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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Débora Rodrigues de Miranda
Levantado do Chão: o romance e a crônica em hibridização
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2009
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DÉBORA RODRIGUES DE MIRANDA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre em
Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Profª. Dr.ª
Vera Bastazin.
SÃO PAULO
2009
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Banca Examinadora:
...............................................................................
...............................................................................
...............................................................................
Dedico esse trabalho àquela cujos gestos mais simples
me ensinaram as grandezas da vida. À D. Thereza
Jordão de Miranda, minha mãe, com gratidão e amor.
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte de vida e inspiração.
Minha família, pela presença constante.
Meu grande amor, Igor Fucidji. Obrigada por me compreender,
incentivar, ajudar e esperar!
Por receber a bolsa mestrado da Secretaria Da Educação do Estado
de São Paulo.
À Professora Doutora Vera Bastazin, por não medir esforços em me
orientar e ajudar para que eu pudesse empregar o melhor de mim nessa
pesquisa que hoje apresento.
Ana Albertina, secretária do Programa. Sou grata pelos conselhos,
pela dedicação e preocupação com os alunos; você é muito importante para
nós!
Também pelo incentivo e carinho de Niceia Pires, através da qual
conheci o Programa de Literatura e Critica Literária dessa Instituição.
A Damares Rodrigues Vieira, minha irmã, amiga, a quem devo o
primeiro material sobre Saramago que recebi. Tata, hoje o sonho se tornou
realidade!
Às colegas Giseli, Lívia, Cica, Lilian. Que bom tê-las sempre por
perto, o apoio de todas vocês foi fundamental!
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo elucidar o modo como o
texto cronístico participa na estrutura do romance Levantado do
Chão, de José Saramago. Romance de caráter híbrido,
apresenta o percurso histórico do povo português por meio da
saga, do mito e dos traços de oralidade presentes nas histórias
dos homens simples do latifúndio alentejano.
Para criar a Ficção como História, o narrador do romance
registra o dia a dia da família Mau-Tempo – precursora de
efetivas mudanças da mentalidade portuguesa ao longo de três
gerações. Acompanhando-se o percurso das personagens, é
possível apreender o universo romanesco formado por pequenas
passagens que garantem toda a significação da obra.
Por meio desse trabalho, espera-se contribuir não só com
os estudos sobre as crônicas saramaguianas, mas também com
as pesquisas voltadas às produções literárias de teor histórico e a
compreensão do gênero romanesco.
Palavras-chave: romance contemporâneo português; José
Saramago; hibridização de gêneros; romance e crônica.
ABSTRACT
This study aims to elucidate how the chroniclistic text play
its role in the novel Risen from the Ground by José Saramago.
A hybrid kind of novel, it presents the historical course of the
Portuguese people by means of saga, myth and orality traits
found in the histories of poor peasants from the Alentejan great
landed states.
To create Fiction as History, the novel’s narrator records the
ordinary dealings of the Bad-Weather family – a forerunner of
effective Portuguese mentality changes along three generations.
By following the characters trajectory it is possible to make sense
of the novelistic universe composed of small passages that give
the significance of the whole work.
With this study, we hope to contribute not only to studies on
Saramago’s chronicles, but also to researches focused on literary
works with historical content, and on the understanding of novel
as a literary genre.
KEY-WORDS: contemporary Portuguese novel; José Saramago; hybridization
of genres, novel and chronicle
SUMÁRIO
Introdução .........................................................................................................03
I. O Híbrido: consciência da flexibilidade e mutabilidade dos
gêneros..............................................................................................9
1.1. Uma palavra sobre gêneros
1.2 A crônica como gênero..........................................................................12
1.3 A crônica em Saramago: um novo olhar perante a História...................18
1.4 Do transitório à perenidade: o universo chamado romance..................23
II. Levantado do Chão: um romance de História e histórias..................28
2.1. O contexto histórico de Levantado do Chão
2.2. O material histórico em Saramago...................................................35
2.3. A oralidade como agente transmissor da História: discurso, canto e
voz....................................................................................................42
2.4. Poesia, mito e saga: a História e a oralidade...................................56
III. Os traços da atuação cronística na produção romanesca em
Levantado do Chão..........................................................................67
3.1. O instante e o desencadear da História
3.2. A hibridização das formas: do peso à leveza.................................72
Conclusão .....................................................................................................80
Bibliografia ....................................................................................................83
Anexos...........................................................................................................91
INTRODUÇÃO
“...é um perigo isto de escrever e falar.”
(SARAMAGO, 1980, p. 231)
Reconhecido pela incessante busca da essência humana que marca
suas obras, José Saramago consegue tocar seu leitor de modo muito
especial.
Seu estilo marcante de escrita e a maneira sutil como imprime seus
pensamentos conduzem o leitor a uma atmosfera na qual tudo o que é pré-
concebido se desmancha e os olhos são desvendados para uma realidade
sensivelmente transformadora.
As obras de Saramago traduzem muito de suas experiências, desde o
menino nascido na aldeia de Azinhaga até o tradutor, jornalista e grande
escritor premiado com o Nobel de Literatura (1996). Ao longo de sua
trajetória, o modo como nos conta sua vivência como indivíduo e agente da
história tornou-se, cada vez mais, acentuado por traços de ironia e de uma
crítica aguçada. Sua produção em prosa apresenta características
recorrentes nos diferentes gêneros narrativos cultivados. Os elementos
próprios de seu discurso prosaico são apresentados por um estilo
inconfundível de escrita, pela fina ironia, pelo uso de palavras que guardam
em si grandezas universais, e pela recriação de elementos culturais, aos
quais é atribuído um olhar outro, até então desconsiderado.
Até mesmo a História de seu povo, sua herança cultural e religiosa
recebem novo prisma em suas palavras, pois o autor as reveste de certa
força expressiva e atemporalidade, além de fazer com que o individual se
torne coletivo. Passado e presente são, muitas vezes, apresentados como
indissociáveis e, por meio da oralidade, sua voz tem a liberdade de inserção
das minúcias que se deixaram para trás, ou das vozes que não mais se
fazem ouvir.
Ao contrário do que se costuma pensar acerca da História, Saramago
a tem como uma forma de Ficção, pois considera equivalentes as atitudes
10
do ficcionista e o do historiador: na medida em que ambos têm semelhanças
na liberdade subjetiva de recortar e recriar o universo histórico.
Em manuscrito de 1950, apresentado na exposição “José Saramago,
a consistência dos sonhos”, realizada em novembro de 2008 no Instituto
Tomie Otake, em São Paulo, o autor revela atenção especial às banalidades
que observava a sua volta: uma “rapariga de 15 anos doida, acocorada, de
olhos parados e cabeça trêmula, as pernas cobertas de crostas”; o “ensaio
da peça do Barreiros na Casa do Povo”; “a descida do rio, com o barco
deslizando sem ruídos nas águas escuras”. Das cenas do cotidiano, obteve
“impressões" boas e más, as quais reuniu ao “acaso e sem ordem” para que
representassem a grande experiência da vida.
Saramago é um questionador que não permanece passivo diante de
suas dúvidas. Com sutileza e sagacidade estampa, em seus textos, recursos
estilísticos peculiares, além de buscar permanentemente a compreensão de
si mesmo e do universo que o cerca.
Tal atitude de observar o dia a dia e revelar suas impressões é prova
de que José Saramago é um homem sensível. Antes de ser escritor é um
exímio tradutor de pequenas passagens da vida, extraindo delas reflexão e
poesia.
Não apenas consagrados romances como Levantado do Chão
(1980), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) e Memorial do
Convento (1992) mostram uma nova forma de refletir sobre a História, mas
também as crônicas
1
de A Bagagem do Viajante (1996) em especial,
“Retrato de antepassados”; “As memórias alheias”; e “Com os olhos no
chão” são provas da criticidade e do questionamento do autor, cujo olhar é
capaz de filtrar informações pré-concebidas para deixar-se conduzir pelas
minúcias flagradas.
“Mas a vida, se repararmos bem, só é o que vidas forem” – afirmou
certa vez o autor em entrevista a Ernesto Sampaio (Diário de Lisboa, 1980).
É o reconhecimento de que a História, como um todo, só pode ser contada
da forma mais verdadeira possível se atentarmos para as experiências
humanas veladas em breves momentos, episódicos e efêmeros.
1
Apresentamos as crônicas completas anexas ao final dessa dissertação.
11
Na mesma entrevista mencionada, Saramago declarou ter
permanecido alguns meses em Lavre, aldeia da região do Alentejo, onde
conviveu com trabalhadores rurais da União Cooperativa de Produção Boa
Esperança, em 1975. Tal convivência proporcionou-lhe reunir observações e
memória, assim como alimentar seu imaginário. Na ocasião da entrega de
livros à biblioteca da União, João Domingos Serra, um daqueles tantos
trabalhadores de Lavre, de 70 anos, entregou seu diário àquele que daria
voz aos seus anseios. O homem simples do campo confiou a Saramago sua
própria história, dizendo: “está aqui a história da minha vida”.
Sobre a experiência de escrever Levantado do Chão diz que, antes
de estruturar seu romance:
[reuniu]
duas centenas de páginas com notas, casos, histórias,
também alguma História, imagens, imaginações, episódios trágicos
e burlescos ou apenas do quotidiano banal, acontecidos diversos,
enfim, a safra que é sempre possível recolher quando nos pomos a
perguntar e nos dispomos a ouvir.
(Diário de Lisboa, 1980)
Levantado do Chão (1980) resultou, portanto, das experiências e
materiais que o autor reuniu. O que parecia uma reportagem tornou-se obra
de resgate da oralidade e do ato espontâneo de contar histórias. O romance
se constituiu em força transformadora, capaz de absorver das experiências
mais diversas uma verdade maior, universal. É uma obra que revela o
cronista Saramago - antena que capta a essência humana na fugacidade do
cotidiano – e, ao mesmo tempo, o romancista – difusor que propaga na
produção de sua obra uma outra maneira de contar o Alentejo.
Ao se reportar ao romance, Saramago mostra que seu projeto
sobrepuja a Ideologia, a História e a Filosofia para também se constituir
como linguagem. Neste livro, diz o autor, ele se imaginou contando a
História em voz alta, e assim como permite a oralidade, poderia voltar ao
que já foi contado, inserir outras histórias, cerzi-las com a sabedoria popular,
e, em outras ocasiões, recontar as mesmas histórias, mas “diferente, sempre
diferente, outros ditos, outros caminhos”. O autor reconhece em Levantado
12
do Chão a obra com a qual nasce o modelo de narrativa característico de
sua prosa (Diário de Lisboa, 1980).
A princípio, o romance atrai pela questão histórica e pela aproximação
com o trabalho jornalístico comum às obras pós-25 de Abril. A grande
surpresa é o contato com um universo no qual os protagonistas são os
desprezados pela História Oficial, presentificados no dia a dia de
personagens cuja história se perdera ao longo dos séculos, apesar de terem
participado efetivamente nas mudanças de mentalidade da nação, com
proporções de saga heroica. Cabe aqui a pergunta: o romance seria uma
nova proposta para se revisitar o passado? Uma subversão da História?
Sabemos que, dentre as profissões que exerceu, José Saramago
atuou como jornalista em periódicos como A Capital, Jornal do Fundão e O
Diário de Lisboa. Todavia, na década de 70, por motivos políticos, o escritor
fora obrigado a abandonar o ofício – ressalta-se que Saramago, já nesta
época, atentava para a vivência cotidiana e para o individual como grandes
fontes de reflexão, compartilhando com os leitores seus questionamentos e
conclusões. Em 1996, as crônicas com as quais colaborou para esses
periódicos foram reunidas na obra A Bagagem do Viajante
2
.
Entre os textos cronísticos dessa coletânea, fomos especialmente
atraídos por três deles, já mencionados: “As memórias alheias”, “Retrato de
antepassados” e “Com os olhos no chão”. Observa-se que a temática das
três crônicas é recorrente no romance Levantado do Chão. As duas
primeiras voltam-se para o passado histórico: uma constitui a reflexão sobre
a revolução de 5 de Outubro e, a outra, reflete as origens do escritor; já na
terceira, temos a descrição de uma aquarela de Albrecht Dürer, a qual parte
de uma perspectiva que exige um olhar atento aos detalhes, longe dos
convencionalismos.
Cremos que esses textos apontam para o pensamento do autor no
que diz respeito aos aspectos históricos e mostram seu olhar atento às
minúcias e ao modo peculiar com que, a partir delas, registra a profundidade
2
SARAMAGO, José. A Bagagem do Viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
A partir dos demais capítulos, para designar o livro de crônicas, utilizaremos a sigla BV,
acompanhada do número da página em referência.
13
de suas reflexões, pois a crônica verbaliza a experiência de abstrair da
realidade fugaz a perenidade da vida.
Tanto os textos cronísticos, como o romance em proposição sugerem
postura ousada diante da própria História. Por isso, o mesmo olhar, capaz
de traduzir a História e a vida em breves episódios, se repete nas variadas
manifestações literárias, quer nas crônicas, quer no romance.
O início da escrita de Saramago, no âmbito jornalístico com a
produção das crônicas, pode ter influenciado seu projeto para o romance
Levantado do Chão. Nessa obra, pequenos momentos vividos pela família
Mau-Tempo são precursores das grandes mudanças na mentalidade do
povo português, ao longo de quatro gerações representadas no romance.
Afora o tema recorrente, o olhar cronístico se repete e a oralidade passa a
contar o latifúndio “de outra maneira” (SARAMAGO, 1989, p.14).
Dessa forma, de que recursos o autor lança mão para assinalar a
oralidade e qual o papel dessa no discurso romanesco? Partindo das
características dos gêneros – romance e crônica, como o material histórico é
transformado em universo ficcional? A instauração dobrido dependerá da
estilização dos discursos que envolvem a luta de classes e sua evolução no
período histórico; para percebê-lo, faz-se necessário entender o papel da
crônica no jornal e na literatura, bem como o mecanismo do romance, o qual
poder abarcar diversas linguagens.
Nesse estudo, nosso objetivo será o de assinalar a maneira como os
elementos constituintes da crônica – não só temáticos, mas estruturais –
inscrevem-se no romance Levantado do Chão, além de abranger os
artifícios que irão concatenar as partes constituintes da alegoria do latifúndio.
Romance que conta a história do Alentejo por meio de pequenos
gestos da vida da família Mau-Tempo, apresenta-se, em princípio, como um
texto cronístico, mas sua abrangência alcança a vida em sua essência. Com
o mínimo de caracteres, a crônica é capaz de revelar a profundidade do
romance, mesmo com emprego de meios restritos, que lhe são
característicos.
Para compreendermos tais inserções estruturais, desenvolvemos
esse estudo da seguinte forma: no primeiro capítulo, abordamos a questão
do gênero e sua concepção a partir das transformações que se
14
desenvolveram ao longo dos períodos históricos; assinalamos as
características da crônica no contexto do jornal – berço do gênero – e do
livro, como seu registro mais duradouro. De igual modo, caracterizamos o
romance, entendendo-o como força transformadora das múltiplas linguagens
que nele podem ser inseridas.
A seguir, no segundo capítulo, abordamos a temática histórica do
romance LC, partindo do enredo, da concepção de História do autor José
Saramago e da reflexão do papel da oralidade para a construção do
universo ficcional, a qual dá margens para a introdução da poesia, do mito,
do canto e da voz como presença, na ficção. O tratamento dos discursos
institucionalizados no romance também é abordado nesse capítulo, à luz dos
estudos bakhtinianos sobre o plurilinguismo.
A confluência entre os dois gêneros, crônica e romance, é assunto de
nosso terceiro capítulo, por meio do qual tentamos mostrar que a
composição estrutural de Levantado do Chão
3
reconhece a magnitude da
vida nos pequenos episódios da família campesina do Alentejo. Com base
nos conceitos calvinistas de multiplicidade, peso e leveza, desenvolvemos a
reflexão acerca do instante como deflagrador da História, sempre em diálogo
com as características estruturais da crônica e do romance.
LC é um romance que se propõe a narrar a História do Alentejo de
uma nova perspectiva. Para isso, retira do momento flagrante a
representação máxima da vida, por meio de diversas linguagens que se
coadunam e formam a estrutura acumulativa do romance, perceptível na
hibridização das formas.
3
SARAMAGO, José. Levantado do Chão. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
A partir dos demais capítulos, para designar o romance, utilizaremos a sigla LC, acompanhada
do número da página que estiver em referência..
15
I. O HÍBRIDO: CONSCIÊNCIA DA FLEXIBILIDADE E
MUTABILIDADE DOS GÊNEROS
“Maio é mês das flores. Vai o poeta em seu caminho, à procura das
boninas de que ouviu falar, e se não lhe sai ode ou soneto, há-de sair
quadra que é saber mais comum.”
(SARAMAGO, 1980, p. 193)
1.1 . – Uma palavra sobre gêneros
Falar sobre gêneros, ao contrário de parecer superficial diante dos
atuais estudos literários, faz-se necessário para despertar a consciência de
que tais categorias normativas não são estanques; antes, asseguram pleno
acesso às novas expressões artísticas mais urgentes e significativas. Hoje
compreendemos que esses estudos voltados para o projeto arquitetônico
das obras permitem-nos mais que a interação com o universo proposto no
processo de criação, inserção e vivência no espaço ficcional. Organismos
vivos em constante modificação, os diversos gêneros promovem sempre
uma nova leitura da nossa própria existência e do modo como nos
relacionamos com o mundo.
A partir desse pensamento, a busca em compreender o complexo
sistema composicional das produções artísticas, sobretudo as literárias,
ultrapassa as atitudes meramente classificatórias. Essa busca revela uma
preocupação com a representatividade e a função dos elementos estilísticos
e estruturais que garantem a especificidade de cada obra, os quais se
transformaram ao longo do tempo.
Dessa transformação também participa a própria apreensão do que
se entende por gênero. Até chegarmos à concepção de Max Bense (1975),
para quem o termo designa um “campo para descoberta e experimentação”
(p.189); ou ainda à ideia de gênero como “raio X de uma visão de mundo
específica - segundo os conceitos bakhtinianos sobre a teoria do romance
(HOLQUIST. 1998, p. 293) - um longo caminho foi percorrido.
16
A começar pelo caráter modelar do gênero, firmado pela Antiguidade
Clássica, em cujo momento o hibridismo de formas era condenável,
recorremos a Platão, que considerava a arte como material pedagógico e de
ensino moral. Seu discípulo, Aristóteles, firma o conceito de Mimeses e
estabelece a divisão entre os gêneros dramático, lírico e épico. Os mesmos
ideais de arte são repetidos nos ensinamentos de Horácio (65 a.C.), crítico
romano seguidor de Aristóteles, para quem forma o poeta, exímio em seu
ofício, precisa adequar os elementos de forma e conteúdo a cada gênero,
segundo sua normatividade, hierarquia e pureza.
A hierarquia e a imutabilidade das formas persistem como valores no
período renascentista. A concepção de mimese, nessa época, se afasta do
conceito aristotélico, admite o processo de transformação do real e passa a
ser entendida como imitação da natureza, portanto, o mais próximo possível
da realidade.
A mutabilidade das formas artísticas passa a ser percebida a partir
das produções pré-românticas, quando a questão dos gêneros se coloca
novamente em destaque. A liberdade criadora prevê o hibridismo das formas
e dentre os primeiros poetas a se manifestarem em sua defesa está Vitor
Hugo, o qual concebe a arte como reflexo da pluralidade e diversidade
existentes em todos os âmbitos da vida.
Essa concepção de arte passa a assumir um caráter mais cientificista
no Realismo, quando as teorias científicas e filosóficas atuam diretamente
sobre a maior parte da produção artística da época. A teoria evolucionista
aponta as mesmas leis que garantirão a evolução dos gêneros, porém há
nesse período certo desacordo entre teóricos, pois, parte deles, como
Brunetière (1849), admite a atuação de elementos extraliterários na
composição poética. Outros, contudo, creem na desvinculação desses
fatores, negando-lhes o valor de agentes produtores do modelo literário,
nesse caso, lembramos Croce (1866).
Com os novos estudos surgidos no século XX, nos quais se notam
reverberações do final do século anterior, surge a concepção de poeticidade
e afirma-se a não estagnação dos gêneros. As teorias aqui desenvolvidas
admitem e exploram a correlação e integração dos gêneros, assim como o
17
seu diálogo com outros sistemas, sejam de ordem social, histórico ou
cultural.
Estudos de teóricos como Tynianov (1978) e Jakobson (1978) entre
outros, muito contribuíram para a reflexão sobre o fenômeno literário e para
a percepção dos limites tênues entre os mais diversos gêneros. Tanto a
poesia, como as formas narrativas são resultado da expansão e da
multiplicidade de recursos linguísticos próprios da linguagem em sua função
poética. Desde os formalistas russos até a atual crítica literária percebe-se
que as fronteiras entre os gêneros estão cada vez mais apagadas, deixando
quase imperceptíveis a mediação e o distanciamento estético.
Para os estudos mais recentes, a hierarquização imperiosa cede lugar
à consciência de que os gêneros são regidos pela concepção de arte em
cada época. Segundo o pensamento bakhtiniano, gêneros menosprezados
em determinada época passam a ser exaltados em outra, e o que outrora
fora repudiado passa a ser adotado como máxima de valor estético – uma
transformação que sempre estará afinada com a evolução do pensamento
humano.
Não abandonando o conceito clássico de literatura, o qual prevê a
tradição e as características recorrentes, preferimos adotar uma visão mais
livre e ampliada sobre os chamados gêneros. Assim, a nitidez, a pureza e a
exatidão que se esperava da literatura são substituídas pela incorporação de
diversas formas que podem dialogar entre si ou serem inseridas em
diferentes contextos, assumindo aspectos estruturais que causam
estranhamento.
Estranhamento, segundo o formalista russo Chklovski (1978), é um
não-reconhecimento do objeto representado, um processo de singularização
ou desfamiliarização do objeto. Envolve o poder que somente a arte tem de
obscurecer as formas, aumentar o grau de dificuldade e duração da
percepção estética para nos distanciar do olhar comum. É um efeito especial
sugerido pela obra de arte que cria um novo universo somente perceptível
pelo olhar estético, atento às formas como intervenções capazes de conter
outras formas. A arte, segundo o formalista, deve ser um modo de
representação que fuja do comum e que estabeleça uma ruptura com a
realidade, pois esta é a sua essência.
18
Reconhecemos que a questão dos gêneros pode ainda ser
desenvolvida, uma vez que as classificações auxiliam a compreender as
manifestações ficcionais da atualidade e, consequentemente, a hibridização
das formas.
Afora as transformações tecnológicas advindas com o progresso,
as transformações da vida cotidiana e da própria História também moldaram
os gêneros literários, uma vez que esses refletem a mutabilidade e a
flexibilidade do homem diante da vida, como seu agente modificador – e
modificado por ela. Esse processo de adaptação ao mundo moderno afeta
as produções humanas e, entre elas, a literatura, cujo caráter plural supera a
transitoriedade. O texto literário é revestido de certa perenidade, pois,
mesmo que sua estrutura não atenda às tendências da época, ele estará lá,
à espera de um novo leitor, seu descobridor.
1.2. – A crônica como gênero
Cada forma expressiva sofreu transformações consideráveis que
foram mais marcantes a partir do período romântico. Assim também
aconteceu com a crônica.
No Humanismo, o gênero denominado crônica era concebido como
organização cronológica e sucessiva de fatos selecionados, sem pretensão
interpretativa. Seu maior representante, nessa época, é o historiador e
cronista Fernão Lopes. Posteriormente, ela passa a representar o relato
histórico sob o olhar crítico do autor, consoante o modelo que podemos
extrair da carta de Caminha. Mesmo no Romantismo, as crônicas
constituíam um espaço onde se registravam os fatos do dia ou da semana,
recebendo o nome de folhetim.
Até que o autor, confinado na redação à espera dos informes,
percebe que a modernização das cidades exige um novo comportamento. O
cronista, então, passa a procurar seu material na história diária, na
experiência sensível do cotidiano. A partir desse novo contingente, a crônica
se desloca para o ambiente jornalístico e, posteriormente fixa-se nos livros,
conquistando o meio literário.
19
A crônica como nós a concebemos hoje nasceu no jornalismo. Não
nasceu com o jornal, mas incorporou-se a ele quando a leitura desses
periódicos se tornou uma prática cotidiana. Por isso, seu princípio básico é
registrar o circunstancial e retirar dele elementos que superam o factual e o
revestem de certa durabilidade.
Graças ao seu veículo de divulgação, a crônica passou a estar mais
próxima à movimentação apressada da vida diária, à leitura enquanto se
toma um café, àquela para se comentar com os amigos, a tantas outras
práticas em que corriqueiramente nos inserimos, sem maiores
compromissos. Ela segue a fluidez da vida, a rapidez da máquina.
Apesar de seu caráter efêmero, a crônica promove uma experiência
reflexiva que se faz ecoar em nossa existência e se propaga, modificando-
nos e atingindo o que está ao nosso redor; isso se dá porque o cronista
valoriza o que é banal, cotidiano. Vale a pena lembrar aqui que banalidade e
cotidiano não são sinônimos: um episódio do dia a dia pode encerrar grande
força expressiva, de modo que este não seja banal.
Em “A vida ao rés-do-chão”, o crítico Antônio Cândido (1992)
classifica a crônica como um gênero que rompe com o monumental e o
enfático, que retira a magnitude dos temas, atribuindo maior valor às coisas
e às pessoas. O fato de a crônica abandonar o tom de crítica argumentativa
para se revestir de poeticidade foi decisivo nas transformações desse
gênero.
Segundo Cândido, o cronista é capaz de alcançar, de modo
surpreendente, a grandeza e beleza dos fatos que consideramos miúdos,
com ar de coisa sem necessidade. Sua aproximação com a vida envolve o
leitor e, a palavra, por sua vez, revela a profundidade dos significados dos
atos e sentimentos humanos: tudo é vida diante do cronista.
O legado do cronista é atribuir um aspecto “desarranjado” à
organização textual. A crônica carrega em si grande força expressiva; dá
significância àquilo que não a merece, dá sentido ao “vácuo absoluto” (p. 22)
– eis a magia da crônica, capaz de traçar o perfil do mundo e dos homens.
Essa expressão empregada por Antônio Cândido se refere ao poder
atribuído à crônica de dar existência ou tornar tangível a própria ausência de
materialidade.
20
O segredo está no olhar, conforme Jorge Fernandes da Silveira
(1992). Em seu ensaio sobre a crônica intitulado “Fernão Lopes e José
Saramago. Viagem – paisagem – linguagem. Cousa de veer”, o autor
salienta que o papel do cronista é o de assistir “o fato” e “ao fato”. Seu papel
é assistir ao fato porque é dotado de sensibilidade poética para observá-lo
de forma diferenciada, captando sua essência; assistir o fato porque o
material observado pelo cronista é modificado por meio sua sensibilidade e,
assim, o fato se reveste de literariedade e de durabilidade. Ao mesmo
tempo em que é espectador, ele também constrói o fato de forma especial,
para que este chegue ao leitor como um nova informação.
Na obra A Crônica, Jorge de Sá (2005) define o gênero como “soma
de jornalismo e literatura(p. 8). O modo como o cronista articula a realidade
que o circunda, a partir da observação ou experiência sensível, aproxima o
gênero do campo jornalístico. Quando o autor se preocupa com a condição
humana revelada no instante flagrado e atribui certa concretude ao efêmero,
o modo como recria tal realidade passa a ser uma atividade literária. Para Sá
(2005), a crônica representa “um arco-íris de plumas fragmentando a luz
para torná-la mais tonalizante” (p. 14).
O aspecto que inclui a crônica no estilo jornalístico é o contato com o
fato. Para o cronista, o fato – o acontecimento marcado de veracidade,
realismo e objetividade – é o centro de sua observação. Mesmo no ambiente
jornalístico, a crônica já pertencia à literatura, conforme o pensamento de
Alceu Amoroso Lima (1960), o gênero jornalístico é uma “arte do
pensamento, arma e forma de educação do homem” (p. 63).
Inserida no contexto do jornal, a crônica segue a precariedade do
seu meio e, assim, concomitante ao fato, pode perder seu valor. O jornal
segue a “pressa de viver”. A rapidez dos acontecimentos rege o trabalho do
cronista; o leitor, por sua vez, sente-se realmente satisfeito quando
atualizado e “preenchido” pela sensibilidade que encontra na linguagem da
crônica.
A princípio, o cronista atua como um “narrador-repórter”, conforme
estudos sobre esse gênero, organizados por Jorge de Sá (2005, p.8). A
preocupação do cronista está em atender a demanda dos leitores com
atenção à economia de recursos linguísticos para que sua composição caiba
21
no breve espaço que lhe é destinado em meio a tantas notícias do dia.
Advém desse trabalho o caráter mais significativo da escrita cronística:
profundidade e riqueza obtidas por meios restritos.
No contexto do livro, a crônica parece revestida de certa perenidade
e atemporalidade. Isso não se dá pela simples mudança de veículo, mas
pela consciência do autor de que sua obra venceu a efemeridade do fato
para alcançar leitores críticos, capazes de captar a grandiosidade da vida
velada nesse limitado espaço de vivência. Dessa forma, o autor se torna um
“cronista-poeta”, definição também dada por Sá (2005. p.71), capaz de
lançar mão de recursos estilísticos para captar esses sinais de vida e
traduzi-los a um público mais seletivo.
A crônica ultrapassa do consumo imediato, e desloca-se do leitor
apressado do jornal ao leitor seletivo do livro; do fato cotidiano à imagem
representativa da vida humana, momento esse que requer uma postura mais
crítica diante do texto. Consequentemente, o autor torna-se cúmplice desse
novo leitor e deve selecionar as crônicas que merecem um registro de certa
forma permanente.
Muda-se o foco, muda-se a linguagem e a estrutura da crônica. Com
a experiência revelada à base da habilidade que o cronista tem de, com o
mínimo de elementos representativos, alcançar um alto grau de reflexão –
ao que Jorge Sá se refere como “economia” de meios (2005, p. 8) – o
gênero se reveste de literariedade, passando do registro formal do
comentário jornalístico para a subjetividade da recriação do real.
Aqui, crônica e conto passam a aproximar-se, seus limites a
entrecruzam-se. O conto desenvolve a construção da personagem, do
tempo e do espaço, enquanto a crônica oferece maior liberdade ao seu
autor, sem que esse tenha de criar um narrador, seu representante. A
aparente superficialidade da crônica esconde as potencialidades da
linguagem que inserem o leitor num jogo.
Para a ficção, há um jogo fundamental entre autor e leitor, pois a
criatividade transita entre esses dois agentes da significação da obra. O
autor lança mão do poético para a construção do universo ficcional, ao
passo que o leitor deve captar a presença da poesia por meio de sua
sensibilidade.
22
O cronista conquista nossa cumplicidade. Sua proposta consiste em
inserir-nos num episódio circunstancial, que se transforma em campo de
experiência que ensina, comove e deleita, assim como quer a literatura em
geral. A partir de então, somos compelidos a ver para além da aparente
superficialidade. O mundo concreto, tão próximo, tão desgastadamente
conhecido, sublima-se pela poesia e pelo poder da reinvenção. É esse o
poder que nos fará superar a brevidade do factual, captando as verdades
universais sutilmente representadas.
Tal fenômeno não se dá pela materialização do texto em diferentes
veículos, a questão está na sua recepção. O leitor apressado está
interessado nas notícias diárias que, com o passar do tempo, não mais
despertam sua sensibilidade. Já o leitor que se volta para o texto à procura
de algo que ultrapasse a instantaneidade do presente , terá uma experiência
mais ampla e mais prazerosa.
Desconsiderando a questão do caráter venal em torno do qual se
organizaram as mídias, compreendemos o papel da crônica também por
meio da estética da recepção, concebida por Hans Robert Jauss (2000). A
experiência estética só será concebida quando houver um acordo entre o
receptor e o texto, um pacto que promova a aceitação do novo universo
proposto pelo autor.
A crônica deixou a função de informar, que lhe fora atribuída, para
divertir, elevar e promover a reflexão. Cândido diz que a linguagem desse
gênero tornou-se mais leve, descompromissada, uma vez que leveza, toque
de gratuidade e poeticidade transformaram-na, segundo o crítico, num
“produto sui generis do jornalismo literário” (1992, p. 16).
Na produção cronística, há uma tentativa de eternizar o episódico,
assegurar uma esperança de duração. Em Deste Mundo e do Outro (1986),
Saramago definira a crônica como ponte que se projeta no espaço vazio em
busca de solo firme, e lança a pergunta: Crônicas são “pretextos, ou
testemunhos?”.
Se pretextos, elas escondem em si a densidade da vida e querem
significar muito mais do que sugere a aparente superficialidade; se
testemunhos, procuram o individual para elevá-lo à experiência coletiva.
23
Seriam assim tradutoras da condição humana. Essa seria, portanto, uma
pergunta de difícil resposta.
O texto cronístico supera o tempo e o espaço, por isso, pode ser
uma “viagem”, na qual o autor traz suas lembranças e reflexões. A
“bagagem” do escritor é dividida com os leitores, que são também muito
especiais, pois finalizam a obra e lhe dão sentido sempre ampliado.
A crônica se constitui como uma densa nuvem que, em meio à
viagem sob o sol causticante, passa sobre nós rapidamente, mas o
suficiente para amenizar o cansaço e nos resgatar o vigor, uma vez que o
caráter mais significativo desse gênero literário é a qualidade das imagens
que cria, unindo sutileza e compacidade.
1.3. – A crônica em Saramago: um novo olhar perante a História
Como um dos ícones da proposta pós-moderna para a criação
literária, José Saramago é um alquimista da linguagem. Ele consegue
resgatar em seu romance LC a oralidade, o canto-coral e os discursos
histórico, religioso e social que, reunidos ao lirismo reflexivo próprio da
crônica, dão origem a uma nova realidade ficcional. Entenda-se aqui o
lirismo reflexivo como subjetivismo poético que proporciona ao leitor o
retorno do pensamento para si mesmo; um fazer poético que traz em sua
urdidura os fios da reflexão acerca da vida. No caso das crônicas
selecionadas para este trabalho, o que é individual se torna experiência de
todos.
As crônicas saramaguianas superam a autobiografia, o historicismo
ou o simples registro do tempo com linguagem peculiar e sempre
questionadora. Isabel Moutinho, em “A crônica segundo José Saramago”,
considera as crônicas do autor como um ensaio tanto para a temática como
para os procedimentos estilísticos que surgirão em sua prosa.
Com ela concorda o estudo de Adriana Alves de Paula Martins, o
qual apresenta as crônicas saramaguianas como “uma viagem pela oficina
do romance”. Nesse ensaio, publicado na Revista Colóquio/Letras em
24
janeiro de 1999, encontramos a definição “laboratórios de aprendizagem
narrativa”, no qual a brevidade e efemeridade do jornalismo unem-se à
valorização do sujeito da escrita para resultar nos primeiros traços da escrita
romanesca de Saramago: o olhar atento àquilo que a História Oficial julga
ser banalidades da vida.
Em Saramago, as características do texto cronístico – brevidade,
contenção, concentração, concisão e digreção – resumem-se numa atitude:
olhar. O movimento história-ficção ganha novas perspectivas desde as
crônicas do autor até seus consagrados romances. É esse o motivo que os
faz serem “oficinas”, ou seja, textos que antecipam o estilo de escrita.
O projeto literário de Saramago desabrocha em suas crônicas.
Talvez, com esse pensamento, tenhamos a ousadia de abrir ressalvas no
que afirma Antônio Cândido acerca da crônica: não é um gênero maior, nela
não há o brilho dos grandes romancistas”; entretanto, tal afirmação vem ao
encontro do que pensamos quando o teórico e critico literário desabafa:
“Graças a Deus, ela fica perto de nós” (p.13).
A crônica se aproxima de nós quando nos desperta para a
experiência cotidiana trazendo o fato, ou a própria História Oficial, de modo
mais acessível à nossa reflexão e sensibilidade. Ela é um ponto de
confluência entre lirismo e reflexão, cujo desencadeador é o simples
“pretexto”, o embrião da escrita romanesca em Saramago. O autor de LC
continuará a olhar para a história como o cronista, buscando recontá-la com
o que geralmente a humanidade deixa escapar.
Na crônica “Retrato de antepassados”, o próprio autor conversa com
o leitor, num tom descontraído e informal, acerca de uma prática constante
das gerações: a de procurar em suas origens uma vaidade para a sua
existência. A árvore genealógica, cuja tradição prefere nomes nobres em
sua composição, na concepção do autor, é substituída por fatos corriqueiros,
aparentemente banais, que assumem, em sua narrativa, grandeza e
profundidade reflexiva.
Essa voz que ouvimos a expressar o pensamento sobre os
antepassados diz: “Por mim, nada me incomoda saber que para lá da
terceira geração reinam as trevas completas” (BV, p. 9). Para o cronista,
cada geração tem sua própria história, sem nada contribuir com o passado,
25
e sem que este lhe venha intervir. Para reconhecer a genealogia, basta
atentarmos para a vida, procurarmos os pequenos fatos que envolveram
nossos antecessores, como se tivéssemos consciência de que não importa
reconhecer o contexto histórico da época, pois as gerações são
espontâneas, não têm a responsabilidade da escolha.
Após revelar o que pensa da prática “necrófita” de pesquisar o
passado e de revelar certo desprezo a tal curiosidade, Saramago nos mostra
o que lhe apraz no passado. O autor transforma a reflexão individual acerca
da história de suas origens em experiência coletiva: a figura exótica do
bisavô afrodescendente, as banalidades acerca da lua de mel dos avós, uma
simples foto de seus pais parecem ter muito mais a dizer que a história de
importantes linhagens. A curiosidade em saber algo acerca dos que foram
antes de nós deve ultrapassar a superficial “curiosidade” que procura
vaidade, autoafirmação ou aceitação social, mais vale conhecer sua
singeleza.
Pormenores corriqueiros, tão íntimos do autor, passam a ser
relatados com aparente superficialidade, no entanto conferem a grandeza do
que se deve realmente considerar do passado. “Nada disso tem importância,
a não ser para mim”, diz o viajante
4
que, diante de sua árvore genealógica,
reconhece a relevância da sua história não poderia ser melhor. Na
simplicidade de nossas origens, nos detalhes e fatos corriqueiros
encontramos a fonte de toda cultura que herdamos, e nada mais importa.
O cronista Saramago ainda se volta para o passado em outra de suas
publicações. A reflexão acerca de datas históricas costuma trazer à memória
nomes e fatos conhecidos, além de reacender a curiosidade investigativa.
Essa é a postura do autor em “As memórias alheias”.
Nessa crônica, Saramago confessa um antigo interesse em conhecer
fatos e pessoas que preencheram o cenário social no início do século XX. A
procura de respostas para inúmeras questões individuais acerca do tempo
presente despertou sua curiosidade e motivou-o para um trabalho de
historiador. Logo desistiu, uma vez que a pesquisa exaustiva não lhe
4
Alusão ao título A Bagagem do Viajante, obra que apresenta uma seleção de crônicas
produzidas pelo autor durante suas atividades jornalísticas nos periódicos A Capital (1969) e
Jornal do Fundão (1971). Entendemos que, nessas crônicas, o narrador divide suas
experiências – sua bagagem – com o leitor.
26
proporcionou mais que a reunião de documentos, os quais foram dispersos
ao longo de 20 anos.
Na data comemorativa da Proclamação da República em Portugal, 5
de outubro, o autor retoma o trabalho anterior, agora consciente de que a
resposta, “o segredo” pode estar em qualquer parte.
Folheia relatórios, registros diversos e folhetos cujas anotações
trazem nomes e fatos conhecidos da História. Ao percorrer as páginas,
interessa-se por um item deixado ao esquecimento, a “Relação de mortos e
feridos durante a Revolução”.
A leitura deste documento histórico causa-lhe admiração e certa
revolta, o cronista-historiador constata que o número de mortos não coincide
com o que a História Oficial tornou conhecido, número esse muito inferior à
realidade.
Na lista, há 440 nomes, alguns poucos são familiares, por
constituírem nome de avenidas conhecidas, sem que alguém se dê conta
disso. A avenida 24 de Julho, por exemplo, representa um fato importante
para a nação portuguesa, a Guerra Civil, poucos reconheceriam hoje o valor
que ela teve no passado. Saramago, então, concorda com o que diz Edgar
Poe, “aquele polícia amador”: “não [há] melhor modo de se esconder alguma
coisa que tê-la bem a vista” (BV, p. 127).
Percorrendo a lista dos nomes, o autor chama a atenção para a gama
de profissões populares arroladas no documento encontrado: soldados,
marinheiros, carpinteiros, entre outras, até se deparar com o número 399:
“Desconhecido”, morto por arma de fogo. Nesse momento, o autor expressa
seu sentimento de fracasso como historiador. Jamais poderia saber algo a
respeito desse “anônimo português” e sua contribuição na história, portanto,
a verdadeira história jamais será rememorada.
O anônimo português de “As memórias alheias” (BV, p. 125) revela a
importância que Saramago dá às minúcias que a História Oficial costuma
desprezar. A lacuna por ela deixada jamais será preenchida se as vozes
desses anônimos não forem ouvidas. Documentos considerados menores
pelos registros históricos teriam muito que contar, as banalidades de uma
revolução poderiam nos fornecer muito mais que dados estatísticos,
pormenores a que somente o cronista poderia recorrer com tanta magnitude.
27
Isso não significa a mera sublimação do povo, dos marginalizados,
dos esquecidos, ou o simples exercício da história contada do ponto de vista
dos dominados. É a preocupação em recuperar a essência que se deixa
escapar por entre os dedos da agitada vida moderna, por meio de um olhar
mais crítico, mais observador.
A mesma importância dada aos detalhes, àquilo que apresenta
aparente superficialidade, aos fatos considerados banais e que se perderam
com o passar do tempo, acompanha outro texto do autor. Em “Com os olhos
no chão”, até o céu é visto em outra perspectiva: o pintor se esquece do
tradicional aspecto do objeto e começa a criar o próprio universo, onde o céu
é “feito de rosa e amarelo em partes iguais”. O trecho narrativo representa o
momento de criação, quando o “nada” existe e “o tempo não começou, os
homens são mudos, os nomes não existem, a linguagem está por inventar”
(BV, p. 189).
Nesse texto, o narrador acompanha o trabalho do pintor em seu
processo de criação e descreve seu olhar que se curva cada vez mais em
direção ao solo. São olhos que descem, afundam, buscam a origem de tudo:
a terra. Nessa busca, o mínimo gesto do pintor e ilustrador alemão Albrecht
Dürer traduz muito mais da obra que a simples inscrição de seu nome na
tela.
A descrição pormenorizada presentifica o objeto, o qual é recriado
na aquarela de Dürer, e novamente nas palavras do cronista José
Saramago. Esse acompanha o momento de criação, o olhar que desce,
afunda-se mais e mais, o trabalho minucioso que se concentra no solo. Com
as palavras, é possível tocá-lo, sentir o aroma e o calor que dele emanam. A
leveza dos movimentos da mão do pintor também é retomada até seu último
gesto: a assinatura:
Entretanto os olhos cerram-se cansados, a mão suspende o último
gesto e, depois, enquanto as pálpebras voltam a abrir-se, o pincel
desce devagar e depõe no lugar predestinado uma levíssima
camada de tinta, quase invisível, mas sem a qual todo o trabalho
teria sido falso e inútil. (BV, p.191)
28
O reconhecimento dessa obra de arte pelo cronista não parte do
nome inscrito na tela. Seu maior valor está no momento da criação, quando
o “nada” toma forma por meio do olhar atento, o qual se traduz no “gesto
entendedor do mundo (BV, p. 189).
Se a Literatura preserva esse poder de perpetuação cultural, é porque
exige um outro olhar, longe das convenções, sem tradições, nada
preconcebido. Esse é o comportamento do autor na crônica “Com os olhos
no chão”.
Tudo antes é vazio, sem linguagem, sem movimento, o tempo não
existe. O pintor dará origem às formas de acordo com seu olhar. A aquarela
de Albrecht Dürer é descrita com “palavras mortas”, “com os olhos no chão”
e o que sobressai à imagem são as raízes, os vegetais, caules, folhas
rasteiras, minúsculas e gramíneas, a flor ao chão, frestas, pequeninos
pontos amarelos que são flores. Até mesmo a fermentação do solo é
captada nessa contemplação (BV, p.189).
“Nada mais vivo” – diz o viajante (BV, p.191). E nada mais vivo que
atentar às minúcias da vida e deixar as formalidades que tanto nos sufocam
e nos fazem perder o instante, nele está a grandeza a ser contemplada.
1.4. – Do transitório à perenidade: o universo chamado romance
No contexto medieval, o romance, termo originário de romanço, que
designa uma forma popular do latim, era uma composição popular que
contava histórias cheias de imaginação. Apenas em meados do século XVIII
é que o termo passa a designar o gênero literário que hoje conhecemos,
estreitamente ligado à formação de uma nova ordem social e ao próprio
movimento romântico.
No século XX, o gênero sofre transformações, explora novas
experiências e modifica a sua estrutura. Mikhail Bakhtin, teórico russo, não
reconhece o romance como um simples gênero literário. Nos estudos de
Michael Holquist (1998) sobre Bakhtin, o gênero romance é uma espécie de
“fora-da-lei epistemológico”, cuja força é denominada como “romancidade” e
revela a capacidade de “minar a cultura oficial de qualquer sociedade” (p.
29
293), além de ser indicador mais sensível das suposições mais entranhadas
de uma sociedade” (p.310). Bakhtin reconhecia que as diferentes relações
entre tempo, espaço e linguagem permitidas pelo romance contribuíram para
a evolução do gênero, haja vista que, segundo o teórico, todas as outras
linguagens cabem no romance, conforme afirma o teórico.
O romance constrói um universo capaz de estabelecer uma nova
mentalidade sobre o que a humanidade já experimentou, criando, assim,
possibilidades de novas descobertas e transformações. O gênero pode
minar a cultura porque possui a força da vida; ele impulsiona o homem à
experimentação.
De acordo com a importância dada à personagem ou à ação, ou
ao espaço, o romance pode ser de costumes, psicológico, policial,
regionalista, histórico, urbano, entre outros. Muito mais que uma
classificação de intenções didáticas, os gêneros são índices do pensamento
humano em cada época.
Assim como na crônica, ou em qualquer universo ficcional, há a
proposição de um novo universo no qual nos inserimos por meio do jogo
autor – leitor.
“Grande rede” é a definição que o escritor e crítico literário Ítalo
Calvino (1990) atribui ao gênero. O autor se vale dos estudos bakthinianos
para explicitar a força centrífuga, centrípeta, plural e polifônica do romance,
força responsável pela propriedade de correlacionar uma infinidade de
sistemas e significações.
Sua força atrai, repele, amalgama as mais diversas estruturas e
linguagens, havendo um eixo, ou variados núcleos que se entroncam.
Calvino nos chama a atenção para a aproximação entre o gênero
romanesco e o mundo, por meio de correlações que procuram abarcar o
todo da existência humana. Para o ficcionista e critico italiano, o romance é
resultado dessa teia crescente, característica que faz do gênero uma
composição inacabada. Para compreender o mundo, basta deixar-se
envolver na rede, diz Calvino.
No romance, há espaço para a apreensão do mundo sensível por
meio das diversas linguagens que se movimentam para a representação de
métodos interpretativos, maneiras de pensar, novos estilos de expressão. De
30
forma semelhante, Calvino escolheu o gênero como “passível de ser
considerado a introdução mais completa à cultura de nosso século” (p. 130).
Podemos entender essa propriedade do romance como um sistema
que abarca outros sistemas. Assim é compreendido o próprio mundo, “um
sistema de sistemas”, diz Calvino (1990, p. 121), cada um deles
condicionando os demais e sendo condicionado por eles.
Para Calvino (1990), o romance é ainda “rede que concatena todas as
coisas” (p. 126), pois consegue multiplicar as relações espaço - temporais.
Nem mesmo o tempo e o espaço escapam à “rede dos possíveis, rede
crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos” (p.
134). Bakhtin vale-se da correlação tempo-espaço na compreensão das
“forças centrípetas e centrífugas” que lutam nas manifestações lingüísticas
representantes de uma determinada cultura. A unidade criada pelo teórico
russo para os estudos das relações entre espaço/tempo no texto, o
cronótopo, revela que a realidade externa é moldada pelas diferentes
combinações entre esses dois elementos. Sua articulação serve como ponte
entre dois mundos: o real – assim chamado para denotar fonte de
representação – e o representado.
O cronótopo não define apenas o gênero da obra, ele transpõe a
linguagem textual para ser uma imagem do homem na literatura. Assim, o
“tempo de aventura” concentra o elemento tempo/espaço nos esforços de
amantes desde a paixão até a sua união efetiva, únicos eventos principais
do enredo. O “tempo da vida cotidiana” ocupa-se do individual, das
hierarquias sociais e suas relações, ele marca a trajetória individual rumo à
mitificação das formas, e acaba por criar um espaço outro, que não o físico.
Essa correlação permite que se insira a vida cotidiana e sua efemeridade na
literatura. O “tempo biográfico” pode envolver a história familiar ou de
indivíduos, cujo protagonismo ou ponto de vista são exteriores ao destino
definido pelos eventos.
Calvino (1990) vê o gênero romance também como “método de
conhecimento” dotado de um certo “enciclopedismo” (p. 122). O romance
não quer esgotar em si o conhecimento, é uma “enciclopédia aberta”
conforme a teoria calvinista (p. 132. A arte, nesse sentido, é uma porta de
acesso ao conhecimento e à própria vida.
31
Em LC, o leitor pode vivenciar os argumentos de Calvino. O trabalho
rural, por exemplo, só é compreendido pela minuciosidade com que o
narrador descreve as tarefas do latifúndio. Vejamos o romance:
Que os trabalhos de homens são muitos. Já ficaram ditos alguns e
outros agora se acrescentam para a ilustração geral, que as pessoas
da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher,
pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras
todas e a entender o que elas são, ceifar, carregar molhos, gadanhar,
debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar palheiro,
enfadar a palha ou o feno, malhar o milho, desmontar, espalhar o
adubo, semear cereais, lavrar, cortar, arrotear, cavar o milho, tapar as
craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear, abrir as covatas
para estrume ou bacelo, abris valas, enxertar as vinhas, tapar a
enxertia, sulfatar, carregar as uvas, trabalhar nas adegas, trabalhar
nas hortas, cavar a terra para os legumes, varejar a azeitona,
trabalhar nos lagares de azeite, tirar cortiça, tosquiar o gado,
trabalhar em poços, trabalhar em brocas e barrancos, chacotar a
lenha, rechegar, enfornar, terrear, empoar e ensacar, o que aqui vai,
santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos,
bem-aventurados os que trabalham, e que faria então se nos
puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época,
os instrumentos, os apeiros, e se é obra para homem ou para mulher
e porquê. (LC, p. 90). própria, se coloca como uma presença. (p. 63)
Há uma preocupação, por parte do narrador, de que o leitor
compreenda bem as máquinas que chegaram ao latifundio, mudando seu
cenário. A debulhadora tem seu nome justificado, por meio da atividade que
desempenha: “Palha para um lado, cereal para outro. Vista de fora, é uma
grande caixa de madeira sobre rodas de ferro, ligada por uma correia a um
motor que trepida...” (LC, p. 99 – 100).
Quando o crítico italiano diz “romance-enciclopédia”, não se refere a
um estilo à parte. Ele quer dizer que o romance é encliclopédico a medida
que contém o universo e o vácuo, que sugere competências em cada ramo
do saber.
Nesse caso, o romance pode recorrer a outros gêneros. Segundo
o que propõem Bakhtin, o romance permite a introdução de diferentes
32
gêneros em sua estrutura, os quais, mesmo inseridos no sistema
romanesco, não perdem sua essência estrutural, não obstante, passam a
exercer um “papel estrutural” como formas de se assimilar a realidade, das
quais o romance lança mão para representá-la (1988, p.124). Os novos
gêneros arrolados no romance introduzem nele as suas linguagens, então a
rede defendida por Calvino se confirma.
Os termos ou expressões como: “visão de mundo”, “rede”, “raio
X”, “força” antinômica de atração e repulsão, “enciclopedismo”, “sistema de
sistemas” são adjuntos do romance explorados em Bakhtn e Calvino –
lembrando que esse segundo vai beber às fontes do primeiro. Essas
designações afirmam a hibridização dos gêneros literários, fenômeno
passível de instauração, principalmente no romance.
Até mesmo a escrita breve, como a da crônica, por exemplo, pode
ser confirmada pela estrutura acumulativa do romance, graças à sua forma
inacabada, multíplice e acumulativa, que permite a inserção de novas
expressões. As inúmeras correlações romanescas não podem esgotar todo
o conhecimento, todas as categorias temáticas, todo o self, conforme o
pensamento calvinista, tais aspectos criam no gênero romance sempre uma
esperança do porvir, que conduz à perenidade.
33
II. LEVANTADO DO CHÃO: UM ROMANCE DE HISTÓRIA E
HISTÓRAS
“Mas tudo isso pode ser contado de outra maneira.”
(SARAMAGO, 1980, p. 14)
2.1. O contexto histórico de Levantado do Chão
Há quem classifique os romances que fazem alusão a fatos
conhecidos da História Geral como romances históricos. Cremos que esta
seja uma classificação atribuída com intuito ilustrativo, pois a História não é
o fim último do romance, sua composição ficcional cria, a partir do histórico,
um universo independente.
Não obstante, encontramos estudos que concebem o chamado
romance histórico como “espaço dialético de enriquecimento pessoal e
coletivo”; uma “encruzilhada de reflexões, de sentimentos, de esperanças e
sonhos” (BERRINI, 1998, p.30). Outros autores consideram o romance
histórico como idealização da História no sentido da predominância da
emoção sobre a razão, como muitas obras do período romântico.
A crítica classificou o romance LC como “romance histórico numa de
suas formas possíveis, contaminada de saga e crônica”, segundo revelou
Maria Lúcia Lepecki (1981), além de considerá-lo também um romance
político por expressar com entusiasmo as mudanças sociais e políticas a que
se aspirava com o advento de 25 de Abril. Em 1996, Saramago declara em
entrevista ao jornal O Globo que “o romance é uma imagem pálida do
mundo em que de fato vivemos”, diferenciando realidade e ficção; a
revisitação do passado histórico e a militância política não estão em primeiro
plano no romance saramaguiano.
O gênero, de teor social, relembra as obras realistas pela observação
crítica e reflexiva, pela fina ironia com que articula o discurso das
instituições, pela arte engajada que dá voz aos oprimidos, injustiçados,
34
marginalizados, às mulheres, enfim, ao povo. Entretanto, o romance difere
dos ideais filosóficos adotados pelo realismo do século XIX. O Positivismo
de Auguste Comte, o Determinismo de Hipólito Taine, as teorias
evolucionistas de Darwin dão lugar ao povo, em cujas mãos crispadas pelo
trabalho está o poder de transformação social.
O projeto arquitetônico de LC atribui ao povo uma força que vai além
da ascensão e chega ao transcendental, quando “todos os vivos e os
mortos”, desta ou de outras gerações, passam a ser objeto de destaque e
atenção do narrador. Os enjeitados pela sociedade protagonizam a história
numa esfera de atemporalidade; isso se dá quando o narrador une as
gerações, as quais contribuíram para a formação do presente e dele
participam, anunciando um futuro promissor.
Segundo a crítica, LC (1980) forma, ao lado de Memorial do
Convento (1982), extraordinário monumento literário da ficção pós- 25 de
Abril. Ambos os romances podem ser considerados exemplares do
Neorrealismo, que se difunde em Portugal a partir de 1938.
O Neorrealismo surge em meio à crise de 1929. Sua proposta
aproxima-se ao relato ou ao documental, uma vez que, em seu universo
ficcional, se inserem elementos sociais e ideológicos; tal fusão alcança
abrangência e totalidade. A tipificação social, a linearidade narrativa, o
determinismo social e psicológico, a crítica aberta às autoridades
constituídas retomam a mentalidade realista do século XIX, porém essa
análise social vem, nos romances de 30, permeados de introspecção e
necessidade de dar voz aos marginalizados.
Isso nos faz lembrar a proposta de Alves Redol em seu primeiro
romance Gaibéus, publicado em 1939. Um “documentário humano” – assim
está definido o romance em sua epígrafe, que resgata a memória dos
trabalhadores das lezírias do Ribatejo, além de conservar a sua oralidade
peculiar.
O romance é documentário porque constitui o resultado de um
trabalho de campo que recolheu informações, inclusive técnicas, acerca das
atividades dos “gaibéus” nos arrozais. É humano porque, somado aos ideais
do autor, o romance “fixado no Ribatejo” quer, antes de tudo, recriar o
35
universo dos que se misturam à terra e reivindicam ao menos o direito ao
trabalho digno, apesar de serem vitimados pela exploração.
Citar esse autor pode parecer um desvio, porém fez-se necessário
para ilustrar a proximidade dos temas entre Saramago e os romances
neorrealistas de 30, além da compaixão e cumplicidade demonstradas para
com os trabalhadores rurais.
O que Saramago consegue em seu terceiro romance é, por meio de
um tema muito explorado no Realismo do século XIX e recorrente na história
da literatura, transportar-nos para além da observação empírica, na qual os
aspectos históricos ganhem novas cores ao tom da ficção e da poesia. O
que seria relevante apenas para a família Mau-Tempo se universaliza e se
torna o sonho de todos nós, que vivemos numa sociedade estratificada e
repleta de injustiças.
LC pode também ser classificado como romance neorrealista pela
aproximação temática e pela experiência que traduz. Há, porém uma
necessidade de se destacar o humanismo revelado pelo seu autor, o qual é
capaz, não só de observar, mas de ser voz e vida dessa gente que não
aparece na “história oficial” como protagonista, mas foi sempre coadjuvante,
representando um coletivo abrangente, cuja voz se perderia ao longo dos
séculos, não fosse o poder da literatura.
A crítica também atentou para os protagonistas dos romances
saramaguianos: os marginalizados, os pequenos, os socialmente ignorados,
os heróis campesinos que a História esqueceu. Em sua obra Ler Saramago:
o romance (1998), Beatriz Berrini se refere ao humanismo do autor como
manifestação do “amor pela criatura humana”, na medida em que ampara
em seu discurso todos esses excluídos e afirma ainda mais a batalha pela
justiça por meio da poesia, do humor e do otimismo (p. 223).
Saramago ultrapassa a visão classicizante de sociedade para elevar-
se à tradução da essência e consciência humanas, como demonstração de
simpatia para com os que lutam contra o processo de alienação. É uma
espécie de partidarismo, não político, mas que procura nas classes sociais
uma expressão da essência humana na qual a história do homem se
transforma em tradução do gênero humano e até mesmo o passado dessa
gente pode se tornar o “nosso” passado. Em LC, a experiência de uma
36
família, inserida numa determinada nação, em dada época, transcende a
realidade para ser experiência coletiva e permanente. Sob o ponto de vista
do autor, a relação entre o latifúndio e os camponeses sempre revelou uma
relação de opressão, tanto da parte dos latifundiários, como da cumplicidade
entre Igreja e Estado; a reação contra essas forças opressoras é
representada no ato metafórico do levantar-se do chão.
O autor não se sente satisfeito com a classificação “romance
histórico”, realizada por uma parte da crítica. Em sua concepção, tais obras
são “mirradamente” classificadas diante de um propósito maior – o de voltar-
se para o passado e extrair lirismo reflexivo diante do cotidiano de
personagens simples, cujas experiências passam despercebidas da vida
humana em sua grandeza (Folha de São Paulo, 1988).
O verdadeiro intuito de Saramago em seus romances alimentados
pela história não seria o preenchimento das lacunas deixadas pelo tempo
decorrido; antes, o autor visa a promover um olhar outro, descomprometido
com o que a História traz como oficial, afirmou Saramago na entrevista à
Folha de São Paulo.
Tais obras se alimentam da História, porém não se submetem a ela,
e, por meio da imaginação, atribuem-lhe nova perspectiva. O processo de
criação nesses romances não seria um retrocesso ou visitação ao passado,
mas a criação de fatos verossímeis, segundo o que já se conhece da história
e da própria vida.
Por muitas vezes, Saramago se manifestou acerca de seu projeto
para o romance LC. Em 1980, ano de publicação da obra, o autor confessa
seu desejo: que esse seja um “testemunho”, um “simples artefato
arqueológico”, obsoleto talvez, ou “registro para memória coletiva”; que
algum valor literário nele se encontre, ou, suficientemente, seja lido. O autor
intentou “contá-lo” de modo a reinventar a realidade em cada momento, num
tom de espontaneidade e oralidade (Diário de Lisboa, 1980).
A obra foi escrita em dois períodos. O primeiro compreendeu dois dias
e foi responsável pelas quatro páginas iniciais, as quais abarcam a descrição
da terra e a organização social do latifúndio; o outro período levou alguns
meses e foi fruto de testemunhos reais e da experiência sensível, superando
as expectativas de Saramago. Segundo o jornalista Ernesto Sampaio, do
37
Diário de Lisboa, a obra não é propriamente jornalismo, é “literatura de
elevada expressão poética”.
O pórtico do romance LC é a descrição da paisagem com suas cores
e seus cheiros. Paisagem que o narrador descreve para preludiar a história,
a qual passa a ser contada “de outra maneira” (LC, p. 14).
A família de alentejanos que constitui a trama do romance tem origem
duvidosa. Há cinco séculos, uma moça fora violentada pelo rapaz “galhardo,
de pele branca e olhos azuis” que a vira na fonte (LC, p. 24). Ao longo dos
séculos, os traços germânicos são recorrentes, de Domingos Mau-Tempo e
Sara Conceição até a sua terceira geração.
O casal se une por meio da obrigatoriedade do casamento precedido
por uma gravidez, e numa cena que lembra a Sagrada Família (BASTAZIN,
2006, p. 136), homem, mulher e o pequeno filho estão em sua primeira
mudança, de Monte Lavre a São Cristóvão. Homem inconstante no trabalho
e nas decisões, sempre errante nos seus caminhos, Domingos Mau-Tempo
muda-se com a família de São Cristóvão à Torre da Galdanha, e depois
desta para Landeira, Santana do Mato, Terrafeiro, Afeiteira, Canha,
enquanto a família aumenta, com a chegada de outros filhos João Mau-
Tempo, Anselmo, Maria da Conceição e o pequeno que levara o nome de
seu pai, Domingos. Sara volta à casa de seu pai em Monte Lavre,
abandonando o marido, o qual dá cabo da própria vida.
A história de João Mau-Tempo muito traduz da vida precária dos
trabalhadores rurais, enquanto o latifúndio passa por Norberto, Lamberto,
Adalberto, Floriberto e muitos outros “Bertos” que exercem grande poder
junto às forças da guarda e da religião. Uma história de opressões, injustiças
e lutas inglórias, mas que revela o despertar de uma nova consciência nos
trabalhadores rurais que vão amadurecendo rumo a novos horizontes, onde
o trabalho seja farto e justo para todos.
Do amor proibido entre o jovem João Mau-Tempo e Faustina, nascem
António Mau-Tempo, Gracinda e Amélia. A cada geração, um prenúncio de
grandes mudanças: o pai da família é tido como grevista, pois se levanta
com um grupo de trabalhadores para exigir dignidade, apesar das prisões,
dos açoites e humilhações. O filho, António Mau-Tempo, vai para o serviço
38
militar, Gracinda casa-se com um companheiro de lutas do pai e se torna
uma mulher participativa na sociedade.
O papel da personagem feminina também se modifica. Cada vez
mais, a mulher participa e transforma a sociedade em que está inserida. Até
então, ela era resignada, permanecia calada, mas surge na História o
momento em que “não há o que segure essas mulheres” (LC, p. 310). Em
contrapartida, os representantes do poder, que, no início do romance, têm
todo o domínio sobre o latifúndio e sua “gente miúda”, no decorrer da
narrativa perdem força e caminham para uma trajetória oposta à dos
trabalhadores rurais. Enquanto os homens do campo se manifestam
ocupando as terras para reivindicar trabalho e assim reúnem forças contra a
exploração, os latifundiários recebem as “más notícias” e a guarda “está com
as mãos atadas” (LC, p. 361-62).
O clã segue sempre o ciclo da vida: levantar, ceifar, comer, trabalhar
de sol a sol e também à noite, porém seus participantes são chamados pelo
narrador de “formigas que se levantam como cães” (LC, p. 170), uma vez
que, mesmo destinados ao trabalho, reconhecerão seus direitos em relação
à terra a cada geração. A história das searas parece se repetir, mas,
segundo o próprio narrador há sutis diferenças que ele vê e se lastima por
não poder contá-las.
Maria Adelaide, filha de Manuel Espada e Gracinda Mau-Tempo,
nasce num período em que se anseia pela Liberdade. Herdeira dos “olhos
azuis intensos e brilhantes” do avô (LC, p. 295), aos sete anos já
compreende bem a vida no latifúndio e aos dezenove, “está de nariz
levantado, curiosa, parece uma lebre que cheirou jornal, a primeira a sair,
dona de sua liberdade” (LC, p. 350). Maria Adelaide participa das mudanças
de seu tempo, entende o significado do Primeiro de Maio; a propósito, “Maio
é mês das flores” (LC, p. 193). Era maio quando seus bisavós se
encontraram; é o mês em que a menina se dirige à mesma fonte de seus
ancestrais, mas, agora, só com o colo coberto de flores, representando a
mudança que prenuncia os novos tempos.
Os olhos azuis, vindos da Germânia, se repetem, ficam mais intensos
a cada geração. Os Mau-Tempo não podem negar suas origens nem a
herança que receberam, mas são capazes de transformar a História e, com
39
o passar do tempo, adquirir a consciência de que são seus agentes
modificadores.
Os “olhos mais azuis do mundo” pertencem a Maria Adelaide, a
geração que caminhará para grandes mudanças. Seu avô João Mau-Tempo
não nascera em período de grandes expectativas para a mudança, seu
horizonte eracurto” (LC, p. 25), embora também fosse agraciado pelos
mesmos olhos azuis.
No contexto histórico, a obra apresenta muitos episódios reconhecidos
pela História Oficial, como as histórias das épocas bárbaras, no século XV
(LC, p. 35); a Guerra na Europa e na África (LC, p. 47, p. 56); a luta contra o
comunismo moscovita liderada por Salazar (LC, p. 93 – 4), as histórias dos
séculos XVII e XIX (LC, p. 117); a manifestação pública em Montemor em 23
de Julho – ocasião da morte de José Adelino dos Santos, a quem também o
autor dedica sua obra (LC, p. 313); a Revolução dos Cravos (LC, p. 353) e a
livre comemoração do Primeiro de Maio (LC, p. 355). Entretanto, LC é uma
das obras na qual a ficção “reinventa” a História, ou confere a essa última o
título de “ficção”.
Tais fatos históricos não constituem o arcabouço do romance, pois
são transformados em pretextos para que a família alentejana dos Mau-
Tempo, junto à comunidade em que está inserida, possa recriar o passado
da família portuguesa por meio de suas vivências e das histórias contadas e
ouvidas ao longo de quatro gerações. Dessa forma, há uma inversão: os
fatos cotidianos, considerados banais para a memória civil - que é seletiva,
são elevados ao primeiro plano; a História Oficial assume valor referencial
de determinado momento histórico considerado marcante, decisivo.
O que é abjeto na seleção dos fatos e feitos notáveis que merece ser
relembrado pela posteridade é justamente o cerne que irá medrar o enredo
desse romance. A obra pretendia “ser o Alentejo”, mas, reconhecendo sua
pequenez diante da vida, contenta-se em ser “um livro sobre o Alentejo”,
consoante a apresentação escrita pelo próprio autor, registrada na
contracapa dos exemplares da obra. Esse exercício instaura a crônica no
romance, assunto de que trataremos mais adiante.
40
2.2. O material histórico em Saramago
O jornalista Leodegário Filho interpreta a obra de José Saramago
como “releitura de episódios históricos extraindo deles efeitos cômicos, ou
parodísticos, com a inserção de episódios ficcionais, que dão rumo à própria
história” (O Estado de São Paulo, 1991). Nesse artigo, o jornalista apresenta
o romance saramaguiano como “ficção neorromântica”, no sentido da
idealização da história onde predomina a emoção sobre a razão, além de
tomar a obra como ponto de encontro entre a “crítica da cultura e a própria
história”, espaço que dá vida nova ao passado para gerar uma visão crítica
sobre o mesmo. A visão de Leodegário sobre os chamados “romances
históricos” está fundamentada na “reinvenção da história”. Reinvenção
porque, segundo o jornalista, tais obras preenchem lacunas, releem a
história e lhe dão novo rumo, graças à literatura como “representação” –
pensamento que se opõem ao de Saramago.
Já mencionamos, no início desse capítulo, que o autor não intenta
sanar dúvidas ou preencher lacunas. Seu propósito é promover um novo
olhar, sem paradigmas. Voltado para o passado, Saramago prefere substituir
a palavra “história” por “passado”, segundo ele mesmo manifestou em
entrevista à Folha de São Paulo (1988).
No aspecto semântico, uma palavra implica a outra, no entanto,
quando empregamos o termo “passado”, retiramos dos fatos o aspecto de
registro oficial, portanto o único passível de aceitação. Pode-se explicar a
História dos antepassados compreendendo-a sob duas perspectivas: como
conjunto de acontecimentos e situações informados pela tradição oral, ou
pelos registros conhecidos como documentos históricos, que seria a
organização de todas as informações executadas sob determinado ponto de
vista. Ambas abordagens têm o seu valor, no entanto, LC recorre à tradição
oral para desenvolver a sua história.
A ideia de passado que Saramago oferece desconstrói a crítica de
Leodegário, quando essa afirma que o autor de LC visita o passado para
criticá-lo. Em LC, o passado não é considerado com a convencional divisão
passado – presente – futuro, mas como consciência de que “cada dia é o dia
que é, mais o dia que foi, e que os dois juntos é que são o amanhã” (LC, p.
41
320). O tempo é resultado dessa junção e, em sua totalidade, está a
resposta do que somos hoje. Segundo Saramago, “nós transportamos o
passado” (Folha de São Paulo, 1988). Há um encontro entre crítica e
história, mas não voltado para o passado, pois entende-se que essa
visitação responde à formação da sociedade na qual estamos inseridos hoje.
Na primeira geração, as personagens apresentam atitudes
conformistas perante a organização da sociedade patriarcal. Na próxima,
inicia-se um questionamento acerca dessa organização social tão injusta.
Indagações levam os menos favorecidos a se manifestarem e esboçarem
indícios de uma grande mudança. A terceira geração é marcada pelas
greves, pela ação contra a opressão e a desigualdade. Mesmo massacrados
e, muitas vezes, penalizados, os trabalhadores rurais unem-se para a luta. A
última geração inscrita na narrativa prevê o surgimento de um novo tempo.
Há, então, uma retomada: todos, “vivos e mortos” participam deste momento
de ascese do qual o passado também participa efetivamente (LC, p. 366)
Aqui, as fronteiras entre passado e presente se desfazem. Cada um
constitui um todo da história e carrega consigo mais que reminiscências.
Somos todos responsáveis pela evolução da História: “Nós arrastamos o
passado para o futuro”, afirmou Saramago em debate sobre o papel do
romancista diante do passado (Folha de São Paulo, 1988).
Saramago retoma o intelectual alemão Walter Benjamin (1996)
considera “um encontro secreto entre as gerações precedentes e a nossa”: a
própria História (p. 223). O passado não pode ser alterado pelo presente,
mas o futuro sim, e ao falar do passado, Saramago está pensando no
momento presente. O leitor de LC, ao pactuar com o processo de criação e
participar do novo universo histórico, tem a consciência de que, neste jogo, o
que se pretende não é a visitação, mas uma retrospectiva que atente para o
que a História deixou para trás. O momento presente se torna momento de
experiência e descoberta, contrapondo-se a todos os conceitos herdados e
dogmatizados na existência humana.
Esse pacto faz do romance um ambiente propício para se olhar a
história, ou a própria vida, sem comprometimento com ideologias ou
tradições, uma vez que o autor volta ao passado, mas não adota o
pensamento da época.
42
A História Oficial nasceu da oralidade do relato, porém tem o seu
respeitado valor porque recebe certo apadrinhamento, algum nome
reconhecido que figure no relato, ou que ao menos assegure a sua
veracidade. Manuel Espada e Sigismundo Canastro conversam, mas não há
quem os apadrinhe, seu diálogo não merece, portanto, espaço nos registros
históricos (LC, p. 271). A História prefere as “informações rigorosas” (LC, p.
298), as quais, muitas vezes apresentam “desproporções risíveis”, segundo
o narrador do Alentejo.
As histórias dependem de quem as conta (LC, p. 285). Dificilmente
saberíamos dizer o que há de verdade ou mentira nas histórias das caçadas
de Antônio Mau-Tempo (LC, p. 284); do mesmo modo ocorre com a História,
pois deve haver um reconhecimento, uma aceitação por parte de quem as
ouve.
Para as histórias muito antigas, não há necessidade de exatidão, tanto
faz se forem dias ou séculos, elas conferem ao seu narrador a “liberdade de
pôr, tirar ou trocar” (LC, p. 281), de escolher a melhor palavra ou de
esquecê-la. Pela mesma liberdade, passam os relatos oficiais, estes têm
muito de subjetividade e parcialidade, como nas situações orais; a aceitação
é o que lhe confere autenticidade.
No mesmo debate organizado pela Folha de São Paulo em 1988, cujo
tema fora “Ficção como História, História como Ficção”, o autor esclarece
seu intento quanto ao tratamento do material histórico. A História Oficial “não
só funciona como ficção, ela é ficção”, uma vez que tudo o que nos foi
ensinado, e tudo o que selecionamos para ser de fato História, passa pela
subjetividade, haja vista que os fatos são registrados a partir de um
determinado ponto de vista, além de ser também subjetiva a escolha dos
acontecimentos que merecem destaque.
A História “oficializa” as experiências que julga relevantes, considera o
indivíduo segundo as estatísticas, exalta aqueles cujos nomes são mais
nobres e reconhecidos. Para ela, João Mau-Tempo seria um homem
simples, “natural e morador em Monte Lavre, de quarenta e quatro anos de
idade, filho de Domingos Mau-Tempo, sapateiro, e de Sara Conceição” (LC,
p. 241). Não compreenderíamos a importância da personagem, não fosse a
preocupação do narrador em apresentar-nos seus anseios. Para ele, “não
43
precisa de ser complicada a história, quanto mais simples melhor, mais se
acredita” (LC, p. 233).
Em Saramago, os fatos históricos não são negados, mas a maneira
de narrá-los modifica-lhes o sentido e promove reflexão acerca do que
somos e da sociedade que queremos. Para o autor, o romancista deve
indagar o passado no intuito de garantir a reflexão crítica sobre a questão da
modernidade. A maneira de ler e refletir sobre a "História Acreditada” deve
ser embutida nas brechas dos documentos históricos, e isso é um convite à
imaginação e à criação de um novo universo, onde tudo pode ser alterado.
Apropriando-nos desse pensamento, podemos confrontar com o que
apresenta Leodegário em seu artigo. Saramago questiona o mundo moderno
quando se volta para o passado. Porém, não quer esgotar o passado em si,
também não quer preencher suas lacunas, mas valer-se delas para dar asas
à imaginação e pensar o que a História pode ter omitido. Ele não se propõe
a representar o passado, antes, criará o novo, o não experimentado.
Diante do que propõe Saramago, não caberia dizer que em sua obra
há inserção de episódios ficcionais no conhecimento histórico. O que ocorre,
na verdade, é a transformação do referencial em criação poética por meio da
ficção. Imaginação e criatividade movimentam a produção textual, dando
novas formas ao que já concebemos como História – e que
compreendemos, adotando a visão de Saramago, também como ficção. Tal
concepção nos mostra a dualidade, não só do histórico, como da ficção: ela
pode ser um universo de negação a tudo o que herdamos e conhecemos,
determinamos ou a nós foi determinado e pode ser também um ponto de
confluência das minúcias dispersas da realidade.
Concordamos com o pensamento expresso no artigo em referência no
que diz respeito à reinvenção da História, entretanto entendemos que esta
ocorre quando o autor usa da poeticidade para prever o que possa ter
acontecido no passado. A reflexão humanista sobre a história do povo
português é transformada em discurso romanesco, no qual tudo é verossímil
e a imaginação é alimentada pela história. Saramago parte “do que
aconteceu”, como faria um historiador, para narrar o “que poderia ter
acontecido”, o que, segundo os princípios aristotélicos, seria ofício do poeta
(ARISTÓTELES, 2005, p.43).
44
Diferente da idealização proposta pelo jornalista. Nem mesmo o final
triunfante do romance LC representa a idealização da história, uma vez que
o ato de se levantar, do qual participam os vivos e os mortos, é a forma
metafórica de que o autor lança mão para mostrar a participação do passado
na formação do que somos e do que serão as próximas gerações. Aproximar
a obra ao romantismo seria afastá-la do seu propósito de recuperar as
experiências não registradas pela História.
O centro do romance, que confere ao gênero a denominação de
“histórico” tende a ser a própria temática ideológica, política ou religiosa,
caracterizando uma leitura inicialmente contaminada pelo que é exterior à
composição da obra. Vera Bastazin (2006), em sua obra Mito e Poética na
Literatura Contemporânea, nos alerta quanto à primazia da imanência do
texto em relação à questão dos temas. O leitor que se deixa guiar pela
imanência do texto tem a percepção da poesia, que é o próprio projeto
escritural da obra, seja por meio da articulação da linguagem, seja pela
caracterização das personagens (2006, p. 51).
No romance LC, há espaço também para as “histórias de ouvir” (LC,
p.125), de cuja veracidade a memória popular prefere não duvidar, segundo
diz o narrador do latifúndio. A lenda de José Gato, por exemplo: herói que,
apesar de maltês e salteador, representa a verdadeira justiça do latifúndio, à
maneira de um Robin Hood, alimenta as esperanças da personagem António
Mau-Tempo, quando esta segue para servir no quartel. Lembrando-se da
liberdade e domínio que a lenda atribui ao herói das tradições orais, o jovem
passa a sentir repulsa pela farda (LC, p. 199). A mesma lenda alimentará a
imaginação de seu pai, João Mau-Tempo, que em prisão, imaginava José
Gato surgindo para libertar os cativos (LC, p. 153).
O que a nós foi transmitido como História e o que ouvimos acerca do
passado motivam as transformações no presente. A história da luta do pai
contra o filho, a qual se deu unicamente para divertimento da guarda e
tomou seus protagonistas de violência e fúria, alimentou ainda mais a
manifestação dos trabalhadores rurais: “não somos homens se desta vez
não nos levantarmos do chão” (LC, p. 335 – 36). Durante muitos anos, essa
história fora um vergonhoso segredo entre pai e filho, todavia, para o
45
presente, tornou-se um caso contado para convencer trabalhadores
oprimidos a não curvarem a cerviz diante do opressor.
Outras histórias fazem parte dessa História do latifúndio, e muitos são
os narradores. A história do cão e da perdiz, contada por Sigismundo,
também deu sua contribuição (LC, p. 229). Os ouvintes permanecem
atentos, “ouvindo, digerindo”, e após a assertiva: “ainda lá estão esses dois”
(o cão e a perdiz), o público exclama em coro. Repetidas as histórias, mais
confiabilidade nelas haverá, como as que o povo conta sobre sonhos,
tesouros escondidos, avisos, essas coisas em que devemos “sempre
acreditar, mesmo quando inventadas” (LC, p. 84).
Também as histórias se repetem, o viver é feito de “palavras repetidas
e de repetidos gestos” (LC, p. 269), inclusive de histórias fundamentadas na
criatividade popular. Tais fatos se revestem de veracidade porque julgamos
serem contados por aqueles em quem depositamos nossa credibilidade, e
isso também prova a subjetividade da História, como ocorre com a “lenda”
do maltês José Gato: os casos que o envolvem valem mais porque Antônio
Mau-Tempo os testemunha do que pela “informação pitoresca” que a
Historia costuma registrar (LC, p. 191).
“Boa foi a do Marcelino, vou contar agora” (...) “Mas antes deste caso
ainda quero contar um outro” (...) “esquecia-me de dizer...” (LC, p. 130 –
131). Expressões como essas se distribuem ao longo da narrativa e nos dão
a sensação de estarmos sentados à volta do narrador para ouvi-las; tanto as
expressões como a ausência da pontuação que assinalam os diálogos,
característica da escrita saramaguiana, resgatam a forma oral da História.
A leitura de LC nos faz conceber a História como extensa rede de
histórias individuais. No romance, a ação narrativa se forma por meio das
experiências de cada personagem. Mesmo que haja certa “igualdade” entre
as histórias (p. 227), todas as personagens dão a sua contribuição para o
enredo, cada uma delas “seria uma história”, diz o narrador (LC, p. 218).
A História do latifúndio e sua organização político-social são
contadas a partir da junção e reorganização dos discursos característicos
das classes sociais que compõem o cenário alentejano: do Latifúndio; do
Estado; e da Igreja; e dos trabalhadores rurais, inseridos num contexto de
lutas e sofrimentos por uma vida digna. Todas as vozes são ouvidas nesse
46
testemunho de transformação social que também é parte constituinte dessa
multiplicidade e que, embora tardia, compensa as indignações do passado e
do presente.
2.3. A oralidade como agente transmissor da História: discurso, canto e
voz.
No jornal Zero Hora (1989), Saramago comenta sobre o seu estilo
de escrita: “Sem saber como, sem ter pensado nisso, começo a escrever
como se estivesse contando aquela história”. Este modo aparentemente
não-intencional de escrita confunde-se com a oralidade: o autor percebe-se
como aquele que conta, e o leitor como seu ouvinte: ”O que eu quero é que
o leitor ouça”, diz.
Para aproximar sua escrita ao ato de contar, restituindo-lhe a
oralidade, Saramago diz ter se transformado em um “narrador multiplicado”,
capaz de dizer e criar uma nova realidade. Não se trata de simples
transcrição fonética, tampouco de alcançar o pitoresco, o folclórico ou a cor
local. Seu projeto visa a alcançar as formas primitivas do romance: o “canto-
coral”, como ele mesmo afirma (1988).
Segundo o autor, o passado está na voz. Houve o tempo em que um
grito deu lugar à poesia e ao canto; as histórias transmitidas oralmente, nos
ajuntamentos de homens, passaram à solidão e ao silêncio da leitura
individual. No entanto, Saramago julga que a tendência da literatura
contemporânea é a volta à sua primeira forma: o canto narrativo, o canto-
coral (Folha de São Paulo, 1988). Importa resgatar a experiência coletiva e
as múltiplas vozes que se perderam com o passar dos tempos, e fazer do
romance um terreno para transformações.
O canto-coral traz um conjunto de vozes que, embora distintas pelo
timbre, tom e cadência, forma um arranjo harmonioso. Assim também, no
romance, percebemos muitas vozes que, mesmo diferentes, constroem uma
harmonia, cada uma mantendo suas particularidades. Cabe lembrar aqui
que voz não se limita apenas à sonoridade, como também à atuação do
intérprete.
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Encontramos na obra Regência Coral, do maestro Oscar Zander
(1979), diversas significações para o termo coral. Na Idade Média, estava
ligado ao canto gregoriano, o Cantus Choralis e o Cantus Planus. Com a
reforma religiosa, entendeu-se como canto-coral o canto entoado no
ajuntamento de religiosos para fins litúrgicos. No primeiro, temos um caráter
meditativo, introspectivo; no ajuntamento, os individuos aspiram à ligação do
homem com o infinito (p. 267). Chóros (ou kóros) – do grego antigo –
representava um conjunto de aspectos que, somados, alcançavam a poesia,
o canto e a dança, conforme os ideais do drama grego concebido por
Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.
O conceito que adotamos hoje de coral como estrutura a mais vozes
tem início no século XV, quando há o cuidado com a estruturação do coro, a
seleção das vozes, sua extensão e seus registros, além de considerar de
suma importância as atitudes individuais de cada cantor no coro.
A partir de então, entende-se que atitudes globais e individuais
estruturam o canto-coral. Cada cantor é responsável por seu desempenho,
ao mesmo tempo em que deve cuidar em seguir harmoniosamente os
demais que compõem a melodia. A composição do canto-coral pode ser
“homófona”, quando os acordes são justapostos, ou polifônica, caracterizada
pela liberdade e independência das vozes entre si. As vozes misturam-se,
entrelaçam-se e dialogam criando um ambiente musical altamente melódico.
Há também o cânone, quando as vozes iniciam o canto em uníssono e
avolumam-se, demarcando com exatidão suas diferenças. (1979, p. 272 –
80).
Cremos que o romance LC instaura-se como conto-coral polifônico,
uma vez que procura arrolar todas as vozes do latifúndio, articuladas
segundo os interesses das instituições desse universo e que, mesmo
dissonantes, entroncam-se, formam um todo heterogêneo: a História do
latifúndio, as sua melodia. O romance poderia também ser representado
pelo cânone, levando em conta diferentes nuanças entre as gerações da
família Mau-Tempo: no início as vozes do latifúndio se conformam; na
geração seguinte, avolumam-se e acentuam suas diferenças até se
projetarem para um final vitorioso.
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O “coro grego” também participa do romance LC, acompanhando a
tragédia marcada pela infância sofrida de João Mau-Tempo. Em todo o
latifúndio ouve-se uma “cantiga cantada em coro”, criando “a atmosfera
dramática propícia” ao momento vivido pela personagem (LC, p. 52). O
mesmo coro se faz ouvir nas manifestações em Montemor, dessa vez, seu
canto é capaz de calar o latifúndio (LC, p. 307).
Segundo Aristóteles, o papel do coro na composição da tragédia é
realçar a representação. Em Arte Poética (2005), o filósofo afirma ser a
quinta parte da tragédia o “principal condimento” do espetáculo (p.38). No
romance, o canto realça a indignação diante do trabalho infantil e,
posteriormente, o período de grande mudança.
No caso de LC, resgatam-se as vozes do latifúndio. Donos das terras,
lavradores e o poder da Igreja e do Estado se fazem ouvir na voz do
narrador que se torna próximo e distante, circunspecto e irônico,
complacente e impiedoso, conforme vai articulando os discursos das
personagens, fazendo do dia a dia da família Mau-Tempo a grande novidade
do nosso tempo e um modo diferente de se contar a História.
Tal projeto supera o aspecto escritural do texto. Os longos
parágrafos, a ausência de pontuação, o discurso indireto livre muito
contribuem para a construção da oralidade no texto escrito, porém a
presença do narrador é fator decisivo no projeto arquitetônico da obra.
Sua presença e relação com o leitor se fazem notar por um “nós” a
quem ele se refere: “Não cuidemos porém que todo o latifúndio está
cantando louvores à revolução.” (LC, p. 354). Há também o direcionamento
“vós”, incluindo-nos entre seus interlocutores: “Agora vede estas crianças, ou
esta, qualquer delas...” (LC, p. 185); os julgamentos que preveem a reação
do interlocutor: “Parece isto que nada tem que ver com o primeiro de Maio...”
(LC, p. 337); as expressões próprias das narrativas orais: “Já foi dito que...”
(LC, p. 64), “Eis que voa a guarda nacional...”, “Já lá vai adiante o esquadrão
da guarda...” (LC, p. 35). O narrador convida o leitor à vivenciar a narrativa:
“...depois se Maria Adelaide começar a chorar não se admirem, chorará
nesta mesma noite quando ouvir dizer na rádio, Viva Portugal...” (LC, p.
354). O leitor se torna ouvinte, e não está só - a forma pluralizada do verbo
49
admirar, “admirem”, indica: está em companhia dos demais, presentificados
nesse ato de ouvir o narrador.
A presença dessa entidade narrativa é decisiva na obra, uma vez
que lhe é atribuída uma responsabilidade maior: garantir a oralidade na obra
e aproximá-la ao ato de contar histórias. O narrador domina a história, tem
ciência dos pensamentos das personagens, e até o que escapa ao
conhecimento delas lhe é conhecido, como, por exemplo, a origem dos olhos
azuis, fato que a família Mau-Tempo desconhece: “Todas as famílias têm as
suas fábulas, algumas nem isso sabem, como estas dos Mau-Tempo, que
bem podem agradecer ao narrador “ (LC, p. 298).
É por meio da voz que a história do povo alentejano é transformada
em memória coletiva, não apenas a voz como fenômeno físico que se faz
presente no espaço, mas como “voz poética”. Essa divisão é compreendida
nos estudos do teórico medievalista Paul Zumthor (1993). Diz ele em sua
obra A Letra e a Voz, a literatura medieval: “Enquanto a voz cotidiana
dispersa as palavras no leito do tempo, a voz poética as reúne num instante
único – o da performance” (p. 139).
Performance implica o ato teatral. Por meio dela, o narrador se
posiciona, estabelecendo o relacionamento de um eu com o coletivo, não
apenas para garantir a função fática da linguagem, mas para concretizar
efetivamente o diálogo como fonte de “presença e saber” (p. 222).
Priorizando as formas orais de difusão das histórias, Zumthor atribui-
lhes dupla caracterização: são proféticas quando projetam o acontecimento,
são memória, quando o eternizam. A escritura, dado a sua apresentação
rígida, fixa, não poderia dar conta de substituir a oralidade como formadora
de memória, a saber, a própria voz poética. Não se entenda aqui voz como
mera produção humana de sons por meio do aparelho fonador; ou
poderíamos partir desse primeiro conceito para a compreensão da voz
poética.
Tal emissão de sons não pretende ser unicamente o fenômeno
físico, a voz tem intenção de significar. Nesse âmbito, a voz passa a contar
com outros elementos: além do fisiológico, a expressão do rosto e o gesto
dão significação aos sons e também caracterizam a voz no momento da
performance. Nesse aspecto, a voz alcança mais que a oralidade, ela
50
presentifica, dá conta da materialidade, de sua presença como corpo, dotado
de carnalidade. Na narração, a voz é física e simbólica e, somente aliada à
poesia, esta pode ser criadora de presença, conforme encontramos na
reunião de ensaios e entrevistas Escritura e Nomadismo, de Paul Zumthor
(2005):
A escrita se constitui numa linguagem segunda, os signos gráficos
remetem indiretamente a palavras vivas. Mas a voz ultrapassa a
língua; é mais ampla do que ela, mais rica (...) em alcance de
registro, em envergadura sonora, a voz ultrapassa em muito a gama
extremamente estreita dos efeitos gráficos que a língua utiliza. Assim,
a voz, utilizando a linguagem para dizer alguma coisa, se diz a si
própria, se coloca como uma presença. (p. 63)
A voz poética não quer ser inteligível, quer presentificar, ser corpo. É
certo que a literatura recupera a realidade, dialoga com a vida por meio da
ficção, denota a mimese, no entanto compreendemos que a literatura não se
instaura como mera cópia, antes apresenta um novo ser que procura
concretizar, incorporar o real por meio da teatralidade, da voz. Ao descrever
o casamento das personagens Gracinda Mau-Tempo e Manuel Espada, o
narrador confere a veracidade dos fatos pela presença: “Tenho-os diante
dos olhos” (LC, p. 217).
Quando pensamos em voz, nossa percepção ultrapassa a imanência
do texto para conceber a obra literária como envolvimento total na
performance. Zumthor esclarece a diferença entre obra e texto: a primeira
denota o conjunto dos fatores envolvidos no ato performático: elementos
sonoros, visuais, rítmicos e o próprio texto, que é o elemento legível formado
pela sequencia linguística (1993, p. 220). A literatura vai para além da
comunicação para ser objeto que preenche nossos vazios, nossos desvãos;
não quer falar do mundo, mas trazê-lo até nós como corpo tangível, por meio
da imaginação.
Em LC, resgata-se a História por intermédio tanto da voz do
narrador, como das vozes que compõem o latifúndio: da Igreja, da guarda,
dos latifundiários, dos trabalhadores rurais. Não a recuperam na forma
51
oficializada como a conhecemos hoje, todavia participam na criação do novo
universo que procura recuperar a performance destes que verdadeiramente
fizeram a História.
Concordamos com o que diz Saramago: “o passado está na voz”.
Para reaver o passado, há a necessidade de se recuperar o instante da
performance, sem o qual seria impossível alcançarmos a História em sua
totalidade. A tendência da literatura contemporânea de voltar à forma do
canto narrativo, de que nos fala o autor, implica a apreensão do mundo
sensível por meio do universo ficcional, performático e teatralizado, que se
envolve corporalmente com o leitor. Esse terreno de transformações que é o
romance se estende do ficcional para a realidade do leitor, modificando sua
visão de mundo e transferindo as experiências da ficção para a vida.
É por isso que romance e vida se confundem, a ponto de parecer-nos que o
movimento gerador do romance parte de fora para seu interior.
“Em Abril, falas mil” (LC, p. 332), afirma o narrador de LC, e como
muitas são as falas, “muitas são as vozes” (LC, p. 333). Nas falas, se
manifestam as vozes do latifúndio e, assim, a História do povo alentejano vai
sendo construída no romance. Além da voz do próprio narrador, no discurso
narrativo manifestam-se outras vozes. A voz da pátria, por exemplo, ressoa
na voz da personagem António Mau-Tempo: “...e então o oficial disse que ou
íamos comer ou dava voz de fogo, foi esta a voz da pátria...” (LC, p. 226).
O primado da narrativa em LC é o contar, conforme o narrador
anuncia nas páginas iniciais do romance. Sua movimentação fica totalmente
entregue à voz desse ser fictício, cujo discurso confunde-se com o das
próprias personagens. O discurso romanesco em LC é permeado pelo
“discurso de outrem na linguagem de outrem”, fenômeno a que o teórico
russo Mikhail Bakhtin (1988) chama de plurilinguismo (p. 127).
No plano do texto de LC, os discursos próprios das camadas sociais
que compõem o Alentejo são estilizados, deformados ou arrremedados pelo
narrador. Eles são articulados conforme as intenções de cada classe social
ou instituição, de modo que haja o apagamento das fronteiras:
Já lá vai adiante o esquadrão da guarda, amorosa filha desta república,
ainda os cavalos tremem e a espuma fica pelo ar em flocos repartida, e
52
agora passa-se à segunda fase do plano da batalha, é ir por montes e
montados em rusga e caça aos trabalhadores que andam incitando os
outros à rebelião e greve, deixando os trabalhos agrícolas parados e o
gado sem pastores, e assim foram presos trinta e três deles, com os
principais instigadores, que deram entrada nas prisões militares. (LC,
p. 35)
Essa falsa solidariedade com o discurso pertencente à guarda
“amorosa” denota a ironia do narrador, e estabelece outra forma de
organização e introdução do plurilingüismo no romance. Um narrador que
está lado a lado com a família alentejana não concordaria com tais adjetivos
atribuídos aos opressores.
Por meio do plurilinguismo instaurado no romance, se explica a
hierarquia do latifúndio: “Norberto, Alberto, Dagoberto, praguejam pela boca
dos feitores que essa malandragem se há-de arrepender da greve e que
caro lhes há-de custar o que levam a mais” (LC, p.181).
Embora todo o texto pareça pertencer a um sistema único pela
ausência de pontuação, a passagem de um nível para outro promove o
movimento de diferentes forças e o entrelaçamento de diferentes linguagens,
de forma brusca ou gradual. Dessa forma, sua estrutura apresenta
construções híbridas. Bakhtin (1988) assim denomina as construções
sintáticas pertencentes a um único falante , do ponto de vista gramatical;
porém, do ponto de vista semântico, pertencem a duas perspectivas, dois
falantes – as fronteiras, neste caso, são atenuadas dentro de um único
sistema (p. 123).
Assim, as múltiplas vozes são ouvidas por meio do narrador, o
qual não adota, mas se aproxima ora da visão dos trabalhadores, ora da
visão dos proprietários, ora da Igreja.
Madre de tetas grossas, para grandes e ávidas bocas, matriz, terra
dividida do maior para o grande, ou de gosto ajuntada do grande
para o maior, por compra dizemos ou aliança, ou de roubo esperto,
ou crime estreme, herança dos avós e meu bom pai, em glória
estejam. (LC, p. 13)
53
Nesse exemplo, os discursos do narrador e dos latifundiários se
confundem: participam da mesma construção sintática, mas pertencem à
mentalidade de diferentes entidades. Quando Bakhtin (1988) nos mostra o
plurilinguismo no discurso romanesco, aponta seus maiores representantes,
classificando-os como uma “enciclopédia de todas as camadas e formas da
linguagem literária” (p. 107). Uma das propostas de Calvino para a literatura
vem ao encontro do pensamento de Bakhtin, que embora pareça centrado
no discurso como fenômeno linguístico e em seus participantes, muito
explica da multiplicidade no romance. Seu caráter multíplice também é
marcado pela presença do narrador e os discursos que nele estão
representados; sendo assim, o romance é enciclopédico também por meio
dos discursos institucionalizados das diversas camadas sociais “no jogo
multiforme com as fronteiras do discurso” (p. 113).
O discurso bíblico perpassa o discurso romanesco de LC. Nele há
citações de trechos das Escrituras e parodização, articulando-os de modo a
mostrar como cada uma das instituições do latifúndio se apropria dos dizeres
bíblicos; No início, a descrição apresenta um tom de “criação divina”. O texto
sagrado registra: “no princípio criou Deus os céus e a terra (Gênesis 1:1) e,
a seguir, narra a criação de cada elemento que compõe o universo, até o
surgimento da figura humana em meio ao cenário maravilhosamente criado
por meio da voz. Há o mesmo seguimento na voz do narrador de LC, essa
dará existência ao universo ficcional no qual se inserem os trabalhadores
alentejanos.
Paralelamente ao texto do Gênesis, a narrativa de LC principia pela
descrição da terra, a qual, anterior ao homem, é dotada de leis próprias,
segue seu curso natural e se mantém alheia aos homens. Então, surgem na
narrativa os vegetais, os animais, o dinheiro – medida e valor da terra. Em
LC, o homem também é o último elemento resultante do processo criativo,
porém seu surgimento é marcado pelas diferenças sociais: há aqueles que
recebem a terra por herança e outros que com ela vieram, e nela irão
trabalhar.
O cristianismo sugere a presença da Trindade na criação do cosmo,
não é diferente com o texto saramaguiano em questão. Tudo é estabelecido
54
pelas três instituições que formam o poder: Igreja – Estado – Latifúndio.
Segundo o narrador. Três é um “número poético, mágico e de igreja” (LC, p.
12). A Trindade também é configurada na imagem dos “três cavaleiros do
apocalipse”, que são, na verdade, “quatro”, corrige o narrador: a guerra, a
peste, a fome e as “feras da terra”. Assim como o divino é caracterizado por
sua tri unidade, o latifúndio é determinado como “um bicho com três
cabeças” que manifesta a mesma vontade.
Muitas são as passagens do romance que lembram fatos da narrativa
bíblica, entre eles: em seu trabalho, João Mau-Tempo parece acompanhar o
Caminho do Gólgota, padecendo as mesmas humilhações de Cristo, num
esforço sobre-humano (LC, p. 76.). O grupo de grevistas que se organiza
para exigir condições dignas de trabalho é comparado aos apóstolos de
Cristo, a diferença é não haver milagres que lhes amenizem o cansaço (LC,
p. 144). O nascimento de Maria Adelaide lembra o do Menino Jesus (LC, p.
294). Na presença de pastores, de animais impróprios para compor
presépios, e dos três reis magos João Mau-Tempo, António Mau-Tempo e
Manuel Espada, a menina é recebida com referencias messiânicas, el
testemunhará, em sua juventude, os “acontecimentos apocalípticos” da
Revolução (LC, p. 362).
Comumente o narrador aplica textos da bíblia com certa ironia. Em
uma das partes iniciais do romance, a ordem do Criador, “Crescei e
multiplicai” (Gênesis 1 : 26-27), transforma-se na ordem do latifúndio aos
trabalhadores: “Crescei e multiplicai-me” (LC, p. 14). O trabalhador rural se
oferece em sacrifício, como Cristo na Última Ceia: “Este é meu sangue,
bebei, esta é minha carne, comei, esta é a minha vida, tomai-a”. O discurso
que se segue deixa aflorar a ironia perspicaz do narrador, que a tudo
conhece: “com a bênção da igreja, a continência à bandeira, o desfile das
tropas, a entrega das credenciais, o diploma da universidade, façam-se em
mim as vossas vontades, assim na terra como nos céus” (LC, p. 74).
Assim, as múltiplas vozes são ouvidas por meio do narrador, o qual
não adota, mas se aproxima, ora da visão dos trabalhadores, ora da visão
dos proprietários, ora da Igreja.
55
Estes homens e estas mulheres nasceram para trabalhar, são gado
inteiro ou rachado, saem ou tiram-nos das barrigas das mães,
põem-nos a crescer de qualquer maneira, tanto faz, preciso é que
venham a ter força e destreza nas mãos, mesmo que para um gesto
só, que importância tem se em poucos anos ficarem pesados e
hirtos (...) (LC, p. 327).
O discurso bíblico é adequado às intenções da personagem. Na
ocasião da interpelação do preso João Mau-Tempo, o qual recusou-se a
entregar os grevistas às autoridades, o padre Agamedes se apropria do
discurso bíblico, articulando-o segundo seu poder e influência: “Amados
irmãos, olhai que no fim do caminho que levais está a perdição e o inferno,
onde tudo é choro e ranger de dentes” (LC, p. 160).
Quando da Revolução, padre Agamedes vê o “formigueiro que se
espalha pelo latifúndio” e, apropriando-se novamente do discurso bíblico,
pergunta: “Quem somos para penetrar os desígnios do Senhor?” (LC, p.
361). Para falar aos trabalhadores, sempre valoriza a resignação e a espera
pela recompensa “do alto”, apregoando a igualdade entre os homens. Nessa
ocasião, porém, muda seu pensamento, dirige-se aos latifundiários como
quem espera favorecimento divino: “Quem sabe se nos estará rebaixando
para mais nos levantar amanhã, se depois desta punição não virá o prêmio
terrestre e celeste, cada um em seu tempo e lugar, Amen”.
Nesse entrelaçamento de discursos, mesmo a presença do narrador,
entidade fortemente marcada no discurso romanesco de LC, por vezes é
questionada. Seu discurso confunde-se com o de outros, por meio da
metalinguagem:
Então o homem disse, quase a chegarmos, e logo veio esta chuva,
foram palavras de zanga mansa, lançadas com desprazer mas sem
esperança, não será por me enfadar a mim que a chuva irá parar, é
um dito do narrador, que bem se dispensava. (LC, p. 18).
56
No trecho, a expressão “então o homem disse” assinala a
presença do narrador, a qual será atenuada pelo pensamento da
personagem: “não será por enfadar a mim que a chuva irá passar”. Por fim,
a reflexão sobre o papel do narrador põe em dúvida a efetiva atuação desse,
confundindo-se com o autor.
No romance, há lugar para tudo o que represente a multiplicidade
da vida. Os estudos bakhtinianos não visam somente ao discurso, nem se
limitam às construções estilísticas e lingüísticas deste gênero. Seu legado
amplia-se para sua composição das obras, considerando os chamados
“gêneros intercalados” uma das formas mais importantes para a introdução e
organização o plurilinguismo textual.
Ao falar da prosa literária, o teórico russo (1988) considera a
“palavra viva” como cerne da composição discursiva no romance. Na palavra
está, e ainda quente, a percepção e a concretude dinamizadas pelo estilo.
(p. 133). Para que a palavra dita seja recuperada ainda pulsante de
significação, há de se recuperar com ela a performance, momento que une
as linguagens num único evento plurivocal. Sua unidade é criada, não está
pré-estabelecida, por isso é passível de existência viva.
Não concebemos a “palavra viva” de que fala Bakhtin fora do
contexto da performance, por isso o aproximaremos a Zumthor. Entrevistado
por André Beaudet, o medievalista confirma sua paixão pelas palavras, pelo
“sabor” e pelo “frescor” delas, além de sua preocupação com a “alteridade,
reconhecimento e acolhida do Outro” (p. 32). Mesmo que Baudet esteja
falando de poesia em sua entrevista, entendemos que a palavra literária, até
mesmo na prosa, está sempre próxima, viva, quente, pronta para ser
consumida, assim como na emissão da voz. As palavras não estão no
romance para serem lidas de forma inteligível, mas para evocar o ser,
presentificá-lo em sua dimensão corpórea.
Em LC, o valor das palavras é reconhecido pelo narrador: “há
palavras que deveriam ser vendidas bem caras, tendo em vista quem as diz
e para quê.” (LC, p. 246). Sua preciosidade está no sujeito das palavras
(quem) e o contexto em que elas estão inseridas (para quê); o gesto, a
expressão também têm muito a dizer e fazem parte da mesma história:
57
Imagine-se que nos perdíamos agora a decifrar e explicar a
expressão destes olhos, não chegaria a história ao fim, ainda que
tudo isto, o que parece pouco e o que parece de mais, da mesma
história faça parte, maneira tão boa como outra que o seja de contar
o latifúndio (LC, p. 103)
.
Quando o narrador de LC se propõe a contar a história do latifúndio
de modo diferente, prevemos que, ao modo das narrativas orais, ele é
participante de um ciclo: ouvir, conhecer e contar. Quer pela experiência
sensível, quer pelo ouvir falar, as histórias se confirmam e passam adiante,
sempre de forma distinta das anteriores.
Em Retórica da Ficção, Booth (1980) nos chama a atenção à
presença do narrador, a qual pode estar determinada por seu discurso
direto, atenuada pelo discurso indireto livre, ou ser apagada pelas cenas
mostradas. Essa impressão de ausência do narrador se dá quando as
fronteiras não são nitidamente percebidas, a história parece chegar até nós
sem mediação.
Podemos perceber as fronteiras partindo do que Booth denominou
contar, “telling”, e mostrar, “showing”. Quanto mais presença do narrador, o
“contar”, quanto mais cenas vividas, o “mostrar” (p. 21 – 26). Tal dinamismo
também participa da performance, não só dessa entidade narrativa (o
narrador), mas de todo o corpo, tornando-o tangível por meio das cenas
vividas. No romance em proposição, há passagens em que, não obstante a
ausência de pontuação que assinala os interlocutores, a presença do
narrador é acentuada:
Boas noites toda a companhia, esta é a saudação de quem chega e
quer amizade de quantos sejam, por fraternidade ou interesse de
negócio, Venho viver aqui em São Cristóvão, chamo-me Domingos
Mau-Tempo e sou Sapateiro. Mau tempo trouxe você, e outro que
bebia estava no fim do copo, deu um estalo com a língua e
acompanhou, Não traga ele más solas, e os mais riram porque havia
de quê e a propósito. (LC, p. 20,21)
58
No que diz respeito à sintaxe, esse discurso parece pertencer a um
único falante. Do aspecto semântico, sabemos que o narrador está presente
e atuante a contar-nos a história. As expressões “é a saudação de quem
chega e quer amizade de quantos sejam, por fraternidade ou interesse de
negócio” e “e outro que bebia estava no fim do copo, deu um estalo com a
língua e acompanhou” assinalam o contar e a performance do ser envolvido
nessa atividade de transmitir a história.
Por outras vezes, o narrador cede a palavra às personagens, seu
discurso torna vivas a cenas experimentadas pelas personagens:
Viva a república, Viva. Patrão, quanto é o jornal agora, Deixa ver, o
que os outros pagarem, pago eu também, fala com o feitor, Então
quanto é o jornal, Mais um vintém, Não chega para a minha
necessidade, Se não quiseres, mais fica, não falta quem queira, Ai
minha santa mãe, que um homem vai rebentar de tanta fome, e os
filhos, que dou eu aos filhos, Põe-nos a trabalhar, E se não há
trabalho, Não faças tantos, Mulher, manda os filhos à lenha e as filhas
ao rabisco da palha, e vem-te deitar, Sou escrava do senhor, faça-se
em mim a sua vontade, e feita está, homem, eis-me grávida, pejada,
prenhe, vou ter um filho, vais ser pai, não tive sinais, Não faz mal, onde
não comem sete, não comem oito. (LC, p. 33)
Nesse exemplo, temos a narração do sofrimento da família
campesina e do modo como está se organiza nos tempos da chegada da
República. Não há indícios da presença do narrador, nem este prenuncia a
participação das personagens, seu discurso se entrega inteiramente às
cenas vividas, instaurando, assim, o mostrar.
O acervo histórico de LC se faz na oralidade. As histórias
recontadas, confirmadas, repetidas, são as que chegarão à posteridade com
mais força e representarão o passado com mais vivacidade, pois o canto, a
palavra e a voz trazem até nós a experiência vivida como em seu primeiro
instante.
Nesta fusão indissociável entre história, literatura, política, humanismo
e poeticidade estampa-se a própria biografia do autor. Oriundo de uma
família de camponeses ribatejanos, Saramago parece buscar inspiração em
59
suas reminiscências. As experiências vividas pelo autor na aldeia de
Azinhaga, onde convivia com pessoas muito simples, parecem tê-lo
motivado a escrita. Não que as personagens sejam ou representem
exatamente as pessoas do convívio do autor; mas, essas personagens
resgatam, uma a uma, a grandeza e o valor de todos aqueles que dia a dia
escrevem a história.
Então chegou a república. Ganhavam os homens doze ou treze
vinténs e as mulheres menos da metade, como de costume.
Comiam ambos o mesmo pão de bagaço, os mesmos farrapos de
couve, os mesmos talos. A república veio despachada de Lisboa,
andou de terra em terra pelo telégrafo, se o havia, recomendou-se
pela imprensa, se a sabiam ler, pelo passar de boca em boca, que
sempre foi o mais fácil. O trono caíra, o altar dizia que por ora não
era este reino o seu mundo, o latifúndio percebeu tudo e deixou-se
estar, e um litro de azeite custava mais de dois mil réis, dez vezes a
jorna de um homem. (LC, p. 33)
Nesse trecho, o discurso do narrador do latifúndio é perpassado
pelas vozes dos que representam esse universo: o trono, a Igreja, os
latifundiários, o homem trabalhador. Todos eles inseridos num mesmo
contexto, sofrem diferentemente o reflexo das mudanças sociais.
2.4. Poesia, mito e saga: a História e a oralidade
Quando a História fica por conta da tradição oral, a imaginação
popular acaba por alimentar o seu registro. Assim, os fatos conhecidos pela
formalidade histórica se revestem de poesia e dão lugar à saga e ao mito.
Ao longo do romance, as figuras da “formiga” e do “cão” insinuam as
atitudes dos trabalhadores rurais. Na primeira geração dos Mau-Tempo, um
cão ou outro ladra, o restante está em sua obrigação (LC, p. 20); o feitor é
“um cão escolhido entre os cães para morder os cães” (LC, p. 72); as
brincadeiras entre cão e gato” ilustram a relação de poder (LC. p. 75).
60
Consoante as mudanças na mentalidade dos trabalhadores rurais
alentejanos vão se consolidando, esses passam a ser “as formigas de
focinho no ar como se fossem cães” (LC, p. 87). As “formigas” que ganham a
luta (LC, p. 147), “parecem formigas, mas são cães” (LC, p. 312), são
”formigas de cabeça vermelha” com suas “tenazes”, e, nos dias de
Revolução, o “formigueiro se espalha pelo latifúndio, nunca se viu tanta
formiga de cabeça levantada” (LC, p. 361). Da perspectiva dos latifundiários,
serão “gado”; por vezes, alçam voo como o “milhano”. Tais metáforas
contribuem para a animalização do homem do campo, além de conferir ao
texto uma linguagem mais próxima ao contexto em que as personagens são
inseridas (BERRINI, 1998. p.36).
Por vezes, o narrador se refere ao latifúndio como “mar interior”. A
história portuguesa é permeada pelas viagens ultramarinas cantadas desde
Camões até o mar da poesia pessoana. Já em Saramago, as grandes
conquistas são interiores, afloram do latifúndio para o mundo. O narrador de
LC admite a grandiosidade do mundo, uma “bola sem começo nem fim”, mas
que visto de Monte Lavre é um “relogiozito”, suscetível a terríveis mudanças
devido a sua vulnerabilidade e fraqueza (LC, p. 137). Suas transformações
se revelam ao passo que o “mar” com seus “cardumes de peixe miúdo e
comestível, barracudas e piranhas de má morte” (LC, p. 319) passa a ser o
“mar interior” que comporta unicamente “barracudas, piranhas, gigantescos
polvos”, pois os trabalhadores foram dispensados e as searas estão ao chão
(LC, p. 358). Ao chegar a Revolução, o “mar interior do latifúndio” agita-se,
nele “não pára a circulação de ondas” (LC, p. 363).
Pela temática “mar” e “terra”, Saramago foi aproximado a Camões, e
não apenas pelas imagens como em “descalça vai à fonte” do soneto
camoniano, a qual dialoga com a menina Adelaide, personagem de LC,
também assentada, talvez à mesma fonte.
José Fernandes da Silveira (1992) aproxima os autores quando estes
usam o mesmo movimento de valoração do povo português em suas obras:
levantar. O estudioso considera-os “quiasmo” do sentido de “ir” e “vir”.
Segundo o autor, em Camões, tem-se o movimento VIAGEM – PAISAGEM
– LINGUAGEM: a viagem motivou conhecimento e nova linguagem. Porém,
na obra do autor contemporâneo, José Saramago, encontramos o
61
movimento oposto, a nova linguagem impulsiona o conhecimento e exige
outra viagem.
Há outros elementos responsáveis pelo movimento metafórico na
composição do romance como o próprio “levantar”, ou “acordar em pleno
meio dia e descobrir que um minuto antes ainda era noite” (LC, p. 99).
Levantar é reconhecer-se como agente de transformação social na luta de
classes, um mover de almas que vai para além das definições.
A hora de ceifar traz reivindicações, o trigo está maduro e “os homens
também” (LC, p. 138). A geração de João Mau-Tempo entende que a hora
da ceifa é a oportunidade de mudar, rejeitando toda a exploração que os
trabalhadores vêm sofrendo desde a geração de seus pais. É hora de
começar a se levantar e lutar pelo trabalho digno; agir para não ser apenas
“desabafos da humanidade”, como a primeira geração (LC, p. 17). O nome
“vem certo com a situação” (LC, p. 155), é a geração “de seu mau tempo”.
Entretanto, a cada geração, a figura feminina simboliza a liberdade dos
novos tempos, quando estas deixarão o “mau tempo” e apontarão novos
caminhos.
A construção poética em LC é um convite para novas relações
sígnicas que preveem a participação do leitor, conforme mencionamos no
primeiro capítulo acerca da estética da recepção de Jauss (In: TADIÉ, 2002).
Há um acordo para que se atribua significação ao universo ficcional, o qual é
o resultado de um processo criativo envolvendo experiência e estratégia por
parte do autor, percepção e intimidade por parte do leitor. A tensão que a
metáfora instaura no texto se dá por intermédio da sobreposição de
significados e da transformação do símbolo em um “terceiro elemento que se
insinua enquanto primeiro” (BASTAZIN, 2006, p. 82). A linguagem
metafórica da literatura instaura uma intersecção entre dois universos:
realidade física e realidade imaginária, o que lhe confere o poder de
antecipar as experiências da realidade com profundidade que excede a mera
imitação.
O narrador não esconde o jogo, inicia a narrativa descrevendo a
paisagem, o latifúndio, os homens e suas relações político-sociais,
apontando uma outra maneira de se contar o latifúndio (LC, p. 14).
62
O romance como espaço literário para novas significações abarca
outras linguagens e seus artifícios, como a metáfora. A descrição sinestésica
da terra, por exemplo, presentifica o objeto; assim, não faltam à paisagem
“cores”, “cheiros”, relevo, calor ou frio. De igual modo, as comparações
conduzem o leitor a estabelecer uma relação entre referentes distintos;
então, nesse “jogo”, a terra é como a “palma de mão” (LC, p. 12), o latifúndio
“é como mulas que têm manha de morder as que vão ao lado” (LC, p. 273).
A opressão é sutilmente impressa na ironia com que o narrador se
reporta acerca dos latifundiários, e pela antítese se estabelece o caráter dos
trabalhadores, cujas mãos, “mesmo sujas, são limpas” (LC, p. 225). O
momento de se manifestar é propício para as rimas (LC, p. 307), porém não
há poesia no trabalho árduo do povo alentejano. Como se fará um soneto
sobre sofrimento e resignação (LC, p. 269)?
Eis o cerne do processo significativo na literatura: a imaginação é a
sua força motriz; a capacidade criadora é responsável pela transformação e
transposição do objeto do universo imaginário para o universo da realidade
concreta da linguagem. A percepção e a sensibilidade poética por parte do
leitor são responsáveis pela apreensão do signo, processo que envolve o
literário e o mitológico, uma vez que a mitologia não insinua o objeto apenas,
mas presentifica-o. A linguagem poética é metafórica, e a metáfora constitui
o vínculo intelectual entre a linguagem e o mito (ibidem, p. 78).
Acerca do mito, o semiólogo e filósofo francês Roland Barthes,
influenciado pelas teorias saussureanas, afirma ser este um “sistema de
comunicação, um modo de significação, uma fala”, cuja relação não é de
igualdade, mas de equivalência (BARTHES, 2003, p. 199). Enquanto a
língua e a literatura dão idéias de existência humana, o mito atribui-lhes
“forma”, por isso pertence tanto à Semiologia quanto à Ideologia, assumindo
uma dupla função: designar e notificar; fazer compreender e impor a
realidade que se quer representar.
Barthes parte da relação significante - significado na formação do
signo compreendida pela semiótica de Saussure para explicar a origem do
mito. Com base nessa relação do sistema sígnico, o mito seria resultante de
um sistema primeiro, cujo signo lingüístico constitui o ponto de partida para o
mítico, o qual se apropria desse resultado primeiro, reduzindo-o a
63
significante de uma nova correlação entre os elementos da composição
sígnica. Tal pensamento nos prova que a determinação do mito não está no
próprio objeto, mas no modo como este é proferido.
Da filosofia antiga até os teóricos contemporâneos, o mito foi
considerado como alegoria poética de valor moral e pedagógico; são
expressões e sentimentos do homem em emancipação; equívocos;
fenômeno estético. O mito expressa também uma fase do desenvolvimento
humano, é tradução narrativa das forças da natureza; desejo do homem
primitivo de entender os fenômenos naturais enquanto reflexo de
acontecimentos históricos e tradições culturais. Considerando uma das
formas mais antigas das atividades simbólicas do homem, o mito é também
forma elevada do pensamento humano; fundamento da religião; patrimônio
existencial do homem; memória coletiva e manifestação da linguagem. Para
compreender o mito no romance em questão, preferimos adotar o
pensamento de Malinowski: O “mito codifica o pensamento, reforça a moral,
propõe certas regras de comportamento, sanciona os ritos, racionaliza e
justifica as instituições sociais” (BASTAZIN, 2006, p. 88).
Da mesma forma, Ernest Cassirer, filósofo alemão do século XX,
explora o mito considerando-o em sua função pragmática, mas destaca a
prioridade do rito sobre o mito. Esse último transforma a história em
“natureza”, enquanto o rito renova e atualiza os eventos. Quando o teórico
apresenta o mito, concebe-o além da linguagem – responsável pela
designação do ser; o mito é a instancia que contém a “força do ser” (2000, p.
17).
Dessa construção mítica do romance também participam as
personagens, quer as do plano das ações que movimentam o enredo, quer a
envolvida na ação principal (protagonista), que se torna universal graças às
suas ações específicas de herói. Aristóteles (2005), ao falar da tragédia,
associa o mito à imitação de uma ação, o que constitui a “fábula”, alma da
tragédia. A partir desse pensamento, entendemos que o mito, ou a fala
mítica, se desenvolve nas ações do herói, sabendo que este possui o caráter
de “modelo” para as demais personagens.
A figura do herói mítico, no romance, pode ser caracterizada tanto em
sua particularidade como em sua pluralidade. O caminho para a ascensão é
64
percorrido ao longo das quatro gerações dos Mau-Tempo, sendo projetado
para o futuro de Maria Adelaide. No entanto, a trajetória individual é marcada
pela tragédia, pela luta e, por fim, pelas expectativas de tempos
promissores. No momento de ascese, todos participam do “dia levantado e
principal”, conforme nos descreve o narrador nas últimas palavras do
romance (LC, p. 366).
Vera Bastazin, em sua obra Mito e Poética na Literatura
Contemporânea, um estudo sobre Saramago (2006), atenta para essa
característica das personagens saramaguianas, não só em LC, mas em
outros romances. As personagens se agrupam entre si e formam segmentos
narrativos. Dificilmente haverá um protagonista a que se atribua todo o peso
da narrativa ou que vá, isoladamente, dar conta de todo o enredo (p. 162). O
mesmo estudo acerca dos romances de José Saramago conclui que esses
se apropriam do signo e o elevam do plano linguístico para o mito-poético,
graças à “ritualização dos fios da imaginação” (ibidem).
Além do mito instaurado por meio das personagens, mitos que já
fazem parte da cultura cristã desde a Idade Média participam do projeto
escritural do romance. O “mito das origens” está presente logo no início do
romance: a terra surge anterior ao homem e se mostra independente dele.
Após descrever a criação dos elementos naturais e do homem, o
narrador, ironicamente, insere um elemento não pertencente ao mito da
criação: o dinheiro. No romance, a unidade de valor criada pelo homem
torna-se o eixo de suas relações sociais.
O discurso do narrador alude o discurso do Gênesis, o texto bíblico
acerca da origem do universo e da humanidade, quando “a terra era sem
forma e vazia” (Gênesis 1: 2). No início do romance, a disposição das
imagens representativas do universo do latifúndio dialoga com o texto
sagrado; não obstante, esse novo universo abordado pelo romance desvia o
primeiro sentido do sistema mitológico para atribuir-lhe outro, não como
subversão, mas atualização do mito para representar as relações entre o
latifúndio e os trabalhadores rurais.
Outro mito se encerra na primeira geração da família alentejana,
representada pelo patriarca Domingos Mau-Tempo. Ao longo do romance a
personagem é descrita como sapateiro remendão, homem frenético, um filho
65
do vento, um maltês, “Domingos do seu mau tempo”, ainda bem não chegou
a uma terra, já pensa noutra (LC, p. 27). Suas andanças movimentam as
ações desse primeiro período da família Mau-Tempo e a personagem
dinamiza o enredo, marcando o destino de todas as outras, numa viagem
que parte “da luz para a escuridão” (LC, p. 19).
Mito que se difunde na Europa do século XVII, o judeu errante seria
Ahasverus, um sapateiro que, ao escarnecer de Cristo, quando este se
dirigia para o Gólgota, e recusa-se a ajudá-lo. Assim, é condenado à
errância eterna. A imaginação popular não deixou de criar as passagens do
judeu a diversos lugares como mensageiro da desgraça, fonte de poderes
maléficos e diabólicos. Os românticos já lhe atribuíam uma figura nostálgica
e solitária, a do estrangeiro marginalizado, injustiçado e esquecido pela
História. No século XIX, o mito ressurge apontando o judeu como
representante do povo. O escritor francês Eugene Sue, por exemplo, explora
o tema em seu romance Le Juif Errant (1844-1845) afirmando serem os
pobres o “judeu errante” da civilização moderna (BESSE, 2000).
Ser que despertou ao longo dos séculos a curiosidade popular, a
figura do judeu errante pode ser considerada para além de seu teor
ideológico como representação da própria humanidade. Sua “viagem” pode
constituir a metáfora da vida, assinalando a condição humana diante de seu
destino. De igual modo, Domingos Mau-Tempo é o homo viator, assinalado
pelo ciclo errante do qual não consegue exceder e, alheio à História, se vê
absolutamente incapaz de modificar-lhe. Somente em sua descendência
está o legado da transformação social, quando os homens abandonam a
condição errante, ampliam os horizontes e passam a viver a expectativa de
tempos mais promissores, quando a justiça reinará absoluta. Nesse âmbito,
o romance assume um tom escatológico, pois alude à proposta divina para a
existência humana projetada das origens para o porvir. O mito apropria-se
do resultado de um sistema linguístico anterior para aplicá-lo numa nova
sistematização que supera e sublima as representações do primeiro plano, e
toda essa transformação é transferida para o sistema romanesco.
Há uma dinâmica nos textos saramaguianos que mobiliza uma série
de mitos, códigos e linguagens, numa manifestação artísticade articulações
imaginárias” que, segundo Vera Bastazin, circulam, por intermédio do texto,
66
do “poético-mitológico ao poético gestual, xilográfico e escultural” (2006, p.
135). Dessa forma, sua escritura supera a qualidade meramente lingüística e
alcança a forma de “palavra literária”. Esse é o caráter enigmático do mito, o
qual reside na inflexão da realidade por meio de um sistema ideográfico. As
ideias, imagens e gestos que representarão a realidade permitem ao leitor
viver o mito como uma história simultaneamente verdadeira e irreal.
Se a proposta inicial do narrador em LC é contar o latifúndio “de outra
maneira”, ele pode se valer de tudo quanto o mito representa, pois, conforme
diz o crítico contemporâneo Northrop Frye (1973), a mitologia também é uma
“forma outra de se dizer as coisas” e, por isso, também habita a invenção
literária. O mito não corresponde à matéria-prima da literatura, antes se
manifesta na prática inventiva e toma forma por meio da palavra, é por isso
que ele pertence à literatura. Ele, o mito, é um enigma que não vem para
suplantar a essência do texto, mas para encaminhar o leitor a uma
compreensão mais aprofundada.
A transformação das relações político-sociais no latifúndio ao longo
da História se explica pelo mito da família alentejana – os Mau-Tempo,
representantes de um heroísmo coletivo. Essa é a “outra maneira” de se
contar o Alentejo, o mito fala por si só, não se pode explicar de outro modo.
Mesmo quando Saramago se refere aos seus romances mais
recentes, cuja temática se distancia do material histórico, apreendemos a
essência de sua escrita e seu propósito para com a História. Em artigo para
O Globo (1996), o autor reconhece que, somente por meio da literatura, se
pode alcançar a consciência dos leitores, “mesmo falando de outra coisa”.
Outra maneira de difundir a História por meio da oralidade está na
saga. Falar em saga é reconhecer na linguagem verbal a manifestação da
trindade beleza – sentido – forma, direções que orientam a ciência da
literatura.
De acordo com os estudos de André Jolles (1976) acerca das formas
literárias, a saga pode ser considerada em vários aspectos: 1) no campo
lingüístico, é o ato verbal; 2) declarações em geral; 3) declarações dotadas
de autenticidade; 4) tradição oral; 5) relato narrativo referente ao passado,
transmitido de geração para geração. Neste último aspecto, a saga parece
se opor ao que a História representa, cuja autenticidade em nada vem
67
contribuir para a tradição oral, terreno no qual imperam a poeticidade,
sensibilidade popular e a liberdade inventiva que se permite inserir no plano
da realidade.
Entretanto, para o teórico, a oposição Saga x História atribui sentido
negativo à manifestação da oralidade. Na verdade, o universo criado por
meio da saga é “produto acabado, tangível, que tem coerência e validades
internas” (p.62). A saga justifica sua composição em si mesma, vai além do
ficcional, do não-histórico; contrapô-la à História seria retirar-lhe a
autenticidade intrínseca.
A origem das sagas está nas tradições anônimas dos relatos orais
que dinamizam sua estrutura por meio das ações de suas personagens. Sua
base está nos vínculos de sangue, no parentesco, nas relações familiares e,
a partir do clã, todas as ações de outras personagens se justificam, quer
pela aproximação, quer pela recusa. O clã, representado por um herói
individual ou pela nação, é a fonte de todo o significado e valor atribuído a
saga, uma vez que este definirá o destino das personagens e suas relações.
Partindo desse principio, Jolles associa nação e família, concluindo
que todo acontecimento histórico pode ser uma saga (p. 78). Nesse aspecto,
ela se aproxima às crônicas de uma família, como é o caso do romance LC:
a prosa se apropria da saga para contar a vida de uma família de outra
maneira. Segundo o teórico, a saga não pode ser registrada, uma vez que
esta segue a tradição oral, é nascida de uma disposição mental que se
desenvolve de acordo com o tempo e o lugar e, por isso, sempre será
contada de maneira diferente. Entretanto, a proposta de se aproximar para
contar a história do latifúndio de outra maneira permite que a saga seja
introduzida no romance, e que assim todo o universo romanesco seja
movido pelas ações da família Mau-Tempo. A história dessa família
alentejana não se limita às suas gerações. Nela, a família portuguesa está
representada, pois muitos são os experimentam do mesmo sofrimento e
miséria:
Mas as crianças, podendo ser, crescem. Enquanto lhes não chega a
idade de trabalhar, ficam entregues aos avós, ou com as mães, se
não há trabalho para as mães, ou com as mães e os pais, se
68
também para os pais não há trabalho, e se é mais tarde, se de
crianças já tem pouco e de trabalhadores tudo, se acontece não
haver trabalho para pais, mães, filhos e avós, aqui está, senhoras e
senhores a família portuguesa como gostais de imaginá-la, reunida
na mesma fome, e então é conforme o tempo. (LC, p. 186).
Acompanhar o clã de LC é conhecer o dia a dia de todas as famílias
cujas vidas constroem a história do Alentejo A saga da Família Mau-Tempo,
o poderio dos “Bertos”, donos das terras, da Igreja e do Estado representam
a evolução da mentalidade portuguesa ao longo das gerações, mais que
alegoria de um período histórico, a obra questiona o presente, ultrapassa a
representação, por meio das personagens, de idéias abstratas, tipos sociais
ou entidades que se perderam no tempo para se instaurar como um novo
universo, como alternativa de se entender o latifúndio. Também é perguntar-
se por que, num mundo onde há tantas paisagens, sejam elas as
oportunidades, lugares, conhecimento, ou a própria terra, há ainda aqueles
que, mesmo lutando penosamente por um lugar ao sol, sofrem as injustiças
de uma organização social fundamentada na opressão e no poder.
Empregamos aqui a metáfora paisagem como princípio de existência, a
própria vida ou cenário no qual a humanidade está inserida – aproveitando o
início de LC, quando o narrador descreve a paisagem como extensão
territorial que se abrange num lance de vista.
Por meio da poesia, da saga e do mito, forma-se esse universo
ficcional. Se o quisermos compreender como alegoria do período histórico,
que seja pela sua aproximação a uma parábola, uma história que facilita a
compreensão de um universo maior.
Tal como os gêneros literários eram concebidos em diferentes
perspectivas, a alegoria foi compreendida de formas distintas ao longo da
História. Isso não quer dizer que a estamos classificando como um gênero à
parte, mas, se ela revela uma visão de mundo característica de uma
determinada época e comunidade, de certa forma acompanhou as mesmas
transformações.
69
Por sua arbitrariedade e historicidade, na era clássica, a alegoria era
depreciada. Segundo os autores clássicos, a alegoria distanciava o leitor do
valor essencial de um texto. Os gregos concebiam a alegoria como resultado
de um não-reconhecimento do texto literal, o sentido não é verdadeiro, há
um desvio que necessita de uma outra leitura que passe para além da
inferência e desvele o verdadeiro pensamento das palavras.
A alegoria era considerada a partir dos níveis de leitura sugeridos pela
tradição cristã. O leitor “tosco” não apreende mais que o “corpo” – a
estrutura – do texto, e sua leitura não ultrapassa o sentido literal da palavra.
Um nível mais elevado, mas ainda não considerado ideal, é o do leitor
“prevenido”, cuja leitura alcança a “alma” do texto, a leitura moral, segundo
discorre Gagnebin (1999). O terceiro nível corresponde a uma leitura que
atinge a perfeição do “espírito”: a leitura alegórica ou mística (p. 32).
No Renascimento, a alegoria era caracterizada como deslocamento.
A apreensão de seu significado exigia, por parte do leitor, um avanço da
interpretação de um primeiro plano para a compreensão determinada pelos
elementos alegóricos. Para os autores modernos, a alegoria é arbitrária,
revela o peso, a inspiração, e exige o esforço humano para que se alcance
um sentido. O filósofo e crítico Walter Benjamin a considera como
“reabilitação da ideia , por conseguinte, da própria História (p. 35).
Apropriando-nos do conceito benjaminiano, a alegoria seria
reabilitação porque promove um novo olhar, atualiza os valores de nossos
antepassados para fazer realmente fazer valer a História como “um encontro
secreto entre as gerações precedentes e a nossa”, conforme já
mencionamos nesse trabalho.
O romance ilustra com propriedade a transferência de características
de uma geração para outra quando João Mau-Tempo contempla sua neta,
Maria Adelaide; esse momento era como se estivessem “trocado de olhos”
(LC, p. 346). Saramago aproveita-se do gênero que representa vasta área
de vivência e estrutura complexa – o romance – para sobrepor imagens,
vozes, poesia, ficção e realidade e, assim, reinventar o passado por meio
das muitas histórias que a História Oficial faz esquecer.
70
III. OS TRAÇOS DA ATUAÇÃO CRONÍSTICA NA PRODUÇÃO
ROMANESCA EM LEVANTADO DO CHÃO
Todos os dias têm sua história, um só minuto levaria anos a contar, o
mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba,
dum som, para já não falar dos pensamentos (...)
(SARAMAGO, 1980, p. 59)
3.1. O instante e o desencadear da História
Adalberto, o latifundiário, vem sossegadamente em seu automóvel
pelas curvas de suas terras. Com displicência, passa por entre as árvores,
fazendo brilhar os cromados com o reflexo da luz solar. De repente, ao ver
sua propriedade tomada por trabalhadores rurais, para o carro e sai do
veículo. Observa com indignação e ira a ocupação. Volta ao carro e parte
levantando uma nuvem de poeira. Com certo trabalho metalinguístico, o
narrador comenta o tom romântico de seu discurso, apontando sua
conformidade com o costume dos romances (p. 277).
Mostrar magnitude nos fatos não é o seu propósito. O narrador
valoriza cada instante da família Mau-Tempo e, assim como o cronista, sabe
que pode se servir do “mínimo gesto” para verbalizar as grandezas que a
História costuma suplantar quando escolhe e oficializa os fatos. Os
“pequenos episódios do latifúndio” dão conta dessas grandezas, pois
também de pedra miúda se faz o muro e de espigas separadas a seara
(LC, p. 279). Cada homem tem a sua história e, com a junção de todas elas,
a teia é tecida um pouco mais a cada dia.
Tal como o narrador das crônicas, o narrador romanesco tem
consciência da brevidade do tempo e das “debilidades” do relato. Ele é
movido pela mesma pressa, não de acabar, mas de chegar a um “importante
lance, ou a uma modificação do plano” (LC, p. 252).
Segundo o próprio narrador, não entenderá o que é “humanidade”
aquele que não entender essas “grandezas” (LC, p. 254). A luta do latifúndio
se constrói por meio dos instantes vividos pela família Mau-Tempo; em sua
71
história, até mesmo um sorriso pode dizer tudo, e com tanta eficácia, que os
demais se calam perante a profundidade do que se revela por meio desse
simples gesto (LC, p. 121).
A felicidade também está nas “pequenas coisas” (LC, p. 62). A maior
confissão de João Mau-Tempo é o reclinar sua cabeça no ombro de
Faustina e adormecer, depois de muito conversarem. Um simples “entrar na
igreja e estar nela, só estas caras, feição por feição, e devagarinho cada
ruga, seriam capítulos extensíssimos como o latifúndio” (LC, p.219). O
propósito do narrador não é a descrição. Ele tem consciência de que cada
personagem em seu relato constitui-se como “um homem com história”, no
entanto, lamenta não poder relatá-las todas, e assim alcançar a plenitude da
História (LC, p. 231). Mesmo na imensidão estão os detalhes. A terra do
latifúndio, descrita nas palavras do narrador, “é toda igual, com mais sobreiro
ou azinheira, com mais trigo ou arroz, com mais guarda ou feitor, manajeiro
ou capataz, tanto faz...” (LC, p. 243). No entanto, apontar suas minúcias não
ameniza o sofrimento dessa gente que nela habita.
Não compreenderíamos tão bem o valor da visita de João Mau-
Tempo à irmã que estava em Lisboa, não fossem os detalhes contados pelo
narrador. O seu andar na cidade grande, a ausência de traquejo social para
subsistir às rudezas dessa “grande cidade” muito têm a denunciar do
preconceito e das diferenças sociais (LC, p. 78).
Sem os detalhes da prisão de João Mau-Tempo não saberíamos o
que quer dizer a expressão “as alegrias da prisão”. Seis dias de reclusão
pareceram (ao ver do narrador ou da personagem?) trinta dias, “um mês que
não pode caber em nenhum calendário”.
As origens da família Mau-Tempo não teriam proporções de epopéia,
ou de Gênesis, não fosse o episódio da família retirante a caminhar de
Monte Lavre a São Cristóvão, enfrentando tantas adversidades à procura de
trabalho. Talvez essa história só importasse para a família alentejana, no
entanto, a poesia que reside na estrutura narrativa da obra eleva o passado
de fatos generalizados à história coletiva. De igual modo, a afirmação “É
porém certo que o governo foi deitado abaixo”. (LC, p.351) não teria o
mesmo valor e vigor de outrora, embora consideremos o fato de o passado
ter contribuído para o que somos hoje, não fosse a oportunidade de ouvir a
72
voz da “gente miúda” e participar de suas expectativas, o que, hoje, faz-nos
sentir a esperança que compensa todas as injustiças do nosso dia a dia.
Fazer do cotidiano a boa nova do nosso tempo, mover-nos com
profunda emoção diante das pequenas coisas da vida, oportunizar um
momento de perceber verdades quase imperceptíveis nos episódios
corriqueiros e, com o mínimo de informações, alcançar a sensibilidade da
experiência humana – diz a crítica – são os maiores encantos da escrita de
Saramago (BERRINI, 1998, p. 152).
O narrador do romance que faz alusão às transformações políticas
ocorridas durante quatro gerações, do latifúndio monárquico até a Revolução
dos Cravos, alerta o leitor: “o nosso mal é julgarmos que só as grandes
coisas são importantes” (LC, p. 182), então muito se perde de nossas
experiências.
LC nada quer perder da história: os detalhes, a simplicidade, nem
mesmo deixar de decifrar e explicar um olhar. No entanto, reconhece que
assim fazendo, ”não chegaria a história ao fim”. A mesma história é
composta do que “parece pouco e do que parece de mais” e tanto uma
forma quanto a outra de se contar o latifúndio são válidas (LC, p. 103).
Esses objetos mínimos, se desenvolvidos, compreenderão todo o universo,
tornam-se o centro dessa rede de relações chamada “romance”, consoante
o que diz Calvino (1990) acerca da propriedade multíplice do romance (p.
122).
Assim como na crônica “As memórias alheias”, o narrador de LC
sabe que a reunião de cartas e outros escritos corriqueiros poderiam dar
conta da história (LC, p. 182); que os nomes são supérfluos se não se
sabem as ações (LC, p. 208); que os indivíduos, mesmo os que foram no
passado, têm a sua importância e, de certa forma, compõem o que somos e
vivemos hoje (LC, p. 365). O mesmo cronista que percebeu o valor de um
“anônimo português” questiona como romancista se os que morreram pela
causa dos trabalhadores rurais tinham ciência de suas mortes, além de
aceitá-las (LC, p.116). Está o autor ciente da participação dos
“antepassados” nas conquistas do presente, mesmo daqueles cujos nomes
sejam desconhecidos, mas de quem “conhecemos as vidas” (LC, p. 366).
73
O narrador de LC compactua com o cronista de “As memórias
alheias” quando despreza dados estatísticos e nomes, preferidos pela
História Oficial, e dá maior força aos fatos e seus agentes: “E então, num
sítio qualquer do latifúndio, a história lembrar-se-á de dizer qual, os
trabalhadores ocuparam uma terra.” (LC, p. 361). O que parece vago,
indefinido, tem maior importância nesse romance, importa o que o fato
representou; muitas vezes, contar histórias não exige pormenores. Retirou-
se o peso da História, que tanto nos distancia da simplicidade da realidade,
tornando-a leve, a partir de então, esse “sítio” se faz presente na voz do
narrador, e pode estar bem perto de nós.
Em “Retrato de Antepassados”, Saramago rememora suas origens,
quer pela vaga lembrança, pelas histórias que lhe foram contadas, pelas
fotos antigas de seus pais, isto é, por meio de reminiscências de grande
importância para o próprio autor, e que talvez não fosse relevante para os
outros. Da mesma forma, o narrador procura contar o latifúndio por meio das
experiências vividas pela Família Mau-Tempo e de circunstâncias
particulares.
O percurso da narração prenuncia grandes mudanças: de um
homem “que estava a olhar as nuvens altas”, cumprindo a ameaça de “uma
chuva regular, daquelas que vêm para muitas horas, caindo e alagando”
(LC, p. 16 – 17) passamos à revolução, quando os “anjos varrem o céu” (LC,
p. 364). Nesse percurso, nenhum gesto pode ser perdido, assim a pergunta
inicial do romance – “E esta outra gente quem é, solta e miúda, que veio
com a terra, embora não registrada na escritura, almas mortas ou vivas?” (p.
14) – é respondida: – São “os vivos e os mortos”, que se levantam e se
tornam principais (LC, p. 366).
Essa classe lutadora não fica no anonimato, isso seria perder a
História do latifúndio; nesse âmbito, o trabalho do narrador de LC não foi em
vão. Ele compensa a frustração do cronista quando o “desconhecido”, o
“número 399” de uma listagem que não tem muito a dizer, condenou alguém
que participou efetivamente da História a ser, para sempre, um “anônimo
português” (BV, p. 127). A “gente miúda” se faz conhecer pela família a
quem nos aproximamos por intermédio do narrador.
74
Em “Com os olhos no chão”,o narrador se manifesta pelo olhar. É
preciso estar com atenção”; captar “o frêmito de água que do fundo vem
subitamente à superfície”, obra das tensões acumuladas no lodo, entre o
fazer, desfazer e refazer químico (LC, p. 125). Da mesma forma, o narrador
percebe a necessidade de um olhar mais atento, aprofundado, fora do
convencional; quantas transformações acompanharíamos “se olhássemos
para o chão”, diz o narrador (p. 233). Parece que, para compreender a vida,
temos que nos voltar a sua essência, segundo o mito da criação. Para
compreender a história do latifúndio e sua organização social, ao longo dos
tempos, também se faz necessário olharmos para a origem de tudo: o solo.
Assim como nas crônicas, o narrador em LC atentará para o
instante. O que é efêmero, corriqueiro e dotado de um certo ar de
banalidade deflagra a História e se torna extensão de todos nós. Há a
necessidade de lembrar que nem sempre o cotidiano, o dia a dia, é envolto
em banalidades; fatos aparentemente sem propósito podem conter em si
toda a essência da vida, podem justificá-la, ou mesmo trazê-la até nós.
Essa ideia gradativa de olhar, mínimo gesto, palavra, sílaba e
pensamento como reveladores da magnitude da História vem corroborar
com o que já dissemos acerca da performance: trazer o passado até nós
requer o instante vivo, marcado como presença, como corpo em movimento
e envolvimento com o que somos e pensamos hoje.
3.2. A hibridização das formas: do peso à leveza
A crônica inserida no romance imprime nele as suas formas. Se o
romance pretende extrair da vida a essência, não deve procurar os grandes
acontecimentos, antes, com sensibilidade e profundidade, achará
supremacia nos minúsculos aspectos da existência humana. Até mesmo a
ciência procura as grandezas no minúsculo, por ele muito se explica da
física, da matéria, dos ecossistemas – ele é a última parte constituinte de um
todo, por meio do qual o todo é compreendido.
75
A partir dessa comparação primeira, poder-se-ia aplicar erroneamente
a leveza à crônica e o peso ao romance, todavia não é essa a
fundamentação que nos é dada pelo escritor e critico literário Ítalo Calvino
(1990), quando este se posiciona sobre suas propostas para a literatura do
próximo milênio. Ambas as características abrangem o literário em sua
totalidade, portanto, crônica e romance podem, de igual modo, exprimir peso
e leveza.
O adjetivo “leve” empregado para definir a crônica no primeiro capítulo
não deve ser entendido como sinônimo de “rápida fruição”. Mesmo em sua
estrutura reduzida e nas experiências cotidianas que traduzem, as crônicas
trazem o peso da vida e exigem, assim como as obras mais extensas, alto
grau de abstração, tendo em vista o seu exercício de captar a imensidade da
vida no episódico.
Segundo Calvino (1990) a leveza é “um modo de ver o mundo” que
se manifesta no tratamento da linguagem, de acordo com o estilo do autor,
nas imagens visuais que sugerem leveza, ou no pensamento que exige
maior percepção às sutilezas. Ela não consiste na recusa da imagem, mas
na recusa da visão direta das coisas que imprimem em sua representação o
mesmo peso, opacidade e inércia da vida; se a literatura quer despojar-se do
“peso do viver”, ela precisará da imaginação como impulso à leveza, por
meio da qual a imagem da realidade é pulverizada e o conhecimento é
obtido por meio da dissolução da compacidade do mundo; a partir de então,
a mesma realidade assume novas formas.
As grandes revelações da vida residem sempre no minúsculo, nos
movimentos mais sutis, essa é a verdadeira realidade (p. 20). Mergulhar
nesse universo dos acontecimentos é retirar de nossos ombros o peso do
mundo.
Em Seis Propostas para o Próximo Milênio, no capítulo
denominado “Leveza”, Calvino (1990) parte do mito de Perseu para explicar
a antinomia peso – leveza na literatura. Para ele, o triunfo do herói sobre a
horrenda Medusa é uma alegoria da relação entre o poeta e a sua realidade:
superação ao próprio peso, destreza para capturar uma imagem indireta do
real, imagem que seja um reflexo da vida para a própria vida. Despojar a
realidade de tudo que a sobrecarrega é dar um “salto ágil e imprevisto” que
76
supere a gravidade, como estratégia de apreensão indireta do mundo
sensível (p. 24). Porém, o critico não assinala supremacia da leveza sobre o
peso. Para ele, é o conhecimento do peso material da corporeidade que
garantirá a percepção daquilo que se libertou da força opressora e se tornou
objeto de admiração da leveza.
Sutileza e profundidade estão presentes tanto na estrutura da crônica
como do romance. Na crônica, a percepção de mundo passa do episódio
para a reflexão sobre a vida, uma vez que, sendo uma breve imagem desta,
acaba por revelar o seu peso. O romance, força que quer abarcar o máximo
da vida possível, traz em seu universo o peso da vida, mas o revela a partir
de imagens sutis.
Na crônica “Retrato de antepassados”, o narrador testemunha suas
origens. Para ele, pertencer a uma família renomada não é o mais
importante, nem saber se reinavam as “trevas completas” nas gerações
anteriores; bastam-lhe suas reminiscências, as histórias que ouviu sobre os
avós e a observação de uma foto dos pais. Sua árvore genealógica resume-
se em: um bisavô “berbere”, um avô “posto na roda”, uma avó
“maravilhosamente bela” e pais “graves e formosos” (BV, p. 11). As imagens
criadas sugerem leveza, mas mostram profundidade de reflexão sobre o que
somos hoje.
Também em “As memórias alheias”, a palavra irremediável
“Desconhecido” revela o peso diante da incapacidade de desvendar a
História em sua verdade e pureza (BV, p. 127). Ítalo Calvino (1990) afirma
que peso também advém do que apreciamos pela leveza, considera que o
anseio de alcançar o que há de mais puro e sutil nos corpos será sempre
uma “busca sem fim”, o que vem dialogar com a temática abordada pelo
cronista.
A narração do momento de criação da aquarela de Albrecht Dürer
revela o peso quando descreve a “fixidez” no movimento da mão do pintor
sobre o papel, do olhar que se volta do céu para as minúcias do solo.
Porém, uma levíssima camada de tinta, quase invisível, é aplicada sobre a
tela, sutil, mas imprescindível para valorizar todo o trabalho (BV, p. 191). O
universo criado por Dürer tem um céu diferente de como o conhecemos,
depois seu olhar penetra a terra, a ponto de evocar suas vibrações; seus
77
olhos descem cada vez mais e, nesse momento, as palavras são mortas
porque o gesto torna a composição tão viva quanto no momento da ação do
pintor. Cabe a nós, observadores da arte, leitores que se entregam à nova
atmosfera proposta pelas obras, perceber a “levíssima camada de tinta”,
num momento em que as palavras não são capazes de exprimir a
grandiosidade do mínimo gesto.
No inicio da narrativa em LC, temos a imagem do peso do latifúndio,
sua organização abrange desde as leis naturais até sua estrutura política e
econômica, logo após, teremos a família Mau-Tempo em sua primeira
mudança, a cena é retirada dos enfrentamentos diários da pequena família.
Embora seja episódico, o evento traz o “peso insustentável” da vida, de que
nos fala Calvino (p. 19). As personagens estão em sua caminhada, sob
intensa chuva, a mulher carrega seu filho, o homem dá conta da carga
composta pelo pouco que têm.
A organização da narrativa em LC caminha do peso para a leveza,
não apenas pela trajetória das personagens, elevadas das trevas para a luz,
da opressão ao triunfo, como também pelas imagens que constrói. Outrora
um homem caía ao chão, ficava ao nível das formigas: Germano Santos
Vidigal, personagem que mistura realidade e ficção, é o mártir das lutas do
latifúndio. Em sua geração, João Mau-Tempo é o milhano, ave da família
dos falconídeos, que de seu “alto voo” é “descido ao rés da terra para contar
os seus e avaliar as coragens” (LC, p. 242). Na geração seguinte,
representada pela personagem Maria Adelaide, João Mau-Tempo, embora já
falecido, participa do momento de ascese:
... e aqui neste virar do caminho está João Mau-Tempo a sorrir,
estará a espera de alguém, ou não se pode mexer, morreu com as
pernas tolhidas, será disso, levamos para a nossa morte todos os
males e também os últimos, mas foi engano nosso pensar assim,
voltam a João Mau-Tempo as suas pernas de rapaz e agora salta, é
um bailarino a voar, e vai sentar-se ao lado duma velha surda muito
velha, Faustina minha mulher que comigo comeste pão com chouriço
numa noite de Inverno e ficaste com a saia molhada, tantas
saudades. (LC, p. 365).
78
A saúde restituída à personagem, o salto, a dança, o voo que
sobreleva até mesmo a morte não poderiam representar com mais eficiência
a ideia de passagem de peso à leveza. Dessa forma, as grandes e efetivas
mudanças da mentalidade da época são percebidas nas imagens, na
brevidade das ações das personagens e até mesmo no ato de levantarem-
se do chão.
LC é um romance que atenta para os detalhes, deixando com que
eles falem por si mesmos o que a História Oficial preferiu não contar. “São
pormenores de pequena vida”, diz o narrador, mas essas pequenas vidas,
quando unidas, movem o universo do romance. A transformação das
relações político-sociais no latifúndio ao longo da História se explica pelo
mito da família alentejana – os Mau-Tempo, representantes de um heroísmo
coletivo. Essa é a “outra maneira” de se contar o Alentejo, o mito fala por si
só, não se pode explicar de outro modo – consoante o que diz Calvino ao
justificar o uso do mito de Perseu e a Medusa para argumentar a favor da
leveza..
No modo como conduz a história, o narrador dispensa atenção tanto
para o momento histórico – a macronarrativa –, como para o instante, a
expressão ou o olhar – a micronarrativa – vemos as características da
crônica inseridas no discurso romanesco. Para o narrador, não há propósito
em descrever o caminho de Adalberto com a linguagem rebuscada e prolixa,
própria do romance. Ele prefere a simplicidade sintática e a naturalidade
peculiar da oralidade e do texto cronístico, que repara no instante, nos
trabalhadores assentados em terras do proprietário indignado, estes
conhecem o verdadeiro motivo da cena descrita.
Percebemos a crônica inserida no romance LC pela maneira como
este apresenta o latifúndio, maneira que difere da História Oficial.
Acompanhando o dia a dia da família campesina portuguesa e escolhendo
os Mau-Tempo como seus representantes, a experiência de um ser torna-se
experiência de muitos.
Também pela aparência de superficialidade e gratuidade promovidas
pela elevação do episódico a fato desencadeador da História, há, no
romance, um movimento que parte do episódico para o duradouro, do
79
instante para a História, do individual para o coletivo. O movimento oposto
também se desenvolve: do duradouro para o episódico, da História para o
instante, do coletivo para o individual. Se quisermos compreender a história
do Alentejo, teremos que acompanhar o dia a dia da família campesina, que
muito tem a nos mostrar; e o que estes, por sua ignorância, não
conseguirem exprimir, teremos a companhia do narrador para esclarecê-lo.
Ele conduz a história de modo a promover uma leitura orientada do passado
e escolhe o que realmente deve ser mostrado para que se obtenha a história
completa.
Parece que, ao ler LC, partimos com o narrador do geral para o
particular, do abrangente para o restrito. Como um zoom de lentes que
aproxima da vida ou distancia os objetos: a existência do céu, da terra, da
paisagem, de animais, de plantas, de gente, da religião, do Estado, dos
“Bertos”, do dinheiro, da família, do indivíduo, cada gesto, cada ruga: “tudo é
a mesma história” (LC, p. 286). Assim, damo-nos por satisfeitos, o narrador
cumpriu o seu propósito. Em um tom de parábola, conta a história de outra
maneira.
A alegoria do latifúndio e do período histórico não teria outro terreno
para melhor se fixar. Segundo Benjamim, “a alegoria se instala mais
duravelmente onde o efêmero e o eterno coexistem mais intimamente” (apud
Gagnebin, 1999, p. 37). Falando de LC, a alegoria se faz a partir de um
híbrido entre o romance e a crônica. No texto multíplice, como o romance, há
espaço para muitas vidas; conforme diz Calvino (1990): “cada vida é uma
enciclopédia, na qual tudo pode ser remexido, reordenado, de todas as
maneiras possíveis” (p. 138), Saramago não poderia escolher melhor
representante para conter seu universo ficcional que o leque de
possibilidades chamado romance, no qual as histórias se entroncam e
formam a grande rede. No capítulo denominado “Multiplicidade”, da obra
Seis Propostas para o Próximo Milênio, Calvino (1990) nos pergunta:
“Quem somos nós, que é cada um senão uma combinatória de experiências,
de informações, de leituras, de imaginações?” (p. 138). Falamos da rede até
mesmo quando tratamos de nossa individualidade.
Romance e crônica estão coadunados em LC, tanto no modo de
olhar para o passado, como na forma de imprimir profundidade e
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sustentação àquilo que é breve por meio da palavra poética. Quer no
jornalismo, quer nos livros, quer no romance, a crônica se revela como parte
de um todo que, embora não se lhe atribua a devida proporção, conduz à
valorização do que é pequeno frente à vida, mas nele estão as sinapses e
que justificam a existência do corpo como um todo.
Não saberíamos exprimir as mudanças sofridas pelo povo alentejano
com tanta sensibilidade, não fosse a narrativa da família retirante e de sua
posteridade. Citemos como exemplo, a personagem João Mau-Tempo, em
cuja semente estará a mudança: é o primeiro a nascer com o olhar “muito
azul” (LC, p. 18). Na infância, é alfabetizado (LC, p. 42), injustiçado pelos
filhos dos senhores (LC, p. 44), discriminado pelo próprio avô (LC, p. 46),
sujeito ao trabalho pesado (LC, p. 51). Aos 20 anos, alimenta o sonho da
farda (LC, p. 63), vai às sortes em direção à Lisboa (LC, p. 62), é dispensado
do serviço militar, adquire seu primeiro capote, esquece suas mágoas nas
coisas da mocidade (LC, p. 63).
A personagem oge com Faustina para com ela se casar (LC, p. 70),
ilude-se com a grande cidade (LC, p. 77), começa a luta pelo direito do
trabalho digno (LC, p. 102), adquire nova mentalidade religiosa (LC, p. 121),
é interpelado e humilhado pela guarda (LC, p. 155). Aos 42 anos, já sofre
com o cansaço do corpo (LC, p. 205); enganado por um dos companheiros,
por ser acusado de comunista (LC, p. 236).
Segundo o Estado, é “João Mau-Tempo, natural e morador de Monte
Lavre, de quarenta e quatro anos de idade, filho de Domingos Mau-Tempo,
sapateiro, e de Sara Conceição, louca, com título de perigoso” (LC, p. 241).
Ao ver da igreja, parecia ser bom homem, porém “tantas fez q ue as pagou
todas”, um dos piores, antes fosse dado a tabernas (LC, p. 242). Preso
durante seis meses e um dia (LC, p. 245), pensa somente na família e na
liberdade (LC, p. 249); conhece as alegrias da prisão (LC, p. 261).
Aos cinquenta anos, participa do nascimento da neta Maria
Adelaide, herdeira dos olhos azuis do avô (LC, p. 295); a velhice e a morte
lhe chegam aos 67 anos (LC, p. 347), mas, no dia dos “vivos e mortos”,
ressurgirá com sua saúde restabelecida, unindo-se a todos aqueles que
escreveram a História do latifúndio.
81
Esses fatos corriqueiros, assim como as experiências do cronista em
“Retrato de antepassados”, seriam pertinentes unicamente à família Mau-
Tempo, não fosse a força do romance que transforma todos esses
elementos em componentes da grande rede, de que nos diziCalvino. São os
pequenos sistemas que, entrelaçados, formam a multiplicidade do romance,
ao mesmo tempo em que, isolados, acabam por mostrar a composição do
organismo como um todo. Quanto não se explica da matéria, retirando-lhe
uma pequena amostra? Ao compreender a História (seja nas crônicas ou no
romance, Saramago retira-lhe o peso, alcança-lhe a mínima parte
constituinte: o instante; nele procura a natureza das coisas. Se, ao longo das
gerações, sempre houve uma busca pelo reconhecimento dos antepassados
para provar a nobre linhagem da família, a voz do povo evoca um passado
de lutas, não menos nobre, que desperta o mesmo orgulho. É esse orgulho
que faz se levantar da resignação e caminhar para um tempo promissor.
O início da narrativa mostra a “gente miúda”, como se o universo
fosse indiferente às personagens. Nesse momento, sentimos o peso, a
imensidão do existir. Ao longo do romance, inserimo-nos no universo
proposto pelo narrador e, em companhia deste, passamos a acompanhar as
personagens mais de perto e encontramos também a leveza de superar a
opressão.
Quando finalizada a leitura do romance, atingimos a proporção do
corpo que nos fora apresentado antes: a paisagem, o latifúndio. Primeiro, o
narrador do romance apresenta a matéria em sua totalidade para depois
contá-la de um modo que mostre a sua composição mínima. Essa partícula
não se coloca apenas como material para análise aprofundada, ela pode
revelar o ser em sua estrutura completa, pois mantém suas propriedades.
As efemérides muito têm a nos revelar sobre a vida em sua totalidade,
e sobre História. Que maior proveito haveria se olhássemos para as pessoas
a nossa volta sabendo que estas justificam o que somos, ao passo que o
que somos forma com eles a grande rede da vida.
82
CONCLUSÃO
Graças à multiplicidade e à força do romance, propriedades que
permitem a inserção de diversas manifestações da linguagem na estrutura
desse gênero, a História se faz por meio da oralidade e das muitas vozes
que o aspecto oficial da historicidade costuma não incluir em seus registros.
O material histórico com que Saramago trabalha, em LC, é o mito, a saga a
poesia, que elevam os mínimos fatos correntes, de aparência trivial, à
elevada experiência reveladora de vivacidade e conhecimento de mundo.
Nesse romance, as vozes do passado não repercutem no presente,
atuam nas grandes conquistas e para elas contribuem. O romance não
representa subversão à História, uma vez que o universo ficcional não é
criado para alcançar o caráter lacunar do registro histórico e, assim,
preenchê-la, mas para ser uma nova atmosfera de experimentação, por
meio do qual a História Oficial se torna mais próxima de nós. Também não
assume forma de revisitação do passado, haja vista o pensamento de
Saramago acerca da História como Ficção, ambas seguem o subjetivismo
da escolha e do registro. Conhecer o passado implica o conhecimento do ser
em sua totalidade, como se o modo de vida das gerações fosse resultado de
um processo de amadurecimento que não teve inicio na contemporaneidade.
Essa transformação do material histórico é uma das características do
romance que causam estranhamento, afora as linguagens que o gênero
reúne; nele, a família Mau-Tempo pode explicar muito da História.
De aparentes banalidades, de pequenezas, a princípio, sem
propósito, forma-se o romance. O gênero que atenta para a efemeridade é a
crônica, pois vê no episódico uma fonte para a apreensão do todo; porém,
em LC, há uma sucessão de quadros efêmeros que, revestidos de certa
durabilidade, alcançam sublimação da experiência da vida como um todo.
Para a pergunta de Saramago acerca das crônicas, se estas são
pretextos ou testemunhos, talvez a resposta mais adequada seja: crônicas
são testemunhos que servem como pretextos desencadeadores da História.
Uma História não conivente com o isolamento das gerações, mas que reúne
todas as gerações e seus agentes modificadores.
83
No dia a dia, os registros oficiais perdem força e as tradições
transmitidas oralmente acabam por ocupar lugar de maior importância. Por
isso, Saramago emprega a oralidade, o canto e a voz para fazer valer a
verdadeira história do latifúndio. A crônica traz o que há de essencialmente
perene nas coisas que julgamos superficiais; em seu bojo está a oralidade e
por meio desta quer presentficar o momento, oportunizar a experiência
sensível. Já o romance, aproveita-se da junção das “pequenas vidas” e, por
meio das experiências reveladas em cada momento, vai formando sua teia.
Isso não quer dizer que o romance tenha superioridade em detrimento
da crônica. Uma pequena amostra de determinada essência ainda mantém
as mesmas características que o conteúdo total de um frasco que comporte
todo o volume; assim também as efemeridades revelam a profundidade de
toda a existência do ser. As diferenças entre os gêneros narrativos vão para
além das proporções estruturais; residem no silêncio, nos vãos do texto, no
não-dito que contém maior profundidade, mesmo num pequeno texto, como
a crônica.
O papel da crônica no jornal é de proporcionar o contato fortuito com
o episódio de maneira tal que sua experiência chegue a reverberar no
comportamento dos indivíduos consumidos pelos afazeres do dia a dia. Na
literatura, sua permanência se torna mais duradoura, há mais tempo para
que sua experiência se incorpore aos indivíduos, desvelando o que a
agitação da vida moderna deixa sombreado, escondido. Inserida no
romance, a crônica é a ínfima parte que movimenta a obra; ora revela a
leveza da matéria, sublimando a realidade por meio de imagens sutis, ora o
peso da matéria, assumindo forma molecular: mínima porção que mantém
as características de toda a substância.
Entendemos, então, o tom ensaístico atribuído às crônicas de José
Saramago como precursoras do estilo de escrita do autor, mesmo nos
grandes romances. Suas crônicas são anteriores à produção de LC e já
revelam fina ironia, olhar diferenciado para a vida, valorização do minúsculo,
sublimação do que é quase imperceptível, reconhecimento da História como
rede – assim como o romance – onde se entroncam gerações, experiências
individuais e coletivas, as quais são sempre compartilhadas com o leitor.
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De igual modo, apreendemos o fato de as crônicas saramaguianas
serem oficinas do romance. Não o são porque constituem um gênero menor,
laboratorial ou experimental, mas porque representam um pequeno espaço
onde se exerce o ofício de um grande romancista. A crônica também é
reveladora da imensidade da vida, embora esteja num espaço limitado e
conciso; não perde para o romance e, aliada a ele, constitui uma das formas
de verbalização da essência do ser.
Retomando a epígrafe da introdução de nosso trabalho, o perigo que
há em “escrever e falar” é a proporção que se atribui aos acontecimentos. Às
vezes, como diz o narrador da História do Alentejo, somos movidos pela
“fraca memória” ou por “nenhuma curiosidade”, isso porque, perdemos a
beleza da vida quando reduzimos histórias breves e graciosas a banalidades
corriqueiras que limitam a reflexão e cortam as asas da imaginação (LC, p.
231).
O objetivo do narrador de LC se cumpriu à medida que a crônica foi
inserida no romance por meio de imagens, falas, vozes, discursos,
experiências de vida, pensamentos e gestos do dia a dia que se
entrecruzaram, formando as ramagens da existência humana como um todo.
Se olharmos para a vida como um cronista, o mais simples gesto responderá
aos nossos anseios com profundidade e exatidão, teremos sensibilidade
para captar as sutilezas e nada nos será obscurecido. Se adotarmos a visão
do romancista, propagaremos nossas experiências, deixaremos com que
estas falem a nós e aos outros, não bastará a cada um existir em si mesmo.
Isso é também reagir ao peso do viver.
O projeto arquitetônico de Saramago passeia das crônicas para o
romance e, mesmo em suas últimas obras, sentimos a sensibilidade voltada
para a essência humana. Fora dos temas históricos, suas parábolas também
afloram o peso, a leveza, a multiplicidade da vida como um todo compacto e
cumulativo.
O romance é a vida, a crônica, um breve episódio. No entanto, ambos
podem ser reveladores da mesma experiência, com a mesma intensidade.
Saramago continua a captar a essência humana e propagar suas
experiências.
85
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SOUZA, Carlos Alberto. ”Saramago questiona poder da literatura”. Folha de
São Paulo. São Paulo, 12/04/97.
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ANEXOS
Retrato de Antepassados
Nunca fui afecto a essa vaidade necrófila que leva tanta gente a pesquisar o
passado e os que passaram, buscando os ramos e os enxertos da árvore que nenhuma
botânica menciona – a genealógica. Entendo que cada um de nós é, acima de tudo, filho
das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o tempo que cá anda.Saber donde vimos e
quem nos gerou, apenas nos dá um pouco mais de firmeza civil, apenas concede uma
espécie de alforria para a qual em nada contribuímos, mas que poupa respostas
embaraçosas e olhares curiosos do que a boa educação haveria de permitir. Ser filho de
alguém bastante conhecido para que não fiquem em branco as linhas do cartão de
identidade, é como vir ao mundo carimbado e com salvo-conduto.
Por mim, nada me incomoda saber que para lá da terceira geração reinam as trevas
completas. É como se meus avós houvessem nascido por geração espontânea num mundo
já todo formado, do qual não tinham nenhuma responsabilidade: o mal e o bem eram obra
alheia que a eles só competia tomar nas mãos inocentes. Apraz-me pensar assim,
principalmente quando evoco um bisavô materno, que não cheguei a conhecer, oriundo da
África do Norte, a respeito de quem me contavam histórias fabulosas. Descreviam-no como
um homem alto, magríssimo, e escuro, de rosto de pedra, onde um sorriso, de tão raro, era
uma festa. Disseram-me que matou um homem em duvidosas circunstâncias, a frio, como
quem arranca uma silva. E também me disseram que a vítima é que tinha razão: mas não
tinha espingarda.
Apesar de tão espessa nódoa de sangue na família, gosto de pensar neste homem,
que veio de longe, misteriosamente de longe, de uma África de albornozes e areia, de
montanhas frias e ardentes, pastor talvez, talvez salteador – e que ali fora iniciar-se na
velha ciência agrícola, de que logo se afastou para ir guardar lezírias, de espingarda
debaixo do braço, caminhando num passo elástico e balançado, infatigável. Depressa
descobriu os segredos dos dias e das noites, e depressa descobriu também a negra
fascinação que exercia nas mulheres o seu mistério de homem do outro lado do mundo. Por
isso mesmo houve aquele crime de que falei. Nunca foi preso. Vivia longe da aldeia, numa
barraca entre salgueiros, e tinha dois cães que olhavam os estranhos fixamente, sem ladrar,
e não deixavam de olhar até que os visitantes se afastavam, a tremer. Este meu
antepassado fascina-me como uma história de ladrões mouros. A um ponto tal que se fosse
possível viajar no tempo, antes o queria ver a ele do que ao imperador Carlos Magno.
Mais perto de mim (tão perto que estendo a mão e toco a sua lembrança carnal a
cara seca e a barba crescida, os ombros magros que em mim se repetiram), aquele avô
guardador de porcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da Misericórdia, homem
toda vida secreto, de mínimas falas, também delgado e alto como uma vara. Este homem
teve contra si o rancor de toda a aldeia, porque viera de fora, porque era filho das ervas e,
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não obstante, dele se enamorara minha avó materna, a rapariga mais bela do tempo. Por
isso meu avó teve de passar a sua noite de núpcias sentado à porta da casa, ao relento de
pau ferrado sobre os joelhos, à espera dos rivais ciosos que tinham jurado apedrejar-lhe o
telhado. Ninguém apareceu, afinal, e a lua viajou toda a noite pelo céu, enquanto minha
avó, de olhos abertos, aguardava o seu marido. E foi já madrugada clara que ambos se
abraçaram um ao outro.
E agora meus pais, nesta fotografia com mais de cinquenta anos, tirada quando
meu pai já voltara da guerra – a que para sempre ficou sendo a Grande Guerra – e minha
mãe estava grávida de meu irmão, morto menino, de garrotilho. Estão os dois de pé, belos e
jovens, de frente para o fotógrafo, com um ar de gravidade solene, que é talvez temor diante
da máquina que fixa a imagem impossível de reter sobre os rostos assim preservados.
Minha mãe tem o cotovelo direito assente numa lata coluna e segura na mão esquerda,
caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe
e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como se fosse uma asa. Ambos pisam
acanhados um tapete de ramagens. Ao fundo, a tela mostra vagas arquitecturas
neoclássicas.
Um dia tinha de chegar em que eu contaria estas coisas. Nada disso tem
importância, a não ser para mim. Um avô berbere, um outro avô posto na roda (filho oculto
de uma duquesa, quem sabe?), uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e
formosos, uma flor num retrato – que mais genealogia me importa? a que melhor árvore
poderei encostar-me?
SARAMAGO. A Bagagem do Viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 9 – 11
95
As memórias alheias
Aqui há uns bons vinte anos deu-me um interesse repentino pelos casos e
pessoas do começo do século. Achava eu que naquele tempo estaria a explicação de
coisas que não conseguia entender e que ainda hoje basto me confundem, e se é verdade
que não me esclareci muito, pude ao menos reconhecer umas tantas pessoas de quem o
ensino oficial pouco mais me dera que o nome. Gastei horas inúmeras no ambiente
cheirante a bafio de alfarrabistas, esgrilando nas prateleiras à busca de livros que me
dessem o santo-e-senha desejado, o abre-te Sésamo uma simples chave capaz de me
ajudar a decifrar as linhas cruzadas daqueles homens que na cidade de Lisboa (esta ou
outra? a mesma, ou uma que no mesmo lugar àquela se sobrepôs?) andaram por salas
fechadas, por corredores sombrios, por larhas avenidas varridas de tiros, conspirando e
tecendo, e por fim atirando às claras os gritos da República.
Juntei dezenas de livros, tomei notas, organizei um grosso ficheiro que depois
deixei dispersar: metera-se-me na cabeça fazer obra de historiador, escavar os textos e as
memórias dos outros até encontrar o veio de água livre, a verdade puríssima. Ao cabo de
um ano desisti. Estava afogado em uma irreprimível onda, sentia-me obsidiado, tomado de
ideia fixa, murmurando nomes, datas, lugares,encadeando factos, rectificando a toda hora,
opondo depoimentos diferentes, verificando suspeitas e insinuações – um inferno. Não tive
resistência bastante, e hoje, de tão boas intenções, restam-me uns poucos livros, umas
raras notas que a ninguém servem. Falhei, e aborreço-me por ter falhado.
Hoje porque o dia 5 de Outubro acaba de passar, Vêm-me estas coisas á
lembrança e por causa delas volto a folhear velhos opúsculos e folhetos com as capas
manchadas de humidade, alguns anotados por mão que não conheci (quem sabe se de
gente que como eu teve a veleidade de descobridor de filões), e sinto um renovo de
curiosidade antiga, a espécie de febre de caçador de factos que faz dos historiadores
doentes crônicos. Não me vejo períodos de recaída, mas sei o que significa esse tremor das
mãos ao virar as páginas: o segredo está em qualquer parte, debaixo dos dedos, numa
entrelinha que se esconde.
Pego no Relatório de Machado Santos, escrito em 1911 e já cheio de amargura e
de queixumes; folheio o opúsculo de José Maria Nunes, inventor de bombas, espécie de
Nobel sincero que destina o produto da obrinha coletiva A Bomba Explosiva às humanitárias
instituições que eram o Asilo de S. João, a Obra Maternal, o Vintém Preventivo, o Centro
Republicano João Chagas, o Centro Republicano João Chagas Dr. Castelo Branco Saraiva
e a Associação Escola do Ensino Liberal: para o autor, nenhum tostão. E percorro também
as páginas irritadas doutro folheto, escrito por Celestino Steffanina aceso adepto de brito
camacho.Vou lendo, lendo, e no fim dou uma vez mais com o que estes vinte anos me
haviam feito esquecer: “A relação dos mortos e feridos durante a Revolução, segundo as
notas fornecidas pelas administrações dos hospitais militares e civis, Misericórdia, Morgue e
Cemitérios”. E admiro-me como foram assim tantos e ninguém os conhece.
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Ao leitor que anda por longe destas coisas antigas, pergunto: quantos calcula que
foram? vinte? trinta? cinquenta? cem? Não acerta, com certeza, porque no dizer de muita
gente que veio depois, a revolução do 5 de Outubro foi uma escaramuça entre um regime
podre e meia dúzia de revoltosos pouco seguros. Eu digo: entre mortos e feridos, se a
relação de Steffanina não foge à verdade, foram 440, e se, para o reconhecimento da
gravidade do caso, 76 mortos chegam, aí os tem o leitor. Há nesta lista poucas figuras
conhecidas de quem tenha ficado o nome: o almirante Cândido dos Reis é o mais familiar, e
este tem apelido em esquina de avenida, mas de jeito que ninguém sabia de quem se trata,
como pouca gente saberá também por que está na Avenida 24 de julho tal data. Boa razão
tinha aquele polícia amador do Edgar Poe, que dizia não haver melhor modo de seesconder
alguma coisa que tê-la bem à vista.
Vou percorrendo os nomes e vejo as profissões: soldados, marinheiros,
carpinteiros, tipógrafos, alfaiates, comerciantes, tanoeiros, descarregadores, padeiros,
funileiros, tecelões, serralheiros, estudantes, moços de fretes – um rosário interminável de
ofícios populares. E, neste ler e pensar, encontro de súbito o número 399 da lista com a
seguinte menção: “Desconhecido.” Nada mais além de o ter morto uma arma de fogo e ter
recolhido à morgue.
Ponho-me a reflectir, a olhar a palavra irremediável, e digo a mim mesmo, enfim,
que se não escrevi a verdadeira história da revolução de 5 de Outubro foi apenas porque
nunca conseguiria saber quem havia sido aquele homem: 399, morto com um tiro e
transportado para a morgue. Anónimo português.
SARAMAGO. A Bagagem do Viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 125 – 127
97
Com os olhos no chão
O céu é todo feito de rosa e amarelo em partes iguais. O pintor esqueceu as fáceis
memórias do azul e amontoou ao fundo umas névoas espessas que filtram a luz sem
direção nem sombras que rodeia as coisas e torna visível o outro lado delas, como se tudo
fosse simultaneamente opaco e transparente. Depois baixou a cabeça e mergulhou o rosto
na terra até que os olhos, as pálpebras inferiores, os cílios arqueados e trêmulos, ficassem,
rentes à superfície de um chão feito de pasta vegetal, limosa, e ao mesmo tempo vítrea,
como um tufo transportado através de todos os ardores e frio da volta maior do mundo,
como um escalpe arrancado inteiro.
E agora que se reflecte na água única que cobre os olhos, polidos e macios como
esferas velhas de marfim, a teia vegetal que é a única vida aquém da cor amarosa do
espaço, o pintor vai minuciosamente defender da morte, do vento rápido, da inundação que
derruba, os caules finíssimos, as folhas rasteiras e gordas, as cápsulas cartilaginosas, as
palmas minúsculas das gramíneas. Todas essas ervas hão-de ter nome nas classificações
botânicas, todas hão-de ter cem apelativos diferentes consoante os lugares onde nasçam e
os homens que os habite. Aqui, porém, o tempo não começou, os homens são mudos, os
nomes não existem, a linguagem está por inventar. Só a mão encaminha o gesto
entendedor do mundo.
Um pouco para a direita, algumas folhas largas, envolventes, curvadas como pás
encerram na escuridão interior não se sabe que criança perturbadora, enquanto outra folha
igual, já despegada, como se tivesse sido mordida à flor do chão,descai para trás, Mas as
que estão de pé condensam uma energia insolente, uma ameaça de devoramento daquela
que revira para o céu baço e morno uma face em que as nervuras já se decompõem.
Entretanto, uma erva cilíndrica levanta-se como bainha donde nasce uma folha única,
delgada em espada, enquanto outra folha gémea se lança para fora e para cima, apontando
para fustes delgadíssimos, sustentadores de cachos leves que talvez venham a ser aveia
em tempos futuros, ou já o são, sem nome ainda.
Para a esquerda, balouçam (balouçariam) sobre caules secos uma espécie de
pagodes com frestas a toda volta, uma eflorescência cor de laranja e também uns
filamentos pilosos como barbas, tudo supondo ou sugerindo promessas de destilações
secretas para os grandes sonhos dos futuros homens assustados,
Pairando abaixo, sem parecer ligar-se a nenhum apoio, há um chuveiro de
pequeninos pontos amarelos que são flores, mas de que nada mais se vê que a palpitação
microscópica. Poderiam ser insectos, mas esses foram excluídos daqui para que nada se
sobrepusesse à serenidade, à lentidão das seivas, à permanência das fibras. Logo ao lado,
nascendo directamente da terra, folhas que parecem esfarrapadas são como as árvores que
povoarão os bosques das fadas e dos duendes, quando os homens precisarem de animar
de desejos e medos a impassibilidade vegetal.
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Os olhos do pintor agora rasgam a superfície do chão, o musgo que é a luva sobre
a terra húmida cobrindo as flatulências da água que vagamente ressumbra sob o peso da
vegetação. Não há mais que ver entre o musgo e o céu, ou tudo está por ver ainda porque
as ervas estremeceram todas, fez-se e desfez-se dez vezes a rede cruzadas dos caules,
oscilaram as folhas.Tudo estaria novamente por contar, e é impossível o relato. Guarda-se
pois a imagem primeira enquanto o rosto do pintor se afunda mais, e os olhos descem ao
chão vítreo, onde as raízes rompem caminho como pequenas mãos multiplicadas em dedos
longuíssimos, donde nascem outros dedos mais finos, ventosas minúsculas que sugam o
leite preto da terra. Os olhos do pintor descem mais ainda, estão já longe do corpo e vogam
no meio da fermentação esponjosa da turfa, entre bolhas de gás, olhos ímpares que
lentamente incham e depois rebentam como lagrimas.
A mão do pintor passa pelo papel, dispondo a tinta em manchas que parecem
abandonos, avança com a fixidez de movimento de um astro em órbita ao longo da
necessidade de uma haste de erva, volta a cobrir de mais névoas o céu ainda liso de sol e
de nuvens. Entretanto os olhos cerram-se, cansados, a mão suspende o último gesto, e
depois, enquanto as pálpebras voltam a abrir-se, o pincel desce devagar e depõe no lugar
predestinado uma levíssima camada de tinta, quase invisível, mas sem a qual todo o
trabalho teria sido falso e inútil.
Não há nada mais vivo do que esta aguarela de Albrecht Dürer, aqui descrita com
palavras mortas. Com os olhos no chão.
SARAMAGO. A Bagagem do Viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 189 – 191
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