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LUÍS MAURÍLIO DA COSTA CAMÊLLO
A RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA
DA PESSOA JURÍDICA NOS CRIMES AMBIENTAIS
Centro Universitário Salesiano de São Paulo UNISAL
Lorena
2008
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2
LUÍS MAURILIO DA COSTA CAMELLO
A RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA
DA PESSOA JURÍDICA NOS CRIMES AMBIENTAIS
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação
stricto sensu em Biodireito, Ética
e Cidadania, do Centro
Universitário Salesiano de São
Paulo, U. E. Lorena, como
exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Direito, sob
orientação do Professor Doutor
Lino Rampazzo.
Lorena/SP
2008
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Este trabalho ao Prof. Maurílio
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Camello, pai, amigo e mestre, cujo
Camello, pai, amigo e mestre, cujo Camello, pai, amigo e mestre, cujo
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exemplo não é nada menos qu
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exemplo não é nada menos que minha
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fonte de inspiração.
fonte de inspiração.fonte de inspiração.
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A Alessandra, minha companheira em
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todas as horas, que tanto me incentiva
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a ser uma pessoa melhor.
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a ser uma pessoa melhor.
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Lino Rampazzo, paciente e ilustrado orientador,
que, mesmo em sua residência, renunciando às poucas horas de
descanso que se devia, não se negou a receber, gentilmente, o
autor destas linhas, para ler, corrigir e sugerir.
Ao Prof. Dr. Guilherme Guimarães Feliciano, pela sua
extrema cortesia em colaborar, como co-orientador, apontando
fontes de pesquisa, questões, impasses e soluções jurídicas, na
partilha generosa de seu muito saber.
Às Professoras Doutoras Grasiele Augusta Ferreira
Nascimento e Ana Maria Viola de Souza, pela leitura
cuidadosa deste trabalho e sugestões oferecidas.
À Professora Doutora Regina Vera Villas Bôas, pela
competência e extremada simpatia.
A todos os Ilustres Professores e Colegas do Programa de
Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São
Paulo-Lorena.
5
RESUMO
A dissertação tem por objeto a possibilidade de responsabilização da Pessoa
Jurídica como sujeito ativo de crimes ambientais. O enfoque é, pois, na área
criminal. Levando-se para tanto em consideração as dificuldades teóricas e
práticas que a matéria apresenta, procede-se à investigação dos documentos
jurídicos pátrios, bem assim da literatura específica, dogmática e
doutrinário-zetética, com o objetivo de fundamentar a afirmação da
responsabilização da pessoa jurídica no que tange os crimes ambientais. A
argumentação se constrói a partir de exposição dos elementos conceituais
básicos atinentes às diversas espécies de pessoa e de pessoa jurídica. Passa-
se aos aspectos éticos relativos à responsabilidade da pessoa jurídica,
instituída a partir de suas finalidades e capaz de decisões. Nesse teor,
analisa-se particularmente a proposta ética de Hans Jonas, que sugere a
ultrapassagem das éticas antigas no sentido de uma ética da
responsabilidade, que leve em conta as novas condições da ação humana. A
seguir, discutem-se alguns conceitos relativos à responsabilidade penal
subjetiva e objetiva e aborda-se o tratamento que a Constituição Federal dá
à matéria. Examina-se, então, de perto a aplicação das penas à pessoa
jurídica e, levando-se em conta a oposição doutrinária a respeito, aproxima-
se do pensamento de Winfried Hassemer, que pondera sobre a necessidade
de se rever o Direito Penal moderno, resgatando-se de um lado os princípios
do Direito penal clássico, e de outro, sugerindo possíveis alterações no
tratamento da responsabilização das pessoas jurídicas. Examinam-se alguns
aspectos da Lei 9.605/98, que responsabiliza a pessoa jurídica nos delitos
ambientais, tipificando as condutas nocivas ao meio ambiente. Analisam-se
os tipos sancionadores da referida lei, com o intuito de verificar sua
natureza jurídica, espécies de delitos ambientais e questões referentes à co-
autoria e participação no cometimento desses delitos. Para se evidenciar,
por fim, as dificuldades de alteração do pensamento jurídico, na matéria,
selecionam-se algumas decisões dos tribunais pátrios, desfavorável uma e
favorável outra à responsabilização das pessoas jurídicas no cometimento
dos delitos ambientais.
Palavras-chave:
Responsabilidade Penal Pessoa Jurídica Crimes Ambientais Ética do
meio ambiente - Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica
6
RESUMEN
La disertación tiene por objeto la possibilidad de responsabilización de la
persona jurídica como sujeto activo de delitos contra el medio ambiente.
Ponendose para eso las dificuldades teóricas y prácticas, que la matéria
presenta, procedese a la investigación de los documentos juridicos pátrios,
asi como de la bibliografia especifica, dogmática y doctrinal-zetética, con
el fin de fundamentar la afirmación de la responsabilización de la persona
jurídica en lo que respecta a dos delitos contra el medio ambiente. La
argumentación se construye desde la exposición de los elementos
conceptuales básicos, relativos a las diferentes espécies de persona y
persona jurídica. Pasase a los aspectos éticos relacionados con la
responsabilidad de la persona jurídica, instituída desde sus propósitos y
capaz de decisiones. En este contenido, analisase en particular la propuesta
ética de Hans Jonas, el cuál sugere la superación de las éticas antiguas en
dirección a una ética de la responsabilidad, que tenga en cuenta las nuevas
condiciones de la acción humana. En lo siguiente, se examinan algunos
conceptos relacionados con la responsabilidad penal subjetiva y objetiva,
como es abordado el tratamiento que la Constitución Federal otorga a la
cuestión. Examinase de cerca la aplicación de sanciones a la persona
jurídica y, teniendose en cuenta la oposición doctrinaria acerca de ello, se
hace aproximación a lo pensamiento de Winfried Hassemer, que pondera
sobre la necessidad de revisar el Derecho penal moderno, haciendose el
rescate, de una parte, de los princípios del Derecho penal clasico, e, de
outra, com sugerencias de posibles cambios en el tratamiento de la
responsabilización de las personas jurídicas. Son examinados entonces
algunos aspectos de la Ley 9.605/98, la cual responsabiliza la persona
jurídica en los delitos ambientales y describe los tipos de la conducta
perjudicial para el medio ambiente. Se consideran los tipos de pena de la
referida ley, a fin de determinar su naturaleza jurídica, las espécies de
delitos contra el medio ambiente y cuestiones relativas a la autoria conjunta
y participación en el cometimiento de estos delitos. Para demonstrar por
ultimo las dificuldades de cambiar el pensamiento jurídico sobre el tema, se
selecionan algunas decisiones de los tribunales pátrios, favorable una y
desfavorable outra a la responsabilización de las personas jurídicas en el
cometimiento de los delitos ambientales.
Palabras-clave:
Responsabilidad Penal Persona Jurídica Delitos ambientales Ética del
medio ambiente Responsabilidad Penal de la Persona Juridica
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
08
CAPÍTULO I – DE PESSOAS E RESPONSABILIDADES
13
1.1
A pessoa: distinções jurídicas 13
1.1.1 A pessoa física 13
1.1.2 A pessoa jurídica 15
1.1.3 Os entes “despersonalizados” 25
1.2 Essência personalista da comunidade 27
1.3 Responsabilidade e imputabilidade: o pensamento de Hans Jonas 30
1.3.1 O horizonte das éticas antigas 32
1.3.2 O “princípio responsabilidade” 38
1.3.3 Ética da obrigação do agir responsável
46
CAPÍTULO II – RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA
51
2.1 Responsabilidade penal subjetiva ou objetiva: conceitos em discussão e aproximação legal 51
2.2 Tratamento Constitucional 57
2.3 Aplicação das penas à Pessoa Jurídica 61
2.4 Perante um conflito: a perspectiva de Winfried Hassemer 65
CAPÍTULO III – DOS CRIMES AMBIENTAIS
75
3.1 O meio ambiente e o conceito de dano ambiental 75
3.1.1 Conceito de meio ambiente 75
3.1.2 Espécies de meio ambiente 81
3.1.3 Formas de danosidade 88
3.2 Previsão legal, conceito e espécies de crimes ambientais
90
3.3 Co-autoria e participação nos crimes ambientais e a omissão penalmente relevante 94
3.4. Responsabilidade penal da pessoa jurídica nos tribunais 97
3.4.1 No Tribunal de Justiça de Santa Catarina 98
3.4.2 No Superior Tribunal de Justiça 101
CONCLUSÃO
108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
114
ANEXO: JULGADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA
CATARINA
130
8
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objeto demonstrar, apesar das
dificuldades conceituais e práticas, a possibilidade de responsabilização da
Pessoa Jurídica como sujeito ativo de crimes ambientais. O trabalho tem,
pois, seu enfoque na área criminal.
O tema possui considerável relevância científica, pois, a
responsabilização penal da pessoa jurídica no cometimento dos delitos
ambientais é, de certa forma, uma tentativa de proteger o meio ambiente, o
qual sofre demasiadamente com a conduta criminosa tanto das pessoas
físicas quanto jurídicas, as quais, na maioria das vezes, saem impunes
quando acusadas por crimes ambientais, visto a sua singularidade em
relação à legislação penal vigente.
Do ponto de vista acadêmico, estabelecer uma responsabilidade penal
objetiva para as hipóteses de ocorrência de crime ambiental praticado por
pessoa jurídica, sem dúvida, poderia constituir uma tentativa de
modernização do Direito Penal pátrio, o qual prevê apenas a possibilidade
de prática delitiva das pessoas naturais, que, só essas, teriam vontade,
essa condição sine qua non para o cometimento de uma infração penal e a
conseqüente possibilidade de sujeição à sanção penal. A pesquisa visa, pois,
especificamente, a
esclarecer os fundamentos jurídicos e o suporte ético da
inclusão da Pessoa Jurídica, como sujeito ativo de crimes ambientais.
9
Estrutura-se o trabalho em três capítulos, que se organizam desde os
fundamentos conceituais jurídicos e ético-jurídicos, até o exame das
infrações ambientais, nas quais pode manifestar-se a responsabilidade penal
das pessoas jurídicas.
No primeiro capítulo, sob o título DE PESSOAS E
RESPONSABILIDADES, expõe-se a base conceitual, digamos primária, da
dissertação, com as noções de pessoa, física e jurídica, suas espécies, e a
essência personalista da comunidade. Esse último aspecto abre-se para a
consideração de uma perspectiva ética possível, dadas as novas e inéditas
condições da ação humana, na era tecnológica e planetária. Apresenta-se,
então, o pensamento de Hans Jonas, que propõe uma ultrapassagem das
éticas antigas (preferencialmente orientadas para ação individual) em
direção a uma ética da responsabilidade, voltada para a coletividade e o
futuro.
No segundo capítulo, RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA
JURÍDICA, discutem-se alguns conceitos relativos à responsabilidade penal
subjetiva e objetiva e aborda-se o tratamento que a Constituição Federal dá
à matéria. Examina-se, então, de perto, a aplicação das penas à pessoa
jurídica. Levando-se em conta a oposição doutrinária a respeito, faz-se uma
aproximação ao pensamento de Winfried Hassemer, que pondera sobre a
necessidade de se rever o Direito Penal moderno, resgatando-se de um lado
os princípios do Direito penal clássico, e de outro, sugerindo possíveis
alterações no tratamento da responsabilização das pessoas jurídicas.
10
O terceiro capítulo, DOS CRIMES AMBIENTAIS, analisa os tipos
sancionadores da Lei 9.605/98, com o intuito de verificar sua natureza
jurídica, espécies de infrações ambientais e questões referentes à co-autoria
e participação no cometimento das infrações ambientais. Para evidenciar as
dificuldades de aceitação do novo ordenamento jurídico, expõem-se, por
fim, algumas decisões de tribunais pátrios, desfavoráveis e favoráveis à
responsabilização das pessoas jurídicas no cometimento dos delitos
ambientais. Tais decisões não só vêm corroborar a idéia básica da
dissertação. São oportunas porque, de certo modo, se constituem em base de
um direito preocupado com a tutela indispensável e urgente do meio
ambiente e, por que não dizer, do próprio homem.
Por fim, uma referência aos aspectos metodológicos e à técnica de
pesquisa.
Entendendo-se por método o suporte lógico sobre o qual se há de
desenhar a pesquisa e seu registro escrito, fez-se a mescla dos métodos
indutivo e hipotético-dedutivo. Nesse sentido, da coleta e exame de
elementos conceituais filosóficos e jurisprudenciais, encontrados em nosso
ordenamento jurídico, buscou-se chegar a uma formulação teórica geral
sobre a responsabilidade criminal da pessoa jurídica, no âmbito dos delitos
contra o meio ambiente. Por outro lado, de hipóteses-princípios do Direito
Penal pátrio, como de princípios do Direito e da Ética Ambientais, se
desceu, pela análise, a conclusões e a procedimentos que atendam à
necessidade de submeter a Pessoa Jurídica à possibilidade de penalização
11
criminal, para se obter mais eficácia na tutela dos bens ambientais. Pode-se
afirmar que este é o movimento geral desta pesquisa.
Quanto às técnicas de pesquisa, utilizou-se predominantemente a
pesquisa bibliográfica, por meio da leitura analítica, não só dos documentos
jurídicos disponíveis, como da produção doutrinária, já registrada em livros
e revistas especializadas na temática. Nesse sentido, é preciso tornar
pública a dívida desse trabalho a três textos julgados fundamentais. O
primeiro deles é a tese de doutorado do Professor Guilherme Guimarães
Feliciano, aliás co-orientador desta dissertação: Teoria da Imputação
Objetiva no Direito Penal Brasileiro. Não há encômio que lhe seja
adequado: o Professor Guilherme traz com sua obra um marco definitivo no
pensamento jurídico brasileiro e internacional. Menciona-se também a obra
filosófica de Hans Jonas, O Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma
ética para a civilização tecnológica. Se ousada na pretensão de ultrapassar
as éticas clássicas, a obra de Jonas abre novo horizonte, ao propor o
cuidado, o temor e a coragem com relação às políticas públicas e às ações
das coletividades, visto o processo desencadeado pela tecnologia
contemporânea, que poderá pôr em risco a vida do planeta e do próprio
homem. Por fim, o autor desta dissertação não ficou menos impressionado
com o pensamento de Winfried Hassemer, expresso em Três Temas de
Direito Penal, muito especialmente com o terceiro deles, Perspectivas de
uma moderna política criminal. Aí o pensador alemão demonstra com
propriedade o divórcio entre o moderno direito penal e o direito penal
clássico e, diante dos novos fenômenos criminais, propõe o que ele chama
12
de direito de intervenção, mais orientado para a prevenção do que para a
repressão, muitas vezes inócua e desproporcionada.
Não nos furtamos a compulsar numerosas obras que, de algum modo,
tematizaram a questão e das quais se fez presença nas referências
bibliográficas finais. Pareceu-nos uma providência oportuna, para
verificarmos se não nos havíamos perdido demasiado fora do caminho, dado
o cenário de controvérsia em que se estende o problema da responsabilidade
penal objetiva da pessoa jurídica nos crimes ambientais. Ao final,
constatamos que não, e que era possível elencar uma série de proposições
conclusivas, de modo não apenas a sintetizar nossa posição, mas a deixar
suficientemente claro o eixo filosófico e jurídico, em torno do qual girou
nossa reflexão.
13
CAPÍTULO I
DE PESSOAS E RESPONSABILIDADES
1. 1 A pessoa: distinções jurídicas
1.1.1 A Pessoa Física
1
Pessoa física ou pessoa natural é o ser humano, considerado como
sujeito de direitos e obrigações. A pessoa física tem personalidade jurídica,
que não se confunde com a personalidade natural, que é individual, variável
de pessoa a pessoa. A personalidade jurídica é igual para todos os homens,
que a têm na mesma medida. A pessoa física tem também capacidade
jurídica, que não se confunde com a personalidade jurídica. A capacidade
jurídica é a medida jurídica das atribuições da personalidade jurídica. A
capacidade jurídica é uma medida limitadora ou delineadora da
possibilidade de adquirir direitos e de contrair obrigações.
Tal capacidade subdivide-se em:
a) Capacidade de fato e de direito: aquela exercida pessoalmente pelo
titular de direito ou do dever subjetivo (por ex.: a capacidade plena que tem
uma pessoa com mais de 18 anos para comprar um imóvel, assumindo a
dívida em prestações, ou para vendê-lo depois);
1
Tomamos aqui como fonte básica dessas distinções o que vem exposto por Mari a
Helena Diniz (2006, p. 511 et seq) e B. Mondin (1996, p.284 et seq.).
14
b) capacidade apenas de direito: aquela em que o titular não pode
responder pessoalmente, necessitando ser substituído ou assistido por um
terceiro (por ex.: o menor de 12 anos pode ser proprietário de um imóvel,
mas quem irá administrá-lo de fato serão seus representantes legais, que
poderão, no caso, ser seus pais).
A capacidade jurídica tem características próprias, ligadas aos
diversos setores da vida jurídica, e variando de setor a setor: fala-se em
capacidade civil, penal, política etc.
A capacidade civil plena é adquirida aos 18 anos de idade
2
. Cessará
para os menores a incapacidade: pela emancipação, ou pelo casamento, pelo
exercício de emprego público efetivo, pela colação de grau em curso de
ensino superior ou pelo estabelecimento de sociedade civil ou comercial
com economia própria.
No Direito Civil, há ainda os absolutamente incapazes e os
relativamente incapazes (CC art. 3º, 4º). São, segundo o Código Civil,
absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil as
seguintes pessoas: os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade
ou deficiência mental, mão tiverem o necessário discernimento para a
prática desses atos; os que, mesmo por causa transitória, não puderem
exprimir sua vontade. São relativamente incapazes a certos atos, ou à
maneira de os exercer, as seguintes pessoas: os maiores de dezesseis anos e
menores de dezoito anos; os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os
2
Art. 5º, caput do Código Civil: A menoridade cessa aos dezoito anos completos
quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
15
que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; os
excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; os pródigos.
A capacidade tem limites, da mesma forma, no Direito Penal, no
Direito do Trabalho etc.
1.1.2 A pessoa jurídica
Pessoa jurídica é a entidade ou instituição que, por força das normas
jurídicas criadas, tem personalidade e capacidade jurídicas para adquirir
direitos e contrair obrigações. Ela nasce de instrumento formal e escrito que
a constitui, ou diretamente da lei que a institui. No primeiro caso, temos as
pessoas jurídicas de direito privado; no segundo, as pessoas jurídicas de
direito público.
De elementos históricos e, a seguir, conceituais sobre a natureza da
pessoa jurídica se poderá passar às considerações sobre as bases ético-
jurídicas de sua responsabilidade.
Não será necessário aprofundar aqui os aspectos sociológicos que
estão na origem da pessoa jurídica. Ela se enraíza certamente no espírito e
na experiência de associação que as culturas humanas tiveram desde os
primórdios, para superar limitações e atingir objetivos que as pessoas
singulares não conseguiriam realizar. É o que bem expressa Washington de
Barros Monteiro (2007, p. 99) quando preleciona:
Acrescentando sua atividade á de seus semelhantes,
juntando seu poder ao de outros indivíduos, o homem
16
multiplica quase ao infinito suas possibilidades,
propiciando a execução de obras extraordinárias e duráveis
em benefício da comunidade. As forças assim aglutinadas
não se somam, mas se multiplicam. Por isso, objetivos
inatingíveis para um só homem são facilmente alcançados
pela reunião dos esforços combinados de várias pessoas.
A família terá sido o primeiro agrupamento natural, e, com propósitos
defensivos, as famílias se reuniram em clãs, que, por sua vez, constituíram
um poder central, embrião do Estado. É possível que diante desse poder
central as pessoas tenham sentido a necessidade de garantir seus interesses,
o que teria gerado também associações, por sua vez regidas por normas
legais. Razões sociais e econômicas estiveram presentes, portanto, na
constituição daquilo a que o futuro reservará o nome de pessoa jurídica.
Em nossa cultura não se poderá deixar de evocar o direito romano e
com ele a controvérsia que se estabeleceu entre civilistas e romanistas
(MONTEIRO, 2007, p.100). Os primeiros negam que o direito romano tenha
conhecido a pessoa jurídica. Havia, sim, entidades cuja atividade era
reconhecida por lei, mas não se definiam como pessoas, cuja existência se
distinguisse de seus integrantes. Extremamente pragmáticos, os romanos
não eram dados a abstrações, o que não lhes permitia elaborar um conceito
mais refinado de pessoa jurídica. Nesse sentido, pronuncia-se o historiador
José Reinaldo de Lima Lopes (2008, p. 411), baseando-se no modo de
produção romano:
A tradição romana não precisou chegar ao requinte da
pessoa jurídica, pois a unidade de produção sendo familiar,
as regras de imputação de responsabilidade e de unificação
do patrimônio no pai de família dispensavam o invento da
pessoa jurídica.
17
Romanistas, porém, como entre nós José Carlos Moreira Alves (1999,
p. 131-136), esposam a tese contrária: a ordem jurídica romana teria
admitido, sim, embora após lento processo evolutivo, a existência de
entidades abstratas, atribuindo-lhes personalidade jurídica. Isso seria
verificável no período clássico
3
, ou seja, da Lei Aebutia ao fim do governo
de Diocleciano (ano de 305), quando se passa a entender que entidades
abstratas também pudessem, como as pessoas naturais, ser titulares de
direitos subjetivos. Reconhecem-se, então, as corporações, no contexto do
entendimento do Estado como entidade diversa (populus romanus, res
publica, res romana) do conjunto de cidadãos. A ordem jurídica atribui
às corporações personalidade e não as confunde com as pessoas que as
integravam: seu patrimônio é diverso do das pessoas; as corporações atuam
pelo representante e os atos desse revertem a favor ou contra elas; as
corporações não desaparecem com a substituição das pessoas que as
integram
4
. Já existem nesse período as fundações, mas seu reconhecimento
3
O direito romano se di vide tradicionalmente em: direito arcaico (da fundação de Roma
até o segundo século antes de Cristo); direito clássico (da República tardia ao
Principado, até pouco depois da dinastia dos Severos); tardio ou pós-clássico(do século
III d. C. ao fim do Império). A Lex Aebutia (149-126 a. C.) introduziu o chamado
processo formular (per formulas).
4
Uma apreciável síntese da origem, espécies e condições de existência da pessoa
jurídica no direito romano pode ser encontrada no manual de José Carlos de Matos
Peixoto (1960, p. 345 -365). É d e destacar que havia as corporações de direito público,
que compreendiam o Estado Romano, o fisco, as províncias, as cidades autônomas, as
colônias, os municípios e certas prefeituras; e as de direito privado, que abrangiam os
colégios operários, as mutualidades (associações de auxílios mútuos, como as
funerárias), as associações religiosas ou recreativas (sodal itia, sodalitates) e, entre as
sociedades comerciais somente as dos publicanos (societates publicanorum), que eram
as grandes empresas concessionárias de serviços públicos ou arrendatárias de impostos
ou de bens do Estado (p. 346-352). Previam-s e para a constituição das corporações de
direito privado os requisitos: - três indivíduos pelo menos; - estatutos para regularem a
atividade da corporação; - objeto lícito; - autori zação do go verno. Já ao tempo da lex
christiana, essa autorização prévia era dispensada para a criação das associações
religiosas e das mutualidades. Para a criação da igrejas, capelas e mosteiros, bastava a
18
legal se dá propriamente no chamado período pós-clássico, que vai do fim
do governo de Diocleciano à morte do imperador Justiniano, em 565, em
especial sob influência do cristianismo. Observa-se, porém, que, sendo as
fundações um conjunto de bens destacados do patrimônio de determinada
pessoa, natural ou jurídica, com um objetivo previamente destacado, seu
reconhecimento como pessoa jurídica apresentava uma dificuldade ainda
maior, pois o patrimônio seria titular de si mesmo na prossecução de um
fim determinado pela pessoa ou grupo que o instituíra. Por essa razão, os
textos do período não se julgam suficientes para apoiar a afirmação de que
a ordem jurídica romana atribuiu personalidade jurídica às fundações.
Para se ter um embrião de teoria da pessoa jurídica, é preciso esperar
a constituição do direito canônico, em especial as idéias do Papa Inocêncio
IV (1243-1254). Esse papa conceitua a pessoa jurídica como uma
universitas (um todo, um conjunto) que se tem como uma pessoa:
universitas fingatur esse una persona, explica Miguel Maria de Serpa Lopes
(1989, p. 312), ou seja, uma pessoa sem um corpus, mas dotada de realidade
funcional. Atesta a respeito esse autor (p. 312):
Todos os institutos da Igreja foram reputados entes ideais,
fundados por uma vontade superior. Assim, qualquer ofício
eclesiástico, dotado de um patrimônio, é tratado como uma
entidade autônoma, e a cada novos ofícios criados
correspondem outras tantas entidades independentes. Desse
conceito surge o de fundação também autônoma, como o
pium corpus, o hospitalis e a sancta domus. A universitas
passa a representar um corpus mysticum, um nomen iuris.
autorização dos bispos; para a dos estabelecimentos de beneficência, nem mesmo tal
autorização era necessária (p. 355).
19
Houve, assim, uma notável influência do direito canônico na
concepção moderna de pessoa jurídica, na medida em que os canonistas
conceberam certas organizações como podendo ter uma personalidade
abstrata
5
. Nos séculos XVIII e XIX, sobretudo autores alemães, como
Gierke, Ihering, Köhler, Oertmann e Zirwelmann, se encarregarão de
desenvolver a noção, convencidos de que o ordenamento jurídico não podia
ignorar a existência de agrupamentos humanos e de bens, dotados de
individualidade e autonomia em relação a seus componentes, cujo objetivo é
a satisfação dos interesses e necessidades coletivas. Com o reconhecimento
jurídico, essas entidades seriam autorizadas a exercer direitos subjetivos e
deveres em nome próprio (SOUSA, 2003, p. 15).
A respeito da natureza jurídica da pessoa jurídica várias são as
teorias e Diniz (2006, p. 520) as agrupa em quatro correntes:
- teoria da ficção legal, de Savigny: só o homem é capaz de ser sujeito de
direito, de modo que pessoa jurídica é ficção legal, isto, é criação
artificial da lei para exercer direitos patrimoniais e facilitar a função de
certas entidades;
5
O hi storiador José Rei naldo de Lima Lopes (2000, p. 411) reconhece que remotamente
a teoria ou a doutrina das corporações, de origem medieval, é a base sobre a qual se
construiu o conceito de pessoa jurídica, devendo destacar-se a distinção entre
corporações e soci edades: as primeiras podem sobreviver a seus membros. A Igreja
mesma fornecia um quadro exe mplar: a freguesia ou paróquia precisava de um pároco e
de um povo (fiéis), que poderiam mudar, morrer, mas eram substituídos. O mesmo se
deu com as universidades e as comunas. Já as sociedades não existiam para além de seus
sócios. Assim, as corporações eram consideradas como pessoas públicas, que t inham
utilidade e reconhecimento do papa e do soberano, como do público. Seus
representantes podiam assentar-se em conselho ou cortes, n ão sendo simples
representantes de interesses privados.
20
- teoria da equiparação, de Windscheid e Brinz, para a qual a pessoa
jurídica é um patrimônio equiparado no seu tratamento jurídico às pessoas
naturais;
- teoria da realidade objetiva ou orgânica, de Gierke, Zitelmann e Von
Tuhr, para a qual há, ao lado das pessoas naturais ou organismos físicos,
organismos sociais: as pessoas jurídicas, com existência e vontade próprias,
distinta da de seus membros, com a finalidade de realizar um objetivo
social;
- teoria da realidade das instituições jurídicas, de Hauriou e Rénard, que
aceita parcialmente as teorias anteriores. Essa teoria parte do
reconhecimento de que a personalidade humana deriva do direito (tanto esse
privava seres humanos de personalidade, como os escravos), o qual pode
concedê-la a agrupamentos de pessoas ou de bens cujo escopo é a realização
de interesses humanos. A personalidade jurídica é uma qualidade que a
ordem jurídica estatal outorga a entes que a merecerem(DINIZ, 2006, p.
521).
Edgar de Godói da Mata-Machado (2005) reduz essas correntes a três
grupos ou espécies: as ficcionistas (na qual classifica não apenas Savigny,
mas Brinz, Windscheid, Koeppen e Becker, que afirmam uma teoria dos
direitos sem sujeito, e Schwarz, que nega simplesmente o conceito de
direito subjetivo)
6
; as tendencialmente realistas, também conhecidas como
6
Nessa corrente dos ficcionistas, Mata-M achado não hesita em situar Kelsen, cujo
pensamento para ele seria melhor caracterizado como superficcionismo, ao defender o
conceito normativista de pessoa, a ponto de definir a própria pessoa natural como mera
construção do pensamento jurídico, e heterogêneos, os conceit os de homem e de pessoa.
21
orgânicas ou germanistas, que ele, Mata-Machado não reconhece como
realistas, dando por motivo os delírios de ficção a que se entregaram os
defensores da doutrina
7
; as teorias sociológico-realistas (Hauriou, Renard,
Desqueyrat, Clemens e Delos, também conhecidos por institucionalistas),
para as quais a chave do problema da personalidade jurídica estaria na
comunhão de homens em torno de uma idéia organizadora ou diretiva.
Teríamos, então, uma forma de hilemorfismo, em que a idéia é a forma
substancial, os homens imbuídos dela, a matéria prima
8
.
Vê-se, pois, pelo acima exposto, que é controvertido o próprio
conceito de pessoa jurídica, na medida em que se discute a formação ou
origem dessa. Na realidade, como muito bem deixa compreender Mata-
Escreve Mata-Machado (p. 321): Não são heterogêneos; comportam-se, um em relação
ao outro, como o conceito analógico em relação a um de seus analogados. Evidencia-se
a qualquer um o arbitrário da afirmaç ão de que homem é conceito da biologia e da
fisiologia, e pessoa, conceito da jurisprudência. Então, não há um concei to de pessoa na
ordem t eológica, como na ordem filosófica, na ordem sociológica e até mesmo na ordem
do conhecimento vulgar?
7
Recaséns-Siches, citado por Mata-Machado (2005, p. 311) discrimina minuciosamente
as alucinações da teoria, que entende o Estado como organismo biológico semelhante ao
dos animais, de modo que o tecido epitelial seria representado pelas instituições
protetoras da vida, da propriedade e da se gurança exterior; o tecido ósseo, pela terra, as
ruas, os edifícios; o tecido vascular, pelas instituições econômicas, o tecido muscular,
pelas organizações técnicas do trabalho; o tecido nervoso, pelo governo, com as redes
telegráficas e telefônicas que transmitem suas ordens. Chega-se até a determinar o
sexo dos Estados, que seriam masculinos, como John Bull e Tio Sam, e femininos como
a bela França. O mesmo Mata-Machado lembra a obra de Schaeffle, Vida e Estrutura
do Corpo Social, de 1875, onde esse autor se compraz em descrever a pele, os ossos, o
sangue, o sistema nervoso e os membros das pessoas jurídicas. Nesse diapasão, está
também Bluntschli, para o qual O Estado é macho, a Igreja é fêmea. Por isso costuma-
se dizer do Estado no aforismo: l´État c´est l´homme. Mat a-Machado (p. 312-313)
classifica nessa teoria os brasileiros Lacerda de Almeida e C. Beviláqua.
8
Citando os Cahiers de La Nouvelle Journée, de Hauriou, Mata-Machado informa (p.
315-316) que esse auto r distingue as instituições que se personificam das que não se
personificam. As primeiras são ditas instituições-pessoas ou corp os consti tuí dos
(Estado, associações, si ndicatos) nas quais o poder e as manifestações de comunhão se
interiorizam no quadro da idéia; nas segundas, as instituições-coisas, não se dá tal
interiorização (o exemplo dado por Hauriou é o da regra de direito). Os sucessores de
Hauriou (Renard, Desqueyrat, Clemens, Delos) aplicaram-se a mostrar o realismo da
doutrina e não o platonismo de que era antes acusada. Clémens entende que o ponto de
partida é um fato: os homens se agrupam. A realidade do grupo social é um fato e é um
abuso do legislador declará-lo mera ficção (apud MATA-M ACHADO, 2005, p. 316).
22
Machado, as diversas conceituações esbarram na falta de entendimento da
dimensão analógica do conceito de pessoa. Explica, ao que nos parece, com
muita clareza, esse autor (2005, p. 327):
Há, pois, na pessoa jurídica tecnicamente considerada um
momento de ação; as pessoas jurídicas são, portanto, pessoa
quanto ao modo de agir; não são pessoa entitativamente, ou
na ordem da essência, da especificação, mas
dinamicamente, ou na ordem da operação, do exercício;
dizemos da União, dos estados, do Distrito Federal, dos
municípios, das associações, das fundações, das sociedades
mercantis, que são pessoas, na mesma acepção em que
apelidamos nosso Rui de Águia de Haia [...] a relação de
conformidade que gera a analogia vigora entre dois seres
reais, não entre entes de razão, à maneira de Kelsen (...]
uma associação não deixa de ser uma entidade real, quando
se lhe reconhece personalidade jurídica
9
.
Ao longo das páginas seguintes, voltar-se-á a alguns aspectos
filosóficos que subjazem a essas discussões. Fica-se, por enquanto, na
apresentação geral de reconhecidas distinções jurídicas sobre a matéria.
As pessoas jurídicas de direito privado caracterizam-se por ser
constituídas por instrumento escrito, para cujo registro comparecem, pelo
menos, duas pessoas (físicas ou jurídicas), que fixam as atividades e os
objetivos a serem alcançados, a forma do exercício das atividades, o
patrimônio de que a pessoa jurídica é constituída, o nome, a sede e o prazo
9
Quanto à base da analogia entre o homem e a pessoa natural ou fí sica, nos termos da
ciência do Direito, escreve Mata-Machado (p. 3 27): E a personalidade civil do homem
per sonalidade jurídica no sentido de Kelsen, mas que o próprio Kelsen não aprofundou
suficientemente é de tal modo ínsita ao ser humano, que a lei a reconhece desde o
nascimento com vi da, pondo além disso, a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro. A comparação homem-pessoa natural faz-se, portanto, entre semelhanças
essenciais. É propriedade do conceito pessoa a capacidade de direitos e obrigações. A
pessoa natural dos códigos não é simples construção do pensamento jurídico.
23
de duração, dentre outras condições. Fazem exceção a essa regra as pessoas
jurídicas individuais e as fundações.
As individuais são de uma pessoa só: uma exceção legal (pois são ao
menos 2 pessoas exigidas), criada para apoiar a constituição de empresas do
setor de microempresários. A outra exceção são as fundações, que se
distinguem por serem constituídas antes por um patrimônio que por pessoas.
A fundação pode ser criada por escritura pública ou testamento, nos
quais o instituído designa certos bens que sairão de seu patrimônio para
fazê-la surgir. O instituidor especifica seu objetivo e será certamente
administrada por pessoas. O instrumento de constituição da pessoa jurídica
tem de ser registrado na repartição competente (Cartório de Registro Civil
das Pessoas Jurídicas, Junta Comercial do Estado etc.). No caso da
fundação, é necessária também a intervenção e participação do Ministério
Público, por exigência legal. Algumas pessoas jurídicas, como empresas
petroquímicas, bancos, companhias de seguros etc., precisam de prévia
autorização de órgãos governamentais para existir.
Uma vez constituída, a pessoa jurídica adquire personalidade jurídica,
isto é, passa a ter aptidão fundamental para adquirir direitos e contrair
obrigações, e tem vida própria, independente da pessoa de seus sócios,
instituidores e administradores.
A capacidade jurídica da pessoa jurídica decorre de sua própria
natureza, de modo que varia de acordo com o fim específico da atividade
dessa pessoa jurídica, das regras e normas que a instituíram, da forma e
24
limites de sua administração etc. Em razão dessa variação, pode-se fazer
uma classificação das pessoas jurídicas:
- as fundações, que podem ser privadas ou públicas (estas, quando
instituídas por lei para o exercício das atividades públicas);
- sociedades empresariais, aí inclusas as prestadoras de serviço, e
sociedades simples.
A tradicional divisão das pessoas jurídicas em Corporações e
Fundações, as primeiras se subdividindo em sociedades e associações, é
mantida no novo Código Civil. Entretanto, em relação às sociedades, uma
vez trazidas para o novo código, qualquer que seja o seu objeto, e ante a
adoção, pelo mesmo, da teoria da empresa, desaparece a subdivisão de
sociedades civis e comerciais, que passam a se chamar empresariais,
quando regidas pelo regime jurídico comercial, e simples, quando suas
obrigações forem regidas pelo sistema civil.
Por seu caráter didático, transcreve-se aqui um quadro classificatório
da pessoa jurídica, atualizando-se aquele apresentado por Montoro (2005,
p.581):
25
Quadro de classificação
Outros Estados
Externo
Organismos Internacionais
de Direito União
Público Administração direta Estados
Municípios
Interno
Autarquias
Pessoa Administração indireta
Jurídica Fundações
Públicas
Fundações particulares
de Direito
privado Empresariais
Sociedades
Simples
1.1.3 Os entes despersonalizados
Ao lado das pessoas físicas e jurídicas, como sujeitos de direitos e
obrigações, podem ser identificados os chamados entes
despersonalizados: são aqueles que, embora possam ser capazes de adquirir
direitos e de contrair obrigações, não preenchem as condições legais e
formais para serem enquadrados como pessoas jurídicas, por falta de algum
requisito ou pela sua situação jurídica sui generis.
26
Estão entre tais entes a pessoa jurídica de fato, a massa falida e o
espólio. A pessoa jurídica de fato é figura bastante conhecida no
mercado. Por ex., pequenos comerciantes que compram e vendem sem terem
uma sociedade comercial regularmente constituída; ambulantes e camelôs.
Também aqui se inclui qualquer pessoa que exerça algum tipo de atividade
industrial, comercial, de prestação de serviços etc. e que não tenha
constituído adequada e legalmente seu negócio.
Atualmente, há reconhecimento legal desses entes
despersonalizados, caracterizados como sujeitos de direitos e obrigações,
na figura do fornecedor, definido pelo CDC
10
.
A massa falida, por sua vez, surge a partir da declaração judicial da
insolvência (isto é, falência) de alguma sociedade comercial. Ela é
constituída de patrimônio bens, direitos, obrigações arrecadado pelo
juízo falimentar. Tal patrimônio é administrado por um síndico, nomeado
pelo juiz, para cuidar do processo de falência e responder em nome da
massa falida, a qual é sujeito de direitos e obrigações.
O espólio é composto do patrimônio oriundo da arrecadação dos bens,
direitos e obrigações de pessoa falecida. A arrecadação é feita no processo
de inventário, pelo qual responde um inventariante nomeado pelo juiz para
10
Art. 3º, caput, da Lei n. 8.078/90: “fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional
ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem,
criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou
prestação de serviços”.
27
representar o espólio. Assim também o espólio é sujeito de direitos e
obrigações.
1.2 Essência personalista da comunidade
Consideradas as distinções básicas e estabelecidas que a doutrina
jurídica introduz no conceito de pessoa, é necessário agora passar a algumas
considerações sobre o caráter de pessoa da comunidade, desdobrando-se a
analogia com a pessoa física ou natural. São considerações forçosamente
gerais, mas que parecem oportunas para uma primeira legitimação filosófica
das posições que deverão ser assumidas no decorrer desta dissertação.
Comunidades e associações foram concebidas desde a época do
Império Romano como pessoas jurídicas, capazes de agir e de se
responsabilizarem juridicamente. Entretanto, a elaboração científica a
respeito da personalidade jurídica é dos tempos modernos. A filosofia
individualista do Direito e da sociedade, porém, não estava habilitada a
descobrir, por trás desse aspecto do ser comunitário, nenhuma realidade.
Essa filosofia, em razão do pensamento individualista que a dominava, não
conseguia ver a realidade essencial da sociedade. Via indivíduos e vontade
de indivíduos, movida por seus próprios interesses. A personalidade das
corporações não passava de ficção, como foi exposto acima, citando-se
Savigny
11
. Foi Otto von Gierke
12
um dos pioneiros mais importantes da
11
Maria Helena Diniz cita ainda os nomes de Aubry e Rau, Laurent e Mourlon (cf. nota
792, p.520).
28
explicação da sociedade em seu caráter de personalidade. Foi certamente
precedido por Santo Tomás de Aquino, para o qual a personalidade do corpo
social é uma realidade absolutamente distinta da mera ficção, como o é da
realidade da pessoa natural. Diz, com efeito, o Doutor Angélico:
Todos os homens que nascem de Adão podem ser
considerados como um só homem, enquanto têm em comum
a mesma natureza recebida do primeiro pai, do mesmo modo
que na cidade todos os membros de uma comunidade são
considerados como um só corpo e toda a comunidade como
um só homem. Porfírio diz também que em razão de sua
participação na espécie, vários homens são um só homem.
Da mesma maneira, os muitos homens procedentes de Adão,
são como muitos membros de um só corpo
13
.
Na realidade, devemos esperar o século XIX, com o desenvolvimento
intenso da sociedade e de seus complexos vínculos econômicos e sociais,
para assistirmos a uma nova orientação da teoria da sociedade, com o
reconhecimento do ser das estruturas sociais, em sua personalidade jurídica
real.
Não é necessário insistir em que a sociedade não é pessoa no mesmo
sentido em que o é o indivíduo. Na antiga definição de Severino Boécio, a
12
Otto Friedrich von Gierke, jurisconsulto alemão (1841-1921), exerceu grande
influência na elaboração do moderno Direit o Civil alemão. Sua doutrina, que se
inspirava no historicismo da escola de Savign y, ultrapassando-a, s ustentava que o
direito seria produto de uma convicção comum, a convicção de uma comunidade
humana, manifestada através do uso (direito consuetudinário) ou declarada pelos órgãos
competentes do Estado (direito legislado). Considerava os agrupamentos e associações
que surgiam dentro da sociedade como personalidades reais, dotadas de consciência e
vontade próprias, diversas das dos seus membros, cf. LIMA, Paulo Jorge de. Dicionário
de Filosofia do Direito. São Paulo: Sugestões Li terárias, 1968, p. 116-117.
13
Suma Teológi ca, I-II, q. 81, a. 1. Em III, q. 8, a. 1, afirma Santo Tomás: Por
comparação, chama-se um corpo uma multidão ordenada na unidade, segundo atos e
ofícios distint os. AQUINO, 2005, p. 424.
29
pessoa é rationalis naturae individua substantia, isto é, a substância
individual de natureza racional (2005, p.165). Ora, a sociedade, enquanto
tal, não tem nenhum ser próprio de tipo substancial. Aqui, é preciso
conservar a lição de Johannes Messner
14
, para o qual não se há de entender
que a sociedade seja pessoa em sentido meramente figurado, metafórico. É
pessoa em sentido analógico, com fundamentos que se evidenciam a seguir,
por uma comparação entre a pessoa natural ou física e a social. Tem traços
comuns. De início, a pessoa social tem um ser real próprio, que sobrevive a
várias gerações de seus membros. Como a pessoa natural, a social possui,
enquanto unidade, poder de auto-determinação para realizar seus fins
essenciais característicos e, em conseqüência, a capacidade de querer e de
agir. Sendo responsável por seus fins existenciais próprios, possui direitos,
como a pessoa natural. Seu agir produz conseqüências jurídicas: um Estado
celebra tratados juridicamente válidos com outros Estados, do mesmo modo
que sindicatos e associações patronais celebram convênios entre eles. Por
fim, a pessoa social dispõe de amplas faculdades: pode ser membro de uma
sociedade maior; assim a família, o município, a associação profissional
podem ser membros do Estado e esse, por sua vez, membro da comunidade
internacional. Mesmo fazendo parte de um todo maior, a pessoa comunitária
guarda seus fins e responsabilidade própria. A raiz disso que se poderia
chamar de pluralismo social é que a associação se funda nos próprios fins
14
Ética Soci al. O Di reito natural no mundo moderno. (Das Naturrecht). São Paulo:
Quadrante, s. d., p. 164 .
30
existenciais do homem, possuindo por isso os traços de dignidade e de
liberdade da pessoa humana.
Da essência personalista da comunidade emana a responsabilidade
coletiva tanto do conjunto social e jurídico, como dos membros que o
compõem, em graus que, evidentemente, se podem distinguir: o da
comunidade propriamente dita, dos órgãos e dos indivíduos.
1. 3 Responsabilidade e imputabilidade: o pensamento de Hans Jonas
É de admitir que, embora tratando-se de duas esferas distintas da ação
humana, o direito e a ética têm uma relação íntima, tal que os últimos
fundamentos do direito se enraízam no terreno ético, como os formula
Ulpiano, em seu Líber Regularum: honeste vivere, alterum non laedere,
suum cuique tribuere: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada
um o seu (JUSTINIANO,1878, I,1,10). Entretanto, para além dessa
indicação, mas não a excluindo, a questão da responsabilidade moral serviu
de fundamento para a imputação e responsabilidade jurídicas, com sua
teoria da ação humana, desde a percepção dos fins até a escolha e decisão
sobre os meios para atingi-los, supondo sempre a capacidade do sujeito
moral (e jurídico) de realizar esses atos. È possível que as condições
subjetivas da ação moral tenham servido de razão mais remota do brocardo:
Societas delinquere non potest, porque faltariam ao sujeito coletivo aquelas
propriedades psíquicas, que se afiguram como condições necessárias para o
agir, entre as quais o livre arbítrio, a capacidade psicológica autônoma de
31
tomar decisões e executá-las. Não há como negar essas premissas e suas
conclusões. Porém, com a mudança dos tempos, a constante verificação dos
atos, muitas vezes gravíssimos, de delinqüência das sociedades e Estados no
prejuízo de outras sociedades, Estados e indivíduos, e, por muito grave, a
extensão de tais prejuízos sobre as gerações futuras e sobre o planeta, viu-
se de extrema urgência rever conceitos e teses no terreno do direito e da
ética. Uma dessas revisões, se assim se pode expressar, está no pensamento
de Hans Jonas (2006)
15
, que muito brevemente se chama aqui à colação, pois
trata-se de uma proposta contemporânea que leva em conta o novo quadro
de existência humana, profundamente marcado pela emergência da
tecnologia e pelas transformações da economia globalizada. Tais mudanças,
com efeito, vieram exigir não só a reflexão detida sobre os paradigmas
morais matriciais de nossa cultura, como parecem provocar o esforço para
15
Hans Jonas nasceu em 1903, na Alemanha, e morreu em New Rochelle, estado de Nova Iorque, em 1993.
Estudou com Husserl, Heidegger e Bultmann. Em 1933, com o advento do nazismo, emigrou para a Palestina,
daí para a Itália, onde, como soldado da brigada judaica, ajudou a combater o fascismo. Passa depois ao
Canadá e aos Estados Unidos, onde viveu e lecionou. Tornou-se célebre por seu trabalho sobre a gnose e,
depois, sobre a filosófica da biologia. A partir do final dos anos 60, dedicou-se às questões suscitadas pelo
progresso da tecnologia. O princípio Responsabilidade, ensaio de uma ética para a civilização tecnológica é
sua obra principal, publicada em 1979. Compõe-se de seis capítulos: I A natureza modificada do agir
humano; II – Questões de princípio e de método; III – Sobre os fins e sua posição no Ser; IV – O bem, o dever
e o Ser: teoria da responsabilidade; V – A responsabilidade hoje: o futuro ameaçado e a idéia de progresso; VI
A crítica da utopia e a ética da responsabilidade. Muitos estudos aparecem sobre o pensamento de Hans
Jonas. Citem-se: GIACOIA JUNIOR, Osvaldo. Hans Jonas: o Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma
ética para a civilização tecnológica. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (org.). Correntes fundamentais da ética
contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 193-206; SIQUEIRA, José Eduardo de. Ética e tecnociência:
uma abordagem segundo o princípio da responsabilidade de Hans Jonas. In: SIQUEIRA, J. E. (Org.). Ética,
ciência e responsabilidade. São Paulo: Centro Universitário São Camilo-Edições Loyola, 2005, p. 101-205.
Breve biografia de Hans Jonas pode ser encontrada em RAI Educacional. Enciclopédia delle scienze
filosofiche. Dinsponível em: <www.educational.rai.it>. Acesso em 19 de set.2008. É de grande utilidade o
artigo de Federico Sollazzo, La Naturphilosophie di Hans Jonas, publicado em Prospettiva Persona Terano
(Itália), anno XVII, n. 64, p. 28-31, 2008. Em sua dissertação de mestrado, Paulo Potiara de
Alcântara Veloso aplicou o pensamento de Hans Jonas à questão das relações econômicas internacionais:
Investimentos estrangeiros diretos face à ética da responsabilidade de Hans Jonas: os paradoxos das
políticas de atração. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006.
32
construir novos modelos de imperativos éticos, que atendam mais
especificamente à responsabilidade coletiva.
1. 3.1 O horizonte das éticas antigas
Não é este o lugar de adentrarmos em todo o pensamento de Hans
Jonas, o que mereceria certamente uma dissertação à parte. O quadro geral
de sua reflexão e algumas linhas especiais, atinentes às características de
uma nova ética, qual seja a que ele propõe, serão suficientes para o
entendimento de seu conceito de responsabilidade, elemento que acha
ausente das éticas tradicionais por razões que apresenta e que se poderá
discutir.
Hans Jonas constata que ação humana se modificou nas últimas
décadas, graças à vocação tecnológica do homem, no âmbito das relações
entre o homem e a natureza e entre os homens entre si. Prometeu
desacorrentado, resgata Jonas o mito grego, para dizer que a tecnologia
desencadeou alterações inéditas e de tal magnitude no quadro das
possibilidades do agir humano, que a ética tem de superar-se, isto é, não
apenas interessar-se por ações de sujeitos isolados, mas por uma
causalidade, às vezes anônima e impessoal, que se projeta sem precedentes
na duração do futuro. Isso é de tal gravidade que a tarefa mais modesta
imposta à ética pelo princípio (da) responsabilidade, é obrigar-se ao temor e
ao respeito:conservar incólume para o homem, na persistente dubiedade
33
de sua liberdade, que nenhuma mudança das circunstâncias poderá suprimir,
seu mundo e sua essência contra os abusos de seu poder (2006, p.23).
Esse temor como ponto de partida ético resulta, pois, da compreensão
do desajuste entre nosso saber e poder, ou seja, sabemos muito pouco,
prevemos muito pouco das conseqüências de nosso poder de agir, em
especial no campo da biotecnologia, se atendemos às profundas e
significativas alterações que já começam a pôr-se em prática ou se
programam, com efeitos que podem ser desastrosos para a natureza e para o
próprio homem. Ao temor se somará o respeito aos seres vivos e ao futuro
da existência humana, formando a base emocional da nova ética.
Por que nova? O que apresentam as éticas antigas que parece não
satisfazer, segundo Hans Jonas, às novas e inéditas exigências da
consciência humana frente a esse futuro perturbador? O filósofo destaca
cinco características do agir humano que interessava às éticas até o
presente.
1) Toda relação com o mundo extra-humano (domínio da téchne) era
eticamente neutro, à exceção da medicina, quer do ponto de vista do objeto,
quanto do sujeito. Quanto ao objeto, a arte só afetava superficialmente a
natureza das coisas, que se preservava como tal, não se pondo a questão de
um dano duradouro ao objeto ou à ordem natural em seu conjunto. Quanto
ao sujeito, a téchne como atividade entendia-se como um tributo
determinado pela necessidade e não como um progresso autojusticado como
fim principal da humanidade. Numa palavra, a atuação sobre os objetos não
humanos não formava um domínio eticamente significativo.
34
2) Além disso, toda a ética era antropocêntrica, interessando-se pelo
relacionamento direto do homem com o homem e até do homem consigo
mesmo.
3) Por outro lado, a entidadehomem e sua condição fundamental
eram tidas como constantes quanto à sua essência, não sendo objeto da
téchne reconfiguradora.
4) O bem e o mal inscreviam-se na ação em seu alcance imediato,
sem requerer um planejamento de longo prazo, ou seja, o alcance efetivo da
ação era pequeno, curto o intervalo de tempo para previsão, definição de
objetivo e imputabilidade. O longo trajeto das conseqüências era entregue
ao acaso, ao destino ou à providência. Assim, a ética tinha a ver com o aqui
e agora, e as situações eram recorrentes e típicas da vida privada e pública.
5) Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional
evidenciavam esse confinamento ao círculo imediato da ação, como por ex.:
almeja a excelência por meio do desenvolvimento e da realização das
melhores possibilidades da tua existência como homem, nunca trate os
teus semelhantes como simples meios, mas sempre como fins em si
mesmos etc. Sempre aquele que age e o outro de seu agir são partícipes
de um presente comum. O universo moral consiste nos contemporâneos, e
seu horizonte futuro limita-se à extensão previsível do tempo de suas vidas,
como, do ponto de vista do espaço, o que age e o outro são vizinhos, amigos
ou inimigos, superior ou subalterno, mais forte ou mais fraco. O saber
necessário para constituir a moralidade da ação correspondia a essas
limitações e estava ao alcance de todos os homens de boa vontade. Jonas
35
cita Kant, para o qual em matéria de moral a razão humana pode
facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo entre as
mentes mais simples (p. 36)
16
. Tratava-se de um conhecimento do aqui e
agora, de modo que ninguém era responsável pelos efeitos involuntários
posteriores de um ato bem-intencionado, bem-refletido e bem-executado. E
conclui Hans Jonas:
O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço
comprido do saber, passível de predição; a pequenez de um
foi tão pouco culpada quando a do outro. Precisamente
porque o bem humano, concebido em sua generalidade, é o
mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação
ocorre a qualquer momento, e seu lugar completo é sempre
o presente (2006, p. 37).
Ora, esse horizonte de pressupostos das éticas antigas mudou
significativamente, originando novas dimensões da responsabilidade. A
esfera mais próxima da interação humana torna-se ensombrecida pelo
crescente domínio do fazer coletivo, que, de certo modo, pôs em grande
evidência a vulnerabilidade da natureza. Aqui, Hans Jonas evoca o conceito
e o surgimento da ciência do meio ambiente (ecologia), provocada pelo
choque dessa descoberta, bem como a modificação completa de nossa
representação que tínhamos de nós mesmos como fator causal no complexo
sistema das cosias (p. 39). Modificou-se de facto a natureza da ação
humana. Um objeto de ordem inteiramente nova, a biosfera inteira do
16
Cita-se o prefácio da Fundamentação da metafísica dos costumes, de Kant. E
complementa Jonas: Nenhum out ro teórico da ét ica foi tão longe na diminuição do lado
cognitivo do agir moral. Mas, mesmo quando este ganha um significado muito maior,
como em Aristóteles, para quem o conhecimento da situação e daquilo que lhe convinha
estabelece exigências consideráveis à experiência e ao juízo, tal saber nada tem a ver
com a ciência teórica... (p. 37).
36
planeta, veio acrescentar-se à nossa responsabilidade. A natureza tornou-se
um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada. É oportuno
citar as palavras mesmas do pensador:
Desaparecem as delimitações de proximidade e
simultaneidade, rompidas pelo crescimento espacial e o
prolongamento temporal das seqüências de causa e efeito,
postas em movimento pela práxis técnica mesmo quando
empreendidas para fins próximos. Sua irreversibilidade, em
conjunção com sua magnitude condensada, introduz outro
fator, de novo tipo, na equação moral. Acresça-se a isso o
seu caráter cumulativo: seus efeitos vão se somando, de
modo que a situação para um agir e um existir posteriores
não será mais a mesma da situação vivida pelo primeiro
ator, mas sim crescentemente distinta e cada vez mais um
resultado daquilo que já foi feito. Toda ética tradicional
contava somente com um comportamento não cumulativo
(2006, p. 40).
Outro aspecto é o descompasso entre o saber previdente
(anteriormente exigido para ao agir moral) e o saber técnico, sempre à
frente, e tal descompasso vem conferir novo significado ético, ou seja, o
reconhecimento de nossa ignorância e, em conseqüência, da necessidade de
novos controles sobre nosso excessivo poder. Defende Jonas que nenhuma
ética anterior vira-se obrigada a considerar a condição global da vida
humana e o futuro distante, inclusive a existência da espécie (p. 41). È,
assim, imprescindível nova concepção de direitos e deveres. E mais
profundamente, procurar não só o bem humano, mas também o bem das
coisas extra-humanas, ampliando o reconhecimento dos fins em si para
além da esfera do humano. Um direito moral próprio da natureza. Isso
implicaria, na realidade, pensa Jonas, que se deverá evoluir de uma doutrina
37
do agir (uma ética) para uma do existir, ou seja, para uma metafísica em
que toda ética deve fundar-se.
Essa proposição se explica melhor nos desenvolvimentos que Hans
Jonas faz a seguir, ao mostrar como o homo faber sobrepujou o homo
sapiens e como se estruturou uma pólis universal do homem sobrepondo-
se a toda a natureza.
A moderna técnica, diz ele, transformou-se num infinito impulso da
espécie para diante, levando a crer que é nesse progresso que passa a
consistir a plenitude do homem: o homem se realiza na medida em que se
expande seu domínio total sobre as coisas. A tecnologia passa a assumir um
lugar ético inédito, ao ditar os fins subjetivos da vida humana. Sua criação
acumulativa reforça os poderes por ela mesma produzidos e os leva
constantemente a desenvolver-se, aumentando a sensação do sucesso, que
pode, ao fim e ao cabo, transformar-se numa prisão. Percebe-se bem que o
homem atual, nessa representação programática que determina o seu Ser e o
reflete, produz e é produzido. Mas quem é esse homem? Responde Jonas:
Nem vocês nem eu: importam aqui o ato coletivo e o sujeito
coletivo, não o ator individual e o ato individual; e o
horizonte relevante da responsabilidade é fornecido muito
mais pelo futuro indeterminado do que pelo espaço
contemporâneo da ação. Isso exige imperativos de outro
tipo. Se a esfera do produzir invadiu o espaço do agir
essencial, então a moralidade deve invadir a esfera do
produzir, da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e
deve fazê-lo na forma de política pública (2006, p. 44).
38
Numa palavra, a natureza modificada do agir humano altera a
natureza fundamental da política. Houve, de fato, um alargamento de
fronteiras do Estado (polis): outrora era um enclave no mundo não-
humano, agora espalha-se sobre a totalidade da natureza terrestre,
desaparecendo a diferença entre o artificial e o natural. Isso trouxe como
conseqüência à cidade global a necessidade de legislar sobre questões
inéditas, para que se possa pensar num mundo para as próximas gerações de
homens. Que o homem deva existir e existir de modo digno num futuro
distante é uma proposição moral, uma assertiva distinta dos imperativos da
antiga ética da simultaneidade. Antes, a presença do homem no mundo
era, explica Jonas, um dado primário e indiscutível, donde partia toda idéia
de dever relativo à vida humana. Agora, ela tornou-se um objeto de dever,
ou seja,o dever de proteger a premissa básica de todo dever (2006, p.
45), a presença de candidatos a um universo moral no mundo físico do
futuro. É imperativo, portanto, proteger esse mundo em sua vulnerabilidade
diante das ameaças produzidas apelo próprio homem.
1. 3. 2 O princípio responsabilidade
Falou-se acima de mudança de imperativos éticos. A exposição de
Jonas toma como contraponto diferencial o imperativo categórico kantiano,
que se deixava assim formular: Age de maneira tal que possas também
querer que a máxima de teu agir se transforme em lei universal da
natureza. A base desse imperativo é a idéia de contradição lógica ou da
39
discordância interna da vontade, enquanto razão prática, consigo mesma.
Observe-se que a reflexão básica da moral não é propriamente moral
(aprovação moral ou desaprovação), mas lógica (autocompatibilidade ou
incompatibilidade). Ora, não existe nenhuma contradição, argumenta Jonas,
na idéia de que a humanidade cesse de existir, como nenhuma contradição
em si na idéia de que a felicidade das gerações presentes e seguintes possa
ser paga com a infelicidade ou não-existência das gerações futuras, como, a
contrario, na idéia de que a existência e a felicidades das gerações futuras
seja paga com a infelicidade ou eliminação parcial da presente. Numa
palavra, a série das gerações deva prosseguir não se deduz da regra de
autoconcordância no interior da mesma série. Entende Jonas que se trata de
um imperativo que precede a própria série dessas gerações e, por último, só
pode ser fundamentado metafisicamente.
Explica Sollazzo (2008, p. 30) que a base metafísica da ética de Jonas
se constrói a partir da convicção da existência ontológica de um valor
absoluto, compreensível intuitivamente. Tal valor ou bem-em-si é a vida,
uma vez que se todas as coisas que existem valem na
relação com um fim, então esta cascata de fins se detém
somente perante um fim considerado como um valor em si,
a vida mesma [...] só depois de ter posto estes fundamentos
metafísicos, pode-se construir uma ética fundada sobre
aquele princípio responsabilidade, que intui o dever de
preservar a existência como a responsabilidade máxima do
ser humano (p. 30).
É preciso, conclui Sollazzo no mesmo lugar, reter-se esse princípio
como universalmente válido e sendo sua aplicação hoje particularmente
40
urgente, tanto mais que as religiões tornaram-se um fato subjetivo e
pessoal, não constituindo mais fontes normativas universais.
Em vista dessas dificuldades ou não adequação do imperativo
kantiano ao novo estado da questão, Jonas propõe a formulação de outro
imperativo:
Age de modo a que os efeitos de tua ação sejam compatíveis
com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a
terra; ou expresso negativamente: Age de modo a que os
efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a
possibilidade futura de uma tal vida; ou simplesmente: Não
ponhas em perigo as condições necessárias para a
conservação indefinida da humanidade sobre a Terra; ou,
em um uso novamente positivo: Inclua na tua escolha
presente a futura integridade do homem como um dos
objetos do teu querer (2006, p. 47-48) (grifos nossos).
Valemo-nos aqui da síntese crítica, apresentada por Giacoia Junior
(2000) a propósito desse imperativo de Jonas. Constata o autor que não há
contradição racional no descumprimento dessa espécie de imperativo. Eu
posso querer o meu fim, explica Giacoia Junior, e até mesmo o fim da
humanidade, sem incorrer em contradição. Entretanto, se é admissível que
possamos arriscar nossa própria vida, não estamos autorizados a fazê-lo
quando se trata de pôr em risco a vida da humanidade. A simples existência
é vista como um dever a ser levado imperativamente em conta pelas novas
dimensões do agir humano. Desse modo, não temos o direito de escolher o
não ser de futuras gerações, em proveito do ser da geração presente ou da
subseqüente. Trata-se de uma obrigação em relação ao não existente que,
enquanto tal, não pode sustentar qualquer pretensão à existência. Giacoia
41
Junior reconhece que tal obrigação constitui objeto de rigorosa
fundamentação metafísica no resto da obra de Jonas,
o que empresta à ética de Jonas uma aura de arcaísmo,
admitida pelo autor, uma vez que retorna explicitamente aos
grandiosos projetos antigos (Aristóteles, por exemplo), mas
também modernos (não há como evitar a associação com os
sistemas das filosofias de Leibniz, Schelling ou Hegel) de
fundamentar metafisicamente a passagem da filosofia da
natureza para a filosofia do espírito ou para ética (2000, p.
200).
Explica Giacoia Junior que o novo imperativo não se dirige, como o
kantiano, ao comportamento do indivíduo privado, mas ao agir coletivo, de
modo que sua destinação não é a esfera próxima das relações entre
singulares, mas o campo da política pública. A concordância que Jonas
reivindica não é a compatibilidade lógica interna da vontade, nem a do ato
consigo mesmo, mas a concordância entre os efeitos últimos do ato com a
permanência da atividade humana autêntica no futuro. O imperativo
kantiano totalizava no sentido de transferir a máxima subjetiva a uma
hipotética comunidade de todos os seres racionais (situação em que a
máxima da vontade não geraria autocontradição); para Jonas, a totalização
se faz a partir da objetividade dos efeitos do agir coletivo que, em sua
realidade, afeta a humanidade como um todo (2000, p. 200).
Hans Jonas exemplifica, para mostrar o alcance desse axioma ético,
expresso no seu imperativo, três situações criadas pela técnica ao tomar o
homem como objeto: a questão do prolongamento da vida, o controle do
comportamento e a manipulação genética. No primeiro caso, discute os
42
problemas possíveis decorrentes do desejo (e já efetivação) do adiamento da
morte, e acrescenta:
Também se deveria considerar o papel do memento mori na
vida de cada indivíduo. Como ele seria afetado pelo fato de
que o momento dessa morte possa se prolongar
indefinidamente? Talvez todos nós necessitemos de um
limite inelutável de nossa expectativa de vida para nos
incitar a contar os nossos dias e fazer com que eles contem
para nós (2006, p. 59).
Diante desse fato, Hans Jonas volta à mesma tecla, isto é,
que há questões que nunca foram postas antes no âmbito da
escolha prática e de que nenhum princípio ético passado,
que tomava as constantes humanas como dadas, está à altura
de respondê-las. Contudo, essas questões devem ser
encaradas, eticamente e conforme princípios, e não sob
pressão de interesses (2006, p. 59).
Quanto ao controle do comportamento, após considerar a manipulação
social daí decorrente com a subversão dos direitos do homem e dignidade
humana, adverte que
sempre contornamos dessa maneira o caminho humano para
enfrentar os problemas humanos, substituindo-o pelo curto-
circuito de um mecanismo impessoal, subtraímos algo da
dignidade dos indivíduos e damos mais um passo á frete no
caminho que nos conduz de sujeitos responsáveis a sistemas
programados de conduta (2006, p. 60).
Por fim, quanto à manipulação genética, lembra ser esse um sonho
ambicioso do Homo faber, sonho pelo qual ele quer tomar em suas mãos sua
própria evolução, com o intuito de modificar e melhorar a espécie. A grave
43
pergunta é se temos o direito moral de fazer experimentos com seres
humanos futuros.
Essas considerações levam naturalmente a um exame da teoria da
responsabilidade, uma das partes mais interessantes e complexas da obra e
pensamento de Hans Jonas. Após voltar às conhecidas distinções entre
responsabilidade moral e responsabilidade legal e sua condição geral, o
poder causal, desenvolve outra noção de responsabilidade, a que não
concerne ao cálculo do que foi feito ex post facto, mas à determinação do
que se tem de fazer: eu me sinto responsável não por minha conduta e suas
conseqüências, mas pelo objeto que reivindica meu agir (2006, p. 167).
Uma responsabilidade, por exemplo, pelo bem-estar dos outros. Aqui o
objeto contrapõe ao meu poder o seu direito de existir, de certo modo
submete a si o meu poder: em primeiro lugar está o dever ser do objeto; em
segundo, o dever agir do sujeito chamado a cuidar do objeto (2006, p.
167). Nasce daí o sentimento de responsabilidade do eu ativo que se
encontra sempre intervindo no Ser das coisas. Caso brote aí o amor, a
responsabilidade será acrescida pela devoção da pessoa, que aprenderá a
temer pela sorte daquele que é digno de existir e que é amado (p. 167).
Jonas distingue, para melhor esclarecer esse conceito, a
responsabilidade natural e a contratual. Exemplo da primeira é a
responsabilidade parental, que não depende de aprovação prévia, sendo
irrevogável e não-rescindível. A segunda, artificial, instituída a partir da
atribuição e aceitação de um cargo, é delimitada pela tarefa, quanto ao
conteúdo e quanto ao tempo. Tal responsabilidade extrai sua força
44
imperativa do acordo do qual ela é criatura, mas é a garantia das relações
de lealdade sobre as quais se fundam a sociedade e a vida coletiva (2006,
p. 171). É, por exemplo, a responsabilidade livremente escolhida pelo
homem político que, entretanto, tem no cumprimento de sua tarefa, o
cuidado com a res publica,fica mais estreitamente ligado ao objeto, passa a
pertencer-lhe, de modo que ele não se pertence mais a si mesmo. Quanto
maior o poder, maior a responsabilidade. Tal responsabilidade possui três
propriedades: a totalidade, a continuidade e o futuro. Quanto à totalidade,
assim como a responsabilidade paterna relaciona-se com o filho como
totalidade e não apenas em suas necessidades imediatas, analogamente, o
político ou o governante é responsável pela vida de toda a comunidade,
abarcando desde a existência física até os interesses mais elevados, desde a
segurança até a plenitude da existência, desde a boa condução até a
felicidade (2006, p.180). Quanto à continuação, isso significa que a
responsabilidade total não pode ser suspensa, devendo sempre se perguntar:
o que vem depois? Onde levará? O que havia antes? Como o que está
acontecendo agora se encaixa no desenvolvimento total da existência. Dessa
forma, a responsabilidade total inclui em seu objeto a capacidade de pensar,
de pautar o agir de maneira que tenha sempre como horizonte o seu encargo,
não se esquecendo de onde veio, onde está agora e para onde pretende ir
(2006, p. 185). Trata-se de uma identidade a ser garantida, que integra a
responsabilidade coletiva.
Por fim, a responsabilidade por uma vida, individual ou coletiva, se
ocupa com o futuro, bem mais do que com o presente imediato. Essa
45
inclusão do amanhã no hoje, aliás óbvia para qualquer responsabilidade,
tem uma dimensão e qualidade inteiramente diferentes em relação à
responsabilidade total. Com todas as dificuldades que esse aspecto
contém para o governante, que não tem o dom profético, esse não pode
eximir-se do cuidado. Pela gravidade aqui lançada, as palavras de Hans
Jonas necessitam ser transcritas:
O caráter vindouro daquilo que deve ser objeto de cuidado
constitui o aspecto de futuro mais próprio da
responsabilidade. Sua realização suprema, que ela deve
ousar, é a sua renúncia diante do direito daquele que ainda
não existe e cujo futuro ele trata de garantir. À luz dessa
amplidão transcendente, torna-se evidente que a
responsabilidade não é nada mais do que o complemento
moral para a constituição ontológica do nosso Ser temporal
(2006, p. 187).
Isso significa que toda política é responsável da possibilidade de uma
política futura. A proposta de Hans Jonas atende assim a uma direção
fundamental: o zelo pela existência do ser humano em uma natureza
aceitável contra os perigos que os avanços técnicos cumulativamente trazem
ao futuro. Nascida do temor, a ética para ele deve ser uma ética de
conservação, de custódia, de preservação e não necessariamente do
progresso e do aperfeiçoamento desmedidos. Lembra muito bem que tal
desmedida decorre do próprio paradigma baconiano
17
, adotado nos inícios
17
Francis Bacon (1561-1626) foi filósofo e homem de Estado i nglês. Suas obras mais
importantes são: Novum Organum (1620) e De Augmentis et Dignitate Scientiarum
(1623). Na primeira defende a idéia de que o homem por meio da nova c iência (a antiga,
de ori gem aristotélica, era estéril para ele), indutiva e investi gativa, haveria de dominar
a natureza e usar de suas leis e processos para o bem-estar e felicidade da espécie
humana. Ciência e poder do homem coincidem, afirma ele no aforisma III, no livro I
do Novu m Organum (19 73, 19).
46
dos tempos modernos, que coloca o saber a serviço do domínio da natureza,
conduzindo a uma produção e a um consumo cada vez maiores. O perigo,
analisa Jonas, está na magnitude do êxito econômico e biológico desse
paradigma. Nesse sentido, o autor não teme em propor que se detenha o
incremento de prosperidade no mundo, pois ele não tem trazido para todos a
satisfação razoável de suas necessidades básicas, nem a paz e a harmonia
entre os povos. Não há como não concordar com ele no que afirma que o
progresso intelectual, técnico-científico tem superado de muito o moral, a
ponto de que os institutos éticos e morais existentes se mostram impotentes
para trazer parâmetros de valores humanizantes o que ficaria a cargo da
ética da responsabilidade.
1. 3. 3 Ética da obrigação do agir responsável
Acompanhamos aqui as análises pertinentes de Veloso (2006) sobre
alguns aspectos de uma ética da ação humana, tal como a propõe Hans
Jonas, orientada para o futuro. O problema de fundo é saber como tal ética
alcançaria universalidade, ou seja, como toda a humanidade se poderia
impor o princípio de responsabilidade.
Veloso traz à colação o pensamento de Hannah Arendt (2004) que
argumenta, na análise das crises políticas da humanidade no século XX, que
o colapso moral constatado, algumas vezes, em especial no episódio nazista
da Segunda Guerra Mundial, se devia, sobretudo, à inadequação das
verdades morais como parâmetros de julgamento daquilo que os homens
47
eram capazes de fazer. Aqui Arendt não está longe de Jonas, quando esse
também estabelece, como vimos, que os padrões morais existentes não são
mais capazes de determinar o que seria o bem e o mal do agir humano, nas
novas coordenadas de tempo espaço, provocadas apela tecnologia moderna.
Arendt, tendo presentes os absurdos do nazismo na Alemanha, analisa
o julgamento do ex-oficial da SS, Karl Adolf Eichmann, que fora
responsável pela questão judaica e o envio de muitos judeus para os campos
da morte. Diante de seus juízes, Eichmann não apresenta nenhum remorso
pelo que cometeu, ao contrário se julga inocente, pois teria agido segundo
os preceitos legais estabelecidos pelo partido nazista. Era tão-só um dente
da engrenagem burocrática e outro teria feito o que fez se não tivesse
feito. Observa Arendt de modo agudo:
Era como se a moralidade, no exato momento de seu total
colapso dentro de uma nação antiga e altamente civilizada,
se revelasse no significado original da palavra, como um
conjunto de costumes, de usos e maneiras, que poderia ser
trocado por outro conjunto sem dificuldade maior do que a
enfrentada para mudar as maneiras à mesa de um povo
(2004, p. 106).
Numa palavra, como observa Veloso (2006, p. 117), novas regras de
conduta ordenadas por um governo se transformam em regras superiores de
moral, tornando paradoxalmente o homicídio como regra geral, e o direito à
vida, uma exceção. As pessoas eram fiéis ou no mínimo coniventes com as
atitudes do partido nacional-socialista, como se trocassem muito
naturalmente um modelo por outro. Mas houve pessoas, aquelas capazes de
48
pensar, que não se ajustaram automaticamente a essa prática. Na realidade,
observa Arendt, esses decidiram ser melhor não fazer nada, não porque o
mundo mudaria para melhor, ou porque houvessem decidido obedecer ao
não matarás, mas porque não estavam dispostos a conviver com
assassinos, ou seja, eles próprios. Pode ser que, na esfera individual, que é
o campo da análise de Arendt, o comportamento do não-agir seja até
legítimo. Quando, porém, se passa à esfera coletiva como prefere pensar
Jonas quando se ligam poder e competência, a inação passa a ser
irresponsabilidade. Para ilustrar a diferença, Jonas cita a história do capitão
de uma embarcação, responsável pelo transporte e segurança dos
passageiros, e que, nessa condição, não deve seguir instruções de risco do
proprietário da embarcação. Ele tem o dever de agir, pois não está só
consigo mesmo, mas responde pelo bem-estar de outras pessoas. Associado
o poder à competência, há necessidade de uma ação responsável. E ali onde
um grande poder traz em si a possibilidade de um agir responsável, a
competência traz o dever de assim proceder.
Veloso especifica com propriedade que essa ética da responsabilidade
é eminentemente política e coletiva (2006, p. 120). O poder munido de
competência para agir é obrigado a agir com responsabilidade. Isso deve
afastar os poderes incompetentes, como o econômico e o do mercado, do
agir público. Arendt já estigmatizara o poder incompetente, caracterizado
pela lógica dos meios e fins, como se vê nas atividades do homo faber, que
invade o mundo com seus hábitos fabricados e traz como conseqüência a
49
instrumentalização não só do mundo, mas de nossa capacidade de pensar
(Apud VELOSO, 2006, p. 120).
Jonas perfila mesma convicção, ao propor que aquela esfera
produtiva, que invadiu o espaço da ação do homem, deve, por conseqüência,
ser invadido pela moral. Ambos, Arendt e Jonas, estão concordes em que a
responsabilidade para com a durabilidade do mundo deve implicar um agir
consistente, que ficará a cargo de todas as entidades sociais, mas, de modo
muito definido, pelo governo. O Estado tem aqui um papel primordial.
O modelo econômico que se adota atualmente visa acima de tudo o
lucro e a satisfação individual imediata. O Estado e o Direito não podem, na
linha do pensamento de Jonas, dar preferência ao utilitarismo e se deixar
levar pela truculência egoística de uma humanidade economicamente
injusta e socialmente desigual (VELOSO, 2006, p. 122).
O desideratum é que, sobre os Estados, a comunidade internacional
deve procurar uma ética global com direitos e deveres comuns a toda a
humanidade, de modo a se poder esperar uma nova ordem de consecução do
bonum humanum. Caberá a essa autoridade mundial e às instituições
internacionais garantir a humanidade do risco destrutivo, ínsito no poder
tecnológico. Como afirma A. Del Lago,
Trata-se em suma de estabelecer [...] se à cega autonomia
do mercado e do progresso técnico e científico, seja
preferível um centro decisional, dotado de responsabilidade
pela humanidade inteira (apud SOLLAZZO, 2008, p. 30
)
50
Para finalizar essas considerações sobre a proposta ética de Hans
Jonas, pode-se dizer com ele que a responsabilidade é o cuidado
reconhecido como dever ser por outro ser que, dada a sua vulnerabilidade,
faz com que esse cuidado se converta em preocupação. Para medir a
responsabilidade devida, deve-se perguntar: o que sucederá a esse ser se eu
não me ocupar dele? Quando mais obscura for a resposta, mais clara será a
responsabilidade
18
.
Os desenvolvimentos seguintes nesta dissertação podem ter agora uma
base filosófica, que permite, segundo cremos, que se pense a questão da
responsabilidade e imputabilidade da pessoa jurídica num contexto mais
amplo, para além dos limites tradicionais e formais de tempo e espaço do
direito.
18
Ao final de seu trabalho sobre a ética de Hans Jonas, Sollazo (2008, p. 31), não omite uma observação
crítica, sobre o que chama o “calcanhar de Aquiles” do pensamento jonasiano: a carência de uma reflexão
antropológica que possa soldar a ontologia, a metafísica à ética. Com efeito, argumenta o autor, Jonas, em
sua ética naturalística, confia ao homem tão só o papel de compreender, secundar e preservar. Nessa
perspectiva, o homem perderia um traço seu particular antropológico: “a possibilidade de transcender a
natureza, podendo dizer-lhe ´não´ . Em Jonas, em suma, o homem passa do extremo, cartesiano, de ser o
maitre et possesseur de la nature, àquele de ser o simples guardião”, negando uma parte de si mesmo. Não é
o lugar de discutir esse aspecto levantado, aliás com razão, por Sollazzo, mas pode-se apenas lembrar o
quanto uma visão antropológica excludente (o homem como centro absoluto de referência) causou de
prejuízos à própria natureza.
51
CAPÍTULO II
RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA
2.1 Responsabilidade penal subjetiva ou objetiva: conceitos em
discussão e aproximação legal
A responsabilidade penal consagrada pelo Código Penal pátrio tem
como princípio fundamental o da culpabilidade nullum crimen sine culpa,
sendo que a imputação de uma infração penal a alguém dependeria da
existência de uma vontade, a qual deve estar aliada a um conhecimento
sobre a ilicitude do fato, bem como a possibilidade de se exigir do agente
outra conduta, nas circunstâncias do cometimento da infração. Tais
elementos, somados à imputabilidade do agente, formam para a Teoria
Geral do Delito o conceito de culpabilidade
19
. Não é difícil, nem tampouco
problemático, aferir esses elementos quando o agente delituoso é uma
pessoa natural, eis que, como tal, atua com vontade e potencial consciência
da ilicitude, porém, ao se tratar de pessoa jurídica, a configuração destes
elementos torna-se inviável ou impossível, tendo em vista a sua natureza,
uma vez que, se se aceita ser uma ficção jurídica e desprovida de vontade,
não poderia praticar a conduta criminosa
20
. Há muito tempo e até
19
Trata-se de um conceito complexo, cujos element os, segundo a teoria normativa pura,
acham-se b em explicados por Bitencourt (2008, p. 350-353).
20
Explica Smanio (2004) que no fi nal do século XVIII impôs-se a Teo ria da Ficção,
formulada por Feuerbach e Savigny, segundo os quais a pessoa jurídica é uma criação
artificial da lei e, como tal, não pode ser objeto de autênt ica responsabilidade penal.
Apontam-se como principais fundamentos para não se reconhecer a p ossibilidade de
52
hodiernamente grande parte dos juristas
21
nega a possibilidade de
responsabilização criminal da pessoa jurídica, utilizando como argumento
mais forte a inexistência de uma vontade de ação, que seria exclusiva do
homem, podendo tal vontade ser entendida como uma faculdade psíquica da
pessoa individual (BITENCOURT, 2008, p.232), a qual não estaria presente
nas pessoas jurídicas. Defendem estes doutrinadores que a responsabilidade
penal ainda se limita à responsabilidade subjetiva e individual. Em que pese
as considerações acerca da impossibilidade de se responsabilizar
criminalmente a pessoa jurídica, é certo que, se adotarmos o sistema atual
sobre a responsabilização penal, não nos restará alternativa senão
concordarmos com essa corrente doutrinária; porém, a responsabilidade
penal da pessoa jurídica não seria subjetiva, mas sim objetiva. Não
dependeria, assim, da existência de uma vontade humana de ação, mas da
simples ocorrência de um nexo causal entre o fato e o eventual dano
material causado ao meio ambiente. Não haveria também a necessidade de
se questionar as intenções dessa pessoa jurídica, por exemplo, na hipótese
da ocorrência de um dano ambiental. A responsabilização seria feita de
forma objetiva, isto é, sem a exigência de ser comprovada a prática da
conduta a título de dolo ou culposa em sentido estrito. As grandes barreiras
para a aceitação dessa hipótese é o conservadorismo penal e a falta de
responsabil ização penal da pessoa jurídica são: a falta de capacidade de ação e de
culpabilidade. Cf.,supra,o tópico 1.1.2, onde se especificaram as correntes de
pensamento sobre a natureza jurídica da pessoa j urídica.
21
É o que constata Bitencourt (2008, p. 231-232) que refere os nomes de René Arial
Dotti, Muñoz Conde, Reinhart Maurach, para o quala incapacidade penal de ação da
pessoa jurídica decorre da essência da associação e da ação.
53
previsão legal no atual Código Penal brasileiro de 1940
22
. A lei dos
crimes ambientais, em seu artigo 3°, estabelece que as pessoas jurídicas
serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente. Há, assim, um
aparente conflito entre a lei 9.605/98 (norma especial), a qual prevê a
responsabilização da pessoa jurídica nas hipóteses de crimes ambientais, e o
Decreto-Lei 2.848/40 (norma geral), o qual estabelece a responsabilidade
exclusiva da pessoa natural. Para solucionar-se esse conflito, pode-se
invocar o Princípio da Especialidade, previsto explicitamente no sobredito
Decreto-Lei, em seu artigo 12
23
. Tal dispositivo legal prevê que as regras
gerais do Código Penal devem ser aplicadas aos fatos incriminados por lei
especial, salvo quando a lei específica não dispuser de maneira diversa.
Assim, mesmo que o Código Penal não consagre a responsabilidade penal
da pessoa jurídica, ele não estaria legitimado a impedir que uma lei
específica o fizesse, o que de fato acontece, quando invocamos o artigo 3º
da lei 9.605/98:
Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas
administrativa, civil e penalmente conforme o disposto
nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por
decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu
22
Anote-se, porém, qu e, por ser causalista, o Có digo de 1940 admitia de certo modo a
responsabil ização objetiva da pessoa jurídica, conforme deixava implícito pela redação
do art. 88: As medidas de segurança divi dem-se em patrimoniais e pessoais. A
interdi ção de estabelecimento ou de sede de sociedade ou associação e o confisco são
as medidas da pri meira espécie; as da segunda espécie subdividem-se em detentivas e
não detentivas (gri fos nossos). É necessário lembrar, contudo, que tal dispositivo foi
revogado pela Lei 7.209/84, que alterou substancialmente o Código Pen al.
23
Art. 12 do CP, in verbis: As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos
incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso. Nucci (2008, p.
108) explica que a l ei especial afasta a aplicação da lei geral (lex s pecialis derogat
legi generali) -, como, aliás, encontra-se previsto no art. 12 do Código Penal.
54
órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
(grifo nosso)
O parágrafo único do mesmo dispositivo reforça a idéia de
responsabilização penal da pessoa jurídica ao dispor que a responsabilidade
das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, as quais poderão ser
autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato criminoso. Assim, mesmo
sendo a conduta delituosa praticada por uma pessoa natural, a qual agiria
em benefício da empresa, ambas responderiam pelo resultado lesivo ao meio
ambiente. Não há que se falar em bis in idem neste caso, uma vez que a
pessoa jurídica não possui meios de, sozinha, praticar um delito. Porém, é
certo também, que essa pessoa jurídica é constituída por pessoas naturais,
as quais agem em interesse daquela, praticando condutas tipificadas como
delitos ambientais. As ações criminosas praticadas por essas pessoas
naturais, refletiriam na pessoa jurídica, eis que foram praticadas, em regra,
no interesse da empresa. É o que afirma Fernando Quadros da Silva (apud
CAMPOS, 2006):
[...] o artigo 121-2 do Código Penal Francês leva à
constatação de que as infrações imputáveis às pessoas
jurídicas devem ter sido cometidas por pessoas físicas (as
pessoas morais são penalmente responsáveis pelas infrações
praticadas por seus órgãos ou representantes), e, portanto, é
em relação aos indivíduos que devem ser apreciados o dolo
ou a culpa, persistindo uma preocupação com a
culpabilidade, numa concessão à dogmática tradicional.
Conclui afirmando que esta disposição consagra a tese do
reflexo onde a pessoa jurídica é responsável por ricochete,
indiretamente, e que é em relação à pessoa do indivíduo que
se deve aferir o dolo ou a culpa.
55
A propósito dessa questão, o Professor Guilherme Guimarães
Feliciano escreveu (2005, p.219) uma página extremamente elucidativa, que
deve ser transcrita:
Assim, o paradoxo da capacidade de culpa resolve-se aqui,
como se resolveu no direito penal francês (cujas linhas
gerais estão no artigo 3º da LCA): os elementos
psicológicos (consciência e vontade) apuram-se por simetria
(par ricochet), projetando-se à pessoa jurídica,
reflexivamente, o elemento anímico de quem age por ela,
desde que a infração seja cometida sob a égide da
corporação e no seu interesse. Dito de outro modo, o
mesmo vínculo jurídico e moral que liga os co-partícipes
une também a pessoa jurídica a seus dirigentes ou prepostos
e justifica-se especialmente quando a atividade criminosa é
praticada em proveito da pessoa jurídica
24
.
É o que sustenta João Marcello de Araújo Júnior, citado por
Eduardo L. S. Cabette (2003, p. 62), para o qual, reconhecida a capacidade
de ação e vontade, emerge conseqüentemente uma capacidade de culpa,
capacidade que se fundamenta, explica Cabette (p. 62) na teoria do risco
da empresa, também chamada na Comunidade Européia de
responsabilidade própria da empresa
25
.
Entretanto, poder-se-ia acrescentar, para uma segunda discussão,
que o dano ambiental ocorrido por um ato descuidado de um funcionário da
empresa não isentaria a responsabilidade penal dessa, sendo-lhe feita
objetivamente a imputação. Embora a lei 9.605/98 coloque expressamente
24
Cita-se ARAUJO JUNIOR (Dos crimes contra a ordem econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 1993), p. 76.
25
O mesmo Cabette defende que esse risco da emp resa pode ser perfeitamente
adequado à Teoria da Imputação Objetiva, sob o aspecto do chamado risco
permitido. E reconhece:A atuação dos entes coletivos surge não como mera ficção,
mas nos dias atuais especialmente, como uma avassaladora realidade, principalmente
nos campos da atividade econômica e das questões ambientais (2003, p. 64).
56
que a conduta do funcionário deva ser em benefício ou interesse da
empresa, entendemos que tel dispositivo legal deva sofrer alteração, sendo
suprimido esse elemento subjetivo do injusto. Não se defende aqui a idéia
de responsabilidade objetiva em relação ao dirigente ou funcionário da
empresa. Para tais pessoas, a atual teoria geral do delito é suficientemente
clara e precisa quanto à responsabilização subjetiva. Porém, a necessidade
de proteger o meio ambiente, preservando, assim, a existência de todos nós,
justificaria, a nosso ver, a responsabilidade penal objetiva da pessoa
jurídica. O bem jurídico meio ambiente não está ligado a uma só vítima,
mas, sim, a uma coletividade. A agressão ao meio ambiente coloca em risco
não só a vítima direta do dano ambiental, pois, sendo difuso esse bem
jurídico, todos os habitantes do planeta serão afetados. O atual Código
Penal não vislumbra essa possibilidade de responsabilização penal objetiva
da pessoa jurídica, porque foi promulgado em uma época onde se entendia
que a prática criminosa era exercida por uma pessoa natural, a qual agia
com dolo e, assim, responderia pelos seus atos. Entretanto, com o passar do
tempo, e com a modificação da criminalidade, conceitos e dogmas do
Direito Penal Clássico não são mais eficazes para combater uma
criminalidade moderna. É preciso que ocorra uma mudança profunda no
atual Direito Penal para que haja, realmente, uma efetividade da lei penal, a
qual, vale lembrar, é usada sempre em ultima ratio. A intervenção penal não
pode e não deve ocorrer quando outros ramos do Direito forem suficientes
para inibir a prática de ataques a determinado bem jurídico, porém, não
utilizá-lo quando necessário, sob pretextos dogmáticos e conceituais, é, no
57
mínimo, render-se ao conformismo covarde e temerário, o qual implicaria
em um risco desnecessário à existência humana. Responsabilizar
criminalmente a pessoa jurídica seria uma forma de se tentar combater as
práticas nocivas ao meio ambiente, protegendo-o de forma efetiva e
garantindo, assim, o bem estar de todos. Não há dúvida que a intervenção
do Direito Penal nestes casos seria um meio intimidativo encontrado pelo
Estado para proteger o meio ambiente, fazendo com que os dirigentes de
uma empresa, pensem duas vezes antes de praticarem uma infração
ambiental.
Assim, pelo já exposto, concluímos que a responsabilidade
criminal da pessoa jurídica deve ser sempre objetiva, havendo dano ou risco
ao meio ambiente, sendo essa responsabilização possível se levarmos em
consideração o atual quadro legal acerca do tema.
2. 2 Tratamento Constitucional
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a responsabilidade
penal da pessoa jurídica passou a fazer parte, expressamente, do nosso
ordenamento jurídico. Os artigos 173, §5º e 225, § 3º da Carta
Constitucional assim o dispõem:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição,
a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só
será permitida quando necessária aos imperativos da
segurança nacional ou a relevante interesse coletivo,
conforme definidos em lei.
58
[...]
§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual
dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a
responsabilidade desta, sujeitando-a às punições
compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a
ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações.
[...]
§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio
ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou
jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos
causados.
A matéria não está livre de controvérsia. Destacam-se, com efeito,
duas posições antagônicas. A primeira é a de Paulo José da Costa Junior,
para o qual,
nos termos da Constituição vigente, embora tenha sido
adotada a responsabilidade penal pessoal, o parágrafo 3º do
art. 225 admitiu que as pessoas jurídicas poderão ser
agentes de crimes lesivos ao meio ambiente.Com tal
posicionamento, nada impede que o legislador ordinário
venha a regulamentar, em legislação especial, a
criminalidade ecológica, onde se venha eventualmente, a
admitir que societas puniri potest (CERNICHIARO;
COSTA JUNIOR, 1990, p. 242).
Já Luis Vicente Cernicchiaro (1998, p.191-193) defendeu tese
diametralmente oposta, ao afirmar:
59
Ampliar a área de sujeitos ativos implicará reviver
proposta da Escola Positiva ao repousar a
responsabilidade penal na responsabilidade social.
Responder-se-ia criminalmente porque se vive em
sociedade. Só por isso, em havendo a prática de fato
definido como infração penal, justificar-se-ia a reação do
Estado. A pena, por sua vez, ganharia significado diferente.
Deixaria de ser mensagem para traduzir simples resposta.
Análise mais profunda mostra que só restará, como
identidade, o princípio da anterioridade da lei.
E com mais ênfase ainda escreve esse autor, no mesmo lugar:
Estruturalmente, para os efeitos penais, a pessoa física e a
pessoa jurídica só têm em comum a personalidade jurídica.
Não é, entretanto, suficiente para o sistema do Direito
Penal. É impropriedade atrair a pessoa jurídica. Não se
ajusta aos princípios penais. [...] Aplicar o Direito Penal às
pessoas jurídicas, na verdade, é fazer aplicação de
princípios de outra área jurídica. Poder-se-á, quando muito,
por transigência e homenagem à denominação, dizer -
Direito Penal II. Não é melhor dar-lhe o nome próprio?
Respeitar-se-á a substância!
Criteriosamente, o Prof. Guilherme Feliciano encontra que
o constituinte não pretendeu exaurir toda a matéria penal
relevante no art. 5º da Constituição Federal. Ao contrário,
há princípios penais contidos no art. 5º quer estão
expressamente excepcionados fora dele, como há também
normas de garantia e responsabilidade penal situadas além
do art. 5º, com azo no seu próprio parágrafo 2º (2005, p.
208).
Depois de citar alguns exemplos desses princípios excepcionados fora
do art. 5º (como o disposto nos art. 136 e 139 da Constituição), o autor
refere que o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu,incidenter
60
tantum, a existência de direitos e garantias fundamentais fora do elenco do
5º artigo. E conclui:
Logo, o argumento topológico de que uma autêntica
responsabilidade penal de pessoas jurídicas teria de estar
disposta no art. 5º, entre as linhas mestras do Direito
Penal não é convincente.O constituinte não estava
premido por coisa alguma (tanto menos pelos limites do
título II), podendo inserir, onde melhor lhe aprouvesse,
normas de garantia e responsabilidade penal, mesmo porque
se tratava de uma carta de ruptura. Compreende-se, desse
modo, que tenha estabelecido exceções relativas e pontuais
ao princípio da responsabilidade pessoal nos art. 173, par.
5º, e 225, par. 3º da CRFB, em vista da especial gravidade,
para o meio ambiente e para a ordem econômico-financeira,
da delinqüência estritamente corporativa. Quanto aos outros
dois princípios o princípio da culpabilidade e o princípio
da individualização das penas não foram excetuados, mas
relativizados (2005, p. 209-210).
As sobreditas normas constitucionais que nos parece serem de
eficácia limitada, uma vez que necessitam de uma norma ulterior que lhes
desenvolvam a aplicabilidade, só foram regulamentadas após a promulgação
da lei nº 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), a qual institui a
possibilidade da pessoa jurídica figurar como sujeito ativo nos delitos
contra o meio ambiente. A sobredita lei, em seu artigo 3º, dispõe sobre a
possibilidade de responsabilizar criminalmente as pessoas jurídicas nas
hipóteses de crimes ambientais. O constituinte de 1988 não fugiu de sua
responsabilidade política ao proteger expressamente o meio ambiente,
responsabilizando criminalmente as pessoas físicas e jurídicas pelo
cometimento de delitos contra o meio ambiente.
61
Dessa forma, temos sobre o tema em baila, previsão constitucional e
regulamentação em lei específica, razão pela qual, entendemos não existir
qualquer óbice legal para aceitar a hipótese de uma pessoa jurídica
responder pelos crimes praticados contra o meio ambiente.
2. 3 Aplicação das penas à Pessoa Jurídica
Há quem defenda peremptoriamente que outro óbice para se
responsabilizar a pessoa jurídica pela prática de um delito ambiental estaria
no fato de essa não poder sujeitar-se à sanção penal por excelência, a saber,
a pena privativa de liberdade. Tal argumento, embora verdadeiro, não é
justificativa suficiente para corroborar a vedação desta responsabilização
penal. Na verdade, o legislador tomou o cuidado de, no texto constitucional,
afirmar que a pessoa coletiva fosse penalizada com sanções compatíveis
com a sua natureza, in verbis:
Art. 173.Ressalvados os casos previstos nesta Constituição,
a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só
será permitida quando necessária aos imperativos da
segurança nacional ou a relevante interesse coletivo,
conforme definidos em lei.
[...]
§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual
dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a
responsabilidade desta, sujeitando-a às punições
compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra
a ordem econômica e financeira e contra a economia
popular. (grifos nossos)
62
É certo e notório que a aplicação de privação de liberdade é
incompatível com a pessoa jurídica, mas, outras formas de sanção penal
estão previstas e, produzem, conforme a espécie, aflição maior na ré que,
simplesmente, a privação de liberdade. Assim, exemplificando, se a pessoa
jurídica é punida com a pena de suspensão parcial ou total de suas
atividades ou, então, proibida de contratar com o Poder Público, bem como
dele obter subsídios, subvenções ou doações, isso poderia acarretar a sua
falência, o que, para ela significaria a sua morte. A lei dos crimes
ambientais prevê em seu art. 21, as seguintes espécies de penas:
Art. 21. As penas aplicáveis isolada, cumulativa ou
alternativamente às pessoas jurídicas, de acordo com o
disposto no art. 3º, são:
I multa;
II restritivas de direitos;
III prestação de serviços à comunidade.
As penas de multa e restritiva de direitos são, entre as previstas, as
que mais se compatibilizam com a natureza das pessoas coletivas. A
terceira espécie de sanção, prestação de serviços à comunidade, oferece
alguma dificuldade já que seria realizada pelos funcionários da empresa ou
por pessoas contratadas para executarem a tarefa imposta à pessoa jurídica,
e não por ela própria. Constitui princípio basilar da pena e garantia
individual a impossibilidade de esta passar da pessoa do condenado, o que,
de fato, ocorreria. Assim dispõe o art 5º, XLV da Constituição Federal:
Art. 5º [...]
63
XLV nenhuma pena passará da pessoa do condenado,
podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do
perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos
sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do
patrimônio transferido.
Tal argumento, data venia, não leva em conta que quando um
funcionário da empresa presta serviços à comunidade ele está empregando o
seu tempo de serviço e esforço laboral para cumprir a pena e não em prol da
pessoa jurídica. Ademais, essa prestação de serviços à comunidade seria
uma forma da empresa poluidora do meio ambiente em reparar o dano
causado à própria coletividade. Assim, a sobredita pena, não passaria da
pessoa do condenado, uma vez que seus empregados, ao invés de trabalhar
em benefício da empresa, realizariam tarefas impostas pelo juízo da
condenação para reparar o dano causado ao meio ambiente. Chega-se a esta
conclusão levando-se em conta apenas as espécies de pena de prestação de
serviços à comunidade, previstas no artigo 23 da lei 9.065/98. São elas:
Art. 23. A prestação de serviços à comunidade pela pessoa
jurídica consistirá em:
I- custeios de programas e de projetos ambientais;
II- execução de obras de recuperação de áreas degradadas;
III- manutenção de espaços públicos;
IV- contribuições a entidades ambientais ou culturais
públicas.
Com exceção da primeira e quarta espécies de penas de prestação de
serviços à comunidade, custeio de programas e projetos ambientais e
contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas
, as demais penas
serão executadas por pessoas naturais, as quais, poderão ou não, ser
64
funcionários da empresa poluidora. Embora, à primeira vista, dê a
impressão que a pessoa moral não está cumprindo a sua pena, já que a
execução das sobreditas tarefas é realizada por pessoas naturais, isso não é
verdade. A pessoa jurídica arcará com toda a despesa necessária para a
reparação do meio ambiente, além de sofrer, com a eventual condenação em
âmbito penal, todo estigma suportado por aqueles que têm o seu nome
lançado
no rol dos culpados. Para o professor
Oswaldo Henrique Duek
Marques (Apud SILVA, 2008), as sanções previstas na lei dos crimes
ambientais não possuem cunho penal, mas sim, administrativo ou civil. Em
que pese o entendimento do ilustre jurista, tais sanções são exeqüíveis e não
perdem a sua essência penal, a qual, está embasada na retribuição e
prevenção do crime
26
. Ninguém, seja pessoa natural ou moral, quer ter seu
nome lançado no rol dos culpados, sendo certo que para a pessoa jurídica, o
efeito danoso decorrente desse fato poderia resultar em um total descrédito
por parte dos consumidores, os quais, deixando de consumir o produto da
empresa poluidora, sujeitariam a mesma à bancarrota. Corroborando esse
entendimento parece oportuna a análise dos efeitos jurídicos e sociais de
uma condenação criminal levada a efeito pelo Prof. Guilherme G. Feliciano
que assim se exprime:
A pessoa jurídica será reincidente em novamente
delinqüindo (observado os parâmetros do art. 63 do CP),
suportando reprimenda paulatinamente mais severa. A
pecha do crime não se apaga com facilidade, repercutindo
na opinião pública e produzindo efeitos duradouros nos
26
Conceitua Nucci (2007, p. 289) a pena co mo sendo a sanção imposta pelo Estado, por
meio de ação penal, ao criminoso como retribuição ao delito perpetrado e prevenção a
novos crimes.
65
diversos nichos de mercado. Assim, por exemplo, a empresa
delinqüente poderá encontrar no mercado de consumo,
resistência similar àquela que os egressos lamentavelmente
amargam no mercado de trabalho. Além disso, o empresário
identificado com sua empresa (fato comum em sociedades
por cotas e empresas familiares) repudiará visceralmente o
epíteto criminoso que é a condenação penal traria à
pessoa jurídica, buscando elidi-la em juízo e antes disso
preveni-la fora dele, ajustando-se ao paradigma local de
responsabilidade social (2005, p.222).
Questão interessante a ser levantada ocorre quando a pessoa jurídica
não cumpre a prestação de serviço imposta à comunidade e não justifica o
descumprimento. Quando o mesmo fato acontece às pessoas naturais, o
juízo da execução irá converter a pena de prestação de serviços em pena
privativa de liberdade
27
. Porém, a mesma medida é impossível, quando se
trata de pessoa jurídica. A lei 9.605/98 é omissa, cabendo ao juiz da
execução tomar as medidas coercitivas necessárias para o efetivo
cumprimento da reprimenda. Tal é o nosso entendimento, que
especificamos. Tratando-se da pessoa jurídica, deve evitar-se a aplicação de
pena de prestação de serviços à comunidade, tendo-se em vista a sua
inexequibilidade. Entretanto, não ocorreria a situação de impunidade, caso
o juiz da condenação aplicasse ao ente moral as sanções de multa ou
interdição de direitos
28
.
27
É o que está previsto no art. 44, parágrafo 4º do Código Penal: A pena restritiva de
direitos converte-se em privativa de l iberdade quando ocorrer o descumprimento
injustificado da restrição imposta [...].
28
Eduardo L. S. Cabette não está longe dessa posição, ao reconhecer a lacuna legal na
matéria (2003, p. 69) e sugere o est abelecimento de uma multa cominatória diária pelo
juiz, ao molde do que acontece com as pessoas físicas (CP, art. 51). Reconhece, porém,
que t al solução não pode atual mente ser post a em prática, por falta de previsão legal.
66
2.4 Perante um conflito: a perspectiva de Winfried Hassemer
Foi fácil perceber após essas considerações que há um conflito
doutrinário a respeito da responsabilização da pessoa moral no cometimento
de um crime contra o meio ambiente. Uma primeira posição, a mais
tradicional e aceita, defende a impossibilidade de o ente moral praticar uma
infração penal, tendo em vista a sua essência e a ausência da vontade e
ação. Outra posição sustenta que a pessoa jurídica não é uma mera ficção
jurídica desprovida de vontade, mas sim um ente objetivo, com existência e
vontade próprias, distinta da de seus membros, com a finalidade de realizar
um objetivo social. Nesse sentido teria capacidade de responder pelos atos
nocivos ao meio ambiente. Em vista desse quadro doutrinário, Winfried
Hassemer
29
sugere repensar o Direito Penal, por meio daquilo que ele chama
deDireito de Intervenção
30
. Há algum tempo, pensa ele, os delitos e os
delinqüentes sofreram uma metamorfose profunda, observando-se uma
extensividade inédita: atualmente o bem jurídico atingido pela ação
delituosa não afeta apenas certa e determinada vítima, mas sim, a
coletividade, muitas vezes global e planetária. Exemplifica o ilustre jurista,
29
Winfried Hassemer (nascido em 17 de fevereiro de 1940 em Gau-Algesheim), é um
cientista do direito penal alemão e vice-presidente do Tribunal Constitucional Federal.
Hassemer foi entre 1964 e 1969 assistente científico no Instituto de Leis Soci ais e
Filosofia da Uni versida de do Sarre. Tornou-se depois Catedrático de Direito Penal, de
Sociologia e de Teoria do Direito na Universidade de Frankfurt. Destaca-se entre seus
escritos Três Lições de Direito Penal, obra aqui utilizada nesta dissertação.
30
Winfried Hassemer (1993, p.84) ao discutir o assunto, afirma que:a atual política
criminal é totalmente diferente do que era há vinte anos atrás. O Direito Penal é incapaz
de solucionar os modernos problemas da criminalidade e nós temos que refletir a
respeito de algo que seja melhor, mais eficaz, que seja capaz de solucionar esses
problemas. Eu chamo a isso de Direito de Intervenção.
67
reportando-se à Alemanha Federal, que o fenômeno que inquieta a
comunidade daquele país é a criminalidade organizada, a criminalidade
econômica, grandes atos criminais na área da ecologia planetária, o tráfico
de drogas. Constata que a criminalidade organizada é o centro das
preocupações da política geral. Essa criminalidade organizada não é apenas
uma organização bem feita, não é somente uma organização internacional,
mas é, em última análise, a corrupção da legislatura, da magistratura, do
Ministério Público, da política, ou seja, a paralisação estatal no combate à
criminalidade.
A criminalidade ecológica, para Hassemer, é um dos exemplos da
criminalidade moderna, compreendendo entre outras coisas o transportar
cargas perigosas de um lugar para outro, transferir detritos radioativos de
um país para outro, acontecendo até mesmo o contrabando de detritos
poluidores de um país para outro, sobretudo para fora da Comunidade
Européia. A criminalidade moderna apresenta as seguintes características:
1) ausência de vítimas individuais. Esse tipo de criminalidade não possui
vítimas individuais, ou melhor, as vítimas individuais só existem de forma
mediata (na criminalidade clássica poderíamos apontar, como semelhante,
os delitos fiscais, onde a vítima imediata é o Estado). Via de regra, a
criminalidade moderna não tem vítimas individuais. As vítimas são o
Estado ou as comunidades, como o caso da Comunidade Européia.
2) Pouca visibilidade dos danos causados. Os danos causados por essa
criminalidade não são sempre bem visíveis. Por exemplo, no direito
ecológico alemão, o Código de Direito Ambiental diz genericamente que
68
quem polui a água será sancionado (simplifica o autor). Mas para isso é
necessário colocar limites de poluição, é preciso saber em que momento
começa o ato criminoso, pois, logicamente quem coloca um quilo de sal no
rio Reno não comete um delito ambiental, mas quem coloca uma tonelada
sim, ou quem sabe cem toneladas, ou talvez não com sal, mas com outros
gêneros mais poluentes. Então, traduzindo, a autoridade administrativa
precisa definir os limites do proibido e do permitido. Hassemer completa
que o Código Ambiental não pode descrever o delito, como no caso do
homicídio, da fraude, mas pode descrever apenas a sua moldura, e o delito
efetivo deve ser descrito pela Administração Pública. Chama a isso de
acessoriedade administrativa, ou seja, o delito se define por um ato do
Poder Executivo. Isso é Direito Penal moderno, ou seja, os danos não são
mais visíveis, o delito perde a sua tangibilidade, adquire outra estrutura. A
criminalidade moderna transcende os direitos individuais universais, não é
o corpo, a vida, a liberdade, a honra, o patrimônio das pessoas como falava
o Direito Penal clássico, mas, a capacidade funcional do mercado de
subsídios, por exemplo, no caso das fraudes ao subsídio; a saúde pública
nos casos de produtos farmacêuticos etc. Esses são os bem jurídicos da
criminalidade moderna e do Direito Penal moderno. São bens jurídicos
supra-individuais, são universais e são vagos, possuindo sujeito passivo
indeterminado.
3) Novo modus operandi. Como última característica da criminalidade
moderna, Hassemer coloca que suas formas de ação são civis, não corre
sangue, só no final, talvez, haverá um pouco de agressão (1993, p. 89). De
69
um modo geral há colarinhos brancos, caneta, papel, assinaturas de
contratos e, também por isso, os danos desse tipo de criminalidade não são
visíveis: contratos, pagamentos, cartas, negociações, solicitações. E,
finalmente, completa Hassemer, aquela criminalidade apresenta três
características fundamentais: internacionalidade desse tipo de crime,
profissionalidade e gente boa, gente com cabeça e proteção contra a
investigação policial.
Perante esses fatos, o Direito Penal moderno, verifica Hassemer
(1993, p. 89), é totalmente diferente em muitos aspectos do Direito Penal
clássico. Existe uma nova criminalização e um aguçamento das medidas, em
especial na fase de investigação. Descendo a detalhes, Hassemer refere-se
ao aumento da moldura penal, dando como exemplo a elevação das penas
na área de drogas e do direito comercial, à criminalização territorialmente
extensa, com o crescimento da contextualização dos crimes, onde o
legislador procura descrever todas as hipóteses imagináveis (1993, p. 90),
à utilização exagerada de delitos abstratos. No que diz respeito ao Direito
Penal Processual, refere-se Hassemer ao uso de novos métodos
investigatórios, que vão em geral muito além do objeto e do sujeito
investigados, como acontece com a introdução de métodos técnicos
audiovisuais, de dados informatizados, do uso de colaboradores disfarçados
ou infiltrados, da invasão da privacidade de terceiros, atingindo como
rotina aquele campo de ações que no Código de Processo tradicional
deveriam constituir exceção. Destaca ainda o autor a privatização da
segurança, sem um controle estatal eficiente, e a transação ou a chamada
70
negociação no Direito Penal de modo que grandes processos penais
econômicos, na área de drogas, na área ambiental, entre outras, não são
decididos através de uma sentença, mas através de negociação, não raro
secreta: negocia-se quanto se pode dar e quanto se pode ceder. Eu acho
isso um escândalo em processo penal! (1993, p. 93). O jurista acredita que
isso provém do fato de o direito material ter recebido demasiados encargos
da nova criminalidade, encargos que não pode suportar (p. 93).
Fazendo uma avaliação pessoal desse cenário, Hassemer afirma de
princípio que o Direito Penal não pode renunciar a determinados princípios
que estão atravessados, rejeitados, na modernidade. Fundamenta sua tese
em quatro pontos principais: a) os déficits de execução; b) a
Individualização da pena; c) o princípio in dubio pro reo; d) o Juízo de
certeza.
Constata quanto ao primeiro que o moderno Direito Penal não está
funcionando satisfatoriamente. Nele os campos obscuros, não esclarecidos,
são muito amplos: o comércio internacional de detritos, o tráfico
internacional de drogas, a criminalidade econômica. Esses campos não são
apenas muitos, mas são também seletivos. No campo ambiental, no tráfico
de drogas, por exemplo, nunca se apanham os chefões, apenas o chamados
peixes pequenos, e isso é injusto do ponto de vista jurídico (1993, p. 93-
94). Nessas circunstâncias, a não finalização dos processos numa sentença,
substituída muitas vezes por um acordo, ou mesmo uma sentença dada no
limite inferior, porque o juiz sabe que foi pego apenas um entre milhares
tudo isso está a indicar os déficits de execução.
71
Quando à individualização da pena, que é um dos princípios
fundamentais do Direito Penal, parece não funcionar no Direito Penal
moderno, pois no novo tipo de criminalidade, não se age individualmente,
mas sempre em grupo a divisão do trabalho, quando normalmente há
uma diretoria que toma decisões, se não por unanimidade, ao menos por
maioria, não ocorrendo a decisão criminosa de uma pessoa só.
Também não funciona, na criminalidade moderna, o princípio In
dúbio pro reo. Se se espera até não se ter dúvida, o problema da
criminalidade internacional se tornará insolúvel (1993, p. 94). Há a
necessidade de uma intervenção oportuna, de se saber oportunamente o que
aconteceu. É preciso poder intervir nesse campo, como no caso dos
armamentos de guerra, no comércio e contrabando de material radioativo.
Intervir, mesmo tendo dúvidas.
Por fim, o juízo de certeza nem sempre é possível. Acha Rassemer
que é necessário ter respostas flexíveis, ditadas pela mudança de situação.
A cada dia se inventam novas drogas, drogas sintéticas, de modo que, nesse
como em outros casos, até o legislador intervir se levarão uns três anos. A
certeza exige uma legislação clara. Isso hoje não funciona. O Direito
Penal, nesse sentido, não pode se modernizar sem abrir mão de alguns
princípios (1993, p. 95).
Diante dessa situação, o que fazer, pergunta-se Hassemer. Como linha
geral, acha ele que o Direito Penal deve voltar ao aspecto central, ao
Direito penal formal, a um campo no qual pode funcionar, que são os bens
e direitos individuais, vida, liberdade, propriedade, integridade física,
72
enfim, direitos que podem ser descritos com precisão, cuja lesão pode ser
objeto de um processo penal normal (p. 95). Entretanto, diante da nova
criminalidade, é necessário encontrar outras saídas. Aqui volta ele a propor
o Direito de intervenção, que não se limitará a aplicar as pesadas sanções
do Direito Penal, em especial as sanções de privação da liberdade, mas que
optará por garantias menores. Esse novo campo do direito se localizaria
entre o Direito Penal, o Direito Administrativo, entre o direito dos atos
ilícitos no campo do Direito Civil, entre o campo do Direito Fiscal e
utilizaria determinados elementos que o fariam eficiente (p. 95).
Que elementos seriam esses? Hassemer avalia que se necessita, para
começar, de instrumentos eficientes contra as pessoas jurídicas, pois o
Direito penal clássico está totalmente voltado para o indivíduo, para a
pessoa física, enquanto o problema moderno são os grupos, as instituições,
ramos inteiros de organizações sociais. São também grupos dentro do
Estado. São bastante esclarecedoras as palavras do jurista alemão:
É necessário que nos concentremos nesse campo do Direito
Penal, na criação e divisão de hierarquias, na criação de
sistemas de proteção. E é exatamente isso que o Direito
Penal que temos não pode fazê-lo. Arrebentaremos com o
Direito Penal. Nós já começamos isso na Alemanha Federal
e no final teremos um instrumento ineficiente. Este campo
do Direito tem que ser efetivamente orientado pelo perigo,
pela periclitação e não pelo dano. A criminalidade moderna
não é um caso de danos, é um caso de riscos. Normalmente
nem se chega a produzir um dano, ou o dano ocorre quando
é tarde demais. Assim, esse campo do direito precisa poder
reagir ao perigo, ao risco, precisa ser sensível diante da
mínima mudança, que pode se desenvolver e transformar-se
em grandes problemas (1993, p. 95-96).
73
Reforçando sua proposta, Hassemer sustenta que esse campo de
direito se deverá organizar preventivamente, já que o Direito Penal sempre
se orientou pela repressão e pelo passado. Ora, a repressão pode vir tarde
demais. Uma intervenção oportuna, por exemplo, no que se refere à
corrupção, seria muito mais eficaz. Agir no nascedouro, antes que as coisas
estejam instaladas. É o que se chama direito de intervenção. É difícil não
concordar com o autor no que se segue:
Nesse aspecto os direitos coletivos são muito mais
importantes que os direitos individuais. É importante que os
direitos da coletividade, do funcionalismo, da justiça, da
bolsa, dos subsídios, do mercado de capitais estejam no
centro dessa área do direito e esse direito de intervenção
pode ser orientado pelo mercado, algo que no Direito Penal
não cabe. É um mundo diferente, o Direito Penal nunca
pode orientar-se pelo mercado, como, por exemplo, no
campo do direito ambiental, da poluição ambiental em
grande estilo, pode-se trabalhar com permissões de poluição
até determinado limite [...] (1993, p. 96).
O autor faz diversas aplicações de sua proposta, em especial na
questão controvertida da descriminalização das drogas, sonegação dos
impostos, como reguladores de comportamento, do direito penal ambiental.
Em todos esses campos, observa a incapacidade do direito penal de atender
com eficiência e com instrumentos sensatos às ações delituosas. Uma das
razões, talvez uma das principais, não deixa de formular: o fato de o Direito
Penal fundamentar-se na culpa, impedindo que se criem instrumentos
eficientes para combater a moderna criminalidade.
As idéias de Hassemer vêm ao encontro, segundo nos parece,
daquelas anteriormente expostas sobre ética da responsabilidade de Hans
74
Jonas. Ambos os pensadores estão de acordo sobre as novas realidades e a
magnitude de seus problemas, entre os quais, certamente, a enorme
potencialidade humana de produzir riscos tanto para o hoje quanto para o
amanhã. As injustiças do presente poderão multiplicar-se, ao limite da
destruição do homem, para o futuro. Indivíduos e coletividades estão aí
implicados, mas essas últimas, certamente, com mais força. Ser responsável
para Jonas era, antes de mais nada, tornar-se consciente do perigo, que a
nova tecnologia pode trazer (e já traz) para a vida em geral, e para o homem
em particular. Hassemer emprega, como se viu, o termo jurídico
periclitação, diante do cenário da nova criminalidade. E assim como Jonas
vê a insuficiência das éticas clássicas em responder à nova tipologia das
ações humanas, muito embora seus princípios básicos atinentes aos
indivíduos, possam e devam ser mantidos, Hassemer considera também
defasado o Direito Penal moderno, isto é, o que modernamente se executa,
face aos novos problemas advindos das relações comunitárias e sociais e ao
dinamismo das pessoas jurídicas, muito embora também reconheça a
necessidade de se manter os princípios fundamentais do Direito Penal
clássico, sem os quais se eliminam as garantias e a potência protetora dos
indivíduos, das comunidades e dos Estados, consubstanciadas no Direito
Penal.
75
CAPÍTULO III
DOS CRIMES AMBIENTAIS
3.1 O meio ambiente e o conceito de dano ambiental
O conceito de crime ambiental supõe, evidentemente, que se tenha a
compreensão do que seja meio ambiente. O termo possui hoje livre curso,
embora já se tenha observado que é pleonástico, pois meio e ambiente
se equivalem. Ele aparece por diversas vezes, como se sabe, na Constituição
Federal de 1988, e, antes dela, a Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política
Nacional do Meio Ambiente, já o definia como sendo o conjunto de
condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas (art.
3º, I).
3.1.1 Conceito de meio ambiente
De início, é preciso anotar que meio ambiente é conceito que se
vincula ao homem e a ele está relacionado. Se, a princípio, prevalecia, na
ecologia, uma abordagem dita autoecológica, isto é, que não incluía o
homem, passou-se depois a entender que a disciplina devia direcionar-se no
76
sentido de uma integralização de natureza-homem. É dessa forma que
Jollivet e Pavê puderam formular esta valiosa definição de meio ambiente:
O conjunto dos meios naturais ou artificializados da
ecosfera, onde o homem se instalou e que explora e
administra, bem como o conjunto dos meios não submetidos
à ação antrópica, e que são considerados necessários à sua
sobrevivência (1996, p. 63).
A referência ao homem não quer significar, entretanto, um
antropocentrismo tal, que toda a natureza esteja à sua disposição, para seu
uso e abuso. Ele não é o proprietário absoluto da natureza, ao contrário
necessita de conviver com ela numa convivência pacífica, mesmo porque o
contrário poderia acarretar o extermínio da espécie humana. Por essa razão
é que se chegou à necessidade de se falar em bioética e em biodireito, aliás
interrelacionados, pois as condutas morais do homem, em qualquer de suas
atividades, em especial aquelas que dizem respeito à vida, se devem
regular pelas normas jurídicas para a eficaz proteção e tutela dos valores
que estão em jogo. Os avanços tecnológicos e as possibilidades de
intervenção (e de destruição) na natureza levaram à consciência da
vulnerabilidade dessa, como também ao interesse intergeracional
31
de modo
a preservar os recursos naturais para as gerações futuras.
Essas preocupações não ficaram em esquecimento pelo constituinte
pátrio que, pode-se dizer, admitiu um antropocentrismo alargado na
expressão de Leite (2003, p. 75). Esse autor constata, com efeito, a partir
31
Fala-se, com propriedade, em equidade intergeracional, que exi ge que cada geraç ão
transmita à seguinte um nível de qualidade ambiental igual ao que recebeu da geração
anterior (LEITE, 2003, p. 75)
77
do art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988, bem assim do art. 3º, I,
da Lei 6.938, de 1981, que nosso ordenamento jurídico contempla a
responsabilidade social perante o meio ambiente, a ser executada não só
pelo Estado como também pela coletividade. Tal perspectiva
antropocêntrica, escreve Leite, coloca o homem como integrante da
comunidade biota. E acrescenta:
Apesar da falta de uma tutela difusa do bem ambiental o
Novo Código Civil (art. 1.228, § 1º, da Lei 10.406, de
2002) limitou o direito de propriedade ao exercício das
finalidades sociais, incluindo a preservação da flora, da
fauna, das belezas naturais, do equilíbrio ecológico e do
patrimônio cultural, bem como procurando evitar, por uso
inadequado, a poluição do ar e das águas (2003, p. 75-76).
É preciso assim reconhecer que o legislador deu um passo à frente,
não mais se limitando exclusivamente a entender a proteção ao meio
ambiente sob a razão de seu aproveitamento pelo homem, numa posição
economocêntrica. Poderíamos dizer mesmo que se trata de um importante
deslocamento rumo a um eixo axiológica ecocêntrico. Trata-se, então, de
um direito ao meio ambiente equilibrado, como bem da coletividade e
essencial à sadia qualidade de vida. É o que se depreende do art. 225,
caput, da Constituição Federal.
Vimos que a Lei 6.938/81 entendera por meio ambienteo conjunto
de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. É de
ver, então, que o legislador optou por um conceito amplo que abriga a vida
animal e vegetal no mesmo nível de importância que a vida humana, a vida
78
em todas as suas formas. José Afonso da Silva justifica com propriedade
essa globalização conceitual:
O conceito de meio ambiente há de ser, pois,
globalizante, abrangente de toda a natureza, o artificial e
original, bem como os bens culturais correlatos,
compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as
belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico,
paisagístico e arquiológico.
O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de
elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o
desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas
formas (2002, p.20) (Grifo do autor).
O legislador pátrio não se limitou, portanto, ao conceito restrito de
proteção aos recursos naturais. É claro que a conotação dos bens naturais e sua
proteção fica expressa, como ecossistema e equilíbrio ecológico, mesmo porque
disso depende também o aproveitamento humano do bem ambiental. Mas a
expressão ampla da lei permite entender que ela considera o meio ambiente como
um macrobem, um bem incorpóreo e imaterial, que se configura como bem de
uso comum do povo. É o que explica Antônio Herman Benjamin:
Como bem enxergado como verdadeira universitas
corporalis, é imaterial não se confundindo com esta ou
aquela cosia material (floresta, rio, mar, sítio histórico,
espécie protegida etc.) que o forma, manifestando-se, ao
revés, como o complexo de bens agregados que compõem a
realidade ambiental. Assim, o meio ambiente é bem, mas,
como entidade, onde se destacam vários bens materiais em
que se firma, ganhando proeminência, na sua identificação,
muito mais o valor relativo à composição, característica ou
utilidade da coisa do que a própria coisa. Uma definição
como esta de meio ambiente, como macrobem, não é
incompatível com a constatação de que o complexo
ambiental é composto de entidades singulares (as coisas,
por exemplo) que, em si mesmas, também são bens
jurídicos: é o rio, a casa de valor histórico, o bosque com
apelo paisagístico, o ar respirável, a água potável (Apud
LEITE, 2003, p. 82-83).
79
Alerta José Rubens Morato Leite (p. 83) que o legislador
constitucional, ao caracterizar o meio ambiente como bem comum de todos,
não legitimou exclusivamente o Poder Público para sua tutela jurisdicional
civil, como interesse difuso, e assim apartou o meio ambiente de uma visão
de bem público em sentido estrito. Um dos sinais comprobatórios disso é
que, quando há pagamento pecuniário, a título indenizatório dos danos aos
bens ambientais, os montantes arrecadados são depositados em fundo que
não é gerido e administrado só pelo Poder Público. O bem ambiental
(macrobem) não é, pois, patrimônio público, mas pertence à coletividade, é
de interesse público
32
. Em consequência, anota ainda Leite (p. 84) que esse
bem deve ser separado da definição de bens públicos e privados que fora
dada pelo Código Civil brasileiro de 1916, erro em que incidiu também o
novo Código Civil, classificando os bens de uso comum do povo como bens
públicos, verbis:
Art. 99 São bens públicos: I os de uso comum do
povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças
[...]
33
Outro aspecto também relevante que se destaca na caracterização do
meio ambiente, considerado como bem comum a quetodos têm direito,
segundo a expressão constitucional
34
, é justamente que se trata de um bem
32
José Afonso da Silva (2002, p. 83) define que os bens de interesse público se
subordinam a peculiar regime jurídico, em relação a seu gozo e à disponibilidade e a um
particular regime de polícia de intervenção e de tutela públi ca, distinguindo-se duas
categorias de bens de interesse público: os de circulação controlada e os de uso
controlado. O autor dá como exemplo o meio ambiente cultural e o natural.
33
O Código Civil de 1916 rezava i gualmente no art. 66: Os bens públicos são: I de
uso comum do po vo, tais como os mares, estradas, ruas e praças; [...].
34
Constituição da República Federativa do Brasil, art. 225, caput: Todos t êm direito ao
meio ambiente ecolo gicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
80
jurídico fundamental, objeto de um direito fundamental do homem.Tal
direito se insere ao lado do direito à vida, à igualdade, à liberdade, de
amplo cunho social e não só individual. Cabe assim ao Estado e à
coletividade o cuidado para a efetivação desse direito, esperando-se daquele
os meios instrumentais indispensáveis, e a essa, a abstenção de práticas
nocivas ao meio ambiente. Por outro lado e como consequência dessa
solidariedade de obrigações, ressalte-se que o direito fundamental ao meio
ambiente apresenta-se com dupla natureza jurídica: é um direito subjetivo
da personalidade e de caráter sobretudo público, e também como elemento
fundamental de ordem objetiva. No primeiro aspecto, reconhece-se a
possibilidade aos indivíduos de pleitear o direito de defesa contra atos
lesivos ao meio ambiente, já que o desenvolvimento da personalidade
humana necessita da preservação ambiental ecologicamente equilibrada
35
. Já
a dimensão objetiva do direito do meio ambiente se depreende da
incumbência de tarefas essenciais à preservação ambiental, que a
Constituição Federal (art. 225, § 1º) faz ao Estado. Nesse sentido, José de
Sousa Cunhal Sendim (apud LEITE, 2003, p. 89) salienta que a dimensão
objetiva vem assegurada pelas normas-fins e normas tarefas, que a
Constituição Federal positivou, e que impõem aos poderes constituídos a
proteção e promoção do direito fundamental ao meio ambiente.
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo ou pres ervá-lo para as presentes e fut uras gerações.
35
Segundo o art. 5º, inciso LXXIII, da Constitui ção Federal, o direito de defesa
subjetivo do meio ambiente, de caráter público, poderá ser exercido a tí tulo individual.
81
3.1.2 Espécies de meio ambiente
José Afonso da Silva (2002, p. 21-23) apresenta a seguinte divisão:
a) o meio ambiente natural ou físico: os recursos naturais (solo, água, ar
atmosférico, flora, fauna e em geral, todas as formas de interação entre os
seres vivos e seu meio
36
.
b) o meio ambiente artificial, que inclui o espaço urbano construído, ou
seja, o conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos
públicos (ruas, praças, áreas verdes, espaços livros em geral (espaço urbano
aberto);
c) o meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio histórico, artístico,
arqueológico, paisagístico, turístico, que, embora artificial, em regra, como
obra do homem, difere do anterior (que também é cultural), pelo sentido de
valor especial que adquiriu ou de que se impregnou;
d) o meio ambiente do trabalho, entendido como o local em que se
desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por
isso, em íntima dependência da qualidade daquele ambiente (segundo esse
autor, essa espécie é inclusa no conceito de meio ambiente artificial).
O meio ambiente natural é aquele complexo de elementos, condições
e leis da biota, sujeitos a interações de ordem física, química e biológica,
que permite, abriga e rege a vida em todas as formas(FELICIANO, 2005,
p. 329). Pode-se especificar, embora de maneira breve, esses elementos,
36
Cf. art. 3º, I, da Lei n. 6.938/81.
82
objeto da ecologia, enquanto ciência biológica que estuda as funções
relacionais de organismo vivos com seu entorno natural (p. 333). São
eles:
a) a biosfera, a parte do globo terrestre onde a vida existe e se reproduz.
Compreende a massa atmosférica circundante, a água líquida e quantidade
menor de terrenos sólidos, Aí se incluem também as populações vivas,
vegetais e animais. Divide-se em biociclos (o terrestre, a vida em água
doce, a vida no mar), biocoras (as unidades dos biociclos) e biomas (zonas
particulares dos biomas, por ex., a floresta tropical )
37
. Distinguem-se nesse
conjunto a biomassa, matéria orgânica total de um dado ecossistema; a
biota, o conjunto de todos os seres vivos que habitam a biosfera e formam
as populações e as comunidades;
b) o solo, a camada mais superficial da crosta terrestre. Aqui, há de se
distinguir o subsolo, os recursos minerais, as jazidas, as minas, as lavras;
c) a erosão, ou seja, o transporte dos elementos constituintes do solo para
as planícies, vales, leito dos rios ou para o mar, como conseqüência de
agentes externos, de origem natural ou humana;
d) a atmosfera, isto é, a massa de ar que envolve a Terra e que fornece às
populações aeróbicas o elemento indispensável às quebras energéticas em
nível celular e outras muitas funções, dentre as quais a de servir de filtro
contra as radiações do espaço exterior que se propagam pelo vácuo (as
radiações UV-A, UV-B e infravermelho);
37
SILVA JUNIOR, Cesar; SASSON, Sezar. Biologia. 4. ed. São Paulo: Atual, 1984, p. 183.
83
e) o clima, que é a sucessão habitual dos tipos de tempo e seus elementos
são a temperatura, a pressão atmosférica, a umidade, os ventos e as
precipitações atmosféricas;
f) os recursos hídricos, compreendendo as reservas líquidas úteis de um
país: rios, lagos, lençóis freáticos e outras reservas aquosas em terreno de
domínio público ou particular;
g) a biodiversidade, que é a variabilidade de organismos vivos de todas as
origens e os complexos ecológicos de que fazem parte (FELICIANO, 2005,
p. 339). Como explica esse autor, a biodiversidade compreende a
diversidade dentro de uma mesma espécie, a diversidade entre espécies e a
diversidade entre ecossistemas;
h) a biossegurança, entendida como a qualidade própria ao manejo
sustentável dos recursos naturais genéticos e correspondente ao uso seguro
de técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação,
transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo
geneticamente modificado, com a finalidade de proteger a vida e a saúde do
homem, dos animais e das plantas, e assegurar a integridade do meio
ambiente ecologicamente equilibrado (FELICIANO, p. 340).
Define-se o meio ambiente artificial como o conjunto de edificações,
reconhecido como espaço construído fechado, e equipamentos públicos
(ruas, praças, áreas verdes, represas, iluminação pública etc. dito espaço
construído aberto) que forma o espaço humano construído, urbano ou rural.
Tal definição evidencia que a preocupação com o meio ambiente vai além
da proteção à natureza e da luta contra a poluição, devendo abranger
84
também todos os elementos artificiais que se relacionem com a qualidade de
vida e com a forma de utilização e organização dos espaços construídos, na
cidade ou no campo
38
. No meio ambiente rural predominam as atividades
econômico do setor primário (extrativismo, pecuária e agricultura) e no
urbano, as atividades econômicos do setor secundário (indústria) e/ou
terciário (serviços).
Como se observa, por toda parte, o fenômeno da urbanização da
população, é de entender-se, observa o Prof. Guilherme Feliciano (p. 345)
que as medidas de defesa e preservação do meio ambiente são mais
prementes nas zonas urbanas, onde o desequilíbrio ecológico afeta grandes
populações, em razão da maior densidade demográfica e à impermeabilidade
do entorno. Reconhece-se, porém, hoje que as alterações da paisagem
campesina também podem ser muito graves, com a poluição dos rios e
mananciais pelo uso desordenado dos agrotóxicos, devastação da cobertura
vegetal etc.
Merece, entretanto, atenção especial o meio ambiente urbano, em que
a política ambiental é indispensável, mesmo porque, afirma o Prof.
Feliciano (p. 348), os conflitos suscitados na organização do espaço urbano
é que engendram os principais movimentos ecológicos da atualidade. E
pondera, com muita propriedade, que as cidades não passam de uma pálida
38
Prieur, citado por Feliciano (2005, p. 345), entende que a expressão “meio ambiente cultural”
compreenderia tudo o que é transformado pelo homem, contrapondo-se à idéia de meio ambiente natural.
Opõe-se a isso o Prof. Guilherme Feliciano (ibidem), alegando que “meio ambiente cultural é usualmente
empregado em contextos de fundo sociológico e/ou arquitetônico (patrimônio cultural, como no art. 216 da
Constituição Federal), a que não pertencem as construções urbanas recentes ou vulgares que, nada obstante,
são a causa principal dos problemas picos do meio ambiente artificial (edificações desordenadas,
favelização, poluição visual etc.)”.
85
cópia dos ecossistemas naturais, não sendo orgânicos os vínculos de
interdependência (como nas cadeias alimentares), mas, sobretudo,
socioeconômicos. Por essa razão, são numerosas as possibilidades de
agressão ao meio ambiente artificial equilibrado, como, por exemplo, a
conspurcação de edificação urbana, a poluição visual, que pode vir até a
atingir o patrimônio cultural
39
, a poluição sonora etc.
A expressão meio ambiente cultural, numa acepção lata, se
identifica com patrimônio nacional ambiental, ou seja, o espólio nacional
integrado de todos os objetos de valor ambiental reconhecido, naturais,
artificiais ou ambientais. No sentido estrito, equivale ao espólio nacional de
todos os bens do patrimônio histórico, artístico, arqueológico,
paleontológico, turístico e científico, neles mesmos e nas interações com o
entorno e o homem. É que esclarece Feliciano (2005, p. 352), que define,
acompanhando Sebastião Valdir Gomes, como sendo o meio ambiente
cultural as sínteses culturais que integram o universo das práticas sociais
das relações de intercâmbio entre o homem e a natureza. Entretanto, não
fariam parte desse conjunto as edificações os equipamentos públicos sem
relevante interesse cultural, que, como se viu, pertencem ao meio ambiente
artificial
40
.
39
O crime de conspurcação de edificação urbana está previsto no art. 65 da Lei n. 9.605/98. Tal conspurcação
pode ser qualificada, quando atinge o ordenamento urbano e o patrimônio cultural brasileiro. Explica o Prof.
Feliciano que todos os modos de tutela convergem para a garantia plena de direito à cidade. “O direito à
cidade, paulatinamente reconhecido entre as nações do mundo, é um consectário do próprio ideário
democrático ocidental” (p. 350).
40
No caso do meio ambiente cultural brasileiro, a Constituição Federal de 1988 estabelece constituir nosso
patrimônio “os bens de natureza material e imaterial tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (art. 216,
caput)
86
Entre os bens componentes do meio ambiente cultural podem ser
listados: os objetos de arte e/ou de interesse arqueológico, pré-histórico,
etnográfico, religioso, científico, tecnológico ou popular; as coisas de
interesse histórico e as obras de arte histórica; as coisas de interesse de arte
erudita e as obras de artes aplicadas; as jazidas que representem testemunho
das culturas indígenas antigas, como sambaquis, poços sepulcrais, jazigos,
estearias e outras; cemitérios, sepulturas e locais de pouso prolongado ou
de aldeamento, com os vestígios humanos de interesse arqueológico ou
paleoetnográfico; as inscrições rupestres e outras manifestações culturais
ou etnológicas, nos locais onde ocorrem
41
.
José Afonso da Silva (2002, p. 23) define o meio ambiente do
trabalho, como o local em que se desenrola boa parte da vida do
trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependência da
qualidade daquele ambiente. De maneira mais específica, Purvin de
Figueiredo afirma que se trata do conjunto de condições, leis, influências e
interações de ordem física, química e biológica, que incidem sobre o
homem em sua atividade laboral(2000, p. 44). Vê-se que é muito ampla a
abrangência das condições que concorrem para o ambiente equilibrado do
trabalho, como, em contrapartida, são também numerosos os riscos
possíveis de agressão à saúde física e psíquica do trabalhador.
41
O Prof. Feliciano enumera (p. 353-354), por sua nota de relevância, todos os principais objetos ambientais
que constituem o meio ambiente cultural brasileiro, com fulcro na Constituição Federal de 1988, no Decreto-
lei n. 25 de 30 de novembro de 1937, na Lei n. 3.924, de 26 de julho de 1961, na lei n. 6513, de 20 de
dezembro de 1977 e na Lei n. 8.181, de 28 de março de 1991. Pelo art. 24, VII, da Constituição, o meio
ambiente cultural abarca o patrimônio histórico, o patrimônio artístico e o patrimônio turístico (o inciso não
inclui o patrimônio científico “que reúne o cabedal de invenções, modelos, informações e patentes de
relevante valor científico, desde que genuinamente brasileiros” (p. 355). Aqui, fez-se apenas um resumo do
rol apresentado pelo autor.
87
Segundo Feliciano (2005, p. 364), esses riscos podem ser
classificados como:
físicos (o ruído, a vibração, as temperaturas extremas, as
pressões anormais e as radiações ionizantes e não-
ionizantes); químicos (névoas, neblinas, poeiras, fumos,
gases e vapores) e biológicos (bactérias, fungos, helmintos,
protozoários e vírus) a par dos riscos ergonômicos e
psíquicos, inerentes às atividades penosas e carentes de
regulação adequada.
É certamente por isso que a Organização Internacional do Trabalho
(0IT) vem produzindo ao longo de sua história numeroso conjunto de
Convenções e Recomendações, que vivam à constituição de um direito
tutelar do trabalhador nas mais diversas atividades
42
. Muitos desses
documentos já foram, como se sabe, promulgados no Brasil.
É de notar, como conclusão, que, sendo o trabalho uma das dimensões
mais importantes do ser humano, não apenas como condição de
sobrevivência, mas como constitutiva de sua própria natureza social, as
agressões ao meio ambiente do trabalho podem atingir a própria dignidade
humana, significando desrespeito e exploração injusta.
42
Elenco significativo dessa legislação é apresentado por Feliciano (2005, p. 364-366), abrangendo a
inspeção do trabalho e a prevenção dos acidentes, o trabalho subterrâneo das mulheres, os acidentes de
trabalho na agricultura, as condições de trabalho nas plantações, no ramo da construção civil, no trabalho
portuário e marítimo, na prevenção do câncer operacional, a prevenção contra as radiações ionizantes, o
ambiente do trabalho no comércio e nos escritórios. Ao referir-se ao panorama nacional, no que tange à
proteção penal, atesta que “no ordenamento brasileiro, a tutela penal do meio ambiente do trabalho é pífia” (p.
366).
88
3.1.3 Formas de danosidade
Após a consideração do que seja meio ambiente, do conceito jurídico
que se pode a seu respeito estabelecer e do direito que desse decorre, bem
como de quais espécies pode dividir-se o meio ambiente, torna-se
necessário abordar as possíveis formas de danosidade, que darão
fundamento às iniciativas penais legalmente previstas.
Uma primeira observação a fazer-se é de que a expressão dano
ambiental admite duplo sentido: as alterações nocivas ao meio ambiente, e
os efeitos daí decorrentes para a saúde e interesses das pessoas. A lesão ao
patrimônio ambiental pode, então, significar não só o dano à coletividade,
mas aos interesses legítimos de determinada pessoa. Fica, em ambos os
casos, subentendida a reparabilidade pelo prejuízo patrimonial ou
extrapatrimonial.
A danosidade pode se distinguir em várias formas, segundo se considere a
amplitude do bem protegido ou a reparabilidade e o interesse envolvido, ou, por
fim, a extensão do dano perpetrado. Vale-se aqui, uma vez mais, da lição de José
Rubens Morato Leite (2003, p. 93-100), cujos méritos de exposição clara e
didática são de reconhecer. Quanto à amplitude do bem protegido, pode-se falar
de um dano ecológico puro, isto é, quando são lesados componentes naturais do
ecossistema e não o patrimônio cultural ou artificial. Atingem-se, assim, bens
próprios da natureza, em sentido estrito. Quando se abrangem todos os
componentes do meio ambiente, aí incluindo-se o patrimônio cultural, fala-se
num dano ambiental lato sensu, que diz respeito aos interesses difusos da
89
coletividade. Por fim, nomeia-se o dano individual ambiental ou reflexo, que
atinge o microbem ambiental, ferindo-se interesses próprios do lesado. Se se
atende à reparabilidade e o interesse envolvido, temos o dano ambiental de
reparabilidade direta, quando o interessado que sofreu a lesão deverá ser
diretamente indenizado; e o dano ambiental de reparabilidade indireta, quando
relacionado a interesses difusos, coletivos, e eventualmente individuais de
dimensão coletiva, e, neste caso, a reparabilidade é feita indireta e
preferencialmente ao bem ambiental de interesse coletivo, sem objetivo de
ressarcir interesses próprios e pessoais. Por fim, se se considera a extensão do
dano ambiental, distingue-se o dano patrimonial ambiental e o extrapatrimonial
ou moral ambiental.O primeiro exige a restituição, recuperação ou indenização do
bem ambiental lesado. É de lembrar que, em sua versão de macrobem, o bem
ambiental é de interesse de toda a coletividade, não se aplicando a versão
clássica de propriedade, que, entretanto, vem aplicada quando se tratar de
microbem ambiental, relacionado a um interesse individual (dano individual
reflexo). O dano extrapatrimonial ou moral ambiental diz respeito não a
interesses de natureza material ou econômica, mas a valores de ordem espiritual,
ideal ou moral, por acaso feridos em virtude da lesão ao meio ambiente.
É oportuno ter presente que o dano causado ao meio ambiente,
ecologicamente equilibrado, diz respeito a um bem incorpóreo, imaterial,
autônomo, de interesse da coletividade. Trata-se, pois, de um dano de tipo
especial, cujo ressarcimento também transcende a concepção tradicional de
atendimento à parte que postulou em juízo, justamente porque se trata aqui de
interesses difusos. Mas é um bem de interesse jurídico autônomo e, portanto
reparável.
90
Da consideração do dano ambiental pode-se passar agora à dos crimes
ambientais.
3.2 Previsão legal, conceito e espécies de crimes ambientais
Capitulados pela Lei 9.605/98, os crimes ambientais podem ser
definidos, numa conceituação muito ampla, como toda conduta nociva e
atentatória ao equilíbrio do meio ambiente. Entretanto, é de observar-se que
não se trata de qualquer conduta danosa ou que provoque perigo ao meio
ambiente, mas aquela que é prevista pelo diploma legal. Tal obrigatoriedade
decorre do princípio constitucional da legalidade, o qual estabelece que não
há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal
43
.
Nossa atenção será voltada de modo especial, embora não exclusivo,
para os delitos passíveis de serem cometidos pelas pessoas jurídicas.
A Lei 9.605/98 especifica os comportamentos danosos ao meio
ambiente, nos artigos 29 ao 69-A, os quais estão divididos em: crimes
contra a fauna (art. 29 ao 37); crimes contra a flora (art. 38 ao 53); da
poluição e outros crimes ambientais (art. 54 ao 61); crimes contra o
ordenamento urbano e o patrimônio cultural (art. 62 ao 65) e, por fim,
crimes contra a administração ambiental (art. 66 ao 69-A).
43
É o que estabelece o artigo 1º do Códi go Penal pátrio e o inci so XXXIX, artigo 5º d a
Constituição Federal.
91
Na seção I do capítulo V da Lei 9.605/98 o legislador tutelou a
fauna, tomando o devido cuidado de defini-la legalmente, assim, in
verbis:
Art. 29.
[...]
§ 3º São espécimes da fauna silvestre todos aqueles
pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer
outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de
seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território
brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras.
Na seção II a tutela penal recai sobre a flora. O artigo 38 da Lei
9605/98, não traz o conceito de flora, mas, sim, prevê as condutas nocivas a
ela nos verbos destruir e danificar floresta considerada de preservação
permanente, mesmo que em formação. Utilizou-se o legislador de norma
penal em branco, sendo necessário ao intérprete recorrer a outro dispositivo
legal para tomar o conhecimento sobre a matéria, por exemplo, os artigos 2º
e 3º do Código Florestal
44
.
44
Os artigos 2º e 3º do Código Florestal estabelecem que: art. 1° As florestas existentes
no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às
terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País,
exercendo -se os direitos de propriedade, com as limi tações que a legislação em geral e
especialmente esta Lei estabelecem; e art. 2° Consideram-se de preservação permanente,
pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a)
ao l ongo dos rios ou de qualquer curso d'água desde o seu nível mais alto em faixa
marginal cuja largura mínima será: 1 - de 30 (trinta) metros para os cursos d'água de
menos de 10 (dez) metros de largura; 2 - de 50 (cinquenta) metros para os cursos
d'água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura; 3 - de 100 (cem)
metros para os cursos d'água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de
largura; 4 - de 200 (duzentos) metros para os cursos d'água que tenham de 200
(duzentos) a 600 (sei scentos) metros de largura; 5 - de 500 (quinhentos) metros para os
cursos d'água que tenham largura superior a 60 0 (seiscentos) metros; b) ao redor das
lagoas, lagos ou reservatórios d'água naturais ou artificiais; c) nas nascentes, ainda que
intermitentes e nos chamados "olhos d'água", qualquer que seja a sua situação
topográfica, num raio mínimo de 50 (cinquenta) metros de largura; d) no topo de
morros, montes, montanhas e serras; e) nas encostas ou partes destas, com declividade
superior a 45°, equivalente a 100% na linha de maior declive; f) nas restingas, como
92
Na seção III a preocupação legislativa recaiu sobre a poluição de
qualquer natureza: atmosférica, hídrica, terrestre etc. O artigo 54 da Lei
9.605/98 estabelece pena de um a quatro anos de reclusão quando alguém
causar poluição de qualquer natureza e em níveis tais que resultem ou
possam resultar em danos à saúde humana, ou então, que provoquem a
mortandade de animais ou a destruição significativa da flora.
Nos crimes previstos na seção IV da sobredita lei, a tutela penal recai
sobre o meio ambiente diversificado, ou seja, aquele artificial, o qual é
denominado pela lei como Ordenamento Urbano. É nesse local onde
habitamos. Esse ordenamento urbano é composto pelas construções
artificialmente erguidas, bem como pelo meio ambiente cultural. Para
chegarmos a uma melhor definição legal, necessário se faz invocarmos o
artigo 216 da Constituição Federal, in verbis:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens
de natureza material, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I- as formas de expressão;
II- os modos de criar, fazer e viver;
III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico.
fixadoras de dunas ou estabili zadoras de mangues; g) nas bordas dos tabuleiros ou
chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (c em)
metros em projeções horizontais; h) em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos)
metros, qualquer que seja a vegetaç ão.
93
A seção V da lei dos crimes ambientais prevê os crimes contra a
administração ambiental. Nessa seção, em nosso entendimento, apenas duas
figuras típicas podem ser praticadas pela pessoa jurídica, tendo em vista as
elementares descritas no tipo. São os artigos 68 e 69 da sobredita lei. No artigo
69 a conduta proibida consiste em deixar, aquele que tiver o dever legal ou
contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental.
Assim, qualquer pessoa incumbida desse dever, seja ela física ou jurídica, ao
deixar de cumpri-lo, comete o delito. Na figura típica do artigo 69, a proibição
está ligada ao fato de alguém obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder
Público no trato de questões ambientais. Ora, quem mais teria o interesse em
dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público em questões pertinentes ao meio
ambiente, senão a empresa poluidora? É claro que em todas essa figuras típicas,
será necessária a participação ativa de pessoas naturais, as quais, em nome e
interesse da pessoa jurídica, ingressam efetivamente no cometimento do crime
ambiental.
Nas demais seções, segundo nosso entendimento, todos os preceitos
incriminatórios podem ser praticados pelo ente moral.
Uma característica interessante dos crimes ambientais é a sua natureza
preventiva de proteção ao meio ambiente. São, em sua maioria, crimes de perigo
abstrato, ou seja, para a sua consumação basta que o bem jurídico seja colocado
em risco, não sendo necessária a efetiva ocorrência do dano ao meio ambiente.
94
3.3 Co-autoria e participação nos delitos ambientais e a omissão
penalmente relevante
A co-autoria pode ser definida como sendo a ajuda mútua entre os
agentes no cometimento do crime. Tal cumplicidade e somatória de esforços
irão, de certa forma, viabilizar a execução do crime, facilitando, assim, a
sua consumação. O artigo 29 do Código Penal pátrio prevê a co-autoria nos
seguintes moldes:
Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime
incide nas penas a este cominadas, na medida de sua
culpabilidade.
Segundo o dispositivo legal acima descrito, houve uma equiparação
entre os vários agentes do crime, não havendo qualquer distinção entre co-
autor e partícipe. A distinção entre eles é feita pela doutrina, a qual, define
co-autor como sendo aquele que conjuntamente com outra pessoa ingressa
no núcleo do tipo. Já o partícipe apenas auxilia na prática delituosa, sem,
contudo, ingressar na execução do crime. Assim, exemplificando, o
criminoso que fica esperando os comparsas na direção do veículo enquanto
esses assaltam a residência, participa do crime de roubo, sem ingressar
diretamente na execução do crime, já que não empregou contra as vítimas
do assalto violência ou grave ameaça. Embora não haja distinção legal entre
co-autor e partícipe, o legislador tomou o devido cuidado de, no final do
artigo 29 colocar a expressão na medida de sua culpabilidade referindo-se
à aplicação da pena. Assim, mesmo que ambos respondam pelo mesmo
95
crime, a conduta menos grave do partícipe lhe servirá no momento da
fixação da pena. Provavelmente a pena aplica ao partícipe do delito será
menor que a fixada aos co-autores, já que a conduta daquele é, em regra,
menos grave. A lei dos crimes ambientais também fez expressa menção ao
concurso de pessoas, repetindo, desnecessariamente, na primeira parte do
artigo 2º o texto do artigo 29 do Código Penal, in verbis:
Art. 2º. Quem, de qualquer forma, concorre para a prática
dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes
cominadas, na medida de sua culpabilidade, bem como o
diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão
técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de
pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de
outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir
para evitá-la. (grifo nosso)
Levando-se em conta o princípio penal da especialidade, previsto no
artigo 12 do Código Penal, o qual estabelece a aplicação da parte geral do
Código Penal a toda parte especial bem como a toda legislação
extravagante, conclui-se que a primeira parte do artigo 2º da sobredita lei é
irrelevante, pois limita-se apenas a reproduzir o que já existe no artigo 29
do Código Penal (NUCCI, 2007, p.761). Entretanto, cabe salientar que a
segunda parte do artigo 12 da Lei 9.605/98 deixa clara a relevância da
omissão de determinadas pessoas que, sabendo da conduta criminosa de
outrem, deixam de impedir a sua prática, quando era possível fazê-lo. O
Código Penal estabelece sobre a omissão penalmente relevante o seguinte:
Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime,
somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se
96
causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria
ocorrido.(grifo nosso)
[...]
§2º. A omissão é penalmente relevante quando o omitente
devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir
incumbe a quem: (grifo nosso)
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância; (grifo nosso)
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir
o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da
ocorrência do resultado.
As pessoas previstas no artigo 12 da referida lei responderão como
partícipes do crime ambiental somente se, no caso concreto, tinham
conhecimento da ocorrência do crime ambiental, e se possuíam poder para
tanto. Dessa forma, o diretor da empresa, o administrador, o membro de
conselho e órgão técnico, bem como as demais pessoas elencadas no artigo
12, não conseguirão eximir-se da responsabilidade penal, alegando não
terem realizado a conduta típica. Dessa forma, se tinham o poder para agir
e, assim, impedir o cometimento do crime ambiental, e nada fizeram,
responderão juntamente com os executores do crime. É necessário também
dizer que deve haver nexo de causalidade entre o crime ambiental e a
omissão do administrador, preposto etc. Caso contrário, restando provada a
inexistência do nexo causal entre o cometimento do crime ambiental e o
poder fiscalizatório e de mando de uma das pessoas descritas no art. 2º da
Lei 9.605/98, não há que se falar em concurso de pessoas entre o suposto
agente criminoso (diretor, preposto etc).
A maioria dos crimes previstos no ordenamento jurídico brasileiro
são ditos unissubjetivos, isto é, podem ser praticados por uma única pessoa.
97
Não exigem, assim, a pluralidade de agentes para a prática criminosa. Ao
analisarmos a Lei dos crimes ambientais, no tocante a responsabilidade
penal da pessoa jurídica, nos parece claro, que ela responderá sempre em
concurso com as pessoas físicas que praticaram a conduta proibida. As
características particulares, já expostas neste trabalho, impediriam que ela,
sozinha possa cometer o crime contra o meio ambiente. Os crimes previstos
na lei 9.605/98, não são de concurso necessário, pois os seus tipos penais
não prevêem isso. Assim, tais crimes podem ser praticados por uma única
pessoa (funcionário da empresa, por exemplo), porém, a responsabilidade
penal desse crime será atribuída também à pessoa moral. As conseqüências
da ação criminosa da pessoa física que praticou a conduta criminosa, a
omissão do diretor que não impediu o resultado lesivo ao meio ambiente,
refletirão na pessoa jurídica, a qual tinha interesse sócio-econômico na
vantagem desse crime.
3.4 Responsabilidade penal da pessoa jurídica nos tribunais
Para se evidenciar as dificuldades de alteração do pensamento
jurídico, na matéria, selecionam-se algumas decisões dos tribunais pátrios,
desfavorável uma e favorável outra à responsabilização das pessoas
jurídicas no cometimento dos delitos ambientais.
98
3.4.1 No Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Entendimento favorável à tese da responsabilidade penal do ente
coletivo foi expresso pelo E. Tribunal de Justiça de Santa Catarina, (apud
LANFREDI et al., 2004, p. 305-316). A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça desse estado deu provimento ao recurso em sentido estrito contra a
decisão de primeira instância, entendendo o magistrado dessa ser
inadmissível a responsabilidade penal da pessoa jurídica, embasado no art.
43, inciso III, do Código de Processo Penal, em relação à ré Agropastoril
Bandeirante Ltda, aduzindo a falta de legitimidade passiva. A decisão da 1ª
Câmara Criminal aceitou o recurso apresentado pelo Procurador Geral de
Justiça, Dr. Vilmar José Loef. É de atender-se a alguns pontos da
argumentação, então desenvolvida, pelo Relator, Des. Relator Sólon D´Eça
Neves, contraditando frontalmente quanto se acabou de ler na peça jurídica
anterior. Eis o teor da ementa:
INCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS JURIDICAS Recurso
Criminal recurso em sentido estrito crime ambiental
denúncia rejeitada reconhecimento da responsabilidade
penal das pessoas jurídicas possibilidade ante o advento
da Lei n. 9.605/1998 ausência de precedentes
jurisprudenciais orientação doutrinária recurso provido.
Completamente cabível a pessoa jurídica figurar no pólo
passivo da ação penal que tenta apurar a responsabilidade
criminal por ela praticada contra o meio ambiente
O Relator, após exposição dos dados da lide, inicia sua argumentação
constatando que são escassas as decisões sobre a questão, isto é, a
99
possibilidade de a pessoa jurídica vir a ser responsabilizada. Entretanto,
apóia-se em subsídio na doutrina, encontradiça em obras numerosas,
algumas das quais cita em seu arrazoado. É o caso, por exemplo, dos
doutrinadores Elida Séguin e Francisco Carrera que reconhecem que a Lei
dos Crimes Ambientais não foi bastante clara sobre que crimes poderiam ser
cometidos pela pessoa jurídica, sendo patente que sempre que houver a
condenação da pessoa jurídica, esta acontecerá na forma de concurso de
agentes, de acordo com o parágrafo único do art. 3º. , determinando que a
responsabilidade da pessoa jurídica não exclua a das pessoas físicas,
autoras, co-autoras ou participantes do fato (MANFREDI, 2004, p. 308).
Apesar disso, e de toda a discussão havida nos dez anos que separaram a
promulgação da Constituição Federal e a da LCA, não se pode deixar de
consignar, continuam os autores citados no parecer, que a responsabilidade
da pessoa jurídica é tendência internacional, já vigente em outros
ordenamentos jurídicos, em diversas legislações penais européias, como
conseqüência da Convenção da União Européia para os países membros
45
. O
Des. Relator traz, a seguir, à colação a posição doutrinária de Roque de
Brito Alves, que, por expressiva, transcrevemos aqui:
Não se justifica mais tal negativa da responsabilidade penal
da pessoa jurídica, o que permite uma evidente distinção
entre a responsabilidade penal pessoal, individual e a
responsabilidade penal da pessoa jurídica que não se
confunde com a responsabilidade criminal dos seus
membros ou componentes. Distinção também, por outra
parte entre as sanções administrativas ou civis das sanções
45
Trata-se da Declaração de Estocolmo de 1972, cujos princípios foram de certo modo encampados pelo art.
225 da Constituição Federal.
100
penais dos crimes pela pessoa jurídica (MANFREDI, 2004,
p. 308).
De maior relevância ainda é a referência que o Relator faz ao
pensamento de José Henrique Pierangeli, que se pronuncia a respeito da
situação moderna da problemática em termos incisivos:
Hodiernamente pode-se afirmar, com absoluta segurança,
ser a responsabilidade ou irresponsabilidade das pessoas
jurídicas, mais do que um problema ontológico ou
dogmático, sendo mesmo uma questão de sistema político-
econômico e de prática utilidade e eficiência. O sistema da
responsabilidade individual se amolda aos postulados da
dogmática tradicional, e, portanto, entre nós, no sistema do
Código Penal, toda a legislação em que se adote a
responsabilidade penal da pessoa coletiva deve ser realizada
em legislações esparsas, ou seja, legislação penal especial,
cuja elaboração reclama extrema prudência. Deve-se ter
presente, que mesmo a responsabilidade social é uma
concepção bastante complexa, cujos componentes,
atribuibilidade e a exigibilidade registram tanto situações
de fato, como ingredientes de valoração, como bem diz
David Baigún (MANFREFDI, 2004, p. 309).
No parecer do Relator, o mesmo autor citado há de declarar, mais
adiante, que a aceitação da responsabilidade dos entes coletivos já não pode
causar estranheza, no estágio atual da ciência penal, e pelas experiências
existentes em outros paises, e, ademais, que, diversamente da
responsabilidade individual, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas
só pode ser entendida no âmbito de uma responsabilidade social.
Finalmente, o Des. Relator adota a posição do Procurador de Justiça,
Dr. Vilmar José Loef, que, adentrando a questão da interpretação da LCA,
em seu art. 3º, entende que
101
Não podemos interpretar como sendo inconstitucional tal
dispositivo, vez que, segundo assinalam os doutrinadores
Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas, se
a própria Constituição admite expressamente a sanção penal
à pessoa jurídica, é inviável interpretar a lei como
inconstitucional, porque ofenderia outra norma que não é
específica sobre o assunto. Tal tipo de interpretação, em
verdade, significaria estar o Judiciário a rebelar-se contra o
que o Legislativo deliberou, cumprindo a Constituição
Federal. Portanto, cabe a todos, agora, dar efetividade ao
dispositivo legal (MANFREDI, 2004, p. 313)
46
.
Encerrando seu parecer, o Des. Sólon d´Eça Neves declara seu voto,
acolhido pela 1ª Câmara Criminal de Santa Catarina:
Diante desse quadro, é clara a intenção do legislador pátrio
em acompanhar a preocupação mundial na proteção e
preservação do meio ambiente, adotando a tese da
responsabilização penal da pessoa jurídica, e rompendo com
os princípios norteadores do Direito Penal tradicional
(MANFREDI, 2004, p. 316)
3.4.2 No Superior Tribunal de Justiça
A responsabilidade penal da pessoa jurídica não parece ser vista com
bons olhos no Superior Tribunal de Justiça. Em julgamento unânime
proferido em 18 de novembro de 2004, a Egrégia Corte negou provimento
ao recurso especial interposto pelo Ministério Público de Santa Catarina,
que não concordara com o acórdão do Tribunal de Justiça daquele Estado, o
46
Cita-se de LOEF, Vilmar José. Crimes contra a natureza. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.
63.
102
qual manteve decisão do juiz de primeira instância de não receber denúncia
em face de pessoa jurídica, por considerar inviável a responsabilização
penal desta.
No julgamento do Recurso especial nº 622.724-SC (2004.0012318-
8)
47
, relatou o Min. Felix Fischer e seu parecer foi acolhido pela Quinta
Turma do Tribunal, consubstanciado na seguinte
EMENTA
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL.
CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE. DENÚNCIA.
INÉPCIA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA
JURÍDICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA.
Na dogmática penal a responsabilidade se fundamenta em
ações atribuídas às pessoas físicas. Dessarte a prática de
uma infração penal pressupõe necessariamente uma conduta
humana. Logo, a imputação penal à pessoas jurídicas, frise-
se carecedoras de capacidade de ação, bem como de
culpabilidade, é inviável em razão da impossibilidade de
praticarem um injusto penal. (Precedentes do Pretório
Excelso e desta Corte).
Recurso desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as
acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA
do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar
provimento ao recurso. Os Srs. Ministros Gilson Dipp,
Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e José Arnaldo da
Fonseca votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 18 de novembro de 2004 (data do
julgamento).
47
Disponível em: <rttp://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudência>. Acesso em: 15.05.2008. Texto infra, Anexo
A.
103
Tratava-se de recurso especial interposto pelo Ministério Público, e
apresentado ao STJ pela Procuradoria-Geral de Justiça, face a acórdão da
Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Santa
Catarina, sob argumento de violação ao art. 3º da Lei nº 9.605.98 e ao art.
43, inciso III, do Código de Processo Penal, configurando a
responsabilidade penal da pessoa jurídica, já permitida por força do
dispositivo constitucional (art. 225, § 3º) . O fato em julgamento era
poluição do meio ambiente, provocada pelo Auto Posto de Lavagem Vale do
Vinho Ltda, pessoa jurídica de direito privado.
O Ministro Relator, após exposição dos fatos, refere-se ao art. 225, §
3º como gerador de grande polêmica,tendo em vista o princípio societas
delinquere non potest, adotado pelo Brasil. E continua:
O artigo 3º da Lei n. 9.605.98, ao declarar que as pessoas
jurídicas respondem penalmente, quer aplicar o que dispõe
o artigo 225, §, da Carta Magna. Resta saber se o
constituinte, por meio do referido dispositivo, objetivava
alcançar esta finalidade. Não nos parece que a
responsabilidade penal da pessoa jurídica tenha lugar no
ordenamento jurídico pátrio.
É a tese do Ministro Felix Fischer. Para demonstrá-la, recorre a Luiz
Regis Prado
48
, para o qual o legislador de 1998, de forma simplista,
limitou-se a enunciar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, sem a
instituir completamente. Diz Prado, citado pelo Ministro:
48
Cita-se desse autor: Crimes contra o Ambiente. São Paulo: RT, 1998, p. 21-2.
104
Não há como, em termos lógico-jurídicos, romper princípio
fundamental como o da irresponsabilidade criminal da
pessoa jurídica, ancorado solidamente no sistema de
responsabilidade de pessoa natural, sem fornecer, em
contrapartida, elementos básicos e específicos
conformadores de um subsistema ou microssistema de
responsabilidade penal, restrito e especial, inclusive com
regras processuais próprias.
Como apoio a seu ponto de vista, citam-se algumas decisões do STJ
(RHC 2.882.MS, Min. Luiz Vicente Cernicchiaro; HC 15.051.SP, Min.
Hamilton Carvalhido) e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
(ACrim n. 70005157896. rel. Des. Gaspar Marques Batista). Em todos esses
julgados, transparece a tese de que a responsabilidade penal somente pode
ser atribuída ao Homem, pessoa física, que presentifica a pessoa jurídica.
Sabe-se a razão: a pessoa jurídica não possui os atributos físicos que
possibilitam vivenciar condições exclusivamente humanas, como querer e
pensar. Nesse diapasão, critica-se a lei ambiental como destoando do
Direito Penal, de modo que o Ministro Relator pode concluir: que a
responsabilidade da pessoa jurídica depende da manifestação da vontade de seus
representantes (pessoas físicas). Dessa forma, a estes aplica-se a norma penal, e
àquelas as sanções civis e administrativas.
Até agora o parecer do Ministro Fischer limitava-se a opor-se ao
entendimento da lei ambiental na criminalização da pessoa jurídica,
apoiando-se na doutrina tradicional. O que segue, porém, em sua
argumentação, é mais grave, tomando-se aqui esse termo não no sentido
crítico-pejorativo, como se se tratasse de posição gravemente errônea.
Longe de nós tal atitude, face ao respeito a tão alta corte e julgador, como
105
ao caráter ainda controverso da matéria. Mas grave, no sentido de
extremamente sério e contundente. Expressa-se o Ministro Fischer, verbis:
Em síntese, a admissão da responsabilidade penal da pessoa
jurídica prevista em lei no ordenamento jurídico pátrio,
conforme dicção do art. 3º da Lei de Crimes Ambientais
surge de uma interpretação deturpada do art. 225, § 3º, da
CP. Este não permite, em absoluto, que se responsabilize
penalmente uma pessoa jurídica, o que se pode confirmar
com uma nada complexa interpretação sistemática dos
dispositivos da Lei Maior além de jogar fora séculos e
mais séculos de civilização e de evolução da ciência penal
que culminaram com a proscrição da responsabilização
penal objetiva, ou seja, aquela imputada sem a
possibilidade de aferição da culpabilidade do sujeito que
infringe à norma penal incriminadora [...]
Fica-se assim sabendo que a Constituição Federal não quis dizer o
que disse. E que, ademais, a Lei dos Crimes Ambientais é inconstitucional,
como afirma Luiz Régis Prado, novamente citado:
Intenta-se romper, assim, pela vez primeira, o clássico
axioma do societas delinquere non potest. Não obstante,
em rigor, diante da configuração do ordenamento jurídico
brasileiro em especial do subsistema penal - e dos
princípios constitucionais penais que o regem (v.g.,
princípios da personalidade das penas, da culpabilidade,
da intervenção mínima etc.) e que são reafirmados pela
vigência daquele, fica extremamente difícil não admitir a
inconstitucionalidade desse artigo [Lei 9.605/98, art. 3º],
exemplo claro de responsabilidade penal por fato alheio.
Influenciado, de certa forma, pelo sistema anglo-
americano, em que essa forma de responsabilidade é
normalmente admitida, teve, contudo, o legislador pátrio,
nitidamente, como fonte de inspiração o modelo francês.
A previsão legal acima parece estar intimamente
vinculada ao crescente e lamentável recurso à lei criminal
como instrumento eficiente e simbólico
.
106
Mais adiante, o citado Luiz Régis Prado explica, e o Ministro Fischer
endossa, que o legislador pátrio se valeu da chamada imperiosa
necessidade, situando-se na corrente puramente utilitarista (Law and
Economics) ou análise econômica do Direito, que lança mão de técnicas,
como a análise custo-benefício na elaboração das políticas jurídicas e na
justificação das decisões judiciais. Diante das grandes agressões ao meio
ambiente, já em curso, inclusive em nosso país, praticadas, sim, pela
vontade de pessoas jurídicas, tem Luiz Régis Prado, e com ele o Ministro
Fischer, que, com o ordenado pela Lei Ambiental,
o legislador pelo menos obtém o crédito político de ter dado
uma resposta célere aos medos e perturbações sociais com
os severos meios criminais. Isso significa que a eficiência é
apenas aparente puramente simbólica - - e incidente tão-
somente no âmbito psicológico-social dos sentimentos de
insegurança. Ainda que adequada a escolha do paradigma,
visto ser o Direito francês escrito, e pertencente ao grupo
romano-germânico, não andou bem nosso legislador em sua
formulação.
O que segue no texto de Prado, e aceito pelo Ministro Relator, terá
certamente um fundo de verdade, urgindo-se a complementação normativa,
prevista pelo direito francês:
De fato em França [...], tomou-se o cuidado dede adaptar-se
de modo expresso essa espécie de responsabilidade no
âmbito do sistema tradicional. A denominada Lei de
Adaptação (Lei 92-1336.1992) alterou inúmeros textos
legais para torná-los, coerentes com o novo Código Penal,
contendo inclusive disposições de processo penal, no
intuito de uma harmonização processual, particularmente
necessária devido à previsão da responsabilidade penal da
pessoa jurídica. Além disso, a lei francesa proclama o
107
princípio da especialidade, vale dizer, só se torna possível
deflagrar-se o processo penal contra a pessoa jurídica
quando estiver tal responsabilidade prevista explicitamente
no tipo legal de delito. Definem-se, assim, de modo
taxativo, quais as infrações penais passíveis de serem
imputadas à pessoa jurídica. Ora bem, em nosso país deu-se
exatamente o oposto, visto que o legislador de 1998 (Lei
9.605), de forma simplista, nada mais fez do que enunciar a
responsabilidade penal da pessoa jurídica, cominando-lhe
penas, sem lograr, contudo, instituí-la completamente. Isso
significa não ser ela passível de aplicação concreta e
imediata, pois faltam-lhe instrumentos hábeis e
indispensáveis para a consecução de tal desiderato.
Que se criem, pois, tais instrumentos. Nosso entendimento, já
expresso em páginas anteriores, é que os fatos sociais, os grandes avanços
tecnológicos, os novos perfis da pessoa jurídica (não é tão-só uma ficção,
criada pelo Direito e incapaz de atuar por si mesma), a própria evolução da
consciência jurídica, mais desperta agora para tudo isso, solicitam a revisão
radical de veneráveis brocardos, como o de que societas delinquere non
potest. Tal revisão não se inscreve, como se argumentou acima, pura e
simplesmente na corrente utilitarista, econômico-política. Numa palavra,
oportunista. O direito deve redefinir-se diante da hodierna (e futura)
gravidade dos fatos.
108
CONCLUSÃO
Poderíamos, na conclusão deste trabalho, ressaltar algumas idéias que
nos parecem formar seu fio condutor ou, se se quiser, a constelação central
da reflexão sobre o problema não apenas jurídico, mas filosófico, da
responsabilidade penal da pessoa jurídica.
1. Ao se falar da pessoa jurídica, não se há de esquecer o fundo
analógico que a embasa. Não se pode, simplesmente, aproximar a pessoa
jurídica da pessoa natural e daí concluir que, ou ela tem as características
orgânicas dessa, ou é uma total ficção jurídica, desprovida de qualquer
realidade ontológica. Não se há, por outro lado, de esquecer a evolução do
conceito, que toma hoje proporções inéditas, já no cenário da globalização
macroeconômica, já na extrema variedade dos tipos e sua inserção profunda
na sociedade. Diante dos grandes aglomerados financeiros, das empresas
nacionais e multinacionais, que decidem suas políticas, muitas vezes ao
arrepio dos interesses da sociedade, senão da humanidade, torna-se difícil
continuar afirmando que a pessoa jurídica não pode ser criminalizada,
sobretudo no cometimento dos delitos ambientais, porque não tem vontade.
Como corolário dessa proposta, é de encarecer que, se os outros ramos do
direito vêem a pessoa jurídica como um ente dotado de vontade, de modo
que pode firmar contratos, assumir obrigações, deter direitos, o direito
penal não pode ficar alheio a tal realidade. Um direito penal moderno pode
109
prescindir de conceitos metafísicos, se assim podemos dizer, e valer-se de
metodologia empírica voltada para as conseqüências, perfilando-se numa
concepção teórica preventiva e não retributiva.
2. E aqui deve-se ressaltar incisivamente a importância e necessidade
de tutelar o bem jurídico meio ambiente para a preservação da vida, pois
é essa que está em jogo, o que levou alguém a dizer com propriedade que o
crime contra o meio ambiente deve estar hierarquicamente acima do crime
de homicídio. As pessoas jurídicas contemporâneas, como é constatável por
todos, em nosso país e fora, são responsáveis pelas agressões mais graves
ao meio ambiente e à vida.
3. Este trabalho atendeu, mesmo que de modo muito breve, às idéias
de Winfried Hassemer que muito perspicazmente analisou a nova
criminalidade, aduzindo a necessidade de criação de um novo ramo do
direito, como meio para solucionar o conflito entre os que acolhem ou não a
idéia da responsabilidade penal objetiva, que segundo ele poderia se chamar
de direito de intervenção. Resta, porém, problemático saber se a proposta
de Hassemer configura um direito penal propriamente dito ou
administrativo. Se for essa segunda espécie, não se teria em conseqüência
uma responsabilidade penal. Pode-se também entender como um direito
penal em sentido lato. De qualquer modo, mais do que solucionar o conflito
entre opiniões acadêmicas, esse novo direito prestaria atenção imediata aos
riscos possíveis, antecipando-se, mas do que punindo ou remediando. Com
110
efeito, a repressão chega às vezes tarde demais, não impedindo as
catástrofes ambientais nem restaurando o que em definitivo se perdeu.
4. A tese da responsabilidade penal objetiva da pessoa jurídica deve,
pois, ser defendida com ênfase, como alternativa de proteção ao meio
ambiente, ainda que se sacrifiquem alguns princípios e dogmas do direito
penal clássico. É inaceitável que danos de repercussão espantosa, no tempo
e no espaço, com efeitos extremamente prejudiciais ao meio ambiente,
sejam atribuídos tão-só às pessoas físicas, sabidamente a parte mais fraca,
na maioria das vezes, na tomada de decisão e execução das medidas anti-
ambientais.
5. Essa desproporção entre a pessoa jurídica e a pessoa física,
entretanto, não descarta a importância da co-autoria entre essas instâncias
de ação no que se refere ao cometimento do crime ambiental. A execução
delitiva feita pela pessoa física atende a uma vontade social do ente
coletivo, que, almejando o lucro, usa seu dirigente, funcionário etc, como
instrumento para alcançá-lo. Impossível seria o cometimento de um crime
contra o meio ambiente praticado exclusivamente pela pessoa jurídica,
devido a sua natureza constitutiva, necessitando sempre da colaboração da
pessoa física, que, agiria, segundo expressa previsão legal, em seu interesse
ou benefício. Defendemos a necessidade de alteração do artigo 3º da lei
9.605/98, suprimindo do texto legal a expressão no interesse ou benefício
da sua entidade. Assim, uma vez alterado tal dispositivo, agindo o
111
funcionário no interesse ou benefício da empresa ou não, esta responderia
pela prática do crime ambiental. A necessidade de alteração do dispositivo
tem duas justificativas fundamentais: respeita-se o princípio constitucional
da legalidade; e dá-se uma maior efetividade a lei dos crimes ambientais.
6. Não se há de tomar como absoluta a idéia defendida por alguns
acerca da necessidade do dolo específico por parte da pessoa física no
momento em que pratica um crime ambiental no interesse ou benefício da
empresa. Sendo a responsabilidade penal da pessoa jurídica de ordem
objetiva, a simples prática nociva ao meio ambiente, intencional ou não, e
em seu benefício ou não, sujeitaria aquela às sanções penais pertinentes. É
necessário um maior rigor em face da pessoa jurídica, em razão da maior
fragilidade do meio ambiente. Não defendemos aqui a possibilidade de ser
aplicada a mesma responsabilidade objetiva à pessoa física. Para ela a lei
penal em vigor é clara e precisa no tocante à responsabilidade penal
subjetiva. Mas, aplicar ao ente moral a mesma regra empregada com o
sujeito natural é dar pouca, ou nenhuma, efetividade a proteção ao meio
ambiente.
7. Em contrapartida, é oportuno defender a tese da sanção penal
aplicada à pessoa jurídica como meio inibitório para a prática delitiva. É,
data venia, risível o argumento utilizado pelos que não defendem a
responsabilidade penal da pessoa jurídica de que ela não ficaria intimidada
com a futura sanção penal, ou que contra ela seria impossível aplicar a pena
112
privativa de liberdade, tendo em vista tratar-se de uma mera ficção jurídica.
Em parte concordamos com o argumento, ao menos no tocante a
impossibilidade de aplicar ao ente coletivo a pena privativa de liberdade.
Entretanto, o argumento que a pessoa jurídica não se intimidaria com uma
eventual condenação penal não nos parece correta. Há um efeito nocivo à
empresa que é condenada pela prática de crime ambiental. O produto
produzido por ela, fatalmente, sofrerá forte rejeição pelos consumidores,
que a cada dia tornam-se mais conscientes da importância de um meio
ambiente ecologicamente equilibrado. Essa rejeição poderia ensejar na
pessoa jurídica um prejuízo não suportável por ela, causando-lhe até mesmo
sua extinção. A aflição sofrida pelo ente moral, oriunda de uma eventual
condenação penal, é econômica.
Essas são as idéias que nos parecem fulcrais no tema que discutimos
ao longo das páginas anteriores. Cremos ser adequado afirmar que toda a
controvérsia no meio jurídico brasileiro a respeito, sinaliza o estágio de
acomodação necessária a uma mudança tão profunda na concepção do
direito penal. Não seria exagerado propor a analogia de um abalo sísmico, a
provocar intranqüilidade no meio jurídico quanto ao modo de pensar as
relações entre o direito e o fato social, a idéia mesma de pessoa jurídica, a
idéia de responsabilidade penal de um ente coletivo e, finalmente, a idéia
primordial da pena, consistente em retribuição, dando lugar à idéia de
prevenção, quanto ao bem jurídico do meio ambiente.
Não será supérfluo, para finalizar, afirmar a possibilidade de pesquisa
e de mais reflexão na matéria. Ela é complexa, envolve problemas de
113
interpretação e segurança jurídicas, revolvimento dos próprios fundamentos
filosóficos que têm sustentado a ciência e a arte do Direito. Cremos que
esse não é um valor absoluto, que tenha de permanecer prisioneiro de suas
nobres e veneráveis tradições. Como expressão de cultura, ele faz parte da
vida, da história da sociedade, é um dos mais importantes, se não o mais
importante, mecanismo de tutela dos bens humanos e, agora, nos tempos
atuais, convidado a ampliar suas tarefas no sentido de proteger também a
natureza, o planeta, nossa casa.
114
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130
ANEXO
JULGADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA
(rttp://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudência)
RECURSO ESPECIAL Nº 622.724 - SC (2004.0012318-8)
RELATOR : MINISTRO FELIX FISCHER
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA
CATARINA
RECORRIDO : AUTO POSTO DE LAVAGEM VALE DO VINHO LTDA
EMENTA
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES
CONTRA O MEIO AMBIENTE. DENÚNCIA. INÉPCIA.
RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA.
Na dogmática penal a responsabilidade se fundamenta em ações atribuídas
às pessoas físicas. Dessarte a prática de uma infração penal pressupõe
necessariamente uma conduta humana. Logo, a imputação penal à pessoas
jurídicas, frise-se carecedoras de capacidade de ação, bem como de
culpabilidade, é inviável em razão da impossibilidade de praticarem um
injusto penal. (Precedentes do Pretório Excelso e desta Corte).
Recurso desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal
de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso. Os Srs.
Ministros Gilson Dipp, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e José Arnaldo
da Fonseca votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 18 de novembro de 2004 (data do julgamento).
MINISTRO FELIX FISCHER
Relator
RECURSO ESPECIAL Nº 622.724 - SC (2004.0012318-8)
RELATÓRIO
131
EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Trata-se de recurso especial
interposto, com fulcro no art. 105, inciso III, alínea a, da Lex
Fundamentalis, pelo Parquet em face de v. acórdão prolatado pela c.
Segunda Câmara Criminal do e. Tribunal de Justiça do Estado de Santa
Catarina em que se argumenta violação ao art. 3º da Lei nº 9.605.98 e ao
art. 43, inciso III, do Código de Processo Penal. Diz o relatório do
increpado acórdão:
"Na comarca de Videira, Valmor Luiz Grison e Auto Posto de Lavagem
Vale do Vinho Ltda, foram denunciados como incursos nas sanções dos art.
54, § 2°, V e do art. 60, ambos da Lei n. 9.605.98. A denúncia foi recebida
apenas com relação à pessoa física, tendo o Magistrado afastado a pessoa
jurídica por considerar inviável a sua responsabilização penal. Irresignado,
o representante do Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito,
alegando, em síntese, que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é
permitida por força de dispositivo constitucional (art. 225, § 3°) e texto
expresso de lei (art. 3° da Lei n. 9.605.98). Sem contra-razões e com o
regular juízo de sustentação da decisão recorrida, os autos ascenderam a
esta Corte, onde foi oferecido parecer pela Procuradoria-Geral de Justiça,
opinando pelo conhecimento e provimento do recurso" (fls. 105.106).
Tem-se na ementa:
"PENAL E PROCESSUAL PENAL - DENÚNCIA - REJEIÇÃO - CRIME
AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA -
INVIABILIDADE - VEDAÇÃO À RESPONSABILIDADE PENAL
OBJETIVA - PRINCÍPIO DO SOCIETAS DELINQUERE NON POTEST -
RESPONSABILIDADE QUE SE CINGE ÀS ESFERAS CIVIL E
ADMINISTRATIVA - PRECEDENTE DESTA CÂMARA - RECURSO
DESPROVIDO" (fl. 105).
Daí o presente apelo nobre em que o Parquet argumenta violação ao art. 3º
da Lei nº 9.605.98 e ao art. 43, inciso III, do Código de Processo Penal,
sustentando, em síntese, que "in casu, a peça inicial da ação penal não
poderia ter sido rejeitada, já que, contrário ao entendimento esposado no v.
Acórdão recorrido, a pessoa jurídica de direito privado pode ser penalmente
responsabilizada pela prática de crimes ambientais, conforme estabelecem a
Constituição Federal e a Lei Federal nº 9.605.98, sendo, assim, parte
legítima para figurar no pólo passivo da presente ação penal" (fl. 135).
Contra-razões não apresentadas. Admitido o recurso, subiram os autos a
esta Corte. A douta Subprocuradoria-Geral da República se manifestou pelo
provimento do presente recurso.
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 622.724 - SC (2004.0012318-8)
132
EMENTA
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES
CONTRA O MEIO AMBIENTE. DENÚNCIA. INÉPCIA.
RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA.
Na dogmática penal a responsabilidade se fundamenta em ações atribuídas
às pessoas físicas. Dessarte a prática de uma infração penal pressupõe
necessariamente uma conduta humana. Logo, a imputação penal à pessoas
jurídicas, frise-se carecedoras de capacidade de ação, bem como de
culpabilidade, é inviável em razão da impossibilidade de praticarem um
injusto penal. (Precedentes do Pretório Excelso e desta Corte).
Recurso desprovido.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Busca-se no presente recurso
especial seja reconhecida a possibilidade de responsabilização penal da
pessoa jurídica. Diz a exordial acusatória: "O Órgão do Ministério Público
deste Juízo, no uso de suas atribuições legais e com fundamento no Termo
Circunstanciado n° 079.01.003564-6, oferece DENÚNCIA contra: AUTO
POSTO DE LAVAGEM VALE DO VINHO LTDA., pessoa jurídica de
direito privado, atividade de abastecimento e lavação de veículos,
cadastrada sob CNPJ n° 03.636.414.0001-08, localizada na Rua Veneriano
dos Passos, 388, Bairro Centro, Videira.SC; VALMOR LUIZ GRISON,
brasileiro, solteiro, autônomo, nascido em 28.02.1979, com 23 anos de
idade, natural de Machadinho.RS, filho de Demétrio Antonio Grison e
Dileta Maria Grison, residente na Rua Tangará s.n°, Bairro Panazzolo,
Videira.SC, pela prática dos seguintes atos delituosos:
No dia 29 de maio de 2001, por volta das 15h10min, os policiais militares
integrantes do 12° Pelotão de Polícia de Proteção Ambiental de
Canoinhas.SC, comandados pelo 3° Sargento PM Ivan Veiga, efetuaram
fiscalização em vários estabelecimentos localizados neste município e
comarca. Assim, nesta data, constataram que no Auto Posto de Lavagem
Vale do Vinho Ltda., de propriedade do denunciado VALMOR LUIZ
GRISON, localizado na Rua Veneriano dos Passos, 388, Bairro Centro,
nesta cidade, havia o funcionamento de atividade potencialmente poluidora
nas rampas de lavação de estabelecimento, conforme comprova o Laudo
Pericial de fls. 18.20. Desta forma, se verificou que no local da vistoria
havia três rampas de lavação, das quais duas estavam desativadas,
possuindo tubos que as ligavam ao curso de água, por onde eram lançados
resíduos provenientes da lavação de veículos, e apenas uma em
funcionamento, localizada a 30 m do recurso hídrico, sendo que a
destinação final dos resíduos dela proveniente (graxas, óleo, lodo, areia e
produtos químicos), seguiam diretamente através de sistema de tratamento
de resíduos não autorizado pelo órgão competente, para dentro do curso de
133
água. Com esta conduta, VALMOR LUIZ GRISON causou poluição em
níveis tais que poderiam resultar em danos à saúde humana, por lançamento
de resíduos, em desacordo com as exigências estabelecidas em lei. Além
disso, fazia funcionar estabelecimento potencialmente poluidor, sem licença
ou autorização dos órgãos ambientais competentes e contrariando as normas
legais e regulamentos pertinentes. Sobreleva ressaltar que a pessoa jurídica
de direito privado AUTO POSTO DE LAVAGEM VALE DO VINHO LTDA.
deve ser responsabilizada penalmente por tais atos, já que a infração
ambiental foi cometida por decisão de seu representante legal e contratual,
no interesse e benefício de sua entidade, conforme dispõe o artigo 3° caput
da Lei n° 9.605.98. Assim agindo, os denunciados AUTO POSTO DE
LAVAGEM VALE DO VINHO LTDA e VALMOR LUIZ GRISON
infringiram o disposto nos artigos 54, parágrafo 2°, inciso V e 60, ambos da
Lei n° 9.605.98, na forma do artigo 70 do Código Penal, razão pela qual se
oferece a presente denúncia, que se requer seja recebida e, uma vez
comprovada, após todos os trâmites processuais pertinentes, inclusive com
a ouvida das testemunhas adiante arroladas, requer o Ministério Público a
condenação destes denunciados" (fls. 15.17). No punctum saliens tem-se no
voto condutor do increpado acórdão: "Trata-se de recurso em sentido estrito
interposto contra o despacho que rejeitou a denúncia ofertada contra a
empresa Auto Posto de Lavagem Vale do Vinho Ltda., com fundamento no
artigo 43, III, do CPP. A denúncia encontra amparo no art. 3° e parágrafo
único da Lei n. 9.605.98, que menciona: Art. 3°. As pessoas jurídicas
serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, conforme o
disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão
de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no
interesse ou benefício da sua entidade.Parágrafo único. A responsabilidade
das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras
ou partícipes do mesmo fato.
O referido artigo deve ser analisado juntamente com o que preceitua a
Constituição Federal em seu art. 225, § 3°: As condutas e atividades
consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente
da obrigação de reparar os danos causados.
Este dispositivo constitucional gerou grande polêmica tendo em vista o
princípio societas delínquere non potest, adotado pelo Brasil.
O artigo 3° da Lei n. 9.605.98, ao declarar que as pessoas jurídicas
respondem penalmente, quer aplicar o que dispõe o artigo 225, § 3°, da
Carta Magna. Resta saber se o constituinte, por meio do referido
dispositivo, objetivava alcançar esta finalidade.
Não nos parece que a responsabilidade penal da pessoa jurídica tenha lugar
no ordenamento jurídico pátrio. Neste sentido a doutrina de Luiz Regis
Prado: [...] o legislador de 1998, de forma simplista, nada mais fez do que
134
enunciar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, cominando-lhe penas,
sem lograr, contudo, instituí-la completamente. Isso significa não ser ela
passível de aplicação concreta e imediata, pois faltam-lhe instrumentos
hábeis e indispensáveis para a consecução de tal desiderato. Não há como,
em termos lógico-jurídicos, romper princípio fundamental como o da
irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica, ancorado solidamente no
sistema de responsabilidade de pessoa natural, sem fornecer, em
contrapartida, elementos básicos e específicos conformadores de um
subsistema ou microssistema de responsabilidade penal, restrito e especial,
inclusive com regras processuais próprias (Crimes contra o Ambiente. São
Paulo: RT, 1998, p. 21-2).
É sabido que o meio ambiente necessita cada vez mais de proteção,
exigindo normas eficazes. Mas para que se alcance a desejada eficácia será
necessário que ocorra a responsabilização criminal da pessoa jurídica? E se
assim for, qual seria a medida de sua culpabilidade? Selma Pereira Santana,
Promotora da Justiça Militar da Bahia, em matéria escrita para a revista
Consulex sobre o tema elucida: Quase a totalidade da doutrina nacional
compreende, ainda, que somente o ser humano tem capacidade de realizar
condutas. E, por força deste princípio fundamental, arrematam que os tipos
penais não passam de meras descrições abstratas das mesmas, valoradas
pelo legislador, concluindo-se ser inconciliável a existência de delito sem a
conduta, sendo
reclamada para esta, sempre, a voluntariedade (in Revista Consulex, de
30.04.98, ano II, n. 16, pp. 44.46). Sobre a matéria, consolidado o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça: RHC Penal Processual
Penal Pessoa Jurídica Sócio Responsabilidade Penal Denúncia
Requisitos A responsabilidade penal é pessoal. Imprescindível a
responsabilidade subjetiva. Repelida a responsabilidade objetiva (RHC
2.882.MS, Min. Luiz Vicente Cernicchiaro).
Mais recentemente, aquele Tribunal Superior reafirmou seu posicionamento:
Desprovida de vontade real, nos casos de crimes em que figure como
sujeito ativo da conduta típica, a responsabilidade penal somente pode ser
atribuída ao HOMEM, pessoa física, que, como órgão da pessoa jurídica, a
presentifique na ação qualificada como criminosa ou concorra para a sua
prática (HC 15.051.SP, Min. Hamilton Carvalhido). Prevalece, portanto, o
entendimento segundo o qual a pessoa jurídica não é penalmente
responsável, mas somente civil e administrativamente. Mesmo os tribunais
que admitem a aplicação das medidas dos arts. 21 e 22 da Lei n. 9.605.98
àquelas, como sanção penal pelos atos delituosos praticados pelos seus
sócios, são firmes no sentido de que a pessoa jurídica não pode ser parte em
um processo penal condenatório. Neste sentido, é da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: A ordem jurídica brasileira
continua fiel ao brocardo societas delinquere non potest. A pessoa jurídica
não tem os atributos físicos que possibilitam vivenciar condições
exclusivamente humanas, como querer e pensar, não podendo ter
135
consciência da ilicitude ou dirigir sua vontade para o resultado lesivo
(ACrim n. 70005157896, de Encantado, rel. Des. Gaspar Marques Batista).
Citado por Ataides Kist, o eminente Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro,
em análise ao artigo 225, § 3°, da Constituição Federal assevera: [...]
meramente declaratório, nada admitindo-se acerca da esfera penal,
enaltecendo aspectos de ordem administrativas, quais sejam pagamento de
multa ou mesmo o cancelamento de autorização para o exercício da
atividade profissional. Assim também, a sanção penal está vinculada à
responsabilidade pessoal e hoje, dela é inseparável. A Constituição
Brasileira, portanto, não afirmou a responsabilidade penal da pessoa
jurídica, na esteira das congêneres contemporâneas (Responsabilidade
Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo: Editora de Direito, 1999, p. 60).
E continua o autor, citando Tourinho Filho, em comentário ao artigo 3° da
Lei n. 9.605.98: [...] se a infração for cometida por um empregado, ou se o
ato infracional for fruto de ordem de um funcionário graduado, à revelia do
representante legal, a pessoa jurídica estará a salvo de ser penalmente
punida. Aí está a prova maior de que o próprio legislador não concebe a
possibilidade de uma pessoa jurídica ser sujeito passivo da pretensão
punitiva. A própria lei reconhece que elas sozinhas não podem delinqüir. Se
não podem, por que falar-se da sua responsabilidade penal? Na dicção do
art. 3° da Lei n. 9.605, de 12-2-1998, vale repetir, a pessoa jurídica só será
penalmente responsabilizada se a infração for cometida por decisão do seu
representante... no interesse ou benefício da sua entidade. Mas, nesse caso,
a responsabilidade é do seu representante legal ou contratual... A lei
Ambiental, como segmento do Direito Penal, destoa deste, pelo
antagonismo que representa e traduz, e por isso mesmo nem pode falar em
segmento [...] (op. cit., p.78). Disto conclui-se que a responsabilidade da
pessoa jurídica depende da manifestação de vontade de seus representantes
(pessoas físicas). Portanto, a estes aplica-se a norma penal, e àquelas as
sanções civis e administrativas. Trazemos, a respeito, o entendimento de
Paulo de Bessa Antunes, membro do Ministério Público Federal e um dos
maiores estudiosos da área de Direito Ambiental: Veja-se que a
condenação criminal de uma empresa, certamente, implica a imposição
indireta de penas a diferentes pessoas naturais e jurídicas que não aquela
condenada judicialmente. Não se desconhece que a condenação criminal de
uma sociedade anônima, provavelmente, terá reflexo na cotação de suas
ações em bolsa, acarretando penas econômicas desvalorização de capital
para simples titulares de ações preferenciais (sem direito a voto), ou
qualquer poder de decisão sobre as atividades da empresa. Igualmente, a
pena produzirá reflexos junto ao quadro de empregados que serão
estigmatizados como funcionários de uma empresa condenada. Tais
repercussões serão capazes de afrontar o princípio constitucional da
pessoalidade da pena?[...] Parece-me que a responsabilização penal pessoal
dos dirigentes que se tenham valido da empresa para a prática de crimes é a
melhor solução. Quanto às empresas, em si, a sua punição, em meu
136
entendimento deve remanescer na esfera administrativa, ainda que,
eventualmente, possam ser aplicadas sanções pelo próprio Poder Judiciário
(Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 1999, p. 412-3).
Em síntese, a admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica
prevista em lei no ordenamento jurídico pátrio, conforme dicção do art. 3°
da Lei de Crimes Ambientais surge de uma interpretação deturpada do art.
225, § 3°, da CF. Este não permite, em absoluto, que se responsabilize
penalmente uma pessoa jurídica, o que se pode confirmar com uma nada
complexa interpretação sistemática dos dispositivos penais da Lei Maior
além de jogar fora séculos e mais séculos de civilização e de evolução da
ciência penal que culminaram com a proscrição da responsabilização
penal objetiva, ou seja, aquela imputada sem a possibilidade de aferição da
culpabilidade do sujeito que infringe à norma penal incriminadora ,
tampouco apresenta qualquer utilidade prática ou alguém seria capaz de
sustentar que uma multa pecuniária, a suspensão das atividades ou
fechamento de estabelecimento, aplicados no juízo penal, são
substancialmente diferentes destas mesmas medidas quando aplicadas na
esfera administrativa? Comentando a respeito do tema, assim se posicionou
Miguel Reale Júnior: Mais relevante, contudo, é a interpretação
sistemática do texto constitucional, que conduz de forma precisa à
inadmissibilidade da responsabilidade da pessoa jurídica.
Falta à pessoa jurídica capacidade criminal. Se a ação delituosa se realiza
com o agente realizando uma opção valorativa no sentido do
descumprimento de um valor cuja positividade a lei penal impõe, se é uma
decisão em que existe um querer, e um querer valorativo, vê-se que a pessoa
jurídica não tem essa capacidade do querer dotado dessa postura axiológica
negativa. A Constituição estabelece que a pena não passará da pessoa do
condenado (inc. XLV do art. 5.°), e o inciso seguinte diz que a lei
individualizará a pena. A individualização da pena é feita com base na
culpabilidade. A culpabilidade significa o quanto de reprovação, de
censurabilidade merece a conduta, sendo absolutamente incongruente com
admissão da pessoa jurídica como agente de delitos. Portanto, há uma
incapacidade penal da pessoa jurídica, que a análise sistemática do texto
constitucional torna evidente. [...] Questões graves surgem, ao se
pretender estabelecer a punição da pessoa jurídica, que se afigura, a nosso
ver, como absolutamente desnecessária, bastando a punição desta pela via
administrativa (in Luiz Régis Prado (coord.). Responsabilidade penal da
pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São
Paulo: RT, 2001, p. 138-9). Este signatário já teve a oportunidade de
expressar igual entendimento em acórdão pioneiro nesta Corte, proferido
por ocasião do julgamento do Recurso criminal n. 00.004656-6, da comarca
de Descanso, ocorrido em 12 de setembro de 2000. Isto posto, mantém-se a
decisão que rejeitou a denúncia oferecida contra a pessoa jurídica,
reservando a esta a aplicação das sanções civis e administrativas cabíveis"
(106.111). Com efeito, na dogmática penal a responsabilidade se
137
fundamenta em ações atribuídas às pessoas físicas. Dessarte a prática de
uma infração penal pressupõe necessariamente uma conduta humana. Logo,
a imputação penal à pessoas jurídicas, frise-se carecedoras de capacidade de
ação, bem como de culpabilidade, é inviável em razão da impossibilidade de
praticarem um injusto penal. Nesse sentido os seguintes precedentes desta
Corte: "HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E
SONEGAÇÃO FISCAL. RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA.
PRINCÍPIO NULLUM CRIMEN SINE CULPA. TRANCAMENTO DA
AÇÃO PENAL. 1. Desprovida de vontade real, nos casos de crimes em que
figure como sujeito ativo da conduta típica, a responsabilidade penal
somente pode ser atribuída ao HOMEM, pessoa física, que, como órgão da
pessoa jurídica, a presentifique na ação qualificada como criminosa ou
concorra para a sua prática. 2. Em sendo fundamento para a determinação
ou a definição dos destinatários da acusação, não, a prova da prática ou da
participação da ou na ação criminosa, mas apenas a posição dos pacientes
na pessoa jurídica, faz-se definitiva a ofensa ao estatuto da validade da
denúncia (Código de Processo Penal, artigo 41), consistente na ausência da
obrigatória descrição da conduta de autor ou de partícipe dos imputados. 3.
Denúncia inepta, à luz dos seus próprios fundamentos. 4. Habeas corpus
concedido para trancamento da ação penal" (HC 15051.SP, 6ª Turma, Rel.
Min. Hamilton Carvalhido, DJU de 13.08.2001). "RHC - PENAL -
PROCESSUAL PENAL - PESSOA JURÍDICA - SÓCIO -
RESPONSABILIDADE PENAL - DENUNCIA - REQUISITOS A
RESPONSABILIDADE PENAL É PESSOAL. IMPRESCINDÍVEL A
RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. REPELIDA A RESPONSABILIDADE
OBJETIVA. TAIS PRINCÍPIOS SÃO VALIDOS TAMBÉM QUANDO A
CONDUTA É PRATICADA POR SÓCIOS DE PESSOA JURÍDICA. NÃO
RESPONDEM CRIMINALMENTE, PORÉM, PELO SÓ FATO DE SEREM
INTEGRANTES DA ENTIDADE. INDISPENSÁVEL O SÓCIO
PARTICIPAR DO FATO DELITUOSO. CASO CONTRARIO, TER-SE-A,
ODIOSA RESPONSABILIDADE POR FATO DE TERCEIRO. SER SÓCIO
NÃO É CRIME. A DENUNCIA, POR ISSO, DEVE IMPUTAR CONDUTA
DE CADA SÓCIO, DE MODO A QUE O COMPORTAMENTO SEJA
IDENTIFICADO, ENSEJANDO POSSIBILIDADE DE EXERCÍCIO DO
DIREITO PLENO DE DEFESA" (RHC 2882.MS, 6ª Turma, Rel. Min. Luiz
Vicente Cernicchiaro, DJU de 13.09.93).
E, também do Pretório Excelso: "EMENTAS: 1. AÇÃO PENAL. Denúncia.
Deficiência. Omissão dos comportamentos típicos que teriam concretizado a
participação dos réus nos fatos criminosos descritos. Sacrifício do
contraditório e da ampla defesa. Ofensa a garantias constitucionais do
devido processo legal (due process of law). Nulidade absoluta e insanável.
Superveniência da sentença condenatória. Irrelevância. Preclusão temporal
inocorrente. Conhecimento da argüição em HC. Aplicação do art. 5º, incs.
LIV e LV, da CF. Votos vencidos. A denúncia que, eivada de narração
deficiente ou insuficiente, dificulte ou impeça o pleno exercício dos
poderes da defesa, é causa de nulidade absoluta e insanável do processo e
138
da sentença condenatória e, como tal, não é coberta por preclusão. 2. AÇÃO
PENAL. Delitos contra o sistema financeiro nacional. Crimes ditos
societários. Tipos previstos nos arts. 21, § único, e 22, caput, da Lei
7.492.86. Denúncia genérica. Peça que omite a descrição de
comportamentos típicos e sua atribuição a autor individualizado, na
qualidade de administrador de empresas. Inadmissibilidade. Imputação às
pessoas jurídicas. Caso de responsabilidade penal objetiva. Inépcia
reconhecida. Processo anulado a partir da denúncia, inclusive. HC
concedido para esse fim. Extensão da ordem ao co-réu. Inteligência do art.
5º, incs. XLV e XLVI, da CF, dos arts. 13, 18, 20 e 26 do CP e 25 da Lei
7.492.86. Aplicação do art. 41 do CPP. Votos vencidos. No caso de crime
contra o sistema financeiro nacional ou de outro dito "crime societário", é
inepta a denúncia genérica, que omite descrição de comportamento típico e
sua atribuição a autor individualizado, na condição de diretor ou
administrador de empresa" (HC 83301.RS, 1ª Turma, Rel. Min. Cézar
Peluso, DJU de 06.08.2004). Na mesma linha no plano doutrinário tem-se:
"En lo relativo a la responsabilidad jurídica de la empresa como tal, deben
distinguirse diversos niveles. Así, en lo relativo a la responsabilidad civil,
no hay duda de que la empresa es sujeto idóneo de la misma, incluso de la
responsabilidad civil derivada de delito, en los términos de los artículos 21
y 22 CP. Otro tanto sucede con la responsabilidad en el ámbito del Derecho
administrativo sancionador, a pesar de que ya en este punto há comenzado a
suscitarse una importante discusión. Cuando ya entramos concretamente em
materia de responsabilidad penal, la doctrina ampliamente mayoritaria en
España se caracteriza por adoptar dos principios aparentemente
contrapuestos. Por un lado, de conformidd con la tradición continental
europea, acogida también en nuestra jurisprudência y, según parece, en el
Código penal, estima que las agrupaciones de personas, aun cuando gocen
de personalidad jurídica, no pueden ser sujetos activos de delito. En otras
palabras, acepta el principio societas delinquere non potest. Ello significa
que de los delitos cometidos en el ámbito de una empresa, sólo responden
penalmente las personas individuales a las que puedan imputárseles, y en la
medida en que puedan imputárseles, mientras que la corporación en sí, no
puede ser sometida a ninguna pena criminal. Sin embargo, por otro lado, la
misma doctrina dominante en España parece apreciar la existencia de una
necesidad político-criminal de sancionar directamente a las agrupaciones o
colectivos de personas, es decir, a la empresa en cuanto a tal, en caso de
cometerse um delito en su ámbito. Se estima, en efecto, que tales sanciones
colectivas constituyen um medio imprescindible para combatir la
criminalidad de empresa. La coexistencia de estas dos premisas ha
producido diversos intentos, bien de hacer prevalecer una sobre otra, bien
de hacerlas compatibles. En el primer sentido, puede destacarse la
propuesta que parte de entender que el contenido tradicional de las
categorias de la teoría del delito, que constituye el obstáculo fundamental
para considerar a lãs personas jurídicas como autores criminales, es el
reflejo de una visión retributiva del delito. Ello la haría inutilizable en la
actualidad, en que resulta patente la necesidad de orientar el sistema a los
139
fines de prevención. A partir de tal constatación, se estima preciso
proporcionar una nueva configuración a categorías como la acción o la
culpabilidad, a fin de que sean susceptibles de ser referidas a hechos de
corpoaciones; a la vez, se propugna la introducción de nuevas formas de
pena, que se revelen - a diferencia de la pena privativa de libertad - aptas
para ser aplicadas a las empresas en sí mismas. Esta propuesta toma como
punto de partida el hecho indudable de que la doctrina y la jurisprudencia
tradicionales em España, al fundamentar la incapacidad de las agrupaciones
de personas para ser sujetos activos de delito en sí mismas, ha recurrido
básicamente a argumentos puramente dogmáticos (incluso de una dogmática
de base ontológica): así, que las corporaciones, aun las dotadas de
personalidad jurídica, carecen de capacidad de acción (esto es, de uma
voluntariedad en sentido psicológico, o finalidad diferente a la de sus
órganos), de capacidad de culpabilidad (entendida como reproche ético-
social a un sujeto libre, o bien - más modernamente - como motivabilidad
normal) o de capacidad de pena (de sentir los contenidos de retribución,
expiación, intimidación o reeducación presentes en ésta etc.). Así, la STS
de 3 de julio de 1992, ponente Sr. Bacigalupo Zapater (Rep. La Ley n.
12.612): "En el Derecho penal español, la responsabilidad se fundamenta en
acciones de personas físicas, por el contrario, se parte de la base - al menos
hasta hoy - de que las personas jurídicas o los conjuntos de personas
carecen, en principio, tanto de la capacidad de acción como de la capacidad
de culpabilidad que requiere el Derecho penal. Ello no excluye, de todos
modos, que en el derecho sancionatorio adminstrativo se acepte que
personas jurídicas, sociedades etc., puedan ser objeto de sanciones, carentes
de las notas propias de las sanciones penales" (Jesus-Maria Silva Sánchez
in "Responsabilidade penal da pessoa jurídica - Em defesa do princípio da
imputação penal subjetiva: Responsabilidad penal de las empresaa y sus
organos en derecho español", Ed. RT, 2001, pgs. 09.12). "En resumen: no
me parece posible fundamentar, tampoco a partir de las nuevas realidades
que han de ser tenidas en cuenta como objeto de la valoración jurídica, una
responsabilidad penal de las personas jurídicas. La doctrina tradicional y
los argumentos por ella utilizados en contra de la fundamentación de la
responsabilidad penla de las personas jurídicas continúan siendo
plenamente válidos. Como recientemente subraya Strantenwerth, "aqui falta
todo substracto para una pena". El futuro de la dogmática jurídico-penal en
cuanto a la lucha contra la criminalidad económica que se desarrolha a
partir de la actividad de una empresa debe orientarse al desarrolla a partir
de la actividad de una empresa debe orientarse al desarrollo de instrumentos
jurídicos de responsabilidad de las personas físicas que actúan para la
empresa. El Derecho penal, sin embargo, es un instrumento insuficiente
para uma protección plena y eficaz del orden social. Pero esto no es nuevo
porque siempre ha sido así. La intervención del Derecho penal - y en
general del Derecho sancionador há necesitado siempre ser
complementada con la intervención de otros sectores del ordenamiento
jurírido. El delito resulta de la selección de sólo una parte de los datos de
hecho que se producen en un contexto de acción que es, desde luego, mucho
140
más amplio. Otros datos de hecho del contexto en que surge el delito, que
no pueden ni deben ser tenidos en cuenta para la valoración jurídico penal y
que, por ello, deben quedar fuera Del supuesto de hecho de la pena o de la
medida de seguridad del Derecho penal, pueden y deben ser objeto de
valoración jurídica y configurar el supuesto de hecho de outra consecuencia
jurídica independiente que debe aplicarse junto a y además de la pena, de
modo que, recordando de nuevo a Hirsch, pueda alcanzarse una valoración
jurídica total del caso y la aplicación de todas las formas de reacción
jurídica orientadas a la protección, reafirmación y restabelecimiento del
orden jurídico. En el ámbito de la criminalidad económica que se desarrolla
en el contexto de la actividad de una empresa económica, el Derecho penal
individual, incluido aquí el Derecho de las infracciones y sanciones
administrativas, debe ser sin duda complementado con otras formas de
reacción jurídica que han de tener como presupuesto la valoración de otras
circunstancias de hecho del contexto del delito. Este y no el de las
sanciones en sentido estricto es el campo en el que, deben fundamentarse
consecuensias jurídicas aplicables a la agrupación en cuanto realidad
distinta a la de las personas físicas que actúan para ellas." (Luís Gracia
Martín in "Responsabilidade penal da pessoa jurídica - Em defesa do
princípio da imputação penal subjetiva: La cuestion de la responsabilidad
penal de las propias personas juridicas", Ed. RT, 2001, pgs. 72.73).
"A lei penal brasileira dos crimes ambientais (Lei 9.605 de 12.02.1998)
inova, em seu art. 3°, caput, ao dispor que "as pessoas jurídicas serão
responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto
nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu
representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse
ou benefício da sua entidade". Parágrafo único. "A responsabilidade das
pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou
partícipes do mesmo fato". Intenta-se romper, assim, pela vez primeira, o
clássico axioma do societas delinquere non potest. Não obstante, em rigor,
diante da configuração do ordenamento jurídico brasileiro em especial do
subsistema penal - e dos princípios constitucionais penais que o regem
(v.g., princípios da personalidade das penas, da culpabilidade, da
intervenção mínima etc.) e que são reafirmados pela vigência daquele, fica
extremamente difícil não admitir a inconstitucionalidade desse artigo,
exemplo claro de responsabilidade penal por fato alheio. Influenciado, de
certa forma, pelo sistema anglo-americano, em que essa forma de
responsabilidade é normalmente admitida, teve, contudo, o legislador
pátrio, nitidamente, como fonte de inspiração o modelo francês. A previsão
legal acima parece estar intimamente vinculada ao crescente e lamentável
recurso à lei criminal como instrumento eficiente e simbólico. Para tanto
convergem dois fatores relacionados com a noção de eficiência. De acordo
com o primeiro, o Direito Penal é menos custoso, se comparado com o
emprego de mecanismos jurídico-administrativos alternativos. Pelo
segundo, seus efeitos sociais sobre a opinião pública são superiores, pelo
menos a curto prazo, o que faz dele um instrumento adequado para obter a
141
confiança da população na ordem jurídica. A idéia de um Direito Penal
eficiente - eficiência social - significa que o sistema penal eleva sua
eficiência prescindindo parcialmente da sujeição a seus princípios e é
colocado à disposição estatal como mecanismo forte de combate à
criminalidade, reduzindo ao mínimo os pressupostos da punibilidade, com
lastro na chamada imperiosa necessidade. Trata-se da corrente puramente
utilitarista denominada Law and Economics, ou análise econômica do
Direito, que visa à "utilização de técnicas como a análise custo-benefício na
elaboração das políticas jurídicas e na justificação das decisões judiciais, a
decidida abertura do discurso jurídico ao tema das conseqüências
econômico-sociais do Direito, ou a consideração da eficiência econômica
como valor jurídico". Mas, na realidade, a conseqüência desse processo não
é que o Direito Penal assim concebido esteja em condições de cumprir suas
novas funções; ao contrário, está ele permanentemente acompanhado de
"déficits de execução" específicos, reprovados por todos. Dessa postura,
defluem uma tentativa de minimizar esses déficits com mais criminalizações
ou aumento de pena e um âmbito progressivo de efeitos meramente
simbólicos: dado que não podem ser esperados efeitos reais, o legislador
pelo menos obtém o crédito político de ter dado uma resposta célere aos
medos e pertubações sociais com os severos meios criminais. Isso significa
dizer que a eficiência é apenas aparente - puramente simbólica - e incidente
tão-somente no âmbito psicológico-social dos sentimentos de insegurança.
Ainda que adequada a escolha do paradigma, visto ser o Direito francês
escrito, e pertencente ao grupo romano-germânico, não andou bem nosso
legislador em sua formulação. De fato, em França, como já examinado,
tomou-se o cuidado de adaptar-se de modo expresso essa espécie de
responsabilidade no âmbito do sistema tradicional. A denominada Lei de
Adaptação (Lei 92-1336.1992) alterou inúmeros textos legais para torná-
los, coerentes com o novo Código Penal, contendo inclusive disposições de
processo penal, no intuito de uma harmonização processual, particularmente
necessária devido à previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Além disso, a lei francesa proclama o princípio da especialidade, vale dizer,
só se torna possível deflagrar-se o processo penal contra a pessoa jurídica
quando estiver tal responsabilidade prevista explicitamente no tipo legal de
delito. Definem-se, assim, de modo taxativo, quais as infrações penais
passíveis de serem imputadas à pessoa jurídica. Ora bem, em nosso país
deu-se exatamente o oposto, visto que o legislador de 1998 (Lei 9.605), de
forma simplista, nada mais fez do que enunciar a responsabilidade penal da
pessoa jurídica, cominando-lhe penas, sem lograr, contudo, instituí-la
completamente. Isso significa não ser ela passível de aplicação concreta e
imediata, pois faltam-lhe instrumentos hábeis e indispensáveis para a
consecução de tal desiderato. Não há como, em termos lógico-jurídicos,
quebrar princípio fundamental como o da irresponsabilidade criminal da
pessoa jurídica, ancorado solidamente no sistema de responsabilidade da
pessoa natural, sem fornecer, em contrapartida, elementos básicos e
específicos conformadores de um subsistema ou microssistema de
responsabilidade penal, restrito e especial, inclusive com regras processuais
142
próprias." (Luiz Régis Prado in "Responsabilidade penal da pessoa jurídica
- Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva: Responsabilidade
penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações", Ed. RT, 2001, pgs.
127.130).
"Estamos ya en condiciones de efectuar un primer balance: El Derecho
penal español sigue anclado en el principio tradicional según el cual sólo
las personas físicas pueden cometer delitos y sólo ellas pueden ser
castigadas con penas criminales en sentido estricto. Sin embargo, el CP
actual incluye, junto a las penas y las medidas de seguridad, consecuencias
accesorias constituidas por el comiso y por una serie de medidas aplicables
a personas jurídicas y empresas. Estas medidas no son punitivas, sino
meramente preventivas: tienen como finalidad el peligro que pueda suponer
la persona jurídica o empresa de que se continúe la actividad delictiva de
personas físicas o suas efectos. Tanto en su origen legislativo como en su
sentido actual, estas medidas se hallan más próximas a las medidas de
seguridad que a las penas. No presuponen que la persona jurídica o empresa
haya cometido ningún delito, por lo que no tropiezan con el obstáculo de
que en la actuación de una persona jurídica o empresa faltan todas las
exigencias dogmáticas derivadas del principio de culpabilidad personal.
Tampoco suponen el reproche ético-social de la pena. Sin embargo, en
cuanto implican afectación de derechos - como las medidas de seguridad-,
deben sujetarse a los límites constitucionales de la intervención coactiva
del Estado, como el que impone el princípio constitucional de
proporcionalidad, y a los principios que rigen el proceso penal acusatorio."
(...)
Pues bien, imponer una pena a una persona jurídica o a una empresa es
extender el grave reproche de la condena penal a quien no puede
reprochársele el hecho como autor o partícipe culpable del mismo. Es
evidente que una persona jurídica es una creación del Derecho incapaz de
actuar por sí misma, carente de conciencia y de cualquier sentido de
responsabilidad. Cómo podría reprocharse a una pura creación jurídica un
hecho que no puede haber decidido ni realizado ni evitado? La persona
jurídica necesita de alguna persona física que actúe en su nombre. Es lo que
ocurre en el caso del recién nacido cuyo patrimonio administran sus padres,
o del absolutamente incapaz representado por un tutor: aunque el menor y el
incapaz son personas para el Derecho, tienen capacidad jurídica y, por
tanto, pueden tener derechos y obligaciones, no tienen capacidad de obrar y
necesitan para actuar en Derecho la intervención de sus padres o tutor. Es
cierto que una persona jurídica aparece como parte en los contratos que
suscribe, por ejemplo: ella es la que aparece como vendedora de un bien de
su propiedad, y en este sentido se dice que el la persona jurídica la que
vende dicho bien. Pero lo mismo sucede en el recién nacido o en el incapaz
profundo que aparece como vendedor de uno de sus bienes, y no obstante
quien verdaderamente há de efectuar los actos reales necesarios para vender
son los padres o el tutor. Igualmente, cuando la persona jurídica vende tiene
que hacerlo necesariamente a través de la actuación de sus administradores
143
o personas apoderadas. Pues bien: del mismo modo que en el caso del padre
que determina el alzamiento de los bienes del recién nacido, sería
absolutamente injusto reprochar al bebé la comisión del delito, porque el
niño no ha hecho nada de lo que se le pueda culpar, también cuando el
administrador de una persona jurídica produce el alzamiento de bienes de
ésta sería injusto reprochar a la misma la comisión del delito cuando ésta se
debe únicamente a la actuación del adminstrador." (Santiago Mir Puig in
"Una tercera vía en materia de responsabilidads penal de las personas
jurídicas", crimenet.ugr.es).
Ante o exposto, nego provimento ao recurso.
É o voto
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUINTA TURMA
Número Registro: 2004.0012318-8 RESP 622724 . SC
MATÉRIA CRIMINAL
Números Origem: 20030149643 30149643 79010035646
PAUTA: 18.11.2004 JULGADO: 18.11.2004
Relator
Exmo. Sr. Ministro FELIX FISCHER
Presidenta da Sessão
Exma. Sra. Ministra LAURITA VAZ
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. FRANCISCO XAVIER PINHEIRO FILHO
Secretário
Bel. LAURO ROCHA REIS
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA
CATARINA
RECORRIDO : AUTO POSTO DE LAVAGEM VALE DO VINHO LTDA
ASSUNTO: Penal - Leis Extravagantes - Crimes Contra o Meio Ambiente
(lei 9.605.98)
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia QUINTA TURMA, ao apreciar o processo em
epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
144
"A Turma, por unanimidade, conheceu do recurso, mas lhe negou
provimento." Os Srs. Ministros Gilson Dipp, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves
Lima e José Arnaldo da Fonseca votaram com o Sr. Ministro Relator.
O referido é verdade. Dou fé.
Brasília, 18 de novembro de 2004.
AURO ROCHA REIS
Secretário
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