis lembrar-vos, e que foi amado por todos. Era um
menino amável, bom e corajoso, tendo o sentimento da honra e da amarga
ofensa sofrida por seu pai, contra a qual se voltou. Assim nos lembraremos
dele toda a nossa vida. E mesmo se estivermos ocupados com negócios da
mais alta importância e tenhamos alcançado honras ou caído no infortúnio,
mesmo então não esqueçamos jamais como nos foi doce aqui comungar uma
vez em um bom sentimento que nos tornou, enquanto amávamos o pobre
menino, talvez melhores do que somos na realidade. [...] Sabei que não
nada mais nobre, e mais forte, de mais são e de mais útil na vida que uma
boa recordação, sobretudo provindo da juventude, da casa paterna.
67
Um menino discursando sobre o amigo que morreu. A recordação do amigo
defendendo a honra do pai. Meninos ouvindo, o compromisso da lembrança. Dostoievski toca
em um ponto que representa aquilo que é muito sensível, o amor de crianças. A lembrança
que permanecerá, a boa recordação. ―Todos vós me sois caros doravante, todos tendes um
lugar em meu coração e reclamo um no vosso!‖
68
66
PONDÉ, Luis Felipe. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p 185.
67
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural.
1971. p.533
68
Id.ibid.p.534.
35
A conversa é muito profunda e acaba com uma pergunta inquietante: ―Karamazóv
exclamou Kólia. é verdade o que diz a religião, que ressuscitaremos dentre os mortos, que
nos tornaremos a ver uns aos outros, e todos e Iliúcha?‖
69
Diante dessas questões, Dostoievski confronta a negação do niilismo afirmando a
imortalidade. - Decerto ressuscitaremos, tornaremos a ver-nos, contaremos uns aos outros
alegremente tudo o que se passou respondeu Aliócha, meio risonho, meio entusiasta.‖
70
A liberdade e o amor para Dostoievski sempre têm esta dimensão vertical. Aponta
para o transcendente, para a liberdade incriada. O amor que deixa sua marca, como o amor de
criança apontando para a eternidade. Ele afirma haver imortalidade e chega a comentar sua
compreensão da vida além-túmulo.
Seria um insulto intolerável à dignidade humana um homem viver num
mundo totalmente destituído de sentido; e esse mundo, do ponto de vista de
Dostoievski, seria aquele em que a morte significasse simplesmente extinção
um mundo em que as labutas da vida humana não tivessem qualquer
explicação ou justificativa satisfatórias. Penetramos aqui o âmago dessa
estreita ligação entre a psicologia e a metafísica religiosa tão típica de
Dostoievski; e essa ligação explica a natureza um tanto inesperada de seu
argumento a favor da imortalidade. Uma vez convencido, para sua própria
satisfação, de que deve existir uma vida no além-túmulo, Dostoievski chega
a imaginar que forma essa vida podia talvez assumir: ―O que é, onde é, em
que planeta, em que centro, isto é, no seio de uma síntese universal, isto é,
Deus? não sabemos‖. Segundo Dostoievski, um único aspecto dessa vida
futura foi revelado à humanidade pelo próprio Cristo, ―o ideal sublime e
final do desenvolvimento de toda a humanidade.‖
71
O niilismo nega o humano, pois a negação desumaniza e suprime a liberdade.
Dostoievski dirige-se ao caminho contrário: ele afirma o humano e na liberdade a
realização do humano, uma liberdade que tem como referencial Cristo. A negação de
Dostoievski é ao determinismo materialista, racionalista e niilista. Conforme ratifica Bruno
Forte, a atenção de Dostoievski é dirigida à condição trágica do existir humano e é nisso que
deve ser procurado seu phatos.
72
69
Id.ibid.p.534.
70
Id.ibid.p.534.
71
FRANK, Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação 1860-1865. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo:
EDUSP, 2002. p.416.
72
FORTE, Bruno. À Escuta do outro. Trad. Mário José Zambiasi. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 90.
36
1.2.3. Ideias Socialistas
As ideias socialistas são difundidas principalmente pelos radicais da segunda geração,
isto é, a geração de 1860. Não se trata de um socialismo cristão ortodoxo, conforme idealiza
Dostoievski, mas de um socialismo influenciado pela Revolução francesa, revolucionário e
niilista. Para Dostoievski, o fundamento do socialismo russo é o ―fermento niilista‖, cuja base
religiosa estaria no ateísmo.
De acordo com esse ponto de vista, o socialismo cristão ortodoxo encaminha para a
cidade de Deus, enquanto que o socialismo nega a imortalidade e a liberdade da alma,
apontando então para a ―torre de babel‖. A religião do socialismo; portanto, não é a dos filhos
de Deus, pois renega a ―primogenitura da alma do homem‖, e se torna uma religião dos
escravos da fatalidade, ―dos filhos do povo‖.
73
Ao interpretar Dostoievski, Berdiaeff entende que o problema do socialismo russo é
uma questão apocalíptica, que se encaminha para o fim da história.
Não se pode considerar o socialismo como um relativo estado de evolução
no processo social, como uma fórmula temporal do aspecto político
econômico da sociedade. Há de considerar como um estado definitivo,
como final solução do destino humano, como a implantação do Paraíso
terreno.
74
Essa ―implantação do paraíso terreno‖ seria uma implantação imposta, negando a
liberdade da alma, racionalizando por inteiro a vida e subjugando-a a razão coletiva. Berdiaeff
faz menção da lenda do ―Grande Inquisidor‖, que trabalha as três tentações no deserto, onde,
de acordo com os Evangelhos, Satanás tenta a Jesus. A primeira tentação é justamente a de
transformar pedra em pão.
Utiliza-se da metáfora do ―Grande inquisidor‖ e refere-se ao socialismo como o
humano vendendo sua liberdade da alma em troca do pão terreno, isto é, o pão celestial
representa a liberdade da alma e o pão terreno o socialismo.
75
73
BERDIAEFF, Nicolas. El credo de Dostoievsky. p. 153.
74
Id. ibid. p. 148. ―No se puede considerar al socialismo como un relativo estado de evolución en el proceso
social, como una fórmula temporal del arreglo político económico de la sociedad. Ha de considerarse como un
estado definitivo, como final solución del destino humano, como la implantación del Paraíso Terrenal.‖
75
Id. ibid. p. 153.
37
Dostoievski chega a comparar o socialismo com o catolicismo romano, mais
precisamente a teocracia papal com o socialismo. O catolicismo seria então, segundo
Dostoievski, ―o guardião da idéia romana do universalismo por imposição‖ e ―o socialismo
nada mais seria que o catolicismo secularizado‖. A Revolução francesa teria sido apenas uma
imitação da antiga fórmula romana do universalismo por imposição.
76
Este problema de Dostoievski com o catolicismo romano é percebido também no livro
O Idiota.
_ Pavlíchtchev converteu-se à Igreja Romana? Impossível! exclamou
horrorizado [...] contaram-me que a condessa K. entrou para um convento
católico, no estrangeiro. Os russos, uma vez na mão destes velhacos, não se
livram mais... especialmente no estrangeiro [...] _Pavlíchtev, que era um
homem iluminado e um cristão, um verdadeiro cristão _ declarou Michkin
sem que isto fosse esperado _, como pôde aceitar uma religião que não é
cristã [...] o catolicismo é pior do que o ateísmo, na minha opinião. O
ateísmo apenas nega, ao passo que o catolicismo falseia o Cristo, calunia,
difama e se opõe ao Cristo. Prega o anticristo [...] O ateísmo emergiu do
próprio catolicismo romano.
77
Além dessa comparação com o catolicismo, Dostoievski compreendia a religião do
socialismo como homicida e parricida. Isto fica muito bem ilustrado no livro Irmãos
Karamazovi, em especial na relação de Smerdiakóv e Ivan
78
. Smerdiakóv é o símbolo do
povo e da possível revolução, um lacaio que influenciado por um ideal niilista, socialista e
revolucionário resolve usar a força e matar seu opressor. Ivan simboliza os intelectuais, os
mentores da revolução. Ivan idealiza e Smerdiakóv executa. Ambos são niilistas, mas
Smerdiakov, destaca Berdiaeff, é ―o castigo interior de Ivan‖
79
. A ―religião‖ do socialismo
nega a individualidade e a tradição histórica, deificando o mundo e o homem.
76
DOSTOIEVSKI apud. BERDIAEFF. El credo de Dostoievski. p. 155.
77
DOSTOIEVSKI, Fiodor. O Idiota. pp. 598-600.
78
Smerdiakóv era um serviçal da casa, na verdade filho de um estupro feito por seu patrão, com sua mãe, uma
mulher doente mental que morrera em seu parto. Ivan era filho de Fiodor Pavovlitch, patrão de Semerdiakóv, um
jovem intelectual e niilista. Dostoievski retrata nesta duas personagens a relação do povo com os intelectuais,
principalmente os radicais da nova geração. Smerdiakóv assassinou o velho Fiodor Pavovlitch Karamazov, mas
sua ação foi apenas a execução do discurso de Ivan, o qual foi o mentor intelectual do homicídio, principalmente
por afirmar que ―tudo é permitido‖, uma afirmação utilitarista e niilista. Na verdade para Ivan a morte de seu pai
seria um bem para todos, mas um bem imposto. Para Dostoievski um bem imposto nada mais é que um
determinismo.
79
BERDIAEFF, Nicolas. El credo de Dostoievski. p. 155.
38
Como todos os escritores russos, Dostoievski é inimigo da civilização burguesa e
também da Europa ocidental. Torna-se o profeta da revolução russa. O termo profeta é
destacado por Berdiaeff e também por Joseph Frank, o qual intitula seu último livro sobre a
biografia de Dostoievski de O manto do profeta. Para esses autores, Dostoievski percebe os
princípios da futura revolução russa. Ele desmascara o que de falso no espírito da
revolução (socialismo) e entende que o espírito da revolução não é a revolução do espírito,
que é seu ideal. ―Se tinha repulsão pela revolução é porque esta não traz mais que a
escravidão para o homem e a negação da liberdade da alma‖.
80
uma utopia teocrática em Dostoievski, a qual revela elementos de um socialismo
em Cristo, ―um estranho anarquismo cristão.‖
81
Este anarquismo é muito diferente do
anarquismo e socialismo ateu. A idéia do messianismo religioso está muito presente em sua
ideologia social, conduzindo então ao nacionalismo russo.
82
Para finalizar, Joseph Frank também nos traz o principal problema de Dostoievski com
o socialismo, que é a abolição da liberdade do espírito humano em troca da utopia socialista.
... irreprimível e indispensável necessidade do espírito humano de manter o
senso da própria liberdade sua preferência pelo sofrimento, se preciso for,
a uma vida de plenitude numa utopia socialista na qual essa liberdade seria
abolida por uma questão de princípio. Pouco depois de ter saído do presídio,
Dostoievski fizera uma comparação entre os anos que lá viveu e a vida num
―comunismo compulsório‖, e tais palavras demonstram a espontaneidade
com que identificou as condições do presídio àquelas que poderiam resultar
se alguns dos mundos sociais utópicos com que sonhavam os radicais
fossem concretizados. Além disto, como de propósito, a última mutação do
pensamento radical na Rússia assumira uma forma que confirmava
irrefutavelmente a associação instintiva de Dostoievski entre a intolerável
falta de liberdade pessoal no universo do presídio e as ideias ―científicas‖
dos socialistas russos.
83
80
Id. ibid. p.148.
81
Id. ibid. p.170.
82
Id. ibid. p.170.
83
FRANK, Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação. 1860 a 1865.p. 63.
39
1.2.4. O Eslavismo
Dostoievski se recrimina duramente ao ter se envolvido em uma aventura político
social, como o caso Petrachévski
84
, e considera seu envolvimento com a atividade
revolucionária um acidente biográfico, uma armadilha que o atinge por influência de
Spechniev e, segundo Frank, Dostoievski cai nessa armadilha quase contra a própria
vontade.
85
A ingenuidade de Dostoievski nesse sentido nos parece ser próprio de sua
juventude, algo que muda após sua prisão. O coração de Dostoievski é nacionalista e seu
crime contra o Estado é apenas um acidente.
86
O eslavismo está presente na literatura de Dostoievski. Frank dedica um capítulo em
seu livro Dostoievski os anos de provação 1850 a 1859o qual denomina de ―O Patriota
russo‖. Se de um lado as influências ocidentais, do outro o extremismo do eslavismo,
representado pelos eslavófilos, nacionalistas extremistas que viam na Rússia um messianismo,
um país que lideraria o mundo.
Frank destaca ainda outro capítulo intitulado ―Um coração russo‖, que ressalta ainda
mais o nacionalismo de Dostoievski, a ―russianidade‖.
87
Dostoievski seu país como a
grande ―mãe Rússia‖ que tem a missão messiânica de liderar o mundo. A missão dos eslavos
―seria combater o materialismo da civilização moderna e trazer a Rússia de volta (e por meio
dela o mundo inteiro) ao estado de perfeição primitiva, que os eslavos viviam anteriormente a
Pedro.‖
88
Para Dostoievski, o campesinato russo teria muito mais condições morais e sólidas
para a solução dos problemas nacionais do que os sonhos do socialismo de Saint-Simon. Mas
não é apenas Dostoievski que passa a pensar dessa forma. De acordo com Frank, todos os
historiadores da cultura russa concordam que, ―durante a cada de 1850, os acontecimentos
mais significativos são a gradual assimilação das ideias eslavófilas pela opinião pública russa
e a fusão dessas ideias com a do antigo partido ocidentalista.‖
89
O fato é que o sentimento
84
Grupo de jovens que se encontravam na casa de Mikhail Butachévski Petrachevski para discutir as grandes
questões no momento em que imprensa russa estava proibida de veicular.
85
FRANK, Joseph. Dostoievski. Os Anos da provação 1850-1859. p. 155.
86
Cf. Id. ibid. p.316.
87
Id. ibid. p.318.
88
Id. ibid. p.321.
89
Id. ibid. p.318.
40
nacionalista, esse eslavismo brota de forma expansiva em todo o país, a ponto de Dostoievski
afirmar que as influências das ideias francesas não foram mais do que um pequeno desvio que
se deu em um momento, algo nada significativo. O eslavismo entende que ser um russo é
estar unido a outros russos, cujo vínculo que os une é o sentimento de uma ―mútua
responsabilidade moral.‖ Como destaca Frank: ―É possível errar nas ideias, mas o coração não
erra.‖
90
muitas coisas que podem ter influenciado as ideias de muitos russos, como o
próprio Dostoievski, mas o ―coração russo‖ sempre falava mais alto. As personagens de
Dostoievski vivem este drama, a luta entre o coração russo e as ideias não russas.
O eslavismo tem um fundamento religioso messiânico firmado na perspectiva de que a
Rússia seria a grande líder do mundo com seus ideais de vida. Berdiaeff ironiza e destaca a
ambigüidade em Dostoievski em relação ao povo russo. Segundo ele, Dostoievski considera o
povo russo como um dos mais humildes que no mundo, mas, ao mesmo tempo, um povo
que tem orgulho de sua humildade. ―Para Dostoievski, o povo russo é um povo que leva Deus
em si, é o único que leva Deus em sua alma.‖
91
Berdiaeff interpreta esta consciência eslavista
como ultra messiânica, algo parecido com o antigo povo hebreu.
92
Em relação a comparação do povo russo com o europeu, Dostoievski é contraditório
muitas vezes. É comum notarmos em seus textos a influência européia, como por exemplo, a
língua francesa, monumentos históricos, relíquias, menção de fatos e da cultura européia.
Berdiaeff ainda afirma que na opinião de Dostoievski o povo russo tem a capacidade de sentir
tudo o que é grande no mundo, como algo familiar. Ao mesmo tempo parece negar tudo isto.
Pois tem sido também o primeiro a negar que os povos ocidentais são
cristãos, e neste sentido tem firmado um veredicto de morte para toda a
Europa. Foi um chauvinista e há bastante injustiça em seu modo de julgar as
outras nações como, por exemplo, franceses, polacos e hebreus.
93
90
Id. ibid. p.315.
91
BERDIAEFF, Nicolas. El Credo de Dostoievski. p. 172. ―Para Dostoievsky, era el ruso un pueblo que lleva a
Dios en si, el o único que lleva a Dios en su alma.
92
Id. ibid. p.172.
93
Id. ibid. p.172.―Pero también ha sido el primero en negar que los pueblos occidentales sean cristianos, y en ese
sentido ha firmado un veredicto de muerte para toda Europa. Fue un chauvinista y hay bastante injusticia en su
modo de juzgar a otras naciones como, por ejemplo, franceses, polacos y hebreos.‖
41
1.2.5. A mística ortodoxa
Como se sabe, uma grande diferença entre a visão de cristianismo, entre igreja
ocidental (latina) e oriental. Segundo o teólogo russo Evdokimov
94
, a igreja ocidental ―tem o
hábito de definir o que é igreja, de elaborar uma eclesiologia conceitual‖, enquanto que para a
ortodoxia, no sentido da igreja russa, a igreja é algo que se experimenta, ou seja, quando se
tem a experiência não há necessidade de conceito.
95
Evdokimov, dentro desta comparação entre ocidente e oriente, afirma que
...os latinos (ocidentais) quando tem contato com a ortodoxia, consideram
que a teologia desta é vaga, justamente por não ter trama conceitual tão
dura. Tal sentimento viria do fato de os latinos (ocidentais) estarem
muito tempo fora da experiência do que é cristianismo; por isto estariam
perdidos na abstração e no conceito.‖
96
Além desta importante consideração, o referido autor traz um histórico significativo
do pensamento ortodoxo. A mística cristã nasceu falando ―copta‖
97
, a influência cultural,
portanto, foi copta e não hebraica, e nem grega, muito menos latina, e, ―sendo essa língua
eivada de concretude, tal condicionamento acabou ficando na raiz da teologia ortodoxa, para a
qual não há teologia que não seja mística‖.
98
O cristianismo entrou no Egito à medida que os coptas começaram a se converter a
nova religião nascida na palestina, porém, a religião cristã não deitou raízes na comunidade
egípcia. A mística ortodoxa tem origem no Egito, com Santo Antão, que vivia de forma
anacoreta e com Pacônio, fundador da forma cenobítica, que vai dar origem aos mosteiros.
99
94
PONDÉ, Luis F. Crítica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski p.46. Aqui, seguimos Luis Felipe
Pondé, que em sua obra Crítica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski, faz um mapeamento da
antropologia teológica da mística ortodoxa de Evdokimov. De acordo com Pondé, Paulo Evdokimov é o maior
teólogo russo que trabalha no ocidente. ―Devido às perseguições em sua terra natal, acabou fugindo e viveu a
maior parte de sua vida na França, trabalhando no Instituto Saint Serge de Paris, a maior escola de teologia
ortodoxa da Europa ocidental‖.
95
Id. ibid. p.71.
96
EVDOKIMOV apud PONDÉ, Luis F. Crítica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski p.71
97
Língua originada do egípcio antigo, anterior à colonização grega.
98
Id. Ibid. p.72.
99
Id. ibid. p.72.
42
Evdokimov afirma ainda que ―o asceta é alguém que se coloca na tensão da experiência
mística alguém que constantemente está praticando a distância do mundo, mas sem a
exposição à luz tabórica.‖
100
A ida para o deserto é interpretada como um distanciamento do mundo, um
enfrentamento direto com o maligno. Para a ortodoxia, a espiritualidade é um combate
contínuo com o demônio
101
, e o intelecto está despedaçado pelo mal (devido à ação do
demônio sobre a pessoa), causando no ser humano muita dificuldade de se concentrar. O ser
humano precisa se concentrar em algo para manter-se distante da decomposição, que é uma
figura do demônio.
A mística ortodoxa pulsa fortemente na Rússia de Dostoievski e está presente em sua
literatura. Por isso, é importante termos uma compreensão da mística ortodoxa para a análise
do pensamento religioso de Dostoievski e dessa influência religiosa em seus escritos.
É nesse sentido, portanto, que Dostoievski afirma que os ateus não
percebem que a morte não é a principal forma de decomposição, pois
esta já aconteceu em vida. E o ateísmo nada mais é do que a aposta na
decomposição do individuo vivo. Daí sua concepção do ateísmo como
a maior tragédia existente no mundo. O niilismo é seu nome
conceitual.
102
Dostoievski trabalha em suas obras a relação com o ateísmo, sobretudo devido à
influência ortodoxa. Em obras como O Idiota e Os irmãos Karamazovi, a mística ortodoxa
está fortemente presente.
Para Berdiaeff, Dostoievski não pode ser chamado de realista, mas se for considerado
um realista por alguns, deve ser interpretado então como um realista místico. É chamado por
Berdiaeff de ―peregrino russo do mundo das almas‖. Dostoievski é um apocalíptico, porém
diferente dos eslavófilos, pois esses estão arraigados ao terreno, isto é, enfatizam em demasia
o nacionalismo, enquanto que Dostoievski vai além, ele é um peregrino da alma, do subsolo,
seu ambiente, comenta Berdiaeff, é o fogo e não a terra.
103
100
EVDOKIMOV apud PONDÉ, Luis. F Crítica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski p. 75.
101
Id. ibid. p.74.
102
Id. ibid. p.83.
103
BERFIAEFF, Nicolas. El Credo de Dostoievsky .p. 33 ―peregrino ruso por los mundos de las almas.‖
43
Dostoievski não pode ser considerado como um realista no sentido do
realismo psicológico. Não é um psicólogo, mas sim um pneumatólogo, um
metafísico simbolista. Detrás da vida consciente se oculta sempre outra -
subconsciente-, ligadas ambas por seus pressentimentos proféticos [...] Este
―outro mundo‖ de Dostoievski sempre intervêm nas relações entre a gente
deste mundo. Um laço misterioso une a Michkin com Anastácia Filippovna
e Raskolnikov com Svidrigailov, a Ivan Karamazov com Smerdiakov.
104
1.3. O Pensamento Religioso de Dostoievski
Se alguém me provasse que Cristo está fora da verdade e que na realidade a verdade
estava fora de Cristo, então eu teria preferido permanecer com Cristo a ficar com a
verdade.
105
1.3.1. Cristo e a contingência humana
Dostoievski em Cristo a saída para os dilemas da existência humana. No livro O
Idiota, por exemplo, algumas imagens de Cristo descritas no texto. A primeira delas é o
quadro que estava na casa de Rogojin, personagem do livro. Trata-se de uma tela que
apresenta Cristo morto, descido da cruz, cujo aspecto era de alguém que havia sofrido muito.
O quadro apresenta um homem sem o menor vestígio de beleza.
O príncipe Michkin, principal personagem do livro, expressa o impacto que sente ao
contemplar aquele quadro.
...se a morte é tão terrível e se as leis da natureza tão poderosas, como
poderiam elas ser subjugadas, se nem mesmo Ele, tal como está, as venceu,
Ele que em sua existência governava a natureza a seu talante, exclamando
―Talita cumi! ―Levanta-te rapariga!‖ - e a jovem levantou; dizendo para
Lázaro, sai para fora!‖– e o morto saiu para fora? Contemplando uma tal
tela, a gente concebe a natureza sob a forma de um monstro imenso,
impiedoso, bronco, mudo, ou, mais exatamente, bem mais veridicamente
falando, por mais que soe estranho, sob a forma de uma nefanda máquina de
104
Id.ibid.p.25,26.―Dostoievsky no puede ser considerado como un realista in el sentido del realismo psicológico.
No es un psicólogo, sino un neumatólogo y un metafísico simbolista. Detrás de la vida consciente se oculta
siempre otra subconsciente-, ligadas ambas por sus presentimientos proféticos. [...] Ese ―otro mundo‖ de
Dostoievsky siempre interviene in las relaciones entre la gente deste mundo. Un lazo misterioso une a Muichkin
con Anastacis Filipovna y Ragozin, a Raskolnikoff con Svidrigailoff, a Ivan Karamazoff con Smerdiakoff.‖
105
DOSTOIEVSKI apud FRANK, Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação. 1860 a 1865 p. 413. Trecho da
carta escrita por Dostoievski à senhora Fonvízia.
44
construção recentíssima que, muda e apática, esmagou e devorou um Ser
infinitamente precioso, um Ser que vale mais do que toda a natureza com as
suas leis, que vale toda a Terra que foi criada sem dúvida somente para o
advento e descida a ela, à Terra desse ser!
106
A tela exprime o Cristo sofredor, vítima das leis na natureza. Isso suscita uma
pergunta ao príncipe: ―como haveriam agora acreditar que o mártir ressuscitaria?
107
Ele está
pensando sobre os discípulos. Todos os que acreditaram nele antes da cruz, caso o vissem
naquela forma, será que acreditariam em sua ressurreição?
Mas podemos entender que também perguntava para si mesmo: ―como encarar a
morte?‖
A pergunta, portanto seria: Como vencer a natureza? Como ser livre?
Berdiaeff, como intérprete de Dostoievski, entende que no espírito está a vitória sobre
o determinismo da natureza. Existe no homem um princípio espiritual, independentemente
do mundo e seu determinismo [...] o espírito é liberdade, a liberdade é o espírito vencedor.‖
108
Não determinismos para o espírito, por isso, olhar para aquela tela onde retrata a morte e
sofrimento de Cristo e de todo ser humano apenas com o olhar materialista e determinista é
ser escravo da natureza. A libertação do homem não é uma exigência da natureza, da razão
ou da sociedade, mas do espírito‖.
109
A liberdade, portanto, está no espírito, uma liberdade
sobrenatural.
110
Esta é a liberdade para Dostoievski!
Há uma outra descrição de Cristo em uma carta lida pelo príncipe Michkin:
Ontem, depois de vos ter encontrado, voltei para casa e inventei um quadro.
Os artistas geralmente pintam o Cristo tal como Ele aparece nas histórias do
Evangelho. Eu O pintaria diferentemente. Imaginá-lo-ia sozinho (os
discípulos algumas vezes O devem ter deixado sozinho.) Apenas deixaria
106
DOSTOIEVSKI, Fiodor. O Idiota. p. 451,452.
107
Id. ibid. p.451.
108
BERDIAEFF, Nicolas. De L’esclavage et de La liberte de l’homme. Philosophi de l‘esprit. Collection dirigée
par . Lavelle er R. Le Senne. AUBIER Édtions Montaigne. Traduit du russe par S. Jankelevitch. s/d. p.276.―Il y
a chez l´homme un principe spirituel, indepéndendant du monde et de son déterminisme. La libération de
l´homme n'est pas une exigence da la nature, de la raison ou de la sociéte, mais de l'esprit.Pourtant l'homme n'est
pas seulement esprit, il est d'une composition complexe, puisqu'il est en même temps animal, un produit du
monde matériel; mais el est esprit. Or, l'esprit est liberté, et liberté est victoire de l'sprit.‖
109
Id. ibid. p.276.
110
O termo ―sobrenatural‖ é usado por Berdiaeff e por Pondé, intérpretes de Dostoievski, para referirem-se ao
espírito, a vida além do natural. Liberdade da alma.
45
uma criança, ao lado dele, dizendo-lhe qualquer coisa, com sua vozinha de
pássaro. Cristo teria estado a escutar, mas agora estaria pensativo, com Sua
mão descansando inconscientemente sobre a linda cabeça da criança. Ele
estaria olhando para a distância, para o horizonte. Um pensamento, do
tamanho do mundo, habita nos seus olhos. A Sua face está conturbada. A
criança se apoiaria calada, sobre o joelho de Cristo, o rostinho pousado sobre
a mão; a cabeça virada um pouco para cima, olhando com atenção para Ele,
refletindo, com aquele jeitinho pensativo que as crianças às vezes têm. E o
sol estaria a descambar. Este seria o meu quadro! Vós sois inocente, e na,
vossa inocência, jaz toda a perfeição.
111
Esses dois quadros apresentam um Cristo que participa da contingência humana,
embora apresentem imagens diferentes: Um é o Cristo vencido pela morte, pela dor, o outro é
um Cristo próximo de um inocente. O fato é que Cristo é sempre uma figura apaixonante para
Dostoievski, em especial nesta obra descreve a figura desconcertante do príncipe Michkin em
O Idiota, misto de santo e de enfermo a quem Romano Guardini empresta o apelido de ―um
símbolo do Cristo.‖
112
O tema crucial de Cristo, que é um motivo principal em todas as suas
obras e culmina nesse poema do cristianismo que é, inegavelmente, O Idiota, o qual nos traz
uma das figuras mais bem tratadas e mais impressionantes de toda a obra dostoievskiana, o
príncipe Michikin, epilético e sábio, de uma inocência desconcertante e uma visão angelical,
só comparável a de Aliocha, que é praticamente sua réplica em Os irmãos Karamazovi.
A concepção de religião de Dostoievski não é autoritária-transcendental. Pelo
contrário, Berdiaeff a considera como a mais livre das visões religiosas, e vive da ênfase na
liberdade. A religiosidade de Dostoievski não chega a uma solução única, definitiva, mas está
sempre a caminho, isto é, não conclui, está em construção. A vida sendo construída pelo livre
amor.
113
Joseph Frank caracteriza ainda mais o pensamento religioso de Dostoievski, dentro
desta mesma perspectiva da liberdade no amor.
Dostoievski é um cristão crente à sua maneira, que luta internamente
para aceitar os dogmas essenciais da divindade de Cristo, a
imortalidade pessoal, o Segundo Advento e a ressurreição. A meta
mais alta do cristianismo de Dostoievski não é, porém, a salvação
pessoal, mas a fusão do ego individual com a comunidade numa
111
Id.ibid.p.504.
112
GUARDINI, Romano apud SILVEIRA, Homero. Três Ensaios sobre Dostoievski. p.57.
113
BERFIAEFF, Nicolas. El Credo de Dostoievsky. p. 37
46
simbiose de amor; e o único pecado que parece admitir é o fracasso no
cumprimento dessa lei do amor.
114
A religião de Dostoievski é a da liberdade, do Cristo da liberdade, uma liberdade que
caminha no amor. É a religião do Deus-Homem, por isso, para melhor compreensão de seu
pensamento religioso, é necessário pensar o humano em Dostoievski.
1.3.2. O Humano em Dostoievski
O humano é tema central em Dostoievski. Berdiaeff afirma que nas obras de
Dostoievski existe o humano, aquele que não é ―objetivável‖. Dostoievski se interessa
fundamentalmente pela alma humana.
115
Ele sempre traz uma personagem central, a qual se
torna o enigma que todos procuram conhecer.
Berdiaeff cita o exemplo de duas personagens, uma do livro O Idiota, e a outra do
livro Os irmãos Karamazovi.
Os ―iluminados‖ Michkin e Aliocha decifram os demais...Aliocha decifra
Ivan - que é um enigma-. Michkin penetra e compreende a alma de
Anastácia Filippovna e a de Aglaia. Os iluminados Michikin e Aliocha
estão dotados de clarividência e partem em auxílio aos outros.
116
também algumas personagens que fazem os outros sofrerem. ―Os tenebrosos
Stavroguin, Versiloff, Ivan Karamazov, são de uma natureza enigmática que faz sofrer os
demais.‖
117
Em Dostoievski o humano não pode ser conceituado, assim como não se conceitua
Deus. Conceituar o humano (característicos das ciências modernas) seria para Dostoievski
uma das formas de descrever a vida pós-queda que busca a objetivação da condição humana.
114
FRANK. Joseph. Dostoievski: Os efeitos da Libertação. 1860 a 1865. p.423.
115
BERDIAEFF, Nicolas. El Credo de Dostoievski. p.40.
116
Id. Ibid. p. 44. Los ―luminosos‖ Muichkin e Alejo descifran a los demás, iniciando hacia ellos su
penetración. Alejo descifra a Ivan que es un enigma . Muichkin penetra y comprende el alma de Anastácia
Filípovna y la de Aglaya. Los ―luminosos‖ Muichkin y Alejo están dotados de clarividencia y acuden in auxilio
de los otros.‖
117
Id. ibid. p. 44.
47
Seria o mesmo que reduzir o mistério em uma conceituação científica, algo que não caberia
na mente de Dostoievski. É possível perceber com isto a influência da mística ortodoxa em
seu pensamento, pois segundo ela, o mal trabalha a partir de conceitos.
118
Um dos problemas sugeridos por Dostoievski é a psicologia (psicologia do Séc.XIX),
que em sua opinião lida com o ser humano de forma mecânica e reducionista, algo desconexo
de sua antropologia cristã.
―No homem e por meio do homem se contempla a Deus e se chega a Ele.‖
119
Este
foco no humano é fruto de sua perspectiva teológica que caminha contrário ao autoritarismo
transcendentalista da religiosidade. Ele descobre Jesus Cristo no homem por meio da Via
Crucis humana. Por isso Berdiaeff declara que a religião de Dostoievski é a mais livre
religião, um livre amor religioso antes desconhecido.
1.3.3. A liberdade na condição humana em Dostoievski
O humano em Dostoievski é livre. Evidentemente é preciso compreender o que é
liberdade para Dostoievski. Segundo Evidokimov, em Dostoievski, liberdade não é um ―quê‖,
mas um ―como‖, é algo que se em processo. Isso implica que não se pode dizer o que
significa ser livre, apenas ―sofrer o fato de ser livre.
120
Berdiaeff interpreta essa liberdade
como a liberdade da alma, que se por meio das profundezas da livre consciência humana,
portanto, supõe infinidade, uma liberdade sobrenatural.
121
Para o homem moderno, segundo Pondé, é complicado compreender essa liberdade de
Dostoievski, uma vez que a idéia moderna de liberdade tem um caráter essencialmente
jurídico e político, compreendido dentro das limitações da convivência em sociedade e, até
mesmo a liberdade moral, é vivenciada nesse sentido. Pondé tenta retratar esta liberdade
sobrenatural mencionando Evidokimov.
118
Cf.PONDÉ. Luis. F. Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski .p.114.
119
BERDIAEFF, Nicolas. El Credo de Dostoievski. p 37
120
EVDOKIMOV apud PONDÉ. L. F. Critica e Profecia. A filosofia da Religião em Dostoievski. p.177.
121
BERDIAEFF, N. El Credo de Dostoievski. p.77.
48
Segundo Evidokimov, uma característica do homem desgraçado é buscar
determinismos, porquanto a liberdade essencial do ser humano, que ele
conta com a contingência absoluta, não tem lugar na representação. Tal ser
humano sobrenatural radicalmente livre e sem lugar na representação é
exatamente um dos temas centrais de Dostoievski/.../ neste sentido, toda
forma de definição de liberdade equivale à tentativa de definir Deus, a
contingência absoluta, de ―prender o incognoscível em nós‖/.../ A idéia por
trás dessa liberdade identificada pela ortodoxia e por Dostoievski em sua
obra é, enfim, a idéia de que fora de Deus não há liberdade.
122
Ao mencionar sobre as palavras do inquisidor,
123
Berdiaeff afirma que Cristo nega o
milagre, o mistério e a autoridade na tentação do deserto (narrativa dos evangelhos Mt 4,1-11;
Lc 4,1-13). Ao negar esses elementos, ele es negando toda uma violência contra a
consciência humana e limitação de sua liberdade. O milagre deve preceder a e não o
contrário, pois somente assim a é livre. Com a aparição de Cristo nada viola a consciência
humana, por isso, a religião do Gólgota é para Dostoievski a religião da liberdade.
124
Dostoievski mostra que a liberdade pode matar a si mesma e demonstra isso através da
rebeldia e insubordinação de Ivan Karamazov.
125
A liberdade, como insubordinação e auto-
afirmação do homem, conduz a negação não somente de Deus, mas do mundo, do próprio
homem e da liberdade.
126
Esta é uma inquietação que Dostoievski tem com o humano
moderno, o qual nega esta liberdade da alma e acredita que a ciência vai descobrir a chave da
auto-compreensão humana e que o humano é ―um ser em busca de suas causas naturais.‖ Para
Pondé, Dostoievski encara esta paixão da modernidade pelo determinismo como uma segunda
queda e que esse humano moderno acredita demais na razão, nas suas próprias ideias.
127
Esta
crença em si mesmo é para Dostoievski a destruição da imagem de Deus, o que faz o niilista,
entendendo que assim coloca o humano em seu devido lugar: ―isto é a passagem de Deus ao
homem divinizado; não o homem divinizado na figura de Jesus, mas o homem divinizado no
lugar de Deus‖.
128
À medida que se perde o referencial vertical, o ser humano se desfaz, se
dissolve. ―Então não sobra ser humano para ficar no lugar de Deus; o que sobra é o espetáculo
do niilismo, o espetáculo da dissolução da condição humana.‖
129
122
PONDÉ. L. F. Critica e Profecia. A filosofia da Religião em Dostoievski p.116,117.
123
O Grande inquisidor é uma parábola mencionada por Ivan Karamazov ao seu irmão Aléxis Karamazov, em
uma discussão sobre fé e niilismo no livro Irmãos Karamazovi.
124
Cf.BERDIAEFF, N. El Credo de Dostoievski. p. 82.
125
Ivan Karamazov e uma das personagens do clássico de Dostoievski. Os irmãos Karamazovi.
126
Id.ibid. p. 86.
127
PONDÉ, Luis. F. Critica é Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 178.
128
EVDOKIMOV apud Luis. F. Critica é Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 179.
129
Id. Ibid. p. 179.
49
Berdiaeff apresenta duas liberdades em Dostoievski: A que escolhe o bem e o mal e a
que existe dentro do bem ou o que ele denomina de liberdade irracional e liberdade racional
dentro da razão.
Esta dignidade do homem e sua fé, lhe obrigam a reconhecer ambas as
liberdades: a de escolher entre o bem e o mal e a liberdade dentro do Bem; a
livre escolha da verdade e da liberdade dentro da verdade. Não pode ser
identificada a liberdade com o Bem, a Verdade ou a Perfeição. Tem sua
natureza própria. Se a identifica com o Bem ou a Perfeição, é negá-la e
reconhecer e aceitar o princípio de uma obrigatória imposição. Pois o Bem
livre que é o único e verdadeiro Bem admite, necessariamente, o Mal
também livre. E nisto consiste a tragédia da liberdade, que tão
profundamente é estudada e analisada por Dostoievski. Esta é a entranha do
mistério do cristianismo. Se inicia a dialética trágica. O Bem não pode ser
imposto, não se pode impor o Bem a nada. A liberdade de fazer o Bem
admite a de fazer o Mal. Pois esta conduz a supressão da mesma liberdade e
tudo degenera ante esta fatal necessidade do Mal. E se, ao contrário,
negamos a liberdade de fazer o Mal e admitimos a de fazer o Bem, tudo
degenera na fatal necessidade de fazer o Bem. E, portanto, se suprime a
liberdade. Pois, esta ―fatal necessidade boa‖ já não é Bem, pois o verdadeiro
Bem não pode existir sem a liberdade.
130
Cristo, para Dostoievski, não é somente a verdade que liberdade, senão também, a
verdade da liberdade e o ―Anticristo não é qualquer outra coisa que a negação da liberdade da
alma humana e qualquer imposição da consciência.‖
131
O niilismo e a revolução que antevia
na Rússia não traria liberdade, pelo contrário, traria escravidão para as almas humanas. ―Para
Dostoievski existe uma forma de viver a liberdade de forma real/.../trata-se de exercer a
liberdade dentro e em meio ao amor.‖
132
130
BERDIAEFF, N. El Credo de Dostoievski. p. 72.―Esa dignidad del hombre y su fe, le obligan a reconocer
ambas libertades: la de elegir entre el Bien y el Mal y la libertad dentro del Bien; la libre elección de la Verdad y
a libertad dentro de la Verdad. No puede ser identificada la libertad con el Bien, la Verdad o la Perfección. Tiene
su naturaleza propia. Si se identifica con el Bien o la Perfección, es negarla y reconocer y aceptar el principio de
una obligatoria imposición. Pero el Bien libre que es el único y verdadero Bien admite, necesariamente, el
Mal también libre. Y en esto consiste la tragedia de la libertad, que tan, profundamente ha estudiado y analizado
Dostoievsky. Esa es la entraña del misterio del cristianismo. Se inicia la dialéctica trágica. El Bien no puede ser
impuesto, no se puede imponer el Bien a nadie. La libertad de hacer el Bien admite la de hacer el Mal. Pero ésta
conduce a la supresión de la misma libertad y todo degenera ante esa fatal necesidad del Mal. Y si, al contrario,
negamos la libertad de hacer o Mal y sólo admitimos la de hacer o Bien, todo degenera en la fatal necesidad de
hacer el Bien. Y por lo tanto se suprime la libertad. Pero, además, esa ―fatal necesidad buena‖ ya no es el Bien,
puesto que el verdadero Bien no puede existir sin la libertad.
131
Id. ibid. p. 84.
132
PONDÉ, Luis. F.Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievsky .p. 180.
50
1.3.4. A influência religiosa no estilo literário
Não é difícil perceber a influência religiosa no estilo literário de Dostoievski,
principalmente por tudo o que foi desenvolvido até aqui acerca de seu pensamento
religioso. A experiência religiosa marcante de Dostoievski se no presídio, onde, a partir de
então, se evidencia em sua literatura. De acordo com Joseph Frank, para o Dostoievski da
maturidade, ―não acreditar em Deus e na imortalidade da alma é estar condenado a viver num
universo carente de todo sentido‖. Com relação às personagens, ―quando chegam a esse nível
de consciência de si mesmos inevitavelmente se destroem, porque recusando-se a suportar o
tormento de viver sem esperanças, se tornaram monstros em sua desgraça.‖
133
Algumas personagens que se caracterizam como ―monstros em sua desgraça‖:
Raskolnikov e Ivan Karamazov. Antes da prisão, Dostoievski também vive esse dilema.
Porém, sofre uma profunda mudança e posteriormente escreve o seu próprio credo a Senhora
Fonvinzia.
Ouvi de muitas pessoas que a senhora é religiosa, N.D [...] Não é porque a
senhora seja religiosa, mas é porque eu mesmo vivi e sofri isso [seu estado
depressivo], que posso lhe dizer que, nesses momentos, uma pessoa tem
tanta sede de como a ―grama crestada pelo sol tem sede de água‖, e
finalmente a encontra, porque a verdade se torna visível a infelicidade. Digo-
lhe que sou um filho deste culo, um filho da descrença e da dúvida. Sou
assim hoje (disso estou certo) e assim continuarei sendo até o túmulo.
Quantas terríveis torturas essa sede de fé me custou, e ainda me custa hoje, e
quanto mais forte se torna, mais argumentos posso encontrar para rejeitá-la.
E, no entanto, Deus às vezes me envia instantes de total serenidade. Nesses
momentos, eu amo as pessoas e me sinto amado por elas, e foi nestes
instantes que criei em mim mesmo um Credo em que juro é límpido e
sagrado. Este credo é muito simples. Ei-lo: crer que nada é mais belo,
profundo, compreensivo, razoável, viril e perfeito do que Cristo. E digo a
mim mesmo, com um amor ciumento, que não somente há nada, como
também não pode haver mais nada. Ainda mais: se alguém me demonstrasse
que Cristo está fora da verdade e que, na realidade, a verdade está fora de
Cristo, então eu preferiria permanecer com Cristo e não com a verdade.
134
A fé em Cristo ampara Dostoievski quando ele se frente a frente com a morte, além
de ser um elo entre ele e os companheiros russos, e o livrar de viver um mundo sem
esperanças. Todas as dúvidas de Dostoievski como um ―filho deste século‖, são derrotadas
133
Cf. FRANK, Joseph. Dostoievski. Os Anos da provação. 1850-1859. p.225.
134
Id. ibid. p.227.
51
por sua ―nova compreensão das exigências psíquicas e emocionais do espírito humano.‖
135
Por isso, a verdade (no conceito das ciências modernas), não tem validade em relação a
Cristo, para Dostoievski.
Em uma conversa com Bielinski em 1847, Dostoievski se comove até as lágrimas,
pois este (Bielinski) ataca e denigre Cristo com argumentos dos hegelianos de esquerda.
Cristo, para Dostoievski, passa do Deus-homem, de uma mensagem de amor fraternal e
igualdade espiritual, para um Cristo, cuja mensagem assume um significado muito mais
profundo, onde atinge as necessidades mais angustiantes de sua vida.
136
Toda esta experiência
religiosa influencia de forma assertiva sua literatura.
1.4. Análise literária de Dostoievski em Mikhail Bakhtin: a Polifonia
Mikhail Bakhtin contribui de forma significativa para esta pesquisa, destacando-se
como referencial teórico na análise literária de Dostoievski. A obra analisada é Problemas da
poética de Dostoievski.
137
Nessa obra, Bakhtin pesquisa a obra dos principais críticos de
Dostoievski. Paulo Bezerra, tradutor da obra, afirma que não se trata de um simples livro de
crítica literária, mas um livro de teses. Bezerra afirma ainda que Bakhtin mostra com clareza
que a representação das personagens de Dostoievski é, acima de tudo, representação de
consciências que dialogam entre si sem objetificarem, ou seja, sem se tornarem objetos de
discurso de outros falantes.
138
A obra destaca que Dostoievski não cria ―escravos mudos‖, mas pessoas livres,
capazes de dialogar, inclusive com seu próprio criador e até mesmo se rebelando contra ele.
Estas personagens se revelam, enquanto personagens-indivíduos, na forma livre do ―tu-
eu.‖
139
Bakhtin chama este diálogo de polifonia. Paulo Bezerra define polifonia da seguinte
forma:
135
Id. ibid. p.228.
136
Id. ibid. p.228.
137
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 2 ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997. Mihkail Mikhailovitch Bakhtin (1895-1975).
138
Id. ibid. prefácio p. VII.
139
Id. ibid. prefácio p. VIII.
52
Polifonia é o discurso do diálogo inacabado; não é possível dizer tudo sobre
uma época por mais que dela se saiba. Daí a saída na polifonia, que é o
discurso da verdade dialética de uma realidade em transformação e
renovação. Por isso faz a sua catarse do mundo de Dostoievski ao dizer que
―no mundo ainda não ocorreu nada definitivo, a última palavra do mundo e
sobre o mundo ainda não foi pronunciada, o mundo é aberto e livre, tudo
ainda está por vir e sempre estará por vir.‖
140
O romance polifônico é criação de Dostoievski, pois até então os romances eram
monológicos e homofônicos.
141
No discurso monológico, o herói é objeto da palavra do autor,
enquanto que o discurso polifônico de Dostoievski, o herói tem sua própria voz, com valor e
poderes plenos. Para Bakhtin, quando o leitor se depara com a literatura de Dostoievski, a
impressão que fica é que se está diante de uma ―série de discursos filosóficos de vários
autores e pensadores: Raskolnikov, Michkin, Stavróguin, Ivan Karamazov, o Grande
Inquisidor e outros.
142
Essas vozes, esses discursos não se concluem. Pondé destaca que ao
ler Dostoievski, a sensação é que seus livros não acabam ―ele simplesmente passa um facão‖
na história.
143
Dostoievski contraria todas as antigas tradições de estética, que exigiam
correspondência entre material e a elaboração, além de homogeneidade entre os elementos
constitutivos de uma criação artística.
144
Em Dostoievski as narrativas vulgares andam em
conjunto com a inspiração divina. Um exemplo disto está em Sônia e Raskolnikov. A vela
quase no fim iluminava mal o paupérrimo quarto, onde um assassino e uma prostituta
acabavam de ler um livro sagrado.
145
Dostoievski coaduna os contrários e tem como meta
criar materiais heterogênios e heterovalentes.
Nos textos de Dostoievski ―só há interpretação; existem apenas consciências que
falam.‖
146
Quando ele vai além de uma consciência, vai em direção a outra consciência.
140
Id. ibid. prefácio p. XII.
141
Id. ibid. p.5,6.
142
Id. ibid. p.3.
143
PONDÉ, L. F. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski .p.125.
144
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski p.13.
145
DOSTOIEVSKI, F. Crime e Castigo.Tradução de Luiz Cláudio de Castro. Rio de Janeiro: Ediouro; São
Paulo: Publifolha (Biblioteca Folha: Clássicos da Literatura universal) 1998. p.351.
146
PONDÉ. L.F. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 127.
53
Ao argumentar sobre as consciências, Bakhtin ressalta que estas consciências são na
verdade interação de consciências no campo das ideias. Estas vozes de consciências o
―eqüipolentes.‖
147
Para Dostoievski não há ideias, pensamentos e teses que não sejam de
ninguém, que existam ―em si‘‖. A própria ―verdade em si‖ ele concebe no
espírito da ideologia cristã, como encarnação de Cristo, isto é, concebe-a
como sendo um indivíduo que contrai relações de reciprocidade com outros
indivíduos. Por isso Dostoievski não representa a vida da idéia numa
consciência solitária nem as relações mútuas entre os homens, mas a
interação de consciências no campo das ideias ( e não apenas das ideias)
148
Pondé aponta dois exemplos dessa polifonia nos textos de Dostoievski. O primeiro
deles é Michkin, o príncipe, principal personagem do livro O Idiota.
É importante ressaltar que, quando Dostoievski finalmente resolve colocar
sua teologia, ou seu pensamento religioso, numa obra, cria o príncipe
Michkin, espécie de encarnação do Cristo, porém sem nenhuma ressurreição:
Michkin no final do livro tem uma crise epilética da qual não volta mais.
149
Dostoievski, por viver no Século XIX, considerado por ele como culo da dúvida
religiosa, é alguém que fala da mística ortodoxa e que tem inserido a idéia do ser humano
carregado de contradição, de polifonia. Pondé afirma ainda que esta contradição representa a
Providência divina, pois perceber que não ―salvação diante da natureza, é ação da
Providência divina.‖
150
A outra personagem, destacada por Pondé, é Aliocha. A relação entre o stariets, que
seria ―um diretor de consciência‖ e Aliocha, um monge em formação.
Na experiência institucional ortodoxa, veremos o diretor ou guia de
consciência operando como espaço referencial para o ―tratamento‖ da
experiência religiosa mística dentro de um universo dogmático cristão
específico. Mas essa experiência, dentro de um universo dostoievskiano, é
diferente, uma vez que é reintroduzida na polifonia. O próprio Aliocha é
passível de polifonia. No final de Os irmãos Karamazov, Aliocha vai ter
com as crianças, o que representa a idéia de Dostoievski de que é possível
estar perto de Deus, embora sua fala esteja afogada no mesmo
147
Eqüipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em de absoluta
igualdade; não se objetificam, isto é, não percebem o seu SER enquanto vozes e consciências autônomas.
148
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. p.32.
149
PONDÉ, L. F. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p.252.
150
Id.ibid. p.133.
54
multivocalismo. Do ponto de vista do texto, a polifonia não é vencida pelo
individuo que traz a experiência: ele cai em polifonia, pelo simples fato de
estar falando. A fala retorna a eqüipolência.
151
Diante desse parecer, a polifonia seria a manifestação da providência divina.
Dostoievski, portanto, ao falar sobre Deus, fala polifonicamente. Somente o inquisidor
poderia ―acabar com a polifonia‖, mas seria o fim infernal. ―A polifonia é algo como a tensão
que mantém as partes conectadas, que faz com que a composição do ser humano não ocorra
de uma vez. Por isso, é de alguma forma, a marca de Deus na desgraça.‖
152
O que está fora da
polifonia, portanto, é Deus, e de forma silenciosa. O ser humano é polifônico, Deus é
silencioso.
Bakhtin e Berdiaeff
David Patterson faz uma aproximação entre Mikhail Bakhtin e Nicolas Berdiaeff,
ambos interpretes de Dostoievski. Bakhtin é ―basicamente um religioso em busca da natureza
da palavra.‖
153
De acordo com Patterson o que Berdiaeff faz implicitamente, Bakhtin afirma
explicitamente, explicando em Dostoievski o seu lado espiritual. Berdiaeff centra-se no
Espírito Joanino, enquanto Bakhtin na palavra joanina, com a perspectiva de que palavra é
espírito. O kenótico (Kenosis), espírito feito carne, é a palavra que se faz presença de Deus
aos seres humanos. Berdiaeff é assumidamente um cristão, enquanto que Bakhtin trabalha por
implicação, por isso palavra é espírito.
154
Pondé percebe a aproximação entre Bakhtin e Berdiaeff - a partir de Dostoievski - no
fato de que a palavra vai de um lado a outro, um fato angustiante! Isto significa que o ser
151
Id. ibid. p.134.
152
Id. ibid. p.134.
153
PATTERSON, David. Dostoievsky´s poetics of espirit: Bakhtin and Berdyaev. Oklahoma State University.
Texto extraído do site www.utoronto.ca/tasq/DS/08/219.shtml 09/02/2009.
a basically religious quest into the nature of the Word."
154
Id.ibid. What Bakhtin does implicitly Berdyaev states explicitly, explaining that his purpose in Dostoevsky is
"to display Dostoevsky's spiritual side" (10). Like Berdyaev, Bakhtin proceeds from a Christian point of view; it
will be recalled, for instance that he was exiled to Kustanai in 1930 for his involvement in the Christian group
Voskresenie (see Clark and Holquist, 126-132). While Berdyaev openly assumed a Christian position, Bakhtin
found it necessary to do so by implication, even though his Christian bent does come out quite clearly in Estetika
slovesnogo tvorchestva (see 51-52). It should also be noted that if Berdyaev focuses on the Johannine Spirit (see
Dostoevsky 207), Bakhtin proceeds from the Johannine Word (see Estetika, 357), with the view that word is
spirit. To be sure, in her preface to Problems of Dostoevsky's Poetics Caryl Emerson points out that Bakhtin's
endeavor is "a basically religious quest into the nature of the Word" (xxxi). And in Mikhail Bakhtin Clark and
Holquist explain, "This conviction that the sign has a body corresponds to Bakhtin's onto theological view that
the spirit has a Christ. The kenotic event that is reenacted in language is the mode of God's presence to human
beings" (225). The kenotic eventhe spirit or word made fleshis the key to the approaches to Dostoevsky
taken by Bakhtin and Berdyaev.
55
humano está continuamente em controvérsia, e que é incapaz de falar definitivamente. O
único discurso válido é o discurso do silêncio.
155
O ser humano se constitui, então, quando
ama e é amado, caso contrário, ele não é ninguém, se desmancha.
156
1.5. O Método da correspondência
A literatura é capaz de dialogar com vários saberes, principalmente pelo fato de lidar
com a vida e com a cultura, não se prendendo a dogmas e nem ignorando o imaginário
construído por pessoas, grupos e comunidades. Ela caminha livremente e ao mesmo tempo
tem a capacidade de construir pontes que ligam significados, constrói ideias e confronta
realidades. É interdisciplinar, pois perpassa por uma pluralidade de saberes e, ao mesmo
tempo, também deve ser considerada um saber. A literatura não pode ser vista meramente
como um entretenimento ou algo parecido, pois tem uma contribuição significativa para a
compreensão da vida e para a construção do saber.
A pesquisa proposta parte dessa consideração, e pretende estabelecer um diálogo entre
a teologia e a literatura, entendendo que esse diálogo aproxima mundos que o dogmatismo
eclesiástico e o fundamentalismo científico e metodológico não permitem. O método desta
pesquisa é o da correspondência. Ele tem como referencial a obra de Antonio Magalhães:
Deus no Espelho das Palavras. Esse livro é importante para o conhecimento do diálogo entre
teologia e literatura. Mostra como esse assunto tem sido discutido na Europa, Estados Unidos
e América Latina. Discute a temática, enfatizando que a teologia não se faz presente apenas
na igreja e no dogma, mas também na cultura em geral e em particular na literatura. Nas
palavras de Magalhães ―... destaco a relação, que qualifico de intrínseca, existente entre
teologia e literatura. O cristianismo é uma religião do livro.‖
157
E por ser religião do livro, ele
afirma que parte de seu poder está no fato de ser literatura. As narrativas bíblicas passaram a
ser narrativas da cultura, não ficaram restritas as repetições dogmáticas da igreja.
158
155
PONDÉ, L.F. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski p.137.
156
EVDOKIMOV apud PONDÉ, L. F. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski p. 139.
157
MAGALHÃES, Antonio. Deus no Espelho das Palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo:
Paulinas, 2000. p.5.
158
Id. ibid. p.16.
56
Magalhães conclui destacando a possibilidade da teologia escolher outros interlocutores para
a construção do método teológico e apresenta a literatura como essa possibilidade.
159
Chamo-o de método pelos motivos que em seguida apresento e
problematizo. Ele se baseia na construção de um caminho próprio do e para
o conhecimento, ao manter o diálogo/.../ O método se constrói sempre em
diálogo com outros caminhos. Um caminho não é somente o espaço
informe, mas aquilo que em grande parte determina o jeito de caminhar do
sujeito/.. / Caminhante e caminho, pesquisador é método descobrem
novidades, alteram formas, mas mantém uma certa relação de
indissociabilidade, numa clara dependência mútua escolhida pelo
pesquisador.
160
Diante dessas considerações, Magalhães mostra a relação importante entre o
pesquisador e o método e como esse caminho é construído no diálogo com outros caminhos.
Ele tenta explicar de forma mais objetiva a correspondência.
...na correspondência parte-se do princípio de que essa relação (perguntas e
repostas) precisa ser radicalmente superada na teologia e que precisamos
encarar a possibilidade de propiciar um diálogo no qual, seguindo o conceito
de correspondência em matemática, a cada elemento de um conjunto são
associados um ou mais elementos de outro. Numa formulação mais voltada
para o mundo da teologia, a cada elemento considerado da revelação na Bíblia
e na tradição teológica, podem ser associados um ou mais na literatura
mundial. A cada narrativa considerada compreensão de fé, que se associar
outra dentro da literatura. A cada anúncio de uma verdade considerada fonte
de fé, que se associar outra na experiência das pessoas e nas interpretações
literárias. Com isso, Bíblia e tradição mantêm-se como interlocutoras, sem
elas não haveria correspondência; perdem, entretanto, seu lugar de
normatividade única do saber teológico. Abrir mão da Bíblia e da tradição
seria ufanismo literário e desconhecimento dos aspectos perfomativos da
religião e da das pessoas. Mantê-las como referenciais únicos de análise,
aferição e juízo sobre a vida das pessoas significa não sair do claustro
teológico da igreja.
161
A teologia e a literatura caminham lado a lado, dialogando, respeitando seus
respectivos horizontes, porém, também os interagindo. Todavia, ―no método da
correspondência se reconhece as diferentes motivações de textos religiosos confessionais e
textos literários.‖
162
Magalhães afirma que a correspondência é um ato permanente dentro da
experiência religiosa, pois o crente, referindo-se ao texto bíblico, sente-se participando da
dinâmica do texto, ou seja, sente o texto fazendo parte integrante de sua vida. Afirma ainda
159
Id. ibid. p.18.
160
Id. ibid.p.204.
161
Id.ibid. p.205.
162
Id.ibid. p.206.
57
que essa mesma dinâmica textual na relação entre teologia e literatura, ―permitindo que
ambas se pertençam na interpretação do mistério e do sentido mais profundo de nossas vidas.
163
Outra obra que ajuda a pensar no método e que trata do tema teologia e literatura é o
texto de Karl-Joseph Kuschel: Os Escritores e as Escrituras. Retratos teológico-literários
164
.
É discutida a tensão entre religião e literatura, dentro do contexto europeu, e é apresentada
uma discussão metodológica que contribui para um melhor entendimento do assunto. Ao
tratar sobre a relação teologia e literatura, termina mencionando um texto bíblico do Novo
Testamento.―Pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como disseram alguns dos poetas
de vocês: Também somos descendência deles.‖(Atos 17,28). Kuschel acredita que Lucas está
se referindo a Áratos de Sicília (Séc.III a.C) cuja obra Phainomena possui uma citação
correspondente. Afirma ainda que Lucas utiliza citações literárias com grande naturalidade.
165
Concluindo o texto, Kuschel cita J. Roloff, ajudando assim a elucidar melhor o seu
argumento:
As palavras dos poetas ganham aqui a função de comprovação da Escritura!
Da convergência entre as palavras dos poetas e a Palavra da Escritura,
Lucas conclui que as primeiras também podem ser requisitadas como
testemunho normativo da verdade sobre Deus, o mundo e o ser humano, e
de forma semelhante ao que se com a Palavra da Escritura. Lucas ainda
desconhece quaisquer conceitos teológicos formalizados de revelação, e
pode tomar as palavras dos poetas, sem qualquer prevenção, como
testemunhos da unidade e da integridade da verdade em que Deus se fez
comunicar a suas criaturas, os homens e as mulheres.
166
Dentro dessa correspondência, a pesquisa pretende trabalhar ―o Cristo da liberdade em
Dostoievski‖. As obras trabalhadas são: O Idiota e Irmãos Karamazovi, que são referenciais
importantíssimos no pensamento cristológico de Dostoievski. Suas personagens, Michikin
(O Idiota) e Aliocha Karamazov (Irmãos Karamazovi) retratam a pureza cristã e a vitória
sobre o egoísmo, apontando para a liberdade. Cristo é para Dostoievski o Deus-Homem ou
Homem-Deus, o mistério do homem, que propõe um humano livre, dentro de sua perspectiva
de liberdade. Os principais referenciais teóricos que abordam Dostoievski são: Joseph Frank,
Nicolas Berdiaeff, Luiz Felipe Pondé e Mikhail Bakhtin.
163
Id.ibid. p.207.
164
KUSCHEL. Karl Josef. OS Escritores e as Escrituras. Retratos teológico-literários. Trad. Paulo Astor Soethe
(et. al). São Paulo. Ed. Loyola. 1999.
165
Id. ibid.p.230.
166
ROLOFF, J. apud KUSCHEL, Karl Josef . OS Escritores e as Escrituras. Retratos teológico-literários. p.230
58
A partir desse caminho, o diálogo se dará com a teologia, mais particularmente com a
teologia latino americana. Alguns referenciais são: José Comblin e Juan Luis Segundo.
Dostoievski, dentro das já referidas obras e seus interlocutores, na discussão sobre o Cristo da
liberdade em diálogo com a teologia. A literatura russa do Séc.XIX, com a teologia latino
americana dos Séc. XX e começo do Sec. XXI em correspondência, dialogando um dos
assuntos mais estridentes do ser humano: a liberdade.
Conclusão
A proposta deste capítulo foi apresentar alguns aspectos biográficos de Dostoievski
para uma melhor aproximação e compreensão de seu contexto. Alguns elementos importantes
foram tratados: Dostoievski e a Rússia do Séc. XIX, influências ocidentais, o niilismo, ideias
socialistas, o eslavismo e a mística ortodoxa. Também foi trabalhado o pensamento religioso
de Dostoievski, onde se discutiu a relação de Cristo e a contingência humana, o humano em
Dostoievski, a liberdade na condição humana e a influência religiosa em seu estilo literário.
Os principais referenciais foram Joseph Frank, Nicolas Berdiaeff e Luis Felipe Pondé.
Outro elemento desenvolvido foi a análise literária de Dostoievski em Mikhail
Bakhtin: a polifonia. Nesse tópico se desenvolveu o significado da polifonia e a sua relevância
na compreensão dos textos de Dostoievski. Compreender a polifonia em Dostoievski é muito
importante para estabelecer o diálogo com a teologia, uma vez que esta mostra um sujeito em
construção, as múltiplas consciências que fomentam a condição humana.
O capítulo encerrou com a apresentação do método da correspondência. O principal
referencial na apresentação desse método foi Antonio Magalhães e sua obra Deus no espelho
das palavras. A compreensão do método também é essencial para a percepção do diálogo
entre a teologia e literatura, pois o método propõe a literatura como interlocutora na
construção teológica. Ele aponta para o diálogo de Dostoievski com a teologia, em especial
com a teologia latino americana de Juan Luis Segundo e José Comblin, que será desenvolvido
no terceiro capítulo da dissertação. Antes mesmo deste diálogo com a teologia latino
americana é necessário uma análise na cristologia literária de Dostoievski a partir de leituras
em O Idiota e em Os irmãos Karamazovi, que será trabalhada no próximo capítulo.
59
II CRISTOLOGIA LITERÁRIA EM DOSTOIEVSKI: LEITURAS EM O IDIOTA E
EM IRMÃOS KARAMAZOVI
Este capítulo desenvolve a cristologia literária de Dostoievski. A cristologia está
presente em sua literatura e é importante ressaltar que se trata de uma perspectiva cristológica
própria, não vista de forma dogmática. A compreensão de liberdade em Dostoievski está
fortemente ligada à sua cristologia, de forma mais evidente na lenda do ―Grande Inquisidor‖,
em Os irmãos Karamazovi.
O texto inicia com a apresentação da literatura e da Bíblia vistas de forma
entrelaçadas, tendo como principal elemento de ligação o palimpesto. Neste tópico há a
contribuição da tese de doutorado de Eli Brandão da Silva sobre o diálogo entre teologia e
literatura. Em seguida é desenvolvido um tópico sobre Dostoievski e seu Novo Testamento,
relatando a influência dos textos sagrados em sua literatura, em especial o Evangelho de João.
O principal referencial nessa apresentação da relação de Dostoievski com o Novo Testamento
é Geir Kjetsaa.
Após a discussão sobre a influência dos textos sagrados em Dostoievski, o texto passa
a trabalhar leituras em O idiota. É trabalhado então um breve resumo da obra, apresentação da
personagem principal, o príncipe Michkin. Encerra este momento com uma abordagem sobre
a liberdade expressa no amor, também influenciada por Michkin.
O último tópico deste capítulo aborda as leituras em Os irmãos Karamazovi.
Apresenta também um breve resumo e em seguida discute o item que tem no religioso, o
herói. Ao aprofundar a discussão no religioso aborda o enfoque ‗na vida e na morte, a
profecia‘.
Um outro elemento importante e necessário nesta leitura é a antropologia teológica de
Dostoievski na lenda do ―Grande Inquisidor‖. Ainda a partir dessa antropologia uma
reflexão sobre a liberdade humana, o conflito entre e razão e o contraponto ao socialismo.
O capítulo termina com a ênfase do poder do amor na liberdade.
60
2.1. Literatura e Bíblia Entrelaçadas
Somos palimpsestos, escritura sobre escritura, esquecidas, apagadas,
mas indelevelmente gravadas no tecido, prontas a ressurgir, se a
encantação correta for feita. ( Rubem Alves)
2.1.1. O Palimpsesto
Antes de apresentarmos as obras O Idiota e Os irmãos karamazovi, entendemos ser
importante também compreendermos outro elemento textual que é bem presente em
Dostoievski: o palimpsesto. Eli Brandão trabalha a definição de palimpsesto a partir de
Gerard Genette.
Palimpsesto. Termo que, numa acepção propriamente técnica, provém do
domínio da paleografia e designa o pergaminho de onde foram raspadas
inscrições iniciais, para que outras pudessem ser escritas. Através de
procedimentos técnicos sofisticados, é possível reavivar e reler essas
inscrições iniciais. Gerard Genette, em seu livro Palimpsestes. La littérature
au second degré, utiliza o termo para mostrar que os textos estão carregados
de outros textos mas, embora estejam de um tal modo bricolados, ainda é
possível ler como por transparência o texto mais antigo sob o novo, pois
um texto pode sempre ocultar um outro, mas raramente o dissimula
totalmente.
1
Diante disso, Brandão afirma que pelo fato da literatura não possuir uma temática
específica, ela acaba sempre convocando outros textos, entre estes está o que ele chama de
prototextos bíblico-teológicos. Brandão reafirma aquilo que já ao longo desta pesquisa
temos frisado, que a teologia não está ―mais confinada aos espaços institucionais da
religião.‖
2
Para Brandão a obra literária é uma metáfora ampliada
3
e os palimpsestos são
construções feitas a partir de ―recursos disponíveis e apropriados‖ de todo um universo. A
fusão desses recursos é chamada por Brandão de Engenharia bricolar.
4
1
SILVA, Eli Brandão. O nascimento de Jesus-Severino no Auto de Natal Pernambucano como Revelação
Poético-Teológica da Esperança. Hermenêutica Transtexto-discursiva na ponte entre Teologia e Literatura.
Tese se doutorado.São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2001. p.38.
2
Id. ibid.p. 170.
3
Id. ibid.p.168.
4
Id. ibid.p.168.
61
As obras de Dostoievski são carregadas de palimpsestos. Textos bíblicos são
constantemente evocados, além da compreensão teológica ortodoxa e da cultura popular da
época.
2.1.2. Dostoievski e seu Novo Testamento
Uma das grandes influências na vida de Dostoievski vem de seu contato com o Novo
Testamento. O próprio Dostoievski afirma: "Eu vim de uma família piedosa russa. Da minha
primeira infância me lembro do amor de meus pais. Em nossa família nós sabíamos o
Evangelho quase desde o berço.‖
5
Kjetsaa relata que o Novo Testamento é de longe o mais importante livro no qual
Dostoievski se envolve. Ele recebe o Novo Testamento em meados de 1850 em Tobolski,
quando estava a caminho da prisão na Sibéria.
6
Somente os textos sagrados eram permitidos na prisão. ―Durante os quatro anos de sua
prisão Fiodor Mikhailovich nunca se apartou deste livro santo.‖
7
Ana Grigorievna, esposa de
Dostoievski relata para a biografia de seu marido que o Evangelho foi o único instrumento
que manteve viva as esperanças em seu coração.
8
O Novo Testamento de Dostoievski era um exemplar da primeira tradução para o
russo, pois a única tradução usada até então era da Velha igreja eslava, que ainda usava o
alfabeto eslavo, conhecido como alfabeto cirílaco, elaborado por São Cirilo, diácono em
Constantinopla, no Séc. IX.
5
Cf.KJETSAA, Geir. Dostoievsky and his New Testament. V.4. 1983. University of Oslo. International
Dostoyevsky Society. The department of Slavic languages and literatures University of Toronto.
http://www.utoronto.ca/tsq/DS/04/095.shtml 25/01/2009. ―I came from a pious Russian family. From my
earliest childhood I remember the love of my parents. In our family we knew the Gospel almost from the cradle.‖
6
Id. ibid.p. 96.
7
GRIGORIEVNA, Ana apud. KJETSAA, Geir. Dostoyevsky and his New Testament. p. 96 ―During the entire
four years oh his imprisionment Fedor Michailovicth never allowed himself to be parted from this holy book.‖
8
Id. ibid.p. 97.
62
Ana Grigorievna registra em sua memória que Dostoievski, ―muitas vezes, quando era
profundo no pensamento ou na dúvida sobre algo, abria o Novo Testamento aleatoriamente e
lia o que estava na primeira página à esquerda.‖
9
O Novo Testamento também foi usado quando Dostoievski sentiu que sua morte
estava se aproximando. Em seu exemplar do Novo Testamento, sua mulher sublinhou a
passagem de Mateus 3, 13-15 e comentou à sua margem: ―Estas linhas foram abertas e lidas
em voz alta por mim, a pedido de Fiodor Michailovich no dia de sua morte às três horas.‖
10
também muitas observações feitas por Dostoievski em seu Novo Testamento.
Em suas obras freqüentemente há citações da Bíblia. Kjetsaa afirma:
Claro que um maior interesse ao grande número de passagens
relacionadas com os romances do escritor. Entre estas está o relato da
maneira em que Jesus levou os maus espíritos para os porcos (Lucas 8,32-
36), a saber, a epígrafe para o possesso. Outras notas estão no evangelho de
João (11), onde narra a maneira que Jesus trouxe de volta a vida à Lázaro, o
qual Sonia em voz alta para Raskolnikov e anuncia o herói do
renascimento em Crime e castigo. Aqui vamos encontrar também palavras
de São João sobre o grão de trigo que deve cair na terra e morrer, a fim de
dar muitos frutos.(12,24), a epígrafe de Os irmãos Karamazov e do escritor
sobre o epitáfio da sepultura.
11
O Evangelho mais citado de Dostoievski é o de João. Para a Igreja Ortodoxa o
evangelho de João desempenha um papel importante. Além disso, o mandamento de amar e a
apresentação de Jesus como a revelação definitiva de Deus - a encarnação -, são também
motivos fortes para se pensar nesta ligação de Dostoievski com o Evangelho de João.
9
Id.ibid.p.97. ―Often when he was deep in thought or in doubt something, he would open the New Testament at
random and read whatever was on the first page to his left.‖
10
Id.ibid. p. 98 ―These lines were opened and read aloud by my at request Fedor Michailovitch on the day of his
death at 3 o´clock‖. A passagem de Mateus 3, 13-15 traz o seguinte texto: ―então chega Jesus vindo da Galiléia
ao Jordão, junto a João, para fazer-se batizar por ele. João quis opor-se a isto. ―Eu é que preciso ser batizado por
ti, dizia, e és tu que vens a mim?‖Mas Jesus replicou-lhe: ―Deixa agora é assim que nos convém cumprir toda a
justiça‖. Então, ele o deixa fazer.‖ BIBLIA TEB. Tradução ecumênica da bíblia. Edições Loyola. Paulinas. São
Paulo. 1995.Dostoievski entendeu que as palavras ―tu vens a mim‖ era referência de que Cristo estava vindo até
ele e conseqüentemente era sua morte, que se deu em 28 de janeiro de 1881.
11
KJETSAA, Geir. Dostoievsky and his New Testament. p.100. Of course greater interest is attached to the large
number of marked passages in the bible which can be related to the writer´s novel. Among these is the account
of the way in which Jesus drove the evil spirits in the swine (Luke VIII: 32-36), namely the epigraph to the
possessed. Further we note in the Gospel according St. John (XI) the account of the way in which of Jesus
brought Lazarus back to life, the account that Sonia reads aloud Raskolnikov and which foretells the hero´s
rebirth in Crime and Punishment. Here we also find St John´s word about the grain of wheat that must fall in the
earth and die in order to bear much fruit (XII, 24), the epigraph of The brother´s Karamazov and the epitaph on
the writer´s grave.
63
Dostoievski enfatiza o homem compassivo, ao contrário da visão ocidental, cuja
ênfase está nas boas obras. Em relação a isso um texto marcado em seu Novo testamento:
―Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honra uns aos
outros‖ (Romanos 12,10).
12
Tal ênfase revela a noção de pecado que para Dostoievski é a
ausência de compaixão, diferente da visão tradicional ou formalista, que entende pecado
como a ruptura de um mandamento.
13
Por fim, a ênfase no Apocalipse. Para Dostoievski, o Anticristo no Apocalipse são o
niilismo e as influências ocidentais no povo russo. No final de seu Novo Testamento, afirma
Kjetsaa, destacadas as seguintes palavras do Apocalipse: ―Eu sou o Alfa e o Ômega, o
primeiro e o último, o início e o fim.‖(22:13). ―O mesmo poderia dizer sobre este ‗livro
eterno‘, que seguiu o escritor do berço ao túmulo, e que se tornou uma força constitutiva na
sua escrita.‖
14
2.2. Leituras em O Idiota
Porventura meu fantástico idiota não é realidade, e ainda a mais rotineira!?
Ora, é precisamente neste momento que deve haver semelhantes caracteres
em nossos segmentos sociais desvinculados de sua terra, segmentos esses
que, na realidade, se tornam fantástico.
15
Escrito entre 1867 e 1868, O Idiota é uma obra de fundamental importância para a
compreensão cristológica em Dostoievski. De acordo com Paulo Bezerra, tradutor deste livro
para o português, pela Editora 34, O Idiota ―é um romance marcado por uma forte
oralidade.‖
16
A personagem central, Michkin, passa por uma dupla sofreguidão em seu
discurso, destaca Bezerra. A primeira é sua ―momentânea hiperatividade verbal, proveniente
da epilepsia‖, a outra acontece devido ao seu aguçado sentimento humanista da vida, amor e
compaixão. Para Bezerra, é essa sofreguidão que ao seu discurso esta oralidade intensa.
17
12
KJETSAA, Geir. Dostoyevsky and his New Testament. p.102.
13
Cf.KJETSAA, Geir. Dostoyevsky and his New Testament. p.103.
14
Id. ibid. p.109 ―The same could be said of this ―eternal book‖ that followed the writer from the cradle to the
grave, and became a constituent force in his writing.‖
15
DOSTOIEVSKI,F. apud BEZERRA, Paulo. Prefácio do livro O Idiota. www1. folha.com.br/folha/sinapse.ult
1063u245.shtml extraído em 03/03/2009. Resposta de Dostoievski aos críticos de seu livro.
16
Id. ibid.
17
Id. ibid.
64
Michkin, epilético e humanista, na verdade está em conflito com o que Bezerra chama de
―manicômio social chamado Petersburgo.‖
18
O idiota é considerado, ao lado de Os demônios, o texto mais mal escrito de
Dostoievski [...] em O idiota não encontramos uma linha narrativa lógica e
ordenada, como em Crime e castigo, talvez por ter sido escrito numa época
bastante conturbada de sua vida, período de grandes dificuldades financeiras
em função de dívidas contraídas pelo jogo. Dostoievski inicia o romance em
Genebra, onde está vivendo com sua segunda mulher, Ana Grigórievna ( que
o incentivava a jogar por acreditar que o jogo o acalmasse), e o termina em
Florença. Isso explicaria parcialmente a incoerência narrativa: de uma parte
para outra há meses de distância.
19
Em 28 de Agosto de 1867, Dostoievski escreve a A.N. Máikov, mencionando sobre O
Idiota. ―Acabo de chegar a Genebra com as ideias na cabeça. O romance existe e, se Deus
quiser, será uma coisa grande e talvez nada má. Eu gosto terrivelmente dele e vou escrevê-lo
com prazer e inquietação.‖
20
Dostoievski havia recebido um adiantamento em dinheiro de
seus editores para produzir este texto, mas, além disto, ele escreve a amigos da Rússia
pedindo que lhe enviem mais dinheiro. Quando recebia este dinheiro, ia quase que
imediatamente jogar, usava o dinheiro na roleta, onde geralmente perdia. Dostoievski escrevia
sob a pressão das dívidas. Era por muitas vezes contraditório, prometia ―deleite e
inquietação‖, como bem observou Paulo Bezerra, duas sensações contraditórias.
21
Assim era
Dostoievski!
O perfil biográfico do livro O Idiota, publicado pela Editora Martin Claret, traz
algumas observações interessantes sobre a obra. Segundo ele, O idiota provocou perplexidade
nos meios intelectuais. Perguntava-se na época, aonde Dostoievski queria chegar com aquela
atmosfera de ―demência‖. De acordo com esse perfil, Dostoievski expressou em O Idiota um
ideal que ele ansiava desesperadamente.
22
18
Id. ibid..
19
PONDÉ, Luis Felipe. Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. São Paulo. Ed. 34. 2003.
p.251.
20
DOSTOIEVSKI apud BEZERRA, Paulo. op.cit.
21
Id. ibid.
22
PERFIL Biográfico in. , F. O Idiota. Trad. José Geraldo Vieira. São Paulo. Ed. Martin Claret. 2005. p.682.
A tradução de José Geraldo Vieira não é direta do russo, mas é considerada por Boris Schnaiderman como uma
tradução excelente. Cf. SHCNAIDERMAN, Boris apud FAUSTINO, Carlos Jean. A Ética do amor em
Dostoievski: uma análise sociológica do romance “O idiota”. Dissertação de mestrado. Campinas, Universidade
Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências humanas. 2004.p.14.
65
2.2.1. Um breve resumo
O livro tem início com a viagem de Michkin. Ele estava viajando da Europa para a
Rússia, pois vivia na Suíça a fim de tratar-se de sua doença, a Idiotia. Esta viagem ocorre por
conta de uma herança da qual ele fora reclamar. No trem ele conhece Rogojin, sujeito colérico
e temperamental. Ao chegar na Rússia, dirigiu-se à casa de uma parenta distante, onde faz
uma profunda amizade.
Michkin se apaixona por Aglaia, uma jovem bela e sonhadora, que também se
apaixona por ele. Aglaia encara Michkin como um revolucionário, se apaixona muito mais
por uma fantasia do que por ele. Outra personagem importantíssima no livro é Nastacia
Filippovna, mulher que faz o amor (caridade) do príncipe Michikin despontar mais forte
ainda. Não se trata de um amor entre homem e mulher (paixão), mas o amor caritas, marcado
pela compaixão. Ele tenta ajudá-la de todas as formas. Nastácia também se apaixona pelo
príncipe, mas acaba se entregando a Rogójin, por se considerar indigna de se casar com um
homem puro como Michkin. Rogójin é um homem ambicioso e obstinado por Nastácia, o que
o leva a matá-la.
O texto encerra com o assassinato de Nastácia Filippovna, onde diante de seu cadáver,
o príncipe Michkin tem uma grande crise epilética, da qual não volta mais. Aglaia se casa
com um farsante e acaba infeliz. Um final tipicamente dostoievskiano, polifônico.
2.2.2. A personagem principal: o príncipe Michkin
A personagem central desse romance é Michkin, ou como o texto o trata, príncipe
Michkin. Esta personagem nasce da idéia de Dostoievski, que desejava criar uma personagem
que vivesse ou encarnasse a perfeição ideal. Este ideal deveria influenciar tanto a sua geração,
quanto as futuras. Nas palavras de Dostoievski:
A idéia do romance é uma idéia minha antiga e querida, mas tão difícil que
durante muito tempo não me atrevi a colocá-la em prática. [...] A idéia
central do romance é representar um homem positivamente belo. No mundo
não nada mais difícil do que isso, sobretudo hoje. Todos os escritores,
tanto nossos quanto... europeus, que se propuseram a representar o
positivamente belo, sempre acabaram se dando por vencidos. Porque esse
66
problema é imenso. O belo é ideal, e o ideal - seja nosso, seja o da Europa
civilizada ainda está longe de ser criado.
23
Para Paulo Bezerra algo estava muito certo na mente de Dostoievski:
A personagem Michkin tinha de atingir o grau supremo da evolução do
indivíduo, quando ele é capaz de sacrificar-se em beneficio de todos. Para
isso deveria estar isento de individualismo e egoísmo, ser capaz de abdicar
do ―eu para mim‖ em prol do ―eu para os outros‖, para coletividade, isto é,
de realizar o supremo ideal ético do próprio Dostoievski, que este
considerava possível em Cristo, e que pode ser resumido da seguinte
maneira: ―... o mais alto emprego que o homem pode fazer de sua
personalidade, da plenitude do desenvolvimento de seu eu, é como que
eliminar esse eu, consagrá-lo inteiramente a todos e a cada um, sem reservas
e com abnegação.‖ Daí o Michikin com sua utopia do amor-compaixão por
todos, por Marie e pelas crianças, por Hippolit, Liébediev,
predominantemente por Nastácia Filippovna [...] Na construção da imagem
de Michkin predomina o tema da superação do egoísmo burguês. Para
Dostoievski essa á uma questão filosófica de importância transcendental,
pois sem a superação do egoísmo burguês pode-se inviabilizar a vida do
homem da terra.
24
Além de seu Cristo - o Cristo homem - Dostoievski acrescenta a Michkin outros
traços, como o esquisito iuród. Este esquisito seria uma pessoa que se desvia do papel social
que lhe é colocado, um tanto irresponsável, ―como um mendigo e louco com dons
proféticos.‖
25
Os iuródivii, plural de iuród, eram pessoas simples de espírito, alguns eram
epiléticos, que passavam por ter atributos de santos e até mesmo pessoas com um dom
profético. um exemplo disto em O Idiota. ―Ora, minha tia cozinha uma viuvez mais de
trinta anos e passa a vida com os iuródivii, uns romeiros malucos, isso desde manhã até a
noite.‖
26
Michkin tem uma capacidade de penetrar e sondar o interior das pessoas, a ponto de
descrevê-las e deixar sempre uma impressão misteriosa. ―... pois, com este seu quietismo,
fácil lhe é encher de felicidade um século de existência.‖
27
Segundo Pondé, o príncipe ―tem a
capacidade de ser uma luz que brilha por contraste, pois cria, por onde passa, uma sombra ao
23
DOSTOIEVSKI, F. apud. BEZERRA, Paulo. Prefácio do Livro O Idiota. op.cit. Trecho da carta que
Dostoievski escreveu a S.A. Ivanova, no dia 13 de Janeiro de 1868.
24
Id. ibid.
25
Id. ibid.
26
DOSTOIEVSKI, F. O Idiota. Trad. José Geraldo Vieira. São Paulo. Ed. Martin Claret. 2005. p.18.
27
Id. ibid. p. 75. Palavras da jovem Aglaia ao príncipe Michkin.
67
seu redor. Todavia, essa luz não está exatamente nele, mas é sua forma estranha de se
relacionar com o mundo que a produz.‖
28
Para Kjetsaa, o príncipe Michkin pode ser considerado como uma encarnação da
compaixão, inspirado por Cristo, no Cristo do Evangelho de João. ―O príncipe Michkin é
amigo de publicanos e pecadores e se sente mais a vontade com o palhaço pedante e até
mesmo com o ladrão embriagado Liébediev do que com a sociedade do general Epanchin.‖
29
A atitude do príncipe em relação a Nastácia Filippovna, destaca Kjetsaa, é inspirada por
Cristo em relação à sua atitude da mulher pecadora na casa do fariseu. por que eu te digo,
seus pecados, que são muitos, são perdoados, pois ela amava muito; mas quem pouco ama
pouco será perdoado‖ (Lucas 7, 47).
Em Michkin, não pecado que não possa ser perdoado, por isto, ele perdoa tudo.
Kjetsaa nos chama a atenção no fato de que apesar do príncipe perdoar sempre,
personagens, como Nastácia Filippovna, que não conseguem perdoar a si próprias. Ela ama
mais sua vergonha e culpa do que o perdão do príncipe Michkin.
30
Outra descrição de Michkin é feita por Pondé, a qual se aproxima com a de Bezerra.
Michkin não apresenta qualquer preocupação com o seu eu. Aliás, chama a
atenção o fato de que ele parece não saber quem é, não ter plena consciência
de si mesmo. De alguma forma, é como se sua essência permanecesse um
mistério para ele mesmo. É uma idéia bastante importante no livro; a
concepção de alguém que passa pela vida sem saber exatamente o que é e,
mais sem se preocupar em saber o que é, ou seja, sem essa cultura do
autoconhecimento. Todavia isso não implica que ele não tenha vida interior.
Ao contrário, como é característico dos personagens de Dostoievski,
Michkin é só vida interior. Sua forma de reagir ao meio, sempre espontânea,
desarma as pessoas. Ele é, por definição, não categorizável: não segue
nenhuma fórmula, não se enquadra, é uma espécie de míssil no ego de todos
os personagens do livro.
31
Se analisarmos a personagem Michkin dentro de um aspecto puramente racional,
provavelmente concluiríamos que ele foi um fracasso.
28
PONDÉ, Luis F. Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 256.
29
KJETSAA, Geir. Dostoyevsky and his New Testament. op.cit.
30
KJETSAA, Geir. Dostoyevsky and his New Testament. op.cit.
Like his ideal, Prince Michkin is the friend of publicans and sinners. He feels more at home with the uncouth
clown Lebedev and the drunken thief Ivolgin than he does with he grand pillar of society General Epanchin.
31
PONDÉ, Luis F. Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p.252.
68
Com base em considerações puramente racionais [...] pode-se argumentar
que o príncipe Michkin foi um fiasco, assim como Cristo foi um fiasco se
nós simplesmente medirmos suas atividades de acordo com critérios
pragmáticos. Nem Cristo, nem o ―Príncipe Cristo‖ conseguiram evitar as
lesões que os seres humanos infligem sobre um outro. A única coisa que
podia fazer era dar às pessoas uma imagem melhor dentro de si. Porém, uma
vez que sublinham o poder do exemplo, este torna-se também de grande
valor. Uma coisa é certa, o príncipe era incapaz de mudar o mundo, mas ele
apontou para a dimensão vertical, a tomada do divino. O ideal é intangível
em si, mas lutar por algo menor não vale o esforço. [...] A principal força do
Príncipe Michkin tem sido descrito pela palavra russa smirene. A palavra
significa a contenção de todas as paixões, humildade e paz espiritual,
designa o oposto de grego hybris, que pugna por orgulho, de auto-afirmação
espiritual e revolta.
32
Kjetsaa se aproxima de Berdiaeff ao afirmar que Michkin ―apontou para uma
dimensão vertical, a tomada do divino.‖
33
Isso está relacionado a forma de Dostoievski
entender a liberdade, que justamente não é percebida a partir de considerações puramente
racionais, mas dentro de uma perspectiva vertical, mesmo vivendo de forma polifônica, isto é,
do humano estar sendo construído. Esta construção experimenta a liberdade se estiver
considerando a dimensão vertical. Michkin é isto, o divino no humano, o humano caminhando
no divino, assim como Cristo.
Segundo Pondé, O Idiota é a obra que Dostoievski mais gostava, pois nela pôde
mostrar o que pensava: ―o comportamento de alguém sobrenaturalizado, divinizado – um
comportamento inefável.‖
34
O problema é que o príncipe - Cristo de Dostoievski não
consegue salvar Nastácia Filippovna.
35
Teria ele fracassado em sua missão?
Pondé aponta mais uma vez para a polifonia em Dostoievski. Michkin está
mergulhado na mesma inviabilidade dos outros heróis. O Idiota ―é exatamente a idéia de que
32
KJETSAA, Geir. Dostoyevsky and his New Testament. op.cit. On the basis of purely rational considerations
the critics are no doubt right. Naturally it can be argued that Prince Myschkin was a flop, just as Christ was a
flop if we simply measure his activities according to pragmatic criteria. Neither Christ nor ―Prince Christ‖
managed to prevent the injuries that human beings inflict on one another. The only thing they could do was to
give people picture of the best within themselves. However, once we stress the power of example, this too
becomes of great value. True enough, the prince was unable to change the world, but through his attitudes he
pointed to the vertical dimension, the making of the divine. The ideal itself is an unattainable, but to strive for
something less is not worth the effort.
33
Id.ibid.
34
PONDÉ, Luis F. Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 254.
35
Cf.Id. ibid.p.254.
69
a manifestação do sagrado pode estar intimamente relacionada a uma desordem da
natureza.‖
36
Michkin é um mistério, mesmo aparentando um fracassado. É justamente esta a idéia
que Dostoievski parece nos apresentar, a de que o sobrenatural não pode ser compreendido à
luz do natural (razão), mas é livre, tem sua própria maneira de ser. Se olharmos para este
sobrenatural com base no natural, ele nos parecerá contraditório.
2.2.3. A liberdade expressa no amor
Pondé nos ajuda a compreender melhor a ideia de que:
...quando o sobrenatural se manifesta, ele desfaz o que é natural, ele
desorganiza, e nossa idéia de organização é natural. Assim, não resta dúvida
de que o príncipe Michkin é um indivíduo tocado por Deus. E justamente
por ser tocado por Deus é que ele provoca toda essa desorganização no
mundo, pois parece arrastar o sobrenatural consigo, e ao fazê-lo, a natureza
vai se desmanchando, se desorganizando. Míchkin faz com que todo mundo
faça alguma coisa, ninguém parece se manter neutro diante dele; ele está
sempre fazendo com que as pessoas se mexam, troquem de lugar, que se
estabeleça alguma alteração, mesmo que esta alteração leve a um final
gótico, no sentido do terror, do trágico. O Idiota não é ―confuso‖, é
antinômico.
37
Esse ideal que Dostoievski apresenta em Michkin está muito próximo ao que Bakhtin
escreve sobre a síntese que afirma encontrar em Cristo. Bakhtin destaca que, pela primeira
vez, surge o que ele chama de eu-por-mim-mesmo (consciência de si individual)
infinitamente aprofundado‖
38
, portanto um ―eu-por-mim-mesmo ilimitadamente bom em
relação ao outro‖
39
. Cristo como ideal de todas as relações humanas: ―o que eu devo ser para
o outro, Deus é para mim (para o eu-por-mim-mesmo)‖.
40
Berdiaeff, influenciado por Dostoievski, faz uma distinção entre indivíduo e pessoa.
Diante disso, é possível interpretar que Michkin seria ‗pessoa‘, enquanto as demais
36
Id. ibid.p.255.
37
Id. ibid.p.258.
38
BAKHTIN, M. apud FRANK, Joseph. Pelo prisma russo. Ensaios sobre literatura e cultura. Trad. Paula Cox
Rolim, Fransisco Achcar. São Paulo, EDUSP. 1999. p.25,26.
39
Cf.id.ibid.p.25,26.
40
Id. ibid. p.25,26.
70
personagens seriam ‗indivíduos‘. Para Berdiaeff o ―indivíduo‖ é uma categoria de ordem
natural, enquanto que a ―pessoa‖ é uma categoria espiritual e não natural. ―Não há pessoa sem
o trabalho do espírito exercido sobre a construção física e psíquica do homem.‖
41
Homens e
mulheres dotados de talentos podem ao mesmo tempo ser impessoais e incapazes de realizar o
esforço necessário para a realização da personalidade. Pode-se dizer que alguém assim não
tem personalidade, mas não se pode negar sua individualidade. A pessoa é, portanto, coisa
distinta da natureza, assim como Deus é distinto da natureza. ―A pessoa está em estreita
dependência de Deus, posto que é sua imagem e semelhança.‖
42
Nesse sentido, para ser
pessoa, supõe-se a existência de algo sobrenatural sobre ela. Ser pessoa é antes de tudo uma
categoria axiológica. Ser indivíduo, porém, não supõe a manifestação de sentido para sua
existência.
43
O Idiota apresenta a tentativa de Dostoievski retratar, conforme dito, o ideal do
homem ―positivamente belo‖. Talvez o título não fosse melhor sugestivo ao pensar em
alguém que é livre, que não compreende a vida sob a ótica do egoísmo, mas sob a égide de
Cristo, de seu ideal de amor ao próximo. Todo o romance aponta como foco o príncipe
Michkin, interpretado muitas vezes como um idiota. O ―positivamente belo‖ tem sua própria
forma de ser belo, isto é, a beleza de Michkin está em sua interioridade, em sua pureza, em
seu espírito, algo que para o Sec. XIX na Rússia poderia ser interpretado como anacrônico ou
desajustado. Esse homem ―positivamente belo‖ é belo porque é uma pessoa livre, cuja
liberdade é expressa no amor, em seu amor pelas pessoas, e não se constrange em ser assim,
mesmo sendo interpretado como um idiota.
Michkin pode parecer para muitos um fracassado, porém, ele nos faz pensar em algo
fundamental:
...com sua meditatio mortis, Michkin quer nos dizer, então, que, se o ser
humano tivesse absoluta consciência de que pode morrer a qualquer
momento, de que não está nas mãos do acaso, no sentido de que é mortal, ele
teria uma apreensão da vida totalmente outra. O ser humano se esquece o
41
BERDIAEFF, Nicolas. Cinco meditaciones sobre La existencia. Soledad, sociedad y comunidad. Títulos del
original ruso: El yo y El mundo de los objetos. Traducción francesa de Irene Vildé-lot. Colección Espíritu y
verdad‖. Ediciones ALBA. Editorial ―La aurora‖ México. D.F, Buenos Aires. 1948. p. 176.
42
Id.ibid.p.176.―No hay persona sin el trabajo del espíritu ejercido sobre la construcción física y psíquica del
hombre.‖... La persona esta in estrecha dependencia de Dios, puesto que es La imagen y La semejanza de Dios in
el hombre.‖
43
Cf.Id.ibid.p.176.
71
tempo inteiro de que é mortal. Ele só quer sobreviver, e isso é o mal
funcionando nele, porque faz com que perca o foco.
44
Mas, essa tomada de consciência não deveria partir da teologia? Michkin não seria
uma voz profética que emerge da literatura? Dostoievski faz teologia ao apresentar um
príncipe que ensina o que é ser humano. Um sucesso no ―fracasso‖, o belo em um ―idiota.‖
2.3. Leituras em Os irmãos Karamazovi
Os irmãos Karamazovi
45
, última obra de Dostoievski, publicada em 1880 é
considerada ―um dos ápices da literatura universal.‖
46
Por ser a última obra de Dostoievski, é
de se entender que foi a obra de sua maturidade. Concordamos com Otto Maria Carpeaux
quando afirma que Os irmãos Karamazovi é a síntese de todas as possibilidades de arte de
Dostoievski.‖
47
Vale destacar a importância dessa obra também em reflexões de outros saberes.
Exemplo de verdadeira obra de arte, por conta de suas inovações técnicas e
de suas ousadias temáticas que inspiram ângulos de percepção originais, Os
irmãos Karamazov tem instigado não apenas novas realizações artísticas,
mas também reflexões inaugurais nos campos da filosofia, da psicanálise,
da teoria da literatura e da lingüística. Os avanços de Freud no estudo sobre
o parricídio apresentados em ―Dostoievski e o parricídio‖ (1928), os
conceitos fundamentais de polifonia e dialogismo propostos por Mikhail
Bakhtin em problemas da poética de Dostoievski (1929), bem como a
versão ―popular‖ da filosofia existencialista exposta por Sartre em ―O
existencialismo é Humanismo‖ (1946), são exemplos de construções
teóricas geradas nos diálogos de importantes pensadores com o romance
dostoievskiano.
48
44
PONDÉ, Luis F. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 260.
45
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Fascículo nº 01
da coleção ―Os imortais da literatura universal‖. São Paulo. Abril Cultural. 1971.Karamazovi é o plural russo de
Karamazov. Trata-se de um nome forjado, composto provavelmente do substantivo Kara, castigo, punição, e do
verbo mázat, sujar, pintar, não acertar. Seria, simbolicamente. Aquele que com o seu comportamento
desacertado provoca a própria punição. p.9 (nota de rodapé).
46
OLIVEIRA, Andrey Pereira de. A Transmutação de “O Grande inquisidor”. Encontro Regional da ABRALIC
(associação brasileira de literatura comparada) 2007, literaturas, artes, saberes. 23 a 25 de Julho de 2007. USP,
São Paulo, Brasil. Extraído do site. www.abralic.org.br/enc2007/anais/71/331.pdf em 17 de março de 2009.
Andrey Pereira de Oliveira é professor adjunto de Teoria literária e literaturas de ngua portuguesa da Unidade
acadêmica de Letras da Universidade Federal de Campina Grande.
47
CARPEAUX, Otto Maria apud OLIVEIRA, Andrey Pereira de. A Transmutação de “O Grande inquisidor”.
48
OLIVEIRA, Andrey Pereira de. A Transmutação de “O Grande inquisidor”.
72
O pensamento teológico evidentemente não foge a isto. Os irmãos Karamazovi é uma
obra fortemente teológica, sobretudo devido à análise cristológica apresentada por
Dostoievski. Ele aborda a falência da família russa. Esse problema era para ele apenas o
sintoma de uma doença muito mais profunda: a perda dos valores morais cristãos, resultantes
da perda da fé em Cristo e em Deus, principalmente entre os russos instruídos.
Se no Idiota a personagem central é Michkin, nos Irmãos Karamazovi cinco
personagens importantes: O velho Fiodor Pavlovitch Karamazov e seus filhos: Dmitri (Mitia),
filho de seu primeiro casamento, Ivan e Aleksei (Aliocha), de seu segundo casamento, além
de Smerdiakóv, filho bastardo. Além das cinco personagens que compunham a família, é
importante destacar Zózima, o stariets. Esse é um líder religioso, o mentor de Aliocha, cuja
influência é muito forte em sua vida. Zózima tem um significado muito importante nessa
obra, pois a relação entre ele e Aliocha representa para Dostoievski o coração do povo russo,
contrapondo, portanto, a perspectiva niilista.
2.3.1. Um breve resumo
A obra apresenta o conflito entre Dmitri e seu pai, o qual reclama uma herança
deixada por sua mãe, a falecida Adelaida Ivanovna, e ao mesmo tempo disputa com o pai uma
mesma mulher, a bela Gruchehnka. Essa relação acaba sendo marcada pelo ódio e faz de
Dmitri o principal suspeito pelo assassinato do velho. Ivan é o intelectual e ateu, enquanto que
Aliocha é o religioso, aquele que representa a vida espiritual, o cristianismo russo.
Smerdiakóv, filho bastardo, vivia na casa da família. É uma figura excluída e o verdadeiro
assassino do velho Karamazov. É o executor, mas a influência niilista e ateísta de seu mentor,
Ivan, acaba sendo o fator essencial para a realização desse ato.
Todo o livro é exatamente o embate entre a e a razão, entre o comportamento da
sociedade russa e a possibilidade da redenção pela via do cristianismo, pela em Cristo e
seus valores, sobretudo o amor. Discussões profundas são travadas ao longo do romance,
provavelmente a mais calorosa é sobre a liberdade, que analisaremos posteriormente.
O livro termina de forma diferente de outras obras, como O Idiota, por exemplo, que
acaba em tragédia. Pela primeira vez, aparece um outro mundo de fé, amor e esperança
73
verdadeiros, ―tanto no mosteiro quanto na evolução das relações entre Dmitri e Gruchehnka e
no meio das crianças.‖
49
2.3.2. No religioso, o herói
Apesar das cinco personagens serem fundamentais no romance, Dostoievski chama
Aliocha de herói. Ao declarar isto, Dostoievski chega a ironizar, devido ao ceticismo e ao
ateísmo tão presentes na Rússia do Séc. XIX, o qual combatia.
Ao começar a biografia de meu herói, Aliekséi Fiodorovitch, sinto-me um
tanto perplexo. Com efeito, se bem que o chame de meu herói, sei que ele
não é um grande homem; prevejo também perguntas deste gênero: ―Em que
é notável Alieksei Fiodorovitch, para que tenha sido escolhido como seu
herói? Que fez ele? Quem o conhece e por quê? Tenho eu, leitor, alguma
razão para consagrar meu tempo a estudar-lhe a vida? [...] A meus olhos ele
é notável, mas duvido bastante de que consiga convencer o leitor. O ato é
que ele age seguramente, mas de uma maneira vaga e obscura. Aliás, seria
estranho, em nossa época, exigir clareza das pessoas! Uma coisa, no
entanto, está fora de dúvida: é um homem estranho, até mesmo um original.
Mas a estranheza e a originalidade prejudicam, em lugar de conferir um
direito à atenção, sobretudo quando todo mundo se esforça por coordenar as
individualidades e destacar um sentido geral do absurdo coletivo. O
original, na maior parte dos casos, é o individuo que se põe a parte. Não é
verdade?‖
50
Joseph Frank, ao comentar este trecho, principalmente o fato de Aliocha ser
―original‖, afirma que esse e seu mestre Zózima eram para Dostoievski o coração do ―todo‖
russo, isto é, o mundo de Aliocha e Zózima era o centro da vida russa. Por isso ele ironiza
pedindo desculpas ao escrever sobre esse protagonista ―insignificante‖. Ele desafia seus
críticos a lerem a obra até o fim para não ―serem enganados com julgamentos imparciais.‖
51
Esse herói, Aliocha, é o caçula, um jovem monge, cuja presença faz bem aos seus
familiares. Aliocha é a criança, na verdade, a metáfora da criança, como sugere Pondé. ―Ele é
o caçula, o mais jovem, um anjo, como o chamam os outros personagens. Apesar de a criança
49
FRANK, Joseph. Dostoievski. O manto do profeta. 1871 a 1881. Tradução. Geraldo Gerson de Souza. São
Paulo. Editora da Universidade de São Paulo. EDUSP. 2007.p.714. Gruchenka era a mulher que Dmitri
disputava com o pai.
50
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazovi. p.9.
51
FRANK, Joseph. Dostoievski. O manto do profeta. 1871 a 1881. p.719
74
ser extremamente frágil, ela é uma espécie de termômetro do amor. [...] A criança tem cheiro
de Deus.‖
52
Joseph Frank trabalha o contexto que contribuiu para a elaboração desse romance.
Houve na Rússia umarie de suicídios entre os jovens, fato que inquietava a opinião pública
da época. Um caso que chamou a atenção de Dostoievski foi o suicídio de um jovem que se
matou com um tiro por não ter dinheiro para arranjar uma amante. Para Dostoievski, o
ateísmo contribuía para o suicídio, pois não tinham (os jovens) ―a mais leve suspeita de que
se chama Eu e de que é um ser imortal.‖
53
Dostoievski criticava os populistas que pregavam um idealismo moral sem o suporte
da cristã. Ele afirmava que ―aqueles que, privando o homem de sua na imortalidade,
estavam buscando substituí-la como objeto máximo da vida pelo ―amor à humanidade‖;
esses, eu afirmo que estão pegando armas contra si mesmos.‖
54
Ao invés de amor, eles
estavam plantando ódio contra a humanidade. outras coisas que fazem Dostoievski se
indignar: A violência contra a criança, a injustiça nos tribunais, o sofrimento dos fracos e
oprimidos.
2.3.3. Na vida e na morte, a profecia
O cristianismo de Dostoievski não é um cristianismo histórico. Segundo Berdiaeff, o
cristianismo de Dostoievski é apocalíptico. Em função disso, é possível compreender
Dostoievski a partir da consciência apocalíptica. A figura de Zózima, o mestre de Aliocha, é
diferente dos peregrinos e ermitãos tradicionais, pois tem a capacidade de compreender e
corresponder a um novo sentimento e sofrimento do homem, algo que os eremitas tradicionais
não fazem. Zózima é a expressão da visão profética de Dostoievski
55
, e consegue
compreender a natureza como a dos Karamazovi. Do reino dos Karamazovi é que deve surgir
o novo homem, com uma nova alma. Berdiaeff se reporta ao capítulo denominado ―As bodas
de Caná‖, do livro Os irmãos Karamazovi. Ele entende que esse capítulo demonstra ser um
52
PONDÉ, Luis Felipe. Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. São Paulo. Ed. 34. 2003.
p.269, 270.
53
DOSTOIEVSKI, F. apud. FRANK, Joseph. Dostoievski. O manto do profeta. p.360.
54
Id. Ibid. p.363.
55
Cf.BERDEIAEFF, Nicolas. El credo de Dostoievski. Traducción directa del ruso por Aléxis Marcoff.
Barcelona. Editorial Apolo. 1951 p. 225.
75
novo espírito do cristianismo de João, o qual a luz é revelada a Aliocha após as trevas terem
envolvido sua alma.
56
Zózima conquista mais as pessoas pelo seu amor, do que pelos milagres. Havia uma
tradição e isto não era um dogma da ortodoxia, mas um costume popular, que quando um
stariets morresse, seu corpo não poderia ter odor,
57
caso contrário, sua santidade seria posta
em dúvida. Quando Zózima morre, seu corpo exala o mau cheiro, algo que causa grande
perplexidade, principalmente àqueles que o invejavam. Além de não acontecer nenhum
milagre em seu velório, o que muitos esperavam.
Tudo isto abate Aliocha, que tem por seu mestre um amor inquestionável. Mas, ao
deparar-se com o corpo, num momento em que se encontrava apenas ele, o padre Paísi e o
defunto, enquanto o padre estava lendo o Evangelho de João, a passagem sobre as bodas de
Caná da Galiléia, Aliocha recorda as palavras de seu mestre.
Que belo milagre! Foi consagrado a alegria e não ao luto... ―Quem ama os
homens, ama também sua alegria...‖ o defunto repetia isto a cada instante, era
uma de suas ideias principais... ―Não se pode viver sem alegria‖, disse Mitia...
―Tudo quanto é verdadeiro e belo respira sempre o perdão, dizia ele também
[...] ―Disse sua mãe aos que serviam. Fazei tudo o que ele vos disser.‖
Fazei...Dai alegria a gente muito pobre...Muito pobres, seguramente, pois que
até mesmo em suas bodas o vinho faltou...os historiadores contam que em
torno do lago de Genesaré e na região estava então disseminada a população
mais pobre que se possa imaginar...E sua mãe, de grande coração, sabia que
ele não viera somente para cumprir sua missão, sublime, mas que partilhava
da alegria ingênua das pessoas simples e ignorantes que o convidavam
cordialmente para suas humildes bodas.
58
Aliocha, nesse momento, adormece de joelhos e tem um sonho. Não mais o
caixão e nem o corpo, nem tampouco sente mais o mau cheiro. Vê Zózima vivo, o qual se
aproxima dele e diz: ―Tu estás também convidado meu querido, com todas as regras‖. As
palavras do ancião continuam: ―Regozijemo-nos...bebamos o vinho da grande alegria.‖
Aliocha sente medo quando o ancião o convida a olhar o que ele chamava de ―nosso Sol.‖
56
Id. ibid.p.226.
57
Geralmente o corpo de um stariets era velado por três dias. Stariets era um líder religioso asceta. Zózima tinha
algumas particularidades próprias. Não era rígido, frisava a alegria ao invés do jejum, isto o diferenciava dos
demais líderes ascetas de seus dias.
58
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazovi. p.261.
76
Não tenhas medo dele. Sua majestade é terrível. Sua grandeza nos esmaga,
mas sua misericórdia é sem limites; por amor fez-se semelhante a nós e se
rejubila conosco, muda a água em vinho, para não interromper a alegria dos
convidados, aguarda outros, chama-os continuamente por todos os séculos
dos séculos. E eis que trazem o vinho novo, vê os copos...
59
Para Berdiaeff, a alma de Aliocha é ressuscitada nesse momento, e vence a
decomposição e a morte, nascendo pela segunda vez. Esse novo nascimento tem a ver com o
novo espírito do cristianismo. Aliocha segue esse novo espírito de Zózima.
60
No velório de Zózima, os inimigos do starietismo, principalmente os inimigos do
falecido, aproveitam a situação e comentam: ―Ensinava erradamente que a vida é uma grande
alegria e não uma grande humilhação.‖
61
Fica evidente o contraste entre o que Dostoievski
entende acerca da ortodoxia (que segundo ele era petrificada e morta), com seu entendimento
do novo espírito do cristianismo.
Aliocha após ter despertado de seu sonho, sua alma estava exaltada, com sede de
liberdade e de espaço. Passou a contemplar o u, a Via Láctea, a terra. Em sua mente uma
frase não cessava. ―Rega a terra com lágrimas e alegria e ama-a...‖
62
Berdiaeff interpreta esta
relação com a terra da seguinte forma:
Assim termina Dostoievski a descrição do caminho que segue o homem para
chegar ao fim anelado. Arrancado da natureza da terra, o homem foi
precipitado no inferno, pois ao término de seu caminho volta a terra, a vida
natural, e se une ao Grande Cosmos. Mas para o homem que tem seguido o
caminho da arbitrariedade e rebelião, não regresso a terra. pode existir
este regresso através de Cristo, de Caná da Galiléia. Pois ele volta o homem
a terra mística que é a verdadeira pátria, no Éden da divina natureza. Isto
ocorre numa terra e numa Natureza transformadas. Porque quando o homem
compreende sua arbitrariedade, rebelião e desdobramento se encerram a
velha natureza e a velha terra.
63
59
Id. ibid.p.262.
60
Cf.BERDIAEFF, Nicolas. El credo de Dostoievsky. p. 228.
61
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazovi. p.243.
62
Id. ibid.p.262.
63
BERDIAEFF, Nicolas. El credo de Dostoievsky. p. 227.―Así termina Dostoievsky La descripción del camino
que sigue el hombre para llegar al fin anhelado. Arrancado de La naturaleza de la tierra, el hombre fue
precipitado in el inferno, pero al término de su camino vuelve a la tierra, a la vida natural, y se une con El Gran
Cosmos. Pero para el hombre que ha seguido el camino de la arbitrariedad y rebelión, no hay regreso a la tierra.
Sólo puede existir ese regreso a través de Cristo, de Cana de Galilea. Por El vuelve el hombre a la tierra mística
que es su verdadera patria, en el Edén de la divina Naturaleza. Esto solo ocurre en una tierra y una Naturaleza
transformadas. Porque cuando el hombre comprende su arbitrariedad, rebelión y desdoblamiento, se Le cierran la
vieja naturaleza y la vieja tierra.
77
Dostoievski é um escritor profundamente cristão. O cristianismo de Dostoievski é de
domínio espiritual e profundo, porém, jamais desaparece a imagem do homem. ―Havia
prosternado fraco e adolescente e reergueu-se lutador sólido para o resto de seus dias. [...]
Nunca mais, dali por diante, pode Aliocha esquecer-se daquele instante. ―Minha alma foi
visitada naquela hora‖.
64
Dostoievski é uma fonte espiritual das tendências religiosas apocalípticas na Rússia, e
com ele se relaciona todas as formas de neocristianismo. No entanto, como bem observa
Berdiaeff, ele ―brilha como uma estrela da Verdade por ele descoberta sobre a liberdade do
homem e seu destino.‖
65
Dostoievski não inventa uma nova religião, apenas desperta um novo
espírito, o qual não destrói e nem derruba as tradições do cristianismo. Em função disto,
Berdiaeff o considera um reformador religioso. O cristianismo de Dostoievski não é um
cristianismo tenebroso e petrificado, mas um cristianismo que aponta para a liberdade e o
amor. Devido a isso, Dostoievski é considerado um fenômeno profético
66
, não podendo assim
ser interpretado como um pessimista.
2.4. A Antropologia Teológica de Dostoievski na Lenda do “Grande Inquisidor”
O humano de Dostoievski é o ser vivido na liberdade. Esta liberdade, como foi
discutida, é transcendental, de espírito. Pensar no humano fora desse prisma, para
Dostoievski, é caracterizá-lo como escravo em estado de dissolução das condições humanas,
incapaz de lidar com as chamadas ―malditas questões humanas.‖ Para Dostoievski, ―o homem
renasce quando crê em Deus. A no homem e a em Deus, a em Jesus Cristo, a no
Deus-homem.‖
67
Essa liberdade da alma é a alegria que se pela via do cristianismo e tem
relação com o sofrimento. Não há, para Dostoievski, liberdade fora de Cristo.
Os irmãos Karamazovi traz um renomado capítulo denominado ―O grande
Inquisidor‖. Trata-se de um diálogo entre Ivan e seu irmão Aliocha. A lenda é narrada por
64
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazovi. p.262.
65
BERDIAEFF, Nicolas. El credo de Dostoievsky. p.231.―brilla como una estrella de la Verdad por El
descubierta sobre la libertad del hombre y su destino.
66
Cf.Id. ibid.p.245,246.
67
Id. Ibid.p.30. ―El hombre renace cuando cree en Dios. La fe in lo hombre Es la fe en Dios, la fe en Jesucristo,
la fe in Dios-hombre.‖
78
Ivan, jovem esclarecido, niilista e ateu muito hábil, além de irônico na arte dialética.
68
Ivan
não rejeita Deus, mas o sentido de sua criação: ―... o protesto de Ivan contra o mundo de Deus
está vazado em termos do valor cristão da compaixão.‖
69
A compaixão é algo que o próprio
Dostoievski chama de ―a principal e talvez a única lei de toda existência humana.‖
70
O sofrimento humano é algo muito questionado por Ivan, e lhe causa grande angústia,
pois não consegue pensar em Deus em meio ao sofrimento humano. Trata-se de um problema
de teodicéia. Essa angústia contraria qualquer submissão à esperança cristã.
Para um intelectual como Ivan, a angústia que sentia diante dos sofrimentos
do gênero humano contraria qualquer submissão à esperança cristã uma
esperança que nada justificava exceto o que Kierkegaard chamou de ―salto
de fé‖ na imagem radiante de Cristo Deus-Homem. Do mesmo modo, todas
as outras personagens importantes se defrontam com a mesma necessidade
de dar um salto de em alguma coisa ou alguém para além de si mesmas,
para transcender os limites do egoísmo pessoal num ato de auto-entrega
espiritual. [...] Também são chamadas a realizar um ato de transcendência,
um ato ―irracional‖ no sentido de que nega ou supera o interesse próprio
imediato centrado no ego. A identificação entre ―razão‖ (que no plano
moral equivalia a utilitarismo) e egocentrismo estava arraigada no
pensamento russo radical da época; e essa convergência permite
Dostoievski apresentar todos esses conflitos como parte de um padrão
invasivo e entretecido.
71
A lenda do ―Grande Inquisidor‖ conta a volta de Jesus na Idade Média.
72
Jesus aparece
no meio do povo e começa a curar e ter compaixão daquelas pessoas sofredoras. Surge na
praça a figura do inquisidor, cuja presença inibe e faz calar a todos. Ordena a prisão de Jesus e
passa a interrogá-lo. ―A ação se passa na Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da
inquisição, quase todos os dias no país ardiam às fogueiras à glória de Deus e esplêndidos
autos de fé queimavam os heréticos.‖
73
68
Cf. OLIVEIRA, Adrey Pereira de. A transmutação de “O grande inquisidor” op.cit.
69
FRANK, Joseph. Dostoievski. O manto do profeta. p.537.
70
Cf.Id.ibid. p.537.
71
Id. ibid. p.716.
72
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. pp. 184-197. Textos que figuram o retorno de Cristo (não do
segundo advento) sempre foram muito comuns, desde os primeiros anos do cristianismo e na Idade Média. A
característica principal destes textos é que protestam contra a adesão da igreja ao poder temporal. Ao fazer isto,
os textos deixavam bem claro que a Igreja havia perdido de vista a essência de sua mensagem que era amor,
caridade e compaixão por aqueles que sofrem. textos assim no Séc.XIX e em poemas como ―Cristo no
Vaticano‖, de Victor Hugo.
73
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 186. O grande inquisidor mandava queimar os heréticos para
―maior glória de Deus‖ mote dos jesuítas.
79
2.4.1. A liberdade humana
O questionamento feito pelo inquisidor o tom ao discurso proposto por Dostoievski
acerca da liberdade. O ―Grande Inquisidor‖ tem como tema principal a liberdade da alma
humana.
74
Segundo Berdiaeff ―no sistema do Grande Inquisidor, a arbitrariedade conduz a
negação da liberdade da alma e do espírito.‖
75
O inquisidor argumenta, tenta persuadir com
toda a lógica e astúcia, mas Cristo responde com o silêncio. Há dois princípios que se chocam
nessa lenda: liberdade e a imposição.
76
_És tu, és tu? _ Não recebendo resposta, acrescenta rapidamente: _Não
digas nada, cala-te. Aliás, que poderias dizer? Sei demais. Não tens direito
de acrescentar uma palavra mais do disseste outrora. Por que vieste
estorvar-nos? O inquisidor revela afinal seu pensamento, desvenda o que
calou durante toda a sua carreira/.../Tudo foi transmitido por ti ao papa, tudo
depende agora do papa, não venhas estorvar-nos antes do tempo, pelo
menos/.../Todas as tuas revelações novas feririam a liberdade da fé, porque
pareceriam miraculosas; ora, tu punhas acima de tudo, quinze séculos,
esta liberdade da fé. Não disseste bem muitas vezes: ―Quero tornar-vos
livres?‖ - acrescenta o velho, com ar sarcástico. Sim isto nos custou caro
prosseguiu ele, olhando com severidade -, mas levamos a cabo afinal aquela
obra em teu nome./.../Mas fica sabendo que jamais os homens se creram tão
livres como agora, e, no entanto, a liberdade deles depositaram-na
humildemente a nossos pés. Isto é a nossa obra, para dizer a verdade: é a
liberdade que sonhavas? Não compreendo de novo interrompeu Aliocha.
_Ironiza ele, zomba? Absolutamente! Vangloria-se de ter, ele e os seus,
suprimido a liberdade, com o fito de tornar os homens felizes.
77
Essa provocação do inquisidor retrata o problema da liberdade. Por vezes o ser
humano prefere não ser livre para ser feliz. Uma escolha fica evidente: Liberdade ou
felicidade? ―Liberdade com sofrimento ou felicidade sem liberdade?‖
78
A maioria das pessoas
prefere a segunda opção, pois para o inquisidor a liberdade do espírito é incompatível com a
felicidade humana.
Essa troca da liberdade pela felicidade fica evidente na negação da imortalidade e da
liberdade, entregando-se, portanto, ao amor falso e ateu, que procura um mundo sem Deus.
No discurso do inquisidor, quando Deus criou o mundo, colocou sobre o humano uma carga
de liberdade e responsabilidade, por isso, liberdade implica em sofrimento. A proposta do
74
Cf. BERDIAEFF, Nicolas. El Credo de Dostoievski. p. 205.
75
Id. ibid.p.206.
76
Cf. Id.ibid. p.206.
77
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Irmãos Karamazovi. p. 187, 188.
78
Cf. BERDIAEFF, N. El credo de Dostoievski. p.208.―Libertad con sufrimiento o felicidad sin libertad‖
80
inquisidor atua na tentativa de acabar com este sofrimento e com esta responsabilidade,
destruindo então a liberdade. Este era o sistema do inquisidor, que as pessoas vivessem
apenas como uma organização, aquilo que Berdiaeff chama de formigueiro, destruindo a
liberdade da alma.
79
2.4.2. O conflito entre fé e razão
Berdiaeff entende que a ―razão‖ é a arma do inquisidor. Pondé nos chama atenção
afirmando que Dostoievski está num confronto com o ocidente.
Podemos observar, então, que Dostoievski eso tempo todo em polêmica
com a modernidade, com o iluminismo, esbrigando com o que ele chama
de ―ocidentalização‖[...] Todavia, ele não está querendo provar alguma
coisa, ele não escreve com o objetivo de provocar; mas escreve como quem
respira, escreve como quem anda. Mesmo assim, não resta dúvida de que
sua literatura serve, a partir de um momento, para criticar a sociedade, o
status quo, e com o tempo vai ficando cada vez mais claro que serve para
que ele faça essa crítica à razão ocidental, ao processo modernizador
iluminista dessacralizante.
80
Dostoievski retrata por intermédio do ―Grande Inquisidor‖ um momento de grande
conflito na Rússia. Para o inquisidor, as pessoas não sabem viver com a liberdade, elas
preferem a imposição. Diante disso, o questionamento do inquisidor a Cristo. Se Cristo
realmente amasse as pessoas, as teria privado da liberdade.
Em lugar da dura lei antiga, o homem devia doravante, com coração livre,
discernir o bem e o mal, não tendo para se guiar senão tua imagem, mas não
previas que ele repeliria afinal e contestaria mesmo tua imagem e tua
liberdade, esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher?
Gritarão por fim que a verdade não estava em ti, de outro modo não os
terias deixado numa incerteza tão angustiosa, com tantas preocupações e
problemas insolúveis.
81
79
Cf. BERDIAEFF, N. El credo de Dostoievski. p.208.
80
PONDÉ, Luis Felipe. Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 20, 271.
81
DOSTOIEVSKI, F. Irmãos Karamazovi. p. 190.
81
Baseado na narrativa bíblica sobre a tentação de Jesus no deserto
82
, o inquisidor
argumenta que três forças capazes de subjugar a consciência das pessoas: o milagre, o
mistério e a autoridade. ―Tu rejeitas-te todas as três, dando assim o exemplo.‖
83
O inquisidor enfatiza a fraqueza do ser humano, o qual rejeita Deus e prefere o
milagre. Ironiza ao afirmar que Jesus não desceu da cruz quando os homens zombavam dele e
que se houvesse feito eles então creriam. ―Desejavas uma fé livre e não inspirada pelo
maravilhoso. Tinhas a necessidade de um livre amor e não dos transportes servis dum escravo
aterrorizado.‖
84
2.4.3. A oposição ao socialismo
A liberdade é apresentada pelo inquisidor como algo impossível para pessoas tão
fracas. ―Corrigimos tua obra baseando-a no milagre, no mistério e na autoridade. E os homens
regozijaram-se por ser de novo levados como rebanho e libertados daquele dom funesto que
lhes causava tais tormentos.‖
85
Para Berdiaeff, as palavras do inquisidor a Cristo são as mesmas que o socialismo
expressa aos cristãos. O socialismo ateu acusa o cristianismo de ter feito infelizes as pessoas,
não dando felicidade nem pão. Mais uma vez o contraste entre o pão terreno e o pão celestial.
O socialismo espera a salvação por meio da organização e imposição do sistema, acreditando
que quando apagar o princípio irracional da vida em nome da felicidade serão realmente
felizes.
82
―Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo Diabo. Depois de jejuar quarenta dias e
quarenta noites, teve fome. O tentador aproximou-se dele e disse: ―Se és Filho de Deus, manda que estas pedras
se transformem em pães.‖ Jesus respondeu: ―Está escrito: ‗Nem de pão viverá o homem, mas de toda palavra
que procede da boca de Deus. Então o Diabo o levou à cidade santa, colocou-o na parte mais alta do templo e
lhe disse: ―Se és o filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Pois está escrito: ―Ele dará ordens a seus anjos a seu
respeito, e com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra.‖ Jesus lhe respondeu:
―Também está escrito: ‗Não ponha à prova o Senhor, o seu Deus‘. Depois, o Diabo o levou a um monte muito
alto e mostrou-lhe todos os reinos do mundo e o seu esplendor. E lhe disse: ―tudo isto te darei, se te prostrares e
me adorares.‖ Jesus lhe disse: ―Retire-se Satanás! Pois está escrito: ‗Adore o Senhor, o seu Deus, e a ele
preste culto‘.‖ Então o Diabo o deixou, e anjos vieram e o serviram. ‖(Mateus 4,1-11).
83
DOSTOIEVSKI, F. Irmãos Karamazovi. p. 191.
84
Id. ibid. p.191.
85
Id. ibid. p.192.
82
Um negador contemporâneo, um dos mais ardorosos, vem a público e
declara-se a favor do que o demônio defende, e afirma que isso é mais
verdadeiro para a felicidade das pessoas do que Cristo. Para nosso
socialismo russo, que é tão estúpido (mas também perigoso, porque a
geração dos jovens está com ele), a lição, ao que parece, é muito poderosa
pão quotidiano da pessoa, a Torre de Babel (i.e., o futuro reinado do
socialismo) e a total escravização da liberdade de consciência este é o
objetivo supremo deste negador e ateu desesperado!A diferença é que nossos
socialistas (e eles não são apenas a escória niilista na clandestinidade você
sabe disto) são jesuítas conscientes e mentirosos que não admitem que seu
ídolo consista de violência à consciência do homem e da equiparação do
gênero humano a um rebanho de gado, enquanto meu socialista (Ivan
Karamazov) é uma pessoa sincera que vêm a público e admite que concorda
com o ponto de vista do Inquisidor a respeito da humanidade e que a em
Cristo (supostamente) elevou o homem a um vel muito mais alto do que
aquele onde se acha realmente. [...] a lei de Cristo afirmam, é incômoda e
abstrata, e pesada demais para a pessoas fracas suportarem e, em vez da lei
da Liberdade e da Ilustração, eles oferecem a lei das cadeias e da escravidão
pelo pão.
86
Dostoievski revela na lenda um quadro da utopia social. Ele acreditava que o
cristianismo seria o único refúgio da Rússia, e que a idéia de um cristão ideal e puro não seria
uma coisa abstrata, mas possível.
As três tentações no deserto foram vencidas por Cristo em nome da liberdade da alma
humana, porém aceitas pelo inquisidor, que representa para ele a completa tranqüilidade na
terra.
87
Em Dostoievski, tanto o socialismo quanto o catolicismo haviam se tornado como
encarnações da primeira e da terceira tentação de Cristo, a troca da mensagem de Cristo pelo
pão e o desejo do poder terreno.
88
Dostoievski percebe isso não no catolicismo (que para
ele converte a igreja em Estado) e no socialismo, mas também na própria ortodoxia bizantina
e em qualquer espécie de imperialismo.
89
O cristianismo, em seu destino histórico, constantemente é seduzido para
que os homens reneguem a liberdade de sua alma. E não existe coisa mais
difícil para a humanidade cristã que conservar sua fidelidade a liberdade.
Na verdade, nada é tão insuportável para o homem como sua liberdade. [...]
O mistério da liberdade cristã está no Gólgota e na cruz. A verdade
crucificada não exerce violência contra nada nem obriga a nada; se pode
aceitar ou recusar livremente. A verdade crucificada se dirige a liberdade da
alma do homem. O crucificado não desceu da cruz, como esperavam os
incrédulos e ainda seguem esperando em nosso tempo, e não fez porque
86
DOSTOIEVSKI, F. apud. FRANK, Joseph. Dostoievski. O Manto do profeta. p.544.
Comentário de Dostoievski sobre o Grande Inquisidor. Data-se de 11 de junho de 1879.
87
Cf.BERDIAFF, N. El Credo de Dostoievski. p.215.
88
Cf. FRANK, Joseph. Dostoievski. O Manto do profeta. p.549.
89
Cf.BERDIAFF, N. El Credo de Dostoievski. p.214.
83
esperava ―o amor livre.‖ A verdade divina veio ao mundo humilhada,
destroçada e crucificada pelas forças daquele mundo, e nisto está
confirmada a liberdade da alma.
90
Transformar esta verdade e mistério cristão em uma verdade autoritária e imposta é
para Dostoievski uma traição ao mistério cristão, pois o ato de é um ato de liberdade e de
compreensão das coisas invisíveis. ―Cristo, como Filho de Deus, sentado a destra de Deus Pai,
só é visível por um ato de fé livre.‖
91
2.4.4. O poder do amor na liberdade
A liberdade da alma é possível porque Cristo renunciou ao poder sobre o mundo. O
único poder que Cristo conhece é o poder do amor, que para Dostoievski, é o único poder
correspondente a liberdade. Esse ponto de vista de Dostoievski acerca de Cristo é original e
novo em seus dias, diferente do ponto de vista do cristianismo histórico. Berdiaeff chega
afirmar que Dostoievski era um solitário em sua compreensão da liberdade cristã, estava
acima inclusive da ortodoxia oficial.
92
Na cristologia da liberdade de Dostoievski não pode haver convicções e normas
puramente lógicas. Além da crítica de Dostoievski ao socialismo e ao próprio cristianismo
histórico, é possível perceber no ―Grande Inquisidor‖ críticas à própria razão, ao
racionalismo.
Para ele (Dostoievski) era a mais rematada tolice acreditar que todas as
necessidades e desejos da pessoa humana pudessem ser satisfeitos pela
razão [...] Depois da Sibéria, Dostoievski passara a encarar os valores
cristãos do amor e do sacrifício como uma posse inerradicável da psique
moral e social russa e o único raio de luz que brilha no meio da escuridão
moral circundante.
93
90
Id. ibid.p.215.―El cristianismo, en su destino histórico, seduce constantemente para que los hombres renieguen
de la libertad de su alma. Y no ha existido cosa más difícil para la humanidad cristiana que la de conservar su
fidelidad a la libertad. En verdad, nada hay tan insoportable para el hombre como su libertad.[...] El misterio de
la libertad cristiana está en lgota y en la Cruz. La Verdad crucificada no ejerce violencia contra nadie ni
obliga a nadie; se le puede aceptar o rechazar libremente. La Verdad crucificada se dirige a la libertad del alma
del hombre. El crucificado no descendió de la cruz, como esperaban los incrédulos que hiciera y aun siguen
esperándolo en nuestro tiempo, y no lo hizo porque anhelaba ―el amor libre‖. La verdad divina vino al mundo
humillada, destrozada y crucificada por las fuerzas de aquel mundo, y esto ha confirmado la libertad del alma.‖
91
Id. ibid. p.216.
92
Id. ibid.p.217.
93
FRANK, Joseph. Dostoievski. O Manto do profeta. p.33,34.
84
A criação da lenda do ―Grande Inquisidor‖ é uma resposta ao que se chamou de
―entendimento euclidiano‖. O entendimento ―euclidiano‖ é a compreensão terrena; o
entendimento ―não euclidiano‖ é a compreensão sobrenatural ou transcendente.
94
Assim, declaro admitir Deus, pura e simplesmente. É preciso notar, no
entanto, que, se Deus existe, se criou verdadeiramente a terá, -la, como se
sabe, segundo a geometria de Euclides, e não deu ao espírito humano senão a
noção das três dimensões de espaço. Entretanto, encontram-se ainda
geômetras e filósofos, mesmo eminentes, para duvidar de que todo o
universo e até mesmo todos os mundos tenham sido criados somente de
acordo com os princípios de Euclides. Ousam mesmo supor que duas
paralelas que, de acordo com as leis de Euclides, jamais se poderão
encontrar na terra, possam encontrar-se, em alguma parte, no infinito.
Decidi, sendo incapaz de compreender mesmo isto, não procurar
compreender Deus. Confesso humildemente minha incapacidade em resolver
tais questões; tenho essencialmente o espírito de Euclides.
95
Ivan Karamazov sofre o conflito da dúvida entre o euclidiano e o não euclidiano, ele
não consegue ter uma que transcende a razão e recusa a dar o salto de que o levaria a
acreditar ―que o mundo real poderia, algum dia, transformar-se no mundo que realize
plenamente os ideais de Cristo.‖
96
O pensamento euclidiano de Ivan o faz recusar a aceitar o mundo não euclidiano pelo
fato de ter de conciliar-se com todos os horrores do mundo criado por Deus.
Assim, admito Deus, não voluntariamente, mas ainda sua sabedoria, seu
fim que nos escapa; creio na ordem, no sentido da vida, na harmonia eterna,
na qual se pretende o Universo que está em Deus e que é ele próprio Deus,
até o infinito. Estou no bom caminho? Imagina que, em definitivo, esse
mundo de Deus, eu não o aceito e, embora saiba que ele existe, não o
admito.
97
Na opinião de Ivan o amor de Cristo pelos homens é uma espécie de milagre
impossível na terra.
98
Deus para ele é apenas uma hipótese, mas essa perda da o atormenta:
―Tenho sede de viver, e continuo vivendo apesar da lógica.‖
99
94
Cf.Id. ibid.p.753. Entendimento euclidiano é o entendimento racional, exato.
95
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 177. Ivan dialogando com Aliocha.
96
Id. ibid.p.753.
97
Id.ibid. p.177.
98
Id. ibid. p.178.
99
DOSTOIEVSKI, F. apud.
FRANK, Joseph. Dostoievski. O Manto do profeta. p. 751.
85
A ―razão euclidiana‖ atuará de forma que não haja sofrimentos, nem responsabilidades
e nem tampouco liberdade. Esta ―razão euclidiana‖ é o sistema do inquisidor, isto é, a
organização humana (formigueiro) e a destruição da liberdade da alma.
A rebelião contra Deus traz inevitavelmente a destruição da liberdade. A
revolução fundamentada no ateísmo conduzirá, por força, a um despotismo
ilimitado. Achamos idêntico o princípio na inquisição católica e no
socialismo por imposição; é a mesma negação da liberdade do espírito e a
incredulidade em Deus e no homem, no Deus-Homem e no Homem-
Deus.
100
No final da lenda, o Grande Inquisidor se rende ao silêncio de Cristo.
...o inquisidor se cala, espera um momento a resposta do prisioneiro. Seu
silêncio lhe pesa. O cativo escutou-o todo o tempo, fixando-o com seu olhar
penetrante e calmo, visivelmente decidido, a não lhe dar resposta. O velho
queria que ele dissesse alguma coisa, ainda mesmo palavras amargas e
terríveis. De repente, o prisioneiro aproxima-se em silêncio do nonogenário
e beija-lhe os lábios enxágües. É toda a sua resposta. O velho estremece,
seus lábios tremem, vai à porta, abre-a e diz: ―Vai-te e não voltes mais...
nunca mais!‖ E deixa que ele se pelas trevas da cidade. O prisioneiro sai.
E o velho? O beijo queima-lhe o coração, mas ele persiste na sua idéia.
101
O final da lenda é surpreendente! O silêncio e o beijo de Cristo fazem com que o
Inquisidor estremeça, embora não mude de idéia. O silêncio é a liberdade em não responder, a
escolha de não objetivar a vida, o silêncio fere a polifonia, pois nele se mostra o amor através
do beijo. O objetivo do Inquisidor é acalentar a razão, dar fôlego a ela e isso é uma
característica do homem ocidental, ―negar Deus por não conseguir chegar a uma idéia
racional sobre ele.‖
102
O silêncio de Cristo convence mais que toda a argumentação lógica do
Inquisidor. Aliocha tem a mesma atitude em relação a seu irmão Ivan. ―Não renegarei esta
fórmula de ‗tudo é permitido‘ e serás tu então que me negarás, não é? Aliocha aproximou-se
dele e beijou-lhe suavemente os lábios.‖
103
100
BERDIAEFF, N. El credo de Dostoievski. p. 208, 209.―la rebelión contra Dios trae indefectiblemente la
destrucción de la libertad. La revolución cimentada en el ateísmo ha de conducir, por fuerza, a un despotismo
ilimitado. Hallamos idéntico principio en la inquisición católica en el socialismo por imposición; es la misma
negación de la libertad del espíritu y la incredulidad en Dios y el Hombre, en Dios-Hombre y en el Hombre-
Dios.‖
101
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p.196.
102
PONDÉ, Luis. Critica e profecia. A filosofia da religião de Dostoievski. p.271.
103
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p.196.
86
A resposta de Dostoievski ao niilismo e ao ceticismo é sempre o amor.
104
Para o
intelecto não sustentação em receber o amor como resposta, porém para Dostoievski a
resposta para o problema humano, para as contingências da vida, não esna razão, mas no
amor. Somente o humano livre é capaz de amar, de responder com o silêncio e com um beijo
as ―malditas questões humanas‖, sem se perder nas múltiplas vozes de sua consciência.
Conclusão
Este capítulo se propôs a trabalhar a cristologia literária em Dostoievski e as leituras
em O Idiota e em Os irmãos Karamazovi. Seu desenvolvimento se deu a partir da análise da
influência de textos bíblicos na literatura de Dostoievski ou os palimpestos. Após esta análise,
seguiu-se as leituras feitas em O Idiota e Os irmãos Karamazovi. Dessas obras foram
apresentadas um breve resumo e suas personagens principais.
Em O Idiota, notamos a construção da personagem Michkin, que Dostoievski
compreendia como ideal de homem positivamente belo. Sua cristologia literária foi
apresentada através do príncipe Cristo. Michkin é o modelo humano de compaixão, o
homem livre, o belo em um ―idiota‖.
em Os irmãos Karamazovi a principal discussão de Dostoievski sobre a liberdade
pautou-se na lenda do Grande Inquisidor‖, no diálogo entre o inquisidor e Cristo. A resposta
de Cristo ao inquisidor é o silêncio, caracterizando assim a afirmação da liberdade. Alguns
conflitos foram trabalhados, como o dilema entre a e razão, e a crítica ao socialismo. O
capítulo encerrou com um elemento fundamental na compreensão da liberdade em
Dostoievski: o amor. O poder do amor na liberdade, capaz de calar o inquisidor e responder as
malditas questões humanas. Esse ponto é fundamental para a reflexão teológica, em especial a
que é feita no contexto latino americano. Por esses e por outros motivos, iremos apresentar na
seqüência a compreensão da liberdade de Dostoievski em correspondência com a teologia
latino americana.
104
Cf. PONDÉ, Luis. Critica e profecia. A filosofia da religião de Dostoievski. p.272.
87
III A COMPREENSÃO DA LIBERDADE EM DOSTOIEVSKI E O DIÁLOGO COM
A TEOLOGIA LATINO AMERICANA
Este último capítulo trabalha a compreensão da liberdade em Dostoievski e sua
correspondência com a teologia, em especial com a latino americana de Juan Luis Segundo e
José Comblin.
Como ponto de partida uma discussão sobre a liberdade incriada, caracterizada
como presença de Deus ou Imago Dei, uma ―liberdade sobrenatural‖, termo utilizado por
vários interpretes e explicitado ao longo do texto. A partir do tema da liberdade, desdobra-se
todo o capítulo, tendo como seqüência a liberdade parametrizada pelo amor. O amor é o
parâmetro para esta liberdade, pois quem ama é livre. Em seguida é discutida a relação
entre a liberdade e os determinismos. Os determinismos, que podem ser filosóficos,
teológicos, existenciais, naturais ou de outras dimensões. São comparáveis, como na obra de
Dostoievski, a ação do inquisidor em relação a Cristo, o qual tenta propor a supressão da
liberdade, mas é vencido pelo silêncio de Cristo. Dostoievski não aceita determinismos.
Após a discussão sobre a liberdade e os determinismos, o texto segue apresentando o
Cristo da liberdade na antropo-teologia de Dostoievski, onde, a partir de então, aponta-se para
a construção de uma estrutura de valores. Em seguida é tratada a relação da liberdade com o
mal. Especificamente nesse item é trabalhada uma aproximação de Dostoievski com o
pensamento de Bruno Forte.
Os terceiro e último momento coloca em diálogo a liberdade incriada com a vocação
para a liberdade, com a profecia e com a vida. O diálogo neste momento se dá entre
Dostoievski e especificamente José Comblin. As distâncias entre oriente e ocidente, literatura
e teologia, são minimizadas. Dostoievski aproxima esses mundos.
88
3.1. A liberdade Incriada
Dostoievski, como afirmado, provoca discussões teológicas em seus textos. Sua
cristologia, por exemplo, aponta para um Cristo humano, livre e referencial de liberdade. A
liberdade se apresenta como elemento correspondente entre a literatura e a teologia. Podemos
afirmar que seus textos vivenciam aquilo que Juan Luis Segundo chama de ―criar
evangelhos‖.
1
Esse ―criar‖ evangelhos em Dostoievski, dá-se na interface de sua literatura, no
fazer teológico a partir de um olhar livre do claustro teológico das instituições, pensado a
partir da cultura russa do Séc.XIX e das inquietações humanas.
Bem diferente é o caminho religioso. Zombam da obediência, do jejum, da
oração, entretanto é a única vida que conduz à verdadeira liberdade; suprimo
as necessidades supérfluas, domo e flagelo pela obediência minha vontade
egoísta e orgulhosa, chego assim, com a ajuda de Deus, à liberdade do
espírito e com ela a alegria espiritual!
2
É possível, então, interpretar Dostoievski como teólogo da liberdade.
Dostoievski não é um teólogo da libertação, entendendo-se esse movimento
como aquele envolvido com a transformação histórica da sociedade das
instituições injustas etc. Mas, sem dúvida, ele é um teólogo da liberdade.
Para ele, as duas palavras que estariam mais próximas da síntese da condição
humana seriam: amor e liberdade. Contudo, tanto a liberdade quanto o amor
não têm lugar na representação. A liberdade é absolutamente sobrenatural;
trata-se da liberdade teológica, não da liberdade construída no limite dos
fatores sociais.
3
Não se trata de uma libertação, no sentido de libertação social e política, mas uma
liberdade sobrenatural ou, como afirma Berdiaeff, liberdade incriada, isto é, ―liberdade
qualificada pela presença de Deus.‖
4
Essa liberdade é intratável a norma e se revela como
grande transtorno ontológico dramático na condição humana.
5
Uma liberdade que causa
medo.
1
SEGUNDO. Juan Luis. História perdida e recuperada de Jesus de Nazaré. Dos Sinóticos a Paulo. São Paulo:
Paulus, 1997. p.179.
2
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. Tradução: Natália Nunes e Oscar Mendes. São Paulo: Abril
cultural, 1971. p. 230. Extratos das conversações e da doutrina do stariets Zózima.
3
PONDÉ, Luis F. Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. São Paulo: Ed 34. 2003. p. 132.
4
BERDIAEFF,N. apud. SAKAMOTO, Jacqueline. Filosofia da religião em os Demônios de Dostoievski.
(NEMES/PUCSP). Extraído do site www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st6/sakamoto em 08/05/2009. A citação
destacada é a interpretação da autora do termo ‗liberdade incriada‘ de Berdiaeff e está na nota de rodapé de seu
artigo.
5
Cf. PONDÉ, Luis Felipe. Crítica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. São Paulo: Ed.34, 2003.
p.38.
89
3.1.1. Liberdade vivida na fé
Dostoievski mostra isso quando o inquisidor confronta Jesus: ―[...] queres ir para o
mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e ignomínia
naturais deles os impedem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo...‖
6
. Uma
liberdade que inquieta, que causa dor. ―Não há nada mais sedutor para o homem do que o
livre arbítrio, mas também nada de mais doloroso.‖
7
A liberdade é sempre associada à dor
pelo inquisidor, que a chega chamar de carga terrível.
Comparemos o inquisidor com a crítica teológica de Juan Luis Segundo. A liberdade é
o tema correspondente entre eles. A livre, o amor livre, a liberdade não condicionada pelo
milagre e nem pela negação da condição humana.
Tu não desceste da cruz, quando zombavam de ti e gritavam-te, por derrisão:
‗Desce da cruz e creremos em ti‘. Não o fizeste, porque de novo não quiseste
sujeitar o homem por meio de um milagre. Desejavas uma livre e não
inspirada pelo maravilhoso. Tinhas a necessidade de um livre amor e não dos
transportes servis dum escravo aterrorizado.
8
(Grande Inquisidor
Dostoievski).
...graças a Deus, não desce da cruz! Parece dizer àqueles que contemplam
sua sorte: se não aceitas o escândalo e a necessidade da condição humana,
que não admite escapatórias diante do sofrimento e da morte, é inútil que
pretendais crer em mim
9
(Juan Luis Segundo).
O humano para Dostoievski não é um ―ser de natureza‖, mas de ―sobrenatureza‖.
10
A
negação dessa sobrenatureza nada mais é que a redução e abstração racional.
11
Essa redução
da existência à razão, ao determinismo natural e sistêmico é uma tentativa de negar esta
liberdade.
Essa liberdade incriada se revela como um grande ―transtorno‖ ontológico
dramático na condição humana, brilhantemente tratada em Os irmãos
Karamazov no embate entre o inquisidor e Jesus Cristo (Ivan versus
6
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. São Paulo: Abril
Cultural.1971.p.189.
7
Id.ibid.p.190.
8
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 191.
9
SEGUNDO, Juan Luis. História perdida e recuperada de Jesus de Nazaré. Dos Sinóticos a Paulo. São Paulo,
Paulus, 1997.p. 630.
10
SAKAMOMOTO, Jacqueline. Filosofia da religião em os Demônios de Dostoievski. p.3.
11
Cf. id.ibid.p.3.
90
Aliocha): liberdade, contingência, o Nada incriado que habita o coração do
Homem, facilmente transformado na dolorosa experiência, muitas vezes
denegada, do niilismo ontológico generalizado psicologicamente,
socialmente e espiritualmente [...] Não como escapar dessa liberdade que
nos habita; dela brota, entre outras raízes, nossa Imago Dei insuportável, que
tanto tentamos negar com frágeis instrumentos teóricos que garantiriam
nossa condição plenamente determinada e passível de progresso sistêmico.
12
A descrição que Dostoievski faz de seu herói Aliocha nos ajuda a compreender o
conflito entre a fé e a razão, essa entendida por ele como contraposição à liberdade.
...era aquele rapaz da época mais recente, isto é, leal, ávido de verdade,
procurando-a com fé, e, uma vez encontrada, querendo dela participar com
toda a força de sua alma, querendo realizações imediatas e pronto a tudo
sacrificar com este fim, até mesmo a vida. Entretanto, esses rapazes não
compreendem, desgraçadamente, que sacrificar sua vida é a coisa mais fácil
em muitos casos, ao passo que consagrar, por exemplo, cinco ou seis anos de
sua bela mocidade ao estudo e à ciência não fosse senão para decuplicar
suas forças, a fim de servir à verdade e atingir o fim proposto é um
sacrifício que os ultrapassa. Aliocha só fizera escolher a via oposta a todas as
outras, mas com a mesma sede de realização imediata. Logo que se
convenceu, após sérias reflexões, de que Deus e a imortalidade existem,
disse a si mesmo, naturalmente: ―Quero viver para a imortalidade, não
admito compromissos.‖ Igualmente, se tivesse concluído que não Deus
nem imortalidade, ter-se-ia tornado imediatamente ateu e socialista (porque
o socialismo não é apenas a questão operária ou do quarto Estado, mas é
sobretudo a questão do ateísmo, de sua encarnação contemporânea, a
questão da torre de Babel, que se construiu sem Deus, não para atingir os
céus na terra, mas para abaixar os céus até a terra).
13
Aliocha escolhe um caminho que entende ser o caminho da liberdade. Ele compreende
muito bem o momento em que vive seu país, sua família e sua própria existência. Por isso, ele
é uma personagem que busca encontrar a si mesmo e, essa busca, dá-se na vida consagrada à
fé.
12
PONDÉ, Luis Felipe. Crítica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p.39. Berdiaeff definiu a
liberdade incriada a partir de Meister Eckhart, Jacob Boehme e Dostoievski. Vale deixar registrado na íntegra o
comentário de Pondé sobre a liberdade incriada de Berdiaeff. ―Essa intuição Berdiaeviana, retirada da mística
alemã medieval e barroca, é muito rica, pois busca enfrentar o eterno problema que reúne filosoficamente
conceitos como liberdade ontológica, contingência, fortuna, gratuidade, entre outros. A idéia ortodoxa de que ser
livremente escolhido é componente necessária do Bem está condicionada a essa liberdade incriada: nada que
negue esta liberdade pode ser verdadeiro em se tratando do ser humano. É essa mesma liberdade que se revela
agressiva nos seus efeitos sobre a vida em geral, e o relativismo e a vacuidade ontológica geral são apenas figura
dela.
13
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural.
1971. p.26.
91
3.1.2. A liberdade e a “evolução da modernidade”
Ao pensar a referida escolha de Aliocha pela liberdade em um contexto confrontado
pela razão, pelas ciências modernas, podemos comparar com a contemporaneidade, chamada
por Comblin de ―fase atual da evolução da modernidade.‖
14
De acordo com Comblin:
Na fase atual da evolução da modernidade, todos os absolutos se dissolvem.
A metafísica desaparece. Não mais certezas. Como diz Allan Bloom:
―Hoje entre os universitários uma certeza: que não existe nenhuma
verdade absoluta. Tudo vale um tempo, até certo tempo, tudo é aceitável,
tudo é equivalente.‖ Estamos, assim, numa época de pensamento ―light‖
(leve). Nada pode ser nem afirmado nem negado. Tudo pode ser
―interessante‖. [...] A religião não perde seu valor por causa disto. [...]
Porém, trata-se, no fundo, de religião ―sem Deus‖. A religião é estado
emocional, expressão de subjetividade, espetáculo que envolve e comove e
depois passa, como tudo passa na consciência contemporânea.[...] Diante
deste pensamento ―light‖, Jesus manifesta uma convicção radical. Sabe que
realiza uma vontade absoluta. Sabe que nele uma força que o leva a ser
ele mesmo em toda a sua plenitude. A sua liberdade está na realização da sua
missão. Ali tem de usar e fazer desabrochar todas as virtualidades da sua
humanidade. Não oposição entre a vontade transcendente de Deus e a
liberdade humana. Pois a vontade de Deus é que Jesus seja livre. Não havia
programa traçado de antemão. Jesus vai criando o seu agir de acordo com as
situações em que se encontra. No entanto uma linha fixa, constante e
radical que orienta toda a sua vida: a missão de conduzir para a liberdade
todo o seu povo.
15
Aliocha é uma personagem paradoxal a toda a geração russa de seus dias. Ele anda na
via contrária das ‗ameaças‘ da modernidade, mas faz isto porque trilha pela liberdade.
Assim, da mesma forma, Comblin apresenta o modelo de liberdade em Jesus, que também
anda na via contrária no que podemos chamar de pós-modernidade. Aliocha e a cristologia
apresentada por Comblin confrontam as inconsistências de seus dias e da contemporaneidade
pela via da liberdade.
Além de Aliocha, outra personagem importante, que frisa esta liberdade é Zózima o
stariets. ―Que é um stariets? O stariets é aquele que absorve vossa alma e vossa vontade nas
suas.‖
16
Isto parece contraditório se pensarmos em termos de liberdade. No entanto, é
exatamente nessa direção que Dostoievski aponta a liberdade. ―O penitente submete-se
voluntariamente a esta prova [...] após um longo estágio, vencer-se a si mesmo, dominar-se a
14
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. 4ª edição. São Paulo: Paulus, 2005.p.40.
15
Id.ibid.p.41,42.
16
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p.27.
92
ponto de atingir [...] a liberdade perfeita.‖
17
Essa liberdade perfeita refere-se à liberdade que a
pessoa encontra consigo mesma, que caminha contrário em relação àquelas pessoas vivem
sem encontrar a si mesmas.
18
Para Dostoievski buscar sentido fora da e da imortalidade da alma é o mesmo que
pegar em arma contra si mesmo. Se Aliocha busca sentido na e é apresentado como aquele
que busca a liberdade perfeita, Ivan é o tipo desesperado que trilha pelo caminho oposto ao da
e desenvolve uma relação de amor e ódio pela humanidade. Em Dostoievski o verdadeiro
amor pela humanidade está em Cristo.
A tentativa de substituir a por um idealismo moral seria um abismo sem volta, um
mergulho no niilismo. Da mesma forma, substituir a no Cristo da liberdade pelo
pensamento ‗light‘, onde nada pode ser afirmado e nem negado, seria um mergulho em um
relativismo que contraria o humano e a liberdade. A única maneira de não mergulhar no
abismo do niilismo e do relativismo é assumir a liberdade incriada e parametrizá-la pelo
amor.
19
3.1.3. Liberdade parametrizada pelo amor
O amor é o parâmetro para a liberdade em Dostoievski. Meus irmãos, não temais o
pecado, amai o homem mesmo no pecado, é isto a imagem do amor divino, amor que não
maior na terra.‖
20
Essa liberdade incriada, sobrenatural, é uma liberdade que vence o egoísmo.
Este é o amor vivenciado pelo príncipe Michkin. Amor que parece utópico e inalcançável.
―Não é fácil atingir o paraíso aqui na terra mas o senhor teima em contar encontrá-lo. O
paraíso é negócio difícil, príncipe, muito mais difícil do que parece ao seu bom coração.‖
21
Após um diálogo de Michkin com a personagem Évguénii Pavlovitch, este é
interpelado por Aglaia, a qual dirige a palavra ao príncipe e a todos os presentes.
17
Id.ibid.p.27.
18
Cf.Id.ibid.p.27.
19
Id.Ibid.p.189.
20
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 233. Palavras do stariets Zózima.
21
DOSTOIEVSKI, F. O Idiota. Trad. José Geraldo Vieira. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 378.
93
Não aqui ninguém, ninguém que valha o seu dedo mínimo, nem o seu
espírito, nem o seu coração! É mais honrado do que qualquer deles, mais
nobre, melhor, mais bondoso, mais inteligente do que qualquer deles!
Alguns nem mereceriam se abaixar para levantar o lenço que o senhor
deixasse cair!... Por que humilhar-se pôr-se abaixo deles? Por que de
falsear tudo o que é seu? Por que é que não tem orgulho?
22
Essa condição de Michkin incomoda e inquieta. Para Dostoievski o amor é enxertado
pela graça divina e possibilita a construção de um mundo. Esse amor não pode ser
naturalizado, ou seja, não é definível, ele é sobrenatural.
23
Admitimos, portanto, que existe a dificuldade de identificar esse amor em Dostoievski.
É importante destacar que identificar o amor é muito diferente de defini-lo. Esse amor cria,
possibilita uma construção de vida.
Mesmo certos dessa dificuldade, comparamos esse amor em Dostoievski com a
afirmação de Juan Luis Segundo: ―a cada homem é dado um mundo para ser feito.‖
24
Segundo faz menção da teologia no livro de Levítico, onde para o homem, o amor de si
próprio é a máxima medida possível a qual se pode pedir no amor com os demais. Em
seguida, apresenta a passagem de Lucas 10, 36-37 sobre a parábola do Bom Samaritano. A
parábola apresenta quem é o ‗próximo‘. Nos chama a atenção afirmando que ―a proximidade
não é condicionamento do amor, mas criação do amor. O próximo não é quem já está perto; é
aquele que se acerca do outro.‖
25
Diante de uma percepção diferente de quem seja o próximo, Lucas, na perspectiva de
Segundo, apresenta a mesma fórmula de Levítico, onde o amor ainda é um amor de si próprio.
Na parábola, não se abandona o amor a si próprio para se tornar próximo do que está longe.
26
a teologia joanina, conforme situa Juan Luis Segundo, apresenta uma fórmula muito mais
22
Id. Ibid. p. 380.
23
PONDÉ. Luis Felipe. Crítica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p.154. De acordo com Pondé,
não é fácil identificar o amor sobrenatural em Dostoievski. Ele Aponta para a lenda do ‗Grande Inquisidor‘e
comenta sobre este amor: ―Se você ama tanto os seres humanos, porque você não faz logo aquilo que desejam,
que é parar de sofrer?‖ E Jesus faz tudo o contrário. Que espécie de amor é esse? Ele é um incompetente, é um
Michkin. Se não fosse pela ressurreição, na qual alguns acreditam, o que sobraria de Jesus? A idéia de que Deus
encarna em um ser humano e se dá mal desse jeito é um paradoxo. Na realidade, isso é interessante no
cristianismo: o paradoxo que não tem acordo. Como vamos identificar esse amor?‖
24
SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e
teologia. Trad. Magda Furtado de Queiroz. São Paulo: Paulinas. 1995. p.195.
25
Id. ibid. p.198.
O próximo na concepção de Levítico era aqueles que tinham os mesmos interesses e defendiam as mesmas
coisas que os israelitas. Por isto é uma estrutura onde o eu ou o egoncentrismo é presente.
26
Cf. Id. ibid. p.198.
94
radical. ―Este é o mandamento, amai-vos uns aos outros como eu vos amei, (porque) ninguém
tem maior amor do que aquele que a vida por seus amigos.‖ (Jo 15,12-13).
27
O Evangelho
de João, conforme já mencionado, é o Evangelho de Dostoievski.
Em O Idiota, a personagem Ippolít - jovem e tuberculoso - faz um discurso sobre a
vida. Em um determinado momento ele destaca sobre a liberdade e o amor. ―Quem quer que
ataque a caridade comecei ataca a natureza humana e lança seu desprezo sobre a
dignidade pessoal.‖
28
Para Ippolít a bondade individual permaneceria sempre, pois se trata de
um impulso da pessoa, a inclinação viva de uma pessoa que quer influenciar outra. Ele cita o
exemplo de um general, que vivia em Moscou e era conselheiro de Estado. Ele visitava os
prisioneiros e os tratava com dignidade, perguntava suas necessidades, chamava cada um de
‗meu caro‘ e dava conselhos, como um pai. Costumava presentear os presos com dinheiro,
livros, materiais de higiene pessoal. Os prisioneiros se sentiam em ‗pé de igualdade‘ diante
dele. O general lhes falava como um irmão e era respeitado como um pai. Ficou conhecido
em toda a Rússia e Sibéria por sua atitude e até os mais rudes prisioneiros sentiam saudades
do General. Ippolít ainda menciona um assassino cruel que estava preso, um homem frio, que
havia matado doze pessoas, sendo seis crianças. Esse mesmo homem, vinte anos depois, ―um
dia, a propósito de nada, deu um suspiro e exclamou: ‗Que fim terá levado nosso Velhinho
General‘? Viverá ainda? Tomara que sim...‖
29
Ippolít ao mencionar o assassino que tem saudades do general, comenta o poder da
influência desse ‗Velhinho General‘.
Mas, me pergunto eu, que espécie de germe teria o velho ‗General‘ deixado
cair na alma desse criminoso para, vinte anos depois, tal monstro sentir
saudades de um homem de bem? Como explicarias tu, Bákhmutov, o sentido
da associação de uma personalidade com uma outra a ponto de influir no
destino dela? Sabes que levamos a vida inteira sem se dar conta da infinita
multidão de divertículos fechados na nossa alma. Não sabemos nada de nós
mesmos. O mais hábil jogador de xadrez, o mais profundo, somente é capaz
de saber de antemão no máximo alguns lances. Julgou-se um prodígio certo
campeão francês capaz de deduzir a mecânica de dez lances imediatos.
Quantos lances, pergunto eu, somos capazes de perceber? Ao espalhar o
germe, ao espalhar a tua caridade, a tua bondade, estás dando, de uma forma
ou de outra, parte de tua personalidade e tomando para o teu uso parte da
alheia. Ficas em mútua comunhão com alguém e, à medida que crescer o teu
27
Id.ibid.p.198.
28
DOSTOIEVSKI, F. O Idiota. p. 447.
29
Id.ibid.p.447,448.
95
desvelo, irás sendo recompensado com a verificação das mais estupendas
descobertas.
30
Ippolít é um doente próximo à morte e diante dessa situação, faz algumas reflexões.
Dostoievski destaca o amor e o sofrimento nessa personagem. Como o amor se faz presente
na dor? Como a dor se faz presente no amor? A dor faz parte de nossa responsabilidade
criadora. ―Sem ela nada faríamos ou giraríamos, tranqüilos, numa criação onde ninguém
necessitaria de ninguém.
31
No entanto, o homem só é criador, a semelhança de Deus, quando
ama e cria condições para o amor.
32
Aqui está também a máxima de Agostinho: ―Quer ser
livre, ame‖.
33
Nesse ponto há uma forte aproximação entre Dostoievski, a teologia agostiniana
e Juan Luis Segundo.
Amar é estar sujeito a dor. Ninguém pode sujeitar o ser que ama.
Por acaso, amar não é tornar-se dependente de uma pessoa que, quanto mais
amada, mais pode causar-nos dor? Se não existisse a dor, e se cada um de
nós não a pudéssemos evitar aos demais, através de projetos de justiça,
solidariedade e amor, cada um de nós caminharia independente e indiferente
a todos os demais [...] Então, não é preciso imaginar um desvio do plano
divino em cada dor que a natureza nos inflige, nem poder dirigir perguntas
angustiantes e cruéis.
34
Compreender a vida apenas a partir da razão é ignorar a liberdade e o amor. A razão
como única fonte para interpretar a vida é um reducionismo que beira ao determinismo,
impossibilitando outras formas de compreensão, como por exemplo, a fé e com isto negando a
liberdade. Admitir um conhecimento emotivo, um conhecimento por meio do valor, por meio
da simpatia e do amor, não quer dizer negar a razão.
35
Nas palavras do General Ívolguin ao
príncipe Michkin: ―Um coração como o seu não pode deixar de compreender um homem que
sofre. Príncipe, o senhor é idealmente generoso. Que valem os homens, diante do senhor?‖
36
30
Id.ibid.p.448.
31
SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e
teologia. p.237.
32
Cf. SOARES, Afonso M. Ligório. Juan Luis Segundo. Uma teologia com sabor de vida. São Paulo: Paulinas,
1997. p. 86.
33
AGOSTINHO apud PONDÉ, Luis F. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 196.
34
SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e
teologia. p.34.
35
Cf.BERDIAEFF, N. Cinco meditaciones sobre la existencia. Soledad, sociedad y comunidad. Títulos del
original ruso: El yo mundo de los objetos. Colección Espíritu y verdad‖. Ediciones ALBA. Editorial ―La
aurora‖ México. D.F. Buenos Aires. 1948.p.176.
36
DOSTOIEVSKI, F. O Idiota. p. 537.
96
Esse relacionamento de Michkin com as pessoas é a mais vívida mostra de sua
liberdade. Um homem livre é capaz de compreender o sofrimento do outro. ―Um homem não
é livre se é incapaz de se relacionar e de tecer laços com os outros [...] Ao iniciar a
convivência com ―outros‖, o homem ou a mulher torna-se criador ou criadora de liberdade.‖
37
O compreender e amar o outro implica em fraqueza, pois quem ama se sujeita a
fraqueza. Michkin é fraco porque ama, mas somente as pessoas livres sabem lidar com a
fraqueza. Além de Michkin, Dostoievski apresenta o menino Aliocha com esta liberdade, esse
amor e esta fraqueza. Os heróis de Dostoievski, Michkin e Aliocha, são fracos. Mas é
justamente nessa fraqueza que evidenciam o amor.
O pensamento teológico de José Comblin percorre este mesmo caminho de
Dostoievski, o qual percebe o paradoxo da força do amor na fraqueza. Os fracos são sujeitos
ao amor, por isso são livres!
Deus torna-se fraco porque ama. Quem mais ama é sempre o mais fraco [...]
Nessa fraqueza a pessoa vence todo o egoísmo, todo o desejo de prevalecer,
toda a preguiça ao aceitar maiores desafios. Exige mais de si própria, vai
mais longe, além de suas forças. ‗Ninguém tem maior amor do que aquele
que a vida por seus amigos‘ (Jo 15,13). está também a expressão
suprema da liberdade.
38
Para Comblin este amor é expresso na compaixão. Jesus Cristo queria ser livre e sua
liberdade estava no serviço ao próximo. Comblin também cita o exemplo da parábola do Bom
Samaritano - mencionado anteriormente - e destaca que o samaritano se mostra um homem
livre, pois cuida do assaltado. Afirma ainda que a compaixão pelo outro despertou Jesus para
a liberdade.
39
Cristo foi enviado ao mundo para incitar a humanidade a lutar contra a lei da
personalidade, e o único pecado admitido por Dostoievski é o fracasso no cumprimento da lei
do amor.
40
Dentro dessa mesma direção, Juan Luis Segundo, ao trabalhar a teologia paulina,
37
COMBLIN, José. Cristãos rumo ao Século XXI. Nova caminhada de libertação. 4ª edição. São Paulo: Paulus,
1996.p.88,89.
38
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. 4ª edição. São Paulo: Paulus, 2005. p. 67.
39
Id.ibid. p. 40.
40
Cf.FRANK.Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação.1860 a 1865 Trad. Geraldo G. de Souza. São Paulo:
Edusp, 2002, pp.423,424.
97
destaca que o único mandamento cristão é o amor mútuo. ―Não há outro dever (moral) sobre a
terra, a não ser o amor mútuo (Gl 5,14; Rm 13,8-10)‖
41
3.1.4. A liberdade e os determinismos
As malditas questões humanas e a possibilidade da imortalidade da alma sempre
inquietaram Dostoievski. Essas questões estão relacionadas à sua compreensão de liberdade,
que não se prende a determinismos. Os determinismos científicos, filosóficos, teológicos ou
políticos, sempre tentaram dar garantias ou fundamento ao ser humano.
42
O socialismo, por exemplo, seria um determinismo, um ‗bem‘ imposto, e, para
Dostoievski, bem imposto não é bem. O inquisidor ilustra através das tentações de Cristo no
deserto: milagre, mistério e autoridade.
43
O que o inquisidor tenta fazer é transformar ou
reduzir esses elementos à mágica, à mistificação e à tirania.
44
Facilidades e imposição, estas
eram as reais propostas do inquisidor.
É possível perceber esses elementos na teologia, desde a Idade Média e, em especial,
no Ocidente. É nítida a influência da filosofia na teologia em Tomás de Aquino, que lia a
teologia a partir de Aristóteles. De acordo com esse pensamento, Deus é um motor imóvel e
mantém uma ordem sistêmica no universo. A própria vida é compreendida a partir dessa
ordem, o que caminha na direção contrária do pensamento polifônico de Dostoievski.
Esta é uma teologia construída a partir da lógica. Juan Luis Segundo descreve isso ao
afirmar que:
[...] a liberdade para a filosofia medieval constituía-se em algo cuja
existência não podendo ser ignorada, no fundo tampouco podia justificar-se.
Se o bem estava em acatar a ‗lei natural‘, isto é, a ordem colocada por Deus
41
SEGUNDO, Juan Luis. O Caso Mateus. Os primórdios de uma ética judaico - cristã. Trad. Magda Furtado
Queiroz. São Paulo. Paulinas, 1997.264.
42
PONDÉ. Luis Felipe. Crítica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 190. Ao comentar sobre a
liberdade na perspectiva de Dostoievski, Pondé afirma que ―a liberdade é problemática porque é sem
fundamento. E a aventura do ser humano, na realidade, é descobrir que não tem fundamento: a não ser Deus, ele
não tem fundamento.‖
43
Estes itens: milagre, mistério e autoridade foram trabalhados no segundo capítulo desta dissertação.
44
Cf.FRANK, Joseph. Dostoievski. O manto do profeta. 1871-1881. Tradução. Geraldo Gerson de Souza. São
Paulo: EDUSP, 2007. p. 765.
98
no universo, o que podia ser considerado como razão de ser dessa
possibilidade de ‗permanecer‘ imune da obrigação de servir a essa ordem e
ater-se a ela? A lógica mais simples indicava que o não estar sujeito à lei,
nesse campo da causalidade do ser, como no da moral cívica, equivalia ao
mal.
45
O sistema escolástico tomista não reserva lugar para a liberdade, pois esta concepção
de uma ordem definitiva e previamente estabelecida por Deus faz com que o cristianismo
aprecie mais o determinismo do que a liberdade. O determinismo, no entanto, deveria ser
visto como inimigo da cristã, afinal o cristianismo se originou como uma religião fundada
na liberdade.
46
Como conciliar essa imagem de Deus com a liberdade? O pensamento teológico de
Dostoievski se baseia em um humano tão livre quanto Deus, e que não se prendem a
determinismos. Para ele, o ser humano não pode ser enquadrado em nenhuma teoria que a
queira definir, apenas é possível ouvi-lo, nunca interpretá-lo.
47
Dostoievski rejeita qualquer determinismo. O que interessa para ele é o ser humano
que se volta contra a ordem natural, a ordem estabelecida pelo universo. Michkin é alguém
que se volta contra essa ordem.
- Está ouvindo, príncipe? perguntou Nastássia Fiíppovna, voltando-se. É
assim que um mujique arrebata a noiva! É porque bebeu muito! E é sinal de
um grande amor! E não se sentirá envergonhado depois, príncipe, ao se
lembrar que sua noiva quase saiu com Rogójin? Vós estáveis com febre e
estais ainda agora em delírio. E não se sentirá enrubescer quando lhe
disserem depois que sua mulher viveu com Tótskii no papel de amante? -
Por que ei de me envergonhar?...Não foi vossa vontade ter estado com
45
SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e
teologia. p.155.
46
Cf.BONELLI, Marco Antonio Gusmão. A liberdade cristã em Santo Agostinho e Juan Luis Segundo:
confronto entre duas visões da liberdade e suas implicações para a vida cristã nos dias de hoje. Orientador:
Alfonso García Rubio. Tese (Doutorado em Teologia). Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008.
p. 181.
47
PONDÉ. Luis Felipe. Crítica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. pp 139-141. Pondé aponta
para três grandes inimigos de Dostoievski. O primeiro é o mecanicismo, a idéia da causa e feito. O fazer algo e
calcular o resultado a partir da ação (ação e reação ou causa e efeito) não acontece em Dostoievski. Para ele o ser
humano é livre. O mecanicismo retrata o ser humano tentando evitar a liberdade, pois é ―insuportável ser livre‖.
O segundo inimigo destacado por Pondé é fisiologismo. O fisiologismo é a idéia de naturalismo como ordem.
Para o fisiologismo é possível captar esta ordem, isto é, afirmar o lugar do ser humano nesta ordem, o que é
inconcebível para Dostoievski, pois ao ―assumir-se como ente da natureza, o ser humano se perde.‖ Percebe-se
aqui a influência ortodoxa em Dostoievski. Para a Ortodoxia um dos grandes pecados ―é a auto-pistis, a
suficiência, a idéia de que o ser humano seja pensado como um ser autônomo com relação ao sobrenatural.‖ O
terceiro e último inimigo de Dostoievski apontado por Pondé é a teoria do meio. A teoria do meio é a idéia da
ordem social, que tenta explicar o ser humano a partir de causas sociais.
99
Tótskii. E nunca me exprobrará por isso? Nunca. Olhe lá...Não
responda pela vida inteira. Nastássia Filippovna disse o príncipe,
vagarosamente e como se estivesse compadecido dela - , acabei de dizer-vos
ainda agora que tomaria vosso consentimento como uma honra conferida a
mim e a o a vós. Sorristes àquelas palavras e houve quem risse também e
que me tenha tornado ridículo, eu próprio! Mas penso sempre que entendi o
sentido de honra e, portanto, estou certo de que o que disse é verdade. Vós
vos quisestes arruinar ainda agora irrevogavelmente. E nunca vos perdoaríeis
por isso, depois. Mas vós não mereceis censura alguma. Vossa vida não pode
ser arruinada assim. Que importa que Rógojin tenha aparecido e que Gavríl
Ardaliónovitch vos tenha ludibriado? Por que haveis de persistir nessa
obstinação? [...] Sois altiva Nastássia Filippovna; talvez seja tão infeliz que
realmente vos cuidais digna de censura. Precisais bem quem olhe por vós,
Nástassia Filippovna. Eu olharei por vós. Ainda esta manhã, ao ver o vosso
retrato, senti uma coisa assim como se vos estivesse reconhecendo, como se
vos tivesse socorrido...Respeitar-vos-ei toda a minha vida, Nastássia
Filippovna. O príncipe acabou. E tinha o ar de se estar lembrando de uma
coisa súbita. Enrubesceu e então teve consciência da classe de gente em cuja
presença dissera aquilo. Ptítisin abaixou a cabeça, humilhado. Tótskii pensou
consigo mesmo: ―É um idiota, mas sabe que a adulação é o melhor meio de
se prender uma pessoa, e faz por instinto.‖ O príncipe notou em um canto
também, os olhos de Gánia, fulgurando para ele como se o quisessem
consumir. Que grande coração! Pronunciou Dária Aleksiéievna,
emocionadíssima.
48
Michkin não se limitava a esta ‗ordem‘ social. Ele amava Nastássia Filippova com um
amor sobrenatural e livre. Para ele seria possível a reconstrução do mundo e da vida de
Nastássia Filippovna. Não via nela censura, culpa, mas apenas uma mulher necessitada de se
encontrar. Por causa dessa compreensão de vida, que transcendia a ordem social, excludente e
determinista de seus dias, Michkin era tido como um idiota.
O contexto em que Nastássia Filippovna vivia não lhe permitia tal mudança, era um
contexto determinista. Ela não conseguia se ver livre desse determinismo que lhe amarrava e
nem tampouco se sentia livre para viver sem culpa: ―Eu sou uma desavergonhada rameira!
Fui concubina de Tótskii... Agora príncipe, case, mas é com Agláia Epanctchiná!‖
49
Romper com os determinismos requer caminhar na liberdade. Mais uma vez Juan Luis
Segundo se aproxima de Dostoievski, pois entende que o caminho da liberdade não é fácil,
pelo contrário, é antes de tudo doloroso, exige coragem, onde a cada pessoa é dada um mundo
a ser refeito e completado.
50
48
DOSTOIEVSKI, O idiota .p. 191,192.
49
Id.ibid.p.192.
50
Cf. SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e
teologia. p. 195.
100
Zózima deixa registrado algumas lembranças de sua vida. Uma dessas lembranças é a
de seu irmão, que morreu ainda jovem. Estava muito doente, mas mesmo diante da iminência
da morte, algo que seria inevitável diante da gravidade da doença, ele transcende a esse
determinismo existencial.
Diante do doutor Eisenschmidt, um velho alemão, aquele jovem pergunta: ―Como é,
doutor, viverei mais um dia?‖ O médico às vezes brincava: ―Viverás mais que um dia, meses
e anos!‖ A resposta do jovem ao médico aspira liberdade: ―Para contar os dias, basta um dia
ao homem para conhecer toda a felicidade.‖
51
O que interessa a Dostoievski é o destino do homem, mas do homem que se ergue
contra a ‗ordem‘ estabelecida, que resiste a qualquer determinismo.
52
Juan Luis Segundo em
sua perspectiva teológica enfatiza o paralelo entre a criação e o que ele chama de facilidade
dos determinismos.
Todos os nossos projetos são uma mescla de omissão, cumplicidade e
pecado, por um lado; e de amor, por outro (cf.Rm 7,25). Por isso, quando a
história visível bater à porta de Deus, para ser admitida nos ―novos céus e
nova terra‖ (2Pe 3,13; Ap 21,1), o juízo lhe aplicará o fogo, que destruio
―feito‖ pelo egoísmo, e somente deixará subsistir e penetrar o que, de nossos
projetos, se deve ao amor (cf. I Co 3,10-14). É essa vitória qualitativa que
permite a Paulo falar da salvação ―absolutamente‖ universal (como escreve
G. Martelet). Mas, também, permite a Paulo concluir que o sofrimento da
existência e da história presente (que desfaz entre nossos dedos) não pode ter
comparação com a grandiosidade que se descobrirá nessa mesma história,
quando aquilo que foi criado seja separado daquilo que foi concessão à
facilidade dos determinismos.
53
Também com esta percepção, José Comblin, ao comentar sua compreensão bíblica,
interpreta a liberdade como ―imitação de Deus‖
54
, ou seja, liberdade é a liberdade de Deus.
Ela proporciona a capacidade do ser humano construir-se a si mesmo a partir do centro de si
51
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 212.
52
BERDIAEFF, N. apud. SAKAMOTO, Jacqueline. Filosofia da religião em os Demônios de Dostoievski. p.
5.Para Berdiaeff o que mais interessa a Dostoievski é o destino do homem que, possuindo a liberdade, se perde
fatalmente no arbitrário. então se manifesta a profundidade da natureza humana. O segredo desta
profundidade não se pode revelar no decurso de uma existência normal, bem estabelecida sobre um solo firme.
Não, no momento em que o homem se ergue contra a ordem objetivamente estabelecida do universo, se
arranca da natureza, das suas raízes orgânicas e manifesta seu arbitrário, só então seu destino interessa a
Dostoievski.
53
SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e
teologia. p. 233,234.
54
COMBLIN, José. A força da palavra. “No princípio havia palavra.” Petrópolis: Vozes. 1986, p.62
101
próprio (não sem Deus), ―constrói-se no diálogo e na colaboração, na solidariedade com o seu
próximo.‖
55
O caminho dos determinismos nega e impossibilita essa construção.
O cristianismo de Dostoievski é o cristianismo do Deus-Homem que afirma a
aproximação e união entre o princípio divino e humano na liberdade. Por isso, não é possível
definir o ser humano.
56
O humano para Dostoievski é inacabado e precisa ser construído. A
tentativa de tornar objeto ou definir o humano é teologicamente algo que vem do Demônio, na
compreensão de Dostoievski.
57
A tentativa de definir o humano é o mesmo que colocá-lo
dentro de uma lógica, porém, um ser inacabado e infinito, não cabe dentro de uma lógica, pois
a ―lógica é figura do finito, do impermanente.‖
58
A literatura de Dostoievski ultrapassa qualquer sistematização, ela aponta para um
abismo, num ―universo sem referências‖.
59
Podemos afirmar que esse universo é não limitado
a lógica e a determinismos, pois é indefinível e polifônico.
Dostoievski caminha pela compreensão teológica do Cristo do ―Grande Inquisidor‖. O
Cristo no ―Grande Inquisidor‖ é o Cristo do silêncio, que quebra qualquer tentativa de
definições, sendo ele o próprio referencial de sua mensagem.
Nesse mesmo sentido, Comblin argumenta que Jesus é o próprio sinal da liberdade.
Segundo ele, alguns fundadores de religião, como Buda, Maomé e até mesmo alguns
reformadores, como Lutero e Calvino, publicaram uma mensagem independente deles
mesmos. Cristo, porém, não veio trazer uma mensagem de liberdade, mas chamar para a
liberdade, sendo ele o próprio apelo.
60
O pensamento de Juan Luis Segundo sobre Deus traz também um parecer muito
próximo de Dostoievski. ―Deus, dentro, então, faz a liberdade verdadeiramente livre das
55
Id.ibid.p.62.
56
PONDÉ, Luis Felipe. Crítica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 148.De acordo com Pondé
―todo indivíduo que pensa encontrar uma definição final para os seres humanos, e põe isso em prática, está em
posição do inquisidor. O simétrico oposto disto, que é o bem, é a fala de Jesus, que é a ―não fala‖: um beijo no
rosto do inquisidor, ou seja, a materialização da idéia do amor mesmo. É por meio do amor que alguém pode
ter identidade; é pelo seu amor por alguém que a fala dessa pessoa deixa de ser uma coisa para você [...]
qualquer cois que defina o ser humano, mesmo que seja boa, é inimiga de Dostoievski.
57
Cf. Id.ibid.p.148.
58
Id. ibid. p.149.
59
Cf. Id.ibid. p.149.
60
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. p. 56.
102
amarras do eu ensimesmado e livre para transcender-se ou para a criatividade amorosa.‖
61
O
egoísmo também se apresenta como um determismo, o ‗eu ensimesmado‘. Quando o egoísmo
é vencido pelo amor, o outro se torna pessoa, é percebido e aproximado. Isto é liberdade!
3.2. A Liberdade e a Construção de uma Estrutura de Valores
A liberdade parametrizada pelo amor e não sujeita a determinismos possibilita a
construção da vida, que se move pela fé, e por isso cria uma estrutura de valores. O ser
humano é, portanto, o responsável nessa construção. Ao contrapor os determinismos,
Dostoievski está colocando o humano como sujeito na condução da vida.
3.2.1. O Cristo na antropo-teologia de Dostoievski
A teologia da liberdade de Dostoievski trilha pela antropologia cristã.
Portanto, não é como uma criança que acredito em Cristo e professo a
nele, mas antes minha Hosana chega através do grande cadinho da dúvida,
como diz o demônio neste mesmo romance de minha autoria. [...] Os patifes
(seus críticos) me provocam com uma em Deus ignorante e retrógrada.
Esses idiotas nem mesmo poderiam sonhar com uma negação em Deus tão
poderosa como é descrita no Inquisidor [...] Minha fé em Deus não é
semelhante à de um louco ou de um fanático. E eles querem me ensinar, e
zombam de meu pouco conhecimento. Sim, a estupidez deles não poderia
sonhar com uma negação tão forte como experimentei. Eles me ensinam!
[...] Ivan Fiódorovitch é profundo, e não um dos ateus contemporâneos que
demonstram, em sua descrença, apenas a mais mesquinha limitação de suas
estúpidas capacidades.
62
A liberdade é uma marca de Deus,
63
por isso a antropologia cristã se mostra mais
sustentável que qualquer outra.
64
―As questões que se referem a Deus são questões do homem,
constituindo um problema humano.‖
65
Essa antropologia se a partir de sua (Dostoievski)
61
HAIGHT, Roger. D. O pensamento de Juan Luis Segundo sobre Deus. In: Juan Luis Segundo. Uma teologia
com sabor de vida. Tradução e organização. Afonso M. Ligório Soares. São Paulo: Paulinas, 1997.p. 40.
62
DOSTOIEVSKI.F. apud FRANK, Joseph. Dostoievski. O manto do profeta. 1871-1881. p. 880,881.
63
Cf.PONDÉ. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p.177.
64
Id.ibid.p.20.
65
BERDIAEFF, N. El Credo de Dostoievski. Aléxis Marcoff. Editorial Apolo, Barcelona, 1951.p.24,27.
―las cuestiones que se refieren a Dios son cuestiones del hombre, constituyendo un problema humano. Y
viceversa: el problema del Hombre Es el problema de Dios.‖ É possível afirmar que esta teologia da liberdade e
103
cristologia, em especial no ―Grande Inquisidor‖, onde Cristo é o símbolo da humanidade e
apresenta o homem como ser de liberdade e consciência.
66
Respeitando as devidas distâncias, consideramos a liberdade na cristologia de Juan
Luis Segundo, em especial, sua teologia paulina, a qual apresenta uma continuação da criação
do Pai, elemento correspondente com Dostoievski.
...Paulo não está dizendo...que o cristão, dono da casa do universo, utilize
sua liberdade de forma anômica para fazer o que quer ou, o que é pior, o que
quer para satisfazer seus desejos e caprichos, paixões e desejos (cf Gl
5:1;4:13; I Co 6:12). Tendo sido feito ―filho de Deus‖ por sua condição de
irmão de Jesus o Filho único - , seu ―espírito de filho‖ leva-o a ser criador
na linha do Pai. Deus deixou nas mãos de seus filhos seu ―campo de plantio‖
ou seu edifício em construção (cf. I Co 3:9), cujos limites são o mundo, a
continuação da criação do Pai criador, como cooperadores (synergoi) dele.
67
Dostoievski apresenta um Cristo que deixa o humano ser humano. Muito embora haja
o referido dilema: liberdade ou felicidade. Liberdade com sofrimento ou felicidade sem
liberdade. ―E a maioria dos homens prefere este segundo caminho.‖
68
A tese de doutorado de Juan Luis Segundo foi Berdiaeff: Uma Reflexão cristã sobre a
pessoa.
69
Se Nicolas Berdiaeff foi o objeto de pesquisa de Juan Luis Segundo, Dostoievski foi
o grande influenciador de Berdiaeff.
Dostoievski teve um significado determinante em minha vida espiritual.
desde muito jovem recebi uma influência de Dostoievski. Comoveu minha
alma mais que nenhum outro escritor ou pensador. E desde então classifico
as pessoas segundo são e não apenas seu espírito. A orientação de minha
consciência, que começou a desenvolver-se logo, encaminhando-se aos
problemas filosóficos e ligada sempre as ―malditas questões‖ de
Dostoievski. Cada vez que releio suas obras me revela novos e diversos
pontos de vista. Sendo ainda muito jovem, o tema de sua obra Lenda do
―Grande Inquisidor‖, penetrou profundamente em minha alma. E minha
primeira invocação a Cristo foi uma invocação a figura do Cristo como o
desta lenda. A idéia da Liberdade sempre foi a base de minha dupla
impressão do mundo: como sensação e como contemplação. E nesta
primitiva intuição da Liberdade encontrei Dostoievski, compreendendo
esta antropologia cristã de Dostoievski são uma tentativa de romper, em vários momentos da história ocidental,
com a ilusão naturalista que implica o esquecimento da presença ativa do Transcendente no Homem.
66
Cf. SANTOS, Luciano Gomes. Cristianismo é Humanismo? Ensaio da Parábola do grande Inquisidor de
Dostoievski.Convergência outubro 2006 ano XLI. p.509.
67
SEGUNDO, Juan Luis. O Caso Mateus. p. 264.
68
BERDIAEFF, N. El Credo de Dostoievski. p. 208.
69
SEGUNDO, Juan Luis. Berdiaeff, une Refléxion Chrétienne sur la Persone. Paris, Aubier, 1963.
104
imediatamente que era minha verdadeira casa espiritual. Desde muito jovem
senti a vocação de escrever um livro sobre Dostoievski e realizar
parcialmente em diversos artigos. O curso que esteve sob minha
responsabilidade na ―Academia Livre da Cultura Espiritual‖ durante o
inverno de 1920-21, incentivou-me a concentrar minhas ideias sobre este
grande escritor, e assim escrevi este livro, nele que não somente tentei a
revelação do credo de Dostoievski, mas também alguma coisa de meu
próprio credo.
70
Um dos pontos fundamentais no pensamento de Segundo é a centralidade da pessoa
humana como livre interlocutora diante de Deus.
71
Dostoievski também percebe esta
interlocução humana na construção de valores. Um exemplo disso está nas palavras de
Zózima: Meus padres, pergunto a mim mesmo‘: ―Que é o inferno?‖ Defino-o assim: ―O
sofrimento por não poder mais amar‖.
72
A grande questão é definir sobre quais valores o ser humano percebe Deus. Isto quer
dizer que o humano ―exerce um papel ativo e interativo na própria manifestação de Deus.‖
73
Esses valores, portanto, podem aproximá-lo ou distanciá-lo do Deus revelado em Jesus Cristo.
―Assim Deus se revela de modo humanamente inteligível ou não será humanamente crível.
74
Um exemplo desse ‗humanamente inteligível‘ é o príncipe Michkin.
75
70
BERDIAEFF, N. El Credo de Dostoievski. p.7,8. Prefácio do livro. ―Dostoievsky tuvo un significado
determinante en mi vida espiritual. Ya desde muy joven reci como una inoculación de Dostoievsky. Ha
conmovido mi alma más que ningún otro escritor o pensador. Y desde entonces he clasificado a las gentes según
sean o no ajenas a su espíritu. La orientación de mi consciencia, que comenzó a desarrollarse muy pronto,
encaminándose a los problemas filosóficos, ha estado ligada siempre a ―las malditas cuestiones‖ de Dostoievsky.
Cada vez que releía Sus obras me revelaba nuevos y diversos puntos de vista. Siendo aun muy joven, el tema de
su obra Leyenda dela Grand Inquisidor, penetro profundamente en mi alma. Y mi primera invocación al Cristo
ha sido una invocación a la figura del Cristo tal como aparece en esa leyenda. La Idea de la Libertad ha sido
siempre la base de mi doble impresión del Mundo: como sensación y como contemplación. Y en esa primitiva
intuición de la Libertad he hallado a Dostoievsky, comprendiendo en seguida que estaba en mi verdadera patria
espiritual. Desde muy joven sentí la vocación de escribir un libro sobre Dostoievsky y lo realicé parcialmente en
diversos artículos. El curso que tuve a mi cargo sobre Dostoievsky, en la ―Academia Libre de la Cultura
Espiritual‖ durante el inverno de 1920-21, me impulso a concentrar mis ideas sobre este gran escritor, y así
escribí este libro, en el que no solamente probé la revelación del credo de Dostoievsky, sino también algo de mi
proprio credo.‖
71
Cf. BONELLI, Marco Antonio Gusmão. A liberdade cristã em Santo Agostinho e Juan Luis Segundo:
confronto entre duas visões da liberdade e suas implicações para a vida cristã nos dias de hoje. Orientador:
Alfonso García Rubio. Tese (Doutorado em Teologia). Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008.
p. 132.
72
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 236. Stariets Zózima.
73
BONELLI, Marco Antonio Gusmão. A liberdade crisem Santo Agostinho e Juan Luis Segundo: confronto
entre duas visões da liberdade e suas implicações para a vida cristã nos dias de hoje. p. 133.
74
Id.ibid.p. 133.
75
Berdiaeff ao mencionar os valores que direcionavam a vida de Michkin afirma o seguinte: Muichikin ama a
Anastacia Filipovna y también a Aglaya; Es un hombre puro, limpio, de naturaleza angélica. Está libre de las
tinieblas de la voluptuosidad, pero su amor es asimismo morboso, desdoblado y desesperadamente trágico.
Desdobla el objeto de su amor como resultado del choque de los principios que están in su interior.
BERDIAEFF, N. El Credo de Dostoievski. p. 129.
105
Trata-se então de uma humana e que humaniza. Desse modo, a pessoa vive a
autêntica liberdade na construção de uma estrutura de valores que é extremamente importante
para a execução dessa liberdade. Pode-se dizer que é buscar significado na vida, apontando
então para uma necessidade básica antropológica.
76
Essa idéia está presente nas palavras do
inquisidor a Cristo: ―Nisto tu tinhas razão, porque o segredo da existência humana consiste
não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo para viver.‖
77
Essa estrutura de valores é construída pela pessoa. Apesar disso, esta construção se
processa na coletividade. Juan Luis Segundo comenta:
A experiência nos mostrará, aqui mais uma vez que só pode ter a idéia de um
caminho satisfatório de maneira certa através de experiências alheias [...] O
que a experiência nos mostra aqui claramente é a básica solidariedade da
espécie humana [...] As experiências de valor realizado nos são
proporcionadas por nossos semelhantes. Antes de nós as termos, percebemos
seu valor, suas possibilidades de satisfação, através de experiências alheias.
Assim, todos dependemos de todos, frente à necessária limitação de nossas
existências.
78
Essa afirmação de Segundo também é compreendida por Dostoievski, o qual destaca
que a vida é ―um vale de fazer almas.‖
79
A construção dessa vida é responsabilidade do ser
humano, que se dá por meio da fé.
80
76
Id. ibid. p. 135.
77
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 190. Estas são palavras do inquisidor a Cristo, na Lenda do
―Grande Inquisidor.‖ Ele admite que o ser humano nasce para a liberdade e com isto busca sentido para a vida.
78
SEGUNDO, Juan Luis. O Homem de hoje diante de Jesus de Nazaré. Vol.I.Tradução de Brenno Brad. São
Paulo: Paulinas, 1985.p.8.
79
FRANK, Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação. 1860-1865. p.424,425. A expressão ―vale de fazer
almas‖ é usada por Joseph Frank ao comparar Dostoievski com Keats. Para Keats as dores e o sofrimento são
necessários para fazer de uma inteligência uma alma. Frank afirma: ―Para Dostoievski a vida era, como fora para
Keats, ―um vale de fazer almas‖, ao qual Cristo viera para convencer a humanidade a lutar contra a morte da
imersão na matéria e para inspirar o combate pela vitória final sobre o egoísmo.‖
80
Id.ibid.p. 424,425. De acordo com Frank, Santo Irineu compara o ser humano na terra a uma criança que
necessita crescer e se desenvolver. Esta concepção de construção do humano é muito presente na Ortodoxia
oriental, que define a Queda de forma diferente da teologia Ocidental. A teologia agostiniana procura no passado
(Éden-Queda) o mistério do Mal. A Ortodoxia procura no futuro, um futuro que a pode buscar. Frank
destaca: ―A Ortodoxia oriental, ao contrário da tradição agostiniana do Ocidente, sempre acreditou que o homem
não desceu de um estado de perfeição anterior a Queda e caiu num pecado irredimível, mas antes, apareceu na
vida terrena ainda imperfeito e não-formado; o homem contém a ―imagem‖ de Deus mas não sua ―semelhança‖,
que João Damasceno definiu como a ―assimilação a Deus através da virtude.
106
3.2.2. A liberdade e o mal
Ao pensar a liberdade e o seu papel na construção de valores sempre existe a
possibilidade de se deparar com mal. Como compreender o mal em Dostoievski?
Dostoievski não aceita a teoria positivista e entende nela a negação da profundidade da
natureza humana, da liberdade da alma e da responsabilidade humana. Segundo ele, se o
homem não é nada mais que um ―reflexo passivo do ambiente social exterior, se é um ser
irresponsável, já não existe homem, nem Deus, nem a liberdade, nem o mal, nem o bem.‖
81
Se o homem é pessoa, o mal não pode ser apenas o reflexo de uma condição social.
Para Dostoievski, isso significa dizer que o mal é o indício de que existe uma subconsciência
que está ligada diretamente com a personalidade. A concepção de Dostoievski sobre o mal é
gnóstica, portanto, o mal para Dostoievski tem sua natureza interna - metafísica e não externa
social.
82
Não pode, portanto, ser compreendido como a evolução do Bem. O mal serve para
examinar a liberdade do homem, pois lhe é a sua senda trágica.
Por isso Dostoievski conduz seus heróis através da liberdade, o mal e a expiação.
83
Um exemplo disso é Aliocha, que tinha em si os traços dos Karamazovi
84
, mas foi marcado
pela experiência religiosa, tornando-se uma pessoa amável, altruísta e crente na possibilidade
da redenção.
O sentimento epifânico que Dostoievski insere em Aliocha e até mesmo em Zózima é
característico de sua própria experiência. Após o impacto da farsa da execução, Dostoievski
escreve a seu irmão Mikhail: ―A vida é uma dádiva, a vida é felicidade, cada minuto pode ser
uma eternidade de felicidade‖, e demonstrava o desejo de ―amar e abraçar alguém entre
aqueles que conhecia.‖
85
81
Cf. BERDIAEFF, Nicolas. El credo de Dostoievski. p. 97. ―...reflejo pasivo del ambiente social exterior, si es
un ser irresponsable, ya no existen ni el hombre, ni Dios, ni libertad, ni el mal, ni el bien.
82
Cf.Id.ibid.p.99.
83
Id.ibid. p. 102.
84
Karamazovi é o ―plural russo de Karamazov. Nome forjado, composto provavelmente do substantivo kara‘,
castido, punição, e do verbo ‗mázat‘, sujar pintar, não acertar. Seria, simbolicamente, aquele que com o seu
comportamento desacertado provoca a própria punição.‖ (Prefácio de livro os irmãos karamazovi p. 9.
85
DOSTOIEVSKI, F. apud. FRANK, Joseph. Dostoievski. O manto do profeta. 1871-1881.p. 777.
107
Fora da perspectiva vertical o mal prevalece.
86
A lógica do niilismo tenta por à prova
um Deus que convive com o mal, que parece passivo em meio a tragicidade humana.
87
Ivan
Karamazov apela para esta lógica e discute a teodicéia. Como pode existir um Deus bom em
um mundo que maltrata suas próprias crianças?
Bate-se na criança um minuto, depois cinco, depois dez, sempre mais
fortemente. Ela grita afinal, sem forças, sufoca: ―Papai, meu papaizinho,
tenha dó!‖ [...] Cada homem oculta em si um demônio: acesso de cólera,
sadismo, desencadeamento de paixões ignóbeis, doenças contraídas na
devassidão, ou então a gota, a hepatite, isto varia. Portanto, aqueles pais
instruídos praticavam muitas sevícias na pobre menininha. Açoitavam-na,
espizinhavam-na sem razão, seu corpo vivia coberto de esquimoses.
Imaginaram por fim um refinamento de crueldade: pelas noites glaciais, no
inverno, encerravam a menina na privada, sob o pretexto de que ela não
pedia a tempo, à noite, para ir ali (como se naquela idade, uma criança que
dorme profundamente pudesse pedir a tempo). Esfregavam-lhe os próprios
excrementos na cara, e sua mãe, sua própria mãe obrigava-a a comê-los! E
essa mãe dormia tranqüila, insensível aos gritos da pobre criança fechada
naquele lugar repugnante! Vês tu daqui aquele pequeno ser, não
compreendendo o que lhe acontece, no frio e na escuridão, bater com seus
pequeninos punhos no peito ofegante e derramar lágrimas inocentes,
chamando o ―bom Deus‖ em seu socorro? Compreendes esse absurdo, tem
ele um fim, meu amigo e meu irmão, tu, o noviço piedoso? Dizem que tudo
isso é indispensável para estabelecer a distinção entre o bem e o mal no
espírito do homem. Para que pagar tão caro esta distinção diabólica? Toda a
ciência do mundo não vale as lágrimas das crianças.
88
Ivan deixa Aliocha indignado! Todo aquele relato de injustiça e de impunidade
desperta em Aliocha, mesmo que por um instante, um desejo de vingança. Ivan então o
provoca: ―Tens, pois, também um diabinho no coração, Aliocha Karamazov?‖
89
86
PONDÉ, Luis Felipe. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 199. A concepção do mal
em Dostoievski é trabalhada também por Luis Felipe Pondé. Segundo ele: O mal não é o oposto do ser, é uma
espécie de ácido, que decompõe, desfaz: a capacidade de produzir o mal é produzir o nada, portanto ele é
produtivo. E é função da nossa vontade, como seres caídos, a capacidade de produção do nada, porque é a nossa
vontade de ser feliz que o cria. Essa é uma das intuições centrais e mais difíceis de Dostoievski porque nós,
modernos, somos a infantaria da felicidade. A idéia de que a busca da felicidade humana é o motor do nada, é
mal. Só deixa de produzir o nada quando é atravessada pelo sobrenatural pela graça. E qual a marca disso? São
aqueles indivíduos capazes de pensar no outro, de estar totalmente voltados para o outro, nunca para si mesmos.
Descentrados afetivamente, atravessados pelo páthos divino.
87
Cf.FORTE, Bruno. À Escuta do outro. Tradução. Mário José Zambiasi. São Paulo: Paulinas, 2003. p.91.
Se Deus existe, o horror do mal que devasta a Terra é sem fim. Mas esse horror é infinito: logo, Deus existe.
Ao mesmo tempo, porém, o argumento remete ao seu oposto: se Deus existe, o horror e o mal infinito é
inadmissível. Mas esse horror existe: logo Deus não existe. Do paradoxo não sei se sai senão por meio de uma
conversão radical do conceito de Deus: se Deus fizer próprio o sofrimento infinito do mundo abandonado ao
mal, só se entrar nas trevas mais densas da miséria humana, a dor será redimida e a morte vencida.‖
88
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 181.
89
Id.ibid.p.182.
108
As provocações de Ivan são questionamentos inquietantes. Dostoievski apresenta em
Ivan a angústia de conviver com o mal.
Escuta, limitei-me às crianças para ser mais claro. Nada disse das lágrimas
humanas de que a terra está saturada, abreviando de propósito meu assunto.
Confesso humildemente não compreender a razão desse estado de coisas. Os
homens são os únicos culpados: tinham-lhes o paraíso, cobiçaram a
liberdade e arrebataram o fogo do céu, sabendo que seriam felizes; não
merecem, pois nenhuma compaixão. Segundo meu pobre espírito terrestre,
sei apenas que o sofrimento existe, que não culpados, que tudo se
encadeia, tudo passa e se equilibra. São as pataratas de Euclides, eu sei, mas
não posso consentir em viver baseando-me nisso. Que bem me pode fazer
tudo isso? Preciso é de uma compensação, do contrário destruir-me-ia a mim
mesmo. E não uma compensação em alguma parte, no infinito, mas aqui
embaixo que eu mesmo veja. [...] Os carrascos sofrerão no inferno, dir-me-ás
tu. Mas de que serve esse castigo, uma vez que as crianças tiveram também
o seu inferno?Aliás, que vale essa harmonia que comporta o inferno? Quero
o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E, se o sofrimento das
crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da
verdade, afirmo desde agora que essa verdade não vale tal preço. Não quero
que a mãe perdoe o carrasco, não tem esse direito. Que lhe perdoe o seu
sofrimento de mãe, mas não o que sofreu seu filho estraçalhado pelos cães.
Ainda mesmo que seu filho perdoasse, não teria ela o direito. Se o direito de
perdoar não existe, que vem a tornar-se esta harmonia? Há no mundo um ser
que tenha esse direito? [...] Perguntaste se existe no mundo inteiro um ser
que teria o direito de perdoar. Sim, esse ser existe. Pode tudo perdoar, a
todos, e por tudo, porque foi ele que verteu o seu sangue inocente por tudo e
por todos.
90
Bruno Forte, assim como Aliocha, também aponta para a Cruz e, por isso, Cristo é a
―prova da verdade que salva.‖
91
Esse é o caminho que Dostoievski escolhe como contraponto
ao niilismo.
A verdade que tenta explicar tudo e a tudo tenta organizar em uma harmonia ou ordem
universal, como bem argumenta Ivan Karamazov, ―não vale seu preço.
92
a partir de seu
interior é que o niilismo é refutado. ―A partir das trevas da Sexta-feira Santa, em que Deus
sofre e morre por amor ao mundo, é possível proclamar a vitória da vida, porque aquela morte
é a morte da morte.
93
Essa é a verdade concebida metafisicamente e deve abrir caminho no
escândalo das trevas mais tensas.
90
Id.ibid.p.183,184.
91
Id.ibid.p. 91.
92
Cf. FORTE, Bruno. À Escuta do outro. p. 92.
93
Id.ibid.p.92.
109
O caminho da liberdade é o caminho da cruz e a ―Lenda do Grande Inquisidor‖ é a
revelação do homem unida a revelação de Cristo. O mal é vencido na cruz, pelo Deus que
escolhe sofrer pelo sofredor.
Eis porque no mistério do Deus crucificado é que se revela, em última
análise, a profunda tragicidade da existência humana: se Deus fez sua a
morte, pagando integralmente o preço da liberdade, o caminho da cruz
permanecerá para sempre nesta terra como o caminho da liberdade. Todavia,
justamente porque o cálice amargo foi bebido até a última gota pelo Filho
eterno, o caminho que levará à vida será exatamente este.
94
3.3. Vocação para liberdade, vocação para a vida
Afirmar que o ser humano nasce com a liberdade é o mesmo que afirmar que ele é
vocacionado para ser livre. Liberdade incriada, vocação para liberdade e vocação para a
vida, são termos correspondentes e apontam para a mesma direção. A compreensão da vida na
perspectiva de Dostoievski, assim como para a teologia latino americana de Comblin é uma
compreensão que se na liberdade. Vida e liberdade são sinônimas, mas nem sempre se tem
consciência disso. Por isso Dostoievski é considerado um profeta, ele traz esta consciência.
Essa mesma consciência profética é proposta por José Comblin.
3.3.1. Liberdade e vocação
Dostoievski discute amplamente a liberdade na lenda do ―Grande Inquisidor‖. No
diálogo entre o inquisidor e Cristo acerca da liberdade no ser humano, um questionamento
levantado - pelo inquisidor - se realmente o ser humano tem condições de viver a liberdade.
Entretanto admite que esse nasça para a liberdade. ―Não repito-te, preocupação mais
aguda para o homem que encontrar o mais cedo possível um ser a quem delegar esse dom da
liberdade que o infeliz traz consigo ao nascer.‖
95
Essa liberdade é a liberdade incriada.
Ao aproximarmos a ‗liberdade incriada‘ da ‗vocação para a liberdade‘, estamos
aproximando a teologia ortodoxa da teologia ocidental, muito embora respeitando suas
94
Id.ibid.p.95.
95
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 190.
110
diferenças.
96
A literatura de Dostoievski possibilita esta aproximação entre esses mundos
diferentes.
97
De acordo com Comblin essa vocação para a liberdade ―foi posta por Deus‖
98
a cada
um dos seres humanos e para a humanidade toda. Ele escreve uma obra com o tema Vocação
para a liberdade. Nesse livro é trabalhado o contexto da América Latina e sua compreensão
teológica sobre a liberdade. Segundo o autor, o tema da liberdade é inesgotável. Também se
reporta ao evangelho e enfatiza que ―o evangelho cristão é sinônimo de vocação para a
liberdade.‖
99
O problema é que ao longo da história, esse evangelho não foi visto assim.
Isso significa que a liberdade presente no ser humano é quem o conduz a Cristo.
Próximo a essa ideia, Dostoievski entende que a liberdade deve ser vertical, isto é, percebida
em Deus. Comblin ao argumentar a vocação para a liberdade menciona Berdiaeff, que é um
dos principais interpretes de Dostoievski. Sua discussão em torno da liberdade se a partir
do termo - ‗liberdade incriada‘.
A liberdade levou-me a Cristo e não conheço outro caminho que possa levar
a ele. Não sou o único que tenha passado por essa experiência. Todos os que
96
PONDÉ, Luis F. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski.p.48,49. Os ortodoxos usam a
expressão ‗mística realista‘, que é uma stica da experiência affectus ao invés de intellectus. uma ciência
apontada pela mística que é denominada de ―ciência experimental.‖ Esta ciência experimental tem sua
importância porque para a mística ortodoxa ―o que faz um místico é a experiência direta com as energias de
Deus. Melhor dizendo, não diretamente Deus, mas aquilo que Ele manifesta, para que o ser humano possa
estabelecer uma relação com o divino.‖ É preciso ressaltar também que para a mística ortodoxa existe a idéia
muito forte de que o Reino se aqui e agora. Não se trata, portanto, de algo que vai acontecer no final dos
tempos. Esta perspectiva está presente nas obras de Dostoievski, destaca-se aqui Michkin (O Idiota) e Aliócha
Karamazov (Os irmãos Karamazovi). A grande controvérsia entre o cristianismo ortodoxo, tanto grego quanto
russo e o cristianismo ocidental, aconteceu com o pensamento de Tomás de Aquino (1225-1274). Embora
destacado isto em outro momento da pesquisa, vale ressaltar que este pensamento transformou o cristianismo em
um discurso puramente racional.
97
FRANK, Joseph. Dostoievski. Os efeitos da libertação. 1860-1865.p. 419. Frank faz menção de Ryszard
Przybylski e comenta o seguinte: Num dos poucos estudos não-partidários da Cristologia de Dostoievski,
Ryszard Przybylski vincula suas ideias às ideias do ideólogo do Século XVII, Maximus Confessor, que exerceu
grande influência sobre a teologia ortodoxa russa e foi discípulo de Dionísio, o Areopagita. Maximus foi um
firme defensor da doutrina segundo a qual Jesus tinha duas naturezas, uma divina e a outra humana, o que
significa que possuía uma vontade humana e uma divina. Por isso, pôde a humanidade seguir o exemplo de
Cristo e, assimilando-se à sua natureza, aproximar-se do estado de ―deificação‖, que é o destino final da
humanidade na ortodoxia oriental. Maximus também considerou a razão oposta à da Revelação e insistiu na
afirmação de que não há maneira de conciliar as duas: a razão era ―o inimigo ‗do instinto moral do homem‘‖. Os
eslavófilos, apesar de sua oposição ao Catolicismo romano, compartilharam a convicção de São Tomás de
Aquino segundo a qual a razão e a podiam ser harmonizadas; Ivan Kireiévski defendeu a idéia de uma ―razão
crente‖. Contudo, Dostoievski estava mais próximo da corrente de pensamento ortodoxo oriental.
98
COMBLIN, José. Cristãos rumo ao Século XXI. Nova caminhada de libertação. p.71.
99
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. p. 6.
111
deixaram o cristianismo-autoridade somente poderão voltar a um
cristianismo-liberdade.
100
O Cristo do ―Grande Inquisidor‖ não se limita a autoridade clerical e nem sua tentativa
de ocultar a liberdade no humano. A relação entre Aliocha e Zózima se aproxima desta
relação: ‗cristianismo-liberdade‘, diferente do ‗cristianismo-autoridade‘.
Aliocha ficou impressionado por certa qualidade especial da alma dele.
Vivia na mesma cela do stariets, que muito o amava e o mantinha a seu lado.
É preciso notar que mesmo vivendo no mosteiro, não estava Aliocha preso
por nenhum laço; podia ir aonde bem quisesse. Dias inteiros, e, se usava
batina, era voluntariamente, para não se distinguir de ninguém do mosteiro
[...] Aliocha notara que muitos daqueles que vinham pela primeira vez
entreter-se em particular com o stariets entravam em seu aposento com
temor e inquietação; quase todos saíam radiantes e o rosto mais sombrio
iluminava-se de satisfação. O que surpreendia também é que o stariets, longe
de ser severo, parecia mesmo satisfeito. Os monges diziam dele que se
ligava aos mais pecadores e os estimava na proporção de seus pecados.
101
O cristianismo de Dostoievski também é um ‗cristianismo-liberdade. A relação de
Zózima (stariets) com as pessoas, não é uma relação opressora, mas uma relação de amor e
compaixão, o que influencia Aliocha profundamente. Dostoievski não lida com uma apologia
que visa defender a contra o ateísmo e o niilismo, mas ele mostra um cristianismo que se
move pela liberdade e se desenvolve no amor.
Aliocha e Ivan são personagens que trilham por caminhos contrários. Embora Ivan se
apresente como um niilista, um jovem astuto e intelectual, não consegue vencer a inquietação
enlouquecedora dentro de si. É um escravo da vida. O que nos chama atenção é que Ivan é
o autor da lenda do Grande Inquisidor‖. Ele apresenta Cristo, destaca o silêncio de Cristo
diante do inquisidor, enfatiza a tentativa do inquisidor em convencer sobre a incompetência
humana diante da liberdade.
Essa tentativa do inquisidor está muito próxima da crítica de Comblin em relação a
Congregação da Doutrina da Fé.
Acontece que para a Congregação, a liberdade não é um bem; é um mal, e
um tremendo perigo. A Congregação não pode negar a liberdade, que
pretende defender, mas despreza-a e não pode esconder que, no fundo, a
100
BERDIAEFF, N. apud. COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. p. 15.
101
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 28.
112
liberdade seja deficiência. Segue a linha dos filósofos gregos e da teologia
escolástica. Diz assim: ―Deus chama o homem para a liberdade. Em cada
homem está viva a vontade de ser livre. E, no entanto, tal vontade quase
sempre leva à escravidão e à opressão.‖ (LC 37 a) ―No anseio da liberdade, a
Congregação desconfia que sempre há a tentação de querer ser Deus, o
pecado de Adão, a sedução da serpente no paraíso (37b). Se assim fosse, o
evangelho de Jesus ficaria reduzido a nada. Seria radicalmente ineficaz. A
liberdade seria o erro maior de Deus na criação.
102
No entanto, Ivan parece reconhecer que o inquisidor é quem fracassa e Cristo vence
todos os argumentos com o silêncio e com o beijo. Ivan luta contra sua vocação para a
liberdade, prefere a negação, embora dentro de si seja atormentado pela dúvida.
3.3.2. Liberdade e profecia
Dostoievski aparece como um profeta em seus dias.
103
O parricídio em Os irmãos
Karamazovi é o retrato da morte da tradição, a revelação de um futuro de revoluções. Ele ―é
um profeta de espírito e um pregador que anuncia que a Rússia se aproxima de um
precipício.‖
104
Por isso, soube, como ninguém, revelar fatos importantíssimos da alma russa e
do espírito mundial e, ao mesmo tempo, afirmar que a liberdade é o mais importante princípio
da vida.
Ele percebe o rumo que a influência socialista estava tomando. Além desse problema
político e social, um sério problema religioso, a influência ateísta e niilista. A única
revolução aceita por Dostoievski é a revolução do espírito.
105
A liberdade é o foco dessa profecia. O espírito novo que se refere Dostoievski é a
liberdade, isto é, o ser humano livre. Porém, esse vive em meio a inúmeros ‗inquisidores‘ que
tentam negar essa liberdade ou até mesmo suprimi-la da vida. A mesma ênfase à liberdade é
102
COMBLIN, José. Cristãos rumo ao Século XXI. Nova caminhada de libertação. p. 74,75.
103
PONDÉ, Luis F. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski.p.28. ―Na sua raiz propriamente
religiosa, permanecemos no universo que nos leva a outro conceito religioso ―arcaico‖, o da profecia, outra
prática dostoievskiana.‖
104
BERDIAEFF, N. El credo de Dostoievski.p. 238, 241.. ―Es un profeta del espíritu y un predicador que
anuncia que Rusia se aproxima al precipicio.‖ Para Berdiaeff, as ideias de Dostoievski não são abstratas, mas
bem concretas.
105
Id.ibid. p. 245,246. ―Sólo Dostoievski despierta un nuevo espíritu que no destruye ni derriba nada. Hasta
dispuesto a conservar las viejas fórmulas, pero poniendo en ellas un espíritu nuevo. [...] las obras de
Dostoievsky son fecundísimas para la renovación del cristianismo. Su fenómeno es profético; revela las grandes
posibilidades espirituales.‖
113
dada por José Comblin, embora em contexto e cultura diferente, mas com o mesmo espírito
profético.
O ser humano participa da divindade no sentido de que é feito livre como
Deus é livre. Para que a pessoa seja livre, Deus renuncia ao seu poder.
Entrega o poder ao ser humano juntamente com toda a criação para que
ele construa a sua vida com liberdade. Deus se retira para não se impor. A
sua presença no mundo manifesta-se na vida e na morte de Jesus. Deus fez-
se um crucificado para que o ser humano fosse inteiramente livre. Esta
liberdade pode ser para o bem e para o mal. [...] O desejo secreto de muitos é
de que Deus nos retire a liberdade e governe o mundo ele próprio com o seu
poder divino. [...] No entanto Deus escolheu outro caminho. [...] Muitos
querem a liberdade que não os façam depender de nada nem de ninguém
liberdade egoísta, individualista, que não se sente responsável por nada e por
ninguém. Mas não querem liberdade quando se trata de responsabilidade, de
construção de si mesmos e do mundo. Querem a liberdade sem
responsabilidade e sem compromisso. Não querem a liberdade pela qual a
humanidade se faz a si própria e se responsabiliza pela caminhada do
mundo. [...] Deus fez uma aposta: acreditou na capacidade de liberdade que
há no ser humano...
106
Dostoievski facilita o caminho do espírito criador, pois sua compreensão de
cristianismo se a partir de um novo espírito. Toda esta percepção de Dostoievski em seu
tempo, a sensibilidade de perceber o caminho que a Rússia estava tomando e a provocação
que fazia a existência humana, caracterizaram Dostoievski como um profeta da liberdade.
107
Comblin retoma esse caráter profético ao perceber que Deus acredita na capacidade de
liberdade que há no ser humano. Tanto a profecia de Dostoievski quanto a teologia de
Comblin trilham pela liberdade, por isso se correspondem.
106
COMBLIN, José. A vida. Em busca da liberdade. São Paulo: Paulus, 2007. p. 12,13.
107
Joseph Frank cita algumas palavras de Soloviov sobre Dostoievski alguns dias antes de sua morte. Estas
palavras foram pronunciadas em palestras na Universidade de São Petersburgo e nos Cursos Superiores Bestujev
para mulheres. ―No ano passado, no festival Púchkin, Dostoievski chamou Púchkin de profeta, mas o próprio
Dostoievski merece esse título com a maior razão.‖ FRANK, Joseph. Dostoievski. O manto do profeta. 1871-
1881.p. 932.
114
3.3.3. Liberdade e vida
Em Dostoievski não se define a vida. Aliocha, ―prefere a vida ao conhecimento da
vida porque ele se refere à vida como algo fora da representação possível.‖
108
Isso foge
daquilo que a teologia dogmática (católica) ou sistemática (protestante) entendem por ordem,
onde vida precisa estar em ‗ordem‘, ou seja, ―o ideal humano por excelência é a ordem‖.
109
O céu das estrelas, para os filósofos antigos, era a imagem do mundo ideal, portanto
toda a sociedade, a própria vida deveria imitar a ordem das estrelas. A vida contemplativa era
superior a vida ativa.
110
Comblin, assim como Dostoievski, entende que a vida não pode ser
definida.
Não há maneira de expressar com conceitos o que é a vida. Os nossos
conceitos são feitos para expressar realidades exteriores, objetos de
percepção, mas não nos permitem expressar sujeito. Os seres humanos
sabem o que é a vida e diferenciam-na da morte. Quem fala da vida são os
poetas e os artistas. Falam de modo simbólico.
111
Comblin reconhece o papel da poesia e da literatura em trabalhar sobre a vida de
forma metafórica ou simbólica. Mesmo que não conceituando, Comblin tenta descrever a
vida. ―Vida é dom de vida. Vida que não multiplica vida deixou de ser vida.‖
112
O multiplicar vida é proceder no outro a vida, assim como Deus. Vida e a liberdade
são interligadas. ―Liberdade é a capacidade de fazer surgir vida, dom da vida.‖
113
Em outras
palavras viver é poder dar, e isso se realiza na liberdade.
Se todos te abandonam e se te expulsam com violência, ao ficares sozinho,
prosterna-te, beija a terra, rega-a com tuas lágrimas, e essas lágrimas darão
muito frutos, ainda que ninguém te veja, nem te ouça na solidão. Crê até o
fim, mesmo que todos os homens se hajam desviado e tenhas ficado fiel
sozinho; leva então a tua oferenda a Deus, por teres sido o único a manter a
fé. E se dois, tais como vós, se reúnem, eis a plenitude do amor vivo, beijai-
108
Cf.PONDÉ, Luis F. Critica e profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p.168.
109
COMBLIN, José. A vida. Em busca da liberdade. São Paulo: Paulus, 2007. p. 18.
110
Id.ibid. p. 18. Vida contemplativa é baseada apenas na contemplação e imitação da ordem. A vida ativa é
construída a partir da liberdade.
111
Id.ibid.p. 54.
112
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. p. 63.
113
Id.ibid.p.63.
115
vos com efusão e louvai o Senhor, porque sua verdade cumpriu-se, ainda que
apenas em vós dois.
114
A liberdade em nossa contemporaneidade é uma liberdade de consumo. Se limita
apenas na escolha de um produto ou em um voto democrático. A modernidade tardia ou pós-
modernidade lida com a liberdade como liberdade nas diversas liberdades e existe apenas nos
seres humanos individuais.
115
Essa ideia, e a própria experiência de liberdade vivida na
atualidade, estão bem distantes daquilo que propõe Dostoievski. Ao pensar em algo que pode
ser absoluto na vida, percebemos que esse absoluto está na liberdade. Aqui Comblin se torna
dostoievskiano: A vocação para a liberdade é o único absoluto que encontramos na vida. Não
procede nem da natureza, nem da correspondente vida biológica, nem de outras pessoas. O
Seu valor incondicional é a presença de Deus em nós.
116
Ser cristão é viver a liberdade. É a construção da vida que se através do amor.
Dostoievski é um profeta da liberdade e da vida.
117
Conclusão
Este capítulo se propôs a trabalhar a correspondência do tema da liberdade em
Dostoievski com a teologia latino americana. Procurou tornar evidente ao longo do texto a
liberdade que o ser humano tem, tão livre quanto o próprio Deus. Assim como Dostoievski,
Juan Luis Segundo e José Comblin compartilham dessa compreensão teológica. A liberdade,
segundo esses autores, deve nos levar a uma construção ou criação da vida. O único
mandamento nessa construção é o amor.
114
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazovi. p. 235. Extratos das conversações e da doutrina do stariets
Zózima.
115
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. p.228.
116
Id.ibid. p. 242.
117
A influência de Dostoievski em seus dias foi muito significativa em todo mundo acadêmico, inclusive na
Academia de Teologia. De acordo com Ana, esposa de Dostoievski, no dia do velório de seu marido ―a igreja
estava cheia de pessoas em oração, muitos eram jovens, estudantes de várias instituições de ensino superior, da
Academia de Teologia e Kursítok (mulheres estudantes).‖Ana relata ainda que a maioria destas pessoas ficaram
toda a noite revezando-se entre si na leitura dos salmos diante do caixão de Dostoievski. Frank faz menção das
palavras de Vladimir Sergueievitch Soloviov (1853 - 1900) filósofo místico, escritor e poeta russo. Assim como
o mais alto poder do mundo vez por outra se concentra numa única pessoa, que representa um Estado, do mesmo
modo o mais alto poder espiritual em cada época costuma pertencer em cada povo a um homem, que mais
claramente do que todos apreendem os ideais espirituais da humanidade, mais conscienciosamente do que todos
afetam os outros com suas pregações. Esse líder espiritual do povo russo, nos tempos recentes, foi Dostoievski.‖
FRANK, Joseph. Dostoievski. O manto do profeta. 1871-1881.p.931, 932.
116
O primeiro tópico trabalhou a liberdade incriada. Essa é uma ―liberdade que nos
habita‖, que está no humano e na humanidade desde o nascimento. Ainda dentro desse
tópico, abordou-se a liberdade e a evolução da modernidade. Além dessas abordagens, outro
elemento importante nessa compreensão do tema da liberdade apresentado foi a liberdade
parametrizada pelo amor. O amor é o parâmetro para a liberdade e não se sujeita a
determinismos. A partir dessa discussão entre a liberdade e os determinismos, concluiu-se
esse primeiro momento no capítulo.
O segundo momento do capítulo se propôs a relacionar a liberdade e a construção de
uma estrutura de valores. Para esta construção de valores se apresentou o Cristo na antropo-
teologia de Dostoievski, em especial na lenda do ―Grande Inquisidor‖. Em seguida foi feita
uma discussão sobre a liberdade e o mal, onde a personagem Ivan Karamazov e seus
inquietantes questionamentos sobre Deus e o mal, a teodicéia, a lógica niilista foram
colocadas em evidência.
Como último momento do capítulo, desenvolveu-se o diálogo com a vocação para a
liberdade, com a profecia e com a vida. Esse diálogo se deu entre Dostoievski e
especificamente com a visão teológica de José Comblin. Ambos evidenciaram o mesmo
espírito profético, tendo a liberdade como único absoluto na vida. Portanto, para eles, ser
cristão é viver a liberdade e ser livre para viver.
Este capítulo tentou minimizar ainda mais as distâncias entre oriente e ocidente, entre
literatura e teologia, tendo como elemento de aproximação o tema da liberdade. A teologia
latino americana de Juan Luis Segundo e José Comblin nos apresentou uma teologia da
liberdade muito próxima de Dostoievski. Mais do que uma teologia da libertação, uma
teologia da liberdade. Cristo é o referencial de liberdade tanto para a literatura de Dostoievski
quanto para o pensamento teológico de Juan Luis Segundo e José Comblin.
117
CONCLUSÃO
O valor final da liberdade supõe uma criação desejada expressamente
incompleta por Deus, para colocá-la assim nas mãos do ser humano.
(Juan Luis Segundo)
Esta dissertação propôs o diálogo entre a teologia e a literatura, Dostoievski e o
pensamento teológico latino americano de Juan Luis Segundo e José Comblin. Trata-se da
aproximação entre a literatura russa do Séc.XIX e a teologia latino americana dos Séc. XX e
XXI, entre oriente e ocidente, cujo foco central foi a liberdade. Os principais referenciais
teóricos foram: os intérpretes de Dostoievski, Joseph Frank, Nicolas Berdiaeff e Luis Felipe
Pondé, além de Juan Luis Segundo e José Comblin, como referenciais do pensamento
teológico latino americano.
A experiência de aproximar o universo da teologia à literatura foi muito desafiadora e
enriquecedora. Os dramas, a busca pelo sentido da vida, o conflito ao redor das chamadas
malditas questões humanas, para usar a expressão de Dostoievski, são pertinentes a esses
contextos tão diferentes, mas ao mesmo tempo tão parecidos. O trágico em Dostoievski foi
respeitado, entretanto a pesquisa se concentrou em destacar a construção da vida por meio da
liberdade, apesar da tragicidade.
Dostoievski se destaca como um dos mais importantes escritores de todos os tempos.
Não somente por seu estilo literário, mas pela sua compreensão do humano e do mundo.
Dentro dessa sua compreensão apontamos sua cristologia e, principalmente, seu pensamento
acerca da liberdade. A liberdade se mostrou um tema estridente em Dostoievski. Por uma
opção e delimitação metodológica, escolhemos as obras O Idiota e Os irmãos Karamazovi
como referenciais na literatura de Dostoievski, as quais foram norteadoras no
desenvolvimento da pesquisa.
A dissertação se desenvolveu em três capítulos. O primeiro deles destacou o perfil
biográfico de Dostoievski e os aspectos fundamentais do contexto russo de sua época.
Conhecer a trajetória da vida de Dostoievski se fez necessário para a compreensão de sua
perspectiva teológica, pois sua experiência de vida está intimamente ligada em seus textos.
Momentos como prisão, angústia e sofrimento. A experiência de aguardar a execução e o
alívio de ter sua sentença mudada nos últimos instantes e transformada em prisão na Sibéria.
118
Além do choque da prisão, a doença que o perseguia epilepsia. Nessa trajetória de vida
também está a experiência religiosa. Além dessa apresentação biográfica, o capítulo
desenvolveu alguns elementos importantes daquele período, que, de certa forma, influenciou a
literatura. As influências ocidentais eram muito fortes na Rússia. Elas se davam de várias
formas, sobretudo no aspecto intelectual. O niilismo afetava seriamente a geração russa de
1860, principalmente através da literatura. A reação de Dostoievski se evidenciou fortemente
em seus textos. Ivan Karamazov é a personagem que encarna esse niilismo em Os irmãos
Karamazovi. O contraste entre a fé e a negação pela razão se trava nessa obra.
As ideias socialistas também incomodaram Dostoievski. Ele as combatia, pois
acreditava que essas eram a tentativa de criar um paraíso aqui na terra. Encarava o
socialismo como uma religião sem Deus, com a proposta de um céu terreno, o pão terreno ao
invés do pão celeste.
Outro elemento importante e presente neste capítulo foi o eslavismo. Se as influências
ocidentais perturbavam de um lado, o radicalismo dos eslavófilos perturbava de outro, muito
embora Dostoievski se considerasse um russo de coração. Da mesma forma, a mística
ortodoxa também teve seu importante papel na compreensão de Dostoievski, principalmente
por apresentar a cosmovisão da ortodoxia russa.
A partir disso, apresentamos o pensamento religioso de Dostoievski como um fator
essencial para sua compreensão da liberdade. Dostoievski era assumidamente um cristão e
Cristo sempre esteve inserido na forma de expressar seu pensamento religioso. Ainda dentro
dessa perspectiva destacamos a relação de Cristo com a contingência humana, o humano em
Dostoievski, a liberdade na condição humana e a influência religiosa em seu estilo literário.
Dostoievski via em Cristo o referencial para o humano e contrapunha ao pensamento
niilista e as correntes ateístas. Para ele, a liberdade estava numa relação divino-humana e
humano-divina, por isso Cristo é seu referencial. A liberdade em Dostoievski, portanto, é
fundamentalmente uma liberdade de consciência teológica.
Além da apresentação dos aspectos biográficos de Dostoievski, o capítulo trouxe a
crítica literária e análise das obras de Dostoievski feitas por Mikhail Bakhtin. A afirmação de
Bakhtin sobre a polifonia (múltiplas consciências) destacou pontos importantes para uma
119
leitura mais crítica das obras dostoievskianas e, ao mesmo tempo, contribuiu
significativamente para a pesquisa. Na polifonia não sujeito concluído. Ela mostra que a
vida está num processo de construção. Segundo Bakhtin, Dostoievski foi o criador do
romance polifônico, o que o diferencia dos demais escritores russos e europeus de sua época.
O aspecto da polifonia nos foi importante para a aproximação e diálogo com a teologia.
Como encerramento, o capítulo apresentou o método utilizado para a pesquisa: o da
correspondência. Ele propõe o diálogo entre a teologia e a literatura. Todo texto literário é
influenciado pela cultura e conseqüentemente pela religião. Compreende que
correspondências entre elementos da literatura com elementos da teologia, portanto, a
construção de um diálogo. O diálogo proposto entre Dostoievski e a teologia latino americana
se intensificou no terceiro capítulo da dissertação.
O segundo capítulo trabalhou a cristologia literária de Dostoievski. As leituras em O
Idiota e em Os irmãos Karamazovi foram importantíssimas para a percepção desses
elementos cristológicos em Dostoievski. Elas se mostraram, portanto, obras literárias e
teológicas. Nessas obras, os heróis de Dostoievski foram essenciais para as correspondências
com a teologia.
Em O Idiota, Michkin, a principal personagem, é a tentativa de Dostoievski de criar
um homem positivamente belo, um tipo de Cristo. Michkin sempre olhava as situações e a
vida com outro olhar, diferente das demais personagens. A compaixão, amor e pureza
caracterizavam a forma livre de Michkin viver. Muito embora nossa impressão é que ele
parecia uma pessoa muito frágil, porém, é justamente nessa fraqueza que estaria sua maior
força. O amor na fraqueza e a beleza em um ―idiota.‖ Essa relação do amor e a fraqueza
também se expressa no contexto latino americano. Daí o valor para este trabalho.
Em Os irmãos Karamazovi, Dostoievski começa o livro apresentando seu herói
Aliocha. Além dele, toda a família Karamazov é importante na compreensão dessa destacada
obra. Ivan Karamazov, jovem niilista e intelectual, por vários momentos esteve em conflito
consigo mesmo, atormentado pela dúvida. Confrontava seu irmão Aliocha, evidenciando
assim o confronto razão e fé, algo muito comum naquele momento em seu país. A família
Karamazov também era tentativa de Dostoievski descrever a desestrutura familiar russa, que
segundo ele, se dava pelo abandono da mesma aos valores cristãos. Além de Aliocha e Ivan,
120
havia Dmitri, o irmão mais velho, filho do primeiro casamento de seu pai, o velho Fiodor
Karamazov. Outra personagem importante é Smerdiakóv, filho bastardo do velho Karamazov.
Smerdiakóv mata Fiodor Karamazov, mas todas as suspeitas ao longo do romance recaem
sobre Dmitri, que reclamava uma herança da mãe a seu pai e disputava com ele a bela
Gruckhenka. Ivan foi o mentor de Smerdiakóv, que assimilou bem a idéia do ―tudo é
permitido.‖ O parrícidio representa também a morte da lei, a triste situação de um povo que
Dostoievski descreve.
Outro aspecto importante e fundamental para a discussão sobre a liberdade se deu na
lenda do ―Grande Inquisidor.‖ Nessa lenda, narrada por Ivan, o inquisidor questiona Cristo e o
acusa constantemente. A liberdade é o eixo dessa discussão. Essa lenda nos mostra que a
liberdade sempre foi rejeitada pelos inquisidores de todos os tempos. Cristo, na lenda, vence o
inquisidor com o silêncio e com um beijo como resposta a suas argumentações. Para
Dostoievski, a evidência maior da liberdade é o amor e esse é a melhor resposta aos
inquisidores.
Todas essas perspectivas, pelas suas evidências, ressoaram no contexto latino
americano. Por isso, priorizamos que o terceiro e último capítulo trabalhasse as
correspondências entre Dostoievski e o pensamento teológico de Juan Luis Segundo e José
Comblin. O capítulo iniciou-se com a apresentação da ‗liberdade incriada‘, termo utilizado
para caracterizar a compreensão de liberdade em Dostoievski. Essa liberdade tem o amor
como parâmetro e não aceita determinismos, elementos também discutidos ao longo do
capítulo. A liberdade leva a construção de uma estrutura de valores e Cristo na antropo-
teologia de Dostoievski, é o referencial desta construção. Esses elementos foram discutidos a
partir do harmonioso diálogo entre Dostoievski, Juan Luis Segundo e José Comblin.
Outro tema importante nesse capítulo foi a relação entre a liberdade e o mal, onde foi
abordado as argumentações de Ivan Karamazov acerca da teodicéia. Nesse item, em especial,
houve um diálogo entre Dostoievski e Bruno Forte, o qual aponta para a cruz, como escolha
de Deus para vencer o mal, sofrendo pelo sofredor. O último tópico do capítulo desenvolveu a
vocação para a liberdade, vocação para a vida. Esse tópico trabalhou a aproximação entre
Dostoievski e a compreensão teológica de José Comblin, onde a liberdade foi apresentada
como único absoluto da vida. Esse diálogo nos trouxe uma rica abordagem destes elementos:
a liberdade, a profecia e a vida.
121
A pesquisa mostrou o quanto a teologia e a literatura quando colocadas em diálogo
contribuem para o conhecimento do humano em todas as suas dimensões. Ambas aproximam
mundos diferentes, culturas, conflitos, o drama da existência humana, a fé. Esse diálogo
demonstrou um humano em construção, que só se constrói na liberdade. Cristo é o referencial
dessa liberdade.
A literatura de Dostoievski em O Idiota e Os irmãos Karamazovi, aponta-nos o Cristo
da liberdade. Esse Cristo da liberdade também foi percebido na teologia de Juan Luis
Segundo e José Comblin. Daí o título e o sentido de nosso trabalho. É difícil usar o termo
conclusão ao se referir a Dostoievski, mas se fosse possível fazer uma síntese das
aproximações entre esse escritor polifônico e a teologia latino americana, seria: liberdade,
amor e vida!
122
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Ano 3. 2003.
SCHNAIDERMAN, Boris. Sem ousadia não bom tradutor. Entrevista a Marlova
Aseff, jornalista e doutoranda em Teoria Literária na UFSC. Publicada originalmente no
Diário Catarinense de Florianópolis, em 27/03/2004. Entrevista extraída do site:
<htttp://www.cadernodolivro.com.br> em 15/12/2008.
SOARES, Afonso Maria Ligorio (org). Dialogando com Juan Luis Segundo. São Paulo:
Paulinas. 2005. 247p.
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