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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Daniela Silva Mourani
Michel Foucault e A vontade de saber
MESTRADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Daniela Silva Mourani
Michel Foucault e A vontade de saber
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial
para obtenção do título de MESTRE
em FILOSOFIA pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação da Profª Doutora
Salma Tannus Muchail.
SÃO PAULO
2009
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ERRATA
Michel Foucault e A vontade de saber
Daniela Silva Mourani
No RESUMO, a primeira vez que aparece “discurso fictício”, substitua-se por
“discurso literário”. A segunda vez substitua-se por “discurso de ficção”.
No SUMÁRIO, no item 1. do capítulo I, a palavra “óptica”deve ser substituída por
“ótica”.
No SUMÁRIO, a partir da página 47, todas as páginas seguintes devem ser
substituídas por uma página a mais.
As notas de rodapé que vão do número 109 ao número 114 referem-se ao texto
FOUCAULT, M., “Sobre a Arqueologia das ciências. Resposta ao círculo de
epistemologia” in Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento.
Na nota de rodapé número 224, substitua-se a página 55 citada pela página 57.
Banca Examinadora
__________________
__________________
__________________
Com muito amor,
Para Niel, meu querido pai, que me
ensinou a sentir a fragrância que exala da
escrita.
Para Michele, que através de sua música
fez minha alma respirar amor em terra de
sonhos possíveis. A realização deste
estudo é uma pequena partitura da melodia
que ecoa desta terra.
Para Leonardo e Emanuel, príncipes do
meu coração.
Agradecimentos
À Salma Tannus Muchail, pacienciosa e estimada orientadora, que com muito
esmero guiou os meus passos neste encontro com a filosofia. Pela confiança e
incentivo durante todo o tempo e, principalmente, por me ensinar, tão afetivamente,
como se estuda filosofia.
À minha querida mãe, Célia, por toda ajuda.
A todos os amigos, que ao longo de todo estudo me auxiliaram de diferentes
maneiras, em especial ao Washington, pelo carinho com que tranqüilizou as minhas
dificuldades.
A todos os familiares que torceram pela conquista deste trabalho.
RESUMO
Este trabalho é um estudo sobre A vontade de saber, primeiro volume de
História da sexualidade, de Michel Foucault. Através de uma análise genealógica,
Foucault aborda a história da sexualidade, nas sociedades ocidentais, para
compreender os motivos que sustentaram, ao longo dos séculos, a hipótese da
sexualidade enquanto objeto de mecanismos repressores, daí falar em “hipótese
repressiva”. Neste sentido, este estudo evidenciará, no primeiro capítulo, que
Foucault combateu a “hipótese repressiva” à medida que se apoiou em outra
hipótese: a do desenvolvimento, nestas sociedades, de procedimentos, cnicas e
estratégias de poder que tiveram como característica produzir e intensificar
verdades, saberes e discursos. Neste caso, estaremos observando a produção de
saberes sobre o sexo, que se evidenciou pelo desenvolvimento de uma ciência
sexual. Deste modo, perceberemos que não houve uma busca de métodos para se
intensificar o prazer sexual, mas de todos para se buscar a verdade, que os
mecanismos de poder fizeram acreditar, através de discursos científicos, existir no
sexo. Através deste percurso, perceberemos que a história da sexualidade,
concebida por Foucault, é a história da “vontade de saber” sobre o sexo, na qual os
discursos com efeitos de verdade tiveram um papel fundamental.
Pode-se dizer que para realçar a importância assumida pelos discursos na
questão do sexo, Foucault recorreu, inclusive, ao discurso fictício através de uma
fábula de Diderot, as Jóias indiscretas. Assim, no segundo capítulo, faremos uma
breve reconstituição da fábula e levantaremos as considerações de Foucault sobre a
noção de ficção, a fim de refletirmos acerca do discurso ficcional. Além disso, a
compreensão de alguns aspectos da escrita diderotiana nos possibilitará relacionar a
inserção deste discurso fictício dentro de um estudo histórico. De todo modo,
mostraremos que o sexo, independente de estar atrelado à realidade ou à ficção,
tem sido, historicamente, posto em discurso.
Palavras-chave: sexo, poder, verdade, discurso
ABSTRACT
This is a study on The Will to Knowledge, the first volume of Michel Foucault’s The
History of Sexuality. By means of a genealogical analysis, Foucault approaches the
history of sexuality, in Western societies, so as to understand the motivations that
supported, along the centuries, the hypothesis of sexuality as the object of repressive
mechanisms, thus speaking of the “repressive hypothesis”. In this sense, this study
will highlight, in its first chapter, how Foucault fought against the “repressive
hypothesis” to the extent that he grounded himself upon another hypothesis: the one
of the development, in these societies, of proceedings, techniques and strategies of
power whose main characteristic was to produce and intensify thruths, knowledges,
discourses. In this case, we will observe the production of knowledge about sex,
which became noteworthy through the development of a sexual science. Thus, we
will notice that there has not been a search for methods to intensify sexual pleasure,
but of methods to find the truth that the mechanisms of power made one believe,
through scientific discourses, that existed in sex. Through this course, we will
perceive that the history of sexuality, conceived by Foucault, is the history of the “will
to knowledge” about sex, in which the discourses with effects of truth have had a
fundamental role.
One can say that to highlight the importance held by discourses on the sex issue,
Foucault resorted, inclusively, to the literary discourse through Diderot’s fable, The
Indiscreet Jewels. Thus, in the second chapter, we will briefly reconstruct the fable
and list the considerations made by Foucault on the notion of fiction, so we may
reflect on fictional discourse. Besides that, the understanding of some aspects of
Diderot’s writing will allow us to relate the insertion of this fiction discourse within a
historic study. Finally, we will show that sex, whether linked to reality or fiction, has
been used, historically, in discourse.
Key-words: Sex, Power, Truth, Discourse.
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................... 1
Capítulo I – Uma Reconstituição e estudo de A Vontade de Saber ............. 9
Considerações Iniciais ……………………………………………………………... 9
1. A história da sexualidade pela óptica de uma vontade de saber .............. 10
1.1 A propósito da “hipótese repressiva” ........................................................... 10
1.2. Interfaces do poder: uma maquinaria de corpos……………………............... 14
1.3. Da trama discursiva à “hipótese perversa” ………………………………….... 27
2. Por uma transposição da “hipótese repressiva” ........................................ 36
2.1. O mapa dos dispositivos com o contorno da sexualidade............................. 36
2.2. A verdade da confissão ou a confissão para uma verdade .......................... 45
2.3. A verdade do sexo: a história de outra verdade …………………………….... 47
Capítulo II - O sexo entre a fábula e a história ………………………………….. 56
Considerações Iniciais....................................................................................... 56
1. O pêndulo fictício ........................................................................................... 58
1.1 Distâncias e proximidades do discurso fictício.............................................. 58
1.2. Fábula: crepúsculo ou aurora?....................................................................... 62
2. As Jóias indiscretas..................................................................................... 66
2.1. O encontro com os bijoux............................................................................... 66
2.2. Diderot, sem segredos.................................................................................... 68
3. Ressonâncias e Dissonâncias entre A vontade de saber e Jóias
indiscretas............................................................................................................ 73
Conclusão............................................................................................................ 77
Bibliografia........................................................................................................... 81
RESUMO
Este trabalho é um estudo sobre A vontade de saber, primeiro volume de
História da sexualidade, de Michel Foucault. Através de uma análise genealógica,
Foucault aborda a história da sexualidade, nas sociedades ocidentais, para
compreender os motivos que sustentaram, ao longo dos séculos, a hipótese da
sexualidade enquanto objeto de mecanismos repressores, daí falar em “hipótese
repressiva”. Neste sentido, este estudo evidenciará, no primeiro capítulo, que
Foucault combateu a “hipótese repressiva” à medida que se apoiou em outra
hipótese: a do desenvolvimento, nestas sociedades, de procedimentos, cnicas e
estratégias de poder que tiveram como característica produzir e intensificar
verdades, saberes e discursos. Neste caso, estaremos observando a produção de
saberes sobre o sexo, que se evidenciou pelo desenvolvimento de uma ciência
sexual. Deste modo, perceberemos que não houve uma busca de métodos para se
intensificar o prazer sexual, mas de todos para se buscar a verdade, que os
mecanismos de poder fizeram acreditar, através de discursos científicos, existir no
sexo. Através deste percurso, perceberemos que a história da sexualidade,
concebida por Foucault, é a história da “vontade de saber” sobre o sexo, na qual os
discursos com efeitos de verdade tiveram um papel fundamental.
Pode-se dizer que para realçar a importância assumida pelos discursos na
questão do sexo, Foucault recorreu, inclusive, ao discurso fictício através de uma
fábula de Diderot, as Jóias indiscretas. Assim, no segundo capítulo, faremos uma
breve reconstituição da fábula e levantaremos as considerações de Foucault sobre a
noção de ficção, a fim de refletirmos acerca do discurso ficcional. Além disso, a
compreensão de alguns aspectos da escrita diderotiana nos possibilitará relacionar a
inserção deste discurso fictício dentro de um estudo histórico. De todo modo,
mostraremos que o sexo, independente de estar atrelado à realidade ou à ficção,
tem sido, historicamente, posto em discurso.
Palavras-chave: sexo, poder, verdade, discurso
ABSTRACT
This is a study on The Will to Knowledge, the first volume of Michel Foucault’s The
History of Sexuality. By means of a genealogical analysis, Foucault approaches the
history of sexuality, in Western societies, so as to understand the motivations that
supported, along the centuries, the hypothesis of sexuality as the object of repressive
mechanisms, thus speaking of the “repressive hypothesis”. In this sense, this study
will highlight, in its first chapter, how Foucault fought against the “repressive
hypothesis” to the extent that he grounded himself upon another hypothesis: the one
of the development, in these societies, of proceedings, techniques and strategies of
power whose main characteristic was to produce and intensify thruths, knowledges,
discourses. In this case, we will observe the production of knowledge about sex,
which became noteworthy through the development of a sexual science. Thus, we
will notice that there has not been a search for methods to intensify sexual pleasure,
but of methods to find the truth that the mechanisms of power made one believe,
through scientific discourses, that existed in sex. Through this course, we will
perceive that the history of sexuality, conceived by Foucault, is the history of the “will
to knowledge” about sex, in which the discourses with effects of truth have had a
fundamental role.
One can say that to highlight the importance held by discourses on the sex issue,
Foucault resorted, inclusively, to the literary discourse through Diderot’s fable, The
Indiscreet Jewels. Thus, in the second chapter, we will briefly reconstruct the fable
and list the considerations made by Foucault on the notion of fiction, so we may
reflect on fictional discourse. Besides that, the understanding of some aspects of
Diderot’s writing will allow us to relate the insertion of this fiction discourse within a
historic study. Finally, we will show that sex, whether linked to reality or fiction, has
been used, historically, in discourse.
Key-words: Sex, Power, Truth, Discourse.
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................... 1
Capítulo I – Uma Reconstituição e estudo de A Vontade de Saber ............. 9
Considerações Iniciais ……………………………………………………………... 9
1. A história da sexualidade pela óptica de uma vontade de saber .............. 10
1.1 A propósito da “hipótese repressiva” ........................................................... 10
1.2. Interfaces do poder: uma maquinaria de corpos……………………............... 14
1.3. Da trama discursiva à “hipótese perversa” ………………………………….... 27
2. Por uma transposição da “hipótese repressiva” ........................................ 36
2.1. O mapa dos dispositivos com o contorno da sexualidade............................. 36
2.2. A verdade da confissão ou a confissão para uma verdade .......................... 45
2.3. A verdade do sexo: a história de outra verdade …………………………….... 47
Capítulo II - O sexo entre a fábula e a história ………………………………….. 56
Considerações Iniciais....................................................................................... 56
1. O pêndulo fictício ........................................................................................... 58
1.1 Distâncias e proximidades do discurso fictício.............................................. 58
1.2. Fábula: crepúsculo ou aurora?....................................................................... 62
2. As Jóias indiscretas..................................................................................... 66
2.1. O encontro com os bijoux............................................................................... 66
2.2. Diderot, sem segredos.................................................................................... 68
3. Ressonâncias e Dissonâncias entre A vontade de saber e Jóias
indiscretas............................................................................................................ 73
Conclusão............................................................................................................ 77
Bibliografia........................................................................................................... 81
1
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é um estudo sobre A vontade de saber, primeiro volume
de História da Sexualidade, de Michel Foucault, datado de 1976. Este estudo
comportará o destaque de alguns conceitos para cuja compreensão recorreremos
também a outros textos do próprio Foucault e de alguns outros autores.
Antes, porém, de iniciar a abordagem propriamente dita do texto escolhido,
faremos, introdutoriamente, uma breve contextualização histórica do momento
teórico que diz respeito à época em que ele foi escrito.
A produção teórica de Foucault, ou sua “trajetória intelectual”
1
, como é
intitulada por muitos estudiosos, pode ser dividida em três períodos. O primeiro
período, o arqueológico, tem como foco a análise dos discursos relacionados a
determinadas épocas, e abrange os livros publicados entre os anos 1960 a 1969:
História da Loucura na Idade Clássica,(1961), O Nascimento da Clínica,(1963), As
Palavras e as Coisas,(1966), A arqueologia do saber,(1969). No segundo período,
conhecido como genealógico, as pesquisas são centradas nas práticas de poder e
nos saberes correlatos. Os livros publicados são: Vigiar e Punir, (1975), e o primeiro
volume de História da Sexualidade A vontade de saber, (1976). O terceiro e último
é aquele em que Foucault se volta para questões que dizem respeito ao sujeito
ético. Este período, que ocorreu na década de 80, compreende os dois últimos
volumes de História da Sexualidade: o volume II nomeado O uso dos prazeres,
(1984), e o volume III nomeado O cuidado de si, (1984).
Cabe ressaltar que os três períodos acima assinalados, embora assim
reconhecidos pelo próprio Foucault, não são estruturas fixas, podendo surgir de
forma articulada em alguns de seus estudos.
Posto que o primeiro volume de História da Sexualidade situa-se no segundo
período do percurso intelectual de Foucault, cumpre fazer algumas considerações
mais detalhadas do referido período, a fim de possibilitar uma melhor compreensão
do estudo.
1
Cf., por exemplo, MUCHAIL, Salma Tannus., “A trajetória de Michel Foucault” in Foucault simplesmente,
p.9-20.
2
Embora Foucault tenha introduzido a palavra “genealogia” em Vigiar e Punir
2
,
alguns anos antes, em 1971, escrevera o texto “Nietzsche, a genealogia e a
história”
3
em que mostra como empreende a efetivação do pensamento genealógico
nietzschiano. Sem pretensões de adentrarmos mais do que o necessário neste
texto de 1971, dele selecionamos alguns elementos para mostrarmos certos
conceitos que fundamentam a análise genealógica.
Foucault mostra que Nietzsche combatia a história tradicional, baseada na
origem (Ursprung)
4
dos fatos, colocando em seu lugar a história como genealogia.
Esta história enquanto genealogia é intitulada por Nietzsche como Wirkliche
Historie”, ou como quer a tradução, “História efetiva”. Uma das características
principais desta história efetiva e que se contrapõe à história tradicional é justamente
o fato dela se opor à pesquisa da origem
5
. Foucault explica, em três pontos, os
motivos desta oposição em relação à origem. Podemos sintetizá-los como se segue.
Primeiro, uma pesquisa que tem como meta a origem vai em busca da
essência das coisas, como se houvesse uma identidade primeira e imóvel a ser
encontrada. Ora, uma identidade baseada nestas premissas teria que desconsiderar
a influência do externo, do acidental, do fortuito, pois sua essência seria anterior a
estas influências. Mas na concepção de Foucault, “escutar” a história é entender que
se existe alguma essência nas coisas “ela nasceu de uma maneira inteiramente
‘desrazoável’ – do acaso.”
6
Segundo, a noção de origem também traz consigo a idéia de que as coisas
no início se encontravam em estado de perfeição. O divino seria a marca de
nascença do homem, com sua origem no alto, junto aos deuses. Foucault, como
leitor de Nietzsche, marcará que o princípio histórico é encontrado em outro lugar:
“...o começo histórico é baixo. Não no sentido de modesto ou de discreto como o
passo da pomba, mas de derrisório, de irônico, próprio a desfazer todas as
enfatuações.”
7
2
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir.Tradução de Raquel Ramalhete.Petrópolis:Vozes,1987.
3
FOUCAULT, M., “Nietzsche, a genealogia e a história” in Microfísica do Poder,2006.
4
Foucault mostra, em diversos textos, o uso feito por Nietzsche da palavra Ursprung.
5
Cf. FOUCAULT, M., “Nietzsche, a genealogia e a história” in Microfísica do Poder, p.16.
6
Ibid., p.18.
7
Ibid., p.18.
3
Terceiro, o lugar da origem seria o lugar da verdade. Mas a história efetiva
parte da noção de que a verdade é uma espécie de erro: “...atrás da verdade
sempre recente, avara e comedida, existe a proliferação milenar dos erros.”
8
A história praticada por Foucault, a história efetiva, pode ser entendida por
uma passagem ilustradora:
“Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento
não será, portanto, partir em busca de sua ‘origem’, negligenciando como
inacessíveis todos os episódios da história; será, ao contrário, se demorar
nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atenção
escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras
assim enfim retiradas, com o rosto do outro; o ter pudor de ir procurá-las
onde elas estão, escavando os basfond; deixar-lhes o tempo de elevar-
se do labirinto onde nenhuma verdade a manteve jamais sob sua guarda.”
9
Em breves palavras, recusando a noção de origem, a genealogia abandona a
expectativa pela essência e constância das coisas, reconhecendo que a história se
faz nas descontinuidades dos acontecimentos. Foucault explicita: “O que se
encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da
origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate.”
10
Neste sentido, a objetividade dos fatos e a verdade eterna são também
desmoronadas, porque a genealogia dispensa e rejeita o absoluto. Para Foucault, a
“história, com suas intensidades, seus desfalecimentos, seus furores secretos, suas
grandes agitações febris com síncopes, é o próprio corpo do devir.”
11
Eis o que
explica a estudiosa de Foucault, Judith Revel:
“A genealogia trabalha, portanto, a partir da diversidade e da dispersão, do
acaso dos começos e dos acidentes: ela não pretende voltar ao tempo para
8
Ibid., p.19.
9
Ibid., p.19.
10
Ibid.,p.18.
11
Ibid., p.20
4
restabelecer a continuidade da história, mas procura, ao contrário, restituir
os acontecimentos na sua singularidade.”
12
A noção de acontecimento é ampla nos estudos de Foucault, mas este
aspecto do acontecimento como a irrupção de uma singularidade única e aguda no
momento de sua produção, inverte a noção do mesmo como continuidade ideal,
conforme encontrada na história tradicional. O acontecimento, no sentido que a
história efetiva o entende, é uma relação de forças que “não obedecem nem a uma
destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta."
13
Embora não iremos
enfocar mais detidamente esta questão, é importante compreender que a noção de
acontecimento, assim compreendida por Foucault, está relacionada ao modo como
ele entende o presente e a atualidade.
A questão de como a história é abordada por Foucault não se torna
importante apenas por sua ligação com a genealogia. De modo mais amplo, pode-se
dizer, com Muchail, que “Foucault faz filosofia fazendo pesquisa histórica.”
14
Portanto, o que nos cabe neste momento, é alcançar, ainda que muito brevemente,
o modo como esta pesquisa histórica, no sentido de genealogia, é exercida no texto
A vontade de saber. Podemos então compreender que estudar A vontade de saber é
penetrar, para conhecer, este método da genealogia praticado na análise dos
mecanismos de exercícios de poder e suas relações com os saberes; não para
encontrar suas essências, mas para conhecer suas descontinuidades na demora de
suas meticulosidades.
Se este primeiro volume de História da Sexualidade data de 1976, os
anúncios de Foucault sobre escrever uma obra com este tema datavam desde 1960,
conforme nos relata Didier Eribon: “Esta História da Sexualidade nasceu no
cruzamento de dois tipos de preocupações: um projeto antigo e a ‘atualidade’”.
15
12
REVEL, J, Foucault: conceitos essenciais, p.52.
13
FOUCAULT, M., “Nietzsche a Genealogia e a História” in Microfísica do Poder, p. 28. Ver também sobre o
tema do acontecimento: FOUCAULT, M., A ordem do discurso, p. 57-60; REVEL, J., Foucault: conceitos
essenciais,p, 13; SOUZA, W. L., Da medicina não hospitalar ao hospital não médico: uma leitura das análises
de Michel Foucault sobre a história da medicina. Dissertação ( mestrado em filosofia) PUC.SP, p. 5-7.;
CARDOSO, I.A.R., “Foucault e a noção de acontecimento” in Tempo Social (revista USP 1995), p. 1-9.
14
MUCHAIL, Salma Tannus, “O mesmo e o outro” in Foucault, Simplesmente, p.37.
15
ERIBON, D., Michel Foucault, p.303.
5
O “antigo” refere-se justamente aos anúncios feitos por Foucault em textos e
artigos entre 1960 e 1965
16
, quando ele pensava a sexualidade no sentido do
interdito e da transgressão.
17
A “atualidade” diz respeito ao que se passa na França após a greve de maio
de 1968.
18
Tendo acarretado grandes transformações na cultura e nos costumes,
“maio de 68” propiciou também o que Eribon denomina de “dois fenômenos”: a
proliferação de novas ideologias de libertação e a influência da psicanálise. Segundo
Eribon, estes fenômenos aguçaram a fala sobre a sexualidade, que a partir de
então, foi ouvida em todos os cantos. Mas a voz que soava era uníssona, que a
sexualidade era narrada nos trâmites da repressão. Quando então Foucault lança
sua História da Sexualidade, na década de 70, seu pensamento já não era o mesmo
dos idos de 60, pelo contrário: “Desde as primeiras páginas, Foucault faz voar em
estilhaços essa ‘hipótese repressiva’ e as formulações teóricas e políticas que
proliferam ao seu redor.”
19
O primeiro volume de História da Sexualidade é uma análise histórico-
genealógica dos mecanismos de poder que estão relacionados à produção de
saberes sobre a sexualidade. Não é, portanto, um texto sobre a sexualidade
propriamente, mas antes, sobre os mecanismos de poder engendrados na produção
de saberes específicos, neste caso, aqueles sobre a sexualidade. Nas palavras de
Foucault: “Em todo caso, no que me diz respeito, gostaria de estudar todos os
mecanismos que, em nossa sociedade, convidam, incitam, coagem a falar do
sexo”.
20
Portanto, neste estudo de Foucault, “o objeto acerca do qual se escreve a
história não é a ‘sexualidade’, entendida como dado da natureza...”
21
Tomemos as
palavras de Márcio Alves da Fonseca que parecem exprimir o pensamento de
Foucault.
“De fato, aquilo que entendemos por ‘sexualidade’ não seria outra coisa
senão o resultado de nossa ‘vontade de saber’ sobre o sexo, que ao mesmo
16
Ibid., p.304, onde há menção a estes anúncios.
17
Este pensamento é inteiramente modificado quando escreve o primeiro volume de História da Sexualidade.
18
Mais conhecida como o “pós-maio /68”, diz respeito á greve iniciada pelos estudantes em Paris e aderida em
seguida pelos trabalhadores. Durou algumas semanas e após seu término culminou em transformações
significativas por toda a França.
19
ERIBON, D., Michel Foucault, p.304.
20
FOUCAULT, M., “Não ao sexo rei” in Microfísica do poder, p. 231.
21
FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e o direito, p. 198.
6
tempo o toma por objeto de saber e o oferece como objeto de intervenção
de técnicas de poder. Aquilo a que chamamos ‘sexualidade’ não é mais que
o produto de um mecanismo de saber-poder.”
22
Percorrer esta “vontade de saber” e os mecanismos de poder que a
engendram é fazer a história de uma sociedade que, ao invés de buscar os métodos
por meio dos quais pudesse intensificar o prazer sexual
23
, partiu em busca de
métodos para desvendar a verdade que acreditou existir no sexo.
Este estudo foi dividido em dois capítulos.
O primeiro capítulo procurará reconstituir e estudar A vontade de saber. Este
estudo de Foucault é uma interrogação sobre a história da sexualidade no ocidente.
Interroga-se porque houve, nestas sociedades, a necessidade de uma ciência
sexual. A resposta tradicional, e a que ele refuta, é a de que a moral burguesa e a
moral cristã teriam causado, ao longo dos séculos, uma repressão sexual, daí falar
em “hipótese repressiva”. Ao discordar desta hipótese, ele concomitantemente
mostra os motivos que teriam gerado sua sustentação. Um destes motivos é o fato
do sexo ter sido instituído como o lugar onde se encontra a nossa verdade: “para
saber quem és, conheças teu sexo.”
24
Assim, vemos a articulação do sexo com a
procura da verdade, o que significa a produção de discursos verdadeiros sobre o
sexo, discursos que são “na verdade, um formidável instrumento de controle e
poder.”
25
Ora, se a sexualidade é o objeto através do qual o poder se exerce, é
porque ela é um dispositivo que tem uma função estratégica, daí o cristianismo ter
se utilizado dele como veículo para a prática da confissão, a partir da qual a ciência
sexual erigiu seus pressupostos, criando “procedimentos pelos quais se incita o
22
Ibid., p. 198.
23
Cf., FOUCAULT, M., “Sexualidade e Poder” in Ética, sexualidade e política, p. 61.
24
FOUCAULT, M., “Não ao sexo rei” in Microfísica do poder”, p. 229.
25
Ibid., p. 233.
7
sujeito a produzir sobre sua sexualidade um discurso de verdade.”
26
Deste modo,
este primeiro capítulo acompanhará as razões que levaram Foucault a desmoronar a
“hipótese repressiva”, ao mesmo tempo que busca compreender a hipótese
levantada por Foucault, sobre os mecanismos de poder que engendram esta
“vontade de saber” sobre o sexo, e que compõem um tipo específico de poder
chamado por ele de “bio-poder”.
O segundo capítulo procurará refletir e compreender o sentido do discurso
ficcional em A vontade de saber. A nosso ver, a noção de discurso é um tema
fundamental no texto proposto. Com efeito, um dos principais meios de atuação dos
exercícios de poder relacionados ao sexo foram os discursos, tanto que Foucault
fala em um “erotismo discursivo generalizado.”
27
Busca-se, para tanto, recuperar a
existência própria do discurso enquanto acontecimento. Analisar o discurso
enquanto acontecimento é “pesquisar as condições reais de seu aparecimento,
sempre determinado no interior de tramas e lutas de poder.”
28
Porém, em
determinado momento deste estudo, Foucault se apóia em outro tipo de discurso, no
caso o discurso ficcional, através de uma fábula de Diderot as Jóias indiscretas.
29
Nossa proposta, a de articular a relação deste discurso ficcional neste primeiro
volume de História da Sexualidade, promove e necessita da articulação entre ficção
e verdade, que numa proposta de análise histórica, como é o caso do estudo de
Foucault, estaremos buscando o significado da inserção da fábula. Nesta urdidura,
não procuraremos quais são os fios reais e verdadeiros e quais são os fios virtuais e
fictícios, mas qual a composição, feita por Foucault, com todos estes fios. Se a
escrita diderotiana pode ser comparada a uma máquina tecelã
30
, em função do
engenho que apresenta, poderíamos supor que, conhecer o artefato feito por
Foucault, em relação aos discursos, neste estudo, seria nos deparar com uma
26
Ibid., p. 264.
27
FOUCAULT, M., Histoire de la Sexualité I: La volonté de savoir,p.45. Tradução brasileira: História da
Sexualidade I: A vontade de saber, p.39. Doravante, usaremos a sigla VS, para referências a este texto.
28
FONSECA, Márcio Alves da., Michel Foucault e o direito,p. 157.
29
DIDEROT, D., Jóias indiscretas.Tradução de Eduardo Brandão. Rio de Janeiro, Global Editora, s.d.
30
Cf., ROMANO, R., “Diderot: Penélope da revolução” in Revolução francesa. A imagem do tecelão, assim
como metáforas daí correlacionadas, usadas em nossa exposição ao longo deste estudo, foram extraídas deste
texto de Roberto Romano e da dissertação de mestrado de Yolanda gloria Gamboa Muñoz, Fios, teias e redes. O
solo foucaultiano, PUC-SP, 1994.
8
máquina desta. Uma máquina que longe de ser um simples “argumento mecânico”,
precisa ser entendida no seu engenho artístico, no “espantoso” ato de tecer que
transforma “a metamorfose do complexo em simples, e a reunião de várias
‘simplicidades’ em novos conjuntos complexos.”
31
31
Ibid., p. 15.
9
CAPÍTULO I – Uma reconstituição e estudo de A vontade de saber
Considerações Iniciais
O presente capítulo, que se destina a reconstituir e estudar A vontade de
saber, foi dividido em dois momentos.
No primeiro momento, encontraremos o questionamento de Foucault quanto à
“hipótese repressiva”, que tem sido sustentada ao longo de toda a época moderna,
em relação à sexualidade. Partindo do princípio de que a história da sexualidade,
nos dois últimos séculos no ocidente, tem sido narrada como uma história da
repressão, Foucault vai em busca de compreender os motivos que conduziram à
crença nesta “hipótese repressiva”. A genealogia desta “hipótese repressiva”
conduz, necessariamente, aos mecanismos de poder que a sustentam e aos
discursos necessários para esta sustentação. Assim, estaremos entendendo o papel
desempenhado pelo poder e sua relação com o discurso repressivo.
No segundo momento, ainda tendo como fio condutor a “hipótese
repressiva”, abordaremos o papel da confissão, a saber, a confissão da sexualidade,
por ser este outro componente de fundamental importância para a sustentação
daquela hipótese. Foucault mostra que com o movimento da Contra-Reforma, tudo o
que concernia à sexualidade deveria ser dito, daí o crescente uso da confissão. Se
no século XVI a pastoral cristã causou esta aceleração da confissão do sexo por
razões morais, a partir do século XVIII esta aceleração persistiu, mas por razões de
natureza política e econômica. Isso se acentua ainda mais no século XIX quando a
ciência torna a sexualidade um campo de significação, ao colocar a sexualidade
como a portadora da verdade do homem. Portanto, o desenvolvimento de métodos
científicos possibilitou “à confissão do sexo assumir progressivamente um estatuto
científico de produção da verdade”.
32
Este processo culminou na elaboração de uma
ciência sexual.
33
O interesse de Foucault é mostrar como a confissão passou a ter
32
FONSECA, Marcio Alves da, Michel Foucault e a constituição do sujeito, p.96.
33
Este termo será esclarecido no item 2.3 “A verdade do sexo: a história de outra verdade”.
10
uma importância relacionada ao poder e de que maneira isso contribuiu para acirrar
a afirmação da “hipótese repressiva”, e na preparação de uma nova ciência.
1. A história da sexualidade pela ótica de uma vontade de saber
1.1. A propósito da “hipótese repressiva”
Foucault inicia A vontade de saber mostrando que temos concebido a história
da sexualidade desde o século XVII atrelando-a ao conceito de repressão. Pode-se
dizer que foi justamente para questionar esta história da sexualidade reprimida que
Foucault escreveu o seu primeiro volume de História da Sexualidade. Este
questionamento não significa apenas colocar abaixo o manto repressivo que vem
nos dois últimos séculos esquentando nossa maneira de traduzir a sexualidade,
mas buscar as razões históricas que propiciaram esta tradução. Eis como ele relata:
“A questão que gostaria de colocar não é porque somos reprimidos
mas, por que dizemos, com tanta paixão, tanto rancor contra nosso passado
mais próximo, contra nosso presente e contra nós mesmos, que somos
reprimidos?”
34
Segundo a “hipótese repressiva”
35
, o regime vitoriano “teria confiscado a
sexualidade em seu seio e a absorvido na função procriativa”
36
, fazendo
desaparecer a liberdade de expressão que até o século XVI caracterizava a
sexualidade: práticas sexuais realizadas sem discrições; tolerância com as questões
ilícitas; transgressões aparentes; anatomias colocadas à mostra; discursos sem
34
FOUCAULT, M., VS, p.16. Tradução brasileira: VS, p.15.
35
Foucault cria este termo para mostrar como o poder, a partir do século XVII, vinculou o sexo com a repressão.
36
FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e a constituição do sujeito, p. 89.
11
recato, etc. Isto bastaria para explicar o pudor com que desde então temos tratado a
nossa sexualidade. Encoberta pelo silêncio moral e enclausurada no quarto do
casal, a sexualidade estaria assim funcionando nos moldes da repressão, que
profere silêncio e desaparecimento. Mas, o que por outro lado não desapareceu na
sociedade moderna foi este discurso sobre a repressão, e Foucault encontra razões
históricas e políticas que asseguraram sua manutenção.
Do ponto de vista histórico, considerando que a “idade da repressão” coincide
com a época em que o capitalismo se desenvolve, parece aceitável a explicação
segundo a qual numa época em que a força de trabalho é intensamente explorada,
não seria tolerável que esta força fosse desviada para outros fins.
Do ponto de vista político, qualquer tentativa de sair fora dos limites traçados
pela repressão seria o mesmo que desafiar e enfrentar os poderes estabelecidos.
Em ambos os aspectos, o que fica subentendido é que a repressão seria “o
modo fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade”.
37
Existiria ainda, uma outra razão que contribuiu para o vínculo das relações de
poder e sexo em torno da repressão, na sociedade moderna. Neste cenário
repressivo, o poder é avaliado como dominação, que impõe uma lei e exige
submissão. Essa visão do poder faz parte do discurso do sexo da modernidade, e é
mantido, também, em função de um benefício relacionado ao próprio locutor do
discurso, nomeado por Foucault como “benefício do locutor.”
38
Ora, se o locutor se
coloca numa posição de desafiar o poder, invocando e prometendo um futuro de
liberdade sexual, ele consegue de certa forma estar “fora do alcance do poder”.
Foucault esclarece que nesta concepção do sexo reprimido, o simples fato de “falar
dele e de sua repressão possui como que um ar de transgressão deliberada”.
Destaquemos um trecho esclarecedor.
“Falar contra os poderes, dizer a verdade e prometer o gozo; vincular a
iluminação, a liberação e a multiplicação de volúpias; empregar um discurso
37
FOUCAULT, M., VS, p.11-12. Tradução brasileira, VS, p.11.
38
Cf. Ibid. p.13/ Ibid., p.12.
12
onde confluem o ardor do saber, a vontade de mudar a lei e o esperado
jardim das delícias – eis o que, sem dúvida, sustenta em nós a obstinação em
falar do sexo em termos de repressão.”
39
Inês Lacerda Araújo acrescenta que os que se apropriam deste discurso
estariam assumindo “ares de revolucionário e libertador”, pois estariam rompendo
com as estruturas de poder ao falarem de algo proibido como o sexo. Nesse sentido,
estes locutores seriam prestigiados e estimulados.
40
Na história desta “hipótese repressiva”, a questão do discurso, neste caso os
discursos sobre o sexo, vai sendo evidenciada como uma questão essencial. Na
verdade, para Foucault, a “hipótese repressiva” é mantida por estratégias de poder
que sustentam estes discursos. Por isso, as críticas que ele realiza à “hipótese
repressiva” “têm por objetivo muito menos mostrar que essa hipótese é falsa do que
recolocá-la numa economia geral dos discursos sobre o sexo no seio das
sociedades modernas...”
41
É importante salientar que as críticas feitas por Foucault
não visaram negar a existência da proibição e da interdição em torno do sexo; o que
ele não concordou foi com a noção de que a história do sexo a partir da
modernidade tenha ficado reduzida a estes elementos.
A “hipótese repressiva” vincula o poder a elementos negativos proibição,
interdição, coerção, censura os quais teriam como movimento de expressão esse
“não”, e que por isto mesmo, impediriam a formação do saber. Mas Foucault aponta
exatamente o contrário: todos os elementos negativos, citados como característicos
do poder, teriam na realidade uma função tática dentro desta “hipótese repressiva”.
Nesta perspectiva, o poder o pode mais ser concebido como instância restritiva,
passando a ser compreendido como instância instigadora. Há, portanto, uma
“vontade de saber” relacionada ao sexo que não se reteve diante destes fatores
negativos. Deste modo, Foucault vai desmontando a “hipótese repressiva” na
medida em que deixa de privilegiar o valor atribuído às forças de poder impeditivas
de produção para privilegiar e buscar as instâncias produtoras: produtoras de
discurso, produtoras de poder e produtoras de saber.
39
Ibid., p.13-14 / Ibid., p. 12-13.
40
ARAÚJO, Inês Lacerda, “A Sexualidade” in Foucault e a crítica do sujeito, p.168-176.
41
FOUCAULT, M., VS, p. 19. Tradução brasileira, VS, p.17.
13
Ao abordar a noção de poder encontrada em A vontade de saber, Roberto
Machado diz que o poder tem força destrutiva e por isso é visto de maneira negativa,
mas ele também tem força produtiva, que constitui seu aspecto positivo e precisa ser
levada em conta. Ilustremos com uma passagem que descreve seu pensamento:
“O poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma
‘positividade’. E é justamente esse aspecto que explica o fato de ele ter
como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para
aprimorá-lo, adestrá-lo. Não se explica inteiramente o poder quando se
procura caracterizá-lo por sua função repressiva.”
42
De fato, Foucault não entende a sexualidade como a história de uma
restrição, mas como a história de uma crescente instigação. E é por esta razão que,
ao contrário de aceitar a noção de que o sexo teria sido silenciado, dirá que o sexo
foi “colocado em discurso”.
43
Deste modo, a noção de poder traçada por ele quebra
o vínculo entre poder e repressão, e a hipótese repressiva deixa de ser sustentada.
No lugar desta “hipótese repressiva”, a “vontade de saber” sobre o sexo.
Foucault explica detalhadamente ao longo do texto as nuances existentes
entre o discurso e o poder vinculados à questão da sexualidade, conforme vai
mostrando de que forma entende o discurso sobre o sexo e de que forma este
discurso é utilizado como tática de poder. Abordaremos primeiramente as questões
que concernem ao poder para em seguida nos atermos às questões referentes ao
discurso.
1.2. Interfaces do poder: uma maquinaria de corpos
As justificativas históricas encontradas por Foucault, que lhe permitem
colocar abaixo a evidência histórica da “hipótese repressiva”, servem ao mesmo
tempo como base para a construção, a nosso ver, de uma outra hipótese: a do “bio-
42
MACHADO, R., Foucault, a ciência e o saber, p.172.
43
FOUCAULT, M., VS, p. 20. Tradução brasileira, VS, p.18.
14
poder”. Esta concepção do poder se distingue daquela que é utilizada para justificar
a “hipótese repressiva”, ou seja, a representação do poder vinculado à repressão,
que Foucault chamou de “jurídico discursiva”.
Apresentaremos primeiramente as características desta representação
jurídica do poder, para enfocarmos posteriormente o “bio-poder”.
Sob a perspectiva do modelo “jurídico-discursivo” do poder, “o poder não
‘pode’ nada contra o sexo e os prazeres, salvo dizer-lhes não...” e “o poder seria,
essencialmente, aquilo que dita a lei...”
44
e uma lei proibitiva. Portanto, de um lado,
um poder que é lei incidindo sobre o sexo e por isso mesmo o interditando, e de
outro, um sujeito que obedece. Como dissemos anteriormente, o poder assim
concebido apenas abarca qualidades negativas, reduzindo suas capacidades
produtivas. E Foucault se pergunta por que esta noção de poder vem sendo tão
facilmente aceita nas sociedades ocidentais. Ouçamo-lo mais uma vez:
“Numa sociedade como a nossa, onde os aparelhos do poder são tão
numerosos, seus rituais tão visíveis, e seus instrumentos tão seguros,
afinal, nessa sociedade que, sem dúvida, foi mais inventiva do que
qualquer outra em mecanismos de poder sutis e delicados, por que essa
tendência a só reconhecê-lo sob a forma negativa e desencarnada da
interdição? Por que reduzir os dispositivos da dominação ao exclusivo
procedimento da lei de interdição?”
45
Responde que se trata de uma questão “tática”, que encontra seu sucesso na
medida em que encobre os mecanismos do poder. Quanto mais mascarados os
mecanismos, mais o poder se torna tolerável. Entendido assim, o poder tem no
segredo de seus mecanismos a “arma” indispensável ao sucesso de seu
funcionamento.
Mas, além disso, haveria uma outra razão: nossa sociedade teria a tendência
de aceitação ao poder limitador de liberdade. E provavelmente um motivo
histórico para isto. Desde o desenvolvimento da monarquia, na Idade Média, a
44
Ibid., p. 110/ Ibid., p. 93.
45
Ibid., p. 113/ Ibid., p.96.
15
representação do poder permanece marcada por este sistema. Ao mencionar as
instituições monárquicas, estamos nos referindo a um exercício de poder que era
formulado como princípio de direito, além de se exercer através de mecanismos de
interdição, de se constituir enquanto conjunto unitário e de funcionar em termos de
lei. Este tipo de poder fez parte “de uma forma bem particular às nossas sociedades:
a monarquia jurídica”. Porém, esta forma de poder, ao longo dos séculos, foi sendo
penetrada por novos mecanismos de poder, fazendo com que o sistema jurídico
servisse cada vez menos de sistema de representação para o poder. Ora, neste
sentido, Foucault se pergunta: como explicar o fato de que esta representação
jurídica continue presente na análise contemporânea das relações entre sexo e
poder? Com efeito, “no pensamento e na análise política ainda não cortaram a
cabeça do rei.”
46
A proposta de Foucault, neste primeiro volume de História da Sexualidade, é
justamente uma libertação desta imagem jurídica e negativa do poder, fazendo ver
que a sexualidade nas sociedades modernas o teria sido governada apenas por
um poder soberano, mas por mecanismos muito mais complexos e positivos do que
a tão tradicional proibição.
Privilegiando A vontade de saber, mas enfocando também outros de seus
estudos assim como outros autores, percebemos que suas análises apontam para
uma noção de poder na qual este não se encontra localizado em nenhum ponto
específico, unitário, estável e central do corpo social. Ao contrário, ele conceituou o
poder enquanto práticas ou relações de forças provindas de todos os lugares, de
“poderes ou de múltiplos modos de exercício do poder que permeiam as diferentes
sociedades em diferentes momentos históricos”.
47
Assim,
“o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa
potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação
estratégica complexa numa sociedade determinada.”
48
46
Ibid., p. 117/ Ibid., p.99.
47
MUCHAIL, Salma Tannus., “De práticas sociais à produção de saberes” in Foucault, Simplesmente, p. 74.
48
FOUCAULT, M., VS, p.123. Tradução brasileira, VS, p.103.
16
Partindo destas considerações e definições, procuraremos doravante
esmiuçar a noção de poder encontrada nas análises de Foucault.
Conforme apontado por Márcio Alves da Fonseca, o tema do poder é
encontrado em diversos momentos nos estudos de Foucault
49
, mas o ano de 1976,
comportando o curso Em defesa da sociedade e o texto A vontade de saber, parece
ter um certo destaque. Isso se explica em função desse curso e desse livro
marcarem o aparecimento de novas noções sobre o poder, como a de “bio-poder” e
de uma “analítica do poder”. Quando Foucault refere que “é preciso construir uma
analítica do poder que não tome mais o direito como modelo...”
50
, ele não estava
partindo para a elaboração de uma teoria do poder. Aliás, é preciso compreender a
diferença entre uma “teoria” e uma “analítica” do poder:
Uma teoria do poder supõe, de algum modo, a identificação de um objeto.
Seu ponto de partida seria a determinação de algo como o ‘ser’ do poder, a
partir do que, seria possível uma série de descrições de sua estrutura, suas
regras de funcionamento, seus efeitos. Uma analítica do poder, por outro
lado, não parte da pressuposição de uma essência, não procura definir ‘o’
poder, mas se limita a perceber diferentes situações estratégicas a que se
chama ‘poder’ ”.
51
Se a representação “jurídico-discursiva” do poder, conforme dissemos, era
fundamentada pelo princípio de direito, a nova “concepção de poder” proposta por
Foucault se fundamenta no modelo estratégico, no qual a interdição é substituída
por elementos táticos e o “privilégio da soberania, pela análise de um campo múltiplo
e móvel de correlações de força, onde se produzem efeitos globais, mas nunca
estáveis de dominação”.
52
Com respeito às estratégias, existe um “duplo condicionamento”
53
entre as
mesmas e as táticas usadas nas práticas do poder, já que as estratégias são
49
Cf. FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito, p. 96.
50
FOUCAULT, M. VS , p. 119. Tradução brasileira, VS, p.100.
51
FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito, p. 96.
52
FOUCAULT, M. VS, p 135. Tradução brasileira, VS, p.113.
53
Cf., FOUCAULT, M. VS ,p 131-132. Tradução brasileira, VS, p. 110.
17
pensadas através das táticas que lhes são possíveis, assim como as táticas são
formuladas pelas estratégias que as fazem funcionar. De qualquer modo, tanto as
táticas como as estratégias são mecanismos que compõem as relações de poder.
Com efeito, Foucault faz referência mais especificamente, à uma “situação
estratégica” ou um “conjunto estratégico”, enfatizando assim a não existência de
“uma estratégia única, global, válida para toda a sociedade”
54
. Existe, portanto, uma
especificidade temporal e espacial ligada à “concepção de poder” desenvolvida por
Foucault .
55
.
“ ...a análise de Foucault sobre a questão do poder é o resultado de
investigações delimitadas, circunscritas, com objetos bem demarcados. Por
isso, embora às vezes suas afirmações tenham uma ambição englobante,
inclusive pelo tom muitas vezes provocativo e polêmico que as caracteriza,
é importante não perder de vista que se trata de análises particularizadas,
que não podem e não devem ser aplicadas indistintamente sobre novos
objetos, fazendo-lhes assumir uma postura metodológica que lhes daria
universalidade
56
.”
O funcionamento destas estratégias se dá por uma correlação de forças
desiguais e móveis, daí se falar em relações de poder. As relações de poder
possuem um papel produtor, sendo formadas e atuantes nos aparelhos de
produção, atravessando todo o corpo social. Este aspecto produtor do poder (ele se
produz incessantemente em toda relação) lhe confere o status de ser onipresente.
Não que o poder abarque tudo, mas porque provém de todos os lugares
57
.
Como não existe um exterior absoluto em relação ao poder, pois nada está
isento de poder, as próprias resistências e lutas contra seu exercício encontram-se
onde poder, pois são “o outro termo nas relações de poder”.
58
Pode-se então
perceber que a noção de “jogos” de poder, muitas vezes encontrada nos estudos de
54
FOUCAULT, M. VS, p 136. Tradução brasileira, VS, p. 114.
55
Cf., consultar FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e o Direito, p. 37.
56
MACHADO, R., “Por uma genealogia do poder” in FOUCAULT, M., Microfísica do Poder, p. XVI.
57
Cf., FOUCAULT, M., VS, p. 122. Tradução brasileira, VS ,p. 103.
58
FOUCAULT, M., VS, p. 127. Tradução brasileira, VS, p. 106.
18
Foucault, também se explica pelas lutas e afrontamentos que podem transformar,
inverter e reforçar as correlações de forças que constituem o poder.
59
O poder, pensado no sentido de relações, fez Foucault abandonar a idéia de
que ele não se situa em um ponto central do corpo social, concebendo a idéia de
uma “rede” de poder. O caráter relacional do poder também coloca abaixo a
perspectiva do poder enquanto um objeto, uma potência, uma coisa de que apenas
alguns sejam dotados. Deste modo, o poder não é algo a ser adquirido, mas se
exerce por relações. Assim, o poder, através de uma multiplicidade de correlação de
forças e exercido através de estratégias, coloca em funcionamento “uma rede de
procedimentos e mecanismos que atinge os aspectos mais sutis da realidade e da
vida cotidiana dos indivíduos...” de uma determinada época e numa determinada
sociedade
60
. Esta nova física do poder Foucault chamou de “microfísica” do poder,
por se constituir como “micro” poderes que permeiam todas as relações sociais.
Judith Revel aponta dois deslocamentos realizados por Foucault no tema do
poder. Primeiro, se o poder deve ser tratado como “relações de força”, ou seja,
“como modos de ação complexos sobre a ação dos outros”, então uma genealogia
do poder está sempre associada a uma história da subjetividade. Segundo, sendo
que a existência do poder está relacionada ao “ato”, para analisar suas modalidades
de exercício ele retorna tanto “à emergência histórica de seus modos de aplicação
quanto aos instrumentos que ele se , os campos onde ele intervém, a rede que
ele desenha e os efeitos que ele implica numa época dada”.
61
De todo modo,
segundo a estudiosa, devemos compreender que:
“Em nenhum caso, trata-se, por conseqüência, de descrever um princípio
de poder primeiro e fundamental, mas de um agenciamento no qual se
cruzam as práticas, os saberes e as instituições, e no qual o tipo de
objetivo perseguido não se reduz somente à dominação, pois não pertence
a ninguém e varia ele mesmo na história.”
62
59
Ibid., p. 122./ Ibid., p. 102.
60
FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e a Constituição do Sujeito, p.70
61
REVEL, J., Foucault: conceitos essenciais, p.67.
62
Ibid., p.67.
19
Cabe realçar que existe uma implicação mútua entre saber e poder nas
análises de Foucault sobre o poder, a qual fundamenta o caráter produtivo do
mesmo.
“Seria talvez preciso também renunciar a toda uma tradição que deixa
imaginar que pode haver saber onde as relações de poder estão
suspensas e que o saber pode desenvolver-se fora de suas injunções,
suas exigências e seus interesses(...)Temos antes que admitir que o poder
produz saber (...) que poder e saber estão diretamente implicados; que o
há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem
saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de
poder.”
63
Nesta visão, torna-se insustentável reduzir o poder apenas ao seu aspecto
negativo. A compreensão do aspecto positivo de poder é a base na qual se sustenta
a “outra concepção de poder”, segundo Foucault.
“Trata-se portanto de, ao mesmo tempo, assumir outra teoria do poder,
formar outra chave de interpretação histórica; e, examinando de perto todo
um material histórico, avançar pouco a pouco em direção a outra
concepção do poder. Pensar, ao mesmo tempo, o sexo sem a lei e o poder
sem o rei.”
64
Passemos agora a examinar a “outra chave de interpretação histórica”
proposta por Foucault que culminou na elaboração da outra “concepção de poder”,
que diz respeito ao “bio-poder”.
Para Foucault, o poder monárquico, soberano, entrou em declínio na época
moderna pela instalação de um outro tipo de poder, que ele denominou “disciplinar”.
A partir do estudo de Vigiar e Punir (1975), ele percebe que concomitantemente ao
desenvolvimento do capitalismo, desenvolveram-se nas sociedades ocidentais,
técnicas para vigiar e controlar os comportamentos, os atos e os hábitos das
pessoas. Embora estas técnicas de poder certamente interditassem e punissem, o
63
FOUCAULT, M., Vigiar e Punir, p.27.
64
FOUCAULT, M., VS, p.120. Tradução brasileira, VS, p. 101.
20
objetivo era outro: exercer um controle sobre os corpos dos indivíduos para utilizá-
los com eficácia nos aparelhos de produção da sociedade. Trata-se de um domínio
sobre os corpos dos outros, uma “arte do corpo humano”, para que “façam o que se
quer” e “como se quer”. Daí Foucault falar em indivíduos “dóceis e úteis”. Portanto,
esses mecanismos de disciplinação eram produtivos, ultrapassando o poder jurídico
tradicional, e atuavam sobre os corpos. Vejamos uma passagem do estudo referido :
“Forma-se uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo,
uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus
comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é
também igualmente uma ‘mecânica do poder está nascendo; ela define
como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros...”
65
As técnicas disciplinares o sempre minuciosas, íntimas, sutis, de aparência
inocente, que se caracterizam por “definirem um certo modo de investimento político
e detalhado no corpo”. Assim, “a disciplina é uma anatomia política do detalhe.”
Ademais, isso significa que:
“....pode haver um ‘saber’ do corpo que o é exatamente a ciência de seu
funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade
de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia
chamar a tecnologia política do corpo.”
66
Importa observar que esta tecnologia compreende uma “microfísica” do poder
que foi posta em funcionamento em relação aos corpos
67
. Pode-se dizer que esta
tecnologia do poder dirigida ao corpo individual foi ocasionada porque o poder
soberano ficou inoperante para administrar o corpo econômico e político de uma
sociedade que simultaneamente ascendia demográfica e industrialmente
68
. À
soberania, muita coisa passava despercebida, tanto no “nível do detalhe” como no
65
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir, p.119.
66
Ibid, p. 26.
67
Cf. Ibid., p.26.
68
Cf. FOUCAULT, M. “Aula de 17 de março de 1976.” in Em defesa da sociedade:curso no Collège de France
(1975-1976),p.297-298.
21
“nível da massa”. Duas acomodações, segundo Foucault, tornaram-se necessárias
ao poder. A primeira, como vimos, foi a que se desenvolveu para recuperar o
detalhe, instalando o poder “disciplinar”. A segunda, incidiu sobre os fenômenos
globais das massas humanas, e não excluiu a primeira, mas a utilizou para sua
implantação. Estamos falando de uma técnica de poder que - diferentemente da
técnica disciplinar, que centrou-se no “corpo como máquina” - se dirigiu ao ”corpo-
espécie”, ou se quisermos, ao “homem-espécie”. Não se trata mais de reduzir o
homem ao seu corpo, mas de se dirigir à “multiplicidade dos homens” que é afetada
por fenômenos próprios à vida. Portanto, depois de uma “anátomo-política do corpo
humano”, surge, entre os culos XVIII e XIX, a “bio-política” da espécie humana.
Em breves palavras, “agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que
o poder estabelece seus pontos de fixação...”
69
Nem sempre a vida foi o alvo do poder, pois na época clássica o alvo do
poder soberano estava centrado na morte. O poder neste tipo de sociedade se
caracterizava pela tomada de posse: desde as coisas materiais a a vida. O
soberano pode matar, ele tem o direito de matar e por isso ele “exerce seu direito
sobre a vida”. Isto se traduz em um “direito de fazer morrer ou deixar viver.” Ocorreu
então, na passagem da idade clássica para a modernidade, uma transformação nos
mecanismos do poder, fazendo com que o poder se deslocasse da morte para a
vida. Não se tratava mais de um soberano que exigia a morte de outrem, mas de
todo um corpo social que necessitava garantir e desenvolver sua existência.
Portanto, um poder inverso ao poder soberano: “poder de ‘fazer’ viver ou de ‘deixar’
morrer.”
70
Eis que a vida instala-se como problema no campo do poder e a partir daí
o poder toma posse da vida. Ao considerar que houve a “entrada na vida da
história”
71
não se pretende dizer que a vida teria inaugurado o seu contato com a
história. Pelo contrário, a pressão do biológico sobre o histórico ocorria muitos
séculos, mas por muito tempo foi o crivo da morte que conduzia tais relações. A
epidemia e a fome são exemplos desta relação. Porém, uma mudança foi
ocasionada quando houve o aumento de recursos econômicos, favorecido
principalmente pelo desenvolvimento agrícola por volta do século XVIII, assim como
69
FOUCAULT, M., VS, p. 182. Tradução brasileira, VS, p. 151.
70
FOUCAULT, M., “Aula de 17 de março de 1976” in Em defesa da sociedade: curso no Collège de France
(1975-1976), p.287.
71
FOUCAULT, M., VS, p.186. Tradução brasileira, VS, p.154.
22
com o desenvolvimento dos conhecimentos a respeito da vida de forma geral na
mesma época, que abrandaram a intensa ameaça da morte sobre a vida.
“No terreno assim conquistado, organizando-o e ampliando-o, os processos
da vida são levados em conta por procedimentos de poder e de saber que
tentam controlá-los e modificá-los. O homem ocidental aprende pouco a
pouco o que é ser uma espécie viva num mundo vivo, ter um corpo...”
72
É desta forma que o corpo humano torna-se objeto de relações de poder,
inicialmente pelas técnicas disciplinares e posteriormente pelas técnicas de
regulamentação.
Assim, a “bio-política” ou o “bio-poder” constitui-se como um sistema de poder
que através das técnicas de regulamentação intervém no corpo, mas diferentemente
do corpo individual, que era o objeto do poder disciplinar, agora se trata de um
“novo” corpo. Um corpo que não é mais visto como uma máquina a ser manipulada,
mas enquanto suporte de diversos processos biológicos a serem regulados, como a
reprodução, a natalidade, a mortalidade, a longevidade, a habitação, a alimentação.
Portanto, um corpo “novo” na medida em que todos estes processos não se referem
apenas a um indivíduo isolado, mas a corpos ltiplos: a população. Deste modo, a
“entrada da vida na história” significa “a entrada dos fenômenos próprios à vida da
espécie humana na ordem do saber e do poder – no campo das técnicas políticas.”
73
Daí a suposição levantada por Foucault:
Se pudéssemos chamar de ‘bio-história’ as pressões por meio das quais
os movimentos da vida e os processos da história interferem entre si,
deveríamos falar de ‘bio-política’ para designar o que faz com que a vida e
seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do
saber-poder um agente de transformação da vida humana...”
74
72
Ibid., p. 187/ Ibid., p.155.
73
Ibid., p. 186/ Ibid., p.154.
74
Ibid., p. 188/ Ibid., p.155.
23
Retomando a questão da população, pode-se dizer que ela aparece como um
elemento desconhecido até o surgimento do “bio-poder”, tornando-se doravante um
alvo das técnicas deste poder por representar uma preocupação econômica, política
e biológica. Faz-se necessário regulamentar e controlar os fenômenos específicos à
população, que poderiam colocar em risco a sociedade capitalista que se
desenvolve, garantindo uma melhor administração da força de trabalho.
75
É neste
sentido que este tipo de poder leva em conta a vida, assegurando, através do
controle de seus mecanismos globais, de seus acidentes e eventualidades, uma
homeostase. Portanto, a morte, que era para o poder soberano o momento do
grande triunfo, agora é o momento em que o indivíduo escapa ao poder, é “o que cai
fora do domínio do poder.”
76
Um sistema jurídico de lei que tem como “arma” a morte
não teria como se incumbir de um poder que tem como tarefa se encarregar da vida.
Este “sistema” ou “modelo” de mecanismo de poder pode ser ilustrado através
do conjunto de procedimentos utilizados para o controle das epidemias de varíola
em vários países europeus, no final do período clássico. As práticas de poder
utilizadas ilustram um arranjo de poder que pode ser designado como “mecanismos
de seguranças”
77
, que envolvem “a formação de saberes e a concretização de
atuações precisas sobre um grupo de indivíduos...”
78
E para que estes “mecanismos
de segurança” atuem sobre a população, é preciso compreender o espaço físico
ocupado por ela. Neste sentido, a “bio-política” compreende um corpo “novo” dentro
de um outro modo de “agenciamento do espaço”. Em breves palavras, pode-se dizer
que a soberania pensa a cidade enquanto território, tendo como problema a sede do
governo; a disciplina “arquiteta” o espaço de acordo com a distribuição funcional e
hierárquica da população
79
. Por outro lado, como os mecanismos de segurança que
compõem o “bio-poder” devem se preocupar com os problemas e acontecimentos
75
Cf., REVEL, J., Foucault:conceitos essenciais, p.27.
76
FOUCAULT, M., “Aula de 17 de março de 1976” in Em defesa da sociedade:curso no Collège de France
(1975-1976), p.295-297.
77
Cf. FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e a Constituição do Sujeito, p.192-193. Podemos observar
que aqui o autor faz uma diferenciação entre este modelo de poder, que envolve “mecanismos de segurança” à
população, tanto em relação ao modelo de poder jurídico-discursivo que colocava em funcionamento práticas de
exclusão no caso da lepra, assim como ao modelo disciplinar que colocava em prática procedimentos de
vigilância e controle no caso da quarentena da peste.
78
FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e o Direito, p. 193.
79
Cf.,Ibid. ,p. 207-211.
24
que são inerentes à espécie humana, o espaço é organizado como um “meio”
80
para regulá-los.
Pareceria que a tecnologia disciplinar do corpo e a tecnologia
regulamentadora da vida seriam distintas entre si. Contudo, apesar de terem
objetivos diversos, e de terem se desenvolvido separadamente até a transição do
período clássico para o moderno, estes dois mecanismos de poder não atuam no
mesmo nível, o que lhes permitiu uma articulação: “pode-se mesmo dizer que, na
maioria dos casos, os mecanismos disciplinares de poder e os mecanismos
reguladores da população, são articulados um com o outro.”
81
Por esta razão, a
organização do poder sobre a vida é constituída tanto pelos mecanismos
disciplinares como pelos mecanismos reguladores.
“Dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos
que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu
cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo
à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma
parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra. Portanto, estamos
num poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida, ou se
preferirem, da vida em geral, com o pólo do corpo e o pólo da população.
Biopoder, por conseguinte...”
82
Neste contexto do “bio-poder” assim engendrado, o elemento que Foucault
entende que se aplica tanto ao corpo que se pretende disciplinar quanto a uma
população que se pretende regulamentar é a norma. Para ele, “uma sociedade
normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia centrada na vida.”
83
. Mas a
norma que comporta o “bio-poder” também tem uma especificidade que a
singulariza, pois difere da “normalização” disciplinar
84
. Na verdade, no caso da
disciplina, tem-se um procedimento de “normação”, enquanto que o processo de
“normalização” propriamente dito se refere ao “bio-poder”.
80
Cf., Ibid., p. 210. O autor define o “meio” como “o conjunto dos dados naturais e artificiais (aglomerações
dos indivíduos, de casas, de produtos, etc) que se constitui no campo possível para as circulações”.
81
FOUCAULT, M., “Aula de 17 de março de 1976” in Em defesa da Sociedade: curso no Collège de France
(1975-1976), p.299.
82
Ibid., p.302.
83
FOUCAULT, M., VS, p. 190. Tradução brasileira, VS, p.157.
84
Os desdobramentos da idéia de normalização nos trabalhos de Foucault podem ser encontrados in FONSECA,
Márcio Alves da., Michel Foucault e o direito, p. 174-191.
25
O processo da norma disciplinar é o resultado de medidas bastante precisas:
análise, classificação e ordenação dos elementos nos quais a norma se aplica.
Através destas medidas, estabelecem-se os procedimentos de controle, que
subentendem um modelo ideal a ser seguido. A conseqüência disto é a separação
entre o “normal” e o “anormal” daí ser designado como procedimento de
“normação”.
No caso da norma relacionada ao “bio-poder”, o se trata de partir de um
modelo ideal, pois a norma nesse caso “será sempre específica para um
determinado grupo (população), em relação a uma determinada situação (por
exemplo, uma doença), de acordo com uma série de condições.”
85
Aqui, a norma é
fixada a partir do estudo das normalidades, e por isso pode-se falar em processo de
“normalização”. Com efeito, como existe uma articulação entre os mecanismos
disciplinares e os mecanismos de segurança (ou reguladores), Márcio da Alves da
Fonseca entende que:
“...pode-se dizer que a “normalização” (em sentido amplo) envolve
procedimentos de disciplina a que se pode chamar de “normação”,
procedimentos pelos quais, partindo-se da norma, distribui-se algo ou
alguém nas categorias de normal e anormal, e envolve igualmente
procedimentos de segurança, a que se pode chamar de “normalização em
sentido estrito”, pelos quais, partindo-se de um jogo entre normalidades
diferenciais, deduz-se uma norma”.
86
A partir destas considerações sobre a “bio-política”, tentemos compreender de
que modo o sexo está aí articulado. Vejamos um trecho de A vontade de saber.
“O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e á vida da espécie.
Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e como princípio das
regulações. É por isso que, no século XIX, a sexualidade foi esmiuçada em
cada existência, nos seus mínimos detalhes...”
87
85
FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e o Direito, p.214.
86
Ibid., p. 214.
87
FOUCAULT, M., VS, p. 192.Tradução brasileira, VS, p.159.
26
De um lado, o sexo se tornou um alvo estratégico para o poder por se
encontrar na articulação do corpo e da população. Por se situar no corpo, o sexo
depende de um controle de vigilância permanente (Foucault exemplifica com o
controle da masturbação exercido nas crianças entre o período clássico e moderno),
além de um ajustamento e economia da energia. Deste modo, o sexo depende do
controle disciplinar. Mas o sexo também está inserido na regulação à população em
decorrência de todos os efeitos globais que induz, pelos amplos processos
biológicos (por seus efeitos procriadores), que concernem a todo o corpo social.
Assim, o sexo é objeto tanto de técnicas disciplinares como de procedimentos
reguladores, propiciando o desenvolvimento da “tecnologia do sexo” por constituir
importância nas questões biológicas, políticas e econômicas.
De outro lado, o poder tomou o sexo como alvo porque foi possível investir
sobre ele “através de técnicas de saber e procedimentos discursivos.”
88
Ao
mencionar o discurso, entramos em outro importante tema destacado por Foucault
nesta teia que compõe os mecanismos de poder que se desenvolveram em torno do
sexo em A vontade de saber. Mas antes, uma última consideração.
Vimos, portanto, que o “bio-poder” fecha as portas para a sustentação de uma
teoria de poder restrita a uma representação jurídica e negativa e abre, ao mesmo
tempo, a porta para uma outra interpretação histórica sobre o poder. Quanto ao
sexo, expusemos de que maneira ele se articula nessa nova concepção de poder.
Nesse sentido, a análise de Foucault revelou a “presença de uma verdadeira
‘tecnologia’ do sexo muito mais complexa e, sobretudo, mais positiva do que o efeito
excludente de uma ‘proibição’...”
89
Assim, a evidência histórica da “hipótese
repressiva” é desmoronada pelos alicerces desta nova política de poder, que se
instalou no terreno da vida.
88
Ibid., p. 130/ Ibid., p.109.
89
Ibid., p.119/ Ibid. p.101.
27
1.3. Da trama discursiva à “hipótese perversa
Conforme apontamos anteriormente, Foucault não concorda com a “hipótese
repressiva” porque, ao contrário de uma história restritiva em relação ao sexo, ele
encontrou uma história instigadora. Parte desta instigação refere-se aos discursos
sobre o sexo, que receberam a partir do século XVIII uma crescente aceleração, daí
dizer que o sexo foi “colocado” em discurso. A “hipótese repressiva” levantou seu
alicerce em cima da crença da “retirada” do sexo do discurso, ocasionando a
suposta instalação do silêncio.
Mas, antes de abordarmos a noção de discurso presente especificamente em
A vontade de saber, faremos uma exploração do estudo da noção de discurso
desenvolvida por Foucault.
Uma das tarefas implicadas na análise do discurso por Foucault é a análise
da história não pela reconstituição dos encadeamentos contínuos, mas por aquilo
que ela tem de descontínuo
90
. Se para alguns filósofos a descontinuidade era o que
deveria ser suprimido da história para que pudesse surgir a continuidade dos
encadeamentos, para Foucault ela deixa de ser obstáculo para se transformar em
prática. Com esta transformação, o descontínuo deixa de ser o elemento negativo da
leitura histórica, passando a ser seu elemento positivo, a partir do qual é
determinado o seu objeto e validada sua análise. Sendo assim, a análise histórica
dos discursos requer a ruptura com os elementos que têm por função manter a sua
infinita continuidade.
91
“É preciso pôr em questão, novamente, essas sínteses acabadas, esses
agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceitos antes de qualquer
exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início; é preciso
desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito
de interligar os discursos dos homens...”
92
90
Cf. a respeito desta questão ver FOUCAULT, M., A arqueologia do Saber; FOUCAULT, M., “Sobre a
arqueologia das ciências. Resposta ao círculo de epistemologia”, in Arqueologia das ciências e história dos
sistemas de pensamento, p. 82-97.
91
Foucault em A arqueologia do saber, p. 28, diz que não se trata de abolir definitivamente as formas prévias da
continuidade, mas “de sacudir a quietude com a qual as aceitamos”.
92
FOUCAULT, M., A arqueologia do Saber, p. 24.
28
Neste sentido, é preciso renunciar a dois “postulados” interligados das
“irrefletidas continuidades”. Um deles supõe a impossibilidade de irromper um
acontecimento verdadeiro na ordem do discurso, como se houvesse um começo
cuja origem seria sempre buscada, mas nunca alcançada, e por isso mesmo, eterno
recomeço. O outro, ligado ao anterior, supõe que tudo o que o discurso viesse a
formular estaria articulado em um “já dito”, mais traduzido por um “jamais dito” ou
um “não dito”: “um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro,
uma escrita que não passa do vazio de seu próprio traço.”
93
Descartados estes
postulados, o discurso pode ser avaliado de outro modo.
“É preciso acolher cada momento do discurso em sua irrupção de
acontecimento; na pontualidade em que ele aparece e na dispersão
temporal que lhe permite ser repetição, ser sabido, esquecido,
transformado, apagado até em seus menores traços, enterrado, bem longe
de qualquer olhar, na poeira dos livros.”
94
Em “O diálogo sobre o poder”
95
, Foucault explica a relação que estabelece
entre o discurso e o acontecimento.
“O que me interessa, no problema do discurso, é o fato de que alguém disse
alguma coisa em um dado momento. Não é o sentido que eu busco
evidenciar, mas a função que se pode atribuir uma vez que essa coisa foi
dita naquele momento. Isto é o que eu chamo de acontecimento
.”
96
Deste modo, o discurso é entendido como uma série de acontecimentos, daí
Foucault falar em “acontecimentos discursivos”. De todo modo, ele faz afirmações
muito pontuais no texto supracitado que nos possibilita compreender a dimensão da
importância do tema do discurso em seu pensamento. Refere que sua concepção da
93
FOUCAULT, M., “Sobre a arqueologia das ciências. Resposta ao círculo de epistemologia in Arqueologia
das ciências e história dos sistemas de pensamento, p.91.
94
Ibid., p. 91.
95
FOUCAULT, M., “Diálogo sobre o poder” in Estratégia, poder e saber, p. 255.
96
Ibid., p.255.
29
história se fundamenta na análise do discurso
97
e que ao considerar o discurso
como uma série de acontecimentos, penetra-se “automaticamente na dimensão da
história.”
98
“Penso que há, em nossa sociedade e naquilo que somos, uma dimensão
histórica profunda e, no interior desse espaço histórico, os acontecimentos
discursivos que se produziram séculos ou anos são muito
importantes. Somos inextricavelmente ligados aos acontecimentos
discursivos.”
99
Sua “arqueologia” pode ser entendida como a pesquisa que tenta
compreender os acontecimentos discursivos, buscando extrair a maneira como os
mesmos foram registrados. Para tanto, ele procura delimitar um “campo” histórico
com todas as suas dimensões, chamando-o de “campo dos acontecimentos
discursivos”.
100
Neste “campo”, a tarefa estabelecida é a de descobrir as relações
entre os acontecimentos discursivos (o como e o porque das relações) e a descrição
dos fatos do discurso.
Vimos que Foucault não se interessa pelo sentido do discurso e sim pela
função que o mesmo desempenha em determinado campo de “acontecimento
discursivo”. Portanto, descobrir a relação entre os “acontecimentos discursivos” é
compreender: a- qual a função específica que estes têm em relação a outros
acontecimentos; b- distinguir o que constitui estas funções específicas do discurso;
c- buscar a relação existente entre as funções estratégicas de “acontecimentos
discursivos” particulares com um determinado sistema de poder.
101
A descrição dos fatos do discurso fundamenta-se em uma questão: “como
ocorre que tal enunciado tenha surgido e nenhum outro em seu lugar?” ou “qual é
essa irregular existência que emerge no que se diz e em nenhum outro lugar?”
102
Esta questão abarca duas outras: a primeira é a noção de enunciado; a segunda é a
97
Ibid., p. 255.
98
Ibid., p. 256.
99
Ibid., p. 256.
100
FOUCAULT, M., “Sobre a arqueologia das ciências. Resposta ao círculo de epistemologia” in Arqueologia
das ciências e história dos sistemas de pensamento, p. 87.
101
Cf., “Diálogo sobre o poder” in Estratégia, poder-saber, p. 256.
102
FOUCAULT, M., “Sobre a Arqueologia das ciências. Resposta ao círculo de epistemologia.” in Arqueologia
das ciências e história dos sistemas de pensamento, p. 92-93.
30
apreensão do discurso exatamente como ele é. Grosso modo, poderíamos dizer que
o discurso é um conjunto de enunciados
103
e que o enunciado seria, portanto, a
unidade elementar do discurso.
104
Mas o enunciado não é “em si mesmo uma
unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades
possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no
espaço.”
105
Daí Foucault falar em “função enunciativa”, que significa a definição das
condições nas quais uma função se exerce em uma série de signos, possibilitando-
lhes uma existência específica. Assim, o discurso “é constituído por um conjunto de
seqüência de signos, enquanto enunciados, isto é, enquanto lhes podemos atribuir
modalidades particulares de existência.”
106
Com isso, a análise do discurso pode
ser entendida do seguinte modo.
“...trata-se de apreender o enunciado na estreiteza e na singularidade de
seu acontecimento; de determinar as condições de sua existência, de fixar
da maneira mais justa os seus limites, de estabelecer suas correlações com
os outros enunciados aos quais ele pode estar ligado, de mostrar que outras
formas de enunciação ele exclui (...) Deve-se mostrar por que ele não
poderia ser diferente do que é...”
107
Não se procura o que poderia existir por trás de um discurso manifesto,
porque este constitui um conjunto sempre finito e limitado, fazendo com que apenas
determinado discurso possa ocupar um determinado lugar e nenhum outro, não
podendo, portanto, ser diferente do que é. Neste sentido, Paul Veyne refere que
“Foucault não revela um discurso misterioso, diferente daquele que todos nós temos
ouvido: unicamente, ele nos convida a observar, com exatidão, o que assim é
dito.”
108
Mas, afinal, o que fundamenta o conjunto de um discurso? Inicialmente
Foucault pensou que seria o objeto do discurso que o individualizaria, hipótese que
foi descartada por duas razões. Primeiro porque o objeto do discurso não faz, ele
103
REVEL, J., Foucault, conceitos essenciais,p. 37-38. Apesar de Foucault precisar o significado do que entende
por discurso e por enunciado, várias vezes eles são apresentados em seus textos como se fossem uma só e mesma
coisa.
104
Cf., FOUCAULT, M., A arqueologia do saber, p. 90.
105
FOUCAULT, M., A arqueologia do saber , p. 98.
106
Ibid., p. 122.
107
FOUCAULT, M., “Sobre a arqueologia das ciências. Resposta ao círculo de epistemologia”, in Arqueologia
das ciências e história dos sistemas de pensamento, p. 93.
108
VEYNE, P., “Foucault revoluciona a história” in Como se escreve a história, p. 252.
31
mesmo, definições a seu respeito; ao contrário, ele sofre definições (não se pode
pedir, por exemplo, à doença mental que nos informe sobre os seus discursos,
que os discursos foram articulados sobre ela). Segundo porque o objeto de um
discurso pode sofrer alterações ao longo do tempo, não podendo ser entendido
como único (no caso do objeto loucura, este sofreu intensas transformações no
decorrer dos séculos). Assim, se a unidade de um discurso não pode ser constituída
pela permanência e singularidade de um objeto, pode-se dizer que isso se pelo
“espaço comum” no qual os objetos aparecem e se transformam. Esse espaço
comum é feito pelas regras que tornam possíveis em uma determinada época o
aparecimento de determinados objetos; da lei que os exclui ou os torna necessários;
do sistema que os transforma. Em suma, é um conjunto de regras que o está
interessado na identidade do objeto, mas em sua diferença, em sua defasagem e
dispersão; nas transformações nele produzidas, em suas rupturas e na
descontinuidade que impede a sua permanência. Eis um trecho esclarecedor:
“Paradoxalmente, definir um conjunto de enunciados no que ele tem de
individual não consiste em individualizar seu objeto, em fixar sua identidade,
em descrever as características que ele conserva permanentemente; ao
contrário, é descrever a dispersão desses objetos, apreender todos os
interstícios que os separam, medir as distâncias que reinam entre eles em
outros termos, formular sua lei de repartição.”
109
Um critério que tenha como fundamento uma “lei de repartição” não pode se
referir a um objeto como uma unidade Foucault cria o termo referencial. Porém, a
“lei de dispersão” do objeto não é o único critério utilizado para constituir um
conjunto discursivo.
Um segundo critério seria o tipo de enunciação utilizada, partindo do princípio
de que haveria uma forma constante de enunciação, uma série de enunciados
descritivos embasados em um corpus de conhecimento. Mas esta hipótese precisou
ser abandonada porque mais uma vez trata-se de um conjunto de regras, o qual
“não pode obedecer a um modelo único de encadeamento”.
110
Assim, o pressuposto
da constância é substituído por um sistema de repartição, e o modelo único
109
Ibid., p. 99.
110
Ibid., p. 101.
32
substituído por um desdobramento que forma uma diversidade de enunciados.
Portanto, mais do que a integração dos enunciados em uma cadeia sintática, o
que caracteriza o conjunto enunciativo é a coexistência de enunciados dispersos e
heterogêneos, regidos pela lei de dispersão e defasagem, daí Foucault falar em
defasagem enunciativa.
111
O terceiro critério refere-se aos conceitos. Aqui também se partiu da idéia de
permanência e coerência, como se fosse possível uma análise da linguagem
gramatical a partir de conceitos uma vez estabelecidos. O que se observa, no
entanto, não é um conjunto de conceitos coerentes, mas um conjunto de regras de
formação de conceitos, que constituem uma “rede teórica”. Longe de poder ser
considerada um grupo de conceitos no sentido de uma unidade, esta “rede teórica” é
regida, mais uma vez, pela “lei geral de sua dispersão, de sua heterogeneidade, de
sua incompatibilidade (...) – a regra de sua insuperável pluralidade.”
112
Por último, supôs-se que na temática de um discurso se encontraria o
princípio de sua individualização. Isso não se sustentou, porque um mesmo tema
pode estar presente em vários discursos, assim como um único discurso pode levar
a vários temas diferentes. Por isso, mais importante que o tema de um discurso é o
campo estratégico
113
de onde provém o tema de determinado discurso. Esse campo
é também a lei de formação e de dispersão dos temas possíveis.
Através destes quatro critérios todos os aspectos do discurso estão cobertos.
E quando, em um grupo de enunciados, é possível observar e descrever
um referencial, um tipo de defasagem enunciativa, uma rede teórica, um
campo de possibilidades estratégicas, pode-se então estar seguro de que
eles pertencem ao que se poderia chamar de uma formação discursiva.
114
A partir do que foi exposto sobre a noção do discurso, podemos traçar
algumas relações. Dissemos que o discurso seria constituído por um conjunto de
enunciados, e podemos agora entender que esse conjunto se “apóia em um mesmo
111
Cf. Ibid. p. 101.
112
Ibid., p. 103.
113
Ibid., p. 106.
114
Ibid., p. 106.
33
sistema de formação”,
115
a “formação discursiva”. Ora, é portanto, neste sistema,
que o enunciado exerce sua função. É este sistema de formação, “regrado de
diferenças e dispersões”
116
, que permite Foucault falar em diversos discursos
(discurso psiquiátrico, discurso do sexo, etc). Sendo o discurso formado por sua
dispersão, pois Foucault parece enfocar “a série das posições possíveis do sujeito
que fala” e não “sujeitos com uma existência histórica definida”
117
, os diversos
planos onde acontecem esta dispersão são ligados por um sistema de relações, os
quais se estabelecem por uma prática discursiva. Em A arqueologia do saber, ele
define “prática discursiva” como um conjunto de regras que define, em uma
determinada época e numa determinada sociedade, “as condições de exercício da
função enunciativa”.
118
O discurso então não delimita uma unidade, mas segue
determinadas regras, ou seja, existe uma ordem do discurso e cada discurso tem
uma existência própria, enquanto acontecimento. Pode-se dizer com Márcio Alves
da Fonseca que o discurso pensado como acontecimento faz “perceber que na raiz
de todo saber e de todas as práticas estaria o confronto, estariam as lutas e as
relações de poder.” Dito de outro modo:
“O ‘acontecimento’, em que se constituem os discursos, seria o resultado de
conformações de poder que, ao atravessar outros discursos e práticas que
lhes são contemporâneas, os colocaria em relação, geraria efeitos,
permitiria que outras práticas discursivas se formassem.”
119
Feitas estas considerações sobre a noção de discurso desenvolvida por
Foucault, retomaremos a questão dos discursos sobre o sexo. vimos que eles
sofreram uma acentuação, sendo que o mais importante neste acontecimento é que
ele se deu no próprio terreno onde o poder se exerce, pois o discurso serve como
um meio de exercício para o poder
120
. Necessidades políticas e econômicas
115
FOUCAULT, M., A arqueologia do saber, p. 122.
116
FOUCAULT, M., “Sobre a arqueologia das ciências. Resposta ao círculo de epistemologia”, p. 106.
117
ROUANÉ, S. P. “A gramática do homicídio” in O Homem e o discurso, p. 113.
118
FOUCAULT, M., A arqueologia do saber, p. 133.
119
FONSECA, Márcio Alves da., Michel Foucault e o direito, p. 157.
120
FOUCAULT, M., VS, p.45. Tradução brasileira, VS, p. 39.
34
influenciaram esta aceleração, pois foi preciso “regular o sexo por meio de discursos
úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição.”
121
Um dos exemplos é o advento da “população”, enquanto problema político e
econômico, como referimos. No âmago desta situação encontra-se o sexo.
Expliquemos com uma passagem de Foucault.
“...a conduta sexual da população é tomada, ao mesmo tempo, como objeto
de análise e alvo de intervenção (...) Através da economia política da
população forma-se toda uma teia de observações sobre o sexo.”
122
Foucault destaca outros exemplos quando o discurso sobre o sexo foi
estimulado por uma determinada configuração de poder: o sexo das crianças, as
instituições pedagógicas, a medicina e a justiça penal. Através da análise de cada
um destes pontos de instigação, Foucault desfaz a noção da existência do silêncio
ao redor do sexo, mostrando os efeitos desta trama discursiva. E conclui que o sexo
se tornou a partir de então, um assunto necessário:
“Talvez nenhum outro tipo de sociedade jamais tenha acumulado, e num
período histórico relativamente o curto, uma tal quantidade de discurso
sobre o sexo. Pode ser, muito bem, que falemos mais dele do que de
qualquer outra coisa: obstinamo-nos nessa tarefa; convencemo-nos por um
estranho escrúpulo de que dele não falamos nunca o suficiente, de que
somos demasiado tímidos e medrosos, que escondemos a deslumbrante
evidência, por inércia e submissão, de que o essencial sempre nos escapa
e ainda é preciso partir à sua procura. No que diz respeito ao sexo, a mais
inexaurível e impaciente das sociedades talvez seja a nossa.”
123
A expansão discursiva acarreta uma modificação também nos sistemas que
regiam as práticas sexuais. No período clássico, estas práticas eram regidas por três
grandes códigos: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil. Através destes
códigos eram delimitadas as divisões entre o permitido e o proibido em relação ao
121
Ibid ,p.35/Ibid., p.31.
122
Ibid., p.37/ Ibid., p.32.
123
Ibid., p.46/ Ibid., p.39.
35
sexo, em um sistema cujo foco era a relação matrimonial. Mas, a multiplicação
discursiva fez com que o campo da sexualidade também se multiplicasse. Assim, a
sexualidade passa a ser registrada para além do sistema matrimonial, constituindo o
que Foucault denomina de “sexualidades periféricas”
124
. Os perversos foram um
meio para o poder tomar como objeto a sexualidade, e é por esta razão que
Foucault afirma que embora a sociedade ocidental moderna aparentemente tenha
dito “não” a todas as sexualidades “periféricas”, o que realmente ocorreu foi uma
estimulação sexual pelos mecanismos discursivos de poder. Portanto, o crescimento
das perversões:
“É o produto real da interferência de um tipo de poder sobre os corpos e
seus prazeres. Talvez o Ocidente não tenha sido capaz de inventar novos
prazeres e, sem dúvida, não descobriu vícios inéditos, mas definiu novas
regras no jogo dos poderes e dos prazeres: nele se configurou a fisionomia
rígida das perversões.”
125
Importante destacar, também na questão da sexualidade perversa, é o jogo
entre poder e prazer. Jogo no qual poder e prazer o se anulam, mas seguem-se,
entrelaçam-se. Daí Foucault falar em uma espiral de poder-prazer, na qual eles se
encadeiam através de mecanismos complexos e positivos.
126
Foucault coloca abaixo a hipótese de uma sociedade sexualmente reprimida
mostrando que os mecanismos de poder propiciaram exatamente o contrário: uma
sociedade perversa. Desse modo, se ele criou o termo “hipótese repressiva”,
também poderíamos supor que seus estudos apontam uma “hipótese perversa”.
Assim, conclui-se:
“É preciso, portanto, abandonar a hipótese de que as sociedades
industriais modernas inauguraram um período de repressão mais intensa
do sexo. Não somente assistimos a uma explosão visível das sexualidades
heréticas mas, sobretudo e é esse o ponto importante a um dispositivo
bem diferente da lei: mesmo que se apóie localmente em procedimentos de
124
Ibid., p.56/ Ibid., p.48.
125
Ibid., p.65-66/ Ibid., p.55-56.
126
Cf., Ibid., p 62/Ibid., p. 53.
36
interdição, ele assegura, através de uma rede de mecanismos
entrecruzados, a proliferação de prazeres específicos e a multiplicação de
sexualidades disparatadas.
127
2. Por uma transposição da “hipótese repressiva”
2.1. O mapa dos dispositivos com o contorno da sexualidade
Durante o classicismo, o sexo estava centrado no sistema matrimonial, e esta
maneira de reger o sexo foi chamada por Foucault de “dispositivo de aliança”. Este
dispositivo perdeu sua importância à medida que deixava de ser um instrumento
adequado para as necessidades políticas e econômicas. Necessitou-se, portanto, da
criação de um outro dispositivo e foi assim que o “dispositivo da sexualidade”
128
foi
instalado.
Antes de prosseguirmos adiante, levantemos para nossa compreensão e
reflexão, algumas considerações sobre o dispositivo através do cotejo com outros
trabalhos.
Segundo Judith Revel, Foucault utiliza o termo dispositivo a partir de 70, mas
é em A vontade de saber que uma reflexão complexa é realizada. Até o final dos
anos 60 Foucault empregava o termo episteme, designando um dispositivo
especificamente discursivo. O conceito de dispositivo substitui o termo episteme e o
amplia, que o dispositivo é discursivo e não-discursivo, pois reúne também
práticas não-discursivas, estratégias e instituições.
129
127
Ibid., p.67/ Ibid., p. 56.
128
Ibid., p.140/Ibid., p.117.
129
Cf., REVEL, J., Foucault: conceitos essenciais, p.39-40.
37
No estudo “O que é um dispositivo?”, Gilles Deleuze inicia dizendo que muitas
vezes a filosofia de Foucault se “apresenta como uma análise de ‘dispositivos’”.
130
Vejamos alguns aspectos das considerações de Deleuze acerca deste tema. Para
ele, o dispositivo seria um novelo ou meada, composto por linhas de natureza
diferentes, formando um conjunto “multilinear”. Destaca as linhas de visibilidade e de
enunciação; as linhas de força e as linhas de subjetivação. Todas estas linhas que
compõem o dispositivo se movimentam, promovendo afastamentos, aproximações,
desequilíbrios.
As linhas de visibilidade não se restringem à vista, mas ao conjunto de
experiências perceptivas que vêm à luz de um modo específico, segundo um regime
analisável. Do mesmo modo, o enunciado não se restringe à palavras, pois significa
muito mais um regime de enunciações que distribui, a sua maneira, as
discursividades.
131
Numa passagem de “Pensar de outra maneira”, temos que:
“O que se pode concluir é que cada formação histórica e faz ver tudo o
que pode em função das suas condições de visibilidade, assim como diz
tudo o que pode em função das suas condições de enunciado. Nunca há
segredo, se bem que nada seja imediatamente visível nem directamente
legível.”
132
Ou ainda, em “A vida como obra de arte”:
“É preciso pegar as coisas para extrair delas as visibilidades. E a
visibilidade de uma época é o regime de luz, e as cintilações, os reflexos,
os clarões que se produzem no contato da luz com as coisas. Do mesmo
modo é preciso rachar as palavras ou as frases para delas extrair os
enunciados.”
133
130
DELEUZE, G., “Qu’est-ce qu’um dispositif ?” in Michel Foucault, philosophe, p.185. Tradução espanhola:
“Que és um dispositivo?” in Michel Foucault, filósofo, p.155.
131
PELBART, Peter P., Da clausura do fora ao fora da clausura, p.131.
132
DELEUZE, G., “Pensar de outra maneira” in Foucault, p.87.
133
Idem, “A vida como obra de arte”, p.120.
38
As linhas de força remetem ao poder, por este ser um relacionamento de
forças. Como a força nunca existe no singular, cabe a ela se relacionar com outras
forças por um poder que tem, e que a define, de afetar e ser afetada por forças com
as quais esem relação. Portanto, o exercício de poder surge como um “afeto”. Os
afetos podem ser ativos (incitar, produzir, etc) ou reativos (ser incitado, ser
determinado a produzir, etc) e uma mesma força pode, ao mesmo tempo, afetar
forças e ser afetada por outras forças, fazendo com que o campo das forças seja
formado por estes relacionamentos e suas respectivas variações. O poder de ser
afetado pode ser entendido como uma “matéria” da força, e o poder de afetar como
uma “função” da força. Segundo Deleuze, em A vontade de saber a função do poder
seria controlar e gerir a vida.
134
Temos com Deleuze a suposição de que Foucault teria percebido um fechar-
se de seus estudos no tema (linha) das relações do poder-saber até em A vontade
de saber, levando-o a transpor essa linha. Existe o exterior das forças, que se define
pela distância entre uma força e outra: o “Fora”. O “Fora” não é o vazio nem
tampouco um espaço, mas a distância que separa uma força das demais forças,
através da qual as forças se afetam umas às outras. Assim, a linha que está para
além do saber e do poder, e que Foucault sentiu, segundo Deleuze, precisar
transpor, é a linha do “Fora”. Como se Foucault percebesse a necessidade de
“modificar o mapa dos dispositivos”, para o os deixar enclausurados em linhas de
força aparentemente intransponíveis
135
. Apesar de estarmos diante de uma
interpretação de Deleuze, em 1966 Foucault escrevera “O pensamento do
exterior”
136
, no qual ao estudar a linguagem da literatura moderna ocidental, ele a
apresenta como uma “experiência do exterior” ou o “pensamento do exterior”.
“...trata-se muito mais de uma passagem para ‘fora’: (.....) O discurso
literário se desenvolve a partir dele mesmo, formando uma rede em que
cada ponto, distinto dos outros, a distância mesmo dos mais próximos, está
134
Cf. “Pensar de outra maneira” in Foucault, p. 99-102.
135
DELEUZE, G., “ Qu’est-ce qu’un dispositif ?” in Michel Foucault, philosophe, p. 186. Tradução espanhola:
“Que és um dispositivo?” in Michel foucault, filósofo, p. 156. Ver, também sobre este assunto: “A vida como
obra de arte” in Conversações, p. 122-124; “Um retrato de Foucault” in Conversações, p. 130-132.
136
FOUCAULT, M., “O Pensamento do Exterior” in Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 219-242.
39
situado em relação a todos em um espaço que ao mesmo tempo os abriga
e os separa.”
137
Com relação às linhas de forças, Deleuze entende que elas podem ser
ultrapassadas, quando ao invés de afetar outra força afetam-se a si mesmas é
uma linha que escapa às outras, daí ser chamada de linha de fuga. A linha de força
que se volta para si mesma forma, portanto, uma dobra na linha do “Fora” eis a
linha de subjetivação. Portanto, nem um saber e nem um poder, mas a produção de
um processo de subjetivação: “dobras e desdobras, é isto sobretudo o que Foucault
descobre em seus últimos livros como sendo a operação própria a uma arte de viver
(subjetivação).”
138
Uma “filosofia do dispositivo”
139
, segundo Deleuze, acarreta conseqüências.
A primeira é a rejeição ao universal, que todas as linhas de um dispositivo
são linhas de variação. A segunda é a necessidade de distinguir, no dispositivo, o
“arquivo”, o “histórico”, que é a “configuração do que somos e deixamos de ser”,
daquilo que é o “novo”, o “atual”, que é “o que somos em “’devir’”. Esta última
conseqüência reparte, de modo geral, as linhas do dispositivo em “linhas de
estratificação ou de sedimentação” e “linhas de atualização ou de criatividade.”
140
De
todo modo, as idéias de Deleuze aqui apresentadas não correspondem, com
exatidão, à Vontade de saber, sendo antes de tudo um desdobramento das idéias a
partir da leitura de Foucault feita por Deleuze.
Após estas considerações sobre a noção de dispositivo, retomaremos a
questão em A vontade de saber. Podemos perceber que a noção do dispositivo se
encontra ali mais restrita às dimensões do saber e do poder. Pode-se dizer que esta
linha não havia sido transposta. Ilustremos com um trecho de “Sobre a História da
Sexualidade”, no qual Foucault é questionado a respeito do sentido de dispositivo.
137
Ibid., p. 220-221.
138
DELEUZE, G., “Um Retrato de Foucault” in Conversações, p.138. Ver, também a este respeito: “Pensar de
outra maneira” in Foucault, p.117-163.
139
Deleuze trata da filosofia de Foucault como sendo uma “filosofia do dispositivo”, mas poderíamos sustentar
esta afirmação? Ou poderíamos supor que este é um jogo de Deleuze, assim como o próprio nome do livro
Foucault, para trabalhar questões que dizem respeito não exatamente à Foucault mas ao próprio Deleuze?
140
DELEUZE, G., “ Qu’est-ce qu’um dispositif ?” in Michel Foucault, philosophe, p. 190-193. Tradução
espanhola: “Que és um dispositivo?” in Michel Foucault, filósofo ,p.159-161.
40
“O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando
sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele
nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo:
estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo
sustentadas por eles”.
141
Foucault acrescenta também, que o dispositivo seria definido como um
conjunto heterogêneo de elementos formado por discursos, instituições,
enunciados científicos, leis, etc que ele chamou de “o dito e o não dito.”
142
Estes
elementos se relacionam de tal forma que tanto suas posições como suas funções
podem ser modificadas. Em todo caso, o dispositivo tem sempre uma função
estratégica dominante.
A natureza heterogênea do dispositivo é que permite a Foucault falar em
diversos dispositivos, como “dispositivo de aliança”, “dispositivo de sexualidade”, e
outros. Em A vontade de saber, Foucault está interessado em interrogar a natureza
do dispositivo da sexualidade e em investigar a sua função estratégica. Foucault
explica o dispositivo da sexualidade através de quatro conjuntos estratégicos, que
geram dispositivos de saber e poder específicos sobre o sexo. Eles estão agrupados
como se segue.
143
1- “Histerização do corpo da mulher”: ocorreu uma intensa análise do
corpo feminino, por ter sido este considerado totalmente saturado de sexualidade,
possuidor de uma patologia intrínseca e ligado ao corpo social. O corpo da mulher
assim demarcado, possibilitou sobre si a ação do discurso médico. Com isso, o
discurso médico sobre o sexo foi sendo expandido.
2- Pedagogização do sexo da criança: houve um combate contra a
masturbação infantil, em virtude da propagação da existência de uma sexualidade
infantil, considerada ao mesmo tempo natural e perigosa. Porém, os mecanismos
141
FOUCAULT, M., “Sobre a História da Sexualidade in Microfísica do Poder, p.246.
142
Ibid., p.244.
143
Cf., FOUCAULT, M., VS, p.137-138. Tradução brasileira, VS, p. 115-116.
41
criados para combater essa prática não a eliminam, mas expandem os efeitos das
relações de poder.
3- “Socialização das condutas de procriação”: as práticas de procriação
também são alvos das relações de poder, que passam a socializá-las no âmbito
econômico, político e médico.
4- “Psiquiatrização do prazer perverso”: a partir do isolamento do instinto
sexual as condutas passaram a ser classificadas como normais ou patológicas. Para
os instintos patológicos, chamados de perversos, buscou-se uma tecnologia que
pudesse normalizá-los e medicá-los.
Estes quatro conjuntos estratégicos mostram a formação de dispositivos que
aparentemente foram criados para proibir a sexualidade, mas que na verdade
tiveram a função de produzir discursos sobre o sexo. Para Foucault, estas
estratégias são produtoras da sexualidade, pois “a sexualidade é o nome que se
pode dar a um dispositivo histórico...”
144
Este dispositivo histórico teve início no
“dispositivo de aliança”, a partir do qual o “dispositivo de sexualidade” foi instalado.
Foucault caracteriza e distingue os dispositivos de aliança e de sexualidade como se
segue.
O “dispositivo de aliança” está organizado em torno de relações matrimoniais
e contém um sistema de regras definido cujo objetivo principal é a reprodução,
garantindo com isso a estabilidade do corpo social. Este dispositivo está ligado à
economia em função de seu desempenho na transmissão e circulação de riquezas.
O “dispositivo de sexualidade por sua vez, não está preocupado com
relações definidas, mas com as sensações do corpo e a qualidade dos prazeres, e
por isso mesmo funciona através de técnicas móveis de poder, com o objetivo de
controle da população. A principal forma de se ligar à economia é através do corpo.
Foucault não fala da substituição de um dispositivo pelo outro, mas de um sistema
de apoio. Márcio Alves da Fonseca explica:
144
Ibid., p.139/ Ibid., p.116.
42
Foi o próprio núcleo familiar que permitiu o desenvolvimento dos principais
elementos do ‘dispositivo da sexualidade’. Considerada, a partir do século
XVIII, como o local privilegiado de eclosão da sexualidade e de
manifestação dos sentimentos e afetos, a família se estabelece como
suporte permanente para a sexualidade em formação”
145
Segundo Foucault, a família garantiu a produção da sexualidade e ao mesmo
tempo permitiu que novos mecanismos de poder a atravessassem porque: “A família
é o permutador da sexualidade com a aliança: transporta a lei e a dimensão do
jurídico para o dispositivo de sexualidade; e a economia do prazer e a intensidade
das sensações para o regime da aliança”.
146
Mas o que Foucault ressalta é que este processo teve início nas famílias de
classes sociais economicamente privilegiadas. Para ele, a família burguesa foi
pioneira ao considerar que o sexo era algo importante e de conhecimento vasto e
indispensável. A burguesia buscou sua afirmação e sua supremacia econômica e
política diante das outras classes sociais investindo sobre o próprio sexo, pois
concedeu a si própria um corpo que requeria cuidados e proteção, traçando uma
linha de demarcação que singularizou o seu corpo, e isso por meio de mecanismos
de poder e saber que ela própria criou. À medida que o corpo se tornava objeto de
investigação científica, a sexualidade se tornava o grande triunfo através do qual
acontecia o “agenciamento político da vida”
147
por novas formas de distribuição dos
prazeres, dos discursos e dos poderes. Portanto, foi a partir da burguesia que o
“dispositivo de sexualidade” se irradiou para todo o corpo social. Assim, toda esta
situação que envolve a instalação e expansão do dispositivo de sexualidade,
corroborou a recusa à teoria repressiva em torno da sexualidade. No texto “Não ao
sexo rei”, Foucault ressalta a importância de se entender que ele não descarta a
existência e a força das proibições, mas que as concebe numa economia em que
também existem as incitações.
148
Ao destacar os dispositivos, está justamente
mudando o foco que usualmente se evidencia.
145
FONSECA, Marcio Alves da, Michel Foucault e a constituição do sujeito , p.116.
146
FOUCAULT,M.,VS, p.143. Tradução brasileira, VS, p.119.
147
Cf. Ibid., p.159-164/ Ibid., p.132-135.
148
FOUCAULT, M., “Não ao sexo rei” in Microfísica do Poder, p.140.
43
A necessidade de afirmação da burguesia ocorreu uma segunda vez, no
século XIX, mas desta vez a linha de demarcação “não será mais a que instaura a
sexualidade, mas uma outra que, ao contrário, serve-lhe de barreira; o que fará a
diferença será a interdição, ou pelo menos a maneira como se exerce e o rigor com
que é imposta”.
149
Deste modo, inicialmente essa diferença foi demarcada por um
discurso que ressaltava a sexualidade enquanto um “elemento de valor”, e que
portanto, requeria cuidados. Posteriormente, o discurso passa a enfocar a
sexualidade enquanto um “elemento reprimido”. Portanto, do “temos algo de valor”
passou-se a: “temos algo reprimido”. Observemos, doravante, como Foucault sugere
a compreensão da teoria da repressão.
“A teoria da repressão, que pouco a pouco vai recobrir todo o dispositivo de
sexualidade, dando-lhe o sentido de uma interdição generalizada, tem o
seu ponto de origem. Ela é historicamente ligada à difusão do dispositivo
de sexualidade”.
150
Mas uma questão se apresenta: qual a razão para este deslocamento do
discurso feito pela burguesia? Vimos que a representação do poder permanece,
mesmo nas sociedades modernas, vinculada à concepção “jurídica-discursiva”. E
essa concepção não comanda apenas a temática da repressão, como também “a
teoria da lei, enquanto constitutiva do desejo.”
151
Com efeito, toda cultura tem como
limiar a interdição do incesto, fazendo com que a sexualidade, muito tempo,
esteja submetida a esta lei. Porém, o motivo que fez do incesto um princípio
universal social, segundo Foucault, pode ser entendido não pelo fato de uma defesa
contra o desejo incestuoso, e sim para assegurar o desenvolvimento do “dispositivo
de sexualidade”. Ora, apesar do “dispositivo de sexualidade” ignorar as leis e as
formas jurídicas nas quais se pautava o “dispositivo de aliança”, seu
desenvolvimento estava garantido pela afirmação de que toda sociedade estaria
submetida à interdição do incesto. Esta garantia foi a sustentação para o “dispositivo
de sexualidade” penetrar na família, tornando-a um elemento tático deste dispositivo.
Deste modo, ao mesmo tempo que a família faz uma rigorosa interdição do incesto
149
FOUCAULT, M., VS, p.169. Tradução brasileira, VS, p.140.
150
Ibid., p.169/ Ibid., p.140.
151
Ibid., p.109/ Ibid., p.92.
44
por ser a representante do “dispositivo de aliança”, ela o solicita ininterruptamente
para que “seja realmente um foco permanente de incitação à sexualidade”,
152
garantindo o desenvolvimento do “dispositivo de sexualidade”. Quanto à família
burguesa, apesar de ter sido ela a iniciadora para a instalação do “dispositivo de
sexualidade” garantindo assim sua diferenciação de classe aos poucos este
dispositivo foi sendo alastrado para todas as classes sociais, tornando o sexo um
“elemento de valor” para todo o corpo social. É neste ponto que a interdição ao
incesto se torna significativa. Vemos nessa época a inserção da psicanálise, que
concebe o sexo sob o domínio da lei do desejo incestuoso, justamente por se dizer
possuidora do método que permite eliminar os efeitos desta interdição. Mas a
psicanálise assume esta tarefa para aqueles que estão em condições de recorrer a
ela. Ora, a partir daí, afirmar a repressão torna-se a justificativa necessária para a
busca deste método psicanalítico, que desempenha “um papel diferenciador, num
dispositivo de sexualidade agora generalizado.” Portanto,
“os que tinham perdido o privilégio exclusivo de se preocupar com sua
própria sexualidade têm, doravante, o privilégio de experimentar mais do
que outros o que a interdita, e possuir o método que permite eliminar o
recalque.”
153
A respeito do “dispositivo de sexualidade”, ainda é necessário compreender
seu modo de atuação. Tal dispositivo atuou a partir do aperfeiçoamento da cnica
da confissão, cuja utilização principia com as necessidades da pastoral cristã e se
expande para outras relações. Sempre embasada no princípio de que confessar era
dizer a verdade, a civilização ocidental se desenvolveu com esta noção da fala
relacionada à verdade do homem, o que propiciou a utilização da confissão em
diversas áreas, inclusive na sexual. Daí a criação de uma ciência relacionada ao
sexo. Abordaremos estas questões vinculadas à confissão enfocando primeiramente
o crescente uso da confissão do sexo e posteriormente as conseqüências deste
crescimento até sua evolução em ciência sexual.
152
Ibid., p. 144/ Ibid., p.120.
153
Ibid., p. 172/ Ibid., p.142.
45
2.2. A verdade da confissão ou a confissão para uma verdade
O interesse de Foucault nas questões relacionadas à confissão partiu de sua
observação da aceleração discursiva que se deu em torno do sexo. Foi na busca da
origem histórica da “colocação do sexo em discurso” que ele se deparou com uma
outra aceleração discursiva, relacionada à confissão. A partir do Concílio de Trento,
no século XVI, a igreja católica acelerou o uso da confissão por duas razões, que se
inter-relacionam. Passou a ser necessário o exame de si mesmo e a confissão era o
meio para esse fim: “O desejo de conhecer a verdade sobre si mesmo exerce sobre
o indivíduo um poder que o seduz e o faz confessar.” Além disso, a penitência em
relação a tudo o que dizia respeito ao sexo adquire mais importância, porque a
origem de todos os pecados passa a ser colocada na carne. Ora, isto provoca
“a idéia de que é dentro do corpo e dos seus desejos que pode ser
encontrada a verdade mais profunda sobre o ser humano. É assim que os
desejos, os pensamentos e as práticas sexuais se tornam matéria
privilegiada de confissão.”
154
Eis a origem do projeto que vinculou o sexo à palavra e a verdade ao sexo: “A
pastoral cristã inscreveu, como deve ser fundamental, a tarefa de fazer passar tudo
o que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra.”
155
O discurso-confissão não se pautava em narrar apenas os atos que violassem
as leis do sexo, mas tudo o que se relacionava ao sexo: desejos, pensamentos,
sonhos, prazeres, sensações. E este discurso, que antes era realizado pela simples
confidência, aos poucos começa a fazer parte de um ritual, com o estabelecimento
de um indivíduo apropriado para ouvir, que a verdade poderia ser conhecida
por quem soubesse interpretá-la e traduzi-la. Assim, “está montado um ritual que se
em uma relação de poder.”
156
Márcio Alves da Fonseca destaca a existência de
um modelo histórico para este tipo de confissão. Os Tribunais da Inquisição,
instituídos principalmente na Itália, entre os séculos XVI e XVIII, exerciam uma
154
FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e a constituição do sujeito, p.92.
155
FOUCAULT, M., VS, p. 30. Tradução brasileira, VS, p.27.
156
FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e a constituição do sujeito, p.93.
46
influência persuasiva no acusado, e com isso todos os detalhes de sua vida eram
expostos. Nesta técnica da confissão vinculada ao sexo, não mais este caráter
persuasivo, mas “há, por outro lado, a vontade de saber, lentamente formada e
incutida pelas relações de poder.”
157
O uso da confissão foi progressivamente difundido para diversos campos no
período clássico, e com isso muitas relações passaram a funcionar permeadas por
esta cnica: pedagogos e alunos, pais e filhos, peritos e delinqüentes, médicos e
doentes. Difundiram-se também os métodos como esta técnica da confissão era
utilizada, dependendo do tipo de relação em que era aplicada. Estas transformações
ocorridas com a confissão ganharam, nesta época, um reforço importantíssimo.
Passou a existir um interesse político e econômico nesse discurso sobre o sexo, na
medida em que os discursos sobre o sexo passaram a ser essenciais para os
mecanismos de poder. Todas estas transformações acarretaram “a transferência da
confissão sexual para a matriz do poder...”
158
A principal transferência ocorre no
século XIX, com a institucionalização desta prática pelo modelo científico. Toda a
técnica desenvolvida para a confissão do sexo passou a funcionar segundo as
normas científicas. O que não se transformou, mas foi sempre mais reforçado, foi o
fato de que o “discurso-sedutor” permanecia sendo a produção da verdade:
“Vivemos em uma sociedade que em grande parte marcha ‘ao compasso da
verdade’ ou seja, que produz e faz circular discursos que funcionam como
verdade, que passam por tal e que detêm por este motivo poderes
específicos.”
159
Cabe salientar que em 1978
160
Foucault, apoiado nas idéias de Paul Veyne,
faz algumas considerações sobre a pastoral cristã, que parecem complementar o
que apresentara em A vontade de saber.
O cristianismo teria sido responsabilizado pelas proibições feitas à
sexualidade dentro do modelo tradicional da sua história no ocidente. Mas Foucault
refere que os trabalhos de Veyne apontam a existência dos princípios da moral
157
Ibid., p.95.
158
Ibid., p.96.
159
FOUCAULT, M., “Não ao sexo rei” in Microfísica do Poder, p. 231.
160
FOUCAULT, M., “Sexualidade e poder” in Ética, sexualidade, política, p. 62-72.
47
cristã, no mundo romano, antes mesmo do cristianismo. Porém, dizer que o
cristianismo não é o responsável pelas proibições à sexualidade não significa que
ele não tenha desempenhado algum papel na sua história. Com efeito, o seu papel
não foi o de “introduzir novas idéias morais”
161
para a história da moral sexual, mas
o de trazer novas técnicas. Assim, são os novos mecanismos de poder que o
cristianismo introduziu, que devem ser analisados na história da sexualidade
ocidental.
Trata-se do poder “pastoral”. É um tipo de poder que se exerce de um
indivíduo sobre outros indivíduos e não sobre um território. Deste modo, os padres
se transformaram nos “pastores da comunidade cristã.” A partir desta organização
“desenvolveu-se um mecanismo de poder muito importante para toda a história do
Ocidente cristão e, particularmente, para a história da sexualidade.”
162
Esta
organização trouxe conseqüências na vida dos homens. Em primeiro lugar, a
existência de um pastor fez com que os cristãos fossem obrigados a buscar a sua
salvação. Com efeito, o poder do pastor pela autoridade que representa obriga “as
pessoas a fazerem tudo o que for preciso para a sua salvação: salvação
obrigatória.”
163
Em segundo, essa salvação é atingida por aqueles que aceitarem
a autoridade do pastor. Em terceiro, o poder do pastor era tal que lhe permitia exigir
obediência absoluta e incondicional.
Além do pastor vigiar o comportamento de suas ovelhas e de saber o que
cada um do seu rebanho faz ele também deve conhecer o interior de cada um
desses indivíduos, saber os seus segredos. O pastor exige esse conhecimento e o
cristão obediente diz ao seu pastor tudo o que se passa no seu interior. Estamos
diante da prática da confissão, que vai sendo exaustivamente utilizada porque
através dela se produz uma verdade até então desconhecida. Deste modo
desenvolveu-se a consciência que cada um deveria ter a respeito de suas
fraquezas, fazendo com que os prazeres sexuais se tornassem fonte de
investigação.
“Creio que a técnica de interiorização, a técnica de tomada de consciência ,
a técnica do despertar de si sobre si mesmo em relação às suas fraquezas,
161
Ibid., p. 67.
162
Ibid., p. 67.
163
Ibid., p. 68.
48
ao seu corpo, à sua sexualidade, à sua carne, foi a contribuição essencial
do cristianismo à história da sexualidade.”
164
Portanto, o papel do cristianismo na história da sexualidade não foi apenas o
de interdição, mas principalmente o da instalação deste mecanismo de poder e
controle do pastorado, no qual a confissão encontrou um lugar especial. Este
mecanismo de poder era, ao mesmo tempo, mecanismo de saber e de produção de
verdade.
165
2.3. A verdade do sexo: a história de outra verdade
Foucault considera que a instauração da prática médica vinculada ao discurso
sobre o sexo, no século XIX, fez do sexo um objeto da verdade. Posto que o sexo
passa a estar atrelado à verdade, julgamos conveniente um breve esclarecimento
do conceito de verdade nos estudos de Foucault.
Abordar a questão da verdade em Foucault seria uma tarefa bastante ampla,
por isso nos deteremos em enfoques deste tema que nos permitirão uma costura
com noções aqui já mencionadas, como o acontecimento, o poder e o discurso.
Foucault entende que aquilo que podemos classificar como verdadeiro foi
produzido historicamente como acontecimento, num tempo e num espaço
específicos
166
. Assim, a verdade o se encontra definida no status daquilo que é,
mas do que acontece. Neste sentido, não uma verdade evidente, previsível,
contínua e universal, mas uma perspectiva da verdade que é descontínua, não
universal e dispersa. Ora, se aquilo que é reconhecido como verdadeiro não pode
ser válido em todo lugar, torna-se inútil a busca pela distinção entre o verdadeiro e o
164
Ibid., p. 71
165
Cf., p. 70-72.
166
A respeito da verdade enquanto indissociável do acontecimento, ver: FOUCAULT, M., “Nietzsche, a
genealogia e a história” in Microfísica do poder, p.15-37.; CANDIOTTO, C., Foucault e a verdade, p. 60-65
(tese de doutorado em filosofia PUC-SP- 2005); CANDIOTTO, C., “Verdade, confissão e desejo em Foucault”
in Revista Observaciones filosóficas, p. 1-15; CANDIOTTO, C., “Foucault: uma história crítica da verdade” in
Revista transformação, p. 1-9; CANDIOTTO, C., “Verdade e diferença no pensamento de Michel Foucault” in
Kriterion: revista de filosofia, p. 1-9.
49
falso. A busca necessária para se compreender esta perspectiva histórica da
verdade é a que se em termos dos mecanismos e estratégias de poder, que “a
verdade não existe fora do poder ou sem o poder”.
167
Assim, pode-se dizer que cada
sociedade funciona através de um determinado “regime de verdade”,
168
que são
“...os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona
como verdadeiro
.”
169
O “regime da verdade” de uma determinada sociedade está relacionado aos
seus “jogos de verdade”, isto é, não se trata da “descoberta do que é verdadeiro,
mas das regras segundo as quais aquilo que um sujeito diz a respeito de um certo
objeto decorre da questão do verdadeiro e do falso.”
170
Esse dizer é uma das
características fundamentais de uma “economia política” da verdade, pois “a”
verdade está centrada no discurso científico. Conforme apontada anteriormente, a
respeito da relação existente entre discurso e poder, podemos então compreender
que o discurso é investido historicamente de uma verdade, pelos mecanismos de
poder. Tem-se deste modo efeitos de verdade e não uma verdade absoluta a
noção de verdade eterna é substituída pela de verdade provisória.
“Ora, creio que o problema não é de se fazer a partilha entre o que num
discurso releva da cientificidade e da verdade e o que relevaria de outra
coisa; mas de ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no
interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos.”
171
167
FOUCAULT, M., “Verdade e Poder” in Microfísica do Poder, p. 12.
168
Foucault ora usa o termo “regime da verdade”, ora usa , com o mesmo significado, “economia política da
verdade” .
169
Ibid., p.12.
170
REVEL, J., Foucault :conceitos essenciais, p. 87.
171
FOUCAULT, M., “Verdade e poder” in Microfísica do poder , p. 7.
50
Disso decorre a proposta de Foucault em seus estudos, que seja a de estudar
a articulação entre os “jogos de verdade” e as estratégias de poder, por entender
que a verdade é historicamente produzida. Trata-se da história feita de
descontinuidade, de acaso e de luta, onde não pode morar uma verdade sempre a
mesma. Ora, nesse caso não poderia haver também um objeto da verdade sempre o
mesmo. Temos com Paul Veyne,
172
leitor de Foucault, que
“....o que é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento
da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prática, se
explica a partir do que é feito.”
173
Os objetos, deste modo, são apenas “correlatos das práticas” e por isso seria
uma ilusão pensar no “objeto natural”: o poder, a sexualidade, a loucura, etc. Uma
vez que os objetos existem apenas mediante as práticas que os constituem, não se
pode falar em verdade ou erro, não porque seria impossível encontrar tal verdade,
mas porque o objeto dessa verdade o existe. Talvez pudéssemos dizer que o
objeto não é, mas passa a ser, através da relação com a prática que o objetiviza: “a
loucura não existe: existe sua relação com o resto do mundo”.
174
“A obra, como individualidade que, supostamente, deve conservar sua
fisionomia através dos tempos, não existe (só existe sua relação com cada
um dos intérpretes), mas ela é algo: ela é determinada em cada relação
(...)O que existe, em compensação, é a matéria da obra, mas essa matéria
não é nada enquanto a relação não faz dela isso ou aquilo
.”
175
172
As considerações doravante de Paul Veyne se encontram no texto “Foucault revoluciona a história”, in Como
se escreve a história, p. 239-281. As contribuições de Veyne para a questão da verdade encontram-se
fundamentadas nos estudos de Nietzsche e Foucault, por isso denominar de aspecto nietzschiano-foucaultiano da
verdade. Porém, temos com Yolanda Gloria Gamboa Muñoz, “Ideologia e concepção Nietzschiano-Foucaultiano
da verdade” in Escolher a montanha,p. 41-49, que embora Foucault tenha percorrido a perspectiva levantada por
Nietzsche, ele se diferencia, criando um ângulo particular.
173
Ibid., p. 257.
174
Ibid., p. 276.
175
Ibid., p. 278.
51
Essa relação da prática com seu objeto nos permite entender que em cada
época, em determinado ponto, as práticas constituem um “rosto histórico singular”, o
qual pode ser reconhecido como verdadeiro. Mas, em outra época, no mesmo ponto,
poderá ser um outro rosto, muito diferente do anterior e nem por isso menos
verdadeiro. É isso que permite a Foucault pensar na não existência dos objetos
naturais, que não há, “através do tempo, evolução ou modificação de um mesmo
objeto que brotasse sempre no mesmo lugar.”
176
Feitas as considerações sobre a verdade no pensamento de Foucault,
transportemos estas considerações para a esfera do sexo. Talvez pudéssemos
supor que Foucault estaria procurando qual foi o “rosto” singular que a modernidade
desenhou, na tela dos discursos e com a tinta do poder, para mostrar a verdade do
sexo.
Retomando A vontade de saber, vemos que Foucault discorre sobre dois
modelos que historicamente produziram a verdade do sexo. Algumas civilizações,
como a China, Japão, Índia, Roma antiga e as nações árabes-muçulmanas
produziram uma ars erotica, enquanto a sociedade ocidental criou uma scientia
sexualis.
Segundo a arte erótica, é no prazer sexual que se encontra a verdade do
sexo, sem que para isso haja a intervenção de uma lei ou de critérios científicos.
Com isso, o saber está centrado na própria prática sexual, pois o prazer se constitui
como um fim em si mesmo.
Segundo a ciência sexual, é através da confissão, que se constitui como um
poder-saber, que a verdade do sexo é alcançada. O saber do sexo é adquirido na
prática da confidência.
Ao longo da história, alguns processos conduziram à atribuição do caráter de
cientificidade à confissão. Estes processos são destacados por Foucault.
176
Ibid., p. 269.
52
1- O relato feito pela confissão passa por um processo de codificação
(interrogatório, hipnose, associação-livre, etc), através do qual o que é falado possa
ser aceito pelos padrões cientificamente aceitáveis.
2- É concedido ao sexo, no século XIX, um poder de causalidade inesgotável.
Com isso, quase todas as doenças ou distúrbios passavam pela suspeita do crivo
sexual, estando justificada a necessidade de confissão.
3- Ocorre a divulgação do preceito de que seria natural ao sexo ocultar-se.
Assim, existiria algo na sexualidade que estaria escondido do próprio sujeito, criando
a exigência de um interrogador habilitado cientificamente.
4- A verdade revelada pela confissão precisa ser decifrada por aquele que
escuta, estabelecendo com isso o método interpretativo da confissão e
regulamentando o seu caráter científico.
5- O sexo é colocado como instância norteadora do normal e do patológico,
definindo uma morbidez do sexual e tornando a confissão indispensável na prática
médica.
O desenvolvimento desta ciência sexual tendo como técnica principal a
confissão e como objetivo a liberação por meio do alcance à verdade, tornou o
homem, no ocidente, um animal confidente. Foucault considera que incorporamos
de tal forma a obrigação da confissão, que não conseguimos mais identificá-la como
conseqüência dos mecanismos de poder. Pelo contrário, se esta verdade não puder
ser revelada é porque houve a coação do poder. Isso fez com que a confissão
adquirisse o status de liberação, ficando o poder relacionado ao silêncio. Eis o que
ele escreve:
“É preciso estar muito iludido com esse ardil interno da confissão para
atribuir à censura, à interdição de dizer e de pensar, um papel fundamental;
é necessária uma representação muito invertida do poder, para nos fazer
acreditar que é de liberdade que nos falam todas essas vozes que tanto
tempo, em nossa civilização, ruminam a formidável injunção de devermos
dizer o que somos, o que fazemos, o que recordamos e o que foi
53
esquecido, o que escondemos e o que se oculta, o que não pensamos o
que pensamos inadvertidamente.”
177
Portanto, a história da ciência sexual é a história da verdade do sexo
colocada em discurso, pela confissão, numa relação de poder. Nas palavras de
Márcio Alves da Fonseca: “O que a ciência sexual faz é construir um arquivo dos
prazeres, a partir dos efeitos da atuação do dispositivo da sexualidade.”
178
Foi
através deste dispositivo, produtor de discursos verdadeiros, que pôde surgir a
“sexualidade”, no sentido de verdade do sexo. Neste ponto, é importante salientar
que “sexo” e “sexualidade” não têm o mesmo significado em A vontade de saber.
Judith Revel entende que o tema da “sexualidade”, para Foucault, aparece
“como o prolongamento de uma analítica do poder.”
179
Por isso, o tema da
“sexualidade” encontra-se muito associado ao do discurso. Escrevera ele:
“A história da sexualidade isto é, daquilo que funcionou no século XIX
como domínio de verdade específica deve ser feita, antes de mais nada,
do ponto de vista de uma história dos discursos.”
180
A noção “do sexo”, por sua vez, não é o ponto no qual as manifestações da
sexualidade se apoiaram
181
, mas a “idéia complexa historicamente formada no seio
do dispositivo da sexualidade”.
182
Assim, conforme se desenvolveu o “dispositivo de
sexualidade” elaborou-se:
“a idéia de que existe algo mais do que corpos, órgãos, localizações
somáticas, funções, sistemas anátomo-fisiológicos, sensações, prazeres;
algo diferente e a mais, algo que possui suas propriedades intrínsecas e
suas leis próprias: o sexo”.
183
177
FOUCAULT, M., VS, p. 81. Tradução brasileira, VS, p.69.
178
FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e a constituição do sujeito, p.98.
179
REVEL, J., Foucault: conceitos essenciais, p.80.
180
FOUCAULT, M., VS , p.92. Tradução brasileira, VS, p.78.
181
Cf., p. 166.
182
Ibid., p. 201/Ibid., p.166.
183
FOUCAULT, M., VS, p. 201. Tradução brasileira, VS, p.166.
54
Deste modo, foi o dispositivo de sexualidade, através das diferentes
estratégias com as quais se desenvolveu (pelo processo da histerização feminina,
pela sexualidade da criança, pelas perversões e práticas de procriação), que
estabeleceu a idéia do “sexo”. A noção do “sexo”, assim estabelecida, surge como
um “jogo do todo e da parte, do princípio e da falta, da ausência e da presença, do
excesso e da deficiência, da função e do instinto, da finalidade e do sentido, do real
e do prazer”.
184
Eis os pilares da construção da teoria do sexo. Com efeito, esta
teoria tornou-se indispensável ao “dispositivo de sexualidade” por desempenhar nele
algumas funções, sendo três as destacadas por Foucault.
1- Devido ao fato de conter uma série de elementos, a noção de “sexo”
“pôde funcionar como significante único e como significado universal.”
185
2- A unidade que o “sexo” representa lhe permitiu a ligação entre um
saber sobre a sexualidade humana e as ciências biológicas de reprodução, com
caráter de cientificidade. Esta mesma ligação propiciou a alguns conteúdos da
biologia e da fisiologia funcionarem como princípios de normalidade para a
sexualidade.
3- A forma como esta idéia do “sexo” se apresenta permite inverter a
relação entre o poder e a sexualidade de tal maneira que o poder pode ser
pensado como lei e interdição.
Um dos fundamentos essenciais do “dispositivo de sexualidade” é que a
“criação deste elemento imaginário que é ‘o sexo’”
186
promoveu em cada um de nós
o desejo do sexo. Assim, é este desejo que nos impulsiona a querer conhecê-lo, a
descobrir os seus segredos, a liberá-lo; sobretudo é este desejo que nos faz
acreditar que temos direito ao nosso sexo e para isso estamos indo contra o poder.
Toda a importância que atribuímos ao sexo vem do fato de acreditarmos, pelas
estratégias do “dispositivo de sexualidade”, que é através do sexo que temos acesso
à nossa inteligibilidade, à plenitude de nosso corpo e à nossa identidade. A grande
ironia deste dispositivo está no fato de acreditarmos que é nele que se encontra a
184
Ibid., p. 203/ Ibid., p.168.
185
Ibid., p. 204/ Ibid., p.168.
186
Ibid., p. 207/ Ibid., p.171.
55
nossa liberação
187
. As questões que concernem ao “sexo” e à “sexualidade” podem
ser assim organizadas:
“...não referir uma história da sexualidade à instância do sexo; mostrar,
porém, como ‘o sexo’ se encontra na dependência histórica da
sexualidade. Não situar o sexo do lado do real e a sexualidade do lado das
idéias confusas e ilusões; a sexualidade é uma figura histórica muito real, e
foi ela que suscitou, como elemento especulativo necessário ao seu
funcionamento, a noção do sexo. Não acreditar que dizendo-se sim ao
sexo se está dizendo o ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha
do dispositivo geral da sexualidade.”
188
Por fim, Foucault se pergunta se não existiriam traços de uma arte erótica
vinculados ao nosso saber sobre a sexualidade, justamente porque nota que a ars
erotica não desapareceu completamente da civilização ocidental. Para ele, existem
“como que fragmentos errantes de uma arte erótica, vinculados em surdina pela
confissão e a ciência do sexo”, encontrados nos prazeres que se ligam à produção
da verdade sobre o sexo. Se não conseguimos inventar novos prazeres, pelo menos
criamos “um outro prazer: o prazer na verdade do prazer.”
189
Considerações Finais
Todo este percurso pelo qual transitamos em A vontade de saber, parece nos
levar a um único lugar: o da história da sexualidade. A preocupação de Foucault
desde o início era fazer uma análise genealógica dos mecanismos de poder que
estariam relacionados à produção de saberes sobre o sexo, na sociedade moderna.
Poderíamos então dizer que A vontade de saber é um texto de relações. Curioso é
que, neste cenário onde Foucault nos faz respirar história por todos os poros, eis
187
Cf. Ibid., p. 211/ Ibid., p. 174.
188
Ibid., p. 207/ Ibid., p.171.
189
Ibid., p. 95/ Ibid., p. 81.
56
que surge uma fábula. Ora, se partimos do pressuposto que nos encontramos com
um texto relacional, qual seria, portanto, a relação deste suspiro ficcional lançado
neste cenário histórico?
57
CAPÍTULO II – O sexo entre a fábula e a história
Considerações Iniciais
Em determinada passagem de A vontade de saber, Foucault refere-se a este
estudo como sendo o “das relações entre o poder e o discurso sobre o sexo”
190
. No
percurso do primeiro capítulo, tentamos mostrar os vieses desta relação,
percebendo a importância fundamental desempenhada pelo discurso na busca pela
verdade do sexo. Com efeito, ao longo deste primeiro volume da História da
Sexualidade, o problema para Foucault foi procurar saber como se produziu,
historicamente, discursos com efeitos de verdade sobre o sexo no cerne deste
problema, o poder. Mas, se a análise de Foucault marcha ao compasso da história
compasso descontínuo, com ritmos ora frenéticos ora silenciosos, mas sempre
história o que o faz, em determinado momento desta análise, recorrer ao apoio de
uma fábula?
191
Com efeito, o capítulo nomeado “O dispositivo de sexualidade” assim se
inicia: “Nesta série de estudos, de que se trata? Transcrever em história a fábula das
Jóias indiscretas”.
192
Como poderíamos entender a relação desta fábula com a
proposta (histórica) de seu estudo nos termos das relações entre o poder e o
discurso sobre o sexo? Em outras palavras, que lugar teria a ficção neste reino onde
impera a história da verdade? Não se trata de discorrer pormenorizadamente sobre
o que é a ficção, mas de buscar o sentido do discurso ficcional neste primeiro
volume de História da Sexualidade. Entretanto, se nosso olhar não deixa passar
despercebida a fábula (de Diderot) dentro desta história, pensamos não poder deixar
de mencionar as raízes desta história na fábula (de Nietzsche). Em Crepúsculo dos
190
FOUCAULT, M., VS, p. 119. Tradução brasileira, VS, p.101.
191
Cf., Ibid., toda a referência a esta fábula encontra-se em FOUCAULT, M., VS, capítulo IV, “Le dispositif de
sexualité” ,p. 99-105. Tradução brasileira , VS, “O dispositivo da sexualidade”, p.85-90. Importante observar que
a referência a Diderot, em A vontade de saber, não é a única e tão menos a primeira que Foucault faz em seus
estudos. Encontramos, por exemplo, na terceira parte de Histoire de la folie referências e comentários de
Foucault sobre Le neveu de Rameau.
192
Ibid., p. 101/Ibid., p. 87. Esta questão será retomada no segundo momento deste capítulo.
58
Ídolos
193
, para abordar “o mundo verdadeiro”, Nietzsche escreve uma fábula
194
, que
contém algumas de suas idéias sobre a questão da “vontade de verdade”
195
, e que
poderá nos auxiliar na compreensão da crença na verdade do sexo.
Este segundo capítulo procurará levantar, ainda que numa visão bastante
sucinta, algumas relações que podemos extrair deste primeiro volume da História da
Sexualidade: verdade-ficção, discurso ficcional-discurso verdadeiro, fábula-história.
Escolhemos para nossas considerações a relação da fábula de Diderot com o texto
em questão, a fim de podermos compreender o significado que ela pode suscitar
para compreendê-lo e refletir sobre ele.
O presente capítulo foi dividido em três momentos.
No primeiro momento, encontraremos as considerações de Foucault sobre a
noção de ficção e, conseqüentemente, sobre seu modo de compreender a
linguagem nestas obras literárias. Com isto, teremos como refletir acerca do discurso
ficcional, assim como traçar prováveis relações com os discursos “verdadeiros”.
Partindo da noção que a compreensão daquilo que chamamos de “falso” e de
“verdadeiro” são fundamentais para este tema dos discursos, recorreremos ao texto
de Nietzsche, “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente uma fábula”, para
mostrarmos, sem nos aprofundarmos, em que estaria baseada a sustentação do que
chamamos de “mundo verdadeiro”, ou dito de outro modo, na crença na verdade. A
inserção deste estudo de Nietzsche pretende apontar outras possibilidades de se
refletir a questão do “verdadeiro” (não se trata, porém, de um estudo sobre a noção
nietzschiana da verdade), sem que necessariamente desemboquemos na idéia do
“falso”. Isto nos servirá de base para a reflexão que virá a seguir com o estudo de
Diderot.
No segundo momento, apresentaremos a fábula de Diderot, as Jóias
indiscretas. Iniciaremos com uma breve reconstituição da fábula e em seguida
pinçaremos, grosso modo, algumas características da escrita diderotiana. Diderot é
193
NIETZSCHE, F., “Como o verdadeiro mundo se tornou finalmente uma fábula”, p. 332-333.
194
Estaremos nos reportando ao texto de Nietzsche como sendo uma fábula baseados no texto de Yolanda Gloria
Gamboa Muñoz, “Ideologia e ‘concepção nietzschiano-foucaultiana da verdade’” in Escolher a montanha, p. 41-
49.
195
Se o nome A Vontade de saber é ou não uma homenagem à Nietzsche (“vontade de verdade”), como supõem
alguns autores, o importante é que, independente do nome, existe uma questão relacional entre estes estudos.
59
considerado um dos grandes destaques do “Século das Luzes” porque através de
suas obras e idéias encontramos a “base não do movimento do Racionalismo do
francês ilustrado, como do processo de toda a modernidade filosófica, política,
científica, literária e artística.”
196
Isto nos dá uma idéia da dimensão de complexidade
de seu significado e suas influências em diversos meios (ocasionando inclusive
muitos mal entendidos). Não é nossa tarefa um aprofundamento de toda essa
complexidade que existe nos estudos de Diderot. Rastrearemos apenas os aspectos
que possam nos ajudar a refletir sobre a sua relação com o estudo de Foucault, os
quais parecem estar ligados à linguagem e à sua forma de conceber o “real” nas
suas produções fictícias.
No terceiro momento, buscaremos ressonâncias e dissonâncias entre as
Jóias indiscretas e A vontade de saber.
1. O pêndulo fictício
1.1 Distâncias e proximidades do discurso ficcional
Entre o fictício e o verdadeiro parece existir, dentro da proposta dos estudos
de Foucault, algo que transpõe a barreira das semelhanças e diferenças. No texto
“Distância, Aspecto, Origem”
197
, ao analisar diferentes obras literárias da
modernidade
198
, afirma que
“...não se tratava de levar em conta as originalidades, mas de estabelecer,
de uma obra a outra, uma relação visível de seus elementos e que não seja
da ordem da semelhança (....) nem da ordem da substituição (...): uma
relação tal que as obras possam se definir algumas diante, ao lado e à
distância das outras, baseando-se ao mesmo tempo em sua diferença e em
196
GUINSBURG, J., “Diderot: o espírito das ‘Luzes’” in Filosofia e política, “Obras I”, p. 47.
197
FOUCAULT, M., “Distância, Aspecto, Origem” in Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 60-74.
198
Trata-se predominantemente das obras de Alain Robbe Grillet e Philippe Sollers.
60
sua simultaneidade e definindo, sem privilégio nem apogeu, a extensão de
uma rede.
199
Diz também que existe o “intermediário”, que não seria um espaço, nem
mesmo uma região ou uma estrutura, mas uma relação, um movimento através do
qual se “contempla o idêntico” e não a diferença. Por isso, as separações entre “real
e virtual, percepção e sonho, passado e fantasma (...) têm apenas o valor de serem
momentos de passagem, mediadores mais do que sinais...”
200
Este intermediário é a
própria ficção.
Assim, se as obras literárias podem criar entre si esta rede, e se os signos
encontrados na ficção podem ser entendidos enquanto mediadores de uma relação,
poderíamos nos perguntar se e qual seria, a rede criada entre a verdade e a
ficção. Na rede formada pela literatura, “o único a priori é a linguagem” porque nela
“não podem mais atuar a verdade da palavra nem a série da história”.
201
Ao privilegiar esta noção de rede para abordar as questões da ficção e da
verdade, não estamos excluindo outras características que possam vir a defini-las,
mas apenas deixando de lado certos reducionismos. Mesmo porque, se, em
determinado momento, Foucault se apóia na ficção, pensamos que o tenha feito
para extrair o que dela poderia lhe servir como suporte. Se pretendemos entender
qual a rede que se forma entre a ficção e a verdade, ou dito mais especificamente,
entre o discurso ficcional e o discurso histórico com efeitos de verdade, precisamos
inicialmente compreender o que Foucault entende por ficção.
A ficção designa uma série de experiências que parecem pertencer a “uma
das duas dinastias do Real e do Irreal”, porque sua linguagem poderia ser entendida
como subjetiva. O surrealismo, por sua vez, havia concedido um sentido a estas
experiências, mas este se reduzia à “busca de uma realidade que as tornasse
possíveis”
202
. Foucault busca um outro olhar.
“Mas e se essas experiências, pelo contrário, pudessem ser mantidas onde
estão, em sua superfície sem profundidade, nesse volume impreciso de
199
Ibid., p. 66.
200
Ibid., p. 65.
201
Ibid., p. 67. Esta questão da linguagem será retomada adiante.
202
Ibid., p. 68.
61
onde elas nos vêm, vibrando em torno do seu núcleo indeterminável, sobre
seu solo que é uma ausência de solo? E se o sonho, a loucura, a noite não
marcassem o posicionamento de nenhum limiar solene, mas traçassem e
apagassem incessantemente os limites que a vigília e o discurso
transpõem, quando eles vêm até nós e nos chegam já desdobrados?”
203
Deste modo, coloca-se de lado essa visão do fictício como o “mais alémou
como um “segredo”, para encontrá-lo exatamente naquilo em que ele aparece:
“então o fictício seria também o que nomeia as coisas, fá-las falar e oferece na
linguagem seu ser dividido pelo soberano poder das palavras”.
204
Isso não quer
dizer que ficção e linguagem sejam a mesma coisa, mas que existe entre elas uma
ligação de dependência. Assim, por este viés lingüístico, Foucault define o fictício
como sendo “a nervura verbal do que não existe, tal como ele é.” O que existe,
portanto, é uma experiência que pode ser tratada como ficção. E para
compreendermos a ficção dentro daquilo que ela é, é preciso um distanciamento e
uma aproximação. Distanciamento de tudo o que poderia fazer escorregar pelo
terreno da contradição: realidade e imaginação, subjetividade e objetividade, interior
e exterior. Substituindo todo este vocabulário dialético pelo “vocabulário da
distância”, aproxima-se da ficção enquanto “linguagem que está distante das
coisas”.
205
Por mais paradoxal que possa parecer, se por um lado a ficção está
ancorada na linguagem, por outro lado existe no fictício um afastar-se próprio da
linguagem. Esse afastamento nos remete a compreender a noção de distância. Mas
também somos conduzidos a outras aproximações: do simulacro, do aspecto, da
origem.
Por distância Foucault não entende um isolamento ou exclusão, mas a
abertura de dois espaços que são o mesmo, e que assim sendo, podem estar aqui e
lá, na mais longínqua distância e na mais próxima vizinhança. As figuras da ficção
têm volumes interiores, que “são o interior dos objetos no exterior deles próprios” e
por isso “se cruzam, interferem uns com os outros”. E não é a presença ou a
ausência das coisas que estes volumes revelam, mas uma distância. Esse ambiente
faz Foucault pensar no espelho, que as coisas passam a ter um espaço fora
203
Ibid., p. 68.
204
Ibid., p. 68.
205
Ibid., p 69.
62
delas, no qual as identidades são multiplicadas e as diferenças misturadas “em um
lugar impalpável que nada pode desenredar”.
206
Mas também o faz pensar no
simulacro. Sim, as coisas são delas mesmas a imagem, mas não é isso. Simular
também é “ser ao mesmo tempo de si e separado de si (...) estar fora de si, consigo,
em um ‘com’ no qual se cruzam as distâncias”.
207
Além disso, o tempo na ficção é o
da constante atualidade, que não existe um tempo linear e sim um tempo
indeterminado. Então, as figuras não se ordenam pelo tempo, mas por outras regras,
que Foucault chamou de aspecto:
“o jogo do aspecto em que o que está em questão é o afastamento, o
trajeto, a vinda, o retorno (...) O aspecto exterior, que não é nem a própria
coisa nem seu contorno exato; o aspecto que se modifica com a
distância...”
208
Por isso, o que determina esse tempo indeterminado é muito mais a questão
espacial do que a temporal, esse espaço que é o da distância. Deste modo, tempo e
espaço recebem uma outra dimensão e outra profundidade nesta linguagem do
aspecto e na da distância.
...o aspecto oferecendo não o próprio tempo, mas o movimento de sua
vinda; a distância oferecendo não as coisas em sua lugar, mas o movimento
que as apresenta e as faz passar
.”
209
Como o afastamento da distância e as relações do aspecto provêm da
dispersão da linguagem
210
, então estamos diante de uma linguagem que produz
algo e por esta razão, não pode ser considerada subjetiva. Portanto, uma linguagem
que produz uma experiência, a qual não pode ser entendida, segundo Foucault, nem
como falsa nem como verdadeira. A “origem” desta linguagem? “Há entretanto,
nessa linguagem da ficção um instante de origem pura: é o da escrita, o momento
206
Ibid., p. 62.
207
Ibid., p. 63.
208
Ibid., p, 71.
209
Ibid., p. 72.
210
Cf., Ibid., p. 72.
63
das próprias palavras...”
211
Mas a “origem” aqui é a do longínquo, pois não é
possível restabelecer à distância o seu momento anterior, assim como o aspecto
jamais será levado à linha do tempo.
212
Por esta razão, existe nessa linguagem uma
“lacuna”, um “vazio”, mas não porque algo seja mascarado ou dilacerado e sim
porque há um “exterior no interior”: o fora que escoa.
213
Assim, olhando essa linguagem na “superfície sem profundidade”, como
propôs Foucault, vemos escoar esse movimento do vazio pelo brilho da distância e
aspecto das coisas
214
, formando um lugar intermediário que se delineia pelo
simulacro. Por isso mesmo, somos conduzidos a uma profundidade sem superfície,
que ali o real e o virtual são apenas momentos de passagem. Neste sentido,
poderíamos dizer que há uma rede tecida pelo discurso fictício e pelo discurso com
efeitos de verdade, pois ambos remetem a linguagens que produzem algo seja
uma experiência ou efeitos transformacionais na realidade. Não se trata, aqui, de
compreender os encontros ou desencontros de tais discursos, nem mesmo de
averiguá-los sob a perspectiva do verdadeiro e do falso, mas apenas de entender
que estes discursos podem se relacionar independente das diferenças que os
separam.
1.2 Fábula: crepúsculo ou aurora?
Até agora discorremos sobre a ficção como se ao falar dela estivéssemos ao
mesmo tempo nos remetendo à fábula como se fossem uma e mesma coisa.
No texto “Por trás da bula”
215
, Foucault mostra a necessidade de distinguir fábula
e ficção. Vimos a estreita relação entre ficção e linguagem e isto porque a ficção
trata do “regime da narrativa”. Este regime se constitui tanto pela postura do
narrador frente ao que ele está narrando como pelas relações estabelecidas pelo
próprio discurso. a fábula diz respeito aos elementos (personagens,
211
Ibid., p. 70.
212
Cf., Ibid., p 72-73.
213
Esta noção já foi desenvolvida na p. 38.
214
Cf., Ibid., p. 74.
215
FOUCAULT, M., “Por trás da fábula” in Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 210-218.
64
acontecimentos, episódios) que compõem o que é contado. Deste modo, Foucault
entende que a ficção seria um “aspecto” da fábula, mas que é a ficção e, portanto, o
discurso, que define uma obra narrativa.
216
Após esta breve distinção entre ficção e fábula, penetraremos neste mundo
fabuloso pelas mãos de Nietzsche, através do qual toda esta história de fábulas e
verdades o estudo de Foucault teve início. Pretende-se com isso, não apenas
conhecer a fábula, mas principalmente desmembrar os fios que teceram esta rede
existente, em A vontade de saber, entre as tramas da fábula e as tramas da história,
ou se quisermos, entre o “falso” e o “verdadeiro”.
Em “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente uma fábula” ou “História
de um erro”
217
, encontramos a fábula de Nietzsche para a “vontade de verdade”.
Dividida em seis tópicos, há ao longo de seu desenvolvimento a história do erro que,
para Nietzsche, seria a do “mundo verdadeiro”. Tem início na proposição platônica -
“Eu, Platão, sou a verdade” - e com isso salienta aqueles que poderiam vir a
alcançar este mundo verdadeiro (primeiro momento): “O mundo verdadeiro,
alcançável para o sábio, o devoto, o virtuoso ele vive nele, ele é ele”. Na
seqüencia, cita o cristianismo, pelo qual o verdadeiro mundo” é aquele apenas
prometido: “O verdadeiro mundo, inalcançável no momento, mas prometido para o
sábio, o devoto, o virtuoso (‘para o pecador que faz penitência’).” Em seguida, o
“mundo verdadeiro” torna-se “...inalcançável, indemonstrável, impossível de ser
prometido, mas, enquanto pensamento, um consolo, uma obrigação, um
imperativo”. Logo depois, a reflexão positivista, que tem início com o “mundo
verdadeiro” tornando-se inalcançado e por isso desconhecido (“Conseqüentemente,
também não consolador...”). Com isso, a idéia do “mundo verdadeiro” se torna inútil
e deve ser eliminada. É o fim do “mundo verdadeiro” e não sobra mais nada: “O
verdadeiro mundo, nós o expulsamos: que mundo resta? O aparente, talvez? Mas
não! Com o verdadeiro mundo expulsamos também o aparente!”
218
Como se observa, uma interpretação detalhada do texto acima abordaria
diversos temas dos estudos de Nietzsche, e não é esta a nossa proposta. Assim,
216
Ibid., p. 210.
217
NIETZSCHE, F., “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente uma fábula” in Nietzsche. Obras
incompletas, p. 332-333.
218
Ibid., p. 332-333.
65
para não incorrermos em generalidades e em superficialidades, nos apoiaremos em
dois outros textos do próprio Nietzsche para fundamentarmos, grosso modo, o que
pretendemos abordar, que diz respeito à crença neste “mundo verdadeiro”.
Tomemos o aforismo 344 de A gaia ciência
219
, “Em que medida somos
devotos ainda” e o aforismo 347, “Os crentes e sua necessidade de crença”, e
vemos desenrolar-se a questão de uma “vontade de verdade”.
No primeiro, desenvolve a problematização de que a ciência seria sustentada
por uma crença (na verdade) e que esta crença viria de uma crença metafísica
(Deus é a verdade). Se a ciência afirma que nada é mais necessário do que a
verdade, tendo todo o resto um valor secundário, ele entende que esta “vontade de
verdade” seria entendida a princípio como uma vontade de “não querer enganar”
porque no fundo “eu não quero enganar, nem sequer a mim mesmo”. Com isso,
mais uma vez é o brilho da moral que se acende, mostrando que a luz está na
verdade longe desta claridade estaria a escuridão do erro. Mas, se a ciência é tão
convicta quanto à necessidade da verdade (“confiante incondicional”) isso se daria
por uma “desconfiança incondicional”. Ora, neste terreno temerário que a ciência
criou, este mundo também não poderia receber o crédito de ser verdadeiro. Daí a
busca (metafísica) de um outro mundo (o “verdadeiro”).
No segundo, explica que esta busca teria ocorrido por um “adoecimento da
vontade", fazendo instalar a crença em algo maior.
“A crença é sempre desejada com a máxima avidez, é mais urgentemente
necessária onde falta vontade: pois é a vontade, como emoção do mando, o
sinal distintivo de autodomínio e força. Isto é, quanto menos alguém sabe
mandar, mais avidamente deseja alguém que mande, que mande com rigor,
um Deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor...”
220
É assim que um homem chega à convicção fundamental de que é preciso
que mandem nele, ele se torna ‘crente...” e é assim que o homem, adormecido em
sua vontade, se tornou o prisioneiro de um “tu deves”
221
superior. Para Nietzsche, a
219
Ibid., p. 185- 223.
220
Ibid., p. 215.
221
Ibid., p.215.
66
única “força de vontade” deste homem seria a sua crença neste ser superior, no qual
se encontra a verdade.
Para complementarmos esta questão do “mundo verdadeiro”, nos reportamos
às quatro teses encontradas em Crepúsculo dos ídolos
222
, nas quais ele resume
sua compreensão dos motivos que conduziram à criação de um “mundo verdadeiro”
em oposição a um “aparente”. De forma resumida, estas teses mostram que “não
sentido em fabular acerca de um ‘outro’ mundo”, pois não se justifica dividir o mundo
em um “verdadeiro” e um “aparente”, que a aparência é também a realidade. A
justificativa desta divisão parece se encontrar, a nosso ver, na necessidade desta
crença.
Assim, a História de um erro parece ser a história desta crença, ou dito de
outro modo, o “mundo verdadeiro” se tornou uma fábula a partir da falsidade desta
crença. No sexto pico da fábula, quando Nietzsche faz a pergunta “que mundo
resta? o aparente, talvez?”
223
, podemos entender que ao abolir o “mundo
verdadeiro” restaria a realidade, que ele chama, na fábula, de “aparente” exatamente
por não fazer uma separação entre a aparência e a realidade. Ele não opõe fábula e
ficção à realidade. Tão pouco Foucault. Lembremos que para Foucault a ficção é o
intermediário, aquela relação na qual o real e o virtual são “momentos de
passagem”, “mediadores”.
Arremessando-nos para A ordem do discurso, temos ali a “vontade de
verdade” como um princípio de exclusão, na medida em que, ao tratar certos
discursos pela ótica do verdadeiro, estaríamos afirmando a falsidade de outros. Se a
verdade imposta exclui outras possibilidades, o trânsito entre os discursos (históricos
e ficcionais) elimina esta exclusão, dissolvendo as muralhas entre falso e verdadeiro.
Assim, se quiséssemos esboçar uma rede entre verdade e ficção, poderíamos supor
que em A vontade de saber ela é feita pelo discurso eles próprios mediadores de
passagem.
Portanto, poderíamos dizer que este primeiro volume de História da
Sexualidade até o desmascaramento da “hipótese repressiva” feito por Foucault é
também a História de um erro, na medida em que tal hipótese foi construída na
222
Ibid., p. 33-333.
223
Não estaremos abordando a resposta de Nietzsche a esta pergunta porque isto implicaria em estudar a
problemática niilista que não é o escopo de nosso trabalho.
67
crença da verdade do sexo. Mais uma vez, o “mundo verdadeiro” (desta vez o
verdadeiro encontrado no “deus” sexo), na perspectiva desta hipótese, revelou-se
uma mentira.
2. As Jóias indiscretas
2.1. O encontro com os bijoux
Não é sem espanto que nos deparamos com a resposta de Foucault à
pergunta que ele mesmo fizera (e a que nos referimos anteriormente): “Nesta série
de estudos, de que se trata? Transcrever em história a fábula das Jóias
indiscretas”.
224
Na urdidura do espanto com a curiosidade, nos arremessamos à
leitura desta fábula, a fim de podermos entender porque Foucault pronunciara tais
palavras. A vontade de saber seria a transcrição da fábula?
Tudo começa com um sultão do Congo, Mangogul, sentindo-se entediado por
não ter o que fazer. Mirzoza era a sua favorita e conseguia entretê-lo contando as
aventuras escandalosas das mulheres do reino, até chegar o dia em que esgotou os
seus relatos. Lamentando o fato, aconselhou-o a procurar o gênio Cucufá, o qual
através dos seus poderes, talvez pudesse ajudá-lo a ouvir mais aventuras. Recebeu
de Cucufá um anel, que concedia dois poderes àquele que o usasse no dedo: o
poder da invisibilidade e o de obrigar qualquer mulher a relatar seus casos
amorosos, bastando para tal que o anel fosse apontado em sua direção. Isso não
era tudo. As confissões não seriam feitas pela boca, mas “pela parte mais franca”
das mulheres: “por suas jóias”.
225
Cabe aqui a observação de Franklin de Mattos
226
sobre o termo bijoux, que o seria uma invenção metafórica de Diderot, pois na
época em que o livro foi escrito fazia parte da linguagem popular utilizar este termo
para se referir ao genital masculino e feminino.
224
Este trecho é o início do IV capítulo de VS, “ O dispositivo de sexualidade”, p. 101. Tradução brasileira, VS,
p. 87. A ele nos referimos nas “Considerações iniciais” do presente capítulo, p. 55.
225
DIDEROT, D., Jóias indiscretas, p. 22.
226
Cf., ver a nota de rodapé nº 1 do capítulo “A alegoria licenciosa das luzes, in MATTOS, Franklin de, A
cadeia secreta, p. 51.
68
Foi assim que começaram as “experiências com o anel” de Mangogul, que
totalizaram vinte e nove, finalizando quando ele apontou o anel à favorita (rompendo
assim com o pacto que haviam feito), que em troca da ofensa recebida exigiu a
devolução do anel. As outras experiências ocorreram exatamente como havia dito
Cucufá, e as jóias falantes não pararam de confessar ao sultão e a quem estivesse
perto suas mais secretas aventuras, colocando as mulheres da corte num estado de
intensa apreensão. Em pouco tempo o tema dessas jóias falantes era central,
atiçando inclusive a curiosidade dos sábios, que passaram a se reunir na busca da
compreensão do fato. Diante do insucesso deles, a religião lançou sua explicação.
Embora tivessem admitido que o fato era de origem sobrenatural, chegou o dia em
que numa solenidade na mesquita, o brâmane
227
acusou os servidores de estarem
sem fé, negando a existência de Brama. Assim, as jóias falavam porque os infiéis
estavam sendo castigados. Era por punição divina que as jóias haviam se
manifestado: “Que cessem de negar a existência de Brama ou de fixar limites a seu
poder. Brama existe, e é onipotente...
228
A repercussão das jóias atingiu também o comércio, e focinheiras começaram
a ser confeccionadas para impedirem às jóias o uso da palavra. Os brâmanes se
revoltaram com este fato, porque pretendiam, com a resolução do mistério da fala
pela punição, uma reforma dos costumes.
“Mulheres mundanas, tirem suas focinheiras! Obedeçam à vontade de
Brama! exclamavam. Deixem a voz de suas jóias despertar a voz de
suas consciências! E não se envergonhem de confessar crimes que o se
envergonham de cometer!”
229
Mesmo com todo este alvoroço Mangogul prossegue no uso do anel a seu
bel prazer, satisfazendo suas curiosidades em saber os “vícios das mulheres infiéis
e os ridículos dos homens traídos”,
230
até que em uma das experiências com o anel
toma conhecimento não apenas das questões amorosas de certas viúvas, mas do
mau uso que as mesmas faziam das pensões que lhes eram concedidas. Em vista
227
Ao que tudo indica, Brama seria um deus e os brâmanes os responsáveis pela celebração das solenidades
religiosas.
228
DIDEROT, D., Jóias indiscretas, p. 69.
229
Ibid., p., 81.
230
MATTOS, Franklin de, A cadeia secreta, p. 62.
69
disso, Mirzoza conclui para o sultão que o anel poderia beneficiá-lo com outras
serventias.
“Até hoje, senhor, o anel de Sua Alteza quase que serviu para satisfazer-
lhe a curiosidade. Será que o gênio que lhe deu o anel não se propunha um
fim mais elevado? Se o senhor empregá-lo em função da descoberta da
verdade e da felicidade de seus súditos, acha que Cucufá ficaria ofendido?
Experimente.”
231
Assim, o anel era utilizado conforme seus desejos. Mas Mangogul não era o
único que se entretinha ouvindo confissões amorosas. Mirzoza não tinha um anel
como o do sultão, mas tinha o cortesão Selim, um súdito que a servia com a
narração de suas peripécias amorosas. Estas são as partes que fazem jus ao
caráter libertino do romance, escrito em 1748 e correspondendo, portanto, ao gênero
da moda que eram os contos orientais recheados de anedotas libertinas.
232
Entretanto, esta parte narrativa é intercalada por uma outra, que Franklin de Mattos
chamou de “digressiva e que contém debates sobre diversos temas (artísticos,
atualidade científica, literários, históricos) e especulações filosóficas
233
. Embora esta
parte digressiva tenha sua importância, inclusive porque parece mostrar os primeiros
vestígios da metafísica experimental depois desenvolvida por Diderot, o texto parece
encantar justamente por conter reflexões filosóficas e morais que se misturam com
questões eróticas e obscenas.
2.2 Diderot, sem segredos
Não menos instigante foi o motivo que teria levado Diderot a escrever o
romance.
231
DIDEROT, D., Jóias indiscretas, p. 146.
232
Cf., MATTOS, Franklin de, A cadeia secreta, p. 52.
233
Cf., Ibid., p. 55.
70
“Eu tinha uma amante. Ela pediu-me cinqüenta luíses de ouro, e eu o
tinha um vintém. Ela ameaçou abandonar-me, se eu não pudesse dar-lhe
aquela soma em quinze dias. Redigi, então, o livro conforme o gosto da
maioria dos nossos leitores. Levei-o ao editor, ele contou-me os cinqüenta
luíses de ouro, e eu os joguei na saia da minha amada.”
234
Uma amante, a Srª de Puisieux, talvez uma “jóia indiscreta” de Diderot, leva-o
a escrever sobre jóias que falam indiscretamente. Ainda que depois de certo tempo
da sua publicação tenha havido empenho do próprio Diderot em dissociar este
romance de sua obra filosófica
235
, talvez pela reputação que pretendia manter com a
Enciclopédia,
236
a questão é que “a pena de Diderot rompeu muitas amarras”.
237
Romper e tecer parecem ser os ícones da escrita diderotiana, a ponto de Roberto
Romano chamá-lo de “Penélope da revolução”.
238
Revolucionário não apenas
porque seguia as transformações econômicas, políticas e sociais do século XVIII,
mas sobretudo por se destacar no gênero literário criado pelos filósofos da
Ilustração: o romance filosófico. O Enciclopedista se sobressai por uma variedade de
obras (teatro, romances, contos, escritos científicos e políticos) que se desenrolam
em diferentes momentos de seu trabalho.
No início de sua carreira os textos licenciosos, como as Jóias indiscretas,
rapidamente cedem lugar a outro breve período, que trata de questões religiosas e
de Deus numa tentativa de tentar conciliar Deus e a natureza, como é o caso de O
passeio do céptico, de 1747
239
. A revelação de seu pensamento surge em 1749, ao
escrever a Carta sobre os cegos, pois começa a desenvolver uma postura
investigativa, dirigindo-se “por via positiva a um materialismo organicista”.
240
Nesse
entremeio, a Enciclopédia ia sendo tecida e as tarefas que esta lhe impunha
acabaram por influenciá-lo. Foi assim que em 1753 escreverá o ensaio Da
interpretação da natureza, deixando evidente a marca da investigação positiva.
234
DIDEROT, D., Jóias indiscretas, p. 318, apud, Eduardo Brandão, nota de rodapé de número 14.
235
FRANKLIN, Mattos de., A cadeia secreta,p., 53-54.
236
Diderot assinara em 1747 o contrato de traduzir a Enciclopédia Inglesa, à qual se dedicou durante 30 anos e
que é considerada a grande realização do século XVIII. Ver a este respeito em GUINSBURG, J., Denis Diderot.
O espírito das “luzes”.
237
ROMANO, Roberto, “Diderot, Penélope da revolução” in Revolução francesa, “Revistausp”, vol. 1.
238
Ibid., p. 1
239
GUINSBURG, J., Denis Diderot, p.55-60.
240
Ibid., p. 65.
71
“Fiel à sua vinculação racionalista, procura combinar indução e dedução,
intuição e reflexão, visão e previsão. Trata-se de explorar em profundidade
a pesquisa experimental, sem perder o horizonte da hipotética teórica, pois
a primeira sem a segunda é míope e a segunda sem a primeira, estéril.”
241
Uma das grandes produções desse momento acontece em 1769, com O
sonho de d’Alembert. Nesta pequena obra-prima, como é considerada, encontra-se
tudo aquilo que Diderot e seus contemporâneos chamam de “história da natureza”, e
através da qual tenta resolver “um dos mais sérios problemas do materialismo
moderno, o da contradição entre a unidade do mundo e a diversidade da matéria.”
242
A partir de 1770 um deslocamento no foco de sua atenção e o tema da
moral passa a ser central. Seus trabalhos mostram neste sentido uma reivindicação
pelos direitos da paixão e pela vida em liberdade - tudo de acordo com a natureza e
contra a “sociedade insensata e cruel”.
243
Por vezes sua reflexão moral é tratada na
forma de romance, de tal maneira que o real não é simplesmente reproduzido, mas
iluminado pelo universo da criação. Assim, podemos observar que A religiosa, O
sobrinho de Rameau e Jacques, o fatalista “constituem um mundo ficcional de
paixões e vinganças”, mas também representam uma “carga especulativa” na qual o
debate filosófico é costurado com grande capacidade artística através de hipóteses
e paradoxos
244
. Pode-se dizer que o paradoxo é, aliás, ao lado do materialismo e da
conversação, sua característica fundamental. Fundamental também na vida, o que
talvez tenha colaborado para que sua escrita pudesse tecer de forma tão
harmoniosa, fios tão distintos.
“Pois ele é sobretudo o homem do diálogo e do paradoxo. E no seu caso,
um e outro não constituem menos recursos de estilo: traduzem a própria
dialética de suas propensões, de seu temperamento e do próprio modo de
sua existência. nele sempre dois, um a pôr e outro a opor, numa divisão
dramática que o atravessa permanentemente, tanto quanto constantemente
renovada tentação da unidade.”
245
241
Ibid., p. 69.
242
Ibid., p. 81.
243
Ibid., p. 86.
244
Ibid., p. 88-91.
245
Ibid., p. 106.
72
Por um lado observa-se este caráter paradoxal nas reflexões de Diderot, que
Jacó Guinsburg entendeu como um “movimento pendular”,
246
mas por outro lado,
sua busca pela unidade pode ser esclarecida naquilo que Franklin de Mattos
chamou de “cadeia secreta”.
247
Explica este último que “apesar de versátil e o-
sistemática, a reflexão de Diderot possui uma unidade secreta, que pode ser
atestada pela teoria da linguagem poética...”
248
Neste sentido somos conduzidos à
outra grande vocação, a conversação. É que Franklin de Mattos vislumbra a
unidade, visto que na sua leitura de Diderot, existiria uma energia, força universal
comum a todos os seres e também à linguagem
249
. Portanto, uma cadeia na qual
por meio da sensação (visto que a sensibilidade também seria uma qualidade
universal) nossa alma perceberia as idéias, que seriam representadas pelo discurso.
Deste modo é a linguagem que permitiria o acesso à unidade do espírito. Entretanto,
existiria nessa cadeia uma “ordem secreta” na construção da linguagem: “há em
Diderot um motivo que quase sempre permanece subterrâneo e, às vezes, aflora à
superfície.”
250
Prosseguindo, agora com Roberto Romano, “o efeito revolucionário de uma
escrita mede-se pela capacidade formadora de significantes e significados por
tramas dos vários universos discursivos...”
251
. Diderot parece surpreender todas as
medidas, voando por fios que se opõem “às formas estabelecidas” com “asas de
borboleta livre e multicolorida”, metamorfoseando a linguagem através de uma
“escrita corrosiva” com “efeito poético liberador”.
252
Portanto, o é sem motivo que
Romano o chama de Penélope, na medida em que tece uma linguagem singular
(arrancando “do leitor dogmático a segurança sobre o certo e o verdadeiro”
253
) e
desfaz os fios das evidências.
Diderot também tece os fios da ficção e os fios da realidade de tal forma que
algumas vezes parece difícil determinar em seus romances “aquilo que é ‘ficção’ e
aquilo que é ‘realidade’”.
254
Para ele, é preciso que haja uma verdade romanesca”
246
Cf., Ibid., p. 113.
247
MATTOS, Franklin de, “A cadeia secreta” in Cadeia secreta, p. 41-48.
248
Ibid., p. 44
249
Cf., Ibid., p. 44.
250
Ibid., p. 46.
251
ROMANO, R., “Diderot, Penélope da revolução” in Revolução francesa, p.13.
252
Cf., Ibid., p. 1-12.
253
ROMANO, R. Silêncio e ruído, p. 189.
254
MATTOS, Franklin de., Cadeia secreta,p. 73-109.
73
para que o leitor se identifique com o que está lendo e possa assim participar do
romance. Para tanto, faz com que os objetos tenham um caráter verdadeiro, iludindo
o leitor através de um discurso “autenticado por ‘circunstâncias comuns’, que lhe
conferem uma ‘suposição histórica’”.
255
O romancista moderno, para Diderot, parece
ser aquele que consegue fazer um jogo no qual mistura o “comum e o incomum”,
pois acredita que é através das circunstâncias comuns e das experiências cotidianas
que o objeto pode ser tomado por verdade, sem a desconfiança que a poesia e a
eloqüência costumam inspirar. Diderot consegue conciliar questões aparentemente
contraditórias (a ilusão e a poesia) sendo “verossímil e ao mesmo tempo
maravilhoso” porque
“Ele semeará suas narrativas de pequenas circunstâncias tão ligadas à
coisa, de traços tão simples, tão naturais e todavia tão difíceis de imaginar,
que sereis forçado a dizer: ‘Por minha fé, isto é verdade: não se inventam
essas coisas’. É assim que resgatará o exame da eloquencia e da poesia;
que a verdade da natureza cobrirá o prestígio da arte; e que ele satisfará as
duas condições que parecem contraditórias, ser ao mesmo tempo
historiador e poeta, verídico e mentiroso.”
256
Ora, se por vezes Diderot tenta encantar a imaginação do leitor levando-o a
entender uma história falsificada como verdadeira
257
, e sendo nosso interesse
compreender em que sentido poderíamos interpretar a ligação entre a ficção
(história falsificada) e a História da Sexualidade, pensamos que é chegado o
momento de cruzarmos os fios: entre a história e a ia, talvez muitos segredos
indiscretos.
255
Ibid., p. 107-108.
256
DIDEROT, D., “Les deux amis de Bourbonne” in Quatre contes, p. 65ss, apud, MATTOS, Franklin de, A
cadeia secreta, p. 83.
257
Ibid., p. 86.
74
3. Ressonâncias e dissonâncias entre A vontade de saber e Jóias
indiscretas
Talvez depois de termos conhecido um pouco sobre o sultão curioso, não
hesitaríamos em concordar com a afirmação de Foucault.
“Vivemos todos, muitos anos, no reino do príncipe Mangogul: presa de
uma imensa curiosidade pelo sexo, obstinados em questioná-lo, insaciáveis
a ouvi-lo e ouvir falar nele, prontos à inventar todos os anéis mágicos que
possam forçar sua discrição”.
258
Vimos ao longo da nossa reconstituição e estudo de A vontade de saber, que
Foucault, ao contrário de concordar com a “hipótese repressiva”, propõe a história
de uma crescente instigação dos discursos sobre o sexo nas sociedades modernas
ocidentais. Como o próprio nome diz, haveria uma “vontade de saber” sobre o sexo.
Por trás desta “vontade”, mecanismos de poder que fizeram do sexo aquilo que
devia ser confessado, daí a ininterrupta instigação a falar do sexo, pois é segredo a
ser desvendado, enigma que “fala em voz tão baixa e muitas vezes disfarçada”
259
que foi preciso desenvolver e criar ouvidos especialistas para ouvi-lo bem.
“O que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado, o
sexo, a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar
dele sempre, valorizando-o como o segredo.”
260
Assim, parece que o reino de Mangogul é aqui mesmo no ocidente, onde não
apenas vivemos, mas seríamos todos esse príncipe curioso. A nosso ver, talvez a
diferença de um reino para o outro esteja no fato de que as jóias eram postas a
falar, e aqui somos nós mesmos que falamos. Portanto, poderíamos dizer que
somos príncipes e jóias ao mesmo tempo. Também diferente daquele porque não é
em busca de novas histórias que estaríamos à procura, mas da verdade oculta
258
FOUCAULT, M., VS, p. 101.Tradução brasileira, VS,p. 87.
259
Ibid., p. 41/Ibid., p. 48.
260
Ibid., p. 49/ Ibid., p. 42.
75
que acreditamos existir no sexo. Em nome dessa verdade, devemos falar sobre o
nosso sexo, ou se quisermos, nosso sexo deve falar.
“Dentre seus emblemas, nossa sociedade carrega o do sexo que fala. Do
sexo que pode ser surpreendido e interrogado e que, contraído e volúvel ao
mesmo tempo, responde ininterruptamente.”
261
Seguindo as considerações de Franklin de Mattos, as Jóias indiscretas
parecem denunciar exatamente aquilo que Foucault analisou em A vontade de
saber, que ao fazer as jóias falarem Diderot estaria dando voz não à verdade do
sexo, mas à sua mentira. A mentira do sexo ter sido reprimido. Pelo contrário, o sexo
apenas foi “capturado por um certo mecanismo” tornando-se invisível.
262
“...não seria despropositado atribuir a Les Bijoux indiscrets a ‘intuição geral
de que a grande mentira, sobre a qual se fundam a inautenticidade das
relações humanas, a hipocrisia, os ridículos e até as injustiças – numa
palavra, os males da civilização – é a ‘mentira sexual’”.
263
Foucault denuncia esta mentira através de uma análise histórica. Uma
mentira através de uma verdade. Mas vimos que ao fazer uso de uma fábula, uma
mentira por assim dizer, estaria deixando a história e se apoiando na ficção. Por
outro lado, pudemos perceber que Diderot faz um malabarismo entre o real e o
fictício: o príncipe pode ser um personagem fictício, mas a curiosidade sobre o sexo
parece existir em todo o reino do ocidente ela é real. Deste modo, a história
“falsificada” de Diderot ajuda a afirmar a história “verdadeira” de Foucault. Assim,
tanto a história de um como a fábula do outro não escondem segredos, mas os
revelam. Como diz Roberto Romano sobre Diderot, “o mundo pode ser uma tela sim,
mas sem esconder nada no seu verso.
264
Retomando a indagação que levantamos nas considerações iniciais deste
capítulo, a respeito de como entender a inserção da fábula de Diderot na proposta
261
Ibid., p. 101/Ibid., p.87.
262
Ibid., p. 101/Ibid., p.87.
263
MATTOS, Franklin de., Cadeia secreta, p. 59.
264
ROMANO, R., “Diderot à porta da caverna platônica” in Filosofia e política, “Obras I”., p. 37.
76
histórica de Foucault nos termos das relações entre poder e discurso, busquemos
uma passagem em A vontade de saber a fim de desenvolver o nosso pensamento
sobre esta questão.
“Na narração de Diderot, o gênio bom Cucufá descobre, no fundo do
seu bolso (...) o minúsculo anel de prata, cujo engaste, revirado, faz falar os
sexos que se encontram. Dá-o ao sultão curioso. Cabe-nos saber que anel
maravilhoso nos confere tal poder, e no dedo de que mestre deve ser
colocado; que manobras de poder permite ou supõe, e como cada um de
nós pôde se tornar, com respeito ao próprio sexo e aos dos outros, uma
espécie de sultão atento e imprudente. Esse anel mágico, essa jóia tão
indiscreta quando se trata de fazer os outros falarem, mas tão pouco
eloqüente quanto ao seu próprio mecanismo, convém torná-lo loquaz por
uma vez; é dele que é preciso falar. É preciso fazer a história dessa vontade
de verdade...”
265
Como se vê, segundo Foucault, a história dessa vontade de verdade
corresponde à história do anel mágico de Mangogul. Correspondência que a nosso
ver se no plano dos discursos, na medida em que Foucault parece utilizar o
discurso para explicar a constituição da sexualidade nas sociedades modernas
apoiando-se em determinado momento em outro discurso, o ficcional. Deste modo, o
discurso ficcional serviria de contraponto fundamental.
Se procurarmos no fundo do bolso da história, veremos que existem mais
anéis, e estes outros não vão parar no dedo de um único sultão. Foucault foi aquele
que procurou esses anéis, mas ao contrário de querer um poder, quis mostrar e
desmascarar mecanismos de poder, aparentemente invisíveis como o sultão.
Enquanto desmanchava os fios dos monumentos que ergueram e sustentaram a
“hipótese repressiva”, tecia com o mesmo fio na outra ponta do novelo a história dos
discursos sobre o sexo. Deste modo, este anel que se criou entre os mecanismos de
poder e os discursos sobre o sexo foi adquirindo voz através da análise genealógica
de Foucault. Como se por um momento ele apontasse um espelho às jóias, fazendo-
as refletir as histórias do sultão. Conforme dissemos, o anel conferia poderes ao
sultão e por meio destes poderes as jóias falavam. Assim, o silêncio era quebrado.
265
FOUCAULT, M., VS, p. 104-105. Tradução brasileira VS, p. 89-90.
77
Do mesmo modo, Foucault quis mostrar que na história da sexualidade o poder, ao
invés de ser exclusivamente repressor, também produzia discursos com efeitos de
verdade sobre o sexo
266
, levando a uma “superprodução de saber social e cultural”
sobre o sexo
267
- a sexualidade não foi silenciada, como prega a “hipótese
repressiva”, ela foi instigada a falar. Como podemos observar, o discurso ficcional e
o discurso verdadeiro se cruzaram para produzirem uma única meada: os fios são
diversos, mas a meada é a mesma. Pode-se dizer, com Franklin de Mattos, que “já
que se trata de um romance satírico, o efeito da experiência é sempre revelar vícios
e ridículos da sociedade congolesa, vale dizer, francesa.”
268
Se nos espantamos
com aquele príncipe porque seu prazer maior (e insaciável) era tomar conhecimento
das aventuras amorosas de seu povo, Foucault tenta mostrar que o ocidente
padece, alguns séculos, da mesma enfermidade mas deu a essa doença o nome
de ciência sexual.
E devemos pensar que um dia, talvez, numa economia dos corpos
e dos prazeres, já não se compreenderá muito bem de que maneira os ardis
da sexualidade e do poder que sustêm seu dispositivo conseguiram
submeter-nos a essa austera monarquia do sexo, a ponto de votar-nos à
tarefa infinita de forçar seu segredo e de extorquir a essa sombra as
confissões mais verdadeiras.”
269
266
Embora saibamos que na concepção foucaultiana o poder não se encontra localizado em um único ponto,
usamos a comparação com o sultão apenas para mostramos que Foucault, através de suas análises, enfocou o
poder, fazendo-nos ver seus mecanismos.
267
FOUCAULT, M., “Sexualidade e poder” in Estética, sexualidade, política, p. 60.
268
MATTOS, Franklin de., Cadeia secreta, p. 62. Embora encontremos nas notas de Jóias indiscretas uma
referência de alguns personagens em relação a figuras da sociedade francesa, pensamos não se tratar da
revelação dos vícios e ridículos exclusivamente da sociedade francesa, mas das sociedades ocidentais.
269
FOUCAULT, M., VS, 211. Tradução brasileira, VS, p. 174.
78
CONCLUSÃO
O primeiro capítulo nos evidenciou, através da análise genealógica feita por
Foucault, que a “hipótese repressiva” se sustentou, nas sociedades ocidentais
modernas, porque os próprios mecanismos de poder, ao encobrirem suas táticas e
estratégias, fizeram com que o poder fosse reconhecido apenas por seu aspecto
negativo. Foi ao conceber o poder enquanto relações de força, que Foucault
destacou o papel produtivo destas relações, daí sua afirmação do seu aspecto
positivo. Essa foi a base para ele apontar uma outra “concepção de poder”, o “bio-
poder.” Trata-se de um poder que se organizou através de mecanismos disciplinares
e de mecanismos reguladores, os primeiros atuando no corpo e os segundos na
população. Vimos que o motivo que levou o sexo a se transformar em objeto destes
mesmos mecanismos de poder foi o fato dele se encontrar articulado tanto no corpo
como na população. Isto significou o desenvolvimento de uma tecnologia do sexo,
mostrando que a história do sexo não se fundamentou em restrições, mas em
estimulações. Um dos principais meios para estas estimulações foram os discursos,
que servindo como meio de exercício para o poder, colocaram o sexo em discurso.
Partindo do princípio organizado pelo cristianismo, que confessar era dizer a
verdade, e posteriormente com a institucionalização desta prática da confissão pelo
modelo científico, o sexo se vinculou à palavra, tornando-se objeto de verdade.
Assim, a verdade do sexo passou a ser produzida, historicamente, por discursos
científicos através da prática da confissão.
Para Foucault, uma história da sexualidade é feita na medida em que se
entende que a sexualidade é um dispositivo histórico, a partir do qual se estabeleceu
a noção do sexo. Assim, este primeiro volume da História da Sexualidade é a
história daquilo que passamos a chamar de sexualidade, algo “a partir do que, e
sobre o que um certo número de discursos, de práticas, de técnicas, de saberes e
de intervenções se torna possível.”
270
Deste modo, pode-se entender quando
Foucault diz que é ilusório acreditar que precisamos falar sobre o sexo porque assim
estaríamos nos libertando do poder: “ao contrário, se está seguindo a linha do
dispositivo geral da sexualidade.”
271
270
FONSECA, Márcio Alves da, Michel Foucault e o direito, p. 199.
271
FOUCAULT, M., VS, p. 207. Tradução brasileira, VS, p. 171.
79
O segundo capítulo nos evidenciou a relação entre o discurso ficcional e os
discursos com efeitos de verdade, em A vontade de saber. Partindo do
questionamento sobre qual seria o papel de um texto fictício dentro de um estudo
histórico, levantamos primeiramente algumas considerações a respeito das noções
de falso e de verdadeiro. Deste modo, o texto de Nietzsche colaborou na
compreensão da existência de uma crença milenar na verdade, crença que teria
levado à busca de um “mundo verdadeiro”. Mas Nietzsche aponta que o grande erro
dos homens foi dividir o mundo em um falso e outro verdadeiro, que tudo é
realidade. Seguindo estas premissas, Foucault também transpõe as barreiras entre
o fictício e o verdadeiro, a partir da concepção de perspectiva da verdade e da
noção de ficção enquanto um movimento intermediário. Além disso, concebendo a
relação de dependência da ficção com a linguagem, o real e o virtual passam a ser
considerados apenas momentos de passagem. Neste cenário, percebemos que a
fábula de Diderot torna-se um momento de passagem para a compreensão do
estudo histórico de Foucault. A ilustração feita por Roberto Romano da escrita
diderotiana com a máquina tecelã evidencia a possibilidade dos discursos serem
feitos de fios vários, podendo assim se esgarçarem ou serem tecidos de outros
modos.
272
Deste modo, “desfiando velhos elementos”
273
, o artefato discursivo
produzido por Diderot possibilita que o seu príncipe exponha a história de Foucault a
respeito da “vontade de saber” sobre o sexo. Assim, nos parece que o discurso
ficcional da fábula teria o papel, no estudo histórico de Foucault, de evidenciar que
entre o real e o fictício apenas um mundo, e este não é o verdadeiro, mas o
“mundo da crença” na verdade – do sexo.
Reservamos para a conclusão algumas perspectivas abertas na leitura do
texto de Paul Veyne, “Um arqueólogo céptico”.
274
Ao longo deste estudo, o autor
articula a questão do discurso com a questão da verdade e da história, através de
sua leitura dos estudos de Foucault.
272
Cf., ROMANO, R., “Diderot: Penélope da revolução” in Revolução francesa, p. 13.
273
Ibid., p. 20.
274
VEYNE, Paul., “Un archéologue sceptique” in L’infréquentable Michel Foucault. Tradução espanhola, “Un
arqueólogo escéptico” in El infrequentable Michel Foucault. A tradução das passagens deste texto para a língua
portuguesa é de nossa responsabilidade, a partir do original francês e com consulta à tradução espanhola.
80
Veyne entende que todo eixo histórico é uma singularidade, e por isso não
existiriam verdades que poderiam ser consideradas gerais. Do mesmo modo, os
discursos poderiam ser chamados de “quadros formais de singularização”, de
“pressupostos que se descobrem e que estão dissimulados abaixo de racionalidades
ou de generalidades.”
275
As generalidades também são eixos históricos, e por isso
variam através do tempo, mas se impõem em cada época como verdade. Neste
sentido, a verdade se “reduz ao dizer verdadeiro” e corresponde a uma época
determinada. Um acontecimento, portanto, deve ser explicado através de sua
singularidade discursiva. Deste modo, a existência da sexualidade não pode ser
separada do discurso: “todo conhecimento passa pelo discurso, toda aquisição de
um saber novo se faz ao preço de uma mudança de discurso.”
276
Mas, as formações
históricas permaneceram por muito tempo vinculadas às familiaridades que as
constituíam, daí Veyne falar no discurso do que é visível. Foucault, na leitura de
Veyne, teria sido aquele que se esforçou para explicar o original. Para se encontrar
o original, deve-se buscar como um acontecimento foi singularizado por seus
discursos. Isso significa que haveria em cada formação histórica uma “parte
inconsciente ou implícita”, daí Veyne falar que o “discurso é esta parte oculta que
singulariza o objeto histórico”.
277
Portanto, o discurso seria
“aquilo que não é dito (...) é absolutamente outra coisa que um vocabulário
e uma gramática, que permite a cada um formar um número ilimitado de
frases, dizer livremente todas as verdades...”
278
Segundo Veyne, recorremos à parte visível do eixo histórico porque
estamos familiarizados com ela, o que nos tranqüiliza. Porém, em relação às partes
não visíveis, delas temos apenas um conhecimento vago e confuso, pois os próprios
discursos as encobrem com “generalidades enganosas”.
279
Ademais, cada época
“só diz e o que ela pode perceber através das viseiras de seus discursos.
280
Assim, a nosso ver, Foucault teria sido aquele que, em A vontade de saber,
275
Ibid., p. 20/ Ibid., p. 24.
276
Ibid., p. 20-21./ Ibid., p. 25-26.
277
Ibid., p. 25/ Ibid., p. 32-33.
278
Ibid., p., 26/ Ibid., p. 34.
279
Ibid., p. 30/ Ibid., p. 40.
280
Ibid., p. 26/ Ibid., p. 34
81
percebeu o não visível através das viseiras dos discursos sobre o sexo, colocando
isso em palavras.
82
BIBLIOGRAFIA
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