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Milena Carvalho Bezerra Freire
O Som do Silêncio: a angústia social que encobre o luto -
Um estudo sobre isolamento e sociabilidade entre enlutados do cemitério Morada da Paz (Natal/RN)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação
em Ciências Sociais da UFRN - Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Área de Concentração Cultura e
Representações, para obtenção do grau de mestre em
Ciências Sociais, sob a orientação da Profa. Dra. Lisabete
Coradini.
Natal – RN
Março de 2005
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Milena Carvalho Bezerra Freire
O Som do Silêncio: a angústia social que encobre o luto -
Um estudo sobre isolamento e sociabilidade entre enlutados do cemitério Morada da Paz (Natal/RN)
Data da Defesa: ___/03/2005
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Lisabete Coradini
Departamento de Antropologia - UFRN
(orientadora)
Profa. Dra. Maria Aparecida Lopes Nogueira
Departamento de Antropologia - UFPE
(membro da banca)
Profa. Dra. Elisete Schwade
Departamento de Antropologia – UFRN
(membro da banca)
Prof. Dr. Edmilson Lopes Júnior
Departamento de Ciências Sociais – UFRN
(membro suplente)
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3
Ao meu avô, Ruy de Carvalho,
por sua admirável vontade de viver.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos meus pais, pelo incentivo e força dados não somente nesta etapa,
mas em todas as outras de minha vida.
A Caio Vitoriano pelo estímulo e presença desde o ingresso no Mestrado até a realização do
trabalho final.
A Tiago Spinelli por me fazer acreditar na minha capacidade de realizar esta pesquisa, pela
leitura atenta, sugestões e incentivo.
Ao Prof. Dr. José Guilherme Magnani e a Fernando Araújo pela atenção e pelas sugestões.
Ao Sr. Eduardo Vila, diretor do Grupo Vila, por me receber em sua “casa” com extrema abertura,
possibilitando a realização deste trabalho.
À Millena Câmara, psicóloga do Morada da Paz, pela presteza e amizade ao me acolher em seu
grupo, e por me permitir observar seu trabalho com os enlutados.
Aos visitantes do Morada da Paz, que com muita paciência e sensibilidade abriram para mim suas
histórias, suas dores e seus sentimentos diante da morte e do luto. Depoimentos, amizades e
ensinamentos de vida sem os quais este trabalho não se realizaria.
Aos amigos Gustavo e Gudmila Svensson, pelo apoio em momentos pessoais difíceis desta
caminhada. À Ana Leda Varella e Miriam Moema, amigas que trocaram comigo as angústias
vividas neste período acadêmico.
À orientadora e amiga Profa. Dra. Lisabete Coradini, pela paciência, pelo carinho quase maternal,
pelo ânimo, apoio e estímulo constantes.
À Profa. Dra. Elisete Schwade, pelas conversas, conselhos e entusiasmo com a minha pesquisa e
minha vida profissional.
Agradeço ainda a todos os professores do Programa, pela exposição de seus conhecimentos, que
certamente acenderam muitas luzes deste trabalho. Aos colegas de curso, pelas conversas e pelo
incentivo. A todos os amigos que, mesmo distantes da minha rotina acadêmica, sempre me
apoiaram e acreditaram na realização deste projeto.
E, por fim, agradeço à Capes, pelo apoio financeiro.
5
“A morte é grande.
Nós lhe pertencemos,
Boca sorridente.
Quando nos acreditamos no coração da vida.
Ela ousa de repente
Chorar em nós.”
Rainer Maria Rilke
6
RESUMO
O estar enlutado, nos dias atuais, configura-se como uma circunstância de isolamento e
angústia social devido à impossibilidade de exposição da dor por parte dos indivíduos que sofrem
uma perda. Ao mesmo tempo, a relação simbólica instituída entre a sociedade e o cemitério
abrange interpretações sobre a morte, a dor e o medo – conferindo às visitas ao espaço um caráter
especial e individual. Diante deste contexto, esta dissertação busca analisar a formação de uma
sociabilidade observada entre visitantes do Morada da Paz - cemitério particular localizado em
Natal/RN -, bem como a freqüência assídua destes sujeitos à necrópole. Assim, a pesquisa
transcorre a partir da observação das relações existentes entre estes atores sociais - cujos
encontros têm proporcionado laços baseados na troca de experiências sobre a dor do luto. Desse
modo, este estudo pretende analisar, como ponto principal, de que maneira o espaço do Morada
da Paz e as relações lá instituídas estão sendo apropriados pelos visitantes em seu processo de
luto, buscando compreender qual o papel destes vínculos na elaboração da perda para estes
sujeitos.
Palavras-chave: Luto, sociabilidade, isolamento, cemitério, emoção.
7
ABSTRACT
Nowadays, the act of mourning configures as a circumstance of isolation and social
anguish due to the impossibility to express the pain by those who suffer the loss of a dear one. At
the same time, the symbolic relations established between society and the cemetery contains
interpretations about death, pain and fear – which confer to the visits a special and individual
feature. In this context, this dissertation tries to analyse the formation of a sociability observed
among visitors of the Morada da Paz – a private cemetery located in Natal/RN – as well as the
frequency of the visitors to the necropolis. Therefore, the research was accomplished from the
observation of the existent relations among these actors – whose meetings have procured links
based on the experiences´ exchange about pain and bereavement. In this sense, this study tries to
analyse, as its principal point, in which way the Morada da Paz space and the relations
established there are being appropriate by the visitors in their mourning process, trying to
understand what are the role of these bond in the elaboration of the loss for these people.
Key words: mourning, sociability, social isolation, cemetery, emotion.
8
SUMÁRIO
iv
v
vi
vii
viii
ix
10
10
18
18
28
43
43
52
71
71
74
80
86
91
103
103
112
121
129
135
142
142
143
144
Dedicatória........................................................................................................................
Agradecimentos................................................................................................................
Resumo..............................................................................................................................
Abstract.............................................................................................................................
Sumário.............................................................................................................................
Lista de Ilustrações............................................................................................................
INTRODUÇÃO...............................................................................................................
A morte e o luto: o indizível e o inaudível........................................................................
CAPÍTULO 1...................................................................................................................
A consciência e o enfrentamento da morte.......................................................................
Da morte familiar ao assunto proibido..............................................................................
CAPÍTULO 2...................................................................................................................
Isolamento social no luto..................................................................................................
Primeira descrição do ambiente e da observação de campo.............................................
CAPÍTULO 3...................................................................................................................
A socialização da dor no luto............................................................................................
Aproximação, observação e relação com enlutados.........................................................
O tempo, a forma da morte e o vínculo em vida...............................................................
Pais que sepultam filhos....................................................................................................
Relação entre enlutados, com o cotidiano e com os falecidos..........................................
CAPÍTULO 4...................................................................................................................
Sociabilidade entre “semelhantes”: amenização ou reforço do isolamento no luto?........
A espontaneidade e a superficialidade na socialização da dor..........................................
Comparação entre os dois casos e perspectivas individuais do estado de luto.................
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................
ANEXOS..........................................................................................................................
Roteiro de entrevistas com os visitantes...........................................................................
Roteiro de entrevistas com a psicóloga.............................................................................
Mapa do Cemitério Morada da Paz...................................................................................
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1
PG
57
57
57
57
61
61
61
61
62
62
62
62
68
68
68
68
68
77
Imagem
Foto 1 (Grupo Vila): Jardim do Morada da Paz.............................................................
Foto 2 (Grupo Vila): Capela Central.................................................................................
Foto 3 (Grupo Vila): Sala de Estar....................................................................................
Foto 4 (Milena Freire): Capela de Oração........................................................................
Foto 5 (Milena Freire): Instrumentistas entre jazigos.......................................................
Foto 6 (Milena Freire): Crianças brincando......................................................................
Foto 7 (Milena Freire): Oficina de Artes..........................................................................
Foto 8 (Milena Freire): Exposição de artes/ Rhazec.........................................................
Foto 9 (Milena Freire): Público presente na missa...........................................................
Foto 10 (Milena Freire): Grupos nos jardins....................................................................
Foto 11 (Milena Freire): Pessoas se alimentando.............................................................
Foto 12 (Milena Freire): Movimento na floricultura........................................................
Foto 13 (Milena Freire): Cuidado e culto ao jazigo..........................................................
Foto 14 (Milena Freire): Família reunida em oração........................................................
Foto 15 (Milena Freire): Missa semanal...........................................................................
Foto 16 (Milena Freire): Emoção na visita ao jazigo........................................................
Foto 17 (Milena Freire): Mensagens enviadas aos falecidos em balões...........................
Foto 18 (Milena Freire): Reunião do grupo de apoio psicológico....................................
1
As fotografias indicadas como de autoria do Grupo Vila estão disponíveis em www.grupovila.com.br.
10
INTRODUÇÃO
A morte e o luto: o indizível e o inaudível
Antes de existir a voz existia o silêncio
O silêncio
Foi a primeira coisa que existiu
Um silêncio que ninguém ouviu
2
Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. O Silêncio.
Silêncio. Sobre a morte não se fala. As atitudes diante da morte passaram, desde o início
do século anterior, por alterações no que diz respeito à sensibilidade coletiva na percepção a na
expressão dos sentimentos causados pela consciência da finitude humana. “Na realidade, trata-se
de um fenômeno absolutamente inaudito. A morte, tão presente no passado, de tão familiar, vai se
apagar e desaparecer. Torna-se vergonhosa e objeto de interdição” (ARIÉS, 2003, p. 84).
É interessante, para melhor percepção do assunto, observar o quanto a consciência da
finitude remete à relação conflituosa, porém fundamental, do entendimento do homem sobre si
mesmo. É a consciência da transitoriedade da vida que leva o sujeito a entender seus limites e sua
existência. Assim, a morte como fato inexorável, sobre o qual não se tem controle, recai sobre a
fragilidade humana – o temor pelo desconhecido (o que seria o pós-morte?) fez os homens
atribuírem uma série de significações e explicações que sustentam a crença numa continuidade,
num prolongamento da existência após o fim da vida.
O homem deseja superar a morte, por isso constrói estas projeções
3
. Pensar na morte
como uma passagem, como uma etapa, significa negá-la como fim implacável da vida. Contudo,
2
Grifos meus. Nota válida para todas as epígrafes.
3
Refiro-me aqui às concepções de duplos, almas, “outro mundo” e “além”, como representações que garantem esta
continuidade.
11
algumas mudanças significativas ocorridas, principalmente, a partir da compreensão do indivíduo
na sociedade moderna, contribuíram para uma nova maneira de negar a morte. Não são mais as
projeções da idéia de continuidade em um plano metafísico que asseguram a amenização para o
enfrentamento da morte. Negar a mortalidade, atualmente, é viver como se ela não existisse.
Voltando a considerar a consciência da finitude como fomento para a compreensão de si e
da vida, pode-se perceber como ocorreram algumas transformações neste campo, numa
perspectiva mais atual. Observando a necessidade de atribuição de sentido às ações dos sujeitos a
partir do aproveitamento do tempo vivido – o que fortalece a idéia de responsabilidade individual
sobre o próprio destino e acaba por enfraquecer as crenças na continuidade, bem como fragiliza a
noção de congruência na relação sujeito vs. sociedade – Oliva-Augusto (1994, p. 101, grifos da
autora) faz a seguinte reflexão:
No momento contemporâneo, como a vida perdeu o sentido – à medida que
desapareceu o sentido da própria história ou do próprio sentido da história –
também não há significado para a morte. Há vários mecanismos que tentam
afugentá-la, como se negá-la de alguma forma fosse garantia de sua não
aproximação. Tratam-se dos mesmos mecanismos envolvidos no “fazer passar”
a vida: o refúgio no imediato, a compartimentação entre gerações, a perda no
senso de continuidade. No mundo contemporâneo, o indivíduo vive uma corrida
alucinada para esquecer que vai morrer e que tudo o que faz não tem,
estritamente, nenhum sentido. Sucumbe, assim, enquanto indivíduo, uma vez
que o seu sentido de pertencimento é obnubilado e anulada a vivência de sua
singularidade.
Nota-se, desta maneira, o quanto a morte tornou-se indizível, e, principalmente, o quanto o
escamoteamento de sua presença numa esfera reflexiva na sociedade contribui para uma
problemática social.
12
A morte “é empurrada mais e mais para os bastidores da vida social durante o impulso
civilizador” (ELIAS, 2001, p. 19). Exemplo disto está na maneira distanciada que se morre
atualmente. A inserção do hospital e da medicalização do doente no cotidiano contribuem, e
muito, para este novo enfrentamento da morte. Os ritos de passagem, como forma de manutenção
da relação entre o homem e a morte (representados de forma direta pelos falecidos), embora
permaneçam presentes, também apresentam alterações significativas:
Se algumas formalidades são mantidas, e se uma cerimônia ainda marca a
partida, devem permanecer discretas e evitar todo pretexto a uma emoção
qualquer – assim, as condolências à família são agora suprimidas no final dos
serviços de enterro. As manifestações aparentes de luto são condenadas e
desaparecem. [...] Só se tem o direito a chorar quando ninguém vê nem escuta: o
luto solitário e envergonhado é o único recurso (ARIÈS, 1997, p. 87).
Desta maneira, considerando ainda as transformações ocorridas no âmbito das relações
sociais a partir do “processo civilizador” (ELIAS, 1993), no qual impera a economia dos gestos e
das emoções, torna-se perceptível o quanto a discrição é tida como elemento comportamental
preponderante entre indivíduos em estado de luto. Isolados pelo sentimento de necessidade vs.
impossibilidade de expor sua dor, os enlutados introjetam seu sofrimento de forma solitária:
Para Ricoeur
4
(1994, p. 60 e 61), o sofrimento quando se abate sobre alguém é
sempre solitário e sempre inominável, porque incomunicável em sua
perplexidade e extensão, o que faz de cada sofredor um sofredor, específico na
sua irresolução e na sua incomunicabilidade. O ato do sofrimento reduz as
esferas do outro que se apresenta quase sempre como alguém ou algo que usurpa
4
RICOEUR, Paul (1994). La Souffrance nést pas la douler. Souffances 142, pp. 58 a 70.
13
a necessidade de silêncio e autoreferências com que se reveste a tragédia
causadora do seu sofrimento. (KOURY, 2002b, p. 59).
Seguindo nesta reflexão, percebe-se a necessidade de entender como a morte e o luto são
tratados numa sociedade em que o individualismo vigora. O sofrimento causado pelo luto tornou-
se um problema a ser vivido apenas por aquele que perdeu. A dor grita nos enlutados. Mas dentro
deles. O social faz sua economia de gestos e sentimentos. E põe-se surdo diante do sofrimento
daquele que sofre uma perda. Esta dor transforma-se em algo inaudível, e por isso mesmo
indizível. Para não sofrer mais (?) diante da inadequação de seu sofrimento num âmbito mais
amplo, o enlutado cala e põe-se mudo.
Existe, assim, um afastamento da dor da perda no cotidiano, e o jogo entre indivíduo e
sociedade torna-se quite: um não fala por não ter quem ouça e quem compreenda, e o outro não
ouve para não incomodar-se e também para não envolver-se. E então permanece o silêncio, que
guarda no fundo um som angustiado, isolado, sofrido e “inadequado” do enlutado. Vê-se, desta
maneira, que aquilo que transforma em tabu a morte e o morto, também impõe como tabu tudo
aquilo que os envolve, inclusive os enlutados (RODRIGUES, 1983, p. 69). E é no momento em
que os indivíduos que sofrem a perda mais necessitam encontrar amparo social que lhes é negado
este auxílio (ARIÈS, 2003, p. 261) – o que torna conflitante sua relação com o coletivo,
reforçando o seu isolamento e a abrangência do seu sofrimento.
Iniciei esta introdução afirmando que não se fala sobre a morte. Este é um fato primordial
para o entendimento do tema e de sua relevância como assunto a ser estudado. Antes, contudo, é
preciso registrar que a morte vem sendo cada vez mais incorporada aos estudos científicos. Na
verdade, trata-se de um retorno do tema à academia, como propõe José de Souza Martins (1983,
14
p. 11): “É preciso negar e contestar o silêncio que pesa sobre este assunto; descobrir ao menos
porque a morte é tema interditado e interditado até mesmo para a pequena burguesia acadêmica”.
Pesquisar, estudar o tema da morte, remete a um pensamento sobre a vida, sobre as
construções sociais que mantêm o discernimento da finitude distante do cotidiano. Não fugindo à
“regra”, eu também não pensava na morte. Não falava sobre ela. A minha aproximação ao tema
aconteceu de maneira inesperada. Não imaginava ter que refleti-lo mais profundamente. Na
verdade, a proposta inicial deste trabalho era perceber a receptividade da população natalense
com relação à campanha publicitária do Morada da Paz – cemitério particular localizado em
Natal, Rio Grande do Norte - veiculada no ano de 2002, cujo aumento de vendas de jazigos
triplicou no período da veiculação na mídia.
A idéia era compreender como este investimento em comunicação de massa era percebido
pelos consumidores, ou seja, o que levaria as pessoas a adquirirem seus próprios jazigos
antecipadamente. Porém, com o início da pesquisa empírica, através das visitas de campo, fui
percebendo que a publicidade era apenas uma das ações mercadológicas desenvolvidas pelo
grupo empresarial que gerencia esta necrópole, e que este conjunto de ações poderia contribuir
para a ampliação da sociabilidade entre os visitantes e para uma freqüência assídua dos enlutados
ao local – o que possibilitaria demonstrar uma nova perspectiva em relação ao ambiente do
cemitério, bem como às visitas ao espaço integrando os ritos que compõem o luto.
Neste ponto, é possível lembrar Laplatine (2000, p. 151, grifos meus) quando se refere à
importância da “descoberta” etnográfica a partir da percepção das virtudes do campo:
A busca etnográfica, pelo contrário, tem algo de errante. As tentativas
abordadas, os erros cometidos no campo, constituem informações que o
pesquisador deve levar em conta. Como também o encontro que surge
15
freqüentemente com o imprevisto, o evento que ocorre quando não
esperávamos.
Não nos enganemos, porém, quanto às virtudes do campo. [...] Pois a prática
antropológica só pode se dar com uma descoberta etnográfica, isto é, com
uma experiência que comporta uma parte de aventura pessoal.
Assim, eu tive que me aproximar da morte e do luto. Daquilo que é indizível, que é
“mudo” no discurso social. Conseqüentemente, foi notada a necessidade de considerar a
dimensão simbólica estabelecida contemporaneamente na relação entre a sociedade e o espaço do
cemitério, que abrange interpretações sobre a morte, a dor e o medo. Com isso, também se
envolveram no campo da pesquisa reflexões acerca do estado de luto e do sofrimento da perda,
que dão um caráter especial e individual às visitas realizadas por enlutados no ambiente de um
cemitério.
Esta aproximação aos enlutados indicou ainda a necessidade de ouvir de maneira mais
sensível o seu discurso; de compreender mais adequadamente o que estava por trás da dor da
perda; de perceber o que levava aqueles sujeitos para um estado à margem do contexto social
(VAN GENNEP, 1977, p. 127) e de procurar entender que maneira o espaço do Morada da Paz e
as relações lá instituídas estavam sendo apropriados pelos visitantes em seus processos de luto.
Desta forma, considerando a alteração dos espaços dos cemitérios particulares - através da
prestação de serviços que visam o acolhimento dos visitantes - este trabalho se propõe a analisar
a sociabilidade existente entre os enlutados no Morada da Paz e o papel destes vínculos na
elaboração da perda por estes sujeitos. Assim, a pesquisa transcorre, basicamente, através da
observação das relações existentes entre estes atores sociais, cuja freqüência dos encontros tem
proporcionado laços baseados na troca de experiências sobre a dor do luto.
16
Como recursos metodológicos para o entendimento deste quadro foram realizadas
incursões ao longo de dois anos, onde foram mantidas conversas informais, como também o
acompanhamento de reuniões do grupo de apoio psicológico para enlutados (um dos serviços
oferecidos pelo Morada da Paz). As entrevistas
5
foram aplicadas com os visitantes mais assíduos
e com participantes do referido grupo, bem como com funcionários e com a gerência do grupo
empresarial. Fotografias, principalmente da observação dos dias de finados dos anos de 2003 e
2004, também foram utilizadas como forma de registro e recurso para interpretação da utilização
do espaço cemiterial
6
.
Descobrir o silêncio que pesa sobre a morte nos dias atuais significa, inicialmente, fazer
uma revisão histórica e social do tema. Assim, para melhor compreensão sobre a percepção que
os visitantes do Morada da Paz têm do ambiente do cemitério, da própria morte e da dor da perda,
fez-se necessário entender a construção simbólica, histórica e social do cemitério nas cidades,
assim como considerar as transformações ocorridas na relação do homem com a morte e com a
experiência do luto na sociedade ocidental. Sendo esta, portanto, a perspectiva trabalhada no
primeiro capítulo da dissertação.
O estabelecimento de um olhar mais aproximado, indispensável na observação
antropológica, permitindo uma visão particularizada do tema, está exposto no segundo capítulo,
através da análise do processo do luto na sociedade atual, além de incluir uma descrição mais
detalhada do ambiente do Morada da Paz como campo de ação destes atores sociais.
Já o terceiro capítulo reserva-se às considerações analíticas daquilo que foi percebido
como formador da angústia dos enlutados - o seu conflito com o social, que não entende e não
5
Vide roteiros em anexo.
6
Ainda sobre a construção metodológica deste trabalho, é importante destacar a maneira como estão identificados os
depoentes. São utilizadas diferentes designações, tais como: visitante, enlutado, indivíduo em estado de luto, sujeito,
indivíduo e ator. E, embora exista uma sensível diferença na aplicação destes termos num ponto de vista teórico de
correntes sociológicas ou antropológicas, neste estudo, estas expressões distintas estão colocadas meramente com a
intenção de facilitar a construção textual, procurando evitar a exaustiva repetição de uma única terminologia.
17
permite a exposição das suas dores. “Você já perdeu alguém? Não? Então não vai entender do
que estou falando” – me diziam, em princípio, meus entrevistados. Contudo, inserir-me no
cotidiano apartado destes indivíduos, cujas conversas sobre a dor tornam-se possíveis no
ambiente do cemitério, possibilitou compreender e observar que este silêncio, esta dor indizível,
mais parece um nó na garganta – aquilo que precisa ser revelado, e acaba por acontecer naquele
espaço, entre “iguais”. A análise de como e em que medida a sociabilidade encontrada no Morada
da Paz colabora, ou não, para a amenização da angústia social a que estão expostos os enlutados
que freqüentam aquele local, fundamenta a construção do quarto, e último capítulo.
É interessante, ainda neste momento, perceber a afirmação de Roberto DaMatta (1991, p.
149) que reflete acerca do luto na sociedade brasileira como algo que salienta as relações sociais,
sendo imposto de fora, da sociedade, para dentro – atingindo os indivíduos que cercam o morto.
Segundo sua reflexão, a oposição do caso brasileiro estaria nos sistemas individualistas para os
quais o luto torna-se ausente da esfera social pela relevância dada, nestas sociedades, às emoções
individuais.
Embora tenha sido possível perceber nesta pesquisa a presença de relações sociais
baseadas no luto, a existência destes laços se mostrou fundamentada por uma motivação oposta à
consideração de DaMatta. É justamente pela persistência da importância em assegurar como
primordiais as emoções individuais, especialmente na esfera cotidiana, que os enlutados do
Morada da Paz refugiam-se da sensação de isolamento e de inadequação, a partir dos vínculos
estabelecidos naquele espaço. Concordando, desta maneira, com a concepção de Koury (2003) de
que uma nova sensibilidade acerca do luto vem se formando no Brasil, se refletindo no
distanciamento e no estranhamento vivenciados pelos enlutados expostos à dor. É preciso
observar a angústia, compartilhar a dor inominável do enlutado, e, desta forma, ouvir o som que o
social encobre em silêncio.
18
CAPÍTULO 1
A consciência e o enfrentamento da morte
“Senhoras e senhores
Trago boas novas
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva - viva!
Cazuza. Boas Novas.
Uma afirmação aparentemente simples desencadeia nossa primeira reflexão: somente o
homem, dentre todos os seres, tem a consciência de sua morte. Esta noção, contudo, remete à
assimilação de um problema mais complexo, que acompanha a preocupação humana desde o seu
princípio – a partir da certeza de sua finitude, o homem estabelece uma relação conflituosa com a
morte. Esta relação, é claro, apresenta inúmeras alterações culturais, que variam de acordo com
os grupos, períodos históricos, construções simbólicas e religiosas.
No que diz respeito ao enfrentamento da morte, existe, porém, a despeito das inúmeras
alterações culturais, um ponto de confluência entre as mais diversas sociedades acerca da certeza
do fim de cada um de seus membros – ela provoca transformações na elaboração do homem
sobre si mesmo. A consciência da morte é, assim, o conhecimento de si e dos outros. José Carlos
Rodrigues (1983, p. 20) afirma: “A consciência da morte abre uma passagem pela qual vão
transitar forças notáveis que transformarão a maneira humana de ver a vida, a morte, o mundo”.
Podemos imaginar, portanto, a amplitude do problema a ser trabalhado quando notamos que a
finitude humana recai sobre sua própria construção social.
19
Assim, tecer uma história das atitudes do homem perante a morte é tecer uma história
“das mentalidades e das sensibilidades coletivas” (MARCÍLIO, 1983, p. 61), pois concerne ao
entendimento do homem e de sua constituição cultural. E por que não dizer, refletindo acerca da
mentalidade e da sensibilidade humana, que a consciência da morte é, em si, um dos princípios
fundamentais da sua cultura – considerando que tal enfrentamento permite ao homem a
compreensão de si (DASTUR, 2002, p. 13). Edgar Morin (1997, p. 10-11) reflete que a sociedade
só existe por, com e na morte, ao entender que a reprodução das culturas assume sentido por
meio da transmissão dos patrimônios coletivos, que regem os saberes e as normas de conduta,
entre as antigas e as novas gerações.
Examinando a noção de cultura e de transmissão (e reelaboração) dos saberes e dos
valores simbólicos entre as gerações, proponho, ainda, considerar a temática da morte observando
sua relação com os mitos. Segundo Alípio de Sousa Filho (1995, p. 89, grifo do autor):
A morte também é nos mitos como uma intrusão dos Deuses na vida dos
homens. A morte não havia no começo, mas apareceu como punição, pela
desobediência, ingratidão ou simples estupidez da humanidade. Há uma crença
de que, no começo, a morte deveria ser temporária ou inexistente para os
homens. Os Deuses teriam concedido a imortalidade aos homens, mas esses
erraram, pecaram e veio a morte.
Se observarmos a existência do mito como uma “representação do social com todos os
traços de um discurso cujas metáforas escondem dos homens os segredos do social” (idem, p.
85), percebemos o quanto este exerce a função de legitimação de uma realidade e de uma ordem
dada aos homens como existente. Assim, ao conceber através do mito que a morte é para a
humanidade uma causa externa, ou seja, ocasionada por uma atitude divina (o que não retira a
20
participação do homem ao iniciar o processo através do pecado, vindo ser a morte um castigo),
vê-se mais aproximadamente o quanto este enfrentamento é uma problemática social.
Deste modo, a isenção de uma responsabilidade do homem sobre a morte nada mais é que
uma maneira de negá-la, de adaptar a sua incapacidade de vencê-la a partir de uma noção que
estabeleça a ordem social mantida, neste exemplo, através dos mitos – o que nos faz relembrar a
relevância dada à morte em diversas esferas que contribuem para a legitimação e manutenção
desta ordem, tais como filosofia, religião, ciência, medicina e artes.
A literatura e a poesia, que, através da estética, expressam a intimidade (DURAND, 2002,
p. 239) e a sensibilidade humana, tornam-se dados antropológicos que exprimem as agonias e os
conflitos da relação homem vs. morte. Assim, dando ênfase ao caráter próprio da arte que é um
ópio que não faz adormecer, e sim, abre os olhos, o corpo, o coração para a realidade do homem
e do mundo (Morin, 1997, p. 175), peço permissão para um “mergulho antropológico” nas
palavras de Manuel Bandeira (1986, p 253-254), no poema “A morte absoluta”, que nos remete à
angústia provocada pela incerteza do destino pós-morte, e ao seu conteúdo individualizante, em
que o homem teme ser esquecido enquanto indivíduo:
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
21
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
De maneira mais marcante, o que se pode perceber neste poema de Bandeira é o temor do
aniquilamento total após a morte, o esquecimento dos sobreviventes, a incerteza do destino para o
céu, e até mesmo o que seria este “céu”. Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Questiona. Mais ainda: o homem teme não sobreviver nem na lembrança, nem na própria
existência como alma – findar-se absolutamente com a morte. Morrer de corpo e alma. [...]
morrer mais completamente ainda, - Sem deixar sequer esse nome. Este é o problema causado
pela consciência da morte.
A idéia da morte é, desta maneira, um problema do homem. Ou melhor, dos homens
vivos. Conforme atesta Norbert Elias (2001, p. 10) “os mortos não têm problemas”. Chega-se
então ao primeiro desdobramento que a problemática causada pela noção humana da morte nos
propõe: apesar da certeza de sua limitação, o homemo aceita esta partida e, daí, cria, diversas
perspectivas de manutenção de sua existência. A consciência gera a negação da morte. Como diz
Ernest Becker (1976, p. 9): “[...] a idéia da morte, o temor a ela, persegue o animal humano como
nenhuma outra coisa: ela é um dos maiores incentivos da atividade humana – atividade em
grande parte destinada a evitar a fatalidade da morte, a vencê-la negando de algum modo ser ela o
destino final do homem”.
Desta maneira, surgem as noções de duplos, das almas e dos seus destinos: céu,
purgatório, inferno, ainda, “além” ou “outro mundo”, como formas de negação à finitude
humana. A morte, assim, não representa o aniquilamento do homem, ele permanece existindo por
22
meio de construções simbólicas originárias desta negação. É preciso notar que a concepção dos
duplos remete diretamente à noção individualizante da morte. É o temor pela própria partida que
cria a perspectiva de continuidade, como uma atribuição de uma imortalidade. A alma pode ser
vista então como um outro que acompanha o eu já em vida, e que alcança sua existência legítima
a partir da desvinculação do corpo. Assim, o duplo, concebido através do temor à finitude, é uma
experiência que o homem tem de si, conforme nos explica mais detalhadamente Morin (1997, p.
136-137, grifos do autor):
[...] o duplo é um alter-ego, e mais precisamente, um ego alter, que a pessoa
viva sente nela, ao mesmo tempo exterior e íntimo, ao longo de sua existência. E
por conseguinte, não é uma cópia, uma imagem da pessoa que vive que,
originalmente, sobrevive à morte, mas sua realidade própria de ego alter. [...]
Percebe-se agora que o suporte antropológico do duplo, através da incapacidade
primitiva de imaginar a destruição, através do desejo de ultrapassar o obstáculo
empírico da decomposição do cadáver, através da reivindicação fundamental de
imortalidade, é o movimento elementar do espírito humano que primeiro
coloca e conhece sua intimidade exteriormente a ele. De fato, no começo, toda
pessoa só se sente, se ouve, e se vê como “outro”, isto é, projetada e alienada.
As crenças do duplo se fundamentam pois na experiência original e fundamental
que o homem tem de si mesmo.
É perceptível, desta maneira, a propriedade da afirmação de que “os mortos têm apenas a
existência que os vivos imaginam para eles” (SCHMITT, 1999, 15), sobre a qual são criadas
expectativas de um outro plano, onde é atribuída uma outra vida. Tais lugares e formas de
existência são nada mais que representações daquilo que o homem espera para si próprio:
ultrapassar a morte. Existe, portanto, uma vinculação entre este e o outro lado, entre a vida e a
morte, que é estabelecida mediante a idéia de continuidade dos mortos. A manutenção deste
vínculo acontece primordialmente a partir das práticas funerárias, que socializam as emoções
23
suscitadas pelo enfrentamento da morte, despertando a consciência para a própria finitude e
fazendo sobreviver os mortos – seja através da noção dos duplos e das suas moradas, ou a partir
da concepção do renascimento (MORIN, 1997, p. 25).
Isso demonstra que a relação do homem com a morte provoca emoções que remetem
diretamente à sua fragilidade: o desconhecido e o incontrolável. Ora, a morte é para o homem um
fato que foge de seu controle, é indissociável de sua existência. Como diz Françoise Dastur
(2002, p. 8-9):
Com efeito, poderíamos dizer, da morte, o que a tradição ocidental diz tão bem
de Deus: que Ele é “algo cuja grandeza não se pode conceber”, não certamente
porque ela seria plenitude de ser e perfeição suprema, mas ao inverso, porque
“é” absoluta anulação, “objeto” impensável, impossível de ser circunscrita, sobre
a qual nenhum domínio jamais foi possível e cuja onipotência sobre nós é
semelhante à de um deus único.
Assim, a impotência do homem diante da morte acarreta o sentimento de pânico e temor
que só vem a ser estabilizado a partir da atribuição de significações que remetam a uma
continuidade, a um prolongamento da existência humana. Tais ordenações e significados se dão,
portanto, no plano da cultura, cujos códigos estruturam e organizam a vida social. Simbologias
que, por sua vez, se constroem freqüentemente através de uma imensurável contribuição da
estrutura religiosa, ao conceber seu discurso baseado na noção de punições e recompensas aos
duplos – no que diz respeito aos destinos da alma –, e até mesmo levantam a possibilidade de um
retorno dos espíritos ao mundo dos vivos a partir da idéia de renascimento ou reencarnação,
reforçando a noção de imortalidade proporcionada pela fé em Deus. Em uma passagem do
24
sermão de Quarta-feira de Cinza, do Padre Antônio Vieira, escrito em 1672 (1994, p. 63-64,
grifos do autor) podemos perceber mais claramente:
Mas que importava que o não alcançasse a razão onde está a Fé? Que importa a
autoridade dos homens onde está o testemunho de Deus? O pó daquela sepultura
está chamando: [...] ressurgirei da terra, e serei novamente revestido da minha
pele, e na minha própria carne verei o meu Deus
7
. Eu mesmo o verei, e os meus
olhos o hão de contemplar, e não outro. Este homem, este corpo, estes ossos,
esta carne, esta pele, estes olhos, este eu, e não outro, é o que há-de morrer?
Sim; mas reviver e ressuscitar à imortalidade.
A congruência entre representações da morte e representações religiosas é inevitável.
Grande parte das concepções humanas sobre a morte encontra suas bases na religiosidade, que
por sua vez, manifesta pensamentos e realidades coletivas. Lembremos de Durkheim (1989, p.
38): “As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades
coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio de grupos reunidos que se
destinam a suscitar, a manter, ou a refazer certos estados mentais destes grupos”. Logo, ao aplicar
concepções acerca dos duplos, suas recompensas e penalidades, tais representações religiosas
correspondem, primeiramente, a representações
8
coletivas.
Além da integração a preceitos religiosos, as maneiras de conviver com a incerteza do
destino do homem pós-morte se dão ainda através das ligações mantidas entre falecidos e
sobreviventes. Isto inclui não somente o vínculo conservado entre este e um outro plano de vida,
mas também garante a tranqüilidade dos sobreviventes no que diz respeito ao seu futuro,
7
Jó, 19, 25 – 27.
8
Emprego aqui o conceito de representações trabalhado por Jovchelovitch (1994)
25
posterior à morte - uma vez que a própria existência e manutenção de tais ritos se dão a partir do
temor à finitude e às incertezas por ela causadas.
A partir de então se tem a percepção da importância dos ritos funerários na manutenção
desta relação. São os ritos mortuários que demonstram os cuidados e as preocupações humanas
diante do “fantasma” de sua finitude. Podemos, desta forma, percebê-los como fenômenos sociais
que envolvem os mortos - que devem, a partir de tais cuidados, se adaptar à sua nova “vida” - e
os vivos - que diante da perda também se submetem a padrões de comportamento e de
reorganização da vida.
Os ritos de passagem assumem a função de estabelecer a ordem social perdida com o
evento da morte. Os falecidos, logo após sua partida, transitam até alcançarem seu firmamento no
mundo dos mortos. No intuito de auxiliar esta passagem, de maneira que ela ocorra com
segurança para mortos e sobreviventes – que temem a convivência com os duplos -, é que se
revelam os sentidos dos ritos praticados pelos vivos (REIS, 1991, p. 89-90). São eles, portanto,
que marcam e asseguram a passagem dos mortos deste para um outro plano. É perceptível então
porque o evento da morte, desde os mais antigos registros da humanidade, transforma-se em si
num momento público e social, em que são demonstradas e ritualizadas emoções que estão
incutidas nesta relação do homem com a noção de sua finitude.
Os ritos manifestam, desta forma, a necessidade humana de solucionar seus problemas
com a desordem provocada pela morte. É preciso assegurar a partida do morto. Tais atividades,
devido à relação conflituosa entre o homem e a. morte, podem ser observadas como momentos de
reestruturação social a que os sobreviventes são submetidos, como aponta Rodrigues (1983, p.
45):
26
Como fenômeno social, a morte e os ritos a ela associados consistem na
realização do penoso trabalho de desagregar o morto de um domínio e introduzi-
lo em outro. Tal trabalho, exige todo um esforço de desestruturação e
reorganização das categorias mentais e dos padrões de relacionamento social. O
enterro, bem como as outras maneiras de lidar com o corpo morto, é um meio de
a comunidade assegurar a seus membros que o indivíduo falecido caminha na
direção de seu lugar determinado, devidamente sob controle. Através de tais
práticas, o grupo recebe mensagens que evoluem da insegurança ao sentimento
de ordem e representam a maneira especial que cada humano tem de resolver um
problema fundamental: é necessário que o morto parta.
É notável que a prática da inumação, o cuidado com o corpo morto, ocorre como uma
forma de salvaguardar falecidos e sobreviventes. O local de sepultamento pode ser visto como o
espaço onde “reside” o morto, e, porque não pensar, o duplo. Resgata-se, assim, a noção de
individualidade dos mortos a partir dos ritos, que, ao integrarem também os vivos, são igualmente
constituições sociais. Para Durand (2002, p. 237), a prática do enterramento estabelece a
concepção da morte-maternal, em que a terra “torna-se berço mágico e benfazejo porque é o
lugar do último repouso”. Desta forma, a terra acolhe o corpo que repousa, o que mantém a noção
de sobrevivência da alma, visto que aquele que repousa permanece existindo.
Deduz-se então que a morte e os ritos por ela gerados suscitam nos sobreviventes
emoções que os reportam tanto à sua relação particular com a morte quanto com o falecido.
Estabelece-se aí a noção do luto, estado em que se situam aqueles que estão vinculados de
alguma maneira com o morto. Para Arnold Van Gennep (1977, p. 127) o luto “é um estado de
margem para os sobreviventes, no qual entram mediante ritos de separação e do qual saem por
ritos de reintegração na sociedade geral”, e sua duração pode relacionar-se diretamente com o
período de acomodação do morto em seu novo plano. Portanto, durante o período do luto, ambos,
falecidos e sobreviventes, “constituem uma sociedade especial, situada entre o mundo dos vivos,
27
de um lado, e o mundo dos mortos, de outro, da qual os vivos saem mais ou menos rapidamente
conforme fossem mais estreitamente aparentados ao morto”.
Se enxergarmos mais detalhadamente o estado de luto, podemos observar que esta é a
experiência mais próxima que o homem tem com a morte – uma vez que a própria morte não
pode ser experimentada, nem sequer descrita, pelos sobreviventes
9
. Assim, é a partir da condição
de enlutado que o indivíduo - além de vivenciar a dor da perda (o que lhe permite uma vinculação
com o morto, situando-o num estado à margem) - passa a notar mais nitidamente a sua própria
condição de mortal.
O luto carrega em si, portanto, uma dimensão “afetiva”, que relembra ao homem sua
mortalidade, e, além disso, possibilita ao indivíduo uma noção de falta, de lacuna, uma vez que a
existência do homem, em sociedade, é um “ser-com-o-outro
10
”, como bem explicita Elias (2001,
p. 76): “A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece - se correr tudo bem.
Terrível pode ser [...] a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura
conhecida. Somos parte uns dos outros”.
É então quando a morte, através do luto, apresenta-se como além de uma experiência
social, coletiva, mas também individual, privativa – pois refere-se à consciência que o homem
tem de si e de suas limitações, e ainda à sua dor pela partida do próximo. Este sentimento de
aflição provocado pelo luto desdobra-se numa série de conseqüências sociais que serão
analisadas mais cuidadosamente no decorrer do trabalho. O que quero apontar, em princípio, é o
vínculo conflituoso que o homem tem, desde a sua origem, com a morte - estendendo-se este
9
A impossibilidade de prever, de descrever o delírio da partida, e a construção romanceada da percepção de um
falecido sobre a morte é tema, inclusive, de notável obra da literatura brasileira. Em suas “Memórias Póstumas”,
Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, relembra seu pioneirismo nesta descrição: “Que me conste, ainda
ninguém relatou seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá” (ASSIS, 1997, p. 23)
10
Tomo aqui expressão emprestada de Heidegger, citado por Dastur (2002, p. 67)
28
enfrentamento para uma série de práticas e relações sociais que fazem refletir acerca das causas e
conseqüências do estado de luto nos dias de hoje.
A pertinência em observar tal quadro apresenta-se pela relevância que tem a morte e os
ritos por ela gerados na concepção que o homem tem de si e do mundo em que vive – o que nos
remete ao conceito de cultura, objeto essencial do estudo antropológico. Assim, compreendendo
o luto e o sepultamento como ritos que envolvem a relação da sociedade com a morte e que, por
isso, colaboram com a construção cultural do homem, chegamos ao panorama inicial desta
pesquisa. Para termos um entendimento mais específico destas atitudes e relacioná-las com o
objeto deste estudo, faz-se necessário uma reconstrução histórica e social da relação do homem
com a morte, com o luto e com o rito de inumação, e, conseqüentemente, com os espaços
cemiteriais na sociedade cristã ocidental.
Da morte familiar ao assunto proibido
Segundo Philippe Ariès (2003, p. 36-38) registros das civilizações pré-cristãs demonstram
uma familiaridade da sociedade com a morte. Existia uma aceitação do destino coletivo, da
finitude natural dos indivíduos. Contudo, o culto aos mortos, que eram sepultados
individualmente e muitas vezes tinham seus túmulos identificados, tinha o intuito de coibir a
volta dos mortos para que não perturbassem os vivos. Assim, objetos e alimentos eram oferecidos
aos falecidos com a intenção de satisfazê-los, para que estes não precisassem voltar para pedir ou
exigir nada dos sobreviventes. A presença dos defuntos entre os vivos era evitada ainda através
da proibição do enterro nas cidades. Os cemitérios localizavam-se na beira das estradas, longe
dos centros urbanos.
29
A concepção do sepultamento dava, desse modo, dignidade ao falecido e tranqüilidade
aos sobreviventes. O processo de luto, a permanência da memória do finado, garantia a fixação
deste num outro plano. O que amedrontava nessa situação não era a idéia ou o evento da morte,
mas o corpo morto e a possibilidade de seu retorno entre os vivos. Escrevendo sobre as noções da
morte neste período, Dastur ( 2002, p. 27) afirma:
[...] nada podia ser mais terrível para o homem da Antigüidade do que privá-lo
da honra suprema da sepultura, pois, neste caso, o que é propriamente terrível é
menos a morte em si que o morto, enquanto ele não tiver atingido o processo de
interiorização e fixação da memória que é o luto, última provação contra o poder
exercido pelos mortos sobre os vivos, e enquanto continuar a povoar, conforme a
maneira de inquietante estranheza daquele que retorna do além, que ao mesmo
tempo está fora da morte e fora da vida, a consciência dos sobreviventes.
A importância da inumação e da preservação da memória, bem como a idéia de
continuidade do espírito, permaneceram presentes desde a Era Cristã. Com o início do culto aos
mártires, também sepultados nos cemitérios extra-urbanos, foram construídas as primeiras
basílicas no espaço da necrópole. Aliado à influência do cristianismo, foi estimulado o desejo de
enterrar os mortos próximo às capelas, com a intenção de purificar suas almas, pois existia a
crença na ressurreição após o Juízo Final. Por volta do século VI, com a expansão das cidades, os
cemitérios foram incorporados às paisagens urbanas.
Entre os séculos VI e XII, com a entrega dos corpos às igrejas, perdeu-se a concepção de
que os mortos deveriam ser enterrados em seu local próprio, individual. O sepultamento em solo
sagrado já era suficiente para assegurar a espera pela ressurreição. Desta maneira, de acordo com
Ariès (2003, p. 42), os corpos eram depositados em grandes valas comuns, sem caixão, e a
30
familiaridade dava um caráter pacífico à morte. A diferença dos sepultamentos ficava apenas para
os defuntos mais ricos, enterrados no interior das igrejas, sendo alguns em túmulos identificados.
Segundo José Carlos Rodrigues (1983, p. 118) existia a dor entre os sobreviventes, mas
esta não era insuportável ou intolerável. Este ponto de vista é reforçado por Norbert Elias (2001,
p. 19-24), que faz uma ressalva quanto à consideração de Ariès de que a morte na Idade Média
seria concebida como pacífica, aceita pelo moribundo e por seus familiares. Ele argumenta que,
devido a menor expectativa de vida, era mais fácil manter contato com a morte. Isto a tornava
mais familiar, o que não quer dizer que não existisse o sentimento de culpa e o medo da punição
após a morte.
Ambos concordam, no entanto, que existia uma familiaridade da sociedade com os
mortos. O lugar do cemitério, cujo limite já se confundia com o espaço da cidade, era um local
público, onde começaram a ser construídas casas e passou a desenvolver-se uma sociabilidade. O
que torna possível o registro de Rodrigues (1983, p. 165), que, contextualizando o reflexo da
convivência com a morte e o ambiente do cemitério, da Idade Média até meados do século XVIII,
faz a seguinte descrição: “[...] nele [no cemitério] as pessoas iam passear, dançar, vender e
comprar, lavar a roupa; nele se dava justiça, se resolviam questões políticas da comunidade, se
consumavam execuções, se faziam reuniões, representações teatrais e se deixava o gado pastar”.
A partir do século XII, a familiaridade com a morte vai adquirir uma carga dramática,
devido a uma preocupação específica com a finitude de cada indivíduo: o conceito de destino
coletivo volta-se para o conceito de destino pessoal, através do qual cada um vai preocupar-se
com a sua própria morte, o que reflete um redescobrimento da individualidade - indicado pelo
destino da alma, que, a partir de então, acreditava-se ser julgada no momento da partida. A
consciência da morte suscita, neste momento, a consciência da vida, da sua fragilidade e da sua
fugacidade. O destino da alma nada mais é que um reflexo, uma conseqüência dos atos e dos
31
momentos vividos. Louis-Vincent Thomas, citado por Rodrigues (1983, p. 24) coloca claramente:
“é no momento que tomo consciência de minha finitude que cada instante da minha vida se
carrega de todo o meu destino”.
Neste contexto, a morte era vista como uma separação entre o morto e as coisas terrenas,
da vida pela qual tinha se apegado. Daí a necessidade, registrada a partir do século XIII
(RODRIGUES, 1983, p. 129), da individualização das sepulturas, pois os mortos também foram
individualizados, vistos como pessoas. E os túmulos individuais representavam a tentativa de
continuidade do morto também na Terra (idem, p. 127). Diante desta nova expectativa de
salvação individual da alma no momento da morte, os funerais, ritos de passagem após a morte,
passaram de cerimônias civis a religiosas, até que, no século XVII, apresentaram-se totalmente
religiosas.
No século XVIII, duas mudanças importantes ocorreram com relação à concepção da
morte e do cemitério. A primeira transformação é de origem simbólica: neste período, a idéia
dramática da morte voltou-se para a idéia dramática da perda do próximo. A partir de registros
em testamentos (ARIÈS, 2003, p. 70-72), vê-se a presença de citações e solicitações aos
familiares e amigos, o que demonstrava uma maior união entre os membros, e,
conseqüentemente, uma maior dramaticidade na partida do próximo. A aproximação familiar
ocorrida neste período se reflete na adoção dos jazigos familiares como locais sagrados
destinados à reunião perpétua dos membros, como cita Gilberto Freyre (1985, p. LX):
O túmulo patriarcal, o jazigo chamado perpétuo, ou de família, o que mais
exprime é o esforço, às vezes pungente, de vencer o indivíduo a própria
dissolução integrando-se na família, que se presume eterna através de filhos,
netos, descendentes, pessoas do mesmo nome. E sob este ponto de vista, o
32
túmulo patriarcal é, de todas as formas de ocupação humana de espaço, o que
representa maior esforço no sentido de permanência ou sobrevivência da família.
Desta maneira, percebe-se como o temor pela morte do outro, e até mesmo a idéia da
morte, sensibilizam o indivíduo. Com a dificuldade de aceitar a morte do próximo, inicia-se neste
período um desenvolvimento crescente da dor do luto, o que acarretou numa volta do culto aos
mortos, que continuará manifestando-se no século XIX. Estas considerações reforçam o caráter
individual da morte, que tem por fim o reconhecimento da perda dos próximos, os quais são tidos
como únicos, como reforça Edgar Morin (1997, p. 32, grifos do autor):
A dor provocada por uma morte só existe se a individualidade do morto estiver
presente e reconhecida: quanto mais o morto for próximo, íntimo, familiar,
amado ou respeitado, isto é, “único”, mais violenta é a dor; nenhuma ou quase
nenhuma perturbação se morre um ser anônimo, que não era “insubstituível”.
O segundo aspecto de transformação do século XVIII diz respeito aos cemitérios e é de
origem sanitária. Refere-se principalmente à necessidade de transferência dos cemitérios dos
centros urbanos para as periferias, bem como à individualização dos mortos em sepulturas,
devido ao perigo de contaminações graves pela exposição permanente de cadáveres nos
cemitérios dentro das cidades, conforme aponta Michel Foucault (1986, p. 89-90):
Crê-se, freqüentemente, que foi o cristianismo quem ensinou à sociedade
moderna o culto aos mortos. Penso de maneira diferente. Nada na teologia cristã
levava a crer ser preciso respeitar o cadáver enquanto tal. O Deus cristão é
bastante Todo-Poderoso para poder ressuscitar os mortos mesmo quando
misturados em um ossuário. Em compensação, a individualização do cadáver,
do caixão e do túmulo aparece no final do século XVIII por razões não
teológico-religiosas de respeito ao cadáver, mas político-sanitárias de respeito
33
aos vivos. Para que os vivos estejam ao abrigo da influência nefasta dos mortos,
é preciso que os mortos sejam tão bem classificados quanto os vivos, ou melhor,
se possível.
A transferência dos cemitérios para territórios extra-urbanos, e, principalmente, para fora
do domínio do ambiente religioso da igreja, define uma terceira importante modificação que
também merece ser considerada. Os cemitérios foram, aos poucos, sendo secularizados, o que
indica a substituição da administração destes espaços da igreja para o poder municipal. É certo
que este processo não foi pacífico, considerando que tal mudança implicava numa perda de
controle religioso e econômico por parte da Igreja.
No Brasil, onde a transposição das necrópoles para fora das cidades foi determinada por
D. Pedro I - pelo artigo 66, parágrafo 2º, da Lei promulgada em 1º de outubro de 1828 -, a
secularização destes espaços foi institucionalizada somente 61 anos depois, em 1889, mediante o
decreto Federal nº 789, de 27 de setembro daquele mesmo ano (BORGES, 2002, p.140 -142). O
impasse que perpassa a secularização dos cemitérios brasileiros foi gerado, segundo Maria Elizia
Borges (idem, p. 143) muito mais por uma disputa de poder entre políticos e religiosos, do que
por uma preocupação em manter o repouso dos falecidos. A definição do problema se deu
somente com a instauração da República, que oficializou a separação entre Estado e Igreja
11
.
Voltando ao assunto da dor da perda, vemos que o luto sofrido e dramático que teve início
no século XVIII indo até o início do século XIX, vai aos poucos mudando de contexto,
transformando a dor socializada em dor individual. Com a higienização da morte, ocorre
paralelamente a medicalização do doente – o que tem como conseqüência uma resignação à
mortalidade. A possibilidade de prolongar a vida causa o horror à morte. Desta forma, sentindo
mais dramaticamente a finitude do próximo, o sentimento de perda continua comovente, pela não
11
Sobre este mesmo assunto, ver João José Reis (1991).
34
aceitação desta partida. A família passa então a acompanhar mais de perto os preparativos para os
ritos de despedida, mas a sua dor não pode mais ser externada para os mais próximos, como
aponta Rodrigues (1983, p. 178, grifos do autor):
Ao mesmo tempo e paradoxalmente, este círculo de parentes e amigos tende a
aumentar a dor individual: a expectativa de comportamento de que está imbuído
é a de que o indivíduo sofra, de que sofra muito pela perda de um ente querido e
que, a imagem do moderno sistema de divisão “racional” do trabalho, sofra
também em substituição aos outros que se sentem na obrigação de sofrer, mas
não chegam mais a experimentar este sofrimento. Rapidamente, a ideologia
ocidental vai mascarar este caráter duplamente coercitivo do luto romântico
(ditado ao mesmo tempo pela solidão e desamparo em que o enlutado se vê
repentinamente e pela tarefa de substituição, através da qual ele se transforma no
bode expiatório a resguardar a comunidade desses sentimentos incômodos) e
transformar a tristeza do enlutado em “depressão”, em dados da “natureza
humana”, objeto de estudo dos psicólogos. No entanto, essa tristeza e esta
depressão individuais são contemporâneas da recusa ocidental de pensar na
morte. E da sobrecarga de uma realidade que a sociedade, não querendo mais
olhar de frente, impõe ao indivíduo.
Após tal contextualização, chegamos assim ao aspecto atual da morte como algo temido,
por isso interditado e sentido dramatica e individualmente pelos enlutados, como também à
concepção dos cemitérios higienizados, com jazigos familiares separados e localizados. É certo
que com o crescimento das cidades, a partir do desenvolvimento da industrialização, os
cemitérios voltaram à paisagem dos centros urbanos. José Luiz Maranhão (1987, p. 36) faz,
inclusive, uma interessante comparação entre a cidade dos mortos e a cidade dos vivos, com suas
separações por ruas, quadras e diferenciações sociais de acordo com a imponência dos túmulos.
Esta reflexão é também proposta por Enrico Valeriani, citado por Borges (2002, p. 130-131), que
traduz o cemitério público secularizado como uma instituição cultural, além de religiosa, por ser
uma invenção moderna – o que atribui à “cidade dos mortos” a aplicação do gosto burguês ao
35
perenizar o individualismo do homem, a partir da quebra do anonimato dos jazigos e da distinção
dos mortos através das alterações arquitetônicas dos túmulos.
O que não podemos ver comumente nesta “cidade dos mortos”, porém, é a sociabilidade e
as práticas sociais que os indivíduos compartilham em seu cotidiano. Isso ocorre devido à noção
moral que os cemitérios adquiriram na cidade como um local de culto e respeito – considerando
que a própria idéia do culto modificou-se pela nova sensibilidade do luto, sendo o túmulo o lugar
onde a saudade pode ser externada e a memória do morto reverenciada (RODRIGUES, 1983, p.
178). Assim, nos cemitérios, prevalecem o silêncio e a homenagem individual, fazendo deles
espaços diferenciados dos centros urbanos. Para Elias (2001, p. 40), o silêncio e a solenidade
mantidos no espaço do cemitério remetem a um distanciamento na relação entre vivos e mortos,
como forma de controle da sensação de ameaça contida na morte para os que ficam.
Na sociedade moderna, aliada a esta concepção moral, tem-se a preocupação dos vivos na
manutenção das necrópoles, como maneira de resguardar tais lugares das violações e da falta de
higiene normalmente presentes. Com esta perspectiva, no século XIX, surgiram na América do
Norte e na Inglaterra os primeiros cemitérios particulares, criados e mantidos por sociedades civis
sem fins lucrativos. Tal possibilidade se deu porque em tais países o cemitério não era mais, neste
período, um monopólio municipal (ARIÈS, 1977, p. 276). A partir de então, estes espaços foram
se transformando com intuito de estimular as visitas, o que ocorre paralelamente à concepção de
aproximação com a natureza instituída pelos cemitérios-jardim, sobre os quais falarei mais
detalhadamente a seguir.
Juntamente ao surgimento dos primeiros cemitérios particulares, tem-se a valorização do
espaço tumular, ocorrida principalmente pelo grande aumento de sepultamentos nos cemitérios
públicos, proveniente do crescimento demográfico, o que torna o espaço cemiterial vulnerável à
especulação imobiliária. Esta situação, atualmente, tem tornado a gerência das necrópoles uma
36
espécie de problema para a administração pública no Brasil, como bem reflete Borges (2002, p.
146):
Hoje, de um modo geral, os cemitérios lotados são administrados de maneira
precária. Possuem poucos funcionários, pouca vigilância noturna, minguadas
verbas orçamentárias para sua manutenção. Além de sofrerem a ação do tempo,
suas sepulturas são depredadas constantemente pelos vândalos que vão em busca
de bronze, mármore e dentes de ouro. Os cemitérios convencionais secularizados
nos grandes centros urbanos do Brasil acarretam, atualmente, um déficit aos
cofres públicos. Daí o desinteresse em preservá-los.
Desta maneira, a partir do exemplo brasileiro citado, percebe-se o processo de
desenvolvimento do mercado de cemitérios particulares e da profissionalização dos serviços
funerários, desde o velório e o enterro até o apoio psicológico aos enlutados – serviços
introduzidos, principalmente, pelos Estados Unidos no século XX. É importante ressaltar que tais
serviços correspondem não somente a uma mera mercantilização dos ritos fúnebres. Existe
também, através do processo de dor da perda vs. medo da morte, uma necessidade de transferir da
família para “especialistas” o contato mais próximo com o falecido, como forma de manter-se
afastado de tais sentimentos (ELIAS, 2001, p. 37-40).
Vê-se, contudo, que as práticas funerárias que têm contato com o cadáver são apenas a
parte visível do luto. Assim, sendo a manipulação do corpo morto considerada impura, e
livrando-se a sociedade moderna de tal função ao colocá-la nas mãos de “especialistas”, resta-
nos pensar na relação mais sensível existente entre falecidos e sobreviventes. Ocorre um processo
de interiorização do falecido a partir do luto, no qual os ritos funerários transformam-se apenas
em manifestações visíveis aos olhos do pesquisador. Esta relação “invisível”, sensível, e por que
37
não dizer, “espiritualizada” entre os mortos e seus próximos, é que remonta a problemática do
luto que pretendo tratar.
A partir das considerações expostas, nota-se a relevância de compreender mais
cuidadosamente as transformações ocorridas no processo de luto e na relação do indivíduo/
sociedade com os mortos. Para Sigmund Freud (1996a, p. 300-301), o processo de luto,
especialmente quando decorre da perda de alguém próximo, proporciona ao indivíduo a falta de
interesse pela própria vida, tamanha a intensidade do pesar. É necessário pensar, ainda, na
permanência do morto na consciência dos sobreviventes. As lembranças da vida e da convivência
com aquele que partiu são sua forma de permanência entre os vivos. Uma citação de Rodrigues
(1983, p. 29, grifo do autor) torna-se esclarecedora neste aspecto:
O absurdo da finitude humana reside em parte no fato de que a morte física não
basta para realizar a morte nas consciências. As lembranças daquele que morreu
recentemente continuam sendo uma forma de sua presença no mundo. E esta
presença só arrefece aos poucos, lentamente, por meio de uma série de
dilaceramentos de que são vítimas os sobreviventes. A consciência não consegue
pensar o morto como morto e por isso não pode se furtar a lhe atribuir uma certa
‘vida’. A morte definitiva não é determinada pela realidade natural mais que
pelas instituições sociais: o defunto conserva ainda, por algum tempo,
determinados poderes e direitos, mais ou menos duradouros segundo as
diferentes culturas.
O desnorteamento sentido pelo enlutado, contudo, pode ser atribuído ao interdito sofrido
pela morte, sobre a qual não se fala mais, e conseqüentemente ao luto, convencionado atualmente
como um momento de dor individual. Isso nos permite comparar este desnorteamento individual
ao processo do luto vivido até o século XIX, quando a perda era sofrida e vivida socialmente.
Aquele que perdia um parente tinha o direito (ou por vezes o dever) de demonstrar e compartilhar
38
a sua dor com a sociedade. Neste aspecto, lembramos de Marcel Mauss (1950, p. 147-153) e sua
consideração acerca da expressão obrigatória dos sentimentos:
Não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimentos não são
fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos
sociais marcados por manifestações não-espontâneas e da mais perfeita
obrigação.
[...] um considerável número de expressões orais de sentimentos e emoções [...]
têm unicamente caráter coletivo. Digamos logo que este caráter não prejudica
em nada a intensidade dos sentimentos, muito pelo contrário. [...] Mas todas as
expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória dos
sentimentos do indivíduo e do grupo, são mais que meras manifestações, são
sinais de expressões entendidas, quer dizer, são linguagem. Os gritos são como
frases e palavras. É preciso emiti-los, mas é preciso só porque todo o grupo
entende. É mais que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de
manifestá-los aos outros, pois assim é preciso fazer. Manifesta-se a si,
exprimindo aos outros, por conta dos outros. É essencialmente uma ação
simbólica.
É possível imaginar, ainda, a necessidade do enlutado em expor sua angústia diante da
perda, uma vez que a condição social de existência de “ser-com-o-outro” encontra-se, neste
momento, afetada pela ausência daquele que partiu. Sobre este aspecto, Dastur (2002, p. 67,
grifos do autor) esclarece bem:
Eis por que (sic) a solidão, isto é, a deficiência da presença efetiva dos outros,
não é o contrário de ser-com-os-outros, mas a experiência privativa daquela. E é
precisamente a privação do outro que é experimentada no luto, que um notável
ser-com-o-outro, já que pelo próprio fato da perda, o morto está presente para
nós mais totalmente do que já foi em vida. O “sentimento exagerado do meu”,
do existir, não é, portanto, de forma alguma, incompatível com o ser-com-os-
outros, mas, ao contrário, é o seu fundamento, já que o que eu compartilho com
o outro é, precisamente, o caráter intransferível da existência que me separa
abissalmente dele.
39
A noção de existência do ser, desta forma, corresponde ao entendimento de sua co-
existência, de sua inserção num mundo de “existentes”, onde este compartilhamento o estrutura
(FERREIRA, 2000, P. 115). Assim, notamos que o significado da perda de um ente pode, antes
de qualquer coisa, vincular-se a uma perda de si próprio. E, a partir do momento em que o
enlutado, devido ao interdito imposto socialmente pela morte, não tem espaço para revelar seu
sofrimento, torna-se perceptível o conflito no qual ele se encontra. Considerando a relação
necessidade vs. impossibilidade de expor sua dor, o enlutado depara-se, nos dias de hoje, com um
sentimento de inadequação social, o que lhe torna introspectivo, com receio de demonstrar seu
pesar para não parecer fraco diante da perda e da morte, trazendo a noção da necessária discrição
do enlutado. Sobre este tema, comenta Mauro Koury (2003, p. 22):
O ser discreto no lidar com o seu sofrimento, em público, é a tônica dominante
de um discurso que parece revelar a expressão de emoções através do luto como
uma espécie de vergonha. A demonstração do sofrimento parece anunciar ou
denunciar a idéia de fracasso e de medo de ser visto pelos outros através desta
idéia. [...] Ser discreto, deste modo, não significa que o indivíduo não esteja
envolvido em seu sofrimento, que não viva a perda do ente querido, mas que
este sofrimento é pessoal, e diz respeito apenas àquele que sofre.
Desta forma, o indivíduo que perde alguém não encontra espaço para falar da sua dor nos
grupos cotidianos e, por outro lado, aqueles que estão próximos não oferecem ajuda por
entenderem que devem respeitar a dor do enlutado ou, ainda, não tocam no assunto da morte com
o enlutado por medo de se contaminar, de também sofrer ou angustiar-se com a idéia de que a
morte vai acontecer consigo (KOURY, 2003, p. 152). Assim, a partir da individualização da dor,
as relações sociais mantidas nos ritos de despedida, incluindo o luto, tornam-se fragmentadas,
40
superficiais, e, principalmente, constrangidas pela falta de noção daquilo que pode/deve ser dito,
tornando as expressões de sentimentos minimizadas e as condolências “padronizadas”, como
esclarece Elias (2002, p. 32):
A convenção social fornece às pessoas umas poucas expressões estereotipadas
ou formas padronizadas de comportamento que podem tornar mais fácil
enfrentar as demandas emocionais de tal situação. Frases convencionais e rituais
ainda estão em uso, porém mais pessoas do que antigamente se sentem
constrangidas em usá-las, porque parecem superficiais e gastas.
Analisando a concepção das relações sociais estereotipadas de luto, percebe-se que este é
um processo de negação à morte bem particular da sociedade moderna industrial. Ora, levando
em consideração o avanço da medicina atual, a morte tornou-se mais distante, ou pelo menos
mais “controlável”. A própria maneira de morrer também sofreu alterações: hoje o indivíduo
morre no hospital, e não mais em casa, e a família, por sua vez, acompanha o processo cada vez
mais de longe. A forma de morrer atualmente pode nos fazer pensar, inclusive, num processo de
massificação do indivíduo, como nos lembra Roger Bastide, citado por Santos (1983, p. 23):
A impessoalidade das relações humanas, a indiferença afetiva e o isolamento nas
grandes metrópoles, [...] a fragmentação do nosso comportamento cotidiano em
conseqüência do fato de pertencermos a grupos múltiplos, que nos impõem com
freqüência papéis contraditórios [...] a massificação do indivíduo.
Se agora o indivíduo morre como paciente e não mais como membro da família, pode-se
supor que o distanciamento dos parentes do moribundo, em oposição ao sentimento de perda, que
41
permanece presente, enquadra-se nesses “papéis contraditórios” a que se refere Bastide. Tudo
isso, contudo, reflete um reforço ao interdito da morte, conforme nos diz Elisabeth Kübler-Ross
(1985, p. 17): “[...] o homem, basicamente não mudou. A morte constitui ainda um
acontecimento medonho, pavoroso, um medo universal, mesmo sabendo que podemos dominá-lo
em vários níveis”. Assim, as técnicas científicas podem prolongar a vida, podem higienizar a
morte, podem manter os indivíduos distantes dos moribundos
12
, colocando-os afastados deste
evento, mas não podem aniquilar o temor à morte, nem o sofrimento do luto. Desta forma, quanto
mais o indivíduo tenta se colocar alheio ao enfrentamento da morte, mais o assunto torna-se
repulsivo, porém, inevitável – a morte é condição da existência humana.
Diante disso, a saída encontrada pela sociedade atual - que pode adiar, suavizar, mas não
contestar a morte - é exorcizá-la do cotidiano como se ela não existisse, refletindo diretamente
nos sentimentos sociais, como lembra Manuel Castells (1999, p. 478):
[...] são as descobertas extraordinárias da tecnologia médica e da pesquisa
biológica nas duas últimas décadas que fornecem material para a mais antiga
aspiração humana: viver como se a morte não existisse, apesar de ser nossa
única certeza. Com isso, realiza-se a subversão final do ciclo de vida, e a vida
torna-se esta paisagem monótona entrecortada por selecionados momentos de
experiências ricas e pobres na eterna butique dos sentimentos personalizados.
Voltamos a pensar então que o interdito à morte, exposto na sua negação, no seu temor, e
principalmente na impossibilidade de compartilhamento do tema, fortalece o sentimento de
inadequação dos enlutados, colocando-os num estado à margem, através do qual a dor da perda
torna-se pessoal, individual e de improvável socialização.
12
Sobre este assunto ver Elias (2001)
42
Pesquisas atuais acerca da morte apontam para o desenvolvimento de uma nova
sensibilidade social em relação ao tema. Até mesmo uma perspectiva de que “após longo período
de silêncio, de morte ‘proibida’, sucede hoje um retorno à ‘morte falante’” (MARCÍLIO, citando
Michel Vovelle, 1983, p. 62, grifos da autora). Contudo, mesmo que esta expectativa esteja em
voga, é preciso considerar que modificações neste plano se dão muito sensivelmente, e que a
morte interditada permanece presente de maneira muito forte em nossa sociedade, gerando, por
conseqüência, interferência direta no processo de individualização do sentimento imposto pelo
estado de luto, sobre o qual iremos tratar.
43
CAPÍTULO 2
Isolamento social no luto
Se ela me deixou a dor
É minha só, não é de mais ninguém
Aos outros eu devolvo a dó
Eu tenho a minha dor
Se ela preferiu ficar sozinha
Ou já tem um outro bem
Se ela me deixou a dor é minha
A dor é de quem tem.”
Marisa Monte e Arnaldo Antunes. De mais ninguém.
Ao observarmos o embaraço social causado pelo luto na atualidade, torna-se interessante
perceber o processo de individualização ocorrente na sociedade contemporânea – o que permite,
partindo de uma visão ampla para uma mais específica, analisar como a construção da concepção
de indivíduo, na modernidade, reflete-se nas relações sociais que envolvem o luto.
Tendo como princípio algumas alterações marcantes, como por exemplo na compreensão
de tempo, podemos ver os reflexos dos conceitos de vida, morte e luto na contemporaneidade. Se
considerarmos a exigência, iniciada na modernidade, de aproveitamento inesgotável do tempo em
todas as esferas da vida social, podemos refletir como esta convenção se sobrepõe do âmbito
externo até o individual. O homem, hoje, concentra-se em gerenciar qualitativamente seu tempo –
que, por sua vez, torna-se linear e em uma perspectiva única, em que o destino do indivíduo
depende de suas realizações e ações em vida.
No cotidiano da modernidade, as atitudes do sujeito, bem como seu comportamento e suas
ações reflexivas correspondem ao que Giddens chama de “segurança ontológica”, mantendo no
inconsciente e na consciência prática “respostas” para suas questões existenciais. Nos diz
Giddens (2002, p. 50, grifos do autor):
44
A “luta do ser contra o não-ser” é a tarefa perpétua do indivíduo, não apenas
“aceitar” a realidade, mas criar pontos ontológicos de referência como parte
integrante do “seguir em frente” nos contextos da vida cotidiana. A existência é
um modo de estar-no-mundo no sentido de Kierkegaard. Ao “fazer” a vida
cotidiana, todos os seres humanos “respondem” a questão do ser – e o fazem
pela natureza das atividades a que se dedicam.
A própria vida, sob esta ótica da efemeridade do tempo, é sentida e absorvida como
período único de realizações, sendo, desta maneira, a morte, cada vez mais, vista como o fim
implacável do homem. Mais uma vez, a consciência da finitude recai sobre o reconhecimento de
si, e a própria construção da noção do indivíduo. Contudo, a idéia de aproveitamento da vida, do
tempo, e a perspectiva da morte como fim intransponível, significa o questionamento das crenças
na continuidade de existência pós-morte, bem como das instituições que as sustentam, o que tem
conseqüências ontológicas na constituição do indivíduo na modernidade, conforme reflete
Giddens (idem, p. 52, grifos do autor):
A finitude é o que nos permite discernir o significado moral em eventos de outra
maneira transitórios, o que seria negado a um indivíduo sem horizontes finitos.
O “chamado da consciência” que a consciência da finitude traz estimula os
homens a perceberem sua “essência temporal como seres-para-a-morte”. O que
Heidegger chama de “resolução” é a urgência que se faz sentida como a
necessidade de lançar-nos no que a vida tem para oferecer antes que o tempo –
para o indivíduo - “se esgote”. Essa visão não é oferecida por Heidegger como
uma filosofia moral, mas como uma descrição das realidades da experiência
humana. Mas é seguramente uma posição difícil de sustentar numa base
transcendental. É acima de tudo uma visão dirigida a uma civilização afligida
pelo que Kierkegaard chama de “doença até morrer” – que, segundo ele, é a
inclinação a aceitar que, a morte é de fato o fim. Embora as ansiedades sobre a
finitude, derivadas do desenvolvimento psicológico do indivíduo, sejam
universais, as representações culturais da morte não o são. As cosmologias
45
religiosas podem atuar sobre essas ansiedades desenvolvendo concepções do
além-vida, os ciclos de renascimento. Mas elas nem sempre cultivam
significados morais destacando principalmente a transitoriedade da existência do
indivíduo.
Nota-se, assim, como e o quanto a finitude humana inquietam o homem na modernidade.
A transitoriedade da vida e a urgência em aproveitar o tempo, na intenção de atribuir de
significados mais substanciais para sua existência, levam os indivíduos a se afastarem da idéia da
morte. Assim, sendo a morte uma questão de temporalidade, entende-se que a percepção da vida
como a “linearidade de um tempo que começa e se esvai, até o fim previsto mas não datado,
precisa ser escamoteada. Esta precariedade do viver é então afrontada de maneira ardilosa, para
poder-se vivenciar com um nível de angústia suportável, este tempo que passa” (REZENDE, Ana
Lúcia, et al. 1996, p. 45). Esta “precariedade da vida”, proveniente da consciência de sua
transitoriedade e da “angústia suportável” que esta idéia reflete no indivíduo, tende a corroborar
com a sensação de ausência de sentido para as atitudes da vida do sujeito e da própria morte – o
que pode corresponder a uma impressão de desconexão entre o indivíduo e a sociedade,
contribuindo para um processo de isolamento social do homem contemporâneo.
Dessa maneira, uma outra conseqüência importante a ser observada nesta nova apreensão
do tempo se dá no campo das relações entre o sujeito e a sociedade, em que o individualismo
fragmenta o sentido de pertencimento do homem no ambiente social, e, conseqüentemente, o
próprio sentido de sua existência e de suas ações, como afirma Maria Helena Oliva-Augusto
(1994, p. 97-98, grifo da autora):
46
[...] a vivência do momento presente, para grande parte dos homens e mulheres
contemporâneos, antes de possibilitar a percepção de si como seres completos,
indivíduos na extensão do termo, fá-los sentirem-se como seres desconectados,
sem raízes e sem perspectivas.
Disto decorre – uma vez que se perdeu o sentido do pertencimento, de
participação em um “nós” – que, hoje, para a maioria das pessoas, a tradução
subjetiva da significação da autonomia individual e da realidade que a sustenta é
um profundo individualismo em que cada um se volta egoisticamente para seus
desejos e expectativas e não reconhece no outro um semelhante. O resultado
desse processo não é senão [...] a fragmentação da vida em um conjunto de atos
sem sentido e a extrema solidão que persegue as pessoas, ainda que vivam em
sociedade.
Na modernidade, a falta de reflexões sobre a finitude e sobre a perda, como uma
conseqüência do individualismo e da exigência de aproveitamento da vida, causa a sensação de
isolamento e de ausência de afetividade no âmbito social. Este processo fica bem demonstrado no
depoimento de um enlutado participante do grupo de apoio psicológico do Morada da Paz:
(Mecanicismo da vida moderna) Naquela vida sem um propósito maior, no
fundo eu tava virando um materialista, um negócio seco, eu não acreditava em
mais nada a não ser na realidade objetiva das coisas. Tudo que fosse feito,
qualquer ação que fosse desprendida tinha que ter um propósito, um resultado, a
perseguição de um objetivo. Passou a ser uma vida mecânica, é isso daí, uma
vida mecânica. Um relógio suíço. Você tem que tudo perseguir aqueles
negócios, perseguir aqueles objetivos sem turbulência, excluindo tudo que
pudesse provocar uma turbulência, como se nós pudéssemos excluir isso da
nossa vida.
(O pensamento sobre a perda) Não cabia. Na minha cabeça não. Eu não
pensava, eu simplesmente parei de pensar nisso, em termos de perda. Eu parei de
pensar e as coisas estavam rodando normalmente no mundo. Pensar é uma
possibilidade que todo mundo pensa, mas é aquele um por cento que pode
ocorrer, e não é imediato.
(Isolamento) O que mais me pesou foi isso. Sozinho porque eu não tinha
desenvolvido, eu não sabia lidar com a afetividade. O que eu sabia antes, eu
tinha perdido. Não sabia lidar com a afetividade, não sabia botar pra fora. Meus
sentimentos. (Marcos)
13
13
Todos os nomes aqui expostos são fictícios, não correspondendo ao verdadeiro nome dos atores sociais. A
referência serve para compreensão do discurso do enlutado, conforme aconteça a repetição de depoimentos do
mesmo entrevistado. No caso, trata-se de um engenheiro, 48 anos, viúvo, pai de um casal de adolescentes.
Participante do grupo de apoio psicológico, perdeu a esposa há seis meses (contados a partir da data da entrevista),
vítima de uma infecção renal.
47
Percebendo este sentimento de isolamento social pelo qual passam os homens
contemporâneos, pode-se enxergar como isto se reflete numa perspectiva cautelosa, e porque não
dizer, de auto-controle, na sua atuação como sujeito e nas relações sociais. O individualismo e o
isolamento, desta maneira, interferem diretamente na fragmentação dos relacionamentos. Isso
faz lembrar o conceito de atitude blasé tão bem descrito por Simmel (1987) como sendo o
comportamento recluso e a adaptação dos indivíduos às tensões da vida metropolitana na
modernidade.
Neste contexto, coloco como reflexão o isolamento sofrido pelos enlutados na atualidade.
Se compreendermos que a cautela e a fragmentação já estão em voga nas relações sociais de uma
maneira geral, entenderemos como este quadro se agrava quando se trata do compartilhamento do
sofrimento causado pelo luto. Mauro Koury (2002a, p. 96), que vem desenvolvendo um
primoroso trabalho sobre o processo de individualização do luto no Brasil, descreve:
A individualização crescente das relações sociais no Brasil atual, vem
afigurando-se na tendência de um refreamento do processo de individuação do
sujeito que sofre a perda, através do mascaramento da dor do sofrimento e da
morte. Essa tendência social de escamoteamento da expressão pública dos
sentimentos e a valorização da interiorização, enquanto espaço da intimidade, do
privado, ou da subjetividade, cria uma pré-disposição permanente no indivíduo à
desconfiança no outro, e por extensão, no social.
Numa visão mais ampliada, compreende-se que o estudo sobre os conflitos sociais a que
estão sujeitos os indivíduos em estado de luto abrange aspectos de diferenciação e de isolamento,
48
fundados na impossibilidade de exposição da dor. A conseqüência deste processo se desdobra em
sentimentos conflituosos como vergonha, mágoa e inquietação. A vergonha pelo estado de luto é
conseqüência da relação necessidade vs. ausência de solidariedade social no compartilhamento da
dor causada pela perda.
Ao observarmos a consideração de Giddens (2002, p. 66) de que a vergonha é decorrente
do sentimento de inadequação do eu, correspondendo à “insegurança ontológica” na qual o
sujeito teme não suportar pressões que envolvem sua coerência ou aceitabilidade social, vemos
como e por que a discrição torna-se preponderante no comportamento dos indivíduos em estado
de luto.
A discrição, por sua vez, já praticada como padrão comportamental dos indivíduos na
contemporaneidade, transforma-se, para o enlutado, em ferramenta de defesa, através da qual a
não-exposição da dor mantém a distância suscitada pela desconfiança que o sofrimento daquele
que vivencia o luto constrói pelo social. É pertinente lembrar, sobre este aspecto, a noção de
regulação e auto-controle da esfera instintiva e afetiva dos sujeitos na atualidade, conforme
esclarece Elias (1993, p. 203), quando analisa o “processo civilizador”, em que a conseqüência da
economia dos gestos e sentimentos recai diretamente nas relações sociais:
Esta luta semi-automática da pessoa consigo mesma nem sempre tem uma
solução feliz, nem sempre a autotransformação requerida pela vida em sociedade
leva a um novo equilíbrio entre satisfação e controle das emoções.
Freqüentemente, fica sujeita a grandes ou pequenas perturbações –, à revolta de
uma parte da pessoa contra a outra, ou a uma atrofia permanente – que torna o
desempenho das funções sociais ainda mais difícil, se não impossível.
49
Esta exposição faz refletir na desconfiança concebida pelo enlutado com o social. Desta
forma, entendemos como o sofrimento e a dor de quem passa por uma perda tornam-se
individuais, correspondentes apenas ao enlutado, uma vez que suas angústias não são externadas
em conseqüência da “opção” pela discrição, bem como da ausência de abertura para expressão da
dor, visto que o individualismo contemporâneo não permite a intromissão alheia em esferas
privativas. Conforme nos diz Koury (2002a, p. 99):
Este caminho vem se dando através do agir com discrição como uma espécie de
dever ser moral para todos aqueles atingidos por uma perda. Configura-se,
também, pela busca da não-intromissão na privacidade do outro. Ambos
processos afiguram-se, deste modo, em espelhar um tipo de comportamento
pessoal desconfiado e, ao mesmo tempo, ansioso.
O estar enlutado configura-se, assim, num processo de inadequação social pelo qual
passam aqueles que sofrem uma perda nos dias de hoje. Como efeito, temos o aprofundamento da
dor e o afrouxamento daquilo que seria tido para o indivíduo enlutado como sentido de vida e de
pertencimento social. Caracterizam-se também neste campo o enfraquecimento dos
relacionamentos sociais e a fragmentação do enlutado enquanto sujeito na sociedade. Desta
forma, observa-se porque a instância desindividualizante que rege a crença numa continuidade
pós-morte já não atende aos anseios do enlutado, não sendo mais suficiente para abrandar seu
sofrimento. Como nos coloca um entrevistado:
Mas uma coisa que eu notei é que eu não tinha fé. Não tinha crença na hora, na
noite seguinte da morte dela. Não tinha crença, quer dizer. Aí eu pensei: se
50
morrer apaga tudo. Não existe nada após a morte, desintegração, decomposição
total da matéria, o que passou, passou - teve o seu tempo. Ela se foi, vai
apodrecer, vai virar pó. Agora, por que é que nós sentimos? Então não
deveríamos sentir. Tudo o que tem é só pra fazer a gente sofrer? Então não
deveria ter. Assim, como ela vai virar pó, eu também não deveria estar sentindo
nada. Eu não devia ter em mim nenhum vínculo mais com ela. (Marcos)
Nota-se, desta forma, a angústia provocada pela concepção da morte como o fim
inexorável da existência humana, presente na atualidade. A conseqüência disto é o
questionamento acerca dos vínculos e das relações sociais, bem como da própria dor provocada
pela perda. Assim, o indivíduo que passa pelo luto, nos dias de hoje, isola-se em seu sentimento,
aprofunda a sua dor, sem conseguir compartilhá-la, tornando-se desiludido do mundo, da vida e
de si.
É importante perceber que a interiorização do sofrimento dos enlutados ocorre no campo
da subjetividade, o que caracteriza seu estudo na esfera do sentimento, do aspecto cognitivo-
emocional destes sujeitos. A construção desta subjetividade, contudo, se constitui a partir de
conexões tanto psicológicas quanto sociais dos indivíduos em contextos temporais, culturais e
espaciais específicos. “A intersubjetividade não deriva da subjetividade, mas ao contrário”, nos
lembra Giddens (2002, p. 53).
Desta forma, ao inclinarmos nossa atenção para o âmbito emocional que envolve o sujeito
enlutado, é preciso ter em mente que a própria emoção se constrói a partir da intersubjetividade,
da teia de relações sociais e culturais que transitam no indivíduo de maneira singular, num
encadeamento temporal e espacial determinado. As relações sociais que envolvem o luto, deste
modo, caracterizam-se como campo de estudo da sociologia da emoção – que parte “do princípio
de que as experiências emocionais singulares, sentidas e vividas por um ator social específico,
são produtos relacionais entre os indivíduos e a cultura e sociedade” (KOURY, 2004, p. 89).
51
Assim, ao analisarmos, no decorrer da pesquisa, as emoções por que passam os enlutados
do Morada da Paz, devemos considerar que tais experiências, tanto na esfera cotidiana quanto no
ambiente do cemitério, correspondem a entrelaces que perpassam por experimentações
individuais e coletivas, que trazem, em si, representações sociais
14
e culturais sobre a morte e o
luto, e por conseqüência interferem na esfera emocional e comportamental daqueles indivíduos.
Isto significa dizer que a exposição e a troca de experiências entre estes visitantes é
percebida pela similaridade da situação sociocultural em que se encontram, configurando uma
interação, uma espécie de aliança. Vendo sobre este aspecto, para o qual as formas relacionais
assumem as ações sociais (idem, p. 12), pode-se afirmar que existe, ainda, uma projeção de cada
indivíduo nesta socialização da dor. Ou seja, cada ator social, ao projetar nestas relações o
interesse de amenizar sua angústia, passa a interagir a partir de uma situação que deve satisfazer
ambos os lados, indicando que existe uma noção comportamental que rege estas trocas. Como
esclarece Koury (ibidem, p. 13), a situação observada é
Como uma espécie de etiqueta ou moldura informacional de códigos
emocionais, cultural e socialmente satisfeitos, que influenciariam os projetos e
vivências emocionais dos sujeitos sociais em relação, e cujo funcionamento se
ofertaria aos sujeitos em troca, através de um imaginário social fluido, de um
dado contexto historicamente satisfeito.
Assim, o contexto oferecido para este estudo precisa considerar historica e temporalmente
o âmbito emocional dado para cada um dos seus atores sociais, bem como levar em conta o
14
Sandra Jovchelovitch (1995, p. 69-70, grifos da autora), trabalhando com o conceito de representações sociais,
reflete acerca da experiência coletiva na construção do sujeito: “[...] o Outro generalizado é que dá ao sujeito sua
possível unidade enquanto Eu, e não há possibilidade de um desenvolvimento do Eu sem a internalização de Outros.
A importância de uma comunidade segue aí: ela evidencia um ‘nós’ necessário para a constituição de cada ser
humano, que atesta que vidas privadas não surgem a partir de dentro, mas a partir de fora, isto é, em público.”
52
espaço desta interação, ou seja, pensar de que maneira a apropriação do cemitério influencia, ou
contribui, para esta troca intersubjetiva. Desta forma, para chegarmos ao entendimento da
sociabilidade existente entre os visitantes do Morada da Paz, bem como de suas representações
sobre a morte, o luto, e o ambiente do cemitério, faz-se necessário, primeiramente, descrever o
local e as ações dos visitantes como uma primeira observação.
Primeira descrição do ambiente e da observação de campo
Antes de lançar o olhar para a esfera específica das relações sociais contidas no processo
de luto experimentado pelos visitantes do Morada da Paz, é pertinente observar que as
construções e representações sobre a morte descritas até agora, baseadas principalmente na ótica
de estudiosos que se dedicaram a esta análise em sociedade ocidentais, predominantemente
européias, recaem e influenciam nas representações mortuárias brasileiras
15
. Pois, conforme nos
diz Koury (2003, p. 57):
Forças internas que remetem, refletem e reconstroem continuamente a
singularidade e a especificidade de sua experiência cultural, ao mesmo tempo
que fundam e são fundadas por relações internacionais presentes desde seu
processo gestativo e fundador. Frutos de legados, trocas e embates estabelecidos
com culturas e organizações societárias fundamentais à sua construção enquanto
povo e nação. Bem como projetos, desejos, sonhos e lutas que orientam rupturas
e conformações novas sobre o já anteriormente instituído. [...] É impossível,
assim, buscar uma compreensão de um pensamento brasileiro e das atitudes de
sua população, sem situar a história de sua singular formação social a nível
internacional, especificamente ligado à cultura européia.
15
Este aspecto também é bem trabalhado por Reis (1991)
53
Desta maneira, no decorrer da observação empírica, pude perceber que tais construções e relações
sociais, até então contidas nas leituras, têm, de fato, seu reflexo no campo estudado.
Fazendo uma breve revisão histórica e social das representações sobre a morte e os
costumes fúnebres na cidade de Natal, temos o seguinte registro de Luís da Câmara Cascudo
(1999, p. 263, grifo do autor), referente ao período anterior à implantação do primeiro cemitério
da cidade, o do Alecrim, em abril de 1856:
Natal não sabia o que era um cemitério. Enterrava-se o cadáver dentro das
igrejas, ao redor delas ou do cruzeiro. A matriz de Nossa Senhora
d’Apresentação ergue-se sobre uma base de ossadas humanas, sepultadas
durante séculos.
Na Igreja do Rosário enterravam os escravos e os mortos na forca por ordem da
Lei. Em volta das igrejas o povo dizia que a terra era também sagrada. Enterrar
no sagrado era sepultar dentro das igrejas.
Debalde lutava-se contra os inconvenientes desta tradição. Nas epidemias as
igrejas eram focos de maus cheiros, pela urgência e precariedade dos
enterramentos.
Antes da construção do Cemitério do Alecrim, entretanto, existiu na cidade uma área
destinada ao sepultamento de estrangeiros e não-católicos, que não podiam ser enterrados nas
igrejas locais. O lugar foi denominado Cemitério dos Ingleses e localizava-se perto da praia da
Redinha, à margem da Gamboa do Manimbu (idem, p. 263).
Percebe-se neste contexto que a noção de enterramento em solo religioso garantia a
sacralização do rito tanto em outras sociedades ocidentais quanto na brasileira; bem como nota-se
a concepção higienista, em implementação na Europa desde o século anterior, presente na cidade
de Natal: tanto o Cemitério do Alecrim quanto o antigo Cemitério dos Ingleses situavam-se
distantes do perímetro urbano.
54
O Cemitério do Alecrim, construído sob providência do presidente da Província do Rio
Grande do Norte na época, Dr. Antônio Bernardo de Passos, localizava-se tão distante da área
urbana que foi necessária a aquisição de um carro fúnebre, por parte do governo, para a
realização dos sepultamentos. A região onde se localiza o cemitério, inclusive, só foi fundada
como bairro da cidade 55 anos depois, em outubro de 1911. A influência da presença da
necrópole na área foi tanta que o próprio nome do bairro, segundo Cascudo (1999, p. 356, grifos
do autor), tem referência direta com a prática de sepultamentos nas proximidades:
Contam que na praça Pedro II morava uma velha que costumava enfeitar com
raminhos de alecrim os caixões de anjinhos que eram levados a sepultar no
cemitério. O carregamento era feito pelas crianças das escolas, oficiais ou
particulares. Os meninos, levando o féretro, iam à velha do alecrim na certeza de
ornamentos. Essa velha sem nome batizou todo o bairro.
Hoje, a cidade de Natal tem uma população estimada de 766.081 habitantes
16
e conta com
dez cemitérios, sendo oito destes secularizados e administrados pela prefeitura local, através da
Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, SEMSUR. São eles: os cemitérios da Redinha, de
Igapó, de Pajuçara, de Ponta Negra, Cemitério Parque Nova Descoberta, do Alecrim, do Bom
Pastor I e do Bom Pastor II. De acordo com o setor de administração de cemitérios da SEMSUR,
o mais populoso da cidade é o de Nova Descoberta, onde atualmente são sepultadas cerca de 20
pessoas por mês
17
. Não existe, contudo, uma estimativa de quantos corpos estão sepultados desde
a fundação de cada necrópole, pois, segundo a Secretaria, estes nunca foram informatizados e os
16
Informações contidas no site o IBGE, para o ano de 2004. Disponível em www.ibge.gov.br. Acessado em 10 de
janeiro de 2005.
17
Informação obtida oralmente, em 14 de janeiro de 2005.
55
registros são feitos em livros bastante antigos - mas uma catalogação destas informações está
sendo providenciada pela Prefeitura.
Hoje, os cemitérios Bom Pastor I e II são comumente utilizados para enterramento de
pessoas que não têm jazigos familiares em outros cemitérios, ou que não têm condições de
adquirir um túmulo. Desta forma, os corpos são enterrados provisoriamente por dois anos e
transferidos, após este período, para um ossuário. Não existe, atualmente, espaço para o
aforamento de novos túmulos nos cemitérios municipais de Natal. No ano de 2005, será
inaugurado o nono cemitério público da cidade, o Parque das Rosas, no bairro do Planalto. A
expectativa é que, com a fundação desta necrópole, o problema de lotação dos cemitérios locais
seja amenizado.
As taxas para aforamento de um terreno numa necrópole de Natal custam cerca de 10%
do valor cobrado pelo Morada da Paz. Contudo, a construção do túmulo, bem como a sua
manutenção, são de responsabilidade da família. O problema do vandalismo, comum às
necrópoles públicas atualmente, também é apontado pela SEMSUR. Uma parceria com a polícia
local está sendo montada para a melhor vigilância destes locais.
Os outros dois cemitérios instalados na cidade são particulares: o Cemitério Parque
Morada da Paz e o Parque da Passagem, fundados e administrados pelo Grupo Vila. O grupo atua
há 57 anos no ramo de serviços funerários em Natal, sendo hoje composto por cinco Funerárias,
cinco Centros de Velório, dois Cemitérios, além de um plano de Assistência Familiar e duas
Clínicas Médicas. O Morada da Paz tem 12 anos, e é o maior dos dois cemitérios do grupo. Com
uma média de 60 sepultamentos por mês o Morada tem, hoje, 4.987 jazigos vendidos e 4.461
pessoas sepultadas
18
. O segundo cemitério do Grupo Vila, o Parque da Passagem, localizado na
Zona Norte da cidade, ainda está em expansão, com 1.464 jazigos vendidos. Inicialmente, a
18
Dados fornecidos pelo Grupo Vila em 14 de janeiro de 2005.
56
principal diferença do Morada da Paz para os outros cemitérios da cidade é, além de ser
particular, ser um cemitério-jardim, com jazigos padronizados.
19
A sua ambientação natural, implementada a partir do imenso gramado e da ausência de
túmulos suntuosos, aponta para a relação do cemitério com a cidade, e, conseqüentemente, com
seus freqüentadores.
20
Este tipo de necrópole, descrita por Borges (2002, p. 138, grifos da autora)
citando Remo Dorigati e Gianni Ottolini, é classificada como “cemitério ao ar livre”, cuja
apresentação e contextualização histórica nos auxilia a compreender o próprio espaço do Morada
da Paz:
Cemitério ao ar livre. É aquele que prioriza a paisagem em lugar das
construções tumulares. Nele há um novo equilíbrio entre artificialidade e
naturalidade. No início do século XX, denominado de lawn cemetery, esse tipo
de cemitério começou a se multiplicar, substituindo túmulos monumentais e
jazigos-capelas por placas funerárias perceptíveis ou túmulos pequenos que
afloram na paisagem verde. São, portanto, dois os aspectos importantes do
cemitério ao ar livre: a paisagem e a arquitetura funerária.
Em geral uma grande relva costuma cobrir toda a extensão do cemitério cuja
planta é aberta. As árvores são habituais por sua propriedade de purificar o ar,
tornando-o salubre. Elas também têm a incubência (sic) de proteger o “local de
repouso” do homem cansado da vida terrena. As construções que nele se erguem
ficam reduzidas a elementos coletivos [...]. Essas construções tentam estabelecer
um novo entrosamento entre o cemitério e a cidade. Procuram de uma nova
maneira confidente e simples tratar a morte, reapresentando assim uma espécie
de paraíso terrestre reencontrado.
No Morada da Paz
21
, a grande área verde tem como edificações a capela central (onde são
realizadas as missas e os velórios), seis salas de velório e a administração, que concentra, ao seu
19
O Morada da Paz, tais como os cemitérios implementados no século XVII com a proposta de higienização do
espaço citadino, localiza-se relativamente distante do centro urbano de Natal – às margens da BR 101, no Bairro de
Emaús, cidade de Parnamirim, que faz parte da região da Grande Natal.
20
Ver Foucault (1986)
21
Vide mapa em anexo.
57
redor, os demais recintos onde estão dispostos os serviços oferecidos aos visitantes, tais como:
floricultura, lanchonete, estacionamento, banheiros, sala-de-estar, capela de oração, além de um
anfiteatro ao ar livre, com capacidade para 500 pessoas. No jardim, os túmulos são demarcados
por placas de mármore, que têm como inscrição o nome da família e/ou dos falecidos ali
sepultados. O projeto de valorização da natureza em detrimento da arte tumular, até a
implantação das placas de pedra, chamadas footstones, teve início nos Estados Unidos, no século
XX, onde no lawn cemetery “nenhum volume detinha já o olhar e interrompia a continuidade do
relvado” (ARIÈS, 1977, p. 278).
Foto 1: Jardim do Morada da Paz Foto 2: Capela Central
Foto 3: Sala de Estar Foto 4: Capela de Oração
58
Direcionando a observação para as atividades desenvolvidas pelo grupo, tendo sempre em
perspectiva o seu cunho mercadológico, percebe-se algumas inovações no mercado funerário
iniciadas pelo Grupo Vila, como por exemplo, a implantação da primeira webcamera instalada
num centro de velório no Brasil, que possibilita a transmissão das imagens dos velórios via
Internet, mantendo mais “perto” da família aqueles que não puderam estar presentes neste
momento.
No ambiente do cemitério, uma série de serviços também é oferecida para que os
visitantes se sintam à vontade: apresentações musicais são realizadas em datas comemorativas,
missas semanais reúnem de 300 a 500 enlutados, obras de arte são expostas permanentemente
pelo artista plástico Rhazec (que trabalha e mora no cemitério), além de um serviço de apoio
psicológico que auxilia os enlutados através de um grupo de terapia do luto – também no espaço
do Morada. A estrutura oferecida, através dos serviços já citados, é diferenciada dos demais
cemitérios de Natal e possibilita ao visitante uma maior permanência no local.
Evoluindo em nosso questionamento, e percebendo o ambiente do Morada da Paz em
comparação aos demais cemitérios de Natal, vemos que as ações mercadológicas voltadas para os
visitantes podem contribuir para uma percepção diferenciada no que diz respeito ao ambiente do
cemitério e à própria morte. Como podemos perceber a partir deste depoimento:
Até porque aqui você tem o verde, você tem... é como se estivesse mostrando “tá
aqui a vida”. Pra mim eu não estou num cemitério quando eu venho pra cá, eu
não me sinto como se eu estivesse num cemitério. Eu me sinto num lugar como
se eu estivesse numa “Morada da Paz”. Como se me trouxesse muita paz, muita
tranqüilidade, sabe? Então eu, pra mim, é como se fosse um passeio, realmente é
a minha casa. Então eu vou lá pro Morada, eu adoro estar aqui...[...].
Então eu acredito que o que eles fazem aqui contribui pra isso, pra você não ver
o Morada só como um lugar de um cemitério, mas como um lugar que você
59
possa... Você tem música, que você tem exposição de artes. Um local realmente
pra ser freqüentado pelas pessoas. (Juliana)
22
A partir destas afirmações, podemos admitir, inclusive, que de alguma maneira tais
estratégias têm o intuito de encobrir a morte e suas faces, como uma tentativa de torná-la mais
amena. Os efeitos reais desta investida, contudo, deverão ser melhor percebidos no decorrer da
pesquisa. Numa análise de um caso semelhante, em um cemitério-jardim alemão que se propõe
como um parque para os vivos (seus clientes), Elias (2001, p. 40, grifo do autor)
faz a seguinte
observação:
De todo modo, os clientes potenciais são protegidos, tanto quanto humanamente
possível, da lembrança da morte e de tudo relativo a ela. Para a possível
clientela, a morte se tornou de mau gosto. Mas a atitude evasiva e encobridora,
por sua vez, tem um efeito algo desagradável.
Seria muito bom se o lugar de recordação dos mortos fosse realmente planejado
como um parque para os vivos. Essa é a imagem que os jardineiros do cemitério
gostariam de transmitir – “uma ilha silenciosa, verde e em flor em meio ao ruído
frenético da vida cotidiana”. Se fossem realmente parques para os vivos, onde os
adultos pudessem comer seus sanduíches e as crianças, brincar!
A estrutura de cemitério-jardim do Morada da Paz é semelhante à dos cemitérios ingleses,
e a padronização, incluindo os serviços voltados para os vivos, é proveniente do modelo norte-
americano
23
. Como o Morada, vários outros cemitérios-jardim bem estruturados poderiam ser
observados em todo o Brasil e no mundo. O que chama a atenção, porém, é a sociabilidade
existente entre os enlutados e a freqüência assídua destes visitantes aos eventos promovidos pelo
cemitério. Longe na noção “macabra e diabólica” adquirida pelos cemitérios, por volta do século
22
Arquiteta, 29 anos, solteira. Participante do grupo de apoio psicológico. Perdeu o pai há quatro anos, vítima de
enfarte.
23
Ver Maria Elizia Borges (2002); Mauro Koury (2003); Ariès (2003)
60
XV
24
, os visitantes do Morada afirmam que aquele é um espaço de meditação e de tranqüilidade,
onde é possível encontrar os amigos - algo semelhante ao parque idealizado pelo exemplo da
necrópole alemã citada por Elias. O curioso é que, para estes mesmos atores sociais, a noção e a
apropriação diferenciada do ambiente do cemitério são específicas na relação com o Morada da
Paz, visto que estes continuam a evitar a visita a outros cemitérios por achá-los tristes e sombrios:
[...] eu antes não gostava de maneira, de forma alguma, a ir em cemitério. Até
porque quando eu ia em cemitério, era aqueles outros tipos de cemitério. Tipo
aqueles mausoléus, aquelas coisas antigas. Eu sentia medo, sentia medo demais,
mas depois da vinda aqui ao Morada eu me sinto muito à vontade; pra mim é um
ambiente que transmite muita paz. E eu gosto de estar aqui, sinto falta quando eu
não estou aqui. (Juliana)
Neste ponto, é preciso considerar a afirmação de Vincent-Thomas (1983, p. 314- 315) de
que, comumente, a visitação nos cemitérios-parque é mais freqüente, devido à possibilidade de
meditação, tornando, por isso, a ocasião similar a um passeio. Neste contexto, o autor reflete
25
sobre a caracterização da necrópole como um lugar simbólico de múltiplas significações,
carregado de emoções, que provoca tanto a melancolia quanto a reflexão calma, sendo, desta
maneira, um símbolo espiritual complexo, que expressa o que o homem tem experimentado
emocionalmente, em diferentes níveis. Concluindo, portanto, que o sentido do cemitério supera a
mera conotação da morte, passando da noção de piedade para a concepção de tê-lo como um
local de passeio, de tranqüilidade.
24
Ver Ariès (2003,p. 180-182)
25
Citação indireta, tradução livre.
61
Esta perspectiva de focalizar a observação da pesquisa na sociabilidade entre os visitantes
e na maneira relativamente tranqüila como o cemitério é percebido por eles deu-se na visita
realizada ao espaço no Dia de Finados em 2003, quando 15.000 pessoas passaram pelo Morada
da Paz
26
. Na ocasião, além das tradicionais missas e cuidados com os jazigos, os visitantes foram
à exposição de artes, viram apresentações musicais - de grupos em horário marcado ou de
instrumentistas que tocavam entre os jazigos. As crianças brincavam no jardim ou participavam
da oficina de artes. Muitos lanchavam ou almoçavam entre os jazigos, alguns bebiam cerveja,
indicando despreocupação com o tempo de permanência no local, ou mesmo com a noção de
higienização introduzida no século XVIII, citada anteriormente.
Foto 5: Instrumentistas entre os jazigos (Finados 2003) Foto 6: Crianças brincando (Finados 2003)
26
Informação contida no Jornal Viver Melhor (publicação da assessoria de imprensa do Grupo Vila) – edição de
novembro/dezembro de 2003. Disponível em http://www.grupovila.com.br/verNoticia.asp?idNoticia=84. Acessado
em 02 de setembro de 2004.
62
Foto 7: Oficina de Artes (Finados 2003) Foto 8: Exposição de artes/ Rhazec (Finados 2003)
Foto 9: Público presente na missa (Finados 2003) Foto 10: Grupos nos jardins (Finados 2003)
Foto 11: Pessoas se alimentando (Finados 2004) Foto 12: Movimento na floricultura (Finados 2004)
A sociabilidade entre os enlutados tornou-se mais perceptível a partir da aplicação das
primeiras entrevistas espontâneas. Através do entrosamento com o grupo, observou-se uma
63
grande rede de visitantes que se conhecia e trocava experiências do luto a partir de longas
conversas entre os jazigos. Notou-se, então, que diferentes grupos de enlutados que conviviam no
ambiente do Morada da Paz se formavam, falavam das novidades, de como sofriam com o luto, e,
principalmente, lembravam dos seus parentes falecidos. Este fato despertou a curiosidade em
compreender o quanto aquelas relações estavam de fato presentes na vida daqueles indivíduos,
considerando a possibilidade do ambiente “festivo” poder influenciar numa maior permanência, e
conseqüentemente, na formação daqueles grupos
27
.
Notou-se, a partir dos diálogos com os enlutados, que a freqüência de boa parte deles não
se restringia às datas comemorativas. Ao contrário, a presença esporádica no cemitério foi
relatada por eles como um sinal de desrespeito aos falecidos, tornando-se a visita constante “uma
questão de respeito, uma espécie de obrigação moral com o familiar”(Mariana)
28
. Dessa forma,
percebeu-se que o conhecimento do grupo se dava a partir da regularidade das visitas, realizadas,
segundo eles, pelo menos uma vez por semana, principalmente aos sábados, dia em que é
celebrada a missa.
Quando trato por diferenciada a freqüência dos visitantes entrevistados, levo em
consideração a observação de Louis Vincent-Thomas (1983, p. 313), que afirma ser hábito da
sociedade urbana ocidental - excetuando-se as perdas recentes - visitar as necrópoles apenas nos
dias 1 e 2 de novembro
29
, mais por uma rotina do que por uma convicção. Esta relação entre
tempo da perda e manifestação do luto, apontada por Vincent-Thomas, incluindo a freqüência das
27
Trago, neste ponto, a noção da necessidade da domesticação teórica do “olhar” e do “ouvir” no trabalho
antropológico proposta por Roberto Cardoso de Oliveira (1998, p. 19-21), como maneira de melhor interpretar o que
é visto e ouvido no exercício de investigação.
28
Viúva, 56 anos, dona de casa, mãe de uma moça e de um rapaz, sendo o último falecido há dois anos, por acidente,
e sepultado no Morada da Paz. O marido está em outro cemitério por opção da família dele, o que, segundo ela, lhe
causa constrangimento e faz com que o visite com menos regularidade.
29
Datas em que se comemoram a Festa de Todos os Santos e o Dia de Finados (ou Festa dos Mortos),
respectivamente. Segundo Schmitt (1999, p. 194; 279), a celebração da Festa de Todos os Santos é registrada desde o
século VIII, já a Festa dos Mortos é bem atestada a partir de cerca de 1030.
64
visitas, será analisada mais detalhadamente a seguir. Contudo, adianto que, entre os entrevistados,
a distância temporal entre a perda e a data da entrevista é amplamente variável, o que demonstra,
em princípio, que a freqüência assídua ao Morada é relativamente independente da proximidade
com o evento da morte. O que, mais uma vez, desperta curiosidade sobre a apropriação deste
espaço como local de sociabilidade para estes atores sociais.
Pelo que foi observado, as conversas mantidas pelos visitantes giram essencialmente em
torno do luto, mantendo sempre em pauta os parentes que morreram, suas histórias de vida e
como estariam se ainda estivessem vivos. A causa do falecimento também é assunto constante
das conversas, cada um sabe como e porque morreu o parente do amigo. O processo de luto na
vida cotidiana e suas dificuldades são temas que permitem aos enlutados uma espécie de
identificação, o que intensifica os laços e possibilita a troca de apoio entre eles. É relativamente
comum que troquem número de telefones e mantenham o relacionamento. Isso ocorre, de acordo
com os próprios informantes, primeiramente porque se sentem bem naquele ambiente, muitas
vezes até esquecendo que estão num cemitério, e, também de acordo com os depoimentos, o ciclo
de amizade feito lá dentro tem ajudado a encontrar uma forma mais amena de encarar a morte.
Segundo relatos dos entrevistados, a realização de eventos culturais, artísticos e religiosos
no espaço do cemitério tem contribuído para o fortalecimento da sociabilidade entre eles. O
Morada da Paz é tido como local de conforto devido ao encontro com os amigos e a possibilidade
de compartilhar sentimentos que não são externados em outros grupos do cotidiano. Além disso,
a disposição do espaço entre os jazigos e o contato direto com a natureza no cemitério-jardim são
apontados como estímulos ao bem-estar e ao crescimento das visitações.
É importante ressaltar que a freqüência das visitas dos enlutados ao Morada da Paz se dá
primordialmente pela necessidade de cultuar o parente que ali está sepultado - fato proveniente da
sensibilidade e da individualidade imbuídos no processo de luto no século XX, citado
65
anteriormente. Desta forma, a assiduidade das visitas ao cemitério está diretamente ligada a uma
indispensável reverência à memória dos falecidos. A diferença está na maneira como estes
enlutados se sentem neste cemitério, de maneira mais tranqüila, o que, segundo seus próprios
relatos, não acreditariam acontecer caso seus parentes estivessem sepultados em um outro local.
Para se ter uma melhor dimensão da noção de “tranqüilidade” descrita pelos enlutados ao
visitarem o cemitério, transcrevo aqui, de forma aleatória, algumas das respostas colhidas nas
entrevistas, quando se questionou como percebiam o ambiente do Morada da Paz:
“Eu me sinto bem aqui. Pra mim é uma terapia, isso pra mim é uma terapia”.
(José)
30
“Aqui eu me sinto em casa, me sinto em casa, porque até à noite eu venho aqui e
não tenho medo [...] Eu acho um passeio vir aqui” (Bruna)
31
“Me sinto aqui que parece que eu tô num jardim, olhando pra estas flores [...] E
saio caminhando aqui dentro deste Morada da Paz, eu acho uma maravilha”
(Suzana)
32
Considerando o bem-estar descrito pelos informantes através da tranqüilidade
proporcionada pelo local, bem como a partir do vínculo construído durante os encontros, trago
para a pesquisa um questionamento a respeito do processo de luto: estas alterações teriam alguma
influência na amenização da elaboração da perda para estas pessoas? Suas concepções sobre a
perda, sobre a morte, e sobre o espaço cemiterial, seriam diferenciadas?
30
Aposentado, 68 anos. Perdeu o filho há dois anos, vítima de enfarto. Visita o Morada da Paz duas vezes por dia, é
conhecido pela maioria dos visitantes assíduos.
31
Massoterapeuta, 46 anos. Tem o pai (há três anos) e a mãe (há quatro meses) sepultados no cemitério. Visitava o
Morada como “passeio” antes mesmo de suas perdas.
32
Comerciante, perdeu o filho há três anos, assassinado por um policial enquanto trabalhava. Visita o Morada todos
os sábados.
66
Como uma primeira hipótese de pesquisa, suponho que a apropriação deste espaço como
um local de troca de experiências, de reflexão e de tranqüilidade indica uma nova perspectiva
simbólica com relação ao ambiente do cemitério, à morte e à forma de conviver com a perda.
Uma sociabilidade incentivada pela alteração do uso do espaço, propiciada também a partir de
ações mercadológicas idealizadas pelo grupo que gerencia este espaço particular/público da
cidade.
Torna-se importante ressaltar que as ações mercadológicas citadas foram planejadas
prioritariamente para conquistar e agradar estes clientes específicos, principalmente por ser o
produto do jazigo um tanto incomum e indesejado. E que essa possível mudança não estava
prevista nem era planejada pelo mercado funerário, do qual o Morada da Paz faz parte, mas pode
acabar contribuindo para o seu crescimento.
O que estes enlutados vêem de mais diferente neste cemitério, portanto, é a tranqüilidade
do local e a possibilidade de expressarem sua dor, de falarem sem constrangimento sobre seus
mortos. De acordo com Mauro Koury (1999, p. 75-76) o sentimento (incluindo a dor) é uma
construção social que submete os indivíduos a uma sociabilidade. Assim, tendo como suporte da
relação a dor comum da perda, os enlutados do Morada têm construído laços que contribuem para
a amenização da angústia social que é isolar-se devido ao luto nos dias de hoje.
Sobre esta interdição de falar sobre o parente falecido, Roberto DaMatta (1991, p. 146)
faz uma importante observação quando diz que é típico das sociedades modernas, individualistas,
não falar do morto, por este assunto parecer prender o enlutado a um passado, impedindo que
observe o seu futuro. Assim, ele diz que a sociedade moderna classifica como uma “sociabilidade
patológica” este querer falar sobre o morto. É interessante observar que DaMatta (idem, p. 151)
considera o caso do Brasil um pouco diferente - ele compara nosso comportamento às sociedades
relacionais, que dão grande importância às relações sociais, o que termina se estendendo à
67
relevância que damos em manter uma relação com os mortos, lhes dando características de
pessoas que ainda vivem, conversando e trocando favores com os falecidos.
Diria que no Morada da Paz podemos observar os dois lados desta interpretação. Os
informantes sentem o peso de não conseguirem falar nos grupos do cotidiano sobre o luto, por
não se sentirem à vontade, ou mesmo por serem classificados em uma situação patológica pela
necessidade de expor esta dor. Assim, terminam por fazê-lo no ambiente do cemitério, com
pessoas que passam por situação semelhante à sua. Exemplo disto é o depoimento dado a seguir
por um visitante quando questionado se existia diferença na recepção do assunto do luto entre os
freqüentadores do Morada e de outros ambientes:
Não, tem gente que nem escuta. E acha que eu tô ficando doido ou maluco. Eles
acham que morreu, acabou-se. Às vezes eu fico até chateado, porque na hora que
eu vou contar você acha: pra que eu vou contar problemas de minha pessoa pra
ninguém? Eu sinto mesmo que não gosta, “tá bom encerra esse assunto”. Aí eu
fico tão triste... Não gosto. Não é como aqui que a gente conversa, um bate-papo
com o outro, uma experiência para um outro, para mim, diz: “Se conforme,
entregue a Deus...”. (Pedro)
33
Seguindo a interpretação da afirmação de DaMatta, também vê-se a intensa relação destas
pessoas com os mortos, em visitas bem freqüentes, como o caso de Patrícia
34
, que disse visitar a
mãe “do mesmo jeito que a visitava em casa, quando ela estava viva”. Ou mesmo no cuidado
com os jazigos observado constantemente, e ainda através das mensagens dos visitantes enviadas
33
Desempregado, 42 anos. O pai faleceu há três anos de enfarto. Visita o cemitérios todos os sábados. É uma pessoa
bem conhecida no Morada, cumprimentado por todos os funcionários e por muitos enlutados.
34
Artista Plástica, separada. Participante do grupo de apoio psicológico. Perdeu a mãe há dois anos por uma doença
grave (possivelmente câncer). Visita o jazigo diariamente.
68
para o céu em balões de hidrogênio no Dia de Finados, numa alusão à nova morada de seus
parentes.
Foto 13: Cuidado e culto ao jazigo (Finados 2003) Foto 14: Família reunida em oração (Finados 2004)
Foto 15: Missa semanal (Outubro 2004) Foto 16: Emoção na visita ao jazigo (Finados 2004)
Foto 17: Mensagens enviadas aos falecidos em balões (Finados 2003)
69
Assim, nota-se que os eventos e serviços oferecidos pelo Morada da Paz, dando ênfase à
realização das missas semanais e ao grupo de apoio psicológico, além da própria estrutura que
permite uma permanência mais demorada no local, podem estar contribuindo para a construção
(transformação?) da concepção dos visitantes sobre a morte e sobre a perda. Isto considerando
que tais fatores podem estimular uma maior assiduidade na freqüência destes atores sociais, que
passam a utilizar o cemitério como um local de sociabilidade, principalmente para falar de algo
que não é possível no cotidiano: o luto.
Não é demais lembrar, todavia, que esta apropriação do cemitério como um local de
interação dá-se primordialmente por aspectos cognitivo-emocionais desses atores, bem como pela
similaridade do contexto de isolamento social pelo qual estão passando, como foi dito
anteriormente. A maneira como acontece esta apropriação do espaço, ao meu ver, pode facilitar
esta interação, mas não é condição para esta sociabilidade. Tanto que, mais na frente, veremos
que estas relações, após iniciadas, e quando estabelecidas enquanto vínculos, extrapolam os
limites do cemitério, tornando-se cotidianas na vida destas pessoas. Pois, como afirmou o
entrevistado Marcos: “É a ambientação humana que tem ali que está dando vida além da
paisagem”. O cemitério, desta maneira, é palco da principal observação da pesquisa: a interação
entre os enlutados sob o ponto de vista da troca de emoções e do estabelecimento de vínculos a
partir de uma situação de isolamento social similar entre eles.
Deve-se, contudo, perceber a relevância do “palco”, da apropriação do ambiente para as
relações e para os indivíduos isoladamente. Sobre este aspecto, nos diz Maffesoli (1987, p. 169,
grifos do autor):
70
Naturalmente, devemos estar atentos ao componente relacional da vida social. O
homem em relação. Não apenas a relação interindividual, mas também a que me
liga a um território, a uma cidade, a um meio ambiente natural que partilho com
outros. Estas são as pequenas histórias do dia-a-dia: tempo que cristaliza em
espaço. A partir daí, a história de um lugar se torna história pessoal.
Assim, a consideração acerca da apropriação do local assume importância justamente pela
possibilidade de socialização encontrada no ambiente por seus freqüentadores, o que torna
relevante a ligação entre enlutados e cemitério, fazendo deste espaço e das histórias nele vividas e
compartilhadas uma parte significativa na vida destes indivíduos. “É como se aqui fizesse um
pouquinho parte da minha história, da minha vida” (Juliana).
71
CAPÍTULO 3
A socialização da dor no luto
“Quando você foi embora fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha, e nem é meu este lugar
Estou só e não resisto, muito tenho pra falar
Milton Nascimento. Travessia
.
As dificuldades encontradas para realizar a observação etnográfica foram muitas, a
começar pelo distanciamento com os informantes devido à falta de experiência pessoal com a
morte. Tal fato foi sentido por diversas vezes, principalmente nas apresentações ou nas
introduções a conversas, como elemento que impossibilitaria o entendimento real, mais
aproximado, da situação vivida pelos enlutados – considerando a premissa, repetida por eles
próprios, de que “só entende a dor da perda quem passa por ela”.
Embora esse fato permanecesse presente durante toda a pesquisa, a manutenção de uma
relação mais assídua com os visitantes permitiu, com o passar do tempo, que fosse estabelecida
uma abertura ao diálogo e uma aproximação entre eu e os informantes – que, por sua vez, foram
encontrando espaço para falar de suas dificuldades com o luto, ultrapassando assim a barreira
inicial encontrada na ausência de experiência pessoal com a perda. Percebeu-se, portanto, a
construção de uma relação dialógica entre nativo e pesquisador, tal como proposta por Oliveira
(1998, p. 23-24), na qual o informante se transforma em interlocutor, a partir da abertura do
diálogo entre ambos. Isso implica dizer que o envolvimento mais aproximado com os enlutados
tornou-se essencial para uma melhor compreensão de suas falas e de seus sentimentos.
72
Pode-se afirmar, inclusive, que se estabeleceu uma relação de amizade entre eu e alguns
enlutados. A partir da assiduidade de nossos encontros, alguns pediram meu telefone e chegaram
até mesmo a ligar em dias difíceis. Fotos e santinhos também me foram dados como lembranças
de seus parentes. E pude, ainda, participar de um encontro marcado entre os visitantes fora do
ambiente do cemitério – o que possibilitou confirmar a constância do tema do luto em suas
conversas também em local externo aos muros do Morada da Paz. O entrosamento foi
considerado primordial para atingir a abertura necessária aos depoimentos, principalmente se
considerarmos que a perda, ou melhor, o sofrimento dessas pessoas é, para eles próprios, algo só
exposto após a demonstração de uma confiança.
A realização das entrevistas, desta forma, só pôde ser programada após uma dada
aproximação com o entrevistado. Quase sem exceção, a grande maioria dos enlutados que se
dispôs a gravar nossa conversa chorou bastante e se emocionou ao dar seu depoimento sobre a
dor da perda
35
. Como a situação emocional de alguns deles é bem delicada, inclusive com
acompanhamento psiquiátrico e tratamento à base de anti-depressivos, por algumas vezes precisei
desligar o gravador para consolá-los e esperar que parassem de chorar para continuarmos. Em
apenas um caso, a entrevista não seguiu o roteiro completo, pois o enlutado acabava por desviar o
assunto sempre que tentava expor seu sofrimento, até que confessou: “Mas hoje eu não quero
mais conversar sobre isso, porque dói muito” (José). Este fato, na verdade, demonstrou-se para a
observação como um dado que aponta o interdito social, a dificuldade sofrida em revelar a dor do
35
A manifestação do choro como sinal de tristeza e angústia é bem retratada por Cascudo (1987, p. 63-64, grifos do
autor): “’Água dos olhos’ é patrimônio animal mas o Homem elevou-a a uma dignidade simbólica na simples
eliminação. Quando outros excretos continuam na classe instintiva das expulsões naturais, a lágrima é característica
da lamentação racional, flor úmida e ardente do Sofrimento ostensivo e sobretudo recôndito, privativa e distintiva no
gênero humano. Identifica o pranto pela insistência. [...] Dizer-se ‘Está chorando’ é denunciar um ‘estado da Alma
psicológico [...]. Os animais gritam. O Homem chora. A lágrima autoriza todas as eloqüências adiáveis. Sabemos,
com milênios e milênios de experiência, que as lágrimas aliviam mas não solucionam o motivo de sua origem.”
73
luto. Nesta situação, respeitei o estado do entrevistado e colhi o restante das informações a partir
de conversas informais, em encontros posteriores.
De uma maneira geral, contudo, a oportunidade de contar suas histórias e de desabafar
suas angústias foi para os entrevistados gratificante. Alguns agradeceram e disseram nunca terem
conseguido falar tanto sobre o seu caso, por nunca terem tamanha abertura para interlocução. Na
verdade, isto configura um reflexo de quanto a disposição em ouvir sobre a morte, no cotidiano
destas pessoas, faz falta. Uma delas encerrou nossa conversa dizendo:
Eu acho que seu trabalho, além de ser um trabalho que é isso que você quer... Eu
acho que é um trabalho que vai dar muitos frutos [...]. Pra ajudar as pessoas e só
em você ouvir, [...] porque você vai, se envolve num trabalho desses, você vai
querendo bem às pessoas. E as pessoas querem isso, é atenção. E você escuta,
quer dizer, você não tem nada com isso. Mas a gente não quer nem saber se você
quer isso pro seu trabalho, você está ouvindo. (Mariana)
Percebe-se, desta maneira, que foi inevitável o estabelecimento de uma relação de
confiança e de sensibilidade para a abertura de um diálogo que atingisse a demonstração do
sofrimento destas pessoas. Um trabalho que exigiu tempo e um certo cuidado na aproximação
com os enlutados. Numa pesquisa sobre o mesmo tema, Koury (2003, p. 12)
cita a necessidade de
adestramento do pesquisador para conquistar a confiança do entrevistado:
A cumplicidade distanciada e conquistada a cada entrevista requereu do
entrevistador um adestramento temático e uma postura confessional que
permitisse ao informante sentir-se confiante sobre o que falava, e da
significância de sua narrativa, independentemente da forma, do modo, da
intencionalidade e da tensionalidade (sic) discursiva expressa.
74
Dessa forma, a observação desenvolvida se deu através de conversas informais,
participação em eventos e aplicação de entrevistas. A análise da sociabilidade entre os enlutados
do Morada da Paz se subdividiu em dois grupos: os que se conheciam e trocavam experiências
espontaneamente, entre os jazigos, a partir de encontros informais, e os que se encontravam
regularmente no grupo de apoio psicológico - serviço oferecido pelo cemitério aos clientes. Ao
todo, foram realizadas treze entrevistas, sendo cinco com os enlutados do grupo de apoio, cinco
com os visitantes mais assíduos, além da psicóloga, do artista plástico que reside no Morada da
Paz e do diretor do Grupo Vila.
Como existe uma semelhança nas situações socioculturais, no sentimento de inadequação
social e no sofrimento pela não-exposição da dor da perda entre os integrantes dos dois grupos
observados, a análise dos temas apontados espontaneamente no campo, como reflexões que
caracterizam o aspecto emocional, social e cultural do luto, será feita em conjunto.
36
Dessa
forma, deixarei para observar mais adiante, de maneira mais cuidadosa e comparativa, os
aspectos que situam a relação de troca de experiências, de compartilhamento da dor e da
sociabilidade entre os componentes do grupo de apoio e entre os visitantes.
Aproximação, observação e relação com enlutados
Em princípio, a idéia era perceber somente a sociabilidade e as representações do luto que
ocorriam espontaneamente nos jardins do cemitério. Contudo, a partir das visitas e do
entrosamento com os enlutados, percebeu-se que muitas pessoas que freqüentavam o cemitério e
36
Tornar-se-á perceptível que grande parte das discussões aqui expostas são fruto de reflexões feitas pelo grupo de
apoio psicológico e, portanto, observadas a partir de tais reuniões. Considerando a impossibilidade de perceber tais
exposições, enquanto reflexão do grupo, entre os visitantes espontâneos, tendo em vista que suas visitas se dão em
dias e horários alternados, ressalto que as representações e situações expostas são válidas para os dois grupos – pois
apresentam uma similaridade nas concepções e nas construções narradas nas entrevistas.
75
que mantinham vínculos afetivos entre si, se conheciam também através dos encontros
proporcionados pelo grupo de apoio psicológico oferecido pelo Morada da Paz – surgindo assim
o interesse em estudar mais de perto as relações existentes neste segundo grupo.
Foi quando que cheguei à Millena Câmara, psicóloga responsável pelo grupo, que foi
bastante receptiva. Ao demonstrar a vontade de acompanhar o seu trabalho para a pesquisa, notei
que, de início, ela parecia um pouco receosa com esta possibilidade. Quando fizemos a primeira
entrevista, ela explicou que nunca tinha permitido que alguém “de fora” acompanhasse esse
trabalho. Que já tinha recebido alguns pedidos, mas que não achava conveniente, pois não sentia
um interesse mais apurado nestas propostas, além da curiosidade natural.
Após a nossa primeira conversa, ela decidiu que seria possível acompanhar os trabalhos
deste novo grupo que se formava. Apesar disto, demonstrou-se preocupada com a possível reação
diante de emoções fortes que seriam vividas nesses encontros. Colocou-se a disposição para
qualquer auxílio e sugeriu que, se possível, eu fizesse uma terapia paralela neste período, e ainda,
que após cada encontro procurasse fazer uma atividade que distraísse, a fim de não absorver
qualquer carga emotiva mais forte que porventura viesse a ocorrer.
A proposta de oferecer este serviço aos enlutados do Morada da Paz foi uma iniciativa da
própria psicóloga, que, após terminar uma especialização em psicoterapia para pessoas enlutadas,
realizada em São Paulo, apresentou um projeto para a direção do Grupo Vila. Antes do trabalho
com este grupo que observei, dois outros já haviam sido realizados. Os grupos são formados a
partir de inscrições gratuitas acessíveis aos interessados na secretaria do cemitério. Para iniciar o
debate do tema, são realizadas quatro palestras durante quatro sábados consecutivos, após a missa
– quando ocorre maior fluxo de visitantes no local.
Nesta oportunidade, a psicóloga expõe alguns pontos sobre a perda e sobre a morte, fala
dos sintomas psíquicos e corporais sentidos pelos enlutados, ressalta a importância de externar e
76
compartilhar a dor, e então apresenta a proposta da formação do grupo. Em média, vinte e cinco
pessoas ficaram para assistir as palestras nos sábados em que estive presente. Algumas delas já
tinham feito parte dos grupos anteriores e ficavam para conversar com a palestrante após o final
do encontro. Outras estavam ali pela primeira vez, e, principalmente as de luto mais recente, que
usavam camisetas com as fotos dos entes falecidos ou estavam com flores para colocar nos
jazigos, choravam bastante.
A proposta do grupo é desenvolver o trabalho de apoio em doze sessões, realizadas
quinzenalmente, também aos sábados, após a missa, no ambiente da sala-de-estar do cemitério.
Apesar de existir uma programação idealizada pela psicóloga para discussão dos temas e duração
do grupo, ela fez questão de ressaltar, no primeiro encontro, que os debates se desenvolveriam de
acordo com a fala dos participantes e que a proposta das doze sessões poderia ser alterada,
seguindo uma necessidade de ampliação, ou não, dos encontros. Tanto que, no final, a realização
deste grupo se deu em dezesseis encontros.
Em Natal, este é o único grupo de apoio psicológico formado para enlutados de
parentescos distintos
37
, como também é o único no Brasil a ser realizado dentro do ambiente de
um cemitério. Como é um serviço oferecido para clientes do Grupo Vila, apenas os visitantes que
têm parentes sepultados no Morada da Paz participam dele.
37
O outro grupo disponível na cidade é a “Associação de Pais Amor Eterno”, que nasceu a partir da iniciativa de
algumas mães que trocavam suas experiências no Morada da Paz. O Grupo Vila apóia a associação financiando a
presença da mesma psicóloga que acompanha o grupo de terapia do cemitério. A intenção de formar um grupo
exclusivo para pais vem, segundo seus integrantes, da especificidade da dor e do processo de luto desta perda. Eles
admitem sua dor como maior ou mais penosa que a de outros enlutados que têm outro parentesco com o falecido,
pois esta é uma perda que não segue a ordem “natural” da vida. Diferentemente do grupo que observei, este recebe
pais que têm seus filhos sepultados em outros cemitérios e hoje conta com cerca de vinte integrantes permanentes.
As reuniões não são realizadas na estrutura do Morada da Paz.
77
Foto 18: Reunião do grupo de apoio psicológico (30 out. 2004)
O período de observação das reuniões do grupo foi de grande importância para a pesquisa.
Nestas ocasiões, algumas indagações foram se tornando mais claras e o acompanhamento dos
depoimentos dos enlutados, bem como a evolução da elaboração do processo de luto, permitiram
que os sentimentos da perda fossem mais bem compreendidos e assimilados. Em vários
momentos, como tinha previsto a psicóloga, os relatos dos participantes emocionaram a todos,
inclusive a mim. A relação mantida com aquelas pessoas e, principalmente, o momento sensível
pelo qual estavam passando, tornavam difícil a postura distanciada ideal entre observador e
objeto de estudo.
Ao todo foram observadas dez reuniões, sendo a primeira, realizada em 03 de abril de
2004, considerada a mais significativa delas por ser o momento do encontro, da apresentação, do
primeiro contato. Sabia estar num papel que seria observado pelos presentes. Afinal, existia entre
nós o sentimento de diferenciação, devido ao sentimento de não-pertencimento ao grupo por não
ter a experiência da perda e da dor do luto que tornava aqueles indivíduos semelhantes, próximos.
Também não exercia o papel da psicóloga, para quem eles confessavam suas dores na certeza de
um apoio profissional e até mesmo pessoal. Estava ali para observá-los, e eles sabiam disso.
78
Sabiam que estava ali para pesquisar, e que, de alguma maneira existia, nesta perspectiva, uma
“utilidade” na demonstração de suas fraquezas, de seus sentimentos.
Com o andamento dos trabalhos neste dia e também nas sessões que seguiram, além da
relação pesquisador/ informante, a minha presença foi transformada, assim como na experiência
citada por Koury (cf. pg 73), na figura de um confessor. Este papel também era assumido pelos
demais membros do grupo, que contribuíam na elaboração do luto uns dos outros, por serem
pessoas que podiam ouvi-los, escutar o que eles precisavam dizer.
Atingir a condição de “confessor”, porém, mesmo entre os próprios integrantes do grupo,
exigiu o momento da exposição inicial das perdas de cada um, ocorrido na primeira sessão. A
apresentação das dores e dos problemas se deu como uma iniciação para o estabelecimento da
troca, da confiança mútua. Dessa forma, os relatos das experiências individuais expostos neste
primeiro encontro têm relevância por indicarem o grau de abertura destas pessoas e a importância
do conhecimento profundo sobre os problemas de cada um, como maneira de fortificar o
sentimento de pertença e de compartilhamento da dor. Portanto, conhecer tais histórias, naquele
momento, indicava perceber o princípio da sociabilidade no grupo, estabelecida após a
apresentação e exposição das dores de cada componente e na identificação de suas dificuldades
em comum.
Apesar da importância da exposição de suas histórias, começar a apresentação foi tarefa
difícil. Participaram desta primeira sessão, ao todo, onze pessoas, contando comigo e com a
psicóloga Millena Câmara. Após a nossa apresentação, a psicóloga deu início à reunião e pediu
que cada um dos enlutados se apresentasse e dissesse por que estava ali. Um silêncio enorme.
Ninguém queria falar primeiro. A relevância daquela reunião estava ali, no contato inicial,
momento em que os participantes tinham a difícil tarefa de, pela primeira vez, expor a sua dor
para desconhecidos. Estava ali estampada para a observação, de maneira até então nunca tão
79
clara, a dificuldade provocada pela exposição da dor do luto. Embora aquelas pessoas estivessem
ali por livre e espontânea vontade, tinham receio de falar, tinham medo de fazer aquilo a que se
propuseram – demonstrar o seu sofrimento.
Relatar neste espaço, de maneira um pouco mais detalhada, alguns aspectos da
socialização do grupo, tem como objetivo aproximar a visão do que foi visto e sentido nos
encontros. Após a primeira sessão, participei de mais nove encontros. Neles, o grau de
proximidade entre os participantes foi aumentando, o que, conseqüentemente, foi lhes deixando
mais à vontade para colocar algumas questões que remetem à dificuldade de expor a dor do luto.
Doze novos participantes ingressaram no grupo no decorrer dos trabalhos. Dos vinte e
um, três deles foram apenas uma vez e cinco tiveram a freqüência pouco assídua. Dos que
entraram posteriormente, uma boa parte integrou os grupos anteriores e resolveu continuar
participando das reuniões, e outra era composta por pessoas que tinham perdido seus entes após a
formação do grupo. Com o passar das sessões, foi perceptível a mudança no comportamento dos
atores sociais, principalmente naqueles que faziam parte do grupo pela primeira vez,
coincidentemente ou não, os que têm perdas mais recentes. O choro continuou presente em suas
falas, mas de alguma maneira, parecia mais ameno, mais tranqüilo.
A importância desta identificação a partir da dor ficou demonstrada na inquietação
provocada pela cobrança externa, exercida sobre cada um deles, no sentido de que deveriam parar
de sofrer. Desta maneira, a afirmação de que “só entende a dor do luto quem passa por ele”,
tornou-se cada vez mais freqüente - subentendendo que ali, naquele grupo, passando por
situações semelhantes, aquelas pessoas poderiam se ajudar mutuamente, pois compreendiam e
sentiam na pele as mesmas dificuldades que seus companheiros. Como disse uma participante:
“Lá é como que fosse, pra mim, é como que tivesse uma outra dimensão e aquelas pessoas que
80
tão ali falam a mesma, a minha língua. A gente entende tudo o que tá... Eles entendem o que eu tô
passando e eu entendo o que eles estão passando.” (Sandra)
38
O tempo, a forma da morte e o vínculo em vida
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto [...]
De repente, não mais que de repente”.
Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes. Soneto da Separação.
Os depoimentos que se seguiram, principalmente nas apresentações ocorridas na primeira
visita de cada integrante, davam uma idéia do perfil do grupo que se formava. Pessoas muito
diferentes com relação à idade, profissão, história de vida. O fator que lhes tornava semelhantes,
a perda, também apresentava diferenciações no que dizia respeito ao processo de elaboração do
luto e à expressão do sentimento diante da morte. Segundo a observação, isso se dava por três
motivos principais: o tempo e a forma (trágica/ esperada) da perda, e o parentesco com o
falecido.
É importante, contudo, ressaltar que o tempo de que trato como diferenciador entre estes
indivíduos não diz respeito ao que seria tido como “tempo ideal” de luto, convencionado hoje em
um ano, como período em que o enlutado pode/ deve afrouxar os laços da dor e voltar ao
cotidiano, sob pena de ser considerado em estado patológico. Pode-se entender que o tempo que
envolve o processo de elaboração da perda é algo individual, que depende de uma série de
experiências vividas pelo sujeito, conforme cita Koury (2003, p. 186):
38
Comerciante, 53 anos, divorciada. Perdeu a filha de 23 anos, há nove meses, vítima de um acidente
automobilístico.
81
O tempo ideal do luto fica, assim, ao que parece, ao sabor da disputa e da visão
desta disputa no olhar e na experiência de cada um. Com o rompimento das
regras e formas rituais, deixam de se apresentar como uma unidade por onde se
pode pensar o social. Este conjunto de valores passa a ser visto e sentido através
da ótica pessoal e vivência íntima, na curva de vida de cada um.
O que pretendo demonstrar como diferença entre estes indivíduos, porém, é o estado
distinto em que se encontravam com relação ao tempo da perda – a variação entre o momento da
morte e o dia da primeira reunião era para alguns de nove dias, para outros, de dez anos. Já a
relação do tempo da perda e a data da entrevista, entre o grupo dos enlutados visitantes, teve uma
variação menor: entre um ano e meio e três anos. Portanto, enquanto uns já tinham uma certa
conformação devido ao longo tempo passado, outros ainda estavam em estado de choque, sem
admitir o ocorrido como verdade. Esta distinção podia ser bem percebida no semblante, no
comportamento destas pessoas e na maneira como falavam da perda.
A forma da morte demonstrou uma certa coesão no grupo. Embora fossem histórias
completamente distintas, na grande maioria tratava-se de acontecimentos trágicos. Eram
assassinatos, acidentes, doenças graves seguidas de erro médico no tratamento ou ainda
fatalidades. A maneira abrupta como a morte fora apresentada para estes indivíduos esclarecia o
grau de dificuldade de aceitação da perda. Isso, de certa forma, lhes tornava mais próximos, pois
tinham em comum a revolta pela morte inesperada, e, em sua maioria, violenta. Sobre a maneira
como a morte acontece, Elias (2003, p. 72) faz uma importante observação: “O modo como uma
pessoa morre depende em boa medida de que ela tenha sido capaz de formular objetivos e
alcançá-los, de imaginar tarefas e realizá-las. Depende do quanto a pessoa sente que sua vida foi
realizada e significativa – ou frustrada e sem sentido”.
82
Tal afirmação faz refletir e perceber que não “somente” a fatalidade e a violência da morte
tornavam a perda mais intensa, mas também os papéis e, principalmente, as não-realizações dos
falecidos, tudo somado ao estágio importante da vida em que se encontravam, refletiam no
agravamento da dor daqueles enlutados. O estágio a que reporto diz respeito aos planos não
realizados pelos falecidos, que numa relação com a maneira como estas mortes se deram, revela o
caráter trágico das perdas expostas nos grupos, como exemplo: crianças de oito e dez anos,
portadores de síndromes raras, que, após alcançarem relativa readaptação, morreram por erro
médico; jovens em torno de 20 anos que faleceram por doenças curáveis, acidente ou assassinato;
senhora, mãe de família, portadora de distúrbios psíquicos, que após uma internação devido a um
surto, morreu por infecção renal não detectada.
A revolta causada nos participantes pela maneira como a morte se deu para aquelas
pessoas era latente. Em vários momentos, o pedido de justiça para os acidentes e assassinatos e,
principalmente, para os casos em que se detectava erro médico, tornou-se assunto amplamente
debatido nas reuniões. Para alguns, faltava coragem de prosseguir na averiguação da causa da
morte por achar que faltava estrutura emocional. Para a maioria, contudo, o sentimento era de
continuar lutando, buscando, até o fim, a responsabilização dos culpados. Dessa maneira, foi
demonstrado o quanto lutar pela “justiça” no caso da morte de um parente pode trazer
constrangimentos, no sentido de lembrar sempre o ocorrido. Mas, ao mesmo tempo, percebeu-se
que o alívio destes enlutados só seria obtido através desse esclarecimento, pois esta “justiça”, por
averiguar os fatos e responsabilizar os culpados, tem para eles o valor simbólico de um descanso
para aquela dor.
O estabelecimento de um culpado para o evento da morte é algo muito comum na relação
atual que se tem com a perda. No caso de assassinatos e acidentes, ficava mais fácil para os
componentes do grupo apontar tal responsabilidade. Ficou latente que, de alguma maneira, a
83
figura do culpado criava uma relação ambígua de alívio - por saber que o evento foi causado pela
atitude de outro que não o falecido - e de raiva, curiosamente pelo mesmo motivo. A noção de
culpa da morte por erro médico, porém, apontava para outros sentimentos: de impotência - por ter
que confiar a vida no saber de outro, que nem sempre agia como deveria – e de revolta, por não
saber como provar tal “injustiça” e não ter certeza da penalidade a ser sofrida por estes
profissionais.
Esta atuação do médico tem, inclusive, uma contextualização histórica e social na relação
do indivíduo com a morte. A partir da medicalização do doente e da possibilidade de
prolongamento da vida, a idéia da morte tornou-se como algo “evitável”. Assim, a
responsabilidade do médico, identificada em vários casos expostos no grupo como causa do
evento, está diretamente ligada a esta noção. É dever do médico manter a vida, e quando isso não
ocorre, sua atuação profissional torna-se passível de críticas, principalmente por aqueles que
sofrem a perda. Sobre este aspecto, Josildeth Consorte (1983, p. 43) faz uma observação
interessante:
O mais contraditório, porém, neste quadro geral de recusa, é que, dado o intenso
processo de medicalização da existência a que está submetida a nossa sociedade
e a conseqüente institucionalização do modo de morrer, o envolvimento dos
médicos com a morte é cada vez maior e sua responsabilidade face a ela cada
vez mais invocada.
O pedido constante de justiça para as perdas provenientes de mortes trágicas, em que um
“culpado” estava estabelecido, desenrolou uma discussão no grupo sobre a diferença entre justiça
e vingança. Sobre este aspecto, as reações entre os enlutados eram as mais distintas. Alguns
84
chegaram a confessar que já haviam desejado, ou até mesmo planejado, vingar-se do
“responsável” pela morte do ente. Outros não queriam mexer na “ferida”
39
ou ainda afirmavam
não desejar a morte do culpado por acreditar que esta atitude é “pior que a de quem matou”.
Neste contexto, percebe-se a dificuldade de aceitação da partida, seja pela forma da morte
ou pelo vínculo estabelecido entre falecido e enlutado. Para a psicóloga Millena Câmara, a
percepção de como era mantido o vínculo em vida influencia diretamente no processo de
elaboração da dor do luto:
O que a gente pode tá avaliando é a intensidade desse sentimento, a intensidade
de envolvimento, que precisa estar diminuindo com o tempo. [...] o nosso
parâmetro, hoje em dia, pra a gente ver o que é saudável, o que não é, quando
você tá elaborando ou não, é o tipo de vínculo que você tinha com quem morreu.
Se esse vínculo era muito intenso, sinal de que já não era muito saudável, vai
demorar muito mais pra elaborar. E aí a gente vai tendo esse parâmetro.
Sobre este aspecto, é perceptível uma maior dificuldade de aceitação entre aqueles que
tinham uma relação de apego ou de dependência com aquele que partiu. Uma reflexão bem
interessante de um participante remete à diferenciação entre amor e apego, e a conseqüência deste
segundo caso no momento de entendimento do sentido da perda:
Mas hoje eu sei que grande parte do que passa na vida é fruto dessa confusão
que a gente faz de amor e de apego, de proteção, de achar que nós podemos
vivenciar e sofrer pelos outros. Cada um passa aqui o que tem que passar e
ninguém tira. A gente pode ajudar, confortar, mas tirar dele o fardo, a gente não
consegue. Por mais amor que você tenha, você não consegue tirar. Então isso já
39
Expressão colocada constantemente pelos enlutados.
85
devia ser o suficiente pra gente enxergar que não somos donos, nem vamos ter
posse. [...].
Mas você tem que nunca se deixar depender emocional, psicológico. Tentar ter
posse, no momento que você tem posse daquela pessoa você cria uma posse
recíproca. Assim como um império não domina outro, um ser não domina outro
sem ser dominado, sem sofrer reação daquela dominação. Então você vai criar
um vínculo. Se você tiver aquela posse, no sentido de posse, de apego, a perda
vai se multiplicar. Você vai perder, vai pensar que perdeu uma coisa de si
mesmo, mas não perdeu. Perdeu um mundo que tava ao seu lado, você tava
vendo desenvolver, você vai aprender com ele. Agora você quis mais do que
isso, você quis fazer uma abordagem, jogar uma porção de correntes e amarras
pra prender um ao outro. E a tempestade da vida sofre suas turbulências e numa
hora dessa as amarras são fracas, essas amarras se rompem e aí cada um segue o
seu trajeto. (Marcos)
Esta relação ideal proposta pelo enlutado Marcos, em que o amor sobrepõe-se ao apego,
abrandando, supostamente, a conseqüência da dor inominável daquele que sobrevive à morte, faz
lembrar Carlos Drummond de Andrade (1988, p. 1236), em seu poema Ausência:
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
A ausência assimilada seria, portanto, a convivência pacífica do enlutado com sua dor,
através do laço baseado na afetividade, e não na “amarra” referida anteriormente por Marcos,
entre sobrevivente e falecido. Dessa forma, a ausência transforma-se em um estar em mim, em
que a história de ambos se entrelaça, mas não chega a confundir-se. Pois, como lembra o
86
entrevistado, “não somos donos” daquele que partiu. Os momentos compartilhados, desta forma,
compõem histórias independentes, mas complementares pelo convívio mútuo. Neste sentido,
podemos então pensar como Drummond: “Não há ausência na falta”. Esta reflexão, contudo, não
é recorrente no discurso dos enlutados, pois o vínculo, o apego mantido em vida, reproduz-se na
relação mantida pelo luto, fazendo com que a maioria deles “lastime a falta”.
Pais que sepultam filhos
“Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”.
Chico Buarque. Pedaço de mim.
Voltando a observar o perfil do grupo, vê-se que o parentesco com o falecido também se
revelou como fator distintivo. Existiam, entre os participantes, vínculos diferentes com os mortos.
Tratava-se da perda de sobrinha, marido, ex-marido, esposa, mãe, pai e filhos. A alteração mais
visível encontrava-se entre os pais e mães que perderam seus filhos. A freqüência de indivíduos
em estado de luto pela morte de filhos que visitavam assiduamente o Morada da Paz refletiu-se,
inclusive, na amostra
40
– apontados como constituintes da maior parcela dos que permaneciam,
após a perda, visitando com mais constância o ambiente.
Isso se deve, à primeira vista, devido à dificuldade de elaboração e de aceitação da perda.
Para eles, declaradamente, sua dor era mais profunda que a dos demais, pois difere de qualquer
40
Entre os entrevistados, 50% deles são pais que perderam filhos, 30% filhos que perderam pais e 20% viúvos. É
interessante ressaltar que, entre os pais que perderam os filhos, apenas um não tinha passado pela experiência da
perda anteriormente. Todos os demais já tinham estado em luto em outro momento, e, ainda assim, ressaltaram de
forma eloqüente que a dor da perda do filho era mais forte.
87
outra perda, como nos lembra Guiomar Bernini, citando Schwartzenberg (2000, p. 23): “[...] em
todas as línguas existe uma palavra para dizer que perdeu um pai: - sou órfão. Um marido: - sou
viúva. Mas não há palavra para dizer que se perdeu um filho, porque este fato deixa de ser
natural”. Assim, os pais afirmavam nas reuniões - e também nas entrevistas - que a morte de um
filho é diferente de qualquer uma outra, sendo, portanto, impossível que alguém mais (exceto
outros pais na mesma situação) soubesse o que eles sentiam. Este fato demonstra, até mesmo, a
formação de uma sociabilidade diferenciada entre atores que passam especificamente por este
tipo de luto:
Eu só gosto de ouvir depoimentos de mães e de pais. Porque eu me identifico. E
quando é de outro às vezes eu fico cansada. Por isso que eu digo que eu entendo
quando a pessoa cansa. [...] Aí eu quero dizer isso à pessoa. Entendeu o que eu
quero dizer? Pode até ser cada um, os sentimentos, é muito relativo, a pessoa
pode ser apaixonada por uma mãe, mas pra mim, eu quero dizer a ela, eu não
posso dizer, mas tenho vontade de dizer: “olhe, você não chega nem aos pés do
meu sofrimento”. (Mariana)
41
Ao afirmar que “cansa” ouvir sobre as dores dos enlutados cujo parentesco com o falecido
é outro, entende-se que existe para esta mãe uma noção de diferenciação de sua dor, e,
conseqüentemente, de sua experiência com relação aos outros. Contudo, sua afirmação de que
“entende quando a pessoa cansa”, revela uma concepção de aceitação para com a falta de
abertura dos outros indivíduos em ouvir o sofrimento do luto, sejam eles enlutados ou não. Pois,
como só “entende quem passa”, quem não tem a experiência não tem a dimensão da dor, e, por
41
Mariana, cujo filho morreu há dois anos, participa somente do grupo de apoio “Associação de Pais Amor Eterno”.
Já participou do grupo do Morada, mas afirmou sair por não comparar sua dor com a dos demais.
88
isso, não entende o sofrimento. Assim, para ela, é “compreensível” não ter “paciência”, poder
“cansar” diante de tais depoimentos.
Esta noção de variação da dor do luto relacionada ao parentesco, foi revelada a partir da
fala dos próprios informantes. O comportamento entre eles, durante as sessões, demonstrava a
cumplicidade entre os pais que sentiam dor semelhante, e, por sua vez, o respeito dos demais,
caracterizado pelo silêncio ou pelo consolo, por entenderem que sua dor, embora grande, não se
comparava àquela sentida pela perda de um filho.
A dificuldade encarada pela morte dos filhos foi inclusive desmembrada para uma outra
discussão: a constante discordância entre os casais que passam por esta perda. Grande parte dos
pais que freqüentavam a reunião iam sozinhos, sem a participação do cônjuge. Isso se dava, na
maioria das vezes, porque o outro passava por um processo diferente de elaboração do luto, em
que não acreditava ser possível amenizar a dor a partir da assistência profissional proposta pelo
grupo. Ficou notável nos diálogos, e principalmente nas queixas expostas, que sempre um dos
dois, marido ou mulher, cobrava do outro uma postura de sofrimento semelhante à sua, como se a
demonstração da dor da perda tivesse que acontecer de maneira igual para ambos. As
dificuldades na percepção da perda por duas pessoas que têm um morto em comum são bem
explicitadas por Koury (2003, p. 121):
A pessoa e o outro da relação são colocados em xeque pela morte de um terceiro
comum a ambos. As atitudes de cada um e as leituras que fazem, ou que são
lidas como realizadas, vêm à tona como tensão, interna às pessoas e entre elas,
quando o que se queria mesmo era aconchego, conforto e demonstrações de
carinho e afeto. A dificuldade de comunicação pela ambivalência das leituras de
cada um e das margens de exclusão em que se coloca, ou coloca o outro da
relação como vítima ou algoz, tendo o corpo morto como o referente principal,
vem acompanhada de mágoas que, embora com o tempo amenizem, provocam
afastamento e desconforto.
89
Dessa maneira, as reclamações expostas pelos membros do grupo que perderam seus
filhos com relação a seus parceiros giravam em torno desta divergência na exposição da dor, e
comumente, se falava na possibilidade de separação após a perda, devido ao desgaste sofrido no
relacionamento. Nestes momentos, a psicóloga, sempre na intenção de apaziguar tais
pensamentos e fazê-los perceber que o processo da perda é diferente para cada indivíduo, falava
da importância da união e da compreensão do processo da dor do outro, e, principalmente, pedia
aos participantes que pensassem em seus filhos, que não gostariam em nenhuma hipótese de ser
motivo de discórdia entre seus pais. Apesar do esforço desprendido pela psicóloga, era
observável a intolerância dos membros do grupo com seus parceiros, salvo algumas exceções,
que admitiam tentar manter a calma para não causar conseqüências piores, embora também não
estivessem mais satisfeitos com o relacionamento.
A noção de quebra de um ciclo natural da vida a partir da perda dos filhos colocava
muitas vezes estes pais em confronto com sua crença em Deus. A ligação com a Igreja, desta
forma, se tornava muitas vezes fragilizada. “Antes eu era evangélica, hoje eu sou só Beatriz
42
”,
disse certa vez uma delas. Era perceptível que esta descrença se dava primordialmente no grupo
entre os pais que perdiam os filhos. Uma relação bem oscilante, por sinal, que variava entre a
raiva da ação de Deus e a confiança de que seu filho estava bem, nas mãos Dele. Este vínculo
com Deus, por parte das mães que perdem seus filhos, é retratado por Guiomar Bernini (2000, p.
105, grifo da autora):
42
Funcionária Pública, separada. Perdeu a filha de 8 anos há seis meses, após uma complicação cirúrgica para
correção de deficiência física.
90
Para o “projeto materno” que se vê desfeito, perdendo os sonhos e as esperanças
exigindo o rompimento do vínculo, e que as mães não manifestam o desejo de
obedecer, porque o curso da vida talvez é experimentado como fora de ordem, o
filho morreu antes dela; e a partir daí as mães elaboram defesas demonstrando a
revolta e o desespero contra o Ser Superior.
A demonstração da relação de revolta e de temor a Deus fica bem explícita no depoimento
desta participante:
[...] eu me revoltei com Deus. Porque eu achava, não sei se até hoje eu acho,
sabe? Por que que ele fez isso comigo, com minha filha, que não tinha maldade
nem em pensamento, com ninguém? Ela não tem, nem eu tenho. Não merecia
isso. Hoje eu peço perdão por ter dito, por dizer. Às vezes eu paro, até recuo em
dizer, com medo de ele me tirar outro. De perder outro, porque eu não tenho
mais estrutura para perder ninguém. Não tenho. (Sandra)
Em oposição a isso, a freqüente revolta contra Deus por muitas vezes foi transformada
num sentimento de conformação da perda e de mudança da percepção da vida a partir da
religiosidade. Para a maioria dos enlutados existia a noção de que seu parente estava “ao lado de
Deus”, ou que partiu “a chamado Dele”. Neste aspecto, a morte, para muitos deles, se converteu
numa aproximação aos valores “divinos”:
É tanto que anteriormente eu, sinceramente, eu não vivia na estrada de Deus. E
minha vida mudou. É por isso que eu digo, Deus tocou em mim, Deus tocou
porque eu não era assim, eu não orava, não rezava, não ia à igreja. Hoje eu não
falto uma missa aos sábados aqui na Morada da Paz, venho pra rezar, pra orar.
(José)
91
Esta relação conflituosa da percepção de Deus, variável entre revolta e resignação, a partir
da morte e da perda, pode remeter, mais uma vez, ao pensamento de Drummond (1988, p. 1244)
quando reflete, em seu poema, sobre “Deus e suas criaturas”:
Quem morre vai descansar na paz de Deus.
Quem vive é arrastado pela guerra de Deus.
Deus é assim: cruel, misericordioso, duplo.
Seus prêmios chegam tarde, em forma imperceptível.
Deus, como entendê-lo?
Ele também não entende suas criaturas,
condenadas previamente sem apelação a sofrimento e morte.
Relação entre enlutados, com o cotidiano e com os falecidos
Pois seja o que vier
Venha o que vier
Qualquer dia, amigo
Eu volto, a te encontrar
Qualquer dia, amigo
A gente vai se encontrar”.
Milton Nascimento e Fernando Brant. Canção da América.
A relação mantida entre os freqüentadores do grupo seguia a proposta de franqueza e de
abertura apresentada pela psicóloga. Desta forma, a discordância nos diálogos também esteve
presente, embora sempre mantida na maior discrição e com a menor exposição pessoal possível.
Conforme me alertou a psicóloga na entrevista anterior à observação: “aqui também tem uma
questão social, que eles acabam limitando muito o que fala (sic), o que pode e o que não pode
falar.”
43
Dessa forma, era perceptível que tais divergências aconteciam em momentos raros,
43
Este limite entre o que se pode, e o que não se pode falar, em favor de uma conveniência da manutenção das
relações e dos vínculos que estreitavam o grupo, será alvo de análise um pouco mais adiante.
92
quando a discussão de tornava mais entusiasmada. O respeito e a manutenção da relação como
elemento mais importante na condução dos trabalhos, contudo, imperou em todas as reuniões.
Um exemplo pode indicar que as exposições dos companheiros eram contestadas
principalmente por aqueles que se sentiam atingidos diretamente em suas próprias experiências
de perda, a partir do fato mencionado pelo colega. Ainda no primeiro encontro, após uma
apresentação, revelou-se a discordância de uma viúva, que, após ouvir o depoimento de uma
enlutada que sofria pela perda de um ex-marido, mesmo já estando casada com outro há vinte
anos, desabafou: “Se você diz que gosta do seu atual marido, por que não o valoriza? Você tem
tudo para ser feliz, tem uma pessoa do seu lado! E eu que queria ter e não tenho mais, perdi!”.
(Elza)
44
Nos momentos - repito, raros - em que tais colocações eram expostas, era comum um
profundo silêncio tomar conta da sala. Percebia-se, desta maneira, a intenção de manter a
harmonia no ambiente, fazendo prevalecer a relação entre os participantes.
Um outro aspecto interessante, que demonstrava a afinidade do grupo, era a maneira
como os integrantes se tratavam. Como conheciam com certa intimidade as perdas uns dos
outros, sabiam o nome e a causa da morte dos parentes falecidos, e, ainda, tinham informação do
local do jazigo que os colegas visitavam. Era comum que se referissem entre eles como: “Maria,
a mãe de João”; ou ainda, “Antônio, que a esposa está enterrada na quadra lá de cima”. Numa
reflexão realizada pelo próprio grupo acerca desse tratamento, estabelecido a partir da referência
da morte, os integrantes concluíram como uma “perda de identidade” que viviam após o luto.
Apesar disso, não demonstravam nenhum incômodo com o fato, ao contrário, pois, segundo eles,
tinham orgulho do vínculo que tinham com seus mortos, e isso, de certa maneira, não deveria ser
perdido.
44
Farmacêutica, 54 anos. Viúva, mãe de 3 filhos. Perdeu o marido há quatro anos e meio, vítima de enfarto.
93
A manutenção deste vínculo com o parente falecido pôde ser percebida, sobretudo,
principalmente nas falas dos enlutados sobre o morto, referido muitas vezes por meio do verbo no
tempo presente, como “Gustavo gosta disso”; “Andréa é muito impaciente”. Além disso, algumas
atitudes, como manter na agenda do telefone celular o número do falecido, deixar sua voz
gravada na secretária eletrônica do telefone de casa, ou ainda comprar presentes que agradariam o
morto no dia de seu aniversário, eram reveladas pelos participantes do grupo como naturais. No
entanto, tais exposições preocupavam a psicóloga, pois soavam como uma demonstração de não
conformação com a perda. Nestas ocasiões, era comum ela intervir e tentar explicar aos
participantes que aquele comportamento podia trazer complicações, se não fosse bem refletido.
Esta necessidade de manutenção do vínculo é vista por Bernini (2003, p. 56) como uma não
aceitação da idéia da separação, do abandono, da “ruptura de um nicho que se acreditava seguro”.
Como o comportamento diante do luto, de alguma maneira, apresentava uma
reciprocidade entre os integrantes do grupo, se tornou relativamente comum que estes passassem
a conviver, embora ainda de maneira pouco mais tímida para os iniciantes, fora do ambiente do
grupo. Quando não se encontravam antes da reunião nos jardins do cemitério para conversar,
trocavam telefones para manter contatos durante a semana, ou ainda, como forma de cortesia,
traziam orações ou flores para o jazigo dos parentes daqueles colegas com quem tinham mais
afinidade.
A sensação de bem-estar experimentada pelos participantes do grupo no decorrer das
sessões foi tanta que se tornou comum encerrar os encontros com lanches trazidos pelos
enlutados. Datas festivas como Natal ou aniversário dos integrantes também foram celebradas
pelo grupo no ambiente da sala de estar do cemitério. Para alguns, essa amabilidade transformou-
se numa amizade, que embora não tenha a mesma freqüência e participação dos indivíduos que
compõem os grupos do cotidiano de cada um, assumiu grande importância, por ser um referencial
94
daqueles que entendem o processo pelo qual estão passando. Como revela uma participante ao
falar sobre a importância das amizades feitas no grupo:
[...] elas são muito importantes, sabe? São bastante importantes. Porque é como
eu lhe disse, é uma família. Uma família que se formou, e uma sempre dá apoio
a outra. E é como se uma fosse seu braço, outra fosse sua perna e então vai
ajudando a enfrentar as dificuldades, né? Pra mim eles são muito importantes,
muito importantes mesmo. (Juliana)
Entende-se, assim, a inclusão do sentimento de pertença e de amizade como fator
importante para a elaboração do luto para estas pessoas. Sobre este aspecto, Koury (2003, p. 137-
138)
observa a relação de amizade como uma forma de reintegração do indivíduo pelo
compartilhamento da dor:
A estrutura familiar e a tecedura de amizade demonstram, ainda, uma presença
muito forte do outro no processo de reintegração do sujeito em um momento de
crise. Parecem funcionar como um anteparo ao sofrimento, pela experiência
mais ou menos comum de partilha, que permite aos sujeitos envolvidos
situarem-se em um mapa comum, de interação. Mapa por onde os laços afetivos
são renovados a cada ritual de passagem, de chegada, de avanço ou de despedida
de um dos membros, bem como nas alegrias e tristezas compartilhadas.
É perceptível que este vínculo formado entre os participantes, principalmente entre os
mais antigos, provenientes de grupos anteriores, colabora bastante para a concepção do ambiente
do Morada da Paz como um lugar de sociabilidade, de tranqüilidade. Além disso, o contato com a
95
natureza contribui para a sensação de acolhimento, conforme ilustra o depoimento desta
participante, quando questionada porque afirmava se sentir bem no local:
Eu acho que é a paisagem, né? As plantas, assim, não sei, é como se você tivesse
num... Aqui quando você entra você já sente um ambiente diferente. Eu sinto. Eu
sinto paz aqui dentro. Eu acho que é o verde, as árvores, sabe? Tudo bem
igualzinho, tudo cortadinho, muitas flores. (Marcela)
45
O que não acontece quando buscamos a comparação com outros cemitérios:
É, é porque a gente pensa no lugar, com aquelas gavetas, aquelas coisas
horrorosas, então você, não, jamais, botar um filho ali! Me dá uma sensação de
pavor. E ali [no jardim do Morada da Paz] não, a gente sabe que ele tá lá,
embaixo da terra tudinho, o corpo, né? Mas não sente pavor dos outros, sabe?
Pelo lugar. (Marcela)
Passa-se a perceber, portanto, a diferenciação dada na concepção sobre o cemitério, dentro
de uma perspectiva do que seriam os outros espaços e de como é considerado o Morada da Paz. O
sentimento de tranqüilidade, como já descrito anteriormente, é amplamente observado na maneira
como os enlutados do local se apresentam em suas visitas. O que torna esse grupo mais
homogêneo, porém, diz respeito ao processo de isolamento causado pelo luto, fato que de acordo
com a apropriação do espaço como lugar de troca de experiências, tem sido amenizado.
45
Professora, 43 anos, casada, mãe de um casal de filhos. Perdeu o filho de 20 anos há dois anos e seis meses, devido
a uma dengue hemorrágica não diagnosticada pelos médicos.
96
A partir das conversas observadas no grupo e das entrevistas, percebe-se que existe uma
necessidade dos enlutados em falar da sua perda, conversar sobre o parente falecido – contando
histórias de quando eram vivos, ou mesmo levando fotos para que todos saibam a fisionomia
daqueles que, de tanto ouvirem falar, já tratam como conhecidos.
A relação mantida entre os enlutados e as fotografias de seus mortos mostrou-se bastante
curiosa. A imagem fotográfica revela para o sobrevivente a memória, a lembrança dos tempos
compartilhados em vida com o falecido. A fotografia, desta forma, remonta e re-significa as
emoções proporcionadas pelo estado de luto, como diz Miriam Leite (2001, p. 44): “O tempo
fotográfico recompõe o tempo da memória, alheio ao tempo cronológico. [...] é a lembrança de
sentimentos e percepções que vem oxigená-lo e lhe dar novas dimensões”.
Assim, a fotografia do falecido pode despertar a tristeza no sobrevivente pela consciência
da ausência do ente, o que fazia com que alguns deles confessassem não suportar olhar tais
imagens. A situação mais comum, contudo, era de exposição das fotos pelos enlutados – que as
guardavam consigo e sempre as mostravam para os colegas, renovando as lembranças trazidas
pela fotografia. A noção de manutenção da “convivência” com o falecido a partir da “presença”
fotográfica mostrou-se recorrente, como uma espécie de “ressurreição simbólica” que transforma
a relação entre ambos. Através da memória suscitada pela fotografia a “vida parece permanecer
como situada em um outro estágio, onde a possibilidade do eterno se evidencia” (KOURY,
2002b, p. 76-77).
Neste aspecto, na intenção de manter uma relação de “convivência” com o falecido,
muitos enlutados afirmavam manter em casa um lugar dedicado ao ente, composto por objetos
pessoais e fotos daquele que morreu, conforme comentou uma entrevistada:
97
Fiz o santuário, botei o retrato dele. [...]Porque quando eu passar eu vejo o
retrato dele, eu não vou ficar um dia sem ver o retrato dele, eu vou ficar em
pânico. Então pra eu não sentir essa parte de hoje e amanhã diferente, eu prefiro
conviver sempre, ter sempre aquela convivência com ele. Mas que partiu, mas
que ele estivesse presente com a gente, né? (Suzana)
A foto, desta forma, traz para os enlutados o sentimento de lembrança que pode se refletir
na convivência “pacífica”, ou na dor causada pela consciência da perda. Numa situação
interessante ocorrida no grupo de terapia, pude perceber os dois lados desta relação: a mãe,
impossibilitada de observar as fotografias do filho em casa, devido ao sofrimento que estas
imagens causavam ao seu marido, levou diversos porta-retratos, espalhou-os na sala de reuniões e
comentou: “Eu gosto de ver as fotos dele, mas não posso porque meu marido sofre se vê-las.
Então eu trouxe para cá, porque me sinto à vontade e vocês entendem o que eu tô passando”
(Ana)
46
.
Através de tal exemplo, percebe-se a cumplicidade existente entre os enlutados ao
compartilharem suas dificuldades e dores com os colegas que, devido à semelhança
proporcionada pelo luto, compreendem-se mutuamente. A necessidade de dividir o assunto da
perda se fortifica a partir da falta de oportunidade de introduzir este assunto no cotidiano,
principalmente com não-enlutados. Revela-se aí a importância dada ao grupo de apoio por parte
dos seus integrantes, que mesmo depois de encerrado um trabalho, voltam a freqüentá-lo na
formação seguinte. E ainda, levam esta relação de amizade para fora do ambiente do cemitério:
46
Comerciante, casada, mãe de dois filhos. Perdeu o filho de 30 anos há três anos, assassinado a tiros.
98
[...] a gente liga, quase todo dia a gente se fala. “Como é que você tá hoje?”;
“Como é que passou o dia?”. Mesmo quando eu tô em crise eu ligo pra eles, eles
conversam muito comigo. [...] É porque eu acho assim que por aí a gente vê que
tem pessoas que quer bem a gente, que se preocupa com a gente. Tanto quanto
eu me preocupo com eles. Eu acho que é a mesma coisa. Eu me preocupo com
eles, eu acho que do mesmo jeito eles se preocupam comigo. (Sandra)
Vê-se, então, que o sofrimento da perda, para estas pessoas, passou a ser compartilhado
entre “semelhantes”, que compreendem suas dores e são capazes de se confortarem pela
experiência mútua e pela afetividade que se construiu. Dessa forma, o interdito social imposto ao
assunto da morte, do luto, tem reflexo no silêncio destas pessoas nos outros grupos do cotidiano
que, para não incomodarem o outro, e também para não se sentirem mal, preferem não falar sobre
o assunto com quem não “entende” dele. Como é o caso do relato desta informante, participante
do grupo, ao ser indagada sobre o que fazia quando percebia que as pessoas não gostavam que
falasse de sua perda:
Não falo. Porque é como se torna: “essa mulher é chata demais, só fala nisso”.
No meu ambiente de trabalho. Mas no meu ambiente de trabalho até que as
pessoas tinham mais paciência comigo, assim, me escutavam. Mas eu percebia,
por exemplo, eu gosto muito de vir pra o Morada, mas quando eu chegava, eu
gosto muito de conversar, então quando eu ia contar as histórias, das amizades
que eu fazia: “Eu conheci fulana, que perdeu o marido”... Aí era assim: “Só fala
em morte, só fala em cemitério”, sabe? As pessoas não gostam de falar nisso.
Agora se se juntar pra falar de besteira de moda, de vestido, de maquiagem, de
não sei o quê, pode. De ginástica, de dieta, aí pode. Agora pra falar de uma coisa
assim.. Mas eu ignoro porque hoje eu vejo a vida de uma outra forma. Mas antes
eu também pensava como as outras pessoas. (Marcela)
Além do silêncio provocado pelo interdito à morte, percebe-se neste depoimento que
existe, para ela, uma diferença no sentido da vida, uma divisão de valores entre o antes e o depois
99
da perda. Quando a informante afirma ignorar o comportamento alheio com relação ao assunto da
morte e, em seguida, diz que antes da perda também pensava como os outros, reforça a noção
dada pelos enlutados de que é preciso passar pela experiência do luto para poder compreendê-lo.
Esta noção de “respeito” ou de “compreensão” à falta de abertura das pessoas que não passaram
por perdas em ouvir os enlutados mostrou-se recorrente nas respostas. A maior parte dos
entrevistados afirma que, antes da perda, também não ouvia ou não dava importância ao que
falavam seus conhecidos em estado de luto. E dizem que, somente agora, após sua experiência
pessoal, entendem do que falavam tais enlutados.
Ao mesmo tempo em que estas pessoas deixam de falar de suas perdas, por acharem
inconveniente tal exposição, nos é apresentada uma situação ambígua, em que o enlutado, quando
abordado pelos que se aproximam para dar apoio, se sente incomodado com as condolências e
com os conselhos dados. Vejamos o depoimento desta mesma informante:
Não. Ninguém fala, porque vai dizer umas besteiras tão grandes que a gente tem
até raiva. E como eu já tava com muita raiva. Mas no momento assim, você fica
assim anestesiada, que você nem pensa. [...] Mas aí o povo diz assim: “Não, ele
tá com Deus”. Você quer que o seu filho vá? Aí na hora eu mesmo perguntava
no meu íntimo, sabe? Claro que eu não dizia, mas eu ficava olhando pra pessoa:
“Você queria que seu filho fosse?”. Pensando em mim mesma: quem é que quer
que o filho vá? Ninguém quer. (Marcela)
Existem alterações nas concepções dos enlutados procedentes da experiência da perda. O
próprio sentido da morte, e conseqüentemente da vida, é relatado pelos componentes do grupo
como transformado após o luto. Nas conversas mantidas durante as sessões, pôde-se perceber
com freqüência reflexões dos participantes que afirmavam não ter mais medo da morte, que
100
entendiam, somente após a experiência do luto, que a vida é muito frágil, e que alguns valores
“materiais” se perdem. Isso fica mais claro na resposta dada por outra informante, participante do
grupo, quando questionada sobre a mudança de sua percepção sobre a morte:
De repente você tem um plano de vida, e então ela vem abruptamente e lhe tira
tudo aquilo que você tá imaginando, que tá planejando. Então a gente tem
sempre, coisas materiais a gente perde, porque você vê que você não leva nada
daqui. Então o que você tem que fazer é cuidar da sua espiritualidade, fazer o
bem, fazer aquilo que agrada, pra você ser lembrado pelas boas ações, pelas boas
amizades. Mas a morte de qualquer maneira você vai passar por ela, nós estamos
numa fila que ninguém sabe quem é o primeiro nem quem é o último. Todos nós
vamos passar por este mesmo estágio. Então você tem que fazer por onde
aproveitar o máximo, as suas boas coisas que você quer fazer, tudo, aproveite,
porque você não sabe nem a hora, nada. Você não sabe a hora e de um momento
pra outro, pronto, acabou-se. Vamos pensar em outra dimensão, vamos pra
onde? Só Deus é quem sabe, ninguém sabe. Ninguém voltou ainda de lá pra
dizer ainda como é o outro lado. (Elza)
Indagada se a morte lhe ensinou a pensar na vida, ela continua:
Ah, ensina, ensina a você botar mais os pés no chão. A você passar a não perder
muito tempo com picuinhas, com intrigas, com coisas que tão minúsculas, diante
das coisas que você tem que deixar pra que os outros lembrem de você,
entendeu? Tem que caminhar, retamente, à sua maneira, pedir proteção a Deus e
seguir em frente.
Esta concepção está diretamente ligada ao que nos diz Oliva-Augusto (1994, p. 95), ao
refletir acerca da necessidade de aproveitamento do tempo vivido a partir de ações que marquem
a existência do sujeito:
101
A história única e irreparável resultante desse processo só pode ser construída no
interior de um período de tempo determinado: o tempo de vida de cada pessoa.
Para que cada um possa traçar seu próprio caminho e deixar marcas em sua
passagem, garantias de uma vida bem sucedida, existem balizas, que não podem
ser transpostas.
Estas balizas nada mais são do que os limites sociais que devem ser respeitados na execução das
ações significativas, marcantes para cada sujeito. Existe uma ordem social a ser mantida, e a
relevância da passagem do indivíduo, através de suas atitudes em vida, devem corroborar com
estas instâncias.
Um outro aspecto que aproxima estes enlutados é a relação que eles mantêm com seus
falecidos. A freqüência assídua ao cemitério, o constante cuidado com os jazigos, bem como as
conversas que eles afirmam estabelecer com os mortos, indicam uma noção de continuidade da
existência daqueles que se foram. Para muitos, se não todos, existe a crença de que o parente está
em um outro plano, e a certeza de um reencontro após a sua própria morte é, para a maioria, um
conforto. Entram aí concepções sobre o “mundo dos vivos” e o “mundo dos mortos”, para as
quais as relações entre enlutados e falecidos ganham expressividade, conforme afirma DaMatta
(1991, p. 152, grifos do autor):
(...) a morte no Brasil é concebida como uma passagem de um mundo a outro,
numa metáfora de subida ou descida – algo verticalizado, como a própria
sociedade [...]. Sendo assim, há obrigações diante dos mortos e de suas almas
que são palpáveis: seus aniversários de nascimento e de morte são lembrados,
sua memória deve ser cultuada e há até mesmo uma possibilidade curiosa, pois
falar periodicamente com eles dá a quem o faz uma certa sabedoria, poder e
aquela invejável e tranqüila resignação diante “deste mundo” .
102
Entendo, desta maneira, que estudar a experiência dos enlutados e, em decorrência, as
dificuldades detectadas durante a elaboração do luto implica em tentar perceber a significação de
um processo que é dado socialmente, devido ao isolamento social deste grupo e à forma como as
concepções, também sociais, sobre a morte e o ambiente do cemitério se transformam a partir
desta experiência. Desta forma, observando a semelhança dos comportamentos que os designam
como grupo e a sociabilidade entre eles como alternativa para amenização do convívio com a
perda, optou-se por analisar as relações existentes entre os enlutados do Morada da Paz como
uma maneira de compreender a forma como se dão estas possíveis transformações.
103
CAPÍTULO 4
Sociabilidade entre “semelhantes”: amenização ou reforço do isolamento no luto?
“Não sei porque você se foi
Quantas saudades eu senti
E de tristezas vou viver
E aquele adeus, não pude dar
Você marcou em minha vida
Viveu, morreu na minha história
Chego a ter medo do futuro
E da solidão, que em minha porta bate”.
Edson Trindade. Gostava tanto de você.
Para analisar a relação existente entre os enlutados do Morada da Paz, tomo emprestado
como base o conceito de sociabilidade desenvolvido por Georg Simmel (1983, p. 166), em que os
conteúdos - designados pelos impulsos, interesses e estado psíquico de cada sujeito - se tornam
fatores de sociação
[...] apenas quando transformam o mero agregado de indivíduos isolados em
formas específicas de ser com e para um outro – formas que estão agrupadas sob
o conceito geral de interação. Desse modo, a sociação é a forma (realizada de
incontáveis maneiras diferentes) pela qual os indivíduos se agrupam em
unidades que satisfazem seus interesses.
Desta maneira, considera-se que os conteúdos das relações presentes entre os enlutados
são os elementos que os tornam semelhantes, tais como: seu estado psíquico diante da perda, seus
impulsos e suas inclinações com relação à morte e a seus mortos, seu interesse em quebrar o
isolamento social ao qual foram expostos. Tais conteúdos, portanto, tornam-se sociais a partir da
forma (princípio de sociabilidade) estabelecida através da reciprocidade da troca. Assim, o
104
vínculo instituído, o estar “com e para um outro”, ou seja, a relação mantida entre os enlutados,
torna-se mais importante que o conteúdo a ser conversado.
É necessário lembrar que a noção de isolamento social e de sofrimento introspectivo dos
enlutados remetem ao campo da subjetividade, onde vigoram aspectos cognitivo-emocionais,
baseados em experiências singulares, em congruência com contextos sociais e culturais a que
estão submetidos estes sujeitos. Desta maneira, é preciso manter em perspectiva a observação
desta sociabilidade, a partir da troca intersubjetiva dos enlutados sob o ponto de vista da
sociologia da emoção, que
[...] não pode ser analisado sem se evocar os seus componentes psicológico e
social da relação, onde atores se encontram envolvidos em uma situação
intersubjetiva, e discute o processo analítico que evidencie os elementos do
envolvimento interno (psicológico) e externo (social) como método capaz de
aprofundar e compreender as origens e o processo formativo e de consolidação
social de uma emoção específica e do conjunto das emoções. Vistas cada uma
em sua unicidade e em sua utilidade para um social e para os indivíduos
relacionais nele imersos, como base discursiva de uma sociologia da emoção.
[...] não basta estudar a superfície exterior e o lado interior de atores em ação,
mas também, e sobretudo, os vínculos que os conectam, para a análise das
emoções no social. (KOURY, 2004, p. 66-67, grifos meus)
Percebe-se, desta forma, a pertinência em observar mais proximamente o vínculo que assegura
para os sujeitos a possibilidade de externar suas angústias provocadas pelo estar enlutado.
Possibilidade esta que pode ser notada como interesse, e, também, como projeções subjetivas dos
atores que investem na manutenção desta sociabilidade.
Seguindo a interpretação de Simmel (idem, p. 168), vêem-se alguns elementos que
estabelecem como sociabilidade a relação existente entre os enlutados integrantes do grupo de
apoio psicológico. Inicia-se pelo sentimento de sociação observado entre os componentes, a partir
105
da semelhança de experiências que denotam a noção de pertença, e mais, indica a satisfação
gerada através deste sentimento de sociação. Tal contentamento fica bem explícito na
importância designada ao grupo por seus componentes, como nos depoimentos a seguir:
Então foi muito importante você estar ali, você saber que aquela dor não é só
sua, que outras pessoas também passam por aquilo, todo mundo vai passar
por aquilo. Então foi uma maneira da gente compartilhar essa dor, foi uma
experiência muito valiosa. (Juliana)
Estar aqui no grupo é bom demais! É importante porque aqui a gente faz tudo: ri,
chora... E ninguém ia agüentar a gente lá fora não! Porque os outros não
sabem o que a gente tá passando... (Ana)
Nota-se, então, o sentimento de pertença pela semelhança da experiência da perda, pelo
“compartilhamento da dor”. O conteúdo inicial para tal relação, que seria o impulso, a motivação
para a sociação, pode ser apontado pelo interdito à morte na esfera mais ampla do cotidiano de
cada um destes indivíduos, considerando que “os outros não entendem” o que eles estão
passando. Esta impossibilidade de expor a dor em público, por sua vez, produz outros conteúdos
como o estado psíquico e o interesse destes integrantes. Sendo este o próprio conteúdo, o
interdito à morte transfere sua importância para o vínculo instituído entre os enlutados, que é a
forma, que mantém tal sociabilidade válida. Desta maneira o processo de sociação assume seu
valor.
Considerando a relevância da participação da personalidade dos integrantes do grupo para
o processo de sociação, vê-se atributos de amabilidade, compreensão e cooperação como
elementos fundamentais para a instituição da “forma”, da manifestação da sociabilidade entre
eles. Contudo, seguindo ainda a proposta de análise de Simmel (ibidem, p. 170), percebe-se que
106
traços da esfera mais íntima, que podem indicar uma diferenciação do indivíduo, ou mesmo
demonstração de um interesse pessoal, são retraídos em função do interesse coletivo, da própria
sociabilidade, conforme expuseram estas enlutadas:
E sinto também que tem pessoas que precisam mais de apoio do que eu. Que
eu tenho que estar ali pra dar uma palavra de conforto a qualquer uma delas,
uma ajuda, bem que eu não dê ali na hora, mas que depois eu possa ligar, possa
estar junto. Às vezes quando é Beatriz que tá com crise, liga pra mim, e eu às
vezes quero chorar e não choro, fortaleço ela. (Sandra)
E acaba que a gente forma uma família, né? [...] Eu me sinto muito à vontade
quando eu venho pra cá, sinto falta quando não eu venho. Que eu vejo assim,
pra mim a forma de encarar o problema da morte hoje, eu pra mim eu tô mais
tranqüila, e eu vejo pessoas do grupo que ainda estão muito sofridas, ainda estão
naquele processo de luto mesmo, aquela coisa mais dolorosa. Então assim, é
como se eu me sentisse na obrigação de vir e de passar o meu exemplo.
Sabe? Pras pessoas, de mostrar, de poder ajudar. Falar o que passei... [...]Mas
assim como as pessoas ainda estão com aquilo muito recente eu procuro vir, dar
meu exemplo, dizer que a dor vai passar. [...] É como se a gente viesse pra aqui,
eu digo: “não, eu preciso ir pra reunião, eu preciso” pra dar uma sacolejada nas
pessoas, né? Pra elas acordarem pra vida, né? (Juliana)
Nos depoimentos destas pessoas nota-se que existe, ao mesmo tempo, uma necessidade de
auxiliar o próximo, seja ouvindo seja falando palavras de apoio. Esta troca, incluindo a
“obrigação” de ajudar, nos lembra Marcel Mauss (1950, p. 69, grifos meus) em seu Ensaio sobre
a Dádiva, que elabora as três obrigações que acabam por dar um sentido de congruência aos
grupos - dar, receber e retribuir: “A obrigação de dar não é menos importante; o seu estudo
poderia fazer compreender como é que os homens se tornaram trocadores. [...] Recusar-se a dar,
negligenciar o convite, como recusar a receber, equivale a declarar guerra; é recusar a aliança
e a comunhão”.
107
Dessa maneira, se opor a ouvir a angústia do outro, ou se negar a receber o consolo,
significa negar a sociação e, conseqüentemente, o vínculo que os une. Assim, percebe-se que é
mais vantajoso não chorar, mesmo quando se tem vontade, com o intuito de apoiar o próximo, ou
participar das reuniões mais para ouvir e passar a experiência do que expor a própria dor - tudo
com o propósito de manter o vínculo, a “forma”.
Mais ainda. É necessário notar que esta idéia de doação indica o sentido da retribuição
para si, incutida na proposição da dádiva. Como afirma um enlutado: “Porque quando a gente
socorre não está socorrendo só a pessoa, tá socorrendo a gente mesmo” (Marcos), concordando
diretamente com Mauss (1950, p. 67): “Donde se segue que apresentar qualquer coisa a alguém é
apresentar qualquer coisa de si”. Desta maneira, ao auxiliar um colega, um semelhante, a partir
do sentimento de sociação, de vínculo pela situação emocional similar, o sujeito em estado de
luto conforta também a si próprio.
Sobre a exposição das angústias nas falas dos enlutados, é preciso lembrar, também, da
discrição típica de seus depoimentos. Os relatos expostos, bem como os comentários acerca deles
feitos pelos demais integrantes, embora estejam sempre imbuídos de traços da personalidade
daquele que fala, são colocados a partir de uma normalização, instituída através de uma
adequação da postura dos participantes (que tanto falam quanto ouvem), obedecendo a limites
que ficam subentendidos no processo de sociação. Conforme explicita Koury (2004, p. 49, grifos
meus):
As trocas sociais trariam em si uma espécie de etiqueta social, ou conjunto de
regras e normas sociais que coadunariam os indivíduos nelas relacionados à
ação. A etiqueta social deste modo orientaria e conduziria os atores em suas
ações. [...] O social dado, neste sentido, daria aos indivíduos a ele pertencentes
uma espécie de código imaginário que os permitiria sentir, expressar e
108
administrar sentimentos e comportar-se em determinadas situações, mesmo
quando não diretamente envolvidos no ato onde uma emoção específica
aflorasse.
Exemplificando: as histórias pessoais, relatadas várias vezes durante as sessões, são
colocadas como fator que demonstra a semelhança e institui o vínculo, que é a “forma”, a partir
da dor comum. A maneira como são contadas, mesmo incluindo detalhes, eximem as
interpretações pessoais mais profundas, limitando-se a um relato da experiência. Do mesmo
modo, a maneira como tais histórias são recebidas pelo restante dos enlutados, através de um
compreensivo silêncio ou de um comentário comparativo gerado a respeito do fato exposto, não
cabendo a interpretação pessoal acerca da experiência alheia, indica esta etiqueta social, estes
limites estabelecidos para a manutenção desta sociabilidade.
Desta maneira, apesar de existir um interesse pessoal na participação de cada integrante,
que é a amenização da dor de seu luto, a “forma” - vínculo estabelecido entre os enlutados para
manter a sociabilidade - assume maior importância que o conteúdo da conversa. Assim, a
pretensão pessoal da participação no grupo de apoio fica inibida de uma exposição, bem como as
individualidades dos comentários não são colocadas, sob pena de quebrar-se o processo de
sociação. São os “limiares da sociabilidade” descritos por Simmel, para os quais a discrição
consigo e com os demais formam a base estrutural. Esta discrição também pode ser interpretada
pelo que ele nomeia por tato, maneira encontrada para manter distante da conversação elementos
essencialmente pessoais, substituídos pelo interesse maior de manter a própria sociabilidade.
É importante recordar, neste ponto, que o princípio de restrição de críticas pessoais, bem
como a abstenção de manifestações mais explícitas de opiniões e de sentimentos privados,
reporta ao que Elias (1993) propõe como “processo civilizador”, em que a economia dos gestos e
109
das emoções afeta o comportamento humano e as relações interpessoais. O que quero dizer é
que, diante da exigência da conservação da sociabilidade, ou melhor, do vínculo que mantém esta
sociabilidade, os indivíduos que nela estão imersos não expõem plenamente suas opiniões sobre
os casos expostos pelos colegas, bem como não dispõem de abertura suficiente para colocar sua
experiência – preservando assim a sociabilidade, o vínculo que os une, revestidos pela noção da
civilidade. Lembremos de Sennet (1998, p. 329): “A civilidade existe quando uma pessoa não se
torna um fardo para as outras”. Desta forma, a preservação de uma “certa” distância nos diálogos,
mantendo fora dos discursos excessos de cargas pessoais sobre a dor, como também a ausência
de avaliações individuais sobre histórias alheias, no intuito de não se tornar o enlutado um
“fardo” diante de seus colegas, exprime aquilo que a psicóloga (cf. pg 91) traduz como a questão
social delimitadora do que “pode e o que não pode” ser exposto no grupo.
Uma boa demonstração deste limite ficou latente numa dinâmica proposta pela psicóloga
em que os componentes do grupo de apoio deveriam analisar o processo de elaboração da perda
de cada um dos demais participantes. A dificuldade para expor a avaliação sobre os colegas foi
tamanha que o silêncio e o entreolhar-se imperaram na sala de reunião. A condução do trabalho,
desta forma, ficou a cargo somente da própria profissional – o que acabou estimulando cada
enlutado a falar sobre suas próprias angústias, sem, entretanto, conseguir opinar sobre a dor dos
outros presentes.
Não podemos desconsiderar, contudo, que a conversa mantida neste grupo, mesmo
respeitando os “limiares da sociabilidade”, tem a importância de sustentar a relação entre os
participantes através da reciprocidade, a partir da similaridade e do sentimento de pertença
comum aos membros do grupo. Como dito anteriormente, a relação, o vínculo entre eles é a
“forma” - fato relevante conservado pela sociabilidade. Sobre a conversação, uma observação de
110
Simmel (ibidem, p. 177, grifo do autor)
torna-se importante para a compreensão da experiência
vivenciada:
(...) a sociabilidade apresenta talvez o único caso em que a conversa é o legítimo
propósito de si mesma. Conversar pressupõe duas partes: é um caminho de ida e
de volta. De fato, entre todos os fenômenos sociológicos, com a possível
exceção de “olhar um para o outro”, a conversa é a forma mais pura e elevada de
reciprocidade. A conversa é desse modo a realização de uma relação que, por
assim dizer, não pretende nada além de ser uma relação – isto é, na qual aquilo
que usualmente é a mera forma de interação torna-se seu conteúdo auto-
suficiente.
Pode-se imaginar que a intenção destes indivíduos ao estabelecer uma relação que “não
pretende nada além de ser uma relação”, está implícita no próprio conteúdo, que é o interdito à
morte. Ora, como este é o único espaço para aqueles indivíduos socializarem com outros os seus
impulsos, eles devem respeitar os limites da sociabilidade para sustentar aquele vínculo, que lhes
é tão caro. E mais, o interesse por manter a relação, a “forma”, sem deixar que o conteúdo se
sobreponha, está também previsto na dificuldade de explorar os impulsos, de abri-los
completamente, visto que o próprio interdito à morte permanece presente nas demais situações
vividas no cotidiano daqueles sujeitos.
Assim, mesmo sendo este um espaço facilitador para a demonstração do conteúdo, fica
subentendido nos “limiares da sociabilidade” que este conteúdo não pode superar a valorização
dada ao vínculo estabelecido, da “forma” que sustenta a sociabilidade, sob pena de, ao ultrapassar
estes limites, perdê-la. Como não parece ser de interesse destes enlutados perder tal relação, a
importância do conteúdo exposto se encontra na duração daquele momento de sociação. Como
111
afirma uma entrevistada, quando questionada se o assunto em pauta nas conversas entre os
jardins era essencialmente sobre a perda:
Só fala. (risos) Só fala. Porque é no momento que a gente quer ouvir, pronto, são
as pessoas que escutam. As outras não querem saber mesmo, né? Então a gente
tem é que aproveitar, a gente aproveita essa oportunidade pra chorar, pra falar,
pra tudo. Porque é a única oportunidade, porque as outras não querem saber.
Entendeu? (Mariana)
Estabelece-se então a noção de troca na sociabilidade, circunstância em que, supondo uma
situação ideal, os valores oferecidos pelos indivíduos são compatíveis àqueles que eles têm a
receber no grupo. Trazendo para a situação observada, é a possibilidade de falar e ser ouvido,
tanto quanto a de ouvir o que se tem a ser dito, que torna a condição de participação dos
enlutados do grupo igualitária. É certo que esta situação, já classificada como ideal, não atinge
esta igualdade, visto que cada sujeito, no processo de sociação, não se apresenta como é de fato,
por tornar discretos traços mais íntimos de sua personalidade. Essa igualdade, portanto, faz parte
de um jogo de “faz de conta” que mantém a sociabilidade, como esclarece Simmel (ibidem, p.
173, grifos do autor):
Se a própria sociação é interação, sua expressão mais pura e mais estilizada se
dá entre iguais (...) a sociabilidade demanda o mais puro, o mais transparente, o
mais eventualmente atraente tipo de interação, a interação entre iguais. Devido
à sua natureza, deve criar serem humanos que renunciem tanto a seus conteúdos
objetivos e assim modifiquem sua importância externa e interna, a ponto de se
tornarem socialmente iguais. Cada um deles deve obter valores de sociabilidade
para si mesmo apenas se os outros com quem interage também os obtêm. A
sociabilidade é o jogo no qual se “faz de conta” que são todos iguais e, ao
mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular.
112
Seguindo este raciocínio, a sociabilidade entre os enlutados observados decorre do
estabelecimento de uma igualdade entre eles no processo de interação. Por isso, os conteúdos
individuais ficam em segundo plano, sobrepostos pelo vínculo grupal, que se torna mais
importante no processo. Com efeito, a dor pessoal e as experiências do luto, que caracterizam os
impulsos - os conteúdos - embora sejam sentidos e vividos para cada enlutado de maneira
singular, se tornam sociais a partir da condição de igualdade com que são expostos no processo
de interação, no qual a sociabilidade mantida a partir da conversa tem maior significado.
Considerando o propósito desta sociação, em que o interesse do grupo de apoio se foca,
trago para análise o possível avanço no processo de elaboração do luto alcançado pelos seus
integrantes. Segundo relato dos próprios participantes e também a partir de observações feitas no
decorrer das sessões, verifica-se que o apoio profissional na mediação dos diálogos e no estímulo
à reflexão das dificuldades comuns tem sido importante para os resultados alcançados. Tal fato é
melhor percebido, principalmente, na conformação daqueles que já estão sendo acompanhados
por este trabalho a mais tempo. Contudo, os níveis distintos deste avanço entre os participantes,
considerando as diferentes perdas e a experiência social de cada indivíduo, faz refletir que o
mesmo apoio profissional em grupo pode não ser suficiente para alguns integrantes.
Noutra perspectiva, vê-se que esta intervenção feita pela psicóloga, demonstra, ainda, uma
condução que favorece sociabilidade, o que retira, de certa maneira, a espontaneidade no
processo inicial da formação do vínculo. Contudo, prefiro atribuir à assiduidade e à freqüência
dos encontros entre os participantes a motivação para o fortalecimento da “forma”, do vínculo
estabelecido entre os integrantes do grupo de apoio psicológico.
113
A espontaneidade e a superficialidade na socialização da dor
Além desta experiência com o grupo de apoio, analisou-se, através de visitas semanais, a
sociabilidade ocorrida de maneira espontânea nos jardins do Morada da Paz através de conversas
informais e da aplicação de entrevistas. Os exemplos coletados são expressivos por demonstrar a
freqüência e o conhecimento mútuo dos problemas acarretados pela perda e pelo luto entre os
enlutados mais assíduos. Como as conversas mantidas entre eles são mais esporádicas, e, porque
não dizer, mais evasivas do que as observadas no primeiro grupo, os momentos reservados para
exposição dos problemas tornam-se mais rápidos. Além disso, a troca de experiências diversas
com pessoas diferentes, em dias alternados e distintos, indica que as relações mantidas neste
segundo grupo são menos sólidas, pela descontinuidade dos encontros e, conseqüentemente, dos
assuntos expostos:
A gente conhece, fala um pouco, mas fica por aquilo mesmo. As pessoas não
têm... muita gente que tá ali naquela sua dor, fica por ali e pronto. (Juliana)
Essa menina assim [apontando para uma visitante], eu quase não converso. Mas
eu gosto dela. (Mariana)
Eu nunca vi nem essa criatura [falando sobre uma visitante que conhecera
naquele dia] porque ela é do outro quarteirão, do outro bloco, mas eu conversei
com ela e dois minutos que a gente se encontra num canto, com qualquer um a
gente puxa os assuntos. Se eu me sentar numa mesa, outra também que eu tava
sentada na lanchonete, nesse mesmo pedacinho ali, um casal, eles puxaram
assunto. Então dois minutos que a gente senta num canto a gente conversa.
(Suzana)
Durante a aplicação de uma entrevista, surgiu a oportunidade de registro de um diálogo
ocorrido espontaneamente entre enlutados nos jardins do cemitério. Um rapaz aproximou-se e
iniciou uma conversa com a visitante que eu entrevistava. Deixei o gravador ligado, com o intuito
114
de analisar a interação entre ambos posteriormente. A transcrição do diálogo seguinte tem,
portanto, a intenção de observar e exemplificar as relações mantidas entre enlutados do cemitério,
baseadas, como foi dito, a partir de encontros espontâneos e esporádicos entre os jazigos:
Visitante: Boa tarde, faz tempo que vocês estão aqui?
Suzana: Faz.
Visitante: Não veio ninguém nessa cova aqui não?
Suzana: Não.
Visitante: Isso é uma vergonha. Só quem vem é o sobrinho.
Suzana: Apois eu não vi não de tarde ninguém não.
Visitante: Tá certo, obrigado.
Suzana: Mas vale a pena, você veio.
Visitante: Ninguém quer saber...
Suzana: É, mas você venha, você vindo aí ele vai agradecer você, ele vai botar a
mão assim, em cima de você. Você vai reze pra ele, pra os outros. Aí pronto.
Cada um faz a sua parte né? Eles não vêm, você é quem vai ser gloriado. É. Olhe
porque quem parte desta vida para outra eles não morrem, eles vivem..
Visitante: Eu sei disso.
Suzana: Aí eles olham pra aqueles que olham a gente. Pode acreditar. Eles não
perdem o caminhar de jeito nenhum, não perdem. Certeza que eles não perdem o
caminhar da gente. Todo canto que você estiver esse seu tio lhe acompanha.
Esse tio lhe acompanha, certeza. Ele não vai deixar nunca você ficar sozinho.
Visitante: A família mora bem pertinho, bem aqui...
Suzana: Apois é isso que a gente fica preocupada, porque as pessoas não eram
pra fazer isso.
Visitante: Não vem, a mulher e os filhos, moram em Ponta Negra, bem pertinho,
tem carro, tem tudo..
Suzana: Bem pertinho, é pra vir. Não existe isso de ninguém dizer que não vem
fazer a visita porque pega um ônibus, vem, de qualquer jeito dá pra vir. Bem
115
demais. Mas é isso, a gente pega e diz “Tá certo, não vem não, mas eu vim meu
tio, tô aqui, tô dando a maior força ao senhor pra o seu espírito me ajudar, ajudar
aos outros”, né?
Visitante: Se tivesse vindo tinha rosas. O ano passado não vieram, esse ano
também.
Suzana: Pois é porque eles esquecem, tem gente que esquece, mas não é pra
esquecer não. Aí você vai e não esqueça porque seu tio fica tão feliz porque você
veio.
Visitante: Olhe, meu pai morreu sexta-feira, vim de lá agora...
Suzana: Foi mesmo, aonde é?
Visitante: Em Recife. Vim de lá hoje, morreu sexta de noite e eu vim embora
hoje, e eu chego aqui, pra ver meu tio e ele tá aqui abandonado, sozinho..
Suzana: É isso aí, ta vendo?
Visitante: Visitei o túmulo dos meus avós, do meu pai que morreu, e aqui...
Suzana: Isso meu filho vai lhe abençoar, viu? Você recebe tanta bênção, com
essa parte que você faz.
Visitante: Claro.
Suzana: Você faz muito, muito.
Visitante: Eu era pra estar chorando, mas eu tô equilibrado.
Suzana: Apois sabe por que você está equilibrado? Porque olha, eles estão dando
força pra você porque você dá atenção para eles... Você não esquece deles, é
isso, porque eu perdi um filho. E por que que eu estou aqui? Se eu não fizesse,
se eu não fosse boa, assim mesmo pra outras pessoas, como você faz... Você
perdeu seu pai sexta-feira, quer dizer que é recente mesmo, mas você está “em
pezinho”, veio fazer a visita, com o coração partido...
Visitante: Estou mesmo.
Suzana: Pois é, olhe, ta vendo. Mas é isso aí.
Visitante: Aqui é bom demais de vir, no cemitério...
Suzana: É uma paz, olha a entrevista que eu tô fazendo aqui. Ela chegou aqui
pra mim fazendo essa entrevista, perguntando o que é que eu... É uma paz isso
aqui. Aqui é uma paz.
Visitante: Não, aqui é. Diferente daqueles cemitérios grandes.
116
Suzana: É, puxa vida. A gente chega ali sente... ela perguntou isso agora mesmo
pra mim. A gente sente aquela dor. Aí a gente chega aqui, a gente só vê essas
rosas, vê esse vento, essa brisa assim ó... Daqui pra lá passa aquele, aquela
chuvinha...
Visitante: Eu quase que comprei o arranjo, aí eu achei que eles vinham trazer, e
nada. Vai só contar a presença...
Suzana: Vai mesmo, de coração, pode acreditar. E vai ter uma missa de 16h30,
viu?
Visitante: Eu sei. Vou ficar aqui rezando...
Suzana: Fique, que a gente conversa.
Visitante: Então tchau.
Suzana: Tchau. Tá vendo como são as coisas? Aí as pessoas parecem que
atraem, né? Por que tanta coisa aí, e ele veio perguntar a gente, a gente atrai,
sabe por quê? Porque a gente tem aquele prazer de estar com as pessoas, de
conversar. Aí atrai.
(Assim que terminamos a entrevista, Suzana aproximou-se do visitante para dar
continuidade ao diálogo iniciado).
A partir do exemplo exposto, vê-se a recorrência de alguns dos temas debatidos pelo
grupo de apoio, discutidos no capítulo anterior, tais como a importância da visita ao jazigo, a
crença na continuidade da existência dos falecidos em um outro plano, a relação de troca de
“favores” entre mortos e sobreviventes e o bem-estar sentido no ambiente do Morada da Paz.
Direcionando nosso olhar sobre o processo de interação colocado como exemplo, em que
devemos considerar se tratar de um primeiro encontro entre estes dois indivíduos, pode-se
perceber que existe uma espécie de superficialidade na relação, em que nem mesmo os nomes
dos interlocutores foram questionados. Este fato, inclusive, foi repetido durante a observação das
falas dos visitantes que mantinham relações espontâneas com outros enlutados entre os jazigos.
Fato que tornou comum a afirmação de que tinham feito amizades lá dentro, mas, ao tentarem
referir-se sobre seus amigos, diziam que não lembravam de seus nomes, salvo algumas exceções:
117
Ah, eu tenho muitas amizades aqui. Tanto as pessoas que freqüentam o grupo de
apoio, quanto as pessoas que freqüentam só aqui. Como José, e tem outras
pessoas que eu não sei de nome, mas eu tenho amizade, converso com elas, eu
gosto. (Bruna)
É preciso ter em mente, ainda, que além da forma esporádica como acontecem estes
encontros, existe, entre os visitantes, a noção de respeito pela visita ao jazigo sendo aquele um
espaço sacralizado, e o momento de seu culto uma oportunidade para manutenção da relação
entre enlutado e falecido – seja através da oração, de conversas ou do silêncio. Desta maneira, a
visita ao túmulo adquire a idéia de concentração, de momento valoroso que é respeitado pelo
enlutado, o que pode, de certa maneira, afugentar a possibilidade de uma interação maior entre os
visitantes dos jazigos:
[...] interessante que quando você tá no túmulo da sua pessoa, do seu ente
querido, você fica ali e fica isolado, então você vê as outras pessoas nos outros
túmulos visitando. Mas eu não sei se é receio de se aproximar, medo de você
iniciar uma conversa e da outra pessoa rejeitar sua aproximação, você não se
aproxima. Agora depois, com o passar do tempo, a gente se aproxima mais das
pessoas... (Elza)
Eles [os visitantes], modéstia à parte, mas me adoram mesmo. É homem, é
mulher. Tem um cidadão aqui [...] Mas eu gosto de rezar e orar no jazigo, mas
ele me quer tanto bem que eu sei que, devido também a idade dele, ele me
abraça e eu rezando: “pai nosso que estás no céu...”. E ele: “José, não sei o quê,
essa flor, o senhor comprou aonde?”; e eu: “ave Maria, pai nosso que estás no
céu”. Eu digo: “amigo, eu tô rezando”, e ele diz: “ah, sim é mesmo”. Mas daqui
a pouco ele vem, é porque ele não escuta aquilo, aí volta. (José)
47
47
José é o visitante mais assíduo do Morada da Paz. Desde o falecimento de seu filho, há dois anos, ele visita o
jazigo duas vezes por dia. Chegou inclusive a ter problemas de saúde proporcionados pela grande exposição ao sol.
118
Vê-se, desta forma, que as relações mantidas pelos enlutados entre os jardins, muitas
vezes podem acontecer em momentos rápidos, propiciando diálogos de pouca profundidade.
Estas interações ocorridas da maneira transitória, especialmente na sociedade atual, são alvo de
reflexão de Maffesoli (1987, p. 175-176, grifos do autor), que também se refere ao conceito
simmeliano de “forma”:
[...] estou descrevendo uma “forma” matricial. Com efeito, esta tendência afetual
é uma “aura” na qual nos embebemos, mas que pode se exprimir de maneira
pontual ou efêmera. Este é, também, seu aspecto cruel. E não é contraditório,
como diz Hannerz, ver que nela se efetuam “contatos breves e rápidos”.
Conforme os interesses do momento, conforme gostos e ocorrências o
investimento passional irá conduzir para tal ou qual grupo, para tal ou qual
atividade. A isto chamei de “unicidade” da comunidade ou de união em
pontilhado. O que, naturalmente, induz a adesão e o afastamento, a atração e a
repulsa.
É certo que, no grupo observado, composto por visitantes que trocam experiências
espontaneamente, existe mais claramente o processo de “adesão” ou de “atração”, pela
similaridade da situação emocional e social vivida por estes sujeitos que experimentaram a dor da
perda. O “investimento passional” estaria exposto no interesse em compartilhar, mesmo que a
partir de encontros “breves e rápidos”, o sofrimento, as angústias e o sentimento de inadequação
social ao qual foram expostos em decorrência do luto:
Devido à sua assiduidade, quase todos os enlutados o conhecem e conversam com ele - por isso, José afirma que
todos, naquele ambiente, “o adoram”.
119
É bom. Sempre com gente que tem ali dentro é bom, porque às vezes, muitas
vezes aconteceu de eu ta lá em desespero e vir gente de lá pra conversar comigo
e dar uma palavra de apoio. Como também já aconteceu e eu estar lá e vir essa
cena e ir pra lá, conversar... (Sandra)
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a relevância do vínculo (da “forma”) que sustenta
a sociabilidade estabelecida entre os visitantes do Morada da Paz, especialmente nas relações
mantidas de maneira espontânea, pode indicar uma certa superficialidade, o que não resolve o
problema de inadequação social dos enlutados.
É provável que a extensão de algumas destas relações para fora do ambiente do cemitério
pode, de alguma maneira, contribuir para a amenização deste conflito. Mas a partir do momento
em que o vínculo, a própria relação, entendida aqui como a “forma” que conserva a sociabilidade,
é, na maior parte do tempo, considerada frágil, o é também porque o próprio conteúdo, impulso
tomado através do interdito à morte, não fica exposto de maneira evidente. Assim, o caráter
superficial da sociabilidade mantida entre os enlutados que se encontram espontaneamente, pode
nos indicar o surgimento de um novo problema: o reforço do interdito à morte através da
sociação apenas parcial do conteúdo, das dificuldades com o luto que impulsionariam tal relação.
A impossibilidade de conseguir estabelecer vínculos mais fortes, a partir de encontros
mais prolongados, pode significar para estes indivíduos uma espécie de frustração, devido à
interação parcial, superficial, que não permite que os impulsos, os interesses, ou seja, os
conteúdos sejam satisfeitos, sejam submetidos ao processo de sociação. Tal situação também
estaria exposta numa explanação de Simmel (ibidem, p. 179):
120
Certamente é de natureza da sociabilidade liberar as interações concretas de
qualquer realidade e erigir seu reino aéreo de acordo com as leis da forma destas
relações, que passam a mover-se por si mesmas e a não reconhecer qualquer
propósito estranho a elas. No entanto, a fonte profunda que alimenta esse reino e
sua representação não repousa nestas formas, mas exclusivamente na vitalidade
de indivíduos concretos, com todos os seus sentimentos, encantos, convicções e
impulsos. [...] Se a sociabilidade corta inteiramente os laços com a realidade da
vida, da qual elabora sua própria estrutura (num estilo todavia diferente), deixa
de ser um jogo e se transforma num namoro leviano com formas vazias, num
esquematismo inanimado que inclusive se orgulha da sua falta de vida.
Ao lembrar que a suspensão da “realidade”, a partir de interações que satisfazem
primeiramente às “leis” que as sustentam, interfere diretamente na retração dos impulsos de
“indivíduos concretos”, percebe-se o quanto a manutenção de uma sociabilidade, ou melhor, de
um vínculo superficial neste grupo pode não amenizar o problema da angústia causada pelo
isolamento social a que estão sujeitos estes atores – que têm seus próprios “sentimentos,
encantos, convicções e impulsos” expostos parcialmente.
Contudo, se observarmos que este processo de interação, mesmo que sustentado por um
vínculo frágil, corresponde para os indivíduos a uma possibilidade de reconhecimento de um
“semelhante” a partir do luto, entende-se como esta sociabilidade, mesmo que efêmera, pode
adquirir relevância na ótica destes enlutados. É onde o “estranho” torna-se “próximo”, mesmo
que momentaneamente, pela condição emocional a que estão submetidos. Nos diz Maffesoli
(1984, p. 39; 44):
Existe uma perpétua tensão entre o social e a evasão do social, entre a relação
fundadora e a disjunção destrutiva. É essa ambivalência assumida que explica a
permanência da socialidade. [...] Essa comunhão de emoções ou sensações,
difundida nos atos mais cotidianos ou cristalizada nos grandes acontecimentos
pontuais [...] é, scritu sensu, o que funda a vida social ou que faz lembrar sua
fundação.
121
Comparação entre os dois casos e perspectivas individuais do estado de luto
Numa breve comparação entre os dois exemplos de sociabilidade aqui analisados, não
teria como afirmar se a primeira, formada no grupo de apoio, ou a segunda, realizada
espontaneamente, atende mais ou menos à amenização da elaboração do luto. Contudo, diria que,
no primeiro caso, o conteúdo, os impulsos, desenvolvem sua relevância no momento da e para
aquela sociação. Como diz o próprio Simmel (ibidem, p. 177):
Isso não implica que o conteúdo de uma conversação seja indiferente. Ao
contrário, deve ser interessante, atraente e mesmo importante. Mas não pode se
transformar no propósito da conversação, que nunca deve estar atrás de um
resultado objetivo; este possui uma vida independente, fora, por assim dizer, da
conversação. Portanto, de duas conversações exteriormente semelhantes, só é
propriamente sociável aquela na qual o assunto, apesar de todo seu interesse e
valor, encontra seu direito, seu lugar e seu propósito apenas no jogo funcional da
própria conversação, que estabelece suas próprias normas e tem sua importância
peculiar.
Entende-se, portanto, que para os dois casos o conteúdo, o interdito à morte e suas
conseqüências, possui vida própria fora desta sociação, pois, como já foi dito, permanece
presente nas demais esferas da vida social dos enlutados. A diferença estaria na relevância que o
conteúdo consegue estabelecer dentro do primeiro exemplo, que, apesar de respeitar os “limiares
da sociabilidade”, consegue desenvolver o seu propósito mesmo que “apenas no jogo funcional
da própria conversação”. Já no segundo caso, este conteúdo, de acordo com a observação, não
122
chega a explorar este propósito, pois é colocado esporadicamente, diante de um vínculo
fragilizado justamente pela ausência de uma continuidade.
Embora a sociabilidade observada entre os enlutados, nos dois casos, nos apresente uma
modificação ainda muito sensível no processo da perda, inclusive com a possibilidade de
agravamento desta situação, de acordo com a condução individual desta interação para cada um
deles, imagino que este possa ser o princípio de uma nova maneira de inserir a morte no
cotidiano, o que, diante do luto na sociedade moderna, seria positivo.
Reforçando este quadro, devemos ainda refletir acerca da alteração espacial do cemitério
feita através das ações mercadológicas realizadas pelo Grupo Vila (cf. Capítulo 2). Sobre este
aspecto, proponho dois pontos significativos a serem pensados: 1) A modificação do ambiente a
partir de recursos que mascaram elementos da morte e lembram a vida (eventos, exposições
artísticas e a própria valorização da natureza, por exemplo) podem contribuir para o interdito à
morte, no sentido de que tal encobrimento não permite aos enlutados “sentirem” verdadeiramente
que aquele é um espaço da morte; 2) No outro extremo, para aqueles que vêem o Morada da Paz
como um local em que a morte pode ser recordada, o interdito também permanece, e pode ser
sentido mais dramaticamente, pois lembra que aquele é o “único” espaço no cotidiano daquelas
pessoas em que a morte e a dor podem ser externadas.
A partir de tais considerações, percebe-se que estas alterações, como também a própria
maneira como a socialização da dor e o enfrentamento do luto acontecem, podem não ser ideais,
e principalmente, que podem tomar o rumo contrário caso não sejam conduzidas e assimiladas
“adequadamente” por estes enlutados. E como quem conduz o processo de elaboração do luto,
apesar de qualquer esforço profissional ou comercial, são eles próprios, é importante ouvi-los a
partir de seus depoimentos para perceber como se dá de fato a apreensão destas alterações, desde
as ações mercadológicas até a apropriação do espaço exercida individualmente:
123
Eu acho muito bem planejados [os eventos], são bem organizados. O Dia de
Finados, aquelas músicas, aquelas coisas, é muito comovente. E faz com que as
pessoas reflitam mais, todas as datas comemorativas aqui são bem feitas, bem
organizadas. (...) Venho sempre, eu nunca deixo de vir não. Dia de Natal, de
Ano Novo, sempre eu tô aqui, é tanto que às vezes me chamam pra ler e tudo, lá
na missa. E eu gosto. É interessante que eu me sinto mais à vontade aqui do
que se eu fosse pra uma outra festa em um outro lugar. (Elza)
Eu acho que contribuiu muito as amizades que eu fiz aqui, sabe? O grupo que eu
fiz, as amizades, porque a gente já se tornou um ritual: você vir por Morada,
se encontrar com aquelas pessoas, conversar. (Marcela)
Eu não fico sem meu cemitério de jeito nenhum, afe Maria! (Pedro)
Volto a pensar, portanto, que embora esta reflexão aponte para um limite tênue entre o
que seria favorável ou prejudicial a estas pessoas, são elas que dizem e demonstram, existir um
processo de amenização – o que seria positivo diante de uma comparação com um possível
estado inalterado aos processos de luto em outros ambientes “tradicionais”, se assim podemos
chamá-los. Isso, por conseguinte, nos coloca diante de um fato relevante, diferencial, que merece
ser observado cuidadosamente.
Ressaltando, mais uma vez, que a condição do estar enlutado, seja em âmbito externo ou
interno ao espaço do Morada da Paz, bem como a apropriação deste cemitério como local de
possibilidade de exposição das angústias por eles vividas, acontece na esfera cognitiva-emocional
destes sujeitos, pode-se, assim, entender porque, diante do campo subjetivo dos enlutados, a
incorporação das relações sociais nele experimentadas assume aspectos diferentes para cada ator
social. Deste modo, se para alguns a socialização da dor naquele ambiente assume uma
124
perspectiva de amenização da angústia vivida no luto, para outros pode indicar uma espécie de
dependência das relações ali estabelecidas:
Pra mim era tão difícil vir aqui no início, logo que aconteceu. Mas hoje não é
mais porque eu sei que eu venho rezar pra ele, botar flores pra ele, encontrar as
pessoas, então isso me faz com que eu venha. [...] E eu acho que a tendência é
melhorar. E o que me fez, por exemplo, eu antes eu passei acho que uns três
meses andando com a mesma roupa. Eu tinha uma roupa pra ir trabalhar (risos) e
uma roupa pra vir pra missa, eu tinha duas roupas. [...] Aí eu comecei a prestar
atenção que o sofrimento, apesar de você sofrer, não precisa se entregar. Aí
eu fui melhorando. (Marcela)
Fico contando os dias que tem as reuniões [do grupo de apoio]. Fico contando os
dias que tem, não perco por nada. Não tem compromisso nenhum que faça eu
deixar de ir. [...] Mas eu acho que eu nunca vou abandonar o grupo não, eu
acho que toda vida eu vou depender dele. Porque eu acho que sem ter o apoio
lá de dentro eu acho difícil eu continuar a vida... (Sandra)
A compreensão desta relação de dependência do enlutado com o vínculo mantido com o
grupo de apoio, como forma de sustentação na condução da própria vida, faz lembrar Maffesoli
(1987, p. 169): “Há momentos em que o indivíduo significa menos do que a comunidade na qual
ele se inscreve”. Essa participação da existência do outro na construção de si recai sobre a
importância das relações intersubjetivas como “segurança ontológica”, na constituição do sujeito
social da modernidade. Nos diz Giddens (2002, p. 53, grifos do autor): “É a ‘fé’ na confiabilidade
e na integridade dos outros que está em jogo aqui. [...] As respostas do outro são necessárias na
sustentação de um mundo ‘que é observável’ e ‘que responde’, e no entanto não há como confiar
em termos absolutos”.
Percebe-se o quanto a entrega destas “respostas” vindas do outro necessita do
estabelecimento de uma confiança neste(s) outro(s). Mais além. Entendendo que “não há como
confiar em termos absolutos”, principalmente nesta situação extrema em que o indivíduo se
125
assume como dependente do vínculo, vê-se o quão fragilizado e conflituoso é o discernimento do
enlutado sobre si próprio e sobre a situação de angústia social a qual está submetido.
Assim, percebendo o luto como um estado emocional a que estão sujeitos estes atores
sociais, e, mais uma vez, compreendendo a emoção como uma construção que envolve
experiências pessoais e aspectos sócio-culturais espacial e temporalmente determinados, entende-
se que a assimilação deste conflito emocional pode apresentar-se de forma diferente para atores
distintos. Isso porque os contextos que envolvem o âmbito social, intersubjetivo, não se
restringem, para os enlutados, às relações estabelecidas no Morada da Paz. Ao contrário, referem-
se também às suas experiências sociais nos mais diversos contextos de suas vidas cotidianas.
Como nos diz Koury (2004, p. 10):
Uma pessoa, assim, pode pensar as emoções de uma maneira própria, e essa
maneira única ter sido construída e constituída cultural e socialmente. O que a
torna, deste modo, possuidora de significado apenas no contexto cultural e social
em que foi produzida e que foi por ela experienciada.
A partir desta consideração, percebe-se com mais facilidade como se constroem discursos
opostos sobre situações similares. Como podemos perceber, através da exposição contrária de
dois enlutados, a respeito da perspectiva de convivência com a dor da perda e o estado de luto:
É o que eu tô falando, é um universo de definições que a gente vê o mundo da
forma que a gente quer ver. Aí a gente vê que todos ali vão reagir, esquecer
não vão, mas vão reagir, encontrar novos meios de existência. É claro que é uma
verdade dura pra gente, uma ausência muito trágica, uma pessoa que a gente
quer próxima, e dá uma guinada na vida que você tem que buscar outras
alternativas. Não são alternativas materiais, não são alternativas de refúgio.
Você não vai encontrar materialmente nada que lhe dê alternativa. Mas ali eu
acredito que todos vão encontrar uma saída, até porque se não encontrar vão
126
se perder lá naquele estado. Vão se perder lá naquele estado de... e o ser
humano se acostuma a tudo, você sabe que tem pessoas que podem ficar ali,
viciadas naquele estado de sentido, podem ficar cultuando a dor. Mas não
adianta você cultuar a dor, tem que se arrumar uma alternativa dentro de
você, que cure aquilo. A morte é um fato inexorável. (Marcos)
Tudo que é pra dar prazer a mim eu não gosto. [...] Com a dor, eu vou
conviver sempre. Vou conviver sempre porque é um conflito que eu vivo, eu
quero uma coisa e não posso, eu quero ir pra uma clausura de contemplação. Eu
queria ser religiosa pra ir pra um abrigo, que eu sei que eu ia estar fazendo bem
ao próximo, que eu posso fazer isso como voluntária. Mas eu tô vendo o
mundo. Eu não queria. Eu queria clausura, só pra orar, e eu não posso, então
eu vivo em conflito. [...] Eu penso no meu filho da hora que acordo à hora que
eu durmo. É a toda hora, não tem espaço. Ele era tudo pra mim. (choro) Tudo,
tudo, tudo. (Mariana)
Este sentimento de não “querer ver o mundo”, exposto na segunda fala, demonstra o
sentido de inadequação social do estar enlutado bem como o sentimento de revolta com o social,
que permanece inalterado após a experiência daquele que vive a perda, e, além disso, continua a
interditar o assunto da morte em todas as suas esferas. Esta observação decorre da repetição deste
sentimento no discurso dos visitantes: “Mas até hoje eu tenho raiva. E a partir daí eu... É uma
coisa tão difícil de explicar o que a gente sente. Porque você vê as outras pessoas bem e você tá
mal” (Marcela).
É necessário ressaltar que esta mesma revolta com a continuidade do cotidiano na esfera
social, no momento em que o sujeito perde o sentido de sua própria vida a partir da dor
experimentada pelo luto, constitui-se ainda sobre o sentimento conflituoso de vontade vs.
impossibilidade de retomar à vida como era antes: “Eu quero me lembrar, eu quero viver como eu
vivia antes. Aí vem uns pensamentos de loucura mesmo, de depressão, não chego nem a tomar
um banho, nem trocar de roupa.” (Sandra). Neste ponto, é interessante recordar Maffesoli (1984,
p. 91):
127
É essa tensão que se encontra na origem do que podemos chamar de melancolia.
[...] A melancolia, a tristeza etc. não se deixam interpretar unicamente em
termos psicológicos, pois se trata de um dado antropológico que é a
conseqüência da tensão existente entre a consciência do limite e o irreprimível
querer viver, constitutivo do social.
Assim, o cotidiano vivido pelos enlutados, que continua lhes reprimindo a partir do
interdito ao assunto da morte, do luto, transforma as atividades corriqueiras destes sujeitos, nas
suas próprias palavras, em acontecimentos “sem sentido”, contexto em que a amenização da dor e
o estabelecimento de uma tranqüilidade tornam-se difíceis. “A fragilidade das coisas, o sabor
amargo do nada, o drama da sobrevivência, eis todas as coisas que tecem a melancolia já
mencionada e que, ao mesmo tempo, impedem o nivelamento imposto pela ideologia da
felicidade” (MAFFESOLI, idem, p. 94)
Imagino, neste sentido, que enquanto o assunto da morte e do luto não for
verdadeiramente introduzido para discussão numa esfera social mais ampla, o problema do
interdito e da individualização da dor permanecerá latente, inclusive para estas pessoas que, de
alguma maneira, acreditam estar mais conformadas. Acredito que isto é tarefa difícil pois remete
a uma reflexão mais profunda, rejeitada pela sociedade atual, conforme alerta José de Souza
Martins (1983, p. 9):
A concepção da morte revela a concepção da vida. Uma sociedade para qual a
morte já não tem sentido, é também uma sociedade, como dizia Weber, que
perdeu o sentido da vida. Estamos vivendo esse momento, de perda, de falta de
128
sentido. Já não sabemos mais o que é a morte, porque já não sabemos mais o que
é a vida.
O que proponho a partir deste estudo, portanto, ao pensar o luto e o interdito à morte, é
tentar refletir sobre uma possível maneira de introdução destes assuntos no cotidiano destes
enlutados – sujeitos que, supostamente, sofrem mais diretamente com esta noção de não-reflexão
da vida. Sei que a noção de finitude, da morte, nos remete à certeza de transitoriedade da vida
(Freud, 1996b, p. 317). Contudo, pensar sobre este (nosso) estado de transitoriedade, nos reporta
a uma retomada de reflexão sobre o sentido da vida a que se refere Martins, o que, para mim,
parece ser um bom início.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No desenvolvimento deste trabalho tornou-se perceptível o quão conflitante é a relação
estabelecida entre o indivíduo em estado de luto e a sociedade. A angústia provocada reside no
afastamento da reflexão sobre a morte e da sensibilidade ao estado de luto, numa esfera mais
ampla do discurso social. Mais ainda. Na atualidade, o distanciamento entre os indivíduos, a não-
interferência no privado, a economia dos gestos e dos sentimentos que compõem as relações
sociais num âmbito mais abrangente só reforçam o isolamento e a interiorização da dor daqueles
que sofrem a perda (KOURY, 2003, p. 206).
As emoções provocadas são de angústia, de inquietação, de sofrimento. A dor da perda
como um sentimento individual põe os enlutados num estágio à margem, talvez até em uma
dimensão mais distanciada do coletivo do que a pensada por Van Gennep (cf. pg 26), na qual
estes sujeitos estariam entre o “mundo dos vivos” e o “mundo dos mortos” – se considerarmos
que existe uma dificuldade, para eles, de compreensão do que seria este mundo dos mortos e,
principalmente, que existe um sentimento ambíguo de inadaptação na reintegração ao social (que
fortalece a não-exposição da dor) e uma revolta pela falta de acolhimento de seu sofrimento.
Diante deste quadro, a sociabilidade analisada nesta dissertação aparece como
oportunidade de refúgio descoberta pelos enlutados – sendo o ambiente do Morada da Paz e as
relações lá instituídas a maneira encontrada por estes atores para falarem sobre sua dor e de
amenizarem seu isolamento imposto pelo luto. A importância dada à esfera espacial do cemitério,
e primordialmente, ao vínculo que mantém a relação entre “semelhantes” na dor, aparece para
estes sujeitos de forma diferenciada.
130
Como foi visto, a sociabilidade desenvolvida no Morada da Paz, em alguns aspectos, pode
ser considerada como fator relevante por possibilitar a discussão sobre as conseqüências causadas
pelo estado de luto. Por outro lado, pode indicar um reforço do isolamento e do sofrimento, por
configurar o único espaço onde estes sentimentos podem ser expostos – visto que no âmbito
social, para cada um destes atores, o luto continua a ser encarado como circunstância a ser sentida
privativamente.
Não é demais lembrar que esta perspectiva considera o ponto de vista da sociologia da
emoção – para a qual a emoção é reatualizada pela experiência individual, mas também, como
representação comum, é sempre compreendida na esfera social que cerca o sujeito temporal e
localmente, o que insere a emoção na relação indivíduo vs. sociedade, conforme reflete Koury
(2004, p. 28):
Indivíduo e coletividade, deste modo, enfrentariam lugares comuns de expressão
de emoções, no sentido de uma reintegração ou de uma desintegração potencial;
isto é, da valoração do sofrimento ou do prazer como bem e como mau
coletivamente estruturados em seu aspecto de dom (MAUSS, 1974b
48
), de troca
simbólica.
Desta forma, esta possível reintegração ou, em oposição, a desintegração destes sujeitos
com o coletivo, deve compreender aspectos intersubjetivos nos quais a emoção se constrói a
partir de experiências singulares e da interferência do contexto social e culturalmente
determinados (idem, p. 89). Quero chamar a atenção justamente para a especificidade deste
contexto social, cultural, bem como espacial e temporalmente dados, em que se encontram estes
enlutados e onde se constituem os sentimentos por eles experimentados.
48
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva, s/p. IN: KOURY, Mauro. Introdução à Sociologia da Emoção. João
Pessoa: Manufatura/GREM, 2004.
131
Assim, torna-se mais compreensível a consideração de que a elaboração do luto, a partir
da reintegração do sujeito ao social, acontece de forma temporal gradativa, mesmo que lenta – na
medida em que vão se alterando os contextos sociais e culturais vividos pelos enlutados. Desta
maneira, a realidade da perda vai sendo, aos poucos, absorvida pelos enlutados, até o ponto em
que o sofrimento do luto é superado com a libertação da “libido pelo objeto perdido pelo ego”,
como afirma Freud (1996c, p. 260):
Cada uma das lembranças e situações de expectativa que demonstram a ligação
da libido ao objeto perdido se defrontam com o veredicto da realidade segundo o
qual o objeto não mais existe; e o ego, confrontado, por assim dizer, com a
questão de saber se partilhará desse destino, é persuadido, pela soma de
satisfações narcisistas que deriva de estar vivo, a romper sua ligação com o
objeto abolido. Talvez possamos supor que esse trabalho de rompimento seja tão
lento e gradual, que, na ocasião em que tiver sido concluído, o dispêndio de
energia necessária a ele também tenha se dissipado.
Nesta perspectiva, entende-se como a construção das emoções vividas pelos enlutados,
expressas na sociabilidade analisada, pode se transformar com o passar do tempo e com alteração
dos contextos vividos por estes sujeitos – o que justifica a perspectiva de alguns de superação da
dor, do sofrimento, após a constatação da irreversibilidade da morte:
[...] e mesmo eu sou um pouco realista com os fatos. Por que você sofrer tanto
se aquilo não vai reverter a situação? Não vai reverter. Eu sei que a dor é
grande, o sofrimento é grande, mas acontece que você vai curtir aquilo pro
resto da vida? Porque você tá vivendo. Não é que você queira voltar a vida que
tinha antes, não volta. Não tem como. Mas pelo menos até agora eu não senti
necessidade nenhuma de ficar assim... [...] Agora procuro me distrair.
(Marecilda).
132
Por que a gente se ficar só chorando, o que é que vai resolver na vida?
Nada, né? (Suzana).
Sobre esta ótica, torna-se primordial perceber que a experiência estudada obedece a uma
conjuntura circunstancial que se constitui a partir dos aspectos temporal, social e culturalmente
oferecidos para estes enlutados, e que o quadro analisado, assim como tudo o que é socialmente
observado, não é estático, ao contrário, fundamenta-se na sua constante reorganização. Como
bem reflete Maffesoli (1984, p. 95, grifos meus):
[...] o instante vivido está acabado em sua própria atualização e é isso, em
poucas palavras, que faz com que essa metáfora, a que chamamos social –
condensação de instantes efêmeros -, não possa ser digerida, não possa ser
planificada. E o interesse e a beleza do ritual consistem em nos fazer ver que, ao
modo de uma bolha de sabão avermelhada ao sol, ou ainda de um sonho
fragmentado e rico em saliências, o social brilha ou se evapora, no momento
exato em que acreditamos tê-lo apreendido ou ter regulado seus
desenvolvimentos.
Assim, considerando o luto um estado a ser temporalmente vivido e a emoção uma
construção que se formula também a partir de experiências sociais, e por isso também temporal,
espacial e culturalmente determinadas, entende-se como os sentimentos expressos pelos
enlutados e a sociabilidade observada tendem a estar em constante transformação. Até o
momento em que podem demonstrar-se modificadas – sendo o espaço do cemitério e os vínculos
lá estabelecidos re-significados, ou não, para cada um destes sujeitos – dependendo de como
estas circunstâncias e contextos vão se apresentar, ou se alterar, para eles, individualmente.
133
O que fica demonstrado como fator distintivo destes enlutados, a partir da perda e,
conseqüentemente, de todas as experiências sociais e emocionais por eles vividas, é a re-
elaboração de suas significações sobre a vida. A perda, na maioria dos casos, lhes apresenta uma
nova perspectiva de valoração do tempo, das companhias e das experiências vividas – o que
corresponderia à manutenção da “segurança ontológica” proposta por Giddens (2002) através da
atribuição de respostas a questões existenciais, neste caso, a partir do enfrentamento do luto.
Como se pode ver neste depoimento:
Mas eu procuro assim não ser mais tão ansiosa como eu era antes, deixar as
coisas acontecerem com a maior naturalidade. Deixar a vida... É igual àquela
música “Deixa a vida me levar...”. Mas assim, eu digo muito às pessoas não
perderam, aos meus amigos: “Aproveitem, seu pai, sua mãe, seus familiares.
Abrace, beije, faça tudo o que você puder. Não brigue”. Pra que confusão, pra
que briga, né? Se essa vida da gente é tão passageira. A gente nunca sabe o dia
de amanhã, nunca sabe o que pode acontecer com a gente daqui a um minuto,
cinco minutos a gente não sabe se a gente vai estar aqui. Eu digo muito isso. Isso
é uma coisa que é como se fosse, eu acho que seria um lema, não sei, de vida,
né? Tem que aproveitar tudo o que você pode aproveitar, cada minuto, cada
segundo que você puder, você tem que aproveitar. (Juliana)
Desta forma, pode-se perceber como se estabelece a relação vida vs. morte de forma
diferenciada a partir deste enfrentamento experimentado pela perda. O re-estabelecimento da
morte como maneira de entender e de valorizar o tempo a ser vivido, nos exemplos observados,
remontam a percepção da própria vida. Como nos diz Morin (1997, p 11): “o problema de
conviver com a morte vai se inscrever cada vez mais profundamente em nosso viver. Isto
desemboca num como-viver, cuja dimensão é a um só tempo pessoal e social.”
Vê-se, desta maneira, uma perspectiva mais abrangente para a observação da premissa,
tão repetida pelos enlutados, de que “só entende a dor quem passa por ela”. Poderíamos estender
134
a reflexão (mantendo a noção de que as experiências emocionais e sociais do enlutado são de fato
ímpares – pelo menos da maneira como são observadas atualmente), compreendendo que não
somente os sofrimentos da perda são vivências únicas destes sujeitos, mas que, possivelmente, o
enfrentamento da morte de maneira mais aproximada, através do luto, re-significam, também sob
um aspecto diferencial, a sua forma de perceber a própria vida. Como afirma Dastur (2002, p. 8,
grifos meus):
Deixar ao nada que é a morte o governo da vida não implica, todavia, nem
heroísmo niilista nem lamentação nostálgica, mas, na realidade, a conjugação, na
tragicomédia de uma vida que não recua diante da morte, mas, ao contrário,
aceita incluir em sua conta o luto a e alegria, o riso e as lágrimas.
E então volta-se a perceber, como foi dito no início deste trabalho, a esta altura visto
através do olhar do enlutado, que viu e sentiu a morte de maneira mais aproximada, o quanto a
consciência da finitude e o enfrentamento desta certeza, para o homem, recai sobre o
entendimento de si, da vida e do mundo. A morte é condição de nossa existência, e absorvê-la
desta forma pode fazer compreender o caráter transitório, mas não por isso menos valoroso, da
vida.
135
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32. IMBASSAHY, Carlos (1978). O que é a morte. 2 ed. São Paulo: EDICEL.
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142
Roteiro para entrevista com enlutados visitantes e com participantes do grupo de apoio psicológico.
Nome:_____________________________________________ Idade: __________
Ocupação:___________________________ Religião:__________________________
Parentesco com o ente falecido: ________________ Tempo da perda:_________
Motivo do falecimento:____________________________________
AMBIENTE
1) Por que escolheu o Morada da Paz e não um outro cemitério?
2) Que sensações você sente no ambiente do Morada da Paz? Você acha que existe alguma diferença no
ambiente deste para outros cemitérios? Quais?
3) Com que freqüência você visita o cemitério? O ambiente influencia na freqüência de suas visitas?
4) O que você acha dos eventos (missas/ shows/ exposições/ reuniões de terapia) e da estrutura oferecida
pelo cemitério? Você freqüenta estes eventos e/ou utiliza esta estrutura?
5) Como você vê a morte?
6) Após a sua perda e a conseqüente freqüência ao Morada da Paz, alguma mudança ocorreu na sua
percepção sobre o ambiente de um cemitério e sobre a morte? Quais mudanças seriam mais significativas?
7) O fato de os jazigos serem padronizados em um jardim, e não expostos como os túmulos dos cemitérios
tradicionais, altera a sua relação com o ambiente? Você faz alterações no jazigo? Quais?
SOCIABILIDADE
1) Conte um pouco da experiência com o grupo de apoio psicológico. Como lhe ajuda, o que você considera
ter aprendido com esta experiência... *
2) Sua relação com a perda mudou após o seu ingresso no grupo de apoio? *
3) Após sua freqüência no Morada da Paz, você fez amizade com outros visitantes?
4) Se sim, qual a importância dessas relações e dessas amizades?
5) Quando os encontra, vocês sempre conversam? A perda é um assunto freqüente nessas conversas?
6) Para você, falar sobre a perda com outros enlutados, de alguma maneira, ameniza a dor?
7) Existe alguma relação com os outros visitantes fora do ambiente do Morada da Paz? Se sim, onde e com
que freqüência acontece esses encontros? Conversam sobre a perda também nesses encontros?
8) Você também conversa com as pessoas do cotidiano sobre a sua perda? Se sim, quem são essas pessoas
(amigos/ parentes/ colegas de trabalho/ qualquer pessoa)?
9) Acha que existe dificuldade em conversar sobre a perda com pessoas que não passaram pela mesma
situação? Se sim, quais são as dificuldades que encontra?
* Questões aplicadas somente para participantes do grupo de apoio psicológico.
143
Roteiro para entrevista com a psicóloga Millena Câmara.
Nome:_____________________________________________________________ Idade:_________
Formação:__________________________________________
TRABALHO
Como aconteceu o seu primeiro contato com o trabalho voltado para o luto? E como foi dado o início do trabalho
com o Grupo Vila?
No que consiste a sua proposta de trabalhar a perda entre enlutados?
Qual a importância do desenvolvimento do trabalho em grupo? Existe diferença com o trabalho realizado
individualmente?
Como você percebe a sociabilidade entre as pessoas do grupo de apoio psicológico? E entre os enlutados de uma
maneira geral?
Como você vê a percepção das pessoas sobre o seu trabalho dentro do ambiente do cemitério?
Como você percebe o ambiente do cemitério para o trabalho?
Quais os seus planos futuros com relação a este trabalho?
SOCIABILIDADE/ MORADA
Como você se relaciona com as pessoas dentro do cemitério?
O que você acha da sociabilidade dentro do espaço do Morada da Paz?
Esta sociabilidade contribui para o processo de luto?
O que você acha que contribui para que as pessoas se sintam à vontade no Morada da Paz?
Quais diferenças você apontaria entre este e outros cemitérios da cidade?
Como você acha que as pessoas vêem o Morada da Paz e os serviços oferecidos pelo Grupo Vila?
Você acredita numa mudança na percepção dos visitantes do Morada da Paz com relação à morte a ao ambiente do
cemitério? Por quê?
PERFIL/ ENLUTADOS
E FUNCIONÁRIOS
Seria possível elaborar um perfil dos enlutados do Morada da Paz? Existe alguma diferença com relação aos
visitantes de outros cemitérios?
E com relação aos funcionários do cemitério, como você percebe a relação deles com os visitantes e com o trabalho
diário com a morte?
MORTE
Como você encara a (sua) morte?
Como você observa os ritos que envolvem a morte (velório/ missa/ sepultamento)? Qual a importância da
manutenção destes ritos para o processo de luto?
144
Mapa do Cemitério Morada da Paz
49
49
Disponível em http://www.grupovila.com.br/mapa_morada_vis.html. Acessado em 21 de janeiro de 2005.
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